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GILMAR TENORIO SANTINI
ÁLVARES DE AZEVEDO: A busca de uma literatura consciente.
ASSIS
2007
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GILMAR TENORIO SANTINI
ÁLVARES DE AZEVEDO: A busca de uma literatura consciente.
Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade
de Ciências e Letras de Assis UNESP
Universidade Estadual Paulista, para obtenção do
título de Mestre em Letras (Área de
Conhecimento: Literatura e Vida Social).
Orientador: Dr. Luiz Roberto Velloso Cairo.
ASSIS
2007
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Santini, Gilmar Tenorio
S235a Álvares de Azevedo: a busca de uma literatura consciente /
Gilmar Tenorio Santini. Assis, 2007
225 f. : il.
Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – Universidade Estadual Paulista.
1. Crítica e interpretação. 2. Azevedo, Álvares de, 1831-
1852. 3. Literatura brasileira – História e crítica. I. Título.
CDD 801.95
869.9109
À memória de Sônia Tenorio Santini,
irmã querida.
AGRADECIMENTOS
A realização deste trabalho se deve ao apoio do CNPq e de pessoas que colaboraram direta ou
indiretamente.
Meus especiais agradecimentos:
Ao CNPq, pela concessão de uma Bolsa de Estudos durante dois anos.
No que concerne as pessoas, sou profundamente grato:
Ao professor Luiz Roberto Velloso Cairo, pela orientação deste trabalho, pela acessibilidade e
disponibilidade com que dispunha a me orientar. Devo dizer que o Professor Luiz Roberto
ajudou-me a trilhar o difícil e solitário caminho que é a pesquisa, bem como me proporcionou
um diálogo aberto, sem imposições que eu deveria, no decorrer do trabalho, acatar sem
questionamento.
Aos professores Álvaro Santos Simões Júnior e Ana Maria Domingues de Oliveira, pelas
ricas contribuições apontadas no exame de qualificação;
Aos professores Vagner Camilo e Álvaro Santos Simões Júnior, pelas observações e
apontamentos sugeridos na argüição desta dissertação.
Aos professores do curso de graduação e pós-graduação da UNESP-Assis;
À professora Cleide Rapucci;
À Telma Maciel da Silva;
Aos funcionários da Biblioteca da FCL de Assis, Áureo e Lucelena;
Aos amigos Telma, Viviane, Raquel, João Fuzatto, Roberta, Aline, Amaralina, Carlos
Eduardo, Rita, Jacicarla, Emanuel Ângelo, Riobaldo e Diadorim uai!
Aos meus pais Antonio e Luiza, aos meus irmãos João, Sônia, Maura, Gilberto e Heloiza.
O dualismo, a antítese é o princípio
motor, o princípio passional,
dialético e espirituoso.
Thomas Mann, A Montanha Mágica
.
RESUMO
A presente dissertação de mestrado visa a um estudo analítico de parte da obra de Álvares de
Azevedo e de parte dos textos da recepção crítica sobre este autor, com o propósito de apontar
uma possível consciência literária do poeta na elaboração de sua produção artística. Ou seja, o
que se pretende neste trabalho é retomar parte da fortuna crítica da obra alvaresiana,
observando as conclusões levantadas pelos estudiosos e, quando possível, estabelecer nosso
juízo sobre os assuntos desenvolvidos por eles, bem como realizar uma leitura, análise e
crítica dos seguintes textos: os prefácios de Lira dos Vinte Anos com uma maior ênfase no
prefácio à segunda parte deste livro e alguns poemas e os ensaios “Literatura e Civilização
em Portugal”, “Alfredo de Musset / Jacques Rolla” e “George Sand / Aldo o Rimador”. Com
isso, a nossa preocupação é desenvolver um trabalho de natureza crítica acerca da obra de
Álvares de Azevedo, a fim de ressaltar a consciência do fazer literário presente nos escritos
deste poeta. Deste modo, buscamos abarcar não a observação de uma coerência entre o
poeta e crítico, mas também a constatação de um procedimento crítico explícito em sua
própria obra, que contribuiu para nortear o desenvolvimento e organização de seu projeto
literário e de sua concepção de poética.
Palavras-chaves: Literatura Brasileira, Álvares de Azevedo, Crítica Literária.
ABSTRACT
The present dissertation aims an analytic study of part of Alvares de Azevedo’s work and of
part of the texts of criticism reception about this author, with the intention of showing the
poet’s possible literary conscience in the elaboration of his poetical works. In other words, our
purpose in this dissertation is to approach part of the criticism reception of Alvares de
Azevedo’s work, observing the conclusions pointed by the critics and, when possible, to
establish our judgement about the subjects developed by them, as well as to carry out a
reading, analysis and criticism of the texts: the prefaces of Lira dos Vinte Anos emphasizing
the preface of the second part of this book and some poems and the essays “Literatura e
Civilização em Portugal”, “Alfredo de Musset / Jacques Rolla” and “George Sand / Aldo o
Rimador”. In addition, our concern is to develop a critical study about Alvares de Azevedo’s
work, in order to emphasize the conscience of the literary process in the texts of this poet.
This way, we search to comprise not only the observation of coherence between the poet and
the critic, but also the observation of an explicit critical procedure in his own literary work,
which contributed to guide the development and organization of his literary project and of his
conception of poetics.
Key-words: Brazilian Literature, Álvares de Azevedo, Literary Criticism.
SUMÁRIO
PALAVRAS INICIAIS...........................................................................................................09
PARTE I:
ERROS, ACERTOS, TENTATIVAS: A RECEPÇÃO CRÍTICA DA OBRA DE
ÁLVARES DE AZEVEDO....................................................................................................15
1 – Uma hipótese.......................................................................................................................16
2 – As metodologias críticas.....................................................................................................32
3 – Os dados biográficos como elementos primordiais para a compreensão da obra de Álvares
de Azevedo................................................................................................................................37
3.1 –
A crítica psicobiográfica..................................................................................................39
3.2 – A crítica psicanalítica.......................................................................................................49
3.3 – A crítica psicoestilística...................................................................................................57
3.4 – Psicobiografismo: As idéias retomadas de outros críticos...............................................63
3.5 – As epistolas de Álvares de Azevedo como argumento biográfico...................................70
4 – Uma leitura imanente do texto: a preocupação com a obra literária...................................73
PARTE II:
A RELAÇÃO ENTRE O POETA E O CRÍTICO: UM ESTUDO SOBRE A
CONSCIÊNCIA POÉTICA DE ÁLVARES DE AZEVEDO NOS ESTUDOS
LITERÁRIOS E NOS PREFÁCIOS DE LIRA DOS VINTE ANOS..................................92
1 – Poeta ≠ Crítico? Ou Crítico e Poeta?..................................................................................93
2 O crítico Álvares de Azevedo e seu posicionamento sobre a literatura romântica nos
Estudos Literários.....................................................................................................................96
2.1 – A posição crítica de Álvares de Azevedo em Literatura e Civilização em Portugal......99
2.2 Os diálogos literários, a tradução-análise do poema Jacques Rolla de Alfred de
Musset.....................................................................................................................................116
2.3 –
O ensaio George Sand / Aldo o rimador........................................................................131
3 – As funcionalidades dos prefácios de Lira dos Vinte Anos................................................141
4 Romantismo: A forma fragmento e o pensamento irônico nos prefácios de Lira dos Vinte
anos.........................................................................................................................................145
PARTE III:
A CONSCIÊNCIA LITERÁRIA DE ÁLVARES DE AZEVEDO: UMA PROPOSTA
DE LEITURA........................................................................................................................158
1 Das idéias cristalizadas em torno da obra de Álvares de Azevedo: uma retomada da
recepção crítica do poeta.........................................................................................................159
2 – Álvares de Azevedo: o crítico e o poeta de Lira dos Vinte Anos......................................179
PALAVRAS FINAIS............................................................................................................205
BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................207
ANEXO..................................................................................................................................215
9
PALAVRAS INICIAIS
O que se pretende nesse trabalho é retomar parte da recepção crítica da obra
alvaresiana, observando os pontos negativos e positivos levantados pelos estudiosos a respeito
da produção literária desse poeta, e quando possível estabelecer nosso juízo acerca da leitura
de cada crítico, bem como realizar uma leitura, análise e crítica dos seguintes textos: os
prefácios de Lira dos Vinte Anos com uma maior ênfase no prefácio à segunda parte deste
livro e os ensaios “Literatura e Civilização em Portugal”, “Alfredo de Musset / Jacques
Rolla” e “George Sand / Aldo o Rimador”.
A nossa preocupação é desenvolver um trabalho de natureza crítica da obra de Álvares
de Azevedo e dos textos de alguns estudiosos sobre a produção literária azevediana, com o
propósito de esclarecer e apontar neste poeta, uma consciência literária, bem como um
procedimento crítico explícito em sua obra, que contribuíram para o desenvolvimento de sua
concepção de poética. Ou seja, buscamos por meio de seus trabalhos de crítica, seus prefácios
direcionamentos que nos ajudem a traçar um perfil do seu projeto literário. Nesse
procedimento, é perceptível que esbarraremos em muitas suposições já cristalizadas a respeito
da obra desse poeta paulistano, que se tornaram consenso em meio a sua fortuna crítica.
Um dos pressupostos básicos em não enxergar o projeto literário de Azevedo provém
das Histórias Literárias, que, ao estabelecer as gerações do Romantismo, reafirmam a sua
época como sendo a segunda geração romântica, marcada por poetas voltados para si mesmos
e com uma visão de mundo bastante pessimista, que desprezavam a qualquer custo as
convenções formais da obra e escreviam por meio da inspiração.
Álvares de Azevedo foi um dos nossos maiores representante do romantismo
brasileiro que pendia para a internacionalização do movimento, pois orientado por uma
prática mais abrangente do fazer literário, aderiu a uma posição universalista, visto que ele
não se preocupava em representar o Brasil na arte, como os primeiros românticos que
buscavam na natureza e no índio os elementos para a construção de uma identidade nacional.
Deste modo, ele se aproxima dos escritores do norte europeu, nos quais via o exemplo mais
próximo de suas idéias. Por se aproximar desses escritores, o poeta paulista, de certo modo,
arcou com a responsabilidade de seus próprios atos.
Se de um lado, críticos que não gostam de sua obra e não a reconhecem como
grande e, ainda, referem-se a ela como uma simples imitação dos poetas europeus;
por outro
10
lado, críticos literários que ao estudarem a obra de Álvares de Azevedo trouxeram grandes
elucidações para a compreensão de sua obra. Todavia, na fortuna crítica do poeta, observam-
se muitos espaços em que é possível constatar a existência de equívocos referentes a sua
capacidade de planejar seus escritos poéticos e textos críticos.
Machado de Assis, em seu texto crítico “Álvares de Azevedo”, de 1867, explicita a
predileção do poeta por Byron, citado pela crítica como a sua maior influência. O crítico
concorda e acha justa tal afirmação, porém ele afirma que isto não basta para explicar a obra
azevediana. Sílvio Romero em História da Literatura Brasileira, de 1888, acresce que a
crítica sempre aponta em Byron e Musset os responsáveis pelo ceticismo encontrado na obra
de Azevedo, no entanto, conclui que falta estudo para comprovar tal apontamento.
Outros críticos recorrem freqüentemente a referências biográficas e suposições
psicológicas para entender e explicar a obra azevediana. Nessa linha de pensamento, podemos
citar José Veríssimo em História da literatura brasileira, de 1916, Mário de Andrade em
Aspectos da Literatura Brasileira, de 1972, Antonio Candido em Formação da literatura
brasileira, de 1957, entre outros críticos que não se desvincularam totalmente do biografismo,
de traços psicológicos atribuído ao escritor de Noite na Taverna, remetendo, em dados
momentos, à pouca idade do poeta, aos supostos desvios de comportamento, e à influência da
adolescência do escritor como fatores determinantes de sua obra.
José Veríssimo acreditava que, devido à pouca idade de Azevedo, este não foi capaz
de assimilar todas as obras que leu e ainda acrescentava que o poeta criou uma vida artificial,
e começou a viver pela imaginação. Mário de Andrade proclama o autor de Macário como
um indivíduo abnorme ao analisar sua obra sob a luz da psicanálise. Antonio Candido
concorda que o poeta era muito jovem e, portanto, não foi capaz de se desvencilhar disso,
escrevendo, assim, uma obra influenciada pela adolescência.
Discordando das Histórias Literárias e de muitos críticos, é possível ver que Álvares
de Azevedo estabeleceu e explicou seu pensamento crítico e estético em seus prefácios de
Lira dos vinte anos. Também esclareceu sua preferência na abordagem de determinadas obras
e escritores em seus estudos literários, bem como parece mesclar, estabelecer e validar todo o
seu pensamento crítico e trabalho estético na obra em prosa Macário, dando forma assim a
um rico material que facilita a compreensão de sua poética.
Ao analisar a produção literária e crítica de Álvares de Azevedo, nos deparamos com
um autor reflexivo em seu fazer poético e crítico. Uma das características interessantes em sua
obra reside justamente na articulação consciente de um projeto, esboçado no segundo prefácio
11
de Lira dos Vinte Anos, delineado em seus estudos literários, que são o espaço de reflexão,
formação e amadurecimento de sua concepção poética.
No livro Caminhos do pensamento crítico, o organizador Afrânio Coutinho (1974, p.
229), em um texto introdutório, descreve Álvares de Azevedo como dono de uma
“inteligência cultivada no estudo dos grandes autores, e senhor dos segredos da técnica
literária [...]”. Por meio dessa definição, o crítico nos faz refletir sobre a obra azevediana,
que o poeta paulista mesmo com pouca idade apresentava uma erudição e conhecimento
bastante peculiar da literatura ocidental.
Na elaboração de seu projeto literário, Azevedo pode ter partido inicialmente do
estudo de outras grandes obras literárias. No entanto, o poeta criou sua obra seguindo uma
concepção poética que ele próprio construiu, uma vez que a obra romântica, enquanto
reflexão de um indivíduo, remete à singularidade de seu criador, isto é, demanda uma forma
única, individual, produto de uma consciência crítica.
O poeta e crítico foi um aluno exemplar, leu as grandes obras no original, soube
dialogar com estes autores europeus e construiu uma literatura rica e bastante abarcante, indo
de temas românticos tradicionais a textos, poemas e livros que englobavam uma visão mais
crítica e inovadora.
Os textos azevedianos, pautados em uma obra em formação, demonstram uma
evolução e um amadurecimento se pensados no conjunto de sua produção literária, bem como
propiciam entre si um diálogo e, ao mesmo tempo, uma paródia sugerida na aproximação de
duas práticas opostas: a sentimental e a não sentimental, elevação e rebaixamento, isto é, de
um lado o inatingível, o transcendente, do outro lado o acessível, o palpável.
De certo modo, grande parte da produção literária de Azevedo está impregnada da
‘ironia romântica’ proposta por Schlegel, uma vez que acreditamos que a “binomia”
teorizada no prefácio à segunda parte de Lira dos vinte anos foi possível em parte pelo uso
dela. Esta ironia seria o recurso estilístico que possibilitou o poeta paulista na elaboração de
sua obra, pois ao mesmo tempo em que trabalha com a vertente romântica sentimental, ele
também utiliza uma outra que é a antítese, ou seja, uma construção que logo é (des)construída
pela vertente não sentimental. No entanto, essas duas vertentes não se excluem, antes se
complementam, na pretensão do absoluto, na busca do infinito pelo escritor romântico.
A obra de Álvares de Azevedo Lira dos Vinte Anos, por exemplo, é construída a partir
de um projeto de oposição e contraste. Em Lira, a segunda parte dialoga com a primeira e ao
mesmo tempo a “desconstrói” em paródias genuínas, num verdadeiro jogo de opostos, criado
12
e denominado pelo autor de ‘binomia’. Conseqüentemente, as virgens alvas da primeira parte
perdem espaço para as mulheres mais “palpáveis” da segunda parte.
Mormente isso, na evolução do pensamento de Álvares de Azevedo, numa análise
crítica do uso dessa binomia, o poeta apóia-se no romantismo sentimental a fim de estabelecer
um rompimento com temas, como o amor piegas e a idealização da mulher. No entanto, ele
não chega a romper com o movimento romântico, mas apenas com o objetivo binomicamente
de negar e autoparodiar a obra anterior.
Nos textos críticos, é possível visualizar certas particularidades que demonstram a
desenvoltura intelectual e a adesão literária a um Romantismo mais cosmopolita por parte de
Álvares de Azevedo. No entanto, determinados críticos não partilham dessa idéia e somente
reservam aos ensaios do escritor, o de serem desordenados e cansativos. Neles são patentes o
uso das comparações e citações, bem como a influência do discurso retórico e da linguagem
empolada da época, que os torna difíceis. Entretanto, como afirma Antonio Candido (2000, v.
2. p. 321), o que diz o poeta é de boa qualidade e esclarece muito a sua prática literária. Além
disso, mais que análises de obra e autores, Azevedo dialoga em seus textos com as práticas e
usos da literatura de sua contemporaneidade e os transforma em um espaço de reflexão e
exercício das vertentes românticas que ele trabalhou e adotou para si.
Em “Alfredo de Musset / Jacques Rolla”, Álvares de Azevedo estabelece,
inicialmente, que os grandes escritores trabalharam os “dois lados da moeda”, isto é, criaram
obras de cunho sentimentais, bem como produções literárias não sentimentais, reflexos, de
certo modo, do uso da ironia. Por esse caminho, ele adverte que muitos autores, inclusive
Musset, procederam dessa maneira.
Em seguida, na análise do poema de Musset, Azevedo considera as influências, as
fontes e pontua que Musset esteve consonante com seu tempo, criou uma literatura próxima à
de Byron, mas não foi, contudo, um simples imitador. Com isso, pode-se visualizar a própria
criação poética de Azevedo, que está próxima à prática literária de Byron e Musset, mas que
não o caracteriza como um copista desses escritores.
No ensaio, Literatura e Civilização em Portugal”, Álvares de Azevedo, mais que
pontuar a sua preferência poética, isto é, aderir a uma proposta mais universalista do
Romantismo, também soube teorizar a relação de influência que uma literatura exerce sobre
outra. Nesse processo, ele afirma que não é apenas utilizando elementos regionais ou locais
que se produzirá uma literatura nacional, mas na recuperação da tradição literária, pois, do seu
ponto de vista, é na relação de um povo com outros povos, que se cria, modifica e enriquece
13
uma literatura, não havendo necessidade assim de usar temas como a pátria e o índio para que
a sua produção possa ser brasileira.
As literaturas desde os tempos memoráveis se influenciam, modificam e autorizam os
autores a melhorarem as suas práticas literárias, baseando-se em textos anteriores. Assim,
nesta prática intertextual, de costumes e pensamento faz o poeta e escritor refletir e criar obras
que sejam adequadas às realidades de seu tempo. Deste modo, é de maneira expressamente
consciente que Azevedo optou por uma literatura mais abarcante, em que a relação entre
povos o favorecesse na retomada e revisão, por exemplo, da tradição ocidental.
Em “George Sand / Aldo o rimador”, Azevedo tece comentários acerca da escritora
francesa, e de sua peça Aldo le Rimeur. Nesse ensaio, é possível perceber um grande
conhecimento dessa autora, bem como de sua obra. O crítico observa não as características
que engrandecem Sand, mas também traça um estudo assertivo de sua obra ao compará-la
com outras produções literárias, aproximando-a tanto das idéias do Romantismo, quanto de
seu próprio entendimento de literatura.
O presente trabalho divide-se em três partes, na primeira Erros, Acertos, Tentativas:
a Recepção Crítica da Obra de Álvares de Azevedo temos como objetivo trabalhar com
parte da fortuna crítica do poeta, com o intuito de delinear quais os tipos de metodologias
críticas que foram utilizadas para abordar a obra de Azevedo e ressaltar quais as
interpretações e conclusões levantas pelos críticos. Nesse caso, dividimos os tipos de
interpretação dada à obra do escritor paulista em duas, uma como sendo os dados biográficos
como elemento primordial para a compreensão da obra de Álvares de Azevedo, em que
incluímos a leitura biográfica e psicológica. A outra uma leitura imanente do texto: a
preocupação com a obra literária de Azevedo, em que arrolamos os estudos mais recentes dos
críticos que valorizam o texto poético em si, que se preocupam com os problemas que dele
provêm.
Na segunda parte – A Relação entre o Poeta e o Crítico: um estudo sobre a consciência
poética de Álvares de Azevedo nos Estudos Literários e nos prefácios de Lira dos Vinte Anos
– preocupamo-nos em analisar os estudos literários e os prefácios a fim de buscar elementos e
argumentos que demonstrem a pretensa consciência de nosso escritor ao desenvolver sua obra
literária e crítica. A partir daí, fomos explicitando as idéias encontradas em seus prefácios e
em seus ensaios, para que enfim pudéssemos sugerir um posicionamento claro do projeto
literário de Azevedo.
Na terceira parte A consciência literária de Álvares de Azevedo: uma proposta de
leitura estabelecemos uma leitura, em que ressaltamos os equívocos mais evidentes sobre a
14
obra de Azevedo, bem como uma explanação interpretativa de alguns poemas da segunda
parte de Lira, que mostre uma preocupação crítica e estética do poeta na elaboração de seu
projeto literário. Com isso, nossa preocupação não é rever alguns dos principais equívocos
de leitura que ficaram cristalizados na recepção crítica do poeta paulista, mas também sugerir
uma maturidade artística do autor de Macário no desenvolvimento de sua obra.
PARTE I
ERROS, ACERTOS, TENTATIVAS: A RECEPÇÃO CRÍTICA DA OBRA
DE ÁLVARES DE AZEVEDO.
Criticar a crítica é a coisa mais difícil que conheço. O mesmo que
saltar por cima da própria sombra.
Araripe Júnior, Gazeta da Tarde.
O fato de Álvares de Azevedo ter previsto sua morte
1
, a recorrência
com que ele a tematizava e sua preferência por temas mórbidos e
melancólicos contribuíram para criar grande confusão em torno de
sua obra, fazendo com que muitos dos estudiosos se esquecessem de
que estavam tratando de literatura e passavam a tomar Álvares de
Azevedo não como um poeta, mas como um paciente típico do
gabinete do doutor Sigmund Freud. O determinismo psicológico
fundamentou – desde sua morte até há pouco tempo – várias análises
de sua poesia (em detrimento de uma outra fundamentada na obra
poética propriamente dita) e criou à volta do autor uma aura de
pessoa congenitamente melancólica.
Cilaine Alves, O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia
romântica
1
Esta afirmação nos parece um pouco especulativa, pois o acreditamos que Álvares de Azevedo, por meio de
alguns poemas, pudesse prever sua morte. Além disso, ela carrega em si uma visão bastante reducionista e,
portanto, não contribui como reflexão e entendimento da obra em si, nem à nossa hipótese aqui levantada.
16
1 - Uma hipótese.
A hipótese de trabalho que procuramos desenvolver, nessa dissertação de mestrado, é
a de que Álvares de Azevedo foi consciente na elaboração de sua produção artística, ao
estabelecer e por em prática um projeto literário bastante lúcido. Ou seja, antes de ser uma
obra pautada no espontaneísmo do gênio romântico e na experiência pessoal, Azevedo
empreendeu um plano artístico, do que seria sua concepção de poética, apoiado num
programa de literatura muito peculiar em nossas letras.
A obra de arte romântica, por ser reflexiva, pressupõe não uma crítica que remete a
particularidade de seu criador, fundamentada, ao mesmo tempo, por uma forma única e
individual, – cujo escopo é resultante de uma consciência refletida na esquematização e
prática de uma teoria artística a sua própria obra, na medida em que se é construída –, mas
também uma crítica imanente, que tem como figura central um crítico implícito, interno que
se faz ali presente (ALVES, 1998). Ademais, “a forma é [...] a possibilidade da reflexão na
obra, ela serve, então, a priori, de fundamento dela mesma com um princípio de existência;
através de sua forma a obra é um centro vivo de reflexão” (BENJAMIN, 2002, p. 78-79).
Álvares de Azevedo, em seu livro Lira dos vinte anos, instituiu o que seria sua
proposta de literatura. Por meio de um sistema dual, ao contrapor a primeira e a segunda parte
da obra, ele deu forma a um projeto literário desenvolvido em bases opostas. À vista disso, se
de um lado, Azevedo escreveu poemas recorrendo a temáticas como o amor inatingível, em
“No Mar”; o arquétipo da mulher de beleza frágil, em “Pálida Inocência” e “Pálida a luz da
lâmpada sombria” e a morte, em “Lembrança de morrer”; do outro lado, ele pôs em xeque
esses mesmos assuntos ao utilizar um discurso humorístico, irônico (que possibilita o poeta
ser crítico da própria obra) e também realista no combate aos elementos fantasiosos do
movimento –, em poemas como “Namoro a Cavalo”, “É ela! É ela! É ela! É ela!e “Idéias
Íntimas”.
Nota-se ainda que, o autor, de Noite na Taverna, trabalhou com questões bastante
contundentes nesse procedimento de oposições, ao falar da própria poesia, em composições
como “Boêmios”; da condição miserável e marginal do escritor, em Um cadáver de poeta”.
Ou introduzir uma problemática bastante concreta: o dinheiro e a própria falta dele, em “O
editor”, “Dinheiro” e “Minha desgraça”. Além disso, em Lira, Azevedo criou uma poesia com
um intenso senso antilocalista, num período, em que tudo se voltava para a edificação de uma
literatura nacional. Ponderação esta, constatada da mesma forma, no conjunto de sua obra e,
17
que se tornará uma recorrente proposição, discutida em demasia, em seu ensaio “Literatura e
Civilização em Portugal” e em sua obra Macário.
A partir daí, propomos fazer uma leitura, que ressalte da mesma forma, a consciência
de Álvares de Azevedo, tanto no desenvolvimento meticuloso de sua produção artística,
quanto na elaboração e adesão de uma teoria crítica, que o possibilitou numa maior lucidez,
na fundamentação e criação de sua obra literária. De acordo com esta suposição, iremos, em
direção oposta, em parte, com os críticos e com os historiadores da literatura, que não
levavam a sério a convenção romântica: inspiração e espontaneidade criadora, mas também
valorizavam os aspectos biográficos como os norteadores da poética alvaresiana.
Tal fato se deve a visão de que, no ato de sua criação literária, Álvares de Azevedo,
direcionado por estímulos irrefletidos, não escreveu sua obra, por meio de uma atividade
criadora sem premeditação, mas, por ser, ao mesmo tempo, muito jovem, não possuía ainda
uma maturidade artística, uma experimentação cumulativa do saber poético. Com essa
anuência, o poeta seria um adolescente que, se por um lado produziu uma obra pautada no
espontaneísmo artístico aflorada pela subjetividade e a extrema valorização dela, como
muitos a querem –; por outro lado, a escreveu baseada em suas experiências pessoais. Ou seja,
ora a poética alvaresiana seria oriunda de uma personalidade contraditória, doentia, anormal e
juvenil para alguns críticos como Sílvio Romero, Mário de Andrade, Antonio Candido etc,
ora artificial, para Machado de Assis, José Veríssimo e dentre outros.
Nessa proposição, a concepção literária de Azevedo seria embasada em princípios
puramente românticos e convencionais do movimento, para alguns críticos e historiadores e,
para outros, apenas reflexos de uma juventude incapaz de idealizar e conceber um projeto
consciente de literatura –, cuja obra seria ordenada apenas pela transposição dos fatos
vivenciados. Ou melhor, uma produção literária caracterizada por improcedentes
experiências, quando afirmam que, o autor de Macário criou uma existência orientada em sua
admiração por escritores como Byron e Musset. Da mesma forma que, subjacentes,
empenham-se em acusá-lo de imitador desses escritores europeus, ao transplantar para o
Brasil idéias, preferentemente, universalistas do Romantismo.
De mais a mais, torna-se claro que o tipo de literatura produzido pelo autor de Noite
na Taverna confrontava diretamente com a construção da idéia de nação, da identidade
nacional e do nacionalismo literário brasileiro. Tornando assim, um fato histórico e político as
interpretações de críticos e historiadores, como Sílvio Romero, José Veríssimo e Afrânio
Coutinho, da obra de Álvares de Azevedo.
18
Com essas disposições, as hipóteses sugeridas, por parte dos críticos e dos
historiadores da literatura, sobre a concepção poética de Álvares de Azevedo, não se
constituem apenas como elementos fundamentais no seu entendimento: a convenção
romântica e os aspectos biográficos. Nessa conjectura, aliás, é possível perceber que o poeta
também foi julgado por meio de uma análise interpretativa, baseada em argumentos,
oportunamente, políticos e históricos. Ou seja, o autor de Lira dos vinte anos por mais que
utilizasse a subjetividade na construção de uma poesia romântica, de cunho intimista, a qual
sugere e aproxima espontaneidade criadora e aspectos biográficos (dado que cria-se um
engodo na aproximação da ação interior do sujeito com a obra) sofreu um expurgo na
recepção de sua obra na crítica brasileira, ao se propor, corajosamente, contrário aos primeiros
poetas românticos. Estes, pautados num romantismo “ingênuo”, empenhavam-se em construir
uma identidade literária, de caráter especificamente nacionalista, a fim de que o Brasil
pudesse desvincular da antiga metrópole e alçasse vôo em direção a uma literatura
independente e, declaradamente, de igual valor às demais literaturas européias.
Gradativamente, é possível perceber que o ponto inicial de nossa pesquisa partiu, em
primeiro plano, de uma leitura comparativa da obra de Álvares de Azevedo com os textos de
sua fortuna crítica, que legitimavam, justamente, a biografia do poeta e as convenções
românticas como a base de sua produção artística. Com essa apreciação, podemos detectar um
malogro sobre a concepção da poética azevediana. Afinal, ao analisarmos atentamente a obra
do autor de Macário, nota-se que esses estudiosos rejeitaram ou desmereceram o projeto
literário de Azevedo. Tal fato se deve, em parte, da extrema valorização dos supostos fatos
biográficos e do espontaneísmo criador; da construção de uma imagem de poeta adolescente,
que implantou em sua obra elementos contraditórios, criados pela visão bipartida de mundo e
da rejeição de uma literatura mais universalista, cosmopolita, proposta pelo poeta, que se
opunha à literatura brasileira como sendo aquela que retratasse a natureza, o índio etc.
Todavia, se procurarmos objetar, de um lado, os argumentos dos textos críticos sobre a
obra de Azevedo, criados pelo engodo da convenção romântica e da visão biográfica, se
quisermos rebater o rótulo de um poeta desprovido de senso crítico e criativo, que, apenas,
deu forma a sua produção literária orientada por aqueles dois princípios, não deveríamos
incidir, ao que nos parece, os possíveis equívocos de leitura daqueles estudiosos. Afinal, o
próprio movimento literário tem alguns pontos questionáveis, uma vez que a espontaneidade e
a subjetividade propostas no Romantismo, quando levadas muito a sério, podem gerar
algumas deformidades nas interpretações das obras dos escritores desse período.
19
Por outro lado, é bem verdade que os próprios poetas românticos suscitam uma parcela
de culpa, afinal de contas, a subjetividade, módulo absoluto do movimento, torna-se o eixo
primeiro de suas criações artísticas, da mesma forma que a concepção das obras procederia da
inspiração, sem intermédio da razão. O que redunda em obras sem revisões, oriundas de uma
sensibilidade automática, cujos sentimentos fortes e idealísticos denotariam o íntimo de cada
escritor. Com essas suposições, criou-se tanto um engodo com essa atividade criadora
espontânea, quanto uma distorção do ato de escrever, isto é, da escrita como um procedimento
reflexivo.
Além disso, a subjetividade expressa pelos poetas, em seus textos literários, sempre
fora vista como reflexo de suas vidas pessoais. Ou seja, ainda que as produções literárias
românticas não procurassem retratar a realidade de seus autores, estavam bastante ligadas a
ela, por meio da intimidade, da espiritualidade e da ação interior do sujeito. Sugerindo deste
modo, uma grande aproximação da obra com a vida do autor.
Numa apreciação mais ampla e contextualizada da época, os poetas, rotulados como
ultra-românticos, foram cúmplices na divulgação de imagens, cunhadas, principalmente, pelos
vieses boêmios e satânicos, vertente esta forte do momento, porém não a única. Mas que
contribuíram para criar a visão definitiva, de poetas como Álvares de Azevedo, de uma
nebulosa existência, forjada, inicialmente, em personagens byronicas e mussetianas, pois, o
arquétipo de poeta como Byron e Musset chegara ao Brasil e constituíra o modismo de São
Paulo.
Nessa acepção, o ponto de vista que se formaria sobre a vivência dos poetas
românticos, emerge de um padrão pré-estabelecido, ocasionado por um estilo artificialmente
recriado de vida byroniano, que daria ênfase, por sua vez, a um tipo produzido de literatura.
Afinal, parte-se da presunção que arte e vida estariam intimamente ligadas nesse
procedimento estético. Ou seja, os poetas, que seguissem a corrente byronica, sobrecarregada
de paixões, crimes, incidentes e satanismo, deveriam ajustar suas vidas às obras, para que a
produção textual fosse verossímil com o comportamento, supostamente, adotado.
Com isso, a visão, mais generalizada e estagnada, posta em circulação de alguns
poetas, incluindo Álvares de Azevedo, seria a de uma existência desregrada, cheia de aventura
e desventura. Deixando-se transparecerem a figura de um poeta maldito, incompreendido,
marginal, isto é, o exemplo claro de como os participantes da segunda geração ou geração
ultra-romântica, segundo reza a tradição historiográfica, deveriam proceder.
Convém lembrar que o acolhimento desse arquétipo, por parte dos autores românticos,
deu abertura instauradora às lendas, que, muitas vezes, se tornaram imprescindíveis, pelos
20
críticos, na recepção daquelas obras. Ou seja, na livre associação de vida desregrada e obra
romântica, não atribuiu aos escritores, da geração ultra-romântica, um gosto pela
melancolia, pelo humor negro, pela morte e pelo satanismo, motivados principalmente pelo
viés byronico, como também determinaram uma acepção, que se transformou na tonalidade
típica desses poetas paulistas para o restante do país (CANDIDO, 2000a, p. 141), cujos
conceitos serão imortalizados pelas histórias literárias e sempre retomados pela crítica.
Da combinação desses conceitos à arte romântica criaram-se mitos, que, além de se
tornarem prejudiciais no julgamento crítico de obras como as de Azevedo, manifestaram-se
como obstáculo para uma visão mais adequada desse poeta. Afinal, esta não é a base, que se
deve partir, para entender a produção artística de Álvares de Azevedo, mas apenas uma das
vertentes desenvolvida por ele: o satanismo, encabeçado, principalmente, pelas obras Noite na
Taverna e Macário.
Essa vertente, extensamente desenvolvida pelos poetas-estudantes da Faculdade de
Direito de São Paulo, não se tornou um escopo para o desenvolvimento de uma literatura
mais universal, filiada ao romantismo europeu, mas também uma via forte de diferenciação do
grupo estudantil com a pacata comunidade provinciana. Nisso, essa corrente, além de estar
consonante com o espírito de época, manifesta-se como o ponto máximo de distinção grupal
dos estudantes, em relação aos habitantes de uma cidade de princípios e padrões diversos, que
ainda não sofrerá um processo civilizatório definitivo.
Figura 1: Faculdade de Direito de São Paulo. Fotografia de Militão de Azevedo, do álbum de 1862/63. Fonte:
Revista Nossa História, ano 1, nº 3, janeiro de 2004.
21
Nessa conjetura, a imagem cristalizada do poeta paulista, de ser isolado,
incompreendido, demoníaco não deveria partir apenas da corrente byroniana. Mesmo porque,
além de aderir conscientemente a esse tipo de literatura, uma vez que a elege como portadora
de grande valor estético, talvez pelo momento, o autor de Macário ao mesmo tempo pôs em
prática outras vertentes do Romantismo. Ou seja, a formação dessa imagem, não
procederia daquela conduta literária, mas também teria base nos agrupamentos dos jovens,
que, isolados da comunidade, deram início a um modo próprio de sobrevivência em um meio
no qual não se enquadravam. Buscavam tanto subverter os valores estabelecidos, quanto
agradar e incitar o público leitor, constituído inicialmente, em sua maioria, pelos próprios
colegas da Faculdade de Direito.
A propósito, a aceitação desses poetas passava pelo crivo dos próprios estudantes, para
que enfim, sua obra pudesse ser estendida à comunidade e, depois, provavelmente ao país.
(CANDIDO, 2000a, p. 139). Constitui-se assim, um conjunto de produtores e um conjunto
de receptores, composto por um tipo de auditório permanente, bem próximo ao que Candido
definiu como sistema literário. (CAMILO, 1997).
Vagner Camilo (1997), em Les enfants sans souci na província: o contexto do riso”,
retoma o que Antonio Candido também havia teorizado, em “A literatura na evolução de uma
comunidade”, de 1965, sobre os estudantes da Faculdade de Direito de São Paulo: a
marginalidade daqueles rapazes, que não se misturavam com a comunidade. Ou seja,
articulando-se e adquirindo consciência de seu estado, os estudantes
formavam o que Antonio Candido denomina uma “sociabilidade específica”,
passando a forjar uma “expressão própria” e a se destacar como “grupo
diferenciado” contra o pano de fundo da pacata província paulistana
(CAMILO, 1997, p. 36-37).
Nesse percurso, é possível perceber que os estudantes oriundos dos mais diversos
pontos do país traziam com eles idéias e princípios bem diferentes, que contrapunham com
os moradores de São Paulo. A partir daí, é fácil entender o desajuste deles frente a padrões de
comportamentos cristalizados, que em parte “determinou o recuo do corpo acadêmico para as
bordas da comunidade, onde constituiu-se como grupo à parte, justaposto mas não integrado
à estrutura da cidade” (CAMILO, 1997, p. 37). Neste aspecto,
[...] os estudantes afirmaram-se de modo categórico como “segmento
sociologicamente diferenciado na estrutura da cidade”, portando uma
“consciência grupal própria”, cujas manifestações mais tangíveis foram a
literatura e a boêmia, de onde proveio o modelo clássico do estudante
paulistano, “exprimindo seu ethos peculiar” (CAMILO, 1997, p. 37).
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Figura 2: Caricatura do jornal O Cabrião, de 1866. “‘O que mais se em S. Paulo;’ à direita, de costas, uma
‘baratinha’ beata de mantilha até os calcanhares. No centro: estudante cobrado por usuário (vinagre), [um padre
e uma besta]” (AZEVEDO, 1977). Fonte: livro Álvares de Azevedo desvendado, de Vicente de Azevedo.
Em suma, segundo Camilo, a vertente ultra-romântica do movimento, largamente
utilizada pelos estudantes, não foi bem aceita por eles, por que se constituía numa
“linguagem de fácil comunicabilidade”, mas também por se transformar em uma espécie de
dialeto, que portava naquele momento como uma ideologia, entre aqueles jovens rapazes.
Desse modo,
[...] o sentimentalismo ultra-romântico, com suas pieguices amorosas
transpostas em ritmos fáceis e melodiosos, era linguagem de grande
comunicabilidade, extremamente afim ao gosto médio. Desse
sentimentalismo nutria-se a maior parte da produção estudantil, visto que ele
fornecia uma ideologia ajustada ao grupo, com sua ênfase na imagem do
poeta incompreendido e solitário, isolado da comunidade dos homens
comuns. Ora, isso se adequava perfeitamente à posição autárquica do
estudante paulistano, pois se o sentimentalismo ultra-romântico servia, por
um lado, como elo de ligação com a sociedade em geral, por outro, ele
permitia ao poeta-estudante afirmar-se na sua singularidade, na sua
diferença. Essa diferença, contudo, se configuraria de modo cabal com o
satanismo, que forneceu aos jovens “uma ideologia de revolta espiritual, de
negação de valores, de desenfreado egotismo” (CAMILO, 1997, p. 39-40,
grifo do autor).
Ademais, retomando ainda o que foi sugerido anteriormente, mas não desenvolvido,
sobre a espontaneidade criadora como “fluxo incontrolado que, para o Romantismo, era o
próprio sinal de inspiração” (CANDIDO, 2000b, v. 2, p. 167) e base para se instaurar o
sentimento, Álvares de Azevedo aderiu a essa proposta do movimento, em suas produções
artísticas, com um posicionamento tão enfático, que determinou na criação de uma imagem de
poeta desleixado em seu fazer poético, no momento em que dava a entender não emendar os
seus versos. O que, por sua vez, ocasionará num malogro interpretativo à obra alvaresiana,
23
quando tomada ao da letra essa disposição criadora espontânea, deflagrada pela inspiração
romântica.
A adesão do autor de Macário à espontaneidade criadora, proposta pelo Romantismo,
bem como o seu posicionamento diante dela, podem ser observados com mais detalhes, em
sugestões impulsionadas, por um de seus poemas e por uma de suas cartas. Ou seja,
ponderação esta, que acreditamos ser gerada pelos exemplos que se manifestam: em “O
Poema do Frade”, quando o eu-lírico afirma que “Frouxo o verso talvez, pálida rima / [...]
Porém odeio o que deixa a lima / [...] Se a estátua não saiu como pretendo: / Quebro-a
mas nunca seu metal emendo” (AZEVEDO, 2002, p. 312, Canto primeiro, estr. XXIII, vs.
176, 178, 182 e 183). Ou então, em carta à sua mãe, de 10 de julho de 1848, quando Azevedo
dizia que os versos, que lhe enviara, não foram emendados e, advertia ainda, que “tais quais
os compus, copiei-os Se tiverem mérito semais uma razão para isso” (AZEVEDO, 2002,
p. 565). Além disso, “se não fosse o ilegível do original ou borrão eu o incluiria nesta
carta, e em lugar de cópia lho mandaria [...] (AZEVEDO, 2002, p. 565). Sugestionando
assim, segundo a linha do espontaneísmo, que não deveriam existir rasuras no poema depois
de sua composição original.
Desta forma, Álvares de Azevedo, até certo ponto, tem sua parcela de culpa na difusão
de uma imagem de poeta descuidado na elaboração de sua poética, tanto por demonstrar-se
conivente, em sua carta, com o conceito de “fluxo incontrolado”, manifesto absoluto da
inspiração romântica no procedimento de escritura, quanto por divulgá-lo em alguns trechos
de sua obra. O que irá ocasionar, não um engodo do verdadeiro ato criador, mas também
um falso direcionamento para com os estudiosos alvaresianos que tomassem, por base em
seus textos críticos, um poeta que se regozijava de não revisar
2
a sua produção artística.
Entretanto, é possível perceber que, numa consulta aos manuscritos do poeta, ocorre,
justamente, o oposto do que ele afirmara. Afinal,
por uns versos do Conde Lopo, [...], se pode ver que Álvares de Azevedo não
pregava o verso “mal torneado” e o “estilo solto” (“O Poema de um louco”,
VII); e numa de suas cartas pedia escusas pela “rudeza da execução, o
desalinho e a incúria da emenda” de alguns versos, que em todo caso não
haviam sido feitos “para os prelos”. Sabia o moço, portanto, que a emenda
poderia ser útil, sendo mesmo preferível adotá-la a jogar fora o poema que
dela necessite (RAMOS, 1962, p. 15).
2
Em uma carta a Luís Antonio da Silva Nunes, de 4 de setembro de 1848, Azevedo comunica ao amigo a
respeito da “imitação” que fizera de Shakespeare, mas, segundo acentua o poeta, o que lhe “[...] falta é
resolução de aperfeiçoá-la e emendá-la” (AZEVEDO, 2000, p. 809). Ou seja, se em outros momentos ele dizia
sempre não emendar suas composições, agora ele passa a sugerir tal fato.
24
Umberto Eco também não endossa a problemática da criação espontânea, mesmo
porque: “quando o autor nos diz que trabalhou no raptus da inspiração, está mentindo. Genius
is twenty per cent inspiration and eighty per cent perspiration(ECO, 1985, p. 14). A fim de
elucidar seu posicionamento, o autor de O nome da rosa recorre a um exemplo de embuste,
pautado no discurso de Lamartine, que dizia não emendar suas composições artísticas.
Todavia, ao consultarem os manuscritos do poeta francês puderam ver que se tratava de um
engodo:
Não me recordo a propósito de que celebre poema de sua autoria Lamartine
disse que lhe tinha nascido de um jato, numa noite de tempestade, em um
bosque. Quando morreu, foram encontrados os manuscritos com as
correções e as variantes, descobrindo-se que aquele era talvez o poema mais
“trabalhado” de toda literatura francesa (ECO, 1985, p. 14).
Por esse caminho, quando observamos os manuscritos de Azevedo, os poucos que nos
restam, inclusive o autógrafo d’O Livro de Fra Gondicario, é possível compreender que
aquele juízo, que se procurava transmitir sobre o autor de Macário, inclusive sua explícita
adesão, não era de fato verdade absoluta, afinal, provas de revisões em sua produção
artística. O que nos leva a crer que existe realmente uma preocupação, por parte do poeta, em
rever alguns pontos que poderiam ser melhorados em sua poesia.
Desse modo, se de um lado, Azevedo revoga a problematização da inspiração
romântica, bem como acrescenta ainda certa “dosagem” de razão a sua poesia. Por outro lado,
é possível entender também que
a composição de Álvares de Azevedo, aliás, é a de quem estudara retórica e
poética. Assim usa mais de uma vez “versus applicati” ou “singula singulis”,
como em Ó florestas! Ó relva amolecida, / A cuja sombra, em cujo leito”,
estrutura que deve ser entendida: “Ó florestas a cuja sombra, ó relva
amolecida em cujo doce leito” (RAMOS, 1962, p. 15).
Ou seja, acreditamos que por meio de uma “racionalização” de sua poesia romântica e
de um bom conhecimento teórico sobre poética, o autor de Noite na taverna estabeleceu o
caminho a percorrer. Explicitado em algumas cartas, em alguns textos críticos e nos dois
prefácios de Lira, de forma bem consciente, ele esquematizou e concretizou uma produção
literária seguindo suas idéias de como deveria proceder a sua literatura e mesmo as letras
brasileiras.
Ainda sobre a questão do uso de emendas nas composições de Azevedo, tomemos por
base o manuscrito autógrafo do poema “A morte e o Amor”, de fevereiro de 1852, o último
que escreveu antes de sua morte em 25 de abril do mesmo ano, bem como o manuscrito
autógrafo do poema “Décimas”, a fim de exemplificar e ilustrar melhor o que dissemos.
25
Figura 3: Primeira parte do manuscrito autógrafo do poema “A morte e o amor” de Álvares de Azevedo, escrito
dois meses antes de sua morte. No canto superior, lêem-se as quatro estrofes finais de “Cantiga” da primeira
parte da Lira dos vinte anos. O original pertence à Biblioteca Nacional. Fonte: AZEVEDO, Álvares de. Poesias
Completas. Edição crítica de Péricles E. S. Ramos; organização de Iumna M. Simon. Campinas: Ed. da
Unicamp; São Paulo: IOE, 2002, p. 587.
26
Figura 4: Parte final do manuscrito autógrafo do poema “A morte e o amor” de Álvares de Azevedo. Fonte:
AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas. Edição crítica de Péricles E. S. Ramos; organização de Iumna M.
Simon. Campinas: Ed. da Unicamp; São Paulo: IOE, 2002, p. 588.
27
Figura 5: Manuscrito autógrafo das “Décimas”, constantes do Álbum de Maria Luísa, a irmã do poeta, hoje
pertencente ao acervo da Biblioteca Nacional. Provavelmente copiado em 24 de outubro de 1847. Fonte:
AZEVEDO, Álvares de. Poesias Completas. Edição crítica de Péricles E. S. Ramos; organização de Iumna M.
Simon. Campinas: Ed. da Unicamp; São Paulo: IOE, 2002, p. 589.
Ou seja, no poema “A morte e o Amor”, podemos conferir a revisão que o poeta fazia,
ao substituir palavras ou versos inteiros. Enquanto que em Décimas, vemos um manuscrito
totalmente sem rasuras, o que consta, provavelmente, ser uma cópia.
Diante o exposto até o momento, o que concerne tanto à leitura biográfica, quanto à
leitura pautada na convenção romântica, podemos aferir que tomá-las como base para se
entender a obra azevediana não seja suficiente, pois elas limitam a produção de Azevedo
como oriunda das adversidades pessoais ou da sua genialidade criadora. Por esse caminho, a
produção literária do autor de Macário proviria, para alguns estudiosos, das experiências
juvenis e, para outros, de uma vida possivelmente artificial. Ou ainda, emanaria da inspiração
romântica, capacidade especial, que somente o gênio possuía. Com isso, o autor de Lira dos
Vinte Anos foi não acusado de desenvolver uma obra fundamentada em sua vida, mas
também por meio da espontaneidade artística.
Por outro lado, ao trabalharmos com os textos da fortuna crítica de Álvares de
Azevedo, que valorizam a imanência da obra, bem como o contexto social do escritor,
podemos encontrar alguns dos melhores respaldos para nossa hipótese. Afinal, ao
28
examinarmos a obra alvaresiana em si e todas as características que dela provêm, nota-se uma
elaboração artística bastante definida. Ou seja, ao estudarmos a obra do poeta paulista é
possível sentir a clareza e a proposta de um projeto literário muito bem instituído.
Com isso, acreditamos que Álvares de Azevedo, mesmo sendo jovem e morrendo
ainda muito cedo, arquitetou e desenvolveu uma literatura pautada em princípios bem
conscientes, que o capacitou no desenvolvimento de uma obra não integrada a uma teoria
própria da arte, como também a transformou em um “centro de reflexão”. Como exemplo,
temos o livro Lira dos vinte anos, que mais explicita a definição de um sistema dual, bem
como evidencia a atitude universalista do poeta. Tal idéia constitui uma demarcação do
projeto literário de Azevedo, que se baseia tanto em um discurso pautado num jogo de
oposições, provindo de sua “binomia”, quanto em um posicionamento cosmopolita do fazer
literário defendido por ele.
Com essa proposição, a finalidade de nossa pesquisa é constatar a consciência literária
de Álvares de Azevedo, que muitos críticos, anteriores a 1990, salvo exceção como Antonio
Candido, não reconheceram. Nesse sentido, procuraremos delinear e compreender porque os
críticos e os historiadores literários não quiseram ou não buscaram enfatizá-la, uma vez que
eles tinham pistas suficientes da competência criadora do poeta paulista.
Assim sendo, nessa primeira parte de nossa dissertação, trabalharemos tanto com os
textos da recepção crítica de Azevedo que valorizam os elementos biográficos, vistos como
importantes na interpretação da produção artística do autor de Lira dos vinte anos, quanto
com os que tomam por base a imanência da obra. Nesse conjunto de ensaios, isto é, de
pequena parte da fortuna crítica do poeta, levantaremos cada método de pesquisa empregado
pelos estudiosos, bem como os seus posicionamentos, interpretações e conclusões acerca da
obra de Álvares de Azevedo.
Os textos sobre o autor de Macário, aqui retomados como corpus de nossa análise, não
seguem indicação de nenhum estudioso e, nem mesmo, de uma lista referencial bibliográfica,
contida em uma edição crítica da obra alvaresiana. O que, em princípio, pode gerar
controvérsias, não de sermos julgados pela falta de autoridade com que fizemos isso, mas
também pela eleição de alguns textos e exclusão de outros de grande importância da fortuna
crítica. Deste modo, é perceptível que, embora, textos mais conhecidos a respeito do poeta
fossem postos de lado em nosso estudo, outros menos conhecidos estão arrolados em nosso
trabalho.
Ainda assim, afirmamos que os ensaios, aqui joeirados tanto os que valorizam os
elementos biográficos de Azevedo, quanto os que buscam a imanência da obra azevediana –,
29
seguem uma linha argumentativa em apoio ao desenvolvimento de nossa proposta de trabalho.
Ou seja, o intento dessa seleção é levantar as opiniões e conclusões dos críticos acerca da obra
do autor de Noite na Taverna, para que possamos, a partir delas, trabalhar e consolidar a nossa
hipótese. Por outro lado, não pretendemos avacalhar textos alheios ou então julgá-los como
sendo melhores que outros, mas utilizá-los de acordo com nossos propósitos.
A atitude crítica, presente nesta primeira parte de nosso trabalho, não se orienta por
meio de um discurso radical ou conclusivo, visto que não almejamos uma opinião inflexível e
categórica sobre os textos da fortuna crítica de Álvares de Azevedo. No entanto, caso nosso
abordo analítico possa parecer audacioso e afrontador quando discordamos de algumas
argumentações patentes nos ensaios, que valorizam, precisamente, os elementos biográficos
de Azevedo como sendo de suma importância à compreensão de sua obra –, nossa finalidade
é reler os textos de grandes críticos e historiadores literários (como Machado de Assis, Sílvio
Romero, José Veríssimo, Mário de Andrade, Antonio Candido, etc.) sem colocá-los em
pedestais invioláveis, questionando quando possível as suas interpretações, argumentações e
conclusões acerca da obra do escritor de Lira dos Vinte Anos. Afinal, “atividades em espiral: a
literatura, a história e o texto crítico no seu contínuo fazer-se e desfazer-se” (CURY, 1995, p.
55) nunca atingem um texto definitivo.
Procuramos ainda, não exaltar e/ou eleger os textos da fortuna crítica de Azevedo, que
valorizam a imanência da obra, como sendo importantes e melhores para se compreender a
produção artística do poeta. que aqueles ensaios norteados pelo biografismo em sua
pluralidade com estes, pautados na obra propriamente dita, nos dão uma visão bem ampla da
poética alvaresiana. Com isso, é possível ler o texto, de cada crítico, em conjunto com os
demais, procurando ressaltar cada metodologia empregada, bem como as posições e
conclusões de cada autor. Além disso, quando observamos esses textos, nós não temos o
privilégio da distância histórica de cada um, como também podemos visualizar melhor a
evolução da crítica brasileira.
Num primeiro momento, ficamos, realmente, apreensivos em abordar e examinar
textos (sobre Álvares de Azevedo) de autores consagrados da crítica brasileira, como
Machado de Assis, Mário de Andrade, Antonio Candido etc. Mesmo porque, não possuímos a
envergadura e a sutileza no manejo com o discurso analítico, do mesmo modo com que
Machado fizera em seus ensaios críticos. Contudo, procuramos nos posicionar em
argumentos, que dêem consistência às afirmativas que viermos a fazer, a começar pelas
interpretações daqueles estudiosos, visto que “as reflexões sobre a crítica literária na
contemporaneidade apontam para um espaço descentrado. Não mais se busca a voz autoritária
30
daquele especialista capaz de proferir a última e abarcante palavra interpretativa, mas, antes,
aquela que fará circular o discurso sobre a literatura”. (CURY, 1995, p. 53). Embora a crítica
literária tenha como objeto de estudo um texto primeiro, a obra, e difere do que propomos
fazer nesta primeira parte de nossa dissertação, a análise de um texto segundo, a crítica da
crítica deveria também se nortear pelas mesmas acepções de Maria Zilda Cury, ou seja, partir
do princípio de que não uma “última e abarcante palavra” em relação a um determinado
assunto.
Mesmo assim, devemos render mérito ao que Machado de Assis, em o Ideal do
Crítico”, de 1865, expõe a respeito da ação e metodologia crítica de um estudioso da
literatura. Ou seja, por meio de algumas etapas, ele enumera como o crítico deveria proceder
com o trabalho de outrem. De caminho, é possível eleger dentre os conceitos por ele arrolado
em seu texto, alguns exemplos, que nos possibilita um olhar diferençado acerca de um
determinado discurso, sem incorrermos a uma atitude radical e conclusiva.
A respeito disto, o autor de Brás Cubas, em seu ensaio, argumenta que necessitamos
ser independentes da vaidade dos autores e de nossa própria vaidade, assim como da cega
adoração por um escritor, a fim de que o discurso analítico não seja comprometido:
O crítico deve ser independente, – independente em tudo e de tudo,
independente da vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de
inviolabilidade literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser
independente das sugestões do orgulho, e das imposições do amor-próprio
(ASSIS, 1961, p. 15, grifo nosso).
No que se refere às “cegas adorações”, evidencia-se um aspecto muito interessante e
inquiridor mediante o posicionamento de Machado, que nos faz pensar acerca do amor
cultuado e despendido tanto a uma obra, quanto a um autor, no momento em que defendemos
a todo custo, o que pensamos ou acreditamos que seja aquela obra ou aquele autor. Fato este,
que, por sua vez, alerta-nos da altíssima simpatia prodigalizada a Azevedo, sugerida e
ocasionada em algumas circunstâncias desta dissertação. No entanto, se por um lado, temos a
plena consciência desse risco, por outro lado, temos, igualmente, a plena convicção de que,
num discurso crítico, esse afeto deva ser evitado, para que o texto não obtenha maiores
comprometimentos com a veracidade analítica.
Ademais, o autor de Dom Casmurro recomenda, em suas máximas, que o estudioso da
literatura deva ser moderado em suas interpretações e posicionamentos críticos, para que não
seja intolerante com determinadas obras, autores e movimentos. Proposição esta, que, em
nosso humilde parecer, estenderia também aos textos críticos. Afinal, ao trabalhar com o
discurso de outro crítico, muitas vezes, podemos incorrer na intolerância, quando este o
31
escreveu aquilo que quereríamos ler, ou então, quando discordamos de pontos cruciais
sustentados por ele, para defender nossa hipótese de trabalho. Nesse sentido,
a tolerância é ainda uma virtude do crítico. A intolerância é cega, e a
cegueira é um elemento do erro; o conselho e a moderação podem corrigir e
encaminhar as inteligências; mas a intolerância nada produz que tenha as
condições de fecundo e duradouro (ASSIS, 1961, p. 15).
À vista disso, Machado exemplifica essa tolerância na asserção de que independente
de gosto ou preferência, não devemos ser intransigentes na aceitação de ponto de vista
diferente. Mesmo porque, não necessidade de excluir todo um movimento, um autor ou
uma obra, unicamente por não gostarmos de suas especificidades. Afinal,
é preciso que o crítico seja tolerante, mesmo no terreno da diferenças de
escolas: se as preferências do crítico são pela escola romântica, cumpre não
condenar, só por isso, as obras-primas que a tradição clássica nos legou, nem
as obras meditadas que a musa moderna inspira [...] (ASSIS, 1961, p. 16).
Com o propósito de resumir a metodologia crítica de Machado de Assis, afiançamos
que não é preciso, sermos arrogantes, intolerantes ou mesmo portadores de cegas adorações,
para que possamos sobressair com nosso ponto de vista sobre determinado autor e obra, ou
para defendermos uma hipótese, que acreditamos ser possível. Ou melhor, conforme explicita
Machado, é necessário, antes de tudo, termos “moderação e urbanidade na expressão, eis o
melhor meio de convencer; não há outro que seja tão eficaz” (ASSIS, 1961, p. 16).
Compartilhando desta acepção de crítica, torna-se evidente nesta primeira parte, que
todo nosso esforço se volta para a construção de um discurso analítico, em que procuramos
“[...] ser franco[s] sem aspereza, independente[s] sem injustiça [...]” (ASSIS, 1961, p. 17) com
os textos que fazem parte da recepção crítica de Álvares de Azevedo. Este é nosso anseio. No
entanto, caso pareça que cometamos algum excesso, talvez por amor velado ao escritor ou
para que possamos defender nossa hipótese de trabalho, afirmamos ainda que, esta não é
nossa pretensão. Afinal, não almejamos ser juízes definitivos do discurso crítico alheio ou
mesmo da obra alvaresiana.
Dadas as considerações sobre a nossa abordagem metodológica, fica patente que
temos consciência de que aqui se trata da leitura de outras leituras. O que significa que
realizamos um percurso, entre os “[...] interstícios discursivos daqueles vários textos escritos
[...]” (BARBOSA, p. 13, 1996), que compõem parte da recepção da obra de Álvares de
Azevedo na crítica brasileira.
Em suma, deixando de lado, a metodologia de nossa análise, a justificativa de nossa
hipótese de trabalho, todas as convenções românticas e todos os supostos dados biográficos
levantados pelos críticos o nosso principal interesse é observar a coerência e consciência
32
literária de Álvares de Azevedo. Nesse sentido, não procuraremos julgar as imperfeições que
hoje nos parece do Romantismo, do poeta, ou dos críticos, ou dos historiadores da literatura,
mas ressaltar que, embora jovem, Azevedo planejou e conseguiu, em linhas gerais, criar uma
poética bem assertiva, tanto sob uma ótica particular, quanto sob um olhar mais abrangente de
como a arte deveria proceder no Brasil. Afinal, em nosso país, por mais que o movimento
fosse um impulso renovador, que assumisse uma feição característica de condições locais e
disposição pessoal de cada romântico, Álvares de Azevedo sobressai com um Romantismo
mais cosmopolita, crítico e consciente perante sua “encarnação” literária, uma vez que “[...]
cada indivíduo procurou em si mesmo o gérmen daquilo que poderia criar [...]”
(VOLOBUEF, 1999, p. 13), delineando assim, as devidas especificidades de seu
posicionamento diante do movimento, que não engloba apenas uma, mas inúmeras vertentes.
2 - As metodologias críticas.
Todo aspirante a estudioso de literatura sabe que para se fazer a análise de uma obra é
preciso, antes de tudo, ter a consciência de que “a leitura é o fundamento da crítica”
(BARBOSA, [entre 1995 e 2003], p. 44). Os caminhos percorridos são, sem dúvida, os mais
variados possíveis em face da diversidade de metodologias críticas. No entanto, quando lemos
a fortuna crítica de um escritor (ou parte dela), notamos a valorização de certas cnicas de
abordagem de um texto literário, além da valorização de alguns recursos metodológicos
disponíveis naquele momento. Com efeito, podemos dizer que algumas maneiras de se ler
uma obra literária, e, por meio dos textos de crítica, é possível perceber os procedimentos e os
métodos adotados por cada analista no decorrer dos séculos.
No dizer de João Alexandre Barbosa ([199-], não paginado), em “Reflexões sobre o
método”
3
, é necessário entender o caminho trilhado pelos críticos de ontem, pois é nele que
os estudiosos de hoje encontram “[...] os argumentos de defesa e de condenação para a
constituição de seu próprio método de leitura crítica”. Ou seja:
[...] refazendo os caminhos de suas leituras, buscando aprender o seu
aprendizado de posições críticas, a sua formação de leitor e o modo pelo
qual deu expressão, na leitura, às escolhas e, por outro, articulando as suas
idiossincrasias críticas resultantes, o seu estilo crítico, a um contexto mais
3
Este texto foi apresentado em um congresso na Universidade Estadual Paulista de Assis e não foi publicado
posteriormente.
33
amplo de época, marcado por circunstancias históricas e sociais especificas
(BARBOSA, [199-], não paginado).
Sabemos que hoje uma preocupação “[...] entre o interno, a leitura, por assim dizer,
imanente da literatura, e o externo, os seus condicionamentos sociais e históricos”
(BARBOSA, [199-], não paginado). Tal fato, entretanto, é recente, pois, até meados do século
passado, as metodologias críticas empregadas nas leituras da obra de Álvares de Azevedo
eram a biográfica, em um misto de psicologia, que resulta em um método psicobiográfico; a
psicológica e psicanalítica, empregadas principalmente por Mário de Andrade e que mais
tarde será retomada em alguns aspectos em textos de outros críticos; e depois a estilística,
que, ao mesclar recursos psicológicos, resultou em um método psicoestilístico, utilizado
principalmente por Antonio Candido. Assim sendo, temos a utilização do biográfico, da
psicologia, da psicanálise e do estilístico, como recurso metodológico na leitura da obra de
Azevedo até meados do século passado.
A leitura biográfica é limitada e demonstra sua incapacidade em trabalhar o objeto
central, isto é, a obra literária, pois essa crítica se pauta na biografia do autor, e na idéia de
que a obra é a transposição de uma vida e esclarecimento da existência do homem escritor.
Nesse sentido, esse tipo de abordagem,
[...] parte de um equívoco fundamental: a identificação do poeta ou do
narrador com a pessoa do autor. Ela considera a obra como a imagem fiel do
escritor enquanto homem, confunde o nível literal da obra com o nível
referencial. Ela se esquece de que a linguagem, e particularmente a
linguagem opaca da literatura, abre uma brecha entre o sujeito da enunciação
e o sujeito do enunciado, esquece que, como diz Barthes, ‘o narrador e
personagens são seres de papel’ (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 58).
Quando a crítica biográfica parte em busca do autor, ela toma um rumo equivocado,
em que há um afastamento irreversível da obra literária. Por esse caminho, “assistimos então à
realização de um curioso percurso. Procura-se desvendar o mito (obra) para descobrir o
homem (autor); em seguida, mitifica-se esse homem. Prefere-se, pois, ao mito primeiro da
obra, um mito secundário inventado pela crítica” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 60). Assim,
é possível ver que, “ao invés de pesquisar o mito interior da obra, [...], que é verbal, parte-se à
procura de um mito exterior à obra, criando uma personagem separada desta [...]”
(PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 60). Enfim, quando observamos os textos críticos sobre a
obra de Azevedo, que têm como método o biográfico, podemos constatar um afastamento de
sua obra, bem como a criação de uma falsa idéia que o envolve enquanto autor.
Por outro lado, foram também acrescentados a essa interpretação biográfica elementos
da psicologia, e por esse caminho a abordagem à obra do poeta ganhou novos rumos. A partir
34
daí, era por meio da personalidade de Azevedo que se pretendia chegar à sua obra. Com essa
metodologia crítica, formou-se ao redor do autor uma diversa especulação interpretativa.
Contudo, “a descoberta e a divulgação da psicanálise puseram em evidência a indigência
dessas interpretações psicológicas, sem, entretanto abalar seu ponto de partida, isto é, a busca
do segredo da obra na psique do artista” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 88).
Ao introduzir a psicanálise como recurso interpretativo, os críticos colocaram em
evidência a inabilidade de entender essa teoria, bem como de aplicá-la ao texto literário.
Porém, “depois de Freud, a aplicação da psicanálise à literatura se tornou uma moda, e foi
realizada de modo freqüentemente abusivo, quer por médicos que desprezavam a autonomia
do fenômeno literário, quer por críticos literários que manipulavam levianamente os conceitos
psicanalíticos” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 88).
Mormente isso, o interesse dos críticos por essa metodologia psicanalítica recaía sobre
três fatores, o científico, o literário e o ideológico, que podemos constatar no texto de Mário
de Andrade. Primeiro, porque supunha que se tratava, aparentemente, de um caso clínico
interessante, afinal em torno de Álvares de Azevedo formaram-se várias lendas; segundo,
porque a psicanálise poderia talvez explicar a sua obra, pois os métodos tradicionais já tinham
provado serem ineficazes; por último, porque a sociedade, ou o equilíbrio social exigia um
diagnóstico, afinal cogitava-se que a obra de Azevedo (e ele enquanto homem) não se
enquadrava no que poderíamos dizer normalidade social (PERRONE-MOISÉS, 1973).
ainda o psicoestilístico, que faz uma mistura da biografia, da psicologia, do texto
propriamente dito e do contexto social. Neste método, há, portanto, um avanço na abordagem
de leitura do texto literário. Todavia, Antonio Candido (2000b) em seu texto “Álvares de
Azevedo, ou Ariel e Caliban”, que será estudado neste capítulo, ainda valoriza a psicologia (e
em certa dose, a psicanálise), quando comenta a obra de Azevedo e ressalta a fase adolescente
do autor como norteador de sua poética.
Por esse caminho, todas essas metodologias críticas, pautada esmagadoramente no
biografismo, provaram ser ineficazes em muitos aspectos. Entretanto, é a partir delas que
poderemos observar como se dá a formação da recepção crítica da obra de Álvares de
Azevedo.
Diante disso, é possível perceber que durante muito tempo os recursos metodológicos
dos estudiosos da literatura, e em particular dos críticos de Azevedo, foram os mais diversos.
No entanto, todos eles têm uma relação direta com a vida do autor para explicar a obra. É
grande o número de textos que vão por este viés e os resultados obtidos beiram o contra-
senso. Os equívocos são patentes e demonstram a confusão que estes textos críticos
35
provocaram na apreciação de determinadas obras e autores, rojando-os desde a má
compreensão até a atribuição de desvios de comportamentos. Contudo, “percorrer a crítica de
um único autor no período de um século é uma tarefa esclarecedora não só quanto aos
problemas desse autor, mas, sobretudo quanto aos problemas da crítica” (PERRONE-
MOISÉS, 1973, p. 14).
É importante frisar, ademais, que mesmo com todos esses equívocos, aquele era o tipo
de crítica que tais estudiosos sabiam fazer. Aos nossos olhos, esses métodos parecem
estranhos e incapazes de dar uma visão mais condizente com os problemas que a obra literária
propõe
4
. Porém, pensar nesses estudiosos como portadores de deficiências metodológicas é
como “pensar que era muito fácil ao poeta compreender ou representar o belo de outro modo
que não daquele que a sua época e tendências individuais exigiam, é querer o impossível”
(RIBEIRO, 1974, p. 40).
Sabemos, então, que cada época apresentou uma metodologia crítica diferente de
abordagem do texto literário. É verdade também que o resultado obtido, muitas vezes, não foi
satisfatório. No entanto, é preciso levar em conta que aqueles estudiosos trabalhavam com os
métodos críticos de que dispunham, desse modo, não é porque vemos neles determinadas
distorções que os consideraremos descartáveis. Imprescindível se faz entender, num primeiro
momento, os caminhos trilhados por eles, para assim se chegar a um texto em consonância
com o estudo da literatura, reparando, quando necessário, possíveis equívocos de análise, e
expondo oportunamente nosso juízo de valor, a fim de que possamos estabelecer nossa
própria leitura.
A partir dos pressupostos discutidos acima, vamos organizar cronologicamente os
textos críticos de vários estudiosos da obra de Azevedo com o intuito de esboçar um
panorama geral da recepção crítica desse autor, procurando demonstrar no decorrer da leitura
os tipos de críticas, bem como as épocas em que foram produzidas, seus erros, acertos e
tentativas (quanto a nossa proposta de leitura), e, ainda, quais foram os reflexos que um texto
crítico incutiu no outro. Dividimos a Fortuna Crítica de Azevedo sob dois enfoques, primeiro,
vamos partir do que denominamos Os dados biográficos como explicação fundamental da
obra de Álvares de Azevedo e depois vamos para o que seria Uma leitura imanente do texto: a
preocupação com a obra literária.
4
Mesmo que esses críticos conseguissem entender e desvendar essa obra literária, ainda assim seria parte dela,
pois não como abarcar uma visão totalizadora e finita dessa obra, afinal uma grande obra propõe infinidades
de leituras, isto é, desde que a tomemos como objeto principal.
36
Antes, ainda, chamamos a atenção para um fato curioso e que desperta cuidado em
relação a determinados recursos adotados por cada um dos analistas literários que julgam
importante a biografia de Álvares de Azevedo. Os textos destes críticos apresentam ao mesmo
tempo fatos, que, se de um lado demonstram a fragilidade destes métodos, por outro
confirmam o pioneirismo em chamar a atenção para determinadas características da obra de
Azevedo. Ou seja, uma dualidade em seus estudos e, em um mesmo texto, inclusive,
encontramos tanto argumentos que se pauta na biografia de Azevedo como componente
fundamental para se entender sua obra, quanto outros que parte dos elementos intrínsecos a
obra e apresentam, assim, um discernimento interessante ao apontar certos aspectos que a
valorizam.
No conjunto total da recepção da obra de Álvares de Azevedo, podemos ver a
formação de dois tipos de enfoques: o que valoriza o elemento biográfico e aquele que
considera exclusivamente a imanência do texto literário. Vê-se, ainda, que nesse conjunto, os
textos que valorizam os aspectos biográficos são em maior número. Neles, o homem Azevedo
é tomado como fundamento básico para explicar sua produção artística, bem como o principio
estético de sua obra, vistos nessa metodologia como reflexos de fatores psicológicos que
marcaram sua vida. Assim, ao empregar esse método, criou-se não um distanciamento dos
elementos próprios de uma poética, como também dos dados históricos e filosóficos do
Romantismo. os textos críticos que salientam os aspectos literários, ou seja, a imanência da
obra, procurando resolver os problemas que dela advêm, são em menor número (ALVES,
1998).
Optamos por selecionar textos que englobem críticas de épocas passadas achegar às
mais recentes, que a recepção da obra de Álvares de Azevedo é bastante extensa. Contudo,
não constitui o propósito deste estudo buscar deter a palavra final sobre a produção
azevediana ou, ainda, sobre a hipótese aqui defendida de que Álvares de Azevedo foi
consciente na elaboração de sua criação literária. Pretendemos levantar argumentos que
contribuam para um melhor entendimento da obra deste paulista, acreditando na importância
da revisão da obra de um autor em determinado período, a fim de que se possa fazer justiça
tanto ao escritor quanto a determinados críticos literários.
37
3 - Os dados biográficos como explicação fundamental da obra de Álvares de
Azevedo.
Os textos críticos, cujos autores têm como preocupação analítica a biografia de
Álvares de Azevedo para se chegar à obra, além de constituírem parte maior da fortuna crítica
do poeta, também fundamentaram, na recepção crítica do autor de Macário, uma rígida e
intransponível associação de vida e obra. As interpretações, pautadas nessa relação,
cristalizaram ao redor de Azevedo, a idéia de que somente produziu sua obra por meio de
experiências pessoais. Argumento principal daqueles textos, neste texto, tornou-se um ponto
de divergência, porquanto
a crítica baseada sobre a biografia parte do pressuposto de que a obra é a
transposição de uma vida, o retrato retocado das experiências existenciais de
um indivíduo artista. “O estilo é o homem”, eis a convicção que orienta as
pesquisas biográficas. Efeito de uma causa, a obra se desvendaria quando as
causas, situadas na existência do homem escritor, fossem bem conhecidas
(PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 51).
Assim, não tencionamos esse procedimento analítico, mesmo porque não buscamos o
homem Álvares de Azevedo, mas o poeta Álvares de Azevedo, o criador e a sua obra.
Nessa conjetura, o receio do método biográfico na abordagem da obra do autor de
Macário se deve, em primeiro lugar, ao fato de que não desejamos desvendar o homem
Álvares de Azevedo para compreender a sua produção artística. Em segundo lugar, porque “a
crítica biográfica parte de um equívoco fundamental: a identificação do poeta ou do narrador
com a pessoa do autor” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 58). Afinal, com essa acepção,
quando se busca o indivíduo na obra, o poeta, o eu lírico ou o narrador são jogados em um
plano secundário, criando um estranhamento e um malogro tanto com a obra em si, quanto
com a teoria literária.
Além disso, “partindo em busca do autor, a crítica biográfica toma um rumo duvidoso,
que ao invés de a conduzir à obra, por vezes dela a afasta definitivamente” (PERRONE-
MOISÉS, 1973, p. 59). Ou ainda, “cada vez que o artista [indivíduo] é preferido à obra, essa
preferência, essa exaltação do gênio [homem] significa uma degradação da arte, o recuo
diante de seu próprio poder, a procura de sonhos compensadores” (BLANCHOT apud
PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 58-59).
Ainda assim, devemos também inserir um parêntese de que não rejeitamos ou somos
contrários ou radicais a uma leitura biográfica, antes apontamos suas lacunas e reconhecemos
seu valor enquanto leitura possível. Afinal, não podemos fazer vista grossa ao fato de que a
38
biografia, muitas vezes, está relacionada com a obra, pois que muitos escritores e suas obras
têm pontos de contatos, como exemplo Thomas Mann e João Antônio. No entanto, colocar a
biografia como elemento principal no entendimento da obra, como faziam os críticos com
Álvares de Azevedo, é outro procedimento bem diferente. Mesmo porque, qualquer que
seja a obra literária, ela não se resume somente a isto. Em outras palavras, acreditamos que
uma leitura biográfica das obras de Azevedo impõe certos limites e deixa de revelar aspectos
importantes para sua compreensão.
Ademais, se “a biografia, como gênero, situa-se entre a história e a ficção”
(PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 56), mas não se constitui o elemento primordial, segundo
nosso ponto de vista, para a compreensão e interpretação da obra propriamente dita, a falta
dela tornaria “[...] assim uma circunstância muito favorável para um estudo imanente da obra,
[...]” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 54). Contudo, essa abordagem metodológica não
ocorreu imediatamente, dado que a crítica literária “[...] até uma data relativamente recente,
não se achava preparada” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 54).
Nessa acepção, a falta de dados concretos sobre o poeta paulista visto que os livros
Álvares de Azevedo, de Veiga Miranda, de 1931; Álvares de Azevedo, também de 1931, e
Álvares de Azevedo desvendado, de 1977, de Vicente de Azevedo, não nos parecem biografias
reveladoras deveria nortear as pesquisas para uma leitura imanente de sua obra. Entretanto,
é “relativamente recente” essa preocupação com a obra do poeta, mesmo porque os métodos
de análise empregados pela crítica literária brasileira ainda precisavam se ajustar melhor à
obra do autor de Lira dos vinte anos. Ou seja, as mudanças empreendidas pelos críticos na
análise da obra de Azevedo somente enfatizaram uma leitura imanente no final do século XX.
Com o propósito de finalizar este preâmbulo, acreditamos que se de um lado, a falta de
uma biografia de Álvares de Azevedo tem contribuído, tanto para neutralizar as especulações
que em torno dele se formaram, pois não há como comprovar determinados assuntos e
relacioná-los seguramente a certas características da obra, quanto para uma leitura imanente
de sua produção artística. Por outro lado, essa ausência deu início à disseminação de mitos e
lendas que prejudicaram profundamente o poeta, como por exemplo, os de Pires de Almeida
5
,
5
O autor, em artigo de 20 de dezembro de 1903, por meio das “informações” da cozinheira Chica Prosa, além de
tencionar recriar o ambiente em que supostamente vivera Álvares de Azevedo, como o seu quarto, seu gosto
noturno, os objetos exóticos que possuía, tais como crânios, tochas de enterro que lhe servia de velas, dentre
outros, também procurou apontar dados sobre a vida de Azevedo, principalmente o gosto requintado pelas
roupas, trajando-se à moda de Byron, bem como transcreve o segundo e o quarto capítulos do então inédito”
Livro do Fra Gondicário. O resultado dessa empreitada é uma alucinação por parte do crítico, que “graças às
minuciosas informações da Chica Prosa, principi[ou] a conhecer a vida que Álvares de Azevedo levara na
cidade acadêmica [...]” (ALMEIDA, 1962, p. 47-48, grifo nosso). Visto que “[...] pedi[u] à Chica Prosa que, se
concentrando, [...] [lhe] descrevesse minuciosamente a casa que Álvares de Azevedo habitara, seu quarto de
39
publicados em artigos no Jornal do Comércio, de 1903 a 1905, e que mais tarde foram
reunidos sob o título A escola byroniana no Brasil, de 1962. Em suma, conjeturemos que,
mesmo se houvesse uma biografia de Álvares de Azevedo, nada nos faz crer que ela pudesse
dar argumentos suficientes para a interpretação de sua obra, uma vez que, segundo nosso
parecer, a produção artística do poeta está além de reflexos pessoais.
3.1 - A crítica psicobiográfica.
Antes de começarmos com o estudo/análise dos textos da recepção crítica da obra de
Álvares de Azevedo, os quais daremos enfoque à metodologia de cada autor, e também às
idéias levantadas por eles, gostaríamos que se entendesse como crítica pautada nos dados
biográficos àquela que contribuiu para determinados equívocos de leituras da poética
alvaresiana. Nessa acepção, denominamos como negativos em nossa leitura quaisquer textos
que valorizam a biografia ou fatores psicológicos como sendo os responsáveis pela obra
literária do poeta
6
.
Apesar disto, adiantamo-nos em dizer que não é pretensão nossa sermos levianos ou
arrogantes por fazer uso do vocábulo equívoco, visto que o emprego e a acepção dessa
palavra, para nós, se deve ao fato de discordarmos de alguns argumentos que se opõem a
nossa leitura da obra de Álvares de Azevedo. Com isso, não queremos julgar que os textos
daqueles críticos são enganosos ou portadores de interpretações duvidosas, mas sugerir, por
meio de um trabalho analítico, que a produção artística de Azevedo está além dos seus
reflexos pessoais.
Acreditamos que, embora não concordemos com determinados argumentos, retomar
esses textos críticos evidencia que eles têm algum valor, bem como demonstra que aqueles
autores continuam vivos. Ou seja, trabalhar com esses críticos literários pressupõe que eles até
dormir, seu gabinete de estudo, e o que se dava quando o poeta trabalhava em seus escritos” (ALMEIDA, 1962,
p. 48).
6
Houve momento que essa crítica fez um julgamento meramente político, pois Azevedo não adere ao
nacionalismo como fundamentação de sua poética, afinal ele tem um pensamento diferente daqueles primeiros
românticos, no qual adere o universalismo em detrimento do regional, do local. Por outro lado, podemos
constatar nos textos críticos do século XIX um descaso em relação à obra em prosa e aos estudos literários de
Azevedo. No entanto, quando algum crítico aborda essa produção, geralmente, é para sugerir que ela é de
péssima qualidade.
40
o presente momento nos têm algo a dizer. Independente de discordar ou não, eles ainda nos
causam inquietações.
Como corpus de análise dessa crítica que ressalta os dados biográficos como
elucidação necessária à obra de Álvares de Azevedo, tomaremos os ensaios de grandes
estudiosos de nossa literatura. De início, abordaremos o texto de Machado de Assis, de 1864,
Lira dos Vinte Anos: poesias de Álvares de Azevedo”
7
. Em seguida, os textos “Álvares de
Azevedo”
8
, de Sílvio Romero, de 1888, e “Álvares de Azevedo”
9
, de José Veríssimo, de
1916; “Amor e Medo
10
, de Mário de Andrade, de 1931; “Álvares de Azevedo, ou Ariel e
Caliban”
11
, de Antonio Candido, de 1959; “Álvares de Azevedo e o Romantismo”, de Carlos
Dante de Moraes, de 1960; o texto de apresentação da poesia de Álvares de Azevedo, de
Maria José da Trindade Negrão, de 1960 e, por fim, “Álvares de Azevedo”, de Vicente de
Azevedo, de 1971.
Estes textos acima arrolados, em menor ou maior intensidade, refletem os dados
biográficos de Azevedo. É bem verdade, que cada autor acentua esta ou aquela metodologia
crítica, mas eles sempre partem de um ponto em comum. Ou seja, nestes textos encontramos
os mais variados métodos de leitura, contudo, eles emitem gamas fortes de preocupações
analíticas, por parte dos estudiosos, orientadas na vida do poeta Álvares de Azevedo.
A partir deste momento, abordaremos um texto por vez, a fim de elucidar os pontos
mais pertinentes de cada autor, isto é, interpretações, argumentações e conclusões, em que se
evidenciem determinados equívocos de leitura, bem como sua metodologia crítica, portando-
se, segunda nossa leitura, como crítica que julga importante a biografia do autor de Macário
para se chegar à obra.
Tomaremos, inicialmente, o texto Lira dos vinte anos: poesias de Álvares de
Azevedo”, de Machado de Assis, de 1864. Nele, o crítico exprime certos juízos acerca da obra
do autor que explicitam certo determinismo. O seu método de análise é pautado,
principalmente, na biografia do poeta, e em um entrelaçar de idéias: ora vê Azevedo como um
escritor imaturo e inconsciente de seu fazer literário, reflexo de alguns escritores europeus,
ora como um autor dotado de uma sensibilidade poética, mas que não teve tempo para
desenvolvê-la.
7
O texto de Machado de Assis foi publicado inicialmente no caderno da Semana Literária, Rio de Janeiro, 12 de
março de 1864.
8
O texto foi publicado inicialmente em História da Literatura Brasileira de 1888.
9
Publicado inicialmente em História da Literatura Brasileira de 1916.
10
O ensaio de Mário de Andrade foi publicado na Revista Nova. São Paulo, ano 1, 3, 1931, no ano em que se
comemorou o centenário do nascimento do poeta.
11
Publicado inicialmente em 1959.
41
Por este caminho, Machado de Assis declara, inicialmente, que Azevedo exerceu uma
grande influência nos jovens poetas com sua poesia no estilo do “mal byronico”
12
:
[...] o autor da Lira dos vinte anos exercera uma parte de influência nas
imaginações juvenis. Com efeito, se Lord Byron não então desconhecido às
inteligências educadas, se Otaviano e Pinheiro Guimarães tinham
trasladado para o português alguns cantos do autor de Giaour, uma grande
parte de poetas, ainda nascentes e por nascer, começaram a conhecer o gênio
inglês através das fantasias de Álvares de Azevedo, e apresentaram, não sem
desgosto para os que apreciam a sinceridade poética, um triste cepticismo de
segunda edição. (ASSIS, 2000, p. 24).
Ao apontar tal fato, Machado sugere que a obra azevediana seria um reflexo
secundário e, portanto, imperfeito do projeto literário de Byron. Nessa acepção, ele sentencia
a obra de Álvares de Azevedo como sendo menor do que a do poeta inglês e,
conseqüentemente, desprovida de mérito pessoal, visto que ela não é uma cópia perfeita ou
um trabalho original. A visão de Machado, neste argumento, é reducionista e não concorre
para elucidar a poética desse autor, mesmo porque não acreditamos que a produção artística
do autor de Noite na Taverna seja orientada somente pela escola byroniana.
Ainda que Machado de Assis tenha reconhecido grande habilidade literária em
Azevedo, como crítico, ele considera ter faltado ao romântico tempo necessário para o
amadurecimento enquanto autor, possibilitando uma separação do que era seu e o que era
reflexo alheio. Esta é uma suposição freqüente na recepção crítica e incide em uma questão
muito debatida: a influência. Na palavra do crítico, o poeta era dono de uma imaginação
inquieta, típica da juventude, que acabaria por firmar com o passar dos anos:
Álvares de Azevedo era realmente um grande talento: lhe faltou o tempo,
como disse um dos seus necrólogos. Aquela imaginação vivaz, ambiciosa,
inquieta, receberia com o tempo as modificações necessárias; discernindo no
seu fundo intelectual aquilo que era próprio de si, e aquilo que era apenas
reflexo alheio, impressão da juventude, Álvares de Azevedo, acabaria por
firmar sua individualidade poética. Era daqueles que o berço vota à
imortalidade. Compare-se a idade com que morreu aos trabalhos que deixou,
e ver-se-á que seiva poderosa não existia naquela organização rara. Tinha os
defeitos, as incertezas, os desvios, próprios de um talento novo, que não
podia conter-se, nem buscava definir-se. (ASSIS, 2000, p. 24-25).
Além disso, Machado de Assis observou em Azevedo freqüentes leituras de outros
escritores como Musset e Shakespeare, por exemplo. Desses autores provieram muitas
influências que podem ser vistas em trabalhos como “Os boêmios” e o “Poema do frade”:
“Mas esta predileção, por mais definida que seja, não traçava para ele um limite literário, o
12
Além da biografia como protocolo de leitura, houve um também político, pois “politicamente, o byronismo
sofre o expurgo nacionalista: é modismo, importação de idéias, ornamento oco, artificialismo que não reflete o
Próprio do Lugar” (HANSEN, 1998, p. 10).
42
que nos confirma na certeza de que, alguns anos mais, aquela viva imaginação, imprevisível a
todos os contatos, acabaria por definir-se positivamente” (ASSIS, 2000, P. 25). O tempo, mais
uma vez, afirma Machado, seria o responsável pelo amadurecimento das inquietações e
imaginações provindas dessas influências, para que, enfim, Azevedo pudesse construir um
ideal poético maduro, o qual se firmaria positivamente na literatura brasileira. Destarte, a
conclusão do escritor é sem dúvida precipitada, pois Azevedo não foi desprovido de senso
crítico. Para refutar esta afirmativa, basta lembrarmos o prefácio à segunda parte de Lira dos
vinte anos, cujas idéias apontam um limite literário bem definido.
Na seqüência, Machado de Assis (2000, p. 25) embaralha algumas convenções
românticas ao afirmar que “o pressentimento da morte, que Azevedo exprimiu em uma poesia
extremamente popularizada, aparecia de quando em quando em todos os seus cantos, como
um eco interior, menos um desejo que uma profecia”. Em uma mistura de vida e obra, o
crítico explicita que o poeta já sabia como seria o desfecho de sua vida – uma morte
prematura. Em quase todos seus poemas, segundo Machado, Azevedo deixava escapar o
prenúncio de seu fim. Nisso, o crítico manifesta uma desajeitada disposição de compreensão à
obra de Álvares de Azevedo, na qual a temática da morte era uso recorrente; antes de
profecia, era um assunto como qualquer outro desenvolvido no Romantismo.
Diante disso, vemos que o texto de Machado de Assis imerge-se em vários momentos
no biografismo. Se de um lado, ele aponta características pertinentes a obra de Azevedo, por
outro, ele insiste em aproximar vida e obra. Por esse meio, Machado (2000, p. 25) explicita
que “não é difícil ver que o tom dominante de uma grande parte de versos ligava-se a
circunstâncias de que ele conhecia a vida pelos livros que mais apreciava. Ambicionava uma
existência poética, inteiramente conforme a índole dos seus poetas queridos”. Ou seja, o autor
de Lira dos vinte anos teve um viver artificial, visto que além de conhecer a vida somente
pelos livros, desejava um “existir”, mesmo que poético, consonante o temperamento e
conduta dos “bardos” Byron e Musset.
Machado de Assis, ao findar sua leitura da poesia de Azevedo, passa à análise dos
textos em prosa, que, segundo o autor, não são iguais a seus versos, faltavam-lhes a precisão e
a concisão, pois era difusa e confusa. Ele acredita que o autor, mesmo sendo brilhante,
possuía os defeitos da estréia, uma vez que procurava a abundância e caía no excesso,
deixando a erudição dominar a reflexão. Por fim, conclui que o escritor de Lira dos vinte anos
não era tão bom prosador quanto poeta. Nesta linha de pensamento, o crítico novamente
acredita que o tempo amadureceria a obra de Azevedo, o tempo refinaria sua poesia,
mas a poesia, porque a prosa, segundo afirma, era de uma qualidade questionável. A
43
posição defendida por Machado de que a prosa azevediana é inferior à sua produção poética
será disseminada e acatada por muitos críticos posteriores a ele.
Por outro lado, pontos bastante favoráveis a nossa hipótese no texto de Machado de
Assis, afinal, ele foi um dos primeiros que soube reconhecer certas especificidades inerentes à
obra do poeta, uma vez que quando todos diziam que o autor tinha uma estreita relação de
influência com Byron aliás, divulgada notoriamente pelo primo de Azevedo, Jaci Monteiro
(2000, p. 22): Lendo muito o Byron, demasiado talvez, vemos nele, em seus pensamentos,
em suas imagens, esse delírio febricitante, esse arroubo de idéias, esses rasgos apaixonados,
frenéticos e violentos, que caracterizam o autor de Don Juan
13
–, Machado de Assis (2000, p.
25) diz: “cita-se sempre, a propósito do autor da Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron,
como para indicar as predileções poéticas de Azevedo. É justo, mas não basta”. O crítico,
todavia, levanta esta proposição bastante pertinente sobre a obra de Azevedo, mas não a
aprofunda pormenorizadamente. Deixando, assim, uma lacuna, que poderia se firmar
positivamente, acerca da concepção de poética de Álvares de Azevedo.
Podemos observar, também, que Machado de Assis foi um dos primeiros a afirmar, e
depois muitos outros iriam repetir, como é o caso do próprio Sílvio Romero, que a obra de
Azevedo apresenta elementos novos a nossa poesia. Segundo Machado, tal fato se resume aos
poemas humorísticos do escritor, cuja originalidade e a viveza do gênero seriam algo bem
notável, e, ainda, uma ocorrência isolada, distinta, que, afinal, não existia este tipo de
poesia na literatura brasileira.
Na seqüência, teremos o texto de Sílvio Romero, que, tal qual o texto de Machado de
Assis, expressa bem o método utilizado no final do século XIX. Este texto é pautado, em
grande parte, pelo biografismo, no qual Romero expressa a compreensão da obra azevediana.
Ademais, Romero usa um materialismo científico como instrumento de análise literária, com
o qual censurará com intensidade tanto a poesia de Azevedo e o homem Azevedo, como o
próprio movimento a que pertencia o poeta, pois, em suas palavras, o autor de Macário era
uma pessoa “desequilibrada”, “doentia”, bem como o Romantismo era “um cadáver pouco
respeitado”.
Ao lermos as colocações do crítico sobre o poeta e atentar ao uso da linguagem
cientificista, utilizada por Sílvio Romero (e que atualmente nos parece estranho a mistura da
biologia com a crítica literária), é possível perceber que esse método crítico está inserido num
13
O texto de Jaci Monteiro, publicado inicialmente nas Obras de Manuel Antonio Álvares de Azevedo, é de
1862.
44
contexto maior, visto que Romero segue as transformações que aconteciam na Europa em
torno das “formas artísticas”. Mesmo porque,
no século XIX, o progresso do homem, no campo da Ciência, leva os artistas
e críticos de arte a preocuparem-se com a evolução da formas artísticas,
tendo em vista as leis e princípios que determinaram as suas origens. Esta
preocupação se traduz numa linguagem imbuída de expressões científicas,
tomadas, principalmente, da biologia, física, matemática, química e
psicologia, e nos métodos emprestados também destas ciências (CAIRO,
1996, p. 39).
Com isso, a literatura obteve características inovadoras e o procedimento analítico
ganhou nova metodologia, já que
era importante, naquele momento, dar caráter de ciência à literatura, à crítica
literária. O crítico tinha um método científico e nele fundamentava a sua
análise, e assim contribuía para a criação da Ciência Literária. A crítica
literária, desta maneira, perdia o caráter de simples especulação
interpretativa e ganhava o cunho de seriedade e veracidade que reveste o
conhecimento científico (CAIRO, 1996, p. 39).
Ora, se no velho continente os críticos literários procediam desta forma, também
no Brasil, não ficamos imunes a este vírus, e Araripe Junior, Sílvio Romero
[como já assinalamos] e José Veríssimo mostram marcas desta tendência em
seus discursos críticos. Eles surgem no cenário da crítica brasileira,
justamente, quando as idéias românticas estão sendo contestadas e o cânone
realista está surgindo como a grande novidade (CAIRO, 1996, p.39).
No entanto, vale ressaltar, ainda, que ao observarmos o método de análise desses
críticos, é perceptível que entre Araripe Júnior, Sílvio Romero e José Veríssimo “havia traços
comuns no modo como encaravam a obra literária, no método de leitura e na linguagem
imbuída de cientificismo, mas, certamente, havia também muitas sutilezas neste modo de
encarar que os diferenciava” (CAIRO, 1996, p. 40).
Sílvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira, de 1888, ao falar de Álvares
de Azevedo, explicita que não seguirá os mesmos caminhos da “retórica maléfica”. A maneira
de expressar do crítico é a de que “eu não quero decompô-lo. Repugna-me às vezes este ofício
de anatomista do espírito. [...] Procederei por outro modo; antes pintor que anatomista
14
, antes
uma tela do que uma mesa de operações” (ROMERO, 2000, p. 29). A verdade é que isso não
ocorre, pois o crítico, a todo o momento, aponta a personalidade, a vida do autor como sendo
em grande parte as responsáveis por sua poesia. Por outro lado, pode-se também supor que, ao
14
Quando Romero aponta que não será anatomista do espírito surge tanto uma contradição com o tipo de crítica,
ou melhor, com a metodologia crítica por ele desenvolvida como também com o método de sua época. Afinal a
crítica era feita sob o caráter (vida) dos escritores, imbuídas de uma linguagem cientificista, e não de suas obras.
45
falar da tela, Romero sugere uma crítica artificial, onde algumas pinceladas dariam conta da
imensidão que é a obra do poeta paulista.
Para ele, a crítica atribuiu a Álvares de Azevedo uma contaminação do espírito por
parte de Byron e Musset, o que teria resultado em uma aquisição do cepticismo. Contudo,
discorda, pois “isto é dizer muito pouco, é quase nada dizer” (ROMERO, 2000, p. 29). Na
visão de Romero, “resta [definir] ainda e sempre determinar os motivos dessas predileções do
poeta e definir a natureza de seu cepticismo” (ROMERO, 2000, p. 29), afinal, talvez
pudéssemos afirmar que céptico somos quase todos, e o qualificativo, sua generalidade não é
capaz de defini-lo (ROMERO, 2000, p. 29). Mas a ressalva de Romero não é capaz de fazê-lo
desistir, parece que enxerga bem as práticas da crítica de sua época, bem como da anterior
15
, o
que o faz, aos poucos, ir introduzindo sua opinião, pôr-se a estatuir um modelo próprio que,
entretanto, se perde e recai nos mesmos preceitos daquilo que ele chama de “a velha crítica”:
o biografismo. Afinal, neste tipo de crítica ou
na crítica denominada realista ou naturalista, predominante na segunda
metade do século XIX, persiste o pendor para associar questões de ordem
temática e estrutural da poesia de Álvares de Azevedo não a uma construção
poética, mas a uma propensão natural de seu caráter. Marcando as
predileções intelectuais desses estudiosos, no entanto, teremos aí um Álvares
de Azevedo visto à luz dos princípios básicos do cientificismo materialista
do século XIX que norteavam tal crítica. (ALVES, 1998, p. 34).
Na visão do crítico, Álvares de Azevedo “[...] era um talento possante numa
organização franzina. o podia viver muito, era doentio; era em essência um melancólico.
Isto pode-se dizer dele; porque é a verdade manifestada em sua vida e em seus escritos. [...] O
poeta quase produziu queixumes; porque era desequilibrado” (ROMERO, 2000, p. 36,
grifo do autor). Nisso, além de um determinismo exagerado, criou-se uma deturpação da vida
do escritor, pois não havia e não há uma biografia que sustente tal afirmativa. Assim forjou-se
a idéia falsa de que o autor era uma pessoa doentia. De certo modo, este tipo de crítica era
bem comum na época, pois estudiosos trabalhavam por este viés. Imerso nas teorias de seu
tempo, Romero deu forma àquilo que era o método vigente, não retomando o que era dito
sobre Azevedo, como contribuindo definitivamente para estabelecer as diretrizes
interpretativas de sua obra que seriam imortalizadas no cânone literário.
O método empregado por Sílvio Romero demonstra uma fragilidade e, como resultado
da influência cientificista, sua crítica acentua o pendor para ver Álvares de Azevedo como um
indivíduo desequilibrado, que traz em si um “desarranjo orgânico”.
15
De certo modo, um intertexto com o texto crítico de Machado de Assis, afinal é ele quem levanta esta
questão ao afirmar que Azevedo tinha um cepticismo – de “segunda edição” – proveniente da obra de Byron.
46
Contudo, Sílvio Romero traz também em seu texto um fato interessante: o de que a
obra mais lida pelo público de Azevedo, desde sua publicação em 1855, foi Noite na Taverna.
Romero seu parecer de que este livro teve um maior número de reedições que outros
trabalhos do poeta e, por fim, explicita que na fase culminante de nosso romantismo, no
decênio de (18)46 e 56, o poeta “sonhador”, de Lira dos Vinte Anos é, após Dias e Alencar, a
figura da época. Nesse ponto, pode-se constatar que a obra de Azevedo foi bem recebida pelos
leitores, o que demonstra que em seu tempo ele já tinha seu valor reconhecido e era
colocado dentro do cânone literário.
É interessante observar também que Romero ressalta um traço forte na obra de
Azevedo: o humor. Nisso, percebemos que ele resgata a idéia de Machado de Assis, e assim
não cabe a ele o mérito de reconhecer na obra do escritor esta característica tão valorizada
pela crítica atual. Nessa esteira, Romero afirma que não só esta prática, na época de Azevedo,
era nova em nossas letras, como também acresce que foi a primeira vez a aparecer nos
escritores brasileiros:
O humorismo é também novo, e é a primeira vez que aparece na poesia
brasileira essa bela manifestação da alma moderna. Convém não confundir o
humour com a chalaça, a velha pilheria portuguesa; essa tivemo-la sempre, e
sempre a possuiu o reino.
O Humour à inglesa e alemã nós não o cultivamos jamais, nem Portugal
tampouco. O primeiro que o exprimiu em nossa língua foi Álvares de
Azevedo, profundamente lido nas literaturas do Norte.
O humour é diverso das vis cômica, do espírito e da sátira, ainda que possa
ter com eles alguma analogia. A comédia é o riso com certa malignidade; o
espírito é graça, a pilhéria para divertir; a sátira é um castigo empregado
como tal, mostrando cólera.
O humour é uma especial disposição da alma que procura em todos os fatos
o lado contrário, sem indignação. Requer finura, força analítica, filosofia,
cepticismo e graça num mixtum compositum especialíssimo, que não anda
por aí a se baratear. (ROMERO, 2000, p. 39).
Estas colocações de Romero são, surpreendentemente, bem assertivas. O crítico
percebe e reconhece na obra de Azevedo essa prática tão inovadora na literatura no Brasil. É
importante ressaltar que, a partir desse momento, ele não buscará na biografia do poeta
elementos para analisar a obra, já que talvez tenha percebido que tal método não era suficiente
e se conteve em analisá-la relacionando-a apenas ao espírito e à capacidade do escritor.
Além de Romero, José Veríssimo impregnou-se da metodologia crítica biográfica.
Nesse método de análise, ele incorporou elementos da crítica naturalista, bem como das
teorias deterministas, isto é, a tríade de Taine: raça, meio e momento histórico, para
estabelecer enfim uma leitura da obra de Álvares de Azevedo. Em seu estudo sobre Azevedo,
ele apresenta o poeta como portador de uma “disposição psíquica” que o levou a deixar-se
47
influenciar por Byron e Musset e que a tuberculose, doença atribuída equivocadamente,
determinaria grande parte de sua poesia.
José Veríssimo, além de determinar a poesia de Azevedo como fator proveniente de
uma doença, também sugere, em seu texto Álvares de Azevedo, publicado em 1916 no
livro História da Literatura Brasileira, que a obra alvaresiana é um reflexo da literatura
européia, pois o autor era um leitor assíduo, um devorador de livros daqueles escritores.
Porém, ele assegura que Azevedo, com a pouca idade que tinha, não fora capaz de assimilar
com igual aptidão tudo o que lia, ou seja, haveria, então, uma deformidade na concepção de
literatura em nosso escritor. Nesse momento, José Veríssimo, entre ecos e repetições, assume
a postura da crítica que valoriza a vida, ao sugerir que a juventude do poeta justificava o
resultado, a qualidade de sua poética. Por outro lado, o crítico conclui que Álvares de
Azevedo, ao ler aquele tipo de literatura, começou a idealizar uma vida romântica pautada
pelos escritores europeus,
[...] ou imitando a existência de vezos que lhes atribuía a eles ou tinham as
suas criaturas. E pela imaginação ao menos, começou a viver tal vida na
qual, com as suas nativas inclinações, entrou muita literatura. [...]. Da
combinação das próprias tendências com a imitação literária, criou-se uma
vida factícia. Presumiu transplantar para a mesquinha vida de S. Paulo de
meados do século passado costumes e práticas do romantismo europeu. Quis
praticar as façanhas sentimentais dos heróis de Musset e Byron.
(VERÍSSIMO, 2000, p. 43-44).
Desse modo, essa crítica biográfica, além de interpretar a obra de Azevedo como um
produto proveniente da influência direta desses escritores, acredita que parte de sua poesia
teria sido possível graças a uma suposta doença que o levou para o túmulo. Assim, José
Veríssimo admite que toda a superexcitação de Álvares de Azevedo era provocada pela
tuberculose. Diante disso, o crítico decreta: é, através da sensibilidade doentia, que Azevedo
não consegue desvencilhar-se do eterno feminino. Um eterno feminino, que um poeta
brasileiro, jovem, sensual e ardoroso podia conceber, ou seja, um poeta doente, prestes a
morrer, que não compreendia bem os poetas europeus, que desejava ardentemente o amor
feminino, dispor-se-ia realizar. Procedendo desta maneira, Veríssimo equivoca-se por duas
vezes: primeiro, o poeta não era tísico; segundo, concluir ser a tísica o propulsor do interesse
no subjetivo, na inspiração, na busca da mulher como resposta rápida para seus desejos é
em si desvalorizar a prática poética. Enfim, ao elaborar tal análise, ele adota um discurso em
que a pessoa do poeta é confundida com a personalidade lírica, assumida em sua poesia, vista
como ponto fundamental de interpretação de sua obra pelo viés biográfico.
48
O crítico, mais uma vez, afirma, categoricamente, que a obra de Azevedo foi
conseqüência de sua vida, que as temáticas abordadas derivam das tristezas vivenciadas e de
seu sofrimento íntimo e subjetivo. Além disso, pautado em fatores deterministas, busca
explicar a veia humorística da poesia alvaresiana. Para ele, o humor e ironia encontrados na
obra, antes de serem práticas conscientes do poeta, deriva, também, de sua tísica. Desse ponto
de vista, percebemos que Veríssimo não cogitou que todas as temáticas encontradas na obra
de Azevedo eram mais predileções conscientes do Romantismo, do que simples reflexos da
vida pessoal do escritor.
Contudo, um dos grandes méritos levantado pela crítica atual sobre determinadas
especificidades na obra de Azevedo cabe a José Veríssimo, que assinala a presença do eterno
feminino goethiano na poesia azevediana. É dele tal observação, que se equivoca, porém, ao
dizer que isto é resultado do estado tuberculoso do poeta e não de uma prática consciente.
Diante o exposto, é patente que Sílvio Romero e José Veríssimo, orientados pela
crítica cientificista, deram um tratamento analítico à obra azevediana, em que sobressaiu a
biografia do poeta. O resultado dessa abordagem interpretativa definiu, prontamente, o autor
de Macário como uma pessoa patologicamente desequilibrada, doentia, uma vez que os dois
críticos buscavam compreender a vida, a personalidade do poeta paulista para, seguramente,
aproximarem e darem conta das especificidades da obra. Tal fato é compreensível, visto que
a crítica científica visava muito mais auxiliar as demais ciências do que
conhecer o objeto de seu estudo: a literatura. Aos olhos de hoje, esta seria,
aparentemente, uma das falhas do cientificismo [...]. Ao estudar a obra
literária, buscava-se desvendá-la através do conhecimento da personalidade
do autor e da sociedade que a produziu e a consumiu. Este acabava sendo,
talvez, consciente ou inconscientemente, o objetivo primeiro da crítica
(CAIRO, 1996, p. 46).
É bem verdade que essa análise da obra de Álvares de Azevedo, empreendida por
Romero e Veríssimo, se de um lado parte da tríade de Taine: raça, meio e momento histórico,
de outro demonstra uma afinidade com as considerações de estética, de psicologia e de
sociologia. Nossa intenção, contudo, não é aproximá-los de críticos europeus como Taine e
Hennequin, mas é comprobatório que aqueles, bem como estes estudiosos, partem de uma
mesma abordagem que se afasta bastante da obra propriamente dita e se intensifica naquelas
possíveis maneiras de analisar a produção artística de um escritor. Desse modo, parece-nos
que por meio da análise cientificista “[...] conhece-se muito mais o artista, o autor da obra, o
público que a consumia, a sociedade a que pertenciam autor/obra/público, do que
propriamente a obra literária em exame” (CAIRO, 1996, p. 40).
49
À vista disso, é possível que a literatura, e a obra literária com essa preocupação
analítica se prestariam, indubitavelmente, como um rico material no auxílio das demais áreas
da ciência. No entanto, ela ocasionará, expressamente, um afastamento do que deveria ser a
preocupação de um crítico literário: o estudo primeiro da obra.
Por outro lado, “não cabe, porém, a cobrança de uma crítica literária cuja meta
prioritária fosse dar conta da obra para, posteriormente, também auxiliar a ciência e demais
ramos do conhecimento humano” (CAIRO, 1996, p. 46). Mesmo porque, não havia meios da
crítica literária se preocupar naquele momento com o estudo da obra em si e, que, viesse a se
tornar depois, um instrumento preciso de ajuda à ciência e a outros ramos de conhecimento,
visto que se dava o inverso, afinal era a Ciência (o cientificismo) que auxiliava a metodologia
crítica, a literatura e as demais áreas. Desse modo, sendo a crítica cientificista o método
vigente de pesquisa do final do século XIX e início do século XX, é compreensível sua
pretensão em dar uma “seriedade e veracidade que reveste o conhecimento científico”
(CAIRO, 1996, p. 39) aos estudos da literatura, ainda que, para isso, o objeto de estudo não
fosse priorizar a literatura e a leitura imanente de uma obra.
3.2 - A crítica psicanalítica.
Antes de prosseguirmos com os textos, tomados aqui como corpus da crítica que
valoriza a biografia de Álvares de Azevedo, torna-se necessário fazer um resumo dessa
abordagem metodológica, para evidenciarmos outros equívocos de leitura que aparecerão na
metodologia crítica pautada na psicanálise. Até mais ou menos por volta de 1930, aqueles
estudiosos, Machado de Assis, Sílvio Romero e José Veríssimo, determinavam como fator
importante para a interpretação da obra de Azevedo a sua suposta vida, bem como um,
também suposto, comportamento psicológico. Contudo, quando vem a lume o texto “Amor e
Medo”, de Mário de Andrade, que introduz nos estudos literários do Brasil a teoria
psicanalítica, além de incorporar todo esse tipo de crítica, ainda acrescenta “desvio de
comportamento” àquele autor, que não condiz com sua vida e muito menos com sua obra
literária. Essa leitura o irá malograr-se, a exemplo das que haviam sido feitas, como
também irá desconsiderar as próprias exigências do texto literário, além de confirmar o que
acontece quando um crítico resolve aplicar a todo custo uma determinada teoria ao texto
poético.
50
No entanto, quando o texto de Mário de Andrade veio a público, sem dúvida, causou
uma grande impressão no quadro crítico brasileiro; afinal, era uma nova possibilidade de
leitura. Além de revelar o pioneirismo desse escritor-crítico, ele criou também em outros
estudiosos a sensação de que alguém, enfim, havia conseguido dar conta da obra de Azevedo.
Porém, essa leitura esboçará apenas uma aparente legitimidade, pois ela falhará como as
demais.
Mesmo com toda sua fragilidade, o texto de Mário de Andrade torna-se o divisor de
águas na recepção crítica da obra de Álvares de Azevedo. Até então, eram somente os fatores
biográficos e os psicológicos os responsáveis por enquadrá-lo numa determinada recepção
crítica. A partir desse momento, os analistas encontrarão novos desvios, fruto da
incompreensão daquela teoria, da personalidade de Azevedo, para que enfim pudesse tornar-
se inteligível a complexidade de sua poética. Assim sendo,
quando a Revista Nova publica, em 1931, o artigo de Mário de Andrade, a
psicanálise já havia sido introduzida no Brasil. Acompanhando o ar dos
novos tempos, o crítico incorpora elementos da crítica psicanalítica,
fundamentando seus argumentos na teoria de Freud. O teor desses
argumentos irá conferir à análise uma aparente legitimidade que não condiz,
contudo, com a consideração do fato literário. Mário de Andrade trata, em
seu texto, principalmente daquilo que denomina ‘o medo de amar’,
entendendo, por isto, a não realização do ato sexual vivenciada pelos poetas
românticos. (ALVES, 1998, p. 44-45).
Pautado na psicanálise, o texto de Mário de Andrade se preocupa mais com fatores
provindos dela do que propriamente do texto literário romântico. Partindo desta teoria, o
crítico estipula em determinados escritores o que ele chama de “medo de amar”:
Não tem dúvida nenhuma que um dos mais terríveis fantasmas que
perseguem o rapaz é o medo do amor, principalmente entendido como
realização sexual. Causa de noites de insônia, de misticismo ferozes que
depois de vencidos se substituem por irreligiosidades igualmente ferozes e
falsas; causa de fugas, de idealizações inócuas, de vícios, de prolongamentos
de infantilismo, de neurastenia, o medo do amor toma variadíssimo aspectos.
(ANDRADE, 1972, p. 200).
Além disso, Mário de Andrade aborda os poetas românticos brasileiros como
Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Castro Alves. Ele
analisa alguns aspectos dos textos literários desses autores, mas sempre procurando destacar o
“Amor e Medo”. Contudo, é em Álvares de Azevedo que o crítico busca o exemplo mais
claro desse medo de amar:
Quanto a Álvares de Azevedo, sofreu como nenhum, apavoradamente, o
prestígio romântico da mulher. Pra ele a mulher é uma criação
absolutamente sublime, divina e... inconsútil. O amor sexual lhe repugnava,
e pelas obras que deixou é difícil reconhecer que tivesse experiência dele.
51
[...]
Álvares de Azevedo, que foi quem mais realmente sentiu e versou o amor e
medo, [...], raríssimo se confessou tremendo de amor. Minha convicção é
que o paulista não teve apenas temor, mas uma verdadeira fobia do amor
sexual. (ANDRADE, 1972, p. 202, 210).
Esta citação expressa um grande embuste do crítico na recepção da obra de Azevedo.
Depois disso, convencionou-se atribuir ao poeta uma inexperiência amorosa. A interpretação
ambígua de Mário de Andrade torna-se surpreendente, uma vez que afirma que, através da
obra, ele pode reconhecer no autor uma repugnância, uma fobia ao amor carnal. Nesse
momento, temos o exemplo claro de extrema valorização e aplicação de uma teoria que não
cabe de forma alguma na obra do poeta.
Outro aspecto para que Mário de Andrade chama a atenção na obra de Azevedo é a
temática da mulher. Segundo a acepção do crítico, “todas as mulheres que vêm na obra de
Álvares de Azevedo, se não são consangüineamente assexuadas (mãe, irmã), ou são virgens
de quinze anos ou prostitutas, isto é, intangíveis ou desprezíveis” (ANDRADE, 1972, p. 204).
Contudo, ele afirma que nos outros poetas românticos como Gonçalves Dias, Casimiro de
Abreu, Fagundes Varela e Castro Alves a temática da mulher, “mas é sempre, e agora
sintomaticamente; Álvares de Azevedo o que evoca e versa o tema de mãe e irmã numa quase
obsessão” (ANDRADE, 1972, p. 219). Esta asserção do autor de Macunaíma também foi
difundida no quadro crítico literário, o que geraria uma profunda controvérsia entre os
estudiosos de literatura. Há alguns, entretanto, que não concordam com tais afirmações,
embora se utilizem dela para referir-se à vida amorosa do poeta. Outros parecem acatá-las,
como é o caso de Candido, quando afirma, por exemplo, que, na obra de Azevedo, as musas
não podiam ser tocadas, pois, se de um lado elas eram puras, de outro eram prostitutas, o que
reforça a idéia de que o poeta recusava o contato com seres do sexo feminino.
Nesse sentido, podemos ver que Mário de Andrade não se preocupou em entender os
tipos femininos na obra de Azevedo. O crítico, ao usar a teoria psicanalítica, descartou os
critérios de ordem histórica e literária, o que resultou em um engodo de leitura na abordagem
deste arquétipo romântico. Andrade, por vezes, comete alguns desacertos como, por exemplo,
na concepção da arte romântica, em que a mulher pode tanto ser idealizada como forma de
beleza artística, quanto ser explorada por meio da idéia-clichê de “mulher fatal” (ALVES,
1998), “[...] que reúne em si todas as seduções, todos os vícios, todas as volúpias” (PRAZ,
1996, p. 196).
O crítico parece não ter assimilado, também, a idéia de que o Romantismo não toma a
arte como estímulo à razão, mas à sensibilidade, propondo a individualidade, que traz em si o
52
prazer e a dor. Assim, se uma idealização extrema da mulher, de maneira a figurá-la de
toda inalcançável, também a idéia de mulher portadora de uma beleza cruel, corrupta,
atingível, que é elevada, portando, à categoria do belo. Vê-se, então, que os românticos
associaram a mulher a um arquétipo que reúne em si todas as possibilidades e, mais
precisamente nos tipos femininos de Azevedo, uma convenção que não busca a realização
amorosa, mas objetiva intencionalmente o desejo e o amor pela mulher, transformando-os em
eternos e infinitos, seja no sonho, seja na imaginação ou na morte (ALVES, 1998).
Em seguida, mencionemos outra faceta do texto de Mário de Andrade, a qual reporta à
idéia, em si contraditória, de que Álvares de Azevedo realizou em sua obra fatos não
condizentes com a sua vida. Esse posicionamento vem desde Machado de Assis e constitui
fato recorrente da crítica, quando se afirma que Azevedo construiu uma imagem para si
pautada na obra que escreveu. Sendo assim, convencionou-se atribuir ao poeta o fato, de que
ele não era e nunca foi um libertino. Nesse caso, além do medo de amar, Azevedo foi um
poeta que fingiu para si uma existência ficcional. Nisso, Mário de Andrade observa que
Álvares de Azevedo fez de tudo em suas obras, pra passar por libertino e
farrista. Blasona de conhecedor dos vícios. Mas dentre os vícios escolhe o
que não é vício: entre álcool e fumo, tem marcadíssima preferência pelo
segundo [...].
[...]
Suas grosserias eram mais um desvio, mais ilusão, mais inverdade, que o
transpunham pra fora de sua existência natural e de si mesmo. Daí o tédio
em grande parte, uma fadiga prematura, cujos acentos são as mais das vezes
ferintemente sinceros. Spleen, fadiga, não blasé propriamente, mas de artista
dramático que não representava apenas nas noites de espetáculos (as farras
em que possivelmente andou com outros estudantes de Paulicéa), porém, que
fizera da própria vida que cantou em verso e prosa, e imaginava ser a dele,
uma falsificação de teatro. (ANDRADE, 1972, p. 204).
No entanto, a grande preocupação do crítico é ressaltar a todo custo o “amor e medo”.
Nessa obsessão, Mário de Andrade sugere uma outra “anormalidade” de nosso escritor.
Segundo afirma, Azevedo nunca se declarou portador desse medo e, por esse caminho, ele
expressa com firmeza a criação de um desvio do medo de amar, em que o autor se dissimula e
transpõe para a mulher o seu receio amoroso. Essa seria uma invenção do poeta para não
confessar que sentia medo do amor carnal, medo este encontrado e declarado, como sugere o
crítico, em análise das obras de outros poetas. “Assim: como que numa transposição do medo
dele a amada, se ele jamais confessa tremer de medo, como os que citei (e ainda Varela
numa estrofe das Estâncias, em que reconhece que a amada tem um não-sei-quê de grande e
imaculado que o faz tremer...), é repetidamente grato a Álvares de Azevedo reconhecer que a
amada treme” (ANDRADE, 1972, p. 210).
53
Mário de Andrade anuncia ainda outra modalidade de desvio ao amor sexual também
criada pelo poeta. Esta nova forma de se esquivar, assegura ele, não é a aspiração ao sono ou à
imagem do rapaz adormecido, mas sim à imagem da amada é ela quem dorme. E nisso
consiste, segundo o escritor, ao mesmo tempo, uma da mais belas e medrosas criações ao
receio amoroso. Na sua acepção, o poeta pode enfim se libertar do medo de amar sem jamais
confessá-lo: “Que libertação! O poeta pode gozar o seu amor, junto com a amada e ao mesmo
tempo sozinho, fugido dos pavores que o perseguem” (ANDRADE, 1972, p. 225).
Em síntese, o resultado da análise da obra de Álvares de Azevedo, segundo a teoria
freudiana, no texto de Mário de Andrade, sugere ao poeta uma homossexualidade. Mesmo
sem utilizar esse vocábulo, o crítico constrói, gradativamente, argumentos que caminham para
essa conclusão. Enumeremos apenas algumas dessas suposições a fim de elucidar melhor o
que se diz sobre essa “abnormidade”.
O primeiro dos pressupostos do crítico é assegurar que na poesia de Azevedo não a
realização do amor sexual. A prova constitui-se por meio dos tipos femininos encontrados na
obra desse poeta e, vale dizer, incompreendidos por Mário de Andrade, que, para ele, essas
mulheres, se de um lado são puras, por outro são messalinas e, portanto, inatingíveis ou
desprezíveis. Além disso, o autor afirma que há uma fuga do amor em graus variáveis: em um
primeiro momento o poeta transpõe seu medo à mulher, ele não o confessa, é ela que treme;
no outro, a amada dorme e liberta o poeta de seu medo.
Por meio de outro pressuposto, conclui que “Álvares de Azevedo foi o que parece ter
realmente sofrido dos pavores juvenis do ato sexual” (ANDRADE, 1972, p. 217), pois “a
educação dele foi excessivamente entre saias, o que já é prejudicial pro desempenho
masculino dos rapazes” (ANDRADE, 1972, p. 217). Nesse ponto, o crítico sugere que essa
educação, “entre saias”, é prejudicial à virilidade masculina, o que desorientaria a sua
formação sexual e lhe incutiria uma possível homossexualidade. Entretanto, essa é uma
suposição estranha, porém, compreensível se levada em conta a época em que foi elaborada
(nos anos 30), da mesma forma se considerarmos a incompreensão da psicanálise, que
havia sido introduzida no Brasil antes desse período. Por outro lado, não embasamento
científico justificável a essa educação empreendida por mulheres, e, mesmo que houvesse,
Azevedo além de conviver com pai e irmãos, esteve no Colégio Stoll em regime de internato.
Enfim, esses são os equívocos de leitura que nos levam àquela conclusão. Desta forma, a
insinuação torna-se explícita quando lemos a nota de rodapé do texto “Amor e Medo”:
O livro sobre Álvares de Azevedo e Manuel Antonio de Almeida, publicado
por Luís Felipe Vieira Souto, contemporaneamente a este meu estudo –
54
(Dois Românticos Brasileiros, Bol. do Inst. Hist, e Geog. Brasileiro, 1931)
traz contribuição importante ao meu assunto. Aí ressaltam a feminilidade
adquirida na educação entre saias, como o amor deslumbrante de Álvares de
Azevedo pela irmã. É típica de tudo isso, principalmente a anedota de 1851,
em que ele se vinga dum namorado de Maria Luísa, ao mesmo tempo que a
espezinha num ato de ciúme. “Nesta época, o seu gênio alegre começa a
sofrer modificações, apesar de brilhar de vez em quando a veia satírica, tal
como em um baile do Carnaval do ano de 1851, em que, apresentou-se
fantasiado de mulher, a intrigar ministro europeu aqui acreditado e
pretendente a mão de uma das suas irmãs: Mariana Luísa. Neste baile o
ministro apaixona-se pela mascarada e, crendo-a dama de costumes fáceis,
proporciona-lhe belíssima ceia, à espera de maiores favores. Álvares de
Azevedo continua representando seu papel feminino até que alta madrugada,
os dois a sós... desvenda o mistério”
16
. Ao que se poderá juntar as conversas
mais ou menos entendidas do poeta sobre crivos e bordados
17
; as
preocupações com toaletes femininas, principalmente a bonita descrição do
vestido da condessa de Iguassú; e o profundo desfervor sexual com que,
além de se confessar “panteísta” na contemplação da moça bonita, insultou
de bestas chucras as moças piratininganas. Tudo isso está nas cartas
reveladas por Vieira Souto (ANDRADE, 1972, p. 217-218, grifo do autor).
Isto, entretanto, não nos interessa, pois em pouco contribui para o entendimento da
obra azevediana. O que se pode notar é um julgamento particular que expressa a
incompreensão da poética de Azevedo por parte de Mário de Andrade, além de expressar os
equívocos de leitura, quando se tenta, a todo custo, valorizar uma teoria. A correspondência
do poeta também não nos autoriza a dizer categoricamente que este tenha dito verdades ou
mentiras, ou, ainda, que tais informações contidas nela tenham sido enunciadas por um
homossexual.
Mário de Andrade leva tão a sério a idéia do medo de amar, que, no final do seu texto,
sugere levemente que talvez isso tivesse contribuído para a morte do poeta:
Creio ter demonstrado pelos seus lados vários, o sambinha de seqüestro que
o amor e medo saracoteou na excessiva mocidade dos nossos maiores poetas
românticos. Todos o sofreram no espírito e o venceram com maior ou menor
facilidade. Menos Álvares de Azevedo, que parece não ter sofrido dele
apenas no espírito, que o converteu na própria razão de ser da obra dele, e
talvez da morte também (ANDRADE, 1972, p. 228).
16
Esta informação, inverossímil, se deve inicialmente a Vicente de Azevedo, que no livro Álvares de Azevedo:
dados para sua biografia, p. 135, de 1931, alude a este suposto fato, que será depois destorcido por Vieira Souto,
primeiro, nas divulgações das cartas do poeta paulista em 1931, e, depois, em sua tese Reflexos de uma “pálida
sombra” no Romantismo, de 1950, e aumentado por R. Magalhães nior em Poesia e vida de Álvares de
Azevedo, de 1972. Isto será também retomado por Mário de Andrade, em nota de rodapé de seu texto “Amor e
Medo”, de 1931, e reiterado por Antonio Candido em “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”, de 1959.
17
A respeito disso citaremos um trecho de Vicente de Azevedo (1977, p. 187): “Mas nunca Mário de Andrade
errou tanto, tão redondamente, como ao ver feminilidade em Álvares de Azevedo resultante de conversas sobre
crivos e bordados. Leiam-se as cartas com atenção e reconheça-se: apenas notícias à mãe de encomendas
feitas a rendeiras paulistas, herdeiras das habilidades das índias guaranis. Prendas e artesanato que fariam
sucesso na corte. A descrição e a preocupação com os vestidos das damas devem ser transportadas a época”.
55
Diante do exposto, podemos afirmar que todas essas teorias que buscam esclarecer que
Azevedo não conhecia o amor carnal ecoam deslocadas, pois essa tese do “amor e medo”, ou
qualquer outra sugestão que daí possa vir, o contribui para interpretar os conteúdos
inerentes à obra. Este tipo de análise embaralha a convenção romântica, que se afirma, em um
primeiro momento, como exploração direta dos sentimentos, sem mediação e com total
espontaneísmo. Além disso, fornece ao público leitor a imagem de Álvares de Azevedo como
um poeta que desconhece as práticas românticas, necessárias para a elaboração do discurso
poético, deixando se levar pela sua personalidade, criando, assim, a idéia que o poeta era
ingênuo em sua produção, concepção que, aliás, prevalece atualmente na Historiografia
Literária.
Além disso, quando observamos o texto “Amor e Medo” do autor de Macunaíma, é
percebível que ele não aborda, especificamente, o estético na produção artística daqueles
escritores românticos, visto que “[...] Mário de Andrade construiu, para dele nunca mais se
libertar, um arcabouço de conceitos incompatível com a teorização da experiência
propriamente estética”. (SCHWARZ, 1981, p. 13). Ou seja, em lugar do belo na linguagem
“[...] Mário lança-se ao extremo oposto: a beleza habita a subjetividade, e dentro desta habita
o que seria mais individual e rico, a subconsciência, fonte de todo o lirismo” (SCHWARZ,
1981, p. 15).
As colocações de Schwarz são a respeito da poética de Andrade, mas, suas afirmações
acerca da experiência literária do escritor servem muito bem para o texto crítico “Amor e
Medo”. Mesmo porque, “fosse Mário de Andrade menos psicologista e mais afeiçoado à
imaginação, não associaria tanto valor à ‘experiência imediata vivida’ em detrimento da
evocação fantasiosa” (SCHWARZ, 1981, p. 17). E não se proporia em ressaltar a
personalidade de um escritor como elemento responsável nas eleições de temas ou, ainda, não
elegeria o subconsciente como o determinante de uma prática literária que é consciente.
Mário de Andrade, em seu ensaio embora não trate especificamente dos aspectos
estéticos nas obras dos poetas românticos, que, por meio da teoria psicanalítica, busca no
subconsciente desses autores a predileção de temas como o amor, ou melhor, o “medo de
amar”–, traz algumas insinuações, ainda que de forma transviada, sobre a subjetividade
“romântica”. Por esse caminho, mesmo que não aborde aquelas obras pelas suas
especificidades, Andrade, talvez, esteja valorizando a poética daqueles escritores, ao
aproximar e relacionar poesia e subconsciência, autor e psicologia. Afinal, o ponto primordial
do fazer literário para o autor de Paulicéia desvairada parece pautar-se, principalmente, no
psicologismo e não em questões de ordem estética nos trabalhos artísticos.
56
Todavia, Schwarz diz que Mário de Andrade foi um “excelente crítico”, pois “se [de
um lado] em seu universo conceitual não cabia a experiência estética” (SCWARZ, 1981, p.
22), por outro lado “uma boa parte de sua crítica manteve-se num campo neutro [...]. [Afinal]
trata-se de uma crítica introdutória, que visa familiarizar com a problemática humana contida
no texto. [Com isso] abre-se ao leitor uma porta inteligível para a obra, [...] [embora] o
fenômeno propriamente estético não [...] [seja] discutido [...]” (SCHWARZ, 1981, p. 22).
Ademais, vale ressaltar que depois desse artigo de Mário de Andrade, criou-se uma
tradição analítica, regularizada pela psicanálise, da obra de Álvares de Azevedo. Por esse
caminho, alguns críticos, anos mais tarde, auxiliados por esta teoria, continuarão a analisar a
produção artística do poeta paulista, pelo mesmo viés que fizera Andrade. A exemplo disto
temos: Carlos Felipe Moisés, em “Imagens Arquetípicas”, de 1977, que, além de afirmar que
o ensaio do autor de Macunaíma é um exemplo de análise bem fundamentada, fez também, a
partir desse tipo de crítica, entre outras coisas, um levantamento dos símbolos na poesia de
Azevedo, cuja conclusão é ousada e discutível, ao assinalar que a problemática básica dos
versos azevediano evidencia uma sexualidade introjetada; José Guilherme Merquior, em “O
Romantismo”, de 1977, que, embora se esquive das interpretações psicanalíticas, ao fazer
uma abordagem estilística da obra de Azevedo, conclui o seu ensaio, de forma brusca, com
uma retomada das questões centrais do texto “Amor e Medo”, e, por último, Hildon Rocha,
em “Álvares de Azevedo e Castro Alves: afinidades e antinomias”, de 1979, que,
fundamentado na teoria de Jung sobre a natureza dos introvertidos e dos extrovertidos, não
define a personalidade de Azevedo por meio de uma análise de sua obra poética tomada como
testemunho de um conflito pessoal, (levando o a crer que o temperamento introvertido do
poeta fazia com que a importância do mundo exterior ficasse em segundo plano, atribuindo
assim, uma maior importância aos conteúdos do seu inconsciente), mas também sugere ainda
ao poeta, uma deturpada associação entre temperamentos doentios e a corrente byroniana, que
remete-nos ao juízo depreciativo que Sílvio Romero atribuía à influência desta corrente em
nossos poetas. Ainda assim, mesmo com todos os excessos que a psicanálise tornou possível,
é patente a importância que o texto de Mário de Andrade conquistou na recepção crítica da
obra do autor de Lira dos vinte anos.
57
3.3 - A crítica psicoestilística.
Antes de trabalharmos com o texto “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”, aqui
tomado como parte do corpus, necessário se faz assinalarmos, ligeiramente, algumas
características do estilo crítico de Antonio Candido. Mesmo porque, é importante
observarmos o seu processo crítico-metodológico, para que possamos não dar o devido
valor ao texto aqui estudado, mas também debater, reiterar e discordarmos, quando possível, o
seu posicionamento crítico, visto que este seria ainda um dos motivos de existir da própria
crítica.
É fato que Candido demonstra um cuidado, respeito e acuidade pela obra de um
determinado autor. Evidenciando assim, uma coerência, eficácia e perspicácia na abordagem
dessa produção artística. Para isso, nota-se que sua metodologia de trabalho é bem
diversificada do que se tinha feito em análises anteriores das obras literárias. Por esse
caminho, sugerida pelo conhecimento da tradição crítica, Candido um passo além do que
se fazia no campo da crítica nacional ao valorizar o estético (o imanente) da obra, em
conjunto com os fatores históricos e sociais que ela foi produzida.
Assim sendo, Candido, de maneira bem articulada, em suas análises das obras
literárias, mesmo requerendo o conhecimento prévio da tradição crítica, não reproduz as
metodologias dos críticos anteriores. Mesmo porque, a tradição pode ser um avanço nos
estudos, quando pensada como parte de um processo de aprimoramento, mas que também
pode tornar-se um grilhão quando reproduzida sem questionar, impedindo e imobilizando esse
procedimento que sempre se renova (LEAL, [entre 2000 e 2007], não paginado).
Nesse processo, é visível que Candido “rumina” essa tradição crítica, rememorando-a
e realizando sempre reflexões acerca de seus valores (metodológicos). O que leva o ensaísta,
por exemplo, em suas análises críticas, tentar abordar o texto literário em sua quase totalidade
estética e histórica. Ao evitar e repudiar análises sociologistas, funcionalistas, idealistas e
individualistas, rechaçando qualquer abordagem do texto enrijecida e estéril, ele explorou em
suas interpretações, como ressaltamos, o fator estético da produção artística de um autor,
conciliando-o com o fator social e o histórico (LEAL, [entre 2000 e 2007], não paginado).
Desse modo, observando uma estreita relação entre literatura e a vida social,
respeitando os limites estéticos e históricos da obra, Antonio Candido inicia seu trabalho
crítico pautado numa coerência intelectual que, durante toda sua carreira, evitou reproduzir
métodos suplantados ou mesmo modismos e revoluções teóricas. Assim procedendo,
58
verdade seja dita que a ligação refletida entre a análise estética e análise histórico-social
representou, e representa, um passo à frente substantivo, vistas as dificuldades teóricas
levadas em conta e vencidas (LEAL, [entre 2000 e 2007], não paginado). Papel este, que o
crítico, consciente de suas atribuições, se propôs a progredir e não a repetir (em sua
totalidade) valores articulados tradicionalmente pelos críticos anteriores a ele.
Assim, retomando a seqüência de textos aqui estudada/analisada, devemos sublinhar
que com o tempo a crítica literária ganhou novas teorias. Nisto se inclui a crítica de Antonio
Candido, com o texto “Álvares de Azevedo, ou Ariel e Caliban”, o qual busca enfatizar
questões de ordem temática e estrutural do texto literário, valorizando assim os aspectos
estéticos das obras, bem como os fatores, circunstancialmente, histórico e social. Contudo, o
artigo de Candido ainda carrega alguns traços fortes da biografia, da psicologia e da
psicanálise, quando o crítico estabelece que o motor propulsor da obra azevediana é a
condição adolescente daquele escritor
18
.
Antonio Candido destaca rios aspectos de ordem estética, porém, ao interpretar
parte da obra de Azevedo, a relaciona com a adolescência do autor, privilegiando ainda o
critério psicobiográfico para elucidá-la. Desse modo, Candido sugere que os conflitos e as
angústias da subjetividade lírica, na obra do poeta, é uma resultante do fato dele ser
(considerado) um adolescente.
Quando observamos o texto de Candido mais atentamente, é possível notar certos ecos
de críticos anteriores, uma vez que ele apresenta algumas colocações que Machado de Assis já
havia levantado, como, por exemplo, quando afirma que talvez o tempo pudesse colaborar por
tornar Álvares de Azevedo maduro e com isso melhorar sua poética. Por esse caminho
Candido acredita que,
dentre os poetas românticos, Álvares de Azevedo é o que não podemos
apreciar moderadamente: ou nos apegamos à sua obra passando por sobre
defeitos e limitações que a deformam, ou a rejeitamos com veemência,
rejeitando a magia que dela emana. Talvez por ter sido um caso de notável
possibilidade artística sem a correspondente oportunidade ou capacidade de
realização, temos de nos identificar ao seu espírito para aceitar o que
escreveu*. Podemos gostar** de Castro Alves ou Gonçalves Dias, poetas
superiores a ele; mas a ele nos é dado amar ou repelir. Sentiu e concebeu
demais, escreveu em tumulto, sem exercer devidamente o senso crítico, que
possuía não obstante mais vivo do que qualquer poeta romântico, excetuando
Gonçalves Dias. Mareiam a sua obra poemas sem relevo nem músculo,
18
É patente que a interpretação de Candido não se resume a uma leitura da obra de Álvares de Azevedo somente
por esse viés. No entanto, privilegiamos esta dentre as outras, a fim de ressaltar que a adolescência do poeta não
esclarece de forma substantiva a sua produção artística. Por outro lado, parece-nos que Candido reconhece que o
Romantismo brasileiro tem como força a juventude de seus escritores, mas não a desenvolve, se prendendo,
portanto, na contradição dessa fase da vida, bipartida, como um limbo entre a infância e a idade adulta.
59
versalhada que escorre desprovida de necessidade artística. (CANDIDO,
2000b, v.2, p. 159, *grifo nosso, **grifo do autor).
Mas é, sobretudo, na adolescência de Azevedo, que o estudioso uma possibilidade
de leitura. Assim sendo, Antonio Candido, em vários momentos de sua análise, sugere tal
fator como determinante de inúmeros aspectos da obra do poeta. E nesse sentido, Candido
ainda argumenta que o adolescente é sempre ameaçado pelo dilaceramento, favorecendo o
aparecimento de uma personalidade dividida. Porém, o crítico se equivoca ao dizer que a obra
de Azevedo, antes de ser uma prática literária denominada pelo escritor como “binomia” (que
comporta práticas literárias diferentes, e concebidas conscientemente), seria na verdade
reflexo de sua juventude. Para o crítico, essa fase da vida do poeta contribuiu na predileção de
temas como o da mulher de beleza frágil e o da prostituta, e chega a acreditar, ainda, que
certas manifestações homossexuais, encontradas em parte de sua obra, são frutos da rebeldia
da mocidade. Além disso, o ensaísta retoma algumas asserções que Mário de Andrade fizera a
respeito do autor de Lira dos vinte anos, ao exprimir o medo de amar e a lenda de que o poeta
se travestira de mulher em um baile:
Se o Romantismo, como disse alguém, foi um movimento de adolescência,
ninguém o representou mais tipicamente no Brasil. O adolescente é muitas
vezes um ser dividido, não raro ambíguo, ameaçado de dilaceramento, como
ele, em cuja personalidade literária se misturam a ternura casimiriana e
nítidos traços de perversidade; desejos de afirmar e submisso temor de
menino amedrontado; rebeldia dos sentidos, que leva duma parte à extrema
idealização da mulher e, de outra, à lubricidade que a degrada. Rebeldia que
por vezes baralha os sexos no seu ímpeto cego, fazendo Satã inclinar-se
pensativo sobre Macário desfalecido, e o próprio poeta mascarar-se de
mulher, num baile, negaceando a noite toda um admirador equivocado. N’O
Conde Lopo e n’O Poema do Frade os jovens são descritos com traços
femininos; n’“Um cadáver de poeta”, pelo contrário, o moço revoltado e
plangente que recolhe o corpo de Jônatas é mulher travestida. (CANDIDO,
2000b, v.2, p. 159, grifo nosso).
Antonio Candido sugere que a adolescência (essa fase de transição) é um fator
determinantemente interno à poesia de Azevedo. É por esse viés que ele une vida e obra, ao
incluir uma suposta manifestação dos conflitos juvenis à poética alvaresiana. A partir daí, a
convicção de que pela adolescência é possível explicar vários fatores da obra do poeta
provocará em nós inquietações, principalmente quando ele a toma como fulcro central de sua
leitura:
Álvares de Azevedo sofre, como o adolescente, o fascínio do conhecimento
e se atira aos livros com ardor; mas, ao mesmo tempo, é suspenso a cada
passo pela obsessão de algo maior, a que não ousa entregar-se: a própria
existência, que escorrega entre os dedos inexpertos. Há nele, sobretudo,
como no escorço de vida que é a adolescência, aquele misto de frescor
60
juvenil e fatigada senilidade, presente nos moços do Romantismo [...].
(CANDIDO, 2000b, v. 2, p. 159).
Destarte, o critério de análise empreendido por Candido reside na fixação pela
adolescência. O crítico questiona outros estudiosos e os acusa de esquecimento e
desvalorização da juventude do poeta, chamado por ele de “estranho doutorzinho”. E se
justifica por meio da argumentação de que é através da mocidade que o autor encontrará os
meios para se chegar a sua poética:
Os críticos, como os outros homens, esquecem freqüentemente a infância e a
puberdade, uma vez encastelados na solução mais ou menos frágil obtida
pelo adulto. É preciso, para compreender o destino poético desse estranho
doutorzinho, considerar que os dramas do adolescente, as aspirações e
decepções, os desejos e frustrações, a falta de segurança, a multiplicidade de
tendências, toda essa ebulição onde se forja por vezes dolorosamente a
personalidade, têm para o espírito um peso que independe do fato de
corresponderem ou não a causa e situações reais. O sonho é nele tão forte
quanto a realidade; os mundos imaginários, tão atuantes quanto o mundo
concreto; e a fantasia se torna experiência mais viva que a experiência,
podendo causar tanto sofrimento quanto ela. (CANDIDO, 2000b, v. 2, p.
161, grifo do autor).
Sob a acusação de uma vida artificial, o crítico sugere ao poeta uma fantasia que o
afasta da realidade, bem como uma inexperiência que causa tanto sofrimento quanto a
concretude de situações reais. Nesse entendimento, Candido cria um malogro à poesia de
Azevedo, em que, em vez do texto, é a vida do autor que interessa e propõe o entendimento da
prática literária. A valorização biográfica torna-se explícita e a ela são acrescidos valores
psicológicos, contribuindo para a criação de um ser que não é deste mundo. Contudo, Candido
acrescentará a essa leitura algumas considerações do texto de Mário de Andrade, ao resgatar o
receio de amar. Assim, se, por um lado, Azevedo é um adolescente ingênuo, por outro lado
sua obra também provém do “medo de amar”:
Analisando-as, e levando a análise a outras peças, veremos, sob o chiste,
agitarem-se correntes obscuras de desencanto e receio de amar; e teremos
indícios confirmando, nele, a solidariedade do cômico e do trágico na
formação de uma linha dramática, de que o Macário e as “Idéias Íntimas”
constituem a expressão mais significativa.
O poema até certo ponto perverso, “É ela!” (onde reponta um sentimento de
classe tão antipático nesse filho família bem-educado); ou outro, mais
francamente jocoso, “Namoro a cavalo”, parecem à primeira vista mero
antídoto, ou pelo menos corretivo aos intangíveis amores de outros poemas.
No entanto, têm também a função de reforçá-los. Uns e outros, com efeitos,
falam de amores não realizados; o burlesco de uns corresponde ao
platonismo de outros. Marcando de grotesco os amores tangíveis, o poeta se
exime deles, recusando-os para o impossível, da mesma forma que fez com
os demais por meio da idealização extremada. Foge de ambos, numa palavra,
com desculpas especiais para cada caso. (CANDIDO, 2000b, v. 2, p. 163).
61
Ainda nesta citação, é possível perceber que Candido refere-se às poesias “jocosas” de
Azevedo como antídoto e/ou corretivo aos poemas que tratam de amores inatingíveis, ou
mesmo que tanto sob um aspecto, quanto sob outro reforce ainda a inacessibilidade do amor
correspondido. Com essa interpretação, o ensaísta exclui a possibilidade que a “binomia”
permite em tratar ora o amor pela esfera transcendental, ora pela via humana. Ou seja, não nos
parece que o poeta refute a temática do amor concretizado, antes o enfoca de maneiras
distintas.
Além disso, pode-se também dizer que o crítico alude a uma certa “anormalidade” em
Azevedo, o que se , segundo nosso parecer, por meio do resgate da sugestão da
homossexualidade expressa, inicialmente, por Mário de Andrade. Todavia, Antonio Candido
afirma que não pretende impingir qualquer conclusão ao autor de Macário:
Não desejo, nem de leve, sugerir nele qualquer incapacidade, desvio ou
anormalidade afetiva, mesmo porque estou me referindo ao poeta que, em
suas obras, fala na primeira pessoa; não ao homem Álvares de Azevedo,
necessariamente. A sua obra exprime, com a força ampliadora da arte, a
condição normal do adolescente burguês e sensível em nossa civilização,
mais acentuada ou prolongada nuns do que noutros: a dificuldade inicial de
conciliar a idéia de amor com a posse física. Sob este aspecto ele é o
adolescente, exprimindo um drama inerente à educação cristã, que tem sido
ao mesmo tempo fator dos mais graves desajustes individuais e estímulo
para as mais altas sublimações da arte. (CANDIDO, 2000b, v. 2, p. 164).
Não obstante, a ressalva o é cumprida, pois o apontamento de Candido nos leva
àquela conclusão, isto é, mesmo dizendo que Azevedo não é abnorme, o crítico sugere uma
falta de virilidade na poesia e no poeta:
Mas, virgem ou rameira, a mulher aparece na sua obra com a força obsessiva
que tem na adolescência. Acabamos francamente cansados com a saturação
dos adjetivos e imagens que a descrevem, no sono ou na orgia, por um
torneio de lugares-comuns: seio palpitante, olhos lânguidos, morno suor,
boca entreaberta, ais de amor, cabelos desfeitos; não falando da recorrência
do substantivo gozo e do verbo gozar. Sentimos de repente a brusca
necessidade de abrir Castro Alves e deixar entrar, nesta pesada atmosfera de
desejo reprimido, o sopro largo e viril dos instintos realizados. (CANDIDO,
2000b, v. 2, p. 165, grifo do autor).
Após observarmos a leitura de Antonio Candido, dada pelo enfoque adolescente de
Azevedo, bem como sua metodologia pautada, em parte, ainda na biografia, acreditamos que
as suas considerações são, de certo modo, desvirtuadas, pois não meio ou dados concretos
que comprovem que o conceito de adolescência ocorre, no decorrer da história, de modo
estático, visto “ainda que dentro de uma mesma sociedade, a adolescência não é vivida de
forma homogênea” (SANTOS, 2004, p. 11). A falta e mesmo se houvesse de uma biografia
satisfatória de Álvares de Azevedo não nos permite, também, tecer uma ligação direta entre
62
uma fase de sua vida e o momento em que ele escreveu sua obra. Além disso, seria
equivocado tentar conjeturar que o autor tenha escrito toda sua obra no período de sua
“adolescência” (ALVES, 1998). Mesmo porque,
na história da humanidade, as fases que caracterizavam o desenvolvimento
do ser humano nem sempre obedeceram a uma divisão cronológica, em
alguns períodos estas fases nem mesmo existiram. Os ciclos de vida que
caracterizam o desenvolvimento humano foram sendo construídos e
enfatizados dependendo da sociedade e do período histórico (SANTOS,
2004, p. 5-6).
Ademais, o texto de Antonio Candido, “Álvares de Azevedo, ou Ariel ou Caliban”
merece destaque em algumas acepções. Nele ainda a presença do biográfico, contudo é um
dos primeiros a mostrar que o autor era consciente em sua proposta literária, e a fazer outras
colocações bem felizes. Em dado momento, Candido (2000b, v. 2, p. 161) afirmou que “[...]
morrendo embora aos vinte anos, teve o privilégio oneroso de corporificar as várias
tendências psíquicas de uma geração, concentrando em si o peso do que se repartia em
quinhão pelos outros”.
Antonio Candido soube reconhecer que Azevedo foi consciente em parte de seu fazer
literário. Segundo ele, além de ser um dos precursores do Modernismo em certos aspectos
literários, Azevedo também deixou expresso em prefácio à segunda parte de Lira, um
programa consciente de sua poética:
Penetrou, todavia, mais fundo que ambos [Gonçalves Dias e Castro Alves],
no âmago do espírito romântico, no que se poderia chamar o individualismo
dramático e consiste em sentir, permanentemente, a diversidade do espírito,
o sincretismo tenuemente coberto pelo véu da norma social, que os clássicos
procuram eternizar na arte e se rompeu bruscamente no limiar do mundo
contemporâneo. Daí podemos acompanhar em sua obra, nos menores
detalhes, o emprego da discordância e do contraste, como corretivo a uma
concepção estática e homogênea de literatura. Foi o primeiro, quase o único
antes do modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo quotidiano, à
roupa suja, ao cachimbo sarrento; não por exigência da personalidade
contraditória, mas como execução de um programa conscientemente traçado.
No prefácio à parte d’A Lira dos vinte anos (singular na literatura
brasileira de então pela força do sarcasmo) a sua poesia gira nos gonzos, e
desvenda a dialética segundo a qual os contrastes favorecem a verdadeira
realização do artista.
[...]
Não é possível descrever com maior consciência a própria obra, nem
resolver de antemão problemas que os críticos futuros remoerão sem a
menor necessidade como o de saber se é sincero no satanismo ou
experiente nos desregramentos que canta (CANDIDO, 2000b, v. 2, p. 161).
Além de todas essas asserções, que fizemos a cerca do texto de Antonio Candido, é
necessário também frisarmos a importância que esse ensaio refletiu na crítica brasileira, a
respeito do poeta Álvares de Azevedo. Por intermédio das interpretações do crítico, muitos
63
outros estudiosos adotaram ou rejeitaram, parcialmente, as teses de “Álvares de Azevedo, ou
Ariel ou Caliban”. O exemplo claro, para nós, consiste no trabalho que aqui se desenvolve,
uma vez que mediante uma leitura da obra poética de Azevedo amparada pelo texto de
Candido, uma inquietação central nos foi aflorada: a consciência literária do autor de
Macário. Com isso, mesmo não nos convencendo, plenamente, da condição adolescente de
Azevedo e embora mostre algumas asseverações duras, é impreterível afirmar que o texto de
Candido continua a nos dizer muito.
3.4 – Psicobiografismo: As idéias retomadas de outros críticos.
Outro exemplo de crítico que se pauta no psicobiografismo é Carlos Dante de Moraes.
Por esse caminho, ele sugere uma inteligência inata ao poeta de Lira dos vinte anos, afinal
“convém não esquecer que há nos seus antepassados, tanto do lado paterno como o do
materno, os Azevedo e os Silveira da Mota, uma linha de inteligência e constância intelectual
que nele se encarrega e intensifica para dar um representante excepcional” (MORAES, 1960,
p. 04). Mas é, sobretudo, na adolescência que Moraes busca a explicação para a obra de
Azevedo, argumento que, aliás, percebemos como sendo algo que ecoa do texto de Antonio
Candido.
Uma questão interessante a ser notada na crítica brasileira é como os textos anteriores
servem como parâmetro a determinados estudiosos, para se construir um método mais seguro
e palpável em relação ao texto literário. No entanto, o que temos visto é a repetição de
aspectos abordados pelos críticos anteriores, aspectos estes que não ajudam a destrinçar,
seguramente, as especificidades inerentes da obra de um determinado autor. Alguns textos
mais recentes têm cristalizado supostas características que nortearam a poética de Azevedo,
dentre elas a influência da adolescência como aspecto pejorativo:
Nos livros românticos, o adolescente Álvares de Azevedo experimentaria a
atração redobrada e irresistível de correspondências e coincidências... E iria
a eles sedento, febricitante, para deles se embeber e formular todos os
anseios.
[...]
Para compreender Álvares de Azevedo, é preciso partir sempre da sua
adolescência. Ao definir a “forma estrutural” da personalidade juvenil, diz
um psicólogo: ‘O característico dessa estrutura é: discrepância, divergência.
Não existe ainda a unidade interna da personalidade. Domina a dispersão e
até a contradição e a luta dos momentos que deviam constituir juntos a
64
totalidade e o sentido da vida pessoal. O jovem homem aparece caótico,
fracionado, inconexo’.
Não se deve esquecer, todavia, que, no adolescente, o organismo espiritual é
todo plástico, está em pleno desenvolvimento e constante mudança. A sua lei
fundamental é absorver, assimilar, crescer quase por intuscepção, sem
conhecer a direção certa das suas tendências. (MORAES, 1960, p. 05-06).
O texto de Moraes, podemos observar, também dialoga com o artigo de Mário de
Andrade. Desta forma, a questão é novamente retomada, embora devêssemos crer que
tivesse sido superada. Contudo, deve-se destacar, igualmente, que Moraes é quase o único a
refutar a tese central do ensaio de Andrade. Aqui o crítico salienta que, ao invés do receio de
amar, Azevedo tinha uma extremada fixação pela mulher, acrescentando do mesmo modo que
o autor não era “virgem”. Além disso, questiona que, se fosse o medo de amar realmente um
problema de sua juventude, talvez isso refletisse positivamente em sua obra. Ele acredita, por
outro lado, que a imagem da mulher dormindo provém de outras causas, e que a sua vida
amorosa teria na verdade duas vertentes. Assim, Carlos Moraes justifica seu posicionamento
na contracorrente daquele crítico:
Acreditamos, por outro lado, que havia nele, ao invés de repulsa, verdadeira
obsessão do amor sexual.
Não acreditamos, entretanto, que ele se houvesse conservado ‘virgem’,
esquivando-se ao apelo pressuroso de Afrodite, daqueles anos de
Academia[...].
[...]
[...] Não seria mais natural até que o medo do amor gerasse nele uma
conseqüência literária de caráter oposto? Se o fato crucial de sua
adolescência amorosa fosse realmente o terror sexual, é bem provável que as
soluções poéticas se concretizassem numa direção contrária. Talvez ele
procurasse mostrar-se, de preferência, qual um Dom João ou um Lovelace,
um ousado no amor...
A sedução de que poeta envolve a mulher adormecida e a constância dela na
sua obra se prendem, em nosso modo de ver, a outras causas. Nenhuma
situação lhe aparecia de certo modo tão propícia como a do sono para realçar
o encanto das visões femininas e torná-las ainda mais desejáveis.
[...]
A imagem da adormecida devia estar profundamente associada, por obscuros
laços inextricáveis, à sua sensibilidade amorosa e estética. Em verdade, é
diante dela que o poeta ganha a plenitude do poder de idealizar.
[...]
A sua vida sentimental e erótica teria, na verdade, duas faces: uma
romântica, de positiva realização poética, em que se depuravam e
transfiguravam todas as suas inquietações e desejos a outra, um reverso
angustioso de realidade, terríveis ardores sem expressão, reclamos frementes
que talvez desandassem em raivas, em revoltas e desalentos [...] (MORAES,
1960, p. 36-40).
Por outro lado, Carlos Dante Moraes acresce à recepção crítica de Azevedo o fato de
que não é só o tom psicológico que faz dele um representante de uma época e de um ambiente
65
literário, mas “é preciso dizer que, não obstante a sua curta existência, Álvares de Azevedo se
revela o mais complexo, o mais rico de dons criadores dos nossos românticos” (MORAES,
1960, p. 03).
Na seqüência, o autor afirma acertadamente que é possível ver nos escritos de Álvares
de Azevedo um processo de formação, e não de deformação, como muitos críticos o querem:
Os juízos de muitos dos seus críticos inclinam-se a ver nele um jovem
intoxicado de literatura, vitima de influências pessimistas ou malsãs, que
tomariam o lugar de outras, otimistas e saudáveis. [...] Sem dúvida, é sempre
possível conjeturar em torno de outros [...]. Mas de que valem conjeturas em
face da realidade de um moço que busca avidamente o romantismo [...].
em Álvares de Azevedo uma extraordinária receptividade romântica. [...] As
relações entre o jovem e a corrente literária surgem mais a idéia de formação
que de deformação. (MORAES, 1960, p. 04).
Desta maneira, é preciso lembrar que nos textos de Azevedo quem expressa as
situações são os personagens e o eu lírico, pois “não devemos esquecer, porém, que Macário é
Macário e não Álvares de Azevedo... pela boca dos seus personagens, ele sopra muita coisa
que lhe está no espírito e no coração. Mas a situação é fictícia e nela se acendem todas as
audácias; indagações desabusadas, conceitos cínicos, paradoxos agressivos, sofismas e
negação [...]” (MORAES, 1960, p. 48).
Na mesma linha do psicobiografismo, Maria José da Trindade Negrão inicia seu texto
de apresentação às poesias de Álvares de Azevedo dizendo que ao poeta não cabe o rótulo de
gênio, que essa qualificação requer um amadurecimento intelectual, o que, segundo sua
visão, o autor não continha. É possível perceber um diálogo com o texto de Machado de
Assis, em que ele afirma que o tempo poderia melhorar a obra do poeta paulista. No entanto, a
autora não acata totalmente tal posicionamento de Machado, uma vez que, em sua leitura, a
obra de Azevedo apresenta mais pontos negativos do que positivos. Portanto, não haveria uma
transformação:
Ignoravam ou esqueciam-se de que gênio requer também maturidade; e de
que maturidade requer tempo em forma de passado e experiência. Se Goethe,
Shakespeare, ou mesmo Byron tivessem morrido aos vinte anos, não seriam
Goethe, Shakespeare e Byron. De Goethe, nem mesmo o Werther existiria: o
célebre romance foi escrito quando o autor contava vinte e quatro anos.
Certo que, com exceção de Chatterton (1752-1770), o poeta inglês fascinado
pela Idade Média, autor dos Rowley Poems, dificilmente encontramos outro
poeta, que morrendo tão moço, deixasse obra que prometesse tanto. Mas
promessa é apenas promessa, e nem todas se cumprem... A hipótese parece-
me antes contra do que pró Álvares de Azevedo; e não vale como
argumento. (NEGRÃO, 1960, p. 7-8).
Nessa acepção, a autora informa que não é aconselhável prender-se à genialidade do
poeta, mas apenas a seu talento, que é incontestável. Nessa leitura, Negrão se embaralha em
66
dois argumentos. O primeiro envolve uma convenção romântica, a qual grandes escritores
eram tidos como gênios, vocábulo esse que envolve tanto um “sistema de talento”, na leitura
kantiana, quanto uma “pluralidade interior”, numa visão fichtiana (SUZUKI, 1998). E é nisso
que se constitui o segundo engano, pois a palavra talento em si designa uma aptidão natural e,
portanto, apresenta sentido muito próximo da compreensão romântica da palavra gênio, bem
como de uma individualidade organizadora. Tal conceito promulga, portanto, uma
incompreensão da poética de Azevedo, pois o poeta expressa tanto um talento
(engenhosidade), como uma individualidade bastante incomum. Basta lembrarmos que a
elaboração de seu projeto literário em Lira ou Macário é pautado pela “binomia”, e, ainda,
que a equiparação tecida pela autora em torno de Azevedo tornou-se prática comum entre
nossos escritores e os escritores europeus, para que se pudesse elevá-los ou rebaixá-los. Nisso,
podemos dizer que a sua ressalva não corrobora muito para os estudos da obra de Azevedo.
Maria Negrão também afirma que não se pode ver na obra de Azevedo uma evolução,
apenas uma constante “ebulição”, pois, “toda ela se entrosa em ecos, correspondência e
repetições e em conjunto se nos apresenta com duas faces opostas: realismo e idealismo;
realidade e sonho; poesia e prosa da humana lida” (NEGRÃO, 1960, p. 09). Leitura que, sem
dúvida, demonstra ser bastante simplificada por um lado, por outro é inconexa, pois a partir
dela se percebe tanto um processo de formação na obra alvaresiana, um work in progress”,
como um projeto literário bastante definido, que engloba não só práticas distintas, mas
também um posicionamento antilocalista em sua produção artística.
Para desconstruir essa idéia de “ebulição”, enumeremos as primeiras produções de
Azevedo, O Conde Lopo; O poema do Frade e O livro de Fra. Gondicário, como portadoras
de uma poética que dialogam com as obras seguintes, Lira dos Vinte Anos, Macário, Noite na
Taverna. Esse entrosamento constitui a formação e o amadurecimento do autor, cujas obras
seguintes o serão “ecos, correspondência e repetições”, mas resultado consciente de um
work in progress. Quanto “às duas faces opostas”, elas constituem quase toda a obra de
Azevedo, pois, se de um lado idealização, do outro existe a não idealização, possibilitada
pela ironia romântica. Assim, antes de uma contradição inconsciente da juventude do escritor,
tais aspectos são sinais de aprimoramentos por parte do autor, bem como propostas de
algumas das vertentes do Romantismo.
Em seguida, Negrão explicita que Azevedo foi alheio ao meio social. Nisso,
percebemos a consonância com a historiografia literária, que julga o Ultra-Romantismo como
alienado aos fatos sociais, bem como o próprio autor, que, segundo essa visão, foi um poeta
67
que nunca se preocupou em cantar em versos a cor local, optando pelo interior, em detrimento
do exterior:
É o poeta interior, essencialmente lírico e quase puro, que deixa de lado o
caminho dos acontecimentos e das preocupações sociais, tão caro ao
romantismo –, Pedro Ivo é um poema exilado em sua obra e envereda por
si adentro, pela própria alma, pelos livros que lê, pelos poetas que toca em
busca de uma identidade. Mesmo quando se volta para o exterior, é ainda o
que busca; apega-se então às coisas suas: é o seu quarto, a sua esteira, os
seus livros, o seu charuto, o seu cachimbo, o seu candeeiro. O candeeiro do
vizinho não lhe despertaria o mínimo interesse porque nada lhe diria a
respeito de si. (NEGRÃO, 1960, p. 10).
Esse julgamento provém do clichê que se deu ao Ultra-Romantismo, em que os poetas
figuram como desinteressados pela vida político-social, voltados para si mesmos, com uma
atitude profundamente pessimista diante da vida, entediados, sem perspectivas, sonhando com
amores impossíveis e esperando a morte chegar. E é por meio dessa visão cristalizada que os
críticos têm julgado os poetas de tal geração. No entanto, o Ultra-Romantismo propõe sim um
exacerbamento dos preceitos românticos, porém, mais que um exagero dos sentimentos, este
termo pressupõe, em si, um pensamento crítico e irônico, tanto em relação ao movimento,
negando o nacionalismo e o indianismo no caso de Álvares de Azevedo, como ao meio social,
pela falta de um plano civilizatório para o nosso país, pois, por meio do tédio, os escritores
puderam demonstrar o seu descontentamento com o atraso da provinciana São Paulo.
A exemplo disto, Álvares de Azevedo, em cartas a sua mãe de 30 de agosto de 1844 e
de 12 de junho de 1849, sublinha, entre outras coisas, o tédio que ele sentia em São Paulo
sugerido também no livro Macário devido o atraso desta cidade quando comparada com o
Rio de Janeiro:
Segunda-feira fui a um baile dado pelo Sr. Sousa Queirós. Todas as salas
estavam com lustre, o ar embalsamado de mil cheiros, tanto de flores como
de essências, mas contudo S. Paulo nunca será como o Rio.
[...]
Enquanto no Rio reluzem esses bailes à mil e uma noutes, com toda a sua
magia de fulgências e luzes, para aqui arrasta-se o narcótico e único baile da
Concórdia Paulistana.
Nunca vi lugar tão insípido, como hoje está S. Paulo. Nunca vi coisa mais
tediosa e mais inspiradora de spleen. Se fosse eu só que o pensasse, dir-se-ia
que seria moléstia mas todos pensam assim. A vida aqui é um bocejar
infindo.
Não passeios que entretenham, nem bailes, nem sociedades, parece isto
uma cidade de mortos não nem uma cara bonita em janela rugosas
caretas desdentadas e o silêncio das ruas só é quebrado pelo ruído das
bestas sapateando no ladrilho das ruas.
Esse silêncio convida mais o sono que ao estudo, enlanguesce, e entorpece a
imaginação e pode-se dizer que a vida é um sono perpétuo.
Passa-se dias e dias sem que eu saia de casa mas que hei de eu fazer? as
calçadas não consentem que um par de pés guarnecidos de um par de calos –
68
como os meus possam andar vagando pelas ruas. Fico em casa, contudo
por isso não estudo mais do que quando o ano passado eu ia todas as noites
conversar em alguma casa de família, ou num baile (AZEVEDO, 2000, p.
780-811).
Desse modo, é possível observar que o spleen do poeta, entre outros fatores, era
estimulado pela falta de civilização, fato este que o romantismo brasileiro contestava, e se
opunha ao romantismo europeu, ao ver com bons olhos o capitalismo. Nesse sentido, o tédio
de Azevedo se diferencia de poetas como “Byron e Musset, que mergulhavam no spleen
justamente em face dos esforços da civilização ocidental” (ALCIDES, 2004, p. 47):
Na obra de Charles Baudelaire (1821 - 1867), o spleen aparece ligado à
modernização de Paris, como um banho de ironia sobre as reformas
urbanísticas da capital francesa. Para o autor das Flores do mal, a melancolia
tinha tudo a ver com o macadame (o então moderno calçamento em camadas
de pedra britada). (ALCIDES, 2004, p. 47).
Diante disso, é perceptível que a insatisfação de Azevedo pela cidade de São Paulo ia
além dos problemas das ruas, da falta de diversão. O seu tédio realmente provinha da falta de
civilização, que ele tanto apreciava no Rio de janeiro e mesmo no continente europeu. Nessa
acepção, o spleen não é um sentimento ruim, de caráter doentio e desequilibrado, mas uma
prova do descontentamento com o atraso de parte de nosso país. Afinal, o tédio traz ao sujeito
uma capacidade de percepção diferenciada, uma sensibilidade precisa como acesso da
experiência humana (GINZBURG, 1999). Destarte, como teorizou Giacomo Leopardi, em seu
diário, Zibaldone:
La noia è in qualche modo il più sublime dei sentimenti umani . [...] Il non
poter essere soddisfatto da alcuna cosa terrena , né, per dir così dalla terra
intera, considerare l'ampiezza inestimabile dello spazio, il numero e la mole
meravigliosa dei mondi, e trovare che tutto è poco e piccino alla capacità
dell'animo proprio; immaginarsi il numero dei mondi infinito, e l'universo
infinito, e sentire che l'animo ed il desiderio nostro sarebbe ancora più
grande che fatto universo; e sempre accusare le cose d'insufficienza e di
nullità, e patire mancamento e voto, e però noia, pare a me il maggior segno
di grandezza e nobiltà, che si veggia nella natura umana (LEOPARDI, [entre
2000 e 2006], não paginado).
19
19
O tédio é, de qualquer maneira, o mais sublime dos sentimentos humanos. [...] Não se satisfazer de coisas
terrenas, nem, por assim dizer de toda a terra, considerar a imensidão incomensurável do espaço, o número e a
grandeza maravilhosa dos mundos, e perceber que tudo isso é pequeno, até minúsculo em comparação com a
capacidade de nossa alma; imaginar o número infinito de mundos e o universo sem fim e sentir que o nosso
espírito e nosso desejo são ainda mais vasto que o universo; proclamar sem cessar a insuficiência e o nada de
todas as coisas, sofrer privações e desejos, e em conseqüência o dio, isso é o que me parece ser a marca mais
evidente de grandeza e de nobreza, que se na natureza humana. (LEOPARDI, [entre 2000 e 2006], não
paginado, tradução nossa).
69
Além disso, a afirmação de que Azevedo não teve uma vida, para que, pautado em
experiências, pudesse transpô-la à sua obra, idéia esta, aliás, levantada por Machado de
Assis, é de certa forma uma posição extremada. A autora afirma, ainda, que a obra alvaresiana
é o reflexo de uma vida imersa em imaginações fantasiosas, visto que
Álvares de Azevedo supriu-se de livros. Os livros que o pai mandava
levavam-lhe o romantismo de Byron, de Shelley, de Musset, de George
Sand, a vida não vivida, a presença das vidas trágicas. O poeta intoxica-se
[...]. Universaliza-se. Entusiasma-se e traduz Byron, faz imitações de
Shakespeare, escreve ensaios sobre George Sand e Musset. Procura viver
pela imaginação aquelas formas de vida de que eles lhe traziam os ecos, e
escreve A noite na taverna [...]. O destino trágico dos poetas impressiona-o;
avalia-lhes o sofrimento, a incompreensão que os isola [...]. (NEGRÃO,
1960, p. 16).
Sob o mesmo ponto de vista da crítica alvaresiana, que convencionou até pouco tempo
atribuir a Azevedo certos agravantes a sua saúde, os quais possivelmente contribuiriam tanto
para desenvolver o tema da morte em seus poemas, como para justificar que ele tinha certeza
quão cedo morreria, Maria Negrão incorpora em seu texto um falso biografismo, reflexo de
lendas e mitos que se formaram em torno do poeta:
Bem cedo, sofreu o poeta o impacto da morte. A perda do irmãozinho lhe foi
tão brutal que o prostrou gravemente enfermo, possuído de febre nervosa.
Recuperada a saúde, foi sempre o menino franzino, inspirando cuidados,
embora alegre e amigo de brincar, como todas as crianças.
[...]
A saúde precária, os cuidados constantes, a coincidência da morte dos dois
quintanistas encarada fatidicamente, a crença no destino trágico do poeta,
tudo isso eram vozes a lhe sussurrar que Ela viria a qualquer hora. Daí o seu
apego à existência, a sua ânsia de viver, a pressa em realizar-se. (NEGRÃO,
1960, p. 13).
Mesmo com todos os excessos, Maria Teresa Trindade Negrão, em seu texto, soube
reconhecer e explicitar que Álvares de Azevedo foi um dos poetas mais anti-românticos desse
movimento. Segundo a autora, ele traz em sua obra o antídoto de quebra intencional da
atmosfera romântica. Ela aponta, na esteira de Antonio Candido, o “prosaísmo tão saboroso e
divertido e que vem de encontro com o nosso temperamento sentimentalista e um pouco
piegas, que foi uso e abuso na mão dos modernistas em 1922, foi ele quem o introduziu nas
nossas letras. Reponta principalmente na segunda parte de Lira dos Vinte Anos e no Macário,
e vem nos revelar uma natureza preponderantemente cerebral e desapaixonada” (NEGRÃO,
1960, p. 10-11).
70
3.5 - As epistolas de Álvares de Azevedo como argumento biográfico.
Encerrando, portanto, a parte que compõe a crítica que privilegia a biografia de
Álvares de Azevedo, abordaremos, adiante, algumas idéias levantadas por Vicente de
Azevedo em seu artigo sobre o escritor de Noite na Taverna. Nele, o crítico aborda uma busca
pela vida amorosa do escritor paulista. Nesse caso, além de uma super valorização da
metodologia crítica biográfica, Vicente Azevedo – que sugere ser o melhor biógrafo de
Azevedo, pois escreve dois livros: Álvares de Azevedo: dados para sua biografia e Álvares de
Azevedo Desvendado, como sendo as biografias definitivas do poeta ultrapassa todos os
limites de uma fantasiosa imaginação e sugere uma “virgindade” do poeta:
Penetrar e honestamente descrever a vida amorosa de Álvares de Azevedo
qualquer coisa é que muito se assemelha à dificuldade de narrar batalha que
não houve; fato que não existiu; um fim de semana na lua... Simplesmente
porque o capítulo terno da vida do poeta (paulista por obra do acaso, como
Raymundo Correia é maranhense), despido de fantasias, dos postiços e
penachos com que ele o enfeitou, é de uma pobreza, de uma inópia absoluta.
(AZEVEDO, 1971, p. 45).
Mesmo perpetuando a lenda de que Azevedo foi casto, o crítico Vicente de Azevedo
foi um dos responsáveis por derrubar outros mitos que se formaram em torno do poeta, como,
por exemplo, a confirmação de que ele não morreu de tuberculose, como ficou no imaginário
dos leitores, até pouco tempo, mas de complicações sofridas por conta de um tumor na “fossa
ilíaca”
20
(AZEVEDO, 1931, p. 139). Contudo, é sofrível observar que ele ainda se prende a
especulações como a vida amorosa do autor, assim como acata as indicações de leitura de
Mário de Andrade
21
:
Claro que, quando a ignorância alcança e ultrapassa determinados limites, a
discussão se torna mais do que inútil, impossível. A Mário de Andrade,
portanto, o valor, o mérito de, antes de qualquer outro, levantar pontas do
véu, do manto que encobria o caso de Álvares de Azevedo. Indicou o
caminho para o esclarecimento, a compreensão de sua alma, a apreciação de
sua obra. Fecunda, rica em sugestões, a sua entrada no assunto. E
apropositadamente usou o recurso, o argumento da comparação com o
procedimento de outros irmãos poetas românticos, Gonçalves Dias,
20
O tumor é constado em 10 de março de 1852, e em 15 de março é realizada a cirurgia, sem clorofórmio, pelos
médicos italianos Cesare Persiani e Luigi Bompiani, para a retirada de pus do abscesso já supurado, mas fenece
em 25 de abril, conforme o atestado médico de ‘enterite, com perfuração do intestino’ (AZEVEDO, 2000, p. 16-
17).
21
É importante ressaltar aqui, que Vicente de Azevedo acata essa leitura de rio de Andrade, no livro A vida
amorosa dos poetas românticos, de 1971, concernente ao medo de amar, e que será reiterada ainda, mais tarde,
em seu livro Álvares de Azevedo desvendado, de 1977. Contudo o crítico rejeita a feminilidade que o autor de
Macunaíma atribuiu ao poeta, pelo simples fato dele relatar a mãe os toaletes das damas paulistanas.
71
Fagundes Varella, Castro Alves, Casimiro de Abreu. Analisou com
percuciente minúcia a obra do poeta. (AZEVEDO, 1971, p. 45).
Vicente de Azevedo, seguindo sua proposta de trabalho, continua indagando se
Álvares Azevedo chegou a ter uma vida amorosa concreta: “e amou na vida? É o que vamos
tentar responder. Durante a sua breve existência, desejou amar, quis ardentemente amar,
aspirou por um amor que lhe fizesse vibrar as cordas sensíveis do coração. E esse amor não
veio” (AZEVEDO, 1971, p. 48). A resposta é um desacerto, pois não tendo acesso a nenhum
fato concreto que relate a experiência amorosa de Azevedo, o autor apela à poesia e pede que
as comparemos com a carta endereçada ao amigo do poeta. Percebemos, nesse exemplo, o
engodo do método de análise. Afinal, este é um dos mais freqüentes equívocos de leitura da
crítica biográfica, que busca na obra a vida do poeta e vice-versa:
Pose de poeta? Atitude para uso externo? Não! Autobiográficos são os
versos, vozes d’alma, gemidos, confissão. Estabeleça-se a comparação com
os dizeres da carta de março de 1850 ao amigo Silva Nunes; ver-se-á
como, na intimidade, na espontânea sinceridade de uma correspondência que
jamais supôs viesse a lume, a linguagem é idêntica. (AZEVEDO, 1971, p.
49).
Vicente de Azevedo, não satisfeito com a analogia empreendida por ele entre a poesia
e a carta, a qual resulta, a seu ver, numa mesma dicção, acredita que as missivas são “fontes
de informações e documentário de inestimável valor” (AZEVEDO, 1971, p. 46) e podem
revelar, dar pistas da intimidade do autor. O crítico ainda cria uma contradição, quando
afirma, em um primeiro momento, que a correspondência de Azevedo com seu amigo é de
uma sinceridade espontânea, enquanto em trecho seguinte afirma crer que as epístolas
mentem. Ainda que não dizendo a verdade, o crítico as vê como possibilidades para se
descobrir a personalidade desse escritor:
Desde tempos imemoráveis, servem-se os biógrafos da correspondência
particular como fonte de informações, manancial dos mais precisos e
seguros.
Não alimentar, todavia, ilusões a respeito: mentem as “Memórias”, hoje tão
em voga; mentem as correspondências; mentem os moribundos; mentem até
os suicidas, aqueles que voluntariamente se despedem da vida. Que diga a
história moderna do Brasil!
Mas, ainda quando o autor não é sincero, ainda assim o documento particular
revela traços de sua personalidade. (AZEVEDO, 1971, p. 54).
A ressalva de Vicente de Azevedo é bastante intrigante e até certo ponto coerente.
Porém, nesse caso, não reconhecemos que o autor de uma correspondência seja insincero.
Acreditamos que, nas cartas, o autor alcança determinados valores de um personagem,
mesclando assim elementos reais a ficcionais, para os quais nos é difícil estabelecer um limite
72
entre um e outro. Deste modo, desconfiamos de que as cartas não sejam capazes de abarcar e
esclarecer, em uma totalidade, a personalidade de Azevedo, autorizando assim, o ensaísta a
desvendar a vida amorosa desse poeta.
Além disso,
o risco para o pesquisador que se deixa levar por esse feitiço das fontes pode
ser trágico, na medida em que seu resultado é o inverso do que é próprio
dessas fontes: a verdade como sinceridade o faria acreditar no que diz a
fonte como se ela fosse uma expressão do que ‘verdadeiramente aconteceu’,
como se fosse a verdade dos fatos, o que evidentemente não existe em
nenhum tipo de documento (GOMES, 2004, p. 15).
Ou seja,
está descartada a priori qualquer possibilidade de saber o que ‘o que
realmente aconteceu’ (a verdade dos fatos), pois não é essa a perspectiva do
registro feito. O que passa a importar para o historiador [e para o crítico] é
exatamente a ótica assumida pelo registro e como seu autor diz que viu,
sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação ao acontecimento
(GOMES, 2004, p. 15).
De mais a mais, a necessidade que determinados críticos criaram em divulgar a vida
amorosa do autor de Macário, ou ainda de reclamar as possíveis informações que das cartas
foram suprimidas, lembrando que Vicente de Azevedo fizera isso em seus livros sobre o
poeta, como capazes de nortearem possíveis esclarecimentos mais íntimos de sua existência
impressa em sua obra, gira em torno de especulações. Afinal, deveríamos reconhecer que
desvendar a história pessoal de Azevedo é mais para satisfazer nossa curiosidade, do que
propriamente mostrar marcas dela na obra que deixou. Além disso, é preciso compreender que
a vida do poeta pertenceu a ele e a mais ninguém.
A fim de concluir a discussão em torno da crítica que valoriza elementos da biografia
do poeta, vemos que a recepção de Azevedo nos estudos literários brasileiros continuou, até
1931, valorizando o biografismo, bem como o psicologismo. A partir de 1950, os analistas
passam a dar valor aos elementos intrínsecos ao texto, tais como o estilo, as imagens e os
sistemas de metáforas. Contudo, eles ainda recorriam ao elemento biográfico, o que fez com
que se propagassem determinadas imagens do autor, construídas na relação vida-e-obra,
criando mitos e lendas que se arrastaram pelo século XX afora (PANDOLFI, 2000).
Esses críticos literários, até então, estavam mais preocupados com os fatos biográficos
do que propriamente com os fenômenos estéticos. E por isso aceitaram passivamente o
cânone estabelecido nas primeiras Histórias Literárias e Antologias, repetindo tanto os
veredictos literários dos primeiros historiadores de tomos: lvio Romero, como os de José
Veríssimo ou de outros respeitáveis estudiosos da nossa literatura.
73
Quanto aos métodos de análises, acreditamos que todos os recursos metodológicos
empregados à obra de Azevedo demonstram uma certa inépcia de abarcar o fazer literário
desse autor. Por essa ótica, observa-se que “[...] o movimento fatal que arrasta uma crítica
que, tendo partido da obra em direção à biografia, vê-se novamente devolvida à obra, como
uma canoa lançada ao mar e devolvida pela ressaca” (PERRONE-MOISÉS, 1973, p. 52).
Incluímos, nesse conjunto, a crítica biográfica, a psicobiográfica, a psicanalítica, bem
como parte da psicoestilística. Afinal, por meio dessas metodologias constatamos que os
autores, ao ressaltarem aspectos da vida de Azevedo para interpretar sua poética, têm
demonstrado uma insuficiência de compreensão da obra desse autor, bem como confirmado
uma falência desses métodos de abordagem do texto literário.
Por fim, é somente no século XX, precisamente no final deste período, que todas essas
características apontadas na obra de Azevedo, pelos críticos que prezam ou recorrem à
biografia do poeta paulista, serão discutidas, reiteradas, negadas e reinterpretadas sob a luz de
novas teorias.
4 – Uma leitura imanente do texto: a preocupação com a obra literária.
Desde os formalistas russos, o formalismo estruturalista e o “new criticism” a obra
literária foi submetida a uma análise e crítica imanente. Por meio desse procedimento, ela
tornou-se o eixo centralizador do processo de leitura. Ou seja, daquele momento em diante,
aquelas correntes deram início à criação de mecanismos em favor do texto em si, limitando,
portanto, os excessos da chamada crítica externa, cuja metodologia, por muito tempo, em prol
de uma leitura textual, foi valorizar ora a biografia do autor, a psicologia, a história, ora os
aspectos sociológicos e antropológicos como elementos essenciais de análise de uma obra
literária (FERREIRA, 2001).
Circunstâncias expostas, é patente que, desde a consolidação daquelas correntes
críticas, a imanência do texto literário passou a ser o ponto de apoio principal da análise
crítica. No entanto, se tomada de um posto de vista radical, a crítica imanente se aproxima da
crítica formal e como tal, ela também prescinde de autor, de tradição, de contexto, de
tendência estética etc (FERREIRA, 2001). O que leva-nos a crer que uma adesão extremista a
esse tipo de crítica não seria o caminho mais seguro e abrangente para uma leitura da obra,
visto que, por meio dela, se perderia outros convites que o texto possa requerer.
74
No momento atual da crítica, a leitura do texto literário é temperada com outras
concepções metodológicas de leitura, o que a nosso ver seria um estilo mais ideal de crítica.
A exemplo disso, há outras maneiras de análises que privilegiam o contexto cultural, o
sociolingüístico, o estilístico e os fatores históricos e sociais, mas que ainda têm como
preocupação central a obra literária. Ou seja, dentro da visão atual, a crítica imanente é
importante, o texto deve se manter como prioritário, pois ele é base de qualquer evidência
crítica de leitura. Mas o crítico, por outro lado, tem que estar ciente de que não há um método
pronto e último da crítica literária. Mesmo porque, a crítica literária não é um conceito
acabado, na verdade, trata-se de um conceito ‘in process’.
Dadas as considerações, não prendemos retomar e defender tenazmente a visão teórica
e crítica defendida pelos formalistas russos, pelo “new criticism” e pelo formalismo
estruturalista, tampouco execrar as críticas: biográfica, psicobiográfica, psicológica,
psicanalista e a psicoestilística, que partem da vida do escritor para se chegar à obra (vice-
versa). O que buscamos salientar é uma leitura que tem como preocupação, em primeiro
lugar, as especificidades do texto literário e, depois, se o texto permitir uma leitura que inclua
outras possibilidades, consolidando assim, uma abordagem mais justa da obra literária.
Por certo, os tempos são outros, os métodos empregados para análise literária
ganharam novas roupagens e o mais importante: o texto literário passou a ser o objeto de
estudo. Afinal, o estudioso tem de estar seguro de que se faz crítica partindo do texto
literário, visto que o “[...] escopo da crítica, cujo instrumental, [...], pode e deve partir da
própria literatura” (TEIXEIRA, 1984). Mesmo porque, o que se analisa agora é a obra e não a
biografia, a personalidade e as possíveis patologias do escritor.
E por esse caminho, os textos escritos sobre a obra de Álvares de Azevedo passaram a
se preocupar precisamente com a obra. Nesse rol de estudos literários, englobamos o livro
Astarte e a Espiral: um confronto entre Álvares de Azevedo e Musset, de Maria Alice de
Oliveira Faria, de 1973; um texto de Paulo Franchetti
22
;o livro de Vagner Camilo, de 1997:
Risos entre Pares: Poesia e Humor Românticos; o artigo “Álvares de Azevedo e a Ironia
Romântica”, de Wellington de Almeida Santos, de 2000 e o livro O Belo e o Disforme:
Álvares de Azevedo e a ironia romântica, de Cilaine Alves, de 1998.
Como bem afirma João Alexandre Barbosa, é partindo dos textos de outros críticos
que teremos o entendimento perfeito para a compreensão e a construção dos nossos métodos e
técnicas de análise literária. Assim sendo, fizemos uma leitura dos textos que integram a
22
O texto de Paulo Franchetti, sem título, foi publicado na internet. No entanto, ele não está mais disponível.
Sendo assim, resolvemos colocá-lo como anexo nessa dissertação.
75
crítica biográfica do poeta, procurando destacar as imperfeições dos métodos empregados e
dos problemas de interpretação que os mesmos criaram em torno da obra de Azevedo, bem
como reconhecer aspectos que contribuíram para nossa hipótese de trabalho. Nesse sentido,
pudemos conhecer os caminhos trilhados por aqueles estudiosos e assim (re)conhecer nos
textos que passam a valorizar a obra, quais foram os novos direcionamentos dados ao texto
literário: ou seja, a sua imanência, além do entendimento do movimento romântico, e do seu
contexto histórico e social.
Todavia, como já pontuamos, aqueles textos tiveram seu valor, e por meio deles
pudemos reconhecer que os mesmos críticos que fizeram uma leitura equivocada da obra
alvaresiana, partindo do recurso biográfico, também souberam observar algumas
características pertinentes à obra do poeta. O que de certo modo foi anteriormente enfatizado,
bem como o nosso reconhecimento com as idéias levantadas por críticos, como Antonio
Candido, que, ao nosso ver, estão próximas à hipótese, da consciência literária de Azevedo,
defendida neste trabalho.
Ressalvas apontadas, deixemos os textos dos críticos anteriormente trabalhados e
comecemos a analisar os que apontam abertamente a capacidade crítica do autor de Macário,
como o livro Astarte e a Espiral: um confronto entre Álvares de Azevedo e Musset, de Maria
Alice de Oliveira Faria, obra relevante para o nosso estudo. Neste livro, a autora mostra, por
meio de um estudo comparado, que determinadas influências, como a de Musset, cristalizada
na crítica, é, de certa forma, equivocada. A autora diz que “desde a morte de Álvares de
Azevedo começou-se a falar em influências diretas de Byron, de Musset, de Shakespeare e
outros sobre sua poesia” (FARIA, 1973, p. 327). E, ainda, que “posteriormente, tornou-se
hábito afirmar que as influências chegaram a Azevedo ‘filtradas’ através de Musset” (FARIA,
1973, p. 327).
A autora ainda faz a seguinte afirmação: “não me parece inevitável que o byronismo
de Álvares de Azevedo lhe venha necessariamente através de Musset, porquanto conhecesse
perfeitamente o inglês e lesse Byron no original, além do que sua admiração pelo poeta inglês
superava qualquer outra na literatura européia” (FARIA, 1973, p. 328). Nesta asserção, ela
admite que
a aproximação das concepções pessoais dos dois poetas evidenciou um
distanciamento progressivo entre eles, em função do meio em que viveram,
do desabrochar de suas tendências interiores, influenciadas por fatores
externos e internos, o que redundou em posições diferentes diante da vida e
da morte, da religião e do amor (FARIA, 1973, p. 333).
76
Além do mais, segundo aponta a autora, no que diz respeito à poética alvaresiana, não
há uma influência direta e exclusiva de Musset sobre Azevedo:
Quanto à expressão literária de suas concepções, de seus sentimentos, a
análise das obras revela que a influência direta foi superficial e quase sempre
estereotipada nos clichês da escola ou mais precisamente, da corrente
byroniana, tal como se manifestou no Brasil. Por isso mesmo, quando
encontramos certas coincidências flagrantes, pensamos por cautela em
atribuí-las à influência global dos movimentos literários que envolveram
também Musset e que as veicularam. (FARIA, 1973, p. 334).
Outro aspecto levantado e esclarecido pela autora sobre essa necessidade que os
críticos têm de atribuir e estabelecer a influência de um escritor em outro, é que
no Brasil, o problema desta afirmação secular da influência de Musset
comporta várias facetas. Em primeiro lugar, ocorre no século XIX o hábito
de se comparar nossos pequenos escritores aos grandes nomes da literatura
européia e aos maiores ou que eles consideravam maiores! numa
evidente manifestação de complexo de inferioridade cultural, apontado
mais de uma vez por nossos críticos contemporâneos. Daí nasceu a tradição
de, ao se falar em influência da literatura européia e da francesa em
particular, referir-se somente a Byron, a Musset e a outros como agentes
principais de imitação (e até mesmo de superação dos nossos...). (FARIA,
1973, p. 343).
Diante disso, Maria Alice de Oliveira Faria finda seu estudo comparativo afirmando
que Azevedo teve uma integração autêntica em algumas correntes no romantismo europeu,
sobretudo na vertente noturna. Afirma, também, que o nosso poeta teve afinidades com o
temperamento psicológico de Musset. Porém, se do ponto de vista literário coincidiu “mais de
uma vez com Musset, de quem recebeu, sem dúvida alguma, sugestões e influência” (FARIA,
1973, p. 345), esta foi apenas “em aspectos superficiais” (FARIA, 1973, p. 346). Desse modo,
conclui-se que não houve uma influência direta, supostamente primordial para a aquisição
literária de Azevedo, que, por mais desníveis que apresente, representa umas das consciências
máximas dentre os nossos poetas românticos.
Outro crítico que soube reconhecer e explicitar a qualidade da obra e a capacidade
crítica de Álvares de Azevedo foi Paulo Franchetti. As colocações de Franchetti são bem
assertivas e expressam bem o posicionamento do poeta no quadro literário de sua
contemporaneidade. Segundo diz, Azevedo, em seu tempo, foi um dos que mais se opôs ao
tipo de literatura que se construía, o que o faria alvo de críticas, pois, além da ausência do
pitoresco em sua poesia, encontramos também colocações “antilocalistas”, presentes tanto em
seus estudos literários quanto em sua prosa, em que assinala o caráter artificial do indianismo
e do nativismo cultuado pelos seus contemporâneos.
77
Assim, Paulo Franchetti observa atentamente que Azevedo foi corajoso ao se opor ao
tipo de tradição que os demais escritores estavam tentando levantar e incutir à literatura
brasileira. Afinal,
polemizando com os contemporâneos, Álvares de Azevedo ataca de frente as
teses do maior teórico do nacionalismo literário, o chileno Santiago Nunes
Ribeiro (?-1847), que nas páginas da Minerva Brasiliense (1843) defendera
ardidamente a existência de uma literatura brasileira. Não aceitando a
postulação de que a nacionalidade se confunda com escolhas vocabulares e
temáticas, dá ênfase, por outro lado, ao papel fundamental da língua literária.
[...]
Azevedo admite, portanto, a existência da nacionalidade literária, não
acredita que ela se reduza à temática. A julgar pela ênfase que à
diferenciação lingüística na definição do nacional, podemos supor que em
sua concepção a brasilidade esteja intimamente vinculada a uma forma
específica de utilizar o idioma. Azevedo, porém, não desenvolveu essa
questão, preferindo apenas marcar claramente sua recusa aos esquematismos
das definições sumárias e apaixonadas da nacionalidade em literatura.
Definições essas que, em seu tempo e depois, não a reduziam
freqüentemente ao vel do temático e do vocabular, mas ainda a
transformavam em critério de valoração estética. (FRANCHETTI, [199-],
não paginado).
Franchetti ([199-], não paginado) ainda salienta que a “passagem de Gonçalves Dias
para Álvares de Azevedo representa a conclusão do movimento em direção ao
internacionalismo”. Percebe-se, então, que Azevedo ampliou o alcance de sua poesia:
Por esse lado internacional, Azevedo é identificado nas histórias literárias
como nosso representante máximo do byronismo, que consistiu aqui num
gosto acentuado pelo cinismo, pelo pessimismo e pela ironia, e num apego
às descrições mórbidas e funerárias, à imagética diabólica e a uma mistura
de tedium vitae com lubricidade desenfreada.
Foi principalmente por esse aspecto que a obra de Álvares de Azevedo
obteve, em meados do século passado, enorme ascendência sobre os jovens
poetas. (FRANCHETTI, [199-], não paginado).
Ao especificar o universalismo de Azevedo, Franchetti toca em questões tidas como
certas, por exemplo, o byronismo que, de certo modo, refletiu em toda a obra do poeta. No
entanto, o crítico alega que essa idéia provém das histórias literárias, que deveria ser revista,
uma vez que se trata de clichês que cristalizaram na interpretação da obra do escritor paulista.
Outro apontamento de Franchetti é de que determinados críticos como José Veríssimo
julgam severamente a influência que Azevedo exerceu sobre os jovens poetas, bem como as
características da boemia poética, encabeçada pelo cinismo, a desesperança e pelo aspecto
diabólico. O estudioso explicita que
o julgamento, embora excessivamente severo, aponta para o alvo certo: a
persistência de um tipo de leitura e de uma imagem de Álvares de Azevedo
que obscurece a sua mais importante, original e até hoje atualíssima
contribuição à nossa poesia: o humor melancólico, a irreverência e o
78
coloquialismo presentes, por exemplo, nas suas “Idéias Íntimas”
.
(FRANCHETTI
,
[199-], não paginado)
.
Por conseguinte, o crítico, mais adiante, resgata em Candido o que havia sido
apontado a respeito da introdução do prosaico e do quotidiano:
Se, do ponto de vista do byronismo, a transição de Gonçalves Dias para
Álvares de Azevedo significa a passagem para o tom mais cosmopolita do
nosso romantismo, do ponto de vista temático e lingüístico essa transição
representa a conquista definitiva da poeticidade do coloquial, do tema
quotidiano e prosaico para a poesia brasileira. Como bem observa Antonio
Candido, Álvares de Azevedo ‘foi o primeiro, quase o único antes do
Modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo quotidiano, à roupa suja,
ao cachimbo sarrento; não por exigência da personalidade contraditória,
mas como execução de um programa conscientemente traçado’.
(FRANCHETTI, [199-], não paginado).
No que concerne à realização do projeto literário de Azevedo, Franchetti aponta
aspectos positivos ao afirmar que a referida ‘binomia’ do poeta se deve não somente à
autoparódia expressa na segunda parte de Lira dos vinte anos, mas também àquela encontrada
em Macário. É pautado nessa dubiedade que Azevedo também elaborou uma crítica à
produção romântica:
A essa binomia programática deve-se não só a autoparódia recorrente na
segunda parte da Lira, mas também as melhores páginas de prosa de Álvares
de Azevedo, que são as do Macário. É ainda a essa dupla direção do espírito
que devemos algumas das mais curiosas páginas de sua crítica literária,
como aquela em que censura Mendes Leal pela excessiva idealização da
mulher que precisamente caracteriza tantos dos próprios poemas; ou uma
outra em que critica o abuso de mortualha na cena teatral contemporânea
de que também se valia sem muita moderação. (FRANCHETTI, [199-], não
paginado).
Mais um aspecto interessante no texto de Franchetti é a observação de que Azevedo
não estava isolado na concepção de textos poéticos tais quais os poemas apresentados na
segunda parte de Lira dos vinte anos:
Nesse momento, é preciso chamar a atenção para o fato de que Álvares de
Azevedo, ao compor os poemas irreverentes da “Segunda Parte” da Lira, não
estava isolado dos contemporâneos. Pelo contrário, estava integrado a uma
tendência que, principalmente em São Paulo, produziu ao longo do tempo
um conjunto de textos realmente impressionante pela liberdade inventiva.
Desses poemas é bom exemplo o “Namoro a cavalo”, em que, além do
humor e da sátira ao tema romântico do namoro eqüestre, merece destaque a
extrema coloquialidade da linguagem. (FRANCHETTI, [199-], não
paginado).
Por fim, vale ressaltar a nota que Paulo Franchetti introduz no final de seu texto ao
afirmar que Azevedo havia empreendido uma grande luta contra a corrente do nacionalismo:
79
Para que se tenha uma idéia da força da corrente contra a qual tão
corajosamente se colocava Álvares de Azevedo em nome da manutenção de
uma perspectiva literária mais universalizante, basta considerar que, ainda
em nossos dias, um ardoroso historiador da “tradição afortunada” do
nativismo literário, Afrânio Coutinho, simplesmente exclui essas reflexões
de Azevedo do panorama que pretendeu dar dessa questão em um de seus
livros, transcrevendo do texto em que foram feitas apenas a parte que trata
de Bocage; sem nenhum interesse, aliás, no que se refere à sua contribuição
à polêmica nacionalista. (FRANCHETTI, [199-], não paginado).
Além de Franchetti, Vagner Camilo em seu livro Risos entre Pares: Poesia e Humor
Românticos, de 1997, se dedica ao estudo de algumas formas de humor em poesia, conferindo
destaque para Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães. Este livro é bem significativo na
recepção crítica de Azevedo, ao enfatizar o humor presente em sua obra, que até então fora
pouco estudado por nossos críticos. É interessante notar que Camilo, ao abordar o humor em
Álvares de Azevedo, toma como texto fundamental para a análise da obra do poeta o prefácio
de Cromwell, de Victor Hugo, que serviu, em sua opinião, como fonte ao autor brasileiro na
composição de sua estética: “Mediante essa dívida para com a teoria hugoana, julgo por bem,
ainda que rapidamente, retomá-la aqui, sempre tendo em mira a apropriação feita por
Azevedo e dando especial relevo ao modo como o humor a ela se articula pelo viés do
grotesco” (CAMILO, 1997, p. 58, grifo do autor).
Segundo Camilo, o humour de Azevedo foi possível graças ao que Bakhtin
considera como a principal descoberta dos românticos, isto é, a subjetividade. Com ela, o riso
ao invés de ser um rir dos outros, como o da sátira, passa a ser um rir de si mesmo, através da
autoparódia, do sarcasmo e da ironia. Em tal processo, é natural que esse humor, centrado
nesta subjetividade,
[...] acabe por ignorar o mundo externo. Aliás, este chega a interessar na
medida em que o Eu encontre nele o reflexo da própria imagem. São
exemplares, nesse sentido, os poemas de Azevedo dedicados à casa, ao
charuto, ao cognac e demais signos que delineiem o perfil do eu (CAMILO,
1997, p. 49).
Em seu texto, Vagner Camilo explicita que no século XX houve um maior interesse
pelo humor de Álvares de Azevedo, que, por assim dizer, “[...] tendeu a ser visto, não raro
com surpresa pela historiografia, como a contribuição mais original de seu legado. Houve
ainda quem falasse, a propósito desse mesmo humor, em salvaguarda contra o naufrágio no
mar de lágrimas de amor e morte [...]” (CAMILO, 1997, p. 53, grifo do autor), encontrado na
chamada segunda geração romântica. Por fim, é interessante notar que o estudioso chama a
atenção para estes dois fatos, que, em seu modo de entender, deveriam ser revistos para não
concluir precipitadamente que tais apontamentos sejam verdades absolutas.
80
Nessas ressalvas, o crítico procura esclarecer que, embora o humor de Azevedo seja
apontado como sendo original, é preciso observar que isso se comprova ao restringir essa
originalidade a um contexto romântico específico, como o foi na cidade de São Paulo. Afinal,
seria um equivoco grosseiro, caso quisesse sustentá-la em perspectiva mais ampla, pois o
humor, “[...] em várias de suas modalidades, constituía uma variante significativa do
movimento em geral” (CAMILO, 1997, p. 54). Nisso, se percebe que Azevedo estava ligado
ao que acontecia em sua contemporaneidade. Por outro lado,
o reconhecimento, dispensável para muitos, dessa presença generalizada do
humor em meio aos românticos não precisa ser encarado como demérito para
faceta tão valorizada de Azevedo. A intenção é apenas a de frisar que o seu
humorismo não deve ser visto como um caso à parte e sim como uma
tendência inscrita no tempo. Quanto à sua originalidade, ela pode ainda
vigorar, desde que compreendida em um âmbito mais restrito, onde o seu
humor foi, de fato, inaugural, servindo de modelo a muito do que viria
depois. (CAMILO, 1997, p. 55, grifo do autor).
Camilo, retomando Bosi, ainda assinala que este tipo de humor ao qual Azevedo adere
possibilitou aos poetas a criação de um certo “metarromantismo”
23
. Assim, é por meio desse
humor, que Azevedo pode investir contra a corrente sentimental do movimento, sem, contudo,
chegar a romper em definitivo com ele, “[...] mas [...] [com] apenas uma de suas vertentes”
(CAMILO, 1997, p. 54). A partir disso, vemos que o humor, de um lado, anula a poesia
sentimental, mas, em seu conjunto, compõe uma expressão bem acertada para o projeto
literário de Álvares de Azevedo: a tão citada binomia. Além disso,
[...] transmudado em componente estilístico, o humour segue de entremeio à
notação séria, reflexiva, lírica, ou melancólica, configurando um todo
dissonante próprio à visão romântica. Dissonância, aliás, que os românticos
apenas inauguram, mas que seguirá adiante, definindo a tônica de toda a
lírica moderna e fazendo desta uma espécie de ‘romantismo
desromantizado’, pelos estigmas que dele porta. (CAMILO, 1997, p. 56,
grifo do autor).
Posteriormente, Camilo afirma que observar esse humor de Azevedo não é difícil, uma
vez que o próprio poeta deixou registrado em seu segundo prefácio à Lira dos vinte anos a
adesão a essa vertente romântica, bem como uma teoria sobre a própria criação poética.
Diante disso, o crítico ressalta que ele, talvez, seja o único a explicitar conscientemente uma
reflexão crítica da própria obra, direcionando assim, os críticos futuros. Na opinião de
Camilo, é possível perceber que além de enquadrar a sua prática literária na ótica geral do
Romantismo, Azevedo também declara sua adesão à teoria dos contrastes de Victor Hugo.
23
BOSI, Alfredo. Imagens do Romantismo no Brasil. In: GUINSBURG, Jacó (org.). O Romantismo. 4. ed. São
Paulo: Perspectiva, 2002, p. 249.
81
Nesse sentido, conforme aponta o estudioso, torna-se evidente a intenção do poeta em
patentear antinomias em seu prefácio:
Segundo defende o poeta no prefácio, o esgotamento (tendência inscrita no
tempo) da temática amorosa, do idealismo e do sentimentalismo à
Chateaubriand levaria à recorrência de temas ligados à realidade prosaica. A
essa mudança temática corresponderia outra, ligada ao tratamento oferecido
ao assunto: o lirismo e o lamento elegíaco cedem passo ao cômico e o risível
‘nos mesmos lábios onde suspira a monodia amorosa, vem a sátira que
morde’. A opção por essa ordem de temas justifica o poeta se, de um
lado, não se figura nova, de outro, se revela menos esgotada. Além do que,
ela parece obedecer a um espírito de contradição próprio aos homens que,
quando ‘se vêem inundados de páginas amorosas, preferem um conto de
Bocaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff...’. (CAMILO,
1997, p. 55, grifo do autor).
No entanto, Vagner Camilo aponta certa deficiência na forma com que Azevedo adere
à teoria dos contrastes de Hugo:
Retomando o conceito azevediano, podemos, de imediato, apontar certa
limitação, reconhecível já no próprio modo como o poeta estruturou sua Lira
dos Vinte Anos, fazendo coincidir cada uma de suas duas partes com um dos
termos da binomia. Com isso, para usar a própria terminologia do poeta,
deixou-se o ‘belo, doce, meigo’ e o sublime, de um lado; de outro, o
prosaico, o ridículo e o horrível. De um lado, ‘o mundo visionário e
platônico’; de outro, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho
Pança é rei’. Enfim, de um lado, o lirismo; de outro, o humorismo. Os
termos antagônicos existem, portanto, que mantidos à distância,
manifestando-se separadamente, e nisso reside o problema. (CAMILO,
1997, p. 61, grifo do autor).
Se por um lado Azevedo não concluiu a tensão, a fusão dos contrários, como sugere
Camilo, permanecendo pela metade ao manter a divisão das duas vertentes/práticas
românticas, eliminando assim a possibilidade de dissonância, por outro, uma realização
(plena) isso se considerarmos que o escritor compôs a sua Lira, isto é, se ele escreveu
poemas sentimentais e irônicos no decorrer de um mesmo tempo, como comprova algumas
datas de poemas que compõem seu livro. A partir daí, poderíamos dizer que ele realizou a
teoria dos contrastes em sua totalidade.
Contudo, Vagner Camilo afirma que
o preceito básico da estética romântica recomendaria, [...], a fusão ou mesmo
a alternância de ambos os tratamentos no espaço de um único poema, seja
para criar efeitos dissonantes fortes, pela oscilação da subjetividade entre
estados de ânimo contrários; seja mesmo para alcançar um espécie de
‘harmonia dos contrários’, na qual o humour viesse a servir como uma
espécie de ‘alavanca de estabilização’ para o pathos, de modo a o levar o
eu a perder a cabeça’ frente à lembrança de um destino trágico, mas
irreversível (a morte). Todavia, mais uma vez o poeta eximiu-se de
promover o embate dos contrários e, mantendo-os separados, perdeu em
termos de conflito, de aprofundamento psicológico, sufocado pela mascarada
82
grotesca que converte a morte noiva lazarenta e desdentada quase que
num ‘espantalho alegre’ – segundo a expressão empregada por Bakhtin,
embora em outro contexto. Ainda aqui, é certo, o humorismo pode estar
desempenhando sua função de equilíbrio para os temores da subjetividade,
mas não é dado a nós percebê-la, pois contamos com o produto final (a
imagem grotesca e alegre’ da morte), sem a dimensão do conflito interior
que o motivou. (CAMILO, 1997, p. 69).
Poderíamos discordar de Camilo em certas circunstâncias, se pensarmos também que,
no contexto geral de sua obra, Azevedo pode ter realizado a fusão dos contrários (ou mesmo
tê-la deglutido e pelo ato “antropofágico” nos dado a sua versão no uso do termo “binomia”)
Mesmo porque, escreveu com objetividade dois prefácio para Lira dos vinte anos,
estabelecendo com clareza o seu projeto de organização e estruturação do livro. “Mas não se
trata de fases temporariamente distintas de composição; são, conforme declaração explícita,
isto é, feições poéticas diferentes, produzidas ao mesmo tempo” (SANTOS, 2000, p. 101).
Ademais, esses aspectos levantados poderiam ser retocados, caso observássemos os termos
humour e ironia e substituíssemos a teoria de Victor Hugo pela de Friedrich Schlegel. Com
isso, acreditamos que o melhor seria usar a ironia (romântica) em vez do grotesco e do
sublime.
Destarte, nota-se no julgamento de Camilo que o humour acontece plenamente, e
com isso a fusão dos contrários, em “Idéias Íntimas”:
Então, como ficamos? Viemos falando do humour o tempo todo apenas para
assinalar que ele não chega a ser realizado plenamente? Não. Há, na verdade,
um único e excepcional momento em que ele se realiza plenamente na Lira.
Refiro-me a “Idéias Íntimas”, longo poema que, segundo Antonio Candido, é
marcado pela passagem de uma poesia de relação a outra em que o poeta se
afigura entregue a si mesmo. (CAMILO, 1997, p. 70, grifo do autor).
O crítico, em um juízo bastante severo, assegura que “é, enfim, com “Idéias
Íntimas” que Álvares de Azevedo chega a oferecer um paralelo à altura do que havia então de
verdadeiramente ‘excepcional’ em matéria de poesia sem que isso implique, repito, uma
ruptura com o romantismo , como é sobremaneira o caso de Heine” (CAMILO, 1997, p.
71).
O livro de Vagner Camilo resulta numa grande contribuição para a recepção da obra
de Azevedo. Sobretudo, o capítulo que traz a análise do poema “Idéias íntimas” expressa uma
valorosa compressão da obra do poeta paulista, bem como um levantamento detalhado e
esclarecedor do movimento em geral.
Outro estudo literário que complementa a recepção da obra do poeta é “Álvares de
Azevedo e a Ironia Romântica”, de Wellington de Almeida Santos, de 1998. Neste texto, o
83
autor trabalha com o embasamento teórico de alemães como Schlegel e Schiller, assinalando,
assim, o uso da ironia. É por meio deste recurso estilístico que Santos aborda a produção do
autor. O resultado é, sem dúvida, uma compreensão bastante esclarecedora sobre a
consciência poética de Azevedo.
Nesse sentido, o crítico observa que, ao usar a ironia, “no Brasil, talvez nenhum outro
romântico tenha exposto com tamanha lucidez esse paradoxo romântico, no pensamento
crítico e na criação poética, quanto Álvares de Azevedo” (SANTOS, 2000, p. 100). É por
meio da consciência da composição literária, que Azevedo, com absoluta convicção, no
prefácio à segunda parte da Lira dos vinte anos (1853-55), adverte o leitor de que o livro é
uma ‘verdadeira medalha de duas faces’” (SANTOS, 2000, p. 100-101). De fato, o poeta
“coerente com o projeto elaborado, escreveu dois prefácios para o livro que reúne suas
composições poéticas mais importantes, estabelecendo com clareza e objetividade as
intenções que nortearam a organização das duas primeiras partes” (SANTOS, 2000, p. 101).
Assim, tanto o texto de Santos quanto as nossas leituras da obra do poeta podem nos
direcionar para a afirmativa de que é pautado nesse projeto que ele concretiza seu livro.
Além disso, a respeito do que temos falado sobre a “evolução” da crítica brasileira,
pode-se observar que o texto de um crítico que valoriza o aspecto predominantemente
literário, em detrimento do aspecto biográfico, é capaz de trazer grandes contribuições e
esclarecimento à obra de um escritor. Tendo como base esse texto de Wellington de Almeida
Santos sobre Azevedo, observamos assim um progresso da crítica brasileira na recepção de
uma obra literária.
Com relação àquela divisão do livro Lira dos vinte anos em duas partes distintas,
Santos (2000, p. 101) acresce que Azevedo “aderindo ao cânone romântico, tematizou a
mulher, o amor, a morte e a própria situação, poética e existencial, do poeta, na esteira da
tradição, vistos como ideais. Destaca, no prefácio da primeira parte, o aspecto sentimental das
composições ditadas pela inspiração, sob o domínio do sonho”.
Nessa acepção, o crítico demonstra, coerentemente, que Azevedo trabalhou todos
aqueles temas pautados no foco idealista na primeira parte de Lira. Através do aspecto
sentimental, ele pode encontrar no sonho o recurso perfeito para produzir poemas que
expressam um dos lados da moeda de sua obra literária. Além do que,
no universo romântico, o sonho avulta como motivo gerador da criação
poética, elemento básico para o desenvolvimento de categorias estéticas
fundamentais, sobretudo a imaginação, conforme o demonstram os estudos
de Albert Béguin e de C.M. Bowra. No contexto romântico, o sonho é uma
força capaz de atuar sobre a mente do artista, mesmo em estado de vigília,
transformando os elementos banais da vida cotidiana em poderosas utopias,
84
reflexo imediato de repulsa romântica ao mundo dominado por valores
materiais. Na visão do artista romântico, o amor, a mulher, a morte, o artista
e arte foram assuntos privilegiados para a criação de um mundo paralelo ao
real, onde a felicidade pudesse ser alcançada. (SANTOS, 2000, p. 101).
O texto romântico, sobre vários aspectos, trabalhou temas como o amor e a mulher. Na
acepção idealista, a mulher
[...] seria destituída de sua condição propriamente terrena e dotada, em
contrapartida, de predicados transcendentais que a libertariam da tirania
histórica e da corrosão imposta pelo mundo concreto. Não é difícil
reconhecer a ultrapassagem dos limites sensíveis impostos à mulher: ela
torna-se abstração. Por extensão, o sentimento amoroso, nela idealmente
configurado, também excede seu contorno relativizante para atingir a
plenitude mítica, na configuração artística desses tópicos, elevados à
categoria de arquétipos. Desse modo, despida de seus atributos carnais e
perecíveis, a mulher é sublimada e torna-se divindade, vira “anjo”. O amor
perde a condição de sentimento relativo e torna-se único, perfeito e infinito.
Condições contextuais específicas impuseram ao artista romântico essa
idealização extremada da mulher e do amor, contribuição notável á evolução
do imaginário artístico. [Contudo] nesse mesmo contexto surgiram os
elementos desencadeadores da destruição do ideal, veiculados
discursivamente através da “ironia romântica” ou da incorporação do
realismo na criação poética. (SANTOS, 2000, p. 101-102).
Se do ponto de vista sentimental, o romantismo idealizou tais temas, conseguiu
também, por meio da ironia romântica, torná-los antídotos a si próprio. Observamos com
clareza, na obra de Azevedo, a utilização do amor e da mulher sobre estes dois aspectos.
Além disso, em vez de entendermos esta prática literária como provindo da biografia,
da adolescência do poeta, podemos assegurar que ela deriva de um projeto consciente que o
autor de Lira dos vinte anos denominou como “binomia”. Nessa trilha, vamos percebendo que
uns dos temas mais caros aos românticos, como o amor e a mulher, em vez de provir do medo
de amar ou da recusa da mulher enquanto ser carnal, como assinalou, por exemplo, Mário de
Andrade, é na verdade uma prática recorrente nesse movimento, tal qual o uso da ironia,
apontado anteriormente.
De certo modo, ao lermos o prefácio à segunda parte de Lira dos Vinte Anos vemos
que ele não deixa dúvida quanto à consciência poética de Álvares de Azevedo. Nesse ponto,
olhamos o projeto literário do poeta nessa obra e percebemos que ele discorre “[...] com
abundância de referências literárias acerca da tensão entre o real e ideal, e faz observações
definitivas sobre o distanciamento crítico do poeta, a atualidade de sua função e o papel da
arte na sociedade” (SANTOS, 2000, p. 102).
Wellington Santos (2000, p. 102), nesse sentido, afirma que “no plano de criação
poética, Álvares de Azevedo tematizou a imagem do poeta. Mostrou-o ora como um supremo
85
sonhador, criador de idéias, ora como alvo de zombaria ou objeto de descrédito social”.
Partindo dessa perspectiva, Azevedo escreveu vários poemas, sendo “Boêmios” o mais
apropriado para ilustrar tal afirmação, uma vez que, nele, o autor trabalha o ideal e o real,
recurso dialético que compõe quase toda a sua Lira dos vinte anos.
também uma clareza de que “o poeta do ideal aliena-se do mundo concreto”
(SANTOS, 2000, p. 104), e que a partir desse processo ele constrói uma realidade repleta de
imagens próximas da perfeição. “Utopia das utopias”, que, na opinião de Santos (2000, p.
104), “é na idealização da mulher que se detém com mais vigor. No entanto, o sonho que
oferece a mulher ideal também lhe traz angústia e sofrimento”. Enfim, por esse caminho cria-
se um embate, pois
o sonho revela o ideal, mas o desejo é concreto. Desesperado pelo
distanciamento, o poeta confessa que seus anseios amorosos são carregados
de desejo sexual. Um erotismo desenfreado invade a consciência do sujeito
lírico e a ele só resta fixar poeticamente as conseqüências da eterna busca. O
corpo da mulher amada, ou supostamente amada, sobretudo os seios, torna-
se alvo predileto da obsessão amorosa. No ideal, o amor físico é interditado,
o desejo sexual reprimido, exprimindo-se, não raro, através de símbolos da
natureza. A natureza perde a ingenuidade, torna-se sentimental, para usar a
linguagem de F. Schiller. A mulher permanece inacessível enquanto
sonhada. E a ela vai-se juntar o poeta: refugiam-se ambos no sonho.
Entretanto, no isolamento voluntário, o poeta do ideal constata que canta
para um mundo sem ouvidos e seu destino é a miséria social. (SANTOS,
2000, p. 104).
Segundo Santos (2000, p. 104), “consciente de que a transcendência total é limitada ou
impossível, Álvares de Azevedo submete à crítica mais feroz as duas criações mais sublimes
da poética romântica, a mulher e o próprio poeta”. Para o crítico, esta consciência esclarece
que “[...] ambos estão dependentes de uma visão materialista da existência” (SANTOS, 2000,
p. 105). Mesmo porque, “uma sociedade organizada à base de trocas econômicas reflete o
poeta, rebaixa a mulher e humilha a arte” (SANTOS, 2000, p. 105).
A concluir, vê-se ainda na afirmativa do crítico que a tematização do amor pelo poeta
tem o sentido de abrangência, de visão totalizadora:
No amor ideal, pureza, sofrimento e inacessibilidade são índices de
frustração. Impedido de integralizar a experiência amorosa (a posse física da
mulher amada lhe é interditada), o poeta lamenta a solidão e o abandono em
que se encontra. Tentando sair do impasse, idealiza a mulher, projeta seus
desejos na natureza ou contenta-se com a simples contemplação a distância
do objeto de seus amores.
Ao reconhecer a precariedade de sua idealização, volta-se para a destruição
do mito construído. Celebra o amor profano das prostitutas. Estas, não raro
em sua obra poética, apresentam sinais de complexidade, misturando
santidade e degradação, elementos que confundem o sujeito lírico pelo
inesperado da experiência [...]. (SANTOS, 2000, p. 107-108).
86
A fim de rematar a discussão sobre a crítica que se preocupa com a obra e não a
biografia de Álvares de Azevedo, podemos ver no livro O Belo e o Disforme: Álvares de
Azevedo e a Ironia Romântica, de Cilaine Alves, de 1998, um dos trabalhos que valoriza
especificamente a obra do escritor de Noite na taverna. Foi ela quem sugeriu, nos estudos
críticos recentes, a consciência poética de Azevedo no livro Lira dos Vinte Anos, ao apontar
nele um particular sistema poético concebido.
Em seu livro, Alves analisa, no primeiro capítulo, alguns trabalhos críticos que mais
influíram na divulgação da obra do poeta. A autora, na observação destes textos, mostrou os
equívocos cometidos ao tomar-se como fato verídico a personalidade lírica construída
artificialmente por Álvares de Azevedo, como sendo a norteadora de sua obra. Isto se deve em
parte ao estilo adotado de se interpretar a obra pelo biográfico. Ao romper com esse hábito, a
autora tornou-se, sob a luz das teorias dos críticos alemães (Schlegel, Schiller, Benjamin),
uma defensora de que a poesia do autor paulista é fruto de um conhecimento próprio do fazer
literário.
Ainda em seu primeiro capítulo, Cilaine Alves divide a recepção crítica da obra de
Álvares de Azevedo sob dois enfoques: a que trabalha com os aspectos biográficos do poeta e
a que trabalha com os aspectos estéticos da obra. Com isso, a autora de O belo e o disforme
denomina a abordagem crítica que parte da biografia de Azevedo de “crítica psicobiográfica”,
e a outra de “crítica psicoestilística”. Na primeira, ela inclui os críticos Joaquim Norberto,
Sílvio Romero, José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Afrânio Peixoto, Mário de Andrade e
Angélica Soares. Na segunda inseriu Antonio Candido, que é aí, segundo a estudiosa, o
expoente máximo desse tipo de crítica.
Assim procedendo, Cilaine Alves ocupa-se de um crítico por vez, ressaltando os
principais aspectos de sua abordagem, sejam os argumentos que evidenciam o método crítico
que aquele estudioso praticava, sejam os argumentos que demonstram o pioneirismo dele. Na
vertente da “crítica psicobiográfica”, havia, segundo a autora, uma preocupação e interesse de
ordem geral sobre a vida e a personalidade do poeta. Com a “crítica psicoestilística”, passa-se
a preocupar com as questões de ordem temática, estrutural e estética da obra de Azevedo,
valorizando assim a sua produção artística. A exemplo disso, Antonio Candido, ao estudar
“Literatura e civilização em Portugal”, Lira dos Vinte anos, O Conde Lopo e Macário, pode
rastrear tanto a posição do poeta na questão do nacionalismo literário, quanto a concepção da
poética alvaresiana. No entanto, conforme explicita a autora, ao destacar vários aspectos
87
temáticos presentes na obra de Azevedo, o crítico ainda recorre, em determinados momentos,
à biografia do poeta.
Nos dois últimos capítulos de seu livro, “o código poético dual” e “a binomia na
fundamentação da mescla estilística”, Cilaine Alves empreende uma análise sobre a obra de
Álvares de Azevedo. Neles, a autora encaminha a produção artística do escritor a uma
fundamentação teórica em que Azevedo ter-se-ia pautado para projetar seu ato criacional. É a
partir desse momento que temos na recepção crítica da obra do poeta paulista a constatação
amplificada de que ele, por meio de uma consciência literária, previamente fundamentada nas
teorias do Romantismo, sistematizou e deu forma a um projeto de literatura muito peculiar.
No livro de Alves, vemos também que se analisa, em sua plenitude, a obra e não a biografia
de Azevedo para o entendimento de sua produção literária.
Por esse caminho, a autora, em “o código poético dual”, afirma que em Lira dos vinte
anos “o conjunto formado pelas poesias de Álvares de Azevedo apresenta uma peculiaridade
que se destaca de forma peremptória, afirmando, assim, a singularidade da obra: [isto é,] a
postulação de princípios estéticos antinômicos [presentes nela]” (ALVES, 1998, p. 69).
Nessa conjetura, a produção artística de Azevedo traz em sua fundamentação a prática de dois
princípios estéticos, que se contrapõem, mas que não se excluem. Ou seja, “nesse conjunto
poético, a formação de um sistema estético [se deu] por meio da justaposição de concepções
duais e antagônicos [...] [, o que, de certa forma, é constatado] pela personalidade lírica que
ora é assumida de maneira idealista e confiante, ora está voltada para a autonegação [...]”
(ALVES, 1998, p. 69).
Contudo, segundo a autora, para que a dualidade de fundamentos estéticos na obra
Lira dos vinte anos fosse efetivada, foi necessário que o poeta paulista recusasse as
convenções poéticas que regulamentavam o ato criativo, e ao mesmo tempo legitimasse, de
forma original, a sua individualidade poética, unificando-a num projeto literário (ALVES,
1998). Conseqüentemente, os princípios antagônicos serão determinados e desenvolvidos na
obra do poeta, na medida em que a sua consciência for se esboçando, “pretensiosa e
exigente”, com ela mesmo e com seu próprio projeto artístico, chegando inclusive “a renegar
o ambiente cultural em que este se desenvolve” (ALVES, 1998, p. 70). A partir daí,
[...] é possível traçar uma hipotética divisão dessa obra em dois momentos
distintos: um inicial, em que a consciência poética, narcisista, alheia a
qualquer contato com a realidade que a cerca, procura fundamentar os
princípios de regulamentação dos poemas na busca de unificação e ascensão
da alma a reinos transcendentais; e um segundo que – presente na declaração
do poeta segundo a qual os pressupostos de natureza transcendental seriam
88
‘interessados’ e ‘monótonos’ por visar unicamente à glória poética
desemboca na ruptura com o padrão inicial. (ALVES, 1998, p. 70).
Por outro lado, como explicita a autora, os princípios estéticos, fundamentados na
dualidade, que se encontram nas poesias do livro Lira dos vinte anos estão consonantes com a
ruptura empreendida pelo Romantismo, em relação aos preceitos clássicos. No entanto, estes
preceitos somente serão permitidos quando esta nova forma de apreender o conhecimento
entrar em vigor, visto que,
até o século XVIII, o conhecimento regulava-se segundo princípios racionais
que visavam apreender o mundo da experiência de maneira direta, afastando
qualquer sentimento dúbio. Entendida como um projeto harmônico e unitário
de Deus, a natureza servia de modelo legislador para a arte, propiciando ao
homem um acesso metódico e único ao ‘bem’, ao ‘belo’ e ao verdadeiro’:
‘O Iluminismo, quer o francês, quer o alemão, considerava a arte não uma
esfera autônoma, mas sim o campo destinado a socializar valores construídos
sobre o culto da razão’ (ALVES, 1998, p. 71-72).
Assim, é somente no final do século XVIII e início do XIX que se cria uma inversão
na maneira de conceber o conhecimento. Ou seja, refuta-se os valores clássicos e a filosofia
romântica passa-se então a afirmar como o novo caminho para se alcançar o conhecimento,
que
inaugurado a partir da Crítica da Razão Pura, de Kant, essa nova forma
modela o conhecimento não mais pelos objetos, mas, ao contrário, pela
subjetividade que articula as representações da realidade. O postulado
kantiano segundo o qual o conhecimento se assenta na subjetividade
permitiu aos românticos romper com a tese predominante que concebia a
obra de arte como uma transposição de códigos e valores previamente
estabelecidos. Em vez de ter como tarefa única a reprodução de legalidade
“objetiva”, externa, a obra de arte constitui-se, agora, estruturando a sua
forma na reflexão (ALVES, 1998, p. 72).
Com isso, deu-se uma abertura aos poetas românticos de conceberem a obra de arte
pela subjetividade, isto é, por meio da reflexão individual. O que levará muitos escritores a
trabalharem de forma específica a elaboração do conceito de ideal. Nesse sentido, segundo
Alves, é possível compreender que,
na obra de Álvares de Azevedo, [há] uma duplicação facilmente constatável
[que] prende-se a dois modos distintos de conceber o ideal. Tem-se um
primeiro em que o ideal coincide com tudo aquilo que é expressão do divino,
do infinito e da busca de plenitude no além-mundo; e um outro em que a
forma do ideal infinito cede lugar à representação dos aspectos degradantes
da vida, mas entendidos ainda como formas poéticas ideais (ALVES, 1998,
p. 75).
Torna-se então inteligível que esse ideal comporta determinados valores ao sentimento
amoroso. E a concepção de ideal, quer seja transcendente ou imanente, na poesia de Azevedo
89
tem apenas uma única finalidade, isto é, prolongar a sua duração pela não realização do
sentimento amoroso. Além disso, como ressalta a autora de O belo e o disforme, “essa
impossibilidade amorosa significa, na verdade, o manejo de um princípio estético que, apesar
de remontar ao amor cortês, possui estreita relação com a formação dos ideais próprios de
cada época” (ALVES, 1998, p. 82). Ou seja, “para os românticos, de um modo geral, a
impossibilidade de concretização amorosa é procedimento artístico que [...] considerado uma
fonte de exaltação da lírica implica a idéia de transcendência, de elevação do espírito ao
reino do Absoluto”. (ALVES, 1998, p. 83).
Mas, em dados momentos do livro Lira dos vinte anos, o poeta, como sugere Alves,
expressa determinados desconcertos com a esfera supra-sensível que havia perseguido em
sua obra, e aquele ideal construído cede lugar a uma esfera sensível, desfazendo assim
daqueles ideais transcendentes (ALVES, 1998). Mesmo porque,
[...] à certa altura de Lira dos Vinte anos, introduz-se um eu crítico com o
intuito de questionar a validade dessa postura poética. Exausto de perseguir
um ideal inapreensível, ou melhor, desapontado com a banalização do
código poéticos sentimental, Álvares de Azevedo concebe o Prefácio de Lira
dos Vinte Anos como uma fecunda autocrítica em que a voz do narrador
assume a postura de alguém em estado de auto-análise (ALVES, 1998, p. 87-
88).
Assim sendo, o narrador do prefácio à segunda parte de Lira dos Vinte Anos,
desfazendo-se daquele código sentimental, propõe poemas de formas sensíveis. O que será
possível pela adesão de temas imanentes como a representação do corpo, da terra, dos amores
eróticos em oposição aos temas transcendentes como a alma, o céu e os amores etéreos
(ALVES, 1998, p. 88-89). Nesse procedimento, a autora de O belo e o disforme assegura:
o recurso que permitirá ao poeta romântico tornar-se o próprio crítico de sua
obra, sistematizando, assim, a obra singular, será a ironia. Princípio em si
complexo e de inesgotáveis conotações, a ironia pode ser compreendida,
num primeiro momento, como auto-eliminação da subjetividade, como
controle do sentimentalismo exacerbado, num movimento que, em última
análise, leva à afirmação de sua superioridade, dando ao pensamento um
caráter incondicionado (ALVES, 1998, p. 90).
Ou seja, por meio da ironia, da “ironia da forma” ou da recusa do código poético
sentimental é que Azevedo pode se contrapor de forma consciente ao ideal encontrado em
poemas da primeira parte de Lira. Desse modo,
a “ironia da forma”, ou a destruição do código poético sentimental no
Prefácio de Lira dos Vinte Anos é um recurso que, se de um lado possibilita
o desenvolvimento da reflexão crítica do poeta, de outro joga com elementos
díspares e contraditórios, como o erotismo e a castidade, ceticismo e crença
etc., fazendo com que nenhuma verdade, na obra, seja mais absoluta. Além
disso, na obra lírica de Álvares de Azevedo, “a ironia da forma” é de tal
90
modo elaborada que desemboca freqüentemente na autoparódia e no
cinismo, gerando na obra uma oscilação entre um eu poético ingênuo e outro
cínico. (ALVES, 1998, p. 92).
Por fim, em “a binomia na fundamentação da mescla estilística”, Cilaine Alves
assegura que “a apresentação do princípio da binomia no Prefácio de Lira dos Vinte Anos
expõe, de maneira completamente diferente, a relação entre os níveis de representação na obra
de Álvares de Azevedo” (ALVES, 1998, p. 129). Todavia, mesmo delineando “o ato de
criação de modo ambíguo, por meio de formas distintas, o alvo perseguido, nos dois casos, é
ainda o mesmo: encontrar a essência da unidade poética, seja ela pensada do ponto de vista da
construção artística, seja da perspectiva de uma unidade do seu criador”. (ALVES, 1998, p.
129). No entanto,
[...] a binomia “as duas faces da mesma moeda”, isto é, o fazer poético
ambíguo determina duas posturas distintas do sujeito. Num primeiro
momento, visando garantir os meios de executar satisfatoriamente a poesia
“pura”, o eu poético, em busca de unidade espiritual, produz um movimento
de ascensão da alma (ALVES, 1998, p. 131).
Isto seria, segundo Alves, apenas uma das características possíveis na maneira de
conceber o ideal, mas desistindo “[...] de realizar seu programa poético idealista, [o poeta]
constrói, num segundo momento e numa operação inversa, diversas experiências de vida que
acabam por dissolver a unidade do ser, dividindo-o, heteronimicamente, em várias
consciências” (ALVES, 1998, p. 131-132).
Dessa forma, mesmo com todos os dispares dessa maneira de compor, faz com que “a
presença desses dois aspectos nucleares na poesia de Álvares de Azevedo – um supra-sensível
e outro sensível ou material, como quer o poeta permite que se estabeleça uma ponte de
ligação entre seu pensamento e a filosofia alemã do final do século XVIII [...]” (ALVES,
1998, p. 132). O que demonstra, de certo modo, a consonância do poeta com as teorias do
Romantismo, com os escritores europeus, bem como em requerer para o Brasil uma literatura
mais abrangente, mais cosmopolita, que nos permitisse dialogar mais amplamente com a
tradição ocidental.
Para concluir, gostaríamos de expressar que a crítica, que trabalha com a imanência da
obra, na recepção da obra de Azevedo, além de mostrar uma evolução dos recursos
metodológicos, bem como a aplicação de novas teorias, tem contribuído para revisar
determinados argumentos cristalizados na produção literária desse autor.
Desse modo, por meio de vários ensaios, artigos e livros, podemos visualizar que
ultimamente, a obra de Álvares de Azevedo tem sido estudada, sobretudo, pelo aspecto
91
literário de seu texto e não por meio de sugestões e insinuações de uma vida que a ele foi
atribuída como verídica.
Além disso, ao percorrermos mais de um século de estudo sobre a obra do poeta
paulista, foi possível perceber como era a crítica feita anteriormente e contrastá-la com a de
hoje. O resultado não é julgar e denegrir a metodologia crítica que valorizava o aspecto
biográfico do autor para entender sua obra, ou dizer que o método crítico de hoje é superior
àquele, mas entender a evolução da crítica literária, os métodos de leitura, para percebermos
também que o modelo mais cabível de crítica seria casar, quando o texto literário permitir,
todas as possibilidades que a leitura de uma determinada obra possa requer.
Em suma, acreditamos que a metodologia crítica pautada na imanência do texto
literário, auxiliada pelas teorias do Romantismo e pelas teorias que se adequariam àquele
texto, como temos visto, contribuiu para uma leitura da obra de Álvares de Azevedo, em que
se visualiza uma concepção consciente do fazer literário. Ou seja, por meio desse tipo de
leitura, é possível perceber que não se trata de um poeta ingênuo e jovem, de uma
personalidade contraditória, incapaz de empreender a complexidade de uma ampla obra. Mas,
de um poeta que, por meio de uma capacidade intelectual bem definida, foi capaz de
estruturar um projeto literário, plenamente consciente. A exemplo disso, basta observarmos o
seu prefácio à segunda parte de Lira dos vinte anos.
PARTE II
A RELAÇÃO ENTRE O POETA E O CRÍTICO: UM ESTUDO SOBRE A
CONSCIÊNCIA POÉTICA DE ÁLVARES DE AZEVEDO NOS
ESTUDOS LITERÁRIOS E NOS PREFÁCIOS DE LIRA DOS VINTE
ANOS.
Precisamente porque a crítica não é gênero, propriamente dito, em
nada semelhante ou análogo ao drama ou ao romance, mas antes a
contrapartida de todos os outros gêneros, sua consciência estética,
por assim dizer, e seu juiz, é por isso que nenhum gênero, estando
mais indeterminado, parece ter atravessado mais vicissitude ou
sofrido mais profundas transformações.
24
Ferdinand Brunetière, La Grande Encyclopédie.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa
binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco
mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha
de duas faces.
Álvares de Azevedo, Lira dos vinte anos.
24
Tradução de Leyla Perrone-Moisés. In: ___. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
93
1 - Poeta ≠ Crítico? Ou Poeta e Crítico?
Durante algum tempo, muitos estudiosos da literatura elegeram a prática crítica, em
diversos aspectos, como inferior à prática literária. Assim, a “velha crítica” convencionou
chamar o texto crítico de um tipo de trabalho parasitário da obra literária (BARTHES, 1970).
Criou-se a partir dessa acepção uma forte ruptura entre a produção crítica e a produção
literária, de tal modo que essas diferentes formas de escrita fossem consideradas práticas
inconciliáveis.
Mais recentemente, no entanto, podemos perceber uma grande preocupação e
tentativa, por parte de alguns críticos, de romper com a barreira que separa o discurso crítico
do discurso literário, na medida em que ela pressupunha valores diferentes para o crítico e
para o escritor. Houve alguns trabalhos, como o livro Texto, crítica, escritura, de Leyla
Perrone-Moisés (2005), que tratavam justamente desse assunto.
Mesmo com alguma repercussão que esse trabalho pudesse vir a provocar, a prática
crítica ainda continua e, ao que se demonstra, continuará sendo vista como um texto segundo
(Barthes, 1970), uma vez que:
paradoxalmente, a fronteira entre a obra poética e a obra crítica continua
estável até nossos dias. Isto porque a distinção entre os dois tipos de obra é
mais do que uma simples distinção genérica. A crítica não é nem literatura,
nem não-literatura; é uma espécie de paraliteratura, quase diríamos uma
pária-literatura. (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 72).
Além disso, desde o século XIX, os escritores revelaram uma tendência à autocrítica, o
que, aliás, podemos perceber em Álvares de Azevedo nos livros Lira dos Vinte Anos e
Macário. A obra literária tornava-se um espaço de reflexão acerca da literatura em geral e de
si própria, resultando em uma mistura que é, ao mesmo tempo, linguagem e metalinguagem.
Diante disso, mais uma vez a crítica interna entrou em concorrência com a crítica externa.
A nossa preocupação, todavia, não é entrar nessa discussão que se tem demonstrado
infrutífera, que recairíamos em outras polêmicas, mas buscar delinear uma estreita relação
entre poesia e crítica, uma vez que Álvares de Azevedo trabalhou em ambas, o que nos
obrigaria, ainda que não quiséssemos a nos aproximarmos dessa “contenda”.
Neste capítulo, não trataremos a obra que em si é crítica, ou a distinção de crítica e
literatura, mas o discurso crítico visando à consciência literária, presente na relação entre o
poeta, sua produção artística e seus Estudos Literários. Diante disso, procuramos levantar em
94
tais textos de Álvares de Azevedo alguns pontos que identifiquem um diálogo com
preocupações poéticas, explicitando assim a sua concepção de literatura.
Mesmo não pretendendo entrar nessa discussão, resta-nos a questão: como fica a
difícil tarefa de convencionar os termos crítica e literatura? Segundo Leyla Perrone-Moisés:
[...] em toda história da literatura, os bons críticos sempre foram escritores e
que muitos escritores escreveram páginas poéticas de valor crítico.
Aceitaríamos essas objeções como evidências, mas precisaríamos certos
pontos.
A mesma distinção entre literatura e escritura nos serve para distinguir os
“críticos-artistas” do passado (críticos e artistas, ou artistas e críticos) dos
críticos-escritores de hoje. Dentro da literatura, a funções estavam
suficientemente definidas, as fronteiras genéricas traçadas (mesmo se de
modo flexível, que as fronteiras nítidas nunca existiram senão
abstratamente, nos tratados), e a fusão crítica e criação era inconcebível.
Os críticos-artistas um Sainte-Beuve, um Thibaudet eram bons estilistas
sem ser verdadeiramente escritores; seu objetivo primordial era explicar,
classificar, avaliar, mesmo se, além disso, seus textos eram semeados de
imagens, de “belezas” literárias. Por sua vez, os artistas-críticos um Hugo,
um Baudelaire continuavam sendo antes de tudo poetas, e neles o objetivo
crítico inicial se esfuma, quando não se perde totalmente. Também podia
ocorrer que eles se desdobrassem, produzindo dois tipos de texto, um de
poesia, outro de crítica, mas não exatamente a fusão dos dois num único
texto. (PERRONE-MOISÉS, 2005, p. 92).
Suponhamos, então a respeito dessa acepção artista-crítico, em optar que um poeta ao
fazer crítica tinha em si preocupações poéticas e que, antes de tudo, mantinha sua dicção de
escritor, estaríamos anulando a outra suposição de Perrone-Moisés, bem como tomaríamos
ainda, para nós, uma das posições estabelecidas por ela. Entretanto, não nos prenderemos aos
argumentos dado pela autora de que os poetas, ao produzirem textos críticos, desdobravam-se
e produziam textos diferentes ou que, ainda, continuavam sendo poetas e o objeto crítico se
perdia, uma vez que a nossa atenção não se prende à diferença ou à fusão dessas práticas, mas
à busca, em Álvares de Azevedo, de uma estreita relação entre ambas as práticas textuais, as
quais nos possibilitariam ver no poeta uma concepção própria e consciente da literatura.
Contudo, reduzindo bastante a fusão dos discursos suponhamos uma outra
alternativa proposta por Perrone-Moisés, em que a divisão entre a composição crítica e
literária se dissipa transformando-se em texto escritura (isto é, a preocupação da autora com
os críticos-escritores de hoje, embora não seja o caso de nosso poeta) Álvares de Azevedo
recuperou um trecho do ensaio “Alfred de Musset / Jacques Rolla” e utilizou com pequenas
95
modificações em seu livro Macário
25
, fundindo assim o discurso crítico com o discurso
poético.
Se de um lado houve a fusão da crítica e da literatura no citado ensaio de Álvares de
Azevedo, em que páginas repletas de imagens poéticas, que isoladas podem ser citadas
como belos fragmentos literários, fazendo, de certo modo, o objetivo crítico se perder; por
outro lado, ainda teríamos, numa preocupação estritamente crítica, um entendimento do
Romantismo e dos escritores Alfred de Musset e Lord Byron, o que lhe confereria apenas uma
feição crítica.
Mesmo não entrando nessa polêmica, ou não optando por uma ou outra das suposições
de Perrone-Moisés, conjeturemos uma vez mais que, ao fazer crítica, talvez Álvares de
Azevedo ainda mantivesse sua dicção poética em seus prefácios ou em seus textos analíticos.
Conseqüentemente, concluiríamos que as fronteiras desses dois discursos estariam
esfumaçadas ou que, ainda, não tomaríamos os seus textos como sendo críticos.
Naquele primeiro caso, entraríamos na questão dos artistas-críticos, em que o objetivo
crítico se perderia, e conseqüentemente afastaríamos do objeto primeiro desta segunda parte
da dissertação: a consciência poética de Álvares de Azevedo, enquanto que, no segundo caso,
cairíamos na distinção e separação das práticas textuais, o que também não é nossa pretensão.
Enfim, admitimos, então, que o assunto é complicado e constitui-se “verdadeira faca de dois
gumes”.
Desvinculemos, assim, da discussão sobre a divisão irreconciliável entre crítica e
literatura ou, ao contrário, de sua fusão, e optemos por observar que o escritor, nos prefácios
de Lira dos vinte anos, está discorrendo sobre a sua prática literária ou, mais precisamente,
estava estabelecendo sua teoria poética: a “binomia”. No texto Literatura e Civilização em
Portugal” esboça um caminho que sintetiza sua obra, dialogando com a prática literária
nacionalista empreendida no Brasil, que ele rejeita como caminho único na elaboração de
nossas belas-letras. No seu estudo “Alfredo de Musset / Jacques Rolla”, estabelece um
diálogo com a obra de Musset, em que expressa a compreensão desse poeta, bem como as
práticas literárias européias e do próprio movimento. No ensaio “George Sand / Aldo o
rimador”, empreende um tipo de crítica que difere das de seu tempo, e procura na peça da
autora elementos que se aproximavam de sua literatura.
Deixemos a difícil discussão em torno da separação da crítica e da literatura bem como
de sua fusão, e tomemos como crítico aquele que funciona e engloba uma consciência da
25
Ou vice e versa, mesmo porque sabemos que o ensaio “Alfredo de Musset / Jacques Rolla” foi escrito nas
férias de 1849-50, mas não temos a data precisa de quando Macário foi escrito.
96
literatura ou seja, a crítica do criador em seus próprios prefácios (e a própria obra), nos
seus estudos literários, com preocupações, defesas e conceitos para sua própria poética, bem
como das obras de outros autores e da literatura em geral.
Passemos ao corpus aqui estabelecido. A princípio, faremos a leitura dos ensaios do
poeta, para depois passarmos aos prefácios de Lira dos Vinte Anos. Neste primeiro momento,
abordaremos os ensaios de Álvares de Azevedo, visualizando sua estruturação, o seu discurso,
os conceitos neles desenvolvidos e toda preocupação do ensaísta em torno da literatura em
geral e da sua própria. Posteriormente, abordaremos os prefácios em suas funcionalidades. Em
seguida, analisaremos os prefácios, sob a forma fragmento e o pensamento irônico, que está
consonante com as práticas do Romantismo, mas que, em si, demonstram uma grande
preocupação com a literatura por ele desenvolvida.
2 - O crítico Álvares de Azevedo e seu posicionamento sobre a literatura
romântica nos Estudos Literários.
Os estudos literários de Álvares de Azevedo, quando comparados a sua obra poética,
ficaram durante muito tempo relegados a um segundo plano e, conseqüentemente, não
despertavam nenhuma atração nos críticos ou, se, em dados momentos, despertaram, isto se
deu como forma de reafirmação de um juízo negativo. Machado de Assis (1961, p. 112)
havia levantado o problema quando afirmou que os textos de Azevedo eram difusos e
confusos. Por esse caminho, Paulo Franchetti ([199-], não paginado) especifica a prosa como
sendo “[...] prenhe de sugestões, [ela] é, todavia, desordenada e cansativa pelo excesso de
citações e propensão generalizante” e Antonio Candido (2000, v. 2, p. 321), afirma que o
poeta insere questões de boa qualidade, “[...] embora jogando tudo um pouco de
cambulhada”. Deste modo, os textos de Azevedo permaneceram por muito tempo fora da
pauta de discussão e estudo dos críticos, perpetuando não uma incompreensão, mas
também os qualificando como obscuros.
No entanto, em determinadas épocas ocorrem mudanças na recepção de um autor, e
parte não estudada da obra do escritor passa a despertar curiosidade, tornando-se
imediatamente objeto de estudo. Assim, podemos ver que atualmente criou-se um grande
interesse por parte dos estudiosos em retomar os textos críticos de Álvares de Azevedo.
97
Contudo, mesmo sendo ainda pequeno o número de trabalhos sobre essa faceta do poeta,
observamos que este já é um bom começo.
Assim sendo, estamos em um momento em que os textos de cunho crítico do autor
passaram a despertar uma curiosidade nos estudiosos de sua obra. Mas há apenas um grande
interesse no ensaio “Literatura e Civilização em Portugal”, que foi objeto de estudo tanto de
Jaime Ginzburg, em “História e melancolia em Literatura e Civilização em Portugal”, de
1999, quanto de Cilaine Alves, em seu texto “Palpites dissonantes de brasileirismo em
Literatura e Civilização em Portugal”, de 2001. Além disso, aquele ensaio e, ainda, outro
intitulado “Alfredo de Musset/Jacques Rolla” também foram abordados por Antonio Candido
em Formação da Literatura Brasileira, de 1959, sendo os demais apenas mencionados.
Todavia, encontramos no texto de Candido somente comentários ligeiros, pois ele não os
toma em sua completude, apenas os utiliza para referenciar e dar vulto ao que ele chamou de
“crítica viva”:
Se procurarmos uma crítica viva, empenhando a personalidade do autor e
revelando preocupação literária mais exigente, a encontraremos em
alguns poucos ensaios, prefácios, artigos, polêmicas, na maioria incursões
ocasionais de escritores orientados para outros gêneros: Dutra e Mello,
Junqueira Freire, Álvares de Azevedo, José de Alencar, Franklin Távora,
Francisco Otaviano, Bernardo Guimarães, Gonçalves Dias [...] (CANDIDO,
2000, v.2, p. 317).
Tendo em mente as propostas levantadas por Álvares de Azevedo em seus textos
críticos e, conscientes das dificuldades que os ensaios encerram em si, nos dispusemos a
trabalhar seus estudos literários, pois acreditamos, que em sua totalidade, eles expressam um
entendimento da consciência do poeta sobre a literatura em geral e a sua própria obra. Diante
do exposto, tomaremos como objeto de análise os ensaios: “Literatura e Civilização em
Portugal”, “Alfredo de Musset/Jacques Rolla” e “George Sand/Aldo o Rimador”, que são
aqueles cujas características do autor estão mais patentes.
Os elementos que nos levaram, primeiramente, a buscar esses textos são: a discussão
que Álvares de Azevedo estabelece, em “Literatura e Civilização em Portugal”, sobre a
formação da literatura (da tradição literária) em geral, e sobre como deveria ser a literatura
brasileira; a análise, em “Alfredo de Musset / Jacques Rolla”, do poema “Jacques Rolla” (uma
vez que alguns críticos apontam a influência da obra de Musset sobre o nosso poeta), na
retomada que faz, quando, no final do prefácio à segunda parte de Lira dos Vintes Anos,
estabelece o dualismo sistêmico nas obras de outros escritores: “É assim. Depois dos poemas
épicos Homero escreveu poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust
(AZEVEDO, 2002, p. 140); bem como o estudo da peça de Sand, em “George Sand / Aldo o
98
Rimador”, em que identifica elementos afins entre a obra da autora e a sua própria,
advogando, ainda, a favor da escritora, quando os demais críticos da época atacam-lhe a vida
particular e não sua obra. Enfim, há vários outros fatores que nos dirigem a atenção para esses
ensaios.
Para darmos seqüência a nossa análise desses ensaios, gostaríamos de esboçar o
método de leitura empregado por Álvares de Azevedo, o qual não segue uma linha dedutiva.
Como veremos, o raciocínio dele é pautado em livres associações e expressa, em grande parte,
percepções subjetivas de leitura, o que, de certo modo, é sustentado por metáforas,
articulações e sugestões conotativas. -se, então, que o seu pensamento é difuso, que ele
se vale constantemente de procedimentos de comparações e contrastes, em detrimento de
referências a causas e conseqüências.
Diante disso, percebemos que a forma ensaio, a forma fragmento e o discurso irônico
ajudam a compreender os textos desse autor, isto é, se observados como noções recorrentes do
pensamento romântico em oposição aos sistemas totalizantes empregados, especialmente, no
Classicismo. Por meio do primeiro, Álvares de Azevedo estipula como será a sua metodologia
crítica, seu processo analítico, ou melhor, não encontraremos um texto perfeitamente
constituído, acabado, que encerre a compreensão do todo sem que nada deixe de ser acrescido
ou que seja tido como verdade absoluta. Quanto ao segundo elemento, compreendemos que
nele o autor sugere a estruturação dos seus estudos literários. no que concerne à ironia, vê-
la-emos em vários momentos nos seus ensaios, possibilitando o poeta refletir e dialogar com
as idéias propostas pelo Romantismo, com as obras e os autores ali citados, com o seu
posicionamento sobre literatura.
Por esse caminho, delinearemos um pequeno esboço, que dê suporte a nossa leitura do
que vem a ser essa forma ensaio, que “[...] em seu caráter fragmentário, [privilegia] o parcial
diante do total” (ADORNO, 2003, p. 25). Ou seja, o ensaio não se preocupa em alcançar o
que é finito em um determinado assunto, ele não esgota as possibilidades que advém de seu
objeto. Por outro lado, “o ensaísta [deveria] abandona[r] suas próprias e orgulhosas
esperanças, que tantas vezes o fizeram crer estar próximo de algo definitivo: afinal, ele nada
tem a oferecer além de explicações de poemas dos outros ou, na melhor das hipóteses, de suas
próprias idéias (LUKÁCS apud ADORNO, 2003, p. 25, grifo nosso), o que percebemos,
aliás, em Azevedo, quando este se põe a analisar o poema Jacques Rolla, de Musset; a peça
Aldo o Rimador e a expressar suas opiniões e juízos no ensaio “Literatura e Civilização em
Portugal”.
99
Para Adorno (2003, p. 25), “o ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria
organizadas [...]”, bem como, “a totalidade não deve ser hipostasiada como algo primordial,
[...]. Os momentos não devem ser desenvolvidos puramente a partir do todo, nem o todo a
partir dos momentos. O todo é mônada [...]” (ADORNO, 2003, p. 31-32). Assim, “o ensaio
deve permitir que a totalidade resplandeça em um traço parcial, escolhido ou encontrado, sem
que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada” (ADORNO, 2003, p. 35). Nessa
acepção, em sua maneira de ver a formação da literatura de um povo, Azevedo aproxima-se
da tradição ocidental, discordando em parte do que era aqui desenvolvido em “Literatura e
Civilização em Portugal” – e, ainda, analisando o poema de Musset e a peça teatral de George
Sand ele esboça determinadas idéias sem se preocupar em abarcar uma posição definitiva.
Por outro lado, percebe-se uma aproximação da forma ensaio com a forma fragmento,
isto é, onde “a concepção romântica do fragmento [é vista] como uma composição não
consumada, mas [...] levada através da auto-reflexão até o infinito [...]. O ensaio também não
deve, em seu modo de exposição, agir como se tivesse deduzido o objeto, não deixando nada
para ser dito” (ADORNO, 2003, p.34-35). Assim sendo, “escreve ensaisticamente quem
compõe experimentando; que vira e revira o seu objeto, que o questiona e o apalpa, que o
prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne no olhar de seu espírito
aquilo que vê [...]” (BENSE apud ADORNO, 2003, p. 35-36).
Enfim, acrescentaremos à nossa leitura uma preocupação com a forma ensaio, a forma
fragmento, bem como a ironia, que auxiliem na análise da estruturação e do discurso de
Álvares de Azevedo nesses ensaios. Além disso, o inacabado da forma, a não exaustão dos
conteúdos, o caráter fragmentário, a mudança de cenários e planos, o discurso irônico e o
movimento das imagens sugerem uma enorme consonância com o Romantismo e demonstra a
capacidade de entendimento desse movimento por parte de Azevedo.
2.1 - A posição crítica de Álvares de Azevedo em “Literatura e Civilização em
Portugal”.
O ensaio de Azevedo, em sua primeira parte, apresenta-se com uma aproximação, que
se interrompe a todo o momento, de regiões, obras e autores, que aparentemente são expressos
de modo arbitrário. Desse modo, o ensaio produz um efeito que não é suficientemente claro
ou definido para se perceber inicialmente o que o texto pretende abarcar, o que se configura
100
como o primeiro fator que emperra a leitura. No entanto, tentaremos estabelecer uma certa
linearidade, para que facilite o processo de leitura, uma vez que o assunto central não é essa
profusão de informações apresentadas, mas como se o processo de civilização e cultura, a
relação dessas literaturas até chegar à espanhola, bem como à portuguesa. Outro elemento
central nessa discussão é a relação Brasil e Portugal, e mais precisamente o modo do autor
encarar a relação dos dois países, que por fim seria a tese final, ou seja, a recusa do
indianismo como tradição literária do Brasil.
Nesse sentido, o autor estabelece um prólogo, que, segundo sua ótica, seria uma
enorme conexão de ordem geográfica, histórica e cultural. Ele desenvolve, então, comentários
a respeito de diversas histórias e literaturas do norte europeu, bem como do continente
asiático. Por esse caminho, ele rastreia o processo de formação das literaturas, acumula
informações sobre a origem da literatura espanhola, da literatura portuguesa, e que, por sua
vez, despontaria na literatura brasileira, visto que esta estaria imbricada diretamente naquela.
Tal atitude do poeta é contrária a sua época, pois era de praxe os escritores, tidos como
nacionalistas, tentarem desvincular a Literatura Brasileira da Portuguesa. Naquele início de
formação de nossa literatura, era fato marcante os escritores tentarem proclamar uma
literatura independente, com a finalidade de se caracterizar como povo livre e culturalmente
resolvido.
A forma fragmento é estabelecida pelos quadros que Azevedo constitui em “Literatura
e Civilização em Portugal”: “Prólogo”, “Literaturas do Norte”, “Árabes”, “Índia”; “Portugal
duas palavras”, “Hispânia”, Lusos e Portugueses”; Fase heróica”, “Ferreira”, “Camões”;
“Fase negra”, “Bocage”. Deste modo, o ensaio é dividido em três partes, a inicial que
compreende as informações que Azevedo levanta acerca da tradição literária, depois a “fase
heróica”, em que divulga a grande fase da literatura portuguesa, e a “fase negra”, que é o
último grande momento dessa literatura. A partir daí, podemos ver uma construção do
discurso irônico, que de um lado institui a elevação e de outro o rebaixamento.
Além disso, ao colocar seu ponto de vista, sem, contudo, negar que as poesias como as
desenvolvidas por Gonçalves Dias são americanas e expressam a “nacionalidade desse
gênero”, Álvares de Azevedo, por meio de suas suposições sobre o assunto, abarca
concepções de um romantismo mais cosmopolita, dialoga com a tradição literária ocidental, e
com isso expõe o assunto de forma objetiva. No entanto, não pretende abranger a totalidade, a
finitude do assunto (mesmo porque se constituía numa polêmica), a visão de como a literatura
brasileira deveria proceder, para que não se formasse uma tradição literária única e
suficientemente capaz de representar o país culturalmente, dado pelo viés do indianismo.
101
Enfim, estabeleceremos uma análise do estudo crítico de Azevedo, fazendo uma
leitura que busque apontar, quando necessário, como o autor expressa suas idéias de modo
parcial e inacabado (sugerido pela forma ensaio), como organiza em fragmentos os trechos de
seus ensaios, bem como o modo irônico que constitui sua estrutura, para que enfim seus
conteúdos possam forjar uma paródia do discurso vigente de sua contemporaneidade, que se
buscava definir pela autonomia literária.
De início, em Literatura e Civilização em Portugal”, Álvares de Azevedo, no prólogo
do estudo literário (o primeiro fragmento), menciona o que vem a contribuir para a formação
de uma literatura. A proposta de Azevedo seria uma mistura de aspectos históricos, físicos e
experiências dos homens. Neste exórdio, que funciona como uma metalinguagem dos textos
seguintes, o autor assinala:
A literatura, quer a entendam como Bonald, quer não: ou encarem-na como
o traslado, ou como o efeito ou a causa de usanças e vezos, dos misteres
históricos dos povos – tendências físicas e aspirações empíricas do espírito –
é inegável que entre ela e esse panorama de fatos uma conexão muito
vizinha, um grande elo de união (AZEVEDO, 2000, p. 706).
Ao especificar como seria a formação de uma literatura, o ensaísta dá início ao
fragmento que explicita a literatura do norte. Neste trabalho de Azevedo, além de
visualizarmos uma grande erudição e sensibilidade no conhecimento das literaturas, vemos
ainda que ele aponta, inicialmente, um diálogo incessante entre elas, pautado na relação de um
povo com outro. Assim sendo, no princípio, o autor estabelece uma discussão sobre as
literaturas do norte e busca ressaltar as especificidades dessa região
[...] onde as brumas das noites de invernada se alongam no ascumar como as
sombras dos heróis dos tempos idos; onde a cerração pende suas roupas
brancas nas ramagens desnuadas e negras, como sombras melancólicas, à
maneira dos lêmures do gentilismo romano; ressentem-se do clima nevado, e
desse imaginar nevoento das frontes caídas na spleenética monotonia
daqueles invernos (AZEVEDO, 2000, p. 706),
e que de certo modo contribuiu para o tipo de literatura daquele povo. Deste modo, Álvares de
Azevedo afirma que a literatura germânica carrega traços de “spleenética monotonia”, com
suas noites de “invernada” e de “sombras melancólicas”. E que, segundo sua opinião, ela
estaria embebida em duas primeiras fontes: na do poeta fictício Ossian e nos Eddas
Islandeses. Por meio dessa constatação, porém um pouco reducionista, o crítico assegura que
tais fatores determinaram tal produção literária.
Concomitantemente, o crítico aponta nos nórdicos um caráter impressionante em suas
poesias. Estas poesias de que, embasadas nos Eddas Islandeses, sobressai um canto melódico,
bem como, sob as influências da teogonia e pelo espírito guerreiro, expressa o caráter e a
102
própria civilização desse povo, que, quando se aventurou ou entrou em contato com outro
povo, levou consigo suas crenças e estilos literários, estabelecendo assim uma relação, uma
comunicação e troca de civilização. Mas, logo depois dessa relação é estabelecida uma
equiparação entre a literatura de cada povo, pois, “a mitologia cosmogônica do norte certo
não cede em riquezas de imaginação [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 706) às outras existentes,
uma vez que ela fornece parte da inspiração poética e, assim, seria tão rica quanto as demais.
Por conseguinte, Azevedo, além de inferir a fonte de parte da literatura do norte (ou
melhor, que fatores a determinaram inicialmente), acresce que “[...] a história provável dessas
raças ensopa-se em três origens – a frieza congelada do pólo, as crenças arraigadas de Odin ou
Wodden, e os recontos das façanhas, que não deslaudá-las dos autóctones primevos do
Norte” (AZEVEDO, 2000, p. 707-708). Por meio disso, o ensaísta conclui que a literatura
nórdica tem como princípio básico em sua formação o clima, a religião e a tradição oral dos
primeiros habitantes daquela terra. Por certo, isso configura o que ele havia estabelecido no
exórdio desse ensaio.
No que se refere ao terceiro fragmento, Álvares de Azevedo delineia a literatura dos
Árabes e a contrasta com a Nórdica:
Mudai as relações do país e a literatura muda. Correi esse panorama do
Oriente com seu céu de crepúsculos rubros, seus rosais perdidos no colear
das valadas, seus minaretes doirados e luzentes ao sol como um elmo de
emir, suas cidades estendidas como uma alcatifa de Bagdá, suas casarias sem
janelas exteriores, suas albufeiras estreitas e tortuosas, seus serralhos
arquejantes de danças, onde o lenço branco do Paxá preguiçoso, nomeia a
favorita e lá, ao longo, o deserto com seu oceano de areias onde o sol se
derrama a prumo nos meios-dias calmosos; com seus oásis perdidos,
agitando seus leques de palmares ou as tendas alvadias onde relincha e nitre
o murzelo do deserto com o dorso espúmeo de suor, das correrias do
Beduíno vagabundo. Vede-o bem, perdei os olhos por esse mar de fogo,
antes esses dias sem viração, imaginai-o com o céu rubro-negro do simoun
turbilhoando pelos combros, ideai-lhe as noites de lua, as noites escuras onde
os pirilampos fervem enleados no ar, como no poema do Sr. Abranches e
lede os poemas dos improvisadores errantes dessa Arábia, cujo sol ofusca,
cujo calor requeima, cujo kamsin se ensopa dos uivos do leão nos seus
pampeiros negros lede o Antar e as baladas, os Contos à Mil e uma noites,
as pérolas soltas, essas mimosas sentenças do amor, como as multicores
miçangas da pulseira de uma Árabe. (AZEVEDO, 2000, p. 708).
Deste modo, por meio de uma grande construção imagética, o autor delineia a
literatura do oriente médio, fazendo um contraste entre a literatura árabe e a nórdica. Segundo
afirma o ensaísta, “mudai as relações do país e a literatura muda”, pois nessa literatura do
oriente não reflete o eco obscuro que a “[...] cosmogonia escandinava ulula no som terrível
que reboa pelas cavernas de gelo, e as solfateras de Islândia como nos cantos homéricos do
103
Edda, com seu mundo de sombras, onde o rubor das auroras boreais avermelha sanguento o
azular das montanhas de gelo [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 708). Nessa acepção, Azevedo
conclui que a literatura árabe não se constitui por meio de imagens escuras, mas de uma
poesia que “[...] cintila com um areal palhetado de fogo iriante [...]” e assim “[...] a
imaginação aí é ardente como o sol [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 709).
No quarto fragmento, o ensaísta apresenta os arremates finais do povo árabe, ao
expressar de que “nada! nada!” mais se encontram por ali, a não ser as reminiscências de
glórias mortas
26
, uma vez que aquela terra, que outrora fora grande, mergulhara, junto com
seu povo, numa decadência
27
. Conseqüentemente, ele adverte que “passemos como o
vendaval por cima de tudo isto [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 709), afinal devemos ir mais para
o oriente, isto é, para a Índia, lugar onde se encontraria uma rica literatura, trazida a lume com
as explorações marítimas ao mundo ocidente, ou melhor, através das relações entre os povos.
Álvares de Azevedo, então, por meio de construções imagéticas, comparações e
metáforas, tece comentários acerca da literatura dos hindus. Do mesmo modo, ele profere,
como havia feito às literaturas nórdica e árabe, a importância da religião e de seu povo
guerreiro na fundamentação das letras indianas. Com o advento da elucidação da literatura
indiana aos europeus, ele assegura que:
As letras indianas são das mais faustosas minas exploradas a meio, que ainda
houve; e o minério dessa cripta não tem que invejar em cópia às eras
primeiras de nenhum povo. A Companhia das Índias por suas relações
comerciais com os descendentes degenerados da raça Brâmane tem
facilitado muito a ruptura dessa veia de luz à erudição européia (AZEVEDO,
2000, p. 710).
O ensaísta também conjetura que os “europeus forasteiros” foram à Índia “pedir” esta
nova literatura, que agora veio à luz no ocidente, porque Vasco da Gama retirou o véu dos
séculos de isolamento. Ademais, ele acresce que é um novo mundo, “é uma literatura toda
nova; nova e singular como esse clima; ardente às vezes como o céu do estio, sombria outras
26
Nesse momento, Azevedo também antecipa o que irá afirmar sobre a literatura de Portugal, que decaíra depois
de Bocage, o último grande poeta desta nação.
27
O poema “Ozymandias” de Shelley, publicado no Examiner, de 1818, e republicado em Rosalind and Helen,
de 1819, ainda que trabalhe com temas como a arrogância, a transitoriedade do poder, visto que o soneto retrata
o faraó Ramsés II (cujo apelido grego é Ozymandias), a permanência da arte e a relação entre artista e sua obra,
traduz bem o trecho do estudo literário, em que Azevedo cita a Arábia e as glórias mortas daquele povo: “I met a
traveler from an antique land / Who said: Two vast and trunkless legs of stone / Stand in the desert. Near them,
on the sand, / Half sunk, a shattered visage lies, whose frown, / And wrinkled lip, and sneer of cold command, /
Tell that its sculptor well those passions read / Which yet survive, stamped on these lifeless things, / The hand
that mocked them and the heart that fed; / And on the pedestal these words appear: / “My name is Ozymandias,
king of kings: / Look on my works, ye Mighty, and despair!” / Nothing beside remains. Round and bare / The
lone and level sands stretch far away”.
104
como as crenças Brâmanes” (AZEVEDO, 2000, p. 711), afinal essa poesia se revela embebida
no misticismo desse povo.
Ao findar os comentários sobre a literatura do norte, dos árabes e dos indianos,
Álvares de Azevedo, utilizando um dos recursos que o fragmento também proporciona,
interrompe, como faz em vários momentos, o curso de seu ensaio para formular algumas
digressões, que, por meio da ironia estabelece reflexões críticas e derrisivas (com sua
contemporaneidade) sobre o que vem a ser a literatura: “fomos talvez longos. [...] Deixaremos
breve este assunto, para lançarmo-nos num outro mais palpitante, e em seguida à prova do
nosso aforismo, da íntima ligação das literaturas e das civilizações; da poesia e do sentir e
crer dos povos, aforismo que temos muito de fé, porque para nós a literatura é a civilização, e
a poesia o sentir e o crer das nações [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 712, grifo nosso).
Álvares de Azevedo estabelece e determina às literaturas como sendo produto das
relações entre povos e acrescenta que ao mudar estas relações elas também se modificam. Ao
afirmar tal tese, o autor tenta buscar a gênese das composições poéticas. Na busca por essa
gênese literária o crítico recorre à posição geográfica, à história e aos costumes dos antigos
povos, bem como, do norte europeu, do oriente médio, da península ibérica, dos que
invadiram essa região, para afinal chegar às letras portuguesas, embora passando, ainda, pela
Hispânia e pela separação desta terra em dois países: Espanha e Portugal.
Deste modo, o autor do ensaio, após estabelecer comentários sobre as demais
literaturas, chega afinal ao seu objeto de análise: Portugal, qual sua origem literária e suas
relações tecidas ao longo dos anos? Por esse caminho, Azevedo abre o fragmento sobre
Portugal em que ele estabeleceria “duas palavras”. Assim,
quando estatuímos ao encetar deste opúsculo que a literatura de um povo era
influída, como um líquido noutro, em sua civilização, foi-nos alvo ao
perpassar daquele exórdio irmo-nos a uma tendência nossa, alentada
fundamente de muito. Quisemos tresmalhar uma olhada asinha sobre o
espírito dessas nossas letras pátrias, tão aluziadas dos clarões dos céus
espanhóis, e samblar em moldura engrinaldada esses visos de umas letras tão
ricas, dessa praia tão derramada de pérolas e corais pelas marés que ai
haviam passado no seu fluxo, das civilizações púnicas, greco-romanas,
góticas e arábicas; essas sementeiras de poesia para a qual concorreram:
quatro vezes o Oriente e a África, nas navegações fenícias e colônias
cartagineses, na invasão mourisca de 712, e no roçar da civilização
perigrinante da raça hebraica [...]; e até a barbaria das raças das hordas da
grande invasão que assinala o anoitecer da Antigüidade e a madrugada
nevoenta da Idade Média (AZEVEDO, 2000, p. 712).
Por certo, a expressão “relações de um povo” sistematiza, na visão do escritor de Noite
na taverna, a literatura de uma determinada nação. No caso em questão, a nação portuguesa
105
esteve estritamente ligada à espanhola, que por sua vez também esteve exposta às relações
com outros povos. Tal relação, sugerida pelo ensaísta, se constitui numa verdadeira “colcha
de retalhos”, que por fim unifica e explicita o espírito e o sentir de um povo, com a formação
de uma literatura própria.
Álvares de Azevedo situa assim, a estrita relação de dois povos, que juntos fisicamente
a uma península ibérica, comungaram de certas atitudes e ideais. Na Hispânia de outrora, sob
todas as relações e influências de outros povos, esse povo estabeleceu e amadureceu a sua
civilização. Este fato se deve em primeiro lugar, como nos parece, à influência e aos
substratos que uma cultura deixa por meio dos contatos, primeiro por interesse comercial e
colonizador, e, por fim, culturalmente.
O autor usa palavras contundentes e afirma não ser o seu interesse apenas narrar a
história da península, o que, entretanto, não ocorre, uma vez que, de certo modo, ele tece
comentários sobre a unificação da Hispânia, isto é, sem a presença dos estrangeiros, e logo
depois sobre a separação de Espanha e Portugal:
[...] uma outra Hispânia independente e livre, embora! sempre houve um
nome, uma unidade que resumiu aquelas duas nações, inda mesmo quando
depois que uma invasão conquistadora, e após da tirania dos Filipes os ecos
da terra portuguesa relembraram os antigos sons das tubas de Aljubarrota e a
nação independente de Afonso Henriques aclamou D. João IV: embalde o
ciúme que arreigou fundos em ambos esses povos ódios mútuos aplicando
um dito do Sr. Garrett: “Os Portugueses ficarão sendo sempre espanhóis
Castelhanos nunca”.
O romanceiro do Cid: essa trova de jograis que deram à Provença os lais de
amor e o romance da Rose (de Meung) – e os Cancioneiros de Resende e D.
Diniz, são numa língua irmã toda: ou antes a língua é a mesma. E ainda
muito depois a literatura portuguesa corava-se de escrever no dialeto
porventura mais bárbaro dos Hispânicos-Lusos, mas inçado talvez das
línguas estrangeiras, de vestígios árabes deixados pela invasão, de mistos
franceses trazidos pelos cavaleiros de D. Henrique: e Montemor escrevia em
castelhano a sua Diana, Bernardes, de Miranda, Camões, mesmo
Camões, trovaram muitas de suas inspirações na língua da mãe pátria.
Da epopéia de Camões, perdoe-se-nos o erro, se é que em dizê-lo, é que
data a inteira separação de literaturas, e em Portugal o timbre de apurado
estudo, e a preferência das falas nacionais (AZEVEDO, 2000, p. 714-715).
Nestes trechos, o autor presume que de início a Hispânia era única. Depois com a
divisão territorial em Espanha e Portugal, esses povos que compartilhavam uma mesma
língua, se vêem separados fisicamente, constituindo-se em nações politicamente
independentes. Com isso, Álvares de Azevedo afirma que para um país ter literatura própria é
preciso que tenha também uma língua autônoma, uma vez que esta além de expressar a
separação definitiva de outros povos, também expressa um processo de nacionalização, que,
em sua opinião, é motor propulsor para civilizar-se.
106
Se no início, tanto autores espanhóis quanto portugueses escreviam na língua pátria,
ou seja, a da Hispânia, com a publicação de Os Lusíadas, de Camões, eles se vêem separados.
Destarte, o que era uma única literatura passa agora a ser duas, porque: “as línguas separam-se
de então, e as literaturas também; pois, quanto a nosso muito humilde parecer, sem língua à
parte não literatura à parte” (AZEVEDO, 2000, p. 715). Sendo assim, das relações e das
influências que sofreram juntos, Espanha e Portugal encontram-se agora afastados
literariamente pelo advento de dois novos idiomas. Partindo daí, Azevedo sugere e infere que
se Portugal e Brasil falavam a mesma língua, então, os dois países tinham uma proximidade.
Ou seja, mesmo gozando de uma autonomia política, o último estaria inserido na tradição
literária daquele país.
O autor, usando mais uma vez da digressão, fixa uma vinculação entre os povos luso e
brasileiro, que se constitui, nesse ensaio, o único momento de proximidade explícita entre os
dois países. Metrópole e Colônia, inicialmente e depois Portugal e Brasil –, se vêem unidos
pela mesma língua, logo, suas literaturas também seriam únicas. No entanto, aqui no Brasil,
os escritores, munidos de um pensamento unificador causado pela independência política,
procuravam se desvencilhar do passado e estabelecer uma literatura inteiramente nacional. A
esse juízo, Álvares de Azevedo tem uma postura à parte de escritores como Gonçalves de
Magalhães, Gonçalves Dias e de críticos como Santiago Nunes Ribeiro, os quais
proclamavam uma literatura brasileira, embora reconhecessem que o idioma era o mesmo:
E (releve-se-nos dizê-lo em digressão) achamo-la por isso, senão ridícula, de
mesquinha pequenez, essa lembrança do Sr. Santiago Nunes Ribeiro, já
dantes apresentada pelo coletor das preciosidades poéticas do primeiro
Parnaso Brasileiro.
Doutra feita alongar-nos-emos mais a lazer por essa questão, e essa polêmica
secundária que alguns poetas, e mais modernamente o Sr. Gonçalves Dias
parecem ter indigitado: saber, que a nossa literatura deve ser aquilo que ele
intitulou nas suas coleções poéticas poesias americanas. Não negamos a
nacionalidade desse gênero. Crie o poeta poemas índicos, como o Thalaba
de Southey, reluza-se o bardo dos perfumes asiáticos como nas Orientais,
Victor Hugo, na Noiva de Abidos, Byron, no Lallah-Rook, Thomas Moore;
devaneie romances à européia ou à china, que por isso não perderão sua
nacionalidade literária os seus poemas. (AZEVEDO, 2000, p. 715).
O posicionamento de Álvares de Azevedo contrasta tanto em relação aos primeiros
românticos quanto ao crítico Santiago Nunes Ribeiro, que no ensaio “Da Nacionalidade da
Literatura Brasileira”, de 1843, defende que o Brasil tem uma literatura própria e nacional,
embora a ngua em que os autores se expressam seja a portuguesa. O texto de Ribeiro é uma
resposta a dois artigos, um do General Abreu e Lima e o outro de Gama e Castro, que negam
a independência literária do Brasil com relação a Portugal: “o Brasil tem uma literatura
107
própria e nacional, ou as produções dos autores brasileiros pertencem à literatura portuguesa,
em virtude dos vínculos que uniam ambos os países, em conseqüência de serem escritas
na língua lusitana?” (RIBEIRO, 1978, p. 32).
O crítico estabelece várias suposições, combate cada ponto levantado por aqueles
estudiosos, e acresce, por fim, que
resta-nos mostrar que a literatura brasileira tem seus predicamentos
peculiares, e que se distingue da portuguesa por alguns traços característicos.
[...]
[...] Nós queremos provar que a acusação de imitadora, de estrangeira, de
cópia de um tipo estranho, feita à poesia brasílica, é mal fundada, injusta e
até pouco generosa. (RIBEIRO, 1978, p. 38).
Partindo daí, Nunes Ribeiro (1978, p. 39) adiciona que “duas são as causas principais
que deviam dar à poesia brasileira o caráter e feições da portuguesa: a identidade dos
estudos e a língua dos dois países”. Porém, de seu ponto de vista, esses elementos não
reduziram a literatura brasileira a mero “galho da portuguesa”. Por esse caminho, ele vai
enumerando vários fatores que contribuem, segundo ele, para diferenciar as duas literaturas,
como, por exemplo, as especificidades da terra brasílica. Com isso, o crítico acredita que “a
poesia do Brasil é filha da inspiração Americana” (RIBEIRO, 1978, p. 47), uma vez que “a
musa brasileira
28
, pois, como o Ulisses de Homero, viu muitas gentes, cidades e costumes
vários” (RIBEIRO, 1978, p. 47). Mas, “[...] se ela se lembrou tanto do Brasil é por que o
tinha por sua pátria e assim experimentava o sentimento da sua nacionalidade” (RIBEIRO,
1978, p. 50). Para encerrar, o estudioso tece uma comparação acerca da (suposta) literatura
brasileira e portuguesa e conclui por uma superioridade da primeira em relação à segunda.
Indubitavelmente para Santiago Nunes Ribeiro, a literatura é nacional quando está em
harmonia com a natureza, clima, religião, costumes e história de seu povo. Nisso percebe-se a
influência de Montesquieu e Madame de Staël. Compreensíveis nos primeiros românticos,
essas simplificações e tomadas de posições tiveram grande fortuna entre nós. E através desse
posicionamento por parte dos escritores e críticos, temos uma idéia da força da corrente à qual
tão corajosamente Álvares de Azevedo se colocava contrário, em nome da manutenção de
uma perspectiva literária mais universalizante, em que reconhecia uma divisão política entre
os dois países, mas não uma autonomia nas letras do Brasil em relação a Portugal.
Nesse sentido, o Brasil (deixando de lado sua colocação a respeito de partilhar a
mesma língua de Portugal) teria, ainda, muito das influências portuguesas, afinal em nossas
28
Neste ponto, Romero descordaria de Nunes Ribeiro, pois para ele, o simples fato dos primeiros escritores
românticos (os chefes do movimento, como chamava) terem ido estudar na Europa, era um elemento
comprometedor com a independência cultural brasileira.
108
letras estão inclusas as tradições daquela literatura. Segundo Azevedo, o Brasil não pode se
desvencilhar da literatura de Portugal, uma vez que ainda não havia uma autonomia no campo
literário brasileiro. Com isso, ela estaria imbricada à mãe-pátria, e ademais, como afirma o
ensaísta: “a literatura, cremo-la nós [como] um resultado das relações de um povo [...]
(AZEVEDO, 2000, p. 715), isto é, a relação entre povos como fator primordial para se formar
uma literatura específica. Por outro lado,
[...] que lucro houvera se ganha a demanda em não querermos derramar
nossa mão cheia de jóias nesse cofre mais abundante da literatura pátria; por
causa de Durão, não podermos chamar Camões nosso; por causa, por causa
de quem? ... (de Alvarenga?) nos resignarmos a dizer estrangeiro o livro de
sonetos de Bocage! (AZEVEDO, 2000, p. 715).
Diante disso, percebemos nas colocações do poeta uma defesa explícita do seu ponto
de vista e da sua maneira de escrever, visto que ele não está empenhado como os demais
brasileiros a forjarem uma tradição pautada na cor local, no indianismo como processos de
criação cultural da nova nação. Ao afastar-se das especificidades da terra brasileira na
elaboração de seu projeto literário, Azevedo acredita que não importa onde esteja, que temas
utilize, para que a literatura um caráter nacional, pois: “Camões, denodado pelejador de
Ceuta, o desterrado guerreiro das Índias, cantou os Lusíadas na Índia, em Macau, em toda
parte onde o vento nas palmeiras da Ásia lhe falava das glórias do passado” (AZEVEDO,
2000, p. 717) e nem por isso deixou de ser português.
Ao voltar de sua digressão (a interrupção com o assunto proposto como principal, e é
nisso que se vê a narração fragmentária e irônica) Álvares de Azevedo afirma que uma
comparação entre as duas nações estudadas, Espanha e Portugal, mostra que a poesia decaiu,
quando os hábitos guerreiros desses povos também decaíram. O crítico afirma que as duas
nações, nos seus tempos de glórias, quando se expandiam no mundo, estiveram aliadas a uma
ótima literatura.
Ainda no fragmento que trata de Portugal e Espanha, que depois da digressão (o único
momento em que o narrador se volta explicitamente sobre a literatura brasileira), acrescidos
os juízos, as hipóteses, o autor se esgueira pela Literatura Portuguesa, ou melhor, pela
“moderna literatura portuguesa”. Esta modernidade das letras portuguesas, segundo Azevedo,
um ar de novo, totalmente diferente daquele dos tempos guerreiros. Nesses novos tempos,
ela parece renegar Camões e procurar um apoio mais contundente na época. A partir daí, ele
começa a empreender uma leitura de novas obras e acresce que o único defeito que
apresentam é o perigo do plágio:
109
[...] a imitação mata o gênio, a cópia destrói o lampejo de originalidade, seja
de um clássico, seja de um romântico. Os chefes de sistema literário são
mais por admirar e estudar que por copiar, Goethe lamentava-se dos seus
imitadores – criticava acerbo o sentimentalismo falso que seu Werther fizera
brotar nos romances [...]. Chateaubriand queixava-se do bronco de
expressão, do exagerado de idéias, que sua reação romântica acordara nas
escolas do belo horrível que excederam todo o medonho da ronda de
horrores e lascívias de Lewis [...]. [E conclui,] é que os discípulos na
fascinação da apoteose que erguem ao gênio, no tresladar, no arremedo de
suas belezas, imitam-lhe também, e mais que o resto, os defeitos, porque foi
no embelezá-los, em escondê-los sob flores, que os mestres envidaram suas
forças (AZEVEDO, 2000, p. 719).
De certo modo, Azevedo repreende os defeitos de muitos escritores, que sob a
imitação não souberam dar rumo certo as suas obras, como fizera os grandes mestres.
Portanto, o brilhantismo e a engenhosidade dessa escola coube a poucos, como afirma o
crítico: Alexandre Herculano e Almeida Garrett são os únicos a produzirem uma obra de
efeito e estão longe dos defeitos apontados. Neste momento, o ensaísta parece estatuir os
autores que compõem a passagem da primeira fase histórica e literária de Portugal, que tem
início com Ferreira e Camões, os expoentes máximos da literatura, e termina com o último
grande escritor português, Bocage. Este momento de transição estaria imbricado na questão
da imitação e plágio, em que apenas alguns escritores, embora houvesse outros, como cita
Azevedo, puderam desenvolver uma literatura de qualidade.
Depois, Álvares de Azevedo afirma, em seu ensaio, que não como negar “trechos”
de uma certa dramaticidade verdadeira à obra de Mendes Leal, um dos autores da escola
romântica. No entanto, o ensaísta faz um julgamento feroz ao tipo de beleza feminina
apresentada nos trabalhos desse autor:
[...] a pobreza de enredo, a monotonia das suas heroínas: é sempre a mesma
beleza [...]
[...]
São sempre as virgens alvas, como passam às vezes nos romances de Scott,
[...] Sempre as donzelas tristes como lírios pendentes [...] Elas são todas
belas, sim, mas belas de uma beleza monotipa; porém esse ressaibo da pobre
amante louca da “Rosa branca”, do “Sonho da Vida”, a sombra suavíssima e
cândida que lhe trava de todas as criações, tornam-se monótonas, porque o
som mais doce, a sensação mais suave, se não mudar-se dela, arrefece e
torna-se insípida. (AZEVEDO, 2000, p. 720).
De maneira acentuada e crítica, o autor deste estudo literário estabelece um diálogo
com suas próprias produções artísticas. Em Lira dos Vinte Anos, especificamente na primeira
parte, nós o encontramos fazendo uma poesia com este tipo de heroína. Elas são todas belas,
virgens e sempre alvas, de uma única beleza. Já no segundo prefácio e nos poemas que se
sucedem aparece um outro tipo de mulher; não se encontra mais essa mulher insípida, mas, ao
110
contrário, ocorre nestes “novos” poemas uma paródia destas heroínas, pois encontramos
mulheres comuns que desbancam as “virgens alvas”. Há, portanto, nessa exposição uma
capacidade e consciência por parte de Azevedo de refletir, nas obras de outros escritores, bem
como em sua própria obra, o desenvolvimento de determinadas temáticas.
Em “Lusos e Portugueses” (segundo fragmento de “Portugal duas palavras”), Álvares
de Azevedo (2000, p. 722) retoma Camões para afirmar que “o Edda das proezas Elísias não é
os Lusíadas”. Com isso, o ensaísta infere que Camões não é o único autor a descrever, em
Os Lusíadas, o passado lusitano. Coube também a outros escritores revelar as proezas desse
povo:
Os Sagas das révoras faustosas, os memoradores da herdança de um passado
tamanho Fernão Lopes, Eanes de Zurara, Barros, Couto, Camões seriam
então os Aedos e Homéridas de um imaginar colossal, [...] a crônica de D.
Diniz o legislador, o poeta e o rei-lavrador, por Lucrécia, a Osmia da
antiga Lusitânia, – pelo canto dos Tarquínios, o clarim guerreiro atroando os
ecos de Aljubarrota. Tiveram-no eles também nos seus anais os feitos
populares, e os brios dos vassalos – as tendências livres da plebe, e a
grandeza dos Régulos e Décios na devoção cavaleira de Egas Moniz e
Martim de Freitas. A cítara de Camões que nos trouxe o derradeiro eco
dos recontos de um passado monumental, não cede à linha férrea do
Capitólio (AZEVEDO, 2000, p. 722-723).
Mas Os Lusíadas não devem em nada em sua grandeza se comparados aos cantos do
Norte e do Oriente. Segundo a ótica de Azevedo, Os Lusíadas são a “[...] Bíblia das velhas
tradições portuguesas [...] (AZEVEDO, 2000, p. 722), assim como foram os Eddas
Islândicos, para o povo do norte e o Chanameh Persa, “[...] a epopéia mítica do Oriente [...]”
(AZEVEDO, 2000, p. 722). Deste modo, Os Lusíadas (e as produções literárias de outros
escritores portugueses) demonstram as primeiras sagas guerreiras de um povo. Além disso, o
livro de Camões evidencia certos episódios sublimes e lacrimosos:
[...] como o naufrágio de Sepúlveda, a morte de Maria Teles, a quem, no
dizer poetado de João de Lemos tão sem ventura a mão do esposo ceifa a
rosa da vida no descuido da noite’ e a lenda de ternezas de um infante e uma
dama.
Quem não sabe da má ventura de D. Inês? quem não repassou de orvalhos de
lágrimas esse goivo seco de saudade, na página melancólica dos Lusíadas?
[...] essa tragédia tão bela, tão prateada de tristuras, que não mal o dizer-
lhe, como o choro dela ao ver desfeita em lágrimas a Dona dos sonhos de D.
Pedro [...] (AZEVEDO, 2000, p. 723).
Antes de findar os fragmentos que compõe a primeira parte do estudo, Álvares de
Azevedo evoca o poeta Byron, a fim de protestar sobre o que ele escreveu em Childe
Harold’s Pilgrimage a respeito do povo português. Neste momento, o autor parece se vestir
111
de um legítimo português e reclama ao poeta inglês a injustiça que fizera à grande nação
portuguesa:
E tu, Byron, tu, o Artista das grandes glórias, o cultor de todas as aras
enlauradas de heroísmo, idólatra panteísta de todas as façanhas, oh! por que
acordastes na tua solfa de menestrel a fibra ríspida da ironia, à velha nação
das vitórias?
Oh! sim! por que esse sarcasmo que o teu Childe cuspiu à cidade dos
grandes triunfos, à Ahsbonnah Mourisca dos indomados brios, à Lisboa
grandiosa dos memorosos barões? (AZEVEDO, 2000, p. 724).
Em Childe Harold’s Pilgrimage, Lord Byron (1950), no Canto I da XIV estrofe,
investe contra os portugueses com uma enorme rudeza. Quando o barco de Harold entra em
águas portuguesas, o poeta fala em “fertile shores where yet few rustics reap”. Logo, Byron
refere-se aos habitantes de Lisboa como “dingy denizens”, Canto I, estrofe XVII. E acrescenta
na estância XVIII, que o povo é “poor, paltry slaves!”. Em uma nota do próprio Byron, o
poeta inglês acrescenta, ainda, que descreveu os portugueses como os havia encontrado.
Ademais, explicita ironicamente que eles têm feito progressos, ao menos em coragem.
Diante disso, o ensaísta assume um ressentimento crítico por Byron e o questiona em
seu posicionamento perante o povo português:
Poeta! e esqueceras que essa nação sobre cujo túmulo pisavas tinha por Edda
o livro de Luís de Camões, menestrel como o Tasso, guerreiro como
Godofredo, amante como Petrarca, vagabundo como Dante, sublime e
laureado das palmas da guerra como tinhas de sê-lo? (AZEVEDO, 2000, p.
724).
A postura de Álvares de Azevedo, além de uma censura a Lord Byron, expressa
também uma situação bem interessante, pois Azevedo o tinha como chefe máximo da escola
romântica inglesa. Sendo assim, toda a admiração e a aproximação não salvaram o poeta,
segundo a ótica azevediana da injustiça que ele havia cometido em Childe Harold’s
Pilgrimage, no canto I e II aos portugueses:
E ignoravas, vagabundo romeiro do cepticismo, que a nação de que rias, real
entre as demais, tinha mais Homeros que a Europa toda mais campeões
estatelados com as mãos mirradas no guantes de aço, no peito murcho e
calado, e as sapatas de ferro unidas no mármor de seus leitos de pedra – mais
lidadores de têmperas indomáveis, cujo eito de façanhas de um só fora
almenara em atalaia de glória para uma nação inteira, do que essa tua velha
Inglaterra de Boadicéia, Arthur, Guilherme o barão Northman, e Harold
o morto no campo de batalha com a fronte descoroada? (AZEVEDO, 2000,
p. 724).
Em suma, numa crescente crítica a Byron, Álvares de Azevedo o acusa de dizer
infâmias e de chamar a nação portuguesa de morta:
112
E entre essa tanta infâmia de uma nação cadáver e prostrada – na pocema de
um capitólio de glórias tu, que eras poeta como o espírito do passado, que
eras belo como o Euphorion último do Faust, não sentiste o pulsar alto e
ardente de muitas fibras em peitos filhos de céus belos, tão vivos de
republicanismo, e acordados dos brados de glória dos homens livres, inda
ecoantes pelas montanhas e vales daquém o Alqueva e Guadiana, poetas que
votaram suas frontes de mancebo à cinza da mágoa, e suas harpas inteiras
aos hinos das glórias idas, aos trenos de maldições, às orgias seculares e à
vilta do nome português! (AZEVEDO, 2000, p. 724).
Por conseguinte, detemo-nos na segunda parte do ensaio, que o autor denominou de
“Fase Heróica”. Nessa parte, é tida (segundo o ensaísta) como a “grande era portuguesa”, na
qual dois grandes representantes: Ferreira e Camões. Quando Azevedo desenvolve esta
fase, ele ressalta em Ferreira a sua Castro, e utiliza como juízo crítico o impacto sentimental
da obra:
A Castro de Ferreira foi depois da Zenóbia (de um autor Italiano), a primeira
obra trágica, asselada de gênio, verberada dos lances do classismo helênico,
e da simpleza homérica e pureza de formas dos arquétipos sublimes dos
Gregos. A arte dramática portuguesa nunca mais ergueu-se tão alto. O
informe da criação dos autos extravagantes de Gil Vicente, o truão, as
comédias de de Miranda e os enredos facetos do judeu Antonio José da
Silva, o volumoso teatro de Figueiredo em tempos mais modernos o
repertório plagiário de melodramas de Antonio Xavier, – em nada disso vai a
par, em mérito literário, do grande monumento de D. Inês, que o
Dominicano galego Bermudes na sua Nise lacrimosa, verso por verso às
vezes, tão indignamente plagiou. As imitações de Lamotte e João Batista
Gomes estão para o original como Ducis para Shakespeare (AZEVEDO,
2000, p. 725).
A partir daí, o ensaísta empreende uma análise do conteúdo e da forma. Ele transcreve
trechos da obra, a qual vai comentando e julgando. E por fim acresce que: “para nós, Ferreira
(como Goethe na criação de Ifigênia) é o modelo que apontaríamos à mocidade. Ali todo o
brilhante fascinador do romantismo, e o puro da severidade arquitetônica do classicismo
(AZEVEDO, 2000, p. 733).
Depois ele descreve, com um estilo peculiar, Camões, bem como a sua produção:
[...] eis quem era Camões: era o amador de Catarina de Ataíde, o soldado
de Ceuta, que num senão de face, ao salvar de seu pai, um pelouro assinalara
valente, o desterrado da Índia bárbara, o cismador da caverna de Macau, o
náufrago que ao salvar-se a nado erguia na destra o padrão glorífico de seu
poema. [...] Foi uma alma épica que em seu pressentir de poeta vira em seu
livro uma dessas glórias cosmopolitas, com que todos os povos, todas as
gerações se laureiam. (AZEVEDO, 2000, p. 734).
Na terceira e última parte do ensaio (composta por oito fragmentos), Azevedo
descreve a “fase negra” de Portugal, que representa, na visão irônica do ensaísta, o crepúsculo
da produção literária dessa nação: “eis até a face brilhante ao sol, o relâmpago centenário
113
do planeta português. Lede Ferreira e Camões, e senti-la-eis como sente-se a lava quente aos
pés essa raça de valentias herdadas com os brasões lavados em sangue” (AZEVEDO, 2000,
p. 736). No entanto, passada essa fase, o que se encontra é “a fase das vergonhas portuguesas,
o clivoso do descaimento da nação de Castro o Viso-Rei, a vilta desse povo de Romanos,
geração abastarda de águias [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 736), já que “a fase dos brios,
representam-na pois Ferreira e Camões [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 735). Contudo, ainda
um último, ou melhor, um legítimo representante da literatura portuguesa nesta “fase negra”:
Olhai no passado nesse passado que foi o presente de nossos pais
mancebos, de nossos avós homens feitos não vedes pelo tremedal das
ruas da Lisboa imunda do século XVIII um homem que cambaleia e tropeça,
roto e dasabotoado a encostar-se pelas esquinas, tateando as paredes no
andar vertiginoso? [...]
Conheceis aquele homem?
É um tipo poético como Byron, cínico e devasso como D. César de Bazan,
sombrio como o Dante, amoroso como Ovídio, insano como Werner!
É o rei da literatura Portuguesa de então – Manuel Maria Barbosa du Bocage
(AZEVEDO, 2000, p. 736-737).
Ao encerrar o seu ensaio, Azevedo configura Bocage como o último grande expoente
da literatura portuguesa, em que se traduz toda uma época, pois Bocage não é um caráter
estéril por único no historiar da literatura portuguesa. Naquele homem traduz-se uma era
inteira. É o espelho onde passa com sua flutuação de luz e sombra no roxo crepuscular de uma
nação [...](AZEVEDO, 2000, p. 743), é o último florescer da poesia lusitana, uma vez que
depois dele, podemos notar que “Portugal se mergulhara no crepúsculo” (AZEVEDO, 2000,
p. 744). Entretanto, ele sugere que talvez essa escassez de bons escritores não dure muito
nesta nação que outrora fora grande, afinal “a noite portuguesa, como as de verão, talvez não
seja longa” (AZEVEDO, 2000, p. 744).
Todavia, notamos que entre o momento máximo e o declínio da literatura portuguesa
outros escritores, mas o ensaísta ressalta, segundo seu ponto de vista, o que de melhor
na literatura portuguesa e o que a decresce, a fim de construir um texto (em fragmentos) que
realize um discurso irônico sobre a produção literária de Portugal.
Com isso, nós podemos perceber que a realização da ironia se por meio da
estruturação do texto do ensaísta, bem como nos argumentos e seleção de vocábulos, em que
ele estipula, num primeiro momento, o objeto, isto é, a história e a literatura de Portugal com
uma caracterização elevada, com traços positivos, mas que, em seguida, é expressa em sua
precariedade, de forma relativa, evidenciando que o movimento da história e da civilização
caminha para sua ruína (GINZBURG, 1999).
114
Entretanto, o ensaio é construído em três partes, mas é na “fase heróica e negra” que
Azevedo expressa o contraste da história de Portugal e apresenta claramente o declínio da
sociedade lusa e a sua degradação. Aos olhos do ensaísta e do crítico, a “fase heróica” é o
momento em que Portugal se firma com solidez, já a “negra” apresenta uma sociedade
degradada, cuja nostalgia do passado impõe dificuldades de se perceber o presente e almejar o
futuro (GINZBURG, 1999).
Quanto ao estilo do texto “Literatura e Civilização em Portugal”, afirmamos que ele é
programaticamente difuso e inacabado, como sugere a forma ensaio, (assim como acontece no
livro Macário,) e que expressa bem o entendimento do movimento romântico, com suas
características fragmentarias (contrárias à busca de unidade no classicismo), em que o leitor é
inserido numa atitude mais crítica e participativa do fenômeno literário, como propõe a forma
fragmento, uma vez que seu conteúdo se completa na leitura de cada indivíduo.
Nesse ensaio, entre outras explanações, Álvares de Azevedo parece dar forma a um
narrador-poeta de origem lusa, que delineia um panorama da história literária portuguesa, bem
como uma inclusão dele na reflexão sobre os elementos que constituem a origem das
literaturas. O que de certo modo explica a razão de ser do texto, pois Azevedo o constrói
pensando tanto na tradição ocidental, em que Portugal se insere, quanto no Brasil, cuja
finalidade talvez fosse esclarecer e não deixar dúvidas sobre sua posição, no dialogar com a
‘formação da literatura brasileira’ que estava sendo aqui estruturada pelos primeiros escritores
românticos.
Apesar disso, uma das acusações sobre Azevedo recai justamente na ausência de
reflexão sobre temas nacionais em sua obra, o que de fato não é verdade, uma vez que
podemos notá-la não em seu texto “Literatura e Civilização em Portugal” como também
em seu livro Macário, pois, neles, o escritor desenvolve um interesse pela reflexão acerca de
questões nacionais. No entanto, diferentemente do horizonte de expectativas dos primeiros
românticos, cujo critério fundamental de valorização da literatura consiste em seu papel
empenhado na formação da imagem da nação, procurando a qualquer custo afastar-se de
Portugal, Álvares de Azevedo não a desenvolve pensando estritamente nisso. Afinal, a
separação política entre Brasil e Portugal não representa de modo algum o fim das ligações
entre os dois países, mas apenas um fator de mudança, em que não a necessidade de
reduzir a construção da identidade nacional, pautada, primeiramente, numa (suposta) tradição
literária que buscava a qualquer custo a cor local, e a cultura dos indígenas. Tradição, aliás,
que Azevedo não reconhecia como norteadora da literatura brasileira.
115
Quando Azevedo explora determinantes da literatura portuguesa nega-lhe a
organicidade pura, reafirmando sua unidade na pluralidade, que ele estabelece a
estruturação dela pautada nas relações que esse povo forjou com outro. Ao insistir na
variedade de fatores que geram uma literatura, o autor aposta que ela se nacionaliza ao
longo do desenvolvimento da nação em civilização
29
, no momento em que a população e os
escritores estiverem assimilados (o processo de civilizar-se) em sua totalidade, criando,
assim, uma identidade comum aos seus habitantes. Nisso podemos ver a sua recusa em
afirmar que o Brasil já tinha uma unidade, pois a nação ainda estava sendo construída, e o
processo de civilização ainda não havia sido empreendido, afinal, o país era atrasado tanto em
termos do capitalismo quanto na área cultural. Deste modo, compreendemos o gesto de
Azevedo ao deslocar a produção literária brasileira para o sistema ocidental, tomando-a (pelo
fato da língua e pela falta de uma tradição) como parte da portuguesa que, por sua vez, estaria
também imbuída da espanhola, que resulta da arábica, indiana, gaélica, (ou seja, das relações
dos povos), a fim de afastá-la da cultura indígena, como sendo sua formadora. Afinal, ao
adotar o indianismo como fonte literária, limitaria o diálogo com a tradição ocidental, que é a
base da literatura de Álvares de Azevedo (ALVES, 2001).
Dessa forma, Azevedo, refletindo sobre a polêmica que se criou em torno do idioma
português, afirma, ainda, que sem uma língua autônoma, (posição esta contrária a de Santiago
Nunes Ribeiro), não havia como desvincular a nossa literatura daquela de tradição portuguesa.
Nesse sentido, o ensaísta acredita que uma ruptura (uma autonomia) com a tradição
portuguesa significaria um empobrecimento da nossa literatura, visto que não possuíamos,
então, uma tradição literária satisfatória.
Além disso, Álvares de Azevedo, pensando na formação da literatura brasileira,
pressupõe como definição dela uma originalidade pela retomada da literatura mundial,
começando com a literatura portuguesa e alcançando a européia em geral. No entanto, esta
recuperação
30
da tradição ocidental deve ser feita pela imaginação reflexiva que difere da
29
Para Azevedo “a literatura é a civilização, e a poesia o sentir e o crer das nações”. Nesse sentido, podemos
inferir a opinião de Ricupero em que “a nação é tanto um conjunto de tradições inventadas, ou mais ainda, a
invenção dessas tradições, como a crença nelas” e mesmo “no vocabulário romântico latino-americano, a palavra
‘civilização’ tem peso especial, o que provavelmente se explica pelo momento histórico que vive então o
continente. Depois da independência política, procura-se tornar a América Latina ‘civilizada’, entendendo-se
‘civilização’ como uma nova forma de relacionar-se com o mundo, principalmente o centro capitalista”.
(RICUPERO, 2004, p. 23 e 25).
30
De certo modo, poderíamos também supor que, ao retomar a literatura ocidental, os escritores brasileiros
pudessem transformá-la. Isto é, importar as idéias, mas reorganizá-las com trejeitos, para que coubessem em
nosso país. Os escritores românticos fizeram isso, ou seja, na elaboração do nacionalismo literário, eles deram
início ao gérmen da antropofagia, que se desenvolverá com total esplendor no Modernismo. No entanto, pelo
116
mera reprodução, como bem determina a teoria do romantismo ao estabelecer uma intersecção
com a grandeza da tradição, mas de modo a celebrar a singularidade do autor, que ao retomá-
la imprime sua individualidade (ALVES, 2001) e constrói assim uma obra bastante particular,
embora inserida numa amplitude. Ou seja, o escritor deglute certas teorias, certas vertentes do
movimento e as transforma em literatura brasileira.
Em suma, o poeta, em “Literatura e Civilização em Portugal”, assume uma postura
bastante interessante com relação à formação e nacionalização de determinadas literaturas. O
ponto máximo, nesta acepção de literatura nacional, faz Azevedo, de certo modo, filiar a sua
literatura à tradição ocidental. O que num primeiro momento está de acordo com sua proposta
literária, uma vez que ele não via motivo em defender a cor local e o tipo de nacionalismo que
estava sendo forjado. Afinal, para ele é mais interessante pensar que a literatura, antes de
tudo, deriva das relações de um povo, de uma tradição mais rica, na qual sua literatura se
baseia. Nesse sentido, a literatura de Azevedo é perfeitamente nacional, mas sob uma ótica
mais abarcante, mais cosmopolita.
2.2 - Os diálogos literários, a tradução-análise do poema “Jacques Rolla” de
Alfred de Musset.
Propomo-nos, neste capítulo, a observar a relação entre o crítico e o poeta, ou seja, o
que Álvares de Azevedo ressalta de importante sobre o Romantismo, os principais temas
abordados e a maneira como constrói o seu ensaio. A partir daí, podemos afirmar que
“Alfredo de Musset / Jacques Rolla” é uma análise do poema de Musset e difere de
“Literatura e Civilização em Portugal” no que concerne ao seu conteúdo, mas em sua
estrutura ele apresenta uma certa consonância com a forma fragmento, pois o escritor
brasileiro o organiza por meio de vários artigos, que juntos compõem o seu estudo crítico;
com a forma ensaio, pois ele não esgota todas as possibilidades na análise do poema, bem
como não abrange uma totalidade e posicionamento definitivo, antes uma preocupação em
submeter o escritor francês a uma reflexão, para questionar aquilo que sobre o poeta e seu
o poema Jacques Rolla”, e com a ironia, isto é, na conjugação da tese a antítese que ele
observa em escritores como Homero, Goethe, Byron, Thomas Moore e Musset. Com isso, é
nacionalismo ingênuo, eles deram apenas alguns passos, pois o receituário de Ferdinand Denis foi desenvolvido
sem grandes mudanças.
117
possível ver uma consonância com o texto anterior, em que se aproxima da idéia da forma
ensaio, bem como da forma fragmento e da ironia romântica.
Por outro lado, em “Alfredo de Musset/Jacques Rolla”, Azevedo demonstra, mais uma
vez, a estreita relação entre o seu fazer poético e crítico. Nesse texto, o autor aproxima
bastante os dois discursos e chega a fundi-los em certos momentos, sem, contudo, perder o
seu caráter crítico. Por esse caminho, ele estabelece um diálogo com o Romantismo, com sua
própria poética, e ressalta também um bom entendimento da concepção da literatura.
No entanto, como esse texto é construído por meio de uma tradução-análise do poema
de Musset, o qual foi tido por muito tempo como o influenciador da obra de Azevedo,
propomo-nos a estabelecer as devidas relações com o estudo do autor, isto é, o que o ensaísta
julga interessante nesse poema e quais as temáticas comuns aos dois escritores. Pretendemos
ainda comparar, quando possível, a sua prática poética e a sua postura crítica no que se refere
à literatura romântica.
Como ficou evidenciado no livro de Maria Alice Faria, Álvares de Azevedo não sofreu
influência perniciosa de Byron via Musset, e muito menos do próprio escritor francês.
Entretanto, como veremos no ensaio, Azevedo estabelece uma leitura do poema, em parte,
pautada na estética byroniana ao eleger características byronicas do herói e heroína o que
implica uma certa discussão por parte dos críticos.
Fausto Cunha, em seu livro O Romantismo no Brasil: de Castro Alves a Sousândrade,
salienta, em um primeiro momento, uma discrepância entre o crítico e o poeta Azevedo na
comparação com Musset e assinala que aquele é um reflexo deste. Assim, segundo Cunha
(1971, p. 115), “[...] as relações de inspiração entre Azevedo e Musset deram nascimento a
um curioso antagonismo entre o criador e o crítico. Enquanto poeta, Azevedo é um eco da
estética de Musset; enquanto crítico é um adversário dessa mesma estética”. No entanto,
adiante, em seu texto Álvares de Azevedo ou a contradição criadora”, Cunha revoga sua
primeira impressão e afirma que o escritor paulista difere do francês tanto como crítico como
poeta:
resta saber se, como crítico, rezava Álvares de Azevedo pela mesma cartilha.
Parece que não; (e sabemos hoje, através dos seus manuscritos, que nem
sequer como poeta). O crítico tinha a preocupação do “ritmo” e dos
“matizes”, demasiado sutis para um desordenado. O crítico pregava
literalmente o “tedioso limar”, as emendas, aquilo que Musset tacharia de
menuiserie (CUNHA, 1971, p. 115-116).
Ou seja, se num primeiro momento Cunha afirma uma aproximação e influência de
Musset sobre Azevedo, num segundo momento ele desfaz tal afirmativa. O que nos leva a crer
118
que o crítico havia empreendido uma análise comparativa mais contundente, visto que pelo
estudo de Maria Alice Faria mais pontos de contatos do que influência de Musset sobre
Azevedo. Por outro lado, não nos parece que Azevedo fosse, enquanto crítico, um adversário
da estética de Musset, mesmo porque, ele não pregava declaradamente o limar das suas
composições. Além disso, em seu estudo sobre o poema “Jacques Rolla”, Álvares de Azevedo
teceu comparações do poeta francês com Homero, Goethe, Byron e Thomas Moore, a fim de
inseri-lo na tradição ocidental, bem como igualá-lo com esses mesmos poetas. O que
demonstra um reconhecimento do crítico pelas qualidades literárias de Musset.
Álvares de Azevedo, em “Alfredo de Musset / Jacques Rolla”, estabelece inicialmente
uma estrita relação com duas práticas literárias. De um lado, ele apresenta a produção literária
séria, histórica e também sentimental, do outro, o ensaísta apresenta a produção literária
satírica, cômica e irônica. Ao juntar estas duas facetas, fica estabelecido o dualismo literário,
bem como a superação das formas clássicas e sugere assim um perceptível entendimento de
Azevedo em relação ao movimento romântico.
Logo de início, o crítico forma ao primeiro fragmento, denominado por ele de
“primeiro artigo”. Nesse momento, ele apresenta o poema “Jacques Rolla” e tenta filiá-lo à
prática em que aparece o dualismo romântico. Para isso, ele recorre à tradição ocidental, mais
precisamente, a escritores como Homero, Goethe, Byron e Thomas Moore, para enfim dizer
que Musset também foi como eles.
O autor de Lira dos vinte anos, na defesa de que um mesmo poeta pode escrever tanto
poesia sentimental quanto irônica e sarcástica, anuncia: “O gênio é como o Jano latino: tem
duas faces” (AZEVEDO, 2000, p. 678). Sendo assim, o poeta que escrevesse suas obras
literárias com estas duas práticas distintas era, segundo o ponto de vista de Azevedo,
completo como o deus romano Jano, que possui duas faces, uma oposta a outra, mas juntas,
unidas num mesmo corpo.
Por esse caminho, Álvares de Azevedo institui, que em Homero um entremear dos
estilos, isto é, “depois dos poemas épicos, Homero escreveu o poema irônico” (AZEVEDO,
2002, p. 140). Nesta citação, o poeta refere-se ao poema Margites, que é atribuído a Homero.
De certo modo, como explicita Azevedo, do mesmo poeta de que saíram cantos épicos como a
Ilíada e a Odisséia, saíram também o humor e a ironia, o que salienta uma forte impregnação
das ‘duas faces da moeda’. No entanto, a própria Odisséia, já está repleta de uma ironia e uma
imaginação mais solta:
No Homero daquela Grécia inda vibrante das tradições selváticas dos
autóctones – dos mitos romances dos Pelásgios, que a colonização Egipcíaca
119
viera nublar do seu misticismo a Ilíada; e entre o canto de guerra e a
Batrachomyomachia, entre a tragédia com seu entrecho épico, e a comédia
em embrião com sua sátira aristofânica – a fundir-se a meio numa e noutra, a
abraçar uniformados num momento os dois tipos, a Odisséia.
(AZEVEDO, 2000, p. 678).
Ademais, Álvares de Azevedo diz que Goethe também foi assim. O mesmo poeta que
escreveu Werther, também criou Faust. No primeiro livro aparece o transcendente, o
inatingível, enquanto no segundo, temos o acessível e o palpável, expresso pelo
comportamento vil do homem. Todavia, no próprio Faust existe a junção das duas práticas
literárias:
[...] Num dos versos é o sorrir juvenil que se apura nos sonhos, que se
embebera de esperanças, sempre fresco de uma gota de lágrima doce – ou de
orvalho como as folhagens do rosa-sólis: são as frontes que se embebem
do líquido de âmbar que se goteia de amículos de anjo é Faust que hesita
ante o leito de Margarida, ao arregaçar do cortinado ao sentir seus sonhos de
moço que lhe vagueiam no delírio. A outra face é a amarelidez atrabiliária da
testa que entontece às febres do descrido: é Oreste que blasfema no seu ourar
que queima, é Henrique Faust entre os hinos da Páscoa erguendo a taça
negra do suicídio (AZEVEDO, 2000, p. 678).
Na encadeação das idéias, Álvares de Azevedo (2000, p. 678) anuncia que “em Byron
Childe Harold e Don Juan [...]”. Ou seja, a promulgação de dois estilos literários em um
mesmo autor. Um exprime a concepção romântica exacerbante, segundo a qual se morre por
amor, em que não o remorso e a busca por aquele sentimento é infinita etc. Já o outro
mostra uma poesia mais centrada na “ironia romântica”, em que um distanciamento
daquele tipo de fazer poético expresso no primeiro:
Em Byron Childe Harold e Don Juan [...]. Childe Harold […] é o fel da
blasfêmia, [...] é a vida que se estorce como a serpe na vasca moribunda é
o sangue que rebenta mais vivo, o pulso tufoso que bate mais a tropel como
nos peitos do cavalo estafado do deserto o coração que afana ao derramar
das veias. Don Juan é a sátira ervada de todo o veneno do iambo: mas o
estilo férreo do poeta não se repassa apenas de gotas negras: nele, pelo
cautério da ironia sardônica, um porejar vermelho que alembra as garras da
águia dos Alpes, ou do condor selvagem desses Andes a quem roçar das
nuvens trovejadas bruniu os negrumes (AZEVEDO, 2000, p. 678).
A seguir, Azevedo adverte que Thomas Moore também escreveu pautado no dualismo:
Tom Moor como o chamava a intimidade de Byron, também é assim: o
suavíssimo cismador de Lallah Rookh a Oriental, dos Amores dos anjos,
das Melodias irlandesas foi o Lucílio da Inglaterra. A par da assonia terna
de suas dulias o fel de suas ironias políticas, o açoute de suas cartas
satíricas, onde ele alteou-se ao ápice do gênero além ainda de todas as
aspirações fogosas da Nêmesis de Barthélemy e das sátiras de Augusto
Barbier (AZEVEDO, 2000, p. 679).
120
Até aqui, o poeta explicita o dualismo expresso em Homero, Goethe, Byron, Thomas
Moore, buscando ressaltar elementos que o autorizem a explorar algumas vertentes
românticas, para enfim filiar o poema de Musset. Desse modo, o ensaísta tece um pequeno
esboço, um entrosamento entre as práticas literárias opostas e, a partir daí, apresenta o poema
“Jacques Rolla”.
Com isso, Álvares de Azevedo chega onde queria, dizer que Musset também era como
aqueles escritores, isto é, elaborou uma obra em que a poesia ora apresenta o sublime, o
transcendente, o inatingível, ora o outro lado da ‘moeda’, composta pelo sarcasmo e pelo
discurso irônico que expresse, em sua pretensa totalidade, a ‘ironia romântica’, ou seja, a
conjugação da tese e antítese.
No entanto, Azevedo assinala que a poética de Musset está bem próxima da de Byron.
Ao afirmar isso, o ensaísta opta pela linha byroniana, a fim de analisar o poema “Jacques
Rolla”. Nessa acepção, ele afirma que Alfredo de Musset é uma dessas almas de poeta, que
se batizaram no ceticismo das ondas turvas de Byron” (AZEVEDO, 2000, p. 679),
não é um plagiário contudo não é um árido imitador. Mal fora dizer de
algum de seus poemas eis uma cópia. O que há, é uma harpa acordada aos
sons rugidores de um concerto da noite: um cérebro que se esbraseou a
sonhos de outro cérebro. Namouna, Mardoché são inspirações de Beppo e
Don Juan. (AZEVEDO, 2000, p. 679).
De certo modo, Azevedo reincidiu numa questão muito interessante: até que ponto um
poeta pode ser influenciado sem, contudo, cair na imitação e ser apenas copista? Como é
possível partilhar de um mesmo espírito de época, trabalhar as mesmas temáticas, ter um
outro escritor bem próximo de sua prática literária e não deixar se corromper por aquela
poética? No ponto de vista do ensaísta, existe nos dois poetas uma assonância, uma afinidade
que os aproxima, mas que não caracteriza Musset como um plagiário de Byron. E nisso,
podemos ver que a própria teoria do romantismo, (ao estabelecer uma interseção com a
grandeza da tradição literária,) proporciona uma saída, pois a individualidade do escritor
sugere uma particularidade no ato criativo de sua obra, resultando numa extrema
originalidade, ocasionada pela imaginação reflexiva, que difere da mera reprodução. Além
disso, como diz Álvares de Azevedo, em “Literatura e Civilização em Portugal”:
Os chefes de sistema literário são mais por admirar e estudar que por copiar,
Goethe lamentava-se dos seus imitadores, criticava acerbo o
sentimentalismo falso que seu Werther fizera brotar [...]. Chateaubriand
queixava-se do bronco de expressão, do exagerado de idéias, que sua reação
romântica acordara nas escolas do belo horrível [...] (AZEVEDO, 2000, p.
719).
121
Neste momento, podemos colocar alguns pontos em contato entre Azevedo e Musset,
que segundo os estudos críticos apontam o poeta inglês como o norteador de suas práticas
literárias. Tanto Musset quanto Azevedo, em seus respectivos países, foram espezinhados
pelos críticos em geral sob a acusação de imitadores de Byron. Musset foi visto por muito
tempo como um poeta byronico, rótulo que, aliás, tem sido dado a Azevedo até os dias atuais.
O poeta brasileiro, realmente tem muita proximidade com o ‘bardo’ inglês, e possivelmente
tenha muitos pontos de contato, mas, falta um estudo comparativo entre eles a fim de
determinar até que ponto isso é verdade.
Por outro lado, sentimos uma admiração exagerada de Azevedo por Byron e suas
personagens, o que é perfeitamente cabível, pelo fato do byronismo, ao chegar no Brasil, ter
se transformado em coqueluche. Assim, quando aqui se instala essa corrente literária, ocorre
algo de inusitado e transforma-se em prática comum entre os estudantes-poeta da Faculdade
de Direito de São Paulo. No entanto, quando Azevedo aproxima-se dela e começa a valorizá-
la, ele talvez não pudesse supor que, ao estudarem sua obra, os críticos a tomariam como
reflexo da prática literária de Byron:
Quanto ao Brasil, o fenômeno do byronismo chegou com cerca de quinze
anos de atraso e tomou proporções mais convencionais e artificiais que
algures em virtude do meio acanhado e limitado em que se ensaiou sua
aclimatação, dando margem a um bitolamento maior na imitação do que se
considerava como sendo de Byron, ao qual se passou também a associar
Musset. O perigo deformador da corrente byroniana foi tão grande que a
própria imagem de Álvares de Azevedo ficou prejudicada por ela. (FARIA,
1973, p. 229).
Na análise do poema Jacques Rolla, Azevedo aproxima o escritor francês da tradição
ocidental e, em específico, a Byron. Ele relaciona o poema à obra do poeta inglês, mas não o
acusa de plagiário, como havia feito a crítica francesa. Ele simplesmente diz que uma
harmonia consonante nas poesias de Byron e Musset e que o poema “[…] Rolla sobressai
como um troféu, como a sombra mais sublime de Byron” (AZEVEDO, 2000, p 680). Por esse
caminho, Azevedo expressa uma valorização da poesia de Musset, que não implica no
problema da imitação, apenas na afinidade e pontos de contatos que o aproxima de Byron.
Com relação a isso, a autora de Astarte e a espiral, Maria Alice de Oliveira Faria, se coloca
em uma posição interessante:
Acredito que a interpretação de Rolla como a ‘sombra mais sublime de
Byron’ não pode ser encarada de forma simplista, como uma visão parcial da
obra de Musset ou como um erro de interpretação. Parece-me, ao contrário,
que ela procede de uma tomada de posição consciente da parte de Álvares de
Azevedo que, no momento da interpretação-tradução daquele poema elegeu
deliberadamente o aspecto byroniano e para ele transpôs impressões pessoais
de obras anteriores impregnados daquela corrente.
122
Por outro lado, nada nos prova que essa posição de Álvares de Azevedo
fosse definitiva. Ela poderia coincidir apenas com um momento de sua vida
interior, como a expressão de horas de intensa vivência byroniana, levando-o
a projetar nos poetas lidos nesse período sua exaltação interior, ampliada
pela moda acadêmica no momento. E, neste sentido, encontrava nos
primeiros poemas de Musset um terreno propício. O pouco que nos deixou
sobre suas idéias quanto ao teatro de Musset, aos provérbios, a Fantasio
sobretudo, já é suficiente para nos mostrar que ele sabia compreender
também o poeta francês em manifestações que muito pouco tiveram com a
corrente byroniana, não tendo talvez tido ocasião e tempo de deixar mais
documentos sobre esse assunto.
Concluindo sobre este ponto, parece-me finalmente que a referida admiração
mítica e mística de Álvares de Azevedo por Byron, justifica como não sendo
pejorativa a classificação de Musset como a “sombra mais sublime de
Byron”. Ao contrário, trata-se da valorização do poeta francês. Por isso,
mesmo ele se apressa em ressaltar a originalidade de Musset e a defendê-lo
de plágio. (FARIA, 1973, p. 295-296).
O método de análise de Azevedo é pautado nas comparações, em que ele associa tanto
os escritores quanto suas obras. Desse modo, Azevedo em seu texto “Alfred de Musset /
Jacques Rolla” aproxima bastante Musset de Byron, visto que ele relaciona o personagem do
poema ao herói byroniano. Porém não é só a ele, pois há também uma grande preocupação, na
tradução-análise do poema, em aproximá-lo de outros grandes autores. Na opinião do
ensaísta, não é em Byron que Musset encontra afinidade e baseia seu herói, ele faz uma
mistura maior, desde Hoffmann, Lamartine até Hugo. Por esse caminho, talvez, o poeta
brasileiro buscasse afastar, num primeiro momento, a hipótese, de inteira aproximação de
Musset com relação a Byron, que expressasse uma irrefutável imitação:
[...] é ele [o poema “Jacques Rolla”] um dos primores da poesia íntima à
feição dos solilóquios de Shakespeare, da melodia selvagem das paixões
naquela testa negra de Otelo, a refrescar-se nas brisas das lagunas, das febres
do ciúme: um tipo de beleza entre aquela tendência à exageração e a uma
originalidade lavrada de arabescos, abismada em seu deleite de negridões;
porque ele soube, sem despir sua personalidade literária, inda retemperar seu
gênio nas fantasias alemãs de Hoffmann, e na assonia de Lamartine como
o Hernani de Hugo, no enrijar seu gládio de bandido nas torrentes das
montanhas (AZEVEDO, 2000, p. 680).
O segundo fragmento apresenta o protagonista do poema. Nele, Azevedo ressalta
algumas características que estão muito próximas do típico herói byroniano, pois evidencia a
vida libertina, cheia de vícios de Rolla, que, por sua vez, se vê entregue à própria sorte, já que
“não é ele que mareia o norte de seu viver: rojam-no a eito paixões” (AZEVEDO, 2000, p.
681). De certa forma, por meio de uma visão bastante determinista, Azevedo expressa que o
herói não tem culpa, já que o meio favorece sua perdição: a própria Paris é velha e viciosa.
Por outro lado, além dessa aproximação com o arquétipo byronico, o ensaísta diz que
no herói “mais alguma coisa”, uma vez que “Rolla é um caráter de poeta um Faust cujo
123
Mefistófeles é o lenocínio da perdição um semblante onde nos lábios, entre o ditirambo
ebrioso, sussurra a medo a canção infantil do primeiro amor […]” (AZEVEDO, 2000, p. 681).
Com isso, o autor sugere uma mistura de perdição e inocência no mesmo personagem,
rebaixamento e elevação, o que ficará também evidenciado em Marion. Nesse sentido,
podemos ver que a conjugação dos opostos, a prática dual, ressaltada em outros escritores no
início do ensaio, também se encontra no poema de Musset.
No fragmento três, denominado “segundo artigo”, Azevedo apresenta a personagem
Marion como “[...] a mulher da última noite de Rolla, não imagineis a Messalina impudica
os lábios salpicados do rir altivo da cortesã [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 683). No entanto, essa
mesma mulher, essa prostituta, é ainda muito jovem, e pela tradução-análise de Azevedo “é
criança que dorme em véus macios / De quinze anos de infante quase moça! / Inda em
fresco botão é rosa abrindo!” (MUSSET apud AZEVEDO, 2000, p. 684). Desse modo, a
mulher que nos é apresentada como devassa (visto que se trata de uma prostituta), também
carrega traço de candura, de pureza principalmente quando está dormindo, “Não indagam aí?
Sono de infância, / que puro que tu és! Céu, a beleza” (MUSSET apud AZEVEDO, 2000, p.
684).
Segundo Azevedo, para compreendermos a personagem Marion, para entendermos as
comparações tecidas por Musset, que pintou sua bela personagem (embora cortesã) próxima
de uma “madona romana”, ou seja,
para romancear os matizes do poetar orvalhoso de Musset foram de mister
magias daqueles versos da “Sesta” de Garrett. [Isto é,] o mimo da pintura de
Marion adormecida e nua, o colorido daquelas tintas vaporosas, [é] como as
enevoa a melodia de Moore e Samuel Rogers, como as cismara Jocelyn à
vista de Laurence, naquele desmaio, que nos contornos mentidos de menino
loiro revelou-lhe os esmeros da virgem; – tudo aquilo ao sombreado azulado
dos véus do leito certo que é o desvelo da imaginação a mais suave: e a
nudez cetinosa de uma forma infantil que se branqueia no vago das cores das
Madonas Romanas (AZEVEDO, 2000, p. 684-685).
Na seqüência do ensaio, o abordaremos o quarto fragmento, “Ao do leito”; o
quinto, “Últimas horas” e o sexto, “Madrugada”, pois são praticamente tradução do poema e
descrevem a noite amorosa de Rolla e Marion, bem como o suicídio do herói. No entanto,
entraremos no sétimo e último fragmento desse “segundo artigo”, em que Azevedo faz uma
analogia com a tragédia Romeu e Julieta. Contudo, o nosso interesse não é mostrar a
comparação que ele faz com a peça de Shakespeare, mas delinear a estreita relação entre o
crítico e o escritor, pois Azevedo transcreve parte desse texto de crítica para o seu livro
Macário, ou vice-versa. Em “Alfredo de Musset/Jacques Rolla” encontramos:
124
Oh! acordar como Julieta com seu Romeu pálido no seio! Tê-lo por ventura
pressentido num sonho a debruçar a cabeça romântica sobre seus lábios,
sobre seus beijos, sobre seu seio de anjo e acordar com ela num túmulo
em vez de um leito com as roupas longas e brancas da noiva da morte em
lugar da sua coroa nupcial de amante de Romeu! Tê-lo ouvido gemer à noite,
pousar os lábios desmaiados sobre sua fronte... E depois apertá-lo embalde
nos braços, procurar-lhe insana pelos lábios o último calor da vida, ou um
saibo de veneno para a ceia! Pobre moça! amou um instante como Julieta:
e não tivera a conversa ao luar no jardim de Capuleto, não bebera a melodia
das falas do Italiano, o sussurro daquele quebro amoroso em lábios de um
anjo, – nem a longa despedida, no último abraço que nem houvera força para
soltá-lo! – pensar que não eram as cotovias, mas rouxinol do vale que
gorjeava nas romeiras, que o revérbero de luz nas brancas nuvens do Oriente
e ao apagar das estrelas não representava o dia [...]. (AZEVEDO, 2000, p.
697).
Em Macário, esse trecho está bem próximo, com pequenas alterações:
Oh! acordar como Julieta com seu Romeu pálido no seio, com a cabeça
romântica ainda doirada do último reflexo do crepúsculo da vida, acordar
dos sonhos de noiva no sudário da morte, com os goivos murchos dos
finados na fronte em vez da coroa nupcial cheirosa da amante de Romeu!
Apertá-lo embalde ao seio ardente, banhar-lhe de lágrimas de fogo as faces
pálidas, e de beijos os lábios frios, e procurar-lhe insana pelos lábios um
derradeiro assomo de vida ou uma gota de veneno para ela. É duro, é triste! é
um caso que merece as lágrimas mais doloridas dos olhos. Mas dói ainda
mais fundo acordar dos sonhos esperançosos com o cadáver frio das
esperanças sobre o peito! Pobre Penseroso! Amaste um instante que foi tua
vida como Julieta e Romeu e não tiveste a conversa ao luar no jardim de
Capuleto, não tremeste nas falas amorosas da primeira noite de amor, e não
soubeste que doces que são os beijos de longa despedida, e o pensar que não
são as aves da manhã, mas o rouxinol do vale quem gorjeia nas palmeiras,
que revérbero da luz branca nas nuvens do Oriente, e o apagar das estrelas
não crepusculava o dia [...] (AZEVEDO, 2000, p. 546).
Como havíamos ressaltado no início deste capítulo, a linguagem de parte da prática
crítica de Azevedo está muito próxima de sua obra literária. Contudo, não acreditamos que
isso prejudique ou dissipe o discurso crítico ou lhe apenas uma feição crítica, mas que o
ensaio demonstra uma estreita relação, em Álvares de Azevedo, dessas duas práticas textuais,
que nos possibilitam abranger um entendimento da produção artística do poeta.
No “quarto artigo”, o oitavo fragmento, assinalado como “Síntese”, Álvares de
Azevedo ressalta que todos os pecados e cios são perdoados, quando antes da morte um
“beijo puro de amor”. A morte parece ser a salvação, ou melhor, ela é, na visão romântica, (e
parece que para Azevedo também), a responsável pela purificação dos erros humanos. Neste
aspecto, a religião e mais especificamente o cristianismo favoreceram tal posição.
Rolla finda, como a Deidâmia de Frank na Taça e lábios, no primeiro beijo
puro de amor. O último alento de vida se lhe vapora, como a Juana nos
braços de D. Paez. Foi num beijo como o do Cavaleiro Negro ao desmaio de
125
Hermengarda um daqueles beijos “primeiros e últimos” na expressão de
Alexandre Herculano “purificados pelo hálito da morte que se aproxima,
inocente e santo como o de dois querubins ao dizer-lhe o Criador: existi!”
[...] No incrédulo do frontispício sublime de Rolla, a morte vem sempre de
envolta no voluptuoso de um beijo, como ao suicida oriental no vapor
ebriativo do ópio. O Crime se apura na morte ao crisol do amor.
(AZEVEDO, 2000, p. 698).
Numa apreciação comparativa do poema e do escritor francês, para enfim apontar um
dualismo no herói do poema (“Jacques Rolla”), Azevedo afirma que
no descrer de Musset (como ainda às vezes no de Byron) ao desfreio daquele
poetar que soube transpor os limiares do prostíbulo sem o sarcasmo cínico
dos lábios amargos de George Grabble e que, como o Jocelyn de
Lamartine, teve ainda lágrimas pela visão de uma mulher perdida – não
reçuma quase a furto a nuvem das esperanças? uma como fé que adeja, de
que o leito tumular é também um leito de amor, como o fingira a tradição de
Heloísa e Abailard? [...].
O herói do poema é um suicida; no gozo devasso afoga-se ele como uma ave
do céu caída no mar. E contudo Rolla é belo, belo ainda dormindo na
crassidão do alcouce sentado na borda do leito venal inda morto do
cepticismo e saciedade sob sua grinalda da ceia crapulosa. (AZEVEDO,
2000, p. 699, grifo nosso).
Podemos notar, assim, neste fragmento, uma explícita referência ao sistema dual a
elevação e o rebaixamento bem como a aspiração do infinito, que o movimento romântico
sugere. Com isso, Azevedo além de utilizá-lo em sua obra literária também a reconheceu em
obras de outros escritores:
Se Jacques é belo – e mesmo Marion – é que em meio àquelas trevas há uma
réstia de sol, um eflúvio de poesia que se refrata e iria pela sombra, como
a centelha fugitiva do facho que sacode no escuro das cavernas batendo na
faceta do cristal da estalactite. Não há o poema do materialismo impuro a
revolver-se como um verme em lodaçal. Não: é antes uma luta entre o
corpo e a alma entre a morte e a vida entre o céu e a terra entre as
melodias de Ariel e o fel do Calibã perdido nos sonhos das noites de verão
de Shakespeare, – entre a negridão da noite e a luz doirada da lâmpada mal
guardada ao róseo dos dedos transparentes da virgem que passa pelas ousias
do claustro a desoras é o pleito, agro e renhido sim das aspirações ao
céu. (AZEVEDO, 2000, p. 699, grifo nosso).
Desse modo, Azevedo confirma que em “Jacques Rolla” uma duplicidade, como
ele havia estabelecido no início de seu ensaio, “o gênio é como o Jano latino: tem duas faces”
(AZEVEDO, 2000, p. 678). Assim, Musset seria como os demais escritores que utilizavam
em seu poema tanto elementos sublimes, quanto baixos, inocência e devassidão, e com isso
delinearia assim o sistema dual, pelo uso de oposições, que não se excluem, mas que se
conjugam (e que inserimos as obras Lira dos Vinte Anos e Macário) em favor de um
projeto maior, ou seja, “a binomia”, para o nosso poeta.
126
No último fragmento do ensaio, Azevedo construiu um texto em que procura assinalar
a descrença na obra de Byron, Shelley, Voltaire e Musset. No entanto, o método de análise
empregado é um misto de vida e obra, e sempre partindo da comparação de Byron com outros
escritores. Deste modo, por meio de uma análise literária, biográfica e histórica, o crítico
delineia as obras e os poetas. Contudo, mesmo com esse tipo de leitura, ele estabelece um
diálogo bem interessante entre obra, história e vida desses escritores.
Antes de prosseguirmos com o ensaio, gostaríamos de evidenciar alguns pontos, como
por exemplo, o papel que Byron exerceu no Romantismo, o carisma que despertava em outros
poetas e nos leitores em geral. Ele foi o ponto de partida de muitos escritores e contribuiu para
disseminar uma literatura ao gosto do povo. É interessante ressaltar, ainda, que Azevedo
conheceu muito bem a obra de Byron, porém desprende um certo exagero e admiração por
aquele ‘bardo’. Por outro lado, quando o nosso poeta demonstra essa fixação exagerada por
ele, acreditamos que era um fato comum, tanto com Azevedo, quanto com poetas de nosso
país e de outros também:
Na verdade, Byron não pertence, e nem pode pertencer aos domínios
exclusivos da crítica literária. Como poeta-símbolo de sua época, como
propagador de uma moda avassaladora que atingiu não só a literatura, mas as
artes plásticas, a música, o vestuário, e a própria maneira de ser, pensar e
agir, extravasou esse círculo limitado e passou a ser objeto também as
sociologia, da psicologia, da história, da filosofia. É o único poeta cujo nome
figura como título de um capítulo na História da Filosofia Ocidental de
Bertrand Russel. Esse autor considera-o figura importante entre os homens
que funcionam ‘como forças, como causas de mudança na estrutura social,
nos juízos de valor, ou na atitude intelectual’ (BARBOSA, 1975, p. 16).
Por certo, Byron tornou-se um poeta de sucesso, um verdadeiro autor de best-seller:
Os dois primeiros cantos de Childe Harold foram publicados em fevereiro de
1812, dos quais o editor distribuía provas e adiantava exemplares. O êxito do
livro foi imenso. Segundo o próprio Byron e isso aos 24 anos certa
manhã acordei e descobri que estava famoso”. O poema tocou o espírito do
tempo, como assinala o biografo: “Em 1812 um poema narrativo romanesco
era quase tão popular, senão tão popular, como um romance do mesmo
caráter; e um poema por um lorde romanesco tinha, por certo, um interesse
adicional”. O êxito, frisa-se, foi quase sem paralelo, com sete edições
impressas em quatro semanas; mais de dez mil exemplares foram pedidos
num dia. Tomava-se o poema como autobiográfico (RAMOS, 1989, p.
11).
O poeta inglês foi um fenômeno no quadro mundial da literatura, tanto que como
explicita Onédia Barbosa (1975, p. 16): Byronismo é um termo que faz parte da história de
quase todas as literaturas ocidentais. Byronismo foi influência literária, foi moda literária,
mas, mais que isso foi um verdadeiro estado de espírito que dominou o século XIX”. Ou seja,
“Byron encarnou assim o poeta romântico por excelência, e foi uma figura mítica do século
127
XIX, com popularidade só comparável à que desfrutam em nosso tempo as estrelas de cinema
e os cantores de música popular, figuras míticas do século XX” (BARBOSA, 1975, p. 17).
Por esse caminho criou-se o mito byroniano, divulgado pelo Romantismo e acolhido
por muitos escritores. Mas, se de um lado, este mito contribuiu muito para difundir a obra de
Byron, do outro, ele também serviu para estereotipá-la e prejudicá-la. Segundo Onédia
Barbosa, o mito byroniano é bastante amplo, no entanto, a autora de Byron no Brasil:
Traduções estabeleceu algumas características dele:
O mito byroniano tem várias facetas, mas compreende principalmente os
seguintes aspectos:
1- o poeta solitário, incompreendido, desencantado da vida e dos homens,
dominado pela melancolia e pelo ceticismo.
2- o campeão da liberdade, o inimigo da tirania.
3- o jovem belo e nobre, de passado misterioso e vida dissoluta (BARBOSA,
1975, p. 17).
De certa forma, o poeta brasileiro ficou conhecido sob alguns aspectos desse mito, por
meio de alguns trabalhos críticos, que associaram e cristalizaram tanto na sua recepção crítica,
quanto no cânone das histórias literárias a sua melancolia e o seu cepticismo com os de
Byron.
A respeito do crítico Azevedo vale lembrar que, ao mesmo tempo em que ele cita o
típico herói byroniano, como Lara, Harold e Giaour, cita também Don Juan. Deste modo, é
possível ver um bom conhecimento dessa literatura, pois o poeta divide as obras de Byron em
duas: a obra “Byron byroniano” e “Byron não-byroniano”. À primeira cabe Childe Harold,
The Giaour, The Bride of Abydos, The Corsair, Lara, The Siege of Corinth, Parisina,
Mazeppa, Manfred, Cain entre outros. Dentre as não byronianas estariam Beppo, The Vision
of Judgement e Don Juan (BARBOSA, 1975).
Na seqüência do ensaio, Azevedo, como propusera a fazer, isto é, provar a descrença
do poeta inglês, delineia a biografia de Byron e de sua família, compreendendo desde a
infância até a idade adulta. Partindo daí, o ensaísta estabelece um paralelo entre a existência
de Byron e os fatos da história. Na contemporaneidade do poeta inglês, segundo o crítico, a
história era riquíssima de fatos, como as conquistas da revolução francesa que, além de
estimular um sonho de liberdade, levou a burguesia ao poder.
Byron, que é filho do século XIX, na visão do ensaísta, ainda recebeu influência tanto
daquela revolução quanto do período que compreende a Idade Média. Na combinação desses
acontecimentos, a poesia está imersa em vários fatores determinantes, que refletem não a
sua época, mas todas as outras passadas. Nesse efervescer de acontecimentos, a poesia surge,
os homens vêm, amadurecem, “acordam a vida”:
128
A época que produziu Byron e Werner se treslada em muita fronte de poeta
de então. – E em toda essa literatura transverbera no seu enoitado, no incerto
de suas tendências, uma daquelas horas solenes de transformação da vida
social. A Europa do seu chão ainda quente do sangue das revoluções, sentia
mil visões surgirem [...]. Aquele turbilhão doidejava [...]. As imaginações
doidejavam-se, e o suplício era como os dos tredos da Idade Média [...].
Os poemas de Byron são o espelho daquela época toda. (AZEVEDO, 2000,
p. 702).
O crítico valoriza a biografia de Byron, bem como as dos demais escritores, a fim de
relacioná-las com as produções literárias. T. S. Eliot (1957), por exemplo, diz que realmente é
difícil dissociar a vida do poeta inglês de sua obra, pois Byron construiu para si uma imagem
bastante polêmica. Segundo Onédia Barboza, isso contribuiu para que crítica o veja como
[...] uma das figuras mais controvertidas da literatura ocidental. Nenhum
outro autor tem sido tão incensado e tão hostilizado. E os ataques muitas
vezes, pretendendo ser endereçados à sua obra, visam na verdade a sua
personalidade e o seu caráter. Por outro lado, muitas das peças laudatórias
não passam de exagerados protestos de veneração ao Rei dos Românticos.
A crítica Inglesa, como a própria sociedade inglesa, tratou-o no passado
apaixonadamente com extremos de amor e ódio. Acabada a fase dos afetos
violentos e exaltados, passou a cultivar um sentimento de desprezo que
abrangia não só o poeta, mas também seus admiradores europeus, que, dizia-
se, nunca teriam sido capazes de distinguir o falso do verdadeiro no seu
trabalho ou na sua personalidade (BARBOSA, 1975, p. 15).
Outro fator recorrente sobre a vida do escritor de Beppo e sua poesia é que “o biógrafo
de Byron chega a duvidar de que, não fosse a viagem, Byron pudesse ter escrito esses poemas,
pois ele não era ‘um poeta imaginativo, dependia da experiência da autêntica emoção
pessoal’” (RAMOS apud BARBOSA, 1975, p.11).
Pautado no método de leitura biográfico, Azevedo embaralha a experiência pessoal de
Byron com a obra, para ressaltar a crença ou a descrença como determinantes de sua poética:
O moço estudante de Eton fora o amante de Maria Chaworth [...]. O
casamento do lord com miss Milbank, a separação misteriosa que se lhe
seguiu [...], as noites do Lovelace poeta tinha ainda um sonho por aquele
ideal que ele buscava entre todas, [...] nos lábios do Don Juan vagueavam
murmúrios, e a harmonia sussurrava por aquela visão que ele buscara em
Chaworth, [...] desde os anjos loiros do norte às fadas morenas do Tejo, do
Manzanares, as madonas do sul da Itália, e as virgens formosas doiradas à
vida aos sóis do Oriente [...].
[...].
Byron o peregrino ente, revelou em Manfredo e Arnold, em Alp e Selim –
o bastardo, a farpa de um pungir muito íntimo. Quando a ânsia remordia,
então a exasperação quando a fibra silenciava e o uivar tigrino da dor que
extenua se enlanguescia nas harmonias fugitivas do passado os sonhos, as
crenças volviam. (AZEVEDO, 2000, p. 702-703).
Já Shelley, segundo Azevedo, era um cético, de uma incredulidade desmesurada,
maior inclusive que a de Byron. A partir daí, o ensaísta estabelece um detalhamento e defesa
129
da descrença na obra desse autor, mas sempre recorrendo à biografia, como fizera com o
escritor de Don Juan:
Shelley é a descrença mas denuada e macilenta fria como um túmulo. É
o cético apertando com os braços no peito vazio a coroa seca das esperanças
descridas.
[...]
[...] o coração de Shelley se enrijara daquele engelhar precoz que rói como
um verme, e desvia nas veias com a seiva de morte do Hamlet e a vitalidade
do veneno de Byron. [...] No ar quente da Itália, o seu último murmúrio
perdeu-se no arfar monótono do mar, depois que Byron e Trelawney, nas
praias do Mediterrâneo azul, ao sol puro, ao perfume das flores e dos
laranjais, sepultaram-no em leito de areia [...]
Shelley era ainda mais céptico que seu amigo (AZEVEDO, 2000, p. 703-
704).
Voltaire, aponta Azevedo (2000, p. 704), “[...] tinha o fel de nascença. Era um cancro
inato com que abrolhara a vida. Victor Hugo disse: ‘O rir de Byron não é o de Voltaire: Don
Juan não é o contrapeso de Candide: Voltaire não sofrera’”. Com isso, ele assinala que o
sofrimento, aquele rir, as ironias, as goas são geradas espontaneamente em Voltaire, mas
em Byron e Shelley são traços característicos de experiência particular. Assim sendo, Álvares
de Azevedo pontua Shelley como um poeta experiente, que viveu, sentiu, amou várias
mulheres e transpôs para sua obra a realização plena desse amor, bem como todos seus
pesares. Com Byron o mesmo se deu, pois as experiências vividas e sentidas, as loucuras
pessoais, do ponto de vista do ensaísta, são semelhantes às dos heróis de seus poemas
narrativos.
Por meio de suas analogias, o crítico sugere então que a descrença seria um reflexo da
experiência pessoal, em que a vida ensina a duvidar de tudo. Por esse caminho, Azevedo
também inclui Musset, mas adverte que
a descrença de Musset é mais suave, mais aérea, de uma melodia que canta
intimamente. É que o moço autor das Confissões de um filho do século
sonhou mais que sofreu; teve mais agonias no cérebro que no coração; mais
insônias de febre às do cavaleiro Lara e da cabeça linda e desgrenhada do
Giaour, que à realidade. Foi ao amanhecer de um sonho assombrado pelos
cantos de Don Juan, que ele acordou incrédulo (AZEVEDO, 2000, p. 704).
Mais uma vez, como no início do ensaio “Alfredo de Musset / Jacques Rolla”, nós
temos a comparação entre Musset e Byron, entretanto, pelas colocações do crítico, eles são
diferentes. Mesmo parte da descrença do escritor francês, provinda do autor de Don Juan,
apresentaria, segundo Azevedo, certas dessemelhanças. Contudo, Álvares de Azevedo acusa
em Musset um fato, que a crítica brasileira reservou a ele: “sonhou mais que sofreu”. Vimos
no primeiro capítulo desse trabalho que os estudiosos da obra do poeta paulista como
130
Machado de Assis afirmou que: “[...] ele conhecia a vida pelos livros [...]” (ASSIS, 2000, p.
25); Sílvio Romero, disse que: “vida quase toda subjetiva, agitada pela leitura, não teve,
repito, ensejo de amar, nem de gozar a farta” (ROMERO, 2000, p. 30); José Veríssimo
declarou que: “[...] pela imaginação ao menos, começou a viver tal vida na qual, com suas
nativas inclinações, entrou muita literatura. [...]. Da combinação das próprias tendências com
a imitação literária, criou-se uma vida factícia” (VERÍSSIMO, 2000, p. 43) e Mário de
Andrade chega a afirmar que o escritor nunca teve uma experiência concreta do amor carnal
etc. Enfim, de um modo geral, os estudiosos anunciam que Azevedo sofreu, sentiu e foi
satânico apenas na imaginação.
Desse modo, como podemos notar no trecho que cita a descrença de Musset, o nosso
poeta também utiliza o método biográfico na análise da obra do escritor francês, metodologia
esta que será retomada pelos críticos ao estudarem sua produção literária.
Por meio de uma análise comparativa, Azevedo, contudo, explicita que uma
diferença entre a descrença de Byron e a de Musset, ainda que este tenha buscado inspirações
no poeta inglês. Assim procedendo, o escritor brasileiro retoma sua posição inicial de que
Musset não é um plagiário da obra de Byron:
[...] A diferença de Byron a Musset nesse ponto de vista, é que Byron
procurou no poeta de Joana d’Arc um sarcasmo que se aunasse com o dele,
uma alma doída como a sua. Musset com o cérebro inda quente das
inspirações do bardo inglês, buscou no excitado dos seus sonhos, na sua
imaginação de poeta as aparições que lhe assomaram lutuosas e sangrentas.
Contudo, como o dissemos antes, de Musset a Byron a relação não é um
plágio, uma cópia. É porventura uma inspiração. A influência do nobre
descendente dos Northmans do duque Guilherme, no sonhador de Pórcia e
Frank, é como a daqueles sons que se agravam, ainda apesar da vontade, na
memória, e acordam melodias secretas como o vento da noite nas folhas
da floresta. É a teoria de Platão, uma idéia que desperta, uma idéia que
descobre um relevo àquela folha metálica encoberta de cera, do símile do
inatismo acadêmico. (AZEVEDO, 2000, p. 704-705).
Todo o interesse de Azevedo por Musset, acreditamos que, não se reduz a análise
empreendida em seu ensaio, visto que ele foi um leitor voraz da obra desse escritor. Mesmo
porque, ele estabeleceu uma leitura bem contundente do poema “Jacques Rolla”, mesmo
valorizando determinados aspectos do mito byroniano ou sugerindo alguma reminiscência da
teoria dos contrastes, de Victor Hugo.
No entanto, o dualismo sistêmico apresentado em sua apreciação crítica está mais
próximo (e aqui diferimos de Antonio Candido (2000, v. 2., p. 320), que vê no estudo sobre
“Jacques Rolla”, “[...] a adesão à teoria dos contrastes, que dos brasileiros é o único a
proclamar, fundado em Victor Hugo e sua obra antitética [...]”) da teoria de Schlegel, expressa
131
pela ironia, que estabelece a prática e a combinação dos opostos, elevação e rebaixamento,
que não se excluem, ao contrário, se complementam sem a necessidade de fusão num
momento, num só lugar. Nesse sentido, acreditamos que há um diálogo bem próximo quanto à
execução de sua sistematização dual, a “binomia”, o que contribui para sugerirmos sua
maturidade como poeta e crítico.
Para concluir, podemos dizer que Álvares de Azevedo, mais do que apreciar e admirar
Byron e Musset, soube reconhecer as suas práticas literárias, reafirmadas pelas enormes
referências aos temas desenvolvidos por eles. Vê-se, ainda, que o escritor soube se articular
muito bem em seu ensaio, ao desenvolver uma investigação profunda do movimento
romântico, e da própria questão de influência de um escritor em outro, como é perceptível
com os questionamentos acerca da originalidade e do plágio.
2.3 - O ensaio “George Sand / Aldo o Rimador.
Antes de dar início ao estudo de Azevedo, gostaríamos de tecer alguns comentários
sobre algumas semelhanças do ensaio “George Sand / Aldo o Rimadorcom um trecho de O
Conde Lopo, (contudo não queremos aproximar o discurso do ensaísta com a voz do eu-lírico,
apenas sugerir uma conformidade presente nos dois discursos). Neste excerto, podemos
relacionar muitas das colocações que o ensaísta faz em seu texto crítico, com tantas
similaridades de idéias, que é possível perceber uma certa consonância de juízos sobre a
escritora George Sand, tanto em seu estudo literário, quanto em seu poema. Vejamos:
II
A George Sand
1
Lélia ou Consuelo? Espírito de Byron
Em formas belas de mulher ardente,
Alma de brasa a estremecer contornos
De voluptuosos, arquejantes seios,
Voz de mágico cisne em róseos lábios
Que vivos acendeu da orgia a febre,
Gênio sublime d’ideais romances
Cheios de sangue e de blasfêmia acerba,
Como essa tela do pintor flamengo
De sombrios painéis – Rembrandt o pálido
– Onde no claro-escuro em ar trevoso
132
Áurea réstia de luz descai na fronte
De cândida visão.
Mulher sublime
De poemas infernais, d’alma descrida
Em corpo etéreo – Jorge Sand, na terra
Que peito d’homem que te lesse os cantos
E alma de poeta que entender pudesse
Do teu sonhar as harmonias – negras
..........................................................
(AZEVEDO, 2002, p. 394).
Neste trecho, podemos observar que o poeta por meio de uma interrogação busca saber
se o espírito da autora de Valentine estaria mais próximo de Lélia ou Consuelo, sua resposta é
que Sand, enquanto escritora, possui um espírito igual ao de Byron. Ou seja, Sand seria uma
grande romancista, que para Azevedo, Byron é a definição máxima de poeta. Com isso, é
possível perceber que no poema há uma dicção que ressalta as qualidades da escritora, embora
seja contrário a algumas das atitudes de George Sand: “Mulher sublime / De poemas
infernais, d’alma descrida / Em corpo etéreo Jorge Sand [...]” (AZEVEDO, 2002, p. 394).
Posturas notadas, aliás, quando observamos também alguns fragmentos do ensaio.
Álvares de Azevedo, como fizera nos outros dois estudos literários, estruturou o ensaio
“George Sand / Aldo o Rimador em fragmentos (cinco pequenos artigos). Com isso,
Azevedo no primeiro fragmento apresenta a escritora George Sand; no segundo fala da
recepção crítica de Sand e esboça seus juízos acerca da escritora e sua obra; no terceiro
apresenta a peça Aldo o Rimador e inicia uma análise comparativa com o livro Chatterton de
Alfred de Vigny; no quarto fragmento mostra o livro de Vigny, com a análise de alguns
trechos que traduziu, e no quinto faz uma análise dos trechos, que traduziu, do livro de
George Sand.
O texto de Álvares de Azevedo, ainda que escrito em 1850, apresenta algumas
características que o diferenciam da crítica de sua contemporaneidade. Nele nota-se ainda
alguns jargões da “crítica velha”, porém apresenta fatos inusitados que valorizam a escritora
George Sand, bem como sua obra.
É interessante observar como Azevedo inicia o seu texto e como enxerga George
Sand. De certo modo, o escritor brasileiro estabelece as influências de pensadores sobre a
escritora, descreve suas relações políticas e, enfim, demonstra, por meios de vocativos,
características da personalidade e da escrita de George Sand. Nota-se que tal maneira de
enxergar a autora francesa é bastante influenciada por suas vestimentas, bem como por seu
133
comportamento, visto pelos intelectuais de sua época como atitudes puramente masculinas. A
sua luta pela igualdade de sexo/gênero também é um fator determinante dessa visão:
Sand, a duelista, a romancista fogosa que percorrera a sós as ruínas dessa
Itália, onde Byron fizera estacar Childe Harold sobre a cinza de tantas
glórias, [...] Sand, a peregrina, que se apossara tanto de seu caráter viril, que
nem (senão às vezes, na febre de seus delírios feminis, no seu
sentimentalismo apurado) clarear-lhe ao fundo a idéia da mulher –; Sand,
passada apenas do seu
papel de
Byron para o leito de amante daquele; [...] o
poeta das Palavras de um crente [...]. (AZEVEDO, 2000, p. 662-663).
Contudo, Azevedo peca ao afirmar que George Sand encarnou tanto o seu personagem
masculino, que acabou por eliminar a escritora e a mulher que era, uma vez que, segundo a
visão do poeta brasileiro, tais elementos estariam ausentes em sua obra e vida, a não ser
quando Sand demonstra seu “sentimentalismo apurado”, o que ele sugere ser sentimento
característico da mulher.
Figura 6: George Sand, vovó recatada. Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Imagem:Sand-Nadar.png>.
Acesso em 23/06/2007, às 19h40.
Bem a gosto romântico e ao estilo de Azevedo, o texto é construído na tentativa de
avaliar o trabalho da escritora por meio de uma aproximação comparativa e, de certo modo,
134
de influência de um autor sobre outro. Nesse sentido, Azevedo estabelece relações entre
George Sand e poetas como Byron. No entanto, o crítico afirma que não uma assonância,
uma proximidade da escritora francesa com o poeta inglês como tivera Musset:
Contudo, Sand não está tanto para Byron como Musset. Se lhe falta aquela
melodia lamartiniana nela mais fogo –, e aquela idéia funda que fazia
dizer a Alphonse Karr na sua sede de originalidade:
“É
preciosa coisa a
individualidade. Fora melhor nada ser e ser si próprio, que ressumbrar a
caricatura, ou a prova pálida de um grande homem – fora desesperança
parecer com Voltaire, Napoleão ou Byron”. (AZEVEDO, 2000, p. 663, grifo
do autor).
É interessante notar como a individualidade de George Sand, bem como seu perfil, são
construídos por Azevedo. É pautando nas melhores características dos grandes autores que o
poeta elege a personalidade de Sand enquanto escritora:
Eis o que basta. Juntai-lhe toda a influência do gênio de Shakespeare e o da
realidade de Lara, o misticismo que a levava ao gênio de Listz, Weber e
Meyerbeer, aos estudos de análise profunda de Lavater – aquele caráter
singular repassado inda em seu ceticismo de visões, de crenças no
mesmerismo, no sonambulismo magnético ao ponto em que Cagliostro
talvez o cria – o desregrado daquele viver passado entre o ebrioso do latakia,
nos cachimbos turcos, e as inspirações da música de Listz, aquela
fronte
calva e bela de Everard surcada das incisões perpendiculares que Lavater
leu nas altas capacidades – e o amor de Lamennais e após as longas noites
a (bem-vindos sonhos onde corriam bem-vindas as sombras de Rafael e
Tebaldeu os lindos) o passado do vale negro os salgueirais do rio as
leituras ebriosas de Corina, Atala, Millevoye e a Ilíada aquelas tantas
mulheres de seus romances onde ela encarnou, na sua poesia italiana, sua
alma de Árabe ligai tudo isso numa idéia, numa individualidade e tereis
G. Sand. (AZEVEDO, 2000, p. 664).
Quando vieram a público dois livros Indiana e Valentine da autoria de um tal
George Sand, todos supuseram tratar-se de um homem maduro e experiente, profundo
conhecedor dos costumes e hábitos da sociedade francesa. Contudo, a obra de George Sand,
desde seus primeiros volumes, provocou estranheza pelos temas que abordava. As temáticas
dos livros eram ousadas demais para um tempo em que às mulheres eram destinados os papéis
de esposa, mãe e dona de casa. De certo modo, os livros estigmatizavam com amargura e
veemência o universo fechado do matrimônio, a tirania dos maridos sobre as esposas frágeis e
temerosas etc
31
.
Contudo, o pioneirismo de George Sand lhe custou bastante caro. Os críticos da época
laçaram mão de todo arsenal belicoso da baixaria e a rojaram ao lamaçal. Essa atitude era
31
O conteúdo dos livros de George Sand era tão polêmico que em 1863 o Santo Oficio colocou a obra dela no
Índex Librorum Prohibitorum. O famoso “Índice dos livros proibidos” criado no século 16, para listar obras
consideradas perigosas para a e a moral dos cristãos. Contudo, é interessante ver que a ousadia da obra de
Sand, por mais ousada que fosse, residia no fato de ser escrita por uma mulher. Acontecimento que ultrapassava
todas as barreiras impostas por aquela sociedade.
135
evidente, primeiro por Sand ser mulher, segundo pelo comportamento ativo na luta pelos
direitos de igualdade. E depois, o estudo e a prática da literatura sempre foram feitos por
homens que estabeleceram os conceitos teóricos a respeito da posição da mulher na
sociedade.
A postura de Azevedo perante a escritora é no mínimo curiosa. Quando a maioria
declarava guerra pessoal a Sand, Álvares acredita que não é por meio de ofensas pessoais que
se entenderá sua obra:
A Revista de Edimburgo anatematizou G. Sand. Pobre Revista de
Edimburgo! depois de Byron como o Vaticano após Lutero teus raios
que são? Ali não é o romance que o jornal ataca a crítica vai além
a
vida, a honra da pobre mulher é rojada ao leito de lama que o sucessor de
Jeffrey lhe cavara com as mãos. Sand é uma perdida lhe faltou a
palavra shakespeariana – o cinismo de Otelo abafando Desdêmona –
chamá-
la a whore... (AZEVEDO, 2000, p. 664).
Ofensas pessoais sobre a escritora George Sand vinham de todos os lados. Revistas,
escritores, filósofos não a pouparam, a exemplo Friedrich Nietzsche, que chamava escritora
como Sand de: “[...] terrível vaca de escrever”. (NIETZSCHE apud FRIEIRO, 1941, p. 146).
Nisso vê-se que numa época em que a mulher se encontrava inteiramente subjugada pela
autoridade masculina, uma voz dissonante como era a de Sand, mesmo quando era ouvida,
não provocaria mudanças, mas reações que faziam o possível para manchar a sua imagem e,
por fim, tanto classificá-la como uma escritora menor, quanto calar a sua voz.
Na seqüência, Azevedo acredita e destaca o que afirmou o crítico Nisard, que, segundo
diz, a escritora teria um egoísmo dos sentidos, bem como a metafísica da matéria como
norteadores de sua escrita. Diante disso, percebe-se que Álvares de Azevedo crê que o estilo
de Sand pauta-se nestes princípios. Para que ele possa explicitar melhor essa sua posição,
Azevedo recorre às idéias daquele crítico, cita também outros críticos e escritores, bem como
referencia obras e temas desenvolvidos por George Sand, com o objetivo de ressaltar a
temática do “amor adúltero”. Todavia, como podemos observar, o desenvolvimento dessa
encadeação de idéias é um embaralhar de citações de nomes e obras, que dificultam o assunto
principal:
O Sr. Nisard convenceu-se mais do seu ministério. Se a crítica se ala nobre é
quando homens daqueles a tratam, quando nas mãos de Sainte-Beuve, Th.
Gautier, Chateaubriand, V. Hugo é ela o treslado de idéias filosóficas – e não
a diatribe a rasgar com mãos ímpias o véu de vestal das criações da poesia.
Embalde a resposta da romancista a Nisard, a expressão dele é verdadeira: a
síntese dos livros da autora de Valentin e Leoni é o egoísmo dos sentidos, a
metafísica da matéria –, o amante é o rei
nos livros dela, o marido se
azumbra, sublimado apenas quando se sacrifica, como Jacques, aos prazeres
de sua mulher com seu amante, e seja-nos lícito aqui estender mais uma
136
idéia do Sr. E. de Girardin, no seu livro de Estudos dramáticos, aquele
Jacques que veio dar o quarto desenlace ao romance dos amores cobiçosos
de um estranho pela mulher casada (após Rousseau que o findara com a
morte de Júlia de Woldemar, Goethe com o suicídio de Werther, Dumas com
o assassinato de Adèle e a devoção de Antony o bastardo) com a morte
voluntária do marido, (sic) nesses volumes o casamento é um escárnio.
Que importa Simon finde por um casamento nem mais nem menos que um
conto de Perrault ou de M
me
d'Aulnoy, como o diz espirituosamente M
me
Dudevant, e no André o pleito não mais pelo amor conjugal que pelo
adúltero? que importa?
não é bastante ir contra o casamento, igualar-lhe o
sacrossanto com o amor adúltero? (AZEVEDO, 2000, p. 664-665, grifo do
autor).
Assim, como é possível notar na citação anterior, a concordância de Álvares de
Azevedo em relação à autora, e às temáticas desenvolvidas por ela, vai até certo ponto. Ele
questiona, embora tente entender que George Sand seja contra o matrimônio
32
. Todavia, para
ele, colocar o “amor adúltero”
33
em seus romances já é algo diferente, para não dizer
inaceitável. Nesse sentido, o poeta ainda carrega traços morais fortes, mesmo dizendo que o
que Sand escreve não o deixa “arrepiado”.
Álvares de Azevedo tenta justificar que o fim da poesia é a beleza, assim, como
pontuara no prefácio em O Conde Lopo que “o fim da poesia é o belo” (AZEVEDO, 2002, p.
369), e, desde que o escritor não “enxurde no lodo da obscenidade”
34
, não motivo para
temer. Por assim dizer, o poeta, mesmo sendo reacionário, busca amenizar seu
conservadorismo ao afirmar que se traços de inspiração de poemas como os “Don Juan” e
32
É interessante notar a postura de George Sand, na “carta à senhorita Leroyer de Chantepie”, frente ao
casamento: Senhorita [...] Detalhes da existência apenas se me apresentam como romances mais ou menos
felizes que conduzem todos a uma conclusão geral: a sociedade deve ser reformada de cima abaixo. Parece-me
que ela se à mais cruel desordem e entre todas as iniqüidades consagradas no seu interior, a mais destacada
parece-me ser as relações de homens e mulheres as quais estão estabelecidas de modo injusto e absurdo. Daí que
não possa aconselhar ninguém a ingressar no casamento, sancionado pela lei civil que continua a sustentar a
dependência, inferioridade e nulidade social da mulher. Passei dez anos em reflexão a respeito deste tema e, após
ter me perguntado porque todos os amores neste mundo, legitimados ou não pela sociedade, eram mais ou menos
infelizes, quaisquer que fossem as qualidades e virtudes das almas neste modo associadas, estou
convencida da
impossibilidade radical da felicidade perfeita e do amor ideal, em condições de desigualdade, inferioridade e de
dependência de um sexo em relação a outro. Seja pela lei, seja por uma moralidade universalmente reconhecida,
seja pela opinião ou pelo preconceito, permanece o fato de que a mulher, tendo se entregado ao
homem está
agrilhoada ou na condição de réu. Agora, a senhorita me pergunta se pode ser feliz através do amor e do
casamento. Não creio que a senhorita será
feliz através de qualquer dos
dois,
disso estou convencida. Porém, se
a senhorita me pergunta em que outras condições a felicidade da mulher pode ser encontrada, dir-lhe-ia que sou
incapaz de despedaçar e remodelar toda a sociedade inteiramente e, bem sabendo que ela durará muito além da
nossa própria breve estada neste mundo, devo colocar a felicidade das mulheres em um futuro no qual
firmemente acredito, no qual deveremos voltar a melhores condições na vida humana, no seio de uma sociedade
mais iluminada, na qual nossas intenções serão melhores compreendidas e nossa dignidade melhor estabelecida”.
Disponível em <htpp:www.velhosamigos.com.br/Coletânea/coletanea22.html>. Acesso em 02/10/2006 às 23:40.
33
A respeito do adultério, Azevedo também se põe contrário a ele, (ou pelo menos nos faz acreditar nisso), numa
carta enviada a seu amigo Silva Nunes, de 27 de agosto de 1848, em que o escritor afirma que o poema Parisina
“é uma das obras mais imorais de Byron, pois é uma madrasta adúltera com seu enteado que ele pinta com as
cores mais românticas possíveis” (AZEVEDO, 2000, p. 808).
34
Azevedo, pelo que demonstra, não é a favor da vertente erótica na literatura de autoria feminina.
137
“Lélia”
35
não motivos para tanto alarde. Mesmo porque, “a missão do poeta é pois o
apostolado da beleza” (AZEVEDO, 2002, p. 369):
Não sou contudo daqueles que se arrepiam com a desenvoltura de Sand,
Tartufo que suma virtuosamente a face nas mãos ante os tesouros da beleza.
A poesia é a beleza desde que o poeta se não enxurde no lodo da
obscenidade, desde que o assunto se lhe não desflore em mãos torpes, seja
embora a sua inspiração essa metafísica da matéria que mana de Don Juan e
Lélia: – que importa? (AZEVEDO, 2000, p. 665).
Azevedo, após questionar e não se mostrar em total acordo com algumas atitudes
literárias de George Sand, busca aspectos apaziguadores, que não a hostilizem, mas a
valorizem enquanto escritora. Assim, o poeta brasileiro ressalta traços positivos de Sand, tais
quais sua postura política e suas qualidades literárias, sem nunca entrar na discussão de que
ela é uma mulher, ou questionar o valor de sua obra por esta ser produzida por alguém do
sexo feminino. Antes, ele discorda das atitudes dos críticos que a espezinharam, mesmo
reconhecendo que ela ousou demais na escrita ao empregar o “amor adúltero” como temática.
Todavia, reconhece que isso não acarreta grandes prejuízos, pois ela traz enormes qualidades
na totalidade de sua obra.
Com isso, Álvares de Azevedo não entra na discussão infrutífera de combate à
escritora, o que ele faz é uma análise de sua obra. Nesse processo, elege o livro Aldo o
rimador
36
como sendo um dos prismas que permite ver a qualidade da escrita de Sand.
também traços que denotam uma consonância e uma aproximação do nosso poeta com a
autora de Aldo o rimador, afinal, Azevedo valorizou muito este tipo de literatura, na qual
figuram as temáticas como o amor, a amada, a morte, a mãe, a miséria do personagem etc. Por
este caminho, o poeta declara que Aldo é um livrinho de poucas páginas. Para nós contudo é
senão o primor de Sand ao menos um prisma onde se lhe iriam os raios mais belos da luz
de seu gênio” (AZEVEDO, 2000, p. 665).
Álvares de Azevedo começa a análise do livro de Sand comparando-o ao livro
Chatterton, de Alfred de Vigny, cujos trechos também são traduzidos pelo ensaísta. É
interessante perceber a postura do poeta, que, a partir deste momento, elege um método crítico
pautado num estudo comparado, quando nesta época o meio comum utilizado para criticar
uma obra de um determinado autor seria quase que exclusivamente o recurso biográfico. Por
35
É interessante observar que o livro Lélia tido como modelo exemplar de literatura para Azevedo, ainda carrega
um traço forte de sensualismo.
36
George Sand publicou a peça Aldo le Rimeur em 1833 na Revue dês Deux Mondes, uma das revistas mais
importantes da França na época do Romantismo.
138
fim, Azevedo estabelece seu juízo na comparação com Alfred de Vigny e diz que à Sand
caberia o “laurel” enquanto escritora:
Aldo é, como Chatterton um poeta que se acabrunha na miséria. Até a
idéia de Sand se funde na de Alfredo de Vigny: contudo, na justa entre o
melodioso cantor de Eloá, o suavíssimo tradutor do Otelo [...] como
dizíamos, na lide entre Vigny, melodioso ainda no sombrio e fatal de seu
ideal de Chatterton, e Sand ardente, a esta devia caber o laurel. O
Chatterton que teve quarenta representações seguidas apesar de seu nenhum
interesse dramático, aquele primor do Conde Vigny, belo no seu lúgubre
lirismo ao gênero dos cantos dialogados de Jó, precioso como a Ode do
poeta que morre no hino de Gilbert é contudo uma sombra ante a riqueza
bem imaginativa da criação do Aldo. (AZEVEDO, 2000, p. 665).
Por conseguinte, o poeta mostra de onde vem a influência de Sand: de Vigny e Byron.
Naquela época era de praxe estabelecer de onde vinham determinadas características
valorizadas na literatura, quais eram os predecessores, a tradição literária de determinado
escritor. Em pleno século XIX, a questão da influência ou da originalidade era assunto
recorrente que valorizava ou não um autor: “A cena 2ª é o monólogo de Aldo. – É a
sensibilidade de Vigny a fundir-se no gosto de sensações fortes, daquela que bebera em
Lara
e
Corsá
rio
as brilhantes idéias. Se não fosse tão longa, eu aqui traduziria toda essa cena de
solidão. Darei aí algumas idéias que mais sobressaem [...]” (AZEVEDO, 2000, p. 670).
Uma das dificuldades no trabalho de análise da obra de George Sand é a ausência, aqui
no Brasil, de traduções disponíveis da obra da escritora, uma vez que poucos são os volumes
traduzidos para o português. O livro Aldo o rimador, pelo que vimos, não está entre eles e,
dessa forma, os únicos trechos que em nossa língua são aqueles que constam do artigo de
Azevedo. Contudo, os trechos foram traduzidos segundo o interesse do poeta, isto é, ele
elegeu as partes que acreditava serem importantes para ressaltar a obra da escritora. Nisso
percebe-se, mais uma vez, os pontos de encontro entre sua obra e a de George Sand, uma vez
que os trechos traduzidos mostram as temáticas mais freqüentes do Romantismo, dentre as
quais está o amor, a mulher, a própria miséria dos personagens e a posição marginal do
escritor.
Nesse sentido, o Romantismo não foi um movimento de alienação total com relação à
sociedade, já que muitos escritores introduziam em suas obras a dificuldade que era ter
dinheiro para sobreviver. Se de um lado, a miséria é um tema recorrente da obra romântica,
por outro lado a falta de dinheiro presente nelas é mais que um simples recurso da poética
romântica é, de certo modo, uma consciência do escritor frente à sociedade. No livro de Sand,
encontram-se vários trechos que exemplificam isso:
Tenho n’alma a dor; é preciso que pastio em minhas dores... Rir-te-ás
139
talvez! Se o alaúde molhado e solto por minhas lágrimas der o som mais
fraco, dirás que todas as minhas cordas desafinam, que não sinto o meu
mal!... Quando eu sinto a fome devorar-me as entranhas! a fome a tortura
dos lobos! ...
[...]
Vinde, eia, corvos ávidos de meu sangue! abutres carniceiros! Eis Aldo que
falece de afã, de tédio, de miséria e opróbrio. Vinde cavar-lhe as vísceras, e
saber o que de sofrer num homem: vou ensinar-vo-lo, porque jante
amanhã... ó miséria – antes, infâmia!
[...]
Aqui estão estâncias à minha amante... Vendi por três guinéus um romance
sobre a rainha Titânia: isto vale mais, o público nem o verá... Mas posso
vende-lo por três guinéus! O duque de York prometeu-me sua cadeia de oiro
se eu lhe fizesse versos para a amante... Sim... Lady Mathilde é morena,
esbelta: esses versos puderam ter sido feitos para ela; tem dezoito anos a
idade de Jane Jane! Vou vender teu retrato escrito por mim [...]. (SAND
apud AZEVEDO, 2000, p. 671).
Azevedo também tratou, em poemas, do dinheiro e da própria falta dele, da miséria e
da condição marginal do poeta na sociedade. A exemplo disso, em o “Editor”, uma forte
exaltação do dinheiro, pois “Quem não ama o dinheiro? [...]”, “Todos a mil e mil por ele
vivem, / E alguns chegaram a morrer por ele!” (AZEVEDO, 2002, p. 207); no poema
“Dinheiro” é perceptível a necessidade que ele encerra: “Sem ele não cova quem enterra
/ Assim grátis a Deo? O batizado / Também custa dinheiro [...](AZEVEDO, 2002, p. 207);
em “Minha desgraça”, a explicitação da ausência dele, visto que “Minha desgraça, não,
não é ser poeta,” [...] “Não é andar de cotovelos rotos”, [...] “A minha desgraça, ó cândida
donzela,” [...] “É ter para escrever todo um poema, / E não ter um vintém para a vela”
(AZEVEDO, 2002, p. 209) e por fim, em “Um cadáver de poeta” temos a condição marginal
do poeta: “Morreu um trovador morreu de fome.” [...] “De que vale um poeta um pobre
louco / Que leva os dias a sonhar – insano / Amante de utopias e virtudes” (AZEVEDO, 2002,
p. 141-142).
Na seqüência, o poeta destaca na obra de Sand uma das temáticas bastante trabalhada
no Romantismo, a mulher enquanto amada e mãe, que também foi uma constante em sua
obra. Nessa conjetura, pode-se verificar a importância da mulher na figura da mãe e da amada
como recurso temático. Mesmo porque, constitui-se em visões idealizadas, tanto com a
mulher amada, quanto com a figura materna, que deram forma ao arquétipo romântico da
Mulher complexa em seus aspectos superiores de extrema virtude. No caso de Aldo o
rimador, há os dois temas trabalhados em conjunto, contudo, nos fragmentos a seguir, a figura
materna que é evocada:
O
moço adormece. Meg (a velha) nas trevas entra no quarto tiritando; a meio
envolta nas cobertas do leito e arrasta-se ao longo dos muros, tateando. A
140
cena entre a velha surda e Aldo adormecido e falando é muito original
lembra aquele gênio sublime de Shakespeare que lhe inspirara a noite
horrível de sonambulismo de
lady
Macbeth. (AZEVEDO, 2000, p. 672).
[...]
Ah! Minha mãe é morta? Deus pois me dá também que morra enfim? Como?
morreste, minha mãe?
[...]
Sim! bem morta! fria como a pedra, inteiriçada como uma espada.
[...]
Mas por que sois já morta? Era-vos muito afã em dar cabo à miséria? Não
vos tratava eu bem? Descontentava-vos eu? Pensáveis que eu poupava
trabalho e cérebro? Acháveis-lo acaso maus os meus versos; as críticas de
meus invejosos vos coravam tanto de ser a mãe de um tão mau rimador?...
Éreis uma literata outrora em nossa aldeia!... Hoje apenas um pobre
esqueleto de pernas nuas. Pobres pernas! velhos ossos! Inda esta noite eu vos
rebuçara com meu gibão! É culpa minha se o forro esgarçou e o estofo era
leve? É como a fazenda de que me fizeste, ó velha Meg! Eu era vosso filho
sétimo; todos eram belos e altos, musculosos e cheios de ardor, exceto eu o
mais moço. Eram robustos montanheses, atrevidos caçadores de corças
pardas [...], todos morreram sem pensar em levar-vos ao cemitério. Só ficou-
vos o pobre Aldo, o pálido filho de vossa velhice, fruto débil de vossos
últimos amores. [...] E quando faltaram todos e ficastes a sós com o vosso
aborto, não vos surpreendeu o ver que uma voz no fundo do cérebro lhe
decorara e comentava os cantos dos nossos bardos? [...] beijastes o filho na
fronte, santuário de um gênio gerado sem o saberdes [...] (SAND apud
AZEVEDO, p. 673).
Sand, segundo Azevedo, até o momento havia apresentado a personagem, isto é, o
poeta pobre e sua mãe que morre, na seqüência ela acrescentará o amor, a mulher amada:
Até aqui G. Sand mostrou duas coisas o poeta e o filho o poeta na sua
luta corpo a corpo com a sociedade descaroável; o filho, na sua desesperança
junto ao cadáver da velha Meg. Depois vem o amor e Agandecca; Jane, o
primeiro amor, a primeira ilusão que finda num descrer no amor da mulher,
ao sentir-lhe estatuado aquele colo de anjo. (AZEVEDO, 2000, p. 674).
Assim, a mulher figura no livro da escritora de duas formas, primeiro é a mulher
enquanto mãe, a segunda é a mulher enquanto amada. Com isso, podemos perceber que, mais
que predileção pessoal de qualquer escritor, aquelas temáticas, cujo próprio Azevedo tratou
em sua obra com uma grande obsessão, eram recorrentes na literatura romântica européia. Por
esse caminho, é possível dizer que a mulher o reponta uma exigência biográfica (como
ficou convencionado sobre o poeta de Lira dos vinte anos), mas uma visão estética sugerida
pelo movimento, sendo, em certa medida, uma das posturas mais sublimes empreendida pelos
escritores do Romantismo.
Ainda sobre este texto crítico, Maria Alice Faria sugere que a peça Aldo o rimador
serviu de base para a construção do livro Macário. Seguindo as indicações da autora de
Astarte e a Espiral, Maira Pandolfi reafirma que “Álvares de Azevedo teria tirado dessa peça
141
de Sand alguns aspectos da figura feminina que tem pontos de contato com a noiva de
Penseroso, além de frases e situações que transcreveu com poucas diferenças” (PANDOLFI,
2006, p. 123).
Álvares de Azevedo, por certo, compreendeu a importância da obra de Sand no quadro
da literatura universal, bem como, as qualidades que a obra dela suscitou perante o
movimento romântico. Além disso, como podemos perceber no ensaio “George Sand / Aldo o
Rimador”, Azevedo ressaltou elementos temáticos da obra da escritora francesa, dos quais
havia também tratado em sua própria obra. Ou seja, é compreensível que Azevedo, mais que
analisar e traduzir trechos do livro Aldo o Rimador, dialogou não com a obra da autora e
com a sua própria, mas também com o movimento que George Sand e ele estiveram filiados.
Por fim, num misto que ora o aproxima e ora o diferencia de outros críticos, o poeta
soube analisar a obra da escritora sem, contudo, evocar e traçar sua vida estritamente pessoal.
Afinal, o poeta inicia seu texto evocando as influências políticas que George Sand teve,
trabalha sua obra do ponto de vista da análise comparada e, por fim, percebe o quanto à autora
foi espezinhada por ser uma mulher e ousar tanto em um cenário dominado pelo sexo oposto.
Embora, Azevedo reconheça que Sand ousou demais, ao retratar o amor adúltero em alguns
de seus livros.
3 - As funcionalidades dos Prefácios de Lira dos Vinte Anos.
De início, percebe-se que prefaciar a obra literária era prática comum dos escritores do
século XIX, afinal, era um hábito constante tanto no romantismo europeu como no brasileiro.
De certo modo, podemos notar uma preocupação em estabelecer a teoria da qual o autor se
aproxima, bem como um discurso de defesa de sua poética (apresentação de sua obra ao
leitor). Para termos uma idéia sobre tal fato, basta olharmos o que diz William Wordsworth
em seu prefácio d’As baladas líricas:
Diversos amigos meus anseiam pelo êxito destes poemas, por acreditarem
que, se neles se realizaram realmente os pontos de vista que presidiram a sua
composição, então aqui foi produzido um tipo de poesia adequado ao
interesse permanente da humanidade, e significativo na qualidade e na
multiplicidade de suas relações morais. Por esta razão, eles me aconselharam
a antecedê-lo de uma defesa sistemática da teoria que presidiu à sua criação.
Mas eu me sentia relutante em empreender esta tarefa, por saber que o leitor
consideraria os meus argumentos com frieza, podendo suspeitar que eu fora
influenciado basicamente por uma ânsia leviana e egoísta de persuadi-lo a
142
louvar meus poemas. E eu me sentia ainda mais indisposto a empreender a
tarefa porque expor adequadamente minhas opiniões e enfatizar plenamente
meus argumentos exigiria limites de espaço totalmente desproporcionais a
um prefácio. (WORDSWORTH, 1987, p. 169-170).
Diante disso, como observar nos prefácios, seja em geral, seja nos do autor aqui
analisado, a preocupação dos escritores em expressarem suas opiniões por meio de
argumentos que estabeleçam a teoria de sua poesia, o que se em Wordsworth, um dos
primeiros românticos ingleses (da denominada geração poetas do lago), a quem a poesia é o
“transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos” do homem possuído de “uma
sensibilidade orgânica habitual”, mas “meditado longa e profundamente” (WORDSWORTH,
1987, p. 172).
Nesse sentido, o prefácio não coincide primeiramente com a realidade que ele
representa, pois o vocábulo, do latim praefatio, designa aquilo que foi feito para introduzir
algo que vem depois de si. Entretanto, na área literária, o prefácio foi envolvido com outras
finalidades que vão além da simples tarefa de introduzir uma obra. Sendo assim, acaba por
fugir da simplicidade tradicional e chega a configurar-se como síntese da concepção da arte
literária de um escritor (GIUSTI, 2003, [não paginado]). Nessa acepção, quando recorre ao
prefácio, o autor, a exemplo de William Wordsworth, manifesta seu grau de consciência
literária e estabelece: o conhecimento intencional depositado no material literário; o elenco de
técnicas atuantes; seus procedimentos práticos; sua função de realização no todo ou em
parte da obra; suas preocupações de apresentação de sua obra ao leitor etc.
Deste modo, percebe-se que os prefácios encerram em si várias funcionalidades, as
quais são utilizadas pelos escritores quando necessárias. Diante disso, empreenderemos uma
leitura dos prefácios à primeira e à segunda parte de Lira dos Vinte Anos, pautada em algumas
das funções estabelecidas por Aristóteles em Arte Retórica
37
.
Partindo daí, numa primeira função demonstrativa, o prefácio seria empregado pelo
autor na explicação e razão da obra. Nesta definição, o sentido do prefácio é a elucidação dos
temas, motivos e outros elementos abordados na obra pelo escritor. Por meio dessa
funcionalidade, Álvares de Azevedo justifica que os seus poemas, da primeira parte de Lira
dos Vinte Anos, “são os primeiros cantos de um pobre poeta. [...] Cantos espontâneos do
coração” (AZEVEDO, 2002, p. 49). Certamente, esta função não pretende ser crítica, é mais
justificativa, servindo como uma prestação de contas do autor. De acordo com essa
fundamentação, o leitor é introduzido na façanha artística do poeta.
37
Em Arte Retórica (livro III, cap. XIV) Aristóteles estabelece cinco funções para os prefácios: a demonstrativa,
a sinestésica, a pertinente, a topológica e a didascálica.
143
Entretanto, o prefácio à primeira parte de Lira dos Vinte Anos ultrapassa a simples
função demonstrativa. Nele, o autor sugere uma proposta que vai além da justificativa de sua
obra, ou seja, ele procura alcançar primeiro a amabilidade do seu leitor ou então obter a sua
benevolência, o que se dá por meio da função sinestésica. Conforme revela Álvares de
Azevedo, as poesias que compõem a primeira parte do livro são pretensamente sentimentais e
merecem desculpas, pois “as primeiras vozes do sabiá não têm a doçura dos seus cânticos de
amor” (AZEVEVEDO, 2002, p. 49). Nesse percurso, o objetivo principal não seria apenas
conquistar a atenção do leitor, mas visar à aproximação de leitura entre escritor e leitor,
estabelecendo, assim, um campo univisual de percepção da obra. Dessa forma, o escritor
demonstra não só uma presença de espírito maior, uma vivacidade, como também uma
conscientização acentuada na busca da percepção do leitor em seu prefácio.
Há também no prefácio, de um modo geral, alguns aspectos que o distinguem da obra,
afinal ele não pretende ser ficção ou poesia e, conseqüentemente, se acha localizado em uma
posição externa a ela, o que contribui para criar uma certa autonomia frente à obra e, por
conseguinte, por torná-lo dispensável a ela. Por outro lado, o prefácio que não se vincula à
obra, o prefácio em si, sem o vínculo com o texto literário, é um vazio autônomo. Ele precisa,
na verdade, unir-se à obra, falando dela para que tenha existência literária.
No prefácio à segunda parte de Lira dos Vinte Anos, o autor nos revela a sua
intencionalidade e o vincula de tal maneira ao texto poético, que a gratuidade e a autonomia
perdem espaço e deixam transparecer elementos que constituem a teorização da obra do
escritor. Por meio desse procedimento, Álvares de Azevedo explicita em seu prefácio como
serão os poemas que constituem a segunda parte de seu livro:
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda
trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta, porque sua
vida é amor e canto, o que pode senão fazer poema dos amores da vida real?
Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e
que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam e creiam o
que quiserem todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a
realidade formosa da bela mulher a quem amamos. (AZEVEDO, 2002, p.
139).
Nesse sentido, podemos complementar que nos prefácios um caráter de confidência
do autor. Entretanto, o tipo de confidência apresentada, nesse caso, não é intimista e sim
objetiva, pois o autor de Lira dos Vinte Anos estabelece valores e critérios para sua obra a
partir de seus prefácios. Deste modo, eles têm se revelado como uma teorização programada
da obra, transformando-se numa verdadeira teoria do conhecimento dos textos poéticos
apresentados.
144
Ante os fatores até o momento expostos, podemos dizer que nos prefácios de Lira dos
Vinte Anos ocorre também uma versatilidade, pois as várias funções tendem a se apresentar
simultaneamente. Por esse caminho, as atuações dessas funções têm aberto espaço para várias
leituras, mesmo mantendo seu limite de discurso paralelo, ou quando provoca uma integração
entre texto poético e prefácio.
O prefácio também ganha um valor metapoético, uma vez que ele é uma forma de
metalinguagem do texto poético (GIUSTI, 2003, [não paginado]). Sobre isso, pode-se
observar que o prefácio à segunda parte de Lira traça um plano do fazer poético e esclarece a
concepção artística de Álvares de Azevedo. Antonio Candido (2000, v.2, p. 161), em “Álvares
de Azevedo ou Ariel e Caliban”, evidencia que o poeta expôs “[...] um programa
conscientemente traçado” neste prefácio, afinal “não é possível descrever com maior
consciência a própria obra”. Além disso, podemos perceber que esse tipo de prefácio visa a
consolidar uma idéia diferenciada dos demais, que servem como simples apresentação.
Portanto, nestas propostas e funções, os prefácios funcionam como reveladores da consciência
de um fazer artístico, como o divulgado, por exemplo, no prefácio de Wordsworth.
Cabe ao prefácio metapoético exercer a função mais esclarecedora e posterior ao
próprio texto literário, demonstrando o alto grau de conhecimento e explícita consciência
técnica e teórica do autor (GIUSTI, 2003, [não paginado]). Neste contexto, é evidente o
discurso de Álvares de Azevedo, pois em seus prefácios um posicionamento consciente
quanto à proposta romântica, a qual exibe um certo metarromantismo marcado pelo senso
crítico, ou seja, um diálogo com as práticas românticas.
O prefácio, se por um lado, pode parecer um simples texto que se situa ao lado de
outro texto que lhe é principal, como assinalamos, por outro, a aparente simplicidade se
converte em complexidade no momento em que ele se apresenta mais explicativo do
fenômeno do qual depende, isto é, em seu caráter de metatexto. Na realidade, o prefácio
metapoético vale por uma poética. É toda uma consciência de prática da escrita e o se
desvincula dela, uma vez que procura realizar uma teorização no concreto, criando uma
linguagem crítica da experiência da arte (GIUSTI, 2003, [não paginado]).
Com isso, podemos enxergar nos prefácios de Lira dos Vinte Anos a sugestão de uma
consciência criadora, artística do fazer poético de Álvares de Azevedo, a qual indica e orienta
uma leitura cabível aos propósitos do autor e às outras leituras possíveis, mas sempre dentro
do parâmetro que a obra possa sugerir.
Assim sendo, cabe aos prefácios uma proposição que serve de apoio às investigações
literárias, ou seja, o poeta sugere ao leitor e crítico uma abertura para possíveis análises, como
145
as que faremos no tópico seguinte deste capítulo. No entanto, devemos ter sempre em vista a
posição inicial do autor, para que não ocorra uma interpretação que lhe seja equivocada, pois
em muitos casos “[...] é quase impossível determinar o que alguém [isto é, o poeta] pode ter
pensado ou sentido aqui e ali [...]” (ADORNO, 2003, p. 17) com precisão.
3 - Romantismo: a forma fragmento e o pensamento irônico nos prefácios de Lira
dos Vinte Anos.
O movimento romântico, em sua amplitude, surgiu para favorecer a ruptura com o
passado próximo, com o mundo ordenado pelo racionalismo clássico, permitindo, deste modo,
uma transmutação de valores. Então, “[...] em contraposição ao Neoclassicismo, o
Romantismo ‘é dinâmico em vez de estático, prefere a desordem à ordem, a continuidade à
disjunção, o esfumado ao tido, é mais voltado para dentro que para fora’ [...](VIZZIOLI,
2002, p. 137-138).
Assim sendo, o Romantismo se identifica com o dinamismo, prefere a desordem, o
esfumado, a continuidade, o interior em vez do exterior. O movimento revoca tudo a novo
juízo, cabe agora ao artista uma outra forma de se expressar, a fim de liqüidar a convenção
puramente universal, racionalista. Em busca desse novo sentimento, procura o infinito e o
parcial em lugar do finito e do total. Com isso, os românticos e o próprio movimento foram
mergulhados em um vigoroso estado de consciência, ou seja, o individualismo e o relativismo
passaram a ser a estrutura fundamental, em contraste com o universalismo e o racionalismo.
Deste modo, poderíamos dizer que a “forma” romântica ajudou a constituir o
deslocamento do universal para o individual. A partir da subjetividade, o autor pode dar forma
substancial a suas pretensões poéticas, em que ele escolheria os meios que melhor expressasse
suas composições literárias. Assim, podemos ver que a utilização da forma fragmento e do
pensamento irônico, vem ao encontro de tais anseios, uma vez que eles demonstram certas
características como o dualismo sistêmico, o parcial ao invés do total, a pretensão do infinito,
que revogam a preocupação do movimento anterior, pois
[...] no classicismo, com efeito, os padrões ideais que norteiam o ato criador
implicam quase sempre vitória da ordem e da medida sobre o demasiado e o
aberrante [...]. No Romantismo, porém, o elemento característico se
confunde não raro com o desequilíbrio corresponde, graças a uma estética
baseada no movimento, no deslocar incessante dos planos. Por isso o
desequilíbrio representa autenticamente o ideal romântico, que não teme a
146
desmedida e se inclina, no limite, para a subversão do discurso. (CANDIDO,
1978, p. 14-15, grifo do autor).
O Romantismo em sua categoria “psicológica” tende a reproduzir o sentimento como
sendo o objeto de uma ação interior do sujeito, cuja condição excede a um estado afetivo que
busca a intimidade, a espiritualidade e a aspiração do infinito. O movimento imbuído de uma
sensibilidade se dirige para uma separação e união dos estados opostos, que em si contêm o
elemento reflexivo de ilimitação, de inquietude, de insatisfação que tende a reproduzir
indefinidamente um antagonismo, conferindo uma forma de visão e concepção de mundo
(NUNES, 2002, p. 52). Dessa maneira, o idealismo da ‘escola de Jena’ nos ajuda a
compreender esse novo sentir.
A partir desse momento, trabalharemos com a forma fragmento e o pensamento
irônico nos prefácios de Lira dos vinte anos, com os quais estabeleceremos as devidas
relações, a fim de demonstrá-los como antídotos a sistemas filosóficos totalizantes, bem como
à crença de que a razão pode oferecer acesso ao conhecimento dos fenômenos, como ocorria
no Classicismo. No primeiro caso, temos a forma fragmento e por último a ironia romântica,
que juntos empreendem uma compreensão de parte do movimento, assim como da obra de
Álvares de Azevedo, mais precisamente do corpus aqui estabelecido.
O fragmento romântico é “[...] ao mesmo tempo completo e isolado de um todo mais
amplo [...]” (ROSEN, 2000, p. 88). Nesse sentido, como teoriza Schlegel, “um fragmento
deveria ser como uma pequena obra-de-arte, completo nele mesmo, e separado do restante do
universo como um ouriço-cacheiro” (SCHLEGEL apud ROSEN, 2000, p. 89). A sugestão de
Schlegel é que “o ouriço-cacheiro [...] se enrola como uma bola [...]. Sua forma é bem
definida, mas imprecisa em seus contornos. [...] A imagem se projeta para além de si mesma”
(ROSEN, 2000, p. 89). Por assim dizer, “[...] separado do restante do universo, o fragmento
sugere, no entanto, perspectivas distantes. Seu isolamento é, de fato, agressivo: ele se projeta
no universo, justamente devido ao modo pelo qual dele se separa” (ROSEN, 2000, p. 89).
Assim sendo, “o fragmento romântico, imperfeito e também incompleto, foi típico de
uma época [...]. Cada fragmento é ou deveria ser, uma forma acabada: o seu conteúdo é que é
incompleto ou melhor, se desenvolve posteriormente à leitura” (ROSEN, 2000, p. 91). Por
esse caminho “[...] o fragmento coloca em movimento um processo em que o fim não está à
vista” (ROSEN, 2000, p. 92).
Os prefácios são completos e isolados, se pensarmos em um contexto mais amplo, isto
é, na totalidade material do livro Lira dos Vinte Anos. Mas ao mesmo tempo, eles também são
incompletos e dependentes, pois precisam da obra para existir. Pensando nisso, podemos ver
147
que cada prefácio (ou mesmo os parágrafos, que juntos compõe parte de um todo, ou seja, o
texto [prefácio]) daria a sensação de forma acabada. Nessa acepção, os prefácios à primeira
ou segunda parte do livro encerram comentários, teorias poéticas, que apresentam a devida
consonância com o Romantismo, que o autor é genuinamente ingresso nesse movimento.
No entanto, o seu conteúdo é incompleto, ou seja, se desenvolve posteriormente à leitura e é
nisso que podemos sugerir que ele expressa o posicionamento do autor com as práticas
românticas, a sua concepção de literatura, a sua consciência literária e acima de tudo a
estruturação de um sistema teórico denominado de “binomia”, que esboçará o projeto literário
de Lira.
A imagem criada pelo fragmento, que “se projeta para além de si mesma”, uma
visão de infinitude. Ou seja, por mais que os românticos tenham suas certezas, sempre estarão
pensando naquilo que podia vir a ser (o todo). Mas esse todo é impossível, inatingível para o
homem romântico, como é para a própria natureza finita do homem:
O caráter mais profundo do Eu é, repetimos, a infinitude de sua atividade.
[...] É infinita, compreendida no sentido de que nunca pode atingir o seu
término, a sua realização última e plena. Trata-se da mais profunda aspiração
do ser humano, uma aspiração incompatível com qualquer limite,
condenada, poderíamos dizer, a sua própria infinitude e incapaz de realizar-
se completamente nesta vida. Se o homem pudesse realizar-se, se alcançasse
sua realização, atingiria, ipso facto, um certo grau de finitude: limitaria a sua
aspiração infinita. (BORNHEIM, 2002, p. 89).
Por outro lado, podemos perceber que ao mostrar a incompletude, o não finito, o
fragmento é um agente forte no combate a sistemas totalizantes, portadores de um foco
central, que, por meio da razão, pretendem explicar tudo.
Nessa acepção, os prefácios (bem como a obra), além de mostrarem um trabalho
consciente com relação ao movimento romântico, nos dão a oportunidade de entender a
prática poética de Azevedo. Isto é, ele está filiado coerentemente ao romantismo, que, por
meio do fragmento e da ironia, se insurge com o classicismo. Ao juntarmos os prefácios de
Lira dos vinte anos, compreendemos, também, que neles funciona a ‘ironia romântica’, com a
conjugação de duas práticas distintas, o que possibilita a criação de elementos antagônicos de
sua produção literária e vulto a realização da binomia’ negar e autoparodiar a obra
anterior.
Diante disso, pensando no movimento, os prefácios são fragmentos, parte de um todo,
que encadeiam um processo que não chega ao fim. Para percebermos isso, é preciso ver que
essa forma (fragmento) foi típico desta época (romântica), que expressa uma visão fraturada e
incompleta, contrária ao movimento clássico. Nesse sentido, “[...] as palavras começam a se
148
expandir como se houvesse uma espécie de pressão interior [...]. Na medida em que refletimos
a respeito do pensamento, as palavras individuais [...] começam a se mover em direção às
margens de seus significados [...]” (ROSEN, 2000, p. 90). Por esse caminho, “é com o
fragmento romântico que esse movimento expansivo adquire seu poder mais elevado,
propiciando, assim, a renúncia ao foco clássico” (ROSEN, 2000, p. 90).
Assim, “[...] em lugar da beleza clássica, a arte moderna tinha de se satisfazer com o
‘interessante’. Certamente, o ‘interessante’, conceito mais dinâmico do que ‘beleza’, é,
necessariamente, imperfeito, e a estética do fragmento, de Schlegel, justificou, assim, um
novo e progressivo sentido de arte” (ROSEN, 2000, p. 91).
Esse novo sentido da arte seria uma deixa para um sistema dual, contraditório
(paradoxal), que a ironia romântica expressa muito bem. Com isso, além de uma recusa da
unidade do todo (pois ela é sempre pretendida, mas não alcançada), o romantismo expressa
possibilidades de negar um conhecimento rígido e categórico, tido como a “verdade”, para
uma sempre pretensa verdade.
No que concerne à ironia romântica, pode-se dizer que “[...] a duplicidade da ironia
pode agir como um meio de neutralizar qualquer tendência de assumir uma posição rígida ou
categórica de ‘Verdade’ por intermédio precisamente de um reconhecimento de um caráter
provisório e de contingência” (HUTCHEON, 2000, p. 82), por outro lado, há a função
contradiscursiva, que é a “[...] de contestar hábitos mentais e de expressão dominantes [...]”
(HUTCHEON, 2000, p. 83).
Para entendermos a ironia, em sua natureza dupla, é preciso compreender que ela
fornece na criação artística (romântica) a possibilidade de um dualismo que se contradiz, mas
que, também, se complementa. Nisso, podemos inserir a primeira e segunda parte de Lira, que
são diferentes, contraditórias, mas que não se excluem, uma vez que se complementam sem,
entretanto, buscarem a compreensão definitiva, (permanente) do todo, do absoluto.
Aliás, é imprescindível observar a limitação do homem, pois “para Schlegel, a
situação básica metafisicamente irônica do homem é que ele é um ser finito que luta para
compreender uma realidade infinita, portanto incompreensível” (MUECKE, 1995, p. 39). Isso
se dá porque “a natureza não é um ser, mas um tornar-se, um ‘caos infinitamente fervilhante’,
um processo dialético de contínua criação e des-criação” (MUECKE, 1995, p. 39). Assim, “o
homem, sendo quase a única destas formas criadas, que logo serão des-criadas, deve
reconhecer que não pode adquirir qualquer poder intelectual ou experimental permanente
sobre o todo” (MUECKE, 1995, p. 39).
149
Por outro lado, “a originalidade e a força do pensamento de Schlegel residem em seu
firme entendimento da vida como um processo dialético e em sua insistência em dizer que o
comportamento humano é plenamente humano somente quando existe também o dualismo
dinâmico aberto” (MUECKE, 1995, p. 40). Nesse sentido, ele nega “[...] o valor de alguma
coisa que não seja ao mesmo tempo ela própria e seu contrário gerado por si próprio”
(MUECKE, 1995, p. 40).
Assim sendo, por um lado a produção de Azevedo demonstra-se ingênua, inspirada,
imaginativa (primeira parte de Lira), como sugere uma das vertentes românticas e, por outro
lado, ela é reflexiva, crítica, irônica, consciente (segunda parte) e segue outra vertente
38
. No
entanto, com a combinação delas surge uma terceira, que resulta numa postura crítica
(explícita) da obra: “o seu próprio vir-a-ser”.
Nesse sentido,
a criação artística, argumentou Schlegel, tem duas fases contraditórias mas
complementares. Na fase expansiva, o artista é ingênuo, entusiasta,
inspirado, imaginativo; mas seu ardor descuidado é cego e, assim, sem
liberdade. Na fase contrativa, ele é reflexivo, consciente, crítico, irônico;
mas a ironia sem entusiasmo é estúpida ou afetada. Ambas as fases são,
portanto, necessárias se o artista deve ser amavelmente entusiasta e
imaginativamente crítico. O artista que consegue este difícil ato de
equilíbrio, esta ‘alternação admiravelmente perene de entusiasmo e ironia’,
produz uma obra que contém em si mesma seu próprio vir-a-ser. O artista
será como Deus ou a Natureza imanente em cada elemento criado e finito,
mas o leitor também terá consciência de sua presença transcendente
enquanto atitude irônica frente à sua própria criação. Esta superação criativa
da criatividade é a Ironia Romântica: ela ergue a arte a uma força superior,
de vez que na arte um modo de produção que é artificial no mais alto
sentido, porque plenamente consciente e arbitrário, e natural no mais alto
sentido, porque a natureza é semelhantemente um processo dinâmico que
cria eternamente e eternamente vai além de suas criações. (MUECKE, 1995,
p. 41).
Nisso, compreendemos que
‘a ironia’, [como] diz [...] [Schlegel], ‘é a forma do paradoxo’; e ‘Paradoxo é
a conditio sine qua non da ironia, sua alma, sua fonte, e seu princípio’. ‘A
ironia é análise [na medida em que se opõe à ntese] da tese e da antítese’.
‘É igualmente fatal para a mente ter um sistema e não ter nenhum. Ela
simplesmente terá de decidir combinar os dois’. (SCHLEGEL apud
MUECKE, 1995, p. 40).
38
Lira dos Vinte Anos é composta por três partes e ao trabalharmos apenas duas partes, estaríamos excluindo
uma. No entanto, o livro é de publicação póstuma e o poeta havia escrito apenas dois prefácios, o que supõe que
o livro deveria ter duas e o três partes. Por outro lado, podemos dizer que os poemas dessa terceira parte
poderiam ser remanejados para a primeira ou a segunda parte, onde caberiam com toda certeza, como orienta
Péricles Eugênio em sua edição crítica de Poesias Completas de Álvares de Azevedo.
150
Diante disso, entendemos que para se produzir uma obra como a de Azevedo é
necessário combinar duas práticas poéticas: sentimental e não sentimental; elevação e
rebaixamento. Caso optasse por uma, estaria excluindo a junção dos contrários, e
conseqüentemente não estaria dando forma à realização de sua produção poética, que se dá
justamente pela combinação de práticas distintas. Pelo exposto, podemos inferir uma
consciência por parte do autor ao elaborar seu livro.
A partir desse momento, abordaremos a forma fragmento e a ironia romântica, a fim
de estabelecer uma melhor visão da consciência poética de Azevedo, que ressalte um ponto de
vista do crítico e do poeta em seu fazer literário. Por outro lado, não desconsideramos os
valores funcionais dos prefácios, pois eles delineiam a intencionalidade do autor com sua
obra. Gostaríamos, ainda, de abranger um maior entendimento da poética de Azevedo que
envolva o Romantismo, bem como a atitude crítica ao estabelecer sua obra sob uma
sistematização dual por ele denominada: “Binomia”.
Desse modo, abordaremos os prefácios de Lira dos vinte anos por meio de uma leitura
que busca vê-los como fragmentos, que separados expressam uma incompletude ou
delineiam cada um dos aspectos de práticas opostas de poesia, mas que, juntos, constituem um
movimento que nos respaldo para entendermos a poética do autor de Macário. Nesse
sentido, dizemos que os dois prefácios de Lira o dois fragmentos genuínos, que acoplados
constituem, promovem, o discurso irônico, e que se complementam pelos elementos
contraditórios. Enfim, passemos a observar separadamente os prefácios, mas tendo uma visão
do conjunto, isto é, da encadeação de tese e antítese, proposta pela ironia, bem como a sua
estruturação enquanto fragmentos (ou seja, da complementação que o leitor faz depois da
leitura, visto que o seu conteúdo é incompleto).
Afirmamos, então, que o primeiro prefácio de Lira é a parte em que ocorre a poesia
exacerbada do romantismo de Álvares de Azevedo, o excesso sentimental, o tema do sono, do
sonho e também da morte. A poesia dessa primeira parte contém, em sua maioria, a prática
poética amorosa, e outros temas que expressam uma esfera transcendental, inatingível e de
extrema elevação, em que, metaforicamente, o escritor estabeleceu o dualismo, pois, por meio
dela, se constitui a primeira parte da medalha, que se complementará com o outro prefácio e
com os outros poemas.
Assim, cria-se parte de um “[...] trabalho de dois princípios opostos, elevação e
rebaixamento, que figuram os processos da negação do finito [...]” (HANSEN, 1998, p. 12),
da busca do todo e da pretensão da unidade. A partir da junção dos prefácios “[...] a ‘binomia’
torna indefinido o sentido total do expresso, pois as posições tendem a unificar-se,
151
teoricamente, apenas no infinito indizível e figurado como sublime” (HANSEN, 1998, p. 12).
Nessa acepção, “a morte e o desejo de morrer, temas nucleares em Álvares de Azevedo, são
bem as metáforas desse vazio inatingível; também o sono, o sonho, o desmaio, os delíquios do
seu humor negro” (HANSEN, 1998, p. 12). O poeta se aproxima do princípio romântico
(irônico) segundo o qual a arte deve absorver a reflexão e incorporar a contradição, o que, de
certo modo, compõe a expressão máxima da ironia romântica, que “a consciência
romântica da forma é irônica” (HANSEN, 1998, p. 12).
O poeta, pautado nesse trabalho de combinação dos opostos, explicita que a primeira
parte de Lira dos Vinte Anos ou os poemas que vêm em seguida são os seus primeiros cantos,
ou seja, um dos elementos que compõe seu dualismo sistêmico: a binomia. Deste modo, esta
primeira parte seria o início, um dos lados da medalha, uma das almas que habitam o mesmo
cérebro, isto é, a parte sublime, de transcendência, de sua poesia. Por meio desse processo de
criação, vemos que a ironia se torna acentuada e sugestiva. Vemos, ainda, o prenúncio das
poesias seguintes, que constituem tanto a dialética sugerida pela ironia, quanto a
complementação exigida por ela, conforme aponta Schlegel.
Enfim, percebemos também nas poesias da primeira parte de Lira dos Vinte Anos que
a musa do poeta se caracteriza como saudosa, tímida, a qual sugere uma aspiração do infinito,
pois este traço saudoso remonta uma certa nostalgia romântica, que expressa o conflito entre a
limitação real (o finito) e a infinitude do ideal (o infinito). Nesse caso, o saudosismo seria a
exigência à pretensão da unidade ou da reconquista dela, proclamado pelo infinito sempre
distante e almejado pelo homem romântico, afinal, é daí que vem “[...] o sentido do infinito,
do absoluto interior à alma humana condenada à sua finitude [...]” (BORNHEIN, 2002, p. 92).
Assim, o primeiro prefácio e as poesias que se seguem seriam parte de um processo dialético,
que tende a uma contínua criação (poesias sentimentais), de anseio à unidade sempre
pretendida, mas que na seqüência é interrompida pela des-criação, sugerida pela segunda
parte de Lira (poesias não sentimentais), transparecendo assim, a ironia romântica.
Até o presente momento, temos mencionado, além das particularidades e
especificidades de Lira dos Vinte Anos, a filiação romântica de Álvares de Azevedo, pois ele
se insere nesse movimento de tal maneira que os historiadores literários, bem como muitos
críticos o têm como representante máximo desse movimento. Porém, o que desejamos inferir
agora é que a obra de Azevedo abarca muitas características do movimento, embora possamos
reconhecer que ela se aproxima notoriamente de algumas das vertentes do Romantismo.
Nesse sentido, em nosso trabalho, temos explicitado algumas colocações da obra do poeta nas
quais aparecem as poesias sentimentais (elevação) e não sentimentais (rebaixamento), o que,
152
se pensarmos tanto nos prefácios quanto no próprio livro Lira, veremos que está dentro de
algumas propostas do movimento no qual ele se insere.
A partir daí, considerando algumas características (ou categorias) do Romantismo,
mais precisamente a da visão romântica, notamos que em sua base, ela parte da valorização do
subjetivo, em que o sentimento é o objeto da ação interior do sujeito, aflorando e tornando-se
um amplo estado. Deste modo, a intimidade, a espiritualidade e a aspiração do infinito
tornam-se parte da estética desse movimento que estabeleceu, sobretudo, uma sensibilidade
dirigida pela união dos opostos (pensando na ironia romântica), fato que no classicismo não
era aproveitado, pois havia uma distinção entre os diversos gêneros artísticos: “[...] a musa
puramente épica dos Antigos havia somente estudado a natureza sob uma única face,
repelindo sem piedade da arte quase tudo o que, no mundo submetido à sua imitação, não se
referia a um certo tipo de belo” (HUGO, 2002, p. 26). Contudo, no Romantismo, e mais
precisamente na obra de Álvares de Azevedo, percebemos um tratamento diversificado à
musa, pois, na primeira parte de Lira, por exemplo, ela é inatingível, enquanto que na segunda
parte ela é mulher de carne e osso
39
.
Nesse embate, cria-se a união de práticas distintas, como requer a ironia romântica e
tal qual veremos plenamente realizada, quando passamos para o segundo prefácio de Lira.
Assim sendo, neste prefácio a expressão é totalmente oposta à do primeiro, mas
complementar: “A razão é simples. É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas
almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este
livro, verdadeira medalha de duas faces” (AZEVEDO, 2002, p. 139).
Ao abrir o segundo prefácio de Lira dos Vinte Anos, logo na primeira sentença, nos
deparamos com um alerta de que pisaremos em terras novas: “cuidado, leitor, ao voltar esta
página!”. Nestas novas páginas, o autor antecipa: “aqui dissipa-se o mundo visionário e
platônico” (AZEVEDO, 2002, p. 139), ou melhor, ao virar essa gina dispersar-se-ia e
dissolver-se-ia o mundo dos devaneios e idealizações. Tal afirmação, com relação ao “mundo
visionário e platônico”, nos remete aos poemas da primeira parte do livro, que, por sua vez,
remetem ao plano das idealizações, de elevação do espírito, em busca do sublime e do
transcendente. Sendo assim, esse prefácio se contrapõe ao primeiro (mas o complementa) e
39
Contudo, essa mulher é ainda inatingível, quer seja “[...] a virgem imaculada, a prostituta desprezível e a
mulher quase fatal, já que estéril e misteriosa – podem ser compreendida como uma convenção que busca, sim, a
irrealização do ato sexual [ou amoroso], mas objetivando, intencionalmente, tornar eternos e infinitos o desejo e
o amor pela mulher, seja no sonho, na imaginação [...]” (ALVES, 1998, p. 50). No entanto, pela ótica da mulher
fatal, que reúne em si “[...] todas as seduções, todos os vícios e todas as volúpias” (PRAZ, 1996, p. 196), “[...] os
românticos associaram a mulher a um conceito de beleza cruel, corrupta e maldita que acabou por elevar o horror
à categoria do belo [...]” (ALVES, 1998, p. 49-50).
153
estabelece o sistema dual, que é sugerido pela ironia romântica, possibilitando assim, a
sistematização da “binomia”:
Aqui dissipa-se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo
novo, terra fantástica, verdadeira Ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho
é rei, e vivem Panúrgio, Sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello
de D. João Tenório: a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.
(AZEVEDO, 2002, p. 139).
Quando o autor anuncia o “mundo novo”, logo de início, ele a pista de como serão
os poemas que compõem a segunda parte do livro, que sabemos não caber mais em sua
poesia aquele mundo de devaneios e idealizações. Surge o outro lado da moeda, que, por
sua vez, também ocasiona uma autocrítica provocada pelas práticas opostas de poesia e pelas
combinações de ambas. Em um momento de subversão, o autor adverte que este mundo novo
é uma terra fantástica, constituída de um mundo extraordinário, onde Sancho Pança se
concretiza o rei da ilha prometida por Dom Quixote. Nesta transmutação de valores, um
pastor pode tornar-se governador, transgredindo, assim, as normas estabelecidas, “pois quem
poderia pensar que um pastor de cabras chegaria a ser governador de ilhas?(CERVANTES,
1998, v. 2, p. 440).
A citação do romance de Cervantes pelo poeta é bem interessante, bem como a palavra
“Barataria”, que remete a um ar jocoso. Alguns capítulos de Dom Quixote apresentam a Ilha
Barataria governada por Sancho Pança. Trata-se de uma terra onde todos os papéis sociais se
apresentam invertidos ou avacalhados, em um autêntico “Carnaval”. Durante esses capítulos,
o verdadeiro protagonista se torna o pragmático Sancho e não o sonhador Dom Quixote. A
isso poderíamos inferir as duas partes de Lira, na primeira o eu lírico é sonhador, enquanto
que na outra o sujeito da enunciação é mais suscetível de ações práticas.
Nessa terra, onde Sancho Pança é rei, vivem outros personagens que esclarecem o
novo ar com que o poeta quer impregnar seus poemas. Primeiro, Azevedo cita Panúrgio,
personagem picaresca, um boêmio, sem eira nem beira, que se vai defendendo na vida de
qualquer jeito, conseguindo sair-se bem das situações mais complicadas. A segunda
personagem é Sir John Falstaff, que é um fanfarrão e exagera os próprios vícios, realçando os
seus aspectos humorísticos. A terceira, é Bardolph, gordo e de rosto sempre vermelho, é o
companheiro mais ignorante e cômico de Falstaff. A quarta é Fígaro, que, cheio de vitalidade
e senso comum, representa o novo homem burguês, livre do peso do formalismo social e da
tradição, capacitado pela inteligência e senso prático a lutar contra a classe dirigente
aristocrática, que, de um certo modo, ainda representava o classicismo. A quinta e última, é
Sganarello, a personagem de cunho cômico.
154
Por meio de uma observação mais detalhada, nós podemos visualizar os traços
característicos de cada personagem e arriscar o motivo de serem citados pelo prefaciador. A
razão para isto estaria nas estreitezas e proximidade de cada personagem e, ainda, pela última
sentença de Álvares de Azevedo (2002, p. 139), no segundo parágrafo, “– a pátria dos sonhos
de Cervantes e Shakespeare” parece dar respaldo à escolha destas personagens. O território
em que Cervantes e Shakespeare
40
se encontram é o do casamento entre duas práticas, até ali
(Renascimento), inovadoras: a misturas dos gêneros e o uso dos contrários.
De certa maneira, os personagens se enquadrariam perfeitamente com as poesias da
segunda parte de Lira, ou seja, de crítica perante os valores refutados pelo Romantismo, como
a repulsa do mundo clássico, em que as práticas literárias ainda eram distintas e valorizava-se
o universal. Sendo assim, “Shakespeare, é o drama; e o drama, que funde sob um mesmo
alento o grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia [...]” (HUGO, 2002,
p. 40). Já a Cervantes, e mais diretamente à sua obra, coube a personificação do qual o
Cavaleiro da Triste Figura e o escudeiro se tornassem “[...] a oposição entre o sonho e a
realidade; o espírito e a matéria; o ideal e a estreiteza do comodismo burguês” (BROCA,
1998, p. 629). “O papel de Sancho Pança em relação a Dom Quixote pode ser comparado aos
das paródias medievais das idéias e cultos sublimes; ao papel do bufão frente ao cerimonial
sério; ao do charnage em relação à quaresma” (BAKHTIN, 1993, p. 20).
Deste modo, “quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban” (AZEVEDO, 2002,
p. 139). Ariel e Caliban são entidades mitológicas populares e representam, respectivamente,
o bem e o mal, tendo Shakespeare, inclusive, os incorporado como personagens, em A
Tempestade. Ariel é um espírito do ar, alegre e vago, que gosta de apresentar-se sob a
aparência feminina e de entoar canções suaves como “[...] doces brisas que dão prazer e não
fazem mal” (SHAKESPEARE, 2002, p. 77). Caliban, apresenta-se como a antítese de
Ariel. Monstro deformado e cruel, ele é metade demônio, metade besta e cheio de baixos
instintos, (“Ah, e então! Ah, tomara tivesse acontecido. Tu me impediste, mas eu poderia ter
povoado esta Ilha de Calibanzinhos” (SHAKESPEARE, 2002, p. 29)), mas também de
melancolia e de vagos desejos de beleza.
A partir daí, Azevedo estabelece a oposição e, ao mesmo tempo, a conjugação de suas
poesias, uma pautada no transcendente (céu) e outra na vida humana (terra), representa como
40
Cervantes e Shakespeare foram rigorosamente contemporâneos e efetuaram a passagem da literatura
renascentista para o barroco do século XVII. Duas das principais influências sobre os escritores românticos, eles
foram considerados por Friedrich Schlegel como a única antítese possível, até o momento (1800), para a poesia
clássica da antiguidade.
155
os dois lados da moeda. Neste momento, temos a introdução do sistema dual, estabelecido
com a teorização explícita da “binomia”.
Nesse sentido, o prefaciador anuncia que é simples a razão de ser do livro: “é que a
unidade deste livro funda-se numa binomia”. Ou seja, a pretensão da unidade, uma vez que
ela é sugerida pela união dos opostos. Numa postura crítica e perspicaz, a autora de O Belo e
o Disforme, Cilaine Alves, pontua essa prática azevediana:
Denominado “binomia” por seu criador, o dualismo sistêmico orienta a
expressão poética ora para uma esfera transcendental e inatingível, ora para a
vida humana em seus aspectos degradantes, atendendo-se sobretudo aos
aspectos viciosos e vis do comportamento. A interiorização estrutural de
uma postura reflexiva e crítica é, assim, a pedra de toque do sistema
alvaresiano, que, ao fundamentar tanto as inversões temáticas quanto as de
ordem técnica, provoca uma profunda alteração na hierarquia tradicional dos
estilos de representação. (ALVES, 1998, p. 27).
Álvares de Azevedo declara que a pretensa unidade do livro, ou seja, os fundamentos
da binomia são “duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de
poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces” (AZEVEDO, 2002, p. 139).
Deste modo, as metáforas “duas almas” e “medalha de duas faces” estabelecem um correlato
de sua ‘binomia’ com a ‘ironia romântica’, pois é ela que sugere esta “análise de tese e
antítese”. Enfim, o dualismo que o poeta apresenta em Lira dos Vinte Anos, pela utilização de
duas práticas poéticas, é característico de sua concepção literária, bem como do espírito do
próprio movimento.
Por outro lado, Azevedo também estabelece uma “crítica viva” e demonstra nesse
prefácio uma posição tanto crítica quanto reflexiva à sua nova proposta de poesia: “demais,
perdoem-me os poetas do tempo; isto aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado ao
menos que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René” (AZEVEDO, 2002, p.
139). Com isso, ele demonstra, ainda, certa consciência, pois afirma que esse poetar não é
novo (na Europa), porém menos utilizado (no Brasil).
Azevedo também deixa transparecer em seu prefácio à segunda parte de Lira dos vinte
anos o espírito contraditório, que seria próprio do homem romântico, como aponta Schlegel.
Por esse caminho, o poeta trabalha com elementos que se contradizem com os utilizados na
primeira parte, por meio de paradoxos. Diante disso, o espírito de contradição revela o gosto
por um estilo diferente daquele sentimental, mas que não o descarta:
Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de
páginas amorosas, preferem um conto de Boccaccio, uma caricatura de
Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare, um
provérbio fantástico daquele polisson Alfredo de Musset, a todas as ternuras
156
elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda [...] (AZEVEDO,
2002, p. 139).
Ainda no trabalho empreendido pela ironia, o poeta alude a sua binomia da seguinte
forma: “Antes da Quaresma o Carnaval” (AZEVEDO, 2002, p. 139). Numa reflexão mais
assertiva, nós poderíamos pensar que a Quaresma é um momento que remeteria à
transcendência da poesia sentimental. Já o Carnaval representa o baixo, o homem, em que
poderíamos colocar a segunda parte de Lira. Nesta junção, o escritor estabelece o dualismo
humano, que, de um lado, o próprio cristianismo se incumbiu de difundir, e, por outro, mais
uma vez, podemos constatar como parte do discurso irônico.
Além disso, Álvares de Azevedo recupera a frase de Terêncio – (134-159): “sou
humano; não julgo alheio a mim nada do que é humano”
41
a fim de explicitar que o poeta,
sendo homem, depois de muito idealizar, acorda na terra. Nesse dualismo humano, o autor se
anuncia homem, que sente a vida, que pode até idealizar, mas que possui um corpo,
configurando mais uma vez as práticas distintas de poesia, representada explicitamente pela
idealização (infinito) e pelo corpo (finito). Baseado neste existir, ele crê possuir uma
concepção da poética, ou seja, nessa segunda parte de Lira dos Vinte Anos, as poesias são de
outra ordem, embora complementar, que o mesmo homem que idealiza também pode
direcionar-se a outro tipo de abordagem da poesia:
Há uma crise nos séculos como nos homens. É quando a poesia cegou
deslumbrada de fitar-se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as
suas asas de oiro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como dizia o
célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas
visões palpáveis de acordado. Tem nervos, tem fibra e tem artérias isto é,
antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo.
(AZEVEDO, 2002, p. 139).
Álvares de Azevedo revela que a visão vaporosa e abstrata não basta. Na sua nova
concepção (a segunda face da medalha), o melhor seria uma bela, formosa e real mulher para
que pudesse amar. Sendo assim, o prefácio de Azevedo, ou melhor, os próximos poemas
encerram mais essa idéia de concretude, deixando para trás o sentimentalismo piegas e a
imagem da mulher perfeita:
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda
trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta porque sua
vida é amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida
real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita
natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam
e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa
41
Se algo no homem que não lhe é alheio ou estranho, é antes de qualquer coisa o seu desejo de saber, de
conhecer tudo o que é, ou seja, tudo que é inteligível, e, portanto, se é inteligível seria humano.
157
tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.
(AZEVEDO, 2002, p. 139).
A temática sentimental torna-se então esgotada nesta segunda parte do livro, uma vez
que não há mais razão e motivo para o seu uso. Deste modo, o que impede de fazer um poema
que cante a vida real? Um poema que mostre a realidade da mulher, assim como ela é? E
neste sentido é que Azevedo aponta um discurso irônico com ele mesmo e com a poesia
idealista. Assim sendo, a mesma boca que antes desferira cantos e hinos de amor, revela-se
cruel e impiedosa, pois: “Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira
que morde” (AZEVEDO, 2002, p. 140).
A fim de exemplificar sua nova poesia e encaixá-la na tradição ocidental, o poeta
afirma que depois do sentimentalismo do jovem Werther, Goethe escreveu a sua obra-prima
Faust. Byron também criou primeiramente Parisina e o Giaour, logo em seguida, criou Cain
e o poema Don Juan, que ironizam os exageros de suas obras anteriores. E isso é o que
melhor explicita a ironia romântica, a marca da contradição:
É assim. Depois dos poemas épicos Homero escreveu o poema irônico.
Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de
Byron vem o Cain e Don Juan Don Juan que começa como Cain pelo
amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica. (AZEVEDO,
2002, p. 140).
Assim sendo, o Romantismo traz à tona a idéia de contravenção, de subversão de
valores, de estruturação de práticas distintas; princípios de mistura dos gêneros, de rejeição
das regras, de recusa da imitação dos modelos, de liberdade na arte, em que se aplica e se
utiliza a forma fragmento, na recusa de sistemas totalizantes. O movimento traz, ainda, a
‘ironia romântica’, possuidora de uma estética que se, de um lado, pauta na busca da unidade,
do outro não chega a alcançar, pois o homem romântico é finito e como finito aspira pelo
infinito; e, acima de tudo, a complementação que uma prática poética sugere a outra por meio
da contradição.
Desse modo, podemos dizer que os prefácios de Azevedo, além de estar consonantes
com a prática romântica, esboçam e dão forma ao seu projeto literário, por meio da
“binomia”. Ou seja, Azevedo está consciente do Romantismo e de sua prática literária. Além
de crítico no sentido da palavra, ele também é crítico no espírito. Os prefácios seriam tanto
uma autocrítica como uma crítica à prática literária da época. Na compreensão da poética de
Azevedo, percebemos claramente que os prefácios mostram uma seriedade grande por parte
do autor ao teorizar sobre sua produção literária.
PARTE III
A CONSCIÊNCIA LITERÁRIA DE ÁLVARES DE AZEVEDO: UMA
PROPOSTA DE LEITURA
.
A crítica honesta e a apreciação dirigem-se não para o poeta mas
para a poesia.
T. S. Eliot, Ensaios de doutrina crítica.
O romantismo fundou sua teoria do conhecimento sobre o conceito
de reflexão, porque ele garantia não apenas a imediatez do
conhecimento, mas também, e na mesma medida, uma particular
infinitude do seu processo. O pensamento reflexivo ganhou assim,
[...], graças a seu caráter inacabável, um significado especialmente
sistemático que induz que ele faça de cada reflexão anterior objeto
de uma nova reflexão.
Walter Benjamin, O Conceito de Crítica de Arte no Romantismo
Alemão.
A essa primeira definição da ironia que denomina ‘subjetivista’,
Walter Benjamin contrapõe uma outra: a ‘ironia da forma’, um
‘momento objetivo’ na obra em que ‘a unidade da forma poética’ é
anulada. Por esse segundo conceito entende-se um recurso que
engendra a anulação não mais do sujeito, como na primeira
concepção, mas da própria conformação artística. Adotando como
figura predileta o paradoxo, a anulação da forma visa manter o caos
sem destruí-la.
Cilaine Alves, O belo e o disforme: Álvares de Azevedo e a ironia
romântica.
159
1 – Das idéias cristalizadas em torno da obra de Álvares de Azevedo: uma
retomada da recepção crítica do poeta.
Pensar em Álvares de Azevedo e sua obra, expressos nas histórias literárias e em
muitos textos críticos de estudiosos e historiadores da literatura, de renome nacional, implica
pensar e associar o poeta paulista e sua produção artística às generalizações que o coloca
dentro do cânone da literatura brasileira como um autor, taxativamente, ultra-romântico.
Disposição esta que seria até certo ponto aceitável, se não fosse os problemas que daí provém.
Mesmo porque, com o passar dos anos, desde a aparição de Azevedo em meio às belas-letras,
aquele termo impôs determinadas limitações interpretativas à obra do poeta.
Por um lado, pensar em Álvares de Azevedo, como um poeta ultra-romântico, no
sentido pejorativo que o vocábulo se convencionou nas histórias literárias, é, de certo modo,
desmerecer desde a sua produção literária, o seu projeto de literatura, até a importância que
este autor suscitou em meados do século XIX, e continua despertando recentemente. Ou seja,
trabalhar e pensar a obra azevediana como é feito, nas escolas de ensino médio, nos concursos
vestibulares e nas próprias universidades, sob os aspectos que ficaram estabelecidos no
cânone das histórias literárias e mesmo em grande parte dos textos que compõem a recepção
crítica acerca da produção artística de Azevedo, isto é, a imagem de um autor de índole
mórbida, que estava sempre à procura de amores “impossíveis” etc, é, em certa proporção, dar
continuidade a estes e outros argumentos que ficaram cristalizados sobre sua obra.
Por outro lado, pensar em Álvares de Azevedo e sua obra sob uma ótica adversa, cujas
implicações reconheceriam que o Ultra-romantismo favoreceu determinados procedimentos
críticos, utilizados não como argumentos contestadores aos primeiros românticos, como
também de crítica social e de uma literatura mais abrangente, que possibilita o escritor
dialogar criticamente com o próprio movimento romântico –, seria a maneira mais versátil de
compreender algumas das características mais pertinentes, específicas e distintivas da
literatura que Álvares de Azevedo pôs em prática.
Com isso, embora podemos e devemos reconhecer tais características, segundo nosso
ponto de vista, como manifestas, quando olhamos atentamente a obra de Azevedo,
acreditamos que ele sofreu, em determinadas circunstâncias históricas, tanto um procedimento
político na recepção de sua obra, quanto alguns equívocos de leitura, sugeridos por grandes
estudiosos de sua obra. Tais fatos se devem não a própria maneira de Álvares de Azevedo
conceber a sua poesia, ao trabalhar algumas propostas do Romantismo, cujas vertentes do
160
movimento eram direcionadas para uma produção mais cosmopolita do fazer literário, como
também nessa leitura incluíram uma mistura de vida e obra. Assim como, alguns engodos,
advindos da inspiração poética etc., ao levarem ao da letra a convenção romântica nas
análises empreendidas.
Além disso, ao observarmos a recepção da obra de Azevedo, até recentemente,
destoando deste percurso muitos trabalhos como o de Cilaine Alves, era consenso não vê-
lo como um autor juvenil, típico poeta do ultra-romantismo, como também encará-lo como
um autor sem grandes reflexões em sua obra. Por certo, este é o principal registro sobre o
poeta, e continuará, visto que, mesmo com todas as propostas de leituras empreendidas por
críticos do final do século XX, e de revisão do cânone, elas ainda não envolveram uma maior
preocupação que pudesse revisar e modificar determinadas leituras que ficaram cristalizadas
no conjunto da recepção de obra alvaresiana. Afinal “[...] entrar para o Panteón não deixa de
significar a cristalização, a morte na imortalidade da oficialização [...]” (CAIRO, 2005, p. 92).
Ademais, mesmo com alguns equívocos de leituras e de algumas das opiniões que se
tornaram consenso em torno de Azevedo e de sua obra é possível fazer ainda, em linhas
gerais, um levantamento das histórias literárias, a fim de mapear como se deu tanto o processo
de formação do cânone, quanto à recepção desse poeta. Com esse procedimento, podemos não
esboçar a ambientação que a obra de Azevedo foi recepcionada, como também perceber a
formação das primeiras histórias da literatura e as posteriores que demonstram acima de tudo
uma preocupação com assuntos, por exemplo, da inserção ou não de determinados autores
dentro do cânone, ou mesmo numa visão reducionista, de sua própria estruturação, mas nunca
um olhar que atente para as idéias cristalizadas ao redor de um autor.
Por outro lado, é compreensível que a formação do cânone e de sua própria
permanência no quadro literário brasileiro, requer um olhar pormenorizado dos procedimentos
políticos que o envolveu. Afinal,
o cânone da literatura brasileira é fruto das discussões dos primeiros
historiadores e críticos brasileiros que, após a independência política, em
1822, ocuparam-se com a construção de uma história do Brasil e a invenção
de uma literatura que representasse a identidade da nação recém-surgida,
seguindo assim as diretrizes do projeto oficial do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, com o apoio oficial do Imperador
Dom Pedro II (CAIRO, 2005, p. 95).
Empreitada esta, levada tão a sério, que, posterior àquela efervescência, Sílvio
Romero, em sua História da literatura, de 1888, num momento não muito discernente, coloca
Álvares de Azevedo como um autor brasileiro, filho desta terra, que nos capacitou
definitivamente no rompimento com a exclusiva influência da literatura portuguesa. O que
161
fora consenso entre os primeiros escritores e críticos românticos, isto é, desvincular o Brasil
culturalmente da antiga metrópole, para Sílvio Romero, em 1888, ainda era um fator
relevante, visto que para ele, tal acontecimento somente se concretizou com os escritores de
meados do século XIX e, sobretudo, com Álvares de Azevedo. A exemplo, basta vermos
como Romero se pronuncia a respeito disto:
O tempo de Álvares de Azevedo foi, especialmente em São Paulo, uma fase
de agitação, de liberalismo, de entusiasmo, de movimento de idéias e
opiniões. Ali se acharam reunidos aqueles moços que levaram por diante os
dois maiores fenômenos da literatura da época.
Em Azevedo melhor do que em nenhum outro distingo eu os dois sintomas:
é ele um produto local, indígena, filho de um meio intelectual, de uma
academia brasileira; arranca-nos de uma vez da influência exclusiva
portuguesa.
Antes de Azevedo, os outros chefes, como Porto Alegre, Magalhães e
Gonçalves Dias, tinham ido estudar na Europa. nem falo nos escritores
coloniais, porque quase todos eles fizeram cursos no Velho Mundo
(ROMERO, 2000, p 27).
Ou seja, visto que o crítico não simpatizava com a influência da literatura portuguesa e
muito menos com a idéia do indianismo como sinônimo de tradição cultural e nacionalismo
brasileiro, Sílvio Romero busca outros meios para dissociar a nossa literatura daquela, e ao
mesmo tempo criticar a formação das letras, que aqui foram forjadas, inicialmente, pelos
vieses nativista e indigenista. Com isso, Romero argumenta que a concepção de uma literatura
genuinamente brasileira se daria por fatores adversos daqueles apontados pelos primeiros
românticos. Nessa conjetura, o crítico acredita que o diferenciador entre as duas nações se
pauta em elementos como a mestiçagem do povo brasileiro, mesmo porque,
em seu pensamento, prevalece a idéia de uma raça mestiça. Sendo os
brasileiros frutos do cruzamento entre o índio, o negro e o europeu. A partir
desse conceito, ele insere o “americanismo” na poesia, que seria o resultado
da raça mestiça e das tradições populares, sendo os fatores étnico,
sociológico e mesológico os responsáveis pela nacionalização da literatura.
Portanto, em sua crítica, interessa o estudo dos fatores externos (crítica
sociológica) que condicionavam a realização da obra e não os seus caracteres
de estilo. Além de ser mestiço, Álvares de Azevedo estudou no Brasil, fato
que significou para Sílvio Romero um avanço à nacionalização de nossa
literatura, libertando-nos de vez da influência portuguesa. Este é um dos
critérios nos quais Romero irá se basear para determinar o grau de
superioridade de um escritor, como ele próprio afirma: ‘Tanto mais um autor
ou um político tenha trabalhado para a determinação de nosso caráter
nacional, quanto maior é o seu merecimento. Quem tiver sido um mero
imitador português, não teve ação, foi um tipo negativo’ (PANDOLFI, 2000,
p. 31-32).
Romero, se por um lado, destoa dos argumentos que viriam a se convencionar em
torno de Azevedo, isto é, a imagem de um poeta antinacionalista, que o autor de Lira dos
162
Vinte Anos não adere a um romantismo com propósitos nacionalizante; por outro lado, com
um pensamento que agrega fatores como a mestiçagem, as tradições populares etc, Sílvio
Romero, a todo custo, busca enquadrar o que não se enquadraria, ou melhor, por meio de uma
visão generalizada, ele afirma que Álvares de Azevedo, filho de um meio intelectual
brasileiro, possibilitou o rompimento da nossa literatura com a portuguesa. Entretanto,
Álvares de Azevedo não renega ou exclui a importância daquela literatura em nossas letras,
como podemos perceber claramente em seu estudo “Literatura e Civilização em Portugal”. Ou
seja, o argumento do crítico atinge tal desproporção, que ele desconsidera alguns dos mais
importantes escritores românticos nacionalista, pelo simples fato daqueles autores terem ido
estudar na Europa.
No entanto, “o cânone da história da literatura brasileira construído, não muito
tranqüilamente, pelos escritores românticos, permaneceu vivo ao longo dos anos, apesar das
diferentes leituras e releituras, que dele fizeram os críticos das mais variadas tendências”
(CAIRO, 2005, p. 92). Ou seja, mesmo que houvesse e houve, a exemplo de Sílvio Romero
(crítico de tendência cientificista), uma variação de matizes sobre o nacionalismo literário no
cânone brasileiro, a preocupação nacionalista, cunhada pelos primeiros românticos, continuou
por um longo período como questão central na formação da tradição literária no Brasil.
Afinal,
[...] [os] críticos e historiadores inspirados nas idéias românticas européias
estabeleceram um none para a literatura brasileira formado por autores e
obras mais representativos do que entendiam por brasilidade, uma idéia geral
do país baseada na necessidade de expressar características nacionais,
diferenciando-se assim das origens das demais literaturas européias, cujos
cânones eram marcados, conforme a leitura pertinente de João Alexandre
Barbosa, ‘por um forte apelo classicizante, dando como resultado uma rígida
hierarquização de gêneros, raças e modelos culturais, que somente será
abalada pelos movimentos multiculturais de anos recentes’ (CAIRO, 2005,
p. 96).
Apesar disso, se por um lado, torna-se um fato curioso e dá origem a especulações que
Álvares de Azevedo, embora não se preocupasse com as questões de ordem puramente
nacionalista em sua obra, fosse agregado, posterior àquelas discussões, ao cânone da história
da literatura que estava sendo esboçado. Por outro lado, conjecturamos a possibilidade que a
inclusão de Azevedo no cânone se deva não à excelente receptividade que teve entre os
leitores e entre os poetas que o sucederia logo após a sua morte, como também pelos estudos
críticos que sua obra suscitou ao longo dos anos, cujo marco se inicia “a partir de 1856,
quando suas produções em verso e em prosa tornaram-se mais conhecidas” (PANDOLFI,
2000, p. 24). Além disso, poderíamos também conjectuar que pela versatilidade do uso do
163
termo literatura, empregado pelos primeiros críticos e historiadores da literatura, visto sob
uma ótica abrangente que contribuiria para a formação do cânone e de uma tradição cultural
brasileira, tenha cooperado para integrá-lo, de imediato, no quadro da literatura brasileira.
Embora, “a recepção de Álvares de Azevedo no século XIX refl[ita] a preocupação
dos críticos em torno da nacionalidade de nossa literatura, assim como a influência das teorias
naturalistas e positivistas vigente na época” (PANDOLFI, 2000, p. 34), a sua produção
artística foi de grande importância para a formação da literatura brasileira. E pelo que
podemos observar, recentemente, sua obra continua despertando interesse tanto em leitores,
quanto em pesquisadores, o que possibilita-nos dizer que o poeta e sua obra, visto por meio de
trabalhos recentes, continuam atuais.
Todavia, presente em estudos críticos de autores como Domingos Jaci Monteiro, de
1852 e 1862; Lopes de Mendonça, de 1855; Lindorf França, de 1856; Ferdinand Wolf, de
1863; Machado de Assis, de 1866; Anastácio Luís do Bonsucesso, de 1867; Emílio Zaluar, de
1868; Joaquim Norberto, de 1873 (que com sua investigação biográfica sobre Álvares de
Azevedo, contribuiu para propagar algumas lendas sobre o poeta); Joaquim Nabuco, de 1875;
Joaquim Manuel de Macedo, de 1876; J. A. de Freitas, de 1877; Soares Romeu JR., de 1877 e
J. C. F. Pinheiro, de 1883, Álvares de Azevedo entra em definitivo para o cânone literário,
mesmo com a tentativa enviesada do crítico de enquadrá-lo na lista de escritores nacionais, na
História da Literatura Brasileira, de 1888, de Sílvio Romero.
É verdade que, com Romero, a obra de Álvares de Azevedo foi apreciada sob alguns
aspectos positivos (como assinalamos na primeira parte desta dissertação), mas em outros
especulativos (como também destacamos, mas que torna-se pertinente reiterarmos), que
o historiador ao analisar a obra do poeta paulista incorpora sugestões de ordem
especulativamente pessoal do autor de Macário, atribuindo desde um desarranjo orgânico até
uma maléfica influência dos escritores europeus como elementos determinantes de sua obra.
Por outro lado, anterior a Sílvio Romero, não houve, no conjunto de esboços iniciais
das histórias literárias, um autor de grande notabilidade, cujas preocupações fosse a inclusão
do autor de Lira dos Vinte Anos em obras desse gênero, mesmo porque, a de Romero é
considerada a primeira história de nossa literatura, que, segundo Antonio Candido, se pode
realizar satisfatoriamente. A não ser uma suposição especulativa que encontramos em nota de
rodapé do segundo volume de Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, em
que Américo Vespúcio dos Reis, filho de Sotero dos Reis, afirma que seu pai tencionava
incluir o poeta paulista em seu Curso de Literatura Portuguesa e Brasileira (1866-1873): “no
prefácio ao volume, de publicação póstuma, diz seu filho Américo Vespúcio dos Reis que
164
[seu pai] pretendia estudar Álvares de Azevedo [...](CANDIDO, 2000, p. 316). O que, de
certo modo, evidencia que Azevedo seria incluso em um livro que é considerado por Candido
(2000, p. 315), como “o mais considerável empreendimento no gênero, antes de Sílvio
Romero”.
Além disso, retomando ainda, algumas das discussões que se formou em torno do
cânone literário, podemos perceber que a elaboração das histórias literárias foi um processo
longo, um percurso coletivo, em que muitos autores contribuíram para enfim, com Sílvio
Romero, o Brasil tivesse uma obra de peso nesse gênero (CANDIDO, 2000). Todavia, para
que possamos compreender alguma dessas etapas de elaboração de uma história da literatura,
é preciso inferir, que a proposição central daqueles estudiosos, se arrastou desde os primeiros
esboços históricos com Januário, Pereira da Silva e Varnhagem, até Romero na “[...] idéia
geral do país baseada na necessidade de expressar características nacionais, diferenciando-se
assim das origens das demais literaturas européias” (CAIRO, 2005, p. 96). Em outras
palavras,
na primeira metade do século XIX, observa-se, no Brasil, um americanismo
marcado pelas idéias românticas européias, em resposta principalmente à
lusofobia reinante na ex-colônia politicamente recém emancipada. A elite
intelectual brasileira buscava como parte da construção da nação brasileira, a
constituição de maior autonomia cultural.
O Romantismo europeu, na medida em que reage à universalidade da
Ilustração, defendendo as especificidades nacionais, veio preencher as
expectativas da elite letrada brasileira em busca de sua emancipação mental
(CAIRO, 2007, p. 25).
Com isso, é compreensível que
[...] o Romantismo brasileiro tende[u], no terreno crítico, para a informação
e a sistematização histórica, tentando coroar os magros bosquejos iniciais
como uma vista coerente e íntegra da nossa literatura passada. A sua longa e
constante aspiração foi, com efeito, elaborar uma história literária que
exprimisse a imagem da inteligência nacional na seqüência do tempo –
projeto quase coletivo que apenas Sílvio Romero pôde realizar
satisfatoriamente, mas para o qual trabalharam gerações de críticos, eruditos
e professores, reunindo textos, editando obras, pesquisando biografias, num
esforço de meio século que tornou possível a sua História da Literatura
Brasileira, no decênio de 80 (CANDIDO, 2000, v. 2., p. 310-311).
Mesmo porque,
visto de hoje, esse esforço semi-secular aparece coerente na sucessão das
etapas. Primeiro, o panorama geral, o “bosquejo”, visando a traçar
rapidamente o passado literário; ao lado dele, a antologia dos poucos textos
disponíveis, o “florilégio”, ou “parnaso”. Em seguida, a concentração em
cada autor, antes referindo rapidamente no panorama: são as biografias
literárias, reunidas em “galerias”, em “panteons”. Ao lado disso, um
incremento de interesse pelos textos, que se desejam mais completos; são as
edições, reedições, acompanhadas geralmente de notas explicativas e
165
informação biográfica. Depois, a tentativa de elaborar a história, o livro
documento, construído sobre os elementos citados (CANDIDO, 2000, v. 2.,
p. 311).
Ademais, com essa explanação de Candido, é possível perceber que para se chegar às
histórias literárias houve um percurso evolutivo. Ou seja, por meio de obras, que se arrastaram
desde os bosquejos, os florilégios ou parnasos, até as biografias literárias, que por sua vez
culminará na estruturação e formação das histórias literárias, ou melhor, da primeira obra
desse gênero. No entanto, as histórias literárias herdarão um pouco da metodologia das
biografias literárias, isto é, na investigação biográfica, que se formou em torno dos escritores
brasileiros, cujos resultados demonstram alguns procedimentos um pouco especulativos sobre
a vida de determinados escritores, que será conduzida a outras histórias da literatura
brasileira:
Além da iniciativa de elaborar um corpus pela publicação de textos, a tarefa
imediata rumo à história literária eram as biografias, isto é, o conhecimento
dos indivíduos responsáveis pelos textos, como exigia cada vez mais a nova
crítica, adequada ao espírito romântico. A ela se atiraram muitos no Brasil.
Com a pressa era grande e nem todos possuíam o senso da exatidão,
deixaram-se ir freqüentemente ao sabor das inferências arriscadas,
conclusões rápidas, e, mesmo, imaginação pura e simples (CANDIDO,
2000, v. 2., p. 312).
Quando vem a lume a História da literatura brasileira de Sílvio Romero, o conceito
de literatura era ainda bastante abarcante, e com esse livro não será diferente, “o que nos leva
a pensar nesta primeira história da literatura como uma verdadeira história da cultura e da
civilização brasileira” (CAIRO, 2005, p. 96).
Um enxugamento no cânone da literatura brasileira somente ocorreria com a
publicação do livro de José Veríssimo, História da literatura, de 1916 (CAIRO, 2005). Com
essa segunda história da literatura brasileira, Veríssimo possibilitou uma redução do cânone
literário, visto que para o historiador, o conceito de literatura seria mais simplificado, ou seja,
uma obra literária seria apenas “o escrito com o propósito ou a intenção desta arte”
(VERÍSSIMO apud CAIRO, 2005, p. 97).
Mesmo com esta preocupação de enxugamento do cânone e o olhar diferenciado do
que vem a ser literatura, o que ainda se é uma abrangência e permanência do cânone
literário, ou seja,
no processo histórico da história da literatura brasileira, durante muito
tempo, percebe-se a permanência de um cânone literário marcado por um
critério de cunho meramente quantitativo, cujo objetivo parece ter sido
apenas afirmar a existência de uma herança literária nacional cumulativa”
(CAIRO, 2005, p. 98).
166
Tais discussões, no entanto, somente ganharão novos direcionamentos em meados do
século XX, visto que haverá uma variação no cânone literário, cujas preocupações críticas
serão observar o texto literário:
A década de 50 do século XX é marcada pela idéia de ruptura que se revela
na passagem de uma crítica topológica para uma crítica tropológica, ou seja,
na mudança de método de como ler o texto literário, o que significou o
encontro do leitor com a malha, o tecido do texto literário (CAIRO, 2005, p.
99).
Mas, é somente no final do século XX, que haverá uma preocupação e tentativas de
rever o cânone literário, com discussões que ainda virá em torno do que vem a ser literatura,
diferenciando apenas com questões mais centrais como a literariedade do texto, ou mesmo a
valorização de ordens estéticas:
Nos anos 90, portanto, com a proximidade da passagem do século, ocorrem
tentativas de revisões do cânone literário, resultantes de desconstruções de
conceitos como o de literariedade, num passado recente, verdadeiro divisor
das águas entre os discursos literários e não-literários, de valores como o
estético que passa a ser visto como apenas um dentre outros (CAIRO, 2005,
p. 1009).
Houve outras histórias da literatura, bem como outros textos críticos que se
preocuparam em rever o cânone da literatura brasileira. Mas, de um certo modo, continuam se
preocupando com questões concernente ao jogo político de inclusão de escritores que ficaram
à margem do cânone tradicional e que ultimamente têm se tornado objeto de estudo. Com
isso, sugere-se substituir o cânone único e oficial por um mais aberto, que possibilitaria a
admissão de um maior número de autores (COUTINHO apud CAIRO, 2005).
Mesmo com todos esses rastreamentos, o que pretendemos não é provocar discussões
em torno de uma revisão do cânone de forma categórica e abrangente, visto que não é a
preocupação geral deste trabalho, mas apontar determinados aprimoramentos de leitura que se
pode acrescentar sobre determinado escritor e, claro, ao nosso objeto de estudo: Álvares de
Azevedo e sua produção literária. Mesmo porque, como já assinalamos, a historiografia
literária, bem como determinadas metodologias críticas cristalizaram na obra de Álvares de
Azevedo o rótulo de uma literatura oriunda, ora da inspiração romântica, da genialidade do
poeta e da alienação do mundo, ora da transposição real ou irreal da experiência vivenciada.
Por esses argumentos, a produção artística do autor de Macário não seria
desprovida de qualquer senso crítico, mas também de uma consciência literária. Tal idéia cria-
se, portanto, um distanciamento com a verdadeira concepção da poética de Azevedo que,
implicando uma artificialidade, pois que remete a uma criação arquitetada, foi consolidada
167
pela sua capacidade reflexiva individual, cuja abrangência pressupõe a conscientização do
fazer literário.
Ao recusar tais probabilidades, tanto os historiadores da literatura, quantos os críticos
solidificaram uma visão sobre o autor de Lira dos vinte anos, que, insistentemente, continua
inscrita no cânone da literatura brasileira: a de um poeta do ultra-romantismo, no sentido
pejorativo da palavra. Nessa asserção, a obra azevediana não seria marcada pela ausência
de reflexão, possibilitada pela espontaneidade criadora e pela transposição de fatos pessoais,
como também seria reflexo de um autor que estava voltado para si mesmo, com uma atitude
pessimista e entediado diante da vida, sonhava com amores impossíveis e não se preocupava
com os fatores político-sociais.
Quando observamos alguns do muitos textos sobre a produção artística de Álvares de
Azevedo, é possível compreender que, embora possam trazer grandes elucidações sobre a
poética alvaresiana, eles ainda carregam muitas idéias retomadas de outros estudiosos da
literatura. Com isso, sempre a perpetuação de algumas análises sobre a obra do poeta
paulista que, ao invés de renovar a abordagem metodológica, criou uma continuidade com
alguns problemas de leitura. Mesmo com os ensaios de alguns estudiosos, que se propõem a
examinar a obra de Azevedo por suas especificidades, buscando revogar alguns equívocos de
leituras, o que ainda se nas histórias literárias, em textos críticos e mesmo nos livros
didáticos é a propagação daquele estereótipo do autor de Macário.
Apesar disso, cabe ressaltar uma vez mais, que muitos críticos acrescentaram àquela
visão estereotipada outros agravantes sobre a concepção da poética de Álvares de Azevedo,
que estagnada, constitui a compreensão de sua obra atualmente. Em outras palavras, o autor
de Lira dos Vinte Anos é ainda visto como um poeta romântico juvenil, que além de ter sido
influenciado por Byron, não tinha uma maturidade artística. O que, de certo modo, segundo
esta ótica, explicaria a sua abordagem mais abrangente do fazer literário, visto que ele não se
preocupou com as questões centrais de adesão e formação da literatura no Brasil pelo
nacionalismo dos primeiros românticos.
Contudo, desconsiderando os clichês que lhe impuseram, acreditamos que Azevedo foi
um bom leitor, que, antes de iniciar sua produção literária, ele já sabia quais eram os
norteadores dela. Pautados nesse princípio, buscamos um entendimento mais esclarecido
sobre a postura e consciência dele no quadro da literatura brasileira. Por esse caminho, como
afirmamos no primeiro capítulo, a nossa hipótese de trabalho segue em direção oposta dos
muitos argumentos críticos que ficaram estabelecidos na recepção crítica da obra de Álvares
de Azevedo.
168
Nessa acepção, nos propomos a trabalhar com algumas das principais idéias que, por
muito tempo, ficaram convencionadas em torno de Azevedo, sugerindo, assim, uma proposta
de revisão de alguns dos argumentos que a metodologia crítica pautada no psicobiografismo
tem suscitados até recentemente. Ou seja, uma das preocupações que aqui se faz presente é
rever alguns dos principais equívocos de leitura que ficaram cristalizados na recepção crítica
do poeta paulista.
Desse modo, é compreensível que valorizemos uma abordagem analítica a exemplo do
que fizera os críticos que trabalharam a obra de Azevedo pelas suas especificidades internas,
como primeira preocupação e, se possíveis, externas, como as teorias românticas e as
inúmeras vertentes que ele suscitou, bem como o contexto histórico e social. O que
possibilitaria a nós, um olhar diferenciado sobre o poeta e sua obra, cujos resultados, em
nossa segunda parte desta dissertação, têm apontado para uma capacidade crítica e consciente
na elaboração e concepção de sua produção artística.
Nesse sentido, a nossa preocupação estaria consonante com a crítica atual, cuja
abordagem metodológica tem sido a de que se atente ao resgate e valorização da obra a partir
do contexto atual, trazendo-a à luz com uma reinterpretação de novas tendências. E é a partir
daí que se pode contribuir com uma revisão da crítica azevediana, pensada de forma a
contestar juízos críticos cristalizados e clichês que se repetem.
Por um lado, ao influir nossos argumentos sobre a revisão da crítica literária, é
necessário compreender que, de acordo com a Estética da Recepção, “uma obra não perde o
seu poder de ação ao transpor o período em que apareceu; muitas vezes, sua importância
cresce ou diminui no tempo, determinando a revisão de épocas passadas em relação à
percepção suscitada por ela no presente” (ZILBERMAN, 1989, p. 113). Nesse sentido,
procuramos levantar alguns pontos que auxiliem na compreensão e superação de determinada
visão cristalizada da obra de Álvares de Azevedo no dias atuais.
Por outro lado, devemos compreender também que, no conjunto de concepções
críticas, o valor e o sentido de uma obra podem sofrer modificações no decorrer do tempo,
que, ao registrar suas impressões de leitura, o crítico revela as marcas de seu tempo e de seu
cabedal literário, influenciando, muitas vezes, na difusão do poeta e na recepção de suas
obras. Desta forma, o valor da obra não deve ser considerado a partir de sua classificação
dentro de um gênero ou levando-se em conta a maneira com que ela foi recebida num dado
momento, mas deve-se atentar para as diferentes leituras que ela foi recebendo através dos
tempos. Uma obra literária pode conter uma estrutura que está muito além do horizonte de
expectativas de um leitor, ou seja, distante do sistema de normas e atitudes de um dado
169
período. Desse modo, pode ocorrer que tal produção seja rejeitada em um dado momento e
reabilitada em outro, como se verifica, por exemplo, com a recepção da prosa de Álvares de
Azevedo no século XIX e XX (PANDOLFI, 2000).
Como assinala Pandolfi, há, em determinada época, a retomada de parte da obra de um
autor valorizando um tipo de produção em detrimento de outra. Nessa esteira podemos ver no
capítulo “A poesia de Álvares de Azevedo”, da história literária de Luiz Roncari, Literatura
Brasileira, de 1995, em que uma retomada da poesia de Azevedo. Afinal, o autor faz uma
seleção de alguns dos mais conhecidos poemas de Azevedo, bem como uma listagem do
que parece de melhor para Roncari da poesia do poeta paulista. Depois dessa seleção, o crítico
faz um breve comentário daquelas poesias selecionadas e da própria proposta da poesia de
Azevedo presente no prefácio à segunda parte de Lira dos vinte anos. Ou seja, podemos
inferir a preferência de Roncari pelas poesias de Azevedo e pelo interesse pelo prefácio à
segunda parte de Lira, deixando de lado a produção em prosa do escritor paulista.
Com isso, como aponta Pandolfi, houve em determinada época uma preocupação e
abordagem diferenciada tanto das metodologias críticas, como também da valorização de uma
parte da obra de Azevedo em detrimento da outra:
[...] os períodos de maior interesse da crítica literária pela obra de Álvares de
Azevedo, no século XIX, correspondem aos primeiros anos após a
publicação de suas obras até o final da década de 1880, quando se verifica,
pelo número de textos encontrados, um acentuado desinteresse que vai se
estender até o início da década de 1910. Esta freqüência com que o poeta foi
lido e admirado, sobretudo, após 1850, pode ser observada também no
número de publicações de suas Obras Completas, que entre os anos de 1855
e 1900, contava com sete edições. Contudo, a oitava edição somente veio
a lume em 1942.
Os períodos de menor interesse da crítica pelas obras do poeta situam-se
entre o final do século XIX e início [...] [do] século [XX], quando as
cadências melodiosas de sua poesia romântica e a atmosfera fantástica e
macabra de sua prosa passam a perder o seu espaço para o verso dos
parnasianos e para os romances realistas. Contudo, a partir de 1910 constata-
se uma freqüência maior de estudos publicados, período em que se verifica
um acentuado interesse da crítica pelo estudo da biografia, além de ser
apontado por Ronald de Carvalho (1919) como um precursor dos
simbolistas. Na década de 20 verifica-se um declínio na publicação de
estudos sobre o poeta, que somente volta a despertar um notável interesse a
partir de 1931, ano em que se comemora o centenário de seu nascimento.
Além de estudos críticos que retomam a poesia e a prosa, perfazendo um
total de vinte e oito títulos, são publicadas também as cartas do poeta,
contribuindo, assim, para o aprimoramento dos estudos azevedianos, que
tiveram um grande impulso graças ainda à polêmica que se acirrou em torno
do estudo “Amor e Medo”, de Mário de Andrade, publicado em 1931.
A partir da década de 30, o interesse da crítica pelo poeta aumentou
consideravelmente, surgindo na década de 40 a oitava edição de suas Obras
Completas e outras edições separadas da prosa, que tiveram seus estudos
retomados, sobretudo, na década de 50, quando a análise das influências
170
passa a despertar um grande interesse da crítica, impulsionada que foi pelas
novas tendências vigentes nos estudos de Literatura Comparada. É a partir
desse período também que Álvares de Azevedo passa a ser estudado sob o
aspecto do humor e da ironia, e consagrando nas décadas de 80 e 90 como
um poeta atual, sendo objeto de estudo de várias dissertações de mestrado.
Tornam-se freqüentes as reedições de suas obras e o poeta é citado
constantemente em “sites” na Internet, ao lado de poetas como Pablo
Neruda, Cecília Meireles, Carlos Drummond de Andrade e outros, além da
presença avultada de “sites que apresentam antologias de seus poemas de
amor, humor, morte e trechos de sua obra em prosa, sobretudo, de Macário
(PANDOLFI, 2000, v. 1, p. 74-75).
Desse modo, é compreensível que a produção literária de Álvares de Azevedo possa
ser abordada em suas várias facetas, quer seja a poesia, quer seja a prosa. De mais a mais,
também um olhar diferenciado por ambos os estudiosos da obra de Azevedo, cuja recepção
crítica, que compreende mais de um século e meio de estudos sobre o autor de Macário, tem
apontado ora na retomada da poesia ora na retomada da prosa.
Em suma, nos preocupamos neste trabalho dissertativo com a obra de Álvares de
Azevedo em suas especificidades, buscando trabalhar questões de ordem que impliquem a
valorização pelo que ela é, sem que para isso façamos livres associações de vida e obra, de
juízos que se cristalizaram em torno de sua recepção crítica, bem como determinados
argumentos que persistem no cânone literário.
A partir desse momento, nos propomos a rever alguns juízos críticos sobre a obra do
autor de Lira dos vinte anos. Já num segundo momento, apontaremos características da
produção alvaresiana (alguns poemas), em que ressalta um autor crítico e consciente do seu
papel enquanto poeta. Assim, inicialmente, abordaremos uma das questões mais caras à
recepção da poesia azevediana: a influência de escritores como Byron e Musset.
Contudo, antes de entrarmos no assunto, gostaríamos de voltar à possibilidade que a
intertextualidade sugere quando abordamos um texto literário. Afinal, um texto revela uma
radical relação de seu interior, o texto em si, com seu exterior, ou seja, outro texto. Ele
determina o diálogo que retoma, que alude, isto é, se partirmos do pressuposto de Barthes, no
qual, “todo texto é intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob
formas mais ou menos reconhecíveis” (BARTHES, 1974). Assim, ao nos valermos disso, o
nosso intuito é observar que a relação de uma literatura com uma outra, antes de ser um
empecilho, isto é, resultar a sugerida influência como objeto depreciador (negativo) de uma
dada obra literária, é antes de tudo um fato enriquecedor, pois “[...] as obras literárias, como é
bem sabido, não se fazem apenas de reações a estímulos internos ou externos, mas incluem,
em suas elaborações, a leitura de outras obras” (BARBOSA, [199-], não paginado).
171
Nesse aspecto, afirmaríamos que antes de julgar a obra de Azevedo como reflexo
direto da influência, seria necessário percebermos que, por meio da intertextualidade, o
escritor está apto a dialogar com outras literaturas, bem como construir sua própria, sob
formas mais ou menos próximas de outros textos, o que nada o prejudicaria em sua
originalidade, uma vez que esta consiste em retomar o que já foi feito e transformá-lo em algo
que possua características novas e, portanto, original.
Além disso, deveríamos ser comedidos ao atribuir definitivamente a influência de
Byron e Musset como os sóis, o norte, da obra de Azevedo. Essa precaução, em parte, se
originou nas conclusões que Maria Alice de Oliveira Faria (1973), em Astarte e a Espiral: um
confronto entre Álvares de Azevedo e Musset, constatou entre os poetas, que mais pontos
de contatos entre a literatura de um e de outro do que influência direta. O que há, afirma a
autora, são pontos em comum entre as obras, o que não determinaria uma dívida por parte de
nosso poeta ao escritor francês. Mesmo porque, se recorrermos à intertextualidade é, de certo
modo, compreensível e admissível a relação entre as duas literaturas.
Quanto a Byron, o próprio Machado de Assis (2000, p. 25) toca o cerne da questão:
“cita-se a propósito do autor da Lira dos vinte anos, o nome de Lord Byron, como para indicar
as predileções poéticas de Azevedo. É justo mas não basta”. Isso se deve ao fato de que
naquela época não havia um estudo comparativo entre os dois poetas, mas apenas
especulações sobre declarações de Azevedo em seus estudos literários, bem como os recursos
temáticos e estéticos em que sua obra sugeria uma predileção ao “bardo” inglês
42
. Tal
ausência se estende ainda aos dias atuais e, portanto, não como julgar se houve uma
influência tão devastadora, que impediu o poeta brasileiro de desenvolver sua individualidade
criadora
43
.
No entanto, se recorrermos a Onédia Barbosa, em seu livro Byron no Brasil:
Traduções, de 1975, nós encontraremos uma afirmação bastante curiosa, de que Azevedo, ao
traduzir trecho do poema Parisina, de Byron,
levado talvez pelo seu próprio byronismo, transfigurou o crepúsculo de
Byron, tornando-o mais sombrio na tradução. [...] Álvares de Azevedo omite
o adjetivo ‘clear’ e traduz dark’ por ‘negro’. E apresenta-nos no final um
céu ‘negro’, sudário apropriado para um dia que ‘morre’ nas nuvens,
segundo a sua imagem, bem mais byroniana certamente que a do próprio
Byron, que alude ao declínio do dia, e não à sua morte. (BARBOSA, 1975,
p. 163, grifo da autora).
42
Contudo, sabemos que Azevedo sabia ler alemão e francês, e declarou abertamente que conhecia outros
escritores como Shakespeare e Hoffmann, os quais também contribuíram para a formação de Azevedo. Nesse
sentido, ao citar Byron como a principal influência do poeta paulista, estamos reduzindo as leituras dele.
43
Tal fato contraria o próprio romantismo que acreditava na originalidade de cada autor, isto é, na sua
individualidade, subjetividade e que, portanto, resultaria numa obra única, particular.
172
Poderíamos dizer que, se nessa tradução traços distintos entre um e outro, na obra
de Azevedo o mesmo poderia ocorrer. Assim, antes de aderirmos a qualquer juízo crítico, é
necessário fazer uma leitura apropriada do texto literário, pois, como afirma Donald Schüler
(1981, p. 36), “a crítica literária é uma forma de leitura literária. Cuidado básico do crítico
literário deverá ser o de elaborar uma escrita-leitura adequada à escrita”.
Dessa maneira, a leitura propriamente dita de uma obra seria mais assertiva e não
concorreria para disseminar equívocos que nada explicam acerca do ato criacional de um
autor. Temos consciência de que, ao afirmarmos isso, estamos numa posição bem confortável
no que concerne ao avanço do campo da crítica, que aqueles críticos não poderiam ainda
saber de tais questões. Nossa preocupação, contudo, se por conta de críticos, mais
próximos de nós, que continuam a ler a obra azevediana passivamente, isto é, repetindo o que
já foi dito.
Outro equívoco que devemos superar na leitura da obra de Azevedo é a especulação
sobre sua vida particular, que misturada a lendas ganhou proporções míticas. O certo é que
essa leitura biográfica, além de não ajudar a compreender a obra do poeta, tem concorrido
para fraudar os fatos mais prováveis sobre Azevedo que não foi anjo nem demônio (como
sugere Romero), apenas teve uma vida particular que não ajuda (e não nos interessa) a
explicar a concepção de sua obra. Quando se recorre a este veio, o que de fato ocorre é um
pré-julgamento equivocado, e difundido por determinados críticos.
Nessa linha de crítica, foram muitos os equívocos dos críticos anteriores e pósteros a
Machado de Assis (considerado por nós, mesmo ele fazendo uma leitura biográfica, como um
dos melhores críticos do século XIX). No entanto, a recepção da obra de Azevedo agravou-se
no século XX, com o texto “Amor e Medo” (divisor de águas na recepção da obra de
Azevedo) do escritor de Paulicéia Desvairada, que atribuiu ao poeta uma homossexualidade,
um complexo de Édipo, bem como a sugestão de um amor incestuoso com a irmã Maria
Luísa. Nessa esteira, também situa-se o livro A escola byroniana no Brasil, de 1969, de Pires
de Almeida, que contorceu de tal modo os fatos e a vida de Azevedo, que dificilmente
deixaríamos de acreditar que o poeta não fosse um satânico perverso e devasso. Este livro,
bem como o ensaio de Mário de Andrade, trazem idéias equivocadas, em que sobressaem
mais imaginações de seus autores do que fatos verídicos.
A obra azevediana foi explorada sob todas as formas pela leitura biográfica. Em torno
dessa postura crítica, formaram-se duas visões sobre o poeta: uma afirmava que Azevedo foi
um rapaz puro, meigo, conhecendo as irregularidades da vida apenas pelos livros (visão
adotada inicialmente por Machado de Assis); outra acreditava que o poeta era um devasso,
173
que viveu muitas aventuras ultra-românticas. Enquanto a primeira suposição tem como
objetivo elevar o caráter do escritor, a fim de negar qualquer aproximação com sua obra, e
que, portanto, a sua poética era fantasiosa, fruto da imaginação romântica, a segunda, procura
deturpar o caráter do homem, para elevar a obra de Azevedo, bem como dar respaldo às
afirmativas de que o autor de A noite na taverna e Macário era condizente com sua prática
literária (ROMERO, 2000). No entanto, essas duas vertentes tornam-se paradoxos que, além
de não esclarecer sua vida, também não colaboram para a compreensão de sua produção
literária.
O poeta romântico pode ser observado em dois momentos distintos. No primeiro deles,
mostra-se capaz de dar forma a sua individualidade; noutro, tornou-se tima de sua
subjetividade, levada ao extremo pelo movimento ao qual se filiara e pelos críticos
psicobiográficos. Decerto, o efeito dessa valorização do eu tornou-se objeto de curiosidade
para o público em geral, que tende a apreciar e a criar ao redor do escritor um certo culto à
personalidade, também vista e requerida pelos críticos, responsáveis, em parte, pela recepção
do autor junto ao público. Nessa visão, a obra de Azevedo deixa de ser considerada objeto
artístico em si, para tornar-se expressão da personalidade do poeta. Criando assim, um
personagem, que se adapta e desperta o interesse nos estudiosos e leitores, que “[...] concedem
um valor absurdamente alto ao gênio pessoal, ao carisma do escritor, mas exige também uma
secreta desforra, ele deve fazer o jogo o seu jogo –, deve distorcer a sua personalidade para
se adaptar ao seu gosto. Byron fazia-o quando usava uma camisa com o colarinho aberto e
assegurava que os botões de jacinto estivessem emaranhados como deveria ser”
(MACDONALD, 1971, p. 94).
Álvares de Azevedo, entretanto, em sua obra, zomba das mesmas atitudes românticas
que adotou em muitos poemas
44
. Assim, quando aqueles críticos colocam premissas
fantasiosas sobre a vida do poeta, podem ter contribuído para agradar e estimular o público a
ler a obra do autor. Talvez fosse essa a melhor contribuição dos críticos psicobiográficos,
mesmo disseminando equívocos sobre a compreensão geral da obra.
Em terceiro lugar, apontamos, inicialmente, em Machado de Assis, e depois em outros
críticos, uma opinião bastante equivocada, segundo a qual Álvares de Azevedo não teve
tempo suficiente para refletir e produzir uma obra madura. Nessa acepção, os críticos sempre
procuram justificar a “irregularidade” da obra de Azevedo, pela pouca idade que tinha. Desse
44
De certo modo, não dá para equiparar Byron a Azevedo no que tange ao agrado do público, pois sua obra é de
publicação stuma. Contudo, a crítica psicobiográfica fez este papel, atribuindo certas características pessoais
ao poeta.
174
modo, eles questionam em seus textos como seria a produção do poeta, caso ele tivesse
chegado à idade adulta. Por esse caminho, esses estudiosos nos passam uma idéia de
promessa ao afirmarem que ele seria um grande escritor, quando atingisse seus trinta ou mais
anos de idade.
Tal equívoco, mesmo que utópico, nos leva à seguinte reflexão: mesmo se Álvares de
Azevedo não tivesse morrido cedo, nada nos confirma que ele continuasse a escrever, ou
mesmo que reveria sua obra, ou, ainda, que se adaptaria à vida adulta. Contudo, Paulo
Franchetti, ao expor o caso de outros românticos, nos sugeriu, em seu texto sobre o poeta,
uma possível resposta à indagação desses críticos. Segundo diz, “frente à limitação do público
e dos meios de reprodução e preservação da cultura, o poeta que por volta de 1850 entrasse na
vida adulta (e continuasse poeta) ou assumia francamente o lado obscuro e outsider foi o
caso de Varela (1841-1875); ou então se dilacerava entre ele e uma fachada respeitável e
medíocre esta a solução e nem sempre conseguida por Bernardo Guimarães”
(FRANCHETTI, [199-], não paginado).
Em nossa opinião, esses autores não compreenderam que antes de ser um poeta
imaturo, supostamente influenciado pela “inspiração romântica”, Azevedo já tinha maturidade
para empreender um projeto literário, o que fica patente no prefácio à segunda parte de Lira
dos vinte anos.
Além disso, antes de entrarmos no penúltimo tópico, cujo mote é a incompreensão por
parte dos críticos de que Azevedo se opõe ao nacionalismo que estava sendo construído, seria
interessante apontarmos os principais elementos constitutivos dessa identidade literária. Para
se ter uma idéia, dentre o instinto de americanidade, a natureza não seria o único recurso para
os poetas e críticos. Há aí a utilização dos costumes do povo, do clima, da posição geográfica,
da religião, do selvagem e da própria mestiçagem. Entretanto, nos momentos iniciais de
apreensão desses recursos, uma dissonância mesmo entre os escritores, poetas e críticos,
que ora optam por um ou outro elemento acima destacado.
Foi no Romantismo que esses escritores e críticos viram a oportunidade e o ponto de
partida para enfim constituir o almejado nacionalismo. Seguindo esta mesma linha, o instinto
de americanidade empreendido inicialmente por Magalhães e Porto Alegre, (que usando os
mais diversos temas para expressar uma literatura brasileira), foi levado com afinco por
Gonçalves Dias e mais tarde por José de Alencar.
Por outro lado, como já apontamos, havia entre os escritores e críticos a valorização de
um aspecto temático em detrimento de outro que norteasse a construção do nacionalismo. A
fim de ilustrar, citaremos, primeiramente, Santiago Nunes Ribeiro, que defendia em seu texto
175
“Da nacionalidade da literatura brasileira” a idéia de que o Brasil tinha uma literatura própria,
baseada em elementos como o cenário nacional e a religião. Deste modo, ele afirma que,
[...] se um país, cuja posição geográfica e constituição geognóstica, cujas
instituições, costumes e hábitos tanto diferem da sua metrópole de outrora,
não deve ter sua índole especial, seu modo próprio de sentir e conceber,
dimanante destas diversas causas, modificadas umas pelas outras; se, numa
palavra, não deve ter caráter nacional. (RIBEIRO, 1974, p. 36).
Em contrapartida, Álvares de Azevedo se opõe a esse tipo de atitude, para enfim dizer
o que era literatura nacional. Em Macário, o personagem homônimo ao livro pondera que
“falam nos gemidos da noite no sertão, das tradições das raças perdida da floresta, nas
torrentes das serras nuas, como se lá tivessem dormido ao menos uma noite, como se
acordassem procurando túmulos, e perguntando como Hamleto no cemitério a cada caveira do
deserto o seu passado” (AZEVEDO, 2000, p. 550). No ensaio “Literatura e Civilização em
Portugal”, Azevedo declara que,
doutra feita alongar-nos-emos mais a lazer por essa questão e essa polêmica
secundária que alguns poetas, e mais modernamente o Sr. Gonçalves Dias
parecem ter indigitado: saber, que a nossa literatura deve ser aquilo que ele
intitulou nas suas coleções poéticas poesias americanas. Não negamos a
nacionalidade desse gênero. Crie o poeta poemas índicos, como o Thalaba
de Southey, reluza-se o bardo dos perfumes asiáticos como nas Orientais,
Victor Hugo, na Noiva de Abidos, Byron, no Lallah-Rook, Thomas Moore;
devaneie romances à européia ou à china, que por isso não perderão sua
nacionalidade literária os seus poemas. Nem trazemos a pleito o mérito
dessas obras. (AZEVEDO, 2000, p. 715).
Nessa acepção, podemos vislumbrar o posicionamento corajoso de Azevedo na época
em que toda obra literária deveria empreender um projeto nacional.
Em “Literatura Brasileira: instinto de americanidade”, de Machado de Assis, são
perceptíveis alguns traços que assemelham e resgatam a opinião de Azevedo. No texto,
Machado afirma:
Não dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas
não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve
exigir-se do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no tempo e no espaço. (ASSIS, 1961, p. 135).
Embora o advento desse movimento, no Brasil, tenha coincidido com o processo de
estabilização do país como nação independente, ele não se limita nem se confunde apenas
com certo caráter nacionalista. Contra a tendência de tomar os preceitos de uma das vertentes
literárias do início do século XIX, isto é, do indianismo, como sinônimo estrito de
romantismo, pode-se objetar que, ao romper com a poética antiga com o culto à autoridade
176
da tradição, com a unilateralidade do pensamento e do conhecimento, valorizando a expressão
de subjetividade, em que cultiva a contradição e a negatividade o romantismo, seja ele
brasileiro, inglês, francês ou alemão, reproduziu-se ao longo do século XIX por meio de
divergências, perspectivas estéticas e políticas às vezes antagônicas.
Conforme Thomas Weiskel (1994), em seu livro O sublime romântico: estudos sobre
a estrutura e psicologia da transcendência, nada de mais romântico do que o fascínio pela
crítica, pela contradição, pela negatividade e pela perpétua revisão dos significados. Assim, o
rompimento com os valores sociais e estéticos estabelecidos entre os quais a idealização
amorosa – levou Álvares de Azevedo a empreender uma oposição ao modo por que a vertente
indianista do romantismo brasileiro vinha especificando a literatura brasileira.
Por último, a fim de concluir a exposição dos equívocos que aparecem na recepção
crítica da obra do poeta, apontaremos aquilo que talvez seja uma das características que mais
sobressai em Azevedo, em detrimento dos primeiros românticos: o universalismo. O poeta
brasileiro filiou sua obra a esse procedimento estético e nunca foi bem visto pela crítica do
século XIX e meados do XX por conta da seleção de sua prática romântica. Deste modo, em
sua época, sempre foi questionado por não assumir um posicionamento nacionalista, que se
pautava na construção de uma identidade para a literatura do jovem país. Todavia, a escolha
do autor de Lira dos vinte anos é de fácil entendimento, afinal o Brasil não possuía uma
tradição literária, e, ademais, ele não reconhecia na proposta dos primeiros românticos o
caminho para uma literatura puramente brasileira. Deste modo, a sua escolha por temática
universal, pautada inicialmente em modelos europeus (que não o francês), era uma dentre as
várias possíveis. Afinal, a tradição que estava sendo forjada não o agradava: tanto o modo
como a natureza estava sendo utilizada um quadro a ser pintado (ROUANET, 1991),
quanto a equivalência forjada entre o homem brasileiro (o índio) e o cavaleiro da Idade
Média, não tinham nenhum atrativo para o nosso poeta. Nesse sentido, a escolha por um dos
vieses do romantismo não foi influenciada por sua suposta biografia, mas sim pela
consciência do passado histórico próximo e da sua contemporaneidade no desenvolvimento de
seu projeto literário.
Por certo, a tradição não pode ser herdada, mas obtida sob um longo trabalho. No
entanto, no Brasil, podemos ver que não havia uma tradição que englobasse a literatura como
expressão de seu povo (era ainda colônia). Por outro lado, o movimento romântico coincide
aqui, no Brasil, com a independência política. Nesse sentido, “[...] a busca da identidade
nacional na América Latina utiliza-se já de linguagem romântica, que procura, na história e na
cultura, motivos para que entidades como o Brasil existam separadas das antigas metrópoles”
177
(RICUPERO, 2004, p. XXIII). Assim sendo, “[...] a primeira geração romântica brasileira,
[...] assume atitude particularmente hostil ao passado colonial e à herança ibérica”
(RICUPERO, 2004, p. XXX). E por esse caminho empreende uma jornada para construir a
idéia de nação e identidade nacional. Afinal, “[...] a nação é tanto um conjunto de tradições
inventadas, ou mais ainda, a invenção dessas tradições, como a crenças nelas” (RICUPERO,
2004, p. XXIII).
Contudo, “[...] a cultura européia é mais do que uma influência externa ao ocidente.
Na verdade, o intelectual latino-americano se sente como partícipe na cultura européia [...] [e]
[...] internaliza referências culturais européias, modificando-as. No ‘momento’ romântico, em
especial, essas referências são basicamente francesas” (RICUPERO, 2004, p. XXIX) elas
provêm basicamente de Ferdinand Denis, primeiro “crítico brasileiro –. Assim, essas
referências culturais desenvolvem aqui no Brasil (no romantismo) a idéia de que “[...] as
principais características da nação brasileira estariam na exuberante natureza americana, e em
seu habitante original, o índio” (RICUPERO, 2004, p. XXVIII).
Com isso, chegamos ao foco central da discordância de Azevedo, que não reconhecia
que a construção de uma tradição pautasse-se unicamente nas belezas naturais, bem como no
selvagem. Ele não acredita que a idéia de nação e de identidade nacional se por essa via.
Nesse caso, podemos reconhecer que o escritor “[...] tem que estar ciente de que o espírito da
Europa o espírito do seu próprio país [...] é um espírito mudável e que essa mutação é
um desenvolvimento que não abandona em route, que não aposenta Shakespeare ou Homero
[...]. Mas a diferença entre presente e passado consiste em o presente consciente ser uma
compreensão do passado [...] (ELIOT, 1989, p. 25-26). Desse modo, não motivo para
negar a antiga relação Brasil e Portugal. Assim, acreditamos que Azevedo está consciente de
nosso passado, pois ele não nega a nação portuguesa, e nem a descarta. Antes a encara como
um passado que pode render ao seu presente conhecimento suficiente para direcionar a sua e a
nossa própria construção de identidade nacional, de literatura brasileira.
Ainda discutindo sobre o universalismo do poeta, é possível levantar outro aspecto que
demonstre a consciência de Álvares de Azevedo no quadro literário. Esse argumento pode ser
confirmado ao lembrarmos que ele não via motivo algum em não querer também para nós a
literatura mãe, pois ela possui grandes nomes da literatura universal. Este é, sem dúvida, um
posicionamento interessante que o poeta desenvolve em seu estudo crítico, “Literatura e
civilização em Portugal”.
Neste texto, Azevedo busca as origens das literaturas e faz uma recuperação de todas
as questões pertinentes na formação e especificidade das literaturas proeminentes, até chegar à
178
Espanha e Portugal. Na relação Portugal e Espanha, o poeta tenta levantar questões que
diferenciem tais literaturas e, conseqüentemente, estabelece relações que mostram pontos não
comuns, mas também diferentes. Esse procedimento fica bem explícito se mudarmos os
países e colocarmos Portugal e Brasil. Nessa suposição, Azevedo deseja reconciliar as duas
nações para enfim direcionar o que poderia ser a pedra fundamental de uma e outra literatura.
Ele procura se filiar a uma tradição, a qual seria sua base poética, para depois seguir o
caminho naquilo que acreditava ser possível desenvolver em uma “jovem nação”. Deste
modo, recusa a proposta de uma literatura que tivesse como embasamento criacional a cor
local, a geografia, o clima, etc, como sendo os únicos diferenciadores de uma literatura que
pudesse ser chamada de nacionalista, patriótica.
Se comparássemos Azevedo aos demais poetas românticos de sua época, diríamos que
seu projeto literário é bastante instigante. Enquanto os primeiros poetas buscavam inspiração
na cor local, no clima, na religião, para romper com a literatura lusa, Azevedo construía um
caminho particular, sem nenhum direcionamento, como era o de Magalhães e seus amigos.
Afinal, era baseado nos preceitos de Ferdinand Denis, em Scênes de la Nature sous les
Tropiques, et de influence sur la Poésie, suives de Camões et José Índio, de 1824 e no
Résumé de Histoire Littéraire du Portugal, suivi du Résumé de l’Histoire Littéraire du
Brésil, de 1826, que se encontrava o receituário para a construção da literatura brasileira.
Decerto, não se pretende aqui singularizar Azevedo no que diz respeito às práticas estilísticas,
tais como a ironia. Tampouco, pretende-se afirmá-lo como precursor do prosaísmo ou de um
programa conscientemente traçado, pois sabemos que cada autor maneja, de forma própria e
particular, os princípios gerais do período no qual se insere. Caso se desejasse levantar esta
hipótese de que Álvares de Azevedo pudesse ter sido superior aos demais autores, seria
necessário antes empreender um estudo comparativo com Gonçalves Dias, Fagundes Varela,
Casimiro de Abreu, Castro Alves etc, o que não é pretensão deste trabalho.
Finalmente, depois de concluir a exposição desses equívocos (cristalizados) de leitura
da obra de Azevedo, observaremos algumas características encontradas em sua poesia, que
demonstram tanto o seu posicionamento literário como escritor consciente das práticas
literárias e de sua contemporaneidade, quanto à fidelidade ao seu projeto.
Abordamos até aqui os principais “engodos” daquelas metodologias críticas, refletindo
e traçando alguns argumentos que pudessem tanto revisá-los quanto nos ajudar a formar uma
visão geral daqueles equívocos. A partir desse momento, passamos a esboçar uma leitura de
alguns poemas do autor (levando em conta a explicitação do poeta nos prefácios de Lira) que
são capazes de demonstrar a sua consciência poética na formação de um projeto literário.
179
2 - Álvares de Azevedo: o crítico e o poeta de Lira dos Vinte Anos.
Antes de prosseguirmos com este capítulo, seria interessante pontuar algumas questões
sobre as publicações da obra Álvares de Azevedo. Com isso, dispomo-nos (em rápidas
pinceladas) a observar, não a receptividade da produção artística desse poeta, mas também
acentuar outros elementos, como algumas de suas edições, relacionando ainda alguns
problemas levantados pelos organizadores, de cada edição aqui citada, da obra alvaresiana.
Desde sua publicação inicial, de 1853, um ano após a morte do poeta, as poesias de
Álvares de Azevedo tornaram-se bem aceitas pelo público, visto que de mil exemplares da
primeira tiragem logo se esgotaram. Considerando o período, isto é, a quase inexistência de
um público consumidor em meados do século XIX, uma edição com esse número evidencia o
interesse dos poucos leitores, bem como esclarece a importância que o poeta despertou na
época e continua a despertar, visto que sua obra sempre tem sido reeditada, mesmo com
algumas lacunas de publicação das obras completas (a oitava edição, organizada por Homero
Pires, é de 1942 e a nona e última edição, organizada por Alexei Bueno, é de 2000).
Figura 7: “Frontispício do volume primeiro das Obras, de M. A. Álvares de Azevedo, aos cuidados do primo do
poeta, Domingos Jaci Monteiro (o segundo volume sairia em 1855). Considerada edição príncipe, serviu a
Péricles Eugênio como base para o estabelecimento do texto de sua edição crítica. Tiragem de mil exemplares
logo esgotada” (SIMON, 2002, p.46). Fonte: Poesias Completas de Álvares de Azevedo.
180
Segundo José Veríssimo, quando o primeiro tomo da Obras Poéticas de Álvares de
Azevedo, composto por Lira dos Vinte Anos e as Poesias Diversas veio a público, tornou-se
uma novidade na poesia brasileira quase igual ao que foi Suspiros Poéticos, de Magalhães, em
1836, e os Primeiros Cantos, de Gonçalves Dias, em 1846 (VERÍSSIMO, 2000, p. 43).
Em 1862 saiu a segunda edição das Obras de Álvares de Azevedo, organizada em três
volumes por Domingos Jaci Monteiro. Precedida de “um discurso biográfico” e notas pelo
responsável da edição, o primo do poeta. No entanto, como aponta a organizadora das Poesias
Completas de Álvares de Azevedo, Iumna Simon (2002, p. 194), “[...] a revisão deixa muito a
desejar, pois o doutor Jaci não chegou a rever a poesia inédita (O Poema do Frade, a
“Continuação” da Lira dos Vinte Anos todos no terceiro volume”. Além disso, também a
informação de que essa edição esgotou-se rapidamente, o que levou o editor a providenciar
ainda em 1862, a 3ª, em tiragem maior” (SIMON, 2002, p. 194).
Figura 8: Obra Completa de Álvares de Azevedo, de 2000, organizada por Alexei Bueno. Esta publicação é
toda feita em um único volume.
Em 2000 saiu o relançamento da Obra Completa de Álvares de Azevedo, pela editora
Nova Aguilar, que desde 1942, a edição de Homero Pires, pela Companhia Editora Nacional,
não havia mais sido impressa. Nesta edição, todos os escritos de Azevedo estão reunidos, aos
cuidados de Alexei Bueno, precedido de introdução, cronologia do poeta e de alguns textos da
181
recepção crítica de Álvares de Azevedo. Segundo o organizador, “seguiu-se escrupulosamente
nesta Obra completa o texto de edições originais, evitando-se as numerosas correções
contidas, sem base fidedigna, nas edições Garnier e posteriores, exceto nos casos já
mencionados de restituições evidentes” (BUENO, 2000. p. 13). Ademais, conforme explicita
o organizador, nessa edição,
corrigem-se, além disso, um sem-número de erros que se perpetuavam desde
as mesmas Obras Completas de 1942 e através das inúmeras edições que
após elas se fizeram das Poesias do autor e da Noite na Taverna, os dois
títulos que, mesmo na ausência de mais de meio século de uma opera omnia,
nunca deixaram de marcar presença junto ao público, muitas vezes em
edições populares de grande descuido crítico e textual [como por exemplo,
na edição de Lira dos Vinte Anos, pela Martin Claret, em que o prefácio à
segunda parte do livro foi omitido] (BUENO, 2000, p. 13).
Em 2002, saiu, pela Editora da Unicamp em parceria com a Imprensa Oficial SP, a
edição crítica das Poesias Completas de Álvares de Azevedo. Nela, Péricles Eugênio pôde, na
introdução do livro, não evidenciar alguns erros de editoração, mas também apontar ainda
algumas colocações bastante contundentes sobre a concepção da poesia de Azevedo.
Figura 9: Capa da edição crítica de Péricles E.da Silva Ramos e organização de Iumna M. Simon das Poesias
Completas de Álvares de Azevedo. Embora o livro tenha sido concluído em 1979, a sua publicação é de 2002.
182
Afirmamos, ainda, que seguimos em nosso estudo sobre Lira dos Vinte Anos, a
publicação da edição crítica de Poesias Completas, de Péricles Eugênio da Silva Ramos. Nos
estudos literários, por exemplo, trabalhados no segundo capítulo, utilizamos a edição
organizada por Alexei Bueno. Desse modo, acreditamos que nessas edições corre-se menos
perigo com os erros de edição, bem como podemos ter uma visão melhor das colocações
daqueles que se empenharam para a realização e divulgação da obra de Álvares de Azevedo.
Figura 10: Folha de rosto da 2º edição das Poesias Completas de Álvares de Azevedo, de 1962 (a 1ª edição é de
1957). Texto fixado e anotado por Péricles Eugênio e Frederico José da Silva Ramos. Com isso, podemos inferir
que a edição crítica de Péricles Eugênio, concluída em 1979, mas publicada em 2002, seria conseqüência desta.
Dados os apreços sobre as publicações da obra de Álvares de Azevedo, justificamos
ainda que o interesse pelas poesias de Álvares de Azevedo não se deve ao fato de seguir as
sugestões empreendidas por Luiz Roncari, em sua Literatura Brasileira, de 1995, que tratou
unicamente das poesias de Azevedo e em especial do prefácio à segunda parte de Lira dos
vinte anos. Ou então seguir os passos da tradição crítica de valorizar somente a poesia e em
especial o livro Lira dos Vinte Anos. O nosso interesse por esse livro, isto é, por alguns de
seus poemas, (visto que já trabalhamos os prefácios no segundo capítulo) tem como finalidade
ilustrar as idéias do poeta Álvares de Azevedo esboçadas nos prefácios daquele livro, bem
como por meio dos poemas, salientar a pretensa consciência literária do autor de Macário,
aqui levantada por nós.
183
Esboçaremos a partir de agora, alguns comentários sobre Lira dos vinte anos,
ressaltando sua estruturação, bem como algumas observações que os prefácios desse livro
sugerem, para que, na seqüência, possamos tecer algumas explanações dos poemas que
selecionamos, visando assim, a nossa proposta de trabalho: a consciência de Álvares de
Azevedo.
O livro Lira dos vinte anos estrutura-se em duas partes
45
que se “contradizem”, mas
que, também se complementam: elevação e rebaixamento num verdadeiro jogo dialético, que,
sistematizado pelo poeta, dará forma ao que ele chamou de “binomia”. Com isso, a
concretização desses dois princípios opostos, cria a conjugação da tese e da antítese. Ou seja,
por meio da “ironia romântica”, da “ironia da forma”, da reflexão, o poeta pôde dialogar com
sua obra, com o Romantismo (em suas acepções gerais), seguir certas vertentes, para depois
criticá-las e até mesmo negá-las, ou mesmo tornar-se o crítico de sua própria obra. Mesmo
porque, “o Romantismo [...] ora articula-se em termos de sentimento (tédio, ennui, spleen,
Weltschmerz), ora se matiza de tons intelectuais, à medida que aguça o senso das contradições
[...]” (BOSI, 2002, p. 248), que absorve a reflexão, que põe-se a dialogar com outras vertentes
do movimento, bem como a parodiá-las etc.
Ao aproximarmos os dois prefácios de Lira dos Vinte Anos, compreendemos que por
meio deles o poeta expressou a sua sistematização poética dual, isto é, a conjugação de duas
práticas distintas, que possibilitou nesta obra a criação de elementos antagônicos como a
esfera transcendental e a representação da vida humana, em seus aspectos vis e degradantes,
(ALVES, 1998) que deram o respaldo necessário, como afirmamos, para a realização da
sua “binomia”.
Com isso, no prefácio à primeira parte de Lira dos Vinte Anos, o poeta estabeleceu que
os poemas que o sucedem “são os [seus] primeiros Cantos [...]. [...] As primeiras vozes [...].
Cantos espontâneos do coração [...]” (AZEVEDO, 2002, p. 49). Ou seja, vemos nesta
primeira parte do livro determinados aspectos subjetivos, como a extrema valorização do
sentimento, a busca de elementos tais como o amor, o sonho, a morte, a natureza, que lhe
proporcionou a criação de um ambiente de profunda aspiração transcendental. Constitui-se
assim, um dos lados de uma mesma moeda, isto é, um lado, como nos é sugerido, que se
demonstra ingênuo, inspirado e imaginativo. Enfim, uma poesia que contém temáticas que
45
Como assinalamos no primeiro capítulo, seguimos a edição crítica de Poesias Completas, de Péricles
Eugênio, em que os poemas da terceira parte de Lira dos Vinte Anos, se remanejados, são compatíveis com a
primeira e segunda parte do livro.
184
expressam ora uma esfera inatingível, de extrema elevação e (em grande parte) de extrema
beleza, ora uma esfera de devaneios, de paraísos artificiais, de morte.
Nos aspectos de práticas amorosas idealizantes em poema como “No mar”, a evocação
da natureza, a imagem do sonho, a mulher inatingível e a idealização da mulher colocam
limites à objetividade, à razão pura e faz com que o sentimentalismo, o sublime, a
subjetividade aflore na poesia. Para que esse aspecto idealizante torne-se válido, o poeta recria
um mundo artificial, em que “o imaginário precisa da noite, das marcas da ausência (o escuro,
o oco, o frio) para dar corpo ao fantasma do eu, ou criar do nada um mundo novo” (BOSI,
2002, p. 247), que exteriorize a visão do próprio eu lírico, na busca de elementos que o
transcenda.
Contudo, no poema de Azevedo, a construção do discurso, na voz do eu lírico, mesmo
convertendo-se em total sentimentalismo, não há a eliminação da razão, pois, ali ainda reflete-
se a intencionalidade do poeta. Ou seja, na busca por elementos transcendente, cria-se um
mundo construído artificialmente, em que se transforma em procedimento artístico.
O misturar de vozes, ou seja, a seqüência de substituição da voz do eu lírico, para a
voz do poeta, não procura aqui embaralhar as convenções literárias (ou de suas teorias), mas
em certos momentos desfazer a distância que separa e refrata a voz do eu-lírico (construção
artificial), ou do poeta, numa “fusão de vozes” (ALVES, 1998). Afinal, em certos momentos a
voz do sujeito do enunciado se constitui, tendo como orientação a voz do poeta, para explanar
a idéia de uma esfera transcendental do poeta que ali se faz presente.
46
Ademais, é perceptível que
na obra de Álvares de Azevedo, o sentimento amoroso de caráter irrealizável
aparece intimamente relacionado com a transferência do ideal a uma esfera
divina onde o sujeito lírico espera encontrar uma donzela que normalmente
simboliza a inocência e a pureza da alma. Assim, é comum encontrar nessas
poesias uma série de vocábulos que expressam a perda de sentido numa
situação em que o eu lírico apenas imagina estar deitado ao lado de uma
donzela que, por sua vez, dorme. Vocábulos como “sonhar”, “dormir”,
“enlevo”, “desmaiar” e até mesmo “morrer” enquadram-se nessa série
(ALVES, 1998, p. 84).
Para explorar melhor esta parte sentimental proposta pelo poeta em seu livro Lira dos
vinte anos na criação de uma atmosfera propícia para a idealização, visando a uma mulher
perfeita, de extrema virtude que nunca é em definitivo, mas um incessante tornar a ser, ou
46
Essa aproximação do poeta com o eu-lírico é apenas no plano artístico, (mesmo porque eu lírico não é o poeta
e vice e versa,) e não busca aproximar os temas desenvolvidos com a vida particular do poeta, do homem
Álvares de Azevedo, já que como criação poética, o poema remete a uma artificialidade, uma construção
artística.
185
seja, a impossibilidade de realização amorosa, como procedimento artístico, faz-se necessário
observar o que nos articula o poema de Álvares de Azevedo:
No Mar
Les étoiles s’allument au ciel, et la brise du soir erre
doucement parmi les fleurs: rêvez, chantez et soupirez.
George Sand.
Era de noite – dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua,
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração!
Ah! que véu de palidez
Da langue face na tez!
Como teus seios revoltos
Te palpitavam sonhando!
Como eu cismava beijando
Teus negros cabelos soltos!
Sonhavas? – eu não dormia;
A minh’alma se embebia
Em tua alma pensativa!
E tremias, bela amante,
A meus beijos, semelhante
Às folhas da sensitiva!
E que noite! que luar!
E que ardentias no mar!
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!
Minha rola, ó minha flor,
Ó madressilva de amor!
Como era saudosa então!
Como pálida sorrias
E no meu peito dormias
Aos ais do meu coração!
E que noite! que luar!
Como a brisa a soluçar
Se desmaiava de amor!
Como toda evaporava
Perfumes que respirava
Nas laranjeiras em flor!
186
Suspiravas? que suspiro!
Ai que ainda me deliro
Sonhando a imagem tua
Ao fresco da viração
Aos ais do meu coração,
Embalada na falua!
Como virgem que desmaia
Dormia a onda na praia!
Tua alma de sonhos cheia
Era tão pura, dormente,
Como a vaga transparente
Sobre seu leito de areia!
Era de noite – dormias,
Do sonho nas melodias,
Ao fresco da viração;
Embalada na falua
Ao frio clarão da lua,
Aos ais do meu coração! (AZEVEDO, 2002, p. 53-54).
Trata-se de um poema composto de nove sextilhas, com versos hexassílabos, cuja rima
obedece ao esquema AABCCB, com vogais abertas e fechadas, que expressam um flutuar,
um ir e vir que nos lembra o mar e a própria fluidez do sonho. Fluidez sugerida, aliás, pelas
consoantes f e l. Também pelo silvar que a consoante s possibilita, nos é transmitido a
sensação do zunir do vento. O que ocasiona assim, uma atmosfera propicia às divagações do
eu lírico. “[...] O alvo perseguido é a porção essencialmente espiritual do indivíduo, fazendo
do sentimento amoroso imaculado a via que podeelevar a alma a um plano divino, fora do
âmbito da realidade física” (ALVES, 1998, p. 85).
No poema “No mar”, o eu lírico nos coloca diante de um mundo à parte de nossa
realidade. É noite, a amada dorme, com sonhos melodiosos e suaves como o vento, no qual
balança e flutua, sob uma cena noturna de leves brisas frias. O sujeito lírico exclama a
palidez, a visão evanescente, o sentir do rosto pálido da “intocável” donzela, e embalado pelo
mundo onírico, imaginava beijar os cabelos da amada. Além disso, por meio da sinestesia, de
metáforas e comparações, o eu lírico constrói uma imagem belíssima de sentimento puro
(como “laranjeiras em flor”), imaculado, que nutre por sua amada. “Nesse contexto, a figura
feminina ideal, a virgem, encarna a condição espiritual à qual o poeta aspira ascender”
(ALVES, 1998, p. 85).
No entanto, o eu lírico afirma que estava acordado, e assim, sugere que tinha a
consciência de que não é sonho, apenas que sua “alma se embebia” na alma da amada. Nessa
187
junção de almas e idealização, o sentimentalismo aflora. E assim, pela aspiração do amor,
pela idealização; a virgem e o amor vagueiam sob a noite, a brisa, que o faz sentir o pulsar de
seu coração. Com isso,
o embate entre realidade cotidiana e a idealização do infinito propicia, então,
na obra de Álvares de Azevedo, a adoção do amor irrealizado como uma
possibilidade de transcendência, sendo que figuras femininas tais como a
donzela virgem e angelical são a personificação, nesse projeto, desse ideal
(ALVES, 1998, p. 86).
Enfim, poema bem a gosto romântico evoca a bela e pálida donzela, inatingível na
consumação carnal, para uma esfera transcendental. Com isso, a musa do eu lírico é saudosa,
visto que tal fato sugerido por ele ocorrera num passado próximo, e faz brotar pela lembrança,
uma poesia triste, envolta em nevoas, noite e brumas. Poesia, aliás, que segue a mesma linha
adocicada e inatingível da poesia romântica de um Lamartine ou de Alfred de Musset.
Por outro lado, na segunda parte de Lira dos vinte anos (dentre os inúmeros temas,
visto que não há como enumerar e desenvolver todos os assuntos que lá são tratados), Álvares
de Azevedo envereda por um Romantismo irônico e sarcástico, passa agora a falar com coisas
do cotidiano, a dialogar ironicamente com os grandes autores românticos, com a tradição
ocidental e com a formação da nossa literatura etc. O fundamental é que a ironia levada às
últimas conseqüências, também abre ao poeta um veio novo: o veio anti-romântico,
ocasionado por um certo metarromantismo, lançando o germe da superação, ou melhor, de
sugestão de rompimento da prática amorosa, ao ironizar a idealização da mulher e o
pieguismo amoroso. Em suma, temas que não cabiam à poesia onírica e sentimental da
primeira parte.
Com isso, cria-se a outra face da moeda, – como o próprio poeta sugeriu em prefácio à
segunda parte de Lira –, na sistematização teórica de oposição e combinação da prática dual,
visto que a pretensa unidade desse livro “funda-se numa binomia”. Por outro lado,
reafirmamos que a parte não sentimental não invalida a sentimental, já que aquela desconstroe
as temáticas desenvolvidas nessa e forma a uma nova estruturação poética, como
procedimento crítico em sua própria obra. E assim, Álvares de Azevedo abre a segunda parte
de Lira dos vinte anos:
Cuidado, leitor, ao voltar está gina! Aqui dissipa-se o mundo visionário e
platônico. [...] Demais, perdoem-me os poetas do tempo, isto aqui é um
tema, senão novo, menos esgotado ao menos que o sentimentalismo tão
fashionable desde Werther e René. [...] É quando a poesia cegou
deslumbrada de fitar-se ao misticismo, e caiu do céu sentindo exausta as suas
asas de oiro. [...] Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como
a realidade formosa da bela mulher a quem amamos. [...] Nos mesmos lábios
188
onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde (AZEVEDO,
2002, p. 139-140).
Se de um lado, tínhamos a parte sentimental, do outro, temos a não-sentimental. Nesse
embate, cria-se a conjunção de duas práticas, que se opõe, se contradizem, mas que não se
excluem. Na superação da forma clássica, o poeta trabalha, de forma proporcionada pelo
movimento romântico, elevação e rebaixamento, que condiz com a sistematização teórica, por
ele, denominada de “Binomia”.
A caminho de uma superação amorosa e um afastamento do sentimentalismo
platônico, o poeta busca na ironia e no humor a saída para tal fato: “O humor é a condição de
possibilidade de um certo meta-romantismo que não se formaria sem a ruptura moderna de
sujeito e objeto e, em outro tempo, sem a cisão do próprio sujeito” (BOSI, 2002, p. 249).
Desse modo, como já assinalamos no segundo capítulo e voltamos a afirmar: o
prefácio à segunda parte de Lira dos vinte anos apresenta e esclarece um programa, um
projeto poético, como bem afirma Antonio Candido (2000, v. 2, p. 161): “não é possível
descrever com maior consciência a própria obra”.
Assim sendo, nos convencemos que o poema “No mar”, aqui representando a primeira
parte de Lira, bem como os poemas “É ela! É ela! É ela! É ela”, “Namoro a Cavalo”, “Terza
Rima”, “A Lagartixa” e “O Cônego Filipe”, representando a segunda parte de Lira, possam
dar um panorama geral da poesia alvaresiana. Ou seja, esses poemas possibilitam-nos
compreender em termos gerais, a elaboração da binomia, o recurso da ironia, a combinação de
elementos estéticos contrários. E acima de tudo, opor-nos a sugestão de imaturidade poética
de Álvares de Azevedo, apontada por críticos, ao pressupormos uma maturidade e consciência
literária do poeta paulista. Enfim, vejamos o poema “É ela!”.
O poema “É ela! É ela! É ela! É ela!” foi estruturado em dez estrofes de quadra ou
quarteto com versos decassílabos. Convém observar que, quando se trata de composição
popular, a estrofe de quatro versos tem estruturas menos elaboradas, sendo permitido dois
versos rimados e dois brancos, como acontece neste poema. O verso de dez silabas é mais
flexível e presta-se a maior número de combinações, consentindo deste modo maior liberdade
ao poeta. Adapta-se a uma poesia mais individualizada, a uma variedade maior de tom, de
temas e tem a força de conter a emissão sonora prolongada, ajustando o conteúdo como
ocorre no poema.
No início do poema, o eu lírico em murmúrios anuncia (emocionado), bem a gosto
romântico, que encontrou a sua amada. Assim, nos três primeiros versos tudo nos leva a crer
que se trata de um poema romântico sentimental, pois o eu poético está suspirando ao ver a
189
eleita, a sua amada: “É ela! é ela! – murmurei tremendo, / E o eco ao longe murmurou – é ela!
/ Eu a vi minha fada aérea e pura –” (AZEVEDO, 2002, p.191).
Mitos são criados a fim de explicar a origem física do eco. Assim, ao recorrermos a
estes mitos literários, saberíamos que num primeiro momento se trata de uma ninfa chamada
Eco, que sofreu o castigo de Juno de repetir as últimas palavras. Este castigo lhe foi
infligido por falar demais e por usar de conversas enganadoras. Por outro lado, numa situação
amorosa, este fato de repetir as últimas palavras é exterior a própria Eco, que não passa de
uma confidente. Assim sendo, ela é interpretada como uma mensagem simbólica, numa
relação permanente com o enigma e a profecia, como uma espécie de metáfora da exegese
bíblica, na qual a Eco é reveladora das verdades ocultas sob aparências enganosas
(CHEVALIER, Jean et GHEERBRAN, Alain, 2000).
Na interpretação mítica e cristã, o eco, essa voz sem corpo e sem substância converte-
se e intervém numa relação com o eu poético em favor de ser o seu interlocutor, no caso em
especifico na voz do eu lírico. Deste modo, ela é uma entidade mítica que pode propagar o
som repetindo a outrem e, mais especificamente, esta mesma voz sem corpo pré-anuncia a
fada revelando a verdade oculta sob aparência enganosa, que ela não é outra coisa a não ser a
lavadeira, uma mulher de formas comum, uma mulher de carne osso.
A fada opera as mais extraordinárias transformações e, num instante, satisfaz ou
decepciona os mais ambiciosos desejos, que a própria fada simboliza os poderes
paranormais do espírito ou as capacidades mágicas da imaginação. No caso especifico
malogra o receptor romântico quando o eu lírico pronuncia o vocábulo lavadeira. Talvez por
isso ela represente a capacidade que o homem possui para construir, na imaginação, os
projetos que não pôde realizar.
Com a cristianização a fada deixou de ser compreendida com essa qualidade, e os
compiladores reunindo textos fizeram da fada a figura da mulher enamorada. Nisso, a
lavadeira é levada a categoria de mulher amada, por quem o eu lírico insinua e sugere cair de
amores.
Segundo a vertente dos estudos literários contemporâneos, o poema “É ela! É ela! É
ela! É ela!”, que compõe a segunda parte de Lira dos Vinte Anos, realiza uma crítica ao
gênero lírico amoroso e à temática do amor inatingível. Também traz o prosaísmo como
característica principal e, em certa dose, o realismo, entendido aqui como contraponto à
criação mais imaginativa ou fantasiosa e não como portador dos preceitos da escola literária
seguinte.
190
Vê-se que este é um poema construído em torno de versos da boa expressão lírica
romântica, casada com os de intenção humorística, ou seja, toma como matéria os fatos
pequenos da vida diária, para contrastá-los com as mais altas aspirações e idealizações
românticas. Entre versos românticos e jocosos, constrói-se a dialética do poema, isto é,
Álvares de Azevedo produz um poema embasado numa crítica reflexiva, que, ao contrastar
com os arquétipos românticos, cria uma oposição a tais preceitos de sua época, optando assim
em favor do anti-romantismo, sem, contudo, romper com o movimento.
Um dos elementos que contribui para isso é a amada, a eleita dos murmúrios do eu
lírico, que não passa de uma lavadeira. Na espera de uma mulher de beleza frágil, sendo esta
uma das possíveis características que os românticos em geral buscavam, nos deparamos com
uma mulher simples, de formas comuns, o que contradiz o arquétipo da mulher ideal. Nesse
sentido, o culto à Virgem é substituído pelo culto a uma mulher terrena e, portanto,
alcançável.
Dessa forma, ao colocar uma mulher comum como musa poética, o eu lírico se
aproxima dela, uma vez que agora temos uma mulher que pode ser “tocada”, alcançada. Mas
ainda assim, não uma preocupação do eu lírico em “possuir” a sua eleita e, muito menos,
cobri-la de ridículos, como quer Antonio Candido, e muitos outros críticos depois dele, ao
concluir que ela, por ser de classe baixa, pudesse ser acessível sexualmente. Antes o poeta
propõe uma postura reflexiva, a de criticar o modelo romântico, que elege uma frágil donzela
possuidora de valores de uma Mulher complexa em seus aspectos superiores de extrema
virtude:
É ela! É ela! É ela! É ela
É
ela! é ela! – murmurei tremendo,
E o eco ao longe murmurou – é ela!
Eu a vi – minha fada aérea e pura –
A minha lavadeira na janela!
Dessas águas-furtadas onde eu moro
Eu a vejo estendendo no telhado
Os vestidos de chita, as saias brancas;
Eu a vejo e suspiro enamorado!
Esta noite eu ousei mais atrevido
Nas telhas que estalavam nos meus passos
Ir espiar seu venturoso sono,
Vê-la mais bela de Morfeu nos braços!
Como dormia! que profundo sono!...
191
Tinha na mão o ferro do engomado...
Como roncava maviosa e pura!...
Quase caí na rua desmaiado!
Afastei a janela, entrei medroso:
Palpitava-lhe o seio adormecido...
Fui beijá-la... roubei do seio dela
Um bilhete que estava ali metido...
Oh! de certo... (pensei) é doce página
Onde a alma derramou gentis amores;
São versos dela... que amanhã de certo
Ela me enviará cheios de flores...
Tremi de febre! Venturosa folha!
Quem pousasse contigo neste seio!
Como Otelo beijando a sua esposa,
Eu beijei-a a tremer de devaneio...
É
ela! é ela! – repeti tremendo;
Mas cantou nesse instante uma coruja...
Abri cioso a página secreta....
Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!
Mas se Werther morreu por ver Carlota
Dando pão com manteiga às criancinhas,
Se achou-a assim mais bela, – eu mais te adoro
Sonhando-te a lavar as camisinhas!
É
ela! é ela! meu amor, minh’alma,
A Laura, a Beatriz que o céu revela...
É
ela! é ela! – murmurei tremendo,
E o eco ao longe suspirou é ela! – (AZEVEDO, 2002, p. 191).
47
Nota-se que o eu lírico cria ao mesmo tempo um ruído e um efeito de estranhamento,
fazendo com que despertemos da sonolência produzida pelos murmúrios, ecos, repetições e
ritmo melódico e declamatório da poesia romântica. Tudo isso, graças ao efeito cômico
resultante do contraste entre a dicção inicial do poema supostamente idealista e a figura da
lavadeira. Agora se suspira não mais por uma donzela pálida, de cabelos, pele, mãos, dentes,
olhos finos e de traços aristocráticos, mas por uma serviçal, cujos traços mais característicos
são as mãos estragadas pelo sabão. (RONCARI, 1995, p. 422).
47
Com essa poesia termina a ‘segunda parte’ de Lira dos Vinte Anos nas edições até Homero Pires. A partir da
quarta edição, a continuação passou a denominar-se terceira parte, por obra e graça de Joaquim Norberto.
Homero Pires dela retirou as
poesias compatíveis com a segunda parte, e nela as incluiu. Sua escolha, contudo,
tem cabimento, pois esde acordo com o prefácio de Álvares de Azevedo. Péricles Eugênio a segue em sua
edição crítica da obra do poeta.
192
Todavia, o eu lírico encontra um jeito de tentar amenizar a “verdade”, buscando na
tradição ocidental imagens consagradas, para a elevação sublime de sua musa. Assim, o eu
lírico deixa novamente a “realidade” e volta a sonhar, a elevar a sua lavadeira ao plano das
duas figuras femininas mais características do amor sublime, a Laura, de Petrarca, e a Beatriz,
de Dante, uns dos mais puros arquétipos de mulheres. Entretanto, estes arquétipos soam
jocosos quando nos lembramos de que “ela”, a escolhida do eu lírico é uma lavadeira.
Por fim, como já observamos no plano da composição, há o casamento de duas
práticas poéticas distintas num mesmo poema, constituindo assim, um fato novo na poesia
brasileira. Lembremo-nos de como elas apareciam separadas e tinham características muitos
diferentes em Gregório de Matos: a poesia lírica e a satírica. Com Álvares de Azevedo, isso
muda. O mesmo contraste que encontramos no plano do assunto o choque do ideal com o
real , encontramos também no da composição o do verso lírico com o verso cômico –, o
que produz um dos melhores efeitos humorísticos de nossa poesia.
Em seguida, abordaremos o poema “Namoro a Cavalo”, a fim de ressaltar algumas
características impostas ao texto, que esclareçam o desenvolvimento do projeto literário do
poeta. Além de dizer que esse poema não é uma composição realmente impressionante,
pela liberdade inventiva com que são narrados os fatos, com destaque para a linguagem
coloquial, pretendemos também mostrar que ele expressa humor e sátira no tema romântico
do namoro eqüestre:
Namoro a cavalo
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
A minha namorada na janela....
Todo o meu ordenado vai-se em flores
E em lindas folhas de papel bordado
Onde eu escrevo trêmulo, amoroso
Algum verso bonito.... mas furtado.
Morro pela menina, junto dela
Nem ouso suspirar de acanhamento....
Se ela quisesse eu acabava a história
Como toda a Comédia – em casamento.
193
Ontem tinha chovido.... que desgraça!
Eu ia a trote inglês ardendo em chama,
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama....
Eu não desanimei. Se Dom Quixote
No Rocinante erguendo a larga espada
Nunca voltou de medo, eu, mais valente
Fui mesmo sujo ver a namorada....
Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O
cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arrepia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada....
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
Circunsncia agravante. A calça inglesa
Rasgou-se no cair de meio a meio,
O sangue pelas ventas me corria
Em paga do amoroso devaneio!... (AZEVEDO, 2002, p. 204).
Pensando na tensão entre real e ideal, veremos que “um discurso não vem ao mundo
numa inocente solicitude, mas constrói-se através de um já-dito em relação ao qual toma
posição” (MAINGUENEAU, 1976). Por outro lado, o riso romântico, ao contrário da sátira
antiga, expressa uma individualidade constituída pela autoria e a intenção de refletir, não de
condenar, sobre situações e costumes de seu tempo.
Na tentativa de realizar uma reflexão sobre as práticas literárias da época, o poeta
especifica o alvo do riso, referindo-o não ao mundo em geral, mas estritamente à
subjetividade, a um eu lírico típico, conforme se constitui a persona satírica, que não põe
freios em sua livre expressão dos sentimentos e não pondera a respeito da adequada condição
para a conquista amorosa, causando assim um malogro a esse amor. Assim, o riso apto a
limitar a expressão desenfreada do páthos deixa, ao final, de ser bufo ou jocoso, para se tornar
sério, ou melhor, irônico e reflexivo a um tempo, constituindo, nesse caso, um
posicionamento por parte do poeta frente à prática romântica sentimental.
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No poema, também é possível perceber que Azevedo tinha um conhecimento da
forma. O exemplo está na repetição de consoantes oclusivas T, Q, P, que marca claramente o
caminhar do cavalo, como nos versos cinco e seis: “Alugo (três mil réis) por uma tarde / Um
cavalo de trote (que esparrela!)”.
Além disso, é interessante rever também a intencionalidade por parte do poeta no que
se refere à intertextualidade do poema Namoro a Cavalo com o livro Dom Quixote de La
Mancha. A questão da busca do amor e de sua não realização que, de certo modo, condiz com
a busca inalcançável e inatingível, como proposta estética, que os românticos tão bem
expuseram em sua obra. Dom Quixote não o alcança nunca, assim como o eu rico que não
alcança a concretização do amor, pois é sempre um vir a ser. Contribuem para esse fato vários
impedimentos: primeiro a carroça como contra tempo, segundo a queda do cavalo, terceiro a
roupa suja e quarto a aparência do eu rico. Entretanto o eu poético não desanima e segue até
o final (não feliz), assim como dom Quixote.
Não apenas os objetivos do Cavaleiro Andante são vagos ou irrealizáveis, mas
também os acontecimentos são de condição incerta. Ele sempre espera um progresso como
resultado de suas loucas aventuras, mas no final de cada uma delas, Dom Quixote se encontra
no mesmo lugar, decepcionado e às vezes muito ferido, física e moralmente. Mas, mesmo
quando antecipa vagamente seu fracasso, ele decide prosseguir suas aventuras. O mesmo se
com o eu lírico em “Namoro a Cavalo”, no sentido de não desistir (até o desfecho da
história), mesmo com todos os contratempos com que ele se depara.
Ao afirmar ter uma namorada chamada Dulcinéia, o eu lírico opta por uma subversão
do discurso amoroso. Essa subversão ocorre quando comparamos o sujeito do enunciado com
Dom Quixote, o exemplo fiel de carnavalização do discurso. No entanto, a inversão de valores
aumenta quando o eu lírico afirma nem respirar perto de sua Dulcinéia de tanto acanhamento.
Porém, segundo o eu poético tudo terminaria com o casamento, que a seu ver não passa de
uma comédia. Traço este que marca bem o sinal da carnavalização e realça o discurso anti-
romântico do eu lírico.
Outros modelos de poesias trabalhadas sob um espírito crítico são os poemas: “Terza
Rima”, “A Lagartixa” e “O Cônego Filipe”, que propõem a fusão de práticas poéticas
distintas. O poema “Terza Rima” escrito em pleno Romantismo de um Gonçalves Dias, usa
objetos do cotidiano, como o cigarro, o cachimbo e o charuto, a fim de estabelecer uma
oposição aos elementos idealistas. Nessa acepção, o poema expressa uma concretude e um
prosaísmo num período em que, para a literatura, tudo era fluido, esfumaçado.
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Além disso, o eu lírico em “Terza Rima” parece mais interessado em proclamar um
estado de espírito mais realista, isto é, opor-se ao fantasioso, ou até mesmo mascará-lo, já que
usa elementos contraditórios à visão romântica.
Na primeira estrofe o eu poético anuncia de modo interessante e até ao avesso o que é
Belo. Acostumados a usar as figuras da mulher e do amor como sublime, o eu lírico diz
somente ser belo um cigarro aceso, um cachimbo e um charuto:
Terza Rima
É belo de entre a cinza ver ardendo
Nas mãos do fumador um bom cigarro,
Sentir o fumo em névoas recendendo,
Do cachimbo alemão no louro barro
Ver a chama vermelha estremecendo
E até... perdoem... respirar-lhe o sarro!
Porém o que há de mais doce nesta vida,
O que das mágoas desvanece o luto
E dá som a uma alma empobrecida,
Palavra d’honra, és tu, ó meu charuto! (AZEVEDO, 2002, p. 241).
Em “Terza Rima”, a união dos contrários se pela justaposição do fumo com o
estado de espírito, o que promove uma pretensa unificação, na aproximação do fumo com o
tédio romântico. Nessa combinação cria-se uma imagem que “aproxima ou conjuga realidades
opostas, indiferentes ou distanciadas entre si” (PAZ, 1976, p. 38), gerando uma versatilidade
que define e combina os elementos antitéticos. Contudo, “a realidade poética da imagem não
é de aspirar a verdade. O poema não diz o que é e sim o que poderia ser” (PAZ, 1976, p. 38).
A imagem se ajusta aos processos que, num primeiro momento, conjugam a realidade, neste
poema a imagem do fumo. O tédio é outra realidade, desse choque surge a imagem, isto é,
uma nova verdade, um novo ânimo de vida, a qual o eu rico diz ser o charuto o
desvanecedor de suas magoas.
O poema “Terza Rima” realmente surpreende pelo prosaísmo precursor. Nas palavras
de Antonio Candido (p. 161, v. 2), Álvares de Azevedo “foi o primeiro, quase o único antes
do Modernismo, a dar categoria poética ao prosaísmo quotidiano, à roupa suja, ao cachimbo
sarrento [...]”.
No poema “A Lagartixa”, encontramos uma falsa declaração de amor e pseudo-
idealização da mulher amada realizada pela persona satírica. Nele, ainda percebemos que a
aproximação entre o estado amoroso do eu lírico, diante de sua amada, e a preguiça da
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lagartixa, posta ao sol, implica o efeito do tédio gerado pela figura feminina, que também é
rebaixada por sua equiparação a mulheres de um harém. Há, portanto, uma negação do amor
ideal, criando ao mesmo tempo uma contradição e uma superação da prática sentimental
pautada na “ironia romântica”:
A lagartixa
A lagartixa ao sol ardente vive
E fazendo verão o corpo espicha:
O clarão de teus olhos me dá vida,
Tu és o sol eu sou a lagartixa.
Amo-te como o vinho e como o sono,
Tu és meu copo e amoroso leito...
Mas teu néctar de amor jamais se esgota,
Travesseiro não há como teu peito.
Posso agora viver: para coroas
Não preciso no prado colher flores;
Engrinaldo melhor a minha fronte
Nas rosas mais gentis de teus amores.
Vale todo um harém a minha bela,
Em fazer-me ditoso ela capricha:
Vivo ao sol de seus olhos namorados,
Como ao sol de verão a lagartixa. (AZEVEDO, 2002, p. 235).
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Este poema apresenta muita particularidade, tanto em sua estrutura, quanto em sua
temática. Em sua estrutura, o poema é composto por quatro estrofes de quarteto, com versos
decassílabos. No que se refere à temática, o eu lírico apresenta um poema com (sugestões de)
atitudes românticas, mas provido de um ar joco-sério, em que ressalta o tédio gerado pelo
sentimentalismo puro e inatingível.
O eu poético, por meio de uma atitude irônica, esclarece os papeis deles no poema,
acrescentando ainda, que ele não consegue viver sem a amada, pois dela depende sua
sobrevivência. A amada, ironicamente, é comparada ao vinho e ao sono. Ela é para o eu lírico
o copo, por onde ele bebe o vinho (amada) e dela se embriaga (sugerindo o tédio que a figura
feminina representa neste poema). Ela também é um néctar, ou seja, néctar do amor, elixir da
existência do eu lírico, que nunca acaba. Na quarta estrofe e mais precisamente no verso um, a
mulher é comparada a um harém. Esta especificação um valor mais carnal para a bela do
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Este é o quarto poema da série intitulada “Spleen e Charutos”.
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eu lírico, criando um rebaixamento, em detrimentos das formas elevadas e extrema
sublimação que a mulher sugere na prática sentimental do movimento.
Numa visão superficial, o poema apresenta-se como romântico sentimental. Ou seja,
entre comparações e idealizações, o poema tem uma “máscara” extremamente romântica, que
é espalhado por todo seu corpo, porém, entre exageros e ais de amor há muito mais coisas que
nos causa o riso, do que o próprio lirismo que o eu poético parece oferecer.
No poema há também a metáfora animal, que é a metamorfose do eu lírico em
lagartixa, bicho feio e asqueroso. Esta metáfora é dada pela transferência de imagens animais
para a esfera humana, em que muitas vezes adquirem significações humorísticas, irônicas,
pejorativas e grotescas, como é o caso desse poema.
Em síntese, os elementos românticos neste poema são centrados numa consciência
interessante pelo poeta. O romantismo esfumaçado e fantasioso perde lugar para um amor de
“troças consciente”. Em outras palavras, este quarto poema, da série “Spleen e Charuto”, está
voltado mais para o último vocábulo, isto é, o objeto charuto, que é ressaltado em detrimento
do estado de espírito melancólico. Esta série tem certa particularidade, o nome é bastante
original e de certa forma galhofeiro, uma vez que aproxima um estado de espírito e um objeto
concreto e prosaico.
No poema “O Cônego Filipe”, o sujeito da enunciação mente quando diz que irá
compor um poema heróico em honra de uma personagem cômica. Com isso, podemos
perceber que o poema o se detém, predominantemente, nas ações de seu falso herói, não se
constituindo, assim, nos moldes do gênero a que se propõe, mas antes como uma paródia do
estilo heróico. Temos, pois, uma reflexão do eu lírico, que nega, por meio da paródia, a parte
séria da poesia romântica:
O Cônego Filipe
O cônego Filipe! Ó nome eterno!
Cinzas ilustres que da terra escura
Fazeis rir nos ciprestes as corujas!
Porque tão pobre lira o céu doou-me
Que não consinta meu inglório gênio
Em vasto e heróico poema decantar-te?
Voltemos ao assunto. A minha musa
Como um falado Imperador Romano
Distrai-se às vezes apanhando moscas.
Por estradas mais longas ando sempre.
Com o cônego ilustre me pareço,
Quando ele já sentia vir o sono,
Para poupar caminho até a vela,
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Sobre a vela atirava a carapuça.
Então no escuro, em camisola branca
Ia apalpando procurar na sala –
Para o queijo flamengo da careca
Dos defluxos guardar – o negro saco.
À ordem, Musa! Canta agora como
O poeta Ali-Moon no harém entrando
Como um poeta que enamora a lua,
Ou que beija uma estátua de alabastro.
Suando de calor... de sol e amores...
Cantava no alaúde enamorado,
E como ele saiu-se do namoro.
Assunto bem moral, digno de prêmio,
E interessante como um catecismo;
Que tem ares até de ladainha!
Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela suave natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?
Principio no harém. Não é tão novo.
Mas esta vida é sempre deleitosa,
As almas d’homem ao harém se voltam –
Ser um dia sultão quem não deseja?
Quem não quisera das sombrias folhas
Nas horas do calor, junto do lago
As odaliscas espreitar no banho
E mais bela a sultana entre as formosas?
Mas ah! O plágio nem perdão merece!
Digam – pega ladrão! – Confesso o crime,
Não é Ovídio só que imito e sonho,
Quando pinta Acteon fitando os olhos
Nas formas nuas de Diana virgem!
Não! embora eu aqui não fale em ninfas,
Essa idéia é do cônego Filipe! (AZEVEDO, 2002, p. 240).
Por outro lado, a ironia como estética do Romantismo favoreceu a prática literária de
Azevedo. Ou seja, no Brasil, Álvares de Azevedo pôde usar desse recurso para produzir boa
parte de seus poemas de maneira mais inovadora. Numa visão mais particularizada, nós
poderíamos ver o uso da ironia pelo autor de Macário como uma adesão consciente contra o
próprio exagero dos românticos. O que constituiria um certo metarromantismo com a parte
mais sentimental do movimento.
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Álvares de Azevedo utiliza a ironia na segunda parte da Lira dos Vinte Anos, para
combater, entre outros aspectos, o sentimentalismo romântico da primeira parte deste livro, o
que chega a sugerir um rompimento com a parte sentimental. O seu próprio livro Lira dos
Vinte Anos é um exemplo; os poemas da segunda parte, onde são utilizados os recursos da
ironia, “desconstroem”, em paródias genuínas, a primeira parte do livro.
Nas produções poéticas de Álvares de Azevedo, há o realismo humorístico, que utiliza
o recurso do prosaísmo para se aproximar de coisas mais palpáveis, e entendido como
contraponto à criação mais imaginosa ou fantasiosa.
Um dos aspectos interessantes no uso da ironia por Álvares de Azevedo está no poema
“O cônego Filipe”. Neste poema, o poeta usa uma figura histórica para compor a temática: o
cônego Filipe Pinto da Cunha e Sousa, que tinha fama de não ser muito inteligente. No poema
de Álvares de Azevedo podemos visualizar explicitamente a simplicidade e a pobreza de
espírito do cônego, o que nos escritos da época é confirmado em anedotas maliciosíssimas
sobre o religioso.
Nas recordações da infância, Machado de Assis confessou a José Veríssimo que fora
ao morro do Livramento porque soubera que ia ser destruída a casinha onde nascera. A
casinha ficava na mesma chácara onde viveu o Cônego Filipe,
figura popular, a quem se atribuía uma pobreza de espírito verdadeiramente
franciscana, sobre quem corriam anedotas maliciosas. Entre outras contava-
se a de um pintor que impingira ao bom do padre um quadro representando o
banho da casta Suzana, no qual lhe afirmara havê-lo pintado também, mas
por detrás de uma árvore, para poder ver sem ser visto (MIGUEL-PEREIRA,
1939, p. 22-23).
Comentando o tal episódio, Machado de Assis escreveu no Diário do Rio de Janeiro:
“Nas minhas reminiscências de infância, tenho ainda viva a idéia de ter visto quase
diariamente a tela, a que alude a anedota do cônego e do pintor; lá estava a árvore, atrás da
qual o cônego figurava estar escondido para não ser visto de Suzana” (MACHADO apud
MIGUEL-PEREIRA, 1939, p. 22-23).
Lúcia Miguel-Pereira, no texto citado, ainda afirma a simpatia e o respeito que
Machado de Assis tinha pelo Cônego, dando uma explicação não muito satisfatória, mas que
parece ser a mais plausível:
de ter sido, esse cônego Filipe, uma boa alma, ingênua e pura, cuja
lembrança vivia na velha casa onde morara. E brincando sob as árvores do
seu terreiro, entrando-lhe na casa cheia de objetos seus, o pequeno Machado
de Assis aprendera a respeitá-lo, sentira-se ligado a ele pelos laços que, no
Brasil de outr’ora, uniam os senhores aos agregados (MIGUEL-PEREIRA,
1939, p. 24).
200
Fica difícil explicar como um jornalista liberal, agressivamente anticlerical, falasse
com evidente simpatia desse padre, alvo de constantes alusões desagradáveis, tentando
reabilitar-lhe a memória.
Nas mãos de um amigo de infância, Machado de Assis afirma ter visto o testamento do
cônego: “É um manuscrito venerável e legendário... O cônego, a quem se atribui tanta
simplicidade, escreveu um testamento sério, grave, cheio de lucidez e de razão”.
(MACHADO apud MIGUEL-PEREIRA, 1939, p. 24).
No poema “O cônego Filipe”, Álvares de Azevedo cita a pobreza de espírito do
cônego. Nele, o poeta usa a ironia para sugerir as atitudes do religioso que revelava sua
capacidade intelectual.
Na primeira estrofe, o eu lírico evoca o cônego como sendo um nome eterno, e a ele se
refere como cinzas ilustres e acrescenta que o próprio nome já faz rir as corujas. A palavra
ilustre mostra a ironia ao referir que o religioso é insigne, em virtude de seus méritos pessoais,
uma vez que não é falado da simplicidade e pouca inteligência. Em contigüidade a isso, o eu
lírico mais uma vez troça com o cônego ao dizer que a sua lira é pobre, e afirma não ser digno
de cantar as proezas do religioso.
O eu poético usa na primeira estrofe a digressão para apresentar o cônego e, ao mesmo
tempo, explicitar a simplicidade do pobre cônego. Quando o eu poético termina a primeira
estrofe, logo ele pede desculpas pela digressão, pois o assunto é outro, ou seja, cantar o
cônego em poema heróico e não falar de si mesmo.
Na segunda estrofe, o eu lírico satiriza o cônego ao narrar episódio um tanto quanto
simplório, entrando na figura histórica e prolongando o estereótipo do cônego ser desprovido
de inteligência. Tal afirmação nos é legitimada, quando o padre tem sono, primeiro apaga a
vela e no escuro caminha até a sala.
O eu lírico, ainda na segunda estrofe, utiliza a construção de imagens para explanar a
ação do cônego. Nessa estrofe, diferente da primeira em que faz a apresentação do
personagem, o eu lírico começa a traçar seu plano poético; ele compara a musa do poema a
um famoso imperador romano que não faz outra coisa a não ser apanhar moscas,
demonstrando o ócio de ambos. Além disso, o eu lírico diz aprofundar e ser mais ousado nas
suas ações que o próprio religioso, porém ele diz parecer muito com o cônego Filipe.
Como determinação imperativa de superior para um inferior, o eu poético ordena que
“sua musa” cante como o poeta “Ali-Moon”, ou como um poeta estritamente romântico. A
impressão que temos é a de que a musa parece ser às avessas. Na segunda estrofe, ela apanha
mosca, ou seja, não faz nada. Estabelecendo assim, certas conveniências da amada, da eleita,
201
pura e virgem donzela. O eu lírico parece troçar mais uma vez do sentimentalismo e do
convencionalismo impostos pela própria escola romântica. Nos dois últimos versos, o eu
lírico cita as palavras catecismo e ladainha, vocábulos de esfera religiosa, que nos fazem
envolver a figura do cônego. E assim, remete-nos a impressão do padre, como se ele tivesse
dito os absurdos ao eu poético, o que em tese o último verso do poema parece confirmar:
“Essa idéia é do cônego”.
A quarta estrofe questiona a inspiração e o ato de criação poética romântica; o eu lírico
pergunta quem não caiu em tentação e fora buscar, numa terra misteriosa, o modelo ideal para
a sua poesia.
Na quinta estrofe, o eu lírico afirma que tudo começa no harém, lugar ideal e desejado
por muitos homens. No entanto, o homem no poema citado é o padre, o que uma idéia de
um certo anticlericalismo. Destarte, o harém remete-nos à origem dos sonhos e desejo
desejo bem carnal, mas sem consumação. O eu poético contesta que a origem no “harém” não
é nova e afirma ser a vida sempre deleitosa, ou seja, a vida já é o maior grau de prazer levado
ao seu extremo. Entretanto, as almas dos homens sempre voltam ao harém, lugar idealizado,
de prazer e riqueza, onde ser sultão significa ter poder e muitas mulheres. O eu lírico
pergunta: quem nunca quis ser um dia Sultão? Novamente aparece a ironia, quando o eu
poético reconhece a condição de um cônego, que por voto de castidade, não pode ter acesso
aos prazeres da carne. No entanto, pensar ou ver não seria proibido, mas sabemos que isso
também é pecado, segundo a Igreja Católica.
O eu lírico na quinta estrofe mostra uma imagem interessante ao apontar uma pessoa a
observar todo um harém. Este episódio remete-nos à figura histórica do cônego Filipe e à
anedota sobre o quadro em que se figurava o padre atrás da árvore para ver a casta Suzana
sem ser visto. O eu poético de certa forma apresenta um sarcasmo ao aproximar esses dois
episódios.
Na última estrofe, o eu lírico revela ser um crime plagiar e confessa ser um ladrão,
pois ele diz cometer o crime do plágio. No entanto, o seu crime não é plagiar Ovídio, ou
sonhar sê-lo quando descreve Acteon olhando as belas curvas da virgem Diana, mas o próprio
cônego.
Álvares de Azevedo construiu bem o poema “O cônego Filipe” utilizando a ironia
romântica. Além de criar um poema narrativo de um certo realismo humorístico, ele usa bem
o recurso irônico com a figura do religioso a fim de expressar de certa forma prosaica a sua
atitude em aspectos inovadores, ou seja, o uso da paródia em gêneros consagrados como o
heróico. Com isso, a proposta inicial do sujeito da enunciação é falsa ao dizer que irá compor
202
um poema heróico de um personagem cômico como o cônego Filipe; antes ele cria uma
paródia deste estilo. Assim, este poema demonstra uma ironia reflexiva com o próprio estilo
em questão. Com isso, é possível supor que o poeta arquiteta e constrói um poema por meio
de um procedimento crítico.
A concluir, no poema “O cônego Filipe”, acreditamos que o poeta está ciente de sua
proposta de elaboração do fazer poético. Mesmo porque, em Lira dos Vinte Anos,
precisamente no segundo prefácio, Álvares de Azevedo expõe que adotaria uma postura
diferente sendo a dialética parte dela –, e anuncia: “vamos entrar num mundo novo, terra
fantástica, verdadeira Ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho Pança é rei [...]
(AZEVEDO, 2002, p. 139). Em suma, nesses poemas da segunda parte, o poeta vai mais
longe, ultrapassa o sentimentalismo romântico, esboça uma ironia inclusa nessa obra, que
exclui o pieguismo amoroso, a exaltação da mulher e parodia o gênero heróico como podemos
ver no poema “O cônego Filipe”.
Ao término dessas explanações, observamos que Azevedo, ao introduzir a ironia
romântica, trabalha bem a contradição e a negação da poesia idealista. Assim, pode-se
perceber que sua teoria, antagônica, da prática poética, estabelecida sob o nome de “binomia”,
compreende, em maior totalidade, um distanciamento da teoria dos contrastes proposta por
Hugo em seu prefácio a Cromwell. Vê-se, então, que o poeta consegue empreender um
procedimento crítico a sua obra, isto é, a binomia, que não é assunto do texto do poeta
francês.
Assim, se a teoria de Victor Hugo prega a fusão de práticas distintas, o sublime e o
grotesco, porque então haveria de Azevedo não afirmar sua escolha? Se há de um lado lirismo
e do outro a descontrução desse mesmo lirismo, é porque o poeta não opta em fundir as
práticas literárias, como fizera Hugo, mas combiná-las, unindo apenas na pretensão da
unidade do livro.
Além disso, Azevedo afirma categoricamente em seu prefácio que “depois dos poemas
épicos Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou Faust. Depois de
Parisina e o Giaour de Byron vem o Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença
venenosa e sarcástica” (Azevedo, 2002, p. 140). Deste modo, supõe-se queo há uma
declaração formal de adesão à teoria hugoana, de tensão e fusão das práticas distintas de
gêneros num só momento, num só lugar. Antes, há sim uma aproximação no desenvolvimento
de gêneros diferentes que não eram praticadas no Classicismo, que Hugo defenderá com
veemência em sua contemporaneidade, ou seja, uma nova proposta que sedesenvolvida no
203
novo movimento. Desse modo, o que são pontos de contatos nesses aspectos entre nosso
escritor e o francês.
A nossa opção em deixar escolher um novo caminho a outros explorados se deve
também não ao fato de Azevedo sugerir-se adepto da teoria hugoana, mas buscar uma
observação teórica que melhor explicite a criação crítica de sua obra, a elaboração em bases
antitéticas, dialéticas do fazer poético.
Ou seja, o prefácio de Hugo por si não é suficiente para explicar todos os fatores
complexos que envolvem a binomia, tampouco o privilégio que os românticos concederam ao
pensamento crítico, reflexivo e auto-reflexivo, à revisão da tradição e à autoparódia. No
entanto, para nos aproximarmos mais de um possível entendimento da binomia instituída por
Azevedo como processo gerador de sua poética, tomamos alguns conceitos de Schlegel, de
quem melhor se poderia dizer ter sido o iniciador do movimento romântico.
Para Friedrich Schlegel, a capacidade romântica de criar mundos perfeitos e eternos
pode ser revista e destruída pelo mesmo espírito que a criou. Desse ponto de vista, vemos que
a oposição dialética defendida por ele se pauta no dinâmico e mutável, em que a poesia do
ideal é negada pela ‘ironia romântica’. Essa conceituação paradoxal da criação artística teria,
por assim dizer, duas fases contraditórias, embora entre si elas fossem complementares, uma
vez que o escritor teria, ao mesmo tempo, uma “energia criativa e uma des-criativa, uma
inventiva entusiasta, irrefletida, e uma inquietação irônica, autoconsciente” (SCHLEGEL
apud MUECKE, 1995, p. 40).
No plano da idealização poética, o amor torna-se um sentimento único, perfeito e
infinito, e a mulher perde seus atributos carnais e transforma-se numa divindade. Nesse
imaginário artístico, o artista romântico foi levado a idealizar esta visão extremada da mulher
e do amor. Nesse mesmo contexto, entretanto, aparecem elementos capazes de destruir esse
idealismo, veiculados discursivamente pela “ironia romântica”. É por meio dessa dialética,
que se tornou possível estruturar a tensão entre o ideal e o real, criando assim, um
distanciamento crítico do poeta na função de seu papel e da própria arte na sociedade.
Nessa acepção, a dualidade que fundamenta o estético na obra de Álvares de Azevedo,
recusa, num primeiro momento, as convenções poéticas que regiam o ato criacional. Noutro
momento, chega a legitimar a criação poética dele, unificando-a em um projeto literário
próprio. Isso se quando o escritor, num processo de formação poética, elabora e sentido
a uma maneira idealista, que logo em seguida é fonte de riso, assumida pela “ironia
romântica”. Assim, se em dado momento estabelece uma legitimação dessa poesia, noutro, ele
a negará, constituindo, nesse embate, a postulação dos princípios estéticos antagônicos.
204
Por fim, nos questionamos se Azevedo refletiu sobre a construção de sua obra,
pautado no antagonismo afirmação e negação. Uma questão que nos fica é se ele concebeu
Lira dos vinte anos, Macário e seus textos críticos, por meio de uma consciência literária,
enquanto escritor romântico, que demonstraria uma capacidade de instituir seu próprio projeto
literário? Acreditamos que sim, pois de acordo com o movimento ao qual é filiado, o escritor
vai elaborando e definindo uma consciência no que respeita à idéia romântica, segundo a qual
o próprio poeta deve ter uma teoria em sua obra. Por este caminho, o autor estabelece sua
própria teoria de concepção da arte, bem como esta obra (Lira dos vinte anos) torna-se o
espaço, o centro de sua poética (BENJAMIN, 2002).
205
PALAVRAS FINAIS.
Desde o início desta dissertação, cujas considerações finais a partir de agora serão
esboçadas, sabíamos que o objeto de nosso estudo não era novo, isto é, ao abordar o poeta
Álvares de Azevedo e parte de sua obra, tínhamos a convicção de que não seria fácil, bem
como teríamos um longo caminho a percorrer. Primeiro, por se tratar de um autor canônico e
segundo, por haver mais de um século de estudos críticos sobre sua produção artística.
Todavia, afirmamos que se por um lado o objeto de pesquisa não é novo, por outro lado
buscamos nele inserir o nosso olhar do século XXI. Ou seja, o que procuramos dispor foi
observar o poeta e sua obra, com um olhar mais recente, sem, contudo, incidir em uma
verdade única, ou ainda sugerir a nossa visão sobre o autor de Macário como verdade
absoluta (mesmo porque, nenhuma é inabalável e tudo [nessa pós-modernidade] tem passado
por um certo relativismo).
Sabíamos também ser necessário questionar antigas discussões que, ainda, perduram
no quadro crítico sobre o autor de Noite na Taverna, bem como sugerir questões mais abertas
sobre Azevedo como, por exemplo, a consciência do poeta no ato criacional, ou a maturidade
poética dele, ou ainda, a sua capacidade crítica de arquitetar um projeto literário próprio.
Deste modo, não nos preocupamos em debater pontos mais abrangentes, isto é, mexer com a
literatura em geral, com o cânone literário (sugerindo ou propondo uma profunda revisão)
etc., mas pontuar o nosso objeto de estudo com um olhar que remexa velhas e sugeridas
verdades sobre Álvares de Azevedo. É nisso que acreditamos consistir os três capítulos desta
dissertação de mestrado.
Com isso, se de um lado, podemos e devemos reconhecer algumas sugeridas verdades,
como por exemplo, que, o poeta canônico, Álvares de Azevedo, com sua poesia, pontuada em
muitos trabalhos de críticas e imortalizada nas histórias literárias, como sentimental,
desenvolveu temas macabros, como a morte, a vontade de morrer ou mesmo a certeza de um
fim próximo, ou figuras como o diabo etc. Por outro lado, temos não um autor vivo, que
tem suscitado novos estudos sobre temáticas e elementos estéticos que m sido valorizados,
mas também um poeta que dialoga com sua produção artística, com o movimento romântico,
com sua contemporaneidade, que desperta a atenção para, como assinalamos, um lado
inovador, como a “ironia romântica”, o humor, que o habilitou tanto na elaboração de um
206
projeto literário peculiar, quanto num posicionamento bastante consciente na projeção de uma
literatura brasileira em desenvolvimento.
Desse modo, se na segunda parte de Lira dos vinte anos uma poesia não
sentimental e consciente, a vemos como contraponto da outra parte sentimental e ingênua,
reforçando assim o aspecto crítico na elaboração deste livro. Com isso, esse lado “da
medalha” seria uma das faces, que contradizem, mas conjugam com a outra face o
conhecimento de Álvares de Azevedo das práticas literárias do movimento romântico, e do
próprio conhecimento de sua obra. É a combinação de tese e antítese na formação e
concretização de um sistema dual, de um sistema teórico, denominado pelo autor de
“binomia”, que o capacitou no desenvolvimento de uma literatura mais abrangente, mais
cosmopolita do fazer artístico. Evidenciando assim, uma obra que contrasta com as dos
primeiros escritores românticos brasileiros.
De mais a mais, em seus estudos literários, Azevedo discutiu sobre os mais variados
pontos, incluindo, não só questões mais abarcantes sobre o movimento romântico europeu e
brasileiro, como também assuntos acerca dos elementos temáticos e estéticos dos autores da
literatura ocidental, além de explicitar a formação das literaturas já edificadas de outras
nações e dialogar com a formação de nossas próprias letras.
Em suma, após todas as colocações sobre o poeta paulista e sua obra no decorrer dos
capítulos desta dissertação, de todas as nossas sugestões e suposições de sua consciência
poética, julgamos que os prefácios de Lira dos Vinte Anos, em especial o prefácio à segunda
parte deste livro, e os Estudos Literários, com suas tomadas de posições e argumentações
sobre a literatura ocidental, seus autores e do próprio movimento Romântico, são capazes de
explicitar o fazer artístico de Álvares de Azevedo. Ou seja, depois de todos esses fatores,
cremos que realmente o autor de Macário, embora jovem, foi apto em estatuir e desenvolver
um projeto literário, cujos elementos, pautado em sua “binomia”, estipularam e deram rédeas
a uma literatura, que se de início contrastou com os demais de seu tempo, na seqüência foi
eficaz na estruturação de uma composição de poética própria em nossa Literatura Brasileira.
Enfim, por esses procedimentos e tantos outros, acreditamos que Álvares de Azevedo foi
consciente em seu fazer literário.
207
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ANEXO
216
ANEXO A – Texto de Paulo Franchetti.
Não entendeu de forma diferente a questão outro dos nossos maiores poetas
românticos, Álvares de Azevedo (1831-1852). Num texto intitulado “Literatura e cultura em
Portugal” (sic) assevera que, pelo menos até Gonzaga, não há porque dividir em duas a
literatura vernácula, ao que acrescenta
:
E demais, ignoro eu que lucro houvera se ganha a demanda em não
querermos derramar nossa mão cheia de jóias nesse cofre mais abundante da
literatura pátria; por causa de Durão, não podermos chamar Camões nosso;
por causa, por causa de quem?...(de Alvarenga?) nos resignarmos a dizer
estrangeiro o livro de sonetos de Bocage!
Polemizando com os contemporâneos, Álvares de Azevedo ataca de frente as teses do
maior teórico do nacionalismo literário, o chileno Santiago Nunes Ribeiro (?-1847), que nas
páginas da Minerva Brasiliense (1843) defendera ardidamente a existência de uma literatura
brasileira. Não aceitando a postulação de que a nacionalidade se confunda com escolhas
vocabulares e temáticas, dá ênfase, por outro lado ao papel fundamental da língua literária:
[...] a nosso muito humilde parecer, sem língua à parte não literatura à
parte. E (releve-se-nos dizê-lo em digressão) achamo-la por isso, senão
ridícula, de mesquinha pequenez essa lembrança do Sr. Santiago Nunes
Ribeiro, dantes apresentada pelo coletor das preciosidades poéticas do
primeiro Parnaso Brasileiro [Januário da Cunha Barbosa (1780-1846)]
[...]
Doutra feita alongar-nos-emos mais a lazer por essa questão, e essa polêmica
secundária que alguns poetas e mais modernamente o Sr. Gonçalves Dias
parecem ter indigitado: a saber, que a nossa literatura deve ser aquilo que ele
intitulou em suas coleções poéticas -- poesias americanas. Crie o poeta
poemas índicos, como o Thalaba de Southey, reluza-se o bardo dos perfumes
asiáticos como nas Orientais, Victor Hugo, na Noiva de Abidos, Byron, no
Lallah-Rook, Tomas Moore; devaneie romances à européia ou à china, que
por isso não perderão sua nacionalidade literária os seus poemas.
Azevedo admite, portanto, a existência da nacionalidade literária, não acredita que
ela se reduza à temática. A julgar pela ênfase que à diferenciação lingüística na definição
do nacional, podemos supor que em sua concepção a brasilidade esteja intimamente vinculada
a uma forma específica de utilizar o idioma. Azevedo, porém, não desenvolveu essa questão,
preferindo apenas marcar claramente sua recusa aos esquematismos das definições sumárias e
apaixonadas da nacionalidade em literatura. Definições essas que, em seu tempo e depois, não
a reduziam freqüentemente ao nível do temático e do vocabular, mas ainda a
transformavam em critério de valoração estética.(5)
A passagem de Gonçalves Dias para Álvares de Azevedo representa a conclusão do
movimento em direção ao internacionalismo. Leitor extremamente voraz, Azevedo abriu-se a
217
todas as influências, que nem sempre teve tempo para depurar e solidificar. Vários de seus
textos – principalmente os poemas longos, que não quis ou não pôde talvez rever para
publicação ficam prejudicados pelo uso excessivo de referências literárias e lugares comuns
do ultra-romantismo. O mesmo se com sua crítica literária. Prenhe de sugestões, é todavia
desordenada e cansativa pelo excesso de citações e propensão generalizante.
Por esse lado internacional, Azevedo é identificado nas histórias literárias como nosso
representante máximo do byronismo, que consistiu aqui num gosto acentuado pelo cinismo,
pelo pessimismo e pela ironia, e num apego às descrições mórbidas e funerárias, à imagética
diabólica e a uma mistura de tedium vitae com lubricidade desenfreada.
Foi principalmente por esse aspecto que a obra de Álvares de Azevedo obteve, em
meados do século passado, enorme ascendência sobre os jovens poetas. Eis como José
Veríssimo avaliou essa característica da poesia de Azevedo e a influência que entre nós
exerceu:
[...] as razões por que Álvares de Azevedo foi, [...] e porventura continua a
ser, em certos círculos literários, o poeta preferido dentre os do seu tempo,
não abonam grandemente o bom-gosto e o senso crítico de seus admiradores.
Álvares de Azevedo foi por eles principalmente admirado, primeiro pela
existência factícia que se fez de poeta boêmio, desesperado, desiludido,
descrente, diabólico [...] e depois pela tradução mais ou menos disfarçada
que em prosa e verso deu dos sentimentos extravagantes e extraordinários
desses heróis do romantismo. [...] Isso durou mais que o razoável, e a nossa
boemia poética, que perdeu tanto talento e tanto caráter, deriva por muito
deste gosto por essa parte da obra de Álvares de Azevedo. [...] Parte
somenos, aliás, que certamente não merece o apreço, e sobretudo a estima,
que lhe deram [...] (In: Estudos de literatura Brasileira)
O julgamento, embora excessivamente severo, aponta para o alvo certo: a persistência
de um tipo de leitura e de uma imagem de Álvares de Azevedo que obscurece a sua mais
importante, original e até hoje atualíssima contribuição à nossa poesia: o humor melancólico,
a irreverência e o coloquialismo presentes, por exemplo, nas suas Idéias Íntimas:
III.
Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas
û estante pulvurenta. A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Faust um colarinho
E Alfredo de Musset encobre às vezes
De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro.
Como outrora do mundo os elementos
Pela treva jogando cambalhotas,
Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!
[...]
218
Se, do ponto de vista do byronismo, a transição de Gonçalves Dias para Álvares de
Azevedo significa a passagem para o tom mais cosmopolita do nosso romantismo, do ponto
de vista temático e lingüístico essa transição representa a conquista definitiva da poeticidade
do coloquial, do tema quotidiano e prosaico para a poesia brasileira. Como bem observa
Antonio Candido, Álvares de Azevedo “foi o primeiro, quase o único antes do Modernismo, a
dar categoria poética ao prosaísmo quotidiano, à roupa suja, ao cachimbo sarrento; não por
exigência da personalidade contraditória, mas como execução de um programa
conscientemente traçado”. Programa esse que esexpresso no prefácio à segunda parte da
Lira dos vinte anos:
Cuidado, leitor, ao voltar esta gina! Aqui dissipa-se o mundo visionário e
platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha
Baratária de D. Quixote, onde Sancho é rei [...] Quase que depois de Ariel
esbarramos com Caliban. A razão é simples. É que a unidade deste livro
funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro
pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de
duas faces.
A essa binomia programática deve-se não só a autoparódia recorrente na segunda parte
da Lira, mas também as melhores páginas de prosa de Álvares de Azevedo, que são as do
Macário. É ainda a essa dupla direção do espírito que devemos algumas das mais curiosas
páginas de sua crítica literária, como aquela em que censura Mendes Leal pela excessiva
idealização da mulher que precisamente caracteriza tantos dos próprios poemas; ou uma
outra em que critica o abuso de mortualha na cena teatral contemporânea de que também se
valia sem muita moderação.
Nesse momento, é preciso chamar a atenção para o fato de que Álvares de Azevedo,
ao compor os poemas irreverentes da “Segunda Parte” da Lira, não estava isolado dos
contemporâneos. Pelo contrário, estava integrado a uma tendência que, principalmente em
São Paulo, produziu ao longo do tempo um conjunto de textos realmente impressionante pela
liberdade inventiva. Desses poemas é bom exemplo o “Namoro a cavalo”, em que, além do
humor e da sátira ao tema romântico do namoro eqüestre, merece destaque a extrema
coloquialidade da linguagem:
Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça
Que rege minha vida malfadada
Pôs lá no fim da rua do Catete
A minha Dulcinéia namorada.
Alugo (três mil réis) por uma tarde
Um cavalo de trote (que esparrela!)
Só para erguer meus olhos suspirando
219
A minha namorada na janela...
[...]
Mas lá vai senão quando uma carroça
Minhas roupas tafuis encheu de lama...
[...]
Mas eis que no passar pelo sobrado
Onde habita nas lojas minha bela
Por ver-me tão lodoso ela irritada
Bateu-me sobre as ventas a janela...
O cavalo ignorante de namoros
Entre dentes tomou a bofetada,
Arripia-se, pula, e dá-me um tombo
Com pernas para o ar, sobre a calçada...
Dei ao diabo os namoros. Escovado
Meu chapéu que sofrera no pagode
Dei de pernas corrido e cabisbaixo
E berrando de raiva como um bode.
[...]
As características que mencionamos, e mais o gosto pelo grotesco que aponta na
última estrofe transcrita, vão se encontrar na produção de alguns contemporâneos e amigos de
Álvares de Azevedo: José Bonifácio de Andrada e Silva, Bernardo Guimarães e Aureliano
Lessa.
José Bonifácio (1827-1886) não tem sido muito valorizado pela historiografia
brasileira, mas merece atenção não como poeta satírico e é, nesse gênero, dos melhores
que tivemos mas também por ter um ou outro poema em que a ironia e o coloquialismo
conseguem bons resultados. Estão nesse caso, “Meu Testamento” e “Um Pé”, onde paga bem-
humorado tributo ao grande fetiche do nosso romantismo. O melhor momento de sua poesia é
o poemeto satírico O Barão e seu cavalo, cuja invocação é a que segue:
Ó cágados gentis da Macedônia!
Ó Caxias, marquês da Patagônia!
Salmões do Sena, tépidos aromas
Do rio Tietê, bestas de Roma!
Ilha das Cobras, flor do Guanabara,
Tachos de furrundum, débil taquara!
Frutas de Cambuí, várzea do Carmo,
Espingardas de pau que eu só desarmo!
Ó sol! Ó sol! cabeça de palito,
Brasa acesa nas costas de um mosquito!
Delicado nariz, meu relicário,
Prenda, prenda gentil do secretário...
220
A esse tipo de composição, praticada entre estudantes da Faculdade de Direito de São
Paulo, dava-se o nome de “bestialógico”. A tradição parece vir de longe, pois Varnhagen, no
seu Florilégio da poesia brasileira (1850), transcreve peças semelhantes de autoria de
Joaquim José da Silva – “O Sapateiro Silva” (fins do séc. XVIII).(6)
O mestre inconteste do “bestialógico” poético foi Bernardo Guimarães (1825-1884),
romancista mediano e poeta pior, que se destaca, entretanto, como satírico e cultor do
nonsense:
Mote Estrabótico
Das costelas de Sansão
Fez Ferrabrás um ponteiro
Só para coser um cueiro
Do filho de Salomão
Glosa
Gema embora a humanidade,
Caiam coriscos e raios,
Chovam chouriços e paios
Das asas da tempestade,
– Triunfa sempre a verdade,
Com quatro tochas na mão.
O mesmo Napoleão,
Empunhando um raio aceso,
Suportar não pode o peso
Das costelas de Sansão.
Nos tempos da Moura-Torta,
Viu-se um sapo de espadim,
Que perguntava em latim
A casa da Mosca-Morta.
Andava, de porta em porta,
Dizendo, muito lampeiro,
Que, pra matar um carneiro,
Em vez de pegar no mastro,
Do nariz de Zoroastro
Fez Ferrabrás um ponteiro.
Diz a folha de Marselha
Que a imperatriz da Mourama,
Ao levantar-se da cama,
Tinha quebrado uma orelha,
Ficando manca a parelha.
É isto mui corriqueiro
Numa terra, onde um guerreiro,
Se tem medo de patrulhas,
Gasta trinta-mil agulhas,
Só para coser um cueiro.
Quando Horácio foi à China
Vender sardinhas de Nantes,
221
Viu trezentos estudantes
Reunidos numa tina.
Mas sua pior mofina,
Que mais causou-lhe aflição,
Foi ver de rojo no chão
Noé virando cambotas
E Moisés calçando as botas
Do filho de Salomão.(7)
Poemas como esse e são nessa época em volume muito considerável colocam-nos
frente a um problema interessante, que é o evidente desnível entre eles e aqueles que
compõem a parte “séria” da poesia do autor, pois apenas Álvares de Azevedo é igualmente
grande nos dois lados da sua Lira. A obra de Bernardo Guimarães é exemplar da situação
média do grupo, porque excetuados os poemas cômicos, satíricos e fesceninos, nada mais
ali que se aproveite.
Uma explicação plausível para o melhor nível de realização poética presente em
poemas desse tipo está em que eram produzidos e consumidos em uma situação muito
específica: a vida boêmia, a emulação diária de poetas que se conheciam e conviviam
estreitamente no quotidiano da pequena cidade acadêmica de meados do século passado. A
boêmia proporcionava ao poeta um público cuja resposta, além de imediata, era
intelectualmente respeitada coisa bastante diferente, mesmo em nossas condições, do que
acontecia com o mercado de textos literários destinados ao “grande” público, cujo julgamento
passava também e talvez principalmente pelos valores morais e políticos. Nas pequenas
sociedades estudantis, a boêmia simultaneamente propiciava uma suspensão do juízo moral
sobre os textos destinados a circulação interna e estimulava um certo inconformismo político,
nem sempre compatível com as funções que o bacharel deveria poder assumir em breve na
sociedade. Uma curiosa conseqüência desse estado de coisas é que devemos a esse meio
boêmio a única produção literária do período romântico que não prevê explícita ou
implicitamente um público majoritariamente feminino isto é, na época e em nossas
condições, intelectualmente limitado e moralmente conservador.
Poucos anos após a estréia de Magalhães, esses poetas representam um terceiro
momento de nosso romantismo, pois embora tributários diretos de Gonçalves Dias quanto a
vários aspectos, vivenciam o ambiente cultural de forma muito diferente. Na época de
Azevedo, nossos mais prestigiosos literatos não são mais barões do Império, perfeitamente
integrados à sociedade, sem crises de identificação política. Pelo contrário, a poesia dessa
geração nos fala eloqüentemente de um tema que permaneceria sempre desconhecido dos
liderados por Magalhães e mesmo de Gonçalves Dias: a inadaptação do homem de letras ao
222
sufocante ambiente intelectual do Brasil oitocentista. Frente à limitação do público e dos
meios de reprodução e preservação da cultura, o poeta que por volta de 1850 entrasse na vida
adulta (e continuasse poeta) ou assumia francamente o lado obscuro e outsider – foi o caso de
Varela (1841-1875); ou então se dilacerava entre ele e uma fachada respeitável e medíocre
esta a solução almejada e nem sempre conseguida por Bernardo Guimarães (1825-1884). Aos
demais a opção não chegou a colocar-se, por não sobreviveram à adolescência. Álvares de
Azevedo e Casimiro de Abreu morreram com 21 anos e Castro Alves, algum tempo depois,
não passaria dos 24.
No Brasil do Segundo Império, fazer versos era atividade típica da juventude
estudantil, que freqüentemente se despedia da vida acadêmica e boêmia com a publicação de
um livro de poemas que não teria continuação pelo burocrata ou pelo político. Disso decorre
que na maior parte de nossa boa poesia romântica os temas da época se ressintam de uma
visada exclusivamente juvenil. Disso decorre também a persistente identificação, entre nós, de
poesia e juventude, que vai muito além do período romântico em que se firmou. Apenas como
exemplo, observemos que um historiador do porte de José Veríssimo (1857-1916),
contemporâneo de escritores que cresceram com a maturidade, como Machado de Assis e
Olavo Bilac, de dizer a propósito de Gonçalves Dias: “Se ele devia, vivendo, esterilizar-se
como Magalhães e Porto-Alegre, melhor foi, porventura, que morresse também
prematuramente. A sua obra basta à sua glória e à da nossa poesia” (In: Estudos..., cit., p.22).
Aparentemente sucumbindo à idéia romântica e algo mórbida de que a morte
prematura do homem de letras redundava em benefício de sua obra, Veríssimo está aqui
apontando na verdade para a dificuldade de conciliar a criatividade relativamente
irresponsável da adolescência com as obrigações da vida adulta no Brasil de meados do
século.
Entre nós, essa poesia juvenil teve duas acabadas expressões, em níveis diferentes de
realização estética: Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu. A obra de ambos é atravessada
por uma obsessiva tematização do amor adolescente, que foi objeto de uma análise magistral
de Mario de Andrade sob o título muito adequado de “Amor e medo”.
No caso de Álvares de Azevedo, o movimento central da vivência amorosa é a rígida
divisão entre os domínios do afeto espiritual e do desejo carnal. Toda a sua obra se articula
em função desses pólos, que são sentidos como antagônicos. Disso provém uma enorme
tensão, que se manifesta basicamente de duas formas. Nos poemas dedicados às virgens
idealizadas e incorpóreas, todo o esforço do discurso lírico é exorcismar a emergência do
223
corpóreo, sublimá-lo. Entre muitos exemplos possíveis está o belo poema intitulado
“Sonhando”, que abre com os topos da ninfa perseguida pelo amante:
Na praia deserta que a lua branqueia,
Que mimo! que rosa, que filha de Deus!
Tão pálida – ao vê-la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
[...]
No momento seguinte, a mulher é descrita por meio de imagens extremamente
eróticas:
A praia é tão longa! e a onda bravia
As roupas de gaza te molha de escuma,
[...]
A brisa teus negros cabelos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor;
Teus seios palpitam -- a brisa os roçou,
Beijou-os, suspira, desmaia de amor!
Teu pé tropeçou...
Não corras assim!
Donzela, onde vais?
Tem pena de mim!
Alcançada pelo namorado, no entanto, a mulher lugar a um ser quase incorpóreo:
ela se deita na areia e é levada pelas ondas, transformando-se em imagem diáfana a vagar
sobre as águas:
E a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava tão branca no límpido véu!
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas águas do mar
Não durmas assim!
Não morras, donzela,
Espera por mim!
Por outro lado, o sexo, sentido sempre como violentação da pureza espiritual, como
mácula, é associado à contravenção e ao crime incesto, estupro e prostituição são as suas
formas e vivido de forma extremamente culpada e dolorosa. É o movimento que surge
quando a sublimação não obtém sucesso:
Oh! não maldigam o mancebo exausto
Que nas orgias gastou o peito insano,
Que foi ao lupanar pedir um leito
224
Onde a sede febril lhe adormecesse!
Não podia dormir! nas longas noites
Pediu ao vício os beijos de veneno:
E amou a saturnal, o vinho, o jogo
E a convulsão nos seios da perdida!
Misérrimo! não creu!... Não o maldigam,
Se uma sina fatal o arrebatava:
Se na torrente das paixões dormindo
Foi naufragar nas solidões do crime.
[...]
Tão forte é essa polarização em Álvares de Azevedo, que passa a vigorar como um
verdadeiro princípio estético: existem não determinadas imagens recorrentemente
associadas a cada um desses domínios, como também um tom característico assumido ao
tratar de cada um deles. Uma conseqüência importante é que, quando o poeta tenta fugir às
rígidas prescrições que se traçou e combinar os dois universos afetivos em um mesmo texto, o
resultado é a fragmentação e a falta de sentido estrutural, como no longo e caótico O Poema
do Frade. No Macário o recurso de centrar dramaticamente cada um desses movimentos
espirituais em uma personagem garante a manutenção de um mínimo de estrutura um
mínimo, porque, como se observou, a peça é, “no conjunto e como estrutura, sem nem
cabeça”. Em “O Poema do Frade”, não dispondo desse último recurso para expor o conflito e
manter separadas as esferas do amor espiritual e do sexual, emergem a cada passo as imagens
aterrorizantes da mutilação e do castigo: Ugolino devorando os filhos, os brancos seios de
uma defunta a gerarem violetas, cadáveres e covas apodrecidas, etc.
Podemos agora entrever uma das bases sobre as quais se apóiam os textos
pornográficos e cheios de nonsense produzidos pela geração de que Álvares de Azevedo foi o
maior expoente. Eles provêm em parte da tentativa de manter separados e regidos por
princípios autônomos dois mundos tidos por antagônicos. Assim, de um lado temos a
produção socialmente aceitável: os poemas áulicos, inócuos e patrióticos de Bernardo
Guimarães e José Bonifácio a que correspondem, na obra de Azevedo, os versos em que se
tematiza a pureza do amor fraterno e virginal, de que todo o pecado é afastado pela morte
iminente de um dos amantes. De outro, a produção para circulação mais restrita ou marginal:
o “bestialógico” e a sátira pornográfica – a que corresponde, em Azevedo, o ambiente
esfumaçado em que ocorrem os incestos, os estupros e os assassinatos da sua Noite na
Taverna. Essa separação drástica entre o íntimo e o coletivo, o pessoal e o público, o
reservado e o oficial, o maldito e o sagrado marca profundamente não a Lira dos Vinte
Anos, mas toda a poesia dos companheiros de Azevedo. São poucos os textos que, nesse
225
momento, conseguem o equilíbrio entre os dois pólos sobre os quais se articula a prática
poética dessa geração. Neles, porém, atingimos os níveis mais altos de realização estética. Os
melhores exemplos são “Spleen e charutos” e “Idéias íntimas”, ambos de Álvares de
Azevedo. Tal estado de coisas tenderá a desaparecer na obra de Castro Alves, para quem são
igualmente hiperbólicos e luxuriantes tanto o clamor dos escravos e as evocações
paisagísticas, quanto o desejo e os suspiros pela mulher amada. Os poetas surgidos no fim da
primeira metade do século, porém, viviam em uma sociedade que não era ainda a do poeta
baiano. A grande questão de como harmonizar a convivência dos grandes ideais românticos
de liberdade e igualdade com uma sociedade escravocrata e duramente repressiva não estava
resolvida. A solução viria com a retórica antiescravista de alguns anos depois, que daria um
novo alento à nossa propensão para a oratória vazia e altissonante.
Mas se em Álvares de Azevedo e seus companheiros encontramos esse mundo cheio
de contrastes e de cores escuras e em Castro Alves, as cores brilhantes e fortes entre esses
dois extremos localiza-se uma poesia que prima pelos meio-tons, pela pintura galante do
quotidiano brasileiro.
Notas:
5 - Compreensíveis nos primeiros românticos, essas simplificações tiveram grande fortuna entre nós.
Para que se tenha uma idéia da força da corrente contra a qual tão corajosamente se colocava Álvares
de Azevedo em nome da manutenção de uma perspectiva literária mais universalizante, basta
considerar que, ainda em nossos dias, um ardoroso historiador da "tradição afortunada" do nativismo
literário, Afrânio Coutinho, simplesmente exclui essas reflexões de Azevedo do panorama que
pretendeu dar dessa questão em um de seus livros, transcrevendo do texto em que foram feitas apenas
a parte que trata de Bocage; sem nenhum interesse, aliás, no que se refere à sua contribuição à
polêmica nacionalista. Cf. A. Coutinho (org.). Caminhos do pensamento crítico (2 vol.). Rio de
Janeiro/Brasília, Pallas S.A./INL, 1980, 1355 pp.
6 - A propósito da tradição do nonsense entre os acadêmicos de São Paulo e sua possível vinculação
com a poesia do Sapateiro Silva foram preciosas as indicações do Prof. Antonio Candido, em
conferência pronunciada em 1989 na Universidade Estadual de Campinas.
7 - Guimarães, Bernardo Joaquim da Silva. Poesias completas. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do
Livro/Ministério da Educação e cultura, 1959, p. 422-4.
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