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CELIA LETÍCIA GOUVÊA COLLET
Ritos de Civilização e Cultura: a escola bakairi
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social - Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientadora: Profa. Dra. Bruna Franchetto
Rio de Janeiro
2006
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ii
Ritos de Civilização e Cultura: a escola bakairi
Celia Letícia Gouvêa Collet
Tese de Doutorado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social - Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientadora: Profa. Dra. Bruna Franchetto
Rio de Janeiro
2006
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iii
Ritos de Civilização e Cultura: a escola bakairi
Celia Letícia Gouvêa Collet
Tese submetida ao corpo docente do Programa do Pós-Graduação em Antropologia Social -
Museu - Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
___________________________________________________
Profª Drª Bruna Franchetto - Orientadora -(PPGAS/MN/UFRJ)
___________________________________________________
Profº Dr. Antonio Carlos de Souza Lima - (PPGAS/MN/UFRJ)
___________________________________________________
Profº Dr. Carlos Fausto - (PPGAS/MN/UFRJ)
___________________________________________________
Profª Drª Dominique Gallois (USP)
____________________________________________________
Profª Drª Maria de Fátima Machado (UFMT)
Rio de Janeiro
2006
iv
Collet, Celia Leticia Gouvêa.
Ritos de Civilização e Cultura: a escola bakairi / Celia Leticia Gouvêa Collet.
Rio de Janeiro: UFRJ – Museu Nacional, 2006.
Tese – Universidade Federal do Rio de Janeiro - Museu
Nacional.
xv, 367
1. Educação escolar indígena. 2. Bakairi. 3. Tese (Mestrado - UFRJ/PPGAS.
I Título.
v
Para Gilvan
vi
AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) do
Museu Nacional pelo suporte intelectual, acadêmico e material, especialmente ao pessoal
da secretaria e da biblioteca, e a CAPES pelo suporte financeiro.
Gostaria de agradecer especialmente a professora Bruna Franchetto pela orientação
atenta e dedicada, pelos muitos ensinamentos, pela compreensão e generosidade.
Gostaria de agradecer ainda aos professores Aparecida Vilaça, Carlos Fausto e
Lygia Sigaud pelas importantes sugestões feitas durante o processo de qualificação, bem
como pelo que aprendi nos cursos por eles ministrados. Agradeço, também, aos professores
Antônio Carlos Souza Lima, João Pacheco de Oliveira, Márcio Goldman e Otávio Velho
que marcaram minha formação e certamente contribuíram para o desenvolvimento deste
trabalho.
Agradeço a Sergio Meira, pelas ‘dicas’ sobre a língua bakairi, pela ajuda na
elaboração do ‘glossário’, além do companheirismo durante a pesquisa de campo.
Aos colegas do curso, em especial a Ana Claudia, Cecília, Elena, Gabriel, Gustavo,
Guilherme, Luis. A Ricardo Cavalcanti pela atenção e ajuda.
Agradeço às sempre amigas e companheiras na vida e na ‘educação escolar
indígena’, Ingrid e Mariana.
Aos amigos que estiveram mais próximos nestes anos. No Rio, Edlaine, Rafael,
Roberta e Ricardo. A Madalena, sempre pronta a colaborar, e particularmente a Ildenir,
cuja ajuda foi essencial para a existência desta tese. Em Cuiabá, a Elzira, Arlindo, Érika e
Roberto. Em Rio Branco, a Rose, pela hospitalidade e amizade.
Quero fazer um agradecimento especialíssimo aos amigos Elder e Neide, pois sem
sua presença a realização desta tese teria sido muito mais difícil.
Em Paranatinga, agradeço a Jussara por sempre nos receber tão bem, e ainda
àquelas pessoas que me socorreram todas as vezes que tive que enviar email para minha
orientadora.
Aos colegas de departamento da UFAC, pelo fato de eu ter conseguido um
afastamento de quase quatro anos para a realização do doutorado, a despeito da opinião
vii
daqueles que pensam que dois anos e meio são suficientes para a produção de uma tese. Na
UFAC, agradeço ainda a Paula pela ajuda na ´reta final´.
Gostaria também de agradecer a hospitalidade de Juvanil e Tomé Maiare, que me
receberam em suas casas durante a pesquisa. E ainda a Seu Paulino, Seu Vicente, Dairce,
Valdo, Márcio, D. Vilinta, Seu Carlos, Dona Queridinha, Magno, Seu Rondon e Gilson
pelas entrevistas e preciosas informações. Pude contar com o apoio e o reconhecimento dos
professores, lideranças e comunidades das aldeias Aturua, Paikun, Kaiahoalo e Alto
Ramalho.
E principalmente aos meus sogros e cunhados que não somente me acolheram como
também me apoiaram nos tempos de conflito e de muito trabalho. A Cássia, Jussara e Juan,
que em meio a tantas adversidades me trouxeram alegria e carinho. Porque não agradecer a
Duduxu, se ele esteve ao meu lado durante todo o período de redação da tese, sempre
carinhoso e fiel.
Agradeço em especial a Gilvan, a quem dedico esta tese, pelo companheirismo,
coragem e paciência. E ainda pelos muitos esclarecimentos sobre fatos, conceitos, palavras,
costumes dos Bakairi que se mostraram fundamentais no desenvolvimento do trabalho.
À minha e, pelo extremo carinho e amor, por conseguir se manter sempre
presente apesar da longa distância e por ter intermediado a solução de vários problemas,
possibilitando que eu cumprisse a difícil tarefa de realizar uma tese sem contar com
telefone ou internet. Ao meu pai, que muito me ajudou durante a vida e também durante o
período do doutorado. A ele, agradeço simplesmente por viver e me amar. A Ângela, pelo
carinho, força e amor incondicionais. Agradeço, ainda, por tudo, a Mará, Carlos Alberto e
minha avó Célia.
viii
RESUMO
COLLET, Celia Letícia G. 2006. Ritos de Civilização e Cultura: a escola bakairi
Orientadora: Profa. Dra. Bruna Franchetto. Rio de Janeiro: PPGAS Museu
Nacional – UFRJ. Tese de Doutorado.
Este trabalho trata da apropriação da escola por parte dos Bakairi, grupo indígena de
língua karib localizado no Estado de Mato Grosso. A partir de considerações sobre sua
organização social e cosmologia, modos e métodos de formação de pessoas e também de
sua história, procuro compreender o lugar destinado e designado à escola na vida social
Bakairi. Neste sentido, proponho que ela veio ocupar um espaço que antes do aparecimento
dos Brancos era ocupado exclusivamente pelas cerimônias coletivas (kado) realizadas com
a finalidade de familiarizar ‘espíritos sub-aquáticos’, ‘donos’ dos recursos dos quais os
Bakairi dependem para a reprodução de suas famílias. Destaco da relação entre kado e
escola três dimensões significativas. A primeira diz respeito à substituição do primeiro pela
segunda como principal espaço de cerimônias coletivas, iniciada durante o tempo em que o
SPI esteve à frente do Posto Indígena Bakairi. Em segundo lugar, identifico as várias
analogias entre kado e escola, sendo ambos ‘espaços’ para performances pan-familiares em
que ‘roupas’, comidas, desenhos (escrita) e práticas ritualizadas são formas de
‘transformar-se’ no ‘outro’ (no caso do kado, em ‘espíritos’, no caso da escola, em
Branco/civilizado). A terceira dimensão, finalmente, é a da imitação, que caracteriza a
assunção da chamada ‘cultura indígena’ pela escola, fazendo com que um kado
simplificado se transforme no rito da ‘apresentação escolar’.
ix
LISTA DE SIGLAS UTILIZADAS
AKURAB - Associação Kurâ-Bakairi de resgate cultural
CPI-SP – Comissão Pró-Indio São Paulo
CPI-Acre - Comissão Pró-Indio Acre
CIMI – Conselho Indigenista Missionário
DINEIB - Direccíon Nacional de Educacion Indigena Intercultural y Bilíngüe (Equador)
FUNDEF – Fundo de manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental e valorização do magistério
FUNAI – Fundação Nacional do Índio
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde
FUNRURAL – Fundo de assistência ao trabalhador rural
MAIC - Ministério da Agricultura, Industria e Comércio
MTIC - Ministério do Trabalho Industria e Comércio
MG - Ministério da Guerra
MEC – Ministério da Educação
NEI-AC Núcleo de Educação Indígena Acre
ONGs – organizações não-governamentais
OPAN – Operação Amazônia Nativa
ONU – Organização das Nações Unidas
P.I. - posto indigena
Projeto Tucum - Projeto de Formação em Magistério dos Professores Indígenas de Mato
Grosso
RCNEIs - Referenciais Curriculares Nacionais para as Escolas Indígenas
SIL – Summer Institute of Linguistics
SPI - Serviço de Proteção aos Índios
SPILTN - Serviço de Proteção aos Índios Localização dos Trabalhadores Nacionais
UNEMAT - Universidade do Estado de Mato Grosso
UNESCO – Organização das Nações Unidas para a educação, ciência e cultura
x
ÍNDICE
INTRODUÇÃO______________________________________________________________1
1.O caminho............................................................................................................................1
2.Objetivos, contextos e limites da pesquisa........................................................................8
Conhecimentos etnográficos e não etnográficos sobre os Bakairi......................10
O campo da educação escolar indígena……………………………….………..14
3.A estrutura da tese.............................................................................................................18
4. História Bakairi: Expedicionários, Capitães, o Marechal (Rondon): ……………….20
Viajantes alemães, capitães bakairi………………………………………….....20
O SPI, o Marechal Rondon e o Posto Indígena Bakairi………………………..31
O “desmame” (do SPI)…………………………………………………………35
PARTE 1 - A sociedade Bakairi: unidades, relações e disputas_______________________38
Capitulo I - Parentesco: construindo as unidades e as relações sociais_________________42
1.Casamento……………………………………………………………………………...…44
2.Algumas outras instituições relativas ao parentesco: nomes, compadrio, ‘tomar a
benção’.............................................................................................................................53
Capitulo II - Unidades sociais: casas, caminhos e aldeias_________________________ __60
1.Casas e caminhos................................................................................................................60
Âtâ – casa.............................................................................................................64
Âwan-caminhos (subfamilias) .............................................................................67
2. Âtâ anary - aldeia ...............................................................................................................82
Idamudo: famílias-aldeias originais…………………………………………….85
A formação das novas aldeias..............................................................................88
A Aldeia Central: um supra-aldeamento..............................................................90
Capítulo III - Âtuagadyly: relações e disputas entre as unidades sociais________________94
1. Ações e instituições domesticas.........................................................................................94
2. Ações e instituições publicas: kywymâry e ‘política’.......................................................99
A trajetória de um pyma e a apropriação da ‘política’.......................................101
3.Ainda sobre a construção de parentesco e as disputas: a aquisição de bens
(âdydâemeonpe). ...................................................................................................................110
3.1. As fontes de recursos .........................................................................................110
3.1.1. Fontes internas.................................................................................110
3.1.2. Recursos e produtos externos: dinheiro e consumo de bens
industrializados............................................................................115
3.2. Produzindo parentesco: famílias e facções.........................................................118
xi
PARTE II: Formando pessoas/kurâ____________________________________________ _122
Capítulo IV - Formando pessoas: aprendizado doméstico, iniciação e wanky (reclusão)____125
1. A informalidade do espaço doméstico.............................................................................125
2. Iniciação e wanky (reclusão)
.............................................................................................135
Gravidez e nascimento..........................................................................................137
Puberdade: feminina……………………………………………………………..139
Puberdade: masculina…………………………………………………………....140
Morte e luto……………………………………………………………………....142
Iniciação/reclusão do futuro pajé………………………………………………...143
Capítulo V - Entre máscaras e santos: as cerimônias coletivas bakairi______________
_ 148
1.As máscaras e os espíritos do rio……………………………………….............…….....148
1.1. Espíritos, doenças e rituais.....................................................................................154
1.2. Kado: cerimônias coletivas bakairi………………………………………………162
Anji itabienly (batizado de milho)..........................................................166
Kapa…………………………………………………………………...168
Iakuigade………………………………………………………………169
Âriko…………………………………………………………………...174
2. Os santos e os espíritos do céu………………………………………………………….175
Capítulo VI - A construção da escola kurâ-bakairi__________________________________183
1. O Regime do SPI: escola, civilização e nacionalismo....................................................184
1.1.O Serviço de Proteção aos Índios...........................................................................184
1.2.Trabalhadores
nacionais..........................................................................................191
1.3.A escola do SPI.......................................................................................................199
2. A escola da Funai..............................................................................................................214
2.1. Continuidades........................................................................................................214
2.2.Novidades da educação escolar indígena da Funai................................................217
2.2.1. Programa de desenvolvimento econômico e convênio com escola
agrícola...............................................................................................217
2.2.2.O SIL e a educação bilíngüe-intercultural.............................................228
3. Da Funai aos Bakairi: apropriando-se da escola e da ‘cultura’...................................233
3.1. A novidade dos ‘professores indígenas’.............................................................234
3.2. Ampliação das séries escolares..........................................................................239
xii
3.3. Escola: espaço da ‘cultura’................................................................................240
O aparecimento da ‘cultura’ entre os Bakairi ………………………...240
A cultura chega a escola bakairi……………………………………....247
Capítulo VII - A escola bakairi: rituais de civilização e cultura________________________259
1. Escola/kado: iamyra, karaiwa e parentesco ...................................................................259
1.1. Apropriação da escola: recursos externos e reprodução
familiar.......................261
1.2. Civilização: sobre como o SPI, a Funai e a escola ‘salvaram’ os Bakairi de
seremxinguanos.................................................................................................268
2. Performance escolar: transformação e captura de recursos.......................................272
2.1. Forma karaiwa, modo bakairi.............................................................................272
2.2. Performances cotidianas: transformando-se em civilizado................................278
2.2.1. Transformar-se.......................................................................................281
2.2.2.Iwenyly:aescrita............................... ........................... .282
2.2.3.Âtâ-Roupa ..................................... ......................... ........290
2.2.4. Âtâ-Casa.................................................................................................295
2.2.5. Organização escolar...............................................................................298
2.3. As festas e ritos escolares ..................................................................................303
2.3.1. A reunião................................................................................................305
2.3.2. Apresentações e festas............................................................................308
3. Alunos e professores.........................................................................................................333
3.1. A classificação dos alunos: a turma ..................................................................334
3.2.Reclusão(wanky) e formação escolar.................................................. .....336
3.3.Professores e professoras bakairi..................................... .........................340
3.4. Mediações ..........................................................................................................344
À guisa de conclusão. Escola-kado: ritos de civilização e cultura____________ _____352
Bibliografia________________________________________________________ _____ __356
Anexos
Apêndice
xiii
ÍNDICE DAS FOTOS
Foto 1: Dança Iakuigady (pág. 169)
Foto 2: Vaqueiros bakairi (pág. 196)
Foto 3: Distribuição de uniforme (pág.207)
Foto 4: Sala de aula (pág. 207)
Foto 5: Sete de Setembro (pág. 315)
Foto 6: Iakuigady: adakobadyly (pág. 320)
Foto 7: Dia do Índio 2004 (pág. 326)
Foto 8: Hasteamento da bandeira (pág. 326)
ÍNDICE DE MAPAS, GRÁFICOS e ILUSTRAÇÕES
Localização Bakairi_(pág. 22)
Área Indígena Bakairi (pág. 84)
Desenho da Aldeia Pakuera (pág.73)
Gráficos de parentesco (Max Schimitd) (pág. 61)
Gráfico de parentesco subfamília 2 (pág. 78)
Pinturas corporais (pág. 164)
“Escrita simbólica no paranatinga” (pág. 279)
xiv
Nota sobre a grafia da língua bakairi
As palavras e frases em língua bakairi, nesta tese, são transcritas usando a ortografia
que estabeleci em campo com base na escrita vigente. Esta ainda apresenta problemas que
estão sendo debatidos pelos Bakairi, como a discussão sobre a marcação da nazalização,
que para alguns deve ser indicada pela letra ´n´, para outros pela letra ´m´ e ainda em
certas palavras pode nem mesmo aparecer, como no caso do nome de uma das aldeias:
Painkun, Painkum ou Paikun (neste caso, privilegio a última grafia, que verifiquei ser
mais usada pelos Bakairi de modo geral).
No glossário em anexo (Apêndice), que reúne todos os termos e expressões
presentes na tese, o leitor encontrará, também, a transcrição revista por Sérgio Meira,
lingüista que, atualmente, está realizando pesquisa nas áreas bakairi. No mesmo
glossário, a tradução para o português não é, obviamente, em vários casos, precisa, mas
apenas aproximativa.
No corpo da tese as palavras em língua bakairi estarão em itálico. Muitos dos
grafemas da escrita alfabética do Bakairi representam sons vocálicos e consonantais
muito próximos aos correspondentes em português. o exceção as vogais ´â´ e ´y´ que
correspondem a uma vogal central média e a uma vogal entre central e posterior alta,
respectivamente. O grafema ‘k’ representa uma consoante oclusiva velar desvozeada,
lembrando que em português este mesmo som pode ser grafado de modos diferentes:
como ‘c’ diante de ‘a, o, u’ e como ‘qu’ diante de ‘e, i’. O som [w], aproximante labial,
semelhante ao w inglês, é grafado em Bakairi com a própria letra ‘w’.
1
Introdução
1. O caminho
Durante três anos (1995-1998) trabalhei como (aprendiz de) assessora da escola
indígena localizada na aldeia Camicuã, da etnia Apurinã, no Rio Purus, Município de Boca
do Acre (AM), em um projeto desenvolvido junto à Universidade Federal do Acre, da qual
sou docente. Foi então que conheci a proposta de ‘educação escolar indígena diferenciada,
bilíngüe, especifica e intercultural’, primeiro através do trabalho desenvolvido por agências
como a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), o Conselho Indigenista Missionário
(CIMI) e o Núcleo de Educação Indígena do Acre (NEI-AC), e, mais tarde, através da
leitura de trabalhos publicados e inéditos.
No início do meu percurso, eu atribuía as dificuldades encontradas durante o
trabalho de assessoria à minha inexperiência. Entretanto, com o passar do tempo, comecei a
perceber que, a despeito da segurança e certeza manifestadas por assessores ‘mais
experientes’, de fato, a questão da escola ainda era pouco explorada ao nível do
entendimento das suas formas locais de apropriação. Assim, muitas das soluções
consensuais no campo da ‘educação escolar indígena’ eram insatisfatórias e, às vezes,
contraditórias no contexto com o qual me defrontava. Não entendia, por exemplo, como
trabalhar com a noção de ‘comunidade’ quando o que presenciava era um cenário de
disputas e conflitos entre famílias. Ficava paralisada diante de situações em que a
interculturalidade, ao invés de interrelacionar, não era senão uma espécie de inadequação
entre os objetivos de ‘aprender habilidades dos ‘brancos’’ e ‘respeito e valorização da
cultura indígena’. Ainda, como fazer quando alunos e professores se ‘contentam’ com a
memorização de um texto oral enquanto atestado de que estariam lendo? Neste caso
específico, deveria ‘respeitar a cultura’ e aceitar o método autóctone, ou interferir
privilegiando a aquisição de métodos nos moldes ‘ocidentais’?
Essas e outras questões, surgidas dessa minha experiência, fizeram-me ver que
apenas a introjeção da retórica sobre a educação escolar indígena não era suficiente para
2
balizar um trabalho junto a uma escola indígena. Resolvi, então, partir para um estudo mais
aprofundado, buscando compreender a razão de ser daquilo que parecia ser, ao mesmo
tempo, um conjunto de princípios fundamentados e positivos, durante pelo menos duas
décadas de desenvolvimento de projetos educacionais escolares indígenas, mas, por outro
lado, tão cheio de lacunas quando se queria confrontá-lo com práticas localizadas.
Quando ingressei, em 1999, no curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional, entrei em contato com boa parte da
bibliografia existente sobre o tema e áreas afins, em cursos sobre política indigenista e de
etnologia. Ainda no mestrado, pretendia voltar aos Apurinã para desenvolver uma pesquisa
a partir das inquietações que haviam me incentivado a aprofundar o assunto. Entretanto,
devido a dificuldades práticas, como o pouco tempo disponível para a pesquisa no mestrado
e o alto custo de um trabalho de campo na Amazônia, resolvi me restringir, em minha
dissertação, a uma análise de documentos e experiências no âmbito do discurso e da ação
governamentais, vinculados à ‘nova proposta’ de educação escolar indígena.
Assim, na dissertação intitulada Quero Progresso Sendo Índio: o princípio da
interculturalidade na educação escolar indígena, abordei a noção de interculturalidade, tão
propagada e propagandada, a partir de três enfoques distintos: (a) a origem e trajetória
históricas do termo ‘interculturalidade’ aplicado à educação em geral e mais
especificamente à educação indígena; (b) o uso dessa noção nos Referenciais Curriculares
Nacionais para as Escolas Indígenas (RCNEIs), documento elaborado para e pelo
Ministério da Educação (MEC) em 1998 e contendo princípios e diretrizes nacionais para
as escolas indígenas; (c) as práticas e discursos presentes na implementação do Projeto
Tucum (Projeto de Formação em Magistério dos Professores Indígenas de Mato Grosso),
que, confrontados com o discurso dos RCNEIs, permitiram medir a distância e desvendar o
processo de tradução entre a retórica oficial e certas realidades locais. Foi neste contexto
que travei o primeiro contato com os Bakairi.
1
o
encontro com os Bakairi - Aldeia Pakuera, dezembro 2000, Projeto Tucum
3
O primeiro encontro com os Bakairi
1
aconteceu em 2000, quando, em pesquisa de
mestrado, entrei em contato com a equipe da Secretaria de Educação do Estado de Mato
Grosso que coordenava o Projeto Tucum. Recebi a informação de que estava para
acontecer, na aldeia bakairi de Pakuera, em novembro e dezembro daquele ano, a última
etapa do projeto no Pólo IV, incluindo professores Xavante e Bakairi do município de
Paranatinga. Foi, então, no fim de 2000, que me desloquei para a Área Indígena Bakairi, o
que permitiu meu primeiro contato com a aldeia, seus habitantes e professores.
Naquela ocasião, escrevi em meu caderno de campo:
A aldeia é formada de casas de diversos estilos, sendo estes a marca mais explícita do processo
histórico pelo qual têm passado os Bakairi, principalmente no decorrer do século XX. Existem
ainda de quatro construções erguidas pelo SPI no início deste século: a escola, o posto de saúde,
a casa do chefe de posto e um galpão onde é guardado o trator e que está em ssimo estado. Estas
edificações são caracterizadas por terem o piso bonito e feito de um material excelente (dizem ter
vindo da Alemanha), todas rebocadas. As demais casas da aldeia vão desde a mais simples de pau-
a-pique e cobertura de palha às de tijolo cobertas de eternit.
Ao chegar à aldeia, em um domingo ao cair da tarde, encontramos homens jogando futebol em um
campo, maior, e moças jogando em um outro, menor. Mais adiante, em frente à ‘casa dos homens’,
no pátio central, um grupo de mulheres pintadas, de todas as idades, estava reunido. Uma delas
pegava um bastão e ia até a casa do ‘dono’ do bastão entoando uma canção, e de voltava com
alguma comida ou bebida, um suco, feijão e arroz, chicha, biscoito. Após a chegada da última,
bebiam e comiam. Depois faziam uma fila e iam cantando de casa em casa e voltavam com mais
comidas e bebidas. Repartiam o que haviam conseguido e acabava.
Enquanto observava a dança, fui apresentada ao chefe de posto, o qual disse que eles estão
revitalizando a cultura, que voltaram a ter a ‘festa do milho’, a cerimônia da ‘furação de orelha’ e
esta dança das mulheres que presenciávamos. Neste ano, 60 pessoas haviam participado da
cerimônia de furação de orelha, pois há muito ela não se realizava.
Alguns rapazes passaram comentando sobre o campeonato de arco e flecha que haviam promovido
naquele final de semana. Durante a semana homens de todas as idades, desde crianças até os mais
velhos, se reúnem também em frente à ‘casa dos homens’ para treinarem atirando flechas contra o
alvo.
Estas simples anotações, feitas a partir da primeira impressão da Aldeia Pakuera,
mesmo sem eu estar ciente na época, apontavam para as questões que se revelariam
cruciais no entendimento da vida dos Bakairi, hoje, bem como da sua escola. A menção
aos prédios edificados pelo Serviço de Proteção aos Índios, onde funcionaram as principais
engrenagens de sua máquina de ‘civilização’ - educação escolar, saúde, burocracia e
1
O uso da expressão ‘os Bakairi’ se justifica a despeito da consciência de ser ela uma forma generalizadora
de tratamento (Carrier, 1992; Bowman, 1997; Clifford e Marcus, 1986). Ela é usada como um recurso
metodológico necessário, que, no caso desta pesquisa, não influi fundamentalmente nos seus resultados.
4
trabalho rural – indica a influência deixada sobre os Bakairi pelas décadas vividas no ‘posto
de atração’. As marcas deixadas pelo ‘modelo’ do ‘posto indigena’ passaram a constituir
também o modo de vida dos Bakairi, não apenas no que se refere à herança visível das
referidas habitações, mas em vários outros aspectos. Destacaria, entre eles, a incorporação
do Estado Brasileiro à sociedade bakairi, sendo seu mais importante corolário a assimilação
(e dependência) dos modos vivendi que sempre estiveram mais próximos dos Bakairi: o
funcionalismo e a burocracia. Outra marca deixada pelo regime de ‘posto indígena’ foi o
aprendizado de novas atividades produtivas, como criação de animais e a introdução de
novos produtos agrícolas (modificando ao mesmo tempo os padrões de produção e de
consumo). Além disso, os valores pregados pelos ideais positivistas do Serviço de Proteção
aos Índios (SPI) – progresso, civilização, patriotismo, etc –, conforme veremos, se tornaram
centrais à concepção de mundo e à atuação sobre o mundo dos Bakairi.
A organização sócio-espacial também não ficou incólume à herança do ‘posto’.
Hoje percebemos que, apesar dos Bakairi terem voltado, a partir da década de 80, ao padrão
de divisão em pequenos aldeamentos, a Aldeia Central (ou poto, ‘posto’, como eles
costumam chamá-la) continua a ser o ‘centro’ da relação com o Estado brasileiro, ao redor
do qual orbitam as demais unidades locais. Estas, mesmo se politicamente autônomas,
muitas vezes dependem da intermediação do posto indígena ou da Associação Kurâ-
Bakairi, ambos sediados na Aldeia Central. De fato, a aldeia-posto não corresponde ao
padrão das âtâ anary (aldeias) existente até a ‘atração’ e é caracterizada por um grande
número de habitantes e pela separação (imposta pelo SPI) entre uma área ‘do Estado’ (onde
se localizam os citados prédios do SPI, bem como a escola recém construída) e a área ‘dos
índios’, composta das casas dispostas em ruas e do pátio central, onde são realizadas as
cerimônias e as reuniões políticas.
O relato de minha primeira impressão da aldeia Pakuera, além de captar a dimensão
fundamental que ocupa o ‘posto’ na sua organização sócio-espacial e nos valores
introduzidos pelo órgão indigenista, identificava outra característica importante da vida
contemporânea bakairi: a chamada ‘cultura’. Sobre este ponto falarei mais detidamente no
capitulo VI. Quero aqui ressaltar apenas, a partir do quadro da minha primeira chegada à
Aldeia Central bakairi, o fato de que minha introdução no campo aconteceu durante as
atividades do Projeto Tucum, curso, como veremos, extremamente permeado pela idéia da
5
‘valorização cultural’. De fato, as atividades ‘culturais’ por mim observadas, como a citada
dança das mulheres, estavam ligadas ao contexto do Projeto Tucum. Nos anos seguintes,
nunca mais presenciei aquele tipo de ritual. Os discursos das lideranças e dos professores
indígenas também eram voltados para a afirmação de sua ‘indianidade’, pela presença do
Projeto Tucum, como também por ser a ‘cultura’ um dos principais ganchos da interlocução
dos Bakairi com os karaiwa
2
.
Ao lado das ruas, das casas de modelo regional com banheiro e cercas de arame
farpado, além de prédios construídos pelo SPI, vemos danças, a vitalidade da língua
materna no cotidiano, referências a atividades e rituais ‘tradicionais’, a escola de palha e
madeira (construída para a realização do Projeto Tucum). Eram estes aspectos, a princípio
ambíguos, mas fascinantes pela sua convivência, o prenúncio da pesquisa que viria a
realizar, que teria como foco a escola, local logo eu aprenderia onde civilização e
cultura têm a sua máxima expressão.
2
o
encontro – Aldeia Pakuera, setembro 2001
Em setembro de 2001, depois de ter defendido a dissertação, voltei a Pakuera para
entregar uma cópia do trabalho aos professores. Foi nessa ocasião que o coordenador da
escola local me fez o convite para continuar minha pesquisa em sua aldeia.
Lembro, dessa visita, a grande revolução desencadeada pela chegada da energia
elétrica na Aldeia Pakuera, no inicio daquele ano. Vários aparelhos de televisão e antenas
parabólicas tinham sido adquiridos; até então havia uma só televisão que funcionava graças
a um gerador apenas para ver ‘novela’, ‘jornal’ ou ‘jogo de futebol’, dependendo da
quantidade de combustível disponível. Havia freezer, ferro de passar roupa e outros
utensílios domésticos, tendo como conseqüências a possibilidade de armazenar alimentos
2
Karaiwa é a palavra bakairi para não-indígenas. ainda uma especificação que diz respeito à cor da pele,
havendo karaiwa tapekein, literalmente “não-indígena branco”, e karaiwa tamanganein, “não-indígena
preto”. Em seus discursos em português, os Bakairi também usam a palavra “branco” para englobar todos os
não-indígenas. Karaiwa seria um cognato de ‘Caraíba’, modo como eram designados os “grandes xamãs tupi,
que andavam pela terra, de aldeia em aldeia, curando, profetizando e falando de uma vida edênica”
(Fausto,1997:429), que teria se disseminado por muitos grupos indígenas como forma de tratamento do
Branco.
6
perecíveis, a chegada do hábito de beber água gelada, o início do comércio de sorvetes,
frangos, refrigerantes. Os padrões de consumo e de gastos (compras e ‘contas de luz’)
tinham mudado. Testemunhei mudanças em relação a valores, desejos, hábitos de consumo,
horários, interação entre pessoas.
Outros encontros – Bertioga, 2002; Pakuera, 2002, 2003
Em abril de 2002, um grupo bakairi se deslocou até a cidade de Bertioga em o
Paulo para se apresentar em um Festival Indígena comemorativo do Dia do Índio. Fui ao
seu encontro e passei com eles alguns dias. Em setembro deste mesmo ano retornei à aldeia
Pakuera para conversar com os professores e lideranças sobre a possibilidade da realização
do meu projeto de pesquisa. Houve uma reunião com a ‘comunidade’, na qual expliquei o
propósito da minha pesquisa. Em 2003, estive entre os meses de março e julho, e depois
voltei por mais duas semanas em setembro, com o objetivo de resolver problemas
burocráticos relativos à autorização de pesquisa pela FUNAI e para começar a cumprir
parte do acordo feito com a comunidade, que incluía ‘assessoria’ aos professores,
principalmente na área de ‘língua portuguesa’.
Último encontro – Área Indígena Bakairi, 2004
Finalmente, em 2004 pude passar um período prolongado na área. Durante o
primeiro semestre, pude realizar uma pesquisa de campo mais sistemática, freqüentando
diariamente a escola, em conversas direcionadas, entrevistas e mapeando as relações de
parentesco. Neste período, procurei aprender a língua bakairi; devo admitir que cheguei a
dominar um considerável vocabulário, sem, contudo, me familiarizar, como deveria, com a
estrutura gramatical. Sendo assim, a pesquisa foi realizada através de conversas em
português (língua falada pela grande maioria dos Bakairi) e também a partir de algumas
conversas em língua bakairi, que, dependendo do contexto e do assunto, eram para mim
intelegíveis. No processo de aprendizado da língua bakairi a interação com Sergio Meira
lingüista que atualmente desenvolve pesquisa entre os Bakairi foi imprescindível, pois
7
somente através de suas ‘dicas’ pude compreender um pouco daquele universo de falas que
a princípio se mostravam impenetráveis.
Em relação aos anos anteriores, as principais mudanças tinham sido: (i) a
inauguração do novo prédio escolar e a abertura de novas turmas (ensino médio e educação
de jovens e adultos) no horário noturno; (ii) o progressivo aumento de bens
industrializados, com destaque para os veículos. Se em setembro de 2003 eu tinha tido
dificuldade para chegar à aldeia devido à indisponibilidade do único carro que fazia o
percurso Paranatinga-Pakuera, em 2004 as caminhonetes na Área Indígena chegavam a
mais de quinze.
O segundo semestre de 2004 foi tumultuado por eventos que me envolveram
diretamente e que causaram transtornos cuja lembrança ainda, em parte, me entristece. Em
poucas palavras, casei-me com um Bakairi de Pakuera, desfecho de uma relação séria e
intensa, e minha autorização de pesquisa foi cancelada pela FUNAI em decorrência da
solicitação do coordenador da escola da aldeia, descontente com o acontecimento que
meu esposo pertencia a um grupo familiar oposto ao seu
3
.
De toda forma, esses acontecimentos deram origem a um novo período da minha
convivência com os Bakairi, marcado pela proibição de ‘fazer pesquisa’ oficialmente, mas
também por um mergulho muito mais intenso tanto no universo das relações familiares
quanto nos conflitos, domínios fundamentais para a compreensão dos valores e do modo de
vida bakairi. O trabalho que ora apresento resultou desse percurso permeado pela percepção
e vivência da ‘vida bakairi’, primeiro a partir de uma relação ‘distanciada’ e generalizada e,
depois, a partir da experiência ‘na pele’ de relações que, até então, eram conhecidas apenas
pela observação ou, se assim podemos dizer, ‘teoricamente’. Avalio que este caminho,
apesar de difícil e por vezes doloroso, resultou em um trabalho mais cuidadoso e fidedigno,
pelo contato direto com dimensões e domínios, que, de outro modo, não teriam se revelado
tão claramente.
Entretanto, apesar da consciência da importância dessa experiência pessoal, optei
por não explorá-la como fonte de dados de pesquisa, por razões bastante óbvias. Não
acredito que isto represente um limite grave, dada a quantidade e qualidade dos dados
3
Sobre as disputas entre as ‘facções’/famílias’ ver capitulo III deste trabalho.
8
recolhidos independentemente dos percalços de minha vida afetiva na última fase de minha
permanência entre os Bakairi de Pakuera.
2. Objetivos, contextos e limites da pesquisa
Esta tese tem como objetivo abordar a apropriação da escola por parte dos Bakairi,
povo indígena que fala uma língua pertencente a um dos ramos meridionais da família
Karib (Meira & Franchetto, 2005). Pretendo entender a partir de que realidade histórica e
também de quais características da vida social e da cosmologia bakairi foi concebida a
escola conforme ela funciona hoje em dia.
Os Bakairi habitam a Área Indígena Bakairi, localizada no Estado de Mato Grosso,
mais precisamente no município de Paranatinga (uma pequena parte pertence ao município
de Planalto da Serrra), às margens do Rio Pakuera (Paranatinga). Atualmente, vivem nesta
área de 61.405 hectares por volta de 700 pessoas, distribuídas em 7 aldeias, sendo quase
300 na aldeia central, denominada Pakuera. As demais aldeias o: Aturua, Paikun,
Kaiahoalo, Paikun Âtuby, Alto Ramalho e Sawâpa. Há ainda outras aldeias bakairi situadas
na Área Indígena Santana, Município de Nobres (MT); a distância entre as duas áreas é de
cerca 116 quilômetros. Os ‘Santaneiros’, como são chamados seus habitantes, têm pouco
contato com os demais, o que pode ser verificado por diferenças lingüísticas significativas,
bem como pelo pequeno número de casamentos entre pessoas dessas duas áreas. Devido às
muitas particularidades dos Bakairi da Área Indígena Santana, impossíveis de serem
capturadas no pouco contato travado por mim com eles, este grupo não foi incluído nos
limites desta pesquisa, que, portanto, aborda, principalmente, os habitantes da região do Rio
Pakuera.
Pretendo, através deste trabalho, contribuir, em um primeiro nível, para o
conhecimento etnográfico dos Bakairi - sobre os quais dois trabalhos de cunho
antropológico feitos durante a década de 80 (Barros, 2003; Picchi, 2000), que, entretanto,
não contemplam as muitas mudanças que têm ocorrido nos últimos tempos. Pretendo
abordar e analisar, em um segundo nível, o mais específico e original de minha
9
investigação, o sentido da escola entre os Bakairi de Pakuera e questões relativas ao campo
da chamada ‘educação escolar indígena’.
A motivação principal que me levou a eleger este tema foi a de superar o
distanciamento entre etnografia e ‘educação escolar indígena’. Constata-se um fato: por um
lado, as etnografias m dado pouca atenção à importância crescente das escolas entre as
populações indígenas, por outro, os pesquisadores da educação escolar indígena, em sua
maioria, têm se preocupado pouco com os contextos e condições culturais e sociais
específicos e concretos nas quais as escolas indígenas estão se desenvolvendo - apesar de
seus discursos serem sempre pautados na evocação do princípio da ‘especificidade’.
Muito se tem produzido nas ultimas duas décadas sobre o tema da educação escolar
indígena. Entretanto, essa produção geralmente é centrada em discussões estritamente
pedagógicas ou políticas (Meliá, 1979, 1995; Monte, 1994, 1996; Paula 1997, 2000;
Ferreira, 1992; Barros, 1993). Encontramos em boa parte dos trabalhos acadêmicos sobre o
tema uma espécie de subordinação aos projetos de assessoria nessa área, sejam eles ligados
às organizações não-governamentais (ONGs) ou a instituições governamentais. A academia
tem penetrado nesse âmbito, geralmente, como um instrumento de legitimação de
competências ‘práticas’ ou ‘aplicadas’, pretendendo influenciar processos políticos do
indigenismo atual e dos povos indígenas de hoje. Entretanto, considero que se projetos
políticos desse gênero pretendem ter um caráter realmente afirmativo, precisam, sobretudo,
de pesquisas de natureza crítica e reflexiva, que somente a etnografia e a antropologia
podem oferecer.
Baseados na ‘boa vontade’ e na identificação com a ‘causa indígena’, esses projetos,
em sua maioria, m dado uma considerável contribuição no sentido de subsidiar as
lideranças indígenas com elementos imprescindíveis para a sua luta política. Hoje, contudo,
depois de mais de duas décadas de amadurecimento, observa-se a premência e a
necessidade de discutir o chamado ‘princípio da interculturalidade’ e tentar perceber como
esse processo vem sendo vivido pelas populações ‘alvo’, ou seja como as escolas vêm
sendo incorporadas no cotidiano e nas representações de cada povo, a partir de suas
especificidades lingüisticas, culturais, políticas e históricas.
A seguir, apresento um breve um panorama da produção etnográfica sobre os
Bakairi e dos trabalhos no campo da educação escolar indígena no Brasil.
10
Conhecimentos etnográficos e não-etnográficos sobre os Bakairi
Esta tese se acrescenta a um conjunto de etnografias dedicadas aos Bakairi. Tudo
começou com o etnógrafo alemão Karl Von den Steinen, que chefiou duas expedições que
atravessaram as regiões habitadas por estes índios, a primeira em 1884 e a segunda em
1887. Destas viagens resultaram dois livros – “O Brasil Central: expedição em 1884 para a
exploração do Rio Xingu” (Steinen, 1942) e “Entre os Aborígenes do Brasil Central”
(Steinen, 1940)–, além de um rico acervo de peças de cultura material, fotos e material de
campo, depositados, principalmente, no Museu de Etnografia de Berlim (Alemanha).
4
Steinen, formado em psiquiatria, passou a se interessar pelo campo da antropologia,
que, na Alemanha do século XIX, abarcava, além do registro e análise de fenômenos sócio-
culturais, conhecimentos de natureza língüística e geográfica, como fatores fundamentais
para o estabelecimento da historia dos diversos povos, ao longo da historia da humanidade.
Steinen era, fundamentalmente, um evolucionista. Ao deparar-se com os Bakairi e demais
`xinguanos`, dizia sentir-se frente a legítimos exemplares da idade da pedra. Entretanto, sua
visão evolucionista era, digamos, corrigida por um cuidado etnográfico excepcional e
pontuada, muitas vezes, por digressões relativistas e até mesmo positivamente idealizadoras
dos índios.
Em seus livros, vemos refletida a ambição de abarcar os ‘aborígenes’ em suas mais
variadas facetas: cultura material, língua, relação com seu ambiente geográfico, além dos
aspectos físicos captados por fotos, desenhos e pela antropometria. Além de importantes
para a documentação da cultura Bakairi, no tempo das suas expedições, e, hoje,
imprescindíveis para o resgate da história deste povo, as viagens de Steinen foram
importantes marcos na história dos Bakairi, principalmente sob dois aspectos. Foi graças a
4
Além do Museu Etnográfico de Berlim, existem hoje artefatos bakairi dessa época no Museu Nacional da
UFRJ no Rio de Janeiro. Tive a oportunidade de acompanhar um grupo de Bakairi em visita a este museu.
Eles ficaram bastante emocionados ao virem os objetos, principalmente porque alguns deles são
desconhecidos pelos atuais bakairi, como um ‘chapéu’ sobre o qual havia um peixe de madeira, que fazia
parte de um ritual não mais realizado (segundo me informou o mais velho do grupo).
11
elas que se estabeleceu o primeiro contato, que se tornaria definitivo e contínuo, entre os
Bakairi xinguanos e os chamados Brancos. Foi, também, naqueles momentos que foi
reatado o contato entre os Bakairi ocidentais do Rio Arinos e do Rio Pakuera e os Bakairi
orientais dos rios Tamidadoala (Batovi) e Kulisevo, chamados de ‘Bakairi xinguanos’.
Após Karl Von den Steinen, outro etnógrafo digno de destaque pelos registros que
deixou foi o também alemão Max Schmidt. Profundo conhecedor da obra de Steinen,
Schmidt planejou sua expedição de 1900 baseado nos dados geográficos deixados por
aquele, bem como partiu de suas notas sobre culturas e línguas dos índios da região para
realizar suas próprias observações. Sua perspectiva se assemelhava a de Steinen, tanto pelo
caráter evolucionista, como pela abrangência de seus interesses, que incluíam a ampliação
do acervo de artefatos indígenas, a ngua, rituais, aspectos sócio-culturais, politicos e
econômicos. Apesar de o apresentar a mesma ‘afinidade’ com os índios que seu
antecessor
5
, Schmidt, em seu livro “Peripécias de uma viagem entre 1900 e 1901: seus
resultados etnológicos” (1942), apresenta dados inéditos, como a descrição do ritual bakairi
ligado ao plantio da roça, chamado por ele de Hunganotile - inexistente nos tempos atuais -,
a descrição pormenorizada da confecção da cestaria e também um levantamento das
relações de parentesco entre os habitantes das casas e das aldeias. Além disso, a
importância do trabalho de Schmidt está no fato de que, tendo transcorridos treze anos entre
sua expedição e a de Steinen, ele pôde, portanto, captar transformações ocorridas após
reatado o contato entre os Bakairi ocidentais e orientais. Ele realizou ainda outra viagem
aos Bakairi em 1927, quando já havia sido implantado o Posto Simões Lopes e pôde
registrar no artigo “Los Bacaeris” (1947) as muitas mudanças ocorridas a partir da ‘atração’
pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Os textos de Schmidt são, portanto, de suma
importância histórica, principalmente no que diz respeito ao intervalo verificado entre o
contato estabelecido por Steinen com os ‘xinguanos’ em 1884 e a unificação dos Bakairi
em torno do posto indígena na década de 20 do século seguinte.
O trabalho de Karl Von den Steinen inspirou também o de Capistrano de Abreu, que
teve a oportunidade de conhecer um Bakairi, de nome Irineu, trazido ao seu convívio pelo
viajante Oscar de Miranda. No ano deste encontro, 1892, estava sendo publicado o livro de
Steinen sobre a língua bakairi Die Bakaïrí-Sprache” (Abreu, 1976: 139; Steinen, 1892) e
5
A se notar pelo relato repleto de queixas sobre as condições da viagem.
12
Abreu aproveitou para conferir com seu informante as observações sobre vocabulário e
gramática feitas por Steinen. Em artigo intitulado “Os Bakaeris”, além do destaque dado às
considerações lingüísticas, Capistrano oferece informações sobre aspectos da cosmologia
bakairi. Destaca-se a detalhada análise do conceito de ‘dono’, o que me permitiu enriquecer
os dados por mim recolhidos sobre o tema.
Durante o período sob o SPI não foi realizada nenhuma pesquisa sobre os Bakairi,
restando-nos como registro deste tempo apenas os documentos oficiais do órgão
governamental, dos quais reproduzo uma pequena amostra neste trabalho. Há, entretanto,
os textos do missionário do Summer Institute of Linguistics (SIL), James Wheatley, que
conviveu com este povo durante a década de 60 do século passado e deixou alguns artigos
sobre sua vida social, além de trabalhos lingüísticos (Wheatley, 1964a, 1964b, 1964c,
1969). De sua produção, podemos destacar o artigo publicado em 1966 com uma descrição
do ritual Iakuigady intitulado “Reviviscência de uma dança bakairi” (Wheatley, 1966), e
“Knowledge, authority and individualism among the cura (bakairi)” (Wheatley, mimeo),
que versa sobre aspectos gerais da organização social e política bakairi.
Sobre a língua bakairi, além do citado Die Bakaïrí-Sprache” de Steinen, uma
considerável quantidade de trabalhos. Na década de 90, foi defendida uma tese de
doutorado intitulada “Discurso e oralidade: um estudo em língua indígena” (Clemente de
Souza, 1994a), transformada em livro com o mesmo título (Clemente de Souza, 1999). A
lingüista autora da tese publicou ainda vários artigos (Clemente de Souza, 1991a; 1991b;
1994b; 1995, retomado em Wetzels, 1997). Mais recentemente, outro lingüista iniciou
pesquisa sobre o Bakairi (Meira, 2003; 2004; 2005; Meira e Franchetto, 2005).
duas etnografias sobre os Bakairi. A norte-americana Debra Picchi escreveu sua
tese de doutorado “Energetics modeling in development evaluation: the case of the Bakairi
indian of central Brazil”, posteriormente publicada com o título “Bakairi Indians of Brazil”
(Picchi, 2000). Edir Pina de Barros é autora da dissertação de mestrado “Kurâ Bakairi /
Kurâ Karaiwa: dois mundos em confronto” (Barros, 1977) e da tese de doutorado “História
e cosmologia na organização social de um povo karib: os Bakairi” (Barros, 1992)
6
.
6
Há uma versão da tese, mais recente, no livro “Filhos do Sol” (Barros, 2003). Edir Pina de Barros é também
autora de alguns artigos (Barros, 1987; 1997; 2000).
13
O trabalho de Picchi é fruto de pesquisa desenvolvida entre 1979 e 1981, tendo
como foco a questão econômica. Ela privilegia aspectos das estratégias de sobrevivência,
da produção agrícola, do meio ambiente e das características demográficas (taxas de
fertilidade, mortalidade e crescimento populacional). Ela recorre a dados qualitativos, mas,
principalmente, a dados quantitativos que medem, por exemplo, numero de gravidezes e
infanticídios, idade de casamento, média de pessoas habitando uma mesma casa, tempo
trabalhado diariamente e porcentagem de ingestão de proteínas, carboidratos e gorduras. A
partir da realidade constatada em sua pesquisa, ela conclui pela inviabilidade produtiva dos
Bakairi, se continuarem inalteradas as taxas de crescimento demográfico e as formas de
produção. Organização social, parentesco, política e ritual são tratados apenas
subsidiariamente ao tópico central.
Edir Pina de Barros enfoca em sua dissertação as relações interétnicas envolvendo
Bakairi e ‘brancos’. Na tese de doutorado, reúne uma grande quantidade de dados e aborda,
de modo sistemático, os aspectos centrais da sociedade bakairi, como organização social,
parentesco, política, economia, rituais e cosmologia, tendo sempre em vista uma
perspectiva integrada. Este trabalho constituiu uma importante fonte de informações,
muitas vezes confirmadas por minha própria observação, e de pistas a serem percorridas.
Devido ao momento político vivido pelos Bakairi durante a sua pesquisa e a preparação da
sua tese, Barros coloca uma ênfase especial nos aspectos ‘tradicionais’ da sociedade
bakairi, como base de afirmação étnica, e não aprofunda o exame de instituições e
elementos culturais e comportamentais recém adquiridos dos karaiwa. O presente trabalho
complementa a etnografia de Barros e desloca o foco para uma instituição exógena, a
escola, além de apresentar os Bakairi de hoje sem privilegiar seus aspectos supostamente
‘originais’.
A escola e o que nela e em torno dela se desenrola estão fora de cena em todos os
trabalhos etnográficos anteriores. Na área da pedagogia, fora, então, da área antropológica,
foi defendida uma dissertação de mestrado intitulada A educação escolar entre os Kurâ-
Bakairi” (Taukane, 1996), posteriormente tornada livro (“A História da Educação escolar
entre os kurâ-Bakairi(Taukane, 1999), pioneira pelo menos por dois motivos. O primeiro
diz respeito ao tema, escola, e, em particular, a escola bakairi, inexplorado até então. O
segundo motivo se deve ao fato inédito do trabalho ter sido escrito por um membro do
14
grupo Darlene Taukane - conferindo um dos primeiros títulos de pós-graduação a um
índio e, especialmente, o primeiro entre os Bakairi. Quanto ao seu conteúdo, o trabalho de
Taukane é uma boa fonte de dados históricos acerca da educação escolar bakairi, bem como
constitui um documento em defesa da autonomia política e da valorização da chamada
‘cultura’ bakairi.
7
ainda a dissertação de mestrado de Ricardo Cavalcanti –“Presente de branco,
presente de grego? Escola e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central” - de 1999
que contém algumas observações sobre os Bakairi no contexto de uma análise crítica da
escolarização e do impacto da escrita em sociedades indígenas, especificamente alto-
xinguanas. Algumas das questões por ele apontadas serão desenvolvidas nesta tese, que, ao
contrário de sua dissertação, pretende ser uma análise exclusiva da escola bakairi, incluindo
o papel mediador dos professores, a opção dos Bakairi pelo padrão oficial de escola, o
contexto histórico do aparecimento da ‘cultura’, as concepções da escrita.
O campo da educação escolar indígena
Além de uma contribuição para o conhecimento etnográfico dos Bakairi, esta tese
pretende enriquecer as discussões travadas em torno da ‘educação escolar indígena’. Farei a
seguir uma breve exposição deste campo de modo a entender melhor o contexto maior no
qual se insere minha pesquisa.
A conjuntura dos anos 70, marcada pelo surgimento de políticas voltadas para o
direito à diversidade, repercutiu no cenário indigenista brasileiro de forma a incentivar
ações de cunho pró-indio, em contraposição àquelas tidas como assimilacionistas e levadas
adiante pelo Estado e por missões religiosas. A educação escolar se tornou um dos pilares
dessas novas políticas, sobretudo pela afirmação da necessidade de transmissão de
conhecimentos que possibilitassem aos índios atuarem afirmativamente junto a setores da
sociedade nacional (como no domínio da leitura, da escrita e da matemática), bem como de
7
O trabalho de Darlene Taukane será uma importante fonte para esta tese. Do livro extraí informações sobre a
história da escola bakairi, e sobre o seu empenho, como Bakairi e funcionária da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), na revitalização da ‘cultura bakairi’. Sobre este último aspecto, quando abordar a ‘cultura bakairi’
no capitulo VI, tratarei de alguns ‘eventos’ dos quais ela esteve à frente, como o ‘Museu Oficina Kuikare’ e
os ‘intercâmbios culturais’.
15
um espaço a ser utilizado no sentido da 'valorizar e resgatar' culturas e identidades
indígenas.
Várias propostas e programas foram levados adiante por educadores, antropólogos,
lingüistas e também missionários 'progressistas', seja através de ONGs (CPI-SP [Comissão
Pró-Índio de São Paulo], CPI-Acre [Comissão Pró-Índio-Acre], CIMI [Conselho
Indigenista Missionário], OPAN [Operação Amazônia Nativa]), seja a partir de iniciativas
em âmbito universitário (assessorias, consultorias aos diversos projetos). Os diversos
programas, a despeito das diferenças entre as agências umas mais voltadas para o suporte
pedagógico, outras preocupadas com a ‘conscientização política’ – tinham como base
alguns princípios consensuais cujo pressuposto (e corolário) seria o rompimento com a
política anterior caracterizada como integracionista e autoritária. Assim, foram enfatizados
a especificidade dos currícula, dos conteúdos e dos materiais didáticos e o incentivo à
função do professor indígena. Foram cristalizados como fundamentos dessa educação
escolar indígena ‘alternativa’, a interculturalidade, o bilingüismo, a especificidade e a
diversidade.
Mariana Paladino, em sua dissertação de mestrado, analisou o material publicado
entre 1970 e 2000 no Brasil sobre o tema, classificando-o nas seguintes categorias: cartilhas
didáticas, comunicações de experiências
8
, declarações e pareceres, documentos, teses e
monografias (Paladino, 2001). Essa produção se avoluma a partir do momento em que o
Estado passou a se apropriar da nova proposta na implementação de suas políticas de
educação escolar para as populações indígenas
9
, abrindo novos campos (locais) de ação,
bem como possibilitando a proliferação de cartilhas e documentos oficiais centrados nos
8
As experiências são geralmente comunicadas no contexto de Encontros de Educação Indígena promovidos
desde 1979, como mencionei anteriormente, por organizações como CPI-SP, CPI/Acre, CTI, CIMI e OPAN;
congressos de professores indígenas (como os organizados pela OGPTB e COPIAR); seminários realizados
nas universidades, por departamentos como a Associação de Leitura do Brasil (Faculdade de Educação-
UNICAMP) ou o Instituto de Linguagem (UNICAMP); bem como, Simpósios Nacionais e Internacionais
sobre populações indígenas.” (Paladino, 2001:17)
9
O primeiro passo neste sentido foi dado com a Constituição de 1988 através da qual
garantiu-se
juridicamente aos índios o direito de manter “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”
(CF Art.231), idéia consolidada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional: “O Sistema de Ensino da
União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá
programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de Educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos
indígenas”. (LDB, 1996, art.78).
16
princípios acima mencionados
10
. Os principais temas abordados, segundo Paladino, seriam:
(i) a relação entre educação indígena ‘tradicional’ e educação escolar indígena; (ii) a
passagem da escola dos conquistadores para a ‘conquista da escola’; (iii) a identidade
constituída principalmente em contraposição ao SIL (Summer Institute of Linguistics) e às
políticas assimilacionistas do Estado brasileiro; (iv) o papel dos professores indígenas; (v)
autonomia e autodeterminação. Tudo isso reflete um quadro informado muito mais pela
arena política e ideológica, em que estão inseridos os projetos, que pelas demandas
especificas reais dos grupos indígenas.
No âmbito acadêmico, Paladino (op. cit) analisou 27 obras, revelando seus traços
recorrentes. A maioria seria de ‘estudos de caso’, vertendo sobre questões lingüísticas ou
pedagógicas, identificadas, principalmente, a partir da prática de assessoria do próprio
autor, ou a partir da análise de ações do indigenismo estatal, missionárias ou ‘alternativas’,
abordando temas como integração dos povos indígenas, relação entre aprendizado formal e
tradicional, oralidade e escrita, movimento indígena e autodeterminação. Paladino observa
que raramente questiona-se conceitos, como ‘cultura’ (fundamento da idéia de
interculturalidade, diversidade cultural, especificidade). Eu acrescentaria que o que impede
a esses trabalhos, em sua maioria, de desenvolverem reflexões críticas a respeito de seu
objeto é uma postura de legitimação de um campo (político) de atuação e, entre outras
coisas, a incompreensão dos meandros e da complexidade das situações concretas
(etnográficas).
Na área da antropologia, especificamente, Paladino menciona alguns (poucos)
trabalhos que tratam da que podemos chamar de ‘apropriação indígena da escola’ (Isaac,
1997, Cavalcanti, 1999; Alvares, 1999 apud Paladino, 2001) e também de processos de
aprendizagem e dos chamados 'etno-conhecimentos'. Esta constatação, somada à ausência
do tema em revistas especializadas, levou a autora a atestar a sua invisibilidade na produção
acadêmica, o que concorre para que ainda perdure uma teorização fraca sobre ele. Há,
entretanto, um contraste entre a raridade de reflexões antropológicas e a importante
participação de antropólogos como assessores e consultores de projetos educacionais
(escolares). Segundo Paladino, a grande maioria dos antropólogos que atuam nessa área fez
10
Entre tais documentos podemos destacar os seguintes, veiculados pelo MEC (1998a; 1998b, 1998c): ‘O
governo Brasileiro e a Educação Escolar Indígena. Brasília’, ‘Parâmetros Curriculares Nacionais’,
‘Referencial curricular nacional para as escolas indígenas’.
17
sua pesquisa de doutorado sobre outros temas. Adviria este fato da preferência dos
antropólogos em enfocar aspectos 'tradicionais' de 'seus índios' (Tassinari apud Paladino,
2001), ou do medo de se chegar a resultados incômodos para a reprodução de práticas ou de
uma certa militância
11
?
Embora não o tenham feito, os antropólogos que atuam na área da educação escolar
indígena apontam a necessidade de etnografias que falem das práticas locais, para que, a
partir disso, possa-se vencer as simplificações que permeiam e fundamentam as propostas
políticas nesse campo. Neste sentido, Aracy Lopes da Silva sugere que:
A etnologia do pensamento indígena, que revela a complexidade das proposições
ontológicas e metafísicas ameríndias, e sua originalidade flagrante frente ao
pensamento ocidental (ilustra-o o perspectivismo amazônico) alerta para a
complexidade das questões com que terão de tratar experiências de educação
escolar que se desejam efetivamente respeitosas dos direitos indígenas. Por outro
lado, uma compreensão maior de processo como os da tradução xamânica, da
produção de sentido através de sínteses totalizadoras, da construção de mundos e
dos circuitos sociais circulares de noções mutuamente referidas podem revelar
contradições, impasses e limites do modelo escolar proposto (Lopes da Silva,
2001:40)
Destacaria, entre os poucos trabalhos existentes que contemplam a preocupação
expressa por Aracy Lopes da Silva, as dissertações de Ricardo Cavalcanti (1999) e de
Ingrid Weber (2004). Cavalcanti procura evidenciar as distintas formas de apropriação da
escola por dois povos indígenas de Mato Grosso: os Bakairi e os Kalapalo. Ele propõe que
o processo de apropriação da escola é informado politicamente e não por uma certa
‘necessidade natural’ de alfabetização. Da mesma forma, a associação entre escola, escrita
e transmissão de conhecimento seria fruto de nossa visão ‘ocidental’ e não seria a mesma
na realidade dos povos pesquisados. Já Weber se propõe a mostrar em que termos os
Kaxinawá do Acre se apropriaram da escola, recorrendo tanto a dados históricos como à
sua experiência enquanto ‘assessora’. Weber explora pontos como a adaptação do que ela
chama de “pedagogia kaxi” ao contexto escolar, revelando, por exemplo, a concepção
xamânica da escrita, o papel da escola na definição dos limites da comunidade-aldeia e na
apropriação da noção de ‘cultura’.
11
Sobre esta questão, observa Paladino, é interessante notar que são exatamente enquanto especialistas e
cientistas que os antropólogos são chamados a atuar como assessores.
18
Esta tese pretende, através de um aprofundamento das questões relativas ao
universo escolar, articuladas com a cosmologia e a organização social bakairi, contribuir
para a explicitação de contradições, impasses e limites da proposta consensual que norteia a
educação escolar indígena, hoje. Desde chamo a atenção para algumas descontinuidades
entre a educação bakairi e a educação escolar bakairi e a inadequação da oposição
interior/exterior que guia as críticas ao que é 'importado da cultura do branco', sob a
alegação de descaracterização da ‘cultura indígena’. Esta concepção não tem lugar na visão
de mundo dos Bakairi, que têm como um dos traços preponderantes a ‘domesticação’ do
‘outro’ (poderoso), através, principalmente, de eventos e comportamentos rituais. A escola
está no meio de tudo isso.
3. A estrutura da tese
A tese se divide em duas partes. Na primeira ofereço um quadro geral da vida social
bakairi, cujo conhecimento será necessário para o posterior entendimento do processo de
formação do kurâ (pessoa bakairi), mais especificamente no contexto da educação escolar.
Inicio abordando, no primeiro capítulo, a constituição das relações de parentesco bakairi,
base da sua organização social, posto que está na família seu fundamento e valor
primordial. Conforme as regras do parentesco e de casamento, as pessoas são alocadas nas
diversas famílias, o que determinará sua posição relativa às atividades políticas,
econômicas, rituais, bem como ao espaço físico que lhes será destinado. Essas normas,
como veremos, não são fixas, pois a existência de um padrão de descendência bilateral,
entre outros fatores, permite que haja uma grande flexibilidade nas possibilidades das
relações de parentesco, formando uma gradação indo do parente-perto até o parente-longe.
Ainda no que concerne o parentesco, trato de algumas mudanças recentes, como a
introdução de novos termos e relações. Mesmo em meio a um emaranhado de relações e
conexões, os grupos familiares podem ser identificados através da observação de fatores
como: a convivência em uma mesma moradia; a rede de reciprocidade de alimentos,
cuidados e preocupação. A exposição das casas, caminhos e também das aldeias será o
objetivo do segundo capítulo
Passo, então, a tratar das disputas, internas à aldeia, entre os grupos familiares,
permeadas, no nível doméstico, pela lógica da inveja, da fofoca e da feitiçaria e,
19
publicamente, pela chamada ‘política’. Concluo essa primeira parte com uma descrição das
atividades econômicas, chamando a atenção para o impacto do crescente consumo de bens
industrializados, decorrência, em boa parte, do aumento do número de Bakairi com contrato
de trabalho como funcionários públicos (capítulo III).
A apresentação dos principais aspectos da vida social bakairi, além de ser um
registro etnográfico de sua situação atual, facilitará o entendimento da realidade escolar.
Importará fundamentalmente a idéia da família como unidade social, política e econômica,
sendo a sua perpetuação e defesa a mais significativa motivação para diversas atividades. A
escola é o locus das esperanças de ‘ser alguém na vida’ e de conseguir meios para a
aquisição de emprego e dinheiro de modo a poder atender às novas necessidades que
vieram depois do aparecimento dos ‘brancos’. Se o investimento na família é um valor
absoluto, ele também adquire um valor relativo ao passo que um grupo familiar pretende
não apenas ‘estar bem’ (koenda wawyly), mas ainda ‘estar melhor’ (que os outros).
Na segunda parte da tese, adentro o universo da formação do kurâ, ou seja, da
pessoa bakairi, explorando as práticas domésticas, os períodos de iniciação/reclusão e as
cerimônias coletivas (kado), dos quais depende boa parte dessa formação e também a
reprodução da vida bakairi (capítulos IV e V). Finalmente, entra em cena, nos capítulos VI
e VII, o mundo da escola, analisado primeiro em sua constituição histórica e, em seguida,
em sua articulação com os três principais contextos da formação do kurâ - métodos da
educação familiar, características da reclusão/iniciação e um componente performático-
ritual fundamental - que, ao interagir, criam a feição singular da escola bakairi.
Dentre os três principais níveis de formação do kurâ, o kado adquire papel de
destaque como modelo da formação escolar, pois, por motivos históricos, houve uma
espécie de ‘substituição’ do kado pela escola como mais significativo espaço público
bakairi, durante o período do posto indígena do SPI. Há, todavia, razões que advêm da
cosmologia bakairi, que na interação ritual com ‘outro’ a forma de dominar os recursos
dos quais esse ‘outro’ é ‘dono’. No caso do kado, o domínio de alteridade contatado é
aquele dos espíritos sub-aquáticos (iamyra), ‘donos’ dos recursos naturais de que
dependem, sobretudo, a pesca e a agricultura. A escola, por sua vez, seria a responsável
pelos rituais que fariam a mediação entre os karaiwa (‘donos’ dos novos recursos
desejados) e os Bakairi.
20
Assim, os rituais escolares seriam caracterizados pela manipulação das duas formas
de inserção na ‘sociedade brasileira’ que se apresentaram historicamente aos Bakairi.
Civilização foi o nome dado pelo órgão tutor ao comportamento a ser seguido pelos índios
a fim de serem aceitos pelos ‘brancos’ e pelo Estado brasileiro, incluindo, entre outras
coisas, o aprendizado da língua nacional (falada e escrita), hábitos como vestir roupas e
viver em casas que comportam apenas uma família nuclear e valores como o trabalho, o
progresso e a pátria. Nas atividades escolares o ritual de civilização ocuparia
principalmente o espaço cotidiano da sala de aula, mas também pode ser observado na
organização escolar, na disciplina, na arquitetura dos prédios, bem como em certos
momentos das cerimônias escolares extra-classe. Nestas últimas, todavia, predomina a
outra via de acesso aos karaiwa: a cultura, quando certas partes do kado são simplificadas e
adaptadas à organização escolar, transformando-se em ‘apresentações’ ou ‘festas’.
Esta introdução inclui, a seguir e como ponte para o corpo propriamente dito da
tese, uma visão da história bakairi, preâmbulo necessário para entendermos muitos dos
dados e das questões que serão apresentados.
4. História Bakairi: expedicionários, etnógrafos, capitães, o Marechal (Rondon)
Viajantes alemães, capitães bakairi
As referências históricas sobre os Bakairi retrocedem até meados do século XVIII,
tanto no que diz respeito às memórias coletivas e individuais dos índios, que registram
como lembrança mais antiga a dispersão a partir do Salto Sawâpa, quanto aos relatos dos
desbravadores que passaram pela região. A coincidência das datas pode ser apenas fortúita,
como também a possibilidade de, talvez indiretamente, a chegada dos forasteiros
karaiwa ter afetado a disposição geográfica dos grupos indígenas da região gerando mais
conflitos e, conseqüentemente, a diáspora dos Bakairi.
A única referência, embora vaga, sobre períodos anteriores à vida no Salto fala do
paru taba ou grande rio”, citado pelos ‘velhos’, que alguns professores bakairi teriam me
dito ser o mar, levando à hipótese de que eles originalmente teriam vivido no litoral (norte,
21
provavelmente) e teriam se interiorizado mais recentemente. Apesar deles falarem deste
movimento, não mais nenhum fato a ele associado que possa nos dar detalhes a respeito.
Aliás, existe uma controvérsia envolvendo lingüistas, antropólogos e historiadores sobre a
localização geográfica original dos povos karib. Alguns defendem que teriam se dispersado
a partir de regiões setentrionais da América do Sul, outros que teriam partido dos afluentes
ao sul do Rio Amazonas, mais propriamente entre os rios Xingu e Tapajós, indo para o
Norte. Os dados lingüísticos sobre a questão são ainda insuficientes para o estabelecimento
de um consenso, e, portanto, ambas as hipóteses são atualmente cogitadas, conforme diz
Bruna Franchetto:
Continua bastante confuso o quadro das possíveis rotas migratórias que levaram à
distribuição atual e à localização do ponto de dispersão original. Villalón (1991)
propôs uma antiguidade de 3.290 anos, argumentando a favor da hipótese já clássica
de uma madre tria guianense no extremo nordeste da América do Sul. Rodrigues
(1985), ao apresentar evidências instigantes de um parentesco karib-tupi (e jê),
indica pistas para novas investigações históricas. Uma hipótese alternativa seria a de
uma origem meridional, ou seja, em algum ponto do Brasil Central ou Ocidental,
quando há cerca de 6 mil anos os ancestrais karib teriam se afastado dos tupi
(Urban, 1992, p.94). (Franchetto, 2001:125)
12
Meira e Franchetto (2005) tendem, a partir da comparação de cognatos de língua
karib setentrionais e meridionais, a ver a hipótese da origem sul-amazônica como mais
‘fraca’ que a outra, mas concluem que evidências lingüísticas suficientes para afirmar a
existência de dois ramos meridionais independentes, um constituído por Bakairi, Arara e
Ikpeng, o outro representado pela língua karib falada ao longo dos formadores orientais do
Rio Xingu (Alto Xingu). Os puzzle dos karib meridionais se tornou mais complexo ou
algumas novas pistas estão, agora, abertas; estamos ainda longe, contudo, de ter uma visão
minimamente clara da pré-história desses grupos.
O Salto Sawâpa, o histórico ou mítico ponto de dispersão dos Bakairi, se localiza na
confluência do Rio Verde com o rio Paranatinga (vide ilustração pág. 22) e assim foi
descrito por Karl von den Steinen, etnógrafo alemão que esteve entre os Bakairi nos anos
de 1884 e 1887:
12
Além de Villalón (1991), Rodrigues (1985) e Urban (1992), citados por Franchetto (2001); ver também
Derbyshire (1999) e Steinen (1940).
22
Localização bakairi
23
Os primeiros bakairi habitavam o Rio Verde, que é um afluente esquerdo do
Paranatinga. É com prazer que nossos bons amigos falam a respeito da queda dágua
formada pelo Paranatinga , depois de seis dias de viagem, mais ou menos, rio
abaixo. É ali que, segundo disseram, a maioria desses índios deles nasceu, e onde a
natureza é rica em milagres. o salto poderoso e retumbante que, conforme o
conhecimento que tem do rio, termina ali, constitui para eles um espetáculo
especial. No meio do rio, porem, há uma casa de pedra, como a que existe aqui, isto
é, habitável, mas os telhados e as paredes são de pedra. (Steinen, 1942:336)
Steinen registrou também algumas inscrições feitas em uma margem do rio, perto
do Salto, que um de seus informantes disse terem sido feitas pelas gerações antigas dos
Bakairi. Este autor calculou a diáspora a partir do ‘salto’ por volta de meados do século
XVIII, pois o tetravô de seu principal informante teria morrido ainda próximo a esta região.
Prevendo que cada geração seria, em media, de 30 anos, ele chegou a uma distância
temporal de mais ou menos um século e meio antes de suas expedições. Esta informação se
confirmou quando Steinen soube que o avô de um velho bakairi quase centenário teria
pertencido a ultima geração nascida no Salto. Steinen ainda explica que a fragmentação do
grupo, segundo lhe foi relatada, aconteceu devido a conflitos internos aos próprios Bakairi,
bem como à guerra com inimigos externos como os Nambiquara, Tapayuna, Munduruku, e,
principalmente, os Kayabi. A respeito da rixa com estes últimos, Steinen relata sua
continuidade até algumas décadas antes de sua expedição, tendo em vista que na aldeia do
Paranantinga encontrou duas mulheres kayabi ‘roubadas’, anos antes, durante uma
contenda (Steinen, 1942:148)
Após a saída do Salto, os Bakairi se dividiram em três grandes grupos. Um deles foi
em direção ao Rio Arinos, outro subiu o Rio Paranatinga e o terceiro foi para o leste,
fixando-se nos Rios Tamitadoala (Batovi) e Kulisevo (Culiseu), na bacia do Alto Xingu.
No tempo decorrido entre a diáspora e a retomada do contato através das expedições de
Karl Von den Steinen em 1884 e 1887, os dois primeiros grupos tiveram apenas encontros
esporádicos com o terceiro, devido à distância e aos obstáculos entrepostos, como as muitas
cachoeiras e a presença de inimigos. Steinen chamou os Bakairi do Arinos e do Paranatinga
24
de ‘Bakairi ocidentais’ e aqueles do Tamitadoala e Kulisevo de ‘Bakairi orientais’. Steinen
definiu os dois agrupamentos, respectivamente, de ‘mansos’ e ‘bravos’, pelo fato dos
primeiros estarem, na época de sua expedição, familiarizados com os chamados
‘brancos’, enquanto os outros teriam se mantido afastados das frentes de expansão
brasileiras, tendo sido integrados ao sistema sócio-cultural alto-xinguano. Os Bakairi
orientais tinham estabelecido um regime de trocas com os grupos alto-xinguanos em vários
níveis: ritual, cosmológico, econômico, matrimonial (Steinen, 1942). Desta história em
comum é testemunho o seguinte mito de origem, compartilhado pelos Bakairi e pelos
outros povos alto-xinguanos.
Kuamoty encontrou um grupo de onças e para não ser morto ofereceu algumas moças em
casamento para elas. Feito o acordo, Kuamoty teve que criar as moças, o que fez a partir de quatro
troncos de árvore. Realizaram-se os casamentos, mas somente uma delas teria acompanhado o
marido, ficando as outras pelo caminho. Ela havia engravidado a partir de ossos dos bakairi
devorados pela onça, mas foi morta por sua sogra antes dos filhos, gêmeos, nascerem, os quais,
todavia, sobreviveram. (Esses gêmeos o Keri e Kame ou Xixi e Nunâ (lua e sol), protagonistas
das histórias de criação e obtenção de tudo o que os Bakairi possuem, conforme veremos no
decorrer desta tese)
13
.
Por outro lado, os grupos ‘ocidentais’ mantiveram contato entre si através de rituais,
apesar de cada um deles gozar de considerável autonomia (Steinen, 1940: 385).
Quanto aos registros escritos sobre os Bakairi, o mais antigo é datado de 1749; trata-
se do relato feito pelo viajante José Gonçalves da Fonseca, que teria ido do Pará até o Rio
Madeira e citado o rio ‘Bacaeris’ juntamente com o ‘das Mortes’ enquanto afluentes do
Xingu. Steinen (1940:494) diz serem os Bakairi conhecidos desde as primeiras expedições
dos bandeirantes paulistas em busca de ouro e escravos, em Mato Grosso. Em 1776,
Thomas Jeffery fazia referência aos ‘bacahyris’, povo situado no Rio Paranatinga (Steinen,
1942:123). No inicio do século XIX, mais especificamente em 1817, Ayres de Cazal (apud
Steinen, 1942:123) ofereceu algumas informações, caracterizando os Bakairi como
aparentemente ‘pacíficos’ e ‘brancos’ e considerando-os aparentados aos Pareci, fato que
foi contestado posteriormente. No século XIX, foram várias as expedições em busca de
ouro que encontraram os Bakairi ‘mansos’, inclusive tendo os habitantes do Paranatinga se
13
Sobre uma variante kalapalo do mito, ver Basso, 1973:10-13.
25
transferido para a localidade em que Steinen os encontrou, devido à influência de um
‘desbravador’ chamado Correia. Este os teria levado a se estabelecer em um ponto
geográfico estratégico para as longas viagens realizadas rumo ao ouro das lendárias minas
dos ‘Martírios’
14
, para as quais as canoas de jatobá construídas pelos Bakairi eram bastante
úteis (Steinen, 1940). Uma outra dessas expedições foi chefiada pelo Padre Lopes, que
deixou entre seus legados a apresentação dos Bakairi ocidentais ao cristianismo, mas
também a morte de muitos nas batalhas travadas com os ‘conquistadores’ apoiados pelos
Apiaka (Steinen, 1942). registro da presença de outro religioso entre os Bakairi
ocidentais, em 1879, o Frei Conrado Mari, que, além de realizar batizados, conseguiu junto
ao Presidente de Província que o posto de ‘capitão’ do exército nacional fosse concedido a
um de seus líderes (Barros, 2003).
No relatório de 1848 da Diretoria dos Índios de Cuiabá, os Bakairi são contados em
número de 200 pessoas, sendo os únicos, ao lado dos índios ‘Jacarés’ do Mamoré,
considerados ‘mansos’. Reproduzo abaixo a parte do relatório dedicada a eles:
Bakairi. Nascentes do Paranatinga e curso superior do Arinos. São de índole
extremamente pacífica. Fogem dos ataques de seus inimigos, os Nambiquara,
Tapanhuma e Cajabi. Vivem de caça e pesca, plantam milho, mandioca, batata
doce, cará, feijão, favarricas e cana de açúcar. Seus utensílios agrícolas são
fabricados de pedra e cerne. Sua indústria: redes com malhas de algodão ou tucum,
peneiras trançadas e cestinhas. Só muito poucos compreendem a nossa língua,
entretanto manifestam desejo de aprendê-la. A Sra. D. Feliciana Guerobina Pereira
Coelho, abastada proprietária de terras no distrito de Serra superior, trata-os com
afabilidade, dá-lhes presentes e pronuncia-se de maneira sobremodo favorável a
respeito de sua fácil conversão. (Steinen, 1940:698-699)
As expedições de Karl von den Steinen propriamente ditas realizaram-se, como
mencionei, nos anos de 1884 e 1887. Foi ele quem primeiro relatou com mais acuidade o
modo de vida dos Bakairi, visando contribuir com seus dados, observações e registros
materiais à etnologia alemã da época. Graças aos seus relatos, podemos vislumbrar a vida
dos Bakairi, tanto ocidentais como orientais, nos anos que precederam a sua ‘atração’ pelo
SPI, acontecimento que iria imprimir grandes mudanças.
14
Espécie de ‘eldorado’ procurado por muitas expedições durante o século XIX.
26
Steinen encontrou os Bakairi dos rios Arinos e Paranatinga relativamente integrados
à economia regional, trabalhando em fazendas próximas, indo a Cuiabá para vender
borracha (Arinos), provendo regionais e expedições de produtos como melado e rapadura.
Além disso, eles estavam vinculados à Diretoria dos Índios de Cuiabá através de uma
hierarquia militar que conferiu aos seus líderes as patentes de capitão e tenente,
acompanhadas de insígnias como galões, peças de uniformes militares e armas. Desta
forma, os pyma (caciques) passaram a ser tanto representantes de seu povo junto ao Império
brasileiro, como o inverso.
A região entre Cuiabá e o Rio Paranatinga estava recém ocupada por fazendas que
Steinen caracterizou pela criação de gado (em geral, poucas ‘cabeças’), casas desprovidas
de mobília, com os habitantes dormindo em redes, pouca ‘civilização’ dos moradores de
“raça ameríndia fortemente mesclada com sangue negro” (1940: 39).
A aldeia do Arinos, cuja população daria origem aos atuais habitantes da Área
Indígena Santana
15
, foi assim descrita: havia uma sede ligada à Diretoria dos Índios com
quatro habitações, um curral, criação de gado, porcos e galinhas, roça e lavoura. O seu
capitão chamava-se Reginaldo da Silva Nogueira, com aproximadamente quarenta anos,
que falava um português claro, mas rude. Os Bakairi viviam a maior parte do tempo em
outro aldeamento há umas duas léguas dali, onde estavam as mulheres quando da passagem
da expedição. A população foi calculada em 53 pessoas, entre as quais Steinen observou as
orelhas e septos nasais perfurados, característica que não encontrou entre os demais bakairi.
A aldeia do Paranatinga, localizada próxima a onde está a Área Indígena Bakairi
atualmente, também mantinha relações freqüentes com os karaiwa, havendo, inclusive dois
seringueiros morando entre eles, um deles casado com uma paraguaia. Ao todo, sua
população era de vinte pessoas, entre elas duas mulheres kayabi, capturadas ainda jovens e
casadas com Bakairi, e uma Pareci. A aldeia teria sido mais populosa; entretanto, muitos
tinham morrido em uma epidemia de sarampo em 1876 e nove pessoas teriam ido embora
(Steinen, 1940; 1942). Era desta aldeia Antoninho Kuikare, o famoso guia de Steinen, que
catalisou muito poder para si, até chegar a ser indicado como ‘capitão’ dos Bakairi. Sua
15
Minha pesquisa foi realizada apenas na Area Indigena Bakairi, habitada principalmente pelos descendentes
dos Bakairi do Paranatinga e ‘xinguanos’, apesar de haverem alguns descendentes dos Bakairi do Arinos, ou
‘santaneiros’ vivendo entre eles. Por isso, refiro-me apenas brevemente a história dos antepassados daqueles
que hoje habitam a Área Indígena Santana. Para maiores detalhes sobre este grupo ver Barros (1992, 2003)
27
figura é, atualmente, controversa, pois seus descendentes o tratam como um herói, sendo
citado com muito orgulho o fato de sua ida ao Rio de Janeiro para conhecer o Imperador.
Pessoas de outras famílias o têm como um traidor dos Bakairi, tendo servido aos karaiwa
contra seu próprio povo. De toda forma, não como negar que sua figura é emblemática
de um momento importante de transição entre o período das expedições de Steinen e a
fundação do Posto Indígena.
Partindo da aldeia do Paranatinga, Steinen seguiu em sua primeira viagem em
direção ao Rio Tamitadoala (ou Batovi, nome dado por este viajante em homenagem ao
Presidente da Província de Mato Grosso), afluente formador do Xingu, onde encontrou
quatro aldeias bakairi
16
. Ele relata o espanto que as pessoas tinham em relação aos
membros da expedição e aos seus objetos, fato que, para ele, atestava que os habitantes
destas aldeias estavam frente a um não-indígena pela primeira vez. Na localidade mais
povoada havia mais de 53 pessoas e tinha 6 casas, e, na menos povoada, 26 habitantes se
dividiam em 2 casas . Todas as aldeias tinham um kadoety (casa ritual, no centro da aldeia),
onde eram guardados os instrumentos e os adereços cerimoniais. Steinen encontrou o
kadoety repleto de objetos cerimoniais (apenas sobre a primeira aldeia ele não faz
referência a objetos do kado), atestando a intensidade e riqueza da vida ritual. Notou o
contato que os Bakairi mantinham com as outras etnias alto-xinguanas, como os Trumai, os
Kustenau e os Waurá, que viviam rio abaixo, os Kamayurá, que distavam dez dias por terra
e de quem adquiriam banquinhos de madeira, os Nahukwá, cujo contato era testemunhado
pela presença, em uma das aldeias bakairi, de um colar de sua confecção. Entre os não-alto-
xinguanos, Steinen menciona os Suyá, de quem os Bakairi teriam adquirido flautas e
flechas, apesar de serem temidos pela sua beligerância.
Na segunda viagem, em 1887, durante a qual desceu o Rio Kulisevo, Steinen
encontrou três aldeias bakairi Main iery (Dente de Anta), Iguety (Casa do Gavião) e
Kuyakuariety (Casa da Hárpia) - , distantes entre si de um a dois dias rio abaixo. Mais
adiante, ele travou contato com aldeias de outras etnias, Nahukwá, Mehinako, Aweti,
Yawalapiti, Kamayurá e Trumai, as quais efetuavam muitas trocas entre si e com os
Bakairi, notando uma especialização de cada povo na fabricação de objetos, como é o caso
16
Steinen não denominou estas aldeias, mas segundo Edir Pina de Barros (2001) elas se chamariam (da
primeira até a quarta): Parua, Âgudoalo, Memuluia, e Tapakuya.
28
do machado de pedra feito pelos Trumai. Registrou indivíduos kustenau e nahukwá casados
com mulheres bakairi, um Bakairi da 4
a
aldeia do Batovi entre os Aweti e conhecimento da
língua de outros povos da região. Em suma, em toda a área que percorreu, Steinen atestou
intenso convívio entre as diversas etnias, o que era percebido também pela presença de
objetos utilitários e rituais recorrentes.
Na primeira aldeia do Kulisevo, ele reencontrou o chefe Tumayaua, a quem havia
conhecido na primeira viagem, e que passou a acompanhá-lo às outras aldeias bakairi deste
rio
17
. As localidades tinham duas ou três casas, além do kadoety, e contavam, de acordo
com seu cálculo, a menor com 21 pessoas, e a maior com mais ou menos 100 habitantes.
Nelas, também, atestou a presença de muitos objetos dos rituais identificados como
Makanari, Imeo, Imodo e Yatuka,
18
tendo a oportunidade de ver a realização apenas de uma
dessas cerimônias, na localidade de Iguety, que chamou de Makanari, apesar dele dizer que
este nome poderia não se referir a um ritual específico, mas a um nome genérico para as
cerimônias coletivas bakairi.
Finda a presença de Steinen na região, a história dos Bakairi estaria alterada
significativamente para sempre, como conseqüência, principalmente, da retomada das
relações entre os Bakairi orientais e ocidentais, fazendo com que os primeiros passassem a
serem inseridos em uma nova realidade, caracterizada principalmente pela dependência dos
bens provindos dos ‘brancos’. Os ‘ocidentais’, por seu lado, além de se beneficiarem com o
domínio que passaram a ter dos chamados ‘xinguanos’, ‘oxigenaram’ a sua vida ritual com
as cerimônias trazidas pelos seus parentes distantes.
Entre as duas expedições de Steinen, em 1886, Antoninho voltou a visitar os Bakairi
do Tamitadoala, ao que se seguiu a retribuição da sua visita por parte dos ‘xinguanos’. A
partir de então o contato entre eles passou a se intensificar. Com a segunda expedição de
Steinen em 1887, iniciou também o contato entre os Bakairi do Rio Paranatinga e os do
Kulisevo. Este contato interessava ao governo de Mato Grosso, que estava desejoso de
ampliar as fronteiras colonizadas da província, o que implicava na domesticação dos índios
17
Além das quatro aldeias visitadas por Steinen em 1884 no Tamitadoala, e das três do Kulisevo (havendo
uma quarta não visitada por ele, chamada Mainmainety, ‘Casa do Jaboti’), Edir Pina de Barros (2003) soube
da existência, através dos próprios Bakairi, de mais alguns grupos locais assim denominados: Urakêdo, Auiá,
Muikuru, Kâpyby, e também Tuhutunahuguêim (proximo ao Salto da Alegria), bem como outros localizados
no Rio Culuene. Fato que permite a autora deduzir que a população bakairi da época deveria ser o dobro dos
326 contados por Steinen.
18
Estes rituais não são mais realizados hoje em dia.
29
a partir da catequese e da sua inserção na sociedade regional como força de trabalho na
pecuária, na agricultura e no extrativismo. Para tanto, a jurisprudência de José Confúcio
Pereira, diretor dos Bakairi do Paranatinga, foi estendida até aos Bakairi habitantes dos
formadores do Xingu. Alguns anos depois, Antoninho, que havia passado a ser der dos
Bakairi de Paranatinga, seria nomeado pelo Presidente de Província, Antonio Correia da
Costa, ‘Capitão’ também dos Bakairi orientais (Schmidt, 1947).
Desta forma, Antoninho, a partir de sua posição de guia na expedição de Steinen,
conseguiu acumular poder ao servir de mediador entre o Estado brasileiro e os Bakairi. As
armas, que adquiriu de expedicionários que passaram, lhe foram de grande valia nesse
processo, ao permitir-lhe fazer frente aos inimigos, entre os quais se destacavam os Kayabi,
ganhando a posição de ‘protetor’ de todos os Bakairi.
Às expedições de Steinen, outras se sucederam. Em 1896 e 1899 foi em direção ao
Rio Xingu Hermann Meyer, que testemunhou contato intenso entre os Bakairi ocidentais e
orientais através das muitas viagens empreendidas por Antoninho e pelo seu enteado José
Coroado e também da mudança de alguns Bakairi ‘xinguanos’ para o Paranatinga, estando
a esta época a população deste rio aumentada para mais de 60 pessoas (Schmidt, 1947).
Anteriormente à expedição de Meyer passou na região a procura de caucho um grupo de
norte-americanos, que, entretanto, desapareceu em condições misteriosas, provavelmente
tendo sido vítimas dos Suyá (Schmidt, 1947). Em 1900, duas expedições passaram pelos
Bakairi. A primeira foi a chefiada por Paulo Castro - que já conhecia a região tendo
passado anos antes em busca dos Martírios - com o objetivo de abrir uma rota do Mato
Grosso até o Amazonas e o Pará. A segunda foi a do etnógrafo alemão Max Schmidt,
seguidor de Steinen; sua obra nos legou muitas informações de grande valia sobre a vida
dos Bakairi na virada do século. Schmidt encontrou o Capitão Reginaldo e seu povo
vivendo no Rio Novo (região do Rio Arinos) próximo à cidade de Rosário, em duas
povoações distantes uma hora entre uma da outra. Estavam sob as ordens de um ‘branco’
chamado Eliseu. Schmidt partiu, então, para o Rio Paranatinga, onde chegou com uma carta
de recomendação do Presidente da Província para Antoninho. Encontrou o antigo guia de
Steinen gozando de prestigio entre os seus, pois, além dos motivos expostos anteriormente,
ele teria conhecido as capitais do Brasil e da Argentina na volta da viagem empreendida do
Xingu ao Pará. Este poder, no entanto, começava a ser ameaçado por seu enteado, Jose
30
Coroado, que liderava um pequeno grupo, graças ao conhecimento da língua portuguesa,
tendo estudado em Cuiabá, e ao contato com os ‘xinguanos’, conquistado ao acompanhar
Antoninho em suas viagens. Coroado era filho de Rosa Bororo, mulher com quem
Antoninho se casou após conhecê-la na visita de Steinen aos Bororo. Quando da expedição
de Schmidt, o enteado de Antoninho ainda teria dado um grande passo no estreitamento de
seus laços com os Bakairi orientais ao se casar com uma moça do segundo aldeamento do
Kulisevo (Schmidt, 1947).
Os novos tempos se refletiam na decoração das casas da aldeia do Paranatinga. Na
de Antoninho percebia-se a presença de objetos como mesa, cadeira, colheres e pratos, mas
também de um quarto que fazia as vias de kadoety e onde eram guardados os instrumentos
rituais. Na de José Coroado, ao mesmo tempo em que se apresentava a divisão entre
cômodos no interior da habitação, atestando uma influência dos regionais, os frisos das
paredes eram pintados com desenhos à maneira como Schmidt notara nas casas dos Bakairi
‘xinguanos’.
Após a estadia na aldeia bakairi do Rio Paranatinga, Max Schmidt continuou seu
caminho rumo ao Kulisevo, onde visitou duas aldeias bakairi, Maen iery (Dente de Anta) e
Mainmainety (Casa do Jabuti), esta segunda, segundo ele, formada da fusão dos
aldeamentos Iguety e Kuiakuariety visitados por Steinen. Na primeira aldeia, Schmidt
observou o mal estar causado pela apresentação da foto de Tumaiaua, tirada pela equipe de
Steinen, já que este ‘chefe’ havia sido assassinado por outros Bakairi, segundo ele, devido à
inveja causada pelos bens que ganhara daquele viajante. No mais, o alemão notou poucos
vestígios, além da presença da mandioca mansa, que atestassem um contato maior com os
Bakairi ocidentais. Na segunda aldeia, com uma população de 45 pessoas e três casas, além
do kadoety, Schmidt demorou mais por ter sido acometido por uma doença que o impedira
de seguir adiante. Neste período ele presenciou um ritual referente ao plantio, que perdurou
por vários dias e que ele chamou de huganotile (palavra traduzida por ele como “está mim
mandando”)
19
com referência a frase repetida pela dupla de jovens que cantava noite e dia,
na aldeia, e também na roça ao queimar e limpar o terreno (Schmidt, 1942).
Outra expedição aconteceu em 1915, chefiada por Antonio Pirineus de Souza, que
tinha como objetivo fazer a medição dos rios o Manuel e Paranatinga. De seus registros,
19
Segundo os Bakairi de hoje, Schmidt estaria se referindo a ygonodyly (está me mandando).
31
sabe-se que Antoninho era cacique da aldeia localizada no mesmo ponto que Schmidt a
encontrou e que esta tinha ainda muitos habitantes, a deduzir pelas sete casas que havia.
José Coroado rompera de vez com o padrasto e fundara uma nova aldeia, situada a 13 km
rio abaixo, no Rio Azul, com três casas, uma grande roça e criação de animais. Um novo
povoamento, distante 8 km da aldeia de Antoninho, também fora notado por Souza. Ele
teria sido fundado pelo cacique Kurutu (possivelmente referência a Kautu) para onde teriam
se dirigido 180 Bakairi orientais, os quais, no entanto, se reduziram a pouco mais de nove
homens em 1915, em virtude dos muitos óbitos e também da transferência para outras
aldeias próximas. Apesar disso, Souza teria atestado que os remanescentes desta aldeia
viviam em ‘bem estar’. Ele registrou ainda manifestações rituais, que lhes pareceram
provas de preservação cultural (Schmitd, 1947).
O SPI, o Marechal Rondon e o Posto Indígena Bakairi
Em 1920 foi criado o Posto Indígena, com a intenção de agrupar em torno de si
todos os Bakairi, que deveriam ser ‘civilizados’ e ajudar na atração de outros grupos
indígenas da área. Desde sua fundação até hoje, o Posto teve diversas denominações:
Bacaerys, Bakairí, Simões Lopes, Bakairi e, atualmente, Pakuera. Este acontecimento foi
relatado pelo Capitão Ramiro Noronha (Noronha, 1952), oficial designado para chefiar a
missão, que nos expõe as diretrizes traçadas para os Bakairi pelo governo brasileiro. Ele
narra a chegada da comissão até o Rio Paranatinga, a avaliação da região para achar a
melhor área para construir o posto, segundo as possibilidades para agricultura, pecuária,
retirada de madeira para a construção das casas e proximidade de água. Levaram pouco
menos de dois meses para levantar a sua sede, ao que se sucederiam as seguintes
providências: aquisição de 4 vacas, 1 galo e 3 galinhas, duas juntas de boi; confecção de
uma carreta, construção de uma ponte, derrubada da mata para fazer roça e construção de
ranchos e cercas (Noronha,1952). Estava plantada a semente do projeto civilizatório que o
governo brasileiro tinha para os índios em geral e, em particular, para os Bakairi,
sustentado por dois pilares: desenvolvimento e nação. O primeiro visava transformá-los em
força de trabalho para as tarefas agropecuárias, o segundo mostrava uma nova identidade
coletiva a qual deveriam aderir ao passo que deixassem para trás as suas diferenças sócio-
32
culturais. O projeto do governo brasileiro será tratado com destaque no capitulo VI, mas,
como uma antecipação do que virá, reproduzo as palavras do Capitão Ramiro Noronha em
seu discurso proferido na volta da expedição aos afluentes do Xingu, entre agosto e outubro
de 1920:
Chegamos ao Posto. Com pouco, hasteamos a nossa Bandeira, em presença de todo
o pessoal reunido e tivemos a oportunidade de falar-lhes, incentivando-os tanto
aos índios como aos nossos caboclos – a que continuassem a prestar o seu concurso
na manutenção e no desenvolvimento do posto indígena. Como ensinamento e
doutrina, recapitulei passagens da expedição, acentuando as faltas e as
recompensas; estigmatizando o ato moral do desertor, que abandonou seus
companheiros de lutas em pleno sertão, e exaltando a atitude do outro, que repeliu
as lábias da traição e da covardia; recordei finalmente, com palavras do mais
sincero pesar, as cenas daquele acidente que vitimou um dos nossos companheiros,
cujo corpo ficou sepultado numa curva do Culuene, porem, cuja memória veio com
cada um de nos, para a sombra da Bandeira, que nos viu partir e nos conforta na
chegada, panejando ao vento como se fora o próprio Brasil agradecido aos
trabalhos com que estamos concorrendo para o seu engrandecimento! (Noronha,
1952:57)
Nesta época, a maioria dos Bakairi estava habitando a região do Rio Paranatinga,
exceção feita, segundo o relatório, dos habitantes (por volta de 50 pessoas) de uma aldeia
no Rio Kulisevo, que, entretanto, já estariam se preparando para mudar para o Posto
Indígena (Noronha, 1952). Ao chegar, os Bakairi tinham seus cabelos cortados como
soldados e vestiam uniformes grosseiros, após o que eram apresentados às suas novas
atividades sob o controle dos funcionários do posto. Levou ainda três anos para a ida da
última leva de Bakairi ao Posto (Barros, 2001). Além da sedução que representava a
possibilidade de adquirir bens como machados e armas, concorreu, também, para a
transposição da totalidade da população bakairi para o posto, o fato de terem sido acusados
de feitiçaria por seus vizinhos acometidos de muitas doenças e mortes após a passagem das
expedições pela região dos afluentes do Rio Xingu (Schmidt, 1947).
Max Schmidt, tendo empreendido nova visita aos Bakairi em 1927, os encontrara
àqueles que não haviam morrido em uma epidemia de gripe - em sua nova realidade, bem
diferente daquela em que viviam 26 anos antes. Segundo ele, somente tropeiros ou
carpinteiros habitavam a sede do Posto, que contava com vinte casas para índios e algumas
outras para a administração. A escola passou a existir em 1922, a principio apenas para
alunos do sexo masculino. José Pires Uluku, designado como novo ‘capitão’ dos Bakairi,
33
tinha sua casa bem no centro da sede do posto. Outras famílias viviam em pequenos grupos
espalhados pela terra demarcada. Max Schmidt conheceu algumas dessas aldeias. Uma era
situada na confluência do Rio Azul com o Paranatinga, com quatro casas habitadas por
Bakairi ‘xinguanos’. Mais adiante, rio abaixo, havia uma casa próxima a uma plantação.
Schmidt alcançou o lugar onde tinham se fixado muitas das famílias vindas do Kulisevo e
onde soube da existência de outras habitações ao descer o rio, inclusive a do (ex-)chefe
(provisório) de Mainmainety, Caria. Havia ainda um aldeamento dos Bakairi provindos do
Rio Novo, que lá chegaram fugidos dos maus tratos sofridos nas mãos dos seringalistas que
os exploravam; este mesmo grupo seria expulso, no ano de 1928, pelo SPI, sob a acusação
de roubo de gado (Schmidt, 1947). Edir Pina de Barros acrescenta ainda alguns outros
aldeamentos aos visitados por Max Schmidt: um no Rio Bananal, afluente esquerdo do
Paranatinga, e outro próximo ao Ribeirão Paxola, além daquele onde vivia Antoninho desde
o final do século anterior. Este ‘capitão’ negou transferir-se para o Posto e sua aldeia só foi
abandonada por seus familiares em 1942, quando todos os Bakairi foram reunidos em um
só local (Barros, 2003).
20
O fato de que parte da produção do posto era doada aos índios do Alto Xingu que o
visitavam em busca de ‘brindes’, causava revolta entre os Bakairi
21
. Em um oficio do SPI
verificamos a preocupação que causava ao órgão indigenista este descontentamento:
Deveis ter o Maximo cuidado em evitar qualquer desarmonia entre os índios
bacahirys e xinguanos, convencendo-os de que, para o bem delles, deve haver
sempre boa e sincera amizade, que trará o seu bem estar como também para que
esta Inspectoria possa continuar a protegê-los como até agora tem feito.
Também segue pela tropa 50 pares de botinas, 50 tunicas de brim kaki, 50 calças de
brim kaki, camisas de morim, 50 cerculas de morim e 50 capacetes para serem
distribuídos entre os índios de acordo com a ordem do Sr. General Rondon, que os
presenteia. (Arquivo SPI/Museu do Índio. Filme 213, doc.516, 1926).
Neste documento, além da notícia da possibilidade de conflito entre Bakairi e
‘Xinguanos’, percebemos algumas das estratégias de controle do SPI. Está implícita a
20
Os Bakairi que hoje vivem na Área Indígena Bakairi são em sua maioria descendentes daqueles que
habitavam os afluentes do Rio Xingu, pois entre os ‘ocidentais’, aqueles do Rio Arinos se fixaram na atual
Área Indígena Santana e o grupo do Rio Paranatinga, pouco numeroso, acabou por se integrar a maioria de
‘xinguanos’ atraídos para o Posto. Este fato deve ser frisado pois no decorrer da análise tratarei os Bakairi
atuais como ex-integrantes do complexo social xinguano, compartilhando com Kalapalo, Waujá, Mehinaku e
Kuikuro (entre outros) referencias rituais, históricas, instituições, valores e formas de organização social.
21
Entre a criação do posto em 1920 e o ano de 1928 teriam lá chegado, em ‘visita’, 342 índios (Barros, 2003).
34
ameaça (para o bem deles) de que, caso não se comportassem como impunha o órgão tutor,
eles correriam o perigo de ficar ‘desprotegidos’. Ou seja, após terem sido afastados de suas
referências sócio-culturais e geográficas, ao serem transferidos para o Posto, os Bakairi
ficaram em uma posição de extrema dependência do SPI. Entretanto, tratava-se de uma
dominação, extrema, encoberta pelo termo ‘proteção’. Outra estratégia diz respeito aos
‘presentes’ e ‘brindes’ doados por Rondon, figura apresentada como um ‘pai’ generoso, que
se mantinha à parte das violências atribuídas aos funcionários do Posto.
A relação entre os Bakairi e os funcionários do Posto chegou, algumas vezes, a
situações de conflito armado, como é exemplificado no documento redigido pelo auxiliar
do PIA Simões Lopes no ano de 1950:
Comunico-vos que no dia 27 de novembro houve outra causa no Retiro do Azul,
ficando de tocaia no terreiro da casa 4 índios sendo: Odilon Mongoi armado de
carabina, Belinho Piage com a fogo central, Paulino Caiore e Edgar de Souza
armados com arco e flexas, para matar o Aquiles e o Elizeu, e então para não haver
morte entre ambos resolvi tirar eles de lá, ficando o Retiro em completo abandono,
e desde esse dia estamos sendo apreseguidos por eles a noite aqui no posto, sendo
todas estas causas iniciado pelo índio Militão Egufo, e é por este motivo digno.
Chefe peço-vos providencias urgentes para não haver qualquer acidentes entre nós
aqui no posto. ( Arquivo SPI/Museu do Índio. Filme 214, doc.1643, 1950)
Em 1930 a sede do Posto foi transferida para as proximidades da confluência do Rio
Azul com o Paranatinga, onde está até hoje, sob a justificativa de que o local escolhido pelo
Cel. Ramiro Noronha tinha se revelado inadequado tanto pela escassez de água na época da
seca, quanto pela distância de terras próprias para o plantio. Os Bakairi, por sua vez, não
queriam ficar muito afastados dos locais de pesca, como nos informa uma de suas atuais
lideranças:
O Marechal Rondon viu que o índio vinha pescar do Posto velho até aqui o
Telles Pires, Paranatinga, uns cinco, quatro kilometros de pé, vindo de lá pra pescar
peixe e levar no ombro para levar para família. Esse Marechal Rondon que está
aqui na foto, ele viu que os índios estavam fazendo essas coisas, e longe, então,
resolveu de novo pra mudar aquele antigo posto velho para aqui que hoje o Posto
Indígena Simões Lopes, hoje chamado Pakuera. (entrevista realizada com H.P., na
Aldeia Pakuera, em março de 2004)
35
Neste depoimento, além da explicação da mudança de local da sede do Posto, é
interessante perceber a personificação do SPI na figura de Rondon. Ele é quem ‘vê’, de
longe, e que decide que seria melhor (para os índios, conforme o relato) que o posto se
transferisse para perto de um rio piscoso.
Somente na década de 40 foi finalizado o projeto de construção do novo Posto, que
passou a contar com um hospital, duas casas para funcionários, escola e casa para visitas,
além da casa da administração e um galpão já existentes. A partir de então, os homens
passaram a trabalhar de segunda a sábado nas roças do Posto e nos ‘retiros’ de animais
localizados em lugares afastados, de onde vinham apenas no final de semana para encontrar
suas mulheres, que trabalhavam fazendo farinha, açúcar e na limpeza dos prédios, e filhos,
que freqüentavam a escola. Produzia-se mandioca, arroz, milho, café, banana, açúcar.
O sistema de exploração a que estavam submetidos se baseava em algumas regras e
instituições fundamentais. Os Bakairi eram forçados a obedecer a uma severa disciplina
burocrática, que se valia de instrumentos como o ‘livro de ponto’ (arquivo SPI/Museu do
Índio. Filme 213, doc.538, 1927). Além disso, eram mantidos sob a ameaça de
endividamento, dado o baixo valor atribuído a seu trabalho, aliado ao alto custo dos bens
que encomendavam aos próprios funcionários do Posto (ver lista do capítulo VI). Em casos
de rebeldia - como eram consideradas as revoltas contra os funcionários, ou a recusa em
aceitar a escolha do cônjuge feita pelos mesmos –, como punição, os envolvidos eram
transferidos para outros postos indígenas da região. É, assim, comum encontrar alguns
Bakairi que dominam a língua Xavante, por terem nascido ou passado parte de sua infância
no Posto do Batovi.
O ‘desmame’ (do SPI)
A presença do SPI entre os Bakairi foi tão intensa e duradoura que a sua extinção
pode ser considerada um marco histórico definidor de ‘novos tempos’, não apenas na visão
‘distanciada’ da antropóloga, mas, sobretudo, na própria narrativa (histórica) dos Bakairi,
como aquela contada por uma pessoa que conviveu com o regime do SPI, com a mudança
para a FUNAI e com os ‘novos tempos’: Eles falaram: ‘agora é de vocês’. Trabalho por
36
vocês mesmo.(...) Daí custou para desmamar, mas acabou.(...) Hoje quem trabalha é os
funcionários.
Nesse depoimento, ‘eles’ se refere aos representantes do órgão indigenista
brasileiro, em oposição ao ‘nós’, os Bakairi, dicotomia onde estão implícitas ainda outras
oposições, como brancos/índios, civilizados/primitivos, chefes/subordinados. Fala-se,
portanto, de uma decisão que veio ‘de fora’ (do governo, dos brancos, dos chefes) para
atingir os Bakairi. Estes se viram frente a uma nova realidade, onde teriam que trabalhar
por conta própria (‘desmame’), o que é visto como um abandono, mas também como a
entrada numa nova fase, de autonomia. O comentário acima ressalta ainda a dificuldade de
se romper com o sistema ao qual estiveram submetidos por quase cinco décadas (“custou”).
Eles tiveram que encontrar novas formas de sobrevivência política e econômica. Neste
contexto, passaram a ganhar grande relevância como fonte de recursos (ou meio de alcançá-
los), principalmente, os seguintes acontecimentos: (i) o aumento do número e da
importância dos ‘funcionários’ (como destaca o relato citado acima); (ii) os projetos, ainda
em sua maioria intermediados pelo órgão tutor; (iii) o ‘resgate’ da cultura e da identidade
étnica; (iv) a formação de novos aldeamentos
22
.
*
Desde meados do século XVIII até os dias do hoje, a vida dos Bakairi se modificou
drasticamente, passando por muitas adversidades, como aquelas representadas pelas guerras
internas ou externas, contra inimigos indígenas ou karaiwa - que levaram a migrações e
separações. As muitas doenças que os acometeram após o contato com os brancos
resultaram em mortes e mais conflitos por acusação de feitiçaria
23
. Ainda, passaram pela
submissão à disciplina do SPI, quando foram proibidos de realizar muitos de seus rituais e
foram incentivados a adquirir novos hábitos. Veio, em seqüência, um período caracterizado
pelo limiar entre a autonomia e o abandono (“desmame”), marcado, atualmente, pela
discrepância entre o valor do dinheiro que conseguem (através de salários, aposentadorias,
‘bicos’, comércio) e as crescentes ‘necessidades’ de consumo de bens externos.
22
Esses temas serão desenvolvidos ao longo da tese.
23
Veremos que as acusações de feitiçaria fazem parte de um sistema composto também pela inveja e a
‘fofoca’, através do qual os Bakairi expressam os conflitos entre as famílias/facções.
37
Este quadro de transformações vem, entretanto, sendo enfrentado através de
soluções variadas, que têm levado em conta tanto os limites conjunturais quanto uma forma
própria, resistente, dos Bakairi de perceber e agir sobre o mundo. A escola, como veremos,
mergulha nesse universo de soluções possíveis, fruto da interação entre imposição e criação
e da necessidade de compreensão.
38
Parte I
A sociedade Bakairi: unidades, relações e disputas
Para colocar o leitor em contato com o universo das relações que constituem a vida
bakairi, sejam as decorrentes do contato com os karaiwa e seus bens, sejam as que parecem
ser independentes destes e definíveis, talvez, como propriamente internas, o foco recairá,
inicialmente, sobre a categoria que os Bakairi usam para falar de suas relações: ypemugo
(‘parentes’, ‘família’).
Desde devo ressaltar que estamos diante de uma instituição que, fundamental
para a organização social, apresenta limites dificilmente identificáveis. No entanto, a
despeito da impermanência de suas fronteiras, torna-se imprescindível a sua análise para
que conheçamos como operam as relações sociais entre os Bakairi. O maior problema
como será demonstrado no decorrer desta parte da tese diz respeito à fluidez dos limites
e, portanto, à impossibilidade de abordar o parentesco bakairi a partir da definição de
unidades precisas, sendo talvez mais apropriado apenas definirmos a sua composição e
identificarmos as conformações momentâneas ou conjunturais no espectro que vai dos não-
parentes (ypemugo keba) aos parentes (ypemugo) e, entre estes últimos, dos parentes-perto
[ypemugo iwaguepaunmondo]
24
aos parentes-longe [ypemugo iwaguenomondo]
25
).
A falta de unidades sociais com contornos claramente definidos tem como
conseqüência para a análise etnográfica a impossibilidade da utilização de termos
específicos para cada um dos seus níveis, principalmente no que se refere às relações de
parentesco. Assim, explico que utilizarei os termos ‘família’ e ‘grupo familiar’
indiscriminadamente e que para me referir às diversas gradações possíveis no universo das
relações sociais bakairi tentarei identificar cada caso como sendo uma relação ‘parente-
perto/longe/muito perto’. De fato, a palavra ypemugo, traduzida como ‘familiares’ ou
‘parentes’ é usada pelos Bakairi para tratar todas as possibilidades de parentesco, desde os
ypemugo iwaguepaunmondo até os ypemugo iwaguenomondo, sendo tal classificação,
como logo veremos, extremamente flexível, dependendo não apenas das relações de
24
y-pemugo iwague-paun-mondo, onde y- é prefixo marcador de primeira pessoa, -pemugo é ´parente´,iwague
é longe, -pa(un) é negação e mondo é um sufixo de coletivo, sendo a tradução literal “meus parentes-perto”.
25
y-pemugo iwaguenomondo, onde y- é prefixo marcador de primeira pessoa, -pemugo é ‘parente’, iwagueno
é ‘longe’ e mondo é um sufixo de coletivo, sendo a tradução literal “meus parentes-longe”.
39
parentesco definidas pela família de origem, mas também da convivência, isto é, da
proximidade social entre as pessoas.
Todavia, ao recorrermos à distribuição espacial das pessoas poderemos identificar
três tipos de unidades sociais básicas, constituídas pelas teias do parentesco:
(i) a casa (âtâ), onde atualmente reside o que chamaríamos de família nuclear (em
geral formada por um casal e seus filhos);
(ii) os ‘caminhos’ (âwan), visíveis e invisíveis, que interligam as casas e os seus
moradores que, como procurarei demonstrar, correspondem ao que outrora foram as ‘casas
comunais’, habitadas por grupos de pessoas aos quais me referirei, a partir de agora, como
‘famílias extensas’ ou ‘parentelas’ ou, utilizando um termo ouvido entre os próprios
bakairi, ‘subfamílias'. Este último termo é usado em referência às diversas subdivisões
internas à maior unidade relativa aos ypemugo: o conjunto de todos os Bakairi dizendo
respeito, portanto, ao que chamaríamos de parentelas e não, como se poderia pensar, a
partir da idéia subjacente ao termo ‘sub’, às partes constitutivas dessas parentelas;
(iii) a aldeia (âtâ anary), localidade formada por várias ‘casas’, em torno de um
núcleo familiar constituído geralmente por um grupo de irmãos e suas respectivas famílias.
Reconhecida como unidade política e econômica autônoma, a aldeia constitui-se e é
identificada pelos laços familiares entre os seus membros. É idealmente representada como
um grupo endogâmico e com claros limites, apesar de concretamente formar-se através de
casamentos exogâmicos, dessa maneira, em constante reordenamento. A imagem de
endogamia, que faz coincidir uma família com uma aldeia, conforma também a maneira
pela qual os Bakairi representam sua organização social no passado anterior ao SPI. Assim,
como destacaremos, as denominações dos últimos aldeamentos estabelecidos antes da
‘atração’ cristalizaram-se como ‘famílias originárias’ (idamudo), ou ‘clãs’, como hoje os
próprios Bakairi preferem chamá-las.
Neste sentido, como reafirmaremos várias vezes ao longo desta tese, as formas de
organização social bakairi assemelham-se àquelas registradas nas etnografias sobre os
povos alto-xinguanos, que identificam basicamente duas unidades sociais: as ‘casas
coletivas’, que abrigam as famílias extensas, e as aldeias. Iniciemos com uma observação
de Ellen Basso, oportuna para introduzir o universo bakairi:
40
The two most important social units in Upper Xingu are village and household
groups. Although each type of unit exhibits considerable variation in internal
organization, both are typically characterized by a sense of autonomy and solidarity
among the members, especially in the context of relationships with individuals
belonging to other units of the same order. Both the village and the household can be
considered “corporate” in that each controls rights to territorial resourses, acts as a
unit when performing certain economic and cerimonial activities and under these
circunstances, is considered internally undifferentiated by outsiders (Basso, 1973: 43)
A realidade bakairi é aparentemente distinta da apresentada por Basso, que ressalta
duas unidades fundamentais e a inexistência da divisão em famílias nucleares em casas
separadas, que identificamos nela três unidades e nenhuma casa comunal. Ao
investigarmos mais a fundo, veremos, todavia, que essa aparente diferença, fruto da
mudança que foi imposta aos Bakairi depois da fundação do posto indígena, encobre fortes
semelhanças entre as unidades sociais existentes nos Bakairi atuais e as registradas nos
‘antigos’, como também entre os Bakairi e nos demais grupos alto-xinguanos, como os
Kalapalo estudados por Basso. Assim, o mesmo conjunto de pessoas que antes formava as
‘casas comunais’ hoje constrói ‘caminhos’ (âwan) entre as ‘casas’; inversamente, os que
hoje vivem numa mesma ‘casa’ corresponderiam às famílias nucleares ocupantes dos
‘cantos’ da ‘casa comunal’ identificados por Max Schmidt (1942).
A fim de levar adiante a tarefa de mostrar como os Bakairi efetivamente se
organizam, entrarei no campo do parentesco bakairi para poder demonstrar como as
unidades âtâ, âwan e âtâ anary são concretamente construídas: regras, possibilidades,
critérios e valores. Veremos que a constituição das unidades pressupõe ao mesmo tempo
alianças e identificações, por um lado, e competição e disputas, por outro. Portanto, para
que possamos compreender as relações entre os Bakairi em sua totalidade, também
deveremos nos dedicar ao entendimento dos conflitos: suas formas, motivações, principais
‘causas’, e importância para a formação (e dissolução) dos grupos. Neste sentido, uma
abordagem dos aspectos relacionados à produção e consumo de bens será indispensável,
pois estes constituem tanto o foco das disputas - enquanto insígnias de superioridade de
uma unidade em relação às outras quanto importantes formas de produção do parentesco,
41
concorrendo assim para a realização dos ideais de ‘obter coisas boas/bonitas’
(âdydâemeonpe iwâkuru witoen)
26
e de acumulação de signos de prosperidade e prestígio.
Os dados e sua análise apresentados nesta parte servem como pano de fundo para a
discussão do tema principal da tese, desenvolvido na parte II, acerca da educação escolar,
pois a escola, como as demais instituições bakairi, constitui-se a partir da construção das
relações entre as pessoas e entre as unidades aqui identificadas. Além disso, a escola é cada
vez mais o meio principal para a aquisição de bens e de conhecimentos necessários para
que alguém (leia-se uma pessoa mais seus parentes) possa se destacar na realidade atual, na
qual o acesso a um emprego e conseqüentemente ao dinheiro se mostra fundamental.
O quadro de disputas aqui delineado também será importante para entendermos a
condição inversa àquela que é ativada pelos rituais coletivos, outro ponto importante da
minha argumentação. De fato, se cotidianamente a relação entre as famílias é caracterizada
pela competição e pela tensão, nos ritos são enfatizados nexos e atividades que integram
toda a coletividade envolvida,
27
como os parceiros rituais (iduno
28
), as caçadas e as
pescarias coletivas, a socialização da preparação dos alimentos, as danças e os cantos
realizados por membros de várias parentelas.
29
Como se tentará demonstrar, a escola, ao se
inserir na vida social bakairi como um importante espaço de rituais coletivos, caracteriza-se
por constituir-se a partir de uma rede complexa de relações tanto integradoras como
competitivas.
26
âdydâemeonpe iwâkuru witoen, onde âdydâemeon é ‘coisa’, -pe é ‘ter’, iwâkuru é ‘bonito’ ou ‘bom’ e
witoen é ‘para’, ‘com a finalidade de’.
27
“Toda a coletividade” pode corresponder apenas aos habitantes de uma aldeia (âtâ anary), mas também a
“todos os Bakairi” (os de Santana algumas vezes incluídos), quando o “convite” é estendido às demais aldeias
através dos vínculos de parentesco que as interligam.
28
Sobre iduno ou “parceiro ritual” ver página 55.
29
O caráter integrador e outros apsectos do ritual serão explorados na parte II da tese .
42
Capítulo I
Parentesco: construindo as unidades e as relações sociais
Neste capítulo, é meu objetivo aprofundar o entendimento do parentesco bakairi:
regras (e exceções), conjunturas, termos, comportamentos. começamos a ver que as
unidades familiares são identificáveis principalmente em termos da convivência em um
mesmo espaço. Antes de mais nada, é preciso compreender outro fato também
introduzido: o parentesco bakairi é melhor visto enquanto um espectro de possibilidades
ordenadas entre os pólos dos ypemugo iwaguepaunmondo e ypemugo iwaguenomondo,
bem como na sua expressão espacial: âtâ, âwan, âtâ anary; ou como diria Eduardo
Viveiros de Castro sobre as sociedades ameríndias, o que vale também para os Bakairi: “A
distinção entre o próximo e o distante é característica de socialidades onde a residência
predomina sobre a descendência, a contigüidade espacial sobre a continuidade temporal, a
ramificação lateral de parentelas sobre a verticalidade piramidal de genealogias” (Viveiros
de Castro, 2002:130)
O próprio fato de os parentes serem submetidos a uma classificação baseada em
termos que remetem à idéia de proximidade ou de distância espacial (ypemugodo
iwaguepaunmondo;ypemugodo iwaguenomondo) revela a importância da condição
geográfica na construção de suas identidades familiais. Esta característica, no entanto,
coloca para nós uma dificuldade na exposição acerca de regras ou padrões definidos de
parentesco. Não se pode querer explicar de forma ampla e definitiva ‘quem é parente e
quem não é’ ou ‘quem é parente-perto e quem é parente distante’. Em última instância,
cada caso é um caso. A combinação entre as regras de descendência e a concretude das
relações cotidianas gera certa ‘confusão’ entre os próprios bakairi na definição de quem são
os parentes (ypemugodo) verdadeiros (lelâlâ), ou seja, bem próximos (iwaguepaunmondo).
Assim, as pessoas, logo que perguntadas sobre quem seriam seus ypemugo
iwaguepaunmondo, dizem apenas os nomes dos mais próximos, como pai, mãe, irmãos,
30
ao que se segue a referência a alguns poucos primos paralelos (irmãos), tios (xogo (FB) e
kugu (MB)), tias (seko (MZ) e iupy (FZ)). Entretanto, ao se inquirir sobre algumas pessoas
em particular, como tios e primos classificatórios, estas vão sendo incorporadas à lista de
30
Ver terminologia de parentesco nas tabelas das páginas 46 e 47.
43
ypemugo iwaguepaunmondo, principalmente se se comportam como aliados políticos em
potencial ou como parentes verdadeiros (lelâlâ) que compartilham alimentos (pyni
epajigâdyly) e se preocupam (adahulily) com os outros.
Este amplo espectro de possibilidades ocorre devido à característica da
descendência cognática.
31
Não havendo uma preferência por um dos ‘lados’ (materno ou
paterno) para se fixar a descendência, a maior convivência com um deles dependerá dos
fatores abordados anteriormente relativos a questões conjunturais, políticas, econômicas
e pessoais. É nessa convivência que se afirmam as relações de parentesco, conformando a
proximidade real entre as pessoas. A falta de limites claros entre as famílias é também o
que tece a grande rede que interliga a totalidade dos Bakairi, pois pressupõe uma abertura
para as outras famílias a partir das relações de afinidade, permitindo principalmente a
disseminação de informações e de bens (âdydâemeon).
A fim de que fiquem mais concretas as idéias acima, observemos os seguintes
exemplos de relações entre pessoas:
1. Três irmãs, todas com filhos homens (portanto, todos considerados irmãos
classificatórios). Cada uma morando em uma aldeia diferente. Entretanto, dois deles
consideram-se parentes ‘de verdade’, enquanto o terceiro é tido como um parente longe.
Neste exemplo, apesar da existência da descendência em comum, em um mesmo vel, a
convivência fez com que dois deles se tornassem ‘mais aparentados’ que o terceiro.
2. Dois irmãos de sexo oposto, portanto, seus filhos seriam considerados ‘primos’. Porém,
devido à proximidade entre eles, consideram-se como irmãos (yukono, mais novo; paigo,
mais velho) e, conseqüentemente, seus descendentes são tidos como filhos (imery).
3. Duas irmãs. Seus filhos, portanto, do ponto de vista genealógico, estão muito próximos,
mas devido à rivalidade entre as famílias, não se consideram ‘parentes verdadeiros’.
Peter Riviere afirma haver entre os Panare forma parecida de classificação, a qual
variaria segundo circunstâncias individuais, por exemplo, pessoas genealogicamente
próximas são consideradas parentes mais distantes do que aquelas genealogicamente
distantes, mas próximos na convivência (1984:32).
32
Os comentários de Souza a respeito
31
Comum não apenas entre os Bakairi, mas entre os povos do Alto Xingu (Basso, 1973; Gregor, 1977; Souza,
1995).
32
Muitas das características relatadas da formação das famílias bakairi vão de encontro ao observado por
Peter Riviere (1984) sobre a organização social dos povos indígenas da área da Guiana, dentre eles alguns
44
dos xinguanos também se aplicariam aos Bakairi, onde as relações de parentesco seriam
melhor entendidas em termos de uma gradação que de regras preestabelecidas.
Estas relações constituem um sistema classificatório de extensão teoricamente
infinita, capaz de incluir o conjunto da comunidade aldeã e ir mesmo além,
estruturando o universo social segundo uma oposição entre parentes e não-parentes
que, ao invés de produzir uma bissecção dicotômica deste universo, assume a forma
de um contínuo graduável (Souza, 1995:129).
O parentesco, também para os Bakairi, é o modo das suas relações, abarcando desde
aquelas no interior de uma família nuclear até as efetuadas no interior da totalidade dos
Bakairi (idealmente o limite do parentesco, apesar de haver muitas incorporações através
do casamento, seja com karaiwa, seja com indígenas de outras etnias). Todavia, essa
gradação é reordenada freqüentemente através dos novos laços de casamento, que permitem
que pessoas de parentesco distante (veremos ser indesejável o casamento com parentes-
muito-perto, embora ocorra) tornem-se co-residentes e, assim, parentes próximos.
33
Vejamos agora como acontecem os casamentos e, conseqüentemente, a reprodução
do parentesco: regras, termos e comportamentos estabelecidos a partir da formação de um
casal e de uma nova família.
1. Casamento
Os casamentos e as opções relativas ao local de moradia do casal são, conforme foi
apontado, fundamentais para a organização social bakairi, pois através dos primeiros
formam-se as unidades sociais, as famílias; e das opções de moradia constituem-se os
grupos de convivência cotidiana, como vimos, tão importantes para o estabelecimento e o
fortalecimento dos laços de parentesco. Passemos então a tratar deste assunto.
também pertencentes à família lingüística karib, a saber, a descendência cognática, a regra da uxorilocalidade
e a importância da co-residência como fatores determinantes da classificação dos indivíduos entre as famílias.
33
Viveiros de Castro notara tal fato nas sociedades ameríndias, nas quais a incorporação de um afim
através do casamento acaba por transformar uma pessoa ‘distante’ em um parente-perto: “O parente próximo,
genealógica ou espacialmente, está para o parente distante como a consangüinidade está para a afinidade. Um
afim efetivo é assimilado aos cognatos co-residentes ele é idealmente, um cognato co-residente -, sendo
portanto, antes, um consangüíneo; ao passo que um cognato distante (classificatório, não co-residente) é
classificado como um afim potencial.” (Viveiros de Castro, 2002:122) .
45
Idealmente, seria junto ao grupo de parentes próximos (mas não ‘muito’)que uma
pessoa deveria encontrar o seu futuro cônjuge. Assim, se perguntarmos a um Bakairi como
se chama aquela pessoa que poderá ser o seu futuro sogro, ele dirá kugu, e para a sua futura
sogra, iupy. Vemos no gráfico abaixo que kugu e iupy são os termos para designar tio e tia
de sexo diferente do ‘pabai’ ou da ‘mamãe’ (MB, FZ).
34
Entretanto, somente serão
considerados cônjuges em potencial os filhos de kugu e iupy que não se enquadrem entre os
irmãos germanos do pai ou da mãe de ego. Na realidade, a situação é ambígua, pois ao
mesmo tempo condena-se o casamento entre parentes muito próximos
35
mas também o
devem ser os noivos parentes muito distantes, já que nesse caso, possivelmente, suas
famílias não teriam relações amistosas entre si, visto que estas são travadas geralmente
entre parentes próximos.
Apesar de não haver uma estatística atualizada sobre os casamentos, sabemos que,
de acordo com os dados de Edir Pina de Barros (2003:233), registraram-se em 1988, entre
os 83 casais existentes na época, 7,23% dos casamentos com não-bakairi; 26,50% com
parentes distantes; 4,82% com primos cruzados reais (o que não é bem visto por causa da
proximidade do parentesco) e 61,45% com parentes próximos (sem especificação do grau,
mas certamente não ‘tão próximo’ quanto no item anterior). A partir de uma análise não tão
exata e sistemática quanto a citada acima, observei que hoje em dia a maioria dos
casamentos acontece entre aquelas pessoas que estão a meio caminho dos ‘parentes muito
perto e dos ‘parentes distantes’.
No quadro a seguir, temos os termos de parentesco utilizados pelos Bakairi.
Notemos que eles são definidos levando-se em conta os cálculos genealógicos, sem
consideração da proximidade ou distância de convivência. Importam aqui elementos como
o sexo, a geração, o cruzamento (afinidade potencial) e a idade dos envolvidos:
34
Notam-se situações similares em outras análises do parentesco xinguano (Basso, 1973; Souza, 1995).
35
Espera-se uma punição no caso da realização deste tipo de casamento. Assim, em uma manhã, fiquei
ouvindo as lamúrias de uma mãe que tivera poucos filhos e, portanto, poucos netos, sentindo-se dessa forma
muito sozinha. Ela dizia que isso teria acontecido como castigo. Mais tarde, ao saber que ela teria casado com
“um primo muito perto” relacionei as questões, imaginando que a causa imaginada da punição seria o
rompimento com as normas de casamento.
46
Tabela I: Terminologia de parentesco bakairi (Ego masculino)
Termo Denotata Tradução
português
G+2
tako FF, MF avô
ningo MM, FM avó
G+1
pabai
nhunwyn
36
F Pai
xogo FB Tio paterno
mamãe
ise
M Mãe
seko MZ Tia materna
kugu MB Tio materno
iupy FZ Tia paterna
G 0
paigo eB, FBSe,
MZSe
Irmão mais
velho
kono yB, FBSy,
MZSy
Irmão mais
novo
kou Z, FBD,
MZD
irmã
pama MBS, FZS Primo
yweampy MBD,
FZD
prima
G-1
ymery S, BS filho
ymery D, BD filha
tikau ZS sobrinho
wase ZD sobrinha
G-2
ywery SS, SD,
DS, DD
Neto(a)
36
O termo
nhunwyn
é utilizado apenas como referencia ao pai, nunca como vocativo. O mesmo ocorrendo
para ise e mãe.
47
Tabela II: Terminologia de parentesco bakairi (Ego feminino)
Termo Denotata Tradução
português
G+2
tako FF, MF,FFB,
MFB
avô
ningo MM, FM,
MMZ, MMB
avó
G+1
Pabai
nhunwyn
F pai
xogo FB tio paterno
Mamãe
ise
M mãe
seko MZ tia materna
kugu MB, MZS tio materno
iupy FZ, FBD tia paterna
G0
kono
paigo
FS irmão
iary eZ, FBDe,
MZDe
irmã mais
velha
iwidy
yZ, FBDy,
MZDy
irmã mais
nova
yseamby
MBS, FZS primo
yerudu FZD, MBD prima
G-1
ymery S, ZS filho
ymery D, ZD filha
waduim BS sobrinho
wase BD sobrinha
G-2
ywery SS, SD, DS,
DD
Neto (a)
48
Tabela 3: ego feminino
homem
mulher
X / / / / X
tako ningo
kugu Pabai
nhunwyn
Mamãe
ise
iupy
yerudo
Kono
paigo
ia
iwidy
yseamby
waduim imery imery wase
Ywery
Tabela 4: ego masculino
homem
mulher
X / / / / X
tako ningo
kugu pabai
nhunwyn
mamãe
ise
iupy
pama Kono
paigo
kou yweampy
tikau imery imery wase
ywery
Cabe aqui, a partir da aparição dos termos emprestados ao português, ‘pabai’ e
‘mamãe’
37
, recentemente anexados à terminologia de parentesco bakairi, uma breve
exposição de dúvidas levantadas por este fato. Será que estamos diante de uma evidência de
que o impacto da mudança das casas coletivas para as unidades domiciliares ocupadas por
apenas uma família, orquestrada pelo SPI que nos parecia aparentemente atenuada pelos
caminhos que interligam as famílias possa estar relacionada a uma transformação maior
do que se imaginava? Será que ela indica um fortalecimento da idéia de família nuclear,
expresso na distinção recente de que xogo passa a se referir apenas a tio paterno (FB) e seko
apenas a ‘tia materna (MZ), havendo uma clara separação em relação a pabai/nhunwyn e a
mamãe/ise? Por que não ocorreu mudança também no sentido contrário da relação, ou seja,
nos termos relativos a S/D e FBD/FBS/MZD/MZS, que ainda continuam a ser tratados,
37
Pessoas hoje com 50 anos lembram-se de já terem aprendido a utilização destes termos, enquanto a geração
de seus pais chamava o “pai” e a “mãe” respectivamente de xogo e seko.
49
todos eles, pelo termo ymery? Será que a apropriação vem apenas reforçar o caráter afetivo
da relação entre pais (F, M) e filhos (S,D), que parece permear os referidos termos em
português? Deixo estas questões em aberto, explicitadas apenas como forma de dar mais
uma contribuição para o complexo quadro de parentesco bakairi.
Passo agora a abordar a terminologia relativa às relações de afinidade a partir de
uma correlação com os termos de parentesco mostrados nas tabelas acima, marcando não
apenas as relações reais como também as potenciais, ou seja, depois do casamento uma
transformação do modo de tratamento entre as pessoas e através dela laços baseados na
consangüinidade podem modificar-se e passar a enfatizar a afinidade. É o caso, por
exemplo, da prima cruzada classificatória (yerudo) que se torna esposa (iwydy), ou do tio
(kugu) que se torna sogro
38
Vejamos o quadro a seguir:
Solteiro
(quem antes era...)
Casado
(se transforma em...)
kugu
(tio materno classificatório /sogro potencial)
ymeidamo
(avô de meu filho)
yupy
(tia paterna classificatória/ sogra potencial)
ymeinhundo
(avó de meu filho)
yseamby (ego feminino)/
pama (ego masc.)
(primo cruzado classificatório)
iso iukono (p/ irmãos mais novo)
iso iwaigoro ( p/ irmaos mais velhos)
pama (ego masc.)
yerudu (ego feminino)
(prima cruzada classificatória)
maimo / wase ise (mãe da sobrinha)
waduin ise (mãe do sobrinho)
wase (sobrinha; nora em potencial) ymeri iwidy (esposa de meu filho)/ yweise
tikau (ego masculino)
waduim (ego feminino)
(sobrinho; genro em potencial)
ymeri iso (marido de minha filha)/
yweiwan
Após o casamento, os afins têm que seguir certas regras de conduta, comportamento
chamado tywypaselâ, palavra que é usada em geral para referir-se à ‘vergonha’, mas é
traduzida em português, neste caso específico, como ‘respeito’
39
. Ela remete a uma
38
Apesar da regra ideal expressa, tanto pelos Bakairi quanto pelos xinguanos em geral (Souza, 1995), ser a do
casamento entre primos cruzados, como já observei, na maioria dos casos ela não se configura como
realidade.
39
Esta atitude de respeito/vergonha é comum na maioria dos povos xinguanos. Thomas Gregor diz, para os
Mehinaku, que se trata de uma relação recíproca, na qual o primeiro (respeito) é uma prerrogativa tanto dos
que “dão” (em casamento) os filhos quanto daqueles que “recebem” (um marido ou uma esposa); já a segunda
50
formalização na interação entre os afins, que vai além dos limites do significado do seu uso
na língua portuguesa, relacionado à consideração, à atenção e à não-ofensa ou à agressão. É
tido como ‘respeito’, por exemplo, não pronunciar o nome do seu afim, por isso, a
importância dos nomes registrados nos quadros acima, que são formados geralmente a
partir de termos que expressam a relação do cônjuge com seus parentes consangüíneos.
Assim, ymeri iwidy identifica uma relação entre duas pessoas mediada por uma terceira, ou
seja, ‘esposa de meu filho’, bem como ymeinhundo, que quer dizer ‘avô de meu filho’. E
mais: os afins se tratam por meio de pronomes pessoais no plural usam akaemo (eles ou
elas), asaemo (aqueles ou aquelas), âmaemo (vocês) ao invés de mâkâ (ele ou ela) e âmâ
(você)– além do sufixo pluralizador ‘-mo’, fato este que indica tanto uma forma de
distanciamento como uma relação que passa pela interlocução (em sentido amplo) entre
dois grupos de pessoas (famílias).
Além disso, não pode existir comportamento jocoso entre estas pessoas, as
chamadas ‘brincadeiras’, seja através de atitudes ou de palavras, como pequenas
implicâncias ou ‘piadinhas’. Deve-se ainda evitar o contato físico tanto entre as pessoas
quanto em relação a alguns objetos de uso pessoal, como cama ou rede. Outra atitude tida
como ‘respeito’ refere-se a aceitar, sempre que possível, o pedido de um(a) sogro(a) ou
cunhada(o), sendo muito “feio”
40
negar um pedido dessa natureza. Apenas os cunhados do
sexo oposto estão livres destas imposições, como também acontece entre os demais povos
alto-xinguanos. Vejamos o que diz Souza a este respeito:
A exclusão dos cunhados de sexo oposto – uma relação de conjugalidade potencial,
institucionalizada pelas práticas do levirato e sororato do complexo evitativo
parece ser generalizada, reproduzindo no campo da afinidade real aquela outra
exclusão que separa os primos cruzados dos demais parentes como único
relacionamento que não se define em termos do “respeito” devido a todos os
cognatos (Souza, 1995:150).
Dizem os Bakairi que antigamente as regras de ‘respeito’ eram muito mais
rigorosas, havendo uma evitação completa entre os afins, o que incluía desviar-se da
(“vergonha”), refere-se principalmente aos que “recebem” por estarem em uma posição de “dívida” em
relação aos seus afins (Gregor, 1977:282-283).
40
Termo usado pelos Bakairi na língua portuguesa com o sentido de ruim/feio (inakay), em oposição a
bom/belo (iwâkuro); muito falado para e pelas crianças. É interessante ressaltar também que é comum que
muitos xingamentos sejam ditos em português (entre alguns em língua bakairi), fato que pode ser observado,
por exemplo, ao se assistir a um jogo de futebol.
51
presença um do outro e também o se dirigir mutuamente a palavra. As punições à
desobediência das regras citadas são várias, dependendo do tipo de atitude, indo da ameaça
de um ataque por gafanhotos até a atração de ‘mau agouro’, podendo algo de ruim vir a
acontecer a um dos envolvidos.
Nesse sentido, é interessante perceber que outra fonte de mau agouro’ para os
Bakairi é ter contato ou falar o nome de pessoas que já morreram. Tal coincidência pode ser
justificada pelo fato de os mortos (igueypy, os quais existem na forma de iamyra
41
) e os
afins serem considerados ‘outros’ perigosos, podendo ser entendidos como inimigos nos
termos de Viveiros de Castro: “Os mortos, como os inimigos, são afins potenciais, e por
isso ambos são indispensáveis. Não é por acaso, portanto, que se um consangüíneo morto é
uma espécie de afim ou de inimigo, um inimigo morto seuma espécie de afim ou de
consangüíneo.” (2002:170). Mortos e afins carregam uma ambigüidade: embora
indispensáveis para a reprodução da sociedade, são sempre potenciais fonte de problemas.
Neste sentido, veremos no capítulo V, na segunda parte deste trabalho, que tanto as
relações de afinidade como aquela estabelecida entre kurâ (gente) e iamyra (mortos), se não
forem devidamente respeitadas, podem gerar doenças.
Sobre os afins serem fonte potencial de perigo posso afirmar, segundo as minhas
observações e de acordo com a dinâmica das relações familiares bakairi que, apesar de
serem aceitos em uma família após o casamento, eles continuam a ser vistos como
pertencentes ao seu grupo de consangüíneos: por eles mesmos, pela família de origem e
também pelo atual grupo de convivência. O afim está, portanto, em uma posição ambígua.
Mora no novo agrupamento, mantendo laços de convivência configurando-se como um
aliado mas ainda é, por outro lado, um membro de seu grupo familiar de origem, sendo
assim potencialmente um contrário (ou se preferirmos, em situações extremas, inimigo).
Isso faz com que se tenha com relação a ele uma posição de constante desconfiança,
41
Os Bakairi traduzem iamyra por ‘espírito’. Veremos no capitulo V que os iamyra habitam simultâneamente
o kau (céu) e também as águas profundas dos rios, e deles depende a ordem do cosmos, a saúde e os recursos
necessários à reprodução pessoal e familiar. Os Bakairi ‘interagem’ com os iamyra através da realização de
rituais coletivos (kado).
52
atribuindo qualquer falha à sua origem familiar, mas fazendo-se um esforço para suportá-lo
(nhemaenly); afinal, trata-se do pai ou da mãe de netos ou sobrinhos.
42
Mesmo quando boa convivência, o afim nunca deixa de ser tratado como um
‘outro’. Ouvi vários casos que ilustram esta situação, como nos relatos de pessoas que
“sofreram muito nas mãos” de sogra(o)s ou cunhada(o)s, ficando sem comida, sendo
vítimas de fofocas que tinham o objetivo de difamá-las frente ao cônjuge (e, quem sabe, de
acabar com o casamento). Ouvi também depoimentos de sogra(o)s sobre o fato de terem
que agüentar” (nhemaenly) aquele ‘de fora’ (kuohonron) dentro de casa, muitas vezes um
representante de uma família com quem tinham um histórico de conflitos. Uma mulher
disse ter sofrido muito, principalmente na época do nascimento de seu primeiro filho, pois
morava com a cunhada (seus sogros haviam falecido) e esta não se prestava a fazer as
tarefas da casa para que ela pudesse ficar apenas tomando conta da criança, como
idealmente deve acontecer neste período. É comum também haver acusação de maus tratos
por parte da família original da pessoa contra aquela com quem seu(sua) filho(a) está
vivendo, dizendo que seu parente está muito magro, não está se alimentando direito, não
está sendo bem cuidado etc. Enfim, tudo isso ocorre devido à ambigüidade da relação de
afinidade, pois se ela é necessária à reprodução da família, também representa uma abertura
a outras famílias, o que, se não for bem administrado, pode gerar conflitos. Nas palavras de
Thomas Gregor falando dos Mehinaku:
At best, however, affinal kinship is regarded as burdensome, and it is not surprising
that the institution is marked by covert antagonism which finds expression in
invidious gossip and surreptitious insults. One son-in-law accuses his wife’s father
of witchcraft and theft. Behind the old man’s back, he contemptuously violates the
naming taboo and derogatorily refers to him as “grandfather”. For his part, the
father-in-law takes every opportunity to denigrate his daughter’s husband.
Nevertheless, the code of shame and respect associated with in-law relationships
makes it unlikely that this tension will erupt into open hostility. (Thomas Gregor,
1977: 285-286).
Em suma, podemos notar que entre os Bakairi, o contato com o ‘outro’, o diferente,
o ‘de fora’ é vivido de forma tensa, sendo fonte de possíveis problemas. Isso havia sido
42
Relembremos que os nomes para sogro e sogra, por exemplo, correspondem em português a “avô de meu
filho” (ymeindamu) e “avó de meu filho” (ymeinhundu), respectivamente. E genro ou nora: “marido de ‘x’”
(‘x’ uso) ou “esposa de ‘x’ ” (‘x’ iwydy).
53
notado por Karl von den Steinen sobre a relação do uso dos termos “kurâ”
43
e “kurâpa”:
Em bakairi, kurá significa “nós”, “nós todos”, “nosso” e, ao mesmo tempo, “bom” (“nossa
gente”), enquanto kurápa quer dizer “não nós”, “não nosso” como também “ruim, sovina,
prejudicial à saúde”. Tudo o que é mau provém do indivíduo estranho, inclusive as doenças
e a morte, que são enviadas por feiticeiros de fora” (Steinen, 1940: 428).
44
No caso dos mortos (viventes de um outro mundo), a ameaça vem como doença; no
caso dos afins, como potencialidade de conflitos entre famílias, os quais também podem
gerar doença, seja através de feitiçaria, seja através da inveja (asewanily).
45
ainda um
terceiro universo externo potencialmente perigoso, relativo aos chamados karaiwa, do qual,
como dos outros, não se pode ignorar a presença. Esta relação será abordada no decorrer do
trabalho, quando deverá ser esmiuçada por ser de fundamental importância para o
entendimento do lugar da escola entre os Bakairi. No que diz respeito ao parentesco,
entretanto, podemos introduzir dados que demonstram a interligação destes dois
‘mundos’(dos Bakairi e dos karaiwa) como nos casos do compadrio e da instituição de
“tomar a bênção” dos parentes mais velhos.
2. Algumas outras instituições relativas ao parentesco: nomes, compadrio, “tomar a
bênção”
Nomes
É característica dos ypemugo iwaguepaunmondo serem herdeiros de um mesmo
estoque de nomes. Uma pessoa tem por volta de quatro nomes bakairi, cada um relacionado
a um antepassado dos seus avós, que deve estar morto vários anos (devido ao tabu de
pronunciar-se o nome do morto). Os nomes dados por parte do pai poderão ser usados
(pronunciados) pelo pai, o mesmo acontecendo com a mãe, fato que, como diz Ellen
43
Kurâ: palavra com a qual os Bakairi se autodenominam, também traduzida para o português como “gente”,
ainda correspondendo à primeira pessoa do plural inclusiva, nós. Parece-me, portanto, que “kurâ” é um termo
utilizado para a diferenciação e a separação de grupos: “nós” em relação a “eles”; “gente” em oposição a
animais, espíritos etc.; “Bakairi” em oposição a outros povos.
44
Hoje em dia não se usa mais a palavra “kurâpa”, entretanto, é realmente provável que tenha existido, pois o
sufixo “pa”, denotando negação, é muito comum na formação de outras palavras com sentido negativo, como
em koendâ/koendâpa (bom/não bom).
45
Sobre tais conflitos, volto a falar no capítulo III, adicionando mais detalhes.
54
Basso (1973) a respeito dos Kalapalo, pode ser interpretado como um correlato da
impossibilidade de se chamar o nome dos afins (no caso, sogro ou sogra, mesmo que
mortos).
O fato de dar um nome a uma criança é muito valorizado, pois mostra o seu lugar na
sociedade (leia-se em sua rede de parentesco), passando ela realmente a existir. Entretanto,
ao passo que a sociedade cresce numericamente e o estoque de nomes permanece o mesmo,
um aumento das disputas (âtuagadyly) por nomes e até acusação de roubo, tudo isso
fazendo parte do já citado movimento das disputas e dos conflitos
46
entre as diversas
famílias. Isso geralmente ocorre entre ‘parentes não muito perto’, pois conheci casos de
pessoas que herdaram o mesmo nome e, por serem ypemugo iwaguepaunmondo, convivem
sem que haja problema. Esta repetição não representa nenhum laço entre os nomeados
além, naturalmente, de compartilharem a mesma descendência.
Apesar de apresentarem semelhanças com sistemas de nomeação xinguanos, há
algumas importantes diferenças a serem destacadas. Os Bakairi carregam para toda a vida o
mesmo nome recebido na infância, enquanto entre os xinguanos a pessoa é renomeada nas
passagens de uma fase a outra do ciclo de vida, mudança geralmente marcada ritualmente
(ver Basso, 1973 e Gregor, 1977). Uma outra diferença é dada se olharmos para o
'significado' dos nomes. Os nomes Mehinaku muitas vezes referem-se a animais, objetos e
acontecimentos, enquanto entre os Bakairi observamos uma grande maioria de "só nome
mesmo", intraduzíveis, apesar de haver alguns poucos referentes a animais.
Além dos nomes bakairi, todas as pessoas têm aqueles advindos da língua
portuguesa, recebidos porque seus pais ‘ouviram e acharam bonito’ ou quiseram copiar o
nome de alguém que conheceram e que lhes causou boa impressão. Geralmente uma pessoa
é chamada e conhecida de todos por apenas um dos seus nomes (em português ou bakairi
herdados dos pais). ainda muitos apelidos,
47
formados a partir de palavras em português
ou em bakairi, como uma pessoa chamada de ‘Mané’ e outra de conohoro (rato, em
bakairi).
46
Iduekumo é a palavra utilizada para referir-se a este tipo de conflito menos violento, envolvendo famílias,.
Para “conflito de terra”, por exemplo, usa-se âtuebadylymo; para “briga”, utiliza-se âseguebylymo;
para“discussão”, âjihogulymo.
47
Sobre os apelidos é interessante notar o comentário de Thomas Gregor sobre os nomes entre os Mehinaku,
que são dados apenas depois que a criança cresce, sendo ela chamada pelo apelido durante os primeiros meses
de vida (Gregor, 1977). Esta informação me fez lembrar dos apelidos bakairi, muitos dos quais são dados logo
após o nascimento da pessoa, tendo como referência alguma de suas características.
55
É interessante ainda observar que hoje em dia quase todos Bakairi têm carteira de
identidade e carteira de trabalho, nas quais devem constar nome e sobrenome. Assim, o
primeiro sempre corresponde ao seu nome em português, enquanto o outro é ou um de seus
nomes bakairi (no caso das pessoas da primeira geração que fizeram o documento) ou o
nome de seu pai ou avô (estabelecido como nome de família nas gerações seguintes). Como
exemplo temos uma pessoa da primeira geração com registro oficial chamada Jeremias
Poiure (Poiure um de seus nomes bakairi); seus filhos chamam-se Gilvan Poiure, Genivaldo
Poiure e Genilson Poiure (Poiure neste caso se transformou em nome de família ou
sobrenome).
Compadrio
Se considerarmos as categorias relações de ‘paraparentesco’ (Viveiros de Castro,
1995: 14) - amizades formais, parcerias cerimoniais, conexões onomásticas -encontrei
entre os bakairi somente as “parcerias cerimoniais”. O iduno – parceiro cerimonial –
geralmente não é um parente próximo, e tem obrigações apenas nos momentos dos rituais.
Essa relação é herdada pelos homens dos seus antepassados. No caso das mulheres, estas
têm a mesma relação com a esposa do iduno de seu marido (iwidy iduno).
Após o contato com os ‘brancos’ (karaiwa), porém, os Bakairi passaram a ter mais
um caso de ‘paraparentesco’, a saber, as relações de compadrio. Já em 1884, Steinen
registrou que os brasileiros chamavam os índios de compadres. Em uma de suas escalas no
Rio Batovi, ouviu um dos membros da expedição gritar para os indígenas em direção à
mata: “Vamos conversar, compadres somos amigos venham logo, compadres.”
(Steinen, 1942:186). O compadrio surgiu para os Bakairi, portanto, como uma forma de
estabelecer boa relação (“somos amigos”) entre diferentes, não-parentes. Não obtive
informações depois desse episódio e da ‘atração’para o posto do SPI se houve estímulo
da parte do órgão governamental para estabelecer esse tipo de relação, ou se foi algo
adotado pelos Bakari pela afinidade com a sua concepção de organização social e
parentesco. O que posso afirmar é que o compadrio atualmente é uma instituição
importante e generalizada.
56
A relação de compadrio inicia-se, após o nascimento da criança (pode demorar
alguns meses), com o convite dos pais ao padrinho (ywadinhury) e à madrinha
(ywadinhary
48
) e sua aceitação. Desde então, passam a se considerar compadres, mas
ficam na expectativa da vinda do padre à comunidade para a realização do batizado
coletivo. Acontece, então, uma cerimônia católica da qual participam, além do afilhado
(yafilhadury), os padrinhos, os pais e alguns parentes. No caso de padrinhos karaiwa ou
ausentes no dia da cerimônia, estes são substituídos por outra pessoa na hora de segurar o
afilhado na missa, mas aqueles continuam a ser os reais padrinhos da criança.
49
Ao contrário do período inicial do ‘contato’, quando ‘compadre’ se referia a uma
relação entre diferentes, ‘outros’, não-parentes, hoje geralmente esta relação é estabelecida
entre parentes. Todavia, ao se instituir o compadrio, uma transformação da relação no
mesmo sentido da que ocorre depois do casamento as pessoas passam a ter que assumir
uma posição de ‘respeito’ diante dos seus compadres, principalmente no que se refere a
tratar o outro por meio de pronomes pessoais no plural (ver página 50). Há, entretanto,
menos formalidade que entre os afins ‘verdadeiros’. Em relação a isso, pude observar tanto
um ambiente descontraído entre compadres (em oposição à tensão que marca a relação de
afinidade), como às vezes o uso do tratamento ‘compadre ‘x’’, ‘comadre ‘y’’, pronunciando
o nome da pessoa.
Verifica-se, aparentemente, um recurso à afinidade para reforçar a consangüinidade.
E quando isso ocorre, a primeira prevalece sobre a segunda, sendo comum, por exemplo,
um irmão (Z, B, FBS, FBD, MZS, MZD) batizar o filho de outro e ambos passarem a se
chamar de compadre ao invés de irmão
50
. Ocorre também entre primos (FZS, FZD, MBD,
MBS), mostrando uma ênfase na mesma geração (0) na escolha do compadre/comadre. Não
48
Estas palavras (ywadinhury e ywadinhary) são o resultado de uma “bakairização” dos respectivos termos
em português, sendo submetidas às regras da língua bakairi de indicação de posse. O prefixo “y-” identifica o
'possuidor' de primeira pessoa (meu padrinho), o radical é uma adaptação do português à fonologia da língua
bakairi (o 'm' de madrinha é substituído por um 'w') e o sufixo -ry indica a existência de uma relação de
'dependência/ posse. O mesmo processo pode ser observado na palavra “afilhado”: yafilhadury.
49
Nos últimos anos, houve um aceleramento da conversão de alguns Bakairi a religiões evangélicas. Não tive,
entretanto, a oportunidade de observar o reflexo deste fato nos batismos. Não sei, por exemplo, se parentes
“crentes” são chamados a batizar crianças na missa católica, ou se se limitam ao batismo realizado pelos
pastores, criando assim dois grupos fechados de compadres. Este tema mereceria uma atenção especial para
ser melhor compreendido.
50
Geralmente convida-se um casal para apadrinhar a criança; se o irmão é chamado para padrinho, a cunhada
será a madrinha. Entretanto, ocorre de haver padrinho ou madrinha solteiros e, quando estes casam, a criança
passa a ter mais um padrinho (ou madrinha).
57
soube de nenhum padrinho ou madrinha pertencente às gerações +2, +1, -1 em relação aos
pais (sodomondo).
O compadrio entre ‘diferentes’, a saber, entre bakairi e karaiwa, também é uma
modalidade comum, principalmente quando o casal tem muitos filhos e, assim, muitos
compadres bakairi.
51
grande número de pessoas com padrinhos e madrinhas que vivem
na cidade. Esta é uma forma de dar um caráter de parentesco a um laço de amizade,
estreitando a relação com o compadre ou a comadre karaiwa através dessa espécie de
afinidade.
52
Espera-se dessas pessoas atenção e apoio quando se está na cidade ou quando
delas se necessita. São diversos exemplos deste caso, mas me limitarei a um relato à guisa
de ilustração. Quando a filha ainda não batizada de um homem adoeceu gravemente, seu
pai recorreu a um karaiwa fazendeiro da região para ajudá-lo. Com o socorro vindo dessa
pessoa e tendo sido a criança encaminhada a um hospital da cidade e comprados os seus
remédios, ela ficou curada. Seu pai, então, por gratidão, ofereceu-a ao fazendeiro para que
ele a batizasse.
Com padrinhos karaiwa ou bakairi, em ambos os casos, trata-se de estreitar laços de
aliança para além dos de parentesco, aos quais poderão recorrer no caso de necessitarem de
apoio político, econômico ou pessoal. Peter Gow (1991) observou entre os Piro também a
incorporação do compadrio, revelando que esta instituição, apesar de ser um laço entre uma
criança (afilhado) e dois adultos (padrinho e madrinha), na verdade refere-se ao
estabelecimento da relação entre dois casais de adultos, fato que vale também para os
Bakairi. Ele ainda assinala que, para os Piro, o compadrio é estabelecido principalmente
entre parentes distantes ou não-parentes, com o objetivo de torná-los como parentes
verdadeiros. Entretanto, segundo ele, esta instituição importa mais aos homens que as
mulheres, as quais estariam mais envolvidas com os laços de parentesco propriamente
ditos. No caso dos Bakairi, inversamente, não os compadres são geralmente parentes
próximos, como também a instituição é relevante , sem distinção, tanto para os homens
quanto para as mulheres.
51
Eu mesma, durante a minha pesquisa, fui convidada a batizar uma criança.
52
Neste caso, o tratamento verbal de “respeito” entre os Bakairi, caracterizado pelo uso do plural, traduz-se
para o português no uso dos termos “senhor” e “senhora”.
58
“Tomar a bênção”
Outro empréstimo dos karaiwa, “tomar a bênção”, é um ritual exógeno que acabou
sendo incorporado pelos Bakairi. Ele consiste, ao se encontrar um parente mais velho
(geração +1 e +2), em estender-lhe a mão pedindo a bênção (“bença” é geralmente o que se
ouve), ao que o outro responde: “Deus te abençoe”. Ensina-se desde cedo às crianças (antes
mesmo de falarem) a “tomar a bênção” de seus avós, tios, padrinhos e madrinhas,
demonstrando reconhecimento e respeito. É vista como ‘mal educada’ a criança que chega
em algum lugar e não “pede a bênção”, sendo logo lembrada pela mãe ou pelo pai. Mas não
somente as crianças pedem a bênção, também os jovens e alguns adultos (principalmente
aqueles ainda sem filhos). Na verdade, esta instituição não acrescenta nenhuma novidade às
posições de parentesco, mas as reforça ao reafirmar em todo encontro ‘quem são seus
parentes’, ‘a quem você deve respeitar como parente’, além da posição hierárquica relativa
de cada um (quem ‘pede’ e quem ‘dá’ a bênção).
*
Em suma, o parentesco bakairi pode ser caracterizado pela sua complexidade de
regras (que estabelecem relações e comportamentos) e pela sua flexibilidade, havendo uma
grande margem para se ‘jogar’ e estabelecer alianças e identidades inter e intrafamiliares. A
bilateralidade da descendência, juntamente com os interesses guiados pela conjuntura, pelas
relações entre pessoas e grupos, faz com que as unidades se formem (e se desfaçam)
fundamentalmente através dos casamentos. Assim, é preenchido o campo de possibilidades
entre os ypemugo iwaguepaunmondo e ypemugo iwaguenomondo, de acordo com a
distância que se tem (ou que se quer ter) em relação a alguém. Conforme disse Thomas
Gregor a respeito dos Mehinaku, primos cruzados podem ser ‘muito’ primos cruzados ou
‘um pouco’ primos cruzados (Gregor, 1977:297), ou seja, o parentesco bakairi é pensado
muito mais em termos de gradação do que de um padrão fixo de normas, o que faz com que
haja apenas duas possíveis expressões para se identificarem os parentes em geral: perto ou
longe.
59
Capítulo II
Unidades sociais: casas, caminhos e aldeias
60
1. Casas e caminhos
Conforme introduzi no início desta primeira parte, os Bakairi atuais moram (e se
dividem) em casas que comportam geralmente apenas uma família nuclear. Na época
anterior ao contato sistemático com os karaiwa, como registraram Karl Von den Steinen
(1942) e Max Schmidt (1942), as famílias extensas viviam em casas de grandes proporções
que abrigavam em geral um casal, seus filhos, filhas, genros e netos.
Sobre as habitações existentes na aldeia do Rio Novo
53
(onde conviviam com as
“construções modernas”) Steinen (1942) escreveu:
[...] redondos e em feitio de cortiço. O maior tinha em média 19 passos, elevando-
se pelo lado externo, e estava coberto por palha “acurí”, enquanto a estrutura
interna se compunha de estacas de 1,33m de altura, sobre as quais se apoiava esse
cortiço, que possuía, aliás, uma única cobertura feita de uma certa quantidade de
arcos de bambu, horizontalmente dispostos. Em cima deixaram um orifício para o
ar e algumas estacas, vindas de dentro, em forma de cruz, voltavam-se para fora. A
entrada, constituída de um buraco de 1,50m de altura [...] (Steinen, 1942:125).
Max Schmidt (1942), por sua vez, registrou a composição do parentesco nas quatro
casas encontradas na segunda aldeia bakairi do Rio Kuliseu, legando-nos um bom retrato
das relações entre seus moradores. A mais habitada continha 15 pessoas e aquela com
quantidade menor de gente, nove. Na primeira casa havia um homem (cacique), sua esposa
e suas duas filhas solteiras. Além deles, duas filhas da irmã deste homem, com seus
respectivos maridos e filhos. Também compartiam a habitação três rapazes e uma moça, em
relação aos quais ele não identificou o parentesco com os demais (ver gráfico de parentesco
‘Schmidt-casa 1’). Na segunda casa, ele encontrou três irmãos (um homem casado, um
homem solteiro e uma mulher) e o seu pai. Além deles, havia ainda um filho e três filhas da
mulher, uma delas com o marido. E ainda uma filha da irmã da esposa do homem casado.
Registrou também a presença de um homem e seu filho, sem definir, entretanto, seu
parentesco com o restante do grupo. A terceira casa era composta de quatro irmãos (dois
homens e duas mulheres), a esposa de um deles, sua filha e o genro. Finalmente, na última
casa descrita, havia um irmão e uma irmã, os filhos desta (duas mulheres e um homem), os
53
Onde viviam os antepassados dos atuais santaneiros.
61
maridos das filhas e a filha de um dos casais (ver gráfico de parentesco ‘Schmidt-casa 4’)
(Schmitd, 1942).
Schmidt – casa 1
Schmitd – casa 4
Schmidt afirmou, ao comentar os dados coletados, que haveria uma força do
“princípio da comunidade matriarcal”, querendo chamar a atenção para o fato de ter
encontrado, em sua maioria, maridos morando na casa da família de suas esposas. Ele
percebeu, entretanto, uma exceção no caso dos “chefes”, os quais se mantinham em seu
grupo familiar, vindo a esposa se juntar a cada um deles (Schmidt, 1942). Karl von den
62
Steinen também faz referência à virilocalidade das famílias dos líderes (kywymâry
54
), fato
comum nos grupos do Alto Xingu (Basso, 1973) e em outras áreas da Amazônia, como nas
Guianas (Rivière,1984). Este fato, antes de corresponder a uma norma prescritiva do
parentesco bakairi, seria conseqüência da correlação que há entre o prestígio de uma pessoa
(ou família) e o peso que isso confere à escolha do local de moradia de um casal, ou seja,
em todos os casamentos, como veremos adiante, é travada uma espécie de disputa
(âtuagadyly) entre as famílias dos noivos, ambas querendo ter seus filhos junto a si, tensão
‘resolvida’ de acordo com variáveis, como a vontade de permanecer perto das facilidades
do posto indígena (como a escola de Ensino dio, por exemplo), a situação econômica
dos pais (funcionários ou não), questões pessoais e o prestígio relativo das famílias.
Decorre disso que há uma maior probabilidade de o chefe manter junto a si os seus parentes
próximos, bem como os seus afins, visto ser sempre ele uma pessoa de prestígio.
Após a efetivação do posto indígena, os Bakairi foram forçados a se dividir em
pequenas casas habitadas por apenas uma família nuclear. Minha hipótese é a de que hoje,
apesar das mudanças, os Bakairi forjaram novos códigos espaciais para manter a
proximidade entre os parentes e, ao mesmo tempo, os limites com as demais unidades.
Márnio Teixeira Pinto observou o mesmo fenômeno entre os Arara, a respeito dos quais
ressaltou “a transformação desses grupos locais em “agregados residenciais” internos à
aldeia, mas com estatuto cultural e valor sociológico idênticos aos dos grupos locais do
passado” (Pinto, 2000: 408).
De fato, as ‘casas comunais’ não resistiram ao plano de civilização rondoniano que
ditou o modelo atual de casa bakairi (âtâ), incentivado por um tipo de ideal de família,
considerado civilizado, de modo a corrigir o primitivismo que o órgão tutor via na
convivência de várias famílias em uma mesma habitação.
55
Em meio à documentação do
Posto Indígena Simões Lopes, encontrei um oficio do encarregado Odilon de Souza
Bandeira, de 1943, que nos informa sobre o processo de imposição de um mesmo padrão de
moradia:
54
Daqui em diante, esta palavra aparecerá tanto em sua forma possuída kywymâry (“nosso líder”, ou “nosso
cacique”) ou simplesmente como pyma (“líder”, “cacique”).
55
Sobre “civilização”, ver capítulos VI e VII.
63
As casas dos índios Apolinário Tagomara e Militão Egufo estão cobertas. A do
primeiro de sapé e a do segundo de palha de buriti. Ambos estão mais da metade
barroteadas. A do índio Antônio Brasil está armada, encaibrada e uma boa parte
barroteada. Para receber reboco e caiação estão preparadas seis (6) casas inclusive
a do índio Manoel Amarante Tupiare, que é coberta de telhas, sendo estas uma
dádiva deste posto (Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc. 22, 1943).
Através deste documento redigido por volta de um ano depois da fundação do
Posto Indígena, em 1942 percebemos como era importante para o SPI a construção das
“casas dos índios”, visto ser o encarregado tão solícito em prestar conta aos seus superiores
dessa atividade. O modelo das casas, ao privilegiar a arquitetura comum às moradias da
região, tinha como característica a presença de paredes divisórias no interior, introduzindo
os quartos, espaço a ser ocupado somente pelo casal e por seus filhos. Este tipo de
habitação, portanto, difere muito daquela descrita por Steinen (1942) – grande e sem
divisórias, permitindo a presença de mais de uma família nuclear.
Apesar da mudança que representou a introdução do novo modelo habitacional, não
se pode supor que outrora não houvesse limites entre as famílias nucleares dentro da casa,
como atesta a observação de Max Schmidt sobre a divisão do espaço interno das casas entre
as famílias nucleares (Schmidt, 1942);
56
nem que os fortes laços entre as parentelas tenham
sido rompidos, como já foi dito acima, pois como irei demonstrar, continuam presentes nos
diversos caminhos que interligam as casas dos parentes mais próximos.
Iniciarei a abordagem do tema através de uma exposição do espaço da casa,
domínio da família elementar, para que depois possamos passar à compreensão dos
caminhos construídos entre elas, conformando o que corresponderia hoje às famílias
extensas de antigamente.
56
Isso corresponde ao que foi descrito para outros povos “xinguanos” (Basso, 1973; Gregor, 1977), os quais
não sofreram a imposição do novo modelo de moradia. Gregor diz a respeito dos Mehinaku que “Each family
suspends its hammocks in its own part of the house, stores its property on its own shelves, and utilizes a
separate hearth, set of pots, and water supply.”, chamando este espaço de “apartamento familiar” (Gregor,
1977:269).
64
Âtâ – casa
A casa (âtâ) é geralmente a moradia de uma família elementar constituída por um
casal e seus filhos.
57
Quando estes últimos se casam, formando suas próprias famílias
elementares, o grupo inicial se desdobra em uma família extensa, usualmente
compartilhando a mesma habitação nos primeiros anos de casamento, até que nasça um
filho, depois disso construindo-se uma outra casa para que a nova família passe a habitar.
Como vimos, em relação à citação de Ellen Basso na página 40 e também através da
relação estabelecida entre os Bakairi antes e depois da ‘atração’ do SPI, a existência de
famílias nucleares bem demarcadas inclusive pela ocupação de habitações diferentes
pode ser considerada uma novidade no que diz respeito aos povos indígenas alto-
xinguanos, característica dos ‘tempos civilizados’ iniciados após a fundação do Posto
Indígena Bakairi.
O espaço doméstico encerra-se na cerca que o separa da “rua”
58
ou de outra casa
vizinha. Dentro deste limite é permitida a entrada dos ypemugo iwaguepaunmondo,
59
sendo que as outras pessoas devem se anunciar e cumprimentar alguém da casa; por sua
vez, esta última deve, segundo a etiqueta bakairi, como demonstração amistosa, mandar
entrar e sentar e, se quiser, como forma de demonstração de mais apreço, oferecer café.
Assim, para testar o desenvolvimento do meu aprendizado na língua bakairi, algumas
pessoas perguntavam se eu já sabia ‘receber em bakairi’, demonstrando a importância que o
gênero verbal das saudações tem entre eles.
60
O modo de receber alguém e as fórmulas
verbais que o marcam dizem muito sobre que espécie de relação se tem ou se quer ter com
57
Entretanto, encontramos diversas formações a partir deste núcleo, como a presença da mãe ou do pai de um
dos cônjuges, bem como a família de um(a) filho(a) recém-casado(a).
58
O SPI construiu as casas dos Bakairi em seqüência, de forma a constituir uma ‘rua’. Depois, com a
construção das novas casas, os Bakairi continuaram mantendo esse modelo de distribuição espacial das
habitações.
59
Raramente notei a presença de não-parentes ou ypemugo iwaguenomondo (parentes-longe) nas casas onde
me hospedei.
60
Primeiro saúda-se o visitante com uma das seguintes formas verbais: âdara?; âdara ama?; maetae?;
madakobâdyly? (respectivamente: Como está?; Como está você?; Você veio? – para pessoas de outras
aldeias; Você está passeando?). Ao que o outro responde: âdapa; koenda; en-hen (estou bem; tudo bem; sim).
Então, convida-se para entrar e sentar: igawanka, ikaga (entra, senta). No caso de ser uma pessoa realmente
bem-vinda, oferece-se café (café enise âmâ), e então se inicia a conversa. Thomas Gregor aborda também
as saudações como um gênero verbal, formuláico, de interação importante entre os Mehinaku do Alto Xingu,
classificando-as em dois subgêneros: informal e formal. Aquelas por mim referidas se enquadrariam no
subgênero formal (Gregor, 1977:178).
65
alguém. Lembro-me que certa vez estava aprendendo a tecer rede na casa de uma pessoa e
sempre que chegava para continuar o trabalho era recebida com as costumeiras
saudações. Passei algum tempo sem ir o e soube que a pessoa estava ‘brava’ (tewiâsein)
devido ao meu sumiço. Quando voltei, senti grande diferença ao ser recebida sem o
‘ritual verbal’ ao qual estava acostumada. Entendi então, e definitivamente, o significado
real, pragmático, de palavras aparentemente tão simples e comuns.
Ao examinar essas cerimônias de recepção, podemos perceber que os limites da
casa são ao mesmo tempo físicos (porta, cerca, paredes) e sociais, designando quem pode
entrar, quem não pode, quem é bem-vindo e quem é apenas suportado, quem pode
freqüentar o seu interior e quem deve se limitar à área externa ou à porta.
61
Ellen Basso
(1973) observou os mesmos comportamentos entre os Kalapalo; ela relata que apenas
três possibilidades de se entrar numa casa: por um bom motivo”, na companhia de algum
morador ou sendo parente. Isto vale também para os Bakairi.
Entretanto, importantes diferenças entre a casa kalapalo e a casa bakairi atual,
além daquelas notadas anteriormente na página 40. Estou me referindo à existência entre
os últimos de divisões internas bem marcadas (por paredes) entre os ambientes ‘públicos’ e
os ‘privados’ da habitação.
62
Assim, a sala é o lugar público da casa, restrita àqueles que
não são ypemugo iwaguepaunmondo, mas que são benquistos e podem passar da porta de
entrada.
63
Os quartos e a cozinha
64
(esta última é geralmente uma casinha localizada atrás
da casa principal) são lugares que pressupõem uma proximidade parental para que sejam
freqüentados, os primeiros mais que a segunda.
65
Além da parede separando os cômodos,
61
ainda outros códigos que aos poucos aprendi a respeitar: a porta da sala fechada pode significar que as
pessoas não estão em casa ou que não querem receber visitas. Aqueles que não se enquadram entre os
ypemugo iwaguepaunmondo devem entrar na casa apenas pela porta principal, que acesso à sala, ou seja,
somente os parentes-perto podem utilizar as entradas laterais ou dos fundos.
62
Segundo Ellen Basso (1973), uma separação entre as famílias nucleares dentro da casa kalapalo, mas
inexistem cômodos separados como é o caso, hoje, entre os Bakairi.
63
A “sala” corresponderia ao espaço interno em frente à porta de entrada das casas mehinaku; Gregor refere-
se a ele como o lugar onde o visitante se senta e a ele é oferecido algo para comer ou beber (Gregor, 1973: 58).
64
Todos os cômodos sala, cozinha, quarto, banheiro são referidos com palavras na língua portuguesa,
mesmo em meio a um discurso em língua bakairi. Assim, por exemplo, para localizar algo ou alguém, fala-se
quarto oday”, ou seja, dentro do quarto.
65
Interessante confrontar com o que relata César Gordon (2003) para os Xikrin, entre os quais a cozinha faz a
vez da sala bakairi, sendo o lugar público da casa.
66
na porta de entrada dos quartos é colocado um pano, de modo que quem esteja na sala não
possa olhar para dentro do quarto.
66
Na sala não pode faltar onde sentar ou deitar (cadeiras, bancos e redes) e um móvel
que sustente a televisão.
67
Nos quartos, ficam geralmente camas e redes para dormir,
armários e caixas para guardarem roupas e mantimentos. As cozinhas contam com um
fogão a gás (apesar de se utilizar bastante o fogo à lenha para assar peixe, cozinhar feijão e
mesmo para economizar gás), muitas têm freezer, um armário ou estante para guardar
utensílios, como pratos, talheres e panelas, além de uma mesa. O banheiro localiza-se do
lado de fora da casa e pode ser de dois tipos: construído em alvenaria pela Fundação
Nacional de Saúde (FUNASA), como parte do programa de saneamento das aldeias
Pakuera e Aturua (juntamente com Santana), ou improvisado em uma ‘casinha’ de palha
68
.
Na parte dos fundos da casa, aquela à qual se tem acesso pela porta da cozinha,
um terreno (kuoho, fora) onde se situa – quando há – o galinheiro, o chiqueiro, o fogareiro à
lenha e algumas árvores frutíferas (cajueiro, mangueira, limoeiro, mamoeiro, pé-de-
maracujá, bananeira etc.).
69
Desse ‘quintal’ é retirada muitas vezes a comida que será
preparada, ou frutos que serão saboreados a qualquer hora do dia, além de repartidos entre
os parentes. A oposição sala (frente)/cozinha (fundos) nos diz algo sobre a classificação das
pessoas entre os Bakairi. aqueles que são parentes-longe (ypemugo iwaguenomondo
70
)
66
Quando fui construir a minha própria casa fui orientada a fazer uma parede separando a sala da cozinha
“para que as visitas não ficassem observando os mantimentos”, talvez como forma de evitar muitos “pedidos”
de “empréstimo”. Quanto aos quartos, percebia uma preocupação em se fechar as suas janelas sempre que
houvesse grande fluxo de pessoas na casa, como forma de impedir que estas pudessem “ver” (através dos
objetos) a vida privada da família.
67
Poucas casas ainda não têm um aparelho de televisão. Passa-se muito tempo assistindo a programas,
principalmente de auditório, novelas, telejornais e jogos de futebol. Mesmo uma visita, ao entrar, é
incorporada ao ambiente através de alguma referência ao que se está vendo na televisão, iniciando-se muitas
vezes longas conversas sobre o assunto veiculado pelo programa, intercaladas com a atenção ao que se passa
no aparelho. O hábito de assistir à televisão começa a interferir na classificação do tempo, quando os “bailes”,
por exemplo, se iniciam depois da novela, ou quando as pessoas passam a utilizar a programação como
“relógio”: “depois do jornal passo na sua casa”. É comum também ouvir uma criança perguntando: “mamãe,
que programa está passando?”, para saber se já está próximo o início da aula.
68
É interessante notar que mesmo as pessoas que contam com o banheiro da “FUNASA” perto de suas casas
o utilizam para tomar banho e urinar durante o dia, geralmente defecando na “casinha” ou no mato, e
urinando à noite na área externa da casa.
69
Ouvi muitas vezes comentários de que no tempo do SPI, quando muitas dessas árvores foram plantadas,
não faltavam frutas (e outros alimentos). Geralmente, com isso, a pessoa queria comparar aquele período com
os dias de hoje e mostrar a escassez atual de alimentos produzidos no local. Sobre o “desenvolvimento” no
“tempo do SPI”, ver capítulo VI)
70
Também chamados ypemugo apem ou “como um parente”, com o mesmo sentido de kuaiawa (goiaba)
apem, uma fruta que se parece com kuaiawa (mas não é a mesma coisa).
67
ou não-parentes (ypemugo keba), que ficam restritos à parte da frente da casa ou à sala. Por
outro lado, os ypemugo iwaguepaunmondo podem ir até a cozinha e, se for parente-muito-
perto (ypemugo lelâlâ), pode até mesmo adentrar os quartos.
Partindo da observação de alguns atributos relativos à arquitetura das casas (âtâ),
nota-se que a cozinha e seu complemento, o quintal, são os locais voltados para a produção
de alimento, sendo domínios eminentemente femininos. As portas da sala ficam, em geral,
abertas para o centro social da aldeia (tasera) e as da cozinha na direção oposta. Podemos
apontar a correlação existente entre, por um lado, ‘proximidade’ e parentesco/alimento
cotidiano/domínio doméstico/feminino e, por outro, ‘distância’ e parentesco/café (alimento
mais simbólico que nutritivo)/domínio público/masculino.
A presença dos homens nas chamadas cozinhas geralmente se destina ao descanso
diurno, pois este cômodo é muitas vezes o local mais fresco da casa, sendo coberto de palha
de buriti, ao passo que, cada vez mais, as casas propriamente ditas são cobertas de ‘eternit’.
Quando fiz minha pesquisa, podia-se perceber um movimento (desejo ou ação) no sentido
da construção de casas de alvenaria cobertas com ‘eternit’ à moda das casas dos ‘brancos’
da cidade. Este fato adiciona mais um item ao quadro de oposições exposto acima: se o
domínio doméstico (cozinha) pode ser construído com material local (madeira, barro e
palha), a parte da frente da habitação, o que se apresenta socialmente (sala) tem seu modelo
ideal retirado do universo dos ‘brancos’. Assim, poderíamos dizer que, se o material (e
tecnologia) local é identificado ao âmbito doméstico, o ‘do branco’ é relacionado ao âmbito
público. Esta correlação apresenta aspectos que serão desenvolvidos na parte seguinte
deste trabalho, quando formos pensar os domínios da educação ‘tradicional’ bakairi e seu
caráter prioritariamente doméstico em contraste com a educação escolar bakairi relativa ao
espaço público dos rituais, bem como alguns tópicos daí decorrentes, como o lugar do
feminino nos rituais públicos, mais especificamente na escola.
Âwan-caminhos (subfamílias)
Se a casa (âtâ) passou a comportar uma só família nuclear, isso não significou o fim
das relações dentro de uma família extensa ou subfamília (outrora habitantes de uma
mesma moradia). De fato, os Bakairi mantiveram ou criaram os elos de ligação entre as
68
famílias elementares/casas, percebidos graças aos caminhos percorridos cotidianamente
entre as casas .
Proponho demonstrar a continuidade das chamadas famílias extensas através da
observação dos caminhos (âwan), visíveis e invisíveis, que interligam pessoas e
agrupamentos que outrora integravam uma mesma casa. Tais caminhos podem ser
identificados, principalmente, a partir dos movimentos da reciprocidade de alimentos e de
atitudes de atenção/preocupação. Podemos dizer, sem medo de errar, que aqueles que
dividem a comida cotidianamente se consideram parentes-perto e que, portanto, observar a
circulação de alimentos é uma ótima maneira de tornar visíveis os caminhos que interligam
os parentes. Seja na forma de oferecimento como na de empréstimo (algumas vezes pago,
outras não, mas nunca cobrado) se (kâunduly, estou dando) ou se pede (ekadyly)
alimento a quem é parente. De forma contrária, ‘canhar’ (nhynzedyly), ou seja, esconder
algo para evitar reparti-lo, é considerado uma grave ofensa a um parente.
71
Esta relação
entre parentesco e alimentação tornou-se evidente no início de minha pesquisa, quando
em uma provocação relativa ao meu time de futebol (Vasco) uma pessoa disse que logo eu
viraria flamenguista, dando como justificativa o fato de eu estar sendo alimentada por uma
família de torcedores do Flamengo. Depois pude ainda ouvir muitos outros comentários
nesse sentido, principalmente sobre a impossibilidade da realização de certos casamentos
entre Bakairi e karaiwa devido à diferença de hábitos alimentares entre eles.
72
Outro laço que une os ypemugo iwaguepaunmondo que convivem mais
intensamente é a 'preocupação' (adahulily). Assim, tanto percebi várias demonstrações de
'preocupação' com parentes, como presenciei a satisfação por sua dissipação. São
freqüentes as visitas a parentes doentes, muitas vezes acompanhadas, se for o caso, de
ofertas em dinheiro ou de algum alimento. Por outro lado, espantava-me no início da minha
convivência com os Bakairi a indiferença à doença ou aos problemas de um ypemugo keba
ou ypemugo iwaguenomondo (não-parentes ou parentes-longe). Não é comum se fazer uma
visita de apoio ou dar uma ajuda a uma pessoa não aparentada, ou seja, a adahulily é uma
71
Nhynzedyly para os Bakairi é o oposto da generosidade ressaltada por Basso, característica do ifutisu
kalapalo, definido por esta autora da seguinte forma: behavior characterized by a lack of public
aggressiviness and by the practice of generosity (Basso, 1973:12). Sobre o “comportamento ideal” bakairi ver
capítulo IV.
72
Sobre a relação entre compartilhar alimentos e a consubstancialização das pessoas ver Fausto (2002) e
Vilaça (1992).
69
característica das relações entre familiares próximos. Ouvi um comentário que exemplifica
bem o fato em questão, quando chegou a notícia dos aprovados em um vestibular para a
Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT) e eu demonstrava felicidade por
muitos Bakairi terem se classificado: eu também estou muito feliz, mas por meu sobrinho
ter passado, pois ele é meu parente”, disse uma pessoa.
Ellen Basso (1973) e Thomas Gregor (1977) chamam a atenção para uma situação
semelhante, respectivamente entre os Kalapalo e os Mehinaku, enfatizando o
compartilhamento de comida como importante índice de parentesco (bem como sua
produção, assunto a ser abordado sobre os Bakairi um pouco adiante). Há ainda outra
circunstância em que se expressa a solidariedade familiar, desta vez estendida a todos os
ypemugo iwaguepaunmondo, o luto (itynrun).
73
Para tratar dos caminhos (âwan) que constroem (e ao mesmo tempo exprimem) as
relações dentro das subfamílias ou famílias extensas, mostrarei primeiro, a partir de quatro
exemplos, que os parentes que hoje em dia freqüentam sistematicamente uma mesma casa
correspondem, de maneira geral, aos co-residentes de antigamente; a seguir, partirei para a
realização de um exercício no sentido de identificar, através dos caminhos traçados pela
movimentação das pessoas, quais os conjuntos de casas que formariam as subfamílias da
Aldeia Central, para depois destacar os seus princípios constituintes.
Casa 1
Mãe
Marido da mãe (mãe uso
74
)
Irmãos reais e classificatórios
Primos cruzados
Sogro (ymeindamu)
Sogra (ymeinhundu)
Casa 2
Pai (mãe falecida)
Cunhado
Irmãos e irmã
Primos do marido
Sogra (imeinnhundo)
73
Sobre o luto ver página 142.
74
Para a terminologia de parentesco bakairi, ver tabelas nas páginas 46 e 47.
70
Casa 3
Mãe
Sobrinhos (imery; wase) do
homem e da mulher
cunhados
Irmãos
Família do filho casado
Casa 4
Pai
Avó
Irmã
Tia (iupy)
Sogro (imendamo)
Esposa do pai (pabai iwydy)
Primos
Vemos através da análise desses quadros que a casa é freqüentada basicamente por
parentes da mulher. Os familiares do homem restringem-se geralmente a parentes muito
próximos, como seus pais. Se a casa (âtâ), como vimos, é um espaço cuidado e ocupado na
maior parte do tempo pela mulher (em contraposição à maior identificação masculina com
o espaço público), é natural que seja ela quem receba mais visitas dos seus parentes. Mas
podemos dizer também que muitas dessas visitas seriam pessoas que normalmente
habitariam uma mesma casa comunal’ nos tempos anteriores ao ‘contato’ (naquela época
uma mesma casa, ou seja, um núcleo formado em torno dos parentes da mulher/esposa
[iwydy]).
Antes de prosseguir, caberiam ainda aqui alguns comentários, a título de
complemento, sobre o tema do espaço e sua ocupação conforme o gênero. Aos homens
(ugondomondo
75
) é permitido (e, muitas vezes, incentivado) "andar por aí" (adakobâdyly
76
)
e assim encontrar seus familiares onde queiram, em suas casas ou em locais públicos. Em
relação à mulher (pekodo), talvez uma das acusações sociais consideradas mais graves seja
75
-mondo: sufixo que indica coletivo (ver página 77)
76
Adakobâdyly pode significar tanto “passear” quanto “andar”; esta noção carrega, dessa forma, a idéia de
movimentação e de saída da casa.
71
exatamente o fato de "andar por aí". Muitas vezes ouvi das mulheres: “Eu não tenho o
costume de andar por aí”, e dos homens: “Você pode observar, minha mulher e meus filhos
não andam por aí, na rua”, sendo este fato considerado uma qualidade moral da pessoa de
sexo feminino. O ideal é que principalmente as esposas e as filhas solteiras fiquem a maior
parte do tempo nos domínios das casas.
Os caminhos percorridos entre as casas têm ao mesmo tempo características dos
lugares públicos e privados, por isso, irei tratá-los como espaços público-privados
77
São
públicos por se constituírem em um espaço externo à casa, todavia, ainda restrito à sua
parentela, portanto, privado. São caminhos e lugares que, apesar de fora dos limites
residenciais, são freqüentados apenas por um determinado grupo, sendo incomum e motivo
de estranhamento que pessoas de outros espaços os percorram. Foi através de comentários
como “eu não vou para aqueles lados” que comecei a perceber que, na verdade, existiam
muitos espaços (uns mais, outros menos visíveis) dentro de uma mesma aldeia. Havia
pessoas que utilizavam, na maioria das vezes, somente os caminhos que as levavam à casa
de seus familiares, à sua roça (âpaezary), ao rio (paru), geralmente no trecho freqüentado
pelos parentes próximos; dessa maneira, encontravam-se, no cotidiano, com as mesmas
pessoas. Foi somente quando me mudei da casa de uma família para outra
(conseqüentemente de um ‘bairro’
78
para outro) que percebi este fato de forma mais clara,
observando que poderia viver o meu dia-a-dia sem passar pelos espaços que ocupara
anteriormente. Apenas por força da pesquisa que estava realizando tinha que ir “para
aqueles lados”; se não fosse por isso, chegaria a passar dias sem ver os membros das
famílias dos outros ‘bairros’.
Mesmo os novos espaços que estão surgindo com a ‘entrada na modernidade’ são
submetidos a esta lógica. Por exemplo, com o aumento do número de famílias que possuem
77
O que estou chamando de “espaço público-privado” corresponde parcialmente às “ifutisu areas” kalapalo
citadas por Ellen Basso. No caso dos Kalapalo, essas regiões mais reservadas são utilizadas principalmente
por pessoas em reclusão ou quando querem evitar o contato com outros, afastando-se de conflitos ou mesmo
de atividades que não pretendem realizar (Basso, 1973:46). Entre os Bakairi, apesar dos “espaços público-
privados” não serem tão restritos (cruzando muitas vezes locais blicos), uma pessoa ao utilizar
cotidianamente esses caminhos pode evitar encontrar indivíduos indesejados, pois estes geralmente usam
outros “espaços público-privados”.
78
A categoria “bairro” é utilizada pelos Bakairi para falar das subdivisões internas à aldeia Pakuera. Esta
palavra é sempre falada em tom jocoso, pelo fato de estarem fazendo uma analogia, diria irônica, com as
cidades.
72
carros,
79
apenas os parentes próximos dos ‘donos’ (sodo) é que podem ter acesso livre a
esses veículos. Para os que estão excluídos de tal privilégio, a alternativa é a utilização de
bicicletas ou dos veículos da comunidade, como o trator, a caminhonete ou a Toyota do
Setor de Saúde.
80
Um problema relativo ao uso dos banheiros também nos uma
evidência da importância do parentesco na ocupação dos espaços. Os banheiros foram
construídos de forma a haver um para cada duas casas. Apesar de os familiares morarem
próximos uns dos outros, existem muitas famílias vizinhas que não se consideram parentes-
perto. Assim, criou-se um notável constrangimento decorrente do fato de pessoas de
famílias diferentes terem que compartilhar um mesmo espaço privado. quem prefira ir
mais longe e utilize o banheiro de alguém da sua família em vez de usar aquele que lhe foi
destinado juntamente com uma família não-aparentada.
Agora podemos passar ao exercício de tentar isolar o correspondente atual das
“casas” relatadas por Steinen (1940; 1942) e Schmidt (1947) no intrincado emaranhado de
relações de parentesco bakairi,
81
através principalmente da observação da movimentação
das pessoas, da localização das casas e das ‘pistas’ acima colocadas – compartilhamento de
alimentos (pyni epajigâdyly) e preocupação (adahulily). Para tanto, tomarei como base a
aldeia central Pakuera, sede do posto indígena e única localidade na área bakairi onde a
convivência de muitas famílias extensas diferentes (as demais aldeias foram todas formadas
a partir de uma descendência familiar comum). De uma população de 280 pessoas (dados
de 2004, comunicação do chefe do posto da FUNAI), auferi um número aproximado de 14
famílias extensas.
82
79
Sobre a introdução dos carros entre os Bakairi ver página 118.
80
No caso dos “veículos da comunidade”, a situação é um pouco ambígua, pois apesar de terem sido
adquiridos para atenderem a todos, a atribuição a um “dono” (sodo, ver capítulo V), o cacique (em relação
ao carro da aldeia e ao trator), e ao agente de saúde (em relação aos veículos da FUNASA).
81
Faço a divisão das subfamílias como uma forma de sistematizar os dados e torná-los mais claros ao leitor,
embora reconheça a dificuldade em delimitá-las, fato que tento suprir recorrendo aos comentários em 'nota de
rodapé'.
82
Digo “número aproximado”, pois, como veremos a seguir, os limites entre as famílias nem sempre são de
fácil definição.
73
Aldeia Pakuera
74
Divisão das subfamílias
83
da Aldeia Pakuera
Subfamília 1 (casas próximas)
Casa I: casal
84
; filhos solteiros
Casa II: filho do casal da casa I, sua esposa e filhos pequenos.
Casa III: filho do casal da casa I, sua esposa.
Subfamília 2: (casas em seqüência em uma “rua”
85
)
Casa I: uma mulher, sua filha e seu genro;
Casa II: outra filha da mulher da casa I, seu neto e família (esposa e filho pequeno);
Casa III: filho da mulher da casa II (neto da mulher da casa I), sua esposa e filhos;
Casa IV: neto da mulher da primeira casa, com sua esposa e filhos;
Casa V: o filho do casal da primeira casa (neto da mulher) com sua família (esposa e
filhos).
Casa VI: irmão da mulher da 1
a
casa e sua família (esposa, filho, nora e netos).
86
Subfamília 3: (casas lado a lado)
Casa I: casal, sogra
87
, filhos e neto (cuja mãe mora fora da área);
Casa II: filho do casal da casa I, com seus filhos.
Subfamília 4: (casas I e II estão lado a lado)
Casa I: um homem, esposa, filhos, filha casada, netos, genro;
Casa II: irmão do homem da casa I e sua família
88
;
83
O conceito de 'subfamília surgiu na entrevista de um dos professores, que usava este termo para se referir à
divisão dos Bakairi em subgrupos familiares. Pareceu-me muito próprio para tratar das suas parentelas, visto
que expressa bem a relação entre estas e a totalidade dos Bakairi. “Subfamília”, ao mesmo tempo em que
afirma uma separação (“sub”), atesta o pertencimento de todos a uma única “família”, os Bakairi, o que em
última instância condiz com a realidade de interligação de todos através de uma ampla teia de parentesco.
84
Dou a referencia “casal” quando não houver entre os membros da subfamília pessoas relacionadas a apenas
um dos cônjuges (como irmãos, por exemplo). Quando, mais adiante, fizer referencia a um “homem” será
devido ao fato de que os outros componentes do grupo se interligarão por seu intermédio, o mesmo ocorrendo
com “mulher”.
85
Apenas a ultima residência, onde mora um casal que se constituiu mais recentemente, se localiza depois de
duas outras casas.
86
Esta casa talvez pudesse ser alocada em outro grupo, ou ser considerada isoladamente; entretanto, pelas
relações observadas entre os dois irmãos (casa I e casa VI) optei por coloca-la na subfamília 2.
87
Veja-se que aqui, em contraste com o que ocorre no esquema da “subfamília 1”, coloco a 'mulher' em
relação ao “dono” (sodo) da casa, do qual ela é sogra. Este fato deve-se à percepção de ser aquele homem a
referência da casa (sodo), pelo fato dele ser uma liderança importante na comunidade, tendo sido “cacique”
por algum tempo. Entretanto, conto também com a possibilidade de esta situação assim me parecer por eu
estar impregnada pela perspectiva dos mais jovens, devido ao foco na escola e a dificuldade de romper a
barreira comunicativa com os mais velhos, que desconfiam dos karaiwa e pouco dominam a língua
portuguesa, paralelamente ao meu pouco domínio da língua bakairi. Com isso quero dizer que, talvez, na
perspectiva dos velhos, a tal mulher seja o 'centro' da casa e não seu genro.
88
A mãe da sua esposa (ymeinhundu) mora em uma casa em frente e pode ser alocada tanto neste grupo
quanto em qualquer um ao qual pertençam seus filhos.
75
Casa III: irmã dos homens das casas I e II e seu filho.
89
Subfamília 5:
Casa I: mulher, marido (original da Área Santana);
Casa II: irmã de mulher da casa I e família (marido original da Área Santana).
Casa III: irmã das mulheres das casas I e II, marido e filhos.
Casa IV: uma filha do casal da casa III, seu marido (também original de Santana);
Subfamília 6:
Casa I: velho viúvo
Casa II: filha do morador da casa I, marido e neta (com marido e filho);
Casa III: filho do casal da casa II e família;
Casa IV: filho do casal da casa II e família;
90
Casa V: filho do casal da casa II e família;
Casa VI: filho do casal da casa II, família e sogra
91
.
Subfamília 7: (casas separadas entre si)
Casa I: homem e sua familia;
Casa II: irmão do homem da casa I, com sua família;
Casa III: um irmão solteiro e uma irmã viúva dos homens da casa I e II.
92
Subfamília 8: (casas I, II, III e VI próximas)
Casa I: viúva, seu neto e esposa (sem filhos)
Casa II: filha da viúva e família
Casa III: filha da viúva e família
Casa IV: filha da viúva e marido
Casa V: filha da viúva e família
Casa VI: filho do casal da casa VI e família
Casa VII: filho da mulher da casa II e família.
89
Os demais irmãos e suas famílias moram em Cuiabá.
90
Casas III e IV localizadas em frente a casa II.
91
É interessante perceber que a sogra (imenhundo) da casa VI também é sogra dos irmãos das casas IV e V,
pois as três esposas são irmãs entre si. Este tipo de casamento de um grupo de irmãos com um grupo de irmãs
é dito pelos Bakairi ser “ideal” (outras etnografias xinguanas atestam o mesmo: Basso, 1973: 88-89; Souza,
1995: 178), havendo, segundo os Bakairi, geralmente após o casamento de um dos filhos', a vontade de
reforçar os laços entre as duas famílias unidas por aquele casal através de uma sucessão de casamentos entre
os irmãos mais novos. Isso nem sempre se confirma, pois outros fatores estão em jogo para a realização de um
casamento, como afinidade entre os noivos, a ocorrência de gravidez e o estado da relação entre as famílias na
época de se aventar a possibilidade do casamento. ainda, neste grupo de irmãos, uma quinta pessoa, que
também se casou com uma irmã (classificatória) das esposas de seus irmãos, mas que vive em um grupo local
afastado alguns quilômetros da sede da aldeia (subfamília 9), junto a seus sogros.
92
Os outros irmãos vivem em outra aldeia. Há ainda uma irmã que vive com o marido em uma casa em uma
localidade afastada alguns quilômetros do “posto” (subfamília 9).
76
Subfamília 9: (localizada numa área a poucos quilômetros da sede do posto)
Casa I: um casal de velhos;
Casa II: a filha do casal da casa I, seu marido, filho e nora;
Casa III: filha do casal da casa II e marido (citado no subfamília 6) e filho;
Casa IV: (mais afastada do núcleo; não identifiquei o parentesco com a subfamília 9).
Composta da irmã dos componentes da subfamília 7 e seu marido.
Subfamília 10: (casas próximas)
Casa I: viúva;
Casa II: filho da viúva
93
e esposa;
Casa III: filho da viúva e família;
Casa IV: filho do homem da casa II e familia;
Casa V: filha do homem da casa II e familia
94
Subfamília 11:
Casa I: um casal;
Casa II: filho do casal e familia
Subfamília 12:
Casa I: família do Chefe do Posto. Ex-cacique, (ainda sem netos).
Subfamília 13:
Casa I: viúva;
95
Casa II: neta da viúva e família;
96
Casa III: neto da viúva.
Casa IV: neto da viúva.
Subfamília 14:
Casa 1: um casal;
Casa 2: filha deste casal
97
;
Subfamília 15:
Casa 1: uma mulher, sua neta, o filho da neta com a familia, a filha da neta com a
familia; filhos solteiros da neta;
Casa 2:neta da mulher da casa 1 com familia
Casa 3:irmã da mulher da casa 2 com a família (mesma casa IV subfamília 10)
98
93
Dois de seus filhos compõem a mesma subfamília. Sobre os outros dois: um é o “genro” referido na “casa I
– subfamília 4”; a outra é a “esposa” da “casa IV – subfamília 2”.
94
Neste caso é importante salientar que o marido tem “família pequena”, como dizem os Bakairi, e isso fez
como certa a sua inclusão no grupo da esposa, por falta de outra alternativa.
95
A situação desta viúva é interessante, pois apesar de ser a origem (idamudo) dos membros da família
formadora de uma das aldeias menores, ela não quis se mudar do “posto” onde viveu grande parte de sua vida.
96
Repito aqui uma casa referida na subfamília 6: casa III, o que penso ser necessário, pois se esta residência
perfaz uma unidade com a “subfamília 6” do ponto de vista da convivência entre as casas dos parentes do
“marido”, por outro lado, a maior freqüência de “visitas” é por parte dos parentes da “esposa” que moram em
outra aldeia (vide quadro “casa 1” da pág. 69)
97
Os demais filhos do casal são funcionários da FUNAI e moram fora da Área Indigena.
77
Estas são as principais subfamílias identificáveis, não apenas pelos meus
critérios,referidos anteriormente, como também pela auto-identificação bakairi, o que inclui
não apenas a subfamília à qual cada pessoa diz pertencer, mas também a forma com que
são concebidas as outras subfamílias.
99
Isso é perceptível em vários momentos como, por
exemplo, através da observação do uso em seus discursos do termo domondo, que pode ser
traduzido como “o pessoal de”. Então, “José domondo” poderia ser lido como ‘pessoal do
José’ ou ‘aquele grupo do qual José faz parte’. Quando se referem a moradores de uma
aldeia, o domondo junta-se ao nome da aldeia, como em aturua domondo, Paikun
domondo. Cada uma das subfamílias acima pode ser referida utilizando-se o nome de um
de seus componentes a partir do nome do ‘dono’ (ou de um dos ‘donos’) da casa-âtâ.
100
Os dados acima fazem saltar aos olhos algumas características da formação dessas
subfamílias. Uma delas, bastante evidente, diz respeito a serem constituídas principalmente
em torno de um grupo de irmãos, ao qual se anexam seus pais (quando vivos), filhos e
famílias dos filhos. Fica claro ainda que não uma regra rígida sobre qual ‘lado’ do casal
terá mais força no ‘jogo’ social que definirá o nível de convivência com os parentes que
uma pessoa passará a ter depois do casamento. Assim, apesar de verificamos um padrão na
constituição desses grupos formados em torno do parentesco, haverá vários fatores
decidindo que lado ‘ganhará’ a maior convivência do casal como, por exemplo, a força
política ou econômica das famílias, o seu tamanho (que também se traduz muitas vezes em
força política), o grau de envolvimento dos cônjuges com suas respectivas famílias, a
capacidade de negociação de cada lado antes do casamento, além de aspectos pessoais e
conjunturais.
98
ainda a casa onde reside o pai das mulheres das casas II e III, com uma nova família constituída após
ficar viúvo, que conta, além da sua nova esposa, com mais dois filhos.
99
Algumas famílias não foram alocadas entre as anteriores e isso se deve principalmente em função de suas
relações serem caracterizadas pela dispersão entre vários grupos citados, ou pela característica inversa, um
certo isolamento de redes de parentesco mais estreitas. um caso, por exemplo, de um filho único casado
com uma pessoa de fora, sem filhos casados residentes na área indígena, conseqüentemente não havendo
muitos “parentes-perto”.
100
Para uma análise da extensão do uso “o pessoal de” referindo-se ora ao grupo vivente em uma aldeia, ora a
uma parentela ou mesmo a uma seção desta, ver Franchetto (1986 e 1992) a propósito do termo kuikuro
otomo e Souza (1995). Domondo, na língua bakairi, assim como Ótomo, seu cognato kuikuro, refere-se ao
coletivo de dono” (em Bakairi, do [odo, sodo]=“dono”; mondo=coletivo; em Kuikuro, oto=dono,
mo=coletivo).
78
Alguns relatos etnográficos sobre os povos chamados xinguanos fazem menção a
esta flexibilidade na escolha do local e do grupo de residência do casal. Thomas Gregor,
por exemplo, refere-se aos Mehinaku da seguinte forma:
Ideally, a young man lives with his wife’s parents until he has had several
children, at which time he returns to his own home permanently. In practice,
however, decisions about residence reflect the preferences of the couple and their
parents, so that the actual residence pattern is regular only in that husbands and
wives live with one set of parents or the other (Gregor, 1973:266).
A regra da preferência pela uxorilocalidade pós-marital também está presente nos
discursos bakairi, mas assim como nos Mehinaku ela não se reflete de forma absoluta na
realidade, principalmente nos dias atuais em que, ao contrário, verifica-se uma ênfase na
virilocalidade. Com efeito, se compararmos os dados sobre o parentesco entre os
moradores de uma mesma casa (retirados da descrição de Max Schmidt, 1942:379-382)
com os dados acima sobre as subfamílias da aldeia Pakuera, poderemos verificar a
tendência a uma inversão. Se antigamente os recém-casados seguiam a regra da
uxorilocalidade (visível nos dados de Max Schmidt através da grande quantidade de genros
e a quase inexistência de filhos [homens] casados), havendo a possibilidade de
virilocalidade nos casais com filhos casados, atualmente nota-se que os casais jovens se
caracterizam pela virilocalidade, enquanto aqueles com filhos casados, em sua maioria,
vivem uxorilocalmente. Vejamos, como exemplo, o gráfico de parentesco abaixo:
Gráfico de parentesco: subfamília 2
79
No gráfico acima, referente à subfamília 2 temos um grupo constituído a partir de
um casal (atualmente a mulher se encontra viva) e duas de suas filhas, bem como de um
filho de seu único filho homem (este último, porém, vive na aldeia dos parentes de sua
esposa). As demais filhas foram unir-se às famílias dos maridos, mas mesmo assim
continuam a freqüentar as casas da sua família. Na terceira geração, verificamos apenas
casamentos virilocais, padrão que se confirma no único casamento da 4
a
geração. Assim,
apesar das múltiplas possibilidades de combinações em uma subfamília, podemos atentar
para as considerações a partir deste exemplo como válidas para a maioria das outras
subfamílias.
De fato, durante o tempo em que vivi entre os Bakairi, a grande maioria dos casais
foi morar, após o casamento, com a família do esposo. Não consegui saber, no entanto, a
que se deveria essa mudança em relação aos registros mais antigos. A despeito disso, a
cerimônia de casamento continua seguindo uma simbologia que representa a mudança do
homem para a casa da mulher, quando se dá a transferência da rede do noivo para a casa da
noiva. Vejamos, então, como se desenvolve uma cerimônia de casamento.
Depois que os noivos resolvem se casar seja devido a uma gravidez,
101
seja pelo
desenvolvimento de um forte relacionamento, ou por desejo das suas famílias um
encontro entre as duas famílias envolvidas, momento em que tratam da possibilidade do
casamento, quando será realizado, onde o casal irá morar após a cerimônia etc. Pode haver
mais de uma reunião e é comum a data da cerimônia ser adiada por vários motivos: algum
parente que está viajando ou mesmo a necessidade de acertar mais algum ponto no acordo
entre as famílias.
102
Marcada a data, a mãe da noiva busca mandioca (tâenzein) para a confecção do
mingau (pogu) a ser bebido por todos os presentes no dia do casamento. Neste dia, espalha-
se pela aldeia a notícia de que haverá casamento, e todos ficam à espera de alguma
101
No período em que convivi com os Bakairi, a gravidez foi o principal motivo dos casamentos realizados.
Apesar do aborto ser bastante comum, muitas vezes ele não se concretiza, seja por motivos morais, seja por
medo de alguma complicação na saúde da mãe, ou mesmo pelo desejo da mulher em se casar com o pai da
criança.
102
Não nos esqueçamos que é através dos casamentos que a rede política vai sendo desenhada, por isso, é tão
importante esse momento de conversa entre as partes envolvidas; todos os argumentos possíveis são
utilizados para manter o filho (o casal) perto de si após o casamento, mas para isso pesarão vários fatores,
como aqueles citados na página 62.
80
movimentação, começando logo a se formar uma aglomeração em frente à casa da família
do noivo. Chegam ali, então, os representantes da família da noiva para a realização da
primeira parte das falas ritualizadas (tâdâtunaguedyly, literalmente conversa), nas quais são
relatadas as qualidades de seu parente, prometendo-se respeito e cuidado em relação ao
novo membro da família; alude-se também às dificuldades e às alegrias de um casamento,
ressaltando-se a importância do casal estar unido em qualquer ocasião.
Finda esta parte, a aglomeração de pessoas em volta da casa do noivo transfere-se
para a casa da noiva; fica-se à espera da comitiva da família do noivo, que vem trazendo o
futuro marido e sua rede. Ao chegarem, a noiva está deitada na própria rede na sala. A
família do noivo, então, amarra a sua rede acima da dela para que ele se deite, ao que se
segue uma segunda parte das falas rituais, reproduzindo os mesmos temas. Depois, os
noivos se levantam e ficam lado a lado esperando os cumprimentos das pessoas, que a esta
altura formam uma grande fila. Nessa hora, além de desejar um bom casamento, cada um
dos componentes da fila dirá a um dos noivos qual será, a partir daquele momento, a
relação de parentesco que terão: “agora eu serei sua cunhada (maemo)”; “a partir de agora
te tratarei como nora (nome do noivo + iwydy)”. Todos o embora e somente mais tarde
saberemos onde os noivos foram morar, se com os pais dela ou com os dele.
Se, por um lado, a regra preferencial de moradia refere-se à uxorilocalidade, por
outro, os Bakairi acreditam que o pai tenha uma participação maior na formação da pessoa
que a mãe, fato expresso na idéia de força maior do sangue (yunu; ver nota sobre yunudo,
capítulo IV, página 137) do pai, o que nas palavras de Viveiros de Castro se traduziria
como ideologias patrifocais mais ou menos marcadas (1995:12). Por exemplo, em um
processo de negociação de casamento que presenciei, a mãe da noiva dizia que esta iria
viver onde o marido quisesse, pois “o homem tem mais força” e, assim, ela teria que aceitar
a distância da filha. Mas me parece que nem sempre acontece assim; muitas vezes a família
da noiva faz questão de mantê-la perto de si. Entretanto, a ‘maior força do sangue
masculino’ configura-se como mais um argumento ao qual alguém pode recorrer no sentido
de manipular a situação a seu favor.
Vejamos o caso de alguém que seja ‘misturado’, mãe bakairi e pai karaiwa. É muito
comum, se houver interesse quando se precisa de ajuda fazer-se referência ao
parentesco pela via materna, considerando-o como kurâ (Bakairi, ‘um de nós’).
81
Inversamente, porém, quando existe uma situação de conflito, logo é enfatizado o fato de a
pessoa não ser kurâ, dando-se como justificativa a força do sangue do pai-karaiwa.
Lembro-me também do caso de um indivíduo, cujo pai é de origem Bororo, fato sempre
lembrado quando se quer fazer uma crítica às suas atitudes, em referência a uma suposta
índole bororo inferior à bakairi. Ouvi certa vez comentários sobre os avós paternos terem
mais direitos sobre os netos em caso de separação de um casal, baseando-se certamente
nessa maior força do sangue masculino na fabricação (e, portanto, constituição) da pessoa.
Portanto, a ocupação do ‘vão’ formado entre os extremos do parentesco parentes-
perto e parentes-longe e a gradação (sempre mutável) entre os diversos níveis possíveis
acontecem fundamentalmente a partir da operação (e da manipulação) de duas ideologias: a
regra de uxorilocalidade e a maior força do sangue do pai na concepção. Se a primeira
justifica a convivência e a proximidade parental com a família da mulher, a segunda
justifica uma maior identificação com os parentes paternos. Afirmo, todavia, que tanto uma
quanto outra ideologia prevalece dependendo das condições pragmáticas de uma
determinada conjuntura. Pode-se dizer, então, que essas ideologias, apesar de fundamentais,
devem ser vistas como parte de um contexto que envolve ainda outros aspectos, relativos,
por exemplo, aos âmbitos político, econômico e pessoal.
O ponto fundamental é como os argumentos da regra uxorilocal e da ‘maior força
do sangue paterno’ são utilizados pelas parentelas para trazerem o afim para o seu grupo de
convivência, ao invés de verem o seu filho distanciar-se. Vale dizer, porém, que, mesmo
havendo uma predominância de um dos ‘lados’, sempre existirá a continuidade da
participação (em maior ou menor grau) da pessoa em sua família de origem, dividindo
alimentos, visitando e preocupando-se com ela. Nesse sentido, novamente, os Bakairi se
assemelham a outros povos do Alto Xingu, que desenvolvem sua organização social a partir
da bilateralidade da descendência, conforme nos mostra Thomas Gregor a respeito dos
Mehinaku: A husband who lives with his bride’s kin continues to participate in the
maintenance of his parent’s home, shares food with his own relatives... (Gregor, 1973:
266). E por Ellen Basso, no que se refere aos Kalapalo: it is not uncommon to find kinsman
living in different villages and even speaking mutually unintelligible languages. However,
because they are kinsmen, they can establish and justify contact with one another (Basso,
1973: 87).
82
Há ainda mais uma correlação que pode ser feita entre as pessoas que conviviam no
velho estilo de habitação e as atuais subfamílias da Aldeia Central, ou seja, mais um dado a
indicar a hipótese de que aquilo que estou chamando de caminhos (âwan) hoje equivaleria
às redes de parentesco encontradas por Karl von den Steinen e Max Schmidt no interior das
grandes casas do passado. Na época da pesquisa, a população da aldeia Pakuera era de 280
pessoas, sendo que algumas famílias não foram incluídas por não constituírem grupos
claros de relação (pelos meus cálculos, 15% do total, ou seja, umas 42 pessoas). Se
dividirmos o número total dos componentes (238 pessoas) pela quantidade de subfamílias
em que foram alocados (15), teremos como resultado algo em torno de 15 pessoas, isto é, o
mero máximo encontrado por Schmidt nas casas coletivas bakairi no início do século XX.
Em suma, a vida social bakairi constitui-se a partir da dinâmica da formação das
subfamílias aqui descritas (seja através da cooperação intragrupos, seja através das disputas
e dos conflitos que acontecem entre eles). Os caminhos (âwan) percorridos pelos membros
das subfamílias são aqueles caracterizados pela solidariedade (principalmente sob a forma
de produção e consumo de alimento) e pela preocupação (adahulily) compartilhada pelos
seus membros. Vimos, entretanto, que os limites das subfamílias são extremamente fluidos,
conseqüência principalmente da manutenção, mesmo depois do casamento, da relação de
uma pessoa com sua (sub) família de origem.
2. Âtâ anary - aldeia
Continuando a abordagem da organização social bakairi a partir da ótica das
unidades discretas tanto definidoras quanto definidas pelas relações de parentesco e pela
delimitação do espaço detenho-me agora na terceira categoria a ser analisada: a aldeia
(âtâ anary, reunião de casas). Da mesma forma que as âtâ, identificadas com as famílias
nucleares, e os âwan, caminhos que interligam as famílias extensas, a unidade âtâ anary
compreende uma série de deveres e direitos a serem observados pelos seus membros e
pelos de fora (kuohoronmondo), além de, como aquelas, ter também a característica de
‘abertura’ às demais unidades do gênero, tendo como base os laços de parentesco que, em
última análise, unem todos os Bakairi.
83
A âtâ anary forma uma unidade em vários sentidos. Por ser geograficamente
delimitada (seja por rios, montes ou marcos construídos), inclui tanto o centro da aldeia
onde se localizam as casas, quanto o seu entorno, cujo tamanho pode variar. Apenas aos
seus moradores e convidados é permitido o uso de seus recursos naturais (locais de pesca,
árvores frutíferas ou os que tenham outra utilidade, como terra para lavoura, pasto). Assim,
é comum que haja combinação entre parentes de aldeias distintas para uma pescaria dentro
dos seus limites, ou mesmo que haja ‘arrendamento’ de um pedaço da terra para um
fazendeiro vizinho fazer pasto ou lavoura. Na parte habitada da aldeia, as casas não estão
dispostas exatamente em círculo contornando a tasera (pátio central), mas geralmente têm a
sua frente (porta da sala) em sua direção, indicando o centro social . Além da tasera (onde
fica também a palhoça onde são realizadas as reuniões e os bailes), cada âtâ anary conta
com uma escola, um posto de saúde (mesmo que improvisado) e um campo de futebol. São
estes, em suma, os espaços públicos das aldeias bakairi.
Além disso, elas formam o que se poderia chamar de uma unidade política, sendo
autônomas para decidirem sobre qualquer questão dentro de seus limites e são
representadas pelo ‘cacique’ (pyma) nas questões relativas a todos os Bakairi. O pyma tem
sua autoridade fundada principalmente nos laços de parentesco que o une aos outros
membros da âtâ anary (excetuando-se o caso da Aldeia Central Pakuera, que será tratado
mais adiante), fundada, como veremos, por um grupo de irmãos e suas respectivas famílias.
As relações de proximidade parental, em geral, são uma outra característica que identifica
os aldeões entre si. A âtâ anary é também uma unidade econômica no sentido de que
mantém a lavoura de arroz e os seus habitantes cooperam entre si em atividades que serão
revertidas para o bem de todos, ou mesmo de uma só família (como é o caso dos ‘mutirões’
promovidos para construir uma casa). Finalmente, a âtâ anary configura-se ainda como o
coletivo que deve promover os rituais (do kado, bem como os rituais escolares), sendo
convidadas as demais aldeias.
A Área Indígena Bakairi é composta de dez âtâ anary, formadas pelo
desmembramento da chamada Aldeia central Pakuera (também denominada pelos Bakairi
de poto, ou seja, ‘posto’, por corresponder à sede do posto indígena desde a década de
1940). Cabe aqui uma rápida análise da categoria ‘Aldeia Central’. Esta denominação diz
respeito não apenas ao fato de ela ser a sede do posto indígena e também a aldeia-mãe a
84
partir da qual todas as outras se formaram, mas deve-se ainda a uma centralidade política
em relação às outras aldeias que compõem a Área Indígena Bakairi, sendo o espaço onde (i)
concentração de quase metade da população; (ii) são realizadas as reuniões que
envolvem todas as aldeias; (iii) está localizada a única escola que inclui Ensino
Fundamental completo e Ensino Médio. Verificamos ainda uma convergência para essa
localidade de tudo aquilo que se refere aos rituais (kado), por existirem as condições
imprescindíveis à realização das cerimônias: proximidade de um grande rio, presença de
kadoety (casa de ritual) e a concentração de maior mero de ‘donos’ rituais. Também as
‘festas de santo’ (tratadas no capítulo V) são realizadas, em sua maioria, nessa localidade,
apenas uma delas ocorrendo em outra aldeia (Kaiahoalo). As festas escolares que ali
acontecem são mais grandiosas que nas demais aldeias, por haver um maior número de
alunos da sua escola. Em suma, a Aldeia Central pode ser considerada enquanto tal por ser
o ponto de convergência das manifestações coletivas que envolvem todas as aldeias bakairi.
Desenho: Área Indígena Bakairi (Jacuí eCelia Collet)
85
Vejamos agora a composição de cada uma das aldeias da Área Indígena Bakairi:
Tabela: população das aldeias que formam a Área Indígena Bakairi – dados de 2004
Aldeia Homens
Mulheres
Crianças
Total
Pakuera 92 105 83 280
Aturua 39 28 36 103
Paikun 17 16 14 47
Kaiahoalo 18 13 12 43
Cabeceira do Azul (Paikun Atuby) 15 08 07 30
Alto Ramalho (Paxola) 05 05 05 15
Sawâpa 06 04 07 17
Kuiakuare*
103
11 13 3 27
Iahodu* 03 05 02 10
Ximbua* 04 03 08 15
Total 587 pessoas
Passemos, a seguir, a algumas implicações da idéia de grupo local (âtâ anary) para
os Bakairi, recorrendo a dados históricos orais e escritos e à minha própria observação da
realidade atual.
Idamudo: famílias-aldeias originais
Desde o início das minhas atividades de campo ouvi os Bakairi explicar sua
organização social como sendo baseada no pertencimento ao que chamam de idamudo
(origem), espécie de linhagem familiar. Eles explicam que são divididos em idamudo,
dando a cada um deles características distintivas como, por exemplo, os ‘x’ são muito
fofoqueiros” ou “os ‘y’ falam diferente dos ‘z’”. Se os mais velhos alegam pertencer a
apenas um idamudo, os mais jovens geralmente dizem pertencer a mais de um – “por parte
de meu pai sou Parua, por parte de mamãe, Memuluia” pois aqueles têm apenas uma ou
103
Segundo o chefe do posto, as aldeias assinaladas não foram “oficialmente” reconhecidas pela FUNAI,
embora sejam consideradas autônomas pelos Bakairi e tenham cada qual seu próprio representante (cacique).
No caso de Kuiakuare, até o fim da minha pesquisa, nenhuma família habitava a “futura” aldeia, apesar da sua
família “fundadora” ser respeitada como uma unidade política independente. Em Iahodu mora apenas uma
família, que deixou a aldeia do Alto Ramalho.
86
duas referências de aldeias onde viveram seus parentes (por parte de seus pais e mães),
enquanto os mais novos, devido à passagem de mais ou menos quatro gerações, teriam
múltiplas possibilidades de traçarem a sua origem.
No início de minha pesquisa, dois fatos deixaram-me intrigada . Primeiro: como
poderiam pensar em termos de linhagem se o seu parentesco é bilateral? Segundo: os
nomes de idamudo muitas vezes eram os mesmos das aldeias bakairi registrados por
Steinen (1940, 1942);
104
também nas explicações que me eram dadas utilizavam-se de
identificações locais/geográficas mais que familiares (“É como você, você é carioca, outro
é goiano, nós somos âgudoalo, awety...”).
Aos poucos, a questão foi ficando mais clara: mais uma vez estamos diante de um
recorte geográfico (espaço) para ‘falar’ sobre a organização social bakairi. Assim como as
casas (âtâ) e os caminhos (âwan), as aldeias (âtâ anary) também são unidades privilegiadas
para se referirem às subdivisões internas ao grupo. Portanto, a elas os Bakairi recorrem para
construírem uma linha de parentesco ligando-os ao passado (origem) e, ao mesmo tempo,
classificando-os na atualidade.
De fato, testemunhei em rios momentos a volta a uma discussão iniciada durante
o Projeto Tucum,
105
que dizia respeito à existência de clãs entre os Bakairi. Apesar de o
ter presenciado o nascimento dessa polêmica, fui juntando as informações e acabei
entendendo o que estava em jogo. Parece que a professora da disciplina ‘antropologia’ foi
explicar o que seria ‘clã’, dando como exemplo o caso dos Xavante e sua divisão em
linhagens, mas dizendo que os Bakairi eram diferentes: não teriam clãs. Estes últimos
sentiram-se discriminados por não terem algo que os Xavantes têm, e iniciou-se uma
discussão cujos ecos são ouvidos até hoje: muitas críticas são feitas àqueles que defendem
que os Bakairi não têm clãs; para isso, dão como provas o pertencimento a um idamudo. Na
verdade, tudo isso é fruto de diferentes focos de interesse sobre a questão. Se para a
professora, por um lado, era importante ressaltar problemas de definição e uso de conceitos
antropológicos, por outro lado, aos Bakairi interessava a ausência de ‘clãs’ atribuída a eles
104
Entre os nomes estão: Iguêti, Mainmain ety, Maieri e Kuyaqualiety, todos referentes às aldeias visitadas
por Steinen. ainda outros nomes atribuídos às chamadas “famílias”, ouvidos dos próprios Bakairi como
Memuluia, Parua, Awety e Âgudoalo.
105
Projeto de formação de professores indígenas do governo do estado de Mato Grosso, que acabou em 2000,
durante o qual os Bakairi dividiram a sala de aula com alguns Xavante do município de Paranatinga.
87
(enfatizada pela presença entre os Xavante), que interpretavam a partir do momento de
afirmação cultural e étnica em que se encontram – como preconceito e discriminação.
De toda forma, o que deixo registrada é a identificação entre os idamudo e os
antigos aldeamentos, bem como a vontade de aproximar sua forma de organização social
caracterizada por uma certa flexibilidade ligada à descendência bilateral de um modelo
que possa ser definido pela presença, que seja afirmativo. Parece que os Bakairi estão
querendo aqui o mesmo que a etnologia das terras baixas sul-americanas: encontrar
presenças, isto é, padrões positivos de parentesco
106
para não ficarem sendo caracterizados
por faltas (caracterizadas como preconceitos).
Em suma, identificamos que os Bakairi fazem uso atualmente dos nomes de seus
aldeamentos do passado, atribuindo uma correspondência entre aldeia (âtâ anary) e ‘origem
familiar’. Esta perspectiva da sua organização social pressupõe algumas ‘ficções’. A
endogamia de aldeia, por exemplo, seria necessária para uma correlação entre família e
aldeia, entretanto, sabemos pelos relatos de Steinen (1940; 1942) e Schmidt (1942) que as
aldeias eram majoritariamente exogâmicas (como continuam a ser). Outra ‘ficção’ seria a
facilidade em se traçar uma única linha de descendência entre as pessoas, visto que, como
sabemos, ela é atribuída bilateralmente.
107
Esta ‘visão’ do passado, todavia, não está muito distante daquela que os Bakairi
imaginam hoje. Embora conheçam a realidade da predominância dos casamentos
exogâmicos (relativos à aldeia), tratam as âtâ anary ‘como se’
108
fossem fechadas e,
portanto, claramente delimitadas. Falar, por exemplo, sobre o ‘pessoal de Aturua’
(Aturuadomondo) é, ao mesmo tempo, referir-se a uma localidade e a uma família. Isto, no
entanto, não se aplica ao caso da Aldeia Pakuera, pois se concentra quase metade da
população da Área Indígena Bakairi (ver quadro da página 85), convivendo várias
parentelas em uma mesma unidade política. Aos problemas decorrentes da concentração
populacional dedicaremos uma análise específica mais adiante; o foco agora deve recair
sobre as aldeias menores criadas, como veremos, a partir do desmembramento do ‘posto’
que seguem o modelo identificado por Steinen antes da unificação promovida pelo SPI:
106
Para esta discussão ver Viveiros de Castro (1986).
107
Joana Kaplan aborda a relação entre o ideal endogâmico e a realidade repleta de exemplos contrários no
caso especifico dos Piaroa (Kaplan, 1984).
108
Kaplan diz que os Piaroa always act as if their marriages were endogamous to both the house and the
close kindred of birth (Kaplan, 1984:134).
88
aldeamentos pequenos (entre 21 a 100 pessoas), com poucas casas (três a sete casas
coletivas) e exogamia, notada pela ‘visita’ entre parentes de aldeias diferentes.
109
Portanto, depois de quatro cadas, os Bakairi voltaram a se organizar em aldeias.
Vejamos como isso aconteceu.
A formação das novas aldeias
Com a fundação da nova sede do posto, na década de 1940, todos os Bakairi (da
variação de Paranatinga, isto é, excetuando-se os chamados Santaneiros) foram obrigados a
se reunir em uma única localidade, onde o poder era detido, entretanto, pelo SPI. Uma das
principais transformações ocorridas com a extinção deste órgão foi o fim do controle que
exercia, propiciando às lideranças bakairi entrarem mais abertamente na arena das disputas
políticas. Durante alguns anos ainda foi mantido o mesmo ‘capitão’ indicado pelo órgão
tutor, mas no final da década de 1970 ele resolveu abrir mão do cargo em favor de seu
genro. Seu sucessor, no entanto, durou pouco tempo na função, pois, segundo os Bakairi,
ele não dispunha de uma característica imprescindível a um líder bakairi: domínio de
conhecimentos rituais.
Depois dele vieram outros, cada qual sendo afastado da função sob a acusação de
favorecimento de seus familiares, fato que, antes de atestar uma quebra em seus princípios
de organização política, pode ser visto como uma expressão dos mesmos. Em outras
palavras, ao serem suas unidades políticas preferenciais pequenas e restritas a um único
núcleo familiar, conseqüentemente sua ‘política’ sempre se constituiu em ‘favorecer’ seus
parentes, os quais coincidiam, neste caso, com a totalidade da população da aldeia. Assim,
quando esta aumentava de tamanho, era natural que ocorresse uma fissão. Problemas
maiores acerca da legitimidade do líder passaram a surgir apenas quando foram reunidas,
em uma única unidade política, várias parentelas, a serem representadas por apenas uma ou
duas pessoas, deixando de fora, portanto, a maioria das famílias.
Aconteceu, então, que quatro dos líderes destituídos resolveram formar aldeias
independentes, sendo acompanhados por seus parentes. Aturua, a primeira a ser formada,
109
Este padrão é identificado em inúmeros aldeamentos amazônicos (ver Riviere, 1984 e Kaplan, 1984) e
especificamente entre os xinguanos (Gregor, 1977; Basso, 1973).
89
surgiu de dois pares de irmãos casados entre si (conforme o ideal mítico de renascimento
social dos Bakairi
110
), os quais foram seguidos pelos demais irmãos e suas famílias. Paxola
(Alto Ramalho) e Paikun surgiram pela migração de um grupo de irmãos e seus respectivos
cônjuges. Kaiahoalo foi formada em torno de seu fundador, ‘cacique’ e pajé, tendo ao seu
redor dois genros, dois sobrinhos, um irmão classificatório e um concunhado. As outras
duas aldeias, Cabeceira do Azul e Sawâpa, constituíram-se a partir da vinda de alguns
Bakairi que moravam na cidade e retornaram à Área Indígena, tendo entre seus moradores
alguns karaiwa.
Vejamos a criação da Aldeia Paxola (Alto Ramalho), que considero emblemática
dos ‘novos tempos’ surgidos com o fim do SPI, trazendo em seu processo exemplos de
muitos fatores característicos da busca de soluções para enfrentar a nova conjuntura.
A Aldeia Paxola teve a sua formação a partir do movimento de reapropriação de
uma parte do território bakairi que teria sido excluída na demarcação de 1960, sendo assim
ocupada por fazendeiros. Desde 1982, os Bakairi ‘lutaram’ com o objetivo de reaverem
essas terras, mas os fazendeiros estavam irredutíveis à idéia de deixar a localidade,
valendo-se de ameaças e derrubando os marcos colocados pelos Bakairi para delimitar os
seus domínios. Depois de muita pressão feita à FUNAI e algumas viagens à capital federal
sem conseguirem soluções, resolveram, em 1986, “pintar-se e armar-se” para expulsar as
famílias que habitavam a área. Foi somente após esse acontecimento extremo, que,
finalmente, conquistaram a área Paxola. (Barros,1987; Poiure, 2003)
Esta página da história bakairi revela que (i) eles conheceram e passaram a exercer
seus direitos enquanto indígenas; (ii) a conseqüência desse processo foi a fundação de uma
nova aldeia, constituída por um grupo de irmãos; (iii) para suprir as necessidades do novo
aldeamento foi preciso conseguir a contratação de ‘funcionários’ como professor e agente
de saúde uma nova 'luta'. Temos, portanto, uma situação-síntese das principais soluções
encontradas pelos Bakairi para lidar com o novo contexto social iniciado com a ‘libertação’
do regime do SPI.
A Aldeia Central: um supra-aldeamento
110
Sobre este tema ver Barros, 2003.
90
Nas aldeias menores, apesar de também existir a possibilidade de haver facções, os
conflitos são mais facilmente resolvidos devido à proximidade de parentesco entre seus
membros e à existência de poucas pessoas com status de liderança, geralmente só o cacique
e o vice-cacique,
111
isto é, a forma de organização social em pequenas unidades dispensa
um sistema complexo de instituições políticas e sociais, visto que a vida coletiva pode ser
regulada pelas relações de parentesco, sendo o líder local ao mesmo tempo líder político e
familiar. Todavia, na chamada Aldeia Central, a convivência de muitas facções em uma
unidade política e os conflitos se multiplicam. Esta unidade, como vimos, foi formada a
partir do Posto Indígena criado pelo SPI, órgão que reuniu todos os Bakairi em um único
espaço.
112
Posteriormente, mesmo com a criação das novas aldeias, muitas famílias ou não
quiseram ou não tiveram condições de criar novas unidades políticas, permancendo, assim,
numa aldeia ‘inchada’.
Com a reunião de todos em torno do posto indígena, a vida política e social sofreu
grandes transformações. Enquanto estiveram sob a direção do SPI e da FUNAI, estes
órgãos centralizaram as decisões e as ações políticas, econômicas e sociais . Hoje, quando a
força do órgão tutor está cada vez menor e os Bakairi estão tomando novamente nas mãos o
comando de suas vidas, os conflitos acirram-se, pois as instituições características do
período anterior ao contato não conseguem resolver questões que surgem com a
convivência de um grande número de famílias extensas em uma mesma unidade política.
Peter Riviere havia previsto, no caso das sociedades indígenas guianesas, o perigo
que se apresentava com o aumento significativo da população: Large villages inevitably
contain relationships that are intrinsically fragile, and this structural weakness manifests
itself in disputes about a range of problems from adultery through food shortages, to
sorcery and ends in fission (Riviere,1984:28). O mecanismo ‘natural’ da fissão, que
operava também entre os Bakairi, está cada vez mais difícil de acontecer, devido à
imobilização decorrente da dependência crescente de serviços do estado, como escola,
posto de saúde, energia elétrica e saneamento.
Segundo Gertrude Dole (1976), os Kuikuro teriam instituições capazes de
assegurarem uma convivência relativamente pacífica: acusação e eliminação de acusados
111
Sobre as “lideranças bakairi” ver capítulo III.
112
Os bakairi do “Rio Novo” conviveram no Posto Indígena Bakairi apenas por um curto período de tempo.
Comentário:
colocar nota?
91
de feitiçaria (ato extremo de inimizade) e o temor da fofoca. paralelos com algumas
formas de controle social bakairi. Os Bakairi, como os Kuikuro, não dispõem de um chefe
com a autoridade que nós poderiamos atribuir a um cargo desta natureza. O(s) pyma
mantém seu lugar e função dependendo sempre da ‘boa vontade das pessoas’, da
capacidade de uma ‘boa argumentação’ e da ‘paciência’ (ver, ainda neste trabalho, gina
106). Além disso, é inevitável recorrer aos laços de parentesco para que possa levar
adiante seus planos para a aldeia, desde uma simples limpeza de pátio até a preparação de
um grande ritual. Além disso, não há muito mais que o chefe possa fazer.
Também como os xinguanos, os Bakairi utilizam-se da ameaça da feitiçaria (temida
tanto por quem é vítima quanto por quem é acusado) e do circuito da fofoca como formas
de regular o conflito. Outro importante aspecto da sua organização social, que ajuda a
manter a convivência entre as famílias, é a rede de parentesco que integra todas as casas,
havendo, portanto, sempre algum parente como mediador.
113
Estes mecanismos, no
entanto, são eficientes quando se trata de grupos pequenos, mas começam a se tornar
insuficientes na manutenção da ‘paz aldeã’, principalmente no que se refere à Aldeia
Central bakairi.
Assim, vêem-se hoje os Bakairi em face do desafio de criarem novas instituições
para ordenarem a vida social devido à convivência de muitas famílias extensas. Como
exemplo, podemos destacar a escolha do cacique (na aldeia central) que é feita em formato
de eleição entre muitos dos líderes familiares existentes,
114
processo que aprenderam
através da administração da FUNAI, em 1979. Até essa data, o “capitão” era indicado pelos
funcionários do Posto Indígena. O formato eleição, entretanto, foi apropriado pelos Bakairi
e adaptado ao sistema da una iwyku (fofoca; sobre esse tema ver próximo capítulo) e,
mesmo assim, utilizando-se o voto secreto e individual. A escolha é estabelecida mediante
acordo prévio das lideranças que conseguem garantir, através das articulações familiares, o
resultado mais adequado ao grande acordo firmado.
Em 2004, presenciei a eleição para escolher o novo cacique da aldeia central
Pakuera, pois o líder de então pleiteava o cargo de chefe de posto, vago desde que fora
retirado, também pelo sistema da una iwyku, o antigo chefe. Houve um grande acordo entre
113
Interessante notar que este é o mesmo “canal” da fofoca, só que esta atua no sentido da “divisão”.
114
A “eleição” foi incorporada definitivamente pela aldeia central Pakuera. Até 2004, as demais aldeias
continuavam com os mesmos líderes de sua fundação.
92
as lideranças, garantindo um novo cargo ao chefe de posto, que passaria a coordenar a área
da saúde, assumindo o vice-cacique a função de cacique. Dessa forma, os Bakairi da aldeia
Pakuera lançaram mão de formato próprio dos karaiwa eleição para legitimarem sua
política, em relação à qual as decisões acontecem principalmente não no espaço público,
mas no doméstico, no domínio da una iwyku. Essa articulação, no entanto, envolveu muitas
famílias e interesses diversos, em um quadro bastante complexo e tenso. Porém, terminado
o processo eleitoral, as mesmas pessoas que se apoiaram mutuamente, em situações
imediatamente subseqüentes, passaram a fazer parte de pólos opostos, atestando assim o
caráter efêmero e contextual das alianças políticas.
Apesar do surgimento de novas instituições para lidarem com os problemas
advindos do convívio de muitas famílias, estes parecem desenvolver-se mais rapidamente
do que as soluções apresentadas, colocando as pessoas em situação de tensão e conflito
constantes. Desta maneira, as famílias tiveram que descobrir formas de convivência que
não aviltassem a sua autonomia, valor fundamental na constituição social bakairi.
Há, portanto, conforme observado anteriormente, um grande esforço no sentido da
manutenção da estrutura social, segundo a qual cada grupo vive principalmente voltado
para os seus membros. Assim, se antes da ‘atração’ as parentelas moravam distantes umas
das outras formando grupos locais discretos, hoje, apesar de habitarem uma mesma unidade
política, conseguem manifestar sua característica de autonomia e independência diante dos
demais por meio da manutenção dos limites sociais e espaciais entre as famílias (conforme
vimos na seção sobre parentesco).
Outro exemplo das dificuldades que enfrenta o aldeamento superpovoado está
relacionado à necessidade de manifestar a existência de uma ‘comunidade’, conceito que
começou a se impor a partir da chegada dos 'projetos' da FUNAI. A lavoura 'comunitária',
por exemplo, é vista como inadequada à manutenção do modelo familiar, sendo objeto de
muitas críticas por parte, sobretudo, das lideranças.. Dizem que é muito difícil mobilizar a
‘comunidade’, que não há uma pessoa, mesmo cacique ou chefe de posto, que tenha
autoridade sobre os demais. Não há, portanto, instrumentos e instituições que garantam este
tipo de ação supra-familiar. Até mesmo nas aldeias menores, pude verificar – ao ajudar seus
moradores na elaboração de projetos a dificuldade que existe em executar ações que
reúnam muitas famílias. Ainda como exemplo da dificuldade que em se adaptarem ao
93
modelo comunitário imposto por organismos externos, cito o fato de algumas pessoas terem
me procurado para conversar sobre a possibilidade de elaboração de projetos beneficiando
apenas umas cinco famílias nucleares, ou seja, uma família extensa, geralmente composta
de um grupo de irmãos e de seus pais, se ainda vivos.
A discussão acerca dos problemas advindos do relacionamento entre as diversas
parentelas até aqui enfocado apenas pelo viés da dificuldade encontrada pelos Bakairi de
enfrentar o problema da aglomeração de muitas famílias em uma unidade política será
o tema do próximo capítulo. Nela abordaremos em detalhes a maneira pela qual os Bakairi
(de todas as localidades) lidam com seus conflitos internos.
Capítulo III
Âtuagadyly: relações e disputas entre as unidades sociais
94
Até agora vimos as relações entre os Bakairi a partir do enfoque das suas unidades,
ou seja, das ‘forças’ que atuam no sentido da formação dos grupos. Proponho-me, nas
próximas páginas, a tratar o ‘outro lado da moeda’: as ‘forças’ que atuam no sentido
contrário, responsáveis pelos conflitos e pelas disputas (expressas em Bakairi pelo verbo
âtuagadyly). Neste sentido, a análise ainda prosseguirá através de um recorte sócio-
geográfico, visto que âtuagadyly opera também em duas dimensões: a doméstica e a
pública. Na abordagem de cada uma delas, iremos fazer algumas perguntas quem
disputa? como disputa? – para, ao final, passar à questão: por que se disputa?
1. Ações e instituições domésticas
Muitas etnografias sobre o Alto Xingu (Basso, 1973; Gregor, 1977; Dole, 1976;
Barcelos, 2004) chamam a atenção para a relevância do sistema inveja-fofoca-feitiçaria.
Com efeito, é através destas três instituições que os Bakairi tratam das disputas
(âtuagadyly) em nível doméstico, isto é, na informalidade das relações familiares. A inveja
(âsewânily) é muito temida por todos, pois é apontada como fonte das outras duas, que
podem trazer vários problemas. Isto acontece, segundo eles, apenas pelo fato de alguém
olhar e desejar algo de outro e, também, por meio da fofoca ou da feitiçaria.
A fofoca, mais do que repassar uma verdade pretende criá-la. São histórias contadas
sobre um determinado assunto, a partir de um ponto de vista e com um objetivo. Para se
tirar alguém de uma posição social importante, ou mesmo para impedir o crescimento de
seu poder entre os grupos, conta-se algo que desaprove a pessoa, que fale de um
comportamento ruim (inakay), desqualificando-a para aquela função. A história não tem
necessariamente que ser verdadeira – geralmente foge muito à realidade – o que não
impede de ser tratada como tal. Assim, as pessoas tendem a acreditar nela, desde que
reafirme uma rixa que se tenha com alguém: “Se estão falando mal de ‘fulano’ e eu sei que
‘fulano’ é mau, essa história pode ser verdadeira”. Da mesma forma, se a história em
questão proporcionar um resultado que venha a agradar, a pessoa tende a tratá-la como
verdade. Assim, a fofoca antecipa a história e apenas vem confirmar o que já se sabia sobre
alguém. Então, a história passa a ser contada para os outros como verdade, tornando a
95
fofoca uma realidade, o que surte efeitos sobre aquela pessoa ou grupo de quem se fala,
como alguém perder o cargo que ocupava, um casamento não se realizar etc. Toda essa
articulação se dá em meio a disputas, inimizades e alianças entre facções.
A inveja, entretanto, traz uma aparente contradição: se, por um lado, é muito temida
pelos sérios efeitos que possa vir a causar, por outro, pude perceber que uma espécie de
vontade de ser invejado. Assim, observei que as pessoas estão sempre à procura de ‘mais’
(dinheiro, bens, carro, trabalho, estudo para os filhos virem a “ser alguém na vida”),
buscando uma satisfação absoluta (desfrutar do que alcançou), mas também obtendo uma
satisfação relativa (em relação ao que os outros alcançaram). O pensamento parece ser o
seguinte: ‘se eu tenho ‘x’, mas muitos também o têm, devo ir em busca de ‘y’ para estar na
sua frente.’
115
No entanto, é a este mesmo ‘estar na frente’ que é atribuída a causa da inveja.
Dizem os Bakairi que se alguém não consegue ter aquilo que o outro tem, em vez de se
empenhar para conseguir, prefere destruir o que outro alcançou, ficando ambos no mesmo
nível. Voltaremos à questão ao final desta discussão, quando formos tratar o porque da
disputa.
Se a una iwyku é uma instituição importante nas relações sociais e políticas bakairi é
pelo fato de ela estar intimamente ligada à forma como os Bakairi se organizam
socialmente. Como observou Norbert Elias (2000:124-125): não se pode tratar o boato
como um agente independente, (que) sua estrutura depende da que prevalece na
comunidade cujos membros fofocam entre si”. Com efeito, a fofoca (una iwyku) é formada
e também ajuda a formar as relações entre os grupos bakairi. Como vimos, a sociedade
bakairi é composta de vários grupos familiares, os quais, ao mesmo tempo em que disputam
e divergem, também formam, através da rede familiar que os une, um grupo maior que se
identifica como um povo ímpar. E é exatamente em grupos humanos deste tipo que,
segundo Norbert Elias, a fofoca ireforçar tanto as fronteiras (flexíveis, no caso) entre
eles, como a ligação interna de cada unidade particular.
Foram identificados por este autor, em seu objeto de estudo, dois tipos de fofoca: a
depreciativa e a elogiosa. Esta última, diz ele, não desperta tanto interesse nas pessoas
115
A palavra âtuagadyly, usada para falar de disputa, é a mesma para se referir a um carro que quer
ultrapassar outro.
96
quanto a primeira, o mesmo podendo ser observado na realidade bakairi, na qual as pessoas
gastam muito tempo repassando e recriando histórias que falam dos comportamentos ruins
dos outros; dificilmente se ouvem comentários elogiosos sobre alguém de outra família.
Para Norbert Elias, é característico da fofoca haver “informações mais ou menos
depreciativas sobre terceiros, transmitidas por uma ou mais pessoas, umas às outras” (Elias,
2000:121).
Este mecanismo funciona (conforme adiantamos) da seguinte maneira: fala-se do
comportamento anti-social e vergonhoso de pessoas pertencentes a um outro grupo. Então,
a história que é contada passa imediatamente a ser tratada como verdadeira, pois a idéia
prévia de que os seus são bons (koendonron) e os ‘outros’ são ruins (inakay). Assim, a
veracidade de qualquer história que deprecie o ‘outro’ está referendada pela natureza
atribuída a este ‘outro’, não necessitando de comprovação. É interessante perceber que tal
crença está tão arraigada nas pessoas que o mesmo mecanismo de acusação que utilizam
contra os outros ao ser usado contra os seus gera um sentimento de mágoa, o que passa a
reforçar ainda mais a crença na maldade alheia e nas injustiças sofridas pelo seu núcleo
familiar. Quer dizer, a forma de se olhar para as situações de fofoca é sempre permeada
pela estrutura baseada em dois pares de opostos: minha família/ boas qualidades x outra
família/ más qualidades. Assim, as pessoas são capazes, em um mesmo dia, de criticar um
ato feito por alguém de fora de seu grupo familiar e de ignorar ou arranjar justificativas
para o mesmo ato praticado por algum dos seus. Não é vista nenhuma contradição nesta
situação, pois o julgamento nunca é feito em relação ao ato em si, mas principalmente sobre
quem o realizou.
A acusação de feitiçaria, como a fofoca, também opera em termos políticos, pois é
muito usada nos conflitos entre famílias, facções e lideranças bakairi. Conforme Ellen
Basso havia observado para o sistema do Alto Xingu: Among the residents of the Upper
Xingu Bassin, one of the most common subjects of gossip is witchcraft accusations. Any
untoward event personally affecting an individual insome adverse way is liable to be
attributed to a witch (...) this problem is intimately connected with the relationships
between factions, village leaders, and subordinate kinsmen (Basso, 1973:124).
na história resgatada por Edir Pina de Barros referência ao envolvimento dos
Bakairi no sistema de feitiçaria do Alto Xingu. Segundo esta autora, um dos fatores
97
responsáveis pela emigração desta região foi a acusação de feitiçaria feita a eles pelos
outros povos que habitavam, reação a várias epidemias que tinham chegado até a região
(Barros, 2000: 84). Provavelmente, os Bakairi, tendo sido uma das ‘portas de entrada’ dos
brancos na região, foram os primeiros a serem acometidos de doenças desconhecidas até
então,
116
levando-as também aos demais grupos indígenas. Bruna Franchetto (1992:348)
menciona as narrativas contadas pelos Kuikuro (akiñá), onde “as ‘coisas’ dos caraíba são
assim representadas .... por três perspectivas: num primeiro momento são ‘roubadas’,
depois objeto de trocas, enfim associadas claramente às doenças. A partir destas últimas, os
brancos passam a ser chamados, também e até hoje, de kugihe, termo que designa o feitiço
acionado pelos kugihe oto, os ‘donos do feitiço’, outra causa de eventos de doença e
morte”.
Dessa forma, a atribuição de feitiçaria é também sempre feita ao ‘outro’, a alguém
de uma família ou facção que esteja em conflito com aqueles que foram acometidos por
uma doença ou pela morte. Neste sentido, ela é usada da mesma forma que a fofoca, na
qual os acusados são os ‘de fora’ e as vítimas, os ‘de dentro’ de um determinado grupo
familiar.
117
Geralmente o processo de acusação de feitiçaria ocorre da seguinte maneira:
acontece alguma adversidade na vida de uma pessoa, uma doença ou dificuldade
econômica, por exemplo. Imediatamente se tenta resolver, ou procurando o setor de saúde
da comunidade ou o pajé para o diagnóstico da doença,
118
ou tomando providências para
melhorar a produção (quanto ao gado, à lavoura, à roça, ou mesmo a uma possível falta de
salário). Se mesmo assim o problema não cessa, levanta-se o caso de feitiço (ome). A
família, então, leva o doente ao pajé com o intuito de confirmar suas suspeitas. Hoje,
existem dois pajés bakairi: um mora na aldeia Kaiahoalo, outro em Aturua, e para estas
localidades são conduzidas as vítimas, sempre à noite, a fim de serem ‘olhadas’ por eles. A
suposta vítima deita-se em uma rede, em um cômodo da casa totalmente fechado e escuro.
116
Como exemplo, Steinen verificou que oito anos antes do seu contato com os Bakairi do Rio Paranatinga,
em 1884, estes tinham sido acometidos de sarampo (Steinen, 1942: 146).
117
Segundo Thomas Gregor, o mesmo acontece entre os Mehinaku: accusations of witchcraft are most often
directed against persons who are neither relatives nor residence mates of the informant (Gregor, 1977:207).
118
Os Bakairi crêem que há dois tipos de doença: a “do branco” e a “do índio”. No primeiro caso, somente o
médico pode resolver, no outro, fica a cargo do pajé. Apesar de na maioria das vezes manterem-se separados
estes dois campos, situações em que os diagnósticos podem ser contrários, como no caso da criança que
morreu, segundo os médicos, em decorrência de uma pneumonia não tratada devidamente, mas que de acordo
com seus pais e com o pajé o que a teria matado, “na verdade”, seria feitiço.
98
O pajé, depois de instantes, adentra o local e inicia seu trabalho, o qual consiste
principalmente em, estando próximo da pessoa, soltar a fumaça de seu cigarro
(sawalapalare) e ‘chupar’ (nhepâguely) para si as possíveis causas do mal. Ele vai
novamente para fora da casa, retornando depois para conversar com as pessoas presentes e
apresentando tanto uma avaliação verbal do caso, quanto provas materiais do feitiço,
pequenos objetos, como velas e fitas. Ele pode dizer quem foi o feiticeiro (ome odo, dono
do feitiço) bem como indicar algumas de suas características: altura, composição sica,
proximidade familiar etc. O caso pode ser também relacionado ao contato com iamyra
(espírito dos mortos), deixando-se de lado a suspeita de feitiço.
Depois disso, é possível a família da vitima ir ‘tomar satisfação’ com o citado ome
odo, visando desta forma inviabilizar definitivamente o mal que este pode causar.
Entretanto, o mais comum, em casos de menor gravidade (ou seja, que não cheguem ao
óbito), é evitar o conflito, como recomenda a etiqueta bakairi, sendo koendonron (bom,
pacífico) e “deixando a justiça nas mãos de Deus, pois aqui se faz, aqui se paga”, referência
de clara influência cristã, mas que serve bem para evitar situações de conflito.
Se a pessoa fica curada após a sessão de pajelança, o assunto cessa. Se a doença ou
mesmo outras adversidades permanecem, segue-se uma infinidade de visitas que incluem
não apenas uma volta aos pajés, mas também a ida a curadores e a benzedores da cidade de
Paranatinga. Nesse movimento, alguns nomes de pessoas ou suas características são
aventados, levando-se sempre o foco para alguém com quem já se tenha alguma
animosidade. A maioria dos casos de que tomei conhecimento envolvia relações de
afinidade (sogro, cunhado) ou, no caso da acusada ser mulher, identifica-se geralmente o
ciúme de seus amantes como causa. Alguns casos, entretanto, podem envolver parentes-
perto, conforme uma história que me foi relatada sobre um rapaz que teria cometido
suicídio devido a um feitiço feito contra ele por pessoas que seriam seus parentes e que
mantinham convivência muito próxima. Soube deste caso pelos supostos feiticeiros e pude
assim perceber a tristeza que ainda lhes causava tal acusação.
2. Ações e instituições públicas: kywymâry
119
e ‘política’
119
“Nosso líder”.
99
Os Bakairi consideram o confronto público como um comportamento indesejável
(em relação ao comportamento ideal expresso pelo termo koendonron, que será abordado
no capítulo IV). Não é bem visto, portanto, que uma pessoa exponha sua opinião em
público se esta for contrária a alguma outra. Apenas os líderes devem posicionar-se
enquanto indivíduos, colocando sua opinião, discordando dos outros.
120
Mas para que este
líder tenha autoridade, ele tem que contar com o apoio de alguns grupos fundamentados na
rede de parentesco. Assim, as pessoas que não são lideranças não devem expor seu
pensamento publicamente, mas “fazem política” ao sustentarem o líder ao qual estão
associadas. Estando o confronto público reservado às lideranças, os conflitos existentes na
maioria da população limitam-se ao espaço doméstico, às fofocas.
Neste sentido, podemos afirmar que o grupo familiar funciona como unidade
política, ou como caracterizou Ellen Basso, uma 'facção', palavra que aponta para uma
faceta da ação política: It is convenient to refer to the persons upon whon a leader may
depend for support during disputes as a “faction”. (Basso, 1973:119). 'Facção' é um termo
que se enquadra bem na realidade bakairi, permeada por divisões, heterogeneidade e
disputas entre os grupos familiares.
Como expus anteriormente, as parentelas bakairi não devem ser tratadas enquanto
unidades fechadas em si, nem como grupos formados por regras estruturais seguidas à
risca. Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1987) ressaltam “um traço muito típico das
sociedades do continente: elas seriam fluidas, flexíveis, abertas à manipulação individual”
(p.18). Desta forma, as unidades sociais bakairi são, como vimos, estruturadas
principalmente no parentesco, mas sujeitas a muitas combinações que dependem de vários
fatores, como proximidade espacial dos familiares, afinidades pessoais, convivência,
acontecimentos passados (na mesma geração ou nas gerações anteriores) e que tenham
afetado as relações, a convergência de interesses etc. Essas variáveis, juntamente com os
aspectos conjunturais, é que formarão as 'facções', as quais não são, de forma alguma,
permanentes, mas oscilam conforme os interesses, os grupos envolvidos, o problema em
120
Como haviam notado Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1987:25), apontando uma característica
generalizada dos povos indígenas sul-americanos: “É aqui que se abre o espaço onde surge o bruxo, o xamã, o
cantador e o líder tribal. Pois é nestes papéis sociais que o sistema tribal recupera e constrói algo parecido
com o nosso indivíduo: a pessoa fora do grupo, refletindo sobre ele e, por isso mesmo, sendo capaz de
modificá-lo e guiá-lo”.
100
questão, o empenho das lideranças etc. Entretanto, apesar das variações conjunturais, o
critério de identificação ou de acusação entre os grupos é sempre o parentesco.
Podemos perceber este fato claramente no uso de uma estratégia que tem o sentido
de enfraquecer os ‘adversários’, através da qual se rememora a origem não-bakairi de
alguém (o que devido às ‘misturas’ é muito comum). Assim, acusa-se uma pessoa de não
ser verdadeiramente bakairi se se quiser retirá-la da rede generalizada de parentesco,
colocando-a na impossibilidade de ter algum direito dentro da comunidade. Mas até mesmo
estas acusações são conjunturais, como no citado caso (página 80) das pessoas de origem
‘misturada’, as quais ora são tratadas como Bakairi, ora como karaiwa, de acordo com o
interesse dos envolvidos. Neste caso, o parentesco é ‘ativado’ ou ‘desativado’ conforme
seja ou não oportuno. E isso é possível devido a uma rede de parentesco vasta e complexa
que garante várias possibilidades de interpretação, a mesma rede que permite, muitas vezes,
que casamentos ditos proibidos sejam realizados, sendo necessário para isso apenas
enfatizar mais um ‘lado’ do que outro.
As 'facções' dão apoio a um líder, podendo este verbalizar publicamente a sua
posição ou a do grupo. Um líder, portanto, precisa estar sempre articulado aos grupos que
lhe dão suporte. Em qualquer questão é dever do parente apoiar o seu grupo e o seu líder, e
nunca criticá-los. O que pode mudar de um momento para outro é quem será considerado
parente naquela conjuntura. É comum vermos afins, em um momento, agindo em conjunto
e, em outro, estarem em facções opostas, cada um atrelado a um outro grupo de parentes. A
princípio tudo isso me pareceu contraditório mas, ao observar a naturalidade com que as
pessoas tratam essas múltiplas possibilidades de ‘acoplamento familiar’ o mecanismo foi se
tornando compreensível. Nesta dinâmica, nem toda a comunidade se envolve na totalidade
das questões. Se em um episódio alguns grupos estão no centro das disputas, da fofoca, em
outra oportunidade serão outras facções que estarão ativas. Os conflitos também não são
permanentes, aparecendo apenas em decorrência de algum acontecimento e disputa
(âtuagadyly) momentâneos.
Em suma, podemos dizer que apesar de haver claramente dois planos de operação
das disputas (âtuagadyly) o particular e o público uma interseção entre eles que
aparece ao se observarem as 'facções'. Estas conformações pressupõem ao mesmo tempo o
101
nível doméstico das famílias e o público das lideranças. Inicialmente abordamos o primeiro,
passaremos agora a conhecer as características do segundo.
*
A trajetória de um pyma e a apropriação da ‘política’
Vejamos a trajetória de um pyma. O relato que se segue pode ser considerado muito
profícuo para a nossa análise, pois expõe pontos de vista que nos levarão a compreender
melhor os seguintes aspectos: (i) a história recente bakairi, principalmente os pontos
situados no viés daquilo que será chamado de “política”; (ii) a construção de um pyma ‘da
nova geração’, a partir da inserção privilegiada na trajetória de um der que ocupou as
principais posições de liderança: cacique, presidente da associação e chefe de posto; (iii)
como foi apropriado o termo ‘política’ da língua portuguesa, usado hoje em dia tanto para
falar da relação travada com os ‘brancos’, como também da que se entre os próprios
Bakairi.
Foi uma fotografia da década de 40, na qual posavam uma enfermeira e suas
assistentes, todas trajando roupas profissionais, em frente ao recém-construído hospital do
posto indígena, que provocou o seguinte depoimento de um pyma:
Tem dez índias bakairi com roupa de enfermeira. Mas essas mulheres não aprendem nada,
fizeram com alvo. E a gente ficou muito chateado nisso, pois dali que nossas política
veio, né, que a gente entendeu como é que foi, né? A gente até sentiu que essa foto aqui era
de mentira. Por isso é que nós, nova geração, fez muita força para nossos filhos estudar,
quanto mais ginásio, essas coisas assim. A nossa geração com tudo isso fizemos reunião
para que a gente possa fazer uma escola bem grande aqui. Porque aqui [mostrando a foto
novamente] estudaram 4
a
série na época disso aqui. Tinha jeito das meninas aprender
mais ainda, que o governo não mandava os índios ir estudar fora, era proibido naquela
época. Então eu acho que eles não quer que os índios estudem muito, senão falava se eles
estudar mais eles vão passar s, vai dominar. Então, a intenção, acho que era isso, do
governo. Mas enquanto essa política a gente conhece, nós batalhamos, porque nossos filhos
não tava indo pra escola. (...) Eu conheço a política. Eles não abrem mão, não.
A política de cacique é assim, que desde lá do mato que ele é cacique.O cacique morrendo,
o filho dele vai passar pra cacique. (...) Mas agora não é assim não, aprendemos política
do branco, ?(...) Pra mim chegar nesse cacique basta a gente trabalhar bem, que eu
conheço também. que a minha família é uma liderança política que domina o povo
102
também, como cacique, como meu avô. Pra mim chegar até aqui a gente trabalhou certo.
A gente tem muita credibilidade pra dominar o povo, para gerenciar, essas coisas assim.
que eu sou de família de cacique, porque na história fala assim: quem tem família de
cacique a raiz dele é ali mesmo. O patambém, o pajé ele vem também da família de
também.
A gente entrou aqui em 1985, que era a retomada de uma área aqui, né? Em 83, 84 eu já era
vice-cacique, né? Aqui, 85. (...) Eles me convidaram para ser vice-cacique, em 83, 84. A
gente aceitou; em 85 a gente retomou essa área Paxola aí; na época era Joel quem era
cacique aqui. Finado meu padrinho que era Militão era ex-cacique naquela época. Ele
durou quase 20 anos de cacique. Então, ele falou “você vai ter muito conhecimento, acho
que você... Que o Joel liberou aqui, né? que ele ia morar na aldeia, né? que a gente
retomou, né? Fizemos reunião, e ele falou “vou desligar aqui e vou cuidar daquela área lá,
porque tem que ter gente (...) o finado meu padrinho Militão falou: “o cacique que
vai ser é seu vice mesmo, ele conheceu, teve conhecimento durante o tempo em que vocês
dois trabalhavam. Tudo mundo apoiou, “tem que ser, tem que ser”. consegui ficar.
Naquele tempo era indicado, era a voz do povo que falava (...) Em 85 a gente trabalhou
com a comunidade, e tudo certinho. (...) 85 que teve as mudanças de chefe do posto que
não era mais branco.
Cacique até 92, aí fui pra associação. Em 92 criamos associação, porque outros índios
de baixo, Gavião, Suruí, tinha criado associação. s ficamos assim: por que ele está
criando? Nós também temos condição de criar uma ONG. Mas para isso a gente teve que
falar diretamente para a comunidade pra gente entender, porque acha que criando
associação acha que os índio ia ter muito dinheiro. Todo mundo falava isso. Também
quando eu fui em 92 que eu vi [referindo-se a “Eco 92”, encontro ambiental mundial, no
qual muitas lideranças indígenas se fizeram presentes] (...) quando eu vim de que eu
reforcei ainda de falar mais da associação. Todo mundo os índio tem ONG, vamos mesmo
criar nossa associação, só que não vai ter dinheiro.
121
O cacique mais com comunidade, né? E associação com seus projetos. (...) Presidente da
associação com cacique tem que ser parceiro, pra trabalhar em conjunto. Tem aquelas
pessoa que fala que não vai participar, né? que aquele projeto é da associação. Política
forte aqui é assim. A gente como presidente da associação teve que trabalhar em conjunto
e agradar mais cacique.
Terminou o mandato da gente. Eu fui oito anos da associação. Quatro anos era o término do
mandato da associação, que tava na lei, quatro anos. Aí teve reeleição,
122
ganhei de novo.
terminei mais quatro anos, foi para oito anos. eu não queria de uma vez. Aí
convidaram de novo para a gente ficar como cacique.
123
A comunidade quer né? a gente
aceita.
Eu sou dono da paciência. Vou convidar, vai fazer muxirão. todo mundo lá, todo
mundo vai. No outro dia, vai 5, 6 pessoas comigo pra limpar pátio, qualquer serviço que a
gente vá, vai 5, 6. eu tenho paciência: “eles vêm amanhã, muitas vezes está fazendo
outra coisa”. Outro dia vai 10, 15, 20. Tem outros cacique que faz reunião, fala lá,
121
Sobre mais detalhes da criação da 'Associação Kurâ-Bakairi de resgate cultural' ver capítulo VI.
122
Antigamente, a eleição para a Associação Kurâ-Bakairi era feita com a participação de todos. Hoje em dia,
são 37 membros eleitos (três ou quatro por aldeia) os que votam.
123
Ano 2000.
103
no outro dia vai só 5, 6, aí a tarde faz reunião: “Por que vocês não querem ir? Nós temos
que nos unir”. A comunidade não gosta dessas coisas, eu entendo assim, eu vejo eles assim,
nós temos que ter paciência. Como eu falando, quando você “tá muito fraco hoje”,
amanhã ele vem, tem que vim. Então, amanhã ele vai. Não precisa o cara ficar bravo,
então dali começa a política. A gente vê essa política.
(entrevista realizada com H.P., na Aldeia Pakuera, em março de 2004)
Neste relato, o referido pyma constituiu-se enquanto tal em decorrência
principalmente de dois fatores. O primeiro deles aponta para a sua introdução no universo
das lideranças a partir da prerrogativa da hereditariedade do ‘cargo’, expressa tanto na
referência ao seu avô que teria sido um importante cacique ainda nos tempos da
instalação do posto indígena – quanto ao padrinho. Do primeiro, teria recebido uma herança
de sangue (yunu), o que ainda é um importante (embora o imprescindível) aspecto na
indicação de um pyma. Vinda do padrinho, uma interferência concreta, por meio da sua
indicação para assumir a posição de cacique, aproveitando-se do seu status de ex-cacique.
Se a hereditariedade foi importante para que chegasse a um posto de liderança, ele afirma
que sua manutenção no cargo advém de outras características: trabalhar bem, trabalhar
certo, ser “dono” da paciência e dominar o que está chamando de “política”.
O segundo atributo, considerado fundamental para um ‘chefe’, é ser ele um
especialista ritual, conhecedor de muitos cantos sem os quais as cerimônias do kado não
podem se realizar. Arvelo-Jimenez (apud Riviere, 1984:93) mostrou essa relação entre os
Ye`cuana, ao apontar o conhecimento ritual como um bem muito valioso e, portanto,
também utilizado na conquista e na manutenção de posições de autoridade, sendo a maioria
de suas lideranças conhecedoras de cantos e de danças,
124
indispensáveis para a promoção
de rituais. Aqueles que são pouco versados nessas especialidades empenham-se em
124
Ser “dono” (sodo) de ritual ou de máscara também confere grande prestígio a alguém, isso podendo ser
utilizado politicamente. A respeito dos líderes xinguanos, Marcela de Souza cita essa posição, ao lado de
outras características, como importante fator na justificativa de merecimento da chefia por alguém: “...aqueles
que conseguem se projetar na comunidade através do acúmulo de estatutos tais como o de xamã, “dono” de
cerimônias, ou especialista ritual bem como da liderança de grupos domésticos importantes e das facções
que se constituem no jogo constante de acusações e contra-acusações de feitiçaria, veículo fundamental do
conflito político nestas sociedades são quase sempre capazes de traçar relações mais ou menos ambíguas
com linhas de chefes e assim estabelecerem-se como pelo menos ‘um pouco’ chefes” (Souza, 1995:182).
Ainda sobre a categoria sodo, ver capítulo V.
104
aprender. Vimos anteriormente um episódio em que um cacique bakairi teria sido
substituído sob a alegação de que não sabia coordenar o Iakuigâde (Barros, 2003:121).
Antes de passar à análise do termo ‘poliítica’ que aparece várias vezes no relato
acima, quero fazer um quadro geral dos lugares atuais de chefia entre os Bakairi.
Até a década de 1980, eles tinham apenas uma forma de liderança, os pyma,
chamados atualmente de caciques, ou seja, líderes dos grupos locais, responsáveis pela
unificação, quando necessário, dos membros das diversas aldeias, seja com fins rituais, seja
com fins econômicos ou políticos. Eles também representavam seu grupo diante de outros
grupos. No entanto, em 1985, pela primeira vez, um Bakairi assumiu a chefia do Posto
Indígena da FUNAI, passando a ser esta mais uma função de liderança política, da mesma
forma que a dos caciques. Depois, em 1990, foi criada a Associação Kurâ-Bakairi e sua
presidência também foi assumida por um Bakairi, abrindo-se mais um lugar de liderança.
Hoje, são tratados como pyma não os líderes dos grupos locais, mas também o chefe de
posto e o presidente da Associação. Assim, em qualquer reunião que conta com a presença
das lideranças, os caciques, o chefe de posto e o presidente da Associação são chamados
para falar. Quando há um encontro de lideranças indígenas, são eles ainda os representantes
dos Bakairi.
Vice-presidente da Associação e vice-cacique não têm tanta força política, apesar de
ocuparem cargos que podem ser degraus para uma futura escalada política. Os
responsáveis pelo setor de saúde e pelas escolas podem ser tratados como lideranças, mas
apenas em seu respectivos âmbitos de ão. Tratarei mais adiante de quem são as
lideranças bakairi em termos de parentesco, ‘riqueza’, idade, escolaridade e atributos
relativos aos rituais.
O discurso do pyma reproduzido anteriormente é exemplar de como o termo
'política' é usado pelos Bakairi. Pude identificar três situações em que ele aparece. A
primeira, no contexto da explicação da foto como ilustração de um momento que precisava
ser superado, caracterizado pela mentira e pela dominação impostas pelo ‘branco’. A frase
dali que a política veio coloca a origem, o nascimento daquilo que é chamado de “política”
por meio do aprendizado com os ‘brancos’ de formas de como lidar com os próprios
‘brancos’. Esta idéia é reforçada quando ele diz: eu conheço política, eles não abrem mão,
105
não; “eles” seriam os próprios “brancos” contra os quais deve-se empregar a “política”
como forma de conquistar autonomia. Nesta origem, reencontramos a característica de
âtuagadyly (disputa) entre grupos: eles vão passar nós, vai dominar.
Para o tema central desta tese é muito interessante observar a vinculação do
surgimento da “política” entre os Bakairi aos “estudos”: a escola é apontada como a
principal instituição responsável para a instrumentação política, ou seja, como forma de
obter importantes conhecimentos do ‘mundo dos brancos’, a fim de que a âtuagadyly possa
se fazer em pé de igualdade. Volto a esta relação na segunda parte da tese, quando
abordarei especificamente o universo da educação escolar.
Vejamos agora algumas situações em que observei a palavra “política” ser utilizada
no sentido apontado acima. Ela é pronunciada quando se trata das instâncias
governamentais brasileiras e de suas ações, isto é, para se referir às ações implementadas
pela Prefeitura Municipal de Paranatinga, pelo Governo de Mato Grosso e pelo Governo
Federal (este último principalmente representado pela FUNAI, pelo Presidente da
República e pelos deputados). Fala-se muito também da “política” da FUNASA (órgão do
governo federal responsável pela saúde indígena), referindo-se sempre às disputas internas
nessas instituições, visando cargos e gratificações melhores. Quando usam a palavra
“política”, não estão se referindo, então, a ações virtualmente em favor da população, mas
ao jogo de conquistar, manter e aumentar o poder dentro de um campo de ação.
O “tempo da política” diz respeito à época das eleições, quando os candidatos
tentam se eleger com o intuito de serem investidos de mais poder econômico e social. Os
Bakairi dizem ter aprendido com os ‘regionais’ como é que o branco faz política e agem em
relação às eleições e aos governantes a partir desse modelo. Na política municipal local não
espaço para discussões ideológicas e partidárias e as pessoas filiam-se aos partidos
segundo alianças conjunturais e ‘favores’. Os Bakairi atualmente também fazem parte das
redes de ‘favores’ do município, sem se ligarem, entretanto, a uma ou a outra pessoa,
agindo conforme seus interesses momentâneos. Na época da eleição,
125
por exemplo, fazem
pedidos e aceitam favores de todos os candidatos, a menos que o apoio a somente um deles
traga mais beneficio econômico. Nesse período, os indígenas de mais prestígio são
procurados pelos candidatos para intercederem em seu favor junto à sua comunidade, e eles
125
Há uma seção eleitoral que funciona na aldeia, a segunda maior do município.
106
são pagos por isso. O ‘tempo da política’ é visto como uma época que “tem que se
aproveitar” para se ter acesso às ‘doações’ dos políticos: um saco de açúcar, combustível
para carro ou trator, camiseta do candidato, um churrasco. Tem-se a “política” do karaiwa ,
dessa maneira, como mais uma fonte para se conseguir benefícios para as famílias, atraindo
recursos, certo prestígio e também alianças.
O segundo sentido atribuído à palavra “política” diz respeito à apropriação da ação
política do ‘branco’’ como forma de lidar com contingências internas à organização social
bakairi, principalmente em relação às disputas (âtuagadyly) entre as chamadas “facções”:
aprendemos a política do branco é a forma como se expressa o pyma para falar dessa
incorporação. Neste sentido, ela se liga em seu discurso às articulações necessárias para a
manutenção de um líder, principalmente no que se refere a ‘jogar’ com as divergências
internas (entre líderes, entre estes e o coletivo da(s) aldeia(s), e entre setores da população).
Em suas palavras, a “política” começa a partir do momento em que alguém fica “bravo”, ou
seja, a matéria-prima da política é o conflito (iduekumo).
Nessa “política”, não mais em seu âmbito original , mas em seu desdobramento
interno, um aspecto qualificado como “política do cacique”. Esta figura é identificada
com uma dimensão especificamente bakairi (“desde do mato”), em oposição aos demais
‘cargos’ de liderança originários do mundo dos brancos: chefe de posto, presidente da
Associação. A “política do cacique” é exposta mais como uma habilidade relativa à
mediação e à paciência (“eu sou o dono da paciência”) do que de autoridade e poder
diretos sobre os demais. Ao ocupar o lugar de liderança (não apenas o de cacique), uma
pessoa deve saber utilizar vários meios de persuasão, fundamentados em paciência,
credibilidade, trabalho bom e certo, pois ‘mandar’ irá somente gerar raiva (“ficar bravo”) e
ocasionar conflito.
126
Partindo do princípio de que os chefes de família são autônomos, e que é
absolutamente malvisto alguém se sobrepor à sua vontade, o cacique tem que ter realmente
muita paciência. Trata-se de saber falar, aconselhar e convencer. Peter Riviere lista uma
série de características ideais de um líder na área de seu estudo comparativo a Guiana
que valem também para descrever um bom chefe bakairi. O líder na Guiana deve utilizar
a iniciativa e o exemplo como meios de mobilizar as pessoas. Ele deve também saber
126
Ver Capítulo IV sobre o comportamento ideal da pessoa bakairi.
107
organizar as atividades cotidianas, falar bem, ser generoso e ser conhecedor de habilidades
rituais (1984: 73).
A disputa interna implica a habilidade de conquistar lugares de liderança e depois
mantê-los através de um trabalho cotidiano, no qual o líder precisa estar sempre costurando
laços sociais, pois conseguimanter sua posição se estes forem preservados. O uso da
palavra “política”, então, está relacionado à possibilidade de liderar um grupo. Sendo
assim, algumas pessoas “fazem política” e são chamadas de liderança, outras não fazem
política”, mas seu apoio é essencial para aqueles que a fazem.
127
Além do desenvolvimento das habilidades listadas acima – paciência, capacidade de
mediação, aparente passividade – há ainda outros fatores que afetam a consolidação de uma
liderança. Vejamos no quadro abaixo uma análise dos líderes bakairi, segundo as seguintes
características: idade, parentesco, escolaridade, fonte de renda, obtenção de bens valiosos,
conhecimentos rituais.
Idade
(>40)
Família
grande?
Família de
chefe?
Escolaridade
(2
o
grau)
Funcionário? Carro
familiar?
Espec.
ritual?
Caciques x x x x
Chefe de posto x x x
Presidente da Associação x ? ?
Lideranças setoriais
Diretor de saúde x x x x x
Coordenador da escola x x x
Quadro baseado em informações do ano de 2004.
Obs: analisar o quadro acima tendo em mente que o item “cacique” inclui um grupo de dez pessoas.
Percebemos, em primeiro lugar, que os lugares de liderança não são ocupados por
jovens. São necessários muitos anos para que alguém se constitua líder; para ocupar tais
‘cargos’, a pessoa deve ser considerada um adulto completo, ou seja, casado e com filhos,
como a maioria dos homens com mais de 40 anos. Os dados relativos ao tamanho da
família revelam uma indeterminação que registro, a partir da minha observação, como
indício de que ter muitos parentes é importante para a constituição de uma base familiar
sobre a qual é possível conquistar aliados; entretanto, há também outras formas de se
127
Ellen Basso observou um quadro semelhante: Kalapalo leaders are persons who are continually
expanding and reinforcing social ties, and in so doing, actively demonstrating their ability to influence a
large number of individuals (Basso, 1973:107).
108
conseguir tal intento. Um bom exemplo é um ex-cacique da aldeia Pakuera que, embora
fosse filho único e órfão, foi indicado para cargo por dois motivos: o primeiro, relativo à
sua índole (pacífico, não bebia) e o outro, surpreendentemente, ligado ao fato de não ter
muitos parentes, o que poderia favorecer uma maior neutralidade, algo adequado para ser
um líder de aldeia. Havia, entretanto, nessa época, uma parentela responsável tanto pelo seu
‘lançamento’ quanto pela sua posterior ‘deposição’, segundo interesses conjunturais.
Quanto ao peso representativo do fato de ser descendente de um antigo pyma, nota-se pelo
quadro acima ser este um elemento de peso para tornar-se um líder.
No que diz respeito à escolaridade, vemos que apenas os líderes setoriais, aos quais
é imprescindível uma formação escolar, cursaram o Ensino Médio. Devemos, no entanto,
analisar este aspecto de acordo com os dados históricos. A maioria dos lideres atuais,
devido à sua idade, não teve oportunidade de continuar seus estudos além da quarta série do
Ensino Fundamental, devido ao fato de que no seu tempo de estudante havia apenas escola
até esta série dentro da área e de não existirem os convênios que possibilitaram às gerações
posteriores estudar fora. Se até agora a constituição das lideranças não dependeu do seu
grau de escolaridade, tenho certeza de que para as próximas gerações este fator terá alguma
importância. O próprio relato da liderança transcrito acima aponta nessa direção, quando
salienta a relação entre a escolaridade e a conquista política” a partir de uma necessidade
de equiparação aos ‘brancos’. De toda forma, este tema retornará na próxima parte da tese,
na qual será discutida a ligação entre escola e “ser alguém na vida”.
Algumas observações ainda podem ser feitas quanto ao valor dado aos
conhecimentos rituais detidos pelo líder, apontado no quadro acima apenas em relação aos
caciques e ao chefe de posto. Vimos que os chamados caciques são a expressão mais
tradicional da representatividade bakairi, sendo os outros postos decorrentes da necessidade
de diálogo com os brancos. São também eles os responsáveis pela promoção das atividades
coletivas da aldeia, o que inclui principalmente as econômicas e as cerimoniais (kado).
Além disso, os conhecimentos rituais por si só já são considerados bens valorizados.
128
.
128
Vale lembrar que Steinen chamou a atenção para a grande presença de artefatos cerimoniais dentro dos
kadoety nas aldeias bakairi que conheceu, indicando a importância que essas atividades tinham na época
(Steinen, 1940; 1942). Ellen Basso (1973) e Thomas Gregor (1977) também ressaltam a centralidade dos
rituais nas sociedades Kalapalo e Mehinaku, respectivamente.
109
Outros bens valorizados são de natureza material. Estão na tabela acima
representados pelo “carro familiar”, pois à época de minha pesquisa este era o bem mais
cobiçado pelas pessoas, tanto pelo que representa para a autonomia da família em poder
deslocar-se entre as aldeias e até a cidade de Paranatinga, quanto pelo próprio caráter
simbólico de ser um bem caro
129
. O fato de a maioria das lideranças não dispor de um carro
familiar decorre principalmente de dois motivos. O primeiro diz respeito ao fato de muitos
contarem com os veículos doados à sua comunidade, dos quais os líderes passam a ser
‘donos’ (sodo); o segundo está relacionado com outro item da tabela, os “funcionários”.
Poucos chefes são também funcionários, sendo portanto mais difícil adquirir bens caros. Se
isso acontecer, logo despertará desconfiança na comunidade o fato de o chefe estar
ganhando algum dinheiro às custas do nome do povo sem reverter para este. Como
verificamos nas etnografias xinguanas (Basso, 1973; Gregor, 1977), a generosidade é uma
das qualidades pessoais mais importantes, mais ainda em se tratar de um ‘chefe’: se
alguém estiver acumulando bens (âdydâemeon) ou dinheiro somente para si, logo passará a
ser estigmatizado como uma pessoa anti-social.
130
O último item desta parte do trabalho
será dedicado à investigação dos aspectos econômicos da vida social bakairi.
Antes de entrar nos aspectos econômicos da vida social bakairi, gostaria de
ressaltar mais um ponto relevante para as instituições da fofoca, da feitiçaria e da liderança.
Se até aqui destaquei o seu sentido no universo das disputas (âtuagadyly), foi por
considerar ser esta a face mais enfatizada pelos próprios Bakairi. Devo salientar, entretanto,
que elas têm uma importante função integradora. Se um líder é aquele que encabeça as
disputas entre grupos, ele também é uma figura importante de aglutinação de famílias,
como é o caso dos caciques das aldeias.
3. Ainda sobre a construção de parentesco e as disputas: a aquisição de bens
(âdydâemeonpe)
129
Voltarei à questão da introdução dos automóveis entre os Bakairi mais adiante.
130
Nas palavras de Ellen Basso: Kalapalo leaders are able to exert their influence because they have
acquired considerable prestige. This prestige in turn results from their continual exemplification of communal
values expressed in the ideal of ifutisu behavior, especially generosity (Basso, 1973:107).
110
Em torno do que, afinal, se disputa? Quais são os valores fundamentais que estão
por trás dos conflitos entre as famílias e as facções bakairi? A partir de tudo o que foi
mostrado em termos da sua organização social e do que será explicitado a seguir sobre o
aspecto econômico, fiquei convencida de que os princípios que as norteiam dizem respeito
a valores envolvendo prestígio e parentesco. Meu esforço aqui é para conseguir traduzir em
palavras a forte impressão que ficou enraizada depois da convivência com os Bakairi:
fundamentalmente, a vida das pessoas gira em torno da preocupação com a família e
também com o status relativo às outras famílias. Vimos as relações de parentesco, bem
como as formas de disputas entre as chamadas subfamílias ou facções. Vejamos agora qual
o papel dos bens neste contexto. Para tanto, descreverei primeiro as fontes de recursos,
tanto as internas à área bakairi agricultura, pesca, criação de animais quanto as que se
situam na abertura ao mundo dos brancos salário e dinheiro identificando também os
principais bens produzidos e consumidos pelos Bakairi, para, ao final, mostrar a sua
utilização na produção do prestígio e das relações de parentesco.
3.1. As fontes de recursos
3.1.1. Fontes internas
A Área Indígena Bakairi tem 61.405 hectares e é banhada por vários pequenos
rios e um mais volumoso denominado Pakuera (Rio Paranatinga), responsáveis pela
procedência do peixe, alimento tão apreciado pelos Bakairi. A vegetação é de cerrado, e
matas são encontradas apenas nas margens dos rios, provendo-os de poucos recursos
extrativistas importantes para a economia. Todavia, o relevo que predomina é plano,
permitindo a plantação de lavouras relativamente grandes e a criação de gado. O acesso à
caça sofreu diminuição progressiva relacionada à implementação de fazendas ao redor da
área indígena e o conseqüente desmatamento da vegetação nativa. O clima é determinado,
basicamente, de duas estações anuais: a época das chuvas – quando a mobilidade das
pessoas fica reduzida e a vida doméstica passa a imperar e a época da seca, quando faz
muito calor durante o dia, tempo de grande mobilidade, com o aumento do número de
visitas e viagens, sendo também a época das ‘festas de santo’ e do kado, ocasiões de intensa
vida social .
111
No que diz respeito ao espaço da casa-âtâ, o trabalho é distribuído
fundamentalmente segundo dois parâmetros: idade e gênero. Quanto ao primeiro, podemos
dizer que aos adultos (xutuyby=maduro, como manga xutuyby=manga madura)
131
cabe a
maior parte do trabalho, restando às crianças (iamimeon) e aos velhos a tarefa de ajudá-los.
Em relação à divisão sexual do trabalho, os homens dedicam-se à atividade de pesca, caça e
ao preparo e plantio da roça (âpaezary
132
), enquanto as mulheres trabalham nas atividades
domésticas, como cozinhar, lavar roupa,
133
lavar louça, arrumar a casa, cuidar das crianças
menores, também sendo sua tarefa a colheita de mandioca. É ainda trabalho feminino todo
o beneficiamento dos subprodutos da mandioca (tâenzein para a variedade ‘mansa’; âpa
para a ‘brava’), através do qual se adquire o polvilho (takoro, samu, xunupy, âpa xutary),
matéria-prima para se fazer diferentes tipos de beiju (awado, tykabigoro, malomalo,
tykamuduriguein) e de mingau (pogo, ximukâ, tamixe, sararawanlo) e a farinha.
Hoje, ainda e cada vez mais, as mulheres dividem seu tempo entre as atividades
domésticas e o trabalho, seja como agentes de saúde ou como professoras. Muitos homens
também trabalham como agentes de saúde ou funcionários da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI) ou também como professores. Eles às vezes pescam para complementar a carne
(odu) que é possível adquirir com o salário, mas essa é apenas uma atividade esporádica e
concentrada principalmente no período da seca (entre junho e setembro). As famílias dos
professores/funcionários geralmente não cultivam roça, conseguindo seus produtos através
da oferta de familiares, das trocas ou mesmo da compra.
134
131
Chamo de adultos todas as pessoas que passaram da cerimônia de iniciação à vida adulta (ver capítulo
IV) e constituíram família, mas que ainda estão fortes o suficiente para trabalhar, não sendo considerados
‘velhos’. Os agaityon (homens velhos) geralmente despendem seu tempo fazendo artefatos como apás’ e
cestos; as aripe (mulheres velhas) ajudam principalmente nas tarefas relativas à preparação dos alimentos.
132
A roça é considerada propriedade das pessoas que habitam uma mesma casa, ou seja, uma família
nuclear. É comum, entretanto, haver auxílio de outros familiares, tanto na hora do plantio (função
masculina), quanto na da colheita e no processamento da mandioca.
133
É interessante o fato de todas as mulheres lavarem suas roupas sempre às 2as e às 6as feiras, alterando sua
rotina apenas se houver uma festa ou viagem. Ainda não descobri de onde veio esse “calendário”,
provavelmente da disciplina do tempo do SPI, quando a maioria dos homens vivia nos “retiros” e vinha para
casa apenas nos finais de semana para visitar a família.
134
Está se tornando cada vez maior a circulação de dinheiro dentro das aldeias bakairi, e já começa a
acontecer que ‘funcionários’ que não têm roça comprem farinha e polvilho (e também peixe) daqueles que os
produzem.
112
É interessante observar a condição feminina no novo contexto, pois, ao passo que as
atividades masculinas, como caçar, pescar e plantar,
135
estão ocupando cada vez menos o
tempo dos homens (por motivos que serão explicados mais adiante), as atividades
femininas avolumam-se. As mulheres, não somente aquelas que atuam como provedoras de
bens (âdydâemeon) através dos salários
136
mas em sua totalidade, trabalham efetivamente
muito mais que os homens, principalmente devido à introdução de dois tipos de artefatos:
louças e roupas. Os cuidados em lavar (ingokely) e passar (roupas) ocupam grande parte do
tempo feminino.
A maioria das mulheres vai até o rio para lavar roupa. Cada aldeia conta com alguns
'portos', como são chamados os lugares em que se reúnem para trabalhar e também
conversar. Podemos dizer que esses momentos correspondem, para as mulheres, à reunião
dos homens na praça central da aldeia (tasera), onde são tratados os assuntos do momento,
quando as fofocas (una iwiku) são transmitidas (e transformadas), onde se ‘edita’, enfim, a
versão feminina do chamado “jornal bakairi”.
137
Na aldeia central Pakuera há a divisão entre “porto dos homens” e “porto das
mulheres”, que ficam, entretanto, muito perto um do outro, podendo-se avistar tudo o que
acontece do outro lado. Todavia, o acesso a cada um deles é restrito às pessoas do sexo
correspondente. Nos diversos rios da região existe outro tipo de marcação do espaço – desta
vez em função da pesca denominado “ceva”. Cada família (nuclear ou um conjunto de
irmãos e seu pai) tem uma “ceva”, isto é, um lugar no rio em que jogam alimento para os
peixes com o intuito de reunir uma grande quantidade deles naquele ponto, visando a
pescarias futuras. A “ceva” é uma extensão da casa (âtâ), no sentido de ser freqüentada por
outras pessoas (geralmente parentes próximos) apenas com a permissão do ‘dono’ (sodo).
ainda outros modos de pescaria. A forma de pesca dos bakairi chamada
“original” é feita utilizando-se uma canoa de casca de jatobá para o deslocamento, e arco-e-
flecha para pescar. Entretanto, hoje pouco se observa este método, sendo mais comum o
135
Sem falar das guerras e dos rituais que no tempo em que Steinen (1940; 1942) esteve em contato com os
Bakairi lhe pareceram atividades às quais se tinha muita dedicação.
136
Algumas mulheres “funcionárias” e esposas de “funcionários” estão “terceirizando” seus trabalhos
domésticos, pagando para outras mulheres lavarem e passarem suas roupas ou cuidarem de seus filhos como
“babás”. Outras compraram máquinas de lavar, mas estas são ainda poucas (sobre os desdobramentos do
aumento do número de “funcionários” será dedicada uma seção mais adiante).
137
Muitas vezes me deparei com a pergunta: “já soube do jornal Bakairi?”, ao que se segue alguma novidade,
que pode ser um casamento, uma gravidez, um “caso” amoroso, uma briga, ou qualquer outra “notícia”.
113
uso de linhadas e anzóis. Algumas pessoas utilizam-se de redes de pesca, também
adquiridas do karaiwa. Além disso, a pesca nas lagoas (saimo) que vão secando no
tempo da estiagem e nos rios rasos, quando utilizam o timbó (senwin)
138
e o kuzu
139
na
captura dos peixes.
Ainda existe outra extensão do espaço familiar da casa, o chamado “sítio”. Para se
formar um é preciso apenas cercar um pedaço da terra e informar ao chefe de posto que
aquele lugar é seu e que irá, por exemplo, para desenvolver alguma atividade produtiva,
como criar gado. Hoje, porém, devido ao crescimento populacional e ao maior afluxo de
dinheiro, começa a haver conflitos em relação a esses locais. Geralmente a legitimidade
da posse da terra justifica-se por ter havido uma roça de seu pai ou avô, ou o lugar onde
ele teria morado antes da unificação da década de 1940. A existência de muitos
descendentes, bem como a possibilidade de ocupações sucessivas de um mesmo espaço
vinculadas à disputa (âtuagadyly) entre as famílias faz com que haja alguma tensão em
torno da posse de alguns “sítios”, e aponta para grandes problemas no futuro. Como diriam
os Bakairi: toenzepa âtuagadylymo onron wâga (muita disputa pela terra).
As tarefas mencionadas acima dizem respeito principalmente ao âmbito das casas e
dos caminhos e às subfamílias; vejamos agora os aspectos produtivos relativos à aldeia. A
unidade âtâ anary é responsável principalmente pela cultura do arroz, a qual envolve todos
os homens jovens e adultos. Este tipo de organização é chamada por eles de “plantio
comunitário” e, principalmente na aldeia central multifaccionada, ela é foco de muitas
críticas pela dificuldade de se organizar uma atividade comunitária em uma organização
social baseada na divisão entre famílias. Nas demais localidades, onde a unidade social
aldeia é formada em torno de um núcleo familiar, este problema toma menores proporções.
Nos meses da chuva também faz-se ‘roça’ para plantação do milho bakairi (anji),
que se caracteriza por ter um aspecto avermelhado. O consumo deste cereal é limitado a
esta época, mais especificamente ao ritual dedicado à sua colheita, o anji etabeinly
138
Veneno extraído de um cipó, cuja seiva é utilizada para paralisar os peixes, facilitando sua captura, sem
causar mal, no entanto, às pessoas que deles venham se alimentar. O timbó também é considerado um “pajé”
(“espírito”), pois conta uma história em que antigamente ele era gente. Então, ele se casou com uma moça e,
quando ia tomar banho no rio, os peixes morriam com o veneno da sua espuma e ele os levava para sua
mulher. Um dia, quando a esposa contou (outra versão: a cunhada contou) como seu marido pescava, a sua
sogra expressou nojo e o timbó ficou com vergonha e foi embora, tornando-se cipó novamente.
139
Identificado no Dicionário do Artesanato Indígena (Ribeiro, 1988:44-45) como “cesto alguidarforme (...)
alongado ou ovalado nas bordas”.
114
(batizado do milho). Aproveitarei a referência a esta cerimônia (kado) para introduzir a
relação que entre as atividades de pesca e agricultura e a realização de rituais dedicados
a iamyra, sendo os dois principais o Iakuigady e o Anji etabeinly. Ambos visam, segundo
os Bakairi, à renovação destas fontes de alimento. Este tema, no entanto, será tratado em
maiores detalhes no capítulo V.
ainda outras fontes de recursos que isoladamente não têm grande relevância,
mas que são importantes no conjunto que forma o resultado geral da economia. O chamado
artesanato é uma delas. As pessoas que fabricam peças, como redes, colares, brincos,
pequenas máscaras Iakuigady, conseguem algum dinheiro com a sua venda, seja dos
karaiwa que vão até as suas aldeias, seja quando vão participar de eventos em outras
cidades, como Jogos Indígenas, apresentações culturais, campeonato de arco-e-flecha,
encontros políticos etc. Entretanto, não há grande empenho coletivo na venda de artesanato.
Poucas pessoas fazem peças com intenção de comercializar; geralmente confeccionam
apenas para seu uso próprio, justificando-se que há uma grande desproporção entre o tempo
e o trabalho gastos na confecção do artesanato e o preço pelo qual conseguem vendê-lo,
“não valendo a pena”. A maioria das pessoas prefere, então, não dedicar seu esforço a esta
fonte de recursos. A comercialização de artesanato, portanto, pode ser considerada apenas
uma atividade complementar para algumas famílias.
Outra atividade que atualmente tem pouca importância, mas que no passado ocupou
papel relevante entre os Bakairi, embora nunca fosse preponderante como a pesca, é a caça.
Hoje em dia uma reclamação generalizada de que a caça está cada vez mais escassa
devido ao desmatamento nas fazendas que circundam a área (e também ao crescente
desmatamento interno). Por isso, animais como antas, pacas, quatis, jabotis, tartarugas,
tamanduás, veados, porco-do-mato etc. não seriam mais vistos na região como o eram
antigamente. Entretanto, quando os homens em suas andanças para espaços afastados da
aldeia para pescar ou realizar outra atividade se deparam com alguma caça esta não é
desprezada e é logo abatida, sendo bastante apreciada.
Algumas famílias contam ainda com a criação de animais como fonte de renda.
Criam-se galinhas, porcos e gado. Este tipo de atividade justifica-se pelos conhecimentos
adquiridos por muitos dos Bakairi, primeiro sob o regime do SPI, depois ao trabalharem
nas fazendas que circundam a reserva indígena.
115
3.1.2. Recursos e produtos externos: dinheiro e consumo de bens industrializados
Na época em que a antropóloga americana Debra Picchi fez sua pesquisa sobre a
economia bakairi (1979-1981), as atividades anteriormente citadas eram a principal fonte
de sobrevivência . A conclusão a que chegou após seu estudo foi a de que dados a taxa de
crescimento populacional, o tamanho da terra indígena e o desgaste do solo (em geral, de
qualidade para a agricultura), os Bakairi iriam enfrentar no futuro dificuldades para a
sua reprodução física e social. Ela afirmava que a solução seria um investimento na
agricultura mecanizada, a despeito das incompatibilidades entre esta atividade e a
organização social bakairi, tendo em vista a ociosidade que geraria para a maioria dos
homens, bem como a citada dificuldade em se realizarem trabalhos que envolvam muitas
parentelas. A longo prazo, no entanto, a terra acabaria ficando realmente pequena para
sustentar toda a população, que assim estaria correndo o risco de séria pauperização
(Picchi, 1988; 1991; 2000).
No entanto, ela aventava, a partir do que teria observado em seu retorno aos
Bakairi no início da década de 1990, uma outra alternativa econômica: o acréscimo do
número de aposentados e funcionários da FUNAI. Aqueles, recebendo à época de sua
pesquisa, a cada três meses, benefícios advindos do FUNRURAL via FUNAI, somavam 25
pessoas. O dinheiro recebido era mais que o dobro do que recebiam os Bakairi que
trabalhavam de peão” nas fazendas da redondeza. Os contratados da FUNAI estavam
multiplicando-se, tendo em vista principalmente os novos cargos de professores indígenas e
agentes. Estes últimos se dividiam entre os que ficaram trabalhando na área e os que se
mudaram para Cuiabá, mas que continuavam a contribuir com a economia local através da
remessa de dinheiro para os seus parentes .
Debra Picchi, entretanto, não teve como prever a dimensão que este fenômeno
tomou a partir de então, quando houve um aumento ainda maior do que o previsível do
116
número de assalariados
140
entre os Bakairi, a partir especialmente da contratação de
professores e agentes de saúde indígenas. Hoje, é esta a fonte de recursos mais importante,
principalmente no que diz respeito à aquisição de bens industrializados.
Vejamos no quadro abaixo a distribuição dos assalariados nas diversas categorias:
Quadro do número de funcionários públicos na Área Indígena Bakairi (aposentados,
pensionistas, funcionários federais e municipais) – ANO DE 2004
APOSENTADORIA RURAL (benef. mensais) 51
ANTIGO SPI/ MIN. DA AGRICULTURA 3
PENSIONISTAS 14
FUNAI 09
FUNASA (agentes de saúde) 03
MUNICÍPIO (ESCOLA) 22
AGENTE INDÍGENA DE SAÚDE 06
AGENTE INDÍGENA DE SANEAMENTO 06
TOTAL 124
A escalada do aumento das pessoas que recebem salário mensalmente pode ser
notada através de uma comparação entre a época da pesquisa de Debra Picchi e hoje. Se
naquele tempo havia 25 aposentados, hoje o número dobrou. A escola é a instituição que
mais contribuiu para este fenômeno, pois até o início da década de 1980 não havia nenhum
professor indígena contratado e hoje eles já perfazem 21 (18 pelo município de Paranatinga,
um somente pelo governo do estado de Mato Grosso e dois que aparecem no quadro entre
os funcionários da FUNAI). Aprofundarei a questão dos funcionários da educação na
segunda parte da tese, mas adianto desde já a importância da escola neste quadro pois, além
de ser a instituição que mais emprega funcionários (professores, merendeiras), também é
tida como a principal fonte de conhecimentos para a qualificação de novos funcionários.
O fenômeno de ‘funcionarização’ da economia bakairi trouxe algumas
transformações. Em primeiro lugar, contribuiu significativamente para a diminuição do
número de roças familiares (âpaezary), de forma geral, mantidas hoje em dia apenas pelos
não-funcionários. A pescaria, para os assalariados, é atualmente mais uma atividade
esporádica do que necessária ao sustento da família. Por outro lado, o dinheiro que entra
através do salário e dos benefícios previdenciários é usado em parte para a aquisição de
140
Nesta categoria incluo os “funcionários” da Prefeitura de Paranatinga, da FUNAI e da FUNASA, bem
como os aposentados e os pensionistas, ou seja, todos os que recebem mensalmente salários propriamente
ditos ou benefícios.
117
gado, contribuindo para o incremento da pecuária. A maior parte do capital, entretanto, é
usada para a compra de produtos manufaturados, principalmente alimentos, roupas,
eletrodomésticos e, mais recentemente, carros e material de construção.
A compra mensal feita pelas famílias na cidade de Paranatinga inclui itens
como feijão, óleo, açúcar, sal, farinha de trigo, café e sabão, aos quais se pode acrescentar –
de acordo com a possibilidade de cada família e a maior disponibilidade de dinheiro – pasta
de dente, leite, iogurte e balas para as crianças, xampu e sabonete. Produtos mais caros
também estão cada vez mais sendo consumidos, como vestuário (principalmente de
crianças e jovens) e eletrodomésticos. Os pais não poupam esforços no sentido de
comprarem roupas (artigo em geral caro na cidade de Paranatinga) para seus filhos,
recorrendo a prestações e a empréstimos, o que faz com que estejam sempre às voltas com
dívidas.
Outro setor que está acarretando endividamento é o de eletrodomésticos.
Assim, logo que podem, as pessoas abrem um crediário na cidade para comprar aparelhos
de televisão, antena parabólica, freezer ou geladeira, ferro de passar roupa etc. Muitas vezes
estes artigos são adquiridos mesmo sem a certeza de que se poderá arcar com o pagamento
das parcelas do crediário, o que acarreta ‘visitas’ de representantes dos estabelecimentos
comerciais às aldeias como forma de pressionar o pagamento com a ameaça de devolução
do produto. Eu mesma presenciei uma dessas investidas, o que causou pânico de muitas
pessoas, embora, pelo que eu saiba, não tenha acarretado devolução de artigos.
Investimentos de maior monta estão crescendo rapidamente entre os Bakairi, incentivados
por mais facilidades de acesso aos empréstimos bancários (o que devido aos altos juros
transforma-se rapidamente em outra fonte de endividamento). Estou me referindo
principalmente a aquisição de caminhonetes e, ainda de forma incipiente, de material de
construção.
141
Geralmente também são as famílias de assalariados que podem adquirir um veículo,
esse bem tão caro. O carro, além de dar independência em termos de deslocamento para as
outras aldeias e para Paranatinga, tornou-se um importante símbolo de progresso familiar.
Dizem que quem não tem carro fica “de olho”, com inveja (âsewânily) daqueles que o têm.
141
Ter uma casa de alvenaria começa a ser vislumbrado como um sonho a ser concretizado pela nova
realidade de acesso a salário e a empréstimo. A ‘casa de material’, como é chamada, vem se constituindo
como importante signo de status, enquanto expressão da relação prestígio/civilização.
118
A utilização do carro segue as mesmas regras de acesso às casas descritas anteriormente, ou
seja, ele é restrito a parentes próximos. Para os outros só é possível mediante pagamento de
“frete”. Atentei para este fato quando um dia fui informada por alguém que a família de um
determinado dono de carro não estava gostando do fato de eu estar andando no seu carro
sem ao menos ser seu parente. Pude perceber, então, que duas formas de se utilizar um
carro: ou pertencendo à família do dono ou pagando pelo serviço. O chamado frete”
constitui-se ainda como mais uma fonte de renda para algumas famílias.
3.2. Produzindo parentesco: famílias e facções
Esta nova realidade, caracterizada pela maior afluência de mercadorias e dinheiro
não deve ser vista como utilizando a expressão de César Gordon sobre os Xikrin
“instrumento de impessoalização” (Gordon, 2003:211), ou seja, a transformação econômica
ocorrida nos últimos anos não alterou o caráter das relações entre os Bakairi, marcadas,
como vimos, principalmente pelos laços familiares e pelas disputas (âtuagadyly) entre os
subgrupos (subfamílias, facções).
Neste sentido, devo ressaltar que uma vez que o dinheiro ou as mercadorias chegam
aos Bakairi, tudo passa a circular pelas redes de parentesco. Isto vale para as aposentadorias
dos velhos, que é muitas vezes a única fonte regular de dinheiro de uma casa, como ilustra
o exemplo do homem que lamentava que sua sogra (aposentada) não vivesse em sua casa,
pois assim poderia contar com uma renda certa todo mês. Outra forma de circulação é
através dos empréstimos, seja de dinheiro (em menor intensidade) ou de mercadorias, entre
os parentes próximos. É muito comum as mulheres irem à casa de suas parentas para
solicitar um pacote de café, um pouco de açúcar, uma lata de óleo e assim por diante, com a
promessa de que logo serão devolvidos. Muitas vezes o empréstimo não é reposto a curto
prazo; todavia, devido à rede de reciprocidade entre os parentes-perto, logo aparece uma
oportunidade para quem tomou emprestado poder retribuir com algum bem (âdydâemeon)
ou favor.
também o costume de repartir as compras com os sogros. Assim, um genro ou
nora, logo que voltam da cidade, devem oferecer àqueles uma parte das mercadorias
119
adquiridas. Às vezes, podem acontecer doações também no sentido inverso, embora seja
mais incomum. Ocorre ainda do alimento ser repartido entre as subfamílias
principalmente depois de preparado: bolo, carne, peixe, beiju etc.
142
. Finalmente, um
fluxo de dinheiro propiciado pela ‘contratação’ por parte dos assalariados de pessoas,
preferencialmente parentes, para a realização de serviços, como construção de casa, capinar
o terreno, cuidar do gado.
Com efeito, todo o sistema é permeado pelas redes de reciprocidade que constituem
o parentesco, em que dar (kâunduly), receber (kâemakely), emprestar, contratar, operam no
sentido da reprodução familiar, como vimos, centrada principalmente no compartilhar dos
alimentos (pyni epajigâdyly) e na preocupação (adahulily) de uns com os outros
143
. Ou,
como diz César Gordon falando de fenômeno semelhante entre os Xikrin: “porque é apenas
pelo idioma do parentesco que se pode estabelecer a idéia da partilha e, conseqüentemente,
da identidade e, enfim, da sociabilidade” (Gordon, 2003:219).
Ainda nesta direção, os produtos manufaturados são vistos como forma de cuidar e
de agradar a família, principalmente os filhos, a quem sempre que podem dão balas,
biscoitos, brinquedos, roupas e sapatos, fazendo valer para os Bakairi o que Gordon relatou
sobre os Xikrin: “Todas essas coisas, dizem os Xikrin, servem para melhorar a vida e
agradar as pessoas, que se sentem felizes em poder alimentar, vestir e enfeitar a si mesmas
e aos parentes” (Gordon, 2003:241).
As mercadorias e o dinheiro são valorizados ainda como “signo atual de prestígio” –
para usar a expressão de Gordon (2003) e neste sentido dizem respeito também às
disputas entre famílias, podendo adquirir várias formas, desde a possibilidade de promoção
de rituais até a ostentação de bens como demonstração de progresso em relação aos demais,
o que ocorre principalmente paraos produtos mais caros, como é o caso do automóvel.
Entretanto, esta atitude, novamente, pode significar a atração da inveja (âsewânily) dos
142
Os alimentos adquiridos internamente – peixe, carne, leite, massa para beiju, mandioca, frutas seguem o
mesmo circuito dos manufaturados.
143
Fui informada de que antigamente a obrigação de repartir era respeitada à risca; hoje, todavia, “a situação
está muito difícil” e por isso não se tem fartura de alimentos para repartir entre todas as pessoas, como se
deveria.
120
outros, o que é temido, pois é passível de ocasionar um maior afluxo de fofocas sobre
aquela família, bem como instigar os ome odo (feiticeiros) a prejudicá-la.
144
Ainda é sinal de prestígio ser promotor ou ‘dono’ (sodo) de uma cerimônia coletiva
(kado), seja pelo que possa representar para o reconhecimento público de uma pessoa, seja
também por ser indício de que ela, através de seu trabalho,
145
está conseguindo prosperar,
visto que o promotor de uma festa tem que arcar com grandes despesas. De fato, as festas
de santo e o kado
146
são responsáveis pelo aumento da produtividade econômica em certas
épocas do ano. Assim, nessas cerimônias, é necessário que haja peixe, carne de caça e
mandioca para fazer farinha, beiju e mingau (pogo). Ou, no caso das ‘festas de santo’, que
pelo menos uma novilha seja abatida, para que juntamente com feijão, arroz e mandioca
possa ser preparado o ‘almoço’. Além disso, precisa-se de mandioca para a produção de
polvilho (samu), matéria-prima dos biscoitos distribuídos ao amanhecer. Gasta-se também
com os enfeites, sucos e fogos. Como ilustração da valorização da posição de ‘festeiro’, isto
é, aquelas pessoas que promovem as ‘festas de santo’ cito o fato de alguns ‘chefes de
família’ passarem muitas semanas trabalhando nas fazendas vizinhas ou em algum outro
‘serviço’ dentro da área mesmo, visando adquirir uma cabeça de gado para o almoço da
festa, mesmo que normalmente não realizem esse tipo de trabalho durante o restante do
ano.
Vimos até agora como os Bakairi se organizam socialmente a partir da abordagem
do movimento de suas relações, seja no sentido de aglutinar pessoas, seja no sentido
inverso, de criação de facções e disputas. Ambos os movimentos são inteligíveis a partir do
idioma do parentesco. Temos agora a base necessária para entender o lugar da instituição
escolar na vida social bakairi, já que, segundo minha interpretação, esta se insere em um
144
Este “medo” da inveja também foi notado por Aristóteles Barcelos entre os Wauja: “A noção wauja de
inveja-ciúme talvez evidencie uma percepção da distribuição desequilibrada dos bens materiais e imateriais.
Sempre que eu realizava um pagamento mais substancial a algum colaborador, este me pedia para não
divulgar: queria evitar a inveja-ciúme dos feiticeiros, dos fofoqueiros e dos que não gostam dele. Os Wauja
dizem que os feiticeiros pensam que se estes não podem usufruir do que é dos outros, que os outros também
sejam privados de usufruir de seus bens, sejam estes artefatos ou o bem-querer de alguém” (Barcelos, 2004:
nota 67:117).
145
Ser trabalhador é uma qualidade admirada em uma pessoa. Lembro-me de uma carta escrita por uma
criança da escola direcionada à minha mãe, na qual, a título de elogio, estava escrito “a senhora é muito
trabalhadora”.
146
Atualmente o kado bakairi diz respeito às seguintes cerimônias: Iakuigady, Anji etabeinly, Âriko, Kapa.
Volto ao assunto dos rituais no capítulo V, onde também abordo as chamadas “festas de santo”.
121
sistema maior, voltado para a construção da pessoa (kurâ), compartilhando o mesmo
domínio do qual fazem parte o que poderíamos chamar de educação cotidiana ou informal,
bem como os rituais coletivos (kado).
Parte II: Formando pessoas/kurâ
Na primeira parte desse trabalho vimos o modo como os Bakairi se organizam
socialmente: as forças que agem aproximando e distanciando as pessoas, formadas a partir
do parentesco, não obstante também formadoras do parentesco. Neste contexto as famílias
são, além de unidades sociais, o maior valor bakairi. Veremos nesta segunda parte os
122
processos voltados para a formação da pessoa (kurâ). Um aparato de técnicas, práticas,
normas, conceitos, comportamentos e ideais, que tem como seu fim último a reprodução
física e social das famílias
147
, e desenvolve-se por articulação de níveis interligados tanto
por co-relações como por incongruências, através das quais pretendo explicitar a sua
dinâmica. Podemos definir esses veis, ou momentos, em termos de formalismo e espaço.
O primeiro diz respeito ao caráter de formalidade ou informalidade das práticas
‘educativas’. O segundo em conformidade com a relevância dada aos aspectos
geográficos como maneira de organizar a vida social bakairi, tema da primeira parte da tese
organiza os modos de formação de um kurâ ideal de acordo com um recorte espacial, ou
seja, por um lado, parte-se das relações internas à aldeia, as dos domínios público e
privado; por outro lado, parte-se das relações entre os kurâ (nós, gente, Bakairi) e outros
universos (kuohoronmondo: “os de fora”).
Mais concretamente estou me referindo a quatro momentos que qualifico serem
imprescindíveis atualmente na constituição da pessoa bakairi, kurâ: a educação informal e
familiar; os momentos de reclusão (wanky) e iniciação; as cerimônias do kado; por fim, a
escola. A educação informal e familiar dá-se nos limites domésticos da casa (âtâ) e suas
extensões (paisare, “roça”, “ceva”, local de pesca). A reclusão seria a expressão máxima do
enclausuramento doméstico. No caso de nascimento, iniciação pubertária feminina, luto e
iniciação do pajé, o processo de ‘iniciação’ coincide com o estado de reclusão. Já a
iniciação pubertária masculina divide-se em dois importantes momentos: o sadyry festa
onde os jovens têm os lóbulos de suas orelhas perfurados e depois a reclusão. Desta
forma, se as primeiras situações de reclusão citadas correspondem a uma exacerbação do
‘privado’, a última acontece parte em domesticidade completa e parte na maior expressão
pública: a festa.
Atravessados os limites das casas (âtâ), temos os ritos (kado) e a escola. No caso
desta última, é clara a sua vinculação ao universo de formação da pessoa na realidade
contemporânea bakairi, principalmente no que diz respeito à aquisição de conhecimentos e
hábitos vistos como os meios para garantir uma sobrevivência cada vez mais dependente
dos recursos (dinheiro, produtos) dos karaiwa. O kado, por sua vez, vincula-se à formação
147
Nesse sentido esta tese pretende contribuir para os trabalhos desenvolvidos sobre a ‘fabricação do
parentesco’ como o de Peter Gow (1991), que também destaca a escola como espaço fundamental na
reprodução do parentesco dos Piro.
123
do kurâ de maneira não tão aparente, mas igualmente fundamental, pois propicia, como
veremos, ordem e fartura, a base para a continuidade da reprodução familiar (fim último de
todo o processo de formação). Assim, se a reclusão acontece em uma situação doméstica
extrema, a ´iniciação´ pubertária masculina está localizada na confluência dos níveis
doméstico e público; os outros dizem respeito tanto ao domínio público da aldeia quanto às
relações travadas com ´os de fora´ (kuohoronmondo). No quadro abaixo, sintetizo estas
observações:
Formação do kurâ ideal
doméstico extremo doméstico público
formal informal formal
reclusão educação
cotidiana
sadyry rituais do kado escola
Relações internas Relações com o exterior
Veremos, entretanto, que esta classificação permite a ocorrência de aspectos que
escapam à sua aparente regularidade. Como exemplo, adianto a questão da reclusão
(wanky), pois ao mesmo tempo em que pode ser considerada a exacerbação do ´privado´,
ela permeia também o universo escolar (espaço público). A escola, como veremos,
assemelha-se em muitos aspectos à antiga reunião dos rapazes no kadoety (casa do kado,
ritual) durante os anos necessários à sua formação como pessoa, apesar de haver, entre
outras, uma diferença notável: a presença de mulheres entre os alunos da escola.
Passo a tratar, em seguida, de cada um dos domínios de construção da pessoa
bakairi (kurâ). Iniciaremos pelo pólo doméstico, abordando a chamada “educação
informal”, para então nos reportarmos à reclusão e aos ritos de iniciação, depois à
compreensão do sistema cerimonial do kado e, finalmente, chegarmos à escola,
fundamentando sua integração no processo educacional mais amplo. Neste sentido,
recorrerei tanto a dados históricos, a fim de mostrar como a escola se constituiu enquanto
tal, quanto a dados etnográficos sobre a realidade atual da escola kurâ.
124
Capítulo IV
Formando pessoas: aprendizado doméstico, iniciação e wanky (reclusão)
3. A informalidade do espaço doméstico
Para que alguém possa ser considerado uma ´boa pessoa´ (kurâ koendonron), deve
desenvolver uma série de atributos comportamentais, o aprendizado de técnicas e saberes
Formatados: Marcadores e
numeração
125
para a reprodução de si e de seu grupo familiar, e ainda ter tudo isso corporificado em
força, disposição e beleza. O modo de agir da pessoa deve seguir os valores de
generosidade, passividade e independência. Os dois primeiros correspondem ao que Ellen
Basso chamou de ifutisu entre os Kalapalo, comportamento definido pela evitação da
agressividade pública e também pela generosidade (Basso, 1973:12,13). A generosidade
(tâwârenry) bakairi é expressa em sempre ceder a pedidos, seja de ajuda ou de bens, e
também através da boa hospitalidade aos visitantes, tentando agradá-los e nunca
demonstrando descontentamento. Dificilmente, portanto, ouve-se um Bakairi negar
diretamente uma solicitação de alguém (principalmente dos afins), mesmo quando se
utilizam de subterfúgios para conseguir ‘sair da situação’. Assim, por exemplo, a um
convite para jogar futebol em outra aldeia, um rapaz pode dizer que irá “se nada de
diferente acontecer”, dando a entender que no caso de sua falta “algo lhe aconteceu”. O
trabalho (âsewanily) pode ser considerado um valor subsidiário da generosidade, sendo seu
objetivo maior a produção de bens, revertidos tanto em alimentos, enfeites e utilidades para
si próprio e sua família, como também doados e emprestados, conferindo prestígio e
respeito ao doador. nos Bakairi algo semelhante ao que Gregor diz a propósito de
“ricos” e pobres” na sociedade Mehinaku: os últimos têm que pedir emprestado, com
freqüência, algum objeto valioso a alguém geralmente classificado como “rico” (Gregor,
1977:193).
O ideal da passividade (tewiâseba) é percebido pelo fato de não se poder
demonstrar agressividade (tewiâsein), principalmente em público. É comum que pessoas se
tratem bem quando estão em meio a outros, mas uma vez em seus lares são capazes de
transformar sua ´raiva´ (tewiâsein) em críticas e fofocas. Muitas vezes é difícil conciliar os
ideais de generosidade e de não-agressividade; como disse, alguém que tiver que ceder a
um pedido a contragosto sentirá ´raiva´, sentimento que poderá ser expresso no espaço
privado.
A independência ou a autonomia dos grupos familiares e das pessoas também é um
valor importante. O kurâ é educado para ser independente dos outros, para poder garantir
sua subsistência somente com a ajuda de seus co-residentes. Além disso, é condenável que
um membro de uma família interfira diretamente nos assuntos de outra e, principalmente,
´mandar´ em alguém. Veremos no capítulo VII, que no ambiente escolar também prevalece
126
a autonomia dos atores (alunos, professores), os quais se relacionam e se organizam através
de instituições mediáticas ‘tradicionais’, como é o caso do ‘dono’ (sodo), figura
indispensável para a realização de qualquer cerimônia coletiva bakairi.
Ser um ‘bom kurâbem disposto (particularmente para tarefas físicas), generoso,
pacífico e autônomo política e economicamente é conseqüência de uma variedade de
práticas, contextos, métodos e atitudes aos quais uma pessoa se submete e é submetida.
148
No vel doméstico, caracterizado principalmente pela informalidade das relações, isto se
traduz em (i) observar/interagir: escutar, falar, perguntar; fazer: imitar, participar, repetir,
memorizar; (ii) técnicas de construção e de fortalecimento do corpo (sodo
149
). Desta forma,
é moldado não o comportamento da pessoa, como acontece o aprendizado das
habilidades necessárias para a sua reprodução física e social. No caso dos homens, serem
bons pescadores, trabalhadores e indivíduos sociáveis. No caso das mulheres, saberem
desempenhar bem as tarefas domésticas –: fazer rede, fiar, cuidar dos filhos, ter uma boa
gravidez e pós-parto e se manterem a maior parte do tempo no ambiente da casa. Ouvi,
certa vez, que o ideal de homem adulto estaria concretizado na habilidade de fazer sozinho
uma casa, ao que corresponderia à mulher tecer sozinha uma rede:
Antigamente, eu ouvi a minha tia falar que para ser um bom homem, herói, a gente
faz, pra não ter problema dessas coisas, serviço de homem, ele mesmo que faz a roça,
ele mesmo que é a cabeceira de tudo, pra ser isso. Pra isso que tem que preparar.
Pra ser uma mulher independente também. Serviço de mulher é... a rede. Que é mais
difícil pra nós mulher. Pra homem é a casa. Minha tia sempre falava. Se a senhora
fazer rede sozinha, sem ninguém ajudar, sem ninguém estiver ali perto a senhora é
considerada uma mulher ideal mesmo para fazer... Pra homem é fazer casa sozinho e
fazer roça sozinho. A mulher é a rede. Se eu dou um saco de algodão para a senhora
fazer sozinha, fiar algodão a terminar, oito, nove novelo até terminar pra rede,
grande mesmo, se a senhora terminar sozinha, aquele diz que a senhora é uma
mulher que ... agora já tá quase acabando, eu vejo assim, não é por parte das
mulheres, porque homem que faz roça, planta algodão, agora homem não faz roça, só
planta lavoura. Na lavoura é difícil ter algodão, mais na roça. (R.O., abril de 2004,
Aldeia Pakuera
150
).
148
O verbo usado para referir-se a ´criar filhos´ é nh-enamanân-dyly.
149
Termo usado para referir-se à ‘base’, ‘suporte’, sendo empregado para designar um tronco de árvore ou
corpo de pessoa ou animal. Também adquire significado de ‘dono de’, conforme será demonstrado no
próximo capítulo.
150
A entrevista da qual esta citação faz parte inclui outros trechos interessantes para a presente argumentação
e que aparecerão mais adiante. Devo destacar que a sua abordagem como exemplo de uma situação geral se
explica, apesar de se tratar de idéias advindas de uma pessoa, por expressar satisfatoriamente opiniões
colhidas informalmente entre várias outras pessoas.
127
Este relato expressa a importância dada à independência pelos Bakairi (“ele mesmo
que faz a roça, ele mesmo que é a cabeceira de tudo; pra ser uma mulher independente”).
Também nos revela que esta qualidade deve ser construída ou conquistada (“Pra isso que
tem que preparar”) através do aprendizado de habilidades simbolizadas na capacidade em
construir uma casa ou em tecer uma rede.
No processo de formação de um kurâ, são utilizados especialmente três níveis
complementares de técnicas de comunicação: a oralidade/escuta, o exemplo/participação, e
a ação sobre os corpos. A oralidade/escuta manifesta-se tanto em relação à transmissão
indireta de habilidades (ouvir conversas), quanto no aconselhamento (xurudyly
151
) sobre
formas de comportamento consideradas ideais. Mães, pais e avós mostram aos jovens o que
é visto como ‘certo’ e como ‘errado’. À medida que as crianças vão crescendo e sua
compreensão vai se ampliando, o discurso passa a ficar mais complexo do que nos
primeiros anos. A oralidade, apesar de poder ser um recurso utilizado isoladamente,
também é capaz de desempenhar importante papel nos outros dois níveis descritos, unindo-
se ao exemplo, à participação e ao processo de fabricação dos corpos.
Entretanto, é importante discernir entre a oralidade enquanto parte do contexto de
aprendizado e a ‘explicação’. Como bem desvendou Ingrid Weber, a partir de sua vivência
com os Kaxinawá e das idéias levantadas por Cecília McCallum (1989; 1996), Tim Ingold
(2000) e Elsje Lagrou (1991; 1998):
Certamente, fiar algodão não é algo que se aprende somente com explicações verbais,
pois, como qualquer habilidade manual, requer muita prática. Contudo, no começo de
meu aprendizado, eu estava certa de que algumas dicas básicas poderiam me ajudar,
tais como: em que parte da perna exatamente colocar o fuso, como girá-lo, quão
esticado deve estar o fio etc. No entanto, esse tipo de explicação parecia ser algo
alheio àquele contexto. Assim como no caso da alfabetização, tratava-se de um
aprendizado sem palavra (Weber, 2004:142).
Passei por experiências semelhantes entre os Bakairi no beneficiamento da
mandioca, na confecção de rede, na preparação do alimento – as quais me permitem chegar
à mesma conclusão de Ingrid Weber. Havia, por um lado, uma demanda de minha parte de
151
Xurudyly é usado em referência a ‘conselho’ e a ‘aviso’, ‘recado’, ou seja, uma mensagem enviada a
alguém. Aconselhar pode ser visto como um caso
dentro do universo das formas de passar uma mensagem, o
que pressupõe tanto a presença das pessoas envolvidas (diferente de ‘recado’), quanto uma hierarquia entre o
que ‘dá’ o conselho e aquele que o ‘recebe’. O termo também é usado para falar da ‘criação’ das pessoas, do
aprendizado dos valores e das habilidades considerados importantes para a sua constituição.
128
certa racionalização do processo a ser expressa através de uma ‘explicação’; por outro,
minhas ‘instrutoras’ insistiam em que eu aprendesse por meio da observação e da prática.
Durante meu aprendizado de tecer rede, por exemplo, no que eu solicitava uma explicação
tinha como resposta: “olha!”, ou então: faz”, e se depois de fazer ainda não estivesse
correto: “repete!”, “pratica!”. A prática é, portanto, o principal método de aprendizado e ela
adquire várias formas no decorrer do processo: estar atento, imitar, repetir, memorizar,
participar, conviver.
Deste contexto decorre ainda uma outra particularidade, a saber, o papel de quem
ensina (enomedâdyly) é menos relevante no processo do que aquele de quem aprende
(âsenomedâdyly). Aliás, âsenomedâdyly quer dizer literalmente ‘ensinar-se’ (onde âs- é um
prefixo que se traduz por agentividade reflexiva; e enomedâdyly, por ‘ensinar’), indicando
que ‘aprender’ seria o decurso de uma ação no qual o sujeito está ativo, ‘ensinando-se’ mais
que ‘sendo ensinado’. No caso da confecção da rede, por exemplo, quase todo o sucesso
dependia da minha postura e do meu esforço, a ‘instrutora’ estando ali mais como um
‘modelo’ a ser copiado do que como uma ‘fonte’ de idéias verbalizadas e explicações.
Assim, a ênfase é dada mais no ‘aprender’ do que no ‘ensinar’, nas palavras de Ingrid
Weber: “o conhecimento é muito mais apre(e)ndido do que ensinado”(Weber, 2004:121).
Neste sentido, chama a atenção o destaque que os Bakairi dão para a idéia de
interesse (âsewâninryn
152
), que parece adquirir um sentido baseado na capacidade de
aprendizado a partir de uma inteligência definida em relação ao esforço pessoal: “este meu
filho é interessado, rápido ele aprende”; a senhora aprende; se a senhora se interessar,
aprende” (com referência ao meu interesse pela língua bakairi). O aprendizado da criança,
ou do aluno (no caso da escola), é visto, portanto, mais como uma conseqüência de seu
esforço/vontade/inteligência do que da eficiência de pai/mãe ou professor.
A contextualização da pessoa na aquisição de capacidades inicia-se desde muito
cedo, seguindo um crescendo que estabelece para os mais jovens tarefas bem simples, mas
à medida que vão crescendo e aumentando seu domínio sobre as atividades, sua
participação vai se ampliando. As meninas, por exemplo, iniciam seu aprendizado
participativo por meio de algumas atividades, como encher garrafas d’água, depois passam
152
Palavra usada com referência à idéia de ‘desejo’, ‘inveja’ (desejo de algo que pertence a outro), ‘interesse’
(desejo relativo a uma conquista por méritos próprios, através de esforço/atenção).
129
a ajudar na lavagem da louça e da sua própria roupa e aprendem a fazer coisas mais fáceis
na cozinha, como passar um café. Ao cuidarem das crianças menores, também vão
aprendendo habilidades que serão usadas quando tiverem seus próprios filhos. Observei que
por volta dos 15 anos as moças já sabem fazer sozinhas a maioria dos trabalhos domésticos.
Entretanto, foram muitas as mulheres que me confessaram que ao se casarem ainda não
dominavam todo o conhecimento que deveriam, tendo terminado de se ‘formar’ somente
após o casamento. Na fala reproduzida abaixo, é relatado, na versão de uma mulher/mãe
bakairi, como acontece o aprendizado feminino, através da própria experiência com suas
filhas:
A gente manda ela fazer qualquer coisa, manda limpar a casa, ajuda a pegar as coisas,
manda falar com a pessoa qualquer coisa, manda recado. A gente ensina tudinho.
Como eu falei pra senhora, ela está começando a limpar casa, com idade de quatro
anos. (...) Com idade de sete, oito anos é que ela vai começar a fazer qualquer coisa,
lavar louça, limpar a casa, ajudar a mãe mesmo, porque já vai para 10 anos. Tem sete,
oito, nove anos ela não trabalha muito, mas quando tem alguma coisa, ela faz. Com
idade de 10 anos sabe tudo, já está quase sabendo tudo, como minha filha que eu
falei para senhora. Ela está me ajudando, ela sabe fazer “pogu” (mingau), sabe fazer
qualquer coisa sozinha. Ela vai fazer sozinha. Na parte da casa. (...) Sem
acompanhar, com 11 ou 12 anos, porque no início, porque com 10 anos, nove
anos ela faz sozinha, ela limpa casa sozinha. Com 12 ou 13 anos ela faz sozinha.
Com 15 anos minha outra filha ela faz as coisas sem eu mandar agora. Comida. Se
ela não sabe cortar, ela pergunta. Sozinha, sem depender de mim (R.O., abril de
2004, Aldeia Pakuera).
Ainda, segundo essa pessoa, a partir da reclusão pubertária feminina, outros
aprendizados são iniciados: A gente ensina ela a fiar, fiar algodão, lavar roupa e ajudar a
fazer massa. Ir junto no rio ajudar a lavar roupa, apanhar lenha, essas coisas. O que a mãe
faz, ela faz” ( R.O., abril de 2004, Aldeia Pakuera).
Percebemos, então, que o aprendizado da menina vai se desenvolvendo no sentido
de ganhar complexidade e independência em relação à mãe. O ideal é que quando se case já
saiba desempenhar a maioria das tarefas femininas. os meninos, segundo essa mesma
pessoa, aprendem a realizar tarefas diferentes, estando para isso sempre próximos ao pai:
Menino desde pequeno está querendo acompanhar o pai, aonde o pai vai ele quer ir,
ele quer pescar. Como meu filho mesmo, ele tinha anzolzinho para ir pescar. Quando
pai montava no cavalo, ia pro campo, ele queria também. É assim que é criança,
130
desde pequeno, com quatro anos, cinco anos quer acompanhar pai. Pai faz, ele quer
fazer. (...) Agora, homem com 11 anos, 12 anos pode andar sozinho, pegar peixe
sozinho. Mesmo antes de furar orelha, porque quando ele furar orelha, que ele fica
mais homem. Mas mesmo antes, esse guri corajoso, ele faz sozinho. Como eu falei
para a senhora, ele era meu filho teimoso, porque ele montava no cavalo, ele ia aonde
ele quiser ir e ele ia. Ele caía, mas mesmo assim ele ia, ele ia pescar sozinho ( R.O.,
abril de 2004, Aldeia Pakuera).
Os meninos, tanto quanto as meninas, vão aprendendo através do acompanhamento
dos pais. Vão observando, fazendo/imitando, escutando, repetindo, praticando e, assim,
aprendendo. Também aos poucos o ficando mais independentes, podendo amesmo
afastarem-se sozinhos de casa e do centro da aldeia. Depois que passam pelo ritual de
furação das orelhas e ficam ‘mais homens’, são considerados realmente independentes.
153
Todavia, existem algumas atividades vistas como importantes de serem aprendidas antes de
se casarem e, apesar do lamento dos mais velhos, cada vez menos rapazes estão
interessados
154
em dominá-las. Sobre seu filho casado, a entrevistada comenta: “Como
ele ainda não sabe fazer flecha sozinho, ele tem 18 anos. Esse difícil de fazer esse apá,
essas coisas” ( R.O., abril de 2004, Aldeia Pakuera).
Entretanto, ela justifica essa ‘falha’ no aprendizado dos rapazes pelas muitas
mudanças ocorridas nas últimas décadas, principalmente no que se refere à sua iniciação,
que durava muito mais tempo. Era quando eles aprendiam habilidades importantes:
Por isso que antigamente tinha um professor também para ensinar o rapaz na própria
casa. Um homem mesmo que mandava... cacique, por exemplo, cacique.
Antigamente, agora não, agora estragou tudo. Geralmente era cacique, cacique,
vice, essas pessoas, porque antigamente os homens iam onde está o Kadoety. Todo
mundo ficava lá, que ficava os homens, a rapaziada. Eu não sei se é Xavante ou
Xingu que não larga disso, agora, Bakairi... eu não alcancei deste tempo (R.O., abril
de 2004, Aldeia Pakuera).
153
Sobre o ritual de furação de orelha, sadyry, ver item 2 deste capítulo.
154
Aqui o conceito de ‘interesse’ (âsewâninryn), tratado anteriormente como uma capacidade/inteligência/
esforço, é utilizado de forma um pouco diferente, embora possamos estabelecer uma analogia entre eles,
principalmente se pensarmos a relação esforço/motivação: o interesse/esforço por certas práticas está
diminuindo proporcionalmente à desmotivação (pouco ‘querer’) promovida pela produção de alguns artigos
após o contato com os karaiwa. Entre outros motivos, há vários equivalentes de artefatos “tradicionais”
bakairi – que demandam muito tempo e trabalho para serem feitos – que podem ser adquiridos rapidamente na
cidade, como no caso das frigideiras em relação à panela de barro (âmugâ).
131
Em seu relato, ela está se referindo a uma importante etapa da educação dos jovens
bakairi que foi extinta depois da atração pelo SPI. Antes desse período, era comum os
jovens do sexo masculino passarem meses vivendo reunidos na “casa dos homens” ou na
“casa do ritual” (kadoety), e aprendiam as muitas habilidades e comportamentos que
teriam que utilizar em sua vida adulta. Segundo ela, havia um professor”, um mestre que
os orientava. Hoje, com a ausência dessa figura e também da ocupação pelos jovens desse
espaço coletivo masculino, o seu aprendizado acerca de certas práticas consideradas
importantes teria ficado, como diz o depoimento acima, “estragado”.
Entretanto, ainda hoje a possibilidade de aprender aquilo que seus pais sabem,
acompanhando-os em suas tarefas, ajudando, observando. Para a habilidade de flechar, por
exemplo, são confeccionados arco-e-flecha em tamanho menor para que as crianças possam
começar a manejá-los e a acompanhar o pai em pescarias e caçadas. Também, desde cedo,
seguem seus pais à roça, e quando mais velhos, à lavoura, participando tanto da agricultura
familiar como da comunitária. Com os novos veículos da era moderna, muitos jovens estão
aprendendo a consertar e a manter bicicletas e caminhonetes.
Todavia, um campo de saberes, para além daquele especificamente econômico
ou comportamental, que está passando hoje por grandes transformações na vida social
bakairi: o que é referente aos conhecimentos que dizem respeito ao universo dos rituais e
das narrativas históricas e míticas. Os primeiros sofreram um grande impacto a partir da
atração do SPI e da proibição de livre realização das cerimônias conforme seus próprios
preceitos. Desta forma, houve um ‘intervalo’ de tempo de várias décadas entre a realização
dos rituais antes do SPI e a ‘revitalização cultural’ que tem se pretendido fazer nos últimos
20 anos. Portanto, nesse período, devido a quase inexistência das práticas cerimoniais, os
saberes relativos a este domínio não puderam ser observados, repetidos, memorizados,
praticados conforme vimos ser o modo de aprendizado dos Bakairi. Restaram apenas
conhecimentos e especialidades pulverizados em alguns indivíduos interessados
(âsewâninryn), geralmente aprendidos com seus pais: uma pessoa dominando a ‘arte’ de
furar as orelhas, outras poucas conhecendo parte dos cantos de um ritual, e ainda algumas
especializadas na confecção das máscaras. Entretanto, em sua maioria, são indivíduos que
passaram dos 50 anos e percebe-se, mesmo com o movimento de ‘resgate cultural’ que
não está havendo uma renovação adequada dos especialistas. Voltaremos a esta questão.
132
Sobre as narrativas, o ‘golpe’ mais forte parece ter acontecido recentemente, visto
que muitos “antigos” sabem contar as histórias mais conhecidas, aquelas que versam
principalmente sobre a origem de todas as coisas que existem, desde o mundo e as pessoas
até a mandioca e os pequenos animais.
155
O fato tem a ver com a introdução da televisão
primeiro coletiva (através do gerador), depois familiar (com a chegada da energia elétrica
na grande maioria das casas, no início de 2001) – que veio influenciar fortemente o
interesse (âsewâninryn) dos jovens pelas narrativas bakairi. Conforme ouvi muitas vezes,
“antigamente” chegava a noite e os adultos e os velhos contavam para as crianças diversas
histórias; hoje em dia, ‘fica todo mundo em frente da televisão’
156
.
Percebo ainda um deslocamento dos conhecimentos relativos à cosmologia bakairi
para o ambiente da escola. Entretanto, ele acontece a partir de várias mediações, sendo a
principal delas o surgimento da noção de cultura. Assim, tenta-se transferir para a escola,
através principalmente das aulas de artes, língua materna, apresentações culturais e
festividades tradicionais tanto o conhecimento relativo às narrativas quanto aos rituais. Esse
processo, todavia, vem acontecendo à custa de várias adaptações como, por exemplo, a
cobrança por meio de “provas” de alguns conhecimentos específicos e a própria noção de
“apresentação” (volto a este tema no capítulo VII).
*
Finalmente, a construção da pessoa bakairi (kurâ) tem lugar no corpo, ou seja, seus
corpos são submetidos a uma variedade de processos através dos quais vão sendo formados,
não apenas os corpos, mas também as pessoas e a sua organização social. Como escreveram
Seeger, Matta e Viveiros de Castro (1987), “a sócio-lógica indígena se apóia em uma fisio-
lógica” (pág. 22). E ainda: Ele, o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado,
resguardado ou devorado, tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as
sociedades indígenas têm da natureza do ser humano” (Seeger, Matta, Viveiros de Castro,
1987:13) . No caso dos Bakairi, o corpo é o lugar ao qual se dedicará mais atenção na
155
Para o acesso a essas narrativas: Steinen (1940; 1942). Algumas estão reproduzidas no capítulo VII.
156
Este tema necessitaria de uma análise pormenorizada, pois se a televisão, por um lado, se opõe às sessões
de ‘contação de histórias’, por outro, ao ocupar o seu lugar, a família tende a apropriar-se dela a partir do
mesmo contexto no qual se insere: as reuniões familiares noturnas em torno de histórias.
133
formação de uma pessoa socialmente plena, segundo as relatadas características de uma
boa pessoa (kurâ koendonron).
Ingrid Weber faz uma correlação entre a forma de aprendizado descrita
anteriormente em termos de observação/participação e a idéia kaxinawá de autonomia do
corpo em relação à mente. Não seria, segundo ela, “uma mente que absorve a informação e
comanda os gestos do corpo, mas é o próprio corpo, através da experiência direta que
aprende” (Weber, 2004: 145). No caso kaxinawá, ela identificou a concepção de que o
conhecimento está distribuído pelas partes do corpo: mãos, ouvidos, olhos, fígado, sendo
portanto passado diretamente aos órgãos responsáveis de acordo com o tipo de atividade
experimentada. Para uma atividade manual, por exemplo, seriam ativados os
conhecimentos das mãos e dos olhos.
Em relação aos Bakairi, não há uma correlação tão explícita entre as partes do corpo
e a aquisição de conhecimento, como parece acontecer entre os Kaxinawá. Há, entretanto,
um depoimento de um Bakairi sobre as “almas presentes no corpo”, colhido por Edir Pina
de Barros, que se aproxima da chamada “epistemologia do corpo pensante” (Weber, 2004).
Vejamos:
Uma pessoa tem várias almas kâgâdopyry no corpo. Todo lugar do corpo tem
alma. Quando você põe a mão no pulso, no pé... você sente ela. Quando uma criança
fica doente, o piaje olha e diz para a mãe: “Olha, seu filho perdeu uma das almas
dele. Onde é que andou e perdeu? Ele olha a criança e ela ali na rede e ao mesmo
tempo no lugar em que perdeu uma de suas almas. Busca, trazendo de volta para o
corpo da criança, ela fica boa. (...) Perigoso é perder a alma do peito, porque ela é
mais forte. Quando uma pessoa morre, é porque a alma do peito saiu. Ela é mais forte
e puxa as outras com ela (Odil Apakano) (Barros, 2003: 262-263).
Não nada no depoimento acima que nos permita afirmar que aquilo que Ingrid
Weber está chamando de conhecimento” é o mesmo que Odil Apakano chama de “alma”.
Entretanto, dois indícios que gostaria de identificar, mesmo que a título de hipótese. O
primeiro, sobre a analogia existente entre as duas concepções que dizem respeito à
‘autonomia’ das partes do corpo em relação ao todo. O segundo, a partir dos próprios dados
etnográficos repletos de exemplos de intervenção sobre partes específicas do corpo como
técnica de aprendizado. Mostrei que, além dos momentos nos quais a fabricação dos corpos
é mais intensa ou concentrada – nascimento, puberdade, luto/morte (que serão tratados mais
134
adiante ainda neste capítulo) durante todo o período de sua vida os corpos kurâ são
submetidos a uma contínua intervenção. Isto acontece conforme o órgão utilizado. Assim,
uma folha de “tucunzinho” é rasgada em frente à boca da criança que ainda não começou a
falar, proferindo-se as seguintes palavras para que ela aprenda esta habilidade. Aufá... Eu
falo assim para kwamoty, eu falo assim; taco é para kwamoty fala para essa criança
para ela falar, para ela começar a falar”.
157
A fim de ser um ‘bom pescador’, a pessoa deve
ter escarificada a pele da sua mão e do pulso para que depois seja passado um ‘remédio’
feito de fel do peixe (enukuru), configurando outro caso de aprendizado transmitido
diretamente a uma parte do corpo (a mão). Ainda com o mesmo objetivo, pode-se tomar um
banho (tâjidyly) com certo tipo de folha que nasce à beira do rio, pantabyry, bem como,
respeitar as diversas prescrições alimentares e sexuais relativas a esta atividade, como não
comer banana, batata, ovo antes de ir pescar; deixar para outro dia a pesca se a esposa
estiver menstruada (kuapaun); quando da pesca com o timbó, abster-se de ter relações
sexuais sob pena de o peixe não aparecer.
A propósito, no caso das doenças, uma série de cuidados com o corpo para que
este possa sarar. Além do esforço do pajé para trazer de volta as “almas” do corpo,
158
conforme citado acima, a cura pode vir ao ministrar-se, segundo o caso, “remédios do
mato” (âwin idudoano) na forma de chás, emplastos, ou mesmo um simples toque; sarja-se
a pele; fazem-se dietas específicas etc. No caso de o corpo estar perdendo forças ou em
momentos em que se precisa ter mais disposição, há também uma série de cuidados a serem
tomados para que este fique bem disposto.
Conforme me foi informado, “Todas as coisas tem na tradição de índio.” Por
exemplo, no caso dos homens, para ele ficar bom homem, que corta pau, derrubar
madeira, tem aquele, eu não sei o nome daquele em português, sarangâ, a gente pega e
passa aqui (aponta para estômago) para o ficar cansado.”
159
Para as mulheres, a seguinte
sugestão me foi dada: “Se a senhora quiser ser bom fiadeira de algodão, todas as coisas tem
remédio, só no mato mesmo, o nome dele é kataro. Arranha na mão, aquele lá é bom para a
gente fiar.” No caso das crianças, para que sejam inteligentes, dá-se a elas miolo de
157
Temos aqui um exemplo da interação da oralidade/escuta com as práticas de formação de corpos.
158
Sobre as principais causas de doenças, ver capítulo V. Sobre as ‘sessões’ de cura do pajé, ver parte I deste
trabalho.
159
Como já vimos, a disposição física é um valor muito importante para os Bakairi.
135
macaco, e também usa-se o ninho da japuíra para passar no ouvido e então fixar bem o que
se ouve.
Todos esses remédios (âwin) estão sendo utilizados hoje em dia cada vez menos. As
principais justificativas dadas para o fato são a crescente dificuldade em encontrá-los
devido ao desmatamento e o mal que se acredita fazer ao misturá-los com os alimentos do
branco, como sal, açúcar e café. Muitas pessoas atribuem a esta mistura o seu problema de
saúde. Talvez pelo mesmo motivo não observemos práticas ‘tradicionais’ de intervenção
sobre os corpos associadas ao universo escolar. Pois, fundamentalmente este último é,
como veremos, representativo do mundo dos karaiwa, e portanto a intervenção sobre o
corpo tem como modelo o corpo karaiwa.
4. Iniciação e wanky (reclusão)
A fabricação do corpo acontece durante toda a existência de uma pessoa, havendo
momentos, porém, em que ela é intensificada, como no instante do nascimento de uma
criança e todo o período que o precede e sucede a passagem para a idade adulta, a
ocasião da morte, e também quando da iniciação de uma pessoa a pajé. Nessas fases da vida
observam-se muitos cuidados com o corpo, principalmente com aquilo que nele entra
(alimentos, ‘remédios’ por via oral ou através da pele) e sai (uso de vomitórios, uso de
escarificação para a saída do sangue). Esta ênfase sobre o corpo como matéria-prima na
formação da pessoa não é apenas uma característica dos Bakairi, sendo encontrada também
nos demais grupos chamados xinguanos. Assim, através das etnografias da região, podemos
estabelecer uma série de parecenças tanto entre os ‘métodos’ utilizados, como entre as
concepções que os embasam. A despeito das variantes locais e de acordo com as
especificidades de cada período liminar – é possível listar cuidados comumente observados:
os relativos à ingestão de alimentos, como certas carnes (principalmente peixes
160
), com
sabores fortes e temperados (doce, sal, pimenta); o pouco contato com outras pessoas; o
160
A proibição do peixe é ressaltada por Ellen Basso (1973); Thomas Gregor (1977) fala sobre a
incompatibilidade entre este alimento e o sangue. Assim, tanto entre os grupos estudados por eles quanto
entre os Bakairi, os momentos de evitação coincidem com menstruação (mulheres neste estado não podem
nem comer nem cozinhar peixe e seus maridos não podem pescar), pós-parto, furação de orelha (segundo os
Bakairi, somente os jovens não-virgens é que sangram).
Formatados: Marcadores e
numeração
136
emprego de remédios do mato”; a escarificação (Basso, 1973; Gregor, 1977). Existem,
entretanto, diferenças significativas que devem ser destacadas. Assim, os Bakairi, ao
inverso dos Kalapalo e dos Mehinaku, não ganham outro nome após os rituais pubertários.
Enquanto naqueles grupos a cerimônia de furação de orelha e o período subseqüente de
reclusão são realizados quando a criança tem entre seis e nove anos, e sete a 12 anos,
respectivamente, entre os Bakairi ela acontece mais tarde, quando o jovem tem por volta de
12 anos. Entretanto, no que se refere ao fim do período de reclusão iniciado com esse ritual,
a idade coincide em 12 anos, pois se aqueles passam em média três anos nesse estado, os
Bakairi atualmente ficam apenas uma semana reclusos.
161
Esta diferença ainda incorre em
uma outra: em função do pouco tempo em que ficam reclusos, os Bakairi quase não
aprendem as técnicas de confecção de artefatos, importante parte da formação a ser
recebida durante a reclusão (para “xinguanos” em geral e também para os Bakairi-
xinguanos do passado).
Vejamos a seguir a descrição dos principais momentos de iniciação a uma nova fase
da vida, durante os quais são intensificados os cuidados para a formação da pessoa,
principalmente no que se refere ao tratamento dado aos corpos (escarificação, ingestão de
“remédios do mato”, dieta).
Gravidez e nascimento
161
Notemos, entretanto, as muitas transformações ocorridas entre os Bakairi desde que deixaram a
proximidade com os demais xinguanos. A título de comparação, reproduzo um trecho do artigo de Fernando
Altenfelder Silva sobre a reclusão pubertária bakairi antes da ida para o Posto Simões Lopes: “Quando os
jovens atingiam a puberdade, eram reclusos, wanky, por um período de alguns meses. Eles não podiam sair à
luz do dia e eram alimentados e tratados por parentes. Acreditava-se que a maior ou a menor duração do
período de wanky dos jovens resultasse na sua melhor ou pior constituição física. De outra parte, o filho de
um chefe deveria ficar recluso por mais tempo que o comum. O período de reclusão dos meninos iniciava-se
com o ritual da perfuração das orelhas (feito, geralmente, em grupos de jovens). As meninas tinham as orelhas
perfuradas logo ao nascerem, e o início da reclusão era marcado pelo advento da primeira menstruação. O
término do estado de wanky era celebrado, também, com o tadaunúto. As meninas passavam então a usar
uluri, ou seja, coberturas genitais de forma triangular de cerca de 3cm, feitas de casca de árvore. Após a
reclusão, meninos e meninas eram elegíveis para o casamento” (Altenfelder Silva, 1959:229). Sobre os
aspectos que Altenfelder Silva ressalta, tenho a dizer que hoje em dia os filhos dos chefes passam pelo Sadyry
da mesma forma que os demais. A única diferenciação que ocorre acontece entre o filho do ‘dono’ da festa e
os demais, pois aquele, na noite que antecede o sadyry, fica no kadoety, enquanto os outros permanecem em
suas casas. É também mais comum que o primeiro realize uma cerimônia de saída (egasely) da reclusão,
enquanto os demais geralmente não o fazem.
137
Quando a gente grávida não pode ficar dentro da casa, olhar pela porta. Se a
senhora estiver grávida, a senhora levanta e sai. Diz que se a senhora olhar na
porta, na janela, a criança não sai logo. E não comer peixe que dá problema, nem jaú,
nem peixe agulha. Nem marido, nem mulher. Outros peixes pode, como matrinxã,
pacu, piava. (...) Tem remédio, e, engraçado, nem sei aonde é que está esse remédio...
Eu fiz aquele, diz que aquele é bom para nascer criança. a mãe toma para não
sentir a dor. Ah, quem que güenta a criança?” (R.O., abril de 2004, Aldeia Pakuera)
Na gestação, o corpo da mãe e o do pai são submetidos a muitas prescrições e a
remédios (âwin). Como vimos, no relato acima, evitam-se certas atitudes pré-parto que são
tidas como causadoras de problemas na hora do nascimento. Assim, se a futura mãe olhar
através da janela ou da porta corre o risco de a criança ter dificuldade na hora que for cruzar
a ‘porta’ de saída de sua mãe. Neste sentido, é vedado a todas as mulheres em idade fértil
sentarem-se à porta, sob pena de acontecer o mesmo. Tem-se também muito cuidado com o
que é colocado dentro do corpo: não comer alguns alimentos, como certas espécies de
peixe, e ingerir “remédios do mato” como forma de ajudar no parto.
O corpo do pai é, da mesma forma, submetido a muitos cuidados, pois acredita-se
que naquele filho está o seu sangue (yunu
162
), e tudo o que afetar o sangue do pai poderá
passar para o de seu filho, visto que são tidos como formados de uma mesma substância.
Estas prescrições também serão seguidas logo após o nascimento do filho ou quando este se
encontrar doente.
Sobre o nascimento, o relato continua e nele a mulher se refere à sua experiência:
No meu tempo, quando eu casei, fizeram assim comigo: mandaram pai dele [marido]
cortar com aquele lá, com aquele que faz flecha, kwewa. Aí, racha no meio, aí corta
umbigo, e com aquele mesmo queima e passa, faz curativo com aquele mesmo,
aquele e um pouco de sal. Mas eu e o pai dele sofremos, porque o pai não tinha mãe,
tinha irmã e irmã o tinha paciência de cuidar nós, de fazer remédio, de pegar
remédio no mato, mas eu sofri, sofri mesmo. Eu mesma que fazia as coisas, sem
guardar dieta, lavar roupa, fraldinha dele. Tinha que guardar dieta, não trabalhar, não
mexer com água, não limpar casa, cuidar da criança, dentro de casa, depois
que cair umbigo, pega remédio, faz remédio para vomitar, pai e mãe. Aí que come as
coisas. Antes come só pogu e awado. Depois disso, a gente tem que comer peixe, não
é jaú, essas coisas, bagre, tolapi. pode fazer alguma coisa, se tem alguém para
ajudar, a pessoa que faz, até três meses, quatro meses, por aí. Antigamente, os
homens não fazia mesmo, tinha que guardar, pois quando vai na roça tinha que fazer
162
Os Bakairi fazem relação entre o sangue e as ligações de parentesco, assim, aquele grupo formado pela
pessoa, os seus pais e seus irmãos é chamado yunudo (yunu=sangue; do=indica coletividade, plural), ou seja,
parente consangüíneo.
138
as coisas, capinar, porque lá, às vezes, tem as coisas amargoso, faz mal para a
criança. Tanto mistério... ( R.O., abril de 2004, Aldeia Pakuera).
O “sofrimento” de que fala a pessoa acima refere-se à impossibilidade, devido às
circunstâncias, de se ter os avós da criança por perto, ajudando logo após o nascimento. É
comum entre os Bakairi que os pais auxiliem os filhos no momento em que estes estão com
criança recém-nascida, pois eles devem abster-se de fazer muitas atividades e limitar-se a
ficar em casa. A avó, por exemplo, deveria ser responsável por pegar para si tarefas como
cozinhar, lavar roupa e coletar “remédios” do mato para tratar os corpos do pai, da mãe e da
criança. Ao não terem ajuda dos avós, as crianças correm o risco de adquirir alguma
enfermidade pelo excesso de atividades dos pais. Mais uma vez, aparecem prescrições
sobre práticas e alimentos que podem prejudicar o bom desenvolvimento da pessoa. Assim,
por exemplo, mexer com coisas consideradas “amargas”, como a taquara, pode fazer mal
para a criança. Quando ela completa um mês de idade, “sai” pela primeira vez de casa,
onde esteve protegida dos perigos externos, principalmente dos iamyra, que poderiam levar
a sua alma ainda tão fracamente presa ao corpo. Essa saída (egasely), chamada “batizado”
(itabienly
163
), consiste em uma pessoa da família levar a criança para fora da casa ao
mesmo tempo em que o sol está nascendo. Ela então é apresentada ao sol e aos presentes.
Logo após, é servido pogu (mingau) ou café (bebidas muito utilizadas também em outras
cerimônias bakairi).
Mesmo depois de completar alguns meses, quando os pais podem abster-se da
dieta (depois que tiver vindo a menstruação da mulher e a criança estiver visivelmente
saudável, forte), se o filho adoecer, os pais têm que voltar a ela como parte do tratamento
para o seu restabelecimento. O relato ainda aborda o uso de eméticos, importante não
apenas nesta fase de desenvolvimento da pessoa, como também no momento da reclusão
pubertária.
Puberdade: feminina
163
A noção de itabienly, traduzida pelos bakairi por “batizado”, é também encontrada para designar o
“batizado do milho” (anji itabienly) e a saída (egasely) do jovem recluso.
139
O momento seguinte de cuidados intensos com o corpo é aquele quando o jovem
entra na puberdade. Muito se fará ao seu corpo no sentido de fabricar um adulto que
corresponda aos ideais de pessoa-kurâ. No caso das mulheres, logo que chega a sua
primeira menstruação, entram em estado de reclusão. Hoje em dia, elas permanecem por
um período de mais ou menos uma semana. No entanto, mulheres de 40, 50 anos relataram-
me que em seu tempo ficaram reclusas (wanky) pelo tempo de um mês ou três semanas.
Elas contam também que os antigos” dizem que antes de virem para o posto” as moças
ficavam uanke por alguns anos. Uma dessas pessoas relatou ter presenciado uma reclusão
prolongada de uma moça, com ritual de “saída” (egasely) por apenas uma oportunidade.
Ela descreveu como seria:
Xingu não corta, eu vi no vídeo, agora bakairi corta o cabelo quando está dentro de
casa mesmo. Aí, sai toda pintada no terreiro. Senta, tem a dona que leva ela para o
terreiro. Tem frango cozido com awado (beiju), passa tudo na moça. Diz que
etabeily, aquele também. A gente não pode ficar onde a mulher joga aquilo que
passa tudo no corpo, a gente fica muito gulosa, tem medo de ficar perto. entra.
joga milho também (R.O., abril de 2004, Aldeia Pakuera).
Durante o período de minha pesquisa soube de ter acontecido cerimônia de saída
(egasely) de wanky do sexo masculino (antigamente servia para ambos os sexos), a qual, no
entanto, é realizada da forma descrita acima cada vez com menos freqüência. Atualmente, o
rito de iniciação feminino corresponde apenas à reclusão doméstica e aos cuidados com a
formação do corpo e da pessoa – dieta, escarificação, isolamento, aconselhamento, ingestão
de “remédios” – sem nenhuma atividade realizada coletiva ou publicamente.
Puberdade: masculina
Ao contrário da iniciação feminina que, até o seu encerramento, é realizada no
âmbito doméstico, o rito masculino principia no espaço público (tasera), com a realização
do sadyry (cerimônia da “furação” de orelhas), após o que partem os jovens para as suas
140
casas, onde permanecem reclusos por alguns dias. Todavia, antes da ‘atração’ do SPI, pelo
que fui informada, os iniciados viviam coletivamente no kadoety durante muitos meses
164
.
Passar pelo sadyry é de grande importância para os jovens, pois assim estarão
ingressando no mundo adulto, estando aptos a constituir uma família. Normalmente um
intervalo de alguns anos entre o momento de a pessoa perfurar a orelha, ou seja, ter passado
pelo sadyry, e o seu casamento. Atualmente, essa cerimônia, além de marcar uma mudança
de identidade social, revela-se importante ainda em outro nível identitário, pois o fato de ter
a orelha furada e de poder ostentar um ywenry (pedaço de madeira colocado no orifício do
lóbulo da orelha) é também um símbolo da sua identidade enquanto indígena.
165
Na década de 1960, aconteceu pela primeira vez um sadyry nos limites do posto
indígena, havendo outro depois somente nos anos 80 (Barros, 2003), quando do movimento
de revitalização da cultura. Nos dias de hoje, ele é realizado com espaçamento de poucos
anos, tempo suficiente para que um novo grupo de rapazes atinja a idade propícia, por volta
de 12 ou 13 anos. Então, o pai de um deles oferece-se para ser ‘dono’ (sodo) do próximo
sadyry, indo a seguir consultar o pajé, os especialistas desse rito e o seu próprio iduno
(parceiro ritual), declarando que ele coordenará a próxima edição. Seu filho ganha com isso
um prestígio especial em face dos demais iniciados, sendo ele o primeiro a ter o lóbulo da
orelha perfurado.
Marcada a data, geralmente no mês de julho – que além de estar no tempo da seca e
da fartura de alimentos corresponde às férias escolares os preparativos iniciam-se, sendo
o ‘dono’ (sodo) responsável pela organização das atividades que proverão a festa de
alimento.
166
Na véspera da cerimônia, à noite, os dois especialistas em cantos (o que canta e
o que responde) são acompanhados pelos homens bakairi à beira do rio, onde são chamadas
as entidades espirituais aquáticas que participam desse ritual (matrinxã, sapo, pacuzinho,
entre outros). Para isso, são entoados cantos (tâjigâtudyly) e é também utilizado um
instrumento que, ao ser rodado, provoca um zunido que as atrai. As entidades são levadas,
uma a uma, até o kadoety, sempre acompanhadas pelos cantores e pelo zunidor.
164
Quando perguntei sobre o tempo que os jovens passavam reclusos no kadoety sempre obtive respostas
pouco precisas, indicando “muitos meses”, ou “muito tempo”.
165
Temos aqui, portanto, um bom exemplo do que havia sido aludido rapidamente antes: a concomitância
da formação do kurâ (gente) e do kurâ (Bakairi).
166
Para as atividades que precedem os rituais coletivos bakairi ver capítulo V.
141
Terminada essa etapa, todos os homens seguem rumo ao kadoety, onde passarão o
resto da noite repetindo os cantos (tâjigâtudyly) das entidades do sadyry. Ao amanhecer, os
jovens são levados por parentes próximos de suas casas até um banco localizado na entrada
da casa ritual, onde são sentados. Enquanto as músicas (eremu) são entoadas mais uma vez,
suas orelhas são perfuradas pelo especialista com a ajuda de um osso de ema (xugumi).
Nesse momento, os rapazes iniciados têm que se manter imóveis, não devendo expressar
nenhuma reação de dor. Depois disso, são conduzidos novamente para suas casas, onde
ficam em reclusão, deitados na rede, por alguns dias, sendo submetidos a vomitórios,
escarificação e ensinamentos, sem se mexerem ou falarem, estabelecendo contato com
seu genitor e avós do mesmo sexo. Estes também dão conselhos (xurudyly) e passam vários
conhecimentos acerca dos comportamentos e das habilidades necessárias para que se venha
a ser um kurâ ideal. Hoje, devido ao pouco tempo de reclusão, tais ensinamentos limitam-
se a exposições orais. O aprendizado ‘real’, através da experiência, vi ou não,
dependendo do âsewâninryn (interesse), posteriormente.
Ao final, as entidades que participam da cerimônia são levadas de volta ao rio,
também através de seus cantos (tâjigâtudyly). As mulheres, tanto na sua subida (âkuly)
quanto no devolver (ingonodyly), devem se manter fechadas em suas casas, não
participando em nenhum momento da cerimônia.
A seguir reproduzo, a título de ilustração, o relato de um homem sobre o que
aconteceu no sadyry do qual ele participou:
Eu acho que eu tinha 12 ou 13 anos, não sei quantos anos ao certo eu tinha. Aí,
falaram que ia ter uma festa de furação de orelha. (...) O furador de orelha vem à
noite. As pessoas vão lá no rio chamar aquele furador de orelha, que é uma dança. Aí,
ele dança a noite inteira. Ele tem aquele kawidâ que bate nas casas e tem um pau com
formato de peixe em cima, que fica rodando e faz aquele barulho. Durante a noite ele
vai visitar as pessoas que vão furar a orelha, os dois mais importantes, que é o dono
da festa. Ele vai lá, segura, ele pega a pessoa e levanta para que a pessoa cresça. Ele
faz com o filho do dono e com a gente que é iduno, que é os dois mais importantes. E
a furação de orelha acontece de manhã cedo, quando o sol nascendo ainda. a
pessoa que canta vai buscar o dono da festa e o iduno na casa. E nós sentamos bem
no meio do banco. Aí as pessoas que furam orelha ficam sentadas naquele banco. A
primeira furação acontece com o dono da festa, o segundo que fura orelha é o iduno”.
Mas dizem que quando fura a orelha e sangra, o rapaz não é virgem. Tem duas
pessoas para furar, a pessoa que fura e a pessoa que coloca o pauzinho. Aí, depois de
tudo terminado todo mundo vai para sua casa e deita na rede. Tem gente que fica três
dias ou até um mês deitado. Nestes três dias ninguém pode comer uma coisa salgada
nem doce, porque capaz de inflamar a orelha furada. Nos três dias, a pessoa vomita,
142
tem gente que arranha o corpo da pessoa para que o corpo da pessoa desenvolva. As
pessoas que ficam mais de três dias deitadas, o pai dele caça, pesca para sair em festa
mesmo. E nesse dia que o rapaz é... passa frango no corpo. Essa pessoa que o pai
caça, pesca, ele sai todo no traje de índio mesmo. E com a caça e pesca dele é feito
comida para que todas as pessoas que vai à saída do rapaz coma. Tem pirão, tem
carne desfiada e tem awado (beiju) (M.A., maio de 2004, Aldeia Pakuera).
Morte e luto
Finalmente, nesse ciclo de nascimento, crescimento e morte, a última etapa da vida
é também marcada por cuidados com o corpo, bem como por um estado de semi-reclusão.
Logo após o falecimento de uma pessoa, inicia-se o ‘velório (âguedy nhemeândyly,
literalmente ‘pernoitar com o morto’), quando toda a gente da aldeia e os parentes das
demais aldeias visitam a casa do morto. O corpo é colocado sobre uma urna funerária no
centro da sala em meio aos seus pertences em vida (roupas e utensílios pessoais), e fica
rodeado pelos parentes mais próximos, os quais choram muito. Enquanto isso, outros
parentes-perto (homens) vão até o local do cemitério (tâdâzypyodo) para cavar a cova onde
mais tarde será enterrado, em cortejo, o corpo do morto, que será colocado da seguinte
forma: a cabeça em direção ao pôr-do-sol e os pés para o nascente. Três ou quatro dias
depois, ocorre uma “limpeza” na casa (feita pelos parentes do mesmo sexo do morto), com
o objetivo de “mandar seu espírito para o cemitério” definitivamente. As pessoas vão
“varrendo” a casa e os objetos com folhagens, chamadas penagoro, após o que se dirigem
ao rio para, através do banho, purificarem-se do contato com o morto (evitando a
possibilidade de adoecer).
Até um mês após a morte configura-se um período de luto, no qual os seus parentes
muito próximos têm os cabelos cortados e mantêm uma dieta restrita (não comendo, por
exemplo, algumas espécies de peixes); todos os que se consideram parentes-perto (ypemugo
iwaguepaunmondo) devem evitar expressões de alegria e sociabilidade, como ouvir música
ou ir aos bailes.
167
Ficam, portanto, em uma situação de semi-reclusão, podendo sair de
casa, mas devendo evitar lugares públicos (interação social) e lugares ermos (possibilidade
de interação com “espíritos”). No trigésimo dia da morte, de madrugada, grande parte da
167
A reclusão por luto dos parentes mais próximos, logo após a morte de um familiar, é amplamente
mencionada nas etnografias alto-xinguanas (Basso, 1973:58; Viveiros de Castro, 2002:76).
143
população da aldeia e outros parentes dirigem-se para a casa do morto, onde tomarão um
banho para “tirar o luto” (paru emyly todokokely). Uma mulher da família do falecido
responsabiliza-se por jogar água nas demais mulheres, enquanto o banho masculino é
procedido por um outro homem. Depois disso, a pessoa deve ir ao rio (ou mesmo utilizar o
chuveiro) para se lavar, antes de voltar para a sua casa.
Iniciação/reclusão do futuro pajé
Antes de terminar, gostaria de aludir a um quarto estado de reclusão, este, todavia,
destinado apenas àquelas pessoas que queiram se tornar um piage (pajé). Ele também é
caracterizado pela reclusão, abstinência sexual, uma dieta rígida à base de pogu (mingau)
sem nenhum tipo de tempero, além da ingestão de diversas substâncias próprias para
ativarem conhecimentos a serem utilizados tanto nas curas das doenças quanto em sua
capacidade de ‘viajar’ para outros ‘mundos’. Nesse processo, o aprendiz é guiado por outro
piage, responsável por repassar-lhe todos os conhecimentos e as experiências necessários à
sua função. Ao término do processo, a pessoa poderá habilitar-se a curar doenças e ‘ver’
coisas normalmente invisíveis aos olhos dos não-iniciados. Pelos muitos sacrifícios que
envolvem a função, atualmente há mais casos de pessoas que interromperam o aprendizado
do que os que o concluíram (atualmente dois, em toda a Área Bakairi). Capistrano de Abreu
relata outros detalhes da iniciação do pajé, a partir do depoimento de seu informante
bakairi, Irineu:
Primeiramente, o candidato a curador (piahi-heim) precisa de encontrar um curador
consumado, que lhe indique o que deve fazer, e o proteja contra os inimigos que
nunca deixa de encontrar. O curador futuro precisa, além disso, de por sua parte não
deixar uma brecha por onde possa introduzir-se o inimigo, o Karówi, os yamüras
tão ciosos e tão malvados, cuja ocupação principal dir-se-ia andarem à cata dos
mínimos descuidos para castigá-los inexoravelmente.
É este o objetivo do regime rigoroso a que tem de submeter-se se quer elevar-se às
alturas em que paira o verdadeiro curador.
Começa o noviço bebendo diversas drogas como timbó, pindoba, vaimbé e outros
cipós para aprender a língua dos animais, e de Karowi, espécie de Curupira; não pode
comer pirão, nem mingau, nem gordura, nem carne, nem lambari, nem volátil, nem
tamanduá, nem mel; sua alimentação é exclusivamente beiju e caldo de polvilho.
144
Não pode morar na aldeia, mas numa casa retirada, a casa de dança (kxadóeti), onde
fazem as festas, se acolhem os hóspedes e as mulheres não têm entrada; é preciso que
com estas não fale (...)
Passados tempos, saem a passeio mestre e discípulo, e este, que facilmente aprendera
a língua de Karowi, começa a falar língua de onça. É o sinal de que a iniciação está
quase terminada; o curador dá-lhe o cipó de cobra, o candidato a piahi morre, torna-
se yamüra e vai para o céu apresentar a Nakoeri.
168
(...)
Depois da morte começam as distinções entre o curador e o yamüra comum: este,
como se viu, sobe por uma escada de algodão; o discípulo e o mestre sobem juntos,
não se declarando, porém, de que modo.
Quando o piahi-he-ini vai ver o céu, os moradores do u avistam-no de longe que
vem: quem vai aí? Dizem os yamüra para Nakoeri;
169
então Nakoeri aparece na porta;
o piahi e o seu discípulo aproximam-se: ah! És tu, vieste? diz Nakoeri; sim, sou eu,
vim para ti, responde o discípulo; sim, não gostaste de tua bebida, de teu beiju, de
tua comida, é bom, por isso vieste, gente à toa não vem para minha aldeia, diz
Nakoeri.
Depois Nakoeri bota para fora bancos e fora conversa com o discípulo do curador;
primeiro, põe um banco vermelho; põe depois dois bancos brancos; o discípulo o
se senta no banco vermelho; põe para fora três bancos vermelhos (ao todo cinco, dos
quais os vermelhos mais próximos do candidato, para tentá-lo); o candidato passa
pelos três bancos vermelhos sem se sentar (se sentasse cometeria um crime e não
subiria a piahi) e senta-se no banco branco: és homem às direitas, tu sim, és valente
diz-lhe Nakoeri.
Depois Nakoeri vai buscar massa de mandioca; a cauda da arara vermelha amarra-a
com algodão na ponta do cabo de maracá, e entoa seu canto e toca o maracá; então
move-se o banco do candidato, e em cima do banco vai ele para dentro da casa; ao
entrar, Nakoeri interrompe seu canto: vais para dentro do céu, diz Nakoeri. Sim
capitão, vou, diz o candidato. Leva-o para dentro do céu, diz Nakoeri para seu
companheiro, e novamente entoa seu canto.
O banco vai para o céu, rodando; o companheiro de Nakoeri vai segurando o banco e
instruindo o candidato, que não ninguém: aqui, vai dizendo o companheiro de
Nakoeri, é a praça da noite velha; ali... (...)
Depois de muito andar, o céu vai esfriando: estamos próximos da aldeia (...) chegam
à aldeia dos maribondos, língua de maribondos ouve o candidato: vieste meu
irmão? (...)
Passado pouco tempo, o candidato diz a Nakoeri; podes ir agora; qualquer dia virás
outra vez. (...)
Depois de ter falado com Nakoeri, o candidato vai embora; na porta do céu, a sombra
reveste a camisa antiga e quando nesta, ele deita e dorme. (...) passadas duas luas
pode sair um pouco, e então come caça, matrinxã (...) Três meses mais tarde é piahi,
passeia, entra em onça, entra em anta, entra em queixada, etc. (Abreu, 1976: 165-
169).
Lendo esta história para um piage atual, ele disse: “é assim mesmo” e contou sobre
o seu processo, que foi motivado pelo fato da sua mulher estar sempre doente: “uma
168
Nakoeri é “rei dos urubus”, diz o pajé atual.
169
Ao que parece, tanto a partir deste trecho como de outros do artigo de Capistrano de Abreu, Nakoeri seria
o mesmo que Kwamoty.
145
semana boa, o resto doente”. Ele, então, foi procurar um pajé e perguntou o que eu devo
fazer para virar pajé?”, ao que o outro respondeu: primeiro você vai tomar esse remédio
para vomitar por três dias e limpar seu corpo, que está muito sujo de café, sal, açúcar”.
170
Depois, voltando ao seu ‘mestre’ este disse: “vou lhe dar uns remédios (do mato) e você vai
tomando”. Assim, o candidato a pajé o fez (“enchi uma lata de 20 litros de água e preparei
o remédio”), dias depois começando a sonhar, primeiro com uma pessoa lhe dando um
grande charuto para fumar, ao que se sucederam vários sonhos com iamyra. Assim, aos
poucos, ele foi ganhando a capacidade de ver aquilo que os olhos normais não vêem, os
‘espíritos’, e passou a “adivinhar as coisas” – num primeiro momento, a partir de sonho.
Passado mais ou menos um ano, o pajé lhe deu outro tipo de “remédio”, dessa vez para ele
adquirir a capacidade de deixar o corpo. Depois de um tempo tomando o novo remédio”,
ele foi pela primeira vez ao “céu”; chegando lá, disse: “eu não sou pajé”, mas quem o
recebeu respondeu: “Mas vai ser, por isso você está aqui”. No céu, conta ele, “é como aqui,
tem gente, tem casa, tem peixe, tem rio, mas só que lá é tudo lindo, as árvores são
separadas das outras bem certinho, o mato parece grama, é muito lindo”. Foi-lhe oferecido
um charuto enorme e “muito forte”, mas ao “pitá-lo” ele não resistiu e desmaiou.
Entretanto, seu anfitrião teria lhe dito: “Isso é normal, um dia você vai agüentar”. Depois de
dois anos, ele se ‘formou’ em pajé, conseguindo, finalmente, descobrir a origem da doença
de sua esposa: feitiço de outra mulher. Então, cuidou dela fazendo com que melhorasse
(curada ela só teria ficado depois que a “feiticeira” morreu). Hoje em dia, este pajé
preocupa-se com quem irá substituí-lo, pois a maioria das pessoas não quer passar pelas
privações e pelos perigos do processo; seu filho, a quem ele começou a ensinar, mudou-se
para outra aldeia, ficando muito longe para que possa “cuidar”.
*
Em resumo, podemos dizer que a pessoa-kurâ é formada a partir de um conjunto de
valores e de técnicas integradas. Comportamentos ideais, como a generosidade, a
passividade, a disposição física, a independência, regem uma série de processos articulados
170
Novamente nos deparamos com o perigo de “misturar” alimentos vindos dos karaiwa com os remédios
(âwin) bakairi.
146
com o objetivo de construção das pessoas-kurâ. Estes podem acontecer informalmente no
cotidiano do domínio doméstico, onde as meninas ajudam as mães e os meninos, os pais,
bem como em momentos extremamente formalizados, como é o caso dos ritos de iniciação
do recém-nascido, do jovem e do morto. Destacamos em relação às técnicas verificadas a
prevalência da experiência sobre a explicação, o que indicaria uma ênfase maior no
aprender (âsenomedâdyly) do que no ensinar (enomedâdyly), ou seja, antes de uma
separação entre corpo (sodo) e mente (nhangaxery âsewanily, literalmente miolo
trabalhando’), em que a segunda sobrepujaria o primeiro no processo de aprendizagem, o
que percebemos é uma integração entre dois níveis: observação/atenção e
prática/participação. Neste sentido, vimos o papel fundamental que é atribuído ao
‘tratamento’ do corpo entre os Bakairi, seja nos momentos informais domésticos, seja nas
cerimônias de iniciação.
Abordaremos a seguir um outro nível de formação de um kurâ, aquele relacionado
aos rituais coletivos. Se no âmbito doméstico a ‘educação’ da pessoa pode ser notada de
forma clara através dos contextos de aprendizagem (exemplo/ participação/ convivência/
ação sobre corpos/reclusão), no domínio público, caracterizado pelas cerimônias (kado), a
‘formação’ acontece de modo não tão direto e visível, mas igualmente fundamental. É
notória a máxima relevância que é dada, nos valores e na organização social bakairi, ao
parentesco, como foi observado na parte I deste trabalho. O ‘bem estar’ familiar é a
principal finalidade para a qual concorrem todos os esforços da ‘educação’ de um kurâ – no
sentido de formar pessoas fortes e saudáveis e que dominem as habilidades necessárias à
sua reprodução física e social. Acontece que essa reprodução familiar não depende, na
visão dos Bakairi, somente de seus esforços produtivos ‘neste mundo’, mas também de
condições benéficas propiciadas por uma boa relação com o ‘outro mundo’, aquele
habitado pelos iamyra, seres que comandam a ordem do cosmos e a fartura dos recursos
indispensáveis à sobrevivência, como peixes e agricultura. Portanto, toda formação do kurâ
está diretamente relacionada à realização das cerimônias coletivas e, através delas, à
garantia de condições favoráveis à vida de sua família. O kado constitui, assim, o
fundamento para todos os esforços de formação da pessoa na sociedade bakairi,
assegurando-lhe as condições necessárias à sua reprodução familiar.
147
Capítulo V
Entre máscaras e santos: as cerimônias coletivas bakairi
A máscara é como o santo, é uma imagem
que a gente vê, mas tem um espírito dentro.
1. As máscaras e os espíritos do rio
148
Além do ritual de iniciação dos meninos, citado na parte anterior, durante o qual
ocorre a perfuração dos lóbulos das orelhas o sadyry os Bakairi realizam, pelo menos,
mais quatro cerimônias coletivas, denominadas genericamente de kado. Durante minha
permanência entre os Bakairi, pude presenciar três deles Âriko, Iakuigady e Anji itabienly
e a ‘apresentação’ de um, o Kapa. O sadyry, mesmo se eu estivesse presente na área
durante a sua realização, seria impossível acompanhá-lo, visto que é vedada a participação
de mulheres.
Através de trabalhos anteriores sobre os Bakairi fui informada da existência de
muitos outros rituais que, no entanto, não são mais realizados. É o caso do Tadâwa e do
Emení, ambos caracterizados pela presença de flautas, bem como do Malawari, Iaduki,
Yatuka (Barros, 2003), Makanari e Imeo (Steinen, 1942). as cerimônias referidas por
Fernando Altenfelder Silva, como aquelas relativas ao trabalho envolvendo pessoas de
várias parentelas diferentes, como o Komete, por ocasião da abertura de uma nova roça, e o
Mahulauari, depois da construção de uma casa ou mesmo quando da distribuição de
algodão entre as mulheres.
171
Nesses momentos, o ‘dono’ (sodo) da casa ou da roça deveria
promover uma festa com comida para todos. Ele também cita uma festa chamada Tulake,
realizada quando das visitas feitas entre aldeias com objetivo de trocas de objetos (Tuliki).
A relação entre rituais coletivos, doenças e espíritos é bastante conhecida da
etnografia alto-xinguana (Gregor, 1977; Basso, 1973; Barcelos, 2004), e da Amazônica em
geral.
172
Segundo Viveiros de Castro, a ligação entre eles poderia ser explicada pelo fato de
a doença propiciar a promoção de cerimônias que envolvem toda a coletividade,
incorporando o indivíduo ao social:
Grande parte do sistema ritual xinguano depende das idéias ligadas à doença, e o
circuito de reciprocidade ativado pelas cerimônias constitui-se no mecanismo mais
geral de integração da comunidade aldeã, além de estabelecer os lineamentos de um
sistema político, visto seu papel na coordenação do trabalho coletivo (Dole, 1966).
Sobretudo, pela doença definem-se as relações entre o individuo (e seu grupo de
substância) e a comunidade, incorporando uma crise individual na dinâmica coletiva.
Dessa forma, o sistema cerimonial ativado pela doença preenche o lugar dos grupos
171
Hoje em dia, observa-se apenas um vestígio do que teriam sido essas cerimônias antigamente, quando um
homem convoca outros, por ocasião da construção de uma casa, para o ajudarem a fazer a sua casa,
promovendo depois um grande almoço (atividade cujo termo regional é “muxirão” [mutirão]).
172
A relação entre doença e espírito é vista através do modelo da predação ontológica do exterior (Fausto,
1997; 2002; Vilaça, 1992; Viveiros de Castro, 2002).
149
cerimoniais ou de parentesco que fariam a medição entre “indivíduo” e “sociedade”,
inexistente na constituição social xinguana (Viveiros de Castro, 2002:81).
Neste sentido, poderia destacar dois tipos de relação entre doença e cerimônias
coletivas. Uma ‘direta’, quando de um adoecimento advém uma festa ou ritual, e outra mais
‘indireta’, quando ‘festas’ são realizadas como forma de ‘agradar’ aos ‘espíritos’
responsáveis pela ordem do cosmo. O primeiro tipo é característico, por exemplo, dos
Waujá, abordados por Aristóteles Barcelos (2004) e dos Mehinaku, tratados por Thomas
Gregor (1977). Ambos os autores atribuem a promoção de cerimônias a alguém ter sido
acometido por uma doença. Nas palavras de Barcelos: “Adoecer é criar uma relação tanto
para fora com o mundo sobrenatural quanto para dentro (com o mundo da sociabilidade) e,
ao mesmo tempo, criar uma interseção entre esses dois espaços” (Barcelos, 2004: 24).
Gregor explora um episódio específico como forma de mostrar como acontece o
processo que se inicia com uma doença e acaba na criação de rituais. Ele conta que um
homem mehinaku estava indo para sua roça quando avistou um cervo, tentando, sem
sucesso, derrubá-lo e prendê-lo; fugindo, ele teria deixado a pessoa de joelhos no chão.
Depois disso, ele começou a sentir dores no joelho e, a partir de alguns indícios
principalmente o fato de que estava de estômago vazio na hora do acontecimento, fator
propiciador de ‘roubo’ da alma começou a suspeitar de que o animal não seria o que
aparentava, sendo na verdade um ‘espírito’. Tudo foi confirmado quando apareceu para ele
em sonho um cervo dizendo que havia levado a sua alma, pois ele teria agredido sua
esposa. Em decorrência, foram avisados os pajés e iniciou-se o processo de promoção de
uma cerimônia para a sua cura, o que se faria, segundo Gregor, de acordo com as
mensagens enviadas pelo ‘espírito’ determinando como ela deveria ser: com músicas,
danças, máscaras, as quais, combinadas a aspectos recorrentes em outros rituais do gênero,
propiciariam a criação de uma nova cerimônia. A partir de então, o doente, mesmo depois
de curado, passa a ser o responsável pela execução dessa festa (e de tudo a ela relacionado:
máscaras, músicas etc.), ganhando com isso muito prestígio em seu meio social (Gregor,
1977).
Entre os Bakairi, tal forma de relação aparece principalmente no que diz respeito às
“festas de santo”. Apesar de as cerimônias deste tipo terem sido introduzidas entre os
Bakairi pelo SPI, o seu desenvolvimento foi determinado pela mesma lógica em questão,
150
ou seja, a relação entre ‘dono’ (sodo)
173
do santo e “festeiro” geralmente é estabelecida
segundo o binômio doença/cerimônia. Assim, por exemplo, diz-se que um certo ‘dono’ de
santo teria morrido por ter decidido não mais realizar a festa; em decorrência do fato, hoje
em dia seus descendentes participam da festa anual, mesmo com dificuldade, pois temem
destino parecido ou, como dizem, o castigo do santo”. ainda várias pessoas mais
fortemente ligadas ao santo devido à cura de uma doença, os chamados promesseiros”,
que devem sempre passar na casa do seu santo e ajudar na época das festas. A cerimônia de
“oferecer café” para o santo, como veremos, tem como objetivo agradecer por uma cura
específica. A doença opera como o motor’ da realização dessas cerimônias, estando na
origem da vinculação de um indivíduo a uma determinada festa, seja através da cura ou do
temor pela doença; A promoção do ritual é diretamente dependente dos aspectos
motivadores do envolvimento das pessoas.
As causas das doenças são sempre relativas a uma interação com um agente externo,
seja ele um espírito (iamyra), um inimigo-feiticeiro (ome odo), um afim ou, mais
recentemente, os karaiwa (não-índios). A seguir, irei abordar as causas específicas de
doenças e, através delas, introduzir o processo do qual fazem parte ainda os seres não-
humanos e o kado (rituais coletivos bakairi). Antes porém é necessário que eu me detenha
em uma categoria fundamental, não somente para o entendimento da relação
doença/cerimônia, mas para a compreensão das relações bakairi em geral: ‘dono’ (sodo).
Dono
A palavra bakairi para designar ‘dono’ é sodo. Como outros autores observaram
(Basso, 1973; Viveiros de Castro, 2002), a categoria ‘dono’ fundamental para a
compreensão das sociedades alto-xinguanas não se restringe apenas à posse de
determinado bem, mas à atuação de alguém como “mediador”, como sugere Viveiros de
Castro (2002:83): Como tradução abstrata eu sugeriria a idéia de ‘mediador’. O wököti
174
é aquele humano ou espírito que faz a conexão entre o objeto e o grupo, facultando o acesso
(material ou ideal) do coletivo ao recurso de que é o dono”.
173
Sobre a categoria ‘dono’ (sodo) ver a seguir.
174
“Wököti” é a palavra utilizada pelos Yawalapíti para designar ‘dono’.
151
Ainda segundo este autor, o ‘dono’ pode ser um patrono” (como nas cerimônias
em que um indivíduo é o responsável pela distribuição de alimentos), ou um “mestre” (caso
de especialistas rituais e mestres cantores) , um senhor” dono de espécies animais ou
vegetais, um representante” de uma coletividade, ou mesmo um “proprietário” de
determinado recurso (Viveiros de Castro, 2002). No caso dos Bakairi, observamos a
utilização da palavra sodo como “patrono” principalmente em dois momentos, a saber: nas
cerimônias ‘tradicionais’, como Iakuigady e Âriko, e também nas festas de santo (âty odo,
dono da festa). No Iakuigady, por exemplo, os ‘donos’ das máscaras têm como principal
atribuição prover de alimento diariamente a sua máscara. No caso do ‘dono’ de santo, este
somente poderá patrocinar a festa se tiver condições de oferecer refeições durante os dias
em que esta durar, sendo que não ter carne em abundância é motivo de vergonha para os
‘donos’, os quais, quando isso acontece, pedem desculpas publicamente e prometem fartura
no próximo ano.
É também utilizado pelos Bakairi o termo sodo no sentido de ‘senhor’ de espécies
animais ou vegetais. Por exemplo, o pássaro chamado japuíra tem seu sodo; dizem que
quando alguém mata um representante dessa espécie tem que doar a ele alguma coisa,
como sua roupa ou arma, colocando-as sobre o pássaro morto. Com a ‘oferenda’ estão
pagando (epuadyly
175
) ao sodo do japuíra pela sua morte. Se a pessoa não cumpre esse
ritual, acredita-se que venham ventos muito fortes. O mesmo ocorre com a anta, ao sodo da
qual também se deve ‘agradar’ e envergar um galho fino no chão, em uma determinada
direção, para que o vento não venha pelo outro lado, trazendo problemas. Vários peixes
também têm sodo, fato que justifica tabus alimentares em relação a eles em determinadas
situações liminares consideradas perigosas, como a época da menstruação ou da gestação.
Da mesma forma, várias espécies vegetais têm seu sodo, ao qual se deve solicitar permissão
no caso de utilização de um de seus representantes.
Capristano de Abreu observou em seu artigo “Os Bacaeris” a importância para eles
da noção de “senhor”, através da qual se refere a sodo.
A idéia de Senhor aparece repetidas vezes, sem que seja possível compreender bem o
que significa. Quando Bacaeri afirma que o homem branco é o senhor do espelho,
naturalmente quer com isto dizer que foi em mãos dos Caraíbas que primeiro viu este
175
Mesma palavra utilizada para pagamento de compras no comércio da cidade.
Comentário:
Listar outros
rituais
152
objeto. Que diz, porém, realmente quando afirma que o senhor da chuva é o
periquito?
Também parece natural que, desde que certas coisas têm senhores, se pague a estes
ou se lhes preste qualquer prova de respeito ou homenagem. Entretanto, um caso
deste gênero se menciona; quem faz rede, antes de usá-la, arma-a fora de casa em
homenagem ao Coandu, senhor da rede, para não ficar de cabelos brancos. Conta-se
também a história de um grande cataclismo produzido pela morte da lagartixa,
senhora do vento (Abreu, 1976:172).
Quanto à idéia de que as coisas, os animais, as plantas, os fenômenos da natureza
têm um “senhor” é um fato ainda observado atualmente entre os Bakairi, embora alguns
deles não sejam reconhecidos como o eram no tempo em que Abreu fez sua pesquisa. Por
exemplo, na época atual, o relato de que haveria um “senhor” da rede causou
estranhamento a algumas pessoas com quem conversei; não houve quem tivesse
conhecimento do fato citado pelo autor.
Ele ainda fala dos animais, que poderiam ser tanto “senhores” como “objeto dos
senhores”. Como exemplo do primeiro caso ele cita:
O lagarto é o senhor do sono; a raposa senhor do fogo; o periquito da chuva; a
lagartixa do vento; o curiango do anzol; o urubu é senhor do banco; caramujo, do sol;
o sucuri, da rede de pescar; o socó do boquité (espécie de cesta); a uga (espécie de
lagarto) do ralo; o ouriço, é senhor do espinho; o Martim pescador, senhor do peixe;
o coandu, senhor do fumo e também da rede de buruti; o veado, é senhor da
mandioca, etc. (Abreu, 1976:172)
Em relação aos animais providos de senhor”, Irineu, informante de Abreu, ressalta
a importância de o “espírito” senhor desses animais serem “pagos” quando estes forem
abatidos. Segundo suas palavras:
Morta a Guariba (Mycetes) paga-a, diz o piahi;
176
morto o macaco Coatá (Ateles),
morta a preguiça (brabypus), paga-os com mingau; quando não se paga, yamüra
agarra nossa sombra; imiga (gebus?) é o animal doméstico de criação (eyi) de
yamüra; quando derrubares mata em que mora yamüra, paga-a; procura um lugar
para fazer festa; – makanari é a paga da mata; – depois quando yamüra bebeu mingau
vai para longe (Abreu, 1976:164).
176
Pajé.
153
A categoria sodo (através, geralmente, do seu plural, sodomondo) também é
utilizada para se referir aos pais de uma pessoa, sendo estes considerados ‘donos’,
“responsáveis” por ela. A idéia de ‘dono’ mais próxima à ‘ocidental’, que aparece entre os
Bakairi, é a de “proprietário” de um determinado bem ou recurso. Deste modo, sodo pode
ser usado com referência a uma casa, a uma roupa, a um carro etc. A única forma citada por
Viveiros de Castro sobre a qual não encontrei explicação foi a idéia de sodo relacionada a
“mestre” em cantos rituais ('dono' dos cantos). Neste caso, a idéia de ‘dono’ não se aplica,
sendo tal pessoa levada em conta apenas como um ‘especialista’. Também ela não é
utilizada com referência ao representante de um grupo local, um cacique, mas aparece para
falar de líderes, promotores de atividades coletivas específicas, como no caso de “time
sodoaplicado ao representante do time de futebol. O “time sodoé a pessoa que é a dona
das camisas, e que coordena as atividades de cada time, como treinamento, campeonatos e
jogos.
Quando se é sodo de algo, é imprescindível que seja pedida a sua autorização para a
utilização de qualquer elemento dentro de seus domínios. Assim, não se pode realizar um
ritual sem que seu ‘dono’ autorização, como não se pode matar uma espécie que tenha
‘dono’ sem que seja solicitada a sua permissão. Da mesma forma – e essa é uma idéia mais
próxima da realidade ocidental – não se pode pegar algo de uma pessoa sem lhe pedir.
Entretanto, a noção de ‘dono’ em português marca uma ruptura entre o
pertencimento ao indivíduo e à sociedade, ou seja, se alguém é ‘dono’ de algo, deduz-se
que esse ‘algo’ é somente de sua propriedade, e de forma alguma é considerado de domínio
público. Para os Bakairi acontece o inverso: sodo é sempre um mediador entre indivíduos e
a coletividade, assim, em todos os domínios públicos bakairi kado, “festa de santo”, jogo
de futebol encontramos sodo. Quanto à escola, outro importante lugar público, apesar de
não se utilizar em relação a ela o termo sodo, pretendo demonstrar no capítulo VII que o
papel de ‘dono’ é representado pelo coordenador” (tratado por essa palavra advinda do
vocabulário escolar em português).
A idéia de sodo pressupõe, no domínio público, ‘algo possuído’. Assim, o “time
sodoexiste pelo fato de o time ter importância na vida pública dos Bakairi. O mesmo
ocorre com a festa, sendo ela um ritual comunitário, e quanto mais seu ‘dono’ agradar à
população (principalmente através da abundância de comida), mais seu prestígio enquanto
Comentário:
momentos
públicos: escola, time, festa, rituais
(todos tem sodo, exceto a escola)
154
sodo aumenta. Dito de outra forma, quanto mais ‘pública’ for a festa, melhor para o seu
‘dono’. A própria idéia de “mediador”, sugerida por Viveiros de Castro, só faz sentido
nesse contexto, no qual o ‘dono’ ocupa uma posição intermediária entre a sociedade e o seu
objeto de domínio.
Na exposição que se segue, sobre a relação entre doenças, espíritos e rituais bem
como na parte específica sobre o kado – veremos outros exemplos de aplicação da categoria
sodo conforme aqui demonstrada.
1.1. Espíritos, doenças e rituais
Um dos contextos de adoecimento é caracterizado pelo contato com animais: por
meio de seu abate sem que seu ‘dono’ (sodo) receba como retribuição um pagamento
(epuadyly) em forma de um objeto que se coloca sobre a caça.
177
Para os Bakairi, quase
tudo o que existe tem um ‘dono’ (sodo) animais, vegetais, objetos, lugares, pessoas
(sodomondo=pais), rituais e seus componentes – sendo esta função, como vimos, relativa à
mediação, à responsabilidade e à representação. No caso aqui em questão, o ‘dono’ do
animal é um ser não-humano que possibilita o acesso à caça ou aos peixes, punindo aqueles
que não o reconhecem como tal através de uma doença ou do desaparecimento dos recursos
dos quais é tutor. Para evitar doença ou fome são realizados rituais propiciatórios. Como
chamou a atenção Capistrano de Abreu, animais com os quais não se pode mexer em
nenhuma hipótese e existem outros que servem para a subsistência e, neste caso: “É, porém,
indispensável que o animal morto seja aproveitado, aliás, antas, pacas, porcos atacam roças,
estragando-as; e para propiciar os Yamura é preciso dar uma festa, naturalmente mascarada,
a que eles vêm assistir incógnitos. Depois de terem comido bem, dão-se por satisfeitos e
cessa a praga” (Capistrano de Abreu, 1976:164). Há, entretanto, casos de animais que m
grande chance de serem “espírito”, como no caso da ave “topiese” que, dizem os Bakairi,
177
Thomas Gregor identificou entre os Mehinaku o “wekeke”, “espírito” que seria ‘dono’de importantes
recursos naturais utilizados por esse povo (Gregor, 1977).
155
quando é atingida, rouba o egadopyry
178
da pessoa (gerando doença), devolvendo-o apenas
sob intervenção do pajé.
A propósito, lembro-me do caso contado por um pai sobre o falecimento de seu
filho. Este trabalhava em uma fazenda da região quando, num dia, após o trabalho, ele
tomou banho normalmente” e depois saiu e passou por um córrego de águas muito rasas.
Nesse momento, ele teria ouvido a fala (agueim
179
) da piranha, “ô, ô, ô”, passando a sentir-
se mal. Chegando em casa, falou para o pai: “acho que você vai me perder”, a doença
piorou. Ele foi para um hospital em Cuiabá e veio a falecer. Neste episódio, o contato com
o animal-espírito aconteceu através do som, outras vezes pode vir pela visão ou por um
‘sentimento’ de mal-estar.
Os animais podem representar perigo também por serem possíveis refúgios dos
iamyra, como no caso de um sapo que aparecia em uma casa e os seus habitantes sabiam
que ele não era apenas animal, mas iamyra de pessoa daquela família que havia falecido.
Neste caso, alguém da família correria o risco de adoecer, principalmente as crianças
pequenas, por ainda não terem a alma (egadopyry) fortemente atada ao seu corpo. Os
Bakairi também demonstram muito temor quando uma coruja aparece noites seguidas perto
da casa de uma pessoa, pois isso indica que provavelmente este animal é ‘na verdade’ um
‘espírito’ que poderá capturar o egadopyry de qualquer um, fazendo com que adoeça. Por
isso, ao identificar um pássaro como este perto de sua casa, a pessoa tentará de várias
formas (soltando fogos ou mesmo dando tiros) afastá-lo. Ouvi também, mais de uma vez, o
caso de um cachorro de tamanho e atitudes normais que de repente” cresce em medidas,
revelando sua natureza-espírito.
180
A história citada do Mehinaku que teria adoecido por
entrar em contato com um espírito-cervo diz respeito ao mesmo fenômeno que ocorre entre
os Bakairi. Nesses casos, o difícil é saber se um animal é animal ou se na verdade ele é
178
Egadopyry é traduzido para o português como ‘alma’ e ‘sombra’. Seria o nome dado ao princípio que
anima o corpo e, portanto, sua perda incorre em morte. A doença muitas vezes vem em conseqüência do
afastamento do egadopyry do corpo da pessoa, cabendo ao pajé ir buscá-la onde estiver e trazê-la para seu
dono. Neste sentido, corresponderia ao “iyeweku” mehinaku que Gregor traduziu como “sombra” (Gregor,
1977:322)
179
A língua bakairi tem o mesmo vocábulo para falar de várias espécies de som: fala humana, toque de
telefone (telefone agueim), sons de animais.
180
Espécies vegetais e fenômenos da natureza, dizem os Bakairi, também têm ‘donos’ e podem tanto ser
‘casa’ de iamyra, quanto transformar-se em gente (parte I, nota sobre a história do timbó). Lembro-me da
história do pajé que “virou” raio lançando-se sobre uma árvore. Diz ele que conseguiu quebrá-la, mas nunca
mais repetiu a experiência, pois quase machucou seu filho que estava sobre uma outra árvore próxima.
156
iamyra ou, nas palavras de Aristóteles Barcelos: “os aspectos anatômicos e morfológicos
dos animais não determinam a natureza do animal. Acima da aparência, o que mais importa
é saber que tipo de gente é aquele animal” (Barcelos, 2004:201). Entretanto, lugares,
dizem os Bakairi, nos quais se você se encontrar com certo tipo de animal poderá ter
certeza de que se trata de iamyra, como é o caso da cabeceira de um rio onde mora o
pyenari sodo (“dono das pacas”), ou de uma localidade em que há um kozeka-iamyra
(espírito-veado).
uma história que conta como a anta (maen), tendo deixado de ser iamyra, seria
hoje “apenas um animal”: uma família matou uma anta, esquartejou-a e depois foram para
casa; entretanto, tendo andado uns 50 metros, uma moça lembrou que teria deixado sua faca
no local onde estava o animal; contando isso ao seu pai, este lhe falou: “Vai, estamos perto
ainda, volta, nós te esperamos aqui”; a moça, então, voltou para pegar a faca e encontrou
com o iamyra da anta que estava muito “bravo” (tyewyâsein) e mandou que ela colocasse a
mão no seu ânus. Ela assim procedeu, tendo a anta prendido seu braço e saído correndo,
levando a moça com ela; os parentes da mulher ficaram preocupados com seu atraso e
resolveram procurá-la, mas sem sucesso. Entretanto, a moça lembrou-se de uma armadilha
feita por seu pai sob um de merindiva (espécie de árvore frutífera) e perguntou para a
anta se ela não gostaria de comer de seus frutos; a moça, então, teria colocado as frutinhas
sobre a folhagem que cobria o buraco-armadilha. Chegando ao local, a anta, desconfiada,
recusou-se a pegar as merindivas, mas apareceu um passarinho que, pulando sobre as
folhas, disse: “Olhe, não tem nada, olhe como eu pulo e nada acontece” seu peso era
ínfimo para derrubar as folhas – e a anta teria acreditado em suas palavras e avançado sobre
os frutos, caindo na armadilha. A moça e sua família enterraram o iamyra da anta e, desde
então, não há mais iamyra-anta pelas matas.
Os iamyra podem aparecer também diretamente para as pessoas, sendo apenas
‘sentido’
181
através de um ‘mal estar’ (dor de cabeça, desmaio, dor de estômago) que,
depois, pode se desenvolver como doença. Entretanto, o pajé é capaz de diagnosticar
exatamente o caso, e fazer com que o iamyra se afaste da pessoa, deixando-a de novo bem
181
As pessoas comuns não vêem os iamyra, estes são apenas sentidos. Sua visão é uma prerrogativa do pajé,
daquele que está prestes morrer e dos sonhos.
157
de saúde. Isto ocorre principalmente à noite e na passagem por lugares desabitados, como
estradas e acampamentos de pesca. Lembro-me de algumas histórias sobre pessoas que
teriam se perdido em lugares ermos, sendo encontradas muitas horas depois, desacordadas.
Sempre a experiência é atribuída a contato com sobrenaturais que raptam o egadopyry da
pessoa. Os adultos logo tendem a se recuperar, mas as crianças são fonte de muita
preocupação, por ser mais fácil que seu espírito seja capturado pelo iamyra e levado para
sempre, causando sua morte.
É possível ocorrer ainda que, depois da realização do kado, os iamyra mesmo
tendo o pajé procedido às práticas necessárias ao seu afastamento da área próxima à
residência das pessoas continuem no local, sendo causa de futuras doenças. O contato
indireto com iamyra pode vir a ser fonte de problemas, como no caso de alguém ter comido
um alimento que tenha ficado destampado durante a noite (o que indica a possibilidade de
ter sido ‘consumido’ por um iamyra). A interação com os mortos, nesse sentido, também é
tida como causa de doenças, seja através do contato com um cadáver ou mesmo por causa
da lembrança, do apego emocional ou do pronunciamento do seu nome. Daí, como vimos,
um nome somente retornar aos descendentes depois de muitos anos da morte de seu antigo
dono.
182
Existem ainda outros seres não-humanos (não-kurâ) muito temidos como
causadores de doença e morte. A referência a eles é feita geralmente em duas
circunstâncias: para amedrontar as crianças quando estão fazendo muitas travessuras,
183
ou
quando alguém diz ter visto um desses seres, seja perto das casas ou em áreas distantes do
centro da aldeia. Alguns são tratados apenas pelo nome geral em português de “bicho” e em
língua bakairi, anguydo imeon (geralmente descrito como “feio”, fedorento, com chifre,
182
Sobre esta questão, Aristoteles Barcelos comenta a partir do caso do Wauja: “Paradoxalmente, contudo, as
almas humanas sobrevivem ao contato direto com o Yerupoho/apapaatai, seus corpos... morrem. Isso
indica, mais uma vez, a incompatibilidade dos corpos humanos e dos yerupoho, mas não a incompatibilidade
das suas almas, ou ainda da alma humana com o corpo dos yerupoho” (Barcelos, 2004:76).
183
É interessante ressaltar que o outro ‘ser’ usado para amedrontar as crianças são os karaiwa. Eu mesma
representei esse ‘bicho’ perigoso. Quando alguma criança chorava e eu estava presente, a mãe ameaçava:
“Pára de chorar, senão a karaiwa vai te levar com ela”. Outros paralelos entre os sobrenaturais e os karaiwa
estão no capítulo VII.
158
rabo ou outro atributo animal, sendo desproporcionalmente grande ou pequeno);
184
outros
têm identidades específicas. Altenfelder Silva cita alguns:
Kilaimo é um espírito errante que vagueia pelo mato durante a noite. Karoui é
inimigo dos médicos-feiticeiros; possui um machado com formato de um sapo.
Iuanaguroro é o senhor da caça; possui um peito maior que o outro, contra o qual
aperta e mata os índios que o ofendem. Topiehe é um pássaro cuja morte redundaria
na morte inevitável do culpado. Havia ainda uma lagoa habitada por seres
sobrenaturais maléficos, e onde os animais adquiriam proporções gigantescas
(Altenfelder Silva, 1950:231).
Quando as pessoas estão em reclusão (wanky) por nascimento, nascimento do
filho, puberdade, luto elas estariam mais susceptíveis a doenças que outros, devido ao
estado de liminaridade em que se encontram. Assim, é muito importante que não
transgridam as normas estabelecidas para esses momentos, especialmente no que diz
respeito à dieta, à interação com outras pessoas e à evitação de lugares de possível presença
de iamyra, como os locais isolados (principalmente à noite), e o envolvimento com
atividades do kado.
Pode ainda ser causa de doença a falta de “respeito” (tywypazêla) aos afins, como a
expressão de algum descontentamento ou de agressividade. Além destes afins, bichos,
iamyra outra dimensão de alteridade é fonte potencial de perigo aos Bakairi: os karaiwa.
Através deles, os Bakairi conheceram novas doenças (tâzewânu) doenças de branco”,
como gripe, varíola, oftálmicas responsáveis por muitas mortes no período subseqüente
ao contato mais intenso com os chamados karaiwa. Até hoje, os Bakairi fazem a separação
entre “doença de índio”, geralmente curadas pelo pajé, e “doença de branco”, tratáveis
apenas por médicos e remédios industrializados. Finalmente, a feitiçaria é uma das mais
comuns causas atribuídas a um adoecimento e está relacionada ao circuito da inveja
(âsewânily) e das disputas (âtuagâdyly), já tratados na parte I.
A cura da doença deverá ocorrer através da manipulação dos aspectos relativos ao
seu universo de origem. Assim, no caso de uma “doença do branco”, ela virá do “mundo do
184
“Bicho”, para os Bakairi, corresponderia de certa maneira aos “apapãiyei” mehinaku (Gregor, 1977:321) e
aos “apapaatai” waujá, descritos por Aristóteles Barcelos (2004:59). Reproduzo trecho sobre os “apapaatai”
waujá no capítulo VII, página 291).
159
branco” (seus especialistas e remédios); se ela vier pelo contato com iamyra, cabe ao pajé
trazer a saúde mediante o seu afastamento e a recuperação do egadopyry daquela pessoa
por meio do trabalho desse especialista para afastar o ‘mal’, do uso de algum “remédio do
mato” ou de prescrições alimentares (restritas à pessoa ou compartilhadas pelos
yunudo[consangüíneos]). Será também o pajé o responsável pela identificação e pelo
‘tratamento’ nos casos de feitiçaria,
185
bem como no que diz respeito à transgressão de
tabus relativos aos estágios de reclusão.
186
Vimos ainda situações em que os ‘espíritos’ dos
santos podem ser causadores ou curadores de doenças; neste caso, o ‘tratamento’ vem do
respeito e da participação nos rituais anuais promovidos em sua homenagem.
Em suma, os Bakairi recorrem a diversas formas de ‘domesticação’ da alteridade
dependendo do caso, relativa a sobrenaturais, karaiwa, inimigos ou afins para retornarem
a uma vida saudável. As cerimônias (kado) também o voltadas, em última instância, para
esta finalidade, pois sua existência, segundo os Bakairi, está vinculada principalmente ao
poder que os iamyra têm sobre a vida e a saúde das pessoas e sobre os recursos naturais
imprescindíveis à sua subsistência e de sua família (vista em termos físicos e sociais, pois
dos alimentos partilhados se faz a consubstancialidade dos familiares, como vimos na
primeira parte deste trabalho).
Através dos rituais do kado, os Bakairi visam, portanto, controlar as influências
‘externas’, possíveis fontes de doença, provações e morte. Assim, com a realização dessas
cerimônias, eles conseguem reproduzir não apenas sua vida familiar, como também a
coletiva, e ainda as relações estabelecidas com os domínios ‘outros’ ou ‘externos’
(principalmente ‘espíritos’, no caso do kado).
Ao voltarmos nossos olhares para a mitologia bakairi, poderemos encontrar
retratado aquilo a que nos estamos referindo. Vejamos o mito de origem da morte e dos
mortos, segundo os Bakairi, conforme descreve Edir Pina de Barros:
Segundo os mitos de origem, outrora essas duas terras ficavam mais próximas uma
da outra e eram interligadas por um tipo de escada (âwensaudo) que Kwamóty teria
deixado para que os Bakairi pudessem transitar entre as duas. Eles viviam na
185
Sobre a cura de doenças advindas de feitiço e também sobre as sessões de cura do pajé ver parte I, página
97.
186
Uma pessoa me contou que seu filho recém-nascido havia adoecido e logo que o levou ao pajé, este o
informou que a causa do fato tinha sido que ele (o pai) não havia seguido certo a dieta (muito restrita, até que
o umbigo da criança caísse) de comer uma maçã.
160
plenitude, desconhecendo os flagelos próprios da humanidade e a morte. Suas
ferramentas eram encantadas, possuíam energia própria e bastava deixá-las na mata,
por exemplo, que elas trabalhavam sozinhas, provendo-os de alimentos.
Os Bakairi, todavia, incorreram em erros, pois passaram a fazer “fuxicos” entre si e
entre as duas terras, resultando em cismas e rupturas no interior da sociedade em
formação. Agastado com tão grande desafeto, Kwamóty cortou a escada que as
interligava, ocasionando um desequilíbrio smico que desencadeou um cataclismo:
as águas subterrâneas da terra de cima se avolumaram, caindo abundantemente sobre
a outra em que viviam, matando praticamente todos os Bakairi. As duas terras
distanciaram-se mais. Com o desequilíbrio, o sol e a lua se encontraram, resultando
disso trevas, frio e escuridão. (...) Irado com tanto desatino, Kwamoty abandonou os
Bakairi à própria sorte, retirando os poderes especiais de suas ferramentas e
tornando-os meros mortais. Assim, a geração subseqüente ao casamento entre dois
pares de irmãos que se salvaram em uma canoa de jatobá, passou a conhecer a dor, o
pranto, a dura labuta pela sobrevivência. Eles tornaram-se, por fim, humanos.(...)
Com a morte entra em circulação a mais temida de todas as forças do cosmo Bakairi:
os iamyra... (Barros, 2003:156-157).
Conforme a história contada acima, os “fuxicos” una iwyku, um dos modos da
relação entre as parentelas despertaram a raiva de Kwamoty, tendo como conseqüência:
(i) a separação definitiva dos dois mundos, um se localizando no céu” e outro na “terra”;
(ii) a instauração da morte e dos mortos entre eles; e (iii) o fim da fartura permanente.
Criou-se, assim, uma realidade caracterizada pela existência de novas dimensões de
alteridade (o mundo distante do “céu” e os iamyra). Com a separação entre os “mundos” e
o advento dos iamyra enquanto uma nova categoria de seres, os Bakairi tiveram que criar
meios de contato com eles, pois passaram, apesar de sua distância, a ter poder sobre os
humanos residentes na “terra”, por meio do controle das fontes de recursos importantes
para a sua sobrevivência. Ou seja, a sobrevivência física não está mais garantida como
outrora, quando não tinham que se preocupar com questões como a fartura e a saúde,
dependendo agora da relação a ser estabelecida com os iamyra. Nesse contexto, iniciaram-
se os rituais chamados de kado, cerimônias coletivas através das quais os Bakairi
conseguem fazer contato com os domínios distantes, buscando trazer para si novamente a
ordem e a segurança que reinavam no período anterior.
161
Os Bakairi acreditam que, ao morrerem, liberam dois ‘espíritos’ (iamyra):
187
um
deles vai em direção a uma aldeia de iamyra localizada no que conhecemos como “céu”, de
onde esses “espíritos” manteriam o equilíbrio do universo; o outro, rumaria para a aldeia de
iamyra localizada no interior das águas dos rios, domínio responsável tanto pelos seres
aquáticos controlando o acesso a seus recursos, principalmente sobre os peixes, alimento
mais apreciado pelos Bakairi quanto por acontecimentos na terra, como chuvas e
crescimento das espécies vegetais. Um pajé me contou que no mundo das águas, na
verdade, “a água não é água, é como se fosse uma lona que cobre aquele mundo igual o
daqui, com casas, pessoas. O pajé, então, suspende esta lona para entrar ”. Ele disse
também, como forma de explicar a relação entre os iamyra do “céu” e os do “rio”, que certa
vez um pajé teria ido visitar o céu e lá encontrara uma mulher fiando algodão; saindo de lá,
diretamente em direção à aldeia dos iamyra aquáticos, teria encontrado a mesma mulher em
igual atividade e perguntara: “Ué, acabei de encontrar você lá, como você pode estar aqui?”
Ao que ela respondera: Eu sou a mesma”. Há, portanto, uma duplicação que de fato
mantém uma unidade, uma correspondência entre os iamyra das duas ‘dimensões’.
Através do contato com os seres que habitam esse outro universo, os Bakairi
pretendem trazer para si fartura de peixe, de caça, de chuva (necessária à boa produção de
gêneros agrícolas), de saúde, enfim, de vida. As cerimônias seriam uma forma de
domesticar os iamyra, de maneira que estes não deixem faltar alimento e boas condições de
vida aos Bakairi. As máscaras animadas por pessoas, por exemplo, são um modo de
familiarização com esses seres, principalmente aquelas que evocam características dos
espíritos-peixes (explicados pelos Bakairi “como se fossem peixes, mas não são peixes”).
Como exemplo do que estou relatando, lembro-me de um episódio de 1963, narrado pelo
missionário do SIL James Wheatley, ao qual chamou de “revivescência de uma dança
bakairi”, em referência à realização do Iakuigady depois de muitas décadas. Mesmo sob o
regime do SPI que não incentivava em nada a execução de rituais, afora aqueles que
tinham lugar no dia do índio” promovido pelos funcionários do Posto
188
os Bakairi
187
Segundo me disse um pajé, a alma da pessoa viva chama-se egadopyry; quando ela morre, antes de ir
alojar-se definitivamente em outro lugar e voltando apenas para se alimentar e participar de festas, ela se
chama kadopâ. Os Bakairi traduzem kadopâ por ‘fantasma’.
188
Mesmo não havendo nenhuma referência do autor ao ‘apoio’ do SPI, suponho que esse ritual tenha sido
feito meio a contra-gosto de seus funcionários, pois Wheatley relata que o “capitão”, pessoa responsável pela
mediação entre os Bakairi e o Posto, não teria participado efetivamente da cerimônia (Wheatley, 1966:74).
162
resolveram que deveriam fazer a cerimônia do Iakuigady, visto que haviam chegado ao
mês de novembro e as chuvas eram ainda poucas e insuficientes para o pleno
desenvolvimento das suas plantações. Houve também, para aumentar o ‘apelo’ à
organização de um ritual de Iakuigady, um eclipse da lua, interpretado pelos Bakairi como
‘desordem’ do cosmos. Assim, mesmo sem a existência de um kadoety (casa necessária a
esse ritual), os homens improvisaram uma “cabana” e começaram a preparar a festa descrita
por James Wheatley (1966).
1.2. Kado: cerimônias coletivas bakairi
Abordaremos agora o kado propriamente dito. A despeito das especificidades de
cada uma das cerimônias, podemos identificar certas características comuns a todas elas. A
primeira a ser destacada diz respeito à existência dos papéis desempenhados por algumas
pessoas, imprescindíveis à realização dos rituais. Elas são principalmente de dois tipos: os
‘donos’ (sodo) e os ‘especialistas’. Toda festa tem um sodo, seja vitalício ou por apenas
uma edição. Os ´donos´ são os responsáveis pela coordenação das atividades necessárias à
execução do ritual, cabendo a eles conversar com todos os que estarão envolvidos,
inclusive o pajé, sem o qual a cerimônia não pode se realizar, tendo em vista a presença de
muitas entidades espirituais nesse tipo de ato. É seu papel cuidar de toda a organização do
evento, desde os preparativos das atividades relacionadas à provisão de alimentos e objetos
até o encerramento. também os ‘donos’ de objetos rituais, como no caso das máscaras
do Iakuigady e dos bastões pintados de jenipapo utilizados no Âriko. Ocupar este ‘posto’
em um ritual confere muito prestígio, sendo importante, como já vimos anteriormente, para
alcançar espaços de liderança entre os Bakairi.
Além dos ‘donos’ humanos, essas cerimônias são marcadas pela relação com os
‘donos’ do domínio dos rios, aos quais se deve pedir permissão para que seus ‘espíritos’
participem da festa. Temos, por exemplo, o sadyry, quando os ‘donos’ do matrinxã (peixe),
do sapo, entre outros, devem dar o consentimento para que tais entidades sejam levadas à
casa ritual (kadoety) e permaneçam em terra enquanto durar a cerimônia.
163
Outro papel fundamental nas festas é aquele desempenhado pelos diversos
especialistas rituais. Eles podem ser pessoas com conhecimento em cantos (tâjigâtudyly),
ou na confecção de objetos, ou mesmo na execução de uma atividade própria a cada ritual.
No caso dos cantos (tâjigâtudyly), a pessoa tem que saber executá-los com perfeição,
observando a letra, o ritmo, o tom da voz e a melodia. Para os objetos, principalmente as
máscaras do Iakuigady, também há especialistas na sua confecção, os quais dominam desde
o preparo das tintas até o desenho ‘correto’ a ser pintado. Os Bakairi revelam muito medo
de que uma dessas atividades seja mal desempenhada, pois acreditam que isso pode causar
doenças, principalmente nos parentes das pessoas envolvidas diretamente. Há ainda os
especialistas em uma determinada função específica, como é o caso daquele que perfura o
lóbulo das orelhas dos rapazes na sua iniciação.
Todas as cerimônias coletivas o precedidas de uma preparação, a qual envolve
principalmente a provisão de alimentos e, no caso do Iakuigady e do Kapa, o material para
a confecção das ‘roupas’ e dos ‘adereços’. O sodo, então, organiza um grupo de homens
para que cacem e pesquem nos dias anteriores à festa, visando ter alimento em abundância
durante a cerimônia, característica muito valorizada por todos. Na saída e no retorno dessa
expedição, cabe às mulheres colocarem mingau (pogu) de milho ou mandioca como
oferenda para os iamyra na beira do caminho por onde eles passarão.
189
Geralmente
lideradas pela esposa do ‘dono’, elas vão à roça para colher a mandioca (ou milho, no caso
do seu batizado”) que será usada no preparo de pirão, mingau, beiju, farofa etc. São ainda
as mulheres as responsáveis pela limpeza do pátio onde se realizará a festa.
Quando os homens chegam com as carnes e os peixes, trocam-nos com seus
iduno
190
(parceiros somente para fins rituais), a fim de que estes os levem às casas onde
serão preparados por suas esposas. Na hora da festa, novamente, os alimentos são trocados
entre eles, de modo que um coma daquele que a esposa do outro preparou. Os iduno nunca
são ypemugo iwaguepaunmondo, ou seja, geralmente em seu cotidiano não têm nenhuma
obrigação de troca ou parceria entre eles, caracterizando, portanto, uma relação de
reciprocidade que atravessa as parentelas, o que enfatiza o kado como elemento de
189
As cuias com pogu são colocadas também nos arredores da aldeia durante a realização da cerimônia, para
que os iamyra, atraídos pela festa, fiquem satisfeitos com o alimento e não desejem chegar próximo das
pessoas no centro da aldeia, o que pode gerar doença, como vimos. Essas oferendas são chamadas tape.
190
Sobre a descrição de iduno ver parte I, página 55.
164
integração coletiva em detrimento das disputas familiares. A este respeito lembro-me das
considerações de Aristóteles Barcelos sobre a diferença fundamental entre feiticeiros e
apapaatai (espíritos para os quais as festas de máscaras waujá são promovidas). Se os
primeiros estariam “totalmente fora do mundo da reciprocidade”, agindo “contra a
sociedade”, os outros, mesmo sendo violentos, querem a “aliança”, pois seus rituais
representam momentos de grande socialização (Barcelos, 2004:123).
A reciprocidade instaurada entre as diversas parentelas parece ser uma condição
necessária à relação entre os Bakairi, enquanto coletividade, e os iamyra, responsáveis pela
sua reprodução tanto familiar quanto coletiva. Talvez esta seja uma forma de retomar a
unidade verificada na primeira parte da história da origem dos iamyra: se a ruptura e a
conseqüente dependência desses ‘outros’ aconteceu a partir das disputas (sob a forma de
fofocas [una iwyku]), a maneira de propiciar a ordem deve incluir a atuação enquanto
coletividade. Ao que parece, esta não seria uma característica apenas dos ritos bakairi.
Carlos Fausto, em sua análise das cerimônias de máscaras (em comparação com aquelas
que envolvem “troféus” de guerra), comenta que masked rituals tend to put a greater
emphasis on reciprocity and food offering as a mean of maintaining, rather than creating,
a productive relation with alien subjectivities (Fausto, 2003:13).
Quanto ao local das festas, geralmente são feitas na aldeia central Pakuera, que
reúne algumas características importantes para a sua realização, como a proximidade de um
rio grande, o Pakuera, de onde sairão (egasely) e para onde voltarão as entidades que
participam do ritual, a existência de uma casa de ritual (kadoety), imprescindível no caso do
Iakuigady e do Kapa, e ainda a existência de um maior número de famílias e ‘donos’ (de
rituais e de objetos rituais) em relação a outras aldeias.
Além das características descritas acima, outra comum a todas as cerimônias
coletivas bakairi, a que se refere aos trajes e às pinturas corporais (iwenu) utilizados por
homens e por mulheres. No dia que antecede à festa, as pessoas costumam pintar-se
(iwenyly), procurando alguém da família com boa destreza para tal função. As mulheres são
pintadas nas laterais das pernas até a altura da cintura, e os homens decoram principalmente
seu tronco. um grande elenco de tipos de pintura, específicos para cada sexo, a maioria
deles inspirada em motivos de animais relacionados ao universo do rio. Como exemplo de
pinturas masculinas, existem aquelas denominadas menxu (espécie de peixe) e âgudo
165
(sucuri). também desenhos femininos inspirados nos animais acima referidos, mas o
universo de suas pinturas é mais variado que o dos homens, havendo ainda a libélula
(tiwigâ), o morcego (semimo, que apesar de não ser animal aquático é personagem
importante do mito de origem bakairi), espécies de peixe como kalamigare, e muitas outras.
As pinturas são feitas com tinta à base de jenipapo (menrun) e no dia da festa o
completadas por tintas à base de urucum (aunto), carvão (kadogynu) e tabatinga (kawin)
(barro branco, usado apenas pelos homens). Estas são utilizadas tanto para preencher os
espaços entre as linhas traçadas com o jenipapo, quanto para fazer novos desenhos (iwenu),
seja no tronco dos homens ou no rosto de pessoas de ambos os sexos, onde são geralmente
usados o urucum e o carvão, ambos podendo ser removidos imediatamente após a festa.
Pintura corporal bakairi
(desenho: Gilvan Poiure)
Além das pinturas, os corpos são ornamentados com faixas de fios de algodão
(upawyndy para o braço; âzeun para a perna) atadas aos joelhos, tornozelos e antebraços,
além de colares de conchas (kaseru), de osso de tatu (ikuybenu) ou miçanga (ponran), para
as mulheres. Algumas vezes as pessoas portam ainda um cocar de penas (arogu). Sob esses
aparatos rituais, as mulheres estão vestidas de biquine ou short e os rapazes, de sunga ou
calção.
166
Após este panorama geral sobre o kado, passemos à abordagem de cada uma das
principais cerimônias realizadas contemporaneamente.
Anji itabienly (batizado de milho)
O anji itabienly diz respeito a uma comemoração da colheita do milho. No entanto,
seu significado vai além de sua importância econômica. Os Bakairi têm com este cereal
uma relação de substância, conforme aprenderam de uma história que relata a origem do
milho e do seu “batizado”:
Era tempo de Iakuigady, dois irmãos, Tymemo e Ukana estavam em reclusão
pubertária, antes de passarem pela cerimônia do Sadyry onde teriam os lóbulos das
orelhas perfurados. Devido ao seu estado, eles cumpriam dieta e tinham a proibição
de se encontrarem com mulheres. Eles ficavam a maior parte do tempo no kadoety,
onde eram vistos apenas por seu pai. Saíam apenas para se banharem no rio. Certa
vez, Tymemo esqueceu seu colar e voltou para apanhá-lo, quando encontrou com
uma mulher e por tê-la visto e feito sexo com ela, a “máscara” Iakuigady ficou presa
na sua face. Ele passou então a vagar por vários sítios. Ukana, todavia, logo que
soube do acontecido passou a segui-lo, até que presenciou sua morte. Contou tudo a
seu pai, que havia chegado da caçada preparatória para a realização do Sadyry que,
entretanto, foi suspenso, dando lugar a uma festa na qual, por ordem do seu pai,
todos deveriam dançar até cansar. Uma mulher, no entanto, mandou umas crianças
afastarem-se (dois pares de irmãos) e, logo depois disso, o pai ateou fogo na aldeia,
matando todos os presentes. Tempos depois, quando as crianças já haviam crescido,
um deles retornou ao local das antigas casas, encontrando uma grande roça. Das
cinzas dos mortos haviam nascido mandioca, milho, cará, tendo sido criados a partir
de uma parte específica dos corpos dos mortos, respectivamente, ossos, dentes,
genital masculino. Depois disso, o rapaz sonhou com o iamyra de sua mãe que o
mandava “batizar” o milho antes de comê-lo. Daí surgiu o “batizado do milho”, anji
itabienly
.
A história da origem do Anji Itabienly deixa clara a relação que venho enfatizando
entre kado e formação do kurâ. Nela nota-se a consubstancialização entre os kurâ e os
alimentos por uma relação de descendência. É bom lembrar, todavia, que a relação em
sentido inverso também é verdadeira, pois o alimento é parte fundamental da constituição
do corpo/kurâ e do corpo/família.
A cerimônia do Anji itabienly acontece anualmente na Área Indígena Bakairi,
podendo ser realizado mais de um batizado, promovidos por aldeias diferentes, visto que
167
esse ritual prescinde do kadoety e da proximidade de um grande rio. Sempre se realiza entre
os meses de janeiro e fevereiro, quando o milho está bom para ser colhido. De um ano
para o outro, alguém se oferece para ser ‘dono’ da próxima festa, responsabilizando-se por
prover tanto o milho que será consumido durante a cerimônia quanto a carne e o peixe.
No dia da festa, as pessoas acordam cedo e colocam seus trajes rituais sobre o corpo
pintado no dia anterior. Percebo que geralmente estão assim paramentados o ‘dono’ e
seus parentes mais próximos e também alguns jovens/alunos, todavia, o restante das
pessoas veste-se com as mesmas roupas utilizadas no cotidiano. Todos se reúnem na tasera,
onde depositam as comidas feitas com o milho colhido, as carnes e os peixes conseguidos.
Então, o sodo do ritual dá início a ele, proferindo algumas palavras. Ele porta um arco e
uma flecha e também o pay-ho (escarificador), usado para sarjar a pele de quem se
apresentar para tal, sendo os primeiros os seus filhos, depois os demais: os homens são
“arranhados” pelo sodo e as mulheres, por sua esposa (sodo iwydy). Depois da
escarificação, é passado na pele um preparado à base de ervas. Há, entretanto, algumas
famílias que não têm o costume de proceder à escarificação. Se o ‘dono’ pertencer a uma
delas, esta parte da festa não é realizada.
Após a escarificação são distribuídas espigas entre os presentes, os quais, seguindo
o ‘dono’ passam a debulhá-las e a arremessarem seus grãos ou pedaços, primeiro rumo ao
sol nascente, depois para o Norte, o Oeste e o Sul, sucessivamente. Esse é um momento de
grande excitação para todos. Logo após esta parte, os presentes recebem permissão para
comer. A seguir, iniciam-se as danças chamadas yawaisary, que acompanham os cantos
que têm como tema o diálogo entre os irmãos do mito, os quais são representados por dois
cantores. Acontecem algumas ‘brincadeiras ritualizadas’
191
quando os homens correm para
pegar as mulheres (mugaro, tatu) e também ao contrário (pajica, tamanduá). Findo o dia, o
pajé manda embora os iamyra que foram atraídos pela festa, pois se não o fizer, estes
podem trazer doença aos habitantes da localidade.
Kapa
191
O gênero “brincadeiras” diz respeito a danças, a cantos e a dramatizações, como eles dizem, “não muito
sagrados, para se divertirem mesmo”. As atividades deste tipo estão presentes nas ‘apresentações
escolares’, visto que, além de agradarem aos jovens pelo seu caráter lúdico, prescindem dos cuidados
necessários às danças “muito sagradas”.
168
Os Bakairi atribuem a origem do Kapa aos Mehinaku, grupo indígena com o qual
tiveram contato nos tempos em que habitavam o Alto Xingu, estabelecendo, inclusive,
laços de casamento. Uma família bakairi, que descende de um Mehinaku, é tida como
‘dona’ desse ritual. Diz-se que ele teria ficado muito tempo sem ser realizado entre os
Bakairi, até que, com o movimento acontecido em torno da revitalização cultural (ver
capítulo VI), seus ‘donos’ teriam procurado recuperar os cantos, podendo-se, assim, voltar
a dançar o Kapa a partir de 1985.
Essa cerimônia também é relacionada aos seres espirituais viventes no fundo dos
rios. Acredita-se igualmente que a sua realização traz fartura de peixe, chuva, carne, e tudo
aquilo que precisam para viver bem. Conta a história que um rapaz, que estaria de
resguardo devido ao nascimento de um filho, teria saído em direção ao rio, e chegando
teria ouvido uma música vinda do oco de uma árvore localizada dentro do rio. Ele chamou
outras pessoas para que o ajudassem a derrubar a árvore e ver o que ali havia. Foi então que
“esparramou peixe para todo lado”. Através da observação do canto e da dança desses
peixes (espécie de lambari denominado kapa), os homens teriam aprendido a fazer esse
ritual.
Para a realização da cerimônia, primeiro os homens, juntamente com o pajé, vão ao
rio para atrair as entidades com os seus cânticos e elas são levadas para o kadoety, onde se
incorporam às máscaras (roupas feitas de buriti) previamente confeccionadas. Como nos
outros rituais, as mulheres devem ficar trancadas em casa durante essa etapa. Depois disso,
a saída (egasely) do kapa, quando as máscaras passam a dançar na tasera. Para esse dia,
são preparados alimentos à base de peixe, carne e mandioca. O centro da festa, entretanto,
diz respeito à dança, que é feita da seguinte maneira: ficam duas pessoas no meio da roda
formada pelos dançarinos; uma delas, em pé, canta (tâjigâtudyly) e agita um chocalho
(pako) segundo o ritmo apropriado, enquanto a outra, sentada em um banco, responde ao
canto e bate em um pequeno tambor (ihudynrin). Ao seu redor, as máscaras dançam as
músicas da arraia (xiware), urucum verde (aunto urary), coriangu (pukurau), onça (udodo),
papagaio (toro) e cotia (aki) (nesta última, as mulheres solteiras aproximam-se para
acompanhá-las).
169
Depois de sua saída (egasely), o kapa pode ficar presente por meses, tempo durante
o qual pode estar ativo ou descansando, até chegar o dia de sua volta ao rio, para onde se
dirigem os homens que ali jogam as suas ‘máscaras’, as quais, dizem os Bakairi, tornam-se
peixes novamente.
Iakuigady
O ritual que pude acompanhar por mais tempo foi o Iakuigady, iniciado em abril de
2004, e permanecendo por vários meses. Da sua realização nesse ano, pude observar
algumas questões interessantes, as quais estão registradas no capítulo VII, onde faço uma
descrição do ritual tal qual aconteceu naquela edição, destacando os pontos de interesse
relativos ao universo escolar. Reservo-me, então, neste momento, a passar algumas
informações gerais sobre o Iakuigady, que serão posteriormente complementadas no
referido capítulo.
Foto 1: Dança Iakuigady (foto Célia Collet)
170
Iakuigady é o nome dado às máscaras retangulares de madeira utilizadas nessa
cerimônia. Sua origem vem do complexo ritual xinguano que os Bakairi compartilhavam
quando residiam nos rios Tamitadoala e Kurisevo, sobre o qual nos informa Carlos Fausto,
a partir da incorporação de outros grupos: The Kamayurá and the Awetí have been
incorporated into the Upper Xingu cultural complex, whose base is Arawak, probably by
late XVIII and early XIX centuries, an incorporation which is still remembered in oral
history. Tanto os Kamayurá como os Awetí chamam suas máscaras talhadas em madeira de
Yakuikatú, nome derivado do tupi-guarani e que quer dizer “pequeno belo jacu (ave)” que a
língua bakairi assimilou como Iakuigady. Karl von den Steinen faz referência, através de
descrições e desenhos, à presença dessas máscaras também entre os Nahuquá, os Guikumá
e (talvez) entre os Trumai (Steinen, 1940; 1942; Krause, 1960). Os demais xinguanos
possuem ainda outras espécies de máscaras, conforme demonstram Aristóteles Barcelos
(2004) e Thomas Gregor (1977) em suas etnografias, respectivamente sobre os Wauja e os
Mehinaku.
A cerimônia do Iakuigady é composta ainda por outro tipo de máscara, o kwamby,
de formato oval, feito de fibras trançadas (ver Fritz Krause, 1960) e que faz um contraponto
com as máscaras Iakuigady propriamente ditas, no sentido de que as primeiras são
caracterizadas por um comportamento jovial e jocoso, enquanto as chamadas “cara-de-pau”
são sérias. Isto se reflete em seus cantos e na sua movimentação, os quais adquirem o
caráter do tipo de máscara a que se referem, uns mais dinâmicos e alegres, outros mais
graves e contidos.
Conta o mito que um pajé antigo teria visto essa cerimônia sendo realizada nas
aldeias de iamyra existentes nos rios e a teria imitado, designando uma máscara para cada
chefe de família que desejasse.
192
As máscaras, portanto, referem-se geralmente a animais
aquáticos, em sua maioria peixes (excetuando-se a mangaba” (Matola), chefe de todas
elas). Cada scara possui uma ‘dona’ (sodo), que tem a responsabilidade (passada
hereditariamente), extensiva à sua família, de alimentar e de cuidar das máscaras enquanto
elas estiverem presentes na aldeia. O sodo da máscara pode, entretanto, não querer que ela
192
Neste sentido, as máscaras bakairi diferem das waujá e das mehinaku, pois estas últimas, conforme
descrito respectivamente por Gregor (1977) e Barcelos (2004), surgem em relação a um indivíduo (a partir de
uma doença propiciada por um ‘espírito’) e o seu repertório está sendo permanentemente renovado, enquanto
as bakairi são passadas hereditariamente, tendo o seu número limitado àquelas já existentes.
171
saia em determinado ano, fato que tem que ser respeitado pelos demais, mas que não afeta a
realização do ritual a partir do momento em que haja um número de máscaras considerado
suficiente.
193
também a possibilidade de emprestá-la a alguém para que este cuide dela
durante uma temporada. Abaixo temos uma lista na qual todas as máscaras existentes estão
dispostas por ordem hierárquica.
Quadro dos nomes de máscaras do ritual Iakuigady
194
Kwamby Descrição Aldeia do ‘dono’
Nuianani –
Numitao –
Tânupedy –
Kualowy –
Wyly-wyly-
Nueriko –
Makualinha –
Mapabalo –
Espécie de peixe agulha,
“capitão” dos outros
kwamby.
Fêmea de Nuanani. É
pajé.
Espécie de peixe piau
Espécie de peixe
Espécie de pássaro
Espécie de piranha; fêmea
de Tânupedy
Espécie de bagre
Espécie de borboleta
Pakuera
Pakuera
Pakuera
Paikun
Aturua
Pakuera
Pakuera
Pakuera
Iakuigady Descrição Aldeia do ‘dono’
Matola –
Iakua –
Papa –
Toilen –
Maekori –
Kakaia –
Menxu –
Nawiri –
Pânren –
Pili –
Sewi –
Natuninha –
Ikunahum –
Mâty-iery -
Mangaba; chefe de
todos;
Espécie de piranha
Pomba
Espécie de bagre
Peixe cará
Pássaro
Pacu
Pássaro
Espécie de piranha
Espécie de tucano
Espécie de peixe
cará
Jaboti
Espécie de cará;
macho de sewi
Mulher de
Natuninha
Pakuera
Pakuera
Pakuera
Aturua
Pakuera
Paxola?
Pakuera
Pakuera
Pakuera
Aturua
Pakuera
Pakuera
Aturua
Pakuera
193
Em 1963, participaram apenas sete máscaras, entre elas somente uma do tipo kuamby (Wheatley, 1966).
194
Este quadro é o resultado da reelaboração, a partir dos meus dados de pesquisa, de um outro, presente em
Amaldo, 2003.
172
No quadro acima podemos ver como as máscaras têm entre si uma relação
hierárquica, a qual é expressa principalmente nas danças, quando os “chefes” vêm sempre à
frente das demais. É interessante também que elas constituam casais (macho e fêmea).
As máscaras podem ser consideradas uma forma de materializar a relação entre os
homens e os iamyra a que se referem (sobretudo peixes). Carlos Fausto chamou a atenção
para o fato de que algumas sociedades necessitam objetificar suas relações (entre outras
coisas, utilizando-se de máscaras-rituais), enquanto para outras, como as Tupi, este aspecto
não teria tanta relevância, ocupando a oralidade lugar de destaque (Fausto, 2003:13). A
importância da ‘materialidade’ e da ‘visibilidade’ para o estabelecimento e a explicitação
das relações entre os Bakairi foi mostrada na primeira parte deste trabalho, através da
abordagem do espaço social e da sua importância na delimitação e na comunicação entre as
diversas unidades. Ao que parece, as máscaras podem ser consideradas mais um exemplo
da ênfase dada à objetificação no seu papel de mediadoras de relações.
No tipo de sociedade como a bakairi, que preza verem materializadas as suas
relações, seja através dos códigos espaciais, da circulação de objetos, da cura do pajé
através da remoção de pequenos objetos, seja das máscaras, como no caso em questão,
podemos dizer que tais objetos-espíritos se prestam como instrumentos propícios ao
processo de domesticação da alteridade que ocorre no kado. É através deles que as
subjetividades não-humanas, como aquelas que são atribuídas aos iamyra, podem mostrar-
se aos humanos, pois em ‘condições normais’, como sabemos, esses seres não são (nem
devem ser) vistos.
O Iakuigady, depois da edição de 1963, voltou a acontecer em 1978 e em 1982,
dessa vez como parte do movimento de afirmação cultural e identitária iniciado nessa
época. Entre 1991 e 1992, a cerimônia foi novamente realizada, acompanhando outro ápice
do processo de “revitalização cultural”, representado pela criação da “Associação Kurâ-
Bakairi de resgate cultural” (AKURAB). Cabe ressaltar que as máscaras são o principal
símbolo do “povo bakairi”, sendo utilizadas em camisetas, convites, cartazes visando à
“divulgação de sua cultura”; são elas ainda o emblema da AKURAB.
195
A promoção de um novo Iakuigady inicia-se por meio de um acordo entre os
‘donos’ (sodo), ‘especialistas’, o cacique e o pajé. Seguem-se os preparativos, como
195
Sobre o processo de ‘revitalização cultural’ e ‘cultura bakairi’ ver capítulo VI.
173
confecção das máscaras, pescaria e colheita para prover a alimentação das entidades e a
limpeza do pátio. Antes porém de iniciar a feição das máscaras, os homens vão ao rio com
o pajé para buscar as entidades com os seus cantos. As mulheres, nesse momento, como de
costume, não participam, mantendo-se trancadas em suas casas. Os iamyra, inicialmente,
ficam incorporados a pequenos pedaços de madeira (se imeimbyry), de onde passam para as
máscaras logo que estas estejam prontas. Com os pedaços de madeira na mão, os donos’
oferecem aquele pedaço que representa a máscara cuidada por ele a todos os homens
presentes a uma cerimônia no kadoety. Cabe somente àquela pessoa que foi convidada para
ser seu iegado sanâni, isto é, quem ‘vestirá’ a máscara, aceitar. O ‘dono’ nunca pode entrar
na sua própria máscara.
196
Uma vez vestida, a pessoa passa a “atualizar a potencialidade” (Fausto, 2003:11) do
iamyra correspondente, ou a personificá-lo” (Barcelos, 2004:217). Em certo sentido, ela
não é mais aquele sujeito conhecido, próximo como indica a proibição de ser chamado
pelo nome enquanto estiver ‘dentro’ da máscara mas anima outro sujeito, de origem
distante, um iamyra.
197
Logo que esteja tudo preparado, o kado sai (egasely), ou seja, mostra-se a todos na
tasera, dançando, cantando e indo à casa de seu ‘dono’ buscar alimento (peixe, pirão, beiju,
mingau etc.), o qual será comido somente pelos homens dentro do kadoety (levando para
casa uma parte, caso haja abundância). A partir dessa data, as máscaras sairão diariamente,
no início da manhã e no final da tarde para, cantando, ir à casa de seus respectivos ‘donos’
a fim de buscar seu ‘alimento’ (pyni ese).
198
Além disso, há dois tipos de ‘passeio’
(adakobâdyly) realizados por elas. Um feito apenas pelos kwamby, passando pelas casas
196
Esse procedimento foi igualmente verificado em outras etnografias xinguanas. Sobre as festas de máscara
wauja, por exemplo, Aristóteles Barcelos comenta que “nessas ocasiões cada máscara é vestida por seu
kawoká-mona correspondente, o qual passa a personificar um determinado apapaatai, macho ou fêmea”
(Barcelos, 2004:217). A respeito dos Mehinaku, Thomas Gregor escreveu: The spirit, in the guise of
grotesquely costumed dancers, is brought into the village, given food, and enjoined not to make anyone else
ill. Although the dancers are considered something of a “joke” because they are not “really” the spirit, the
spirit is nonetheless belived to be present and content with what the villagers have done (Gregor, 1977:323).
197
Referindo-se a esse tipo de relação entre quem anima a máscara e a própria máscara, Carlos Fausto
comenta: Masks are not idols, but a special kind of fetish whose efficacy depends on being filled from the
inside by a person. Through masks one presents a visual image of an alien person by way of a kinperson. The
paradox is that everyone knows that inside the mask there is not a spirit but a relative, and yet a mask can
only be effective if a person is inside it (Fausto, 2003:10).
198
A busca de comida (pyni ese) é um elemento central nesse tipo de ritual, não apenas como forma de
‘coletivizar’ o alimento cotidianamente consumido e repartido dentro dos limites familiares mas também
como meio de agradar aos iamyra e de se relacionar com eles, assegurando uma boa convivência e,
conseqüentemente, saúde e fartura.
174
para pedirem comida e fazerem ‘brincadeiras’, outro indo à casa de mulheres e dedicando a
elas uma canção que tem como tema algum comportamento seu considerado inadequado.
As letras são previamente compostas segundo os acontecimentos recentes, configurando-se
assim como uma espécie de ‘fofoca ritualizada’. Durante os meses em que a cerimônia
durar, períodos de ‘descanso’, quando as máscaras não saem para fazer seu passeio. O
ritual termina apenas quando as máscaras vão definitivamente embora, sendo levadas pelo
pajé, acompanhado pelos homens até o rio, onde são despedaçadas e jogadas na água para
que os iamyra possam retornar à sua morada.
Âriko
O Âriko, também uma das cerimônias coletivas bakairi, é menos ‘famosa’ que as
anteriores, não sendo tão realizada e citada como as outras. Talvez por isso não haja muitos
registros sobre ela nas obras acerca desse povo. A única referência encontrada por mim foi
no livro de Edir Pina de Barros, que não a coloca, no entanto, à altura das demais, citando
apenas a sua realização nos intervalos do Iakuigady, quando as mulheres podem responder
ritualmente às críticas feitas a elas pelas máscaras (Barros, 2003). Segundo o pajé, ela não
seria tão “sagrada” como as outras por não estar relacionada diretamente ao contato com os
iamyra (dos quais, mesmo no âriko, não se deve descuidar, pois podem aparecer para
participar da festa e comer).
Pude, porém, presenciar a realização de um âriko no Dia do Índio, em 2003,
promovido pela escola da aldeia central Pakuera, quando coletei alguns dados a mais sobre
esse ritual. A realização da cerimônia sob a organização da escola será explorada no
capítulo VII. Neste momento, pretendo somente descrever sua estrutura e características
centrais.
Até onde fui informada, o Âriko é um ritual relacionado à propiciação de fartura da
mandioca. No ano de 2003, a cerimônia, com a presença apenas de pessoas do sexo
masculino, teve seu início durante a noite e basicamente consistiu segundo me foi dito,
pois fiquei, como as outras mulheres, dentro de casa apenas ouvindo os cânticos da ida,
cantando, às casas dos donos dos bastões âriko (pedaços roliços de pau, de mais ou menos
um metro, pintados com jenipapo) para buscar mingau (pogu ese). Passaram a noite toda na
175
cantoria, o que incluiu muitas composições acerca de comportamentos femininos
reprováveis. No dia seguinte, foi a vez das mulheres irem à tasera para responderem às
acusações ou para fazerem novas composições direcionadas aos homens.
199
Os alunos,
comandados por professores, também dançaram, passando de casa em casa dos ‘donos’ dos
bastões todos caracterizados com os trajes e as pinturas, conforme mencionado
anteriormente.
A realização do Âriko presenciada por mim, entretanto, pareceu-me atípica, talvez
por ter-se configurado em uma atividade escolar. Digo isto principalmente por dois
motivos. O primeiro diz respeito a ser uma cerimônia que normalmente não se encerraria
em um dia apenas (o “dia do índio”), mas que deveria seguir por mais algum tempo,
havendo as visitas diárias à casa dos ‘donos’ para buscar mingau (pogu ese), como ocorre
também no Iakuigady. Mas isso não aconteceu, criando-se um mal-estar e alguma
preocupação entre as pessoas pelo fato de não se ter dado continuidade conforme o
costume. Outro fator que indicaria a realização incompleta da cerimônia refere-se a não ter
havido a dança coletiva das mulheres segurando os bastões de madeira, como é comum
acontecer, segundo soube, em um ritual desse tipo.
2. Os santos e os espíritos do céu
Os outros ritos coletivos sagrados existentes entre os Bakairi são as chamadas
“festas de santo”, incorporadas nas últimas décadas através da intensificação de seu contato
com representantes da sociedade brasileira. em finais do século XIX, Karl von den
Steinen registrara a realização de festa em homenagem aos santos na proximidade de onde
moravam os Bakairi ocidentais: Em Cuiabazinho não tivemos sorte com aguardente, a
cachaça. É que três dias antes tinham bebido toda a provisão numa festa em honra a Santo
Antônio” (Steinen, 1940:40). Este viajante também observara àquela época indícios do
contato dos Bakairi “mansos” com signos cristãos. Sobre sua “arte” destacou:
199
Sobre isso explicaram-me que “é como os brancos, eles também fazem música em que homem fala de
mulher e mulher reclama de homem, é a mesma coisa”.
176
Figuras de cera. Constituem, como as de milho, um modo artístico de guardar o
material. Plasmavam-se da cera preta graciosas figuras de animais, dependurando-as
ou colocando-as numa cesta até que se precise do material. As mais bonitas eram dos
Mehinaku. Com os Bakairi encontramos uma figura humana de plástica mais perfeita
que a das bonecas de barro. Os índios civilizados e convertidos ao cristianismo
modificaram o costume antigo, passando a fabricar e vender figurinhas de santos
(Steinen, 1940:360).
200
Segundo os relatos históricos, a relação dos Bakairi “mansos” com os símbolos e as
idéias cristãs teriam se iniciado com a passagem de religiosos por suas aldeias em busca
dos martírios” (eldorado que se pensava existir na região). Depois desse momento, a
principal fonte de influência cristã teriam sido os missionários da South American Indian
Mission (ver página 212) e, mais recentemente, o SIL (Summer Institute of Linguistics
201
).
A Igreja Católica sempre teve um relacionamento distanciado com os Bakairi, apesar dos
longos anos de contato, caracterizando-se apenas por visitas muito esporádicas para a
realização de missa e batizado, e também pelo trabalho da “Pastoral”, que desenvolve
atividades relacionadas principalmente à melhoria alimentar da população, ensinando a
fazer pães e “farinha múltipla” (ou “multimistura”, como é chamado o complemento
alimentar rico em vitaminas). Houve décadas atrás o que pude registrar a partir de
alguns comentários uma aproximação maior da Igreja Católica do que aquela existente
hoje, como conseqüência primordial da identificação de um certo Bispo com a ‘causa
indígena’. Naquele tempo, alguns jovens bakairi foram levados para estudar em internatos
jesuítas nos estados de Goiás e Rio de Janeiro.
Atualmente, as duas principais expressões do cristianismo são, por um lado,
os evangélicos (cada dia com mais adeptos), concentrados principalmente em uma das
aldeias, onde existe uma Igreja que é visitada de maneira freqüente por um pastor vindo da
cidade (nessa localidade, ainda hoje, as missionárias do SIL fazem seu trabalho de tradução
da Bíblia para a língua bakairi); e por outro lado, as festas de santo”, que apresentam, no
entanto, total independência em relação a qualquer instituição católica externa, sendo
desenvolvidas apenas pelas famílias bakairi. Contam os Bakairi que seu primeiro contato
com tais festividades teria acontecido quando o posto indígena ainda era comandado pelo
SPI. Muitos deles iam às fazendas vizinhas para participar das festas realizadas em
200
Outro exemplo diz respeito ao relato de uma viagem do pajé ao céu, onde teria encontrado Jesus, a Virgem
Maria e os anjos (Steinen, 1940).
201
Sobre estas entidades missionárias ver capítulo VI.
177
homenagem aos santos católicos de maior devoção regional. Em tais datas, era-lhes
oferecida bebida alcoólica, uma característica desse tipo de festividade, além de
acontecerem alguns “namoros” entre as mulheres indígenas e os homens da região. O SPI
teria resolvido, então, passar a realizar festas como essas dentro do posto indígena, local
onde poderiam controlar melhor os acontecimentos. O primeiro santo a ser comemorado
entre os Bakari foi São Benedito, um dos mais importantes em Mato Grosso. De início, a
festa era organizada pelo próprio órgão indigenista, que teria posteriormente ‘doado’ este
santo a uma família.
Com o decorrer dos anos, os santos e seus respectivos ‘donos’ foram proliferando, e
hoje em dia temos nove cerimônias dessa espécie, conforme o seguinte calendário: em
janeiro, São Sebastião; em março, São José; em maio, o Divino Espírito Santo; em junho,
Santo Antônio, São João e São Pedro; em julho, São Benedito e Santana; em setembro, São
Miguel. São, portanto, poucos os meses que não contam com festividades do gênero.
A festa, além de seu dono’ (sodo) permanente,
202
tem os ‘donos’ temporários,
chamados “festeiros”, que se responsabilizam por apenas uma edição. Estes geralmente são
parentes daquele, convidados por ele a participar, dividindo-se em cinco papéis: capitão,
aférea, juiz, juíza e rainha. Essas pessoas, bem como seus parentes próximos, auxiliam o
‘dono’ vitalício nos preparativos da festa. As principais atividades que antecedem a
cerimônia são a montagem do “empalizado”, uma espécie de varanda provisória localizada
na frente da casa, onde se realiza o baile; a confecção de bandeirinhas e enfeites para o altar
do santo; a colheita da mandioca e o preparo dos biscoitinhos de polvilho (samu) a serem
distribuídos ao amanhecer do segundo dia da festa estas duas últimas sendo
responsabilidade das mulheres. Para as festas de São João e São Pedro, cabe ainda aos
homens “festeiros” limparem o acesso ao rio, para onde esses santos serão levados a fim de
serem “batizados”. Todos os momentos da festa, tanto os que a antecedem quanto durante a
cerimônia propriamente dita, são marcados por uma queima de fogos que anuncia o seu
início. Mesmo sendo a “festa de santo uma das principais expressões do universo
202
Ser ‘dono’ de uma festa de santo, assim como ocorre em relação ao kado, é um papel herdado dos pais.
Quando estes morrem, ou quando se encontram muito velhos para promover esses rituais, eles passam a
responsabilidade a um de seus filhos, geralmente aquele que apresentar maior interesse por esse tipo de
evento. É interessante ressaltar, neste sentido, o caso em que uma mãe (‘dona’ de máscara e de santo) deixou
a máscara Iakuigady para uma filha ‘cuidar’ e o santo para outra, sem fazer distinção entre os dois tipos de
‘objeto’.
178
cerimonial bakairi contemporâneo, ela ainda não havia sido objeto de interesse dos
pesquisadores. Pretendo, portanto, através desta descrição, registrar essa importante
instituição, a qual não poderia ficar ausente de uma análise dos rituais bakairi que se
pretende completa. A propósito, um dos aspectos que considero uma contribuição
inovadora da presente tese em relação aos trabalhos anteriores acerca deste grupo indígena
é o destaque dado em relação às fontes históricas e aos dados etnográficos àquelas
instituições que mesmo não sendo ‘originalmente’
203
bakairi são inegavelmente centrais
para a sua vida social atual, como é o caso das “festas de santo” e também da escola.
No dia do calendário católico comemorativo ao santo, inicia-se a festa. Pela manhã,
os “festeiros” vão buscar o “churrasco” (assim chamada a novilha que será assada),
comprado geralmente nas fazendas vizinhas. O número de novilhas dependerá da
possibilidade dos festeiros daquele ano, mas quanto maior for, mais prestígio estes terão.
204
Enquanto isso, as mulheres, localizadas em uma cozinha improvisada nos fundos da casa,
preparam a mandioca, o arroz e o feijão que serão servidos no almoço. Ao chegar a carne,
cabe aos homens assá-la. É um momento de muita alegria, principalmente com a chegada
de parentes das aldeias distantes vindos para participar da festa. Pronto o almoço, este é
servido pelos festeiros, na varanda, onde todas as pessoas fazem uma fila, portando copos e
pratos. Ao término, inicia-se a procissão, durante a qual as pessoas .vão seguindo o
sanfoneiro e o violonista, entrando em cada uma das casas de ‘dono’ de santo. Lá, eles
tocam um pouco de música, os donos oferecem suco e o santo é levado junto com os
demais, de modo que, ao final da procissão, todos os santos cheguem ao altar da festa.
À tarde, os tocadores de cururu” um gênero musical tipicamente matogrossense,
que utiliza como instrumentos a viola-de-cocho e o ganzá iniciam a sua cantoria, a qual
irá durar todos os dias de festa, guiando através de seu canto cada uma de suas etapas.
Assim, nesse mesmo dia, eles comandarão os “festeiros” na “subida do mastro”, cerimônia
em que é erguido um mastro onde há uma bandeira com a imagem do santo e uma coroa em
sua ponta. À noite é a vez da reza, em que uma ladainha em latim é ‘puxada’ por duas
pessoas, e ‘respondida’ em coro por todos os presentes na apertada sala da casa do ‘dono’
do santo. Finda a reza, inicia-se o baile, no qual os Bakairi dançam ao som de músicas
203
Sobre a construção da idéia de ‘originalidade’ ligada à noção de ‘cultura’ ver capítulo VI.
204
Sobre o esforço feito pelo festeiro para conseguir arcar com as despesas da festa, ver parte I, página 120.
179
regionais reproduzidas em discos. Nas festas de São João e São Pedro, é servida “farofa”
antes que todos partam, novamente em procissão, rumo ao rio, onde o santo será
“batizado”. Na volta do rio, geralmente o baile continua. Para esta parte noturna, todos
colocam suas melhores roupas, sendo comum, no tempo das festas juninas (comemorativas
de Santo Antônio, São João e São Pedro), as pessoas irem à cidade para comprar roupas e
sapatos novos especialmente para o evento.
No segundo dia, ao amanhecer, as mulheres vão à casa da festa para receber os
biscoitinhos de polvilho. O baile reinicia até a hora do almoço, desta vez ao som da sanfona
e do violão. Depois de servida a comida, reinicia-se o “cururu”, tocado somente pelos
homens mais velhos. À noite, acontece a cerimônia de desmonte do mastro, também guiada
pelo canto do “cururu” e durante a qual os festeiros do próximo ano assumem a festa, sendo
transferidos os seus símbolos a bandeira, a coroa e as imagens dos santos – para os novos
‘donos’. A partir de então, serão estes que começarão a trabalhar na festa, servindo bebida,
soltando fogos etc. O altar do santo pode ser desmanchado pelos novos festeiros nesse
mesmo dia ou, então, marca-se essa parte do ritual para o próximo final de semana,
continuando-se a festa. A noite termina com um “baile”. No terceiro dia, até o almoço,
acontece um baile com sanfona e violão, enquanto as mulheres festeiras ou parentes dos
novos festeiros preparam a comida para, em seguida, servi-la a todos. Mais tarde, ‘puxa-se’
uma reza novamente, depois da qual os santos serão levados às suas respectivas casas
através de uma procissão como a primeira. Todos retornam para a casa do santo a fim de
terminar o dia com outro “baile”.
205
ainda uma espécie de continuidade da festa, que acontece durante o restante do
ano, chamada oferecer café ao santo” (cafe sakuily). Assim, algumas vezes durante o ano,
os ‘donos’ da festa abrem suas casas para “oferecer café”, recebendo muitas visitas que
chegam, bebem café e vão embora. O aviso da rápida cerimônia acontece horas antes,
quando uma criança vai de casa em casa para comunicar que o santo” estará oferecendo
café. Isso ocorre também em casas que têm um ‘santo protetor’, mas que ainda não
promovem festa em sua homenagem, como é o caso de Santo Expedito. Nessas situações,
205
Não tive a oportunidade de acompanhar uma “festa de santo” em outro local do Mato Grosso, entretanto,
um enfermeiro matogrossense que presenciou uma das festas mostrou-se bastante impressionado com o nível
de parecença entre aquelas conhecidas por ele e a realizada entre os Bakairi.
180
há apenas uma pequena cerimônia para se agradecer a resolução de algum problema,
geralmente a cura de uma doença.
Apesar dos Bakairi não darem muita importância aos rituais propriamente católicos,
como a missa realizada de tempos em tempos na aldeia central e da qual poucas pessoas
participam, é visível a que dedicam aos santos. Acreditam que estes tenham poder de
protegê-los dos males e das doenças, o que pode ser comprovado pela grande quantidade
dos chamados “promesseiros”, pessoas que colaboram nas festas de santo como forma de
cumprir uma promessa feita a um determinado santo. Teme-se que a não-realização de uma
festa possa trazer grandes problemas, até mesmo a morte para aqueles que, dessa forma,
não estariam agradando ao santo. Isso aconteceria a partir da lógica da relação entre
doença-espírito-cerimônias, destacada em páginas anteriores.
Ao fazermos uma comparação entre essas festas realizadas em homenagem aos
santos católicos e as cerimônias do kado, podemos perceber muitos pontos em comum.
Com efeito, posso afirmar que as festas de santo foram inseridas entre os Bakairi
enquadrando-se no modelo preestabelecido dos rituais coletivos sagrados. As ‘estátuas’ dos
santos e as máscaras são vistas como objetificação de ‘espíritos’ em torno dos quais se faz
uma festa com o intuito de agradá-los e assim garantir saúde e fartura. Os espíritos do kado
vivem dentro das águas dos rios, e os santos estão no céu. Porém, em ambos os casos, são
responsáveis pela harmonia do mundo terreno. alguns santos, como é o caso de São
João e São Pedro, que têm em torno de si ainda mais semelhanças com os espíritos do kado,
pois são também relacionados ao domínio aquático, como demonstra a parte da festa em
que são levados ao rio para serem batizados.
De resto, as principais características estruturais do kado estão todas presentes na
“festa de santo”, como a coordenação da cerimônia, que é responsabilidade de seus
‘donos’, e a presença de especialistas em cantos; no caso das festas de santo, o sanfoneiro,
o violonista, os tocadores de “cururu” e também o DJ que comanda o baile,
206
sem os quais
não festa. A função de ‘dono’ confere grande prestígio em ambos os tipos de cerimônia
e, por isso, eles se esforçam bastante para que haja fartura, principalmente de carne.
Na preparação da festa, tanto em um caso quanto em outro, a principal tarefa
masculina é a aquisição da carne, e a feminina, a colheita da mandioca e seu
206
Sobre a analogia entre o forró e o mariri (dança “tradicional” kaxinawá), ver Ingrid Weber (2004).
181
beneficiamento. O canto e a dança são, nos dois casos, o momento mais esperado. A dança
no baile é extremamente ritualizada: todos os pares, ao dançarem, fazem um balé coletivo,
rodando no mesmo ritmo e em sentido anti-horário, os homens indo de frente e as mulheres
de costas. Os trajes também são fator importante no kado e nas “festas de santo”. Se, em
relação ao primeiro, estes são inspirados nos habitantes de um outro mundo localizado sob
as águas (donos das espécies que dominam os ‘espíritos’, como os peixes), as roupas
utilizadas nas “festas de santo” são a expressão da imagem ideal do karaiwa (representante
de outro domínio de alteridade, ‘donos’ por excelência dos santos).
Em suma, tanto o kado quanto as “festas de santo” constituem-se como cerimônias
que têm como característica principal a participação coletiva da totalidade das parentelas
bakairi que, através de diversas práticas envolvendo cantos, danças, comensalidade, além
da materialização dos iamyra (em máscaras ou “imagens”), pretendem entrar em contato
com entidades viventes em outros ‘mundos’ ou ‘dimensões’, as quais acredita-se que
tenham o poder de intervirem na existência desta terra”, provendo principalmente saúde e
fartura.
*
Até aqui abordamos vários processos que fazem parte da formação de um kurâ: a
educação informal familiar; a iniciação e os momentos de reclusão (wanky); e as
cerimônias coletivas responsáveis pela saúde, equilíbrio e reprodução, tanto pessoal-
familiar quanto coletiva. A maioria dessas instituições, exceto as “festas de santo”, têm sua
origem no período anterior ao contato com os karaiwa mesmo que este tenha nelas
impresso muitas modificações posteriores.
Se enfocarmos os diversos momentos da formação do kurâ vistos até agora através
da sua relação com a formação dos corpos, especialmente privilegiando o
‘comer’/consumir, podemos dizer que no espaço doméstico isso acontece através do
aprendizado dos meios de predar (caçar, pescar) e fazer o alimento (âsewanily, trabalho),
que ao ser compartilhado pelos membros da família produz a consubstancialização dos
corpos/pessoas. os períodos de reclusão são marcados por uma relação negativa com o
alimento, bem como com a família: dieta e afastamento. No kado e Festas de Santo o
182
consumo pode ser notado em três modos distintos, que, todavia, concorrem para o mesmo
objetivo final de familiarização com o ‘de fora’: a comensalidade pan-familiar; o ‘dar de
comer’ ao Santo e aos Iamyra; e finalmente a captura de recursos e potencialidades que
decorre dessas cerimônias, os quais serão usados no sentido da produção de corpos/kurâ e
de corpos/família.
A escola, última instituição formadora de pessoas-kurâ a ser tratada, foi trazida e
implementada pelos karaiwa a partir de um programa de civilização, assimilação e
nacionalização promovido pelo governo brasileiro através do Serviço de Proteção aos
Índios (SPI). Passaremos a partir de agora a focar na educação escolar. Primeiro, através da
abordagem das características do projeto de civilização, analisando os documentos
deixados pelo SPI, mas principalmente os discursos e as práticas dos próprios Bakairi; os
quais nos revelaram como eles assimilaram a sua assimilação, ou seja, como se apropriaram
da escola a partir de como ela lhes foi (e vem sendo) apresentada. Depois disso,
chegaremos à escola bakairi dos ‘dias de hoje’, a qual se destaca, como se verá, por sua
importância enquanto local público, palco de performances centradas no
exercício/expressão de civilização e de “indianidade” (Souza Lima, 1995). Neste sentido,
veremos que a escola se identifica ao kado, sobretudo enquanto instrumento de mediação
com o ‘outro’, possibilitando através de seus ritos a captura dos recursos controlados por
esse ‘outro’ e utilizados a fim de continuarem produzindo as pessoas e as próprias unidades
sociais. Assim, se num primeiro momento (posto indígena do SPI) os Bakairi estiveram na
posição de capturado/presa, para o que a escola desempenhou importante função; veremos
que duas décadas iniciou-se o processo de (re)apropriação do controle (ainda relativo)
sobre suas próprias vidas, o que inclui, entre outras coisas, a domesticação da escola.
Pretendo a partir de agora, então, mostrar primeiro como se deu a captura dos Bakairi pelos
chamados ‘brancos’ e o uso da escola nesse sentido; para finalmente passar a entender
como aconteceu a captura/apropriação da escola e da civilização por parte dos Bakairi.
Capítulo VI
A construção da escola kurâ-bakairi
183
Vimos até aqui, na parte sobre a formação do kurâ, a educação doméstica, os
momentos de iniciação caracterizados principalmente pela reclusão e também as cerimônias
coletivas propiciadoras dos recursos necessários à reprodução familar e social bakairi.
Chegamos agora à escola, outra instituição fundamental, na visão atual dos Bakairi, para a
formação de um kurâ (pessoa). Através de atividades altamente formalizadas, tanto
cotidianas como em cerimônias específicas, a escola representa hoje em dia um papel
importante como espaço coletivo de aprendizado e de realização de rituais que, em
conjunto, pretendem formar os kurâ como devem ser na sua vida social. A escola,
obviamente, é uma aquisição recente, tendo obtido em poucas décadas um lugar de
destaque na sociedade bakairi. Veremos a partir de agora como ela ganhou contornos
específicos pela forma com que foi introduzida e por características próprias da organização
social e da cosmologia bakairi ainda que sob a aparência de total submissão ao formato
escolar oficial brasileiro.
Começaremos, então, por entender como a escola foi introduzida entre os Bakairi,
ou seja, em que contexto político e segundo quais valores, em uma abordagem dos projetos
forjados primeiro pelo SPI, depois pela FUNAI e mais recentemente enquadrados nos
programas de educação intercultural. Este será o objetivo do presente capítulo. No seguinte,
veremos como os Bakairi digeriram a introdução dessa instituição entre eles, passando a
dela se apropriarem em seus próprios termos.
‘Civilização’ esta é a palavra-chave para o entendimento de todo o processo. Na
visão dos ‘civilizadores’, ou seja, do Estado brasileiro, tendo à frente seus órgãos
indigenistas, esse conceito abarcaria três dimensões diferentes, embora inter-relacionadas.
A primeira estaria ligada à idéia de ‘civismo’ e, conseqüentemente, de nacionalismo e
patriotismo: para um povo ser considerado ‘civilizado’ deveria pertencer a um Estado
nacional. Outra faceta da ‘civilização’ estaria relacionada a maneiras, hábitos e valores
considerados ‘bons’, etnocentricamente definidos em termos de um padrão ocidental único,
o que inclui valores como o ‘trabalho’, e normas de higiene e etiqueta. Finalmente,
‘civilização’ corresponderia ao estágio mais alto e mais perfeito de uma escala evolutiva
que se iniciaria com os ‘primitivos’, identificados por uma série de ausências: de roupa, de
estado, de religião, de moral, de meios adequados de subsistência. A escola, como veremos,
184
foi usada como o instrumento por excelência de realização do processo de formação de
crianças e jovens conforme os preceitos ‘ocidentais’.
ainda a visão dos ‘colonizados’ sobre a ‘civilização’. No caso dos Bakairi,
caberia a definição de Laura Rival diante da realidade dos Huaorani do Equador, segundo a
qual ‘civilizar-se’ (ou modernizar-se) estaria relacionado à habilidade de comportar-se com
competência suficiente como os ‘nacionais’; poder visitar as cidades próximas sem ser
estigmatizado; e ter acesso a bens manufaturados (Rival, 1997:143).
207
A fim de fazer a reconstituição da trajetória dos Bakairi e de sua inserção no
universo da educação escolar, este capítulo será dividido em três seções. Na primeira,
abordarei a fase em que estiveram sob o jugo do Posto indígena do SPI, sendo a escola uma
de suas instituições centrais. Na segunda, tratarei da passagem para a FUNAI:
continuidades e mudanças. Finalmente, na terceira parte, mostrarei como aconteceu a
‘transferência’ do controle direto da escola da FUNAI para os professores bakairi (todavia,
ainda vinculados ao Estado através das secretarias de educação), situação em que se
encontra atualmente.
1. O Regime do SPI: escola, civilização e nacionalismo
1.1. O Serviço de Proteção aos Índios
O regime do SPI deixou marcas entre os Bakairi que nos interessam abordar como
forma de entender a construção da sua escola conforme existe hoje em dia. Neste sentido,
vale primeiro ressaltar a introdução de valores como ‘civilização’, ‘nacionalismo’,
‘disciplina’, ‘trabalho’ e, ainda, os novos hábitos, como aqueles relativos à produção rural e
ao consumo de bens manufaturados. Como corolários de uma mudança mais ampla,
encontramos a inclusão na ‘totalidade’ Brasil, através de um lugar (subalterno) na
hierarquia nacional (em um primeiro momento representada principalmente pela
207
O significado da ‘civilização’ para os Bakairi será objeto de uma análise mais detalhada no próximo
capítulo.
185
organização das Forças Armadas e, mais recentemente, pela integração nos quadros do
funcionalismo público) e a situação relacionada à escola, que se apresenta de duas
maneiras: por ser ela uma das instituições que permitem a introdução no sistema do
funcionalismo, no caso, através da função de professor, e por ser a educação escolar vista
como o meio por excelência para a inclusão nacional, seja através do aprendizado de
comportamentos adequados, conhecimentos valorizados e de diplomas, seja pela
possibilidade de se obter emprego.
Outra marca da escola do SPI sobre a atual refere-se ao fato desta instituição ter
funcionado entre os Bakairi por muitas décadas, sendo o primeiro modelo de instituição
educacional escolar apresentado a eles. Desta forma, teria implantado uma ‘imagem de
escola’ que influenciaria até hoje, fundamentalmente relacionada, como veremos, aos
seguintes aspectos: atividades disciplinadoras (provas, registros, comportamentos);
metodologia de ensino (cópia e memorização da matéria, ao lado de ‘performances’
cotidianas e extraordinárias que tenham como tema a pátria e seus mbolos). Os Bakairi
talvez sejam os que mais sofreram os efeitos da política do SPI, vivendo durante muitas
décadas em torno de um importante Posto indígena. Portanto, para que possamos entender
sua realidade atual, e mais especificamente a escola, deveremos partir da compreensão da
ideologia e dos objetivos políticos do órgão indigenista de outrora. O SPI foi criado
em 1910 e extinto em 1967, quando foi substituído pela FUNAI. Durante essas quase seis
décadas esteve alocado em três ministérios diferentes, cada um deles mostrando uma face
do seu projeto de ‘civilização’: quando de sua criação, pertenceu ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio (MAIC); em 1930, passou ao recém-criado Ministério do
Trabalho Indústria e Comércio (MTIC); depois, veio a pertencer aos quadros do Ministério
da Guerra (MG) (1934-1939) ficando vinculado à Inspetoria Especial de Fronteiras
voltando em 1939 ao Ministério da Agricultura (Souza Lima, 1995). Essa história de
mudanças ministeriais, por si mesma, deixa clara a vocação do SPI para ser o órgão do
desenvolvimento e da integração dos povos indígenas. A ligação com as áreas ministeriais
responsáveis por agricultura, indústria, comércio e trabalho é evidência da finalidade de
incorporar a mão-de-obra indígena, bem como os seus territórios, ao projeto de
modernização e desenvolvimento econômico nacional. A subordinação ao Ministério da
Guerra é expressiva quanto ao caráter militar que caracterizou o SPI desde sua criação até
186
sua extinção, mesmo quando submetido a ministérios de outras áreas. Seja pela dimensão
econômica, seja pela simbólica e política, todos os esforços do SPI estiveram voltados para
a integração dos chamados índios, afinados com o objetivo maior de homogeneizar o
‘povo brasileiro’.
Souza Lima inclui esse projeto do governo brasileiro em uma relação social mais
abrangente, comum a processos de dominação que ocorreram e ocorrem em muitos outros
lugares além do Brasil, ao qual ele chamou de “conquista”:
a conquista implica em fixação de parte do povo conquistador nos territórios
adquiridos pela guerra. Este processo se amplia após a vitória militar, configurando
um maior afluxo de população originária das unidades sociais invasoras. Tal envolve
o desdobramento da organização militar conquistadora em uma dada forma de
administração, para gerir a exploração sistemática do butim, e a transmissão de
alguns dos elementos culturais e valores principais do invasor, capazes de, por sua
presença, definirem o pertencimento dos ocupantes daqueles territórios a uma
totalidade social mais inclusiva e com maior dependência funcional entre suas partes,
signos e valores cuja introdução/cotidianização/reprodução seria realizada através de
instituições concebidas para esse fim (Souza Lima, 1995:52)
Souza Lima, ao falar neste texto das principais características da conquista de um
povo, sintetiza as estratégias utilizadas pelo SPI no seu plano para os índios no Brasil.
Neste caso, a conquista” pretendia ser realizada através da anexação das populações
indígenas a uma totalidade autodefinida como ‘nação’. A citada “fixação” do ‘invasor’
foi de fundamental importância para a política de ‘civilizar sem violência’, pois os povos
indígenas entre eles os Bakairi foram entrando progressivamente em contato com os
funcionários dos postos e também com os núcleos populacionais próximos, como as
fazendas, assim aprendendo um novo modo de vida caracterizado como ‘civilizado’. Ao
se adequarem a essa vida, eram ‘recompensados’ com ‘presentes’ e ‘amizades’, entre
outras fontes de acesso aos novos objetos de desejo: pentes, roupas, panelas, armas etc.
Se eram rebeldes e insubordinados, ganhavam castigos, como no caso de serem retirados
do convívio de seus parentes e mandados para viver em postos indígenas habitados por
outras etnias. Entre os Bakairi ouvi muitos relatos de pessoas que foram punidas por não
terem um comportamento considerado civilizado, seja por ‘rebeldia’ (leia-se resistência
ao processo de homogeneização), seja por seguirem costumes considerados ‘selvagens’
(leia-se resistência à idéia de ‘evolução’).
187
A outra característica da conquista citada por Souza Lima, a saber, a organização
militar e as suas ações no sentido de incorporarem o povo conquistado, pode ser
considerada o cerne da política do SPI. Assim, o seu trabalho foi executado através de
uma estrutura militar, baseada em postos, inspetores e outras funções genuinamente
militares (Souza Lima, 1995). O próprio Cândido Mariano Rondon, seu fundador e
inspirador, e a maioria dos diretores deste órgão eram militares.
208
A idéia de ‘proteção’
presente não só nos seus discursos e objetivos, como no próprio nome do órgão – Serviço
de Proteção aos Índios – também nos remete à sua função militar. Isso sem falar dos anos
em que passou submetido ao Ministério da Guerra, tendo como justificativa para tal
alocação o fato de o trabalho do órgão colaborar no povoamento das fronteiras nacionais,
unindo assim em um só serviço a nacionalização das fronteiras e a dos índios.
A principal característica citada sobre a “conquista” que identifica os objetivos do
SPI é a relação feita entre os signos e os valores do invasor e a organização militar que,
unidos, deram prosseguimento à tarefa de homogeneizar o Brasil através do
aniquilamento de todas as diferenças encontradas no percurso essa homogeneização
sendo feita em nome de uma totalidade maior, a pátria, a nação. está a chave para a
compreensão da força que têm os símbolos nacionais e o ‘amor à pátria’ da parte de
alguns povos indígenas brasileiros, certamente entre eles os Bakairi. O que pudermos
encontrar ainda hoje neste sentido não deve ser tratado como um fato qualquer, mas como
conseqüência de um trabalho de muitas décadas, inculcando nas populações indígenas a
ideologia do nacionalismo, construindo em seu imaginário uma totalidade da qual fariam
parte e dependeriam: o Brasil. Símbolos nacionais, como hinos, a bandeira, o mapa do
Brasil, quadros de personalidades da pátria, tudo foi utilizado ostensivamente com o
único objetivo de incluir essas populações “marginais” em um estado imaginado como
nacional” (Souza Lima, 1995:39), criando aos poucos a idéia de uma nova totalidade à
qual pertenceriam.
Faço um parêntese aqui, antes de continuarmos no ‘tempo do SPI’ para retornar a
algumas décadas anteriores à atração dos Bakairi, os encontrando familiarizados, pelo
menos em certos aspectos, com as instituições militares brasileiras. Pelo menos desde o
208
Segundo quadro número 1 do livro de Souza Lima (1995), o qual lista todos os diretores do SPI; de 15
pessoas que estiveram na sua direção, 10 foram militares.
188
período das expedições de Karl von den Steinen (final do século XIX), temos registros
sobre a relação entre os Bakairi e a pátria brasileira intermediada pelas Forças Armadas.
Este autor nos conta que, da sua primeira passagem pelos aldeamentos dos Rios Arinos e
Paranatinga, teria encontrado líderes bakairi tratados pelo título de ‘capitão’, atribuído pelas
Forças Armadas brasileiras, respectivamente, a Capitão Reginaldo e a Capitão Caetano:
Os dois aldeamentos acham-se sob a direção do “Diretor dos Índios” em Cuiabá.
Reginaldo é capitão brasileiro e seu sucessor, na chefia da tribo, é o tenente Joaquim.
Não vimos mulheres, porque elas residem em um aldeamento a duas léguas dali. Os
ranchos que ocupávamos eram requisitados para uso da administração rural, ou
quando havia visita (Steinen, 1942:125).
Reginaldo parecia elegante à frente dessa turma feminina. Tinha um chapéu de feltro
cinzento, a túnica de capitão e calças brancas, o que o o impedia de estar descalço
e usar em cada orelha uma pena azul e branca. Concordou plenamente em que
Willhelm desenhasse a sua figura, assim, em traje de gala. Partia sempre do ponto de
vista (que nós, diariamente, procurávamos consolidar nele) de que todas essas
informações que colhíamos tinham a finalidade de ser transmitidas ao Imperador do
Brasil, objetivo esse que entrava, pelo menos, na concepção desse homem. Assim,
prestava-se a ser-nos agradável (Steinen, 1942:129).
O cargo de ‘capitão’, ao que parece, referia-se a uma forma de o governo brasileiro
fazer com que os líderes indígenas passassem a ser representantes do Estado nacional entre
os seus, ocupando, portanto, o papel de mediadores tão importante para as relações que
começavam a ser travadas com a ocupação do interior da província de Mato Grosso. Essa
mediação é observada na existência de “ranchos” utilizados para o contato entre índios e
brancos, “sob a direção do ‘Diretor dos Índios’, bem como no orgulho do capitão Reginaldo
em trajar roupas e insígnias de capitão das Forças Armadas brasileiras como seu legítimo
representante entre os Bakairi.
Mais tarde, um outro Bakairi do aldeamento do Paranatinga, chamado Antoninho,
passaria a ser reconhecido como uma importante liderança no período entre os séculos XIX
e XX, após ter alcançado destaque nacional (e internacional) como guia de Karl von den
Steinen. O Capitão Antoninho como veio a ser tratado após o seu reconhecimento pelas
Forças Armadas, foi a principal figura de mediação entre o governo brasileiro e os Bakairi
até a formação do Posto indígena, intermediando principalmente a ida dos ‘Bakairi
xinguanos’ para o convívio com os chamados ‘mansos’ (e conseqüentemente com os
‘brancos’). Ele teria atingido tanta importância no papel de capitão que teria sido recebido
189
pelo próprio Imperador, encarnação do Estado brasileiro e símbolo máximo da sua
hierarquia social e militar.
A imagem do Imperador foi construída pelos Bakairi daquela época a partir de suas
próprias referências míticas, conforme podemos verificar nas palavras dirigidas pelo
Capitão Caetano a Karl von den Steinen:
Imagine-se: Imperador, o deus do sol dos índios. Costuma-se designar, também, o
Imperador por Keri e Chichi. O seu irmão chama-se Came e também Nuna. Chichi é
o sol, Nuna a lua (Steinen, 1942:334).
Os homens foram creados por Keri, o Imperador, que os tirou das plantas. “Rezou
(sic) para “uvá”, a madeira das flechas e apareceram os bacairis e os cajabis. Os
coroas foram creados por meio da “tacoara” (espécie de bambu), os negros do
“penacholo”, uma madeira preta, os antepassados dos portugueses do “piricetó”, uma
árvore que dá no campo cerrado. O Imperador criou a mata, o pasto, o cavalo, o gado
vacum, depois rezou para as térmitas e – bonito, hein? – apareceram as pedras
(Steinen, 1942:335).
O imperador, acompanhado de bacairis, e um homem branco costumavam passear,
sendo que o primeiro ia ao longo do Paranatinga, o outro ao longo do outro rio, cujo
nome não se sabe. O homem branco, certa vez em que o Imperador lhe falou, deixou
subitamente de lhe responder. É que um grande peixe, o jaú, o havia engolido. Então
Keri enviou um pato que fez com que Jaú tornasse a vomitar, incólume, o homem
branco. Este caminhou ao longo do rio, cada vez mais e mais, até que chegou ao
grande “Poço” (fonte, aqui talvez lagoa, refere-se ao mar), onde embarcou, voltando,
mais tarde, com a espingarda com que se atira. Tumeng fez a casa de Pedra do Salto,
a fim de que o Imperador ali morasse, assim como também fez o alçapão dos peixes,
para que os inúmeros urubus encontrassem o que comer (Steinen, 1942:336-337).
nesses trechos referências às narrativas bakairi sobre a origem do mundo e das
coisas e os seres nele existentes. Originalmente, o herói criador é “Kame” ou “Xixi” (sol),
conforme a versão, sendo estes os nomes dados a um dos gêmeos míticos (o outro é “Keri”
ou Nunâ” (lua), ao qual os Bakairi atribuem muitos feitos, como a conquista do sol e do
fogo (relatados no capítulo VII), e a origem de tudo o que existe, como os homens em geral
e os Bakairi especificamente (Steinen, 1942:480-485). A comparação com “Kame” reflete,
portanto, a imagem que os Bakairi tinham do Imperador: um herói poderoso e ‘senhor’
(sodo) não apenas dos brasileiros, mas também dos Bakairi englobados na hierarquia
nacional. Este é um contexto que indica o processo de ‘civilização’ que se iniciava, sendo
considerado ‘civilizado’ nos termos de Souza Lima, o “súdito de um soberano ilustrado ou
de um imperador do Novo Mundo” (Souza Lima, 1995:71). Entendemos, então, a
190
importância das patentes de capitão e tenente entre os líderes bakairi, pois ao passo que os
colocavam como mediadores com os ‘brancos’, conferiam-lhes intenso prestígio ao
identificá-los, mesmo que em posição subordinada, ao Imperador.
Este parêntese serviu para contextualizar a introdução do programa patriótico e
nacionalista do SPI, mostrando que anteriormente ele começara a ser construído pela
inserção das lideranças indígenas no organograma militar nacional. Hoje em dia, como
veremos a partir da abordagem da escola, os símbolos do Estado brasileiro ainda despertam
fascínio entre os Bakairi, seja o canto dos hinos patrióticos, a bandeira nacional, ou a
parada de Sete de setembro. Situação que, a meu ver, se deve em parte à ênfase dada a tal
aspecto durante as muitas décadas de funcionamento do Posto indígena do SPI (e depois,
em menor escala, pela FUNAI). Também em parte em função do que representam esses
signos em relação ao forte desejo dos próprios Bakairi de serem ‘incluídos’, ‘aceitos’,
‘integrados’ à sociedade brasileira, resultado da situação de dependência a que foram
submetidos e da forma bakairi de tratar a alteridade, em que a familiarização com o outro’
é processo necessário para a captação dos recursos e das capacidades deste ‘outro’
(conforme teremos a oportunidade de notar em vários exemplos relativos à escola, aludidos
no decorrer deste trabalho). Neste sentido, caberia aqui o comentário que Peter Gow fez
sobre os Piro do Peru, em que diz ser o expansionismo nacional e a vontade de dominar (no
caso, o programa do SPI) tão reais quanto o desejo dos indígenas (no caso, os Bakairi) pelo
conhecimento estrangeiro (Gow, 1991:291).
De fato, a figura do capitão representava a ‘inclusão’ na hierarquia militar do Estado
brasileiro, num primeiro momento encabeçada pelo Imperador, e depois pelo Marechal
Rondon, figura máxima da ‘proteção dos índios’. Hoje em dia, como vimos na primeira
parte deste trabalho, a figura do capitão indicado pelo órgão indigenista não existe mais,
sendo os caciques escolhidos através de eleição ou quando ele é o fundador de uma nova
aldeia. Entretanto, atualmente outras formas de inclusão no sistema ‘oficial’ brasileiro.
Refiro-me à participação em sua burocracia (documentos, programas assistenciais do
governo) e no funcionalismo, representado hoje em seu nível máximo pela ocupação do
cargo de chefe de Posto por um Bakairi, responsável pela mediação entre seu povo e o
governo brasileiro.
191
A escola sempre teve um lugar de destaque na interlocução entre Bakairi e Estado
brasileiro – durante a vigência do Posto do SPI, bem como na época em que era coordenada
pela FUNAI e, ainda hoje, com os professores indígenas sendo um dos mais importantes
símbolos da ‘cultura nacional’, ou seja, da conduta civilizada. Os professores operavam (e
ainda operam) como representantes do Estado frente aos Bakairi, não apenas em suas
tarefas cotidianas, mas também trabalhando como ‘mesários’ nas eleições, mediando
projetos de assistência social e realizando outras atividades do gênero. Laura Rival teria
encontrado papel semelhante entre os professores que vinham da cidade para trabalhar entre
os Huaorani: More than mere educational institutions, schools formally linked Huaorani
villages to the state, simultaneously integrating nuclear families and individual citizens
within the national society (Rival, 2002:155).
Veremos que na escola bakairi a integração interna das parentelas e a articulação
externa com os karaiwa o realmente inseparáveis – característica que, entre outras,
possibilitará que seja feita uma comparação entre esta instituição e o kado (quando as
diversas famílias se reúnem a fim de ‘comunicarem-se’ com os iamyra, seres igualmente
‘de fora’).
Agora passaremos a abordar outro aspecto do projeto de integração SPI, a saber,
aquele que pretendia transformar os indígenas em geral, e os Bakairi especificamente, em
‘trabalhadores nacionais’, para depois voltarmos a tratar da questão do nacionalismo e do
patriotismo, mas desta vez no que se refere às práticas escolares.
1.2. Trabalhadores nacionais
O outro eixo do programa integracionista e civilizador do SPI, além daquele focado
nos valores da pátria, é o referente à formação de ‘trabalhadores nacionais’. Através do
incentivo ao aprendizado de conhecimentos, habilidades e disciplinas do trabalho
agropecuário, o SPI planejava incutir um novo modo de vida entre os indígenas e também
incorporá-los (e as suas terras) à produtividade e à força de trabalho nacional. Neste
sentido, tanto os ministérios aos quais o SPI pertenceu – Ministério da Agricultura Indústria
192
e Comércio (MAIC) e Ministério do Trabalho Indústria e Comércio (MTIC)
209
como o
próprio nome original deste órgão SPILTN: Serviço de Proteção aos Índios Localização
dos Trabalhadores Nacionais indicavam o objetivo de transformá-los em ‘trabalhadores
rurais’ e assim unir assimilação e desenvolvimento. Segundo Souza Lima, “os passos
básicos implícitos no ato de civilizar seriam tomar os nativos por mão-de-obra dentro de
uma economia de mercado e a incorporação (no sentido de fazer corpo) da língua,
vestuário, religião e outros costumes do povo conquistador” (Souza Lima, 1995:122).
Este autor identificou no programa do SPI quatro fases que marcariam a “evolução
dos primitivos ao status de civilizados”: a primeira, a “atração de índios selvagens” poderia
ser considerada a pacificação em si, e para tal eram usadas as técnicas de deslocamento
espacial e concentração geográfica em torno de um núcleo administrativo a partir da doação
de bens (brindes) industrializados e produtos primários de lavoura [...]”. A segunda seria
caracterizada pelo ensinamento de técnicas de lavoura e pecuária. “À terceira fase
corresponderiam os trabalhos de civilização propriamente ditos: inserção dos grupos nos
trabalhos agrícolas tout court, sobretudo na pecuária, educação escolar com o aprendizado
do português e treinamento em trocas comerciais. A quarta demandaria a regularização das
terras dos grupos e sua instrumentalização com melhores técnicas agrícolas” (Souza Lima,
1995:136-137).
Os Bakairi são um exemplo vivo da implementação desse projeto, desde a atração
dos ‘Bakairi xinguanos’, que vieram morar primeiro próximos dos seus parentes ‘Bakairi
mansos’, posteriormente do Posto indígena, e acabaram por transferir-se completamente
para os limites do Posto em 1923 – incentivados principalmente pela aquisição de ‘brindes’
e pela possibilidade de tratamento para algumas doenças de karaiwa (somente curadas por
drogas industrializadas) que se alastraram pelas suas aldeias até a implantação de um
regime de produção baseado na pecuária e na lavoura. Os Bakairi foram formados ‘com
sucesso’ (do ponto de vista dos objetivos iniciais) como trabalhadores habilitados para
exercerem essas funções, não somente pelo domínio das habilidades necessárias, mas
também pela assimilação do ‘gosto’ e do ‘valor’ por esse tipo de trabalho.
Veremos que, atualmente, as lideranças bakairi vêem como únicas possibilidades de
desenvolvimento de seu povo a produção pecuária ou a lavoura de arroz mais
209
Sobre o Ministério da Guerra comentamos na parte anterior.
193
recentemente cogita-se a plantação de soja, símbolo do ‘desenvolvimento matogrossense’,
incentivada pelo governador do estado, Blairo Maggi, que é um grande produtor de soja e
tem como política disseminar a plantação desse cereal por todos os seus limites, inclusive
nas terras indígenas. Pude acompanhar a elaboração de alguns projetos por parte das
lideranças bakairi a fim de serem apresentados para o governo do estado; eles versavam
sobre o incentivo à lavoura mecanizada de arroz e à criação de gado. Hoje, como vimos na
parte I deste trabalho, os Bakairi mantêm seus cultivos e suas atividades econômicas
tradicionais, a saber, a roça familiar e a pesca. Entretanto, aos poucos estão abandonando
estas atividades para se dedicarem ao trabalho como funcionários públicos ou criadores de
gado. Quanto a esta última função, ela se constituiu a partir das poucas ‘cabeças’
conseguidas com a política do SPI de incentivo à natalidade, através da qual se doava aos
pais uma novilha a cada criança nascida, segundo Edir Pina de Barros (2003:95) uma “a
cada aniversário, até que completasse cinco anos, outra novilha e, a partir da posse de dez
novilhas, um animal de montaria”; e ainda da a distribuição em 1980, entre as famílias
bakairi, do plantel de 400 cabeças de gado pertencentes à FUNAI. A meta era, portanto,
que os indígenas conseguissem assimilar o trabalho como valor assim como era
concebido pelo SPI mas também o dinheiro, tornando-se, além de trabalhadores
nacionais, em ‘consumidores nacionais’. Veremos mais adiante que essa política teve
‘êxito’ entre os Bakairi e hoje o trabalho e os bens que ela pode oferecer são valores que
foram assimilados, como já vimos, a partir do mais caro de todos eles: o bem-estar familiar
(ver parte I). A escola insere-se nesse contexto a partir do momento em que é vista como
meio de propiciar trabalhos mais rentáveis e menos ‘pesados’.
Na época do SPI, a escola estava imiscuída nesse modelo desenvolvimentista e fazia
parte nas atividades de produção do Posto indígena. Ela compactuava, portanto, com “a
marca produtivista, com o incentivo desde a primeira década do século à independência
econômica dos postos” (Souza Lima, 1995:291). Os alunos eram forçados a desenvolver
atividades que ajudassem na subsistência do Posto, como cuidar de pequenos animais e
fazer serviços relacionados à roça. Desta forma, ao mesmo tempo em que colaboravam na
produtividade, aprendiam habilidades e disciplinas essenciais para serem os ‘trabalhadores
nacionais’ que se pretendia que viessem a ser. Com este fim, a escola era organizada da
seguinte maneira: pela manhã, os alunos aprendiam conteúdos relativos à leitura e à escrita
194
em português e noções elementares de matemática; na parte da tarde, aprendiam a ser
trabalhadores. A título de ilustração, temos o relatório de 1959, no qual o professor
destaque à questão das “plantações”:
Plantações
plantamos uma área com 600 pés de abacaxis, outra área com 250 pés de jaqueira
baia, e uma área de 300 metros quadrados com 4.000 pés de macacheiras (mandioca),
para alimentação das crianças escolares (Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 213,
doc.509, 1959).
A escola atualmente, apesar de ter a disciplina “práticas agrícolas” e da maioria dos
professores ter estudado em colégio agrícola, não mais desenvolve trabalho relativo a
plantações. Presenciei apenas uma experiência neste sentido, que dizia respeito a uma horta
feita por alunos e um professor da matéria prática agrícola”, a qual não durou, apesar do
investimento requerido, além da primeira colheita. A plantação de hortaliças, realmente,
não tem uma correspondência com o hábito alimentar bakairi, que não inclui folhas nem
legumes, mas fundamentalmente peixe e mandioca. Outra dificuldade que se impõe para
que a escola leve adiante uma plantação desse tipo diz respeito a ela ser uma instituição
pública e a forma de produção bakairi ser, por excelência, familiar, ou seja, a introdução
dos ‘trabalhos agrícolas’ em uma escola não mais submetida a um regime autoritário
(como foi o do SPI), que forçava as atividades neste sentido, esbarra hoje (comandada pelos
professores indígenas) no caráter familiar das atividades produtivas bakairi.
Talvez este seja um bom contraponto às cerimônias promovidas pela escola, pois
estas, também centrais no tempo do SPI, são inversamente atividades públicas, das quais
participam todas as parentelas (como no kado) e, neste sentido, com afinidade com o
espaço escolar essencialmente socializador (este tema será devidamente explorado no
próximo capítulo).
Como os seus contemporâneos, um senhor que hoje tem por volta de 70 anos passou
pela freqüência à escola do SPI. Ele conta que “os professores não paravam”, havia muita
rotatividade e longos períodos sem aula. Ele se lembra que começava a estudar às 6 horas
da manhã e às 8 ou 9 horas a aula estava acabada. Então, ele ia com os outros meninos
cuidar dos patos e dos gansos, atividade da qual tem muitas recordações ainda hoje (mais
até que do ensino na sala de aula). Ele me disse que depois de ter finalizado os estudos foi
195
trabalhar como cozinheiro em um dos “retiros” do Posto , onde fazia comida base de
milho e carne), e para onde ia a maioria dos homens, enquanto as mulheres e as crianças
ficavam na sede do Posto. As famílias reuniam-se apenas nos fins de semana.
Este depoimento sumariza o regime implantado pelo SPI, o qual se baseava na
criação de animais e na lavoura com o objetivo de sustentarem os moradores do Posto
indígenas e não-indígenas e ainda os ‘visitantes’ de outras etnias que vinham do Alto
Xingu em busca de ‘brindes’ do SPI.
210
Através dessas atividades também se concretizava a
meta de ‘desenvolver’ os Bakairi pelo trabalho, transformando-os em ‘trabalhadores
nacionais’. O ‘regime’ funcionava conforme foi relatado acima: os homens trabalhavam
nos retiros de segunda-feira a sábado, durante todo o dia, e as mulheres e as crianças
ficavam no Posto, as últimas freqüentando a escola. Os aprendizes de ‘trabalhadores
nacionais’, além de cuidarem do gado (como podemos ver na foto 2) e de animais de
pequeno porte, como porcos e galinhas, também trabalhavam na roça do Posto onde
produziam arroz, feijão, cana-de-açúcar, milho, mandioca, frutas e hortaliças. Com este
ofício, eles aprendiam, além das técnicas, a disciplina, fator tão enfatizado na formação dos
‘trabalhadores’. Exemplo disso é a existência de “livros de ponto” que controlavam a sua
freqüência (Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 213, doc.538, 1927).
Foto 2: vaqueiros bakairi
(arquivo SPI/Museu do Índio)
210
Em um documento elaborado por Antoninho e Sancto, dois líderes de aldeias dos chamados “bakairi
mansos”, vemos que aos bakairi não agradava a função de trabalharem para os xinguanos: Eu Capitão
Antoninho e Capitão Roberto Joaquim dos Sancto e mais pessoal fais esta chexa que o empregado do Posto
Bacahiris esta maltratando sobre ropa que estão, jamais nunca sobra pano e toda couza como sabão, fumo e
todos que precisa não tem, mais é para Bacahiris até chumbo elle mandou vir la da espetoria diz que era
prara matar Bakahiris. O Índio Chingu tem de todos na mão delle. E assim fasso sciente o Governo da
espetoria se não tirar elle de aqui nois vamos imbora daqui, ficar o índio Chingu no lugar, que o Snr.
Afoncio dis que o Posto é do Chingu, não é dos Bacahiris... (Arquivo do SPI/Museu do Índio, filme 213, doc.
250,1924).
196
O trabalho desses Bakairi era ainda aumentado, pois o SPI ‘permitia’ que eles
tivessem também as suas próprias roças para o sustento das famílias, das quais cuidavam
em seu pouco tempo ‘livre’. Às mulheres cabia o aprendizado civilizador de fazer farinha e
açúcar, e a limpeza dos prédios (Barros, 2003: 94).
A produção do ano de 1933, relatada no documento abaixo, pode nos dar uma idéia
do trabalho desenvolvido no Posto:
Produção do Posto Simão Lopes no ano de 933
Milho 14000 litros
Feijão 300 litros
Arroz 3500 litros
Farinha 3800 litros
Açúcar 300 kilos
Rapadura 3000
? (ilegível)
sabão 380 kilos
Exportação
Não houve, foi consumido no Posto e nos outros Postos
Criação
Gado Vacum 136 cabeças do Posto
86 “ dos índios
porcos 78 “ do Posto
12 “ dos índios
galinha 46 “ do Posto
112 dos índios
frango 18 “ do Posto
65 “ dos índios
patos 6
perus ? (ilegível)”
(Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 213, doc.998, 1933).
Além do aprendizado do trabalho rural, como forma de estarem completamente
inseridos no chamado desenvolvimento nacional, os Bakairi foram aos poucos tornando-se
também consumidores. O processo foi incentivado desde os primeiros contatos por meio da
‘doação’ de brindes feita pelo SPI. Posteriormente, vivendo no Posto, conseguiam-se as
mercadorias desejadas através da ‘troca’ pelo trabalho, como fica demonstrado no
documento a seguir onde uma lista dos “pedidos” das “piladeiras de arroz”, seguida dos
pedidos dos homens, também trabalhadores do Posto:
197
Nomes das piladeiras de arroz que fazem pedidos, dos seguintes.
Thereza 1 faquinha, 1 prato f. louçado. 1 par de chinelo n. 38, 1 par de brinco de
aro, 1 banheirinha, 1 botija brilhantina, 1 cobertor, 6m de chita.
Anna – mulher de Manuelito
1 par de pratos f. louç. 1 par de colher, um mço de carretel
Joana - 1 tigela, 1 par de pratos, 1mç. de carretel, 1 espelho, um lenço
Mariana – 1 pente de alisar, 1mç carretel
Nenê, mulher de affonço
Um pente travessa, 1 dito de alisar, um grampo fantasia p. cabelo, 1 espelho.
Benedicta, filha de Francisco Xavier.
1 tigela f. louçada, 1pente fino
Paulina Didi (?)
211
– 1 tigela, 1 p. de pratos, 1 espelho, 1 pente de alisar
Amância mulher de Francisco Xavier
1 tigela f. louçado, 1 lenço, 1 carretel, 1 pente fino, 1 agulheiro
Anna Apacano – 2 pratos, 1 pente de alisar, 1 espelho
Josepha Icauca – 1 tigela f. louçado, 1 pente de alisar, 1 espelho
Silveria, Anna de Mandú, Magdalena, ??!!
Pedido dos índios
Francisco Xavier – 1 caldeirao n. 6 este já deu uma rede por conta
Manoel Joaquim – 1 chapeu de pello, 1 tesoura, 1 espelho, 1 faca cabo xifre
Affonso 1 caldeirão n.6, 1 par de estribo, 4 pratos ferro louçado, 1 cobertor, 1
tesoura, anzóis n. 15, 1 espelho, 1 maço de (?), (?)
Ricardo dos Santos – 1 v. de prompto allivio, 1 v. de (aconito?), 1 mço de
phosphoros, um mço carretel, 1 v. de Óleo Elétrico, 1 calça e 1 palitot, 1 balde
pequeno, 20 cart: 44, 1 dz anzol gde.
Bernadino S. de Campos 1 freio para cavalo, 1 balde de zinco, 1 caldeirão n. 6, 10
mts de morim, 10mts de chita (digo genoveza), 2 espelhos, 1 tesoura, 1 mço carretel
(n. 40), 2 pentes fino, 3 lenços de chita, 1 chapeo pello p. criança, 2 dz. anzol grande.
Cap. Roberto – 10 b. de sabão, ½ k. pimenta do reino, 1 cobertor de lã
Salvador 1 cald n.6, 2 pares de pratos f. para louça, 2 pares de colher, 1 pente fino,
?, 1 tesoura, 1 facão cabo de arame, 1 mço carr, 1 tigela f. louçado.
Honório 1 cobertor de lã, 1 mço carretel n.40, 1 p. chinellos fem n. 38, espelho, 1
lenço grande, (?)
André Joaquim dos Santos (?), 1 caximbo, 1 (/) de pólvora marca índio, 1 cx.
Espoletas, 1 prompto allivis, 1 (?), 1 tigela f. louçado, 1 calça, 1 palitot.
O pequeno Jeró (?) – 1 coberta, 1 faquinha, 1 lenço
Gabriel Manoel Pires (está trabalhando aqui) 1 cobertor de , 1 v. prompto allivio,
1 v. acconto (?), 1v. óleo eléctrico, pente travessa, 1 mço carriteis n. 40, 1 balde
pequeno, 1 p. chumbo n. 34, 20 cart: 44, chalé (barato)
Mulher de Ramiro 1 p. chumbo n. 37, 1 lenço, 2l brilhantina, 1 pente de alisar, 1
mço fósforos (12)
Izidoro – 1 chapeo de pello, 1 faca carneceira, 16 b. sabão.
(Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 213, doc.371, 1923).
211
(?) - Ilegível.
198
Vemos na lista acima os bens que eram comprados como recompensa do serviço
prestado ao Posto, tendo como intermediário o próprio SPI. Este órgão incentivava o
‘consumo’, pois assim inseria os índios no mercado brasileiro, gerando cada vez mais
dependência dos artefatos externos (bem como do próprio órgão indigenista), ensinando-
lhes, ainda, novos hábitos. Podemos perceber isso nos itens da lista de encomendas.
Utensílios, como faca, tesoura, anzol, fósforo, pólvora, eram muito apreciados devido ao
seu uso favorecer em muito alguns tipos de atividade, as quais anteriormente levavam mais
tempo para serem desenvolvidas. Alguns outros objetos listados parecem ali constar pelo
apelo do órgão tutor em passar hábitos de higiene e boas maneiras aos indígenas, como é o
caso do pente fino” e da colher. Também os panos pedidos para fazer vestido, as calças e
os chinelos são sinais dos ‘índios civilizados’ em que se pretendia transformá-los.
A incorporação através do consumo, ainda incipiente na época deste documento, foi
se desenvolvendo à medida que o acesso ao dinheiro foi sendo facilitado, seja pelas
contratações de indígenas como funcionários do SPI, seja através de trabalhos prestados ao
Posto ou, depois, a fazendas vizinhas. Conforme já abordado (parte I), atualmente a
economia local está muito desenvolvida em relação ao período inicial de atração dos
Bakairi e, paralelamente, vem aumentando o consumo de diversos tipos de bens: desde
gêneros como os alimentos provindos da cidade: feijão, açúcar e café; brinquedos e
“caramelo” para agradar as crianças, roupas e calçados, até os maiores e mais caros, como
freezer, televisão, antena parabólica e caminhonetes. Consumo, como vimos no capítulo III,
voltado principalmente para o bem-estar e a reprodução familiar (e para as disputas entre
famílias).
Laura Rival percebe o consumo dos bens para os Huaorani como uma forma de
“materialização da modernidade” (ou civilização), isto é, como parte indispensável da
“performance da modernidade” pela qual vêm passando. Podemos dizer que o mesmo
ocorre entre os Bakairi desde os tempos do SPI em um processo no qual a escola ocupa
lugar fundamental, a partir do papel que lhe é imposto de formadora de trabalhadores
(funcionário é o modelo atual, não mais o trabalhador braçal) e, conseqüentemente, de
consumidores.
1.3. A escola do SPI
199
Entre as instituições centrais para levar a cabo a tarefa de
introdução/cotidianização/reprodução dos valores e signos do invasor, entre os quais o
nacionalismo e o trabalho, estava a escola. Este importante vetor do projeto de civilização
do SPI foi assim caracterizado por Souza Lima:
Supunha a escola, termo que designava desde um prédio muitas vezes existente
sem que tivesse a utilização pretendida até algum tipo de organização, limitada
freqüentemente a uma professora, em geral esposa do encarregado do posto. Nela
ministrava o ensino das primeiras letras, e outros casos passando pelo ensino agrícola
e até o de numerosos ofícios. A ação do posto se fazia também entre os regionais, a
quem se facultava o acesso às escolas (Souza Lima, 1995:190).
E ainda:
Tratava-se, pois, da veiculação de noções elementares da língua portuguesa (leitura e
escrita) e estímulo ao abandono das línguas nativas, além de se introduzir uma série
de pequenas alterações no cotidiano de um povo indígena, a partir de formas de
socialização características de sociedades que têm na escola seu principal veículo de
reprodução cultural. O modelo de governo idealizado, e que foi em certos casos com
certeza implementado, procurava atingir a totalidade das atividades nativas,
inserindo-as em tempos e espaços diferenciados dos ciclos, ritmos e limites da vida
indígena (Souza Lima, 1995:191).
O primeiro contato sistemático dos Bakairi com a escola foi através da introdução
desta instituição no Posto Indígena para onde eles foram atraídos. A primeira escola data de
1922, e havia iniciado seus trabalhos antes mesmo de os últimos Bakairi chegarem ali
vindos da região do Alto Xingu. Segundo Darlene Taukane (1999), o primeiro professor era
o próprio encarregado do Posto, que dava aula para 16 alunos. Nos anos seguintes, a função
passou a ser assumida por pessoas que ocupavam o cargo de “auxiliar de serviços”, sendo
que em 1925 foi a esposa de um deles que desempenhou esta função. No início da década
de 30, as aulas voltaram a ser ministradas pelo encarregado do Posto, mas depois disso,
entre os anos de 1933 e 1942 portanto por 10 anos as aulas foram suspensas, sendo
reiniciadas em 1942 quando os Bakairi foram unificados em torno da nova sede do Posto,
às margens do Paranatinga, onde ainda hoje funciona. Em 1943 houve a primeira
experiência de um Bakairi como professor; seu nome era José Aimaku e suas aulas eram
dadas em um galpão improvisado. Segundo informação de Taukane, ele teria sido
200
escolhido, com mais outros dois, pelo Marechal Candido Rondon
212
, a fim de estudar em
Cuiabá e voltar à aldeia para lecionar. Entretanto, essa experiência não durou mais que um
ano (Taukane, 1999).
na nova sede do Posto, as aulas, que eram freqüentadas apenas por meninos,
passaram também a contar com a presença de meninas. Até 1967, quando o SPI foi extinto,
os alunos cursavam da 1
a
à 4
a
série do Ensino Fundamental, exceto nos anos de 1955, 1959,
1960 e 1961 em que o Posto ficou sem professor. Além dos Bakairi, iam à escola também
os filhos dos funcionários do Posto. Por algum tempo ainda, alguns Xavante vinham do
Posto Paraíso, localizado próximo ao Posto indígena, para assistirem às aulas, mas a
experiência durou pouco (Taukane, 1999).
Durante esse período, a escola foi estruturada com o objetivo de inserir os Bakairi
na chamada nação brasileira, formando patriotas e trabalhadores rurais. Segundo Laura
Rival, haveria um padrão constante no estabelecimento das escolas estatais entre os povos
indígenas que incluiria ainda: criação de vila; sedentarismo; concentração populacional;
desenvolvimento da agricultura; divisão entre trabalho manual e mental; introdução de
novas categorias sociais e modelos familiares; diminuição do contato com o ambiente
natural; e crescente comunicação com centros comerciais e administrativos (Rival
1997:142). Como podemos notar, são características que definem bem as mudanças
propostas pelo SPI ocorridas após a implantação do Posto indígena e da escola
Vejamos agora as lembranças desse tempo nas palavras de um ex-aluno:
Tinha a escola, uniforme, né. E nós assim entrava na escola, a professora apitava,
batia a campainha. Botava de fileira assim: mulheres, homens. entrava. Homens
entrava primeiro, e todo mundo sentava. Depois que estava tudo na cadeira, ainda
cantávamos hino nacional ou hino daquele “nós somos os índios” (...) Para sair, a
gente saía à vontade, nove horas como agora. Nós merenda, mas a merenda não
vinha do município, era daqui mesmo. A mulherada socava arroz, leite daí mesmo, o
que produzia mesmo, o precisava vir de fora”(...) Na parte da tarde, trabalho ali,
fazer limpeza, fazer horta, era pra escola mesmo. Por isso é que eu falo para esse
pessoal: “tem que trabalhar e ensinar, né.” Agora livre aí. Naquele tempo nós fazia
isso. Aprendemos. Muita gente fala: “não, mas aquele SPI era judiação. Na verdade
212
“Foi Rondon, pessoalmente, que veio aqui na aldeia e falou que ia levar os três Bakairi; eles foram
escolhidos pelo próprio Rondon para estudar na cidade.” depoimento oral de Adélia Maniwã, entrevistada
por Darlene Taukane (Taukane, 1999:142-143). O Marechal Rondon, para os Bakairi, foi o símbolo do SPI e,
conseqüentemente, de seu projeto de civilização. Apesar das poucas visitas que fez ao posto indígena bakairi,
sua imagem estava sempre presente, seja nos discursos dos funcionários, seja em sua foto na parede da escola,
ou nos brindes que eram enviados em seu nome.
201
é, mas ao mesmo tempo aprendemos muitas coisas” (...) Tinha livro. O que estava
mais adiantado tinha aquele livro chamado “Vamos Estudar”. Outro que era “pré”
ficava no quadro auma hora. Tinha aluno que sabia aquilo e ensinava aqueles,
era assim que era o ensinamento. (...) Ela não queria que falasse na língua porque lá é
onde aprende, . Depois criaram a palmatória para não falar na língua (T.C.,
fevereiro de 2004, Aldeia Pakuera)
Neste depoimento, além de se referir aos hinos patrióticos (abordados mais adiante)
e à educação para o trabalho rural, este ex-aluno também cita outros fatos sempre
lembrados como característicos da escola desse período. Ele nos revela como era a
disciplina e a rotina cumpridas diariamente, no caso do ritual de início das aulas. O controle
e a disciplina foram pontos importantes na caracterização da escola nesse período.
Verificamos, por exemplo, a importância dada não apenas aos conteúdos, mas também ao
que chamavam de comportamento”, ou seja, a incorporação da disciplina escolar e do
modo esperado de se agir ‘como civilizado’. Como ilustração, vejamos um oficio da
professora em 1951, no qual condiciona a avaliação dos alunos também ao seu
“comportamento”:
Respondo-vos o vosso ofício n. 458 de 14 de novembro, que assinalei em todos os 41
alunos de idade e instrução desiguais, porque eles mereceram aproveitamento
regular, eles não merecem ótimo por falta de comportamento (Arquivo do SPI/Museu
do Índio, filme 214, doc. 1820, 1951).
A professora era obrigada a preencher formulários, como a “freqüência escolar”, na
qual constavam os nomes dos alunos, sua tribo”, idade, sexo, número de presença e de
faltas, anotações sobre o “aproveitamento” dos alunos e observações. No anexo 4
reproduzo a “freqüência escolar” de março de 1949. Havia também o “mapa escolar”
(anexo 1).
Comportamentos como o uso de uniforme, a formação de fila para entrar na escola e
as punições físicas institucionalizadas não existem mais na escola bakairi, comandada hoje
pelos professores indígenas. Entretanto, a disciplina ficou como uma herança desse tempo,
com uma nova feição, menos rígida, mas igualmente importante. Veremos no próximo
capítulo o valor dado a certo tipo de atividades: preenchimento de diário, horário de aula (e
a campainha para chamar os alunos), provas e notas, postura passiva dos alunos em
contraposição à atividade do professor etc. A disciplina funciona não apenas como forma
202
eficiente de inculcar novos hábitos e comportamentos, mas como parte, ela mesma, do
método pedagógico no aprendizado dos conhecimentos escolares. Como disse Laura Rival
a respeito dos Huaorani: It is not possible to separate the learning of new skills from the
learning of a new identity, so one becomes educated, modern, and civilized all at once. One
cannot learn how to read, write, and count without having access to scholl uniforms,
bookcases, school dinners, and toothpaste (Rival, 2002:164).
Neste sentido, considero a performance como um importante método de ensino da
escola bakairi, tanto aquela que acontece no cotidiano das aulas – quando os aspectos
disciplinares se destacam – quanto aquelas que ocorrem esporadicamente em comemoração
a alguma data, como Dia do Índio, Dia da Criança, Dia da Independência. Chamo a
atenção, neste caso, para uma aproximação dos métodos de aprendizagem ministrados
pelos professores do SPI e aqueles provenientes das famílias bakairi. Em ambos os casos,
um peso significativo no que concerne ao contexto na aprendizagem, que influenciaria
mais a passagem de conhecimentos e valores do que os aspectos didáticos direcionados
para tais fins. De fato, ao observarmos hoje as escolas bakairi, vemos que o ambiente é o
que realmente conta para a aprendizagem, até mesmo suprindo as muitas carências do
preparo dos professores e a existência de material didático suficiente e de boa qualidade.
Em outras palavras, da mesma forma que no domínio doméstico bakairi, o que faz
com que as crianças aprendam é principalmente a sua inserção ativa em um determinado
contexto, a escola, conforme implantada pelo SPI, que também enfatizou aspectos como o
uso de uniformes, os ritos disciplinares, o uso de material escolar e outros como método de
ensino, talvez até mais eficiente do que as atividades propriamente voltadas para o
conhecimento. Assim, não seriam apenas necessários os ‘exercícios’ e as ‘explicações’
para, por exemplo, aprender a escrever, mas todo o contexto que envolve uma atividade
como essa: uso de caderno e lápis, a posição de destaque do professor, a bandeira do Brasil,
a posição e a postura oferecida pelas ‘carteiras’ etc.
Quero ressaltar mais uma convergência entre os modelos que faz com que os
Bakairi vejam sentido na pedagogia do SPI (também da FUNAI, dos internatos e outros): a
centralidade da repetição. Vimos que é observando, copiando e repetindo exaustivamente
uma atividade que um jovem bakairi aprende a realizá-la. O mesmo ocorria na escola do
Posto, onde as aulas fundamentalmente consistiam em cópia e repetição. Naturalmente, a
203
escola atual, fruto dessa ‘sobreposição’ de metodologias, opera através de um treinamento
altamente repetitivo, como veremos no próximo capítulo.
Voltando às lembranças do ex-aluno, a proibição de falar na língua bakairi é vista
como uma forte característica da escola do SPI. Aqueles que não falassem em português
durante o tempo em que permanecessem na escola eram punidos com diversos castigos,
como a citada palmatória ou ficar de joelhos sobre pedrinhas, arrancar capim e ervas
daninhas até que as mãos sangrassem e trabalhar compulsoriamente nas hortas e com o
gado (Taukane, 1999:108). Entretanto, quem veja vantagem na proibição do uso da
língua indígena, mesmo que à custa do amedrontamento dos alunos. Uma outra ex-aluna
atribui a esta proibição o fato de ter aprendido a língua portuguesa:
Mamãe não sabia falar português, mas ela compreendia algumas coisas. Papai também
não compreendia de uma vez, mas ele compreendia alguns, não falava direito. Aqui na
escola, eu acho que a gente aprendeu português porque a professora não gostava que a
gente falasse na língua, né. Ela pedia pra gente falar português. Quando a gente falava,
conversava na língua, ela pedia pra não falar a língua. “Fala português!”; “Português eu
não compreendo.” A gente olhava pra colega quando a gente o sabia... o é
linguagem assim. A gente perguntava: “Eu não sei como é esta frase, o que está
dizendo”. Então, a colega ensinava: “É assim.” Tinha muita escola que a família
criticava a gente. “Fulano... professora, venha ver... o fulano aqui está conversando,
falando na língua”. Porque na nossa escola tinha filha de dois brancos, juntos. (...)
Então esses alunos brancos criticavam a gente, contavam: “Venham ver esta menina
aqui conversando na língua, a meninada aqui conversando na língua.”. Então, a
professora deixava a gente de castigo. Então, a gente ficava com medo, eu ficava com
medo da professora me bater e castigar. Por isso que aprendia bastante. Em casa,
estudava de noite, fui aprendendo a falar português (Q. A., professora, dezembro, 2000,
Aldeia Pakuera).
O domínio correto da língua portuguesa é motivo de orgulho hoje em dia para os
Bakairi e, por isso, é valorizado seu ensinamento na escola do SPI, apesar de não
concordarem com a extrapolação da violência como método de ensino, atitude não
condizente com o ideal de passividade em que são educados os Bakairi. No entanto, a
manutenção da língua bakairi, apesar de todas as tentativas de extermínio durante esse
período, também é objeto de grande orgulho da parte deles, principalmente as últimas
décadas que, como se ve a seguir, foram caracterizadas pela ‘valorização da cultura’
como forma de garantir seus direitos como indígenas. De fato, a língua é um aspecto que
expressa a idéia aqui defendida de que, para os Bakairi, ‘cultura’ e ‘civilização’ não são
204
mutuamente excludentes, ao contrário, são dois princípios nos quais eles atualmente
baseiam suas esperanças e práticas a fim de garantirem sua ‘imersão’ e ‘aceitação’ no
‘mundo dos karaiwa’.
Se de um lado é necessário o domínio da língua do colonizador como forma de ser
incluído e aceito, por outro lado, a língua nativa, a despeito dos esforços da escola do SPI,
constituiu-se como principal ponto de resistência a todo o processo de espoliação a que
foram submetidos, representando hoje um de seus principais símbolos de indianidade. Na
escola, como veremos no capítulo a seguir, a convivência das línguas (bilingüismo) opera
de forma muito particular: o português é usado na expressão escrita (cujos ‘donos’ são os
karaiwa) e a ngua bakairi domina a oralidade (como em todos as outras épocas e também
espaços).
Este relato também menciona que foi através da escola que as crianças bakairi tiveram
seus primeiros e constantes contatos com os karaiwa, representados então pelas professoras
e pelos filhos dos funcionários do Posto e dos moradores das fazendas vizinhas, alguns
deles tendo posteriormente até se unido aos Bakairi através de casamento. Esse convívio
ajudou na sua ‘incorporação’ ao novo meio social que estava sendo construído para eles e
por eles (observar anotação “civilizado” ao lado dos nomes dos alunos da freqüência
escolar” [anexo 4])
Quanto à ‘educação para o trabalho’, além do citado trabalho agrícola geralmente
desenvolvido pelos meninos, as meninas eram incentivadas a aprender o hábito civilizado
de bordar, costurar e fazer alguns serviços domésticos, fato que está registrado nos
“resumos das principais ocorrências verificadas e dos trabalhos realizados no mês”, de
1945 e 1946, um formulário preenchido pela professora. Na reprodução do formulário do
mês de junho podemos verificar a observação da professora:
As meninas têm trabalhado nas quintas-feiras e sábados bordando, costurando e
fazendo serviços domésticos, sendo notado nas alunas o bom gosto para o trabalho
(Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc.730, 1945).
No formulário do mês de agosto, a professora registrou que:
205
As meninas continuam sempre trabalhando nas quintas e sábados nos serviços
domésticos e os meninos trabalham das 2 às 5 horas da tarde nos serviços de lavoura
(Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc.653, 1945).
Através do “resumo” do mês de dezembro deste mesmo ano, ficou registrado que
não houve férias para os alunos, pelo menos do trabalho na lavoura realizado pelos
meninos: “Iniciou-se as férias no dia 15 do corrente. Os meninos fazem diversos trabalhos
durante o dia” (Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc. 531, 1945). Este fato talvez
se justifique além de não se poder deixar a plantação sem cuidados por muito tempo
pela característica de um processo de educação voltado para a formação de novas
subjetividades: o trabalho tem que ser constante, sem paradas. O tempo tem que ser
dominado pelo ‘conquistador’, que assim não pode dar férias àqueles que deviam ser
inseridos em tempos e espaços diferenciados dos ciclos, ritmos e limites da vida indígena”
(Souza Lima, 1995:191).
De fato, o que teria ficado como legado aos Bakairi atuais e à sua escola seria a
nova disciplina, expressa principalmente por uma concepção diversa em relação ao tempo
(horários, produtividade, fim de semana, calendário etc.) e ao espaço (sala de aula,
separação entre espaço escolar/Posto indígena/casas das famílias, comportamentos
apropriados aos lugares e outros).
A escola como instituição fundamental no processo de formação de novas
subjetividades foi o principal veículo do projeto de integração (segundo os princípios de
nacionalismo, civilização e desenvolvimento). Os corpos, as mentes, os espaços foram
submetidos a um ostensivo e detalhado trabalho visando à construção de um novo sujeito: o
índio brasileiro. A civilização foi inculcada aos Bakairi através de várias estratégias, não
escapando ao controle daqueles que assim o fizeram nem um gesto ou palavra. Como
veremos adiante, essa política surtiu grande efeito, chegando com força até os dias atuais.
Quanto aos corpos, estes chegavam despidos à escola, simbolizando não somente a
condição anterior dos Bakairi, quando ainda não haviam alcançado o Posto indígena e não
conheciam as roupas ocidentais, mas também uma matéria sem forma (do ponto de vista do
colonizador) pronta para ser moldada de acordo com o novo sujeito que estava se
construindo. Um aluno do tempo do SPI me contou certa vez: “Eu me lembro bem o
primeiro dia que fui à escola, era ali naquele prédio onde é a farmácia, eu estava pelado,
206
sem nada, sem nenhuma roupa, e me sentei naquelas carteiras daquele tempo e fiquei
parado”.
Temos evidências também deste fato através das fotos tiradas pelo SPI, com as
quais se queria que fosse propagado o trabalho de civilização dos índios – afinal, nada mais
simbólico da selvageria que a nudez e, portanto, nada melhor para demonstrar que se estava
conseguindo civilizar os índios do que mostrá-los sendo vestidos. Na foto (foto 3),
podemos ver as crianças nuas em frente à sede do Posto indígena e da escola (que não
aparece na foto, mas ficava localizada ao lado daquele) recebendo do funcionário do SPI a
roupa que iriam usar. O tipo de roupa que lhes era dada também é significativa do processo
de ‘pasteurização’ a que estavam sendo submetidos: todas iguais, seguindo um modelo que
lembra o de instituições de ‘correção’, como o de soldados ou presidiários. O corpo foi
submetido também a posturas consideradas civilizadas, como podemos observar nas
fotos.Tomamos conhecimento ainda, através dos “resumos” mensais feitos pela professora,
que eram ministradas aulas de “ginástica sueca”, duas ou três vezes por semana, na parte da
tarde.
Foto 3: Distribuição de uniformes
(arquivo SPI/Museu do Índio)
Hoje não mais uniforme, mas a vestimenta ocupa ainda um importante lugar nas
práticas bakairi para ‘civilizar-se’, seja na escola ou fora dela. Veremos (capítulo VII) que
as roupas civilizadas (âtâ) assumiram a função da pintura corporal (iweni), ambas
207
relacionando-se ao corpo (sodo), transformando-o, a fim de capturar potenciais
identificados, respectivamente, com o ‘mundo dos karaiwa’ e com o ‘mundo dos iamyra’.
Foto 4: Sala de aula
(arquivo SPI/Museu do Índio)
Quanto ao espaço, a escola estava situada em uma área do Posto indígena onde
também se localizavam os outros edifícios relacionados ao governo brasileiro e ao SPI. As
casas dos índios foram construídas do outro lado do Posto, dispostas em linha reta, como
uma rua, formato bastante diferente do circular com que estavam acostumados
anteriormente os Bakairi (sobre este aspecto devo notar, como forma de salientar a força
que esse padrão tem até hoje, que ao serem consultados recentemente sobre onde deveria
ser construída a nova escola, eles terem escolhido exatamente a área dos prédios do SPI).
Dentro da escola destacava-se o símbolo máximo da nação, a bandeira. Percebe-se na foto
4 que a única imagem na parede da sala de aula é a grande bandeira do Brasil. Do lado de
fora da escola, é também a bandeira que se faz presente no pátio externo (foto 8, página
326). A bandeira era exaltada não apenas visualmente, mas venerada diariamente, antes e
depois das aulas, e aos domingos pela manhã quando havia o seu hasteamento através
do ritual do canto do Hino Nacional e do Hino da Bandeira. Esta era a prática, pelo menos
durante os anos de 1945 e 1946, registrada nos resumos” mensais da professora (Arquivo
SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc. 531,653,730, 1945 ). ainda menção aos hinos no
relatório de atividades de 21 de dezembro de 1959 feito pela professora:
Ensinei o hino nacional e o hino da bandeira que mal eles sabiam assim ensinei
cantar a canção do índio aonde logo se aprenderam. Todos os domingos a Bandeira
nacional é asteada pelos aluno bakairi civilizados e chavantes, na presencia do nosso
encarregado e dos índios e assim também dos empregados do serviço (Arquivo
SPI/Museu do Índio, Filme 215, doc.507, 1959).
A canção do índio relatada pela professora é uma paródia da canção do soldado,
portanto, uma marcha militar. Consegui que uma aluna da época lembrasse dela para que
pudesse aqui reproduzir. Antes de cantá-la, ela falou que a Canção do Índio é muito bom,
um pouco triste”. E então cantou:
208
Nós somos os índios bravos
de tribo velha
de nossa dor.
Quando for defende-la
com nossa dor que o peito ‘encera’ (encerra?)
Lutaremos destemidos
E então suará a retumbante
O nosso (anã?) dos tempos idos.
Bravos índios brasileiros,
Grande e guerreiro,
Honrará na história
Cunhãbebe, potiguara,
Arariboia na Guanabara.
Para (no seume? ) escravo,
Herói batravo (?), venceu Poti,
Com sua luta orgulhosa,
Lutando orgulhoso,
Brasil por ti.
(G.M., fevereiro de 2004, Aldeia Pakuera)
Nesta canção, que fazia parte das obrigações do professor ensinar, encontramos a
imagem de índio que se pretendia construir, o para todos os brasileiros, mas também
para os que estavam aprendendo a se identificar enquanto índios. Estes últimos, ao mesmo
tempo em que lhes era ensinada a nova totalidade da qual passariam a fazer parte a pátria
brasileira – também lhes era mostrada a identidade que deveriam assumir nessa sociedade –
a de ‘índio’ ou seja, os Bakairi, bem como os demais povos sob o jugo do SPI, estavam
aprendendo paralelamente a ser brasileiros e a ser índios. A idéia de ‘índio’ subjacente ao
projeto do SPI era a de “matéria-prima da pátria” (Souza Lima, 1995:116), isto é, grupos
originariamente brasileiros que deveriam, entretanto, desenvolver-se primeiro como ‘índios
brasileiros’ para que depois pudessem formar a massa homogeneizada dos ‘brasileiros’. E
esta era a função do SPI: administrar a passagem, aparentemente sem violência, de acordo
com os ideais de ‘paz’ pregados por Cândido Rondon.
É sobre isso que fala a Canção do Índio. Nela, eles cantam que são de “tribos
velhas” e “bravos”, remetendo a um passado que se quer apagar para em seu lugar surgir
um novo índio, aquele que defenderá a pátria. E nesse novo momento serão “bravos”, não
mais através da luta para se manterem vivos visto de forma negativa mas bravos” na
defesa do país ao qual passam a pertencer. Também orgulhosos de terem deixado para trás
um passado de “dor” e de terem à frente um futuro no qual serão protegidos pela nação: “o
Brasil por ti”. Muitos alunos bakairi daquela época podem não lembrar completamente da
209
letra da música, mas o seu sentido fixou-se neles, como expressa o sentimento atual de
orgulho de muitas pessoas ao dizerem que os Bakairi conseguiram desenvolver-se e não
viver mais em “dor”, atrasados, como outros povos indígenas ainda “primitivos”, conforme
analiso no próximo capítulo.
Os ideais nacionais eram informados também por outros meios, como o uso da
cartilha “Minha Pátria”, que consta do “pedido de material” da professora, em 15 de
outubro de 1951 (Arquivo SPI/Museu do Índio; Filme 214, doc. 1922; 1951) e das cartilhas
“Nosso Brasil”, “O nosso idioma” e “Séries Pátria Brasileira”, que estão na “Relação de
materiais existente no armário da escola”, de 1948 (Arquivo SPI/Museu do Índio; Filme
214; doc.1352;1948).
Menções positivas sobre temas militares e nacionalistas também eram comuns nos
exercícios escolares, como a prova do ano de 1945, reproduzida em anexo (anexo 3), e
aquele exercício de 12 de maio de 1923 (anexo 2):
Aula do Posto Bacahirys 12 de maio de 1923
Cavou, cavou e de repentemente dentro do cercado radiante de orgulho como um
general que tivesse tomado uma fortaleza do inimigo. As aves amedrontadas
esvoaçavam e fugiram numa gritaria infernal 1234567890 (Arquivo SPI/Museu do
Índio, Filme 213, doc.248; 1923).
Faziam-se presentes ainda através de retratos de autoridades, como o Presidente
Getúlio Vargas, o General Rondon e Ildefonso Simões Lopes, mbolos do projeto de
integração dos índios à pátria brasileira.
213
Também a partir da década de 40 passou a ser
realizada pela escola a comemoração do Dia do Índio, assim descrita no ano de 1951:
Relatório do dia 19 de abril
Dando o cumprimento a recomendação de V. Excia. contida na circular No. 5 de
29 de março p. passado, tenho a honra de remeter a V.Excia. um incluso relatório
das comemorações ocorridas no dia 19 de abril data festejada pelos índios
brasileiros.
I – Houve o hasteamento da bandeira brasileira as 7 horas da manhã sendo
hasteada pelo aluno Aquilino Izigupa, cantando pelos alunos o Hino Nacional, e
213
A referência a estes retratos foi feita em uma lista de “entrega de materiais” de 20 de julho 1948
(Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc.1355;1948).
210
depois a Canção do Índio Brasileiro, sendo dirigido tudo pela professora do
Posto, e sendo depois iniciados os festejos dos índios.
II – Houve também diversas dansas indígenas, sendo todos alunos e índios velhos
enfeitados como si tivessem em suas malocas cantando suas canções e dançando
o dia todo e a noite, suas refeições foram como si estivessem também nas suas
malocas, comendo bejú (indígena awado) mingau (pogo) e assim diversas
comedorias; foi também abatido para as festanças indígenas 1 boi de corte.
Posto Indígena Simões Lopes 30 de Abril de 1951
Arlindo Dias da Costa
(Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214, doc.1886, 1951).
A estrutura que notamos no documento acima foi repetida durante anos, e constava
do hasteamento da bandeira nacional por um aluno, o canto do Hino Nacional e da Canção
do Índio, seguidos por apresentações de danças bakairi (denominadas em outros ofícios
pelo termo genérico bacoruru”). Depois vinha um churrasco, futebol e encerrava-se com
baile (esses dois últimos momentos omitidos no exemplo acima). Observa-se a presença
dos símbolos nacionais – bandeira, hinos e futebol – ao lado de símbolos indígenas – dança
e vestimenta – como uma expressão e, mais ainda, um ensinamento de como ser um “índio
brasileiro”. O que Gustavo Blazques afirma para o caso dos “atos escolares” argentinos
pode também ser usado quanto a esses rituais incentivados pelo SPI:
No ato, os sujeitos se encontram com a Pátria, transformando-se em sujeitos-de-
fazer-atos (composto por corpo e alma) e criando um objeto-de-crença; operações
realizadas através da colocação em cena da ão de dizer-fazer a Pátria (Blazques,
1998:17).
Tanto nos rituais escolares cotidianos de hasteamento da bandeira e canto dos hinos
patrióticos, como no ritual realizado anualmente no Dia do Índio, os Bakairi agiam ao
mesmo tempo enquanto ‘objetos’ e ‘sujeitos’ na construção da crença em uma nação da
qual faziam parte. O ritual funcionava, portanto, como uma forma de marcar que o passado
se fora e para dar um sentido ao presente, além de inculcar novos valores para o futuro.
Através desse exercício de civismo, foram submetendo-se paulatinamente à nova ordem, às
novas normas.
É interessante ressaltar ainda a maneira como foram tratadas as danças e as
vestimentas rituais bakairi: “todos os índios dançaram fantasiados, assim como eles viviam
211
em aldeia...”. Esta referência nos mostra que os rituais bakairi eram tratados como algo que
pertencia ao passado tempo em que viviam nas aldeias e que sua realização no Dia do
Índio era permitida enquanto representação de um tempo que não mais existia. O fato de
tratarem suas vestes como ‘fantasias’ demonstra que eram vistas pelos funcionários do SPI
como algo diferente da realidade, ou seja, para eles a realidade dos Bakairi era a sua
civilização, e tudo o que remetesse ao tempo em que eram ‘primitivos’ seria, portanto,
‘fantasia’.
Quanto aos ritos, tanto os ‘patrióticos’ quanto parte de cerimônias do kado permitidas
no Dia do Índio, devo salientar a sua fundamental influência sobre a forma de atuação da
atual escola bakairi. O fato de o SPI colocar a instituição escolar (através de sua professora)
em posição de comando no que diz respeito a essas atividades, fez com que ela fosse
identificada pelos Bakairi como um local propício às comemorações e às performances
coletivas. Com efeito, hoje em dia, a escola é a responsável pela maioria dos rituais, sejam
aqueles que têm como objeto as expressões de civismo, sejam aqueles através dos quais
mostram (para si mesmos e para os outros) a sua indianidade, as ‘apresentações culturais’. A
convivência na escola desses dois tipos de cerimônia será ilustrada devidamente no próximo
capítulo.
Finalmente, antes de passarmos à época da FUNAI, devo mencionar a presença,
desde 1923, por 50 anos, da South American Indian Mission na Área Bakairi. Eram eles que
se incumbiam das aulas das crianças bakairi durante o período em que a escola do Posto
estava fechada, ensinando a quem se interessasse a ler, a escrever, a bordar e a costurar.
Segundo Taukane (1999:135), “Os meninos, que freqüentavam a sua escola, funcionando em
regime de semi-internato, trabalhavam nas hortas e as meninas, como empregadas
domésticas na missão. Como forma de pagamento pelo trabalho realizado, essas crianças
recebiam os mesmos brindes”.
Esses missionários instalaram-se, a princípio, longe do Posto antigo, e com a
mudança dos Bakairi para a sua nova sede, perto do Rio Pakuera, eles se transferiram para
próximo do Rio Vermelho, localizado aproximadamente a 6km do Posto onde foram viver
as famílias indígenas (Taukane, 1999). O local chamava-se Maranata. Na sede, mantiveram
uma igreja por algum tempo, até a passagem para a FUNAI, quando ela foi destruída. Seu
212
trabalho era apenas de evangelização. “Eles não eram lingüistas, não eram do SIL”
214
comentou uma pessoa que freqüentou a missão.
Em alguns depoimentos que ouvi sobre os missionários, as pessoas têm lembranças
positivas sobre eles. Atribuem-lhes muitos ensinamentos e presentes dados, como no relato
a seguir:
Chamavam-se Seu Emilio e D. Alice, eram americanos. Fui aprendendo algumas
letras, me ensinavam de noite. (...) Eles ensinavam assim: dava aula para os filhos
deles, uma hora, mais ou menos assim, e depois mandaram aqueles para o
professor em Cuiabá, não sei aonde aí. (...) O americano ensina em casa. Então
aproveitávamos aqueles companheiros do filho, filha. (...) Quando vinha professor,
teve escola ali uns tempos, que os meninos iam lá escola, iam de manhã até meio-dia,
vinha. Isso também que teve muita ajuda dele (T.C., fevereiro de 2004, Aldeia
Pakuera).
O trabalho dos missionários funcionava, portanto, paralelamente à educação no
Posto. Quando havia aula, eles ensinavam costura, bordado e “algumas letras” a quem
quisesse. Quando não havia professor do SPI, o trabalho da missão intensificava-se,
recebendo mais crianças e por um tempo maior. A missão teria ficado entre os Bakairi por
mais ou menos 50 anos, durando o tempo em que funcionou o SPI. Ao que parece, mesmo
vivendo longe da sede do Posto, havia uma certa integração entre os missionários e a
administração do mesmo, o que atestam alguns relatórios feitos na época por seus
encarregados, como o seguinte de 1948:
Cumprindo com as instruções dessa chefia, foi realizada neste Pia no dia 19 de abril a
festa dos índios. Estiveram prezente nessa importante comemoração as missionárias
protestantes D. Beth e D. Leonora (Arquivo SPI/Museu do Índio, Filme 214,
doc.1387, 1948).
Entretanto, nunca chegaram a ter uma escola ‘oficial’, talvez por falta de
consentimento do órgão tutor dos índios. Mas ao que parece sua influência em termos
educacionais entre os Bakairi foi importante, não apenas sobre aqueles que tiveram contato
direto com eles, como também sobre as gerações seguintes. Assim afirmou uma
freqüentadora da missão: Quando eu vi que eles faziam com as criançadas deles...Um dia,
se eu tiver filho, vou fazer do mesmo jeito”. E assim aconteceu, o que revela seu marido
explicando a forma com a qual educou seus filhos:
214
Sobre o SIL – Summer Institute of Linguistics, ver item 2.2.2. deste capítulo.
213
Então ela via aquele ensinamento dos filhos. Tinha essa memória, né. Ela ensinou as
crianças dela aqui mesmo. Hoje em dia eu vejo nenhum desses pais de aluno fazer
isso: o caderno, onde que falta, tarefa. E ela sempre cuidou. Onde estava fraco ela
metia mesmo. Paiho (instrumento para fazer escarificações na pele). Queria os filhos
mais ou menos. Foi sempre um esforço. Coitada, naquele tempo fazia fogo cedo para
estudar. Hoje tem luz, agora. Depois que eu consegui comprar Aladin (T.C., fevereiro
de 2004, Aldeia Pakuera).
É interessante perceber hoje que os filhos desta senhora têm escolarização avançada
em relação aos demais Bakairi. Talvez a influência dos missionários sobre a mãe tenha
desempenhado um importante papel no desenvolvimento escolar de seus filhos. De toda
forma, mesmo periférica, a influência dos “americanos” no processo de escolarização
bakairi não pode ser menosprezada. Mas, certamente, o que mais marcou os Bakairi quanto
a este aspecto foi a educação escolar promovida pelo SPI, tanto por abranger um grande
número de alunos, como pelo tempo em que manteve suas atividades escolares.
215
*
O regime do SPI e sua escola foram fundamentais para o estabelecimento do
modelo educacional escolar a ser seguido hoje pelos próprios professores indígenas. De
fato, trata-se do primeiro e mais permanente contato dos Bakairi com a escola e teve
influência fundamental sobre (i) valores: civilização e patriotismo principalmente; (ii) a
necessidade e a vontade de serem incluídos oficialmente no Estado brasileiro (como os
capitães de outrora ou os atuais funcionários); o que inclui também o aprendizado da língua
portuguesa; (iii) nova organização em relação ao tempo e ao espaço (horários, disciplinas,
comportamentos etc.); (iv) a identificação da escola como um local privilegiado para a
realização de cerimônias cívicas e ‘culturais’.
A subseqüente escola da FUNAI prosseguiu, de início, com o modelo anterior, mas
com o tempo foi introduzindo algumas novidades, sendo as principais o convênio com
escolas agrícolas, possibilitando a ampliação da formação escolar e ‘civilizatória’ dos
índios, e também o que foi firmado com o SIL, com o objetivo de implantar o ensino
bilíngüe e intercultural (ao modo dessa missão) na escola localizada na área indígena.
215
Ainda sobre a educação escolar relativa a instituições religiosas ver página 228 sobre o SIL.
214
2. A escola da FUNAI
Depois que passou para a FUNAI, começou “você tem que estudar,
trabalhar fora, aprender para ser índio” (ex-professor bakairi).
2.1. Continuidades
Finalizado o tempo do SPI, a FUNAI veio com uma promessa de mudança em
relação à política indigenista do Estado brasileiro. Em um primeiro momento, entretanto,
segundo Luis Otávio Cunha, “as preocupações dos dirigentes do novo órgão concentraram-
se na apuração de irregularidades da extinta agência (Serviço de Proteção aos Índios) e na
discussão de um novo modelo de administração a ser adotado. Assim, em seus primeiros
anos de existência, a FUNAI em quase nada se distinguiu do SPI, reproduzindo sua
filosofia e sua prática” (Cunha, 1990:68). Realmente, no que diz respeito à educação no
PIN Simões Lopes, tudo se manteve como anteriormente. Até mesmo a professora, que
lecionava desde 1963, continuou seu trabalho até 1971, quando foi chamada a assumir a
chefia de um outro Posto indígena.
Se a conjuntura brasileira do início do século, quando se formou o SPI, era ainda
fortemente influenciada por idéias positivistas, militaristas e nacionalistas, a época em que
a política do governo para as populações indígenas passou para a FUNAI não foi, neste
sentido, muito diferente. A FUNAI, órgão criado no período do governo militar, apesar de
apresentar mudanças em relação ao SPI
216
influenciadas principalmente por uma outra
conjuntura internacional seguiu com a ideologia desenvolvimentista e nacionalista que
caracterizou o órgão que a antecedeu. No entanto, houve características significativas do
período da FUNAI que precisam ser destacadas, principalmente o que se refere a dois
importantes convênios: com internato agrícola, reforçando o princípio de ‘educação para o
trabalho e civilização’; e com o SIL, a fim de adotar uma proposta de educação baseada no
bilingüismo e na interculturalidade e, portanto, mais condizente com as idéias de respeito à
diversidade que passaram a permear as ações políticas a partir da década de 1970.
216
Sobre estas mudanças ver Cunha, 1990.
215
A educação escolar continuou a ser tratada como um veículo de civilização,
fundamental para se passarem valores e hábitos condizentes com o novo status de ‘índios
brasileiros’ em que se queria transformar os ‘naturais dessas terras’. Por ‘índio’ entendia-se
a identidade daqueles que deveriam ser preservados apenas como símbolos do passado
nacional, importantes para a formação de uma mitologia da idiossincrasia brasileira, mas
enquanto seres ‘reais’ deveriam ser levados ao ‘desenvolvimento’, ou seja, à aniquilação do
seu modo de vida.
Em sua dissertação sobre “A política indigenista no Brasil: as escolas mantidas pela
FUNAI”, Luis Otávio Cunha (1990) levantou alguns documentos deste órgão que revelam
a espécie de trabalho que foi desenvolvido por ele até a década de 80. Entre eles está a
Portaria 788/N FUNAI, de 11.10.82 “que fixa as normas da organização didática nos
estabelecimentos de ensino da FUNAI” (Cunha, 1990:62). Podemos destacar algumas
partes interessantes para o assunto que estamos abordando. Assim, no Art. 4, parágrafo 3
temos que: Deverá, sempre que possível, utilizar o mesmo sistema de ensino para
introduzir de modo explícito os indígenas na cultura da Sociedade nacional”.
Neste parágrafo, fica claro o objetivo da educação escolar indígena sob o jugo da
FUNAI: preparar os alunos indígenas para ingressarem no ensino regular brasileiro e, ao
mesmo tempo, passar para eles aspectos da “cultura da sociedade nacional”. A escola
funcionava explicitamente visando à ‘civilização’ dos jovens indígenas, preparando-os para
ingressarem numa sociedade mais ampla. Veremos no próximo capítulo que tal visão sobre
a escola perdura até os dias de hoje, quando podemos notar na atribuição a esta instituição a
capacidade de civilizar e integrar através de conhecimentos, performances e entrada na rede
de ensino oficial nacional.
No Art. 22, parágrafo 1
o
, temos ainda que: “Na observação sistemática e constante do
desempenho do educando, considerar-se-ão, além do conhecimento, a atenção, o interesse,
a habilidade, a responsabilidade, a participação, a pontualidade e a assiduidade na
realização da atividade e a organização nos trabalhos escolares”.
Neste parágrafo, são listados os aspectos considerados como índices de
‘civilização’: “conhecimento” dos saberes da “cultura da sociedade nacional”; ‘atenção’,
‘interesse’, ou seja, entender que estes saberes o importantes; “habilidade”, o que se
conquista com o esforço em conhecer este saber”; responsabilidade”, participação”,
216
“pontualidade” e “assiduidade”: características da “disciplina” escolar, a qual pretende
enquadrar o sujeito no modo e no tempo ideais da sociedade do ‘conquistador’. As escolas
da FUNAI tinham, portanto, um trabalho voltado claramente para a formação de uma nova
subjetividade entre os índios no Brasil, o que envolvia não apenas a assimilação de
‘saberes’ e ‘disciplinas’ diversos. Não é sem motivo, então, que a escola bakairi atual
tanta ênfase aos aspectos disciplinares (provas, horários, freqüência, organização curricular
etc.), e que também sejam eles seus principais índices para a avaliação do ensino escolar.
Se a disciplina está ‘funcionando’ é sinal de que a escola em geral também está, mesmo
que haja problemas significativos na passagem de conhecimento. Veremos no próximo
capítulo que a disciplina é apropriada pela escola atual como a espinha dorsal das
performances cotidianas, parte fundamental da sua pedagogia.
Da mesma forma que no período do SPI, também as performances patrióticas foram
enfatizadas pela FUNAI como meio de ‘integração’ dos indígenas, como se pode notar no
documento divulgado por Darlene Taukane solicitando ao Chefe do P.I. Bakairi a
participação de alguns membros da comunidade na parada de 7 de setembro de1976 na
capital do estado de Mato Grosso:
Sr. Chefe de Posto:
1 – A 5
a
DR está estudando com a Guarnição Militar de Cuiabá uma possível
participação, na próxima parada de 7 de setembro, de um grupo de índios. A idéia é
de que os índios desfilem com alpargatas, calça de brim mescla, dorso nu com alguns
enfeites característicos e armados de arcos e flechas e carabina 22. (Taukane,
1999:118)
A participação nesse ritual de valorização da Pátria e das Forças Armadas é
exemplo de mais uma oportunidade em que os Bakairi fizeram parte de um ato cívico,
reforçando o seu aprendizado de ‘amor à tria’ e também de como esta pátria quer vê-los:
com insígnias indígenas para simbolizar seu papel de primeiros habitantes do Brasil (o
índio como signo nacional), e com vestimentas e armas de fogo para mostrar que o Estado
conseguiu civilizá-los. Mais uma vez, temos o ‘índio brasileiro’ sendo apresentado não
para os habitantes da cidade, como também e principalmente para eles mesmos, como
forma de introjetar seu lugar na nação. Este aspecto é mais um exemplo do que teria
permanecido da escola regida pelo órgão indigenista em relação àquela que hoje está
basicamente na mãos dos bakairi: o valor dado aos símbolos e às atividades patrióticas. Até
217
hoje, como veremos no próximo capítulo, os Bakairi desfilam no Sete de Setembro e
hasteiam a bandeira brasileira no Dia do Índio.
2.2. Novidades da educação escolar indígena da FUNAI
2.2.1. Programa de desenvolvimento econômico e convênio com escola agrícola
O primeiro ponto a ser abordado sobre os convênios que caracterizaram a política
educacional da FUNAI em relação àquela desenvolvida pelo SPI e também à atual, na
mão dos professores indígenas diz respeito ao contrato firmado com internatos agrícolas,
com destaque para um localizado na cidade de Alto Garças (MT) para onde foram estudar
muitos jovens bakairi.
Como afirmou Laura Rival a respeito dos Huaorani, School issues were inseparable
from socioeconomic development (Rival, 2002:153). Portanto, cabe aqui, antes de passar à
educação escolar propriamente dita, tecer um panorama sobre as mudanças ocorridas desde
o SPI até a FUNAI no que se refere à política de desenvolvimento econômico. Esta rápida
abordagem permitirá entender melhor o deslocamento havido do modelo de Posto indígena
(com a escola incluída), que primava pelo confinamento dos alunos, para uma maior
abertura dos postos a outros domínios da sociedade, configurando uma nova estratégia de
integração que privilegia a inserção dos indígenas entre os ‘civilizados’. O convênio com a
escola agrícola foi o modo através do qual essa política operou no setor educacional.
Se, por um lado, podemos dizer que a FUNAI deu continuidade ao projeto
desenvolvimentista do SPI com sua proposta de ‘civilização’ e ‘assimilação’ por meio do
trabalho e da inserção crescente na ‘totalidade’ da nação brasileira, por outro, cabe também
identificar onde o programa dos dois órgãos indigenistas teria diferido, o que basicamente
diz respeito à passagem das estruturas produtivas do Posto indígena para o
desenvolvimento dos chamados ‘projetos’.
A própria conjuntura internacional havia mudado e, em relação a isso, Luis Otávio
Cunha (1990) destaca a influência da ONU recomendando a adoção de projetos de
“desenvolvimento da comunidade” para as “populações marginalizadas”, entre as quais
estavam alocados os indígenas. Na noção de “populações marginalizadas” está implícita a
218
idéia de um ‘centro’ para o qual os ‘projetos’ devem direcionar as populações que estão à
sua margem, representando uma nova forma de enfocar o antigo projeto de
‘homogeneização’ do ‘diferente’, da construção de uma totalidade, desta vez mundial,
chamada ‘humanidade’.
No Brasil, nas décadas de 60 e 70, sob o governo militar, houve a política de
ocupação da Amazônia, território onde vive a maioria dos grupos indígenas. Segundo Luis
Otávio Cunha, Em termos econômicos, ocorrerá uma acelerada modernização, com a
criação de infra-estrutura calcada na construção de estradas, hidrelétricas, e na elaboração e
execução de grandes projetos econômicos, notadamente na região Amazônica legal, onde
se encontra a maior parte dos índios do Brasil” (1990:10). O programa de desenvolvimento
indígena passou, portanto, de um regime de ‘escravidão’ na época do SPI, para a era dos
‘grandes projetos’ no período da FUNAI,
217
sem deixar, entretanto, de ter o caráter de
dependência em relação ao órgão tutor.
Luis Otávio Cunha divide o tempo dos projetos em dois, a primeira etapa indo de 1970
a 1978, sendo caracterizada pela “preocupação com a realidade cultural do índio”, tendo à
frente como figuras fundamentais antropólogos e indigenistas.
218
A outra etapa, que ainda
não teria acabado quando defendeu sua dissertação em 1990, é classificada como
desenvolvimentista; nela saem de cena os atores citados, entrando em seu lugar os
burocratas, sendo a sua principal preocupação “a produção com fins comercializáveis”
(Cunha, 1990:74). Este autor identifica o objetivo da política da FUNAI dessa época como
a “inserção na economia de mercado” como produtores e como consumidores.
Quanto à segunda etapa, o mesmo autor destaca o incentivo da FUNAI a projetos
que envolveriam agropecuária e plantio de arroz (Cunha, 1990:76), política que chegou aos
Bakairi através da implantação do Projeto Polonoroeste em 1980 e que introduzia a
agricultura mecanizada. Quanto à pecuária, muitas famílias começaram a desenvolver
217
Hoje, talvez possamos dizer que estamos na era dos “pequenos projetos”, muitos deles independentes da
FUNAI.
218
Sobre a primeira etapa, discutirei no item 3 deste capítulo, quando tratar do surgimento da idéia de
“cultura” entre os Bakairi, e da sua íntima relação com a escola enquanto centro de conhecimento. Aqui seria
interessante destacar a presença de um casal um indigenista (chefe do Posto) e uma antropóloga entre os
Bakairi na década de 70, pessoas que deram grande incentivo ao seu “resgate cultural”, principalmente na
execução de rituais que eram proibidos durante o tempo do SPI.
219
criação de gado a partir da distribuição de 400 novilhas que restaram para o órgão
indigenista (conforme já foi abordado na página 193).
No que se refere ao processo de educação para o “desenvolvimento e formação de
trabalhadores nacionais civilizados”, houve também um deslocamento do foco
anteriormente voltado para o Posto indígena e para as suas instituições. Estou me referindo
ao convênio firmado entre a FUNAI e alguns colégios agrícolas como forma de promover a
continuidade do estudo para os jovens e, ao mesmo tempo, continuar formando-os segundo
uma ‘vocação agrícola’. Desta forma, adentro a abordagem especificamente voltada para a
educação escolar bakairi nos tempos da FUNAI.
Escola Agrícola
A partir de 1988 até o ano de 2000, algumas famílias bakairi enviaram seus filhos
para cursarem de 5
a
a 8
a
série no Colégio Agrícola Dr. Tancredo de Almeida Neves como
alternativa para dar prosseguimento aos estudos além da 4
a
série.
Apesar deste colégio não ser a única influência dos professores e alunos acerca dos
padrões de funcionamento de uma instituição escolar, certamente ele reforça o modelo
escolar que chegou aos Bakairi por várias fontes, como a própria escola do SPI, os
missionários e alguns outros colégios, internos ou não, freqüentados por eles. Na visita que
fiz à Escola Agrícola em agosto de 2004, pude entrar em contato com sua estrutura,
professores, filosofia e também ver fotos antigas, de quando muito dos atuais professores
bakairi eram seus alunos. Conhecer um pouco da realidade do colégio foi útil para entender
o modo atual de ‘fazer escola’ dos professores bakairi. Mesmo sabendo que ela é apenas
um elemento a mais no complexo quadro de influências da educação escolar bakairi, não
podemos desprezar sua importância.
Ao chegar à escola Tancredo Neves fui recebida pela diretora e pelo secretário
(pessoa que nela trabalha há muitos anos e que conhece todos os Bakairi que por
passaram). Tivemos uma longa conversa, através da qual foram sendo revelados os
conceitos que estes profissionais da educação têm sobre os indígenas, indícios do
220
tratamento que foi dado aos alunos bakairi durante o período em que estiveram. Os
conhecidos preconceitos a respeito dos povos indígenas, que versam sobre a sua preguiça,
indisciplina e tendência ao roubo e à mentira, permearam a conversa e, no bojo dos
discursos, o colégio era apresentado como um meio de ‘correção’ desses ‘defeitos’, ou seja,
como veículo de ‘civilização’. Vários episódios foram citados como exemplos de tal
comportamento, e muito se falou da dificuldade de tal ‘missão’. Elogios também foram
feitos e, mesmo através deles, foi revelado o valor atribuído ao comportamento ‘civilizado’
dos indígenas. Assim, o secretário, dizendo que “não existiu comportamento ruim”,
relatou como os indígenas, em comparação com os brancos que freqüentaram o colégio,
eram muito mais “educados” na hora de pedirem material ou de abordarem um funcionário
ou um professor.
Essa pessoa ainda falou sobre o preconceito que versa sobre os colégios internos,
para onde são mandados, em sua maioria, alunos considerados “indisciplinados”. Este tipo
de instituição é vista como forma de punição para aquele que o se enquadra nos padrões
sociais. Ao que parece, também os alunos indígenas eram vistos como portadores de um
‘desvio’, o qual deveria ser ‘corrigido’ pela internação. O público do internato era assim
composto de duas espécies de alunos, ambos considerados ‘desviantes’: os ‘brancos’
indisciplinados e os indígenas. Foucault nos apresenta a forma como, em sua opinião, a
disciplina e sua ação formam sujeitos ‘adequados’ à ordem social:
Na oficina, na escola, no exército funciona como repressora toda uma
micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade
(desatenção, negligência, falta de zelo), da maneira de ser (grosseria, desobediência),
dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes “incorretas”, gestos não
conformes, sujeira), da sexulidade (imodéstia, indecência). Ao mesmo tempo é
utilizada, a título de punição, toda uma série de processos sutis, que o do castigo
físico leve a privações ligeiras e a pequenas humilhações (Foucault, 1988:159).
Veremos a seguir, nos discursos de ex-alunos, a grande importância da disciplina no
internato e, ainda, a dificuldade que eles tiveram para adequarem-se a ela e poderem ser
aceitos pelos demais. Os alunos indígenas eram recebidos com o estigma de não serem
pessoas ‘civilizadas’, por isso necessitando passar por um processo de disciplinarização.
Eles, que já tinham na sua herança cultural muitas influências do projeto civilizador do SPI,
puderam, durante o período em que passaram internados na escola, reforçar alguns padrões
221
de comportamento considerados aceitáveis para a sociedade karaiwa, ou seja, essa escola
serviu também para lhes ensinar um modelo de atitude segundo o qual eles seriam ‘aceitos’
pelos karaiwa. Hoje, para um Bakairi, dominar os códigos valorizados pelos brasileiros
na sua opinião, relativos principalmente à fala correta da ngua portuguesa e ao
comportamento ‘civilizado’ é considerado fundamental não que desfrutem do que lhes
pode ser útil nessa relação, como também que adquiriram status dentro da própria
sociedade bakairi.
O funcionário da escola mostrou-me os álbuns de fotos, e estas revelaram uma outra
dimensão da civilização relacionada às datas patrióticas e religiosas. Nas fotos, pude ver o
registro da missa que abre anualmente o ano letivo, da festa de Páscoa que era comemorada
principalmente com os alunos indígenas (pois os demais iam passar o feriado com suas
famílias), da formatura, do desfile de 7 de setembro e do Dia do Índio.
Quanto à formatura, pelo que pude perceber através das fotos e dos depoimentos, é
bastante semelhante àquela que ocorre atualmente na escola bakairi. O pai de um dos atuais
professores bakairi contou com muito entusiasmo o dia em que saiu da sua aldeia e foi até
Alto Garças para assistir à formatura de seu filho. Certamente, o modelo de formatura que
existe hoje na Escola José Pires Uluku (localizada na Aldeia Pakuera) não teve sua fonte
apenas nesse colégio agrícola, mas o fato de ter sido freqüentado por vários dos atuais
professores é um indício de que foi por ele influenciado.
Como exemplo do modelo de escola herdado do SPI e da FUNAI (destacando os
colégios agrícolas), registramos que nas escolas bakairi atuais também são comemoradas
datas nacionais, como a Páscoa, o Dia das Mães, o Dia dos Pais, o Dia da Proclamação da
República e também o 7 de setembro, quando os alunos são convidados a desfilar ‘vestidos
de índio’ pela avenida principal da cidade de Paranatinga.
219
Além dessa situação, ainda
outra em que os alunos bakairi se ‘vestiam de índio’, o próprio Dia do Índio”, quando os
alunos indígenas, segundo a diretora da escola, eram solicitados para se apresentarem em
outras escolas do município. Esta data também é comemorada pela escola bakairi atual,
219
É muito interessante observarmos mais uma vez a herança rondoniana que existe na idéia de que é
perfeitamente compatível uma “ala” de “índios” em um desfile que celebra a independência do Brasil. Para os
bakairi, essa relação é bastante conhecida desde a fundação do Posto Indígena que os reuniu à sua volta,
com todos os símbolos e valores patrióticos que lhes foram impostos. Para os “brancos”, a existência da “ala”
de “índios” na parada justifica-se pelo fato de eles representarem “os primeiros habitantes do país” e,
portanto, a origem da “nação”. A parada de “7 de setembro” voltará a ser abordada no próximo capítulo.
222
quando se percebe grande influência da visão folclorizada e referida ao passado acerca
dos ‘índios’ por parte do órgão indigenista e dos internatos a ele conveniados:. Ideal que se
pode notar claramente nos registros fotográficos arquivados na secretaria do Colégio
Agrícola Tancredo Neves. Valorizando sua ‘cultura’ enquanto um importante traço do
folclore brasileiro, e marcando o seu lugar no passado, a educação escolar vê-se com o
poder de transformar o que ‘ainda’ haveria de ‘selvagem’ neles, através dos conteúdos e
disciplina escolares.
O colégio, apesar de agrícola, localiza-se perto do centro da cidade de Alto Garças e
é composto de um bloco de salas de aula, algumas salas reservadas à administração,
refeitório e cozinha, e o alojamento dos internos. Nos fundos da escola encontramos o
espaço das ‘práticas agrícolas’, com uma horta e lugares para criação de porcos, coelhos e
galinhas. Durante sua estadia, os alunos eram vigiados de forma permanente, não podendo
deixar as dependências da escola. Seu tempo também estava totalmente sob controle, com
horário para dormir e acordar, comer, estudar e até descansar.
É interessante notar, entretanto, que apesar de muitos dos atuais bakairi terem
passado por esta e por outras escolas do tipo, ainda hoje não existem hortas nas aldeias e
criação de porcos e galinhas em confinamento. Mesmo havendo a disciplina “práticas
agrícolas” no currículo de 5
a
a 8
a
rie da escola bakairi, ela tem apenas se resumido aos
alunos capinarem a área da escola quando necessário ou como forma de punição. Portanto,
a influência do colégio agrícola de Alto Garças teria sido mais em relação ao aprendizado
dos métodos e da disciplina do que nas habilidades agrícolas, pois os alunos, ao voltarem
para casa, não encontraram as condições para aplicar os conhecimentos adquiridos nessa
área.
Os relatos de dois dos atuais professores que estudaram na escola agrícola de Alto
Garças ilustram bem essas questões, e ainda levantam outras novas, como será notado a
seguir:
Relato n° 1:
Aos 13 anos eu tinha terminado a 4
a
série do Ensino Fundamental, que naquela
época as coisas eram muito difíceis aqui na aldeia, assim para dar seqüência no
estudo. Tava em falta os professores. Com isso teve que estudar a 4
a
série duas vezes,
apesar que passava todo o ano, mas que tinha que não tinha outro lugar para
estudar, né. A partir de 1990 eu tive oportunidade de estudar num colégio interno, Dr.
223
Tancredo de Almeida Neves, no município de Alto Garças. Eu tive oportunidade de
conseguir uma bolsa, então com isso eu estava decidido que eu tinha que estudar, de
qualquer maneira tinha que ser alguma coisa na vida, porque sabendo as dificuldades
que a gente se enfrentava aqui na aldeia, o melhor caminho era estudar para poder
ajudar o meu povo, a minha comunidade, né. Então, desde que saí para o internato,
eu tinha um sonho, sonho de ser professor ou piloto de avião, era um dos meus
sonhos, na minha vida. Então, fomos para Rondonópolis para poder ir para a escola-
internato; era uma coisa muito diferente e meio estranho para mim, porque viver
numa sociedade tão diferente da minha sociedade, então eu tive aquele choque. Ao
chegarmos lá, os alunos daquele colégio nos olhava muito, olhava e nem conversava,
né. Eu ficava assim parado, parado, pensando: o que será que as pessoas estão
pensando de mim? Será... Ficava imaginando essas coisas. Então, às 12 horas tocava
uma sirena. No primeiro dia do internato, eu não sabia. Estava de short, né. Ao
entrar no refeitório as pessoas entregaram o regimento do interno lá, regimento que
tinha que ser cumprido, . E no internato não era somente menino, tinha meninas
que estudava, interna, né. Então tinha umas mesas somente dos homens, dos
meninos, mas tinha outras mesas que era das meninas. Primeiro assim, que eu
passei grande vergonha assim de eu poder comer junto com as meninas. Nunca tinha
assim conversado ou aproximado de uma pessoa de outra cultura, então foi uma coisa
que eu achei muito estranho. As meninas mexiam comigo . Botavam um pedaço de
abóbora na boca, mexiam com a língua, aquelas línguas tudo amarelado, né. Às vezes
dava nojo, né. A partir disso comi tranqüilamente, fui no dormitório e comecei a ler o
regimento que não poderia entrar de short. Aí comecei a ler o regimento do internato,
o que poderia fazer e o que o poderia ser feito. Meu direito e minha liberdade.
Então, no outro dia, começava o primeiro dia de aula. No primeiro dia de aula fomos
trabalhar em primeiro lugar, fomos capinar o aviário lá, né, então, para mim que
mexia com essas coisas, mexia com enxada, o era novidade para mim. A partir
da parte da tarde é que começamos a estudar na sala de aula, porque é assim: se
você vai de manhã para aula prática, a tarde na teoria, né. Então, com isso tivemos
alguns alunos que fizemos amizade logo. Começamos a conversar. Mas a partir disso
também teve as pessoas que eram meio... não sei, parece que nunca tinham visto
índio, e não tinham a oportunidade de conhecer. Então, com isso eles perguntavam
muita coisa para mim: se índio come gente, essas coisas assim, né, então. Mas em
relação a isso teve bastante dificuldade para o pessoal que não era índio, porque,
assim, tinha um pouco de preconceito, né. Mas durante esses quatro anos que estudar
no internato tive que provar pra eles que eu era capaz, que eu poderia chegar aonde
queria chegar, . E, além disso, também que apesar de ter uma língua, um jeito de
ser diferente, que nós éramos iguais ou ao mesmo tempo também que tinha um
conhecimento além dos conhecimentos deles, então essa era a minha vantagem, .
No segundo ano, as pessoas começaram a perceber que eu estava superando essas
coisas, né. E lá no internato tinha um mural que o nome dos melhores alunos aparecia
no mural. Durante os quatro anos que eu estudei lá, eu ficava com o nome de
primeiro aluno da lista, e o pessoal ficava admirando de mim: “puxa, cara, você fala
língua diferente, tem cultura diferente, melhor do que qualquer um de nós que estuda
aqui”, eles falavam. E eu falava assim: “eu me esforço para conseguir essas coisas”.
E além disso tinha bastante elogio pela parte da secretaria, pela parte dos professores.
E comecei a superar essas coisas, porque, além disso também, neste município tem
assim mais população do sul. As pessoas que é cheio de coisa, assim, discrimina
muito as pessoas. tem pensamento assim, de terra, de agricultura, essas coisas, né.
Por isso que tive dificuldade, mas durante esses quatro anos que estudei tive que
mostrar para eles que as coisas não eram totalmente como eles pensavam, que tinha
224
muita diferença, . Com isso... E fiz muita amizade. Tive que viajar algumas vezes
com os colegas lá para visitar algumas cidades que ficavam perto de lá, então,
aprendi muito né. Colégio internato foi bastante melhor para mim, aonde eu aprendi a
viver. E, assim, ter amizade, essas coisas. A partir disso sou uma pessoa que gosto de
fazer amizade, eu gosto de ajudar também, o algumas coisas da minha
característica, e eu detesto falsidade. aprendi essas coisas, né. E com isso, a partir
de 1996, eu saí de lá, formamos 8
a
série. Nessa formatura tivemos churrasco, tivemos
uma festa bem grande mesmo. E quando saímos de choramos muito, porque as
pessoas que estavam internos eram de vários lugares, de Cuiabá, tem de Campo
Grande, Goiás. A gente, assim, construiu uma amizade muito grande mesmo, então,
às vezes... desde aquela vez nunca mais voltei lá também, então, sinto muita falta, né.
E com isso retornei à aldeia, mas eu vi, mas eu não estava muito preparado ainda
para fazer alguma coisa para minha comunidade. Tinha muitos conhecimentos, mas
ainda precisava preparar mais ainda para poder ajudar a minha comunidade. A partir
de 93 resolvi estudar em Cuiabá, (W.S., professor bakairi, ex-aluno do internato,
março de 2004, Aldeia Pakuera).
Relato n° 2:
Naquela época tinha muitos índios que quando terminavam a 4
a
série faziam a 5
a
série fora, na escola agrícola. (...) naquela época não tinha ginásio na aldeia, a gente
teve que ir para lá. Mas pelo interesse também, principalmente eu, comecei a estudar
desde pequeno, quando eu teve com 13 anos eu saí fora para conhecer mundo de
branco, como é que os brancos conviviam, como que eles estudavam (A.B.,
professor bakairi, ex-aluno do internato; abril de 2004, Aldeia Pakuera).
Nestes dois relatos, ao entrarem para o colégio interno, percebemos a aspiração dos
alunos em “conhecer o mundo do branco” um mundo visto de forma unificada, em
contraposição a um ‘mundo bakairi’. No caso do primeiro aluno, ele teve a oportunidade de
posteriormente ir estudar em Cuiabá e assim ampliar o seu conhecimento sobre esse mesmo
mundo. Mas o segundo aluno, como muitos outros, teve o internato como única referência
desse ‘mundo’ e, principalmente, sobre “como é que eles (os brancos) estudavam”. O que
vivenciaram no colégio agrícola foi o modelo de escola, pois se esta é uma instituição de
‘branco’, são eles, os brancos, que sabem como ela deve funcionar. Os atuais professores
trazem certamente para a sua prática atual o que aprenderam sobre como ‘se faz’ escola.
Outro ponto que surge no primeiro depoimento é sobre o preconceito que sofreu e a
forma que encontrou para se livrar dele: ser o melhor de todos, isto é, ser mais ‘branco’ que
os ‘brancos’, o que foi possível para ele através da introjeção dos valores do ‘branco’, os
quais estavam registrados no citado “regimento interno” que dizia o que poderia fazer e o
225
que não poderia ser feito. Meu direito e minha liberdade”. Seguindo as normas disciplinares
e aprendendo os conhecimentos ministrados pelos professores, ele conseguiu mostrar que
poderia ser aceito, como o foi, segundo disse, pelos professores e pela secretaria. Mas não
somente pela coerção ele foi sendo submetido ao ‘poder’ escolar, mas também o ‘elogio’
foi enfatizado como prêmio que motivou o aluno a agir conforme o que era considerado
‘correto’.
Quando ele era visto segundo o seu jeito “diferente” (língua, cultura), não era aceito.
Mas ao passar a dominar os códigos dos brancos e a agir como eles, houve a aceitação. Ser
incluído no grupo parece ter sido uma preocupação sua desde o início, expressa por ele no
questionamento “o que será que as pessoas estão pensando de mim?”. Então, nesse
processo de querer ser incluído, ser respeitado como um igual, ele e os demais alunos
indígenas tiveram uma enorme motivação para mudar’ o comportamento e adquirir novas
posturas e valores.
Além do aprendizado de ‘ser tal qual um branco’ e ‘como age um professor’
mais uma parte do que foi relatado que me inspira a iniciar uma discussão – à qual
retornarei no próximo capítulo sobre as possíveis correspondências entre a reclusão das
instituições escolares e aquelas que aconteciam antigamente dentro do kadoety, na
puberdade ou para vir a ser um aprendiz de pajé. Quando o primeiro aluno diz “Por isso que
tive dificuldade, mas durante esses quatro anos.... Colégio internato foi bastante melhor
para mim, aonde eu aprendi a viver”, lembro-me do que foi abordado no capítulo IV sobre
o período de reclusão (wanky) durante o qual se aprendiam, no caso dos jovens, todas as
habilidades que precisariam ter para se tornarem um adulto bakairi completo e, no caso dos
pajés, os conhecimentos necessários para executarem tal função.
220
Recordo-me especificamente de uma fala citada no capítulo anterior e que
reproduzo novamente: “Por isso que antigamente tinha um professor também para ensinar o
rapaz na própria casa. Um homem mesmo que mandava... cacique, por exemplo, cacique.
220
Atualmente, conforme vimos, o rito de iniciação dos jovens dentro da tradição bakairi ainda ocorre,
entretanto, as características citadas acima foram bastante atenuadas. Assim, o período de reclusão que durava
anos reduziu-se a semanas ou dias; os sacrifícios diminuíram juntamente com o tempo em que passam
reclusos, sendo mantidos os momentos essenciais da furação dos lóbulos das orelhas e a escarificação. As
habilidades relativas às práticas tradicionais bakairi são pouco aprendidas devido ao curto período de tempo
em que os meninos passam em reclusão, e também pelo fato de o modo de vida estar se transformando
rapidamente e, portanto, tornando muitos dos conhecimentos obsoletos aos seus olhos.
226
Antigamente, agora o, agora estragou tudo. Geralmente era cacique, cacique, vice,
essas pessoas, porque antigamente os homens iam onde está o kadoety”.
Assim, a referência do primeiro aluno às provações e privações que passava na
escola (fato que ouvi de muitos outros ex-alunos) e de atribuir a esse colégio o fato de ser o
local onde aprendeu a viver, leva-nos inevitavelmente a fazer uma relação entre a reclusão
do pajé, especialista e mediador com o ‘mundo dos iamyra e o período de ‘internação’ por
que passaram os atuais professores, mediadores com o ‘mundo dos karaiwa’. Se em seu
período de reclusão/formação o pajé deve aprender conhecimentos e técnicas referentes aos
‘espíritos’, os professores tiveram que passar por um tempo de ‘internação’ para aprender
sobre os conhecimentos e os instrumentos dos karaiwa, fundamentalmente, ler, escrever e
se comportar civilizadamente, para assim poderem assumir seus papéis de mediadores.
Também os sacrifícios relatados por aquele aluno e por muitos outros, como a
solidão, a privação da liberdade, a enorme dificuldade de deslocamento das aldeias para
Alto Garças, o próprio problema de enfrentarem códigos muito diferentes daqueles aos
quais estavam acostumados, pode caracterizar a estadia dos rapazes na escola agrícola
como um ‘rito de passagem’. Além disso, depois da formatura, ao voltar com o diploma
para a sua aldeia, o jovem havia conquistado um novo status social.
221
Em suma, a escola agrícola ‘produziu’ grande parte dos atuais professores bakairi
através de um conjunto de aspectos: aprenderam a ser ‘como um professor’, observando os
modos, atitudes, métodos de ensino e hábitos de tal função; adquiriram conteúdos escolares
que lhes deram o modelo de ‘o que deve ser ensinado em uma escola’; introjetaram valores
e atitudes ‘de branco’, o que os fez mais seguros em relação à superação do preconceito dos
karaiwa e à sua ‘aceitação’ no meio que é deles. Todos estes aspectos reunidos habilitaram-
nos a ocupar um novo papel na sociedade bakairi enquanto professores, isto é, mediadores
entre o ‘mundo dos karaiwa’ e a sociedade bakairi. Esta questão além de aspectos
relativos ao isolamento (reclusão), dieta específica e privações características da situação
leva-me a dizer que o período passado no colégio agrícola operou como um rito de
iniciação que transformou os alunos bakairi em potenciais especialistas da área de
educação.
221
Voltarei ao tema na parte seguinte deste trabalho, quando abordarei a escola dentro da área indígena e
comandada por professores bakairi, situação que também permite algumas analogias com o aprendizado sob
reclusão (wanky).
227
De fato, os comportamentos, performances, valores e disciplina aprendidos nesse
período tiveram grande influência sobre seu modo de vida, enquanto pessoa e como
professor indígena. Da maneira civilizada de comer até o valor da disciplina e das festas
comemorativas escolares surgem exemplos da introjeção nos ex-alunos do internato (atuais
professores) do programa de ‘correção’ e ‘enquadramento’ ao qual vinham sendo
submetidos os jovens indígenas desde o tempo do SPI.
Se o convênio com a escola agrícola representou a ação da FUNAI no sentido da
formação (em todos os sentidos) bakairi no plano extra-aldeia, nas escolas localizadas
dentro da área indígena iniciou-se o desenvolvimento de uma pedagogia baseada – ao
contrário da época do SPI na ênfase da língua indígena e dos temas considerados mais
próximos à realidade local, através de outro convênio firmado com os missionários do SIL.
2.2.2. O SIL e a educação bilíngüe-intercultural
O convênio com o SIL insere-se também no novo contexto de tratamento das
chamadas ‘minorias’. De fato, ele era uma das facetas das mudanças que estavam
ocorrendo na política da FUNAI nos anos 70, caracterizadas tanto pelo ‘desenvolvimento
comunitário’ o que significaria a integração dos indígenas na economia de mercado
como também por uma tendência mundial de valorização da diversidade étnica e cultural:
A escola, vista como uma instituição formadora de ideologia, teve, portanto, um
papel fundamental a desempenhar nas novas políticas relativas às minorias. A
educação intercultural passou a ganhar cada vez mais espaço nos discursos e nas
políticas públicas, principalmente a partir da década de 70. Nessa época, na Europa,
surgiram os primeiros projetos baseados nessa proposta e, nos EUA, com o Relatório
Kennedy, de 1969, houve uma volta ao projeto intercultural iniciado na década de 30.
Nos países da América Latina, como o Brasil, houve o crescimento dos projetos de
educação bilíngüe e intercultural, voltados para as populações indígenas, primeiro
ligados ao Summer e, depois, através das Ongs (Collet, 2001:33).
Assim, os princípios do bilingüismo (uso da língua indígena nas aulas e no material
escolar) e da interculturalidade (definida nesse período pelo bilingüismo e também pelo
maior uso nas aulas dos temas da realidade local), desenvolvidos muitas décadas pelo
228
SIL como método de ‘integração’ dos povos indígenas primeiro no México, depois na
América Latina impuseram-se como forma de dar uma ‘nova face’ à política
assimilacionista. Como já havia dito em outro lugar:
(com) uma nova política que postulasse o desenvolvimento sem entretanto ter que
enfrentar os custos e os traumas do modelo assimilacionista, (...) a educação indígena
intercultural ganhou força nos projetos por eles desenvolvidos. A interculturalidade
serviria como suporte à retórica do respeito à diversidade cultural, na qual se
baseariam as políticas educacionais, bem como seria utilizada para expressar a ponte
que se pretendia entre as culturas (Collet, 2001:29)
Se por um lado a educação bilíngue e intercultural teria sido mais uma estratégia de
integração, sendo, portanto, uma forma contemporânea de prosseguimento do programa iniciado
com o SPI, por outro lado, ela pode ser vista como uma transformação não apenas no que diz
respeito à diferença em relação à rejeição do SPI ao envolvimento de entidades religiosas no
indigenismo do Estado, mas também por representar o início de grandes mudanças que estariam por
vir. Refiro-me, sobretudo, aos atuais projetos voltados para a educação escolar indígena que
pretendem usar o bilingüismo e a interculturalidade como princípios da autonomia indígena.
Para se estabelecer junto à FUNAI, o SIL teve antes que se legitimar como uma instituição
científica (não apenas religiosa), o que teria acontecido com a aproximação do Museu Nacional
com o fim de serem realizadas pesquisas lingüísticas. Apesar dessa parceria não ter durado muito,
pois o SIL teria se dedicado mais à atuação missionária e didática por meio das ‘cartilhas’ do que à
analise lingüística conforme estava previsto, esse período foi fundamental para o seu
reconhecimento como uma instituição que poderia responsabilizar-se pelo setor de educação da
FUNAI.
Entre os Bakairi, a nova proposta de educação bilíngüe e intercultural, dirigida pelo SIL
que chegou em 1963, foi uma prévia da proposta baseada nos princípios que vieram depois com o
projeto Tucum. É interessante notar, porém, que se atualmente no meio acadêmico é comum ver o
projeto desta entidade missionária como assimilacionista e os que são desenvolvidos por Ongs e
pelo MEC como promotores de autonomia, para os Bakairi, eles não se diferenciariam muito na
prática, como podemos observar no seguinte discurso de uma professora bakairi:
o jeito que a gente fala, eles aceitam, porque eles também respeitam a nossa lei, eles
respeitam muito a nossa lei. O que a gente fala está bom para eles, porque a gente é
que sabe da realidade da gente. Eles não sabem a realidade das pessoas. Além disso,
eles aprendem com a gente também. falam a língua nossa. Por isso que eles
estão ajudando muito nós (Q.A., dezembro de 2000, Aldeia Pakuera)
229
Essa mesma pessoa, atualmente ainda envolvida com a tradução da Bíblia para a
língua bakairi realizada pelo SIL, hoje limitada à aldeia Paikun, conta como foram seus
primeiros contatos com esses missionários:
Em 63 que começou o SIL. (...) Primeiro eles ficaram com a gente por três anos,
eles foram para Santana. Seu Jaime. Não era mulher, não. Em 62, parece, ele veio a
primeira vez . Aí, para ficar para trabalhar, veio 63, 64, 65; ele teve aqui três anos. Aí
66 ele transferiu para Santana. Santana 66, 67, 68, ele teve três anos também. Ele
ficou em Cuiabá mais três anos, 69, 70, 71. Ele ficou dez anos no Brasil (Q.A.,
dezembro de 2000, Aldeia Pakuera).
Depois desse período inicial, em princípios da década de 70, alguns bakairi foram
chamados para participar de uma reunião que fazia parte da consolidação do convênio
entre FUNAI e SIL: “Nós, Roberto, Fernando de Santana. O SIL vinha buscar nós aqui de
avião e levava. Em 1970 levou reunião de presidente da FUNAI na época, toda etnia esteve
na reunião” (Q.A., dezembro de 2000, Aldeia Pakuera).
A partir de 1988, os Bakairi, moradores da aldeia Paikun, passaram a desenvolver
cartilhas bilíngües com o apoio do SIL. As cartilhas o pequenos cadernos datilografados,
observamos textos em Bakairi, seguidos de sua tradução em Português, com algumas
ilustrações feitas pelos próprios Bakairi. Elas são classificadas da seguinte forma:
- Livros de apoio: Antes de ler; Abecedário; Estou aprendendo 1 e 2;
222
Para nós lermos
na nossa língua; Livro de transição: de português para bakairi.
- Livros de etnociência: Os peixes; Os animais; O livro escrito sobre os animais; Os
répteis, os anfíbios e a arraia; Os pássaros 1.
223
- Livros de leitura: As aventuras da vida; O que eles fizeram; Os contos dos alunos; Fui
pescar ontem;
224
Quando minha mãe deixou escapar o tatu; Os acidentes que
aconteceram;
225
Quando eu tive medo de onça; As onças.
222
Eu pude folhear algumas cartilhas que estavam na secretaria da escola. Entre elas, estava o livro “Estou
aprendendo 2”, juntamente com as que estão assinaladas pelas notas seguintes. Esse livro consta de um
alfabeto, uma cartilha e, no final, “uma pequena tradução para o português”.
223
Livro “Os pássaros”, de Armindo Kukure (livro de leitura vol. 9); Desenhos: Alinor Aiakade e Davi;
Tradução: Queridinha e Armindo Kukure; Revisão do português: SIL. A organização é a mesma do livro “Os
peixes”, que será analisado adiante.
224
Livro “Fui pescar ontem: livro de leitura”: Luiz Pâiato – Cartilha com desenhos e frases curtas em Bakairi.
No final, em português, uma tradução em texto corrido.
230
- Livro das lendas: O leão e o homem; O macaco e os outros animais; A perdiz e o sol;
Algumas histórias de nossos antepassados 1 e 2; As histórias contadas (1 a 6).
226
Para que possamos ter uma idéia melhor de como são esses livros, usarei como
exemplo a cartilha “Os peixes”, da série de etnociências.
Os autores são: Joaquim Atugila, Laurinda e Dirceu, todos da mesma família. No
início, uma parte reservada aos agradecimentos: Apolônio, Queridinha, Alinor (atual
chefe de Posto, que também foi o responsável pela tradução do texto bakairi para o
português). É interessante perceber que a autoria é dada aos Bakairi, mas os
agradecimentos são assinados pelos missionários:
Agradecimentos também às lideranças Bakairi que nos convidaram a viver entre eles,
especialmente a Gilson (ex-cacique da aldeia central) e Odil Apacano (cacique de
Paikun)
A Doroti Taukane, ex-chefe do Posto Indígena Pakuera. A Estevão Taukane (chefe
de Posto).
Segue-se o prefácio:
Este livro tem o propósito de prover, para os bakairi, material de leitura já
conhecido por eles. Assim poderão melhorar sua habilidade em ler com
entendimento e fluência. Serve como leitura suplementar, em continuação à série de
livros na língua bakairi. O autor falou a respeito dos seus conhecimentos sobre os
peixes e isto foi gravado em fitas. Na página seguinte o autor explica para os leitores
o objetivo do livro e a importância de conservar os etnoconhecimentos bakairi do
meio-ambiente. A página chamada introdução é a tradução desta explicação escrita.
Depois, vem o índice em bakairi, seguido dos textos, também nesta língua, e
ilustrações. Finalmente, temos o texto em português. Mostrarei apenas um deles para
que tenhamos uma idéia de como são elaborados:
O Jiju. Vou falar sobre o jiju. O jiju sai do ovo que o sapo põe na água. É quer dizer,
o ovo de sapo se transforma no que se chama jiju, parecido com peixe. Muitos dizem
que não comem jiju, mas é mentira, porque ele é comido. A gente usa jiju para isca,
225
Livro “Os acidentes que aconteceram” (contos narrados pelos Bakairi): “Esse livro de experiências
pessoais tem o propósito de prover para os bakairi material conhecido por eles. Assim, poderão melhorar
sua habilidade em ler com entendimento, fluência e prazer.” estórias: “O meu cunhado foi ofendido pela
cobra”, “O meu neto foi machucado pelo trator” etc.
226
Livro “As histórias contadas 4” por Laurinda Komaedê e Rute Tairo. Livro de lendas; Desenhos feitos por
Luiz Pâiato, Paulo Kavopi, Esrael ...; organizado por Elizabeth (SIL).
231
para pegar os peixes como matrinxã, jaú, pintado e outros também, pois ele é
alimento dos peixes.
Além desses livros de alfabetização e leitura, existem alguns com temas religiosos,
como “A morte e ressurreição de Jesus”, que tem a tradução para língua bakairi do
“evangelho de Lucas: 22, 23, 24”. Na sua capa, temos a ilustração da cena do calvário feita,
segundo consta, por “C. David Cook Foundation e David Alaucai (Bakairi)”.
Hoje o SIL está presente apenas na aldeia Paikun,
227
onde vem desenvolvendo
principalmente o trabalho de tradução da Bíblia. Entretanto, sua influência pode ser notada
nas diversas escolas bakairi, as quais fazem uso de suas cartilhas que representam a maioria
do material didático específico disponível (além desse material, somente dois livros
produzidos pelos alunos do Projeto Tucum, o primeiro com ilustrações de alunos e
pequenos textos em língua bakairi, e o segundo sobre as máscaras Iakuigady (ver capítulo
VII).
Essas cartilhas são usadas principalmente como recurso didático para aulas de
língua materna conforme veremos posteriormente, espaço do currículo escolar em que
são alocados todos os temas e matérias ‘específicos’ ou ‘referentes à cultura bakairi’.
Assim, se a partir da perspectiva do movimento ‘pró-indio’ o trabalho do SIL é visto em
oposição à ‘nova educação escolar indígena’, entre os Bakairi ele é tido não apenas como
precursor, mas também como provedor do material utilizado pelos atuais professores
visando concretizar a ‘nova proposta’.
*
A educação escolar bakairi, realizada sob a responsabilidade da FUNAI, foi
caracterizada pela continuidade dos ideais civilizadores do nacionalismo e do
desenvolvimento, mas adquiriu uma roupagem mais contemporânea através do convênio
firmado com o colégio agrícola, rompendo as fronteiras do Posto indígena, e por meio do
acordo com o SIL, tendo como resultado a elaboração de cartilhas bilíngües e a valorização
da língua materna, que vinha sofrendo muito tempo ataques provenientes da escola do
SPI.
227
Nessa aldeia, recentemente veio a se estabelecer uma igreja evangélica que, embora não trabalhe em
conjunto com os missionários norte-americanos do SIL, partilha de muitos dos seus princípios religiosos.
232
Ainda sob o regime da FUNAI iniciou-se um outro momento da escola bakairi
posteriormente levado adiante pela coordenação das secretarias de educação – caracterizado
pelo progressivo controle da escola por parte dos professores indígenas, categoria
estabelecida pela FUNAI nos anos 80. Este será o tema da nossa próxima seção, a última
das que compõem o quadro da trajetória de construção da escola bakairi conforme ela se
encontra hoje.
3. Da FUNAI aos Bakairi: apropriando-se da escola e da ‘cultura’
Dando prosseguimento à discussão iniciada acima sobre os reflexos da nova
conjuntura mundial (e, conseqüentemente, nacional) nos rumos dos projetos
governamentais voltados para a educação dos povos indígenas, gostaria aqui de explorar
um pouco mais esta questão, a fim de que possamos entender o processo de afirmação da
‘nova proposta’ e as mudanças que acarretou na realidade da escola bakairi. Neste sentido,
quero enfatizar a falência do modelo assimilacionista que vinha caracterizando a política
relativa às minorias em diversos países, principalmente na Europa e na América do Norte,
responsáveis pela disseminação de novas ideologias através dos organismos internacionais
(ONU, UNESCO etc.), trazendo fortes e posteriores influências na América Latina e dando
origem a vários programas em diversos países. Entre estes programas podemos citar o
DINEIB (Direccíon Nacional de Educacion Indigena Intercultural y Bilíngüe), no Equador,
surgido em 1988 (Rival, 1997), de cunho muito similar àqueles que se iniciaram no Brasil,
caracterizados não apenas pelos princípios do bilingüismo e da interculturalidade, mas
também pela contratação e formação de professores indígenas e a produção de materiais
didáticos específicos.
O ‘novo projeto’, iniciado na década de 70 e consolidado nos anos seguintes,
apareceu como uma outra forma de tratar a diversidade sem, no entanto, alterar as relações
de desigualdade e de dominação, ou seja, o modelo anterior de gerenciamento de
desigualdade no interior das diversas sociedades nacionais não estava mais conseguindo dar
conta do novo contexto permeado por conflitos e reivindicações (Collet, 2001). Não
entrarei no mérito das demais transformações acontecidas nesse período, sendo importante
aqui mostrar que a política em face das minorias sofreu mudanças, principalmente no
233
sentido da criação de novas estratégias para lidar com os conflitos envolvendo essas
mesmas ‘minorias’.
A propósito, o governo brasileiro passou a desenvolver um programa baseado
especialmente nos conceitos de ‘interculturalidade’ e ‘autonomia’, através do qual
pretendia manter o controle do processo de integração dos indígenas sem que tivesse, no
entanto, o ônus econômico (que representava a manutenção dos Postos indígenas) e o
político (referente à necessidade de passar uma imagem ‘correta’ do tratamento dessas
minorias). A princípio, como vimos, esse processo foi desenvolvido por convênio da
FUNAI com o SIL, sendo levado adiante pelas secretarias de educação (MEC, estados,
municípios) juntamente com os professores indígenas.
228
Entre os Bakairi, os principais ecos de tal transformação foram o definitivo
desmonte do Posto nos moldes em que foi elaborado pelo SPI, a possibilidade da sua
dispersão novamente entre várias localidades (padrão das âtâ anary, visto na parte I), a
retomada por meio de incentivo da própria FUNAI das suas ‘manifestações culturais’ e a
substituição dos funcionários ‘brancos’ por Bakairi entre eles o cargo de ‘chefe de Posto’
e também de ‘professores indígenas’. A contratação destes últimos, considerada pelos
Bakairi como um marco na história de sua educação escolar, sea primeira característica
dos ‘novos tempos’ a ser tratada. Depois ainda será dado destaque à expansão das séries
escolares e ao aparecimento da ‘cultura’, momentos fundamentais na constituição da atual
escola bakairi.
3.1. A novidade dos ‘professores indígenas’
Como toda transformação, a situação da contratação dos professores indígenas
também foi caracterizada por muitas continuidades. Conforme vimos, a proposta baseada
no princípio da ‘interculturalidade’ teria surgido da necessidade de manutenção do controle
sobre as populações indígenas tendo como base um modelo mais contemporâneo. De fato, a
idéia da contratação dos professores indígenas enquanto um ‘marco’ de um novo tempo foi
228
No entanto, o SIL continuou desenvolvendo a elaboração das cartilhas e tradução da Bíblia.
234
construída a partir da assimilação da noção de ‘autonomia’ embutida no novo discurso do
órgão tutor.
De toda forma, vejamos através dos discursos dos professores indígenas e da
FUNAI, como esse processo teria sido interpretado por cada um dos lados envolvidos.
Iniciemos pelo depoimento de um dos primeiros professores bakairi a serem contratados,
em 1982, para substituir os antigos professores ‘brancos’.
quando tava trabalhando na roça, o chefe do Posto naquela época era Orlando Graça
Leite, era branco, então ele me mandou me chamar no mesmo dia que tinha vindo
radiograma via rádio solicitando minha presença munido de todo documento (...) e
ele me falou que a professora educacional da FUNAI, que é dona Miriam, estava me
solicitando a minha presença munido em todo documento. (...) Chegando em Cuiabá,
eu fui questionado e, embora,a professora conversou muito comigo se tinha vontade
de trabalhar ou não. Apesar de tudo, eu não tinha quase experiência, eu não tinha
experiência de nada, estava no escuro mesmo. Como aqui a FUNAI em si, o povo
bakairi, por exemplo, tava necessitado de professores também, então eu logo assim
eu aceitei esse convite, sem noção. (...) passados três dias em Cuiabá, eu fui
recebendo orientação e tudo e, no outro dia, a gente veio embora dar aula.
Apresentei aqui, fizemos reunião, tudo comunidade parece que estava assim com
meia cara, né. o tava acreditando quase, porque naquela época o pessoal não
acreditava mesmo, acreditava em pessoa de fora, não a pessoa daqui. E, então,
fizemos reunião, pessoal falaram, me apresentaram, a comunidade falou também que
seria legal, porque o pessoal sendo a pessoa daqui seria melhor ainda para gente
trabalhar do que a pessoa de fora, porque pessoa de fora vinha, passa um mês e vai
embora. E sendo daqui, a pessoa ia começar trabalhar aqui, se tiver doença cura por
aqui mesmo, já resolve por aqui mesmo (J.P., fevereiro 2004, Aldeia Pakuera).
Neste relato, estão referidas várias das características que identificam o processo das
primeiras contratações dos professores indígenas, em particular, da implantação do projeto
de educação autônoma e intercultural vislumbrado pela FUNAI. Em primeiro lugar, chama
a atenção o fato de o órgão indigenista estar à frente de todo o processo, convidando os
futuros contratado que estavam, como vimos, desavisados das suas intenções. Atestando
que ao invés de ser fruto de uma conquista dos indígenas, como costuma ser visto, veio de
‘cima para baixo’, ou seja, primeiro foi resolvido pela FUNAI e depois houve a inclusão
dos professores indígenas. Nota-se também que a contratação desses profissionais
autóctones diz respeito muito mais à já citada motivação econômica e política do que a uma
preocupação com a qualidade do ensino, visto que a ela não teria se seguido uma
preparação adequada dos professores, mas apenas “três dias” de “orientação”.
235
Caberia ainda uma observação quanto ao caráter do programa educacional da
FUNAI a ser deduzida em função da menção reafirmada de necessidade de “documentos”.
Ter “documento” era necessário para a comprovação da familiarização do futuro
profissional não apenas com os conhecimentos que deveriam ser passados aos seus alunos,
mas principalmente com o fato de ele estar suficientemente embutido no sistema
‘civilizado’ e, como tal, podendo prosseguir com a proposta de ‘civilização’ que agora
ganharia uma nova roupagem. Em outras palavras, o ‘preparo’ que se requeria do candidato
ao cargo não incluía apenas os conhecimentos técnicos, mas de forma especial o domínio
dos códigos ‘civilizados’. Gostaria de explorar um pouco mais esta questão antes de
continuar a abordagem do relato acima.
Vejamos um documento resgatado por Darlene Taukane registrando a apresentação
dos novos professores e que se configura como um exemplo de que, apesar da contratação
desses profissionais, até a passagem da responsabilidade da educação escolar indígena ao
MEC e às secretarias estaduais e municipais a FUNAI continuou controlando todos os
aspectos relacionados à educação escolar:
Senhor Chefe do PI.
Através deste Memorando quero apresentar a V. S. os dois professores, Ilma
I. Pairague e Jeremias Poiure que irão atuar na escola desse P.I., cuja direção está sob
a sua responsabilidade. Todo material de primeira necessidade para o funcionamento
normal da Escola está sendo enviado através da Guia de Remessa No 56/82. Informo
que a merenda escolar deverá ficar na escola e bem protegida porque tem a tendência
de se estragar com muita facilidade. Aclaro que não deverá sair nenhuma porção de
merenda para qualquer casa da aldeia (pacotinhos), o que é permitido na hora normal
da distribuição da merenda para os alunos, dar copo ou prato de alimento, para
crianças doentes ou desnutridas, pessoas acamadas ou em caso de invalidez. A
mesma deverá ser feita uma vez ao dia.
O material escolar, assim como o de limpeza, deverão ficar na escola, em
lugar bem seguro.
A partir do dia 25.10.82, esses professores deverão desempenhar o seguinte
trabalho:
1
o
dia: Fazer uma relação dos objetos encontrados no prédio escolar.
Uma limpeza total na casa, e acomodar todo o material recebido.
2
o
dia: Relacionar as crianças de 6 a 14 anos, analfabetas.
Organizar a sala de aula para o início delas.
Verificar quem vai fazer a merenda escolar no dia seguinte.
Escolher com a comunidade qual o melhor horário para se ministrar as aulas
(de manhã ou a tarde).
Nos primeiros dias as aulas ministradas não serão de quatro (4) horas
consecutivas. Quando os alunos apresentarem-se inquietos, poderão encerrar as
236
atividades do dia. No dia seguinte deverão demorarem-se mais tempo as aulas”
(Taukane, 1999: 146-150).
Fica evidente que, nesse momento, a proposta de autonomia indígena estava
limitada somente à contratação dos professores, que deveriam cumprir as ordens ditadas
pelo órgão tutor detalhadamente no que se refere à distribuição de merenda,
planejamento, limpeza, horário, estocagem de material conforme relatadas no documento
citado. O fato de constar na carta de “apresentação dos professores” as suas “atribuições” já
expressa a hierarquia e o comando aos quais passariam a estar vinculados.
Tendo marcado que a transposição da escola das mãos da FUNAI para os professores
indígenas foi um processo extremamente controlado e limitado, retorno às declarações do
professor para podermos entender as ambigüidades presentes na ‘apropriação’ desta
instituição pelos Bakairi, cujo marco inicial, segundo eles, teria sido a mencionada
contratação. Assim, no relato, verificamos que os demais Bakairi não estavam acreditando
que a escola pudesse continuar existindo com professores locais. Afinal, como será notado
em outra entrevista reproduzida mais adiante (página 239), a escola para eles seria ‘coisa de
branco’, ou seja, os ‘brancos’ seriam os ‘donos’ (sodo) desta instituição (sodo é aquele que
controla um determinado recurso: ritual, animal, pessoa, vegetal, geográfico, instrumento
etc). Lembro que durante a minha participação nas atividades escolares sempre vinha alguém
comentar comigo talvez como forma de agradar como era importante ter uma ‘branca’
ajudando na escola, o que leva ao entendimento de que por ser ‘branca’ eu estaria
capacitada para desenvolver tarefas escolares. Por contraste, deduziríamos a idéia de que os
professores indígenas teriam certa dificuldade de aceitação por serem ‘índios’ e não
‘brancos’.
O momento de transição dos ‘professores brancos’ para os ‘professores bakairi’ pode
ser considerado o início do processo de ‘domesticação’ da escola pela população local.
Embora ainda não tivessem total autonomia (para além do discurso) sobre esse ambiente, a
escola começou, com a introdução dos professores indígenas, a ser ‘apropriada’ segundo os
valores e o modo de vida bakairi. Mesmo configurando-se ainda uma tímida investida neste
sentido, se notava, entretanto, uma diferença significativa em relação ao período anterior,
caracterizado pela submissão total ao professor-branco e ao seu ‘regime’ (lembrado
237
principalmente pelos severos castigos, bem como pela proibição da comunicação na sua
língua nativa).
Por outro lado, o período inicial pode ser considerado fundamental no subseqüente
processo de apropriação da escola, por ter configurado o modelo escolar conhecido por todos
e, portanto, tornando-se o ponto de partida para qualquer mudança que a escola viesse a ter.
A meu ver, no entanto, os Bakairi encontraram importantes correlações entre seus métodos
de formação de pessoa-kurâ (vistos no capítulo IV) e o programa educacional dos órgãos
tutores, que deram a base para a assimilação da escola enquanto uma instituição bakairi (em
oposição a uma instituição que anteriormente não era ‘sentida’ como tal). Estou me referindo
principalmente a dois aspectos: a repetição enquanto método de ensino-aprendizagem e as
performances coletivas.
Em relação à primeira, as aulas sempre foram baseadas na técnica do ‘decorar’,
‘copiar’, ‘memorizar’ (o que caracterizava também a maioria das escolas brasileiras da
época). Como vimos, a forma de os Bakairi educarem seus filhos segue o modelo da
repetição e da prática, antes que da explicação, favorecendo assim a assimilação deste
método – apesar da diferença fundamental do contexto da casa para o da escola em termos da
linguagem, hábitos, maneiras, punições, símbolos, tempos etc. Veremos no próximo
capítulo como esta metodologia opera na escola bakairi atual.
Quanto à performance como veículo de comunicação de conhecimentos, temos que o
SPI e a FUNAI se utilizaram da realização de ritos escolares para ‘formar’ os Bakairi nos
moldes relatados anteriormente, de forma particular através das cerimônias cívicas e
patrióticas. Do mesmo modo, as ‘festas’ públicas bakairi, denominadas kado, o altamente
formalizadas e ricas em símbolos de integração. Soma-se a isso que durante o período em
que estiveram submetidos ao regime do SPI, principalmente depois da unificação no Posto
novo, raramente lhes era permitido a realização do kado (exceção feita ao Dia do Índio, mas
mesmo assim em um contexto totalmente controlado pelo SPI), tornando-se, portanto, a
escola a instituição que hoje mais promove a reunião e o encontro dos Bakairi das diversas
parentelas, seja no momento das aulas, seja por ocasião das ‘festas’ escolares.
Devo ressaltar, no entanto, que o modo de apropriação da escola pelos Bakairi não foi
a adaptação, ou seja, a substituição de signos da ‘civilização’ por signos locais, mas acredito
ter sido a ‘captura’ (conforme ficará mais claro no próximo capítulo), em que os signos da
238
‘civilização’ foram mantidos e ainda tornados centrais à escola, doravante bakairi. Dessa
forma, a escola interessa aos Bakairi como representante (e mediadora) de um domínio de
alteridade tomado de forma integral e com o qual devem se familiarizar a fim de garantirem o
acesso aos ‘recursos’, atualmente imprescindíveis ao modo de vida bakairi e à reprodução do
seu parentesco. A argumentação neste sentido deverá ficar mais clara no próximo capítulo,
quando trataremos propriamente das performances escolares, mas desde aponto para uma
analogia entre esta instituição e o kado, ambos voltados para cerimônias públicas de
propiciação de condições da reprodução familiar. A apropriação da escola pelos Bakairi
aconteceu, portanto, de forma a não modificar a principal característica identificada com ela
anteriormente, a saber, a ‘civilização’; ao contrário, é exatamente enquanto veículo de acesso
ao ‘universo dos brancos’ que ela interessa aos Bakairi, da mesma forma que ao kado
interessa a familiarização com os iamyra conforme eles são: ‘donos’ poderosos de vários
recursos dos quais os Bakairi precisam para sobreviver.
3.2. Ampliação das séries escolares
Diante do que foi visto, conseguimos agora compreender o que motivou a
implementação de outro importante marco do atual período de escolarização, a saber, a
ampliação das séries escolares, primeiro de 5
a
a 8
a
série (iniciada em 1997), indo depois até o
Ensino Médio (iniciado em 2003). Em ambos os casos, os esforços foram muitos. Para o
Ensino Médio, por exemplo, eles contavam com dois professores formados em nível de
Ensino Superior, portanto, habilitados para assumirem as aulas, sendo necessárias diversas
reuniões na Área Indígena e em Cuiabá, até que finalmente conseguiram que o Conselho
Estadual de Educação aprovasse a implantação deste segmento, apesar da deficiência de
profissionais habilitados para ele. Na qualidade de professor ficou, inicialmente, além dos
dois Bakairi acima citados, um monitor bilíngüe da FUNAI que freqüenta o Ensino Superior
indígena da UNEMAT.
Se relembrarmos o depoimento da liderança reproduzido no capítulo III, poderemos
melhor entender o que representou para eles a permissão de aumentar o número de séries em
sua própria área.:
239
nós batalhamos pra que nossos filhos não tava indo para a escola, então alguns
foram saindo também para estudar (...) então, ali a gente criou uma força para
que a gente possa instalar o ginásio. Esses meninos que estudou fora se formaram, né.
E então pra nós instalar o ginásio foi muito difícil, porque a escola é do branco,
(H.P., Aldeia Pakuera, março de 2004).
Vemos a afirmação de que a “escola é do branco”, como havíamos nos referido
anteriormente. Todavia, o que penso ser mais interessante para o tema em questão neste
depoimento é a motivação que tiveram os Bakairi
229
para lutar” no sentido de instalarem o
“ginásio” (5
a
a 8
a
séries) na sua escola: que seus filhos não saíssem de suas aldeias para irem
estudar na cidade, ou seja, que continuassem próximos de seus familiares. Assim, da mesma
forma que vínhamos aproximando a escola do kado em relação ao seu caráter de mediadora
entre os Bakairi e os recursos necessários à sua reprodução familiar, podemos dizer que o
movimento em torno da ampliação escolar serviu ao mesmo objetivo: afastar a ameaça
contrária à manutenção e à reprodução da família.
3.3. Escola: espaço da ‘cultura’
O aparecimento da ‘cultura’ entre os Bakairi
Nós fomos resgatar a cultura lá no Rio de Janeiro.
Segundo Luis Otávio Cunha, a FUNAI na cada de 70 começou a se preocupar
com a “realidade cultural do índio”, e para isso contou com o trabalho de antropólogos e
indigenistas “que participaram das equipes responsáveis pelo planejamento, execução e
acompanhamento dos projetos” (1999:74). Entre os Bakairi esta parceria entre antropólogo
e indigenista aconteceu efetivamente, pois naquela época residiram um indigenista como
Chefe de Posto e sua esposa, uma antropóloga.
230
Foi deles que os Bakairi com quem
conversei sobre o assunto dizem ter ouvido pela primeira vez falar em ‘cultura’:
D. Edir, Maria Lucia, socióloga, que ensinou a gente. Quando eu fui fundar o museu
que eu deixei acabar, ela falou essa parte de cultura, né (...) “Ela que ensinou a gente,
229
Todas as pessoas com as quais conversei sobre o assunto davam a mesma justificativa para a necessidade
da ampliação das séries escolares.
230
Estou me referindo a Edir Pina de Barros, que fez sobre os Bakairi suas dissertação de mestrado e tese de
doutorado (Barros, 1977 e 1992).
240
ela que civilizou isso para a gente. Edir tem uma boa leitura, né.” (...) Vocês precisam
aprender ter cultura, não esquecer da cultura de vocês, porque hoje e amanhã vocês
não vão ser civilizados, vocês vão ser índios, vão ter que ter cultura de vocês, a serem
respeitados (G. M., fevereiro de 2004, Aldeia Pakuera).
A idéia sobre cultura e a própria palavra ‘cultura’chegaram, portanto, como um
‘ensinamento’ vindo dos pesquisadores karaiwa (antropóloga, socióloga) na direção da
sociedade bakairi e foi introduzida enquanto uma necessidade (“vocês precisam aprender
ter cultura”) e condição fundamental para “serem índios” e poderem “ser respeitados”
enquanto tal, isto é, um instrumento a ser dominado a fim de que pudessem levar adiante o
processo pela garantia de seus direitos, principalmente à terra e à ‘ajuda’ do governo.
Perceberam que havia um espaço previsto entre os brasileiros para a efetivação da sua
inclusão/existência: a indianidade. Assim, se na época do SPI ser ‘índio’ tinha uma
conotação negativa, como se fosse uma ‘espécie de pessoa’ que necessariamente estaria em
extinção para dar lugar a civilizados, para o nascente movimento de ‘revitalização cultural’
a categoria ‘índio’ passou a ter um sinal positivo, algo com o qual seria bom se identificar,
pois através dela eram esperados muitos benefícios. Esta é a situação em que se encontra
grande parte dos povos indígenas como, por exemplo, os Tukano, estudados por Jean
Jackson:
Tukanoans are learning that if they are to have any power or all, not only must they
understand non-Indian Colombian society, they also must maintain a version of their
tradicional culture that is understandable and acceptable to outsiders, both Indian
and non-indian. Thus, winning the battle for self-determination increasingly involves
acting and speaking with an authority derived from an “Indian way” that
demonstrably draws on traditional Indian culture, but in settings that persistently
attest to the far greater authority of institutions outside Tukanoan society (Jackson,
1995b:305).
Mas como aconteceu de maneira concreta a apropriação dos Bakairi da
‘indianidade’ e ao mesmo tempo do conceito de ‘cultura’? Basicamente, no início, ‘cultura’
apareceu como sinônimo de ritual, danças e cantos que os identificavam como ‘índios
verdadeiros’, através de uma conjuntura histórica que não apenas valorizava o status de
‘índio’, mas forçava-os’ a assumi-lo, sob pena de sofrerem grandes perdas, como explica a
antropóloga que estava envolvida no movimento de ‘valorização da cultura bakairi’:
241
Em 1978, perplexos, os Bakairi tomaram conhecimento do “Projeto de
Emancipação”. Por entenderem que seriam “alvos” prediletos de tal política, por
serem considerados “peões” e “mansos”, decidiram não mais vender a sua força de
trabalho nos estabelecimentos agropecuários. Na Área Indígena Bakairi, retomaram
um ritual denominado Iakuigady, com suas famosas máscaras entalhadas em
madeira, e convidaram autoridades da FUNAI, jornalistas da imprensa falada e
escrita para assistirem a sua apresentação. Os jornalistas se encarregaram de divulgá-
lo em nível regional. Buscavam, dessa forma, afirmar a sua indianidade. Mas não ,
pois o realizaram durante quatro anos consecutivos. No decorrer desse período,
fizeram apresentações nos espaços públicos de Cuiabá, na Semana do Índio(Minc,
1989:09).
Este relato, retirado de uma publicação motivada pelo ‘resgate da cultura bakairi’
denominada Museu-oficina Kuikare abordado em detalhes logo a seguir mostra-nos em
que circunstâncias a idéia de ‘cultura’ chegou para eles. O novo cenário mundial e nacional
referido anteriormente, propício à valorização da diversidade dos povos e, portanto, do que
chamaram de cultura, teve como correspondência em nível local a necessidade de provar
que eram um povo diverso, no caso, ‘índios’, para assim tirarem benefícios dos projetos de
valorização da diversidade. Para tanto, tiveram que aprender segundo que critérios os
karaiwa classificavam ‘índios’ e ‘não-índios’. Entenderam, então, que ter uma ‘cultura’
própria era imprescindível e, ainda, que isso significava fundamentalmente ter ‘rituais
originais’. A ênfase na ‘origem’ justificava-se pelo essencialismo estratégico” dos
movimentos étnicos, baseado em um conceito de ‘cultura’ muito menos neutro e mais
dinâmico do que aquele comumente encontrado na teoria antropológica (Rival, 1997:147).
‘Cultura’, então, surge entre os Bakairi como parte de um movimento político de
conquista de seus direitos enquanto povo diferenciado, que pressupõe o ‘branco’ como
expectador e interlocutor. Desta forma, os rituais que anteriormente tinham um
determinado significado sociocosmológico passaram a agregar outra dimensão: a afirmação
da indianidade. Nos anos seguintes, vários rituais foram ‘revitalizados’, como o sadyry e o
kapa, e eles também passaram a ‘divulgar’ sua ‘cultura’ para a FUNAI e para toda a região.
Pensa-se, então, fazer parte da ‘cultura bakairi’ tudo aquilo que vem da ‘origem’ da
sociedade bakairi, isto é, de um período visto como primordial e imutável vivido por seus
antepassados (Jackson, 1989). Qualquer transformação pela qual os Bakairi tenham passado
quando ainda não conheciam os ‘brancos’ não é levada em conta quando se fala em
‘origem’, ou seja, atualmente o marco divisor usado para definir o que é ‘cultura bakairi’ é
242
o contato com os ‘brancos’: o que se fazia antes dele é considerado ‘cultura’, o que foi
assimilado depois não mais o seria.
No livro editado pela Fundação Pró-Memória (MINC) como divulgação da ‘cultura
bakairi’ pelo Projeto Museu-oficina Kuikare
231
a ‘cultura’ é representada pelos seguintes
aspectos: cultura material (“cerâmica, tecelagem, cestaria, confecção de adornos”), “festas,
técnicas, a medicina, a música, a dança” e “as famílias, os eventos sociais, as atividades
econômicas” (Minc, 1989:13), bem como a “pintura corporal” atividade mais enfatizada
na publicação através de uma variedade de explicações e desenhos. Todavia, dentro do
universo ‘original’ ainda haveria alguns aspectos privilegiados enquanto ‘cultura’,
principalmente aqueles relativos aos rituais, como danças, cantos e pinturas corporais.
Sobre o projeto do Museu-oficina Kuikare temos a descrição feita por Ricardo
Cavalcanti, que mostra como ele foi criado e como funcionava:
Em 1985 a Bakairi Darlene Taukane acompanhou a antropóloga Edir Pina de Barros
numa visita ao Museu do Índio, no Rio de Janeiro, visando realizar um levantamento
de dados para o processo de reincorporação do território da Paxola. Aí tomou contato
com um acervo documental e fotográfico sobre os Bakairi que lhe chamou a atenção,
comentando-o posteriormente com outros da aldeia. Alguns tempos depois, uma
delegação bakairi foi ao Rio para conhecer aqueles registros e o acervo documental
do Museu. Voltando à aldeia, passaram a alimentar a idéia de constituir um espaço
onde se pudesse produzir e tornar visíveis objetos confeccionados a partir de suas
técnicas tradicionais. Sob a liderança de D. Vilinta Taukane (mãe de Darlene) e com
alguma assistência da Fundação Nacional Pró-Memória implantaram em 1989 um
centro de produção, exposição e comercialização de artesanato, que foi denominado
Museu-Oficina-Kuikare. Construído ao lado da casa dos homens, no centro da aldeia,
funcionou como um espaço feminino de encontro, elaboração de peças artesanais e
ensino de técnicas (Cavalcanti, 1999:140).
A mesma antropóloga que introduziu a questão do ‘resgate cultural’ entre eles, em
final da década de 70 também foi responsável pelo citado movimento que se pretendia uma
experiência educacional ‘realmente’ indígena em contraste com a educação escolar
moldada sob a influência ‘externa’ “resultado e instrumento de um processo que
revaloriza a memória e a educação informal” (Minc, 1989:03). Assim, em vez de salas de
231
Projeto que, apesar de aprovado em nome da chamada “comunidade bakairi”, era representado por uma só
família. Como vimos, geralmente o padrão de organização social bakairi é baseado em famílias e não em uma
“comunidade”. Este aspecto também foi, segundo fiquei sabendo, o motivo pelo qual o projeto acabou: os
Bakairi em geral não o consideravam como seu, mas da família descendente do “Capitão Antoninho”,
Kuikare, representado no nome do projeto.
243
aula, construíram na tasera, ao lado do kadoety, uma “casa tradicional bakairi” e, ao invés
de conteúdos escolares do currículo nacional, pretendiam ensinar os chamados “saberes
tradicionais” que seriam repassados dos mais velhos aos mais jovens e, também, no lugar
da escrita, a pintura corporal.
O tema ‘cultura’ foi progressivamente passando a ter lugar na vida bakairi,
constituindo-se definitivamente como uma categoria que se tornaria central em seus
discursos e ações, definida nos seguintes termos: (i) algo de que depende sua existência
enquanto índios; (ii) referente a tudo aquilo que viria de sua origem (“busca de suas raízes”,
Minc, 1989:03); (iii) termo que incluiria danças, músicas, desenhos corporais e cultura
material (“artesanato”).
Ainda dando prosseguimento a esse movimento em torno da ‘cultura’, em 1992
houve a fundação da Associação Kurâ-Bakairi de Resgate Cultural (AKURAB), órgão
existente até hoje e que tem muito prestígio político, sendo seu presidente considerado uma
das principais lideranças bakairi. No relato abaixo (cuja outra parte foi reproduzida no
capítulo III), o primeiro presidente da AKURAB conta sobre o seu surgimento:
Resgate cultural, porque, na época, nos jornais, na imprensa falava que os bakairi era
extinto. Bakairi acabou, não tem mais cultura. Um antropólogo que falou no jornal.
Então a gente viu essas coisas no jornal e falamos “vamos criar associação, e vai ser
de resgate cultural. Porque nós estamos muito longe. Estão discriminando nós. Aí,
criamos associação como resgate cultural. Não sei como que chama o nome dele...
Darci Ribeiro, que divulgou nos jornais: “Bakairi está extinto, acabou bakairi”.
Então, conhecemos o papel, o jornal, falamos “não, nós temos condição de fazer,
então vamos fazer, vamos criar uma associação que é de resgate cultural. Nós vamos
em todo estado que tiver um convite, nós vamos pra divulgar mesmo. Assim que s
criamos a associação.” (...) “Eu vejo que a gente quando tava na direção, a gente
trabalhou, a gente ia onde era convite para cada estado, em grupo. Nós fazia maior
divulgação mesmo e era reconhecido no Brasil, e até no outro mundo também.
Europa também leva essa cultura. E ficou assim, parece que os índios renascem de
novo. Os bakairi renasceram de novo. Eu vejo assim (H.P., ex-presidente da
Associação Kurâ-Bakairi de Resgate Cultural, março de 2004, Aldeia Pakuera).
Novamente, repetindo o que havia ocorrido nos fins da década de 70, os Bakairi
usaram aquilo que aprenderam a chamar de ‘cultura’ para mostrar para os ‘brancos’ que
eles eram ‘índios’, e, assim, poderem desfrutar dos direitos previstos para a população
indígena no Brasil. Mais uma vez aparecem a imprensa e as ‘apresentações culturais’ como
instrumentos que levariam ao conhecimento do ‘branco’ o fato de que os índios bakairi não
244
estão extintos, que continuam existindo ‘como índios’, isto é, preservando danças, cantos e
outras características designadas por esses ‘brancos’ como definidoras do pertencimento à
categoria ‘indígena’, englobadas pelo nome ‘cultura’.
Outra vez ainda aparece um antropólogo como importante personagem do contexto
de afirmação da sua indianidade. Primeiro, a antropóloga que figura no início do
movimento de ‘resgate cultural’ consegue, através de sua autoridade de especialista,
introduzir um conceito – até então circunscrito à área da antropologia: ‘cultura’. A segunda
aparição de um profissional desta categoria acontece anos depois de terem sido
apresentados às noções de ‘cultura’ e ‘indianidade’. Desta vez, tendo assimilado esses
conceitos, os Bakairi ficaram enfurecidos (tewiâsein) ao se verem classificados por Darci
Ribeiro como extintos, e se sentiram no dever de provar que estavam vivos, que existiam
enquanto índios e, para isso, lançaram mão da cultura’ e de sua divulgação.
Vemos novamente a ‘cultura bakairi’ como algo que existe apenas em relação ao
‘branco’. Isto é interessante, visto que explicita uma aparente contradição: por um lado, a
‘cultura’ definida como algo ‘originalmente’, ‘exclusivamente’ bakairi, mas por outro, sua
existência estaria vinculada à sua ‘divulgação’, ‘apresentação’ ao ‘branco’. Entretanto, se
olharmos do ponto de vista do seu ‘funcionamento’ não haveria contradição alguma, pois
eles estão perfeitamente adaptados ao contexto (nacional e internacional) em que, também
a incorporação é feita pelo viés da diversidade.
232
Com efeito, podemos perceber a apropriação da ‘cultura’ como uma
‘transformação’ da forma de obter recursos. Assim, uma flecha que era utilizada
antigamente apenas para caçar ou pescar aparece hoje como artesanato”, mas ainda tem o
mesmo objetivo de capturar recursos (dinheiro, no caso). De forma semelhante, as
cerimônias do kado, que cumpriam a função de manter ou melhorar as circunstâncias
propícias à reprodução de suas vidas através da familiarização com os iamyra, hoje
desempenham o mesmo papel, mas agora como meio de adaptação ao contexto dominado
pelos karaiwa.
232
Voltarei a este tema quando tratar das cerimônias relativas ao âmbito escolar, em particular o Iakuigady
iniciado no Dia do Índio de 2004.
245
Esta idéia foi expressa pelos atuais alunos bakairi, através da relação entre ‘cultura’
e ‘permanência’ nas frases sugeridas para constarem como ‘símbolo’ da escola na pasta
escolar:
“Devemos amar a nossa terra, o nosso rio Pakuera, a nossa dança Iawaisary, pois é com
eles permanecemos vivos.”
Preservando cultura corporal para termos um futuro feliz. E estudar para aprender ter a
vida muito melhor.”
“Vamos preservar nossa cultura e nosso estudo.”
“Estudando e preservando a cultura indígena.”
Muitas etnografias amazônicas têm se deparado com situações semelhantes. Laura
Rival, por exemplo, assim se expressou em relação aos Huorani: se ven obligados a actuar
como “savajes” (exoticamente) para obter los medios materiales para ser civilizados
(Rival, 1996:476). E Bruce Albert, referindo-se aos povos indígenas em geral: “Os povos
indígenas hoje estão em um processo de reconstrução da retórica ambientalista e indigenista
para embasar argumentos políticos e legitimar suas lutas” (Albert, 2002).
Na última década, através dessa política de “divulgação” de sua ‘cultura’, grupos
Bakairi apresentaram-se em vários eventos, tanto internos com a participação de
convidados karaiwa, quanto externos, tendo viajado para vários estados do país e também
para a França. Houve, por exemplo, dois “intercâmbios culturais” com estudantes da cidade
organizados pela FUNAI. O último, acontecido em 30 de julho de 2001, segundo sua
programação, teria acontecido da seguinte forma: inicialmente haveria a apresentação das
danças bakairi (iawaisary; kapa; ekoru; mugaru; akua–akuaninha), após o que os alunos
das escolas de Cuiabá se apresentariam com alguma manifestação de sua ‘cultura’. O
programa previa também, ao final, uma troca de artesanato por camisetas. A ‘cultura’
apareceria nessa oportunidade mais uma vez como algo existente em relação ao karaiwa,
no caso, um ‘intercâmbio’. Dessa forma, dentro do novo contexto de dominação (onde os
karaiwa foram incorporados ao cosmo bakairi passando a controlar parte de seus recursos,
como nos informa a história referida no capítulo VII), traziam com eles um novo
significado, a saber, a afirmação da sua indianidade diante dos não-índios. Assim, no
‘intercâmbio’ os karaiwa aparecem como fonte de um recurso muito valorizado – as roupas
– artefatos, como veremos, representativos da relação Bakairi/karaiwa.
246
Nos últimos anos eu pude presenciar por três vezes ‘apresentações culturais’ bakairi
fora dos seus domínios. A primeira em Bertioga (SP), em 2002, quando foram convidados a
participar, junto com outras etnias, da comemoração do Dia do Índio. Lá, eles
fundamentalmente expuseram seu artesanato” e “desfilaram” em “trajes indígenas” na
arena montada pela prefeitura municipal. Em 2003, participei de um evento em um
município próximo da Área Indígena Bakairi, Planalto da Serra, o qual será descrito mais
adiante. Em 2004, um grupo de homens bakairi exibiu o Iakuigady no Museu do Índio no
Rio de Janeiro, a partir de uma estrutura de ‘apresentação’: o seu líder explicava através de
um microfone o que os demais estavam fazendo durante a sua dança.
Tendo visto em que contexto a ‘cultura’ chegou e foi apropriada pelos Bakairi,
passaremos, a seguir, a tratar da sua entrada na escola.
A cultura chega à escola bakairi
os alunos, os professores também, entenderam o que que era o que que nós
tinha perdido, né. A escola interessa também, que hoje em dia até os professores
sabem dançar, cantar. Na época não tinha essa coisa, os professores não
tinham nada, nada, nada de canto. Então, eu acho que ficou muito divulgado.
Pra mim é, né. Os professores, os alunos próprios cantam também, que eu
vejo (ex-presidente da Associação Kurâ-Bakairi de Resgate Cultural, março de
2004, Aldeia Pakuera).
Até 1996 a idéia de ‘cultura’ não havia sido ainda adotada definitivamente pelas
escolas bakairi, somente alguns poucos professores tinham contato, de forma incipiente,
com a nova proposta de educação escolar diferenciada através de encontros e seminários
em Cuiabá, principalmente no Núcleo de Educação Indígena, ligado à Secretaria Estadual
de Educação de Mato Grosso (Seduc). Um dos encontros mais importantes aconteceu em
1994, em Tangará da Serra (MT), organizado pela Seduc e pela FUNAI, o qual reuniu os
professores indígenas do Centro-Oeste. Alguns professores bakairi com os quais conversei
sobre o assunto me informaram que começaram a conhecer a nova proposta de escola
indígena intercultural. Mas foi somente entre os anos de 1996 e 2000, com o Projeto
Tucum, que eles passaram a ter um contato sistemático com o discurso e a prática do que
247
se pretendia que fosse um novo modelo de escola indígena, o qual tinha a noção de
‘cultura’ como seu princípio maior.
Uma professora bakairi resume assim o que entendeu da proposta do Tucum: “na
tradição, na cultura, na língua indígena que a gente vai continuar, porque agora vai ser o
estudo diferenciado, com currículo diferente”. Outro professor diz que aprendeu com este
projeto que “primeiro nós devemos ensinar o que é da gente. Ensinar a nossa cultura,
ensinar a nossa língua, para num segundo momento a gente aprender o que vem de fora”.
Como também observou Ingrid Weber (2004) a respeito dos Kaxinawá a partir das
opiniões dos professores indígenas, “a escola tem sido o principal agente no processo de
retomada da ‘cultura’” (pág. 110). Processo, segundo ela, também influenciado pelos
“cursos” realizados na cidade, de onde as pessoas “voltam para a aldeia empenhadas no
‘resgate da cultura’” (pág. 106).
O Tucum foi um projeto do Governo do Estado de Mato Grosso com a participação
de Organizações Não-Governamentais, Universidades e Prefeituras, estruturado em módulos
de ensino. Foram, ao todo, oito etapas intensivas de 4 a 5 semanas. Havia também as
chamadas etapas intermediárias, durante as quais os alunos deveriam realizar trabalhos na
sua própria aldeia com a assessoria de monitores. Os cursistas ainda tiveram que fazer
estágio supervisionado e, no final do curso, uma monografia, fruto geralmente de uma
‘pesquisa’ realizada sobre sua própria ‘cultura’ (Barros, 1997).
O grupo de alunos bakairi era composto pelos professores e seus substitutos
(categoria que incluía quem não estava ativo em uma sala de aula, mas que deveria ter
algum vínculo com a escola, geralmente ocupando o lugar dos professores quando estes se
ausentavam). No quadro seguinte (retirado de Taukane, 1999:159), temos um panorama do
grau de escolaridade dos professores ao entrarem no Projeto Tucum, e ainda a informação
sobre as instituições às quais estão vinculados. Perceber-se-á a variação na formação
escolar que entre eles, o que se refletiu efetivamente na capacidade de acompanhamento
das aulas. Enquanto alguns, os mais adiantados, tiveram facilidade de apreender os
conteúdos, outros simplesmente não conseguiam seguir o raciocínio do professor e, muito
menos, fazer exercícios, ainda que do currículo do Ensino Fundamental.
Quadro: grau de escolaridade dos alunos bakairi do Projeto Tucum
248
Aldeia Professor Grau de escolaridade Vínculo empregatício
Paikun 01 4
a
série Município
Kaiahoalo 01* 4
a
série Município
Pakuera 02 1
o
grau FUNAI/Município
01 5ª série Município
01 7
a
série Município
01 4
a
série Município
02 3
o
grau Município
02
2
o
grau Município
Alto Ramalho 01 1
o
grau Município
Sawâpa 01 1
o
grau Município
Aturua 01 4
a
série Federal
01 4
a
série Município
01 1
o
grau Município
Durante o Projeto Tucum, os professores bakairi passaram a entrar mais
sistematicamente em contato com o atual discurso sobre a educação escolar indígena,
pautado nos princípios da especificidade cultural e social, da interculturalidade e do
bilingüismo. A especificidade é definida através da utilização do modo próprio de vida de
cada povo como ponto de partida para seu projeto de educação; a interculturalidade, como a
vontade de se fazer currículos e metodologias escolares que contemplem tanto os conteúdos e
os ‘modos de fazer’ autóctones, quanto os chamados ‘ocidentais’. O bilingüismo aparece
como fundamento dos princípios anteriores, pois com a utilização da língua nativa pensa-se
conseguir contemplar a especificidade e a interculturalidade.
Apesar de muitos dos professores bakairi terem trabalhado para o SIL e assim
conhecerem a proposta de confecção de cartilhas bilíngües, no Projeto Tucum foi-lhes
apresentada uma proposta educacional mais ampla que abrangia não apenas o incentivo à
produção de material didático diferenciado, mas também as metodologias de ensino,
organização escolar (calendário, avaliação etc.) e conteúdos, condizentes, segundo seus
idealizadores, com a sua ‘cultura’. Este projeto chegou, então, com um programa de
educação escolar que iria de encontro à política bakairi de ‘resgate cultural’ iniciada em fins
dos anos 70. A título de ilustração, vejamos como foi definida a sua proposta curricular, nas
palavras de uma de suas professoras:
A proposta é a construção de um currículo intercultural, através de uma abordagem
dinâmica de conteúdos das culturas indígenas e outras, assim como de conhecimentos
universais que interessam às necessidades de continuidade e transformação daqueles
grupos (Barros,1997:10).
249
No Relatório do Projeto Tucum para o MEC é enfatizada a importância da ‘cultura
indígena’ como ponto de partida de seu programa educativo. A ‘cultura’, segundo este
documento: “possibilita a revitalização, dinamização do grupo indígena, como ponto de
partida para o estabelecimento do processo educativo intercultural” (MEC, 2000, item 11).
Terminado o Projeto Tucum, a maioria dos professores bakairi iniciou o 3
o
grau
indígena da Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT). A faculdade indígena
conta com professores de várias etnias do Mato Grosso e de diversos estados do Brasil, e
funciona com estrutura parecida com a do Tucum, com aulas ministradas em módulos
durante o período das férias escolares, janeiro e julho. Os princípios pedagógicos também
são semelhantes, tendo a especificidade, a diversidade cultural, a interculturalidade e o
bilingüismo como seus principais parâmetros.
Foi durante o Projeto Tucum que a escola bakairi começou a sofrer novas
influências e a se modificar. Aquela idéia de ‘cultura’ que havia chegado em fins dos anos
70, encontrou uma instituição à qual iria se vincular definitivamente. Não havia nessa
sociedade outro lugar em que mais se falasse e se buscasse concretizar ‘cultura’. Isto não
quer dizer que de súbito os Bakairi tivessem substituído o modelo de escola ‘oficial’ pelo
da escola diferenciada, mas sim que este último foi assimilado a partir da organização
anterior. O primeiro aspecto a ser adotado foi o do discurso da ‘educação escolar indígena
intercultural diferenciada e bilíngüe’, que passou a ser dominado pelos professores e
utilizado quando de seu interesse, principalmente quando a via da educação ‘padrão’ não
oferecia espaço para realizarem seus projetos. Assim, por exemplo, a justificativa de que
eles eram ‘diferenciados’ possibilitou que ampliassem as suas séries escolares sem
contarem com profissionais ainda devidamente qualificados para tanto.
O discurso da ‘educação diferenciada’ é também apresentado sempre que se
tenciona mostrar os Bakairi como um povo culturalmente distinto, e sua escola como uma
instituição ‘atualizada’ e ‘moderna’ dentro dos padrões de educação indígena sugeridos
pelo MEC, pela Seduc e pelos cursos de formação de professores. Estes perceberam que
dominar tal discurso e saber usá-lo adequadamente é importante para que sejam
reconhecidos como professores indígenas ‘de verdade’, ou seja, aqueles que seguem o
modelo de educação que é pensado pelos programas governamentais como próprio para
populações ‘verdadeiramente’ indígenas. Assim, da mesma forma que as lideranças bakairi
250
tiveram que aprender a difundir sua ‘cultura’ a partir da década de 70, para fazê-los existir
enquanto povo indígena, os professores aprenderam o discurso da ‘educação escolar que
respeita a cultura’ para poderem existir enquanto professores indígenas.
Na prática, entretanto, a escola é estruturada nos moldes não-indígenas, embora
exista um espaço reservado à ‘cultura’ dentro do ‘padrão’ oficial. Esta coexistência de dois
modelos aparentemente diferenciados anula-se, todavia, em face da idéia de ‘cultura’
existente na escola, a mesma que foi assimilada pelos Bakairi no movimento pela sua
‘existência’, a saber, como uma noção externa. Dessa maneira, aquilo que é denominado
cultura refere-se a características da sociedade bakairi anteriores à sua atração pelo SPI e
que foram reprocessadas, a elas sendo agregado um novo significado relacionado com a sua
‘existência’ diante dos karaiwa (como vimos, interlocutores indispensáveis para que a
‘cultura’ exista). Portanto, tanto o modelo ‘cultural’ quanto o ‘oficial’ estão referidos a um
mesmo contexto caracterizado pela ‘inclusão’ dos Bakairi e da sua escola na sociedade
brasileira.
A ‘cultura’ na escola também se refere àqueles fenômenos tidos como ‘originais’,
estando a ‘fonte’ situada, como vimos, no período anterior ao contato com os brancos.
Há um exemplo que demonstra bem esta classificação: durante uma aula no 3
o
grau
indígena foi pedido aos alunos que fizessem um calendário no qual o tempo estivesse
relacionado às suas principais atividades culturais. Um aluno bakairi da Área Santana
sugeriu que se inserissem as ‘festas de santo’, o ritual realizado com mais regularidade
entre os Bakairi. Todos os outros não concordaram, pois a ‘festa de santo’, segundo eles,
não faz parte da ‘cultura’ bakairi. Na escola, no entanto, durante essas festividades, as aulas
são suspensas. Mesmo não sendo consideradas parte da ‘cultura’, sua importância é tão
grande que é impossível manter as atividades escolares nesse período. Devo ressaltar,
porém que, embora não fazendo parte da ‘cultura’, a suspensão das aulas é justificada em
termos da ‘educação indígena diferenciada’ que aos professores bakairi a possibilidade
de terem um calendário específico. Dito de outra maneira, o novo discurso sobre a
educação escolar indígena é utilizado conforme a situação e os interesses do momento.
Assim, no âmbito do 3
o
grau indígena, os alunos bakairi não podem se mostrar
‘aculturados’ expondo a importância da ‘festa de santo’ entre eles, mas quando esta festa
251
acontece e mobiliza toda a sociedade é impossível manter à risca o calendário escolar
oficial.
Outro exemplo da influência dessa ‘nova escola indígena’ na escola bakairi é o
Projeto Político Pedagógico da escola da aldeia Pakuera. Nele, consta que em primeiro
lugar está o ensino da língua materna, cultura, tradição, organização social etc., e somente
depois viriam os conteúdos chamados ‘ocidentais’. Está também previsto um calendário
conforme a realidade local, a adoção de avaliações continuadas e a integração com outros
setores da sociedade bakairi, como os agentes de saúde. Se confrontarmos este ‘projeto’
com a realidade da escola, veremos que a retórica da educação diferenciada funciona
apenas ‘para fora’, pois tanto o calendário como as avaliações e os conteúdos reais seguem,
em sua maior parte, as normas ditadas pelas secretarias de educação.
Além de existir no discurso feito ‘para fora’, a ‘cultura’ também aparece na
escola como ‘matéria’, principalmente nas disciplinas Artes e Língua Materna. As outras
disciplinas têm seus conteúdos pautados nos livros didáticos, havendo pouco espaço para a
introdução de aspectos da ‘cultura bakairi’. Na aula de artes além de conteúdos
aprendidos pelos professores em outros lugares, como ‘copiar’ desenhos do livro, desenhar
(geralmente utilizando régua) ou, para os mais adiantados, algo sobre ‘historia da arte’ os
alunos bakairi aprendem a desenhar as pinturas corporais e as máscaras do ritual Iakuigady,
consideradas símbolos importantes de sua ‘cultura’. A disciplina Língua Materna
233
ao
contrário do que o nome sugere, não versa apenas sobre a língua bakairi. Ela se tornou o
espaço na grade curricular em que é colocado tudo o que se considera referente à ‘cultura’ e
aos ‘povos indígenas’. Assim, os professores desta matéria, além de ensinarem conteúdos
relativos à língua, também passam a seus alunos conhecimentos sobre histórias, mitos,
rituais, danças, cantos e tudo aquilo que se considera ser referente à vida dos Bakairi antes
do contato com os brancos, além de situações que os atingem atualmente enquanto ‘índios’,
como revelam alguns exemplos de questões de uma prova desta matéria: “Ao todo, quantas
terras indígenas existem no Brasil?”; Qual é o maior problema que as terras indígenas
enfrentam atualmente?”.
233
Esta matéria foi inserida na grade curricular das escolas bakairi em 1998, durante a realização do Projeto
Tucum, o qual contava com a parceria das secretarias municipal e estadual de educação, o que concorreu para
tal mudança.
252
Algumas vezes, incentivados pelo conceito de ‘transversalidade’ do currículo
escolar (MEC, 1998c), muito divulgado pelos projetos de formação de professores
indígenas, alguns professores procuravam inserir em suas aulas temas ou métodos
considerados ‘diferenciados’. Geralmente isso acontecia no formato de ‘pesquisa’,
aprendido desde o Projeto Tucum. Presenciei duas atividades nesse contexto. A primeira
quando acompanhei um professor e sua turma à casa de sua avó com o intuito de coletar
informações com essa pessoa considerada uma conhecedora das ‘origens’, ou seja, dos
costumes tidos como ‘verdadeiramente’ bakairi. Em outra situação, quando fui com um
aluno do Ensino dio à casa de sua tia para “pesquisar” sobre as pinturas corporais,
quando ele lhe fez algumas perguntas: “Como aprendeu a pintar?”; “Por quê?”; “Quais são
os principais desenhos?”. Depois disso, ele passou as respostas para um papel e entregou ao
professor. Estava feita a sua pesquisa.
Em suma, a escola bakairi utiliza-se das duas possibilidades de integração que lhes
são apresentadas: seguir o modelo oficial de ensino e ter características que a identifiquem
como instituição diferenciada. Entretanto, paradoxalmente, o primeiro aspecto a faz ‘mais
bakairi’ que o segundo. Será meu objetivo na próxima parte deixar clara esta idéia.
A história recente da escola bakairi caracterizou-se pela sua passagem do controle
dos órgãos indigenistas para os professores indígenas em meio a uma conjuntura mundial
que pedia novas formas de interferência na realidade indígena. Diante dela, houve primeiro
o estabelecimento do convênio da FUNAI com o SIL e a introdução dos princípios do
bilingüismo e da interculturalidade. Depois desse período, iniciou-se progressivamente o
afastamento da FUNAI das atividades relativas à educação escolar. Neste contexto,
aconteceu a contratação dos primeiros professores indígenas, ainda sob o controle desta
instituição e, posteriormente, houve a transferência das responsabilidades neste campo para
as secretarias de estado. É dessa época também que advém a ampliação da escola bakairi
para o Ensino Médio, os cursos de formação de professores e a introdução da ‘cultura’ entre
os Bakairi, mais especificamente em sua escola.
*
253
Neste capítulo tivemos a oportunidade de conhecer a trajetória vivida pela escola
bakairi desde a sua introdução pelo SPI em 1922 até os dias de hoje, passando por um
tempo em que esteve sob a responsabilidade da FUNAI. Ela foi apresentada para os Bakairi
como parte importante do projeto de integração desse povo à sociedade brasileira,
caracterizado principalmente por uma forte ênfase nacionalista e desenvolvimentista que
visava transformá-los tanto em brasileiros como em trabalhadores rurais e, assim, integrá-
los à nação que se pretendia construir não apenas em termos geográficos, mas também de
‘unificação cultural’.
O domínio do SPI e posteriormente da FUNAI nos permite definir alguns aspectos
que se tornaram fundamentais enquanto estratégia de assimilação e, portanto, foco das
maiores atenções nas atividades escolares: (i) o ensino da língua pátria, ao mesmo tempo
em que se pretendia acabar com a local (método depois modificado pela FUNAI, que
passou a incentivar o bilingüismo como forma mais eficiente de transmitir ensinamentos
‘civilizatórios’); (ii) habilitação para o desempenho de cnicas agrícolas, ajudando na
introdução não apenas de novos aprendizados, mas especialmente no de uma outra
disciplina e em um diferente modo de vida (tempos, espaços, atitudes); (iii) reconhecimento
e valorização dos ‘símbolos nacionais’ como os hinos, os heróis e a bandeira, ainda hoje
centrais na inclusão dos Bakairi na sociedade brasileira, utilizando-se para isso de forma
fundamental as performances escolares comemorativas, como o Dia do Índio, o Dia da
Independência etc.; (iv) padrões de comportamento e valores morais incutidos
primordialmente através de uma rigorosa disciplina, a qual introduziu, entre outras coisas,
horários, vestimentas, punições, avaliações de desempenho e material de controle, como
registros, mapas, diários etc.
Todos esses aspectos foram introjetados pelos Bakairi a partir da
necessidade/vontade de serem aceitos pelo novo meio do qual passaram a ser dependentes.
Sobretudo, eles ‘aprenderam’ que sua ‘aceitação’ dependeria de seguirem o comportamento
considerado correto por aqueles que ditavam a ordem (no regime do SPI, quem fugisse a
ela era punido severamente ou enviado para morar em outros postos indígenas da região). A
‘aceitação’ de que falo é ilustrada pelo relato do aluno do internato, que teve a princípio
muito medo de não ser incluído (“O que será que as pessoas estão pensando de mim?”),
mas depois resolveu “provar pra eles que (eu) era capaz”, conseguindo ficar entre os
254
“melhores alunos”, ou seja, determinou-se a assimilar o comportamento valorizado naquele
lugar empenhando-se em aprendê-lo (“Eu me esforço para conseguir essas coisas”), e
passou a ser ‘aceito’. Entretanto, se olharmos o processo globalmente, veremos quantos
valores e hábitos acabaram por se transformar no processo.
Assim teria acontecido, em maior ou menor grau, com todos os Bakairi. Todavia,
esse processo ocorreu a partir do desejo de manutenção do valor mais caro aos Bakairi: o
bem-estar da família (absoluto e também relativo [ao das outras famílias]). Apesar de todas
as transformações ocorridas, a família continua sendo a causa última de todos os esforços:
cuidar, reproduzir, alimentar os seus. Como vimos até agora, a formação de um kurâ é
direcionada para a aquisição de habilidades e de comportamentos que visam à reprodução
do parentesco bakairi.
O SPI e a FUNAI utilizaram-se, porém, de meios diferentes para atingir o objetivo
da civilização dos indígenas. O primeiro adotando o modelo do confinamento do Posto
indígena; a segunda ‘abrindo-se’ para novos contextos e espaços através dos convênios que
possibilitaram tanto a saída dos jovens bakairi para se formarem (civilizar) em meio aos
‘brancos’ (colégio agrícola), quanto aquele feito com o SIL no sentido de coordenar a
educação bilíngüe e intercultural, como forma de melhor atingir seus objetivos
integracionistas.
A escola da FUNAI, portanto, representou ao mesmo tempo a continuação do
modelo do SPI e a sua ruptura. A primeira diz respeito ao prosseguimento da postura
autoritária e do projeto de assimilação; a segunda teria ocorrido em função das mudanças
no contexto internacional, cada vez mais permeado de uma ideologia em defesa das
especificidades culturais.
Dessa forma, o convênio com o colégio agrícola teria funcionado como uma
alternativa à continuação da formação dos alunos bakairi, sem que por isso fosse necessário
manter (e ampliar) a estrutura (ultrapassada) do Posto indígena conforme idealizada pelo
SPI. Além disso, a escola em regime de internato cumpria a função de disciplinar os alunos
indígenas, intensificando sua formação como ‘civilizados’. Esse período passado no colégio
agrícola teria sido fundamental para a formação dos futuros professores bakairi (categoria
instaurada a partir de 1982), os quais levariam adiante e multiplicariam o que aprenderam e
introjetaram durante os anos em que estiveram, principalmente no que diz respeito ao
255
modelo de instituição de ensino (atividades, comportamentos, disciplina, conteúdos,
organização). Esses conhecimentos aliados à semelhança entre o período de reclusão no
internato e aquele em que os jovens bakairi se formam para a vida adulta enquanto wanky,
caracterizado por isolamento, dieta específica, privações, provações – ajudaram os alunos a
voltarem para as suas aldeias e a assumirem um novo papel social: professores indígenas.
o convênio com o SIL foi a alternativa encontrada pela FUNAI para se atualizar
por meio da implantação dos princípios do bilingüismo e da interculturalidade na escola,
mas dando continuidade ao seu programa de integração.
234
O trabalho do SIL na escola
bakairi refletiu-se principalmente na confecção de cartilhas bilíngües das quais constavam
geralmente histórias contadas pelos próprios bakairi. Hoje, apesar da forte oposição feita ao
SIL pelos representantes dos novos programas de ‘educação escolar indígena intercultural,
bilíngüe e específica’, estes autodefinem seu trabalho como voltado para a autonomia
indígena e, portanto, contrário àquele com finalidade de conversão religiosa (na visão dos
Bakairi não haveria, na prática, muitas diferenças entre eles). Este é um fato comprovado
pelo uso do material do SIL como recurso didático nas aulas de língua materna, uma forma
de seguir os ensinamentos de valorização da cultura aprendidos com os recentes projetos de
formação de professores: Projeto Tucum (em nível de Ensino Médio, promovido pela
Secretaria de Educação de Mato Grosso, entre 1996 e 2000) e o Ensino Superior indígena
da UNEMAT, iniciado posteriormente.
Estes programas de qualificação de professores indígenas iniciaram-se entre os
Bakairi quando o SIL ainda estava ativo em suas atividades, as quais foram se restringindo
progressivamente a apenas uma única aldeia/parentela, moradores de Paikun, e à tradução
da bíblia para a língua bakairi. Seu objetivo primeiro seria a formação e a regularização da
situação profissional dos professores indígenas, categoria surgida entre os Bakairi em 1982
por proposta da FUNAI. A expansão progressiva das séries escolares até o Ensino Médio
também veio no bojo da possibilidade de se constituir uma escola diferenciada, isto é,
contando apenas com os recursos humanos e materiais disponíveis no local.
O movimento de resgate cultural iniciado em final da década de 70 convergia com
este projeto intercultural de escola, ajudando a reafirmá-la como principal espaço de
234
A escola SPI havia convivido com outro grupo missionário (South American Indian Mission), o qual se
mantinha à parte de suas atividades, atuando apenas de modo paralelo.
256
valorização da chamada ‘cultura bakairi’, categoria que incluiria o que Laura Rival chamou
de “tradições culturais folclorizadas”, fruto da descontextualização das atividades e do seu
ensinamento “como se fossem narrativas do passado”: Because school knowledge is by
definition de-contextualised, the cultural knowledge that formal education offers is “school
knowledge” as much as the maths learnt in school is “school maths” (Rival, 1997: 142).
Esta introdução da cultura na escola ou o inverso, da escola na cultura não
representou, todavia, o abandono do modelo de escola aprendido com o SPI e a FUNAI. De
fato, o processo de apropriação da escola pelos Bakairi, iniciado com a contratação de
professores indígenas e continuado com o progressivo domínio destes sobre os recursos da
instituição, tem características bastante peculiares. Em primeiro lugar, devido ao modo com
que ela foi ‘domesticada’: mantendo-se os signos de civilização representados pelo modelo
oficial de escola, porém colocados em função da forma específica de organização social
bakairi, na qual se destaca como valor máximo a família. Neste sentido, é extremamente
pertinente para os Bakairi o comentário de Peter Gow sobre situação semelhante entre os
Piro do Peru: For native people, both the school and the Comunidad Nativa have their
origins outside of native social relations, but they have been made central to the
contemporary communities of native people. In both cases, these novel instituitions function
to defend kinship to sustain an ideal of the community as a place in which kinship is
created and sustained (Gow, 1991:203).
A escola, portanto, importa aos Bakairi enquanto instituição oficial brasileira.
Apenas dessa forma ela se mostra interessante aos seus objetivos de captura de recursos
externos (neste caso específico, tendo como ‘dono’ os karaiwa), representados, sobretudo,
pelo conjunto emprego/dinheiro/bens manufaturados indispensáveis, no contexto atual, ao
bem-estar familiar.
Nessa apropriação, apesar da manutenção do modo que caracterizaria (segundo a
experiência bakairi) uma ‘escola formal’, podemos dizer que houve um processo de
enfraquecimento da ênfase autoritária e violenta que caracterizou o regime escolar do SPI e
da FUNAI, e uma adaptação aos ideais bakairi de passividade e boa convivência pública.
As regras disciplinares, por exemplo, teriam sido mantidas enquanto parte importante da
‘pedagogia da civilização’, mas de forma menos rígida e agressiva. A própria passagem da
inclusão na hierarquia militar do tempo dos ‘capitães bakairi’ para a atual como
257
funcionários prevê um afrouxamento disciplinar, apesar da manutenção dos valores de
civilização, inclusão, patriotismo e desenvolvimento. Neste sentido, as atividades
patrióticas também se transformaram de imposições e obrigações para momentos
valorizados por alunos e professores, como situações especiais de integração à sociedade
brasileira.
Ainda outra característica do processo de domesticação da escola nos termos
bakairi que merece destaque. Refiro-me às semelhanças entre os processos de formação
previstos pela ‘educação bakairi’ e aquele da escola civilizatória. Uma delas refere-se à
maior importância dada no aprendizado ao contexto do que às atividades propriamente
didáticas, o que aparece tanto na educação doméstica bakairi quanto na escola oficial do
Posto. A outra seria que em ambos os casos um foco na cópia e na repetição como
método de aprendizado. Uma e outra prevêem a realização de cerimônias coletivas
propiciatórias de fartura e recursos. No caso do kado, relativas a produtos provenientes da
pesca e da agricultura, e no caso da educação escolar, visando conseguir os meios de acesso
a recursos dos karaiwa com a realização das ‘performances da civilização’, através do
sistema emprego/dinheiro/bens manufaturados.
Os temas aqui mostrados a partir do surgimento, entre os Bakairi, da escola
cerimônias públicas e patrióticas, disciplina, conhecimentos externos, reprodução familiar,
civilização, cultura, professores indígenas serão retomados no próximo capítulo, no qual
espero poder mostrar, a partir da dinâmica da realidade atual, como vem sendo vivenciada a
educação escolar pelos Bakairi dentro de suas aldeias.
258
Capítulo VII
A escola bakairi: rituais de civilização e cultura
1. Escola/kado: iamyra, karaiwa e parentesco
Os processos de formação de um kurâ, hoje, estão definitivamente conectados à
educação escolar. Vimos no capítulo anterior como a escola chegou aos Bakairi através de
um contexto caracterizado pela política de integração dos índios à ‘sociedade brasileira’.
Para tanto, foram usadas várias estratégias, primeiro sob o comando do SPI, depois no
'regime da Funai', enfocando a formação de patriotas e trabalhadores. Abordei, também, as
mudanças ocorridas nas últimas décadas no que concerne o tratamento das ‘populações
minoritárias’ e suas conseqüências para os projetos de educação escolar. Falei, neste
sentido, dos rumos do discurso em torno da ‘autonomia’ dos povos indígenas, que, ao
mesmo tempo em que desonera o Estado de parte de seus deveres, ajuda a passar a idéia de
conformação de sua política ao novo padrão mundial caracterizado pelo ‘respeito à
diversidade’, expresso no campo da educação escolar pelos princípios da interculturalidade,
da especificidade, do diferenciado, do bilingüismo.
259
Até então, estava privilegiando o enfoque da construção da escola entre os Bakairi
através da ótica das políticas elaboradas para eles. Percebemos que a educação
desenvolvida pelo SPI e pela Funai deixava pouca margem para uma ‘apropriação’ da
escola nos termos dos Bakairi. Entretanto, ainda sob a Funai, foi dada uma primeira e
tímida abertura para a formação de uma ‘escola bakairi’, ou seja, uma instituição
atravessada por valores e padrões próprios. Refiro-me à citada contratação dos professores
indígenas, que, embora tivessem muitas limitações em sua autonomia, começaram a
conformar uma escola particularmente bakairi. Esse processo se intensificou pela absorção
de novos professores e pelo aparecimento de cursos de formação, fundamentados, em seus
discursos programáticos, na autonomia e na diversidade cultural.
Neste capítulo veremos sob que forma e modelo a escola foi absorvida pelos
Bakairi. Primeiramente, argumentarei a favor da associação entre escola e kado (cerimônias
coletivas), central na compreensão do espaço que ela ocupa atualmente. Veremos que para
isso concorreu a exploração de algumas semelhanças entre as duas instituições, bem como a
influência do ‘regime’ do SPI - que ao mesmo tempo em que proibia o kado, introduzia a
escola como espaço de destaque na vida pública bakairi (não apenas envolvendo as
crianças, mas toda a população, nas várias cerimônias realizadas com periodicidade
previsível, como o Dia do Índio, a distribuição de ‘brindes’ etc).
Ainda em relação aos modos de formação do kurâ (pessoa bakairi), além de
analogias com o kado, verificaremos que podemos fazer associações entre escola e
educação doméstica bakairi, e também, entre a escola e o processo de reclusão
característico das ‘iniciações’. Neste sentido, notaremos a proximidade do método das aulas
e do aprendizado familiar, pautados, ambos, na participação e na repetição. Igualmente,
observaremos que a escola se aproxima em alguns aspectos da reclusão (conforme
acontecia com os rapazes antes do período da ‘atração’ pelo SPI), pelo seu caráter de
formadora de ‘pessoas adultas’ e pelo fato dos jovens passarem grande parte do tempo
neste espaço público.
Antes de tudo, para compreendermos a apropriação da escola devemos entender o
que os Bakairi chamam de civilização, o objetivo maior da existência dessa instituição: ter
escola para tornar-se civilizado no futuro; ter escola para sentir-se civilizado no presente. A
este tópico dedicarei, então, uma seção da parte inicial deste capítulo, para, em seguida,
260
abordar o funcionamento da escola. Ver-se-à que as atividades escolares se caracterizam
por um grande esforço em seguir o formato da ‘escola oficial’, porém, com objetivos e
formas de relação tipicamente bakairi, sobretudo no que diz respeito ao cotidiano das aulas,
todavia. Ao observar o outro tipo de atividades alocada na escola, aquelas realizadas ‘extra-
classe’, notaremos que, além da civilização, existe hoje uma novo caminho possível de
integração, a 'cultura'. As apresentações e as festas caracterizam-se pela presença tanto de
fortes símbolos patrióticos quanto de danças, cerimônias e trajes ‘tradicionais’, submetidos,
ambos, a organização disciplinar escolar.
Nesse sentido, pretendo demonstrar que a escola bakairi foi apropriada como espaço
prioritário de civilização e cultura, enquanto meios de integração à sociedade brasileira.
Todavia, curiosamente, é ao querer integrar-se e civilizar-se, adotando a forma oficial de
escola, que os Bakairi se mostram ciosos de seu modo de vida, fundado sobretudo na
proteção e reprodução do parentesco. Pois, como o kado, a escola é um modo (recente) de
familiarizar-se com o ‘outro’ enquanto forma de prover recursos indispensáveis à
sobrevivência física e social. Além disso, a pedagogia escolar, sob a aparência dos métodos
‘oficiais’, baseia-se em formas próprias bakairi de aprendizado, como a
observação/cópia/participação (capítulo IV) e também em atos performáticos e ritualizados,
que permeiam não só as festas e as apresentações como os comportamentos cotidianos.
1.1. Apropriação da escola: recursos externos e reprodução familiar
Passadas duas décadas desse movimento de apropriação da escola, em grande parte
graças aos seus professores, podemos compreender em que moldes e sobre que bases os
Bakairi transformaram uma instituição tida como emblema de sua submissão (expressa em
suas próprias lembranças da forte disciplina, dos castigos, da autoridade do professor, da
proibição do uso da língua materna) em um espaço de auto-defesa e auto-afirmação. Se
quisermos utilizar o idioma da predação para falar da escola, os Bakairi passaram de
capturados/presas a captores/predadores, sabendo entretanto que essas posições são sempre
relativas e mutáveis, como adverte Aparecida Vilaça a respeito da relação dos Wari’ com
os outros (inimigos e animais): “uma presa legítima é aquela que também é predador, e daí
261
que os animais preferidos dos Wari’ como presas são justamente aqueles que podem predá-
los (simbolicamente)” (Vilaça, 1996: 136).
235
É interessante perceber que a ‘libertação’ se fez com os mesmos meios da
‘dominação’, ou melhor, só houve possibilidade da primeira através da familiarização com
a segunda. Dito em outras palavras, a ‘civilização’, signo máximo do regime’ do SPI e de
sua escola, ao ser incorporada pelos Bakairi, se transformou de instrumento de aniquilação
em instrumento de reprodução social.
Ao se apropriar da sua escola, os Bakairi foram ‘enfraquecendo’ os aspectos
incompatíveis com os seus valores - como os severos castigos corporais e a proibição de
falar na ngua materna e enfatizando os aspectos que apresentavam correlações com sua
forma preferencial de vida. O modelo da transformação não é, entretanto, o da ‘adaptação’,
pregada pela ‘nova educação escolar indígena’, que, em outro trabalho, ilustrei através do
exemplo da substituição nos livros didáticos da imagem do tubarão (animal desconhecido)
pela de um peixe pintado” (Collet 2001). O modelo de transformação é o da captura: é
importante manter as características do ‘outro’ como forma de domesticação. Veremos a
seguir como, ao manter o padrão da escola ‘oficial’ (não diferenciada), os Bakairi dão a sua
imagem a uma instituição educacional exógena.
A incorporação da escola é, portanto, resultado de um processo histórico onde se
estabelece uma relação entre as características intrínsecas a esta instituição e os princípios
fundamentais da cosmologia bakairi, de modo a formar o que pode ser chamada hoje de
‘escola bakairi’. Neste sentido, penso que existem alguns aspectos da escola que teriam
sugerido aos Bakairi o espaço social que lhe seria destinado. A saber, (i) origem externa,
relacionada ao mundo dos karaiwa; (ii) caráter de espaço socializador; (iii) potencialidade
enquanto meio de conquistar “um futuro melhor” a partir das condições dadas por uma
nova conjuntura histórica; (iv) lócus de conhecimentos e de códigos a serem dominados
235
A utilização das categorias ‘presa’ e ‘predador’, ‘captura’ é inspirada nos trabalhos da vertente da
etnologia amazônica chamada por Eduardo Viveiros de Castro de “economia simbólica da alteridade”
(Viveiros de Castro, 2002: 163), e mais especificamente de economia simbólica da predação” (Viveiros de
Castro, 2002: 335). Conforme já notamos ao tratar do kado (cerimônias coletivas) e ficará ainda mais claro na
abordagem da escola, os Bakairi podem ser enquadrados entre as sociedades amazônicas que teriam a sua
reprodução social atrelada a “predação ontológica do exterior”(Viveiros de Castro, 2002: 283). De forma
sucinta eu diria que o kado e também a escola seriam formas dos Bakairi se familiarizar (outro conceito
importante) com o ‘outro’ a fim de capturar recursos e potencialidades imprescindíveis à sua reprodução
social. Neste sentido ver também Fausto (1997, 2002) e Vilaça (1992, 1996).
262
como fonte de poder e de status; (v) a instrumentalização da escola, operada pelo SPI e
demais órgãos do Estado brasileiro, como espaço voltado para rituais cívicos e patrióticos.
Por todas estas características, a escola, como tentarei demonstrar, foi apropriada
pelos Bakairi enquanto uma instituição análoga ao universo dos rituais coletivos, kado.
Com efeito, teriam concorrido para este fato não apenas as características listadas acima,
como também o fato de que, sob o domínio do SPI, por décadas, houve uma redução
significativa das atividades relativas ao kado, e, concomitantemente, uma intensificação
daquelas realizadas no ambiente escolar. Os Bakairi foram, de certa forma, ‘forçados’ a ver
a escola como o único espaço público possível, até que retomassem o kado e também suas
reuniões políticas, eventos que dão vida à praça central da aldeia, a tasera.
Há, uma gama de aspectos da vida social bakairi que permitiram a continuidade da
escola como importante espaço de socialização, como o fato dela ser uma instituição
mediadora (com o mundo dos karaiwa) e, portanto, potencialmente, um espaço de
cerimônias que abarcariam a totalidade das parentelas. Os rituais do kado realizados na
tasera, por exemplo, são caracterizados tanto pelo seu aspecto coletivo, quanto pela
comunicação que é feita com os iamyra, ‘donos’ do domínio espiritual localizado no fundo
dos rios. Ainda, na ‘palhoça central’ são realizadas reuniões onde os temas mais freqüentes
versam sobre a relação com os karaiwa e as possibilidades de incorporação de vantagens
relativas a ‘projetos’ (através da Funai, governo de Mato Grosso, etc), questões relativas à
saúde indígena, etc., e também os bailes, onde se dança, à moda regional, músicas de
sucesso. O futebol é outra aquisição do ‘mundo do branco’ bastante valorizada, despertando
interesse não somente nos rapazes, como também na ‘platéia’ formada por pessoas de todas
as idades, sexos e de todas as famílias.
Esses espaços sociais têm em comum, portanto, o fato de além de não
pertencerem a nenhuma família em particular existirem sob signos e práticas relativas a
um mundo outro’. No caso do kado, o ‘outro’ diz respeito aos espíritos, em todos os
restantes o ‘outro’ é o karaiwa, ‘donos’ do futebol, da política, dos santos, do baile, e por
suposto, da escola. Pode-se afirmar, portanto, que seria próprio dos Bakairi recorrerem a
mediações de ‘outros mundos’ para poderem realizar suas atividades supra-familiares. E,
nesse sentido, a noção de ‘dono’ (sodo), como vista no capítulo V, é fundamental para a
conformação de um ritual coletivo, ou seja, não há kado, nem máscara, nem espaço
263
culturalmente relevante, nem recurso natural sem sodo. Os karaiwa, portanto, podem ser
considerados sodo da escola como os iamyra são do domínio do fundo dos rios.
Verificaremos mais adiante ainda se, paralelamente, podemos conceber o coordenador e
também os professores da escola como sodo.
A fim de exemplificar a relação integração coletiva / interação com ‘outro’, gostaria
de retornar à questão da ‘doença’ (tâzewânu) que, como vimos, tem causas relativas ao
contato com conhecidos domínios de alteridade: dos iamyra, no caso da “doença de índio”,
e dos karaiwa, no caso da “doença de branco”. Neste sentido, podemos dizer que a não-
doença (tawânepa) é sempre resultado da união, seja entre egadopyry (alma) e sodo
(corpo), entre indivíduos e seus familiares, ou ainda, de toda a coletividade, como no caso
das festas de santo e, também, indiretamente, do kado
236
. Assim, podemos dizer que ter
saúde (tawânepa) ou ‘estar bem’ (koenda wawyly), está sempre diretamente relacionado a
integração entre duas dimensões diferentes: egadopyry/sodo; kurâ/ypemugo; kurâ/espírito;
e, porque não dizer, kurâ-bakairi/karaiwa.
ainda uma dobradiça interligando o universo do kado/iamyra ao da
escola/karaiwa que passa pela eficácia de suas performances em prover os Bakairi dos
recursos e bens indispensáveis a sua reprodução familiar. Para que possamos entender esta
relação, retorno à narrativa bakairi, contada no capítulo V (página 160), sobre como
surgiram as privações, os iamyra e, conseqüentemente, o kado, que pode ser resumida da
seguinte forma: os “fuxicos” (una iwyku) despertaram a raiva de Kwamoty, tendo como
conseqüência: (i) a separação definitiva dos dois mundos, um se localizando no “céu” e o
outro na “terra”; (ii) a instauração da morte e dos mortos entre eles; e (iii) o fim da fartura
permanente. Criando uma realidade caracterizada pela existência de novas dimensões de
alteridade (o mundo distante do “céu” e os iamyra), a partir daí os Bakairi tiveram que criar
meios de contato com ela, pois, apesar de sua distância, os iamyra passaram a ter poder
sobre os humanos residentes na “terra”. Desta relação dependeria, desde então, a sua
sobrevivência física, não mais garantida como outrora, quando não tinham que se preocupar
236
O kado também é sobre saúde/doença, não apenas no sentido mais direto relacionado ao poder que os
iamyra têm sobre a vida e a saúde das pessoas, como também, indiretamente, ao ter como objetivo afastar as
carências de diversas espécies (chuva, alimento, saúde), as quais estão relacionadas a um estado de fraqueza
que propicia que os iamyra levem o egadopyry da pessoa. É através dos rituais do kado que os Bakairi visam
controlar as influências externas, fontes de doença, miséria e morte. Com a realização destas cerimônias, eles
conseguem manter a conjunção entre individuo e sociedade e, também, a comunicação com o exterior.
264
com questões como a fartura e a saúde. Assim, iniciaram-se os rituais chamados kado,
cerimônias coletivas através das quais os Bakairi conseguem fazer contato com estes
domínios distantes, buscando trazer para si novamente a ordem e a segurança que reinavam
nos primórdios.
A narrativa refere-se a um momento de ruptura na ordem social dos Bakairi, quando
o universo conhecido assume a forma atual de dois mundos separados entre si. E é criado
um novo domínio de seres ‘outros’: os iamyra. Há, entretanto, uma narrativa localizada em
uma época mais recente que diz respeito a um novo desdobramento do universo bakairi.
Estou me referindo àquela que fala dos acontecimentos que fizeram com que fosse deixado
para trás um tempo reconhecido como original, quando tudo o que hoje é chamado de
‘cultura’ fazia parte de suas vidas, e, dizem eles, quando se alimentavam apenas de
mandioca, de animais caçados e dos produtos da pesca, quando viviam em ‘ocas’, andavam
nus e faziam o kado ‘verdadeiro’. Um momento que estaria fora do tempo, como nos mitos,
ou seja, onde não haveria espaço para processos e transformações. As personagens
principais desta narrativa - contada hoje tanto oralmente quanto através de livros e teses
(ver revisão bibliográfica) - são Karl Von den Steinen, Capitão Antoninho Kuikare e o
Marechal Rondon. Steinen foi a primeira pessoa a registrar por escrito, com bastante
pormenores, o modo de vida bakairi, além de sua expedição ser reconhecida como um
marco tanto no reatamento do contato entre os Bakairi orientais e ocidentais (fato que
facilitou a atração da totalidade deste povo), quanto pela introdução de utensílios como
machados de ferro e anzois. Antoninho principiou sua trajetória de ‘herói’ por ter
acompanhado Steinen como seu guia e informante, o que o introduziu na historia bakairi
como importante mediador com os agentes do estado brasileiro. Finalmente, Rondon foi o
símbolo do SPI e de sua política de integração, responsabilizado por grande parte dos
acontecimentos que fizeram com que os Bakairi passassem a viver em uma nova época,
deixando no passado, através da distância temporal e espacial, os xinguanos.
É esta é a historia que os Bakairi contam
237
sobre como deixaram para trás o tempo
da vida ‘primitiva’ e instauraram o mundo atual, caracterizado pela civilização
238
. Assim,
237
A versão da história bakairi registrada nos livros coincide com o discurso oral sobre a chegada dos brancos
e a posterior fundação do posto indígena. De fato, afora aquelas narrativas em que os personagens originais
são substituídos por ‘brancos’ (ver página 189), não obtive nenhuma informação sobre a existência de
histórias bakairi sobre o período inicial do ‘contato’, como existem em outros povos (sobre os Kuikuro ver
265
da mesma forma que no mito reproduzido anteriormente, houve um momento em que o
universo existente se desdobrou, dando origem a um outro domínio de alteridade, relativo
aos iamyra, e também a uma vida de incertezas quanto a sua sobrevivência, no segundo
mito houve uma outra duplicação – desta vez por adição, não por divisão como o primeiro,
da qual se originou o mundo dos karaiwa e novas incertezas e dificuldades para sua
reprodução física e social.
Da mesma maneira como as cerimônias do kado foram obtidas do mundo dos
mortos (criado no primeiro mito), como forma de poder se relacionar com eles, através do
domínio de seus códigos e objetivando trazer para si fartura e saúde, também uma
instituição, assimilada do mundo dos karaiwa surgido com o segundo mito – cuja
existência serve para, através ainda do domínio de seus códigos, poder com ele se
relacionar, trazendo fartura nos tempos atuais: a escola. Em relação a este ponto destaco a
importância do acesso a tecnologias, bem como às performances, como forma encontrada
para operar a familiarização com o ‘outro’ poderoso, a fim de alcançar os recursos
necessários a sua reprodução familiar.
Assim, no kado são utilizados roupas, objetos, músicas, danças e comportamentos
que evocam o modo de vida dos seres sub-aquáticos responsáveis pela provisão das
condições para aquisição do alimento, como por exemplo as pinturas corporais inspiradas
nas características de peixes, as máscaras Iakuigady que também os evoca, e a dança do
kapa, que, como vimos, teria sido aprendida com os habitantes dos rios. Da mesma forma,
faz parte da escola toda uma coleção de objetos, hábitos, cuidados com o corpo, e outras
atitudes performáticas referentes ao chamado ‘mundo civilizado’.
Franchetto,1992; sobre os Wari’ ver Vilaça, 1996). Atesta também esta situação o fato dos professores
recorrerem aos livros como fonte para as aulas sobre ‘história bakairi’. Entre outros fatores que ignoro, penso
que concorre para este fato tanto a fetichização da escrita como o status de legitimidade dado ao documento
escrito (como poderemos observar mais adiante).
238
Os detalhes dessa historia podem ser encontrados na introdução e capítulo VI onde, respectivamente,
narro a expedição de Steinen e o contexto do surgimento da figura do “Capitão Antoninho” e o período do
SPI, simbolizado pela figura de Rondon. No capítulo VI refiro-me ao episodio em que o Imperador substituiu
o herói mítico Keri. A propósito, existe uma versão da historia da “troca do céu pela terra” no livro de Steinen
(1940: 481) que atribui a Keri a autoria da separação entre os “mundos”. Dessa forma, podemos imaginar
outro contexto em que Keri e o Imperador poderiam ser identificados, e não estaria fugindo do modo de ver as
coisas bakairi se fizer a hipótese de que o Imperador, dessa vez através de seus representantes Steinen e
Capitão Antoninho – voltasse a aparecer novamente em um “mito de origem”.
266
Mas por que o papel de mediação, com o objetivo de garantir alimentos, faz com
que tanto o kado quanto a escola ganhem lugar de destaque na vida social bakairi? A
resposta imediata é obvia: sem alimento não há vida. Entretanto, tendo acompanhado
alguns períodos de luto e ouvido algumas conversas sobre as pessoas que morreram,
percebi que o sentimento que impera, antes da pena (kaykâ) pela perda da vida, é a saudade
(kâinwynedyly). Fato que me faz pensar que a evitação da morte seja antes de tudo o medo
da distância intransponível entre os parentes. Estou querendo dizer que, no meu entender,
faz-se o kado e vai-se à escola pelo mesmo motivo: para a manutenção e a reprodução do
parentesco. Ainda, a fartura que se espera por seu intermédio, não será apenas utilizada
para a alimentação familiar - certamente um importante ponto da relação de parentesco -
mas também para doar (xuduly), trocar, ou seja, poder ser generoso, outra expressão
fundamental da ligação entre parentes.
Esta relação entre escola e reprodução do parentesco é expressa pelos Bakairi no
discurso que aponta a freqüência à escola como necessária para “ser alguém no futuro”,
através da aquisição de características e hábitos identificados como ‘civilizados’. Uma
demonstração disso foi um concurso de frases para constar nas pastas escolares que os
professores estavam pleiteando junto à Funai. A palavra ‘futuro’ foi das mais freqüentes e
em destaque:
“Preservando a cultura, pensando no futuro”;
Futuro é o melhor, siga em frente”;
“Somos jovens e está em nossas mãos o nosso futuro e o futuro do mundo. Estudamos não
apenas para tirar boas notas, mas, principalmente, para mostrarmos que seremos
intelectuais que lutarão pela preservação da vida e da cultura.”
“O futuro começa aqui” (menção a uma ‘chamada da televisão’);
“Escola é porta para o futuro”;
“Estudo de vida para melhor o futuro”;
Outros alunos ainda sugeriram outras frases, que mesmo sem utilizar este termo,
apontariam para a mesma idéia:
“Enfrentar o difícil e conquistar o objetivo. Nosso sonho...”
267
“Na escola que aprendemos muitas coisas, e encontramos um caminho melhor. Dentro dela
vários segredos e enfrentamos e conseguimos até chegar ao final. Por isso temos que
estudar para transformar o mundo de paz e alegria.”
Nestas frases e também no discurso que pude ouvir dos jovens e de seus pais, a
escola é tida como uma possibilidade de um “futuro melhor”, onde possam “ser alguém”,
“ser alguém no futuro”, ser alguém na vida”. Mas o que seria “ser alguém”? Parece-me
que a idéia de “ser alguém” é recente na sociedade bakairi e se refere a alcançar uma
posição social superior, tendo sempre em mente atividades dos karaiwa. Alguns jovens me
disseram que gostariam de ser advogados, outros querem seguir a carreira militar. A
maioria pensa em poder fazer faculdade. Outros pensam em se qualificar para assumir a
função de Chefe de Posto, enfermeiro ou professor, e poder trabalhar dentro da própria
aldeia em que moram. Todas estas atividades, no entanto, são funções que vieram com os
karaiwa. Ser um cacique ou um pajé, por exemplo, não é condição para “ser alguém”.
Quando um jovem bakairi diz que quer “ser alguém no futuro” ele tem em mente
que através do estudo conseguirá se profissionalizar e então ter acesso aos bens materiais e
simbólicos que almeja. Parece, então, que eles estão sendo rejeitados os costumes e valores
que caracterizam a sociedade bakairi, por reconhecer que, hoje em dia, o meio para
conseguir estes bens é parte da sociedade ‘do branco’: o estudo. No entanto, o que os move
em direção a “ser alguém” é exatamente o valor mais representativo da vida social bakairi:
a família. O desejo de que os pais “se orgulhem” deles e de que a família possa “se
desenvolver” através de sua ajuda, é o motivo alegado pelos jovens para freqüentarem
diariamente a escola, enfrentando todas as adversidades, como a distância e a falta de
hábito ou de prazer diante das exigências escolares.
Este “orgulho” por parte dos pais vem principalmente de duas fontes. A primeira é a
citada ênfase dos órgãos tutores na importância da escola e da civilização; e a geração
dos pais viveu cotidianamente influenciada por esta idéia. A segunda diz respeito ao
aumento da necessidade, também incentivada pelo SPI e pela Funai, de bens externos, ou
seja, daqueles que só podem ser adquiridos através do dinheiro, como certos gêneros
alimentícios, roupas e carros. Os pais dos alunos
239
vêem no estudo a única possibilidade
239
“Pais de alunos” e “alunos” são categorias surgidas dentro do ambiênte escolar e restritas a este contexto.
Assim como “professor”, “coordenador” e “merendeira”. São referidos sempre através do termo em
português.
268
dos seus filhos terem acesso a um curso superior que lhes garantiria um “bom emprego” e,
conseqüentemente a reprodução de sua família, através da aquisição dos alimentos e
também da possibilidade de participar da rede de reciprocidade que une os parentes.
Antes de continuar a análise pela abordagem das atividades escolares, devo deter-
me sobre um ponto fundamental: o que seria ‘ser civilizado’ para os Bakairi? Sobre o que
eles estão falando quando se dizem “civilizados” ou expressam o desejo de sê-lo?
1.2. Civilização: sobre como o SPI, a Funai e a escola ‘salvaram’ os Bakairi de serem
xinguanos
Atualmente, os Bakairi se vêem como índios-civilizados e isto tem uma conotação
positiva. O ideal de civilização inculcado pelo SPI foi assimilado como um valor muito
importante, a ser atingido ou conquistado por alguém ou por um povo inteiro. Os Bakairi,
em geral, se gabam, e agradecem ao SPI, por serem civilizados e expressam 'pena' ou
comiseração (kaykâ) pelos índios que não tiveram esta oportunidade. Um senhor, certa vez,
me disse que lamentava o destino dos xinguanos, pois estes ficaram isolados por culpa do
Orlando Vilas Boas que fazia as coisas para eles na cidade e não deixava que eles
entrassem em contato. Por isso que eles continuam vivendo pelados. Agora que eles estão
saindo. Os Bakairi, por outro lado, segundo este mesmo senhor, puderam se desenvolver
(civilizar), ou por conta própria ou com a ajuda do governo. Em outro momento, ouvi o
seguinte comentário: Se não fosse o SPI a gente estaria pra trás, como os Cinta-Larga.
E logo se seguiu um discurso sobre a importância da escola neste processo, citando a
professora Violeta com a cobrança do “ponto” no final da aula, com o castigo "até às 3
horas da tarde" dado ao aluno que "não soubesse". Não apenas ele, mas outros que
estudaram com a tal de Violeta lembram dos castigos a que eram submetidos, atribuindo,
entretanto, a este ‘regime’ a eficácia no seu aprendizado do português, da matemática e,
também, da "civilização".
Nestes depoimentos percebemos que os Bakairi consideram os xinguanos e os
Cinta-Larga como os protótipos do índio selvagem: nu, isolado, atrasado. A comparação
feita com o processo de colonização do Alto Xingu mostra que a política de proteção, que
manteve os xinguanos longe da chamada civilização, é objeto de reprovação: correto foi o
269
papel do Estado Brasileiro, que civilizou os Bakairi, isto é, possibilitou a sua integração. E
foi em oposição à imagem do xinguano que foi construido o conceito de ‘civilizado’. Se o
xinguano representa o passado, o primitivo, o isolamento, o desprovido, os Bakairi se vêem
com ‘futuro, com acesso à sociedade nacional e aos seus bens e a hábitos civilizados.
Escutei vários discursos – principalmente de professores, os que tiveram mais
oportunidade em se ‘civilizar’ - sobre a vergonha (tywypaselâ) que passaram por não
saberem se comportar como karaiwa e o orgulho que hoje sentem em serem
suficientemente aceitos e respeitados. A passagem pela escola, dentro ou fora da Área
Indígena, é sempre identificada como principal meio para conseguir “evoluir”. As
“maneiras à mesa”, como bem tratou Norbert Elias (1990), é um dos pontos ressaltados
para se falar sobre o processo de civilização de um individuo. Certa vez, alguém me falou
sobre a vergonha que teria passado quando ainda jovem se viu tendo que comer entre os
karaiwa sem que soubesse usar os talheres. Hoje esta mesma pessoa relata que gostaria de
voltar e mostrar para eles que eu progredi e ainda proíbe sua esposa de comer com a
mão, por considerar este comportamento como não-civilizado.
Podemos aqui fazer um paralelo com o que Turner afirmou sobre o valor da
mercadoria para os Kaiapó:
O Valor primordial da posse de mercadorias, para os kayapo, -especialmente
objetos próprios para ser exibidos, como roupas, casas e gravadores reside na
neutralização simbólica da desigualdade entre eles e os brasileiros, na medida em
que esta é definida em termos da posse dos produtos mais complexos e eficazes da
indústria ocidental, e da capacidade de controlar a tecnologia a eles associada. O
valor das roupas, rádios e aviões para os Kayapo, em outras palavras, reside acima
de tudo na negação do contraste humilhante entre eles como seres “selvagens” e os
brasileiros como “civilizados”... Isto é verdadeiro, acima de tudo, para as roupas,
visto ser a nudez o signo fundamental da selvageria aos olhos dos
brasileiros.(Turner,1993 :61)
A escolarização, e aquilo que pode ser alcançado através dela (bens, hábitos e
status), pode ser vista, portanto, em relação aos Bakairi, também como uma forma de
“neutralização simbólica da desigualdade” e “negação do contraste humilhante” frente ao
‘branco’, pois o domínio da escola e demais habilidades e performances civilizadas aos
Bakairi a segurança de que são equivalentes aos brancos.
270
Definir-se enquanto civilizados, entretanto, não está em contradição com o definir-
se enquanto ‘índios’. Orgulham-se de ser índios, e orgulham-se de ser civilizados, então,
orgulham-se de ser índios-civilizados. Como vimos, os Bakairi passaram por um longo
processo de subjetivação enquanto índios civilizados e, hoje, é assim que se vêem. A face
indígena diz respeito principalmente à sua língua, organização social e ritualidade, e, para
eles, não é, absolutamente, incompatível com seu desejo de desenvolvimento e de
envolvimento com a chamada sociedade brasileira. Apesar de haver uma preocupação em
relação à perda da cultura, o progresso
240
não é identificado como uma ameaça. Lembro-me
de diversas vezes ter ouvido comentários sobre a importância da valorização cultural” e
depois, pela boca da mesma pessoa, um discurso a favor da modernização da aldeia, com
asfaltamento das ruas, acesso à internet, plantação de soja, como se nada disso tivesse
efeito sobre o que chamam de ‘cultura’.
241
De fato, a forma como ‘cultura’ é definida diz
respeito a um espaço delimitado dentro da vida social bakairi, principalmente ocupado
pelos rituais, danças, cantos e língua. A escola, neste contexto, pode, então, se constituir, ao
mesmo tempo, como espaço de civilização e de ‘cultura’, sendo atualmente estes os dois
modos de integração à sociedade nacional: enquanto brasileiros e enquanto índios.
A situação, entretanto, é ainda mais ambígua, como indica o uso da expressão ser
como índio” como forma de fazer críticas a um comportamento identificado negativamente.
O “índio” aí seria aquele que segue a imagem do xinguano ou dos Bakairi do passado, que
tanto ‘comem com a mão’ quanto não sabem utilizar a tecnologia do karaiwa (seja um
caixa eletrônico de banco ou um liquidificador). Em outros momentos, porém estas mesmas
pessoas dizem se orgulhar de serem índios, ao que sempre se segue uma desqualificação da
“sociedade karaiwa” (violência, pouca preocupação com a família, etc). A chave para
entender este aparente paradoxo - não querer ser como índio, mas querer ser índio - está no
discutido processo de construção dos Bakairi enquanto índios-civilizados, índios-
trabalhadores, índios-brasileiros. O SPI ensinou aos Bakairi que eles eram índios, ou seja,
pessoas de natureza diferente dos demais brasileiros, e como tal deveriam se submeter à
superioridade da nação para aos poucos irem sendo incorporados. Para que esta indianidade
(Souza Lima, 1995) fosse assimilada, o SPI usou diversas tecnologias, formas
240
“Desenvolvimento”, “progresso”, “modernidade” são ‘termos nativos’ usados para se referir ao mesmo
que civilização.
241
Sobre a concomitância de ‘identidades’ e a transformação em civilizado ver página 281)
271
organizacionais, graus de racionalidade próprios e distintos ao longo do tempo. (Souza
Lima, 1995: 77). Como vimos, através da Funai e posteriormente de outros setores da
sociedade nacional, eles ‘souberam’ que ser índio tem um valor positivo, que é sinal de
orgulho, e que está relacionado a ter uma ‘cultura’ diferenciada, além de ser condição para
manter a posse de sua terra e a continuidade do ‘apoio’ (tutela) do governo. Hoje, então,
muito de sua auto-imagem positiva está vinculada a essa identificação, em oposição a ser
karaiwa, mas também em ser ‘civilizado’ em oposição aos índios atrasados como os
xinguanos
242
.
Podemos concluir, portanto, que quando os Bakairi falam que são civilizados ou que
pretendem se civilizar, estão falando (i) de um valor positivo; (ii) de conquistar uma
aparência como os ‘brancos’, expressa não apenas em roupas, mas também em
comportamentos; (iii) de que não são selvagens como eram seus antepassados e ainda são
os xinguanos; (iv) que estão integrados a uma totalidade, o Brasil, principalmente tendo a
escola como mediadora.
Agora, podemos passar a tratar mais propriamente da escola e entender a relevância
que lhe é dada como um lugar onde podem se civilizar, tanto no presente, através da
atuação performática, como no futuro, ao conquistar um emprego e conseqüentemente uma
forma de continuar reproduzindo seu parentesco. Neste sentido, a escola é vista como o
principal veículo de civilização, como o espaço das aldeias onde por mais tempo eles têm a
possibilidade de atuar ‘como civilizados’, ao assumir o comportamento adequado, e, assim,
transformar, como veremos, seus corpos e, através deles, sua perspectiva. É por esse motivo
que um aluno disse, em uma redação, que discordava de certos xinguanos (mais uma vez
242
É interessante notar que somente agora, desde a implantação do posto indígena, alguns Bakairi estão tendo
a oportunidade de maior convivência com os chamados “xinguanos”. Estou me referindo ao contexto do 3
o
grau indígena da UNEMAT, onde os Bakairi dividem a sala de aula com alunos “xinguanos”. Pude perceber
quando estive que eles demonstram orgulho por serem “mais civilizados” (por dominar melhor a língua
portuguesa, por se adaptar à rotina escolar, etc.). De outro lado, porém, em relação aos chamados
“nordestinos”, os estudantes Bakairi manifestam abertamente o orgulho de “manterem” a sua “cultura”, em
contraposição aos “sem cultura e sem língua”. Os Bakairi separam cultura” e “civilização”, não sendo para
eles, a ultima, absolutamente, uma ameaça à permanência da primeira.
Entretanto, este quadro encerra em si, potencialmente, uma ameaça, se a observamos de modo invertido: os
Bakairi são vistos como ‘menos índios’ que os xinguanos, o que no ‘mercado da cultura’ os desfavorece, e, ao
mesmo tempo, não apresentam domínio dos códigos da sociedade brasileira como os índios ‘nordestinos’, o
que parece representar que os ideais bakairi de civilização, desenvolvimento e integração estão ainda
distantes.
272
apresentados como contraponto) que não queriam ter escola, demonstrando ignorância
quanto a “importância de ler, saber, escrever”.
2. Performance escolar: transformação e captura de recursos
2.1. Forma karaiwa, modo bakairi
A primeira vista, a escola bakairi parece estar completamente alheia aos processos e
ao contexto ‘tradicionais’ nativos de aprendizagem, pois os Bakairi fazem questão de que
ela seja ‘como a do branco’ e para isso se esforçam em copiar a disciplina, as maneiras, o
conhecimento das “escolas da cidade”. O famoso discurso da educação indígena
diferenciada’, aprendido no Projeto Tucum e no 3
o
Grau Indígena, é guardado para
momentos específicos, quando deve ser usado como argumento eficaz de estratégia
política. No mais, no cotidiano, aparentemente tem-se uma escola não-diferenciada, o
oposto do que seria pensado como escola indígena. Pretendo mostrar, entretanto, que a
escola bakairi segue mais os referenciais de formação de um kurâ do que aparenta. E ainda:
é exatamente ao ‘copiar’ o karaiwa que ela se mostra tipicamente bakairi .
De fato, ao pretender seguir o padrão oficial, a escola não se afasta do modelo
bakairi de instituição pública, muito pelo contrario, desta forma, ela se mostra como um
típico espaço coletivo bakairi, caracterizado, este último, como vimos, por dois níveis de
integração: entre as parentelas (kurâ [nós] junto com yagonron [outros]) e entre Bakairi e
não-Bakairi (onde kurâ tanto pode designar Bakairi em oposição a karaiwa, quanto ‘gente’
em oposição a iamyra). Ou seja, a escola foi apropriada pelos Bakairi como um espaço de
convivência pan-familiar bem como de mediação com o universo dos karaiwa.
Na verdade, podemos afirmar que ela é a instituição pública onde os Bakairi passam
mais tempo. Durante a maior parte do ano (nove ou dez meses), crianças, jovens e adultos
estão envolvidos em atividades escolares, sejam aulas ou atividades extra-classe
243
. É muito
difícil alguém faltar à aula; mesmo as crianças pequenas, ainda não matriculadas na escola,
243
As atividades aqui chamadas de ‘extra-classe’ são principalmente as festividades e sua preparação. São
exemplos disso a formatura, o bingo para se arrecadar dinheiro para a formatura, a festa junina, a festa do dia
do índio, a festa das mães e dos pais, a festa do dia das crianças, e ainda outras descritas mais adiante.
273
pedem a seus pais para freqüentarem as classes. Neste caso, certamente o que motiva sua
ida à escola não é a vontade de “tornar-se alguém na vida” (como costumam afirmar
jovens e adultos); o imenso interesse das crianças parece ser exatamente pelo espaço de
interação com os demais, visto que fora da escola convivem com seus parentes
próximos. Igualmente os mais velhos, alunos do curso de “educação de jovens e adultos”
(EJA), que passam o dia trabalhando, ficam na escola até por volta de 21:30 hs; apesar do
cansaço, sendo motivados pela oportunidade de se encontrarem regularmente com aqueles
com quem não convivem no espaço doméstico e conversarem sobre os acontecimentos
recentes, brincar, fazer planos e, ao mesmo tempo, aprender novos hábitos e
conhecimentos.
Vimos ainda que as cerimônias ocupam um importante lugar no processo de
formação de um kurâ koendonron (bom bakairi, boa pessoa), bem como na reprodução da
família, objetivo final de todo aprendizado. Os atos ritualizados, desde os pequenos, como
o fato da menina servir ao pai quando este lhe solicita algo, até a participação no kado,
estão a serviço do parentesco. Desta forma, a pessoa deve aprender através da participação,
repetição e observação, em momentos formalizados ou informais, introjetando
conhecimentos e comportamento relativos a valores, crenças, postura corporal, organização
social, etc., considerados imprescindíveis na constituição de um kurâ.
Com o tempo, através de várias evidências, comecei a perceber que o método
característico da escola bakairi não diferia muito do ‘não escolar’, sendo centrado na
ritualização e na performance, bem como na pedagogia da repetição/prática. O que me
levou a esta conclusão foi uma questão que me se apresentou desde o inicio da pesquisa.
Percebia que a escola era uma instituição extremamente valorizada pelos Bakairi, o que era
demonstrado pela baixíssima abstenção nas aulas, pela longa distância que os alunos de
outras aldeias percorriam diariamente para chegar à escola
244
, pela ansiedade que
demonstravam os alunos à espera do horário da aula, pela excitação que demonstram por
estar na escola, pelo tempo gasto em preparar seus corpos para ir à aula, pelo lugar de
destaque que ocupa o prédio escolar nas aldeias, pela preocupação dos pais diante do
estudo dos filhos e pela valorização da posição de professor. Por outro lado, também
observava que os conteúdos escolares não eram tratados com a mesma importância, seja
244
A aldeia mais distante fica a 30 km do posto onde está localizada a escola de 5
a
a 8
a
serie.
274
por parte dos alunos, seja pelos professores. A maioria dos alunos não tem o hábito de
estudar, em casa, abrindo o caderno somente para fazer suas “tarefas” ou para decorar” o
conteúdo da prova, e reclamando muito de ter que ler ou estudar - dizendo que a cabeça
dói” – em decorrência do privilégio da oralidade e da observação na transmissão do
conhecimento, o que faz com que o hábito de ler ou estudar ainda seja um comportamento
muito distante das formas de aprendizado a que estão acostumados.
Nas muitas reuniões de professores que freqüentei nunca testemunhei o tratamento
de um assunto relativo a métodos pedagógicos, problemas de aprendizagem ou questões do
gênero. Ao invés disso, grande parte do tempo era dedicada ao planejamento de festas
como ‘Dia das Crianças’, ‘Dia do Índio’, ‘Dia das Mães’, formatura, etc. Também a verba
que chega à escola como unidade-executora, nos dois anos que permaneci na aldeia ou em
contato com ela, foi alocada em setores relativos ao âmbito performático: em 2003 foi
comprado um aparelho de som com amplificador e microfone, e em 2004 uma antena de
celular. O primeiro foi visto como um importante instrumento ritual; e a segunda representa
a materialização da modernidade através da incorporação à escola daquilo que os Bakairi
pensavam ser o maior símbolo de progresso naquela época: a comunicação por telefone
celular.
Resumindo, o problema a ser esclarecido é: se a escola é tão importante mas o
aprendizado dos conteúdos escolares a principio sua razão de ser não é objeto de uma
preocupação no mesmo nível, de onde vem o interesse dos Bakairi por essa instituição? A
resposta que encontrei é que, realmente, ela é um importante centro de aprendizado, mas o
que é chamado de “conteúdo escolar” (ler, escrever, contar, etc.) importa mais como parte
da ‘performance de civilização’, que acontece no ambiente escolar, do que enquanto
conhecimento apenas. O fato de saber ler, por exemplo, importa mais como uma
capacidade a ser adquirida, que carrega extremo valor simbólico, do que enquanto uma
habilidade técnica. Aliás, é rara a utilização da escrita fora do contexto escolar, verificada
principalmente em bilhetes trocados por amantes ou namorados
245
. A leitura de textos
245
É interessante perceber que este é mais um exemplo de como a escola e seus conhecimentos são utilizados
para a reprodução do parentesco. Conforme venho observando nesta tese, a escola é vista fundamentalmente
pelos Bakairi como um importante instrumento contemporâneo para a obtenção de recursos indispensáveis a
sua reprodução social e familiar. Esses bilhetes são, além dos ‘recados’ transmitidos oralmente por
intermediários, os principais meios de comunicação entre os namorados, em uma sociedade onde não
275
extensos, como projetos, leis, livros, deve ser mediada geralmente pela leitura e explicação
oral de um ‘branco’.
246
Minha hipótese é que se a alfabetização fosse apenas vista como um conhecimento
imprescindível para a relação com os ‘brancos’, a escola não teria o lugar de destaque que
ocupa na sociedade bakairi. O que faz com que esta instituição ganhe enorme proporção
dentro de seu meio social seria, fundamentalmente, o fato de que os conhecimentos por ela
transmitidos são vistos para além de seu caráter técnico, a saber, pelo que representam
enquanto sinal de civilização.
Desta forma, pode-se afinal entender a disparidade entre a pouca preocupação com
o aprendizado dos chamados ‘conteúdos escolares’ e a grande importância da escola: os
saberes veiculados por esta instituição têm valor muito mais por representarem um ideal de
civilização - do qual o conhecimento escolar é parte integrante – que pela aplicabilidade em
suas atividades cotidianas.
Ainda, o contexto de ensino (disciplina, pedagogia, etc) é tão importante quanto os
‘conteúdos escolares’ na ‘performance de civilização’ cotidiana. Quer dizer, o fato de estar
sentado em uma sala de aula, estabelecendo relação com livros, professores, língua(gem)
escrita, conteúdos ‘ocidentais’ é pensado também como instrumento indispensável de
aprendizagem.
Além disso, esse aspecto tem conexões com o processo educativo propriamente
bakairi (mostrado no capítulo IV), que faz do ‘estar em contexto’ o principal método de
aprendizado. De fato, segundo o modelo bakairi de formação de pessoas, o ambiente, a
(con)vivência e a experiência são o fundamento do aprendizado de habilidades e
comportamentos adquiridos no domínio familiar e, recentemente, passou a ser a base do
aprendizado dos conteúdos ‘civilizados’ da escola.
Assim, percebo que não faz sentido pensarmos a escola bakairi recorrendo a
algumas oposições, como (i) presente x futuro e (ii) método de aprendizagem x contexto
escolar. Quanto ao primeiro ponto, a partir do momento em que tornar-se civilizado (no
futuro) pressupõe ser e agir como civilizado no presente, a separação entre os dois ‘tempos’
relacionamento amoroso público antes do casamento, e, portanto, deve-se proceder de forma discreta nestes
assuntos.
246
Ver página 286 para um exemplo deste caso. Posso citar também as várias vezes que fui chamada para ler e
explicar modelos de projetos enviados aos Bakairi pela FUNAI, governo de Mato Grosso etc.
276
se dissolve, ou seja, a performance escolar ao mesmo tempo em que atua no ‘agora’
também é o que constitui o ‘depois’. O segundo ponto mostra que é inoperante pensarmos a
educação bakairi (fora e dentro da escola) através da distinção entre metodologia e
contexto, pois o ambiente é o próprio método de aprendizagem.
Minha análise diferencia-se sutilmente neste ponto daquela realizada por Laura
Rival a respeito da educação escolar entre os Huaorani sobre a qual afirma: El alfabetismo
se adquire a traves del uso de objetos específicos, del consumo de comida especial y del
domínio de ciertas técnicas corporales, asi como a traves del aprendizage cognoscitivo
(Rival,1996:471) No caso dos Bakairi, todavia, devemos falar da aprendizagem
cognoscitiva em meio aos objetos, comportamentos e ambiente, pois ela própria faz parte
da performance que opera como método de alfabetização.
Nota-se ainda que a avaliação do êxito escolar leva em conta mais os critérios
quantitativos que qualitativos, como podemos verificar através das referências ouvidas
sobre a melhora (crescimento) da escola explicada em termos da aquisição de novos
aparelhos, aumento do numero de alunos e professores, ou fatos do gênero. Lembro-me de
um vídeo feito por alguns professores que pretendiam registrar a situação da escola da
aldeia central, em que se fazia a pergunta o que vocês acham da evolução da escola na
aldeia?. Em todas as respostas os entrevistados se diziam felizes com a evolução, dando
como exemplos a construção do novo prédio escolar, a ampliação das series até o ensino
médio, a nova turma de “jovens e adultos” e também o fato da maioria dos professores estar
cursando a faculdade indígena da UNEMAT. Como vemos, todos exemplos de aumento,
seja de turma, de série, de espaço ou de escolaridade dos professores. Não houve nenhuma
pessoa que citasse algo relativo ao aspecto qualitativo do aprendizado.
Em suma, se olharmos pelo seu aspecto técnico, não nenhuma relação entre ler,
escrever e aprender novos conhecimentos e, por exemplo, a presença de antena de celular
ou aparelho de som, ou mesmo, como veremos adiante, dos alunos e professores vestirem
suas melhores roupas para freqüentá-la. Mas, se percebermos que o significado da escola
vai muito além da aquisição destes conhecimentos, poderemos buscar a ligação que haveria
uns e outros. A escola é o lugar onde, através de conhecimentos, comportamentos, hábitos e
disciplinas, o aluno pode atuar como ‘civilizado’. Durante a participação contínua no ritual
escolar, os alunos vivem a cada dia a performance de “ser como o branco, civilizado”, que
277
inclui não apenas os trajes apropriados e objetos industrializados como caderno, caneta,
vídeo, computador, televisão e livros (que mostram mais uma infinidade de coisas, lugares
e gentes), disciplina baseada em notas, provas, horários, além de comportamentos, como
também a cópia, a leitura e as posturas corporais adequadas.
De fato, os Bakairi pretendem, ao familiarizar-se com o modo de vida civilizado,
‘tornar-se’ (âtugudyly
247
) como um civilizado, através da participação em momentos
diversos das atividades escolares: a aula, ou a performance cotidiana, e as performances-
cerimônias, que acontecem com menos freqüência. Em ambas, podemos notar a influência
do método da educação doméstica bakairi, que privilegia sobretudo a
participação/repetição, e também da ação-ritual, característica mais presente nas
cerimônias coletivas do kado.
2.2. Performances cotidianas: transformando-se em civilizado
O primeiro nível das atividades escolares a ser analisado diz respeito àquelas que
acontecem cotidianamente, as chamadas ‘aulas’. Veremos que estas são caracterizadas por
procedimentos performáticos que envolvem práticas e símbolos do universo escolar
‘oficial’, e, por conseguinte, dos civilizados. Conforme observei anteriormente, dessa
maneira os Bakairi pretendem se ‘formar’ (no sentido da educação bakairi, mas também no
sentido propriamente escolar) para garantir os recursos necessários na atualidade à
reprodução de suas famílias.
Com esse propósito, parto da distinção feita pelos Bakairi entre duas formas de
grafismo, iwenyly e ekudyly, em que o primeiro (termo com o qual também se referem à
escrita) pressupõe uma relação inexorável com a superfície desenhada, e o segundo
prescinde dessa relação, revelando somente aquilo que está sendo representado
graficamente. Verifiquei que essa classificação poderia ser utilizada para analisar relações
além daquelas envolvendo os grafismos, e assim, passei a proceder minha análise das
atividades escolares a partir dos modelos propostos pelos dois tipos de grafismo.
Identifiquei, então, que o modelo-iwenyly serviria também para tratar do modo de ‘copiar’
247
O termo âtugudyly é usado pelos Bakairi, para referir-se, por exemplo, a transformação de um pajé em
‘espírito-animal’ ou de uma pessoa (kurâ) em espírito (kadopâ) depois que morre.
278
(no sentido de ‘transpor’ de um lugar a outro) o contexto escolar oficial a fim de
transformar-se (âtugudyly) em civilizado, e o modelo-ekudyly serviria para falar da
representação dos ‘costumes’ bakairi, tratada por ‘cultura’, que acontece principalmente nas
cerimônias extra-classe.
*
Ekudyly e iwenyly são duas modalidades distintas de expressão gráfica reconhecidas
pelos Bakairi. A primeira faz referência ao desenho, como aqueles encontrados por Karl
von den Steinen no Salto” (identificado pelos Bakairi como seu lugar original) (1942:
336), reproduzido na figura abaixo, ou como os traços feitos no chão que costumam
acompanhar o discurso dos Bakairi completando a informação oral (representando mapas,
locais, figuras, distâncias, etc). Já iwenyly é o termo usado para a pintura corporal, desenhos
dos cestos, bancos, cuias e apás, bem como para a escrita. A questão que se impõe é: o que
distingue ekudyly de iwenyly e faz com que a escrita seja identificada ao segundo e não ao
primeiro? A principal diferença que pode ser notada é que no caso dos desenhos-ekudyly,
estes são grafismos sobre uma superfície, enquanto a pintura corporal e os desenhos em
objetos (iwenyly) são grafismo feitos com a superfície. Assim, as pinturas o realizadas de
acordo com a forma do corpo, sendo considerado um bom pintor aquele que consegue
harmonizar o traço e a superfície. Nos cestos e apás esta integração entre objeto e traço é
ainda mais evidente, pois o iwenyly vai surgindo ao mesmo tempo em que as fibras vegetais
escuras e claras vão sendo trançadas para que o próprio objeto possa surgir.
(Steinen, 1942:336)
279
O termo ekudyly é usado ainda no sentido de imitar (mego ekugâ: imite um
macaco!), o que identifica o desenho sobre a superfície como representação, enquanto o
desenho com a superfície não imita nem representa, ele é. Assim, no costume muito comum
de se traçar um desenho no chão acompanhando um discurso oral, podemos ter uma
representação de um mapa, da forma de algo, etc.; o ekudyly retirado do livro de Steinen
(1942) que parece um pé, por exemplo, poderia ser a representação de um pé. Há ainda uma
situação que deixa ainda mais claro o que estou tentando dizer: uma pintura em um corpo é
iwenyly, enquanto a reprodução da mesma sobre a superfície de um papel é chamado
ekudyly. Assim, podemos dizer que na transposição das pinturas corporais conforme
aparecem nas cerimônias do kado para aquelas representadas pelos alunos em seus
cadernos na escola, há uma mudança de iwenyly para ekudyly.
Iwenyly, portanto, é um desenho que não representa outra coisa, ou seja, ele não é
um significante relativo a um significado original, como ekudyly. Desta forma, a cópia-
escrita (iwenyly) de palavras do quadro negro para o papel, bem como do livro para a prova
não é vista como uma imitação ou representação, mas como uma transposição de uma
superfície à outra, continuando, no entanto, a ser o ‘mesmo’. O mesmo acontece com o
iwenyly feito no corpo dos participantes do kado (pintura corporal) ou nos objetos, que não
são pensados como representações dos animais - peixe, cobra, morcego, libélula, etc - mas
um meio de ‘transformar-se’ nestes animais (como já observamos no capítulo V a respeito
da relação entre as máscaras Iakuigady e aqueles que as animam). Tanto as máscaras
quanto os corpos não evocam o formato do animal, mas a sua pele (ituby), sendo as
primeiras utilizadas muitas vezes como ‘roupas-aparatos’ por pajés ou iamyra (ver capítulo
V), como também pelos irmãos míticos Keri e Kame em suas estratégias de captura de
recursos (conforme veremos a seguir). Ekudyly, por outro lado, se refere geralmente a um
desenho que representa a forma do animal, objeto etc., e não aparece nesse tipo de
cerimônia, pois não têm a capacidade de transformação do iwenyly.
Agora podemos começar a compreender a inserção da escrita na escola, pois
sabemos que para os Bakairi ela não corresponde a uma representação - conclusão a que se
chegou a partir da dissociação entre iwenyly e ekudyly, onde o ultimo diz respeito à
imitação, representação, enquanto o primeiro termo (usado tanto para escrita quanto para a
pintura) exclui completamente esta idéia.
280
Essa distinção dos tipos de grafismo pode nos levar a pensar também outros
aspectos do universo escolar. A pedagogia das aulas é baseada principalmente na cópia (no
sentido de transferência de uma superfície a outra) da escrita (iwenyly), tanto do livro para o
quadro por parte do professor, como do quadro para o caderno pelos alunos, sendo sempre
vista em sua interação entre a superfície do livro/quadro/caderno e desenho, e desta forma
não configurando uma imitação, mas uma transferência de ‘suportes’. Em outras palavras, a
escrita é vista mais pela sua materialidade captada visualmente que pelo significado das
palavras que comporta, como uma pintura corporal ou máscara ritual, as quais são os
animais-espirítos a que se referem, e não uma representação ou imitação destes. Assim, da
mesma forma que as pessoas que estão dentro das máscaras no kado estão ‘animando’ ou
dando vida a elas, os professores e alunos bakairi, ao vestirem as roupas civilizadas,
comerem merenda, se comportarem segundo as regras e disciplinas escolares, estariam
também ‘virando’ ou ‘transformando-se em’ (âtugudyly) civilizados, mais que os imitando
(ekudyly).
2.2.1. Transformar-se
Transformar-se a partir do uso ritual de roupas, máscaras ou pinturas, na visão dos
Bakairi, diz respeito a assumir uma nova ‘identidade’, sem que isso represente nem um
estado irreversível nem o abandono de outras ‘identidades’. Na verdade o termo
‘identidade’ é apenas uma aproximação, sendo por mim utilizado por falta de outro
conceito que consiga abarcar todo o sentido do processo de transformação a que estou me
referindo. Neste sentido, cabe aqui lembrar o comentário de Carlos Fausto sobre a
inexatidão desse conceito para tratar de fenômeno semelhante entre os Ameríndios em
geral, a partir da abordagem da transformação xamânica:
Selfhood and identity are, in fact, concepts that fail to describe what is at
issue here. It is actually inexact to say that shamans have a double, split or
multiple personality, since in our culture these notions describe an
undesirable dissolution of an unitary self or its complete absence.
Amerindians, however, strive to acquire more than an internally
homogeneous self in order to become (pro)creative persons. From cannibal
practices to vision quests, from shamanic trances to ritual transformation,
281
from post-homicidal seclusion to funerary practices, we observe the same
effort to be more than one-self. (Fausto, in press:32).
Ainda, quanto a possibilidade de coexistência de mais de uma ‘identidade’, diria
que entre os Bakairi ocorre processo idêntico ao relatado por Aparecida Vilaça sobre os
Wari’, os quais, diz ela, “querem continuar a ser Wari’ sendo Brancos. Em primeiro lugar
porque desejam as duas coisas ao mesmo tempo, os dois pontos de vista e também querem
preservar a diferença sem no entanto deixar de experimentá-la. Nesse sentido, vivem hoje
uma experiência análoga à de seus xamãs: têm dois corpos simultâneos, que muitas vezes
se confundem. São Wari’ e Brancos, às vezes os dois ao mesmo tempo, como no surto dos
xamãs.” (Vilaça, 2000: 69)
A título de ilustração desse fenômeno, a partir da realidade escolar bakairi, lembro-
me de certa vez quando eu estava ajudando um professor na elaboração de um projeto a ser
encaminhado à Funai para solicitar bolsas escolares. Ele me disse neste momento sou um
branco pois estou fazendo coisa de branco. Com este comentário o professor quis dizer que
se ao adotar um comportamento de ‘branco’ (‘fazer projeto’) ele estaria assumindo a
‘identidade’ de ‘branco’, de forma alguma isto implicaria no abandono de sua ‘identidade
de índio’, muito menos numa transformação definitiva em ‘branco’. Estava o somente
adotando um comportamento que o fazia ‘virar branco’, sem que isso acarretasse uma
mudança irreversível ou a perda de sua ‘identidade’ bakairi.
Será a partir dessa idéia de transformação que iremos abordar daqui para frente as
práticas cotidianas, o comportamento e a organização escolar, tratando-os como
modalidades de iwenyly, isto é, como modos de familiarização (com) e transformação (em)
‘civilizado’, e especialmente no que se refere a sua escola, onde os professores e alunos
bakairi ‘viram civilizados’ a partir do momento em que realmente vivenciam esta
‘identidade’, como também acontece com aquelas pessoas que vestem as máscaras do kado
em relação aos espíritos-animais que estas animam. No caso da escrita, o primeiro a ser
analisado, a relação com iwenyly é óbvia, sendo esta a sua tradução na língua bakairi.
Depois dela, serão tratadas outros aspectos que caracterizam o universo escolar: roupas,
edifícios, disciplina e organização.
2.2.2. Iwenyly: a escrita
282
A escrita alfabética nasce, segundo Deleuze e Guattari (1976), quando grafismo e
voz se unem, a partir de um primeiro movimento que subordina o primeiro a segunda e,
depois, finalmente, de um segundo movimento que subordina a segunda ao primeiro. Neste
momento, a escrita suplanta a oralidade em um movimento despótico
248
. O significante
suplanta o significado e o que era baseado na inscrição passa a ser representação. A voz
não canta mais, mas dita, edita; a grafia não dança mais e deixa de animar os corpos, mas se
escreve coagulada sobre tábuas, pedras e livros.” (Deleuze e Guatari, 1976:260). Esta visão
do ‘surgimento’
249
da escrita pode nos ajudar a entender como atualmente os Bakairi lidam
com ela.
A identificação pintura/escrita sob o termo iwenyly nos indica que a escrita pertence
ao “plano de imanência”
250
, portanto, não servindo como representação, inclusive da “voz”.
entre os Bakairi mecanismos de separação entre voz e escrita que podem ser
aproximados daqueles descritos por Elsje Lagrou (1996) para os Kaxinawá e por Carlo
Severi (1985) para os Cuna.
Segundo Lagrou, tal separação entre os Kaxinawá é dada via distinção de gênero: o
desenho é das mulheres, e o canto e a ayahuasca
251
dos homens, conformando dois
universos distintos e complementares (os dois lados do poder xamânico). O yuxin, que
significa imagem e também, grosso modo, pode ser traduzido como espírito, faz-se visível
através do desenho ou da linguagem visual cantada, pois no cotidiano somente pode ser
visto sob a forma de animal ou planta. Os homens entram em contato com o yuxin através
248
Deleuze e Guatarri (1976) recuperaram ironicamente a clássica seqüência evolucionista - selvagens,
bárbaros e civilizados - como uma forma de tratar a dinâmica social de transformação. Eles, entretanto,
descartam qualquer visão tipológica e evolutiva, ou seja, cada um dos termos não corresponde a um momento
da evolução social e nem mesmo cada sociedade tem necessariamente que estar classificada em um deles.
Eles são concebidos como regimes de codificação dos fluxos que podem aparecer e se combinar em qualquer
formação social, o primeiro agindo através de codificação e inscrição, o segundo através da sobre-codificação
e o terceiro da axiomatização desses fluxos. A origem da escrita estaria relacionada ao regime bárbaro ou
despótico da sobre-codificação, juntamente com o Estado, o “Édipo” e a Lei, quando o significante salta do
plano de imanência e ganha preponderância sobre o significado.
249
Falo de “surgimento”, pois mesmo sabendo que a escrita veio a principio “de fora” como uma imposição,
vejo que ela foi apropriada a partir de um modo próprio bakairi, podendo, portanto, neste sentido, ser tratada
também como resultado de um movimento interno.
250
Termo de Deleuze e Guatari (1976) que se refere a uma situação da relação entre voz e grafismo em que
ainda o significante não sobrepujou o significado, ou seja, não representação, nem a possibilidade da
pergunta “o que isso quer dizer?”.
251
Ayahuasca é o nome de um c feito a partir do cipó Banisteriopsis caapi e da folha da chacrona
(Psichotria); contendo substancias psicoativas, é utilizado por muitos povos amazônicos para a realização de
‘viagens xamânicas’.
283
da ayahuasca e se expressam pelo canto, enquanto as mulheres sonham e se expressam
através dos desenhos (Lagrou, 1996).
Entre os Cuna, segundo Carlo Severi, a separação entre voz e grafia revela a
seguinte lógica: o xamã utiliza as pictografias como técnica auxiliar de memorização para
transmitir conhecimentos aos seus seguidores. O aprendizado é dividido em dois
momentos, o primeiro se refere à memorização dos cantos e o seguinte, a título de
complementação e afirmação do primeiro, é caracterizado pelo ensino das pictogravuras,
que ajudam a compreender as alusões e indicações obscuras existentes no canto, onde boa
parte do sentido se dá apenas de forma implícita. O grafismo é, aqui, utilizado para
organizar a sucessão temporal e espacial dos eventos e ajuda a fixá-los na memória do
aprendiz, além de mostrar algumas estruturas cosmológicas que o canto não revela e não
descreve.
Kaxinawá e Cuna seriam dois exemplos da situação em que voz e grafia podem ser
considerados complementares, mas separadas. Os Kaxinawá, ao identificarem voz e
grafismo a homens e mulheres distintamente, estariam, portanto, mantendo longe a
possibilidade de que esses domínios venham a se juntar (e de que posteriormente haja a
submissão de um ao outro). Os xamãs cuna, por sua vez, apesar da relação forte entre grafia
e canto, não estabelecem entre os dois planos uma relação de subordinação ou
representação. A pictografia não representa o canto, ela o complementa.
Entre os Bakairi, a partir do universo escolar, podemos apontar alguns mecanismos
que da mesma forma mantêm a separação da escrita e da voz: a escrita é tratada apenas em
sua relação com a superfície (iwenyly); a leitura é sempre oral (em voz alta); a escrita livre
(em oposição à cópia) segue estruturas e reproduz marcas da oralidade; o texto construído
fielmente sobre as bases da linguagem escrita é entendido com muita dificuldade; uma
identificação constante entre, por um lado, língua portuguesa e escrita, e língua bakairi e
oralidade, por outro. Vejamos, agora, o que é a escrita escolar, adentrando os momentos e
os espaços das aulas, já que nestas o que acontece repousa basicamente no uso da escrita.
Em geral, nas aulas se sucedem os seguintes movimentos: o professor copia a
matéria do livro para o quadro negro, para, então, se proceder a uma nova cópia ou
transposição do texto escrito, feita, agora, pelos alunos, do quadro negro para os seus
cadernos. A outra maneira de proceder durante uma aula é o professor e os alunos lerem em
284
voz alta, em conjunto (uma leitura coral), um trecho ou um texto do livro.
252
Tal
procedimento poderia se explicar por ser ele o único recurso didático que chega aos
professores
253
, mas me parece mais interessante pensar o livro como um ‘material’ (objeto
ritual) fundamental na composição da performance escolar, correspondendo ao que seriam
as máscaras e as imagens para o kado e as festas de santo, respectivamente.
Vejamos, então, no contexto da aula qual é o tratamento dado à escrita: primeiro
como ‘cópia’, depois como base para a leitura, sem ser nunca caracterizada pela
subordinação da voz ao grafismo. No primeiro caso, só grafismo, no segundo, o
grafismo está subordinado a voz. Ainda, em todas as situações escolares podemos
testemunhar que a escrita é sempre em português e a expressão oral preponderantemente
em língua bakairi.
Escrever-copiar
A partir do que vimos na seção anterior, escrever e ‘transferir desenhos de uma
superfície para a outra’ são processos designados pelo mesmo termo: iwenyly. Dessa forma,
para pais e alunos bakairi, escrever e saber copiar do quadro-negro são exatamente a
mesma coisa. Quando um pai percebe que seu filho sabe copiar corretamente o desenho-
escrita ele diz que ele “já está escrevendo”. Por outro lado, assim como copiar é escrever,
também a afirmativa ‘escrever é copiar’ é verdadeira para o universo escolar bakairi, onde
praticamente toda escrita é cópia. É difícil haver uma atividade em que o professor peça
para os alunos escreverem ‘livremente’ (o que acontece somente nas redações, um gênero
de escrita que passou a ser desenvolvido após a participação dos professores no Projeto
Tucum e no 3
o
Grau Indígena). Na maior parte das vezes, os exercícios escolares são ou
copiados do quadro negro ou, para os que constam nos livros didáticos, as respostas devem
seguir exatamente o texto do livro; o mesmo acontece nas avaliações. Acompanhei alguns
alunos estudando para provas, atividade feita sempre no dia anterior, e observei que o
método desse estudo é muito mais o de ‘decorar’, com todas as palavras e pontuação, que o
de procurar entender o conteúdo. Este, porém, é apenas o fim do processo de aprendizagem
252
Alguns professores se arriscam a transmitir conhecimentos aprendidos durante o Projeto Tucum e o 3
o
Grau Indígena, mas, via de regra, o livro didático é o seu guia.
253
Os livros didáticos do MEC chegam todos os anos para os alunos de 1
a
a 8
a
series.
285
que, como vimos, inicia-se e desenvolve-se através da cópia. A este respeito, um professor
do ensino médio me disse que seus alunos respondiam com muita facilidade a questões
especificas e com respostas claras, mas que tinham grande dificuldade em discorrer sobre
temas amplos, sem respostas exatas, ou em responder a perguntas feitas com pequenas
alterações em relação ao modelo.
Lembro, aqui, um tema abordado anteriormente, no capítulo IV: a diferença entre
um estilo de aprendizado baseado na explicação-entendimento - aquele com que estou mais
familiarizada e o preferido pelos Bakairi, calcado mais na memorização
254
e na repetição.
Foi este o método utilizado nas escolas do SPI e da Funai
255
, mas houve uma apropriação a
partir da forma bakairi de conceber o aprendizado, que tem como aspectos fundamentais
exatamente a memorização e a repetição. Neste sentido, há uma analogia com o processo de
educação escolar observado por Ingrid Weber entre os Kaxinawá: Os livros distribuídos
pelas Secretarias de Educação, acompanhados dos infalíveis livros-manuais, contendo
respostas corretas e exatas, acabam por se aproximar da concepção“tradicional” (kaxinawá)
de aquisição de habilidades.” (Weber, 2004, 149-150)
Nas aulas, além da prática da cópia da escrita, pode acontecer que um aluno tenha
que compor um texto escrito ou que tenha mesmo que ler um texto sozinho. Isso raramente
ocorre no Ensino Fundamental e Médio bakairi, mas podemos colher, no âmbito dos cursos
de formação de professores, exemplos que ilustram a relação dos Bakairi com o texto
escrito. Durante o Projeto Tucum, diariamente, um dos alunos (professor indígena) lia a
“memória do dia”, um relato das atividades do dia anterior. A despeito dessa atividade ter
sido idealizada como uma oportunidade deles exercitarem a escrita, a leitura da “memória
do dia” era feita a partir de uma apropriação que privilegiava as referências orais, ou seja,
utilizando-se de vários recursos relativos à expressão oral gestos, diálogos – fazendo com
que a escrita fosse mais uma transposição da fala. Um outro episódio é significativo. Ao
visitar a aldeia Santana, os professores bakairi, estudantes da UNEMAT, me pediram ajuda
para realizar um “trabalho” de interpretação de texto. Percebi que apesar de conhecerem
254
Memorizar para os Bakairi é expresso como “guardar dentro da cabeça”: nhangaho oday kaenkanedyly.
255
Os professores antigos dizem seguir o método empregado pelo SPI. Uma professora que ministra aulas em
classe multisseriada diz que utiliza o mesmo método com que aprendeu: enquanto os alunos de uma série
fazem o exercício que copiaram do quadro, ela explica (decifra) a matéria para outra serie, e assim por diante.
Os professores mais novos tiveram influência principalmente dos primeiros professores indígenas contratados
pela Funai e dos internatos pelos quais passaram.
286
praticamente todo o vocabulário, não entendiam a estrutura do texto, pois esta seguia
estritamente o modelo do discurso escrito. A ajuda possível foi, portanto, proceder a uma
‘tradução’ da linguagem escrita para a linguagem oral. Em ambos os casos, observamos
que, para os Bakairi, o grafismo/escrita deve ser empregado não separando-o da oralidade,
mas subordinando-o a ela.
Outro contexto de leitura que demonstra esse divórcio entre oralidade e escrita diz
respeito ao livro didático, havendo, neste caso, a possibilidade de ter-se tanto escrita sem
leitura (apenas o desenho das letras no livro), quanto leitura sem escrita (no caso de decorar
o texto e reproduzi-lo oralmente). Nas turmas que ganham livros didáticos (1
a
a 8
a
series),
os alunos se acostumaram a abri-los na página indicada pelo professor e acompanhar a
leitura feita pelo mesmo. Pude notar, então, que todas as vezes que os professores me
pediam para eu os substituir e eu tentava ministrar uma aula com atividades que não
passassem pelo livro didático, usando principalmente explicações e diálogos, os alunos não
conseguiam ficar sem o livro ou o quadro-negro como ponto de apoio. A explicação-
oralidade, neste caso, estava muito distante do que concebiam como uma aula, uma
atividade, como vimos, baseada essencialmente na cópia-escrita (iwenyly) ou na voz da
leitura feita em tom alto e coletivamente.
Livros didáticos
Se analisarmos o uso dos livros didáticos, se observa que eles são tratados como
depositários de um conhecimento inquestionável, que deve ser, idealmente, reproduzido
com exatidão absoluta. A autoridade conferida aos documentos escritos vem dos anos de
submissão à burocracia do SPI e da Funai, quando, muitas vezes, os Bakairi dependeram
deles para assegurar terra, empregos, donativos etc. A formação inicial dos professores foi
pautada na reprodução e na cópia, excluindo, portanto, toda possibilidade de
questionamento desse modelo.
Como ilustração da ‘mecânica’ de utilização do livro, lembro-me de uma aula de
história, durante a qual o livro didático, como sempre, era o centro de todas as atenções. O
tema abordava questões diretamente relacionadas aos povos indígenas. A “matéria” iniciou
com a chegada dos portugueses, que encontraram um Brasil desabitado, “terras virgens,
287
florestas”. O contato entre colonizador e índios era narrado como “pacífico” e “amistoso”
no princípio, e depois, tornando-se conflituoso, com os índios sendo apresentados como
“muito perigosos e agressivos”. Surpreendentemente, até um tema presumivelmente
próximo e tratado em sentido contrário à valorização da ‘identidade indígena’, tão prezada
no discurso pelos próprios Bakairi, não era objeto de suspeita ou de discussão, mas, sim,
algo a ser repassado de maneira exatamente igual às palavras do livro.
A função dos livros didáticos como ‘guia’ dos professores é tão nítida que aquelas
turmas que não os recebem acabam por enfrentar sérios problemas. No caso do Ensino
Médio, o trabalho de cópia é infindável, faz “doer a mão”, como dizem. No processo de
alfabetização, os pequenos alunos sofrem na passagem do prézinho” para a 1
a
serie”,
pois, enquanto o pré-escolar deveria ser uma preparação para a alfabetização e a adaptação
à disciplina escolar, a 1
a
serie pressuporia inclusive pelos livros que recebe que as
crianças já sejam alfabetizadas. Parece não haver espaço para a alfabetização. A solução do
problema fica a cargo do professor, que, como veremos, é completamente autônomo para
fazer o que quiser com relação a sua turma. Assim, geralmente, a alfabetização é iniciada
no prézinho”, mas os alunos chegam à 1
a
serie ainda sem terem sido alfabetizados. Como
os professores têm que seguir o livro didático, mesmo que os alunos não consigam
acompanhá-lo, ocorre que muitos alunos não aprendem a ler, sendo verificado em séries
avançadas pessoas que ou não sabem ler, ou o fazem com muita dificuldade. Este problema
parece ser maior na escola da aldeia central; nas aldeias menores o professor é um e,
portanto, tem condição de acompanhar o desenvolvimento individual dos alunos ao longo
dos anos. Já na Aldeia Aturua, apesar de muitos alunos e classe unisseriada, os professores
acharam uma solução. Disseram-me que, tendo vivido por muito tempo esse problema,
decidiram alfabetizar durante o “prézinho”, sem livro didático. Assim, as crianças, ao
chegarem à 1ª serie, são capazes, finalmente, de acompanhar o livro.
Português/escrita; bakairi/fala
A separação entre grafismo e voz diz respeito, também, à conexão estabelecida, por
um lado, entre língua portuguesa e escrita, e, por outro, entre língua bakairi e oralidade.
Destacam-se, porém, algumas experiências, minoritárias e influenciadas por duas entidades
288
incentivadoras do bilingüismo - Projeto Tucum e SIL - que parecem levar a direção
contrária. O Projeto Tucum teria introduzido entre os Bakairi a idéia da importância da
alfabetização na língua materna, o que se reflete, hoje, no programa do ‘prezinho’, onde
inicia-se com pequenas palavras na língua bakairi, passando imediatamente para o ensino
do português, língua em que se dará, realmente, a alfabetização e que acabará dominando o
âmbito da escrita.
O SIL moldou a escola da aldeia Paikun, onde ainda há a presença de suas
missionárias. Aqui, a fase de alfabetização em língua materna se alonga mais do que nas
outras aldeias, para passar, de qualquer maneira e com certa rapidez, para o português. A
influência do SIL se sente, também, no esforço de um professor, que atua como tradutor de
textos bíblicos e evangélicos para o SIL, para vincular escrita e língua bakairi por meio da
confecção de cartazes em ngua bakairi afixados nas paredes da escola com dizeres como
Bata antes de entrar!, descarga!. A iniciativa se revelou uma tentativa isolada e
passageira.
256
As experiências, mencionadas, de aproximar a língua bakairi da escrita, entretanto,
não passaram de tentativas de concretização de um ideal formado fora da realidade da
escola bakairi, não encontrando bases para a sua implantação efetiva. Assim, de forma
geral, as aulas são pautadas na convivência do discurso oral em bakairi com a escrita em
língua portuguesa, sendo praxe didática escrever em português no quadro negro e explicar a
matéria em Bakairi. Neste sentido, um dos professores me relatou uma discussão com um
assessor do Projeto Tucum que dizia ser prejudicial para o ensino esta ‘mistura’, ao que o
representante da escola bakairi se defendeu dizendo que esse era o modo deles e que estava
dando certo, não havendo necessidade de mudança.
Em suma, nas atividades realizadas durante as aulas - escrita ou leitura
verificamos o afastamento entre grafismo e voz a partir de vários mecanismos, que têm
como efeito a manutenção do modelo-iwenyly característico da escrita, o que significa
operar a relação com o ‘mundo civilizado’ através da ‘transformação’, negando a relação de
representação, característica do modelo-ekudyly.
256
A matéria ‘Lingua Materna’ prevista na grade curricular e introduzida a partir do Projeto Tucum,
utilizando muitas vezes as cartilhas do SIL, também não consegue romper com o afastamento entre escrita e
língua bakairi, restringindo-se à cópia de algumas palavras isoladas em Bakairi, escritas no quadro negro, ou,
como vimos no capítulo anterior, a temas gerais sobre ‘cultura’ e ‘indigenismo’.
289
Toda forma de iwenyly, inclusive a escrita, seria vista pelos Bakairi como um meio
para a tomada da perspectiva de um ‘outro’, ou seja, a apropriação de uma técnica de
transformação. Em outras palavras, do mesmo modo que os iwenyly, enquanto pinturas dos
corpos e objetos rituais, são maneiras de se familiarizar com os iamyra aquáticos, isto é, as
‘roupas’ que permitem sua transformação, também a domesticação dos karaiwa (civilizar-
se) passa pelo domínio da escrita
257
. No entanto, vejamos que o que estou procurando
entender da natureza da escrita se aproxima muito da forma como Aristóteles Barcelos
Neto definiu as “roupas” dos yerupoho/apapaatai wauja (correspondentes aos iamyra dos
Bakairi). Os “espíritos” wauja “vestem” “roupas” de animais e assumem sua perspectiva,
fato que acontece o por imitação, mas por incorporação de suas capacidades. Segundo
Barcelos Neto “A roupa” é um dispositivo de atributos instrumentais e anatômicos asas,
no caso dos seres alados, garras e/ou presas, no caso dos predadores etc. que enseja
capacidades físico-locomotoras especificas: voar, nadar, saltar, correr velozmente etc. Os
humanos são os sem-“roupa” por excelência, com exceção dos feiticeiros, que podem fazer
uso de “roupas” especiais.” (Barcelos, 2004: 61).
Assim, da mesma maneira que as “roupas” dos animais bem como as pinturas
corporais (iwenyly) dotam espíritos e pajés de capacidades relativas a esses seres (como
também acreditam os Bakairi), o uso de ‘roupas dos brancos’ e da iwenyly-escrita teria o
poder de ativar uma ‘identidade civilizada’ nos alunos e professores bakairi, ou, em outras
palavras, permite que domestiquem a civilização.
2.2.3. Âtâ-Roupa
Outro modo de interação entre superfície e desenho, relevante para a análise da
realidade escolar, é representado pela relação entre roupa (âtâ) e corpo (sodo), em que a
primeira corresponde à pintura ou ao grafismo e o segundo ao suporte
258
. De fato, ao tratar
a formação do kurâ, seja no espaço doméstico, nos ritos de iniciação ou mesmo na
participação no kado, e seus efeitos, o corpo (sodo) sempre se mostrou como um dos
257
Sobre este tema ver Peter Gow para o estabelecimento de ume a relação entre o uso de roupas dos
“brancos” pelos Piro e o aprendizado de seus “desenhos” (escrita), como uma “transformação” do “desenho”
(Gow, 2001: 127).
258
Vimos no capítulo IV que o termo sodo refere-se a ‘corpo’ como uma das variações da idéia de ‘suporte’,
‘base’.
290
principais focos do processo de aprendizagem, como superfície a ser transformada (por
pinturas, adereços ou roupas), ou como expressão de saúde (tâwânepa) ou bem estar
(koenda wawyly) a ser desenvolvida e preservada. Vimos ainda que a ‘pedagogia bakairi’
privilegia uma aprendizagem direta sobre o corpo, sem a necessidade da mediação da
mente (nhangaxery âsewanily, literalmente ‘miolo trabalhando’), e também a
predominância da prática sobre a explicação.
O corpo é objeto de continua fabricação pela educação escolar, pois é
principalmente por seu intermédio que os Bakairi pretendem capturar o comportamento e o
modo de ser civilizados. A merenda que se ingere no cotidiano, assim como o churrasco, o
bolo e os refrigerante nas festividades, até hábitos como ficar sentado passivamente durante
horas, são todas formas de acostumar (sahozebyen) o corpo a uma atitude civilizada. Há,
entretanto, uma forma de tratamento do corpo que merece ênfase tanto por parte dos alunos
quanto dos professores: o uso de roupas (âtâ) convenientes, isto é, em bom estado e, de
preferência, consideradas bonitas. Os homens vestem calças compridas enis e a mulheres
se destacam pelos acessórios como bijuterias para o cabelo, pescoço, braços, cintura, etc.
bem como pela maquiagem
259
. É interessante perceber que o uso das roupas boas/bonitas
(âtâ tywâkurein) tem relação com a transposição do espaço privado para o público, que
corresponde ainda à transformação entre ‘viver como Bakairi’, isto é, com a família, e
‘viver como civilizado’.
Esta fabricação cotidiana do corpo feita para (e através da) a performance escolar
visaria, em última instância, favorecer a transformação em civilizado, pois se pensa que
desta maneira através de alimentos, roupas, comportamentos novas capacidades
poderão ser apreendidas.
Nesse sentido, chama a atenção a relação recorrente entre âtâ e sodo, que
corresponde no caso da escrita à interação entre grafismo e superfície. No caso dos
espíritos-animais ‘donos’ (sodo) de uma determinada espécie, temos que a sua forma
animal é comparada pelos Bakairi a uma roupa que encobre o sodo-espírito. Lembramos de
259
Neste sentido, os jovens sofrem grande influencia do seriado televisivo “Malhação” no qual aparecem
adolescentes convivendo em um ambiente escolar. Eles tentam se adaptar, com os recursos disponíveis, às
“modas” ditadas pelo programa, principalmente no que concerne vestimentas e enfeites para o corpo. É muito
comum, nos finais de tarde, observar os jovens frente a um aparelho de televisão, observando e comentando
os comportamentos e vestimentas das personagens do seriado.
291
diversas etnografias xinguanas, como a de Aristóteles Barcelos Neto sobre os Wauja, onde
se dá a relação entre apapaatai (espírito) e “roupa”:
Todos os Yerupoho que vestiram “roupas” ou que foram atingidos pelo sol
transformaram-se em apapaatai. A categoria cabe, neste contexto, na seguinte
definição concisa: apapaatai é tudo aquilo que, temporária ou permanentemente
tenha passado de uma forma antropomorfa para uma forma animal, mostruosa,
fenômeno natural, artefatual ou por uma combinação de duas ou mais destas
formas. A “roupa” é o dispositivo para as transformações temporárias, enquanto as
transformações permanentes originaram-se da exposição dos yerupoho ao sol e são
irreversíveis. Uma “roupa” é uma “aparência” e seu valor ontológico é antes
“artefatual” do que “corporal”. duas naturezas de apapaatai: uma corporal e
uma “roupa”. Toda “roupa” pode ser reduzida à categoria apapaatai, mas nem todo
apapaatai é “roupa”. A generalização que se pode fazer é que a categoria apapaatai
subsume a categoria yerupoho, fazendo com que ambas impliquem-se
mutuamente. (Barcelos, 2004: 59)
No kado, como vimos, acontece o mesmo, pois quando as “roupas”/máscaras são
vestidas as pessoas se transformam nos seres ‘donos’ do domínio das águas. Um processo
de transformação ocorre, também, pela utilização das “roupas dos brancos”, quando, mais
uma vez, âtâ e sodo (corpo) estão relacionados. Do que se pode concluir que o par sodo/âtâ
é a forma privilegiada da transformação para os Bakairi, vista quando um iamyra ‘entra’
em um animal, uma pessoa em um espírito-máscara (no kado) e, também, quando se coloca
uma “roupa de branco” em um corpo kurâ. E ainda, em situação análoga, quando o
sodo/suporte está relacionado ao grafismo, como no caso da escrita.
Podemos dizer que esta transformação possibilita a tomada de uma nova perspectiva
através da qual viabiliza-se o acesso a recursos (ou seja, passa-se a atuar como sodo). Nesse
sentido, recordo-me ainda das narrativas bakairi sobre como ‘no principio dos tempos’ os
heróis Keri e Kame teriam capturado dos seus ‘donos’ originais importantes recursos -
tecnológicos, alimentares, fenômenos da natureza, capacidades -, como, por exemplo, o
próprio sol, o fogo, a mandioca, o sono, utensílios, o tabaco. Parece haver uma correlação
entre as estratégias encontradas pelos heróis e aquelas utilizadas hoje através da escola.
292
Reproduzo resumidamente três dessas narrativas ressaltando os pontos que, aqui e agora,
me interessam
260
.
(1) A captura do sol
A tia dos heróis míticos Keri e Kame (Xixi e Nunâ, e respectivamente, sol e lua) pediu para eles
capturarem o sol (xixi), cujo dono (sodo) era o urubu. Então, o primeiro entrou em um tapir e o
segundo em um passarinho, sendo que aquele como “presaseria uma espécie de isca para atrair os
urubus, e o outro ficaria de fora avisando sobre a aproximação dos mesmos. Assim, quando os
urubus avançaram sobre o tapir, Kame avisou e Keri soprou sobre os urubus impedindo que estes
conseguissem destroçar o corpo do tapir, ao que tiveram que chamar o urubu-rei. Este conseguiu
abrir o tapir, mas tão logo ele o fez, Keri o agarrou e mandou ele lhe dar o sol. Foi assim que eles
capturaram o sol, e o dia passou a existir.
(2) A captura do fogo
A mesma tia pediu aos gêmeos Keri e Kame que pegassem o fogo de seu ‘dono’, que naquele
tempo era a raposa, que o carregava dentro de seus olhos. Eles então entraram em um peixe e um
caramujo que estavam na rede de pesca da raposa e esperaram que ela acendesse o fogo para
cozinhar. Logo ela os colocou no fogo e os gêmeos jogaram água apagando-o. A raposa foi embora
com muita raiva e os dois irmãos aproveitaram para soprar a brasa do fogo quase apagado,
conseguindo se apossar do recurso e levá-lo para a sua tia.
(3) Momo
Havia uma viúva que foi deixada pelos seus filhos. Quando ela se encontrava sozinha em casa
chorando pelo marido morto, aparecia o “momo”, um animal parecido a um boi cheio de objetos
nas costas de modo que quando ele andava fazia grande barulho. Ele tentava abrir a casa para matá-
la, mas não conseguia. Um dia, os filhos da mulher retornaram e ela lhes contou o acontecido. Eles
então lhe pediram para fingir estar chorando para atrair o Momo e logo o animal estava tentando
entrar na casa. Os rapazes conseguiram atirar, mas Momo fugiu. No outro dia, seguindo seu rastro
de sangue, eles encontraram o Momo morto, com vários objetos em suas costas. Entretanto,
conseguiria ser dono de um objeto aquele que tivesse coragem de atirar neste. Os Bakairi atiraram
nas cuias, esteiras de espremer mandioca, flecha, etc, mas o tiveram coragem de atirar nas armas
de fogo, e estas ficaram para os brancos.
260
Somente tive acesso às narrativas a seguir de forma completa a partir de fontes escritas. As duas primeiras
de Karl von den Steinen (1940: 480-482) e a terceira de uma cartilha do SIL intitulada Una egatuhobyry 7
As Histórias contadas 7 (Komaedâ, 1999) feita a partir de historias contadas pela Bakairi Laurinda Komaedâ.
Durante todo o período de minha pesquisa nunca presenciei narrativas antigas (unâpâ) contadas em ambiente
doméstico ou em qualquer outro lugar. Dizem os Bakairi que atualmente apenas os ‘velhos’ sabem essas
historias. De fato, quanto menor a idade da pessoa menor é seu conhecimento das narrativas antigas,
chegando nas gerações mais novas ao total desconhecimento e nas gerações intermediárias ao conhecimento
apenas parcial dessas narrativas referentes ao inicio dos tempos. Já aquelas historias (unâ) relativas a
acontecimentos mais recentes são muito comuns, e os Bakairi parecem apreciar tanto contá-las quanto ouví-
las. Geralmente são contadas nas casas, no ambiente familiar, e dizem respeito a acontecimentos diversos,
presenciados nas aldeias ou cidades, ou que ouviram contar. Vimos anteriormente que os programas
televisivos estão sendo incorporados ao universo das narrativas como novas histórias a serem recontadas aos
parentes.
293
As três narrativas são sobre a aquisição de recursos importantes para os Bakairi -
sol, fogo, objetos e armas. Suas estruturas também são parecidas: existe um dono (sodo) do
recurso (urubu-rei, raposa, Momo) e dois irmãos que tentam capturá-lo. Nas duas primeiras,
Keri e Kame usam ‘roupas’ de animais para se aproximarem do sodo, na última é o choro
da mãe que tem esta função; entretanto, em todas elas, os captores agem como ‘presa’ para
atrair o ‘dono-predador’
261
. Desta forma, conseguem se apropriar de recursos fundamentais
para a sua vida. Somente na última narrativa a captura mostra-se incompleta, pois os
Bakairi não tiveram coragem de pegar as armas de fogo.
Se olharmos atentamente, perceberemos semelhanças entre as narrativas sobre a
captura de recursos e as performances escolares que estamos abordando. Assim, os
conhecimentos civilizados escolares têm os karaiwa como sodo
262
. E o resultado do
encontro entre o ‘dono’ de algo e ‘aquele que deseja esse algo’ é sempre a captura de um
importante recurso para sua reprodução social, seja o sol, o fogo, os utensílios ou, no caso
da escola, o saber-atitude civilizado.
Podemos dizer, então, que a performance escolar atual seria uma atualização das
estratégias encontradas por Keri e Kame para a captura de recursos fundamentais. Se no
‘início dos tempos’ era imperativo que tivessem fogo, dia, flechas e outros objetos para que
pudessem sobreviver, atualmente os Bakairi o concebem sua reprodução familiar sem os
recursos cujos ‘donos’ são os karaiwa (como certos alimentos, roupas, televisão, etc.).
Portanto, assim como os heróis míticos, hoje, eles têm que encontrar formas de capturar o
que desejam e se tornarem também seus ‘donos’, sendo a escola apontada por todos como o
principal meio de que dispõem para a apropriação dos recursos hoje necessários.
Devemos ainda notar na narrativa do Momo que apesar dos irmãos terem sucesso na
captura dos utensílios e armas, naquele tempo os Bakairi não tiveram coragem (tyaneryn)
para atirar nas armas de fogo e assim delas se apropriarem. Hoje, os tempos são outros e os
Bakairi atuais não são donos de espingardas (adquiridas dos brancos), como também
261
É interessante que nas duas primeiras observamos os irmãos utilizarem-se de “roupas” de animais para
poderem atrair os predadores. No caso da escola, como vimos, é o contrario, as “roupas” de que se servem são
aquelas que permitem reconhece-los como os próprios “donos” da “civilização”, os karaiwa.
262
Disso eu pude ouvir varias referências, entre elas um dia em uma reunião preparatória para a cerimônia de
inauguração do novo prédio escolar, um professor me disse: “você pode ajudar, pois isso tudo é da sua
cultura”, referindo-se as formalidades necessárias a uma “verdadeira inauguração”.
294
estão dominando novas armas de ‘caça’ de recursos, sendo a escola considerada o meio
principal para esse fim.
Retornando à escrita, podemos perceber que ela também diz respeito à captura de
recursos, em outras palavras, pode ser considerada um instrumento de ‘poder’. Segundo
Peter Gow, para os Piro, ela simbolizaria a hierarquia entre “índios selvagens” e “brancos
civilizados”, da qual os “brancos” detêm total controle (Gow, 2001:215). Em tom similar,
Lévi-Strauss relatou que os Nambiquara compreendiam confusamente que a escrita e a
perfídia penetravam de mãos dadas entre eles. (...) O gênio do chefe, percebendo na mesma
hora a ajuda que a escrita podia dar a seu poder, e alcançando assim o fundamento da
instituição sem possuir seu uso, infundia admiração”. (Lévi-Strauss, 1996: 284). Da
mesma forma, notei que a escola bakairi opera enquanto um instrumento de captura dos
recursos cujos ‘donos’ são os ‘brancos civilizados’, e a escrita tem lugar de destaque nesse
processo, o que pode ser percebido a partir dos próprios discursos dos Bakairi, que colocam
o seu aprendizado como o principal objetivo da escola. A escrita, como uma das
possibilidades de iwenyly, é outra maneira de se apropriar do grafismo como veículo de
transformação e, portanto, de captura de recursos dominados pelos karaiwa. A forma
“original”, como já foi dito, é a pintura corporal utilizada pelos Bakairi no kado para se
familiarizarem com os ‘donos’ das espécies animais ‘donas’ de diversos recursos (cobras,
peixes, insetos, morcego, pássaros, etc.).
2.2.4. Âtâ-Casa
A palavra bakairi âtâ que hoje denomina as roupas, inicialmente era usada para
referir-se a ‘casa’. A roupa para os Bakairi, então seria uma espécie de ‘casa do corpo’.
Vimos a importância que a âtâ-roupa tem hoje na escola bakairi, como instrumento para
transformar-se em civilizado. Agora abordarei a âtâ-casa, aspecto de igual importância nas
performances escolares, formando o ambiente para a sua realização.
Tanto os modelos arquitetônicos como a localização dos prédios escolares apontam
para uma materialização do padrão da escola ‘oficial’
263
. Os prédios escolares das aldeias
263
Mais uma vez vemos valorizado o espaço como importante expressão das relações e comportamentos da
vida social bakairi, além de outras formas de ‘materialização’ das relações que se dão no universo escolar,
como objetos e vestimentas considerados “modernos” e “civilizados”.
295
são construções no mesmo modelo da cidade (seja dos anos 1940, ou segundo padrões mais
contemporâneos). Quanto a isso, os professores bakairi deixam bem claro sua opção por
edifícios que sejam seguros, confortáveis, permanentes e bonitos, como são consideradas as
escolas urbanas. Não querem saber de estruturas de madeira e palha, tanto por motivos
práticos quanto simbólicos. Assim, dizem preferir a escola de alvenaria coberta de telha
devido à dificuldade de renovação periódica da palha, visto que as árvores de buriti de onde
esta é extraída se encontram cada vez mais escassas na área indígena. As edificações
‘nativas’ também são consideradas mais frágeis. Por outro lado, o prédio escolar construído
conforme o modelo das escolas da cidade é considerado mais bonito e mais apropriado. O
cenário onde se desenvolverá a performance escolar deve ser adequado à simbologia que
envolve tal instituição, conforme as atividades que são realizadas, ou seja, como ‘palco’ de
performances de civilização.
Em suma, a “casa de material”, como eles se referem à casa de alvenaria, seria
considerada uma ‘evolução’ em relação aquelas de taipa, por representar mais uma forma
de “neutralização simbólica da desigualdade” em relação aos ‘brancos’. O padrão da
civilização, como vimos, é construído a partir de tudo aquilo que eles observam (e desejam)
no seu convívio nas cidades, principalmente as expressões mais salientes, como roupas e
casas.
Nas cinco aldeias que possuem escola existem sete prédios destinados a esta função,
sendo dois em Pakuera (aldeia central), dois em Aturua, e um em Kaiahoalo, Sawâpa e
Paikun. Na aldeia central Pakuera uma edificação antiga, construída pelo SPI na década
de 1940, e outra erguida recentemente. A primeira é ainda usada, apesar de encontrar-se
em estado deplorável, com janelas e portas caídas, o telhado quebrado e sua estrutura
comprometida. Mesmo a inauguração do prédio novo no ano de 2003 - muito elogiado pela
sua beleza e segurança não foi suficiente para atender todas as turmas, muitas das quais
ainda continuam tendo aulas no prédio antigo. Logo a seguir veremos o episódio da “luta”
pelo novo prédio escolar, outro bom exemplo do padrão de escola que querem os Bakairi.
Em Aturua, temos uma escola em alvenaria, de uma sala e outra feita de taipa,
que foi construída para atender a demanda de novos alunos. Em Kaiahoalo e Sawâpa,
construções recentes, também nos moldes das escolas primárias dos brancos. Em Paikun, a
escola funciona em um prédio antigo, construído na época do SPI, quando naquela
296
localidade havia um retiro” de criação de animais onde os Bakairi trabalhavam durante a
semana (esta localidade ainda é tratada como “retiro”). A edificação está em péssimas
condições, com sua estrutura abalada e uma sala de aula muito pequena para o mero de
alunos que a freqüentam. Os habitantes de Paikun tentam conseguir, muito tempo, a
construção de um novo prédio, “bonito” e nos moldes urbanos.
A localização das escolas revela, também, o seu significado. Nas aldeias menores,
ela sempre fica em uma região central, diacrítico de seu caráter de espaço blico,
freqüentado indiscriminadamente por membros de todas as famílias, sexos e idades. Na
aldeia Pakuera, onde fica localizado o Posto Indígena, o posicionamento das escolas tem
relação com a história do Posto. Como vimos, na década de 1940, os Bakairi foram
unificados em uma única localidade, a sede do Posto Indígena. Nessa época, foram
construídos prédios onde funcionavam a escola, o hospital, a administração e um galpão. E
levantaram-se as casas dos índios. A conformação do posto marcava notadamente uma
separação geográfica entre ‘brancos’ e índios, pois, de um lado ficavam as edificações do
SPI, e de outro as casas dos Bakairi. Neste primeiro momento, a localização da escola foi
escolhida pelo órgão tutor, mas é interessante perceber que quando coube aos indígenas
indicar onde se situaria a nova escola, estes optaram por colocá-la próxima aos outros
prédios construídos pelo SPI. Este fato parece mais uma vez marcar a identificação da
escola ao espaço simbólico da civilização. Desta forma, na aldeia central, a escola é um
local de socialização, mas um modo específico de socialização: enquanto civilizados.
Dentro da escola nova, a disposição das salas também é inspirada nas instituições
urbanas, com salas de aula, banheiros de alunos e professores, secretaria, sala dos
professores, cozinha e uma área comum. Na escola antiga, além de uma sala onde funciona
a sede da Associação Kurâ-Bakairi, também salas de aula, uma cozinha e salas
abandonadas onde se encontram materiais escolares sem utilização, como livros didáticos
velhos
264
.
um episódio que identifica bem o tipo de escola que os Bakairi querem para si,
ou seja, o cenário que acham ser o mais adequado para suas performances escolares; refiro-
264
Em uma festa junina, as folhas dos livros didáticos velhos foram usadas para a confecção de bandeirinhas.
Talvez este tratamento dado aos livros possa representar mais uma ilustração do fato das técnicas,
conhecimentos e materiais escolares terem seus significados definidos em relação a sua função nas atividades
performáticas realizadas na escola. Desta forma, não importa se um livro possa servir ao ritual, enquanto
repositório de conhecimentos civilizados ou como matéria prima para bandeirinhas de festa junina.
297
me ao processo de construção do novo prédio escolar na aldeia central. O cacique da aldeia,
juntamente com o coordenador da escola, foi à Secretaria de Educação do Estado do Mato
Grosso, lá se informando sobre um projeto do FUNDEF/MEC para a construção de escolas
rurais que os agradou muito, visto que contemplava suas aspirações por uma escola com as
condições e a aparência das escolas da cidade.
Entretanto, eles enfrentaram alguns problemas no âmbito do Conselho Estadual de
Educação Indígena, pois - como fizeram questão de relatar na cerimônia de inauguração do
novo prédio escolar - algumas pessoas ligadas a ONGs quiseram vetar a construção de
escolas indígenas com o padrão ‘de branco’, sob alegação de que o modelo da escola rural
negaria o princípio da ‘diferenciação’, que norteia hoje os projetos na área de educação
escolar indígena no Estado e no país. De acordo com essa concepção, o local onde deveria
funcionar uma escola indígena teria que estar integrado às condições ‘culturais’ e
ambientais dos povos indígenas. Nas palavras do coordenador da escola bakairi: Eles
queriam que nós fizéssemos uma escola de barro e palha de frente para o rio”. Tal atitude
foi considerada uma discriminação. Para o coordenador, os Bakairi têm o direito de ter uma
escola no mesmo padrão e da mesma qualidade que as dos brancos.
2.2.5. Organização escolar
A organização escolar também faz parte do aparato ativado pelos Bakairi no sentido
de incorporar as capacidades dos civilizados. Ela, portanto, compreende outro modo de
copiar a risca as escolas públicas brasileiras, o que poderia levar a pensar que os índios
ignoram o direito de terem um modelo específico de escola. Todavia, nos muitos cursos de
formação, os professores bakairi se defrontam continuamente com o discurso sobre o
direito a uma escola diferenciada nos conteúdos, estrutura, avaliação, etc. Tendo a
compreender esta situação pelo desejo expresso por eles de ter uma escola exatamente
como a do branco, vendo tudo o que não caminha neste sentido como uma forma de
discriminação. Neste sentido, um primeiro aspecto que salta aos olhos é o papel da escola
na mediação entre os Bakairi e o estado brasileiro, não apenas através do aprendizado dos
conhecimentos escolares, mas também pela inclusão na estrutura burocrática oficial, o que
lhes dá a segurança de ‘serem (virarem) brasileiros’, isto é, não estarem excluídos. Lembro-
298
me aqui do valor dado ao titulo de capitão por parte das lideranças bakairi em final do
século XIX, conforme vimos no capítulo VI. Assim, da mesma forma com que se
orgulhavam de ter o Capitão Reginaldo e o Capitão Antoninho como membros de uma
hierarquia encabeçada pelo Imperador, os atuais alunos e professores também se sentem
reconhecidos por fazerem parte da estrutura do estado brasileiro, através da escola.
No que se refere à organização escolar propriamente dita, mencionamos que na
Área Indígena Bakairi existem, hoje, funcionando, quatro escolas (e uma provisoriamente
fechada). A maior delas se localiza na aldeia Pakuera, e funciona nos níveis ‘fundamental’
e ‘médio’, além de contar com turmas de “educação de jovens e adultos” (EJA) e também
para os “velhos”. A segunda maior está na Aldeia Aturua, onde até pouco tempo, apenas
havia turmas de 1
a
a 4
a
série, mas a partir do ano 2004 iniciou-se o ‘ginásio’. Nas demais,
uma pequena escola, com uma única professora, que trabalha em regime multisseriado.
As crianças das aldeias menores, logo que completam as series existentes na escola local
passam a se deslocar para a aldeia central a fim de continuar seus estudos.
No total são 21 professores indigenas: 13 na escola da aldeia central; 06 em Aturua;
uma em Paikun; e uma em Kaiahoalo. A maioria frequenta o 3
o
Grau Indígena da
UNEMAT em Barra do Bugres (MT) e existem dois professores formados em economia e
em pedagogia, que atuam como auxiliares na universidade. Além disso, todos eles
freqüentaram, de 1996 a 2000, o Projeto Tucum.
O quadro abaixo mostra a quantidade de alunos por série e por aldeia em 2005:
Aldeia Kaiahoalo Pré 1
a
serie 2
a
serie 3
a
serie 4
a
serie
- 02 01 01 01
Aldeia Paikun Pré 1
a
serie 2
a
serie 3
a
serie 4
a
serie
03 03 02 03 01
Aldeia Aturua Pré 1
a
serie 2
a
serie 3
a
serie 4
a
serie 5
a
serie 6
a
serie
05 05 04 06 03 05 13
Aldeia
central
pré 1
a
s 2
a
s 3
a
s 4
a
s 5
a
s 6
a
s 7
a
s 8
a
s 1
o
a. 2
o
a. 3
o
a. EJA
03 03 16 10 04 18 15 19 12 08 18 23 14
Total de alunos: 221
299
Nota-se que, apesar da escassez de alunos em algumas escolas, é seguido o modelo
de ‘séries’, sendo impensável qualquer modificação. Percebemos, também, pelo numero
total de alunos, se comparado à população, que a escola ocupa um lugar central na vida
pública, sendo freqüentada regularmente por quase todos, se contarmos a participação nas
festividades e reuniões de pais. Além disso, as turmas seguem uma ‘grade curricular’
exatamente igual às outras escolas do município e do estado, exceto a existência da matéria
‘língua materna’, introduzida durante o Projeto Tucum. Vejamos, então, as matérias em que
se dividem as áreas de conhecimento da escola:
No prezinho os alunos “aprendem a escrever” (copiar) algumas letras e números, sendo
também introduzidos à nova rotina e hábitos escolares. Além disso, brincam e cantam, para
assim desenvolverem melhor o domínio da língua portuguesa. As músicas ensinadas são
principalmente canções de roda, religiosas, e as que aparecem na televisão, como as de
Sandy e Jr. e Kelly Key. Há uns anos atrás, quando não havia televisão, os alunos
chegavam à escola sem saber falar em português, mas agora, com o hábito de assistir
diariamente a vários programas televisivos, eles já chegam falando em português.
1
a
a 4
a
serie, os alunos têm aula de: português, matemática, ciências, educação física, artes,
língua materna e estudos sociais.
5
a
a 8
a
séries: português, matemática, geografia, história, ciências, ensino religioso,
educação física, língua materna, artes, inglês e prática agrícola.
Ensino Médio: português, matemática, geografia, história, sociologia, filosofia, física,
química, biologia, computação, língua materna, artes, educação física, inglês.
Disciplina
Também em relação à disciplina escolar, os Bakairi fazem questão de seguir todas
as exigências feitas pelas secretarias de educação, mesmo estando cientes dos seus direitos
a uma escola diferenciada. Se tomarmos a tarefa de preencher o diário da secretaria
municipal de educação, por exemplo, apesar de saber da não obrigatoriedade em fazê-lo, os
professores encaram este trabalho como índice de que podem ser ‘como’ os professores
brancos. Assim, os novatos sofrem” (como dizem) até aprender a dominar essa exigência
da disciplina escolar. Para os mais experientes, essa dificuldade é sinal de que o jovem
professor ainda não domina completamente o seu papel. Outro exemplo de desafio
300
encarado como inevitável é o cumprimento da grade curricular, tal como manda a
Secretaria de Educação. Certa vez, presenciei um extremo dessa rigidez, quando pude
observar o esforço depreendido por um professor do EJA, no período da noite, para fazer
com que adultos e velhos da turma fizessem exercícios físicos. A matéria ‘educação física’
estava na grade curricular, por isso ele se via forçado a cumprir a aula, mesmo sendo
completamente inadequado à idade dos alunos, ao espaço da sala de aula e ao horário
noturno, sem falar no sentido que aquela atividade teria (ou não teria) para os alunos.
outra tarefa da qual os professores Bakairi não abrem mão, nem mesmo depois
de quase uma década de contato com a ‘nova proposta de educação escolar indígena’, que
propõe formas diferentes de avaliar os conhecimentos (MEC, 1998c): a aplicação das
chamadas provas. Ou seja, todos acreditam que ‘escola sem prova não seria escola’.
“Aplicar prova” consiste em “marcar uma matéria” que irá “cair”, mandar os alunos estudar
(geralmente decorar), fixar uma data, e criar algumas questões que serão passadas para os
alunos no quadro ou em uma folha de papel, as quais devem ser respondidas dentro do
horário de aula, sem que possam consultar nem livros nem os demais colegas de turma.
Depois de uns dias são dadas as notas, havendo assim uma classificação dos alunos em
bons e ruins, ou melhores e piores. As notas são vistas sempre como atributos dos
estudantes, nunca como indicadores de falhas do professor ou do sistema de ensino.
265
Aliás, as provas parecem ter muito pouca relação com questões pedagógicas propriamente
ditas (como por exemplo apontar caminhos de aprendizado). É comum, por exemplo, que
alunos que precisam de nota”, ao invés de serem estimulados a estudar para aprender os
conteúdos e fazer outra avaliação, sejam submetidos ao castigo de capinar o mato, em uma
área tanto mais extensa quanto maior for a nota que necessitam. Sabemos que esta atividade
não fará o aluno aprender o conteúdo considerado necessário, porém o insere em um
modelo disciplinar, que antes de formar conhecedores quer criar subjetividades.
As regras relativas à estruturação do tempo são também elementos importantes da
disciplina escolar. Assim, obedece-se a um calendário anual entregue pela secretaria
municipal de educação, onde se prevê que as aulas são realizadas de 2
a
a 6
a
feira durante
todo o ano, exceto nos meses de janeiro e julho (férias) e nos feriados previsto pelo
265
Remeto aqui ao capítulo IV onde explico que o termo bakairi para ‘aprender’(âsenomedâdyly) quer dizer
‘ensinar-se’.
301
calendário oficial da prefeitura de Paranatinga e do Estado de Mato Grosso. ainda
horário para inicio e término de cada turno, havendo às vezes algum tipo de instrumento
usado para chamar os alunos, como campainha ou apito. Pela manhã, a aula começa às 7
horas indo até às 11: 30h, de tarde o horário previsto é das 13h às 16:30h e de noite as
aulas do ensino médio vão de 18h às 22:15h. Geralmente, apesar das aulas iniciarem na
hora exata, elas terminam antes do tempo previsto. Os alunos costumam cumprir o horário
à risca e raramente faltam às aulas. Alunos e professores chegam às salas, como vimos,
sempre bem arrumados, sentam-se (nos mesmos lugares), e inicia-se a aula. Do pré-escolar
à 4
a
série existe apenas um professor, quer em regime mulitisseriado, como acontece em
Paikun, Kaiahoalo e Sawâpa, quer unisseriado, como em Aturua e Pakuera. Nas demais
séries, há um rodízio dos professores segundo um horário pré-estabelecido, onde cada
disciplina ocupa por volta de uma hora.
A escola traz para a aldeia uma nova relação com o tempo, sendo a instituição onde
é crucial o cumprimento do horário, o que comporta uma divisão minuciosa do tempo.
começa a ser comum o uso de relógios de pulso entre alunos e professores. Fora do
contexto escolar, as atividades são organizadas segundo a posição dos astros, em relação
aos afazeres cotidianos ou a fenômenos da natureza. Assim, ainda hoje, as pessoas, ao
indicar um determinado período ou momento do dia, apontam com a mão para a posição do
sol e de acordo com o deslocamento deste designa-se o período do dia: emesiage (antes do
amanhecer), emedyly (amanhecer), emedyly wagâ (manhã, literalmente ‘sobre o
amanhecer’), kuotatay (por volta do meio-dia, quando o sol está no ápice), kogonekâ
(tarde), kopae (noite), kue(n)tâgi (meia noite).
Quanto à divisão do que chamamos de ‘meses’, os Bakairi usam os ciclos da lua,
sendo tokalâ nunâ (uma lua) o equivalente a um mês. ainda outras formas de tratar as
partes do ano, como a divisão entre estação das chuvas (outubro até março) e estação seca
(abril até setembro). Cada época do ano também é marcada por atividades econômicas ou
fenômenos da natureza. Assim, o período que corresponde aos meses de outubro e
novembro (inicio das chuvas) é marcado por ser época de frutas como a manga, por ser o
tempo de plantar milho, mandioca e arroz. Abril (início da seca) é designado como tempo
da pesca do matrinxã grande e da ceva que propiciará peixes nos meses subseqüentes. O
aparecimento de filhotes de certos animais e de alguns frutos são importantes marcadores
302
anuais: em agosto e setembro, por exemplo, é o momento dos filhotes de pássaros como
ema e papagaio, além do ‘cajuzinho do cerrado’ (fruto); a partir de dezembro aparecem os
filhotes de paca.
Parte fundamental das performances escolares, são as chamadas atividades extra-
classe”, ou seja, as que não estão limitadas às aulas e não acontecem com freqüência. Se o
modelo verificado nas práticas cotidianas escolares se aproxima da idéia de iwenyly como
instrumento de transformação em civilizado, as cerimônias extra-classe irão se identificar
muitas vezes com o modelo ekudyly (imitação), principalmente quando pretendem
representar aspectos do kado sob a designação de ‘cultura’
266
.
2.3. Festas e ritos escolares
Até aqui foram descritas e analisadas as performances escolares cotidianas, aquelas
que acontecem durante as aulas, caracterizadas principalmente pela escrita, pelo uso de
livros e outros objetos escolares, além de vestimentas adequadas, pelas regras disciplinares
e organizacionais copiadas do modelo da escola oficial e pelo cenário das salas e dos
prédios escolares. Passo, agora, às performances representadas pelas festas, pelas
apresentações culturais e pelos desfiles patrióticos. Todas elas, em maior ou menor grau,
são expressões e vivência de nacionalismo e civilização, por um lado, e de valorização de
sua ‘identidade indígena’, por outro. Nestas ocasiões, através de ritos coletivos, os Bakairi
se (re)afirmam enquanto ‘índios brasileiros’ e (re)afirmam seu desejo de pleno
reconhecimento pelo ‘universo dos karaiwa’. Graças a diversos signos relativos a
‘identidade indígena’ e a patriotismo, eles se ‘transformam’ em sujeitos - índios e
brasileiros -, tanto a partir da vivência do presente quanto da construção do futuro a partir
da garantia de condições essenciais para a reprodução familiar (terra, alimentos, objetos
266
Devo ressaltar, entretanto, haver também a presença do modelo ekudyly (imitação) durante o cotidiano
escolar, nas aulas de artes e língua materna (abordadas no capítulo anterior), espaços abertos na estrutura
‘oficial’ da escola, para contemplar a ‘cultura’ dentro dos ‘conteúdos programáticos’, e justificar sua
classificação enquanto ‘escola indígena’. Neste espaço, máscaras, pinturas corporais e outros aspectos do
kado são representados em desenhos, assim como às vezes histórias antigas (unâpa) são contadas, de forma
muito resumida.
303
etc). Neste sentido, as cerimônias escolares bakairi se aproximam dos “atos escolares”
argentinos tratados por Gustavo Blázques como espaços onde se conta uma historia
através da manipulação de um repertório limitado de signos, mas ao mesmo tempo essa
narração constrói os sujeitos que narram e o objeto narrado. Os atos são dispositivos
históricos tanto como produtores de história”. (Blázques, 1998: 14).
um desenho que vi reproduzido no ambiente escolar e que retrata o sentido da
escola bakairi, principalmente de suas cerimônias extra-classe. Nele, temos a bandeira
brasileira e, em seu círculo central, no lugar das estrelas e da faixa com os dizeres “ordem e
progresso”, domina a máscara do ritual do Iakuigady: um kwamby (ilustração da capa). Este
desenho pode ser considerado como uma ‘materialização’ da idéia de ‘integração’ à
sociedade brasileira da qual os Bakairi são portadores, idéia expressa no englobamento do
símbolo mais recorrente dos Bakairi, o kwamby
267
, pela bandeira nacional.
Verificamos hoje que os Bakairi se apropriaram do patriotismo incutido pelo SPI
como um modo da relação com os karaiwa ou brasileiros. Exemplos maiores disso são as
cerimônias patrióticas realizadas por intermédio da escola, seja de forma isolada, como
veremos na Parada de 7 de setembro, seja como parte integrante dos rituais por ela
promovidos. A titulo de ilustração do patriotismo que tomou conta dos Bakairi, temos a
importância dos jogos da seleção brasileira de futebol (mas também com menor ênfase de
outros esportes). Durante a copa do mundo de 2002, os jogos foram realizados de
madrugada e muitos acordavam para assistir. Nas olimpíadas de 2004 sempre torciam pelo
Brasil e ficavam “bravos” (tewyasein) quando o atleta que representava a ‘sua pátria’ perdia
em alguma modalidade. É feriado escolar quando jogo do Brasil na televisão, mesmo
sendo um amistoso sem muita importância. Ao mostrar indiferença diante dos jogos da
seleção brasileira, olhavam-me com um certo espanto: afinal, como karaiwa-brasileira
também deveria me importar com a vitória do Brasil. Poderíamos dizer que eles se sentem
tão brasileiros que a vitória ou derrota do Brasil no futebol são consideradas como suas. Sei
que estas não são características específicas dos Bakairi, pois o futebol se tornou parte
integrante da vida de muitos povos indígenas no Brasil. Entretanto, entre os Bakairi esse
267
A reprodução da máscara kwamby está em camisetas, cartazes, em peças de artesanato (brincos, colares,
miniaturas) e é o logotipo da associação bakairi.
304
aspecto deve ser ressaltado por fazer parte de um universo mais amplo, o patriotismo
bakairi, sendo o futebol mais um símbolo nacional por eles, diria, idolatrado.
Os alunos do sexo masculino manifestam freqüentemente o desejo de ingressar na
carreira militar, por ela ser duplamente civilizadora: defesa da pátria e defesa do parentesco
(possibilidade de emprego e captura de recursos). Entretanto, muito poucos conseguem
seguir este caminho; segundo os Bakairi, preconceito dentro do próprio exército em
relação aos indígenas, considerados de forma geral inaptos para a carreira militar. De
qualquer maneira, o militarismo é, para eles, o modo ideal da civilização, conforme foram
levados a pensar desde o tempo dos capitães Reginaldo, Caetano e Antoninho.
Se o nacionalismo e o patriotismo chegaram aos Bakairi como forma de inserção na
sociedade brasileira desde o século XIX (conforme notei no capítulo VI ao abordar os
‘capitães bakairi’), afundando suas raízes durante o período do SPI, a integração ao Brasil
como índios, isto é, pertencentes a um grupo culturalmente distinto, foi um processo que se
mostrou possível aos Bakairi não antes do final da década de 1970. Vimos ainda no
capítulo VI que a escola foi uma instituição central no programa integracionista do SPI,
além de espaço privilegiado das cerimônias cívicas. Mostrei também que a ‘cultura’, noção
introduzida nos Bakairi, teve na escola o lugar privilegiado para o seu desenvolvimento,
principalmente depois que seus professores passaram a freqüentar cursos de formação
norteados pelo princípio de interculturalidade. O conjunto escola-patriotismo-cultura se
mostrará em sua máxima expressão nas performances escolares extra-classe.
Os eventos extra-classe sempre iniciam-se com a realização de uma reunião,
atividade escolar que ao ser apropriada pelos Bakairi teve diminuída sua dimensão relativa
ao ensino dos conteúdos escolares e também como fórum de discussão e diálogo, e
enfatizado seu caráter de cerimônia escolar ou etapa preparatória para as demais
cerimônias. Iniciarei a abordagem das performances extra-classe pela reunião, passando,
em seguida, às ‘festas’ e ‘apresentações’.
2.3.1. A reunião
A reunião é atividade constituinte de uma instituição educacional oficial e como tal
é muito valorizada pelos Bakairi. Entretanto, foi apropriada por eles menos pelo seu
aspecto de ‘espaço democrático de discussão’ (como será tratado ao final desse capítulo) e
305
mais pelo aspecto de poder figurar como uma importante performance escolar. Na
realidade, a reunião pode ser considerada tanto um rito em si como também um estágio
preparatório das cerimônias escolares, onde se idealizam os programas, dividem-se tarefas,
pensam-se formas de arrecadação de recursos, etc.
O ritual da reunião pode ser classificado em tipos, de acordo com os participantes
envolvidos: reunião de professores; reunião da comunidade escolar, que envolve
professores, alunos e funcionários; reunião com a comunidade; além dos encontros entre
professores e assessores educacionais ligados a órgãos como secretarias estadual e
municipal de educação e Funai. As reuniões com presença de alunos acontecem quando há
um assunto que os envolva. Pode ser sobre sua participação em festividades, em
apresentações culturais, ou em alguma atividade organizada pelas secretarias de educação,
como avaliações; ou a escolha de como será empregado o dinheiro da “unidade executora”.
A reunião de pais acontece geralmente no início e no final do ano letivo. Em 2004, pude
assistir a uma delas na escola da aldeia Pakuera; estavam presentes professores, pais dos
alunos, lideranças comunitárias e alguns alunos. Conforme ocorre em todos os rituais do
tipo ‘reunião’ envolvendo a comunidade, forma-se uma ‘mesa’, composta das
‘autoridades’, no caso, professores e lideranças. Estes vão sendo chamados pelo nome e se
apresentam aos presentes. Depois de composta a ‘mesa’, que fica em frente à
‘comunidade’, lideranças e professores falam ao microfone, para somente então a
‘comunidade’ poder se manifestar.
Nesta oportunidade, as poucas críticas ouvidas foram motivadas, principalmente,
pela escassez de merenda. A maioria dos discursos girava sobre a importância da integração
de todos os segmentos da escola para que ela superasse seus problemas. Todavia, esta
integração verificou-se nula no decorrer do ano letivo, durante o qual cada pessoa cumpriu
o seu papel isoladamente, ninguém entrando no espaço do outro, nem tampouco agindo
juntos. Veremos na última seção desse capítulo que isso acontece a partir da forma própria
aos Bakairi de divisão das atividades e espaços sociais entre ‘donos’ (sodo), sendo
considerado inadequado romper esses limites. Assim, os professores (‘donos’ da sua sala de
aula), fazem seu trabalho isoladamente e a chamada comunidade se envolve novamente
com a escola de forma esporádica quando se realiza uma festividade. Neste descompasso
entre a retórica da ‘comunidade escolar’ e uma organização social baseada na autonomia
306
das famílias e na figura de ‘dono’ como mediador, surgem muitas acusações e unâ iwyku.
Uns acusam os outros pelos problemas enfrentados na escola.
Quanto às reuniões de professores, em várias em que estive presente, observei que
raramente se falava em questões relativas ao processo de aprendizagem dos alunos - as
dificuldades, as soluções, os métodos de ensino, os conteúdos, as formas de avaliação. O
assunto central era, na maioria das vezes, a realização de festividades, comemorações, ou a
prestação de contas à Secretaria Municipal de Educação, ou a aquisição de aparelhos como
computador e aparelho de som, enfim, questões rituais. Para comprovar minhas afirmações,
reproduzo, abaixo, um trecho de minhas anotações acerca de uma reunião de professores da
Escola José Pires Uluku (localizada na aldeia central):
O professor que dirigia a reunião avisou que chegou a televisão e o vídeo para a escola.
Um outro professor falou sobre a importância da televisão na escola para que os alunos
vejam programas como desenho animado com os quais eles poderão aprender muito sobre
a língua portuguesa e também sobre o mundo “lá fora”. Houve depois uma discussão
acerca da importância da aquisição de computadores e sobre a possibilidade da Funai
“trazer a internet para cá, possibilitando viajar para todo lugar”. Foi alertado que cabe
aos professores cuidar dos aparelhos novos.
Passou-se a um novo tema: a organização da festa do Dia das Crianças. Houve
sugestões sobre se fazer teatrinho, jogral, gincana, declamação de poesia. Sugeriram que o
bolo e os refrigerantes fossem doados pela Pastoral do Menor (setor da Igreja Católica).
Um professor sugeriu que houvesse a brincadeira de fantasiar uma pessoa para os alunos
adivinharem quem seria. Uma professora deu a idéia de realizar “brincadeiras da
cultura”, e se explicou: “bem infantil”. Foi aventada também a idéia de promover
atividade como “pescaria” e “correr atrás do porco”. Sobre a participação das escolas
das outras aldeias, decidiu-se que não haveria, pois “vai ficar difícil deles participarem de
tudo”. Ficou acertado que a comemoração teria gincana de dia e poesia e teatro à noite.
Um professor alertou para a importância em se seguir o calendário da secretaria de
educação.
Este relato oferece um exemplo das discussões geralmente realizadas nas reuniões
de professores. No inicio, uma conversa sobre a importância da aquisição de bens
industrializados, entre os quais computador, vídeo e televisão simbolizam o acesso à
modernidade (termo contemporâneo para a idéia de civilização). A existência de objetos
rituais é muito valorizada na composição dos ritos bakairi, como é o caso das máscaras,
bastões, roupas, adereços etc. presentes no kado. Na performance escolar de civilização, os
307
objetos são outros, condizentes com o outro universo com o qual interagem: os karaiwa. A
relevância, na reunião relatada acima, da festa do Dia das Crianças é, também,
representativa do caráter desses eventos. Estávamos no mês de outubro, por isso o foco era
o Dia das Crianças. Em abril o Dia do Índio
268
, em maio, o Dia das Mães, em junho a
Festa Junina e em agosto o Dia dos Pais, em setembro o Dia da Independência, em outubro
o Dia das Crianças, em novembro o Dia da Proclamação da Republica, e em dezembro a
Formatura. Cada ano, de acordo com as circunstâncias, estas festividades acontecem com
maior ou menor intensidade, mas sempre envolvem um mesmo repertório de signos
comemorativos, conforme é observado entre os karaiwa, como bolo, refrigerante,
churrasco, brincadeiras, baile, etc. É significativo também o que não foi falado na reunião e
que não é costume ser discutido: questões de ensino-aprendizagem, definidas segundo a
pedagogia ‘ocidental’.
2.3.2. Apresentações e festas
As performances escolares, que tem um caráter não cotidiano e não restrito aos
limites escolares, seguem, da mesma forma que as aulas, a estrutura oficial de instituição de
ensino. Assim, veremos, as atividades são enquadradas na disciplina escolar, através dos
mecanismos da nota, da presença, do comportamento, além de enfatizarem os símbolos
patrióticos, expressão do lugar de civilização e inclusão nacional que a escola ocupa. Por
outro lado, as performances extra-classe também reforçam o lado de inclusão ‘enquanto
índios’, aspecto para os Bakairi de difícil conciliação com os eventos escolares cotidianos
(aulas), que primam por respeitar. Neste sentido, mesmo havendo espaços reservados
durante as aulas para a ‘cultura bakairi’ - as disciplinas ‘artes’ e ‘língua materna’ - esta
ganhará foro privilegiado em atividades como as comemorações e as apresentações. Estas
últimas são eventos concebidos como uma espécie de teatro de caráter informativo com a
finalidade de “levar a cultura bakairi para as pessoas não-indígenas que não a conhecem”.
Com o objetivo de demonstrar o amplo leque dessas performances, iniciarei por
uma comemoração acontecida dentro dos limites da escola para marcar a data da
inauguração do novo prédio escolar da aldeia Pakuera. Depois, passarei para uma
268
Sobre o Dia do Índio falarei adiante.
308
apresentação realizada no Município de Planalto da Serra (ao qual pertence uma pequena
parte da Área Indígena Bakairi); descreverei também a cerimônia patriótica representada
pela ‘Parada de Sete de Setembro’ promovida pela Prefeitura de Paranatinga com
participação dos alunos e professores bakairi; finalmente tratarei de duas cerimônias de
kado, uma promovida pela escola com participação da ‘comunidade’ e outra promovida
pela ‘comunidade’ com participação da escola.
A festa de inauguração da nova escola
A festa de inauguração do novo prédio escolar da aldeia central Pakuera aconteceu
em março de 2003. Como de costume, o ritual iniciou-se com uma reunião preparatória,
onde foram constituídas as turmas que fariam as apresentações, foram designadas tarefas
para cada um dos professores, e foram definidos os que profeririam discursos (o prefeito, os
representantes das secretarias de educação, o cacique, o chefe do posto, o presidente da
Associação, o coordenador da escola e um dos professores).
No dia que antecedeu a festividade, alunas, professoras e merendeiras fizeram uma
faxina em toda escola. Aos homens coube a preparação da churrasqueira. Mais tarde os
alunos de 5
a
a 8
a
série foram ensaiar a dança que apresentariam, dirigida pelo cacique de
uma outra aldeia. Durante o ensaio os alunos brincavam muito e por isso foram ameaçados
de punição com uma “anotação” de mau comportamento. Enquanto isso, as crianças de 1
a
a
4
a
série eram pintadas pelas professoras. Na data da comemoração, cedo (pealâ), os alunos
se paramentaram em “trajes de índio”
269
- as moças em suas casas, e os rapazes na palhoça
em frente à escola antiga. Ao chegarem à escola nova, as pessoas iam ocupando seus
lugares, conforme prevê a ‘cultura dos brancos’: as lideranças sentavam à ‘mesa’ colocada
dentro da área comum da escola, as demais em cadeiras colocadas entre a mesa e a área
externa onde aconteceriam as apresentações. Depois de composta a ‘mesa’ - pelas pessoas
previstas na reunião mais a representante do setor de educação da Funai, ela mesma bakairi
iniciaram-se os discursos e as apresentações dos alunos. Estas últimas aconteceram da
seguinte forma: primeiro as crianças da 1
a
a 4
a
séries dançaram o pajica (tamanduá), depois
269
Foram estas as palavras de um dos alunos a propósito da preparação de seus corpos para a festa.
309
vieram os alunos do ensino médio, que cantaram duas canções em português, uma de
autoria de uma dupla sertaneja bakairi e a segunda parte do repertório de uma outra dupla
sertaneja, não bakairi, mas que tem ‘índios’ como tema. Reproduzo as letras dessas
canções:
Norte de Mato-Grosso
Ao norte de Mato-Grosso
Planalto, serras e campos
Do Paranatinga ao Xingu
É terra de um grande povo
Nação dos Bakairis
Os filhos morenos do sol
Iwâkuru Kurâ-Bakairi ama
Cresce, espalha filhos nessa terra
Trabalha e luta unidos
Para ser uma grande nação
Os filhos morenos do sol
Pakuera é nosso rio
É o reino de Iakuigady
Kado ety lá na aldeia
Tem cheiro de buriti
A cor da tabatinga e urucum
Iwâkuru Kurâ-Bakairi...
Braços Curados
Eu sou índio que luta
Procuro uma estrela encontrar
Racismo e preconceito é grande
Devo superar
Apostando na dura sorte
Sair pelo mundo a cantar
Mostrando através da canção
Ser humilde, saber respeitar
Quantas saudades dos sons das águas e cachoeira
Por entre as pedras (fazem) zoeiras
E os peixinhos livres a nadar
Meu arco e flecha eram certeiros e traiçoeiros
No tiro alvo fui o primeiro
Braços curados
Dono do lugar
Sigo um caminho incerto
310
Mas devo mostrar meu valor
Levo o povo nas costas
Dos índios sou defensor
A lua ilumina meus passos
Mostrando onde devo pisar
O vento me traz a mensagem
Me obrigam cantar e sonhar
Quantas saudades dos sons das águas...
Continuando as apresentações, as turmas de 5
a
a 8
a
séries mostraram a dança udodo/
pajica (onça e tamanduá) e os alunos da EJA (Educação de Jovens e Adultos) cantaram
uma música que falava do sol e da lua e depois outra com letra em bakairi. Enquanto os
alunos que fizeram apresentação da ‘cultura’ estavam ‘trajados de índio’, os que cantaram
estavam vestidos ‘socialmente’ - as mulheres de vestidos longos e os homens de calça,
camisa social e sapato. Ao final da festa, o cacique e o prefeito descerraram a placa de
inauguração da escola e começou a ser servido o churrasco.
Pela descrição acima, podemos identificar alguns elementos característicos desse
tipo de cerimônia escolar. Em primeiro lugar deve ser destacado o ensaio das danças,
atividade que faz sentido quando a dança está sendo tratada como apresentação. Como
vimos, a passagem de conhecimento ao modo bakairi é feita através da participação em um
contexto, onde ao mesmo tempo em que se observa se pratica. O ensaio, então, é tanto um
sinal da falta de oportunidade das crianças aprenderem as danças (tâdâidyly) fora do
ambiente escolar, como também uma forma escolar, pois pressupõe um professor que
explica ou ensina, e portanto, um contexto de aprendizagem análogo ao da aula.
Como em um espetáculo, as apresentações são ensaiadas para que os alunos
realizem o procedimento de forma considerada certa, isto é, que os espectadores, no caso os
‘brancos’, fiquem satisfeitos com o domínio que os dançarinos têm sobre o que estão
fazendo. Veremos, em breve, a função primordial ocupada pelo ‘público’, não apenas nas
apresentações como também nos “rituais dentro da cultura”.
Outra novidade introduzida pela ‘cultura apresentada pelos alunos é a punição de
quem não participa da dança. Este fato demonstra que a ‘cultura’ na escola está submetida à
mesma disciplina e controle que as outras atividades. A divisão por rie para a
311
apresentação de cada dança também é um exemplo da submissão desta atividade à
disciplina escolar, que vem gradualmente ‘contaminando’ as cerimônias realizadas fora do
domínio escolar, onde os alunos, como veremos, ocupam lugar de destaque nas danças, nas
quais raramente participação de membros da ‘comunidade’. Isso se deve ao fato da
escola estar assumindo um papel fundamental nas cerimônias do kado (mesmo quando não
as promove), concomitantemente ao incremento da identificação do kado como ‘cultura’.
Veremos mais adiante que esta ampliação da função da escola está relacionada ainda a sua
associação com o kado, pois ambos são meios privilegiados de captura de recursos, no
primeiro caso, daqueles cujos sodo são karaiwa e, no outro, daqueles cujos sodo são
iamyra.
ainda um elemento a ser ressaltado. Os alunos se vestem segundo o padrão de
festa tanto bakairi como karaiwa. Os mais novos estão pintados e enfeitados como em um
ritual bakairi, enquanto os mais velhos estão com roupas sociais, usadas geralmente em
momentos ritualizados na sociedade regional (para eles ‘os brancos’), como casamentos e
formaturas. A escola bakairi, mais uma vez, através de seus rituais, faz com que os Bakairi
possam se expressar como índios-brasileiros. As ‘roupas’ de ‘índio’ e de ‘branco’ são,
portanto, meios ou aparatos importantes para sua ‘transformação’, como observei
anteriormente, cada uma tendo, entretanto, conseqüências práticas diferentes de acordo com
a sua “forma funcional” (Barcelos, 2004:61). Quer dizer, ao se vestir ‘como branco’ é
ativado o caráter de civilização aprendido por eles como veiculo fundamental de
familiarização com os karaiwa (como iguais); por outro lado, surgiu a partir da década de
1970, com o movimento de valorização da diversidade cultural, um novo modo de
integração, desta vez através da diferença – a ‘cultura’ – que faz com que hoje eles
disponham de mais esta possibilidade de interlocução com os karaiwa.
Quanto às músicas apresentadas, algumas características saltam aos olhos, como a
influência do repertório sertanejo, muito ouvido na região. Seus temas refletem a
assimilação da idéia de ‘índio’ do senso comum brasileiro. A variedade de referências a
fenômenos da natureza como rio, buriti, tabatinga, urucum, sol, lua, peixes e cachoeira
atestam a exploração de estereótipos, mesmo ao falar de lutas e preconceitos.
Apesar da forte presença de elementos vindos da sociedade karaiwa, podemos notar
nesse ritual escolar alguns fatos que apontam para a estrutura do kado. Assim, na
312
preparação da festa, as mulheres se responsabilizaram pela limpeza da escola, como o
fazem com o pátio central antes do kado. Os homens, por sua vez, tradicionalmente
provedores de carne, providenciam o churrasco. E ainda, os rapazes se reúnem na palhoça
para se paramentar, da mesma forma que outrora costumava-se fazer no kadoety.
Cerimônia em Planalto da Serra
Vejamos agora um outro evento ‘apresentação’ ocorrido em um contexto externo a
uma aldeia bakairi. Em setembro de 2003, os alunos da escola da aldeia Pakuera foram
convidados por uma instituição de ensino do município de Planalto da Serra para
participarem do Seminário da Juventude Planaltense. O evento foi iniciado, como o
descrito anteriormente, com a ‘composição da mesa’, sendo convidados a tomar assento os
professores indígenas responsáveis pela apresentação cultural, o coordenador da escola José
Pires Uluku, o professor que tem graduação em economia, e, ao saber que eu fazia
doutorado, fui considerada também como autoridade para juntar-me a eles. Os outros
professores, apesar de presentes, não se apresentaram nem mesmo para dançar (geralmente
somente os três professores responsáveis pela ‘cultura’ dançam).
A programação iniciou-se com um debate, durante o qual imperou um discurso
recheado de “os índios são...”. Nestes termos eram formuladas tanto as perguntas da platéia
como as respostas dos professores bakairi, reforçando a idéia de ‘índio genérico’. Afinal,
sua presença ali se justificava por essa condição. Após o debate, os alunos indígenas
apresentaram um pout-pourri de danças bakairi.
Houve no dia seguinte, na palhoça central (espaço público de reuniões e baile) da
aldeia Pakuera, um outro evento que gostaria de abordar como contraponto a essa
apresentação externa. Como gancho para a comparação utilizarei o comentário de uma
professora bakairi durante o seminário de Planalto da Serra: índio não tem música de
calcinha e bundinha. Entretanto, no dia seguinte, a apresentação realizada na aldeia
central viria a contrariar sua declaração ao demonstrar o gosto dos Bakairi pelas músicas
313
dos programas televisivos de auditório. A professora não tinha ‘mentido’. O evento
‘interno’, ao contrário do ‘externo’, não se pretendia cultural; era uma apresentação de
bandas que imitavam cantores ‘brancos’, demonstrando que, se, fora da aldeia, eles se
apresentavam como ‘índios’, no âmbito da aldeia, inversamente, eles dançavam e cantavam
como karaiwa.
No inicio do evento na Aldeia Pakuera, como é costume, falaram as lideranças -
cacique, chefe do posto, coordenador da escola e presidente da associação todos
ressaltando a importância do intercambio cultural ocorrido no dia anterior, mais uma
oportunidade de mostrar sua ‘cultura’. Depois vieram duas “bandas” fazendo um “cover”
de “Kelly Key” e “Cowboy”, sucessos na televisão
270
. A primeira, como aparece nos shows
da cidade, estava cercada de seguranças”. Entre uma apresentação e outra o “locutor” se
manifestava ao microfone, tendo sua fala repleta de “bordões” comuns em eventos da
cidade e da televisão. Dizia ele: Essa banda vai chegar ao topo. Agradecia aos
“patrocinadores”, citando nomes de pessoas da comunidade, que designava como
“fazendeiros”, responsáveis pela “padaria” (referindo-se ao forno da Pastoral da Igreja
Católica) e da Associação Kurâ-bakairi. Após o “cover”, apresentaram-se duas bandas”
“J.M., Juventude Musical” e “Banda União” - ao vivo”, com teclado e vocalista, cantando
músicas de sucesso regional no estilo conhecido como “lambadão”.
A comparação entre as duas apresentações é inevitável. Ela reforça a tese de que a
‘cultura’ e, portanto, as apresentações culturais,existem em relação aos karaiwa. Insere-
se mais um dado: entre seus pares, não havendo a necessidade de afirmação da sua
‘identidade indígena’, o exercício é dominar a ‘cultura’ do ‘branco’, ou seja, se apresentar
como ‘branco’, imitando (ekudyly) suas danças, músicas e coreografias.
A parada de Sete de Setembro
Outra cerimônia para a qual os Bakairi costumam ser convidados a participar
anualmente é a Parada de Sete de Setembro. Irei descrevê-la conforme a observei no ano
270
Não sei se alguma relevância no fato de ambas serem lideradas por filhos de professores, bem como as
outras duas que faziam “cover” mas que não se apresentaram no dia. Há ainda um outro grupo formado pelas
filhas do cacique.
314
de 2004. Alguns dias antes houve ensaios para organizar a posição e o papel de cada aluno
no desfile. No dia anterior ao evento, a prefeitura mandou um ônibus para buscar os alunos
bakairi. Alguns deles, principalmente os já casados, demonstraram desagrado em ter que se
deslocar com filhos para Paranatinga nas precárias condições de hospedagem que são
oferecidas pela prefeitura. Partiram, mesmo a contra gosto, pois alguns professores iriam
dar ‘nota’ para a participação. No dia do desfile, acordaram cedo e se prepararam com
‘trajes de índio’ (ver foto 7). Na avenida principal da cidade, a população ficou nas
calçadas e as autoridades no coreto. A cerimônia iniciou-se com a chamada feita às
autoridades municipais para subirem ao palanque, depois começou o desfile tendo à frente a
fanfarra municipal
271
. A seguir, o prefeito hasteou a bandeira do Brasil e todos cantaram o
hino nacional. No segundo bloco, vieram os alunos bakairi
272
, os primeiros com bandeiras
do Brasil, Estado de Mato Grosso e Município de Paranatinga, depois outros, segurando
uma faixa com o nome da escola indígena da aldeia central; os que vieram mais atrás, ao
passar em frente ao palanque, começaram a dançar e cantar suas músicas ‘tradicionais’.
Alunos e professores atuavam como índios-brasileiros, índios no trajar, cantar e dançar, e
brasileiros ao portar as bandeiras e cantar o hino nacional. Através desta pedagogia
ritualística, como vimos, os alunos representam seu papel de índios-civilizados, inseridos
na totalidade ‘Brasil’.
271
Muitos professores revelam o desejo de terem uma fanfarra na escola bakairi.
272
Neste ano os Xavante, outra etnia do município, não compareceram.
315
Foto 7: Sete de Setembro (foto Celia Collet)
É evidente, durante a cerimônia, paradoxalmente, a distância que há entre os não-
indios e os índios residentes no município de Paranatinga, os primeiros desconhecendo
completamente a realidade dos segundos. A Parada, ao invés de promover uma
aproximação, é um momento de expressão da distância. Na platéia, os karaiwa comentam
até que aquela indiazinha é bonitinha, como se um indígena em geral visto localmente
como sujo, feio e ignorante - não pudesse ter boas qualidades.
Ainda nos cabe perguntar: por que os alunos indígenas não desfilam como os
demais com uniforme ou roupa de parada’? Por que é dado como óbvio que eles desfilem
colocando em destaque sua ‘origem étnica’? Os descendentes de alemães e italianos vindos
do Paraná, que formam grande parte da população de Paranatinga, por exemplo, não
marcam suas origens culturais no desfile; por que, então, é esperado dos índios fazê-lo? Em
suma: por que aos alunos indígenas somente a possibilidade de se expressar enquanto
‘índio’
273
?
273
ainda outro exemplo de participação dos alunos bakairi em eventos municipais, que mostra como são
alocados (e se alocam) enquanto “índios”. Em 2004 houve uma feira de ciências na escola estadual a qual o
ensino médio bakairi é vinculado. Ao passo que os alunos “brancos’ se posicionavam como “sujeitos” dos
seus experimentos, os alunos bakairi convidados ocupavam o lugar de ‘objetos’, mostrando a si mesmos,
através de seu artesanato e pinturas, como “experiências”.
316
Porque assim é como são vistos, e como aprenderam também a se ver. Os rituais
patrióticos, executados varias décadas, tiveram e têm papel fundamental na construção
deste personagem, pois foi através deles que os Bakairi aprenderam a ser índios e, ao
mesmo tempo, brasileiros. A continuidade de tais performances mostra que este
aprendizado é extremamente atual, apontando ainda para o futuro na manutenção desses
termos de classificação e de auto-classificação social. A escola, instituição que está à frente
da organização desses rituais, é um veículo dos mais importantes no reforço destas duas
‘identidades’ reciprocamente dependentes: ‘índio’ e brasileiro.
Passarei agora a mostrar dois rituais iniciados no Dia do Índio, ambos mesclando
referências patrióticas e ‘culturais’. O primeiro foi promovido pela escola, enquanto o outro
foi de responsabilidade do cacique da aldeia Pakuera, embora com participação
fundamental da escola.
2003: Âriko e Dia do Índio
Como todos os eventos escolares, o evento agora descrito se iniciou pelo rito da
reunião, na qual foi proposta a realização da festa do Dia do Índio de 2003. Foi decidido
que haveria a realização do Âriko (ritual cujas características gerais abordei no capítulo V).
Para tanto, era preciso tomar algumas iniciativas que extrapolavam os limites da escola,
como convidar o pajé, pois, como todo kado, o Âriko também atrai iamyra (causa potencial
de doença). Era preciso, ainda, marcar uma reunião com a ‘comunidade’ para consultar os
‘donos’ (sodo) do ritual. Como não há festa bakairi sem consumo coletivo de comida
(pyni), foi combinado um churrasco para o qual cada aluno deveria contribuir com certa
quantia em dinheiro. Três professores, normalmente responsáveis pela ‘cultura’, foram
convidados para cantar e organizar a dança dos alunos. Foi tratado ainda que todos seriam
dispensados das aulas durante os dias antecedentes à festa, para que pudessem ajudar na
pescaria. Como o assunto envolvia a chamada ‘comunidade’, compareceram à reunião
inicial, além dos professores, o cacique e o chefe do posto. Estes, apesar de apoiarem a
iniciativa da escola, dando sua permissão para a organização da festa, deixaram bem claro
317
que os rituais são de sua responsabilidade e não da escola. A comemoração, então, foi
estruturada nos seguintes moldes: a organização geral caberia à escola, mas cada um dos
membros da aldeia, ‘donos’ do Âriko
274
, desempenharia seu papel como deveria.
No dia 19 de abril de 2003, depois de feitos todos os contatos necessários, houve
finalmente a festa. Durante a madrugada, os homens se reuniram na tasera e deram início
aos cânticos (tâjigâtudyly) e outras performances do ritual, indo de casa em casa das
famílias dos sodo dos âriko para pegar mingau (pogu ese), como prevê o script da
cerimônia. Eu, como mulher, pude ouvir os cânticos e, quando amanheceu o dia, fui
informada de que eles tinham como tema comportamentos negativos de algumas mulheres,
das quais, no dia seguinte, algumas foram à tasera responder, também ritualmente, às
acusações e ainda lançarem outras contra alguns homens. Até então a escola não havia se
mostrado, pois os professores e alunos estavam participando apenas como “membros da
comunidade”. A participação escolar aconteceu no período do dia através da realização de
algumas danças, das quais os alunos e os professores responsáveis pela ‘cultura’
participaram (havendo, como de costume, uma ameaça de punição aos jovens que não se
fizessem presentes). Ao fim, não aconteceu o churrasco previsto na reunião, pois se
mostrou impossível que todos os pais contribuíssem com uma “cota”, visto que muitas
famílias não contam com fonte regular de dinheiro e que outras são compostas de muitos
estudantes, fato que multiplicaria o valor a ser pago.
Nos dias que se sucederam à festa, ainda conforme o roteiro ritual, deveria continuar
a busca de mingau (pogu ese) nas casas dos sodo. Entretanto, como se tratou de uma
atividade organizada pela escola e prevista para comemorar uma data - o Dia do Índio a
participação das pessoas foi muito parcial, levando a sua interrupção. O evento, contudo,
pode ser considerado mais um exemplo do novo contexto em que acontecem os rituais ante
o domínio da escola: há uma simplificação da cerimônia com a retenção de algumas
características centrais, de modo que possa se adaptar às condições da estrutura escolar e ao
seu calendário. Em situações como esta podemos dizer que o kado se transforma em
‘cultura’, ou mesmo, que a ‘cultura’ é o ekudyly (imitação) do kado.
274
Âriko é o nome dado ao ritual, bem como aos bastões que são usados durante a performance, cujos ‘donos’
(sodo) devem prover comida para o kado.
318
Antes de passar à análise de outro ritual, o Iakuigady, penso ser necessário refletir
sobre a relação entre todas as cerimônias do kado conhecidas atualmente pelos Bakairi e a
‘cultura’, da forma como é vivenciada no ambiente escolar. Neste sentido, percebi que as
cerimônias que envolvem diretamente entidades que habitam as águas - tratadas pelos
Bakairi como “muito sagradas” - como é o caso do Kapa, Iakuigady e Sadyry, não foram
incorporadas pela escola.
275
Isso quer dizer que não são promovidas pela escola, nem os
alunos são seus protagonistas. Talvez, a separação entre escola e kado, nessas situações, se
justifique pela maior necessidade de especialistas, seja na confecção das ‘roupas’, na
mediação com os espíritos ou mesmo nos cantos. Como vimos no capítulo II, acredita-se
que qualquer falha na execução do roteiro ritual possa gerar doenças entre os envolvidos,
sendo, então, perigoso simplificá-la para seu enquadramento na estrutura escolar.
Tudo isso não impede os Bakairi de utilizarem essas cerimônias, em certos
momentos, como meio de intermediação com os karaiwa ou seja, como ‘apresentação’,
‘cultura’ - ao invés de, como de costume, de intermediação com os iamyra. É o caso do
Iakuigady, realizado em cidades como Belo Horizonte e Rio de Janeiro, enquanto
‘apresentação’ – gênero que dispensa o cumprimento de todas as etapas e obrigações
envolvidas no ritual “original”, muitas vezes impossível de ser cumprido: como oferecer
(sakuily) comida à mascara quando viaja-se longas distâncias de ônibus para fazer a
apresentação? Também, na cidade, como continuar alimentando as máscaras? Além disso,
conforme fiquei sabendo, a confecção dos objetos rituais, nesses casos, não necessitaria de
tanto cuidado quanto para o ritual “original”. As máscaras “originais” devem seguir um
padrão preestabelecido de tamanho, desenho (iwenyly) e não podem ser pintadas com
qualquer tinta, mas com urucum (aunto), tabatinga(kawin) e uma resina misturada ao
carvão(kadogynu).
De toda forma, a realização dessas ‘apresentações’ se justificaria pela necessidade
de divulgação do Iakuigady entre os karaiwa - mesmo que com adaptações - pois, assim,
apesar da falta de eficácia sobre os iamyra, seria um modo de garantir recursos junto aos
275
Todas as cerimônias do kado são, de certa forma, sagradas, pois sempre envolvem os iamyra. Entretanto,
algumas consideradas ‘muito sagradas’ como o Iakuigady, Kapa e Sadyry. O que pude verificar nesse
sentido é que todas aquelas tidas como ‘muito sagradas’ envolvem a evocação dos iamyra a saírem do
ambiente espiritual sub-aquático e passarem a habitar o kadoety. Para elas, então, são imprescindíveis a
proximidade de um rio e também a existência de uma casa de kado (kadoety). Outro fator digno de nota é que
entre elas estão as cerimônias em que aparecem as ‘máscaras’, o Iakuigady e o Kapa.
319
karaiwa (através da ‘cultura’). Todavia, dentro da área dos Bakairi, o Iakuigady é realizado
apenas da maneira ‘original’, não sendo feito nem mesmo na escola, o valendo a pena
arriscar-se aos perigos potenciais existentes na simplificação do ritual.
Já o Âriko e Anji itabienly têm sido apropriados de maneira diferente pela escola. O
Anji itabienly, apesar de nunca ser promovido pela escola e ter grande parte da cerimônia
coordenada pelo ‘dono’ – ‘arremesso do milho’, comida, escarificação – têm em suas
danças e brincadeiras a participação sobretudo daqueles que se inserem na categoria
‘aluno’. O Âriko, conforme foi demonstrado, em uma de suas edições, pode ter a escola
como ‘dona’ e, portanto, responsável pela organização da festa, mas, assim como no Anji
itabienly, os alunos participam apenas no momento das danças, sendo as partes referentes
ao canto dos homens na madrugada e as idas a casa dos ‘donos’ para buscar comida
realizadas por ‘pessoas da comunidade’.
São principalmente as danças e brincadeiras que fazem parte do Âriko e do Anji
itabienly que são ‘imitadas’ (ekudyly) nas apresentações escolares, sendo consideradas, em
contraposição com aquelas do Kapa, Iakuigady e Sadyry, ‘menos sagradas’. Nos rituais
tratados até agora inauguração da escola, Sete de Setembro, seminário de Planalto da
Serra – as danças que foram apresentadas eram todas retiradas do Âriko ou do Anji
itabienly.
No entanto, quando realizadas no Dia do Índio, as cerimônias sempre compreendem
uma parte patriótica reservada à escola (desde o tempo do SPI). Veremos a respeito do
Iakuigady de 2004 que, apesar de promovido pelo cacique da aldeia central, a escola teve
destaque no momento de hasteamento da bandeira e da execução dos hinos e, ainda, em um
episódio durante a preparação da cerimônia em que um livro didático foi usado como
modelo para a pintura de uma das máscaras. Passemos ao Iakuigady de 2004.
2004: Iakuigady e Dia do Índio
320
Foto 8: Iakuigady: adakobâdyly (foto Celia Collet)
Se no ano de 2003 tinha havido um Âriko simplificado, característica do kado no
contexto escolar, em 2004, o Iakuigady foi realizado com todos os detalhes, com as
seqüências corretas, a preparação ‘tradicional’ das tintas para pintar as máscaras, a
perfeição nos cantos e na confecção e exibição das máscaras, além do ritual ter durado
muitos meses além do Dia do Índio, com os ‘donos’ das máscaras provendo a sua “comida”
quando solicitados. Observamos ainda que o envolvimento da população foi geral:
mulheres, homens e crianças participaram em conjunto, cada um em seu papel.
Em março de 2004, começaram as negociações para realizar, novamente, o
Iakuigady: o então cacique foi à casa dos sodo das máscaras e também dos especialistas em
cantos (tâjigâtudyly) e confecção de máscaras
276
, para saber quem gostaria e teria condições
de participar. Com o apoio de muitas pessoas houve, então, uma reunião envolvendo todos
os sodo das máscaras – ou seus representantes, no caso dele morar em outra aldeia ou de ter
‘emprestado’ a máscara para outro provisoriamente que se comprometeram publicamente
a participar do kado.
Depois de tudo acertado, contando com um número suficiente de máscaras
participantes, o pajé marcou o dia em que o kado iria “subir” (âkuly), isto é, em que os
‘espíritos’ que habitariam as máscaras deixariam o fundo do rio e iriam ser levados para o
276
Por “máscara” se chama não somente a máscara propriamente dita, mas sua vestimenta completa. Não
na língua bakairi uma palvra geral para máscara, existindo apenas os nomes específicos de cada uma delas.
321
kadoety. Deste, posteriormente, sairiam para fazer o adakuily (ir cantando para buscar a
comida do kado na casa de seu ‘dono’) pela aldeia, a partir do dia 19 de abril, data marcada
para a apresentação (egasely) das máscaras.
Passo a relatar o que me foi contado por alguns homens, pois as atividades relativas
à subida (âkuly) das máscaras e as realizadas no interior do kadoety são vedadas às
mulheres.
No dia escolhido pelo pajé, foi feita reunião entre os homens. Como se esperava,
o tempo que estava seco, sem chuvas fazia alguns dias, começou a mudar, nuvens foram se
formando e no final do dia caiu uma grande tempestade (kopa tewiaseran, literalmente
chuva brava), sinal de que os iamyra estavam presentes. Quando anoiteceu, as mulheres
ficaram reclusas nas casas e os homens foram até o rio para participar da subida das
máscaras. Ao chegar lá, o pajé deu aos sodo das máscaras (ou seus representantes) um
pedaço pequeno de madeira (se imeimbyry), depois realizou o ritual próprio para a subida
dos espíritos das máscaras, que, a partir daquele momento, passaram a habitar os se
imeimbyry, até que as máscaras propriamente ditas ficassem prontas e pudessem, elas
mesmas, ‘guardar’ os espíritos. Voltando ao kadoety, os cantadores entoaram o canto
(tâjigâtudyly) próprio para aquele momento e, então, os sodo das máscaras ofereceram, um
de cada vez, aos outros homens, ritualmente, o se imeimbyry. Todos deveriam se negar a
pegá-lo, apenas aquela pessoa com quem já havia sido feito acordo prévio deveria aceitá-lo
e segurá-lo, passando a ser considerado iegado sanâni, ou seja, a pessoa que cuidará e
vestirá a máscara. Depois desta etapa, os iegado sanâni foram, seguindo a hierarquia das
máscaras (ver quadro no capítulo V), cantando a música própria de cada máscara, à casa do
seu sodo, onde lhe ofereceram comida, posteriormente levada ao kadoety e repartida entre
os homens, seguindo uma ordem claramente prevista, primeiro o pajé (piage), depois o
cacique (pyma), em seguida o sodo da máscara e os mais velhos (agaityon), os restantes
ficando por últimos.
No dia seguinte, os homens saíram para pegar a madeira e o cipó, matérias primas
principais para a confecção das máscaras. Ao voltarem à aldeia, foi avisado em tom bem
alto que as mulheres deveriam novamente entrar nas casas, até todo o material ser colocado
dentro do kadoety. Começou, então, a parte da confecção das máscaras; cada iegado sanâni
se responsabilizou pela sua máscara. Todo o trabalho foi feito dentro do kadoety, sem a
322
participação das mulheres. Entretanto, aquelas que moram nas casas dos sodo de máscara
tiveram a tarefa de fazer a comida (pyni) para as máscaras. Foram algumas vezes pegar
mandioca na roça da comunidade, depois, com outras mulheres de sua família, prepararam
o polvilho (samu) para o awado (beiju), o pogu (mingau) e a farinha destinada à produção
do pirão de peixe. Foi também tarefa das mulheres, depois que os homens trouxeram as
folhas do buriti, tirar a sua “seda” para fazer o “cabelo” e os “braços” da máscara e a fibra
para fazer sua “saia”. A confecção da “roupa”, porém, é tarefa masculina, realizada no
kadoety.
Até que as máscaras saíssem (egasely) do kadoety, eram os meninos que deviam
buscar comida (pyni ese); depois, as próprias máscaras desempenhariam esse papel através
do adakuily (passeio das máscaras, que, cantando, buscam comida na casa do seu sodo),
com ou sem a ajuda de um menino. As crianças de sexo masculino participam de todo o
processo, ajudando em pequenas tarefas, observando, escutando, aprendendo cada etapa da
preparação do ritual. Nas primeiras semanas do Iakuigady os meninos não falavam em
outra coisa, estavam muito envolvidos com tudo o que acontecia, prestavam atenção a cada
parte e comentavam em casa sobre o que estava acontecendo, cantavam as músicas das
máscaras, que foram aprendendo aos poucos.
Os jovens estavam presentes, principalmente aqueles cujas famílias eram sodo de
máscara. Neste ano, dois jovens foram escolhidos para serem iegado sanâni das máscaras
mais importantes. Este fato suscitou preocupação, pois, com sua falta de experiência,
poderiam errar o canto e, assim, trazer problemas para a comunidade, como doenças ou
escassez de alimentos. Entretanto, ao que parece, eles cumpriram bem com a sua obrigação.
Os demais jovens passaram a participar mais ativamente depois da saída (egasely) das
máscaras, quando puderam vestí-las e passear (adakobâdyly) pela aldeia. Quando as
máscaras estavam preparadas, os homens foram pescar (nrân awely) para poder suprir
o peixe (kânrân) necessário para a comida das máscaras no dia de sua saída (egasely).
O dia 19 de abril, Dia do Índio, foi escolhido para as máscaras deixarem o kadoety.
A escolha deste dia é bastante significativa e assinala a institucionalização de algumas
práticas e rituais cívicos do SPI junto aos Bakairi. Em documentos do SPI, mencionados no
capítulo VI, podemos observar a estrutura da comemoração do Dia do Índio do ano de
1951, marcado por manifestações de civismo e de “cultura indígena”. Se compararmos a
323
festa do Dia do Índio do tempo passado sob a tutela do SPI com a observada no ano de
2004, percebem-se muitas semelhanças. Assim, o dia 19 de abril de 2004, iniciou-se
quando, por volta das 4 horas da manhã, ouviu-se um chamamento à comunidade,
marcando o inicio das atividades. A partir de então, na casa dos sodo começou-se a
preparar a comida (pyni) das máscaras, enquanto outras pessoas iam ao rio para banhar-se e
estudantes e homens participantes do kado se aprontavam segundo o modo ritual bakairi.
Quando o sol nasceu, todos observaram a saída (egasely) das máscaras do kadoety,
primeiro os kwamby, de dois em dois, e depois os Iakuigady. Elas dançaram na tasera,
voltaram ao kadoety e depois saíram novamente para, cantando, ir buscar comida (adakuily)
na casa de seu respectivo sodo e levá-la ao kadoety para que os homens pudessem
banquetear. Terminada esta parte, as pessoas que estavam voltadas na direção da casa do
kado, na direção do oeste, viraram-se para o leste, ficando assim de frente para os três
mastros onde estavam colocadas as bandeiras do Brasil, ao centro, ladeada pelas
bandeiras do Estado de Mato Grosso e de Paranatinga. Foram então se formando filas de
alunos, devidamente pintados e vestidos em “traje ritual bakairi”. Formou-se também uma
fila composta de alguns homens adultos diretamente envolvidos no Iakuigady. Então, um
dos professores da escola e dois de seus filhos, um rapaz e uma moça, ambos alunos, se
posicionaram para iniciar o hasteamento das bandeiras. Atrás deles estavam o coordenador
da escola – pois esta era considerada também uma atividade escolar -, o cacique, o chefe de
posto, o presidente da associação. Cantou-se o hino nacional brasileiro enquanto hasteava-
se a bandeira. Depois foi cantada por um professor e pelo Chefe do Posto a Canção do
Índio
277
, conforme a ‘receita’ do ritual cívico do SPI. Posteriormente, como acontece em
todos os atos públicos, houve a fala das lideranças exaltando aquele momento patriótico.
Dentre os discursos, a fala do coordenador da escola foi particularmente
significativa, pedindo desculpas pelo fato dos alunos não saberem cantar o hino brasileiro
de forma completa e correta. Isto se tornou um dos principais assuntos dos dias posteriores
ao início do Iakuigady, quando pude, em diversas oportunidades, ouvir as pessoas
comentando sobre como é importante cantar o hino nacional como os “antigos” faziam e
lamentando que as crianças não mais aprendam a cantá-lo na escola. Esse desconhecimento
foi visto como uma falha grave a ser corrigida, mostrando que este fato - ponto enfatizado
277
Esta canção está reproduzida na página 208.
324
pelo regime civilizador do SPI - continuou sendo, para a maioria dos Bakairi, senão para
todos, um saber altamente valorizado, bem como identificado a uma peça ritual
propriamente dita.
Penso que esta aparente contradição entre a hiper valorização dos símbolos
patrióticos e o alegado desconhecimento do hino nacional pode ser explicada pela já
abordada característica da escola bakairi de, ao mesmo tempo, primar por desenvolver os
aspectos relativos à ‘performance civilizadora’ e encontrar dificuldade de aperfeiçoar o
aprendizado dos conhecimentos escolares. Nesse sentido, fica clara a importância, ritual,
dos ‘objetos’ (a bandeira) e do canto (o hino nacional) como demonstra o próprio pedido
de desculpas mas o desejo de realizar um rito patriótico ‘completo’ é limitado pela falta
de uma estrutura escolar (formação profissional, acompanhamento pedagógico, e, como
gostariam os professores, uma fanfarra) que permita a realização ritualmente satisfatória
das comemorações ‘cívicas’. Na execução do hino percebe-se uma ‘falha’ na educação
escolar, mas em outros assuntos (relativos a conteúdos como escrita, leitura, matemática
etc) raramente são apontadas deficiências. Assim, a dificuldade em cantar o hino, seguido
por um pedido público de desculpas e ainda por um período de muitos comentários sobre o
acontecimento por parte de alunos e professores, antes de atestar um desinteresse pelo
símbolo nacional, mostraria a grande preocupação que os domina por não conseguirem
realizar o rito comme il faut e, por conseqüência, não estarem suficientemente civilizados.
Vejamos, agora, a participação da escola e de seus integrantes no Iakuigady que
estava descrevendo. A coordenação da escola estabeleceu que o dia da festa seria contado
como “dia letivoe, portanto, os alunos teriam o dever de comparecer e de se caracterizar
com trajes rituais bakairi, sob pena de serem punidos através da perda de “pontos” nas suas
notas
278
. Há, nisso, uma espécie de ‘educação diferenciada’ às avessas, ou seja, no lugar de
partir da ‘cultura indígena’ para se construir os princípios e as atividades da escola
(conforme manda a ‘cartilha’ da ‘escola indígena diferenciada’), o que ocorre é o contrário:
da escola emana a disciplina que regeria os ritmos cerimoniais e coletivos. A presença e a
caracterização das pessoas passaram a ser um mando da escola e não do ritual em si, uma
vez observado que, além dos homens diretamente envolvidos com o ritual, apenas os
278
Inversamente, tempos depois, houve também uma ameaça de punição quando na continuidade do
Iakuigady alguns alunos preferiram “passear” nas mascaras (adakobâdyly) à freqüentar as aulas. Fato que
demonstra que no contexto escolar o kado deve sempre estar submetido à disciplina.
325
estudantes se aprontaram ao modo ritual bakairi. Em outras palavras, as pessoas se
pintaram e se vestiram enquanto alunos e não enquanto membros da aldeia. Devo dizer que
isso aconteceu não apenas no evento etnografado, mas em todas as oportunidades em que
acompanhei a realização do kado. São os alunos que se trajam devidamente e dançam, não
havendo uma interação com as demais camadas etárias
279
.
Ao compararmos as fotos abaixo - uma da década de 1940 e outra de 2004 -
podemos retirar algumas impressões sobre o processo a que foram submetidos os Bakairi
durante o intervalo de tempo entre os dois registros. Notamos a permanência da bandeira
nacional, elemento central da foto, ao lado dos alunos, personagens principais. A relação
alunos-bandeira expressa a forte relação constituída pelos órgãos tutores entre escola e
civilização (integração, patriotismo, progresso). Por outro lado, existem diferenças, pois
apesar da permanência da bandeira e dos alunos, nos chama atenção o fato dos estudantes
de outrora estarem vestidos ‘como civilizados’, e os de hoje vestidos ‘como índios’ (índio
ara, igual a índio). Assim como a roupa (âtâ) desempenhava um importante elemento na
civilização dos índios, revelando que estes ‘apesar de selvagens estavam se civilizando’,
hoje a ‘roupa’ indígena - artefatos e pinturas corporais - comunica que ‘apesar de
civilizados ainda são índios, originais’. Entretanto, em última instância, como vimos
anteriormente, ambas são formas de expressar e atuar a integração com os karaiwa.
279
Um caso exemplar foi o de uma pessoa que nunca tinha participado dos rituais, mas que, logo que retornou
à escola, passou a dançar em todas as oportunidades.
326
Foto 7: Dia do Índio (foto Celia Collet)
Foto 8: hasteamento da bandeira
(arquivo SPI/Museu do Índio)
Ainda durante a cerimônia, logo após a execução dos hinos e dos discursos, algumas
mulheres iniciaram a preparação do almoço (pyni aiedyly), atividade que ao mesmo tempo
corresponde ao roteiro de comemoração do Dia do Índio do SPI e ao do kado. Enquanto
isso, os homens deram continuidade à dança das máscaras, passeando pela tasera, indo às
casas dos sodo. As autoridades municipais prefeito, primeira dama, vereador, diretora da
escola estadual e alguns alunos, além de repórteres da emissora de televisão local (chamada
curiosamente de TV Xingu) - que haviam sido convidadas para participar da festa
chegaram com atraso, mas cumpriram sua esperada função de karaiwa: distribuíram
presentinhos (balas, esmaltes, prendedores de cabelo), discursaram, ouviram solicitações de
diversos tipos, prometeram resolver o que fosse possível e, ainda, os estudantes da cidade
se “pintaram de índio”. Noto que a presença dos karaiwa reforça e atualiza os propósitos do
kado, a saber, fundamentalmente, garantir recursos imprescindíveis à reprodução social e
familiar bakairi. Sabemos que, gradativamente, escrescendo a importância da relação
com os karaiwa como provedores, principalmente com os seus chefes-autoridades. Estamos
327
frente a um exemplo do que foi tratado no capítulo VI, quando vimos que, hoje, a ‘cultura’
é um meio imprescindível para a aquisição de recursos. Neste sentido, este Iakuigady
adquire dupla função, primeiro através da familiarização com os iamyra, assegurando as
condições para boa pesca e plantio, em segundo lugar, através da aproximação com os
karaiwa, fonte de outros recursos, atualmente fundamentais para a reprodução da vida
bakairi.
A figura do expectador tornou-se central, pois cada vez mais os rituais são feitos
para um público externo e, nesse ponto, não haveria diferença entre o que chamam de
“ritual verdadeiro” e a apresentação”. Este importante personagem da festa, o expectador,
pode ser melhor entendido se o incluirmos em um campo mais amplo de elementos e
símbolos do ritual: a bandeira nacional, o hino, o Dia 19 de Abril. Todo kado que
presenciei, dentro ou fora da escola, tem a característica de dialogar com a sociedade
brasileira, com os não-índios, revelando ao mesmo tempo complementaridade e tensão
entre primazia e a valorização da chamada ‘cultura bakairi’ e da ‘cultura cívica brasileira’.
Assim, ao passo que expressam: Olhe, temos nossa cultura própria, somos índios
verdadeiros, mantemos nossos rituais, também querem dizer: Somos brasileiros como
qualquer outro, estamos em igualdade com os demais, temos competência para cantar o
hino e sabemos nos portar como civilizados. Tanto na primeira quanto na segunda posição,
o elemento externo é importante, pois, por um lado, ‘ser índio’ se define pelo
contraponto de existir um não-índio, por outro lado, ao mostrar o domínio de símbolos
brasileiros, eles expressam a sua capacidade de fazer o que os karaiwa fazem. Jean Jackson
a este respeito disse que: Folkloricized, or self-conscious ritual (or culture) is ritual whose
meaning is derived in part from the fact that the audience (both the audience which is
physically present and the audience in people’s mind) includes people from different
cultures. (Jackson, 1989: 133)
Tive a oportunidade de acompanhar o Iakuigady somente a partir da saída (egasely)
das máscaras. Entretanto, logo que cheguei nos Bakairi, notava a representação destas
máscaras das mais variadas maneiras: em anéis e brincos confeccionados como artesanato,
em prospectos e camisetas de eventos culturais, em desenhos escolares e em apresentações
como a que aconteceu no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, em 2003. Permeavam o
328
imaginário dos Bakairi, como mbolos do que se passou a chamar de ‘cultura bakairi’,
tanto para ‘fora’, para os karaiwa, quanto para ‘dentro’, para eles mesmos, quando
pensados enquanto um grupo discreto. Elas devem ser originais e belas e são as mediadoras
com outros domínios de alteridade, a fim de capturar recursos.
Na escola, nas aulas de “artes” e de “língua materna”, os desenhos das máscaras são
uma constante, bem como os usados na pintura corporal. As crianças desde cedo aprendem
a desenhá-las e, também, a entender que uma estreita relação entre estas máscaras e ‘ser
bakairi (kurâ)’. No entanto, pude perceber, que, até a realização do Iakuigady em 2004, as
máscaras eram para os mais jovens apenas uma representação de sua identificação enquanto
bakairi. Com a ‘saída’ do kado, aos poucos, essas figuras foram deixando de fazer parte
apenas do plano da representação e foram sendo vivenciadas em todas as suas dimensões: o
canto, a dança, o alimento, os códigos de tratamento, os iamyra. Passou a ser comum
escutar, em cada casa, as crianças cantando as músicas das máscaras, bem como vê-las
vestidas com saia de palha de buriti, dançando ao modo das máscaras
280
. Os próprios
desenhos, que antes existiam apenas como matéria escolar, passaram a ser expressões da
realidade que os alunos estavam vivendo e, certamente, adquiriram para elas um novo
significado.
É importante destacar, neste ritual, a explicitação da relação entre o livro - como
memória escrita - e o ritual - como memória oral e visual. Houve um episódio bastante
elucidativo acontecido quando os homens estavam no kadoety confeccionando as máscaras.
Como o Iakuigady não havia sido realizado muitos anos, a maioria das pessoas que o
tinham coordenado na última vez estava morta e foram, portanto, os homens que
participaram mais ativamente da ultima edição do Iakuigady, guardando em sua memória
os desenhos das máscaras, que guiaram os trabalhos de sua confecção. Eles, no entanto,
tiveram dúvidas sobre alguns detalhes, que apesar de pequenos, foram considerados
importantes (pois se acredita que qualquer “erro” pode acarretar doença das pessoas
envolvidas ou de seus parentes). No momento em que se discutia no kadoety sobre o
desenho mais verdadeiro” de algumas máscaras, um professor trouxe um livro recém
chegado, elaborado pelos alunos do Projeto Tucum e editado pela Secretaria Estadual de
280
Fato que foi considerado perigoso para a sua saúde, pois, como vimos, “vestir” a mascara é servir à
materialização de um espírito, e portanto, possível fonte de doenças. Foi ordenado, então, que as crianças
parassem de imitar as máscaras.
329
Educação de Mato Grosso, denominado “Pintura Corporal e Máscaras Sagradas do Povo
Kurâ-Bakairi” (Projeto Tucum, 2003). O intúito era de ajudar a encontrar os modelos para
as máscaras cujos desenhos, em seus detalhes, eram objeto de dúvida. Logo, alguns dos
homens, mesmo os mais experientes, se apegaram àquela referência para resolver o
impasse. Instaurou-se um conflito, pois houve os que diziam que o tal livro não seria
confiável, que, nos casos em que se trata de ‘tradição’, a única fonte válida seria o saber
transmitido pelas gerações anteriores às atuais. Além do mais, as representações das
máscaras no livro haviam sido desenhadas por pessoas que ainda não eram consideradas
com idade suficiente para possuírem tais conhecimentos. Eu mesma ouvi críticas sobre a
forma imperfeita e simplificada dos desenhos no livro. Era uma situação parecida com
aquela presenciada por Jean Jackson (1995b) em um “curso de xamanismo” ocorrido entre
os Tukano, a respeito do qual ela diz que muita da tensão envolvida devia-se à percepção
da impossibilidade de conectar “conhecimento tradicional” e “estrutura escolar”.
Apesar das opiniões contrárias, o sodo de uma das máscaras insistiu em seguir o
modelo do livro; foi feita sua máscara para a dança do dia 19 de abril. Entretanto, alguns
dias depois ele foi alertado pelo pajé sobre o fato de que se continuasse com a máscara feita
de forma “errada”, alguém poderia ficar gravemente doente e até mesmo vir a falecer.
Assim, o dono da máscara teve que confeccionar uma outra em substituição àquela copiada
do livro escolar.
Podemos perceber a complexa interação entre o universo escolar e o universo social
amplo, extra-escolar. No início do caso descrito acima, temos um exemplo do afastamento
entre a escola e os outros espaços sociais. Foi feito um livro por professores indígenas, os
quais, mesmo tendo consultado algumas pessoas fora da escola como fonte de
conhecimento dos desenhos, não podiam ser considerados suficientemente (in)formados, de
modo a representar graficamente as máscaras com o nível de acuidade que deve ser
garantido no caso da confecção das máscaras “verdadeiras”. A desaprovação dos desenhos
por parte de muito demonstra, portanto, o sentido de um livro desse tipo, circunscrito à
escola. Por outro lado, a consulta feita ao registro no livro, com o intúito de solucionar a
dúvida sobre o modelo da máscara, mostra a relação entre o universo escolar - como
possível fonte de memória e resgate cultural - e a vida extra-escolar.
330
Penso que o que está em jogo aqui pode ser explicado também pela distinção entre
ekudyly e iwenyly. Vimos que há uma intrínseca relação entre o desenho-iwenyly e a
capacidade de transformação. A máscara só ganha eficácia e ‘vida’ se seu desenho seguir o
modelo-iwenyly, formando um ‘objeto ritual com a superfície desenhada e assim ativando
a capacidade de transformar em um ‘espírito do rio’ quem a vestir. Dessa maneira, se o
desenho da máscara for uma imitação (ekudyly) da reprodução no livro, ele não poderá ter
eficácia ritual, sendo apenas um objeto, sem capacidade transformadora.
A realização do Iakuigady em questão se caracterizou por um momento inicial de
vivência (o rito em si), tendo depois passado para o papel, tornando-se, a seguir, novamente
vivência (na cerimônia de 2004) e, finalmente, voltando ao livro e às representações
escolares carregados de novos significados. Com efeito, depois de sua realização, as
máscaras, ao serem desenhadas pelos alunos, não eram apenas referência a uma
identificação étnica abstrata, mas a lembrança de sensações, de aprendizados e de
interações ocorridos ao longo e através do Iakuigady. Não que sua força enquanto símbolo
dos Bakairi tenha se apagado, muito pelo contrário. A realização deste ritual inclui,
também, a afirmação de sua ‘cultura’, tanto em relação aos não-indios, colocados na
posição de expectadores, quanto como representação da continuidade de um ritual central
desde antes do aparecimento dos karaiwa, unindo-os a sua “origem”.
A realização do Iakuigady de 2004 revela, então, alguns aspectos importantes da
escola entre os Bakairi. Primeiro tivemos um bom exemplo da atualidade da ‘receita’ do
Dia do Índio do SPI, onde a escola foi (e continua sendo) instituição fundamental, com uma
forte ênfase patriótica. Além disso, vimos que ela é a instituição depositária da função de
‘preservação da cultura’, sendo conseqüentemente reconhecida como elemento
fundamental mesmo nas cerimônias promovidas pela ‘comunidade’, haja vista a
predominância dos alunos entre os participantes. Nesse sentido, a escola une a ‘cultura
bakairi’ e as cerimônias coletivas (kado), configurando um modelo de ritual que além de
atrair os iamyra traz também para junto de si os karaiwa, ambos ‘donos’ de poderosos
domínios de alteridade dos quais dependem os Bakairi.
Entretanto, também observamos que a apropriação do kado pela escola não é feita
de forma completa, havendo limites que impedem que as cerimônias ou seus momentos
considerados ‘muito sagrados’ possam ser adaptados e simplificados a fim de se enquadrar
331
na estrutura escolar. um repertório de danças (“não muito sagradas”) a ser executado
pelos alunos nas ‘apresentações’. Podemos dizer que uma classificação interna ao kado:
por um lado, as partes “sagradas”, que são respeitadas e realizadas sobretudo por sua
relação com os iamyra, mas que podem se tornar ‘apresentação’ em ocasiões especiais,
como nas performances realizadas no Rio de Janeiro e em Belo Horizonte. Por outro lado,
as partes consideradas “pouco sagradas” (isto é, sem envolvimento direto dos iamyra)
formam alimentam o gênero de ‘apresentação’. Desta forma, pode-se dizer que o kado
serve aos Bakairi em duas ‘frentes’ de comunicação: com os iamyra, garantindo alimentos,
bem estar e saúde; com os karaiwa, apropriado enquanto ‘cultura’, garantindo outros
recursos e produtos.
Nessa relação Iakuigady/escola, ainda observamos que as máscaras desenhadas (no
sentido de ekudyly, isto é imitação) nas atividades escolares puderam ser vistas no kado em
sua pintura (iwenyly, desenho que ativa capacidades), para depois retornar aos cadernos
escolares como uma representação (ekudyly), porém vinculada a significados reforçados
pela vivência. Outro fato notável observado nesse Iakuigady, que também envolve uma
confusa contaminação entre ekudyly e iwenyly, foi o conflito advindo da utilização de um
livro didático como guia do desenho das máscaras. No livro, os desenhos das scaras
aparecem como ekudyly, ou seja, representação das máscaras do ritual. O problema foi
criado quando se pretendeu tratar os desenhos-ekudyly como ‘fonte’ para o iwenyly das
máscaras. Ora, vimos que a capacidade transformadora do iwenyly está justamente na sua
interação com a superfície, o que o diferencia de uma imitação. Entretanto, ao fazer do
desenho da máscara uma reprodução do desenho do livro, esse não seria mais iwenyly,
perdendo então seu caráter de transformação, e por conseguinte, sua eficácia ritual.
Por meio desse exemplo, pode-se ainda sugerir uma equivalência entre a ‘cultura
bakairi na escola’ e o modelo-ekudyly, pois, no contexto escolar, as danças, rituais,
máscaras, pinturas corporais, aparecem como uma representação daquelas executadas desde
muito antes da introdução da escola. Assim, as máscaras e pinturas feitas nas aulas de arte
ou registradas nos livros, como também as danças-apresentações e os rituais realizados sob
a batuta da escola, seriam formas de ekudyly, imitações.
Penso ser esta a distinção que os Bakairi fazem ao diferenciar ‘apresentação’ de
‘dança de verdade’, a primeira referindo-se a uma representação e a segunda à dança ou ao
332
ritual em si. Vimos, todavia, que embora o gênero ‘apresentação’ venha ganhando espaço
dentro das cerimônias bakairi ao passo que a escola tem se tornado progressivamente
‘dona’ da ‘cultura’, existem cerimônias que são mantidas à parte dessa apropriação escolar.
É o caso do Sadyry (furação de orelha), do Kapa e do Iakuigady, todos envolvendo os
espíritos que habitam os rios, e por isso, considerados “muito sagrados”. Sobre os dois
primeiros, nunca soube de qualquer associação com a escola; no Iakuigady, a escola,
representada por seus alunos e professores, esteve à frente do momento patriótico marcado
pelo hasteamento da bandeira e pelo canto do hino nacional.
*
Através da descrição das cerimônias de inauguração do prédio escolar, Seminário da
Juventude Planaltense, Parada de Sete de Setembro, Âriko e Iakuigady, pretendi apresentar
as performances escolares extra-classe. Vimos como os aspectos relativos ao patriotismo, à
‘cultura’ e à organização escolar se interpenetram, constituindo um modelo de ritual que,
acima de tudo, celebra a comunicação/ integração com a sociedade brasileira, ou seja, com
o ‘outro’ poderoso que são os karaiwa. Os símbolos patrióticos ligam os Bakairi à
totalidade ‘Brasil’, para o que também serve a ‘cultura’. É através deles que pretendem ser
reconhecidos como ‘cidadãos brasileiros’, com acesso a direitos comuns, e específicos,
como à terra e às políticas especiais do estado. A escola aparece interligando essas duas
dimensões entre si cultura e patriotismo - e também os Bakairi à sociedade brasileira, por
ser uma instituição mediadora por excelência: mediação com o estado por fazer parte do
sistema educacional nacional; mediação com a civilização, por ser a instituição responsável
pela formação dos jovens karaiwa, segundo os conhecimentos e comportamentos
considerados adequados.
Pode-se ainda concluir, a partir das cerimônias descritas, que além da escola estar
ocupando um lugar que originalmente era designado somente ao kado - a saber, a conexão
com ‘outros’ a fim de garantir recursos necessários a reprodução do parentesco - ela
também está se apropriando do kado, através do processo de imitação (ekudyly), e assim,
transformando-o em ‘cultura’.
Tendo visto as atividades, o ambientes, os instrumentos, a motivação que compõem
a performance escolar bakairi, tanto a cotidiana quanto a extra-classe, resta ainda abordar as
333
pessoas que nela atuam, refiro-me aos professores e alunos, foco da última seção deste
capítulo.
3. Alunos e professores
Uma nova instituição traz ainda consigo novos papéis sociais, que devem ser
analisados para entendermos o seu funcionamento. No caso da escola, surgem,
basicamente, professores e alunos. É, então, sobre a caracterização desses atores e
sobretudo sobre a relação que estabelecem entre si, que passo a me deter a seguir. Para
tanto, abordarei primeiro os alunos, salientando duas instituições: a turma e a reclusão,
sendo que a segunda também será analisada no que concerne os professores, guardando,
contudo, os aspectos específicos desta categoria. Já na parte intitulada ‘professores bakairi’,
passarei a destacar aspectos das trajetórias de vidas destes, suas características pessoais e
sua formação profissional. Finalmente, abordarei as formas de mediação entre as pessoas,
que, como veremos, não passam por reuniões ou debates, conforme as expectativas da
organização escolar oficial.
3.1. A classificação dos alunos: a turma
A categoria ‘aluno’, entre os Bakairi, refere-se apenas ao contexto escolar, apesar de
comportar quase a totalidade das crianças e jovens com idade entre 6 e 18 anos, havendo
ainda o acréscimo de alguns adultos e velhos, se contarmos com aqueles que retomaram os
estudos depois de muitos anos de afastamento.
Os alunos, na escola, passam a maior parte do tempo na sala de aula, geralmente
sentados nas carteiras, colocadas umas na frente das outras, de modo a ficar diante do
quadro-negro, do professor e de sua mesa. Em cada sala existem formas particulares de
agrupamento das carteiras, principalmente, segundo o gênero e afinidades pessoais (que
podem ou não passar pelo parentesco). Em todas as turmas a separação entre moças e
334
rapazes é evidente; no caso do EJA, é mais marcada, que todos os homens sentam à
direita do professor e as mulheres à esquerda, reproduzindo uma disposição comum fora do
espaço escolar. Nos últimos tempos, entretanto, os limites determinados pelo gênero estão
um pouco mais fluidos, sobretudo no que se refere ao sustento da família, pois, hoje, muitas
mulheres são funcionárias” contribuindo para a alimentação familiar com produtos
comprados, além daqueles que os maridos conseguem através da pesca ou do trabalho
agrícola. De qualquer maneira, a divisão entre homens e mulheres no interior da sala de
aula, mesmo se não tão marcada na nova geração, reflete a sua importância em todos os
campos da vida bakairi, das atividades domésticas às rituais.
Ainda, dentro de cada uma das turmas, pode haver agrupamentos por afinidades
pessoais, muitas vezes influenciadas pelo parentesco. Há, contudo, casos de ‘amizades
escolares’ que brotam espontaneamente sem determinação de laços pré-estabelecidos, onde
o companheirismo de sala de aula pode existir a despeito de conflitos entre famílias. O
espaço público da escola possibilita tais relacionamentos, desde que se restrinjam no
interior de seus limites. Elas não se mantêm no âmbito doméstico e os colegas de turma se
visitam somente por ocasião de alguma atividade escolar, como a confecção de um bolo
para uma festa ou de pastéis a serem vendidos como fonte de recursos para a realização da
formatura. A amizade escolar reflete um coleguismo limitado a um local público,
caracterizado, basicamente, por atividades performáticas e, neste sentido, poderia ser
comparado ao papel de iduno nas cerimônias do kado, excetuando-se a hereditariedade da
relação neste último caso.
A despeito das divisões internas, as chamadas turmas (eataenron) vão constituindo,
com o decorrer dos anos de intensa convivência, um espírito de grupo. O que pode ser
percebido, por exemplo, através da preocupação que os professores expressam ao fazer um
aluno “repetir a série”, afastando-o de sua turma, conseqüência vista como tão grave quanto
o fato da pessoa ficar “atrasada”. Este espírito de grupo era evidente quando foi formada a
primeira turma do Ensino Médio, pois, devido aos anos que se passaram entre a
implantação das séries de 5
a
a 8
a
e a formatura, ela passou a ser composta de várias turmas
(eataenron) sucessivas. Assim, a divisão do espaço da sala de aula passou a corresponder,
de certo modo, à separação entre as turmas dos formados em 2001 e 2002, além de um
grupo situado mais ao fundo da sala, composto por pessoas mais velhas formadas em
335
outras escolas, como, por exemplo, alguns ex-alunos do Projeto Tucum que resolveram
refazer o ensino médio e outros que tinham estudado na cidade. Transversalmente a tais
agrupamentos, existe ainda um grupo constituído por alunos que pertencem a uma mesma
aldeia e parentela, bem como as subdivisões segundo o gênero. Nesta sala pode-se dizer
que os fatores ‘ex-turma’, gênero, família e idade se combinam para a composição dos seus
sub-grupos. Um dos professores do ensino médio diz que esta heterogeneidade e
fragmentação da turma é uma das principais dificuldades por ele encontradas, sobretudo
quando pretende promover uma atividade coletiva. Por outro lado, no segundo grupo que
ingressou no Ensino Médio, composto de alunos provenientes, em sua maioria, de uma
turma de 8
a
série, o mesmo professor constata uma homogeneidade e unificação que
imprimem um clima de maior confraternização.
As turmas, portanto, além de constituírem um índice importante das classificações
grupais no contexto escolar, ainda se revelam como um interessante objeto de análise por
constituir um novo parâmetro para a designação das classes de idade. Fora do universo
escolar, a palavra eataenron é muito usada para se referir àquelas pessoas que nasceram no
mesmo ano e cresceram concomitantemente. As pessoas falam eu sou da turma de...(diz o
nome das pessoas), e isso indica tanto uma identificação entre elas, quanto a constituição de
uma geração”, sendo uma das formas de se classificar as pessoas no tempo: segundo a
turma, os que vêm antes e os que vêm depois. Parece que esta classificação segue a mesma
lógica da atribuição de termos diferentes para se referir a irmãos mais novos e mais velhos
(masculino: kono/paigo; feminino: ia/iwidy), demonstrando a importância classificatória
conferida à idade relativa.
Hoje em dia, as classes de idade seguem, além do critério da época do nascimento,
uma classificação segundo a turma escolar. Desta forma, é comum ouvir-se, mesmo em
discursos na língua materna e em situações extra-escolares, palavras como “prezinho”
281
,
“Ensino Médio”, “5
a
a 8
a”
. A propósito, lembro-me de uma festa de aniversário
282
onde a
mãe do aniversariante, ao arrumar a fila para distribuir o bolo, chamava as crianças do
“prézinho” para o início da fila, devendo as demais ficar atrás.
281
Referência às crianças que estão na pré-alfabetização.
282
Do ano 2000 em diante percebe-se o crescimento da realização de festas de aniversário. As crianças pedem
aos pais e estes, com muito esforço, conseguem juntar dinheiro para a sua realização. Nos dias que antecedem
a festa, convites de aniversário comprados em papelaria são distribuídos pelas casas. No dia da festa, a sala da
casa da criança é decorada com balões de gás, canta-se diante do bolo e faz-se fila para a sua distribuição.
336
A freqüência cotidiana é uma característica saliente da disciplina escolar, levando os
alunos a passar boa parte de suas vidas na própria escola. Tentarei demonstrar que a escola
se assemelha bastante à reclusão (wanky) dos jovens, em vigor até a ‘atração’ pelo SPI. Em
seguida, traçarei um paralelo entre a iniciação dos especialistas da escola, os professores, e
uma outra classe de especialistas, os pajés, antecipando a seção dedicada à analise da
categoria ‘professor indígena’.
3.2. Reclusão (wanky) e formação escolar
Vimos no capítulo IV que a reclusão (wanky) é um dos principais momentos de
formação de um kurâ. Ela geralmente acontece em períodos de mudança de status social
nascimento, nascimento de um filho, puberdade, morte, tornar-se um pajé - sendo um
instrumento de transformação dos corpos-sujeitos. Pretendo demonstrar aqui que a escola
se assemelha a uma das formas de reclusão, aquela por que passam os rapazes púberes,
principalmente nos moldes de “antigamente”. A reclusão masculina apresenta dois aspectos
fundamentais para a escola: a reunião dos jovens e a etapa da vida a qual ela corresponde, a
passagem da infância (iamimeon) para a vida adulta (xutuyby). Não entrarei no mérito de se
houve “substituição” (ou uma transformação” nos termos de Peter Gow (2001)) de uma
forma por outra, como pode indicar o “enfraquecimento” de uma enquanto a outra ganhava
importância. Entretanto, as semelhanças parecem reforçar a idéia de pensar a escola como
um lugar de formação do qual deve-se sair com os conhecimentos e o status (materializado
no diploma) necessários, atualmente, para ser considerado um completo kurâ.
Tratemos das correlações. No antigo
283
estado de wanky, os rapazes passavam
muitos meses
284
de sua juventude dentro do kadoety (casa do kado), convivendo apenas
com a sua “turma” (eataenron), com os seus pais e com o “instrutor”, podendo sair apenas
283
Vimos que atualmente a reclusão se limita a mais ou menos uma semana, sem que haja tempo para passar
aos wanky os conhecimentos necessários à formação de uma pessoa adulta (xutuyby).
284
Nunca soube ao certo quanto tempo os jovens passavam reclusos “antigamente”, pois quando perguntava
sobre esse tema, a resposta sempre era ‘muito tempo’, sem entretanto, precisarem exatamente o numero de
meses ou anos. Altenfelder Silva (1950: 229) menciona uma reclusão pubertária masculina, entre os Bakairi,
de “alguns meses”
.
337
durante a madrugada para ir ao rio
285
e evitando sempre o contato, sobretudo sexual, com as
mulheres. Durante este período, eles eram submetidos a aprendizados tanto em termos de
formação de seus corpos dieta, “remédios” extraídos de plantas, escarificação, eméticos
ou vomitórios quanto de novas habilidades, necessárias a uma pessoa adulta xutuyby,
como confecção de utensílios, sem falar dos conselhos (xurudyly) visando sua educação
moral. Antes da reclusão, havia (e ainda há) uma importante cerimônia, o Sadyry, descrita
no capítulo IV, onde os jovens tinham (e têm) os lóbulos das orelhas perfurados, podendo,
a partir de então, ostentar o ywenry (pedaço de madeira colocado no orifício do lóbulo da
orelha), símbolo da passagem para outra fase da vida
286
.
Atualmente, os jovens de ambos os sexos
287
passam a maior parte de seu tempo (dez
meses por ano, cinco dias por semana) dentro da casa-escola, onde, através da mediação
dos professores, aprendem vários conteúdos, valores e hábitos considerados fundamentais
para a formação de uma pessoa que tenha condições de ‘sustentar’ uma família, valor na
formação do kurâ. Para isso, também, seu corpo é acostumado e aprimorado enquanto
‘civilizado’, através dos alimentos (merenda) e das posturas corporais impostas (sentar-se
por horas em cadeiras, não gritar, aprender a vestir-se corretamente). Depois de anos,
deixam a escola, tendo sido transformados através dos ritos performáticos que se
realizam, passando por uma cerimônia de formatura (onde ganham diplomas), sendo
considerados, então, ‘formados’.
Notamos, portanto, correspondências significativas, apesar das diferenças que as
contingências impõem (como a mencionada presença de mulheres): a faixa etária, o
aprendizado mediado por um instrutor, os anos passados em um espaço não-doméstico, e,
ao final, a possibilidade de ostentar as insígnias de um novo status (ywenry e diploma)
simbolizando que as pessoas o kurâ ‘formados’. Ainda, no rito de passagem realizado no
285
Ellen Basso (1973) e Thomas Gregor (1977) citam ainda “intervalos” dentro do período de reclusão,
respectivamente entre os Kalapalo e os Mehinaku do Alto Xingu, durante os quais o rapaz pode conviver
(quase) normalmente com os demais, retornando depois, novamente, à reclusão.
286
Apesar do Sadyry conferir um estado de adulto, ele será completo após o casamento e o nascimento
do primeiro filho.
287
E isso representa uma diferença fundamental entre a escola e o estado de reclusão onde é imperativo
manter separados homens e mulheres. Na verdade, há uma oposição neste sentido entre o wanky propriamente
dito e o aluno, pois somente na escola pude observar casais de namorados de mãos dadas, fato completamente
reprovado em outras circunstâncias. Devo lembrar, também, que quase todos os casamentos que aconteceram
durante o meu período de pesquisa de campo foram resultado de gravidez adquirida através de “namoros”
entre os alunos, principalmente aqueles que freqüentam o período noturno.
338
kadoety, além do período de reclusão, acontece, também, uma importante cerimônia
pública (masculina); da mesma forma, a escola entremeia características da formação
doméstica (como por exemplo o modelo pedagógico baseado na memorização-repetição-
prática), em seu nível cotidiano, com a realização de cerimônias, desde as diárias que
constituem as aulas, como as extraordinárias, as chamadas “festas escolares”.
Havia feito no capítulo VI, ao abordar o Colégio Agrícola Tancredo Neves, um
paralelo entre a passagem por esta instituição e a iniciação do pajé. Gostaria, agora, de
voltar a este tema, aprofundando a análise da pertinência desta comparação. Com efeito, da
mesma forma que os alunos estão sendo formados” fundamentalmente para a reprodução
da família, pajés e professores se preparam para operar como mediadores entre dois
mundos e assim poderem agir em “defesa do parentesco” de uma forma mais ampla, como
notou Peter Gow entre os Piro:
Both schools and shamanism concern the use of potentially dangerous knowledge
for the defence of kinship. The school defends kinship by bringing ‘civilized’
knowledge inside native social relations, while shamanism uses the wild powers of
the forest and river to defend kinship. (Gow, 1991: 229)
Há, portanto, dois níveis de comparação possível entre a formação dos atores
escolares e a reclusão bakairi ‘tradicional’: aquela entre o cotidiano dos alunos e a iniciação
pubertária e aquela entre a internação dos professores na escola agrícola e a iniciação do
pajé. Tratei do primeiro eixo comparativo; vejamos agora o segundo. Para tanto, tomarei
como base o processo de iniciação do pajé conforme relatado no capítulo IV. A primeira
similitude que nos salta aos olhos é o fato de tanto aspirantes a paquanto aspirantes a
professor saírem do convívio da aldeia - os primeiros indo para a mata e posteriormente ao
“céu”, os segundos para uma cidade distante -, revelando, assim, uma situação ambígua,
pois para defender o parentesco eles devem inicialmente negá-lo, ou, como expressou Peter
Gow: those people who posses each form of knowledge are in an ambiguous position,
because to acquire such knowlwdge is to stand outside of kinship (Gow, 1991: 242).
Estas duas ‘viagens’, ao “céu” e ao internato reservam muitos paralelos: (i) o
aprendizado de uma nova ngua, a dos “espíritos” no caso do pajé, a dos karaiwa, no dos
professores; (ii) a necessidade de manterem-se afastados de mulheres (disciplina
rigorosamente observada também no convívio de meninos e meninas no internato); (iii) a
339
obrigação de uma dieta especifica - pogu no caso do pajé, o mesmo alimento oferecido aos
iamyra na época das cerimônias do kado, e “comida de branco” no internato; (iv) a idéia de
sacrifício vinculada a estes períodos, como afastamento da família, passagem por rígidas
disciplinas, medo do desconhecido; (v) a necessidade de conhecimento de novos códigos,
representada no internato pelo regulamento interno”, e, na iniciação do pajé, conforme
relatado por Capistrano de Abreu (página 143), o fato do aspirante ter que saber em que
banco poderia se sentar, demonstrando, assim, o domínio dos códigos do ‘céu’; (vi) ao final
da viagem, ambos são considerados capazes de ver” coisas invisíveis aos olhos dos não-
iniciados, ‘espíritos’, no caso do pajé, e aquilo que está “escondido” sob a escrita, no caso
dos professores
288
, ganhando assim um novo status e nova função dentro da sua sociedade.
A análise que se segue pretende, além de reforçar o argumento aqui apresentado,
mostrar quem são os professores, esses personagens escolares: suas características, suas
trajetórias, o papel que eles desempenham.
3.3. Professores e professoras bakairi
Como vimos, a categoria ‘professor bakairi’ apareceu em meados dos anos 80,
com a contratação de três índios para assumir as aulas na escola do posto indígena. O
aumento do numero de professores aconteceu posteriormente, acompanhando a expansão
da escola, primeiramente até a 8
a
serie e depois até o ensino médio.
Geralmente os professores falam de sua “escolha” para ocupar a função como
ocorrendo “por acaso”, mas veremos que, na verdade, os contratados têm em comum o fato
de terem se iniciado, de uma forma ou de outra, através do convívio com os karaiwa e de
288
Cabe aqui citar a narrativa reproduzida por Peter Gow, na qual o índio Piro Zumaeta conta que seu primo
analfabeto Sangama “lia” jornal, ou melhor “conversava” com ele, pois, segundo ele seria “costume do papel
conversar” que “o branco conversa com ele todo dia” (Gow, 1990). Ele tratava o jornal não como um
objeto no qual estão impressos símbolos a serem decodificados pela leitura, mas como um sujeito que lhe
conta sobre “outro mundo”. A partir de seu referencial xamânico, Sangama se relacionava com o jornal como
um meio de conhecer algo que está além do mundo visível, uma realidade separada no tempo e no espaço. No
xamanismo “conhecer” é personificar, subjetivar, e, portanto, para Sangama o papel é gente, tem corpo e
boca, ele se comunica enquanto corpo, papel, e não enquanto letras, códigos sobre o papel. Este ponto de vista
está totalmente relacionado ao que mostramos anteriormente sobre a inseparabilidade entre superfície e
desenho e o nexo disto com a escrita. Assim, Sangama enfatiza mais sua relação com o corpo do papel do que
com os grafismos, que, segundo o que nos informa Gow sobre o desenho Piro, apenas evidenciam essa
superfície sobre a qual se inscrevem.
340
terem tido acesso privilegiado a lideranças como ‘ponte’ para alcançar o cargo. ainda
outras características em comum, como a idade, em média trinta anos, sendo que os mais
novos estão na casa dos vinte e o mais velho alcança, hoje, os cinqüenta anos. Isso ocorre
devido à correspondência entre a época do fim da ‘iniciação’ e o início da expansão da
escola, em finais da década de 1990. A maioria é casada e tem filhos, status necessário para
que a pessoa seja considerada um adulto completo, e é de sexo masculino.
Existem apenas quatro professoras, duas na aldeia central, e duas como únicas
docentes de aldeias menores, trabalhando todas do “prézinho” à 4
a
serie, ou seja, lidando
somente com crianças pequenas. Tal limitação é explicada por elas não serem consideradas
aptas a assumirem aulas que compreendam conhecimentos mais adiantados” (na aldeia
central) e pela inexistência de outras séries nas aldeias menores. Penso que em ambas as
situações (aldeia central ou aldeias pequenas) o trabalho das professoras se localiza em um
espaço de transição da casa para a escola. Neste sentido, tive a oportunidade de observar
tanto a falta de estímulo dos professores homens no trato com crianças entre seis e onze
anos, quanto discursos que defendiam claramente que as mulheres têm mais jeito com
criança, referência ao papel primordial da mulher dentro da organização social bakairi na
educação das crianças desta faixa etária. Nas aldeias pequenas esta situação é ainda mais
visível, sendo a escola explicitamente uma extensão do lar: ambiente ‘familiar’ onde as
professoras são também tias, avós ou mães de seus alunos e estes últimos geralmente
irmãos ou primos de seus colegas de turma, convivendo, portanto, cotidianamente tanto
dentro quanto fora do espaço escolar
289
.
Outro fato que mostra a situação das mulheres professoras, ocupando o limiar entre
um espaço público e a casa/família, diz respeito à dificuldade de continuar seus estudos em
cursos realizados fora da área indígena. No caso do curso da UNEMAT, por exemplo,
verificamos que uma professora, mesmo tendo passado no ‘vestibular’, não ingressou na
universidade indígena pela dificuldade de conciliar o estudo na cidade com suas atividades
domésticas;uma funcionária da escola chegou a iniciar o curso, mas logo teve que retornar
à sua casa a pedido de seu marido.
289
Sendo a escola, entretanto, ainda um importante espaço público, onde todas as crianças se encontram
reunidas em um só local, compartilhando de uma mesma atividade e repartindo a merenda.
341
Além do aspecto concernente ao ambiente escolar, o contexto familiar dessas
professoras também é alterado, pois se na escola elas são vistas ainda através de seu papel
doméstico, em casa a função pública que ocupam também traz novas questões e, muitas
vezes, conflitos. Apesar dos maridos apreciarem o fato da esposa receber um salário, é
difícil para eles contornarem a mudança na relação familiar que acontece a partir do
momento em que a mulher se coloca como principal provedora de recursos da casa e ainda,
tem menos tempo para cumprir com suas tarefas domésticas. Em uma família, que
acompanhei de perto, se, por um lado, o marido assumia muitas vezes funções femininas,
como cozinhar e cuidar dos filhos, por outro, havia sérios conflitos, como o que aconteceu
entre marido e sogro da professora por ela se recusar a lavar as roupas deste último por
ter tarefas em excesso.
Enfim, podemos considerar a escola bakairi como uma instituição eminentemente
masculina, pelo número bastante superior de professores homens e pelo papel de destaque
que ocupam na instituição. Isso acontece fundamentalmente pelo seu caráter de espaço
público, tradicionalmente um domínio masculino. As mulheres ocupariam os espaços que
estariam no limite entre os âmbitos doméstico e público, como é o caso da função de cuidar
dos alunos mais jovens, além de serem elas as professoras das aldeias menores, exatamente
por nestas localidades a escola ser, ainda que uma importante instituição pública, uma
extensão do âmbito doméstico, freqüentada por alunos e professora que pertencem a uma
mesma parentela.
Trajetórias
A trajetória escolar e profissional dos professores bakairi, de modo geral, foi
iniciada dentro da Área Indígena (1
a
a 4
a
séries) e continuada nos internatos. Em 1996
começou o Projeto Tucum, que formou os professores como educadores legalmente
habilitados para exercer o seu cargo. A maioria deles deu continuidade a seus estudos
ingressando no 3
o
grau indígena da UNEMAT. entre eles ainda, dois professores que
completaram a graduação e que assumiram as principais disciplinas do ensino médio. Um é
formado em economia pela Universidade Católica de Brasília, onde foi criado por seus pais
desde a infância, o outro é filho de um ex-cacique que teve a oportunidade de cursar uma
faculdade de pedagogia também ligada a Igreja Católica, no interior de São Paulo.
342
Quanto aos vínculos empregatícios, dois professores são funcionários da FUNAI,
aqueles que dão aula para o Ensino Médio são ligados à secretaria de educação do estado de
Mato Grosso através de convênio, dois tem contrato efetivo com a secretaria municipal de
educação e a grande maioria está na incomoda posição de prestadores de serviços
temporários a esta mesma secretaria, que os coloca em permanente dependência de outros,
como coordenadores e secretaria municipal, visto que seu vínculo é muito frágil, podendo o
contrato ser rescindido a qualquer momento.
É emblemático dos professores uma certa proeminência social, tanto por serem
assalariados, tendo, portanto, maior capacidade de adquirirem bens que conferem prestígio;
quanto por serem considerados ‘donos’ de importantes conhecimentos do ‘mundo dos
karaiwa’. A este propósito, relato um episódio em que os professores foram convidados a
atuar na mediação com os karaiwa do setor de saúde. Num primeiro momento, solicitou-se
que os professores comparecessem a uma reunião com os diretores da Trópicos (ONG que
foi responsável pela ‘saúde bakairi’ até 2004), tendo como justificativa o fato dos
professores serem as pessoas mais habilitadas na comunidade para estabelecer um diálogo
com os karaiwa. Apesar desse reconhecimento, poucos deles foram à reunião, preferindo
não se envolver em assuntos externos ao seu âmbito de ação (como disse uma professora:
nós não gostaríamos que o pessoal da saúde se metesse na escola). Depois de terminado o
convênio com a mencionada ONG, foi resolvido que haveria um coordenador bakairi para o
“setor da saúde”; nesse momento, voltaram a se aproximar dos professores. Foi convocada,
então, uma reunião com a presença do presidente da Associação, para sugerir a indicação
de um professor para o cargo. Um dos professores resumiu da seguinte maneira o fato de
estarem buscando um novo “quadro” político entre os profissionais da educação: “Ele (se
referindo ao presidente da Associação) sabe que nós temos competência para fazer relatório
e outras coisas”.
Apresento a seguir a trajetória de uma professora, que ilustra alguns dos pontos
abordados, como o tempo que os professores bakairi, de uma forma ou de outra, passaram
em contato intensivo com o ‘mundo dos brancos’, o que teria funcionado como um período
de ‘iniciação’ necessário à habilitação para a sua função. Exceto pelo fato de ser mulher,
trata-se de um bom exemplo da média dos professores, pela faixa etária e pelo status social
343
(casada). É um relato introduz, também, novas questões, que envolvem os professores
bakairi e que serão discutidos mais adiante.
-
Trajetória de uma professora bakairi
Sua mãe morreu quando era pequena; foi, então, viver com a tia. Mas o tio, quando bebia,
corria atrás dela com uma faca e ela resolveu ir morar na cidade, onde trabalhou como empregada
doméstica no lugar de uma outra mulher bakairi. Na cidade, voltou a estudar, mas não chegou a
completar a 4
a
série. Seu retorno para a aldeia foi motivado por um desentendimento com outra
“empregada” e também pela doença da tia. Voltou, completou a 4
a
serie, se casou, foi morar
primeiro na aldeia Sawâpa e depois na Paxola junto de seu pai. Foi nesta localidade que iniciou seu
trabalho como ajudante do professor, ficando em seu lugar quando este ia a cidade. Depois de um
tempo voltou para a aldeia central Pakuera e, em 1992, foi convidada para colaborar com um primo
na candidatura a vereador, sendo seu trabalho o de fazer e distribuir bolinhos. O candidato havia lhe
prometido que se ele ganhasse a eleição lhe arranjaria um trabalho; entretanto, ele não se elegeu.
Depois de um tempo, porém, conseguiu que ela fosse contratada pela prefeitura para lecionar para
os alunos do “prezinho”, primeiro sem receber salário, sendo depois enquadrada com os demais
professores.
Vimos na história acima uma forma de iniciação um pouco diferente da maioria dos
professores, pois sua experiência entre os karaiwa aconteceu enquanto empregada
doméstica”. Talvez possamos dizer que se trata de uma variante feminina para o que o
internato representou para os professores, pois da mesma forma que a iniciação masculina
antigamente era feita em um ambiente coletivo, a reclusão feminina sempre esteve
relacionada ao isolamento no espaço doméstico. Outro fato que gostaria de ressaltar é que
ela foi para a cidade (contexto da iniciação) porque estava fora do parentesco (mãe morta,
tio violento), somente depois vindo a se reintegrar através do casamento, situação que
também a identifica com uma pessoa “formada” e portanto capaz de assumir uma função
pública.
Esta trajetória ainda mostra que o meio de acesso ao contrato profissional, além da
passagem pelo período de iniciação, foi a proximidade a um parente politicamente
influente, que conseguiu a “vaga” como “pagamento” (epuadyly) pelos serviços prestados a
sua candidatura. Até neste ponto a historia é exemplar, pois assim como sua protagonista, a
maioria dos outros professores também conseguiu um lugar na escola através do parentesco
com lideranças. Como vimos na primeira parte deste trabalho, o ‘apoio’ bem como a
reciprocidade são prerrogativas do parentesco bakairi.
344
A situação mais típica neste sentido é da família de um ex-cacique, cujos membros
predominam na escola da aldeia Pakuera, onde trabalham três irmãos, um irmão
classificatório e um cunhado, como professores, e, ainda, uma irmã classificatória e uma
cunhada como merendeiras. Segundo seu próprio depoimento, o mais antigo entre eles
“colocou” os parentes na escola, através de sua influência, ou seja, através do acesso à
secretaria de educação. Numa sociedade caracterizada pela disputa entre famílias e pelo
apoio aos parentes, não poderia ser diferente. Entretanto, como já lidam, também, com o
discurso universalista do ‘branco’, os que não fazem parte deste bloco usam criticar tal
prática no jogo político interno.
A seguir, será abordada exatamente a relação entre o discurso universalista-
impessoal que permeia o universo ideológico do karaiwa e o modo pessoal-relacional dos
Bakairi estar no mundo. Veremos que apesar do conhecimento do modelo karaiwa, o que
predomina é a forma bakairi de agir e pensar, colocando o parentesco antes de tudo, mesmo
recorrendo a um discurso onde a impessoalidade está em destaque.
3.4. Mediações
O modelo de escola ‘oficial’ pressupõe alguns mecanismos de resolução de
conflitos e também de tomada de decisões, sendo o principal a reunião (objeto enfocado
anteriormente enquanto rito escolar e parte importante de outros ritos). Agora, ela será
abordada apenas como contraponto para falar sobre os modos bakairi de mediação.
A escola bakairi, por fazer parte de uma sociedade onde a relação é calcada na
pessoa e no parentesco, muitas vezes desloca e reinterpreta, a partir de seus próprios
referenciais, instituições idealmente movidas pela impessoalidade. Cito como exemplo a
correção das ‘provas’, instrumento de avaliação, que, muitas vezes, é colocada sob suspeita,
tendo em vista a distância familiar entre aluno e professor. Pode acontecer de um pai de
aluno “tomar satisfação” com um professor sobre a nota baixa do filho, alegando que é o
resultado de uma “perseguição” e não, presumivelmente, da incapacidade ou desinteresse
do filho. Vemos que neste caso a lógica que opera é a mesma que vimos ao tratarmos da
fofoca: os ‘meus’ sempre estão certos, e ainda, se alguém realiza um ato que prejudica uma
pessoa, este ato sempre é intencional (como no caso da relação doença-feitiçaria). Isso
345
explica porque durante o tempo que acompanhei direta ou indiretamente as turmas do
ensino médio, nunca houve reprovação, apesar das muitas reclamações dos professores e de
más notas, virtuais.
Da mesma forma, a reunião é deslocada de sua função de ‘espaço democrático de
discussão’ para assumir o papel de organização de cerimônias escolares extra-classe,
deixando que a mediação entre os participantes da escola seja feita pelos mecanismos aos
quais os Bakairi estão acostumados, descritos no início desta tese, caracterizados pela
evitação do confronto público, pelo circuito da fofoca, e principalmente, pela existência do
‘dono’ como mediador por excelência das atividades e cerimônias coletivas.
Lembro-me, certa vez, quando uma pessoa comentou sobre a impossibilidade dos
‘pais’ e da ‘comunidade’ intervirem nas decisões escolares, visto que, ao seguirem a norma
da não-confrontação pública nas reuniões escolares, as críticas são guardadas para o
ambiente doméstico, logo transformadas em fofoca”, fora, portanto, do espaço previsto
pela escola ‘enquanto instituição oficial’ para a sua manifestação: a reunião. Com efeito,
percebe-se um embate entre a concepção ‘oficial’ de escola e as formas bakairi de
mediação, fazendo com que, ao se apropriar dessa instituição, os Bakairi passem a operar
segundo suas formas de organização social e principalmente de mediação. Destaca-se, aqui,
a função de ‘dono’ (sodo).
Sodo
A categoria sodo, como vimos no capítulo V, é funcional a todas as instituições
públicas bakairi os rituais tradicionais, as festas de santo e os jogos de futebol exceto
uma, a escola. Nesta há, entretanto, o papel do coordenador, sendo que o termo usado é
tomado de empréstimo ao português. O uso de um termo não-bakairi se explicaria pelo fato
da escola ser um universo identificado ao domínio dos ‘brancos’, à modernidade e a
civilização; de fato, todos os termos que se referem a este universo são, em sua maioria, em
português: prova, turma, aluno, professor, coordenador.
Assim, mesmo se a palavra sodo não pertence ao mundo escolar, eu me arrisco a
dizer que muito do que o caracteriza está incorporado ao conceito de ‘coordenador’. A
observação de alguns fatos me leva a esta conclusão. Primeiro, a utilização de qualquer
346
objeto ou recurso da escola ter que passar pela autorização do coordenador, seja a rede de
vôlei, a bola de futebol, o aparelho de som utilizado nos bailes, a televisão, o vídeo, o
computador, etc. Ele, então, não é apenas o responsável pelo acesso a recursos, como
também é investido de status: quanto mais bens a escola adquire, seja pela prefeitura, pela
FUNAI, ou pela Secretaria de Educação do Estado. O prestígio do coordenador aumenta de
forma diretamente proporcional à quantidade de bens sob sua mediação. O uso do espaço
escolar passa, também, pela autorização de quem ocupa esta função, como é de sua
responsabilidade tudo o que acontece nos seus domínios. Finalmente, um exemplo que
demonstra o quanto o coordenador se identifica à instituição que representa: na ocasião da
votação para escolher o novo nome a ser dado à escola de ensino médio, o coordenador
propôs seu próprio nome.
O coordenador, contudo, não pode ser considerado ‘dono’ da escola no sentido que
nós daríamos ao termo, pois, como vimos (capítulo V), sodo, para os Bakairi, é
essencialmente quem atua como mediador entre uma instituição e uma coletividade.
É interessante notar que na etnografia sobre os Bakairi de Edir Pina de Barros, o
‘dono’ do kado é definido como sendo uma espécie de coordenador, reforçando minha idéia
de considerar os dois papéis como sendo, na verdade, emanações de um só conceito:
“Acertado o dia da “inauguração” do ritual do kado, o seu sodo (coordenador), promove,
com o apoio dos lideres dos grupos locais, uma reunião com todos os homens para
combinar o dia da partida e o da chegada das caçadas e pescarias coletivas, waxi.” (Barros,
2003: 300)
Ainda, tendo apontado a escola como um espaço ritual, análogo ao kado, é natural
que ela, como os demais rituais, conte com um ou mais ‘donos’. No Iakuigady, por
exemplo, os ‘donos’ das máscaras, no Âriko o dono do ritual e dos bastões; o kapa
também tem seu ‘dono’, o batizado do milho e o Sadyry têm um ‘dono’ a cada edição,
assim como todas as ‘festas de santo’ têm seus ‘donos’ permanentes e aqueles designados
anualmente. Os rituais escolares, tanto os que acontecem no cotidiano quanto os relativos
às festas, não poderiam, portanto, prescindir de alguém que ocupasse este papel, para
coordenar as atividades da instituição e mediar as relações entre esta e a sociedade. Neste
caso, como acontece com todo sodo, esta é uma posição que confere prestígio a quem a
347
ocupa, posto que é notória a relação existente entre ritual, ‘dono’ e status social e,
acrescento, o poder que disto pode decorrer.
Todavia, o fato de ser ‘dono’ não delega à pessoa autoridade sobre os demais,
devendo este saber promover as tarefas através do estímulo e da persuasão e não da
‘ordem’ (atitude mal vista pelos Bakairi). Neste sentido, diria que não somente o
coordenador ocupa a posição de sodo da escola, como também os professores poderiam ser
considerados sodo em relação às suas turmas, cabendo a eles mediar, organizar e coordenar,
sempre respeitando a autonomia dos alunos, mas não deixando que outros (pais de alunos,
demais professores) se intrometam no domínio do qual é ‘dono’.
Entre professores e alunos, ainda, a interação na escola é, muitas vezes, determinada
por um tipo de atitude característica das relações de parentesco. Refiro-me ao ‘respeito’
(tywypaselâ) que deve regular os encontros entre afins, expresso principalmente pela
evitação da proximidade física, do confronto e do uso do nome próprio. O comportamento
de ‘respeito’, esperado entre cunhados do mesmo sexo e entre sogros e genros ou noras, é
seguido nas várias situações escolares, como reuniões e aulas. Nesse sentido, o papel de
professor-‘dono’ também não pode sobrepujar o ‘respeito’ que este deve ter com seus afins.
De toda forma, os Bakairi dizem lidar bem com esse tipo de situações, que, em última
instância, lhes mais um recurso para que estabeleçam relações sem ter que passar por
discordâncias e impessoalidades, tão distantes do modo bakairi de conceber o contato
interpessoal.
* * *
Neste capítulo, a escola bakairi foi vista através das performances que nela
acontecem cotidianamente, no contexto das aulas e daquelas realizadas extra-classe. Além
disso, examinei os papéis desempenhados por alunos e professores, mostrando que os
modos de mediação entre eles não passam por instituições impessoais, mas envolvem
aspectos característicos da organização social bakairi, em particular, de suas cerimônias
coletivas, como a figura do ‘dono’.
A apropriação da escola pelos Bakairi se deu (e se dá) tanto a partir do modelo que
lhes foi apresentado pelo SPI (também pela FUNAI e internatos), quanto a partir de
processos próprios, seguindo a lógica da familiarização, através de práticas performáticas,
348
com ‘outros’, ‘donos’ de recursos que permitem manter e reproduzir suas famílias. Assim,
da mesma forma que ao realizar o kado os Bakairi querem estabelecer contato e domínio
sobre o universo espiritual aquático, ao manter uma escola eles pretendem domesticar o
‘mundo civilizado’.
‘Civilizado’, neste caso, se definiria fundamentalmente em contraposição ao modo
de vida dos Bakairi antigos e xinguanos (protótipo dos índios primitivos). Ao se
identificarem enquanto ‘civilizados’ e buscarem a civilização, os Bakairi pretenderiam
sobretudo neutralizar a desigualdade com a sociedade que os domina; a escola aparece
como a instituição mediadora por excelência entre os Bakairi e os civilizados/karaiwa.
Freqüentando-a, eles pretendem tanto transformar-se em civilizados no presente, quanto
garantir os meios de continuarem se transformando no futuro (emprego, acesso a dinheiro).
Lembre-se que o conceito bakairi de transformação (âtugudyly) diz respeito a um ‘vir a
ser’, que não pressupõe um tornar-se definitivo, nem substituição de ‘identidades’: ser
Bakairi e karaiwa.
As performances escolares, cotidianas ou extra-classe, propiciam essa
transformação em civilizado, as primeiras caracterizadas por um esforço em seguir o
formato da ‘escola oficial’ e assim familiarizar-se com os aparatos e comportamentos do
‘outro’ - prédios, roupas, disciplina e organização escolar - a fim de que aconteça a
transformação. Assim como a transformação em ‘espírito habitante das águas’ (iamyra)
pressupõe o uso de roupas, máscaras, desenhos, instrumentos e comportamentos desses
seres, como acontece no kado, a transformação em civilizado se realiza através da
apropriação de suas roupas, desenhos, instrumentos e comportamentos, que utilizados
ritualmente surtirão como efeito a transformação tanto presente quanto futura.
O modelo dessa transformação cotidiana é o ‘ser’ e não o ‘imitar’. Os professores
indígenas não agem como os professores brancos, mas são professores tanto quanto estes.
Seu diário, ambiente de trabalho, rotina, conteúdos de ensino, são exatamente os mesmos
dos professores da cidade. De tudo isso os Bakairi não abrem mão. O que me possibilita
afirmar que em seu cotidiano os professores bakairi não estão imitando os ‘brancos’, mas
transformando-se neles.
A distinção entre transformação e imitação se aplica aos grafismos bakairi, que
podem ser iwenyly, se fazem um ‘objeto transformador junto com a superfície com a qual
349
interagem (cesto, apá, corpo), ou ekudyly, quando são apenas a representação de algo. Foi a
partir dessa classificação dos grafismos que tentei entender a função de muitos aspectos da
performance escolar. Em primeiro lugar, a escrita, tratada na língua bakairi como iwenyly,
sugere a idéia de que os Bakairi a vêem em sua interação com a superfície (papel, quadro-
negro) e não como uma representação da ‘voz’. Na verdade, os Bakairi, como outros povos
ameríndios, não dividem a noção ‘ocidental’, que pressupõe uma subordinação da oralidade
à escrita. Assim, nas aulas, a escrita aparece ora como um grafismo a ser transferido de
superfície a superfície, ora como uma referência do discurso oral e, ainda, sempre inerente
à língua portuguesa, enquanto a fala é inerente à língua bakairi.
Vista a escrita como uma transformação do desenho (iwenyly) - desenho que para os
Bakairi tem qualidades transformadoras (máscaras, pinturas corporais) podemos dizer
como Peter Gow que estamos diante de uma “transformação da transformação” (Gow,
2001). Assim como a escrita, outros aspectos da escola bakairi se prestam a este processo
transformador, como a âtâ-roupa e a âtâ-casa, além de comportamentos e padrões
expressos pela disciplina e organização escolar.
Se o iwenyly seria o melhor modelo para entender as performances escolares
cotidianas, o ekudyly (imitação) nos ajudaria a compreender, nas performances extra-classe,
a relação existente entre o kado e a ‘cultura bakairi’, sendo a segunda uma representação do
primeiro. Vimos que em todas as atividades extra-classe a ‘cultura’ aparece como um
aspecto de destaque, ao lado das sempre presente referências aos signos patrióticos,
formando com estes os dois modos principais de interação com a sociedade brasileira: a
‘cultura’ sendo a forma de se insinuar nos brasileiros e o patriotismo a forma de insinuar os
brasileiros, simbolicamente, nos Bakairi. À guisa de exemplificação, comparei as
cerimônias acontecidas em dias consecutivos, quando, em Planalto da Serra, para os
karaiwa, os Bakairi se mostraram como índios e na aldeia central, apenas internamente, os
Bakairi vivenciaram uma performance enquanto civilizados/modernos.
O formato ‘apresentação’ que privilegia alguns aspectos do kado a serem mostrados
(a expectadores karaiwa) como expressões da ‘cultura bakairi’, e também as pinturas
corporais e máscaras reproduzidas em livros didáticos, seriam exemplos da ‘cultura’ como
ekudyly (imitação) do kado.
350
A interação entre escola e kado, então, apresenta mais uma dimensão, além daquela
apontada no início do capítulo, quando vimos que, depois da ‘atração’, os Bakairi teriam
vivido um processo durante o qual, ao mesmo tempo, o kado era enfraquecido e a escola
enfatizada, tendo por conseqüência, hoje, uma escola que em muitos aspectos ocupa o lugar
do kado. Houve uma identificação entre duas instituições, ambas com qualidade de espaços
públicos onde capturam-se recursos externos através da familiarização com o modo de vida
dos ‘outros’. A partir da análise das performances escolares, principalmente aquelas
realizadas extra-classe, percebemos, ainda, que kado e escola se interconectam através da
incorporação da ‘cultura’ pela escola, sendo esta (cultura) uma representação (ekudyly) do
kado.
Tratei ainda dos papéis sociais advindos com a escola professor e aluno que,
apesar de terem sido introduzidos de fora, têm suas relações pautadas, em geral, por formas
tipicamente bakairi. Destaquei a função de ‘dono’ na organização e mediação das
atividades escolares bakairi e o caráter de reclusão tanto da permanência dos alunos na
escola, quanto da experiência dos professores nos internatos do colégio agrícola.
Pretendi mostrar, ainda, que dentre os modos de formação do kurâ, além das
associações que podem ser feitas entre kado e escola e entre reclusão e escola, uma
importante correlação entre os métodos da educação doméstica e aqueles operantes nas
aulas, ambos enraizados nas práticas da participação/repetição.
Por meio da análise desenvolvida neste capítulo, propus que a escola, em vários
sentidos e níveis, funciona como o kado: pelo seu destaque enquanto instituição pública;
por ser meio de captura de recursos pertencentes a ‘mundos outros’, essenciais à
reprodução do parentesco; por seu funcionamento depender de especialistas com
conhecimento dos códigos do ‘outro’ aprendido durante um período de reclusão; por
recorrer a performances coletivas que envolvem práticas como o iwenyly que visam
‘transformar’ o kurâ/Bakairi em ‘outro’. Todas essas associações me levam a afirmar que é
exatamente ao pretender ‘ser como o outro’, no ‘civilizar-se’ pela escola, que os Bakairi
visam se reproduzir enquanto um grupo diferenciado, tendo o parentesco como fundamento
organizacional e valor maior.
351
À guisa de conclusão
Escola-kado: ritos de civilização e cultura
Como os Bakairi vêem a sua escola? A partir de que referenciais? Qual é a origem
desses referenciais? Como funciona a escola bakairi? Sob que critérios eles concebem o seu
funcionamento? Como explicar a sua posição de destaque na vida social bakairi e, ao
mesmo tempo, a pouca importância dada aos aspectos diretamente relacionados à
aprendizagem dos conteúdos escolares?
352
Os questionamentos que impulsionaram esta tese surgiram da forte impressão inicial
de que a escola bakairi, mesmo apresentando uma exterioridade nada específica, ou seja,
moldada completamente nos padrões oficiais de escola, é em si algo instigante, complexo e
original, a ser explorado. A princípio e aparentemente, esta não-especificidade foi sendo
construída em oposição à escola indígena ‘diferenciada’. A escola bakairi parece querer
excluir tudo o que diz respeito à vida ‘nativa’ extra-escolar, desejo expresso pelos próprios
professores que vêem como discriminação qualquer tentativa de afastá-la dos modelos
urbanos.
Entretanto, no decorrer da pesquisa, percebi que essa contraposição é falsa e que, na
verdade, a busca pela domesticação do padrão de escola do ‘branco’ faz parte do modo
próprio dos Bakairi lidar com a alteridade e se reproduzir enquanto um grupo discreto,
enquanto famílias e enquanto pessoas. Dito em outras palavras, a forma dos Bakairi serem
‘eles mesmos’ passa pela sua ‘transformação’ em ‘outro’ e a escola representa este ‘outro’
(‘branco’), ao mesmo tempo em que é um instrumento privilegiado de mediação.
Até o aparecimento dos karaiwa, o domínio de alteridade que importava aos Bakairi
domesticar era representado pelos iamyra, seres surgidos com a separação entre o ‘céu’ e a
‘terra’ e que vivem de forma simultânea no céu e na água dos rios. Surgiram, assim, as
diversas espécies de kado, cerimônias coletivas pelas quais a interação com os iamyra é
engatilhada através do oferecimento de comida, das ‘vestimentas’ (máscaras, pinturas
corporais), das danças e cantos. Chamar a si esses seres é a garantia da reprodução das
famílias, valor maior para um Bakairi. Essa interação é acompanhada sempre por um pajé,
pessoa que tem conhecimento e poder sobre os iamyra e pode assegurar que a mediação
seja feita de forma segura.
Houve, todavia, na história bakairi, um novo desdobramento de seu cosmo, dessa
vez não por uma divisão, mas por adição. Refiro-me à chegada dos karaiwa, com suas
roupas, armas, tecnologia, que, ao mesmo tempo em que fascinaram, subjugaram os
Bakairi. Podemos dizer que a domesticação dos Bakairi por parte dos karaiwa foi ao
mesmo tempo uma domesticação dos karaiwa por parte dos Bakairi. Pois, se os Bakairi a
partir de então passaram a depender cada vez mais dos ‘brancos’, aquilo que lhes chegava a
partir destes (hábitos, objetos, língua, entre outras coisas) foi sendo incorporado a partir de
referências pré-existentes. Foi o que aconteceu com a escola. É uma constatação que,
353
aparentemente óbvia, nos leva, contudo, ao que realmente nos interessa: não apenas dizer
que a domesticação é mútua e que os Bakairi não ficaram passivos no processo de
integração à sociedade brasileira, mas fundamentalmente, entender, como eles realizaram
essa apropriação.
A partir da ‘atração’ dos Bakairi começou a se instaurar um novo e importante
domínio de alteridade, aquele em que o ‘outro’ é o karaiwa, ‘dono’ de recursos hoje
intensamente desejados pelos Bakairi para a continuidade da produção de suas famílias,
como dinheiro, emprego, bens. Se a mediação com os iamyra é feita através de ritos
coletivos (kado), a escola se tornou a instituição que centraliza a relação com os karaiwa. A
escola, aos poucos, foi se sedimentando a partir das formas como foi introduzida e se
desenvolveu. Destaquei a ênfase dada a ela no regime do SPI, em paralelo ao empenho
deste mesmo órgão em enfraquecer o kado; a conseqüência foi firmar a escola como
importante espaço de cerimônias públicas, sobretudo‘civilizadoras’.
Mais recentemente, sob a administração da Funai, a escola passou ao controle dos
Bakairi, com a iniciativa conspícua dos professores indígenas. Conservou-se o modelo do
SPI, fundamentalmente no que se refere aos ritos patrióticos, à organização e à disciplina,
apesar desta última ter sido amenizada para se adequar aos padrões interacionais bakairi,
que não admitem nenhuma manifestação de agressividade. A mediação com os ‘brancos’ se
deu pela experiência da civilização. A partir do final da década de 1990, principalmente
com os projetos de formação de professores indígenas em vel de Ensino Médio e depois
de 3
o
grau, a escola passou a abrigar mais uma dimensão de mediação entre ‘brancos’ e
Bakairi: a cultura.
Hoje, podemos dizer que a escola ocupa na vida social bakairi um espaço que
anteriormente pertencia tão somente ao kado, o das cerimônias coletivas, onde pelos
desenhos (iwenyly, nome dado também à escrita), pelas roupas (âtâ) e por ações
performáticas, os Bakairi se ‘transformam’ no ‘outro’, familiarizam-se com ele e, assim,
conseguem condições de reprodução de seus grupos familiares. A aparência da escola
suas edificações, as roupas, a escrita, os livros, a organização e a disciplina - operaria como
as máscaras do kado. Estas últimas são constituídas por uma visibilidade-desenho que
remete a um ‘mundo outro’ (dos iamyra, no caso), sendo, ainda, animadas por kurâ,
pessoas, que, enquanto ‘vestem’ as máscaras, devem ser chamadas apenas pelo nome do
354
iamyra que estão ‘ativando’ ou ‘vivendo’. Da mesma forma, a escola, através de
comportamentos, objetos e técnicas, que remetem à civilização ou ao ‘mundo dos karaiwa’,
permite que os Bakairi se ‘transformem’ nos seres desse mundo estrangeiro, os civilizados.
Tentei mostrar dois modos de associação entre escola e kado que sugeriram aos
Bakairi que estes domínios coletivos poderiam conter os mesmos significados: substituição,
operação efetivada pelo SPI, quando funções e sentidos do kado passaram para a escola;
analogia, entre dois espaços públicos extremamente ritualizados, com atribuições de
mediação (interna e externa) e de captura de recursos. Outro modo de relação surgiu com a
escola, agora indígena, enquanto locus da ‘cultura’, o que fez com que o kado pudesse ser
usado como representação da ‘cultura bakairi’, firmando, assim, uma nova via de interação
com a sociedade brasileira. Observamos este aspecto naquelas atividades escolares
conhecidas como extra-classe, ou seja, ‘apresentações’ e festas, quando os Bakairi utilizam
símbolos culturais e patrióticos para celebrar e vivenciar seu ser índios-brasileiros.
Além do kado, o elemento da formação do kurâ que mais parece ter influenciado a
escola, salientei certas congruências entre o modelo escolar, a educação doméstica bakairi e
os processos da iniciação e da reclusão. Assim como acontece no interior do espaço
doméstico, o aprendizado escolar bakairi segue a metodologia da prática, da repetição e da
participação; a escola é o lugar, também, de uma semi-reclusão, maneira eficiente de
formar os jovens. Neste caso, as analogias com o contexto extra-escolar são parciais e às
vezes até contraditórias, como atesta o fato de que a freqüência à escola impede aos alunos
de acompanhar os pais em outras atividades, como construção de casa, confecção de
artesanato, trabalho na roça, prejudicando o aprendizado destas atividades pelos mais
jovens. Além disso, se a reclusão pubertária coletiva de ‘antigamente’ se restringia aos
rapazes, a escola, hoje, abriga alunos de ambos os sexos.
A escola bakairi atual, portanto, é um híbrido, às vezes desconcertante, de
elementos variados, provenientes tanto das formas ditas ‘tradicionais’ de formação do kurâ
- aprendizado doméstico, reclusão, e principalmente o kado - quanto de uma vivência
definitiva, de mais de 80 anos, com o Estado e seus agentes (SPI, Funai, MEC, governo de
Mato Grosso). Neste sentido, a escola é hoje para os Bakairi o local privilegiado da
mediação com os karaiwa, ‘donos’ de recursos que, a cada dia, se tornam mais necessários
em termos de meios de subsistência, de troca e de status. É na escola que os Bakairi, por
355
mais tempo e com mais intensidade, vivem como civilizados e ‘viram’ civilizados,
conforme sua visão xamânica de transformação, no presente e no futuro.
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Filme 213, doc.248; 1923
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Filme 213, doc.538, 1927
Filme 213, doc.538, 1927
Filme 213, doc.998, 1933
Filme 214, doc. 022, 1943
Filme 214, doc.730, 1945
Filme 214, doc.653, 1945
Filme 214, doc. 531, 1945
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Filme 214, doc. 653, 1945
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Filme 214, doc.1387, 948
Filme 214; doc.1352;1948
Filme 214, doc.1643,1950
Filme 214, doc. 1820,1951
Filme 214, doc. 1922;1951
Filme 214, doc.1886, 1951
Filme 214, doc.1886, 1951
Filme 213, doc. 509, 1959
Filme 215, doc. 507, 1959
Filme 213, doc .509, 1959
ANEXO 1
II
ANEXO 2
III
ANEXO 3
IV
V
VI
VII
]
ANEXO 4
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