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Voltando à constituição do Universo atual, os seres originários ou moradores de
yváy localizados aquém da Yvy Rendy são os seguintes: todos os “animais” que
constituem fonte de alimentação para as humanidades atuais (como anta, veado, cateto,
paca etc.) e aqueles considerados como de mau augúrio, nocivos e repugnantes (como
onça, lobo-guará, morcego, cobra, besouro, vermes etc.). Moram também nesta parte do
Universo diferentes tipos de járy, como os relativos às categorias anteriormente
descritas: o Kurupíry (dono das pedras), o Ka’aguyavaete
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(dono do mato), Ava Sovy
(dono do arco-íris), Sanja Járy (dono das fossas e valas), Tape Kue Járy (dono dos
caminhos abandonados), Óga Kue Járy (dono das casas ou construções abandonadas), e
tantos outros donos de espaços “desumanizados”. Ainda se localizam nesta parte do
Cosmo os añáy (demônios). Todos estes járy e añáy são considerados pelos Kaiowa
como sendo ma’etirõ, termo que é utilizado frequentemente para designar seres – e
também substâncias – maléficos
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. Concluindo, temos aqui também as anguê
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, isto é,
as almas corporais dos seres humanos, que se desprendem do corpo após a morte do
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Também conhecido como Malavisión ou Pitajovái (literalmente “os calcanhares para frente e
para trás”), espírito que grita no meio da floresta e assusta e amedronta os caçadores.
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Cadogan (1962: 73) registra outro significado para este termo, que é recuperado por Melià et al.
(1976: 234) e traduzido como “almas penadas”. O autor paraguaio transcrevia uma expressão de um Paî-
Tavyterã que definia os ma’etirõ como sendo “almas de habitantes de la tierra como nosotros, que
pecaron” (idem). Em lugar algum cheguei a registrar uma semelhante tradução. Em Limão Verde,
Dourados, Sassoró e Jaguapire, onde pesquisei o assunto, consideram ma’etirõ como sendo um quid
malignum. Zé Nunes, de Dourados, falou de ma’etirõ rembiapo (o trabalho, atuação do ma’etirõ), sendo,
portanto, uma força maligna em ação, que viria no vento, causando doenças. Segundo Bastião Arce, da
mesma reserva, ma’etirõ é um espírito que faz mal às pessoas. Da mesma opinião é Alda, que o tem como
sinônimo de añáy (demônio); já Getúlio Juca, seu esposo, importante líder e aspirante a xamã, distingue
entre ma’etirõ e mba’etirõ, o primeiro sendo um ser maligno e o segundo um objeto, uma coisa, maléfica.
Os xamãs Atanás (em Limão verde) e Luís (em Jaguapire) confirmam todas estas versões em suas
narrativas, muitas vezes fazendo uma combinação entre elas, isto é, o ma’etirõ sendo ao mesmo tempo o
agente causador e o objeto causa de uma determinada doença. Cadogan considera que a a palavra em
questão é composta pelo termo “tetirõ” (1962: 73), remetendo seu significado à tradução feita por
Montoya (1876: 385) de “che reko tetirõ”: “ando inquieto, no tengo asiento, soy incostante”. Há que se
considerar que o jesuíta, na abertura do verbete “tetirõ”, como significado geral lhe atribui o sentido de
“qualquiera cosa, comunicar, aun, hasta, em ninguna manera”, mostrando a característica polissêmica
deste termo. Cadogan, como muitos autores, buscam muitas vezes no dicionário redigido por Montoya no
longínquo 1639, significados que depois são atribuídos aos contextos sociais e lingüísticos atuais. Se a
esta atitude acrescentamos as próprias ambigüidades de sentido que o autor do vocabulário aponta para o
termo em questão, devemos considerar a afirmação de Cadogan, pelo menos como uma das possíveis
interpretações do termo em exame. A meu ver, com base nas informações obtidas, é muito provável que
“ma’e” seja uma contração de “mba’e” (objeto). Assim sendo, “mba’etî”, poderia ser traduzido como
“sustancia, cuerpo gaseoso, gás, vapor” (Guasch e Ortiz 2001: 646) e “yrõ” como “odiar, depreciar: odio,
desprecio” (idem: 795), o que nos levaria a interpretar o lexema como sendo “sustância etérea maléfica”,
em convergência com as informações por mim obtidas de parte dos indígenas.
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Também denominada anguéry. Para mais detalhes, ver adiante, no próximo item.