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Universidade Federal do Rio de Janeiro
MUSEU NACIONAL
Programa de Pós-graduação em Antropologia Social
Fabio Mura
À PROCURA DO “BOM VIVER”
Território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os
Kaiowa
Vol. I e II
Rio de Janeiro
2006
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Fabio Mura
À PROCURA DO “BOM VIVER”
Território, tradição de conhecimento e ecologia doméstica entre os
Kaiowa
Tese de doutorado apresentada
ao Programa de Pós-graduação
em Antropologia Social do
Museu Nacional - U F R J
Rio de Janeiro
2006
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3
À procura do “bom viver”: Território, tradição de conhecimento e ecologia
doméstica entre os Kaiowa
Fabio Mura
Tese submetida ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional (PPGAS-MN) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), como requisito necessário à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
___________________________________________ Orientador
Prof. Dr. João Pacheco de Oliveira
___________________________________________
Prof. Dr. Antônio Carlos de Sousa Lima
___________________________________________
Prof. Dr. Moacir Gracindo Soares Palmeira
___________________________________________
Prof. Dr. John Manuel Monteiro
___________________________________________
Prof. Dr. Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
___________________________________________
Prof. Dr. Carlos Fausto
___________________________________________
Dr. Guillermo Wilde
Rio de Janeiro
2006
4
Ficha Catalográfica
Mura, Fabio.
À procura do “bom viver”: território, tradição de conhecimento e
ecologia doméstica entre os Kaiowa / Fabio Mura.-- Rio de Janeiro: UFRJ/ MN/
PPGAS, 2006.
504 p.: il. Tese Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu
Nacional – PPGAS.
1. Guarani-Kaiowa.
2. Território, tradição de conhecimento, ecologia doméstica.
3. Tese (Doutorado – UFRJ / PPGAS / Museu Nacional). I. Título.
5
Para Alexandra e Pedro Tiberio,
com infinito amor.
Para Rubem, colega e
companheiro, por ter me apresentado
aos Guarani, e por essa nossa jornada,
sempre juntos, pelas trilhas tecidas por
estes índios.
À memória de meu companheiro
Lázaro, de Pirakua, cuja perda
entristeceu meu coração.
6
Agradecimentos
O longo percurso que resultou no presente trabalho viabilizou-se graças a
auxílios de diversas ordens, os quais venho aqui a reconhecer publicamente.
A pesquisa, assim como a sua concretização nesta tese, são em grande parte
devedoras da dotação que me foi concedida pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), através de uma bolsa de doutorado,
auxílio este de extrema valia.
Minha experiência de dois anos como professor visitante na Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) caracterizou-se como bastante profícua,
permitindo-me um sistemático desenvolvimento de etapas de pesquisa e debates com
colegas e alunos indígenas e não-indígenas. Foi durante este período que pude também
desenvolver muitas das reflexões que aqui se consolidam.
No que diz respeito especificamente ao PPGAS do Museu Nacional, diversas
são as pessoas que, com sua amizade, estímulo e/ou préstimos, contribuíram para o bom
fluir de meu trabalho. Assim, agradeço inicialmente a meu amigo e orientador,
professor João Pacheco de Oliveira, por ter me deixado expressar livremente minha
criatividade, sem, contudo, faltar em me apresentar críticas e observações construtivas,
que foram valiosíssimas para a realização desta tese.
Agradeço também de modo especial aos professores Antônio Carlos de Sousa
Lima, Federico Guillermo Neiburg, Moacir Gracindo Soares Palmeira e Carlos Fausto,
que me acompanharam e me brindaram com vários aportes, em diversos momentos.
Dentre as pessoas da secretaria do PPGAS, sem desconsiderar a atenção dos
demais, apresento minha gratidão a Tânia e, mais recentemente, a Elisabete Ferreira,
mãe e filha, pela eficiência marcante com que sempre me atenderam e pelas inúmeras
vezes em que “quebraram meu galho”.
A Isabel, Cristina e Carla, agradeço muito a atenção prestimosa no atendimento
na biblioteca.
No âmbito mais íntimo, compartilhei e compartilho de amizades fundamentais,
com as quais, nas mesas de bares e/ou festas, em encontros acadêmicos, em trabalho de
campo e/ou em reuniões profissionais, conversei sobre coisas da vida e debati temas,
7
textos e autores com grande paixão, algo que foi fundamental para me enriquecer e para
compreender o nível e os limites de minhas reflexões. No Rio de Janeiro, lembro
especialmente de Andrey Cordeiro, Andrea Roca, Débora Reston, Edmundo Pereira,
Elizabeth Linhares, Evangelina Mazur, Fernando Rabossi, Guillermo Wilde, Hernán
Gómez, Laura Zapata, Maria José Freire, Mariana Paladino, Renata Valente, Roberto
Salviani, Rolando Silla, Rubem Thomaz de Almeida e Sergio Chamorro. em
Dourados, Mato Grosso do Sul, fiz diversos companheiros: Adilson Crepalde, Antônio
de Carvalho, Carlos Pacheco, Charles Pessoa, Gleice Barbosa, Jorge Eremites, Levi
Pereira, Lourenço Alves, Marcos Homero Lima, Ramiro Rockenbach, Rosely Stefanes,
Spensy Pimentel, Vito Comar e Zelick Trajber. A estas pessoas digo: muito obrigado
por tornarem minha vida mais rica.
O kaiowa Tonico Benites é merecedor de uma atenção particular. Em um
primeiro momento, como informante, foi de uma preciosidade única. Depois, como
colega, debatendo com uma profundidade incomum os temas levantados durante as
minhas e as suas pesquisas, foi mais precioso ainda. Finalmente, como amigo, com
quem ao longo de quase quatro anos compartilhei momentos de alegria e de ansiedade,
em um relacionamento que foi (e vai ainda) bem mais além dos limites estabelecidos em
uma dinâmica de investigação, humanamente me enriqueceu muito. Tonico: te agradeço
enormemente.
Em casa, onde todos se mobilizaram para que esta empresa chegasse a bom fim,
contraí dívidas enormes. Com meu filho, Pedro Tiberio, pela alegria e energia
fornecidas a cada dia; com minha sogra/mãe Dona Dora, pela sua vitalidade e
solidariedade; com minha cunhada/filha Marianna, pela sua preciosa ajuda na
composição da gráfica e da bibliografia da tese; com minha companheira Alexandra,
pelo amor e paciência comigo, e pela grande dedicação em debater nos mínimos
particulares o trabalho, e na detalhada revisão do mesmo; a eles, os meus mais sinceros
agradecimentos.
Em casas mais distantes, agradeço a meus pais, Liana e Giovanni, que, de Roma,
sempre torceram por mim, nunca me deixando sem apoio, e também a minha irmã,
Claudia, pelo seu carinho, solidariedade e contribuição intelectual: muito obrigado.
Finalmente, agradeço aos Kaiowa e Ñandéva de todos os patamares do Cosmo,
por terem me recebido e por tudo o que me ensinaram; a eles vão os meus mais
humildes e calorosos agradecimentos.
8
“...sempre seremos irmãos dos Ñande Rykey [deuses]. Apesar de hoje usarmos roupas
diferentes e enfeites diferentes dos Ñande Rykey, eles vão nos reconhecer por meio de colar,
voz, ñembo’e, jeguaka etc. Com estes enfeites, vão nos reconhecer. Mesmo nós tendo errado
porque não nos comportamos mais como eles; mesmo que vivamos diferentes deles, pois
ficamos bêbados, violentos, brincamos muito; mesmo que nossas roupas, alimentos, atitudes,
modo de ser, sejam diferentes de Nossos Irmãos; mesmo que queiramos ser diferentes deles,
isto é impossível, porque eles são Nossos Irmãos legítimos, são nosso princípio, sempre
gostam de nós! Eles aceitam, não estão nos excluindo por causa de nossos novos
comportamentos. Eles têm a missão e a obrigação de cuidar dos seus irmãos menores em
qualquer situação” (Xamã Atanás, Ñande Ru Marangatu, 06 de agosto de 2000).
“A jarra é uma coisa como recipiente. Este recipiente, sem dúvida, necessita de uma
produção. Mas o fato de ser produzida por um ceramista não constitui de fato o que pertence
à jarra enquanto jarra. A jarra não é um recipiente pelo fato de ter sido produzida, mas, ao
contrário, a jarra teve de ser produzida pelo fato de que é este recipiente” (M. Heidegger
1991 [1957]: 111; tradução própria).
9
Resumo
O presente trabalho busca descrever e analisar a organização territorial, a
tradição de conhecimento e a relação estabelecida com o mundo material por parte dos
Guarani Kaiowa contemporâneos localizados no Mato Grosso do Sul. Para tal, pretende
se distanciar das abordagens sistêmicas, que procuram entender a vida social e a relação
com os elementos materiais a partir de estruturas e/ou sistemas abstratos, preconcebidos
e coerentes o que oferece imagens incongruentes dos vários aspectos da vida atual
desses índios. Evita-se aqui distinguir a priori entre natureza e sociedade, buscando-se
analisar as atividades dos Kaiowa inseridas em contextos sócio-ecológico-territoriais,
contextos estes resultantes da configuração processual dos elementos do Cosmo, em
uma determinada situação histórica e espaço geográfico. Nestes termos, as atividades
políticas, a ação sobre a matéria e as relações entre seres viventes são vistas como
seqüências concatenadas a partir dos atos de sujeitos históricos precisos. Tais sujeitos
constroem grupos e sistemas abertos e instáveis, tendo como ponto de referência e como
fator limitador as observações morais procedentes da tradição de conhecimento à qual
aferem. É possível constatar que, entre esses indígenas, a unidade doméstica, constituída
por uma família extensa, é o grupo de articulação menos instável e mais almejado,
sendo a partir deste ponto de referência que os indivíduos produzem, articulam,
integram e/ou adaptam historicamente conhecimentos, valores e elementos materiais,
numa procura constante pelo “bom viver” (tekove porã).
10
Abstract
This research effort aims to describe and analyze the territorial organization,
tradition of knowledge and the relationship established with the material world by the
contemporary Guarani Kaiowa indigenous people, situated in Mato Grosso do Sul. For
this purpose, one needs to take a certain distance from the systemic approaches which
try to understand social life and the relationship with material elements based on
structures and/or abstract systems, of a preconceived and coherent nature – thus offering
incongruent images of the various facets of the present life situation of these indigenous
groups. Avoiding to distinguish a priori between nature and society, Kaiowa’s activities
are analyzed in their insertion within the socio-ecological-territorial contexts, which
result from the process of configuration of the elements of the Cosmos, within a specific
historical situation and geographical space. Within these terms, political activities,
actions over material reality and the relationships between living beings are seen as
concatenated sequences starting from the acts of precise historical subjects as a
benchmark. These very subjects construct groups and open and unstable systems,
setting as their benchmark - and as a limiting factor - the moral observation forthcoming
from the tradition of knowledge from which they spring. It is possible to verify that, for
these indigenous people, the domestic unit, constituted by the extended family, is the
least unstable and most sought for group for articulations. It is starting from this
reference point that individuals produce, articulate, integrate and/or historically adapt
their knowledge, values and material elements, within a constant search for the “good
life” (tekove porã).
11
Sumário
INTRODUÇÃO........................................................................................14
PARTE I: SITUAÇÕES HISTÓRICAS....................................................30
Capítulo I: Os Guarani pré-colombianos ................................................................................. 36
1.1 Organização territorial e política ........................................................................................ 36
1.2 Atividades tecno-econômicas............................................................................................. 48
Capítulo II: Os Guarani após a conquista européia ................................................................ 54
2.1 O regime das encomiendas, as reduções jesuíticas e as bandeiras paulistas..................... 54
2.2 Os Guarani no sul da Província de Mato Grosso ............................................................... 59
2.3 Organização territorial e atividades tecno-econômicas...................................................... 64
Capítulo III: O ciclo da erva mate............................................................................................. 74
3.1 A Cia. Matte Larangeira e o “sistema” do barracão........................................................... 74
3.2 Dinâmica territorial e organização doméstica.................................................................... 77
Capítulo IV: A espoliação das terras guarani .......................................................................... 81
4.1 O processo de aldeamento compulsório............................................................................. 81
4.2 Índios “aldeados” e “desaldeados..................................................................................... 86
Capítulo V: Conflito fundiário e Constituição Federal de 1988 ............................................. 89
5.1 Da luta pela terra à redefinição do papel do Estado após a CF de 1988 ............................ 89
5.2 Da flexibilização à diversificação das atividades domésticas............................................ 90
5.3 Dados sobre a situação contemporânea das Terras Indígenas Kaiowa e Ñandéva ............ 94
PARTE II: TERRITÓRIO E POLÍTICA .................................................102
Capítulo VI: Dinâmica territorial............................................................................................ 103
6.1 Relações cosmológicas com a Terra ................................................................................ 104
6.2 Morfologia social.............................................................................................................. 109
6.3 A noção de tekoha ............................................................................................................ 113
6.4 Dinâmica territorial e organização do te’yi ...................................................................... 123
6.5 - O tekoha guasu............................................................................................................... 131
Capítulo VII: Organização política ......................................................................................... 139
7.1 O te’yi e a construção da comunidade política................................................................. 140
7.2 Relações intercomunitárias simétricas e assimétricas...................................................... 152
12
7.3 O cargo de “capitão” e as políticas interétnicas ............................................................... 156
7.4 O conflito na reserva de Limão Verde e seu desfecho..................................................... 165
7.5 As Aty Guasu.................................................................................................................... 173
Capítulo VIII: Dinâmica territorial e processos políticos na T.I. Jaguapire ...................... 180
8.1 Jaguapire e o tekoha guasu de referência......................................................................... 182
8.2 Processo de reivindicação e reocupação da terra de Jaguapire ........................................ 184
8.3 Dinâmica territorial e de parentela em Jaguapire............................................................. 186
8.4 A luta política em Jaguapire e a reivindicação de Karaguatay ........................................ 189
8.4 Algumas considerações gerais.......................................................................................... 192
PARTE III: TRADIÇÃO DE CONHECIMENTO ....................................202
Capítulo IX: Arquitetura e dinâmica do Cosmo.................................................................... 210
9.1 O Ára Ypy (o espaço-tempo das origens) e suas transformações..................................... 210
9.2 O Ára Ypyrã (o espaço-tempo atual) e o Ararapyre (o fim do tempo do bom viver)...... 228
9.3 Relações cosmológicas: entre quadro normativo e prática social.................................... 241
Capítulo X: O modo de ser kaiowa (ñande reko) e a integração social do indivíduo......... 255
10.1 Construção da pessoa ..................................................................................................... 255
10.2 O teko porã perante o teko reta e as conseqüências para a família extensa................... 261
10.3 Doenças e práticas de cura ............................................................................................. 264
10.4 O consumo de bebidas alcoólicas e a prática do suicídio .............................................. 278
10.5 Feitiçaria e técnicas mágicas positivas........................................................................... 284
Capítulo XI: O xamã................................................................................................................. 303
11.1 A formação ..................................................................................................................... 305
11.2 Xamanismo e tradição de conhecimento........................................................................ 314
Capítulo XII: A trajetória histórica dos chiru ....................................................................... 327
12.1 Características do chiru .................................................................................................. 328
12.2 Chiru e a dominação colonial......................................................................................... 332
12.3 Chiru e tradição de conhecimento.................................................................................. 337
PARTE IV: ECOLOGIA DO GRUPO DOMÉSTICO.............................342
Capítulo XIII: Bagagem material e atividades tecno-econômicas........................................ 349
13.1 O habitat......................................................................................................................... 350
13.2 Organização habitacional ............................................................................................... 361
13.3 Formação e diversificação da bagagem material ........................................................... 382
13.4 As atividades tecno-econômicas..................................................................................... 393
13
Capítulo XIV: Racionalidades, temporalidades e tecnologias em confronto ...................... 421
14.1 Normas e práticas de transação e uso dos recursos materiais ........................................ 423
14.2 Relação com os “patrões”............................................................................................... 430
14.3 Atividades indigenistas................................................................................................... 437
14.4 Racionalidades, temporalidades e a dinâmica do jeheka ............................................... 455
CONCLUSÕES.....................................................................................467
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................479
GLOSSARIO.........................................................................................499
14
Introdução
15
Em fevereiro de 1991 empreendi minha primeira pesquisa de campo entre os
Kaiowa, com o intuito de investigar aspectos da vida religiosa destes índios, pesquisa
esta que devia constituir o material empírico para a redação da tese de graduação na
disciplina “Antropologia Social”, do curso de Letras da Faculdade de Letras e Filosofia
da Universidade de Roma “La Sapienza”. O meu interesse pelos fatos religiosos
derivava de minha trajetória nesta universidade, meu plano de estudos de cunho
antropológico sendo constituído em mais de um terço por matérias inscritas no âmbito
da História das Religiões. Especificamente, os exames feitos para a disciplina
“Religiões das populações primitivas” cujo programa incorporava textos sobre índios
sulamericanos me estimularam a procurar entrar em contato com algum grupo
indígena, particularmente no Chaco argentino, onde uma equipe italiana estava
conduzindo pesquisas entre os Matacos. Em 1988, porém, durante uma viagem turística
ao Rio de Janeiro, tive um casual encontro com Rubem Thomaz de Almeida,
antropólogo que havia dirigido uma ONG que implementava projetos de etno-
desenvolvimento entre os Kaiowa e Ñandéva de Mato Grosso do Sul, nos anos de 1970
e 1980. A partir desse contato, estabeleci um diálogo com Rubem, que me levou a
redefinir o local de pesquisa, os índios a serem abordados e, também, a refletir sobre
alguns preconceitos oriundos de minha formação a respeito da presumida aculturação
dos povos indígenas
1
.
Foi assim que, voltando para a Itália e entusiasmado pelo contato estabelecido
no Brasil, me mobilizei para conseguir as condições institucionais para convidar
Rubem, na intenção de realizar um seminário voltado a fazer aprofundamentos sobre
trabalho de campo, etno-desenvolvimento e relações interétnicas entre os Guarani.
Juntamente com outros colegas estudantes, em 1990 consegui que este convite se
tornasse realidade, o Departamento de Estudos Gloto-Antropológicos da universidade
aceitando a proposta estudantil, oficializando-se a iniciativa. O seminário ministrado por
Thomaz de Almeida no mês de maio de 1990 inaugurava um ciclo de três, dedicados
1
Na época, os meus parcos conhecimentos sobre os índios das Américas, incluindo aí os próprios
Guarani, derivavam principalmente da leitura de estudos sobre movimentos milenaristas e processos de
ocidentalização, foco de interesse da escola romana de História das Religiões. Gilberto Mazzoleni,
ministrante do curso de Religiões dos povos primitivos, havia organizado, junto com Pompa e
Santiemma, um livro intitulado L’America rifondata (1981), cujo pressuposto básico era demonstrar que
os índios produziam movimentos milenaristas e concepções de mundo como resposta ao Ocidente
europeu. A idéia da aculturação religiosa, embora não explicitamente elaborada como teoria, estava
subjacente à perspectiva dessa vertente de estudos.
16
aos Guarani, a ele seguindo-se os de Bartomeu Melià (dezembro de 1990) e Georg
Grünberg (maio de 1991) este último, logo depois de minha primeira estadia entre os
Kaiowa, em Mato Grosso do Sul.
Os seminários posteriormente publicados como uma coletânea, intitulada
Ñande Reko
2
(Nosso modo de ser) (Mura et al. 2000) colocaram em evidência o
profundo apego que os Guarani teriam à sua “religião”, apego este ligado a uma
exaltação da linguagem entendida como sendo ao mesmo tempo fala e alma dos
indivíduos. Nestes termos, Melià (2000) elevava à máxima expressão dos estudos sobre
este povo o que definia como uma “etnografia da fala”, algo que teria sido inaugurado
por Cadogan, com seus estudos sobre cantos rituais e mitologia guarani mbya.
Posicionando-se justamente nesta linha de pensamento, Schaden escrevia que
Os estudiosos dos Guaraní são unânimes em considerá-los um povo
profundamente religioso. Já os antigos missionários assinalam o grande interesse
desses índios por tudo que seja religião, ‘verdadeira ou falsa’. O espírito
extraordinariamente místico dos Guaraní contemporâneos tem despertado a atenção
de mais de um pesquisador. Examinem-se a este respeito, entre outros, os escritos de
Nimuendaju, Cadogan, Haubert e Melià. Sabemos que é também no apego à religião
que os grupos hoje sujeitos à ação desintegradora do contato com o mundo
civilizado encontram o principal estímulo para insistir em sua identidade étnica.
(1982: 6).
Os fatos religiosos pareciam, portanto, os mais interessantes a serem tratados
em uma eventual pesquisa sobre os Guarani. Contudo, diferentemente de Schaden,
minha motivação para viajar ao Mato Grosso do Sul estava em querer realizar uma
crítica ao paradigma da aculturação adotado por este autor. Em conversas, Thomaz de
Almeida me convencera de que Schaden teria feito observações incautas sobre estes
índios, não considerando o aspecto arredio que os caracterizaria, bem como a prática do
ñembotavy (“fazer-se de bobo”), que levaria os índios a responderem às questões postas
pelo pesquisador buscando não contradizê-lo. Foi assim que, após investir em leituras
2
No tocante às regras de acentuação das palavras em guarani, seguirei a nomenclatura mais utilizada no
Paraguai, explicitadas em Melià et al. (1997: 8), não utilizando o acento gráfico nas palavras oxítonas,
estas sendo a maioria na língua indígena. A ocorrência do apóstrofe indica parada glotal. Por motivos
técnicos ligados aos recursos do editor de textos do computador, utilizarei dois símbolos distintos para
indicar a nasalização: nas vocais “a” e “o”, será utilizado o til, no “i” e no “e” utilizarei o acento
circunflexo. O ípsilon é a sexta vogal guarani, de som gutural; no caso específico da palavra te’yi”, esta
letra, além de gutural é também nasalizada. Não existindo recursos no editor de texto para indicar esta
condição, ressalto-a aqui.
17
de material bibliográfico produzido sobre o grupo em causa, enveredei para a já referida
viajem a campo, em fevereiro de 1991.
Nessa minha primeira experiência junto aos Kaiowa da Terra Indígena (T.I)
Pirakua, permaneci hospedado na unidade residencial de um reconhecido líder político,
Lázaro Morel. As minhas observações sobre a realidade vivenciada pelos índios deste
lugar foram, porém, em certa medida frustrantes, visto que, com base na literatura que
havia lido, esperava encontrar profusões de rituais e uma profunda dedicação cotidiana,
por parte dos índios, às dimensões espirituais. Contrariamente, outros aspectos da vida
desses Kaiowa me chamaram a atenção, e estes eram justamente os menos valorizados
na bibliografia sobre os Guarani: a organização material da unidade residencial. Percebi
que, com relação às parcas descrições sobre os elementos da vida material atribuídos a
estes índios, quase nada coincidia, no sentido de que os objetos que compunham o
estoque material das unidades residenciais eram, na sua grande maioria, não produzidos
pelos próprios Kaiowa. Recipientes metálicos, de vidro e de plástico, panelas de
alumínio, ferramentas metálicas etc, dominavam na composição da bagagem material
destes índios. que se considerar que, paralelamente, outros elementos também eram
encontrados com freqüência, procedentes estes das redondezas do pátio residencial,
como as cabaças utilizadas como recipientes (hy’akua), assim como vários tipos de
confecções em madeira. Instrumentos líticos e cerâmicos eram totalmente ausentes e a
cestaria, assim como a tecelagem, praticamente inexpressiva. Nestes termos, através de
apressadas conclusões, se poderia concordar com Schaden (1974) no sentido de que a
aculturação material se processou rapidamente, os aspectos religiosos sendo os mais
“resistentes” às pressões da “civilização”. Mas, é de se dizer, esta rápida conclusão não
faz minimamente justiça às relações que os Kaiowa estabelecem com o mundo material.
Com uma formação técnica a nível de segundo grau
3
, fiquei particularmente
interessado numa lógica de rendimentos (mecânicos, físicos e químicos) dos objetos
utilizados pelos índios e sobre o modo como os indígenas operavam a escolha destes.
Percebi rapidamente que existiam lógicas bem precisas operadas pelos Kaiowa, estas
procedentes de experiências práticas, não conseguindo eu ver nelas nenhuma imposição
externa, seja de tipo técnico, seja simbólica como, por exemplo, a necessidade de
3
Tenho formação como eletrotécnico.
18
marcar um status diferenciado de um indivíduo ou um conjunto destes perante outros
grupos.
Para explicitar estas minhas preocupações, um exemplo poder ser útil. A
freqüência com que encontrava recipientes de hy’akua
4
com capacidade volumétrica de
cerca de cinco litros paralelamente a garrafões térmicos com o mesmo volume (v. fotos
A, B e C) me levava a procurar explicações para este fenômeno não na presumida
sobrevivência do uso de objetos em cabaça, mas no raciocínio feito pelos índios para
justificar a manutenção deste material paralelamente aos procedentes de uma produção
industrial. Com freqüência os Kaiowa me diziam que o recipiente de hy’akua é “a
geladeira do índio”, afirmação esta, de um ponto de vista técnico, muito relevante. Com
efeito, as qualidades térmicas deste objeto são boas é leve e não requer muita despesa
em termos de tempo para a procura do material e a confecção do recipiente. A rigor, os
índios quase não produzem o recipiente de hy’akua, uma vez que jogadas as sementes
este tipo de cabaça cresce espontaneamente ao redor do pátio, sua forma e capacidade
volumétrica sendo produzida pelo simples ato de crescer. Alcançada a dimensão
desejada, é suficiente colher este fruto, deixando-o secar para depois extrair dele o
que se foi depositando durante a exsicação, através de um furo em uma das
extremidades do objeto. Podemos dizer que o processo de incorporação em uma
unidade residencial kaiowa de um recipiente de hy’akua requer uma tão baixa
quantidade de energia, em termos de trabalho (no sentido físico deste conceito), a ponto
de se poder pensar que é a “natureza” quem mais contribui para produzi-lo, limitando-se
os índios a “coletá-lo”, já quase em sua estrutura formal definitiva.
4
De hy’a (cabaça) e kua (furo). Trata-se de um tipo de cabaça apropriada para produzir recipientes.
19
Cabaça hy’akua. T.I. Jaguapire. Outubro de 2004.
Recipiente de Hy’akua. T.I. Jaguapire.
Outubro de 2004.
Foto B Foto C
Foto A
Garrafão térmico. T.I. Jaguapire.
Outubro de 2004.
20
Os garrafões térmicos, atualmente muito utilizados pelos índios, desempenham um
papel semelhante aos recipientes de hy’akua, mas eles precisam ser comprados ou
trocados, sendo necessárias, neste processo, atividades intermediárias (para se obter
dinheiro ou outro objeto que sirva na base da troca), isto com custos em termos de
tempo, relações sociais e políticas, bem como de energia, os quais devem ser
computados para se entender quais as estratégias adotadas pelos Kaiowa para incorporar
em sua bagagem material os objetos e os materiais almejados.
A comparação entre os recipientes de hy’akua e os garrafões térmicos me
permitiu elaborar uma hipótese, que com o passar do tempo foi adquirindo cada vez
mais consistência, e foi constituindo o elemento central de minha abordagem teórica e
metodológica às atividades técnicas. Ficava para mim claro que eram as necessidades de
uso (prático e/ou simbólico) de um determinado objeto que norteavam as ações dos
indígenas sobre a matéria, e não a produção deste objeto. Por sua vez, a ênfase por mim
colocada sobre o uso, ao se conotar as técnicas, me levava a considerar as atividades
realizadas pelo homem não meramente como uma ação sobre a matéria, mas também
com uma racionalidade nas escolhas, algo que comporta cálculos, avaliações e
administração dos objetos. Nestes termos, em lugar de falar simplesmente de
“atividades técnicas”, preferi adotar a expressão “atividades tecno-econômicas”
5
.
Após pouco mais de dois meses de campo, tornei à Itália, ciente que deveria
realizar uma viagem mais longa para completar meu levantamento empírico. O diálogo
com meu orientador, o Prof. Antonino Colajanni, ministrante da disciplina Antropologia
Social, foi fundamental para a redefinição do objeto de minha pesquisa. Este
antropólogo trabalha com processos de mudança e com projetos de desenvolvimento, e
estava particularmente interessado nas atividades tecno-econômicas do grupo que eu
pretendia estudar. Foi assim que decidi redefinir minha pesquisa, buscando centrar a
atenção na organização material dos Guarani-Kaiowa e Guarani-Ñandéva.
5
Ingold (1997: 108) prefere radicalizar e substituir o termo “economia por “tecnologia”, visto que,
segundo ele, o primeiro estaria ligado ao desenvolvimento do capitalismo no Ocidente, seu conceito não
podendo ser extendido a outras realidades sociais. Embora possa parcialmente concordar com este autor,
assim como Firth (1972), considero que as populações não ocidentais possuem critérios de administração
de bens que podem propriamente ser analisados sob a rubrica de econômico”. Neste termos, o que se
procura o formas de entendimento nativas do que significa administrar e economizar”. Ocupar-me-ei
especificamente deste tema mais adiante, na quarta parte.
21
A segunda etapa de campo, em 1993, durou pouco mais de seis meses, desta vez
não me limitando a uma única terra indígena, mas buscando conhecer outros lugares que
me permitissem ter uma idéia bastante ampla sobre os elementos materiais com que
lidam os indígenas. Nestes termos, visitei a reserva de Dourados, as T.Is Guasuty,
Cerrito e Jaguapire, com uma breve visita a Panambizinho para presenciar a cerimônia
de fechamento do ritual de iniciação masculina (o kunumi pepy). Especificamente em
Jaguapire, consegui estabelecer relações com famílias locais, que me levaram a escolher
esta terra, junto com Pirakua, como o lugar onde fazer maior investimento em termos de
pesquisa.
Novamente de volta à Roma, antes de me empenhar na análise e classificação do
material recolhido em campo, busquei aprofundar as leituras sobre tecnologia,
especialmente algumas famosas obras de Leroi-Gourhan (1977, 1993[1943],
1994[1945]). Entre os rios textos, encontrei um artigo publicado por Amodio, em
1986, na revista L’uomo, intitulado “Coisas próprias e coisas de outros: objetos
ocidentais, sincretismos e processos aculturativos entre os Macuxi do Brasil” (tradução
minha). Neste trabalho, o autor propõe considerar os objetos industriais utilizados pelos
indígenas a partir do nível de transformação formal que tiveram, uma vez incorporados.
Através de um exemplo, o autor afirma que se uma lata de óleo comestível é utilizada
como recipiente sem sofrer nenhuma alteração, teríamos para o uso funcional desse
objeto uma aculturação completa. Se, por outro lado, os índios modificassem a lata,
aportando-lhe, por exemplo, cortes e alças, transformando-a em um porta-objetos, a
aculturação seria parcial.
As observações do autor me pareceram não levar em devida conta a perspectiva
tecno-econômica do operador; isto é, qual raciocínio este último poderia fazer frente a
um mundo material por ele avaliado a partir de suas necessidades práticas e simbólicas.
Através de uma visão dualista, Amodio dividia, de modo apriorístico, entre coisas
indígenas e coisas ocidentais, a partir da origem da fabricação do objeto em questão.
Nestes termos, o próprio conceito de aculturação material por ele adotado o coloca em
contradição, uma vez que, a rigor, para que os índios fossem “aculturados
materialmente”, deveriam ter incorporado do Ocidente a siderurgia, único meio possível
para reproduzir o recipiente metálico.
Esta constatação tornou-se a idéia guia de minha monografia de graduação, onde
defendi a tese de que os índios incorporam objetos a partir de suas qualidades e
22
destinação de uso; o fato de estes procederem do mato dos arredores do pátio (caso, por
exemplo, da cabaça) ou de uma fábrica em São Paulo ou na China (o garrafão térmico),
é para o usufrutuário indiferente, uma vez que o que realmente importa são as
qualidades (físicas e simbólicas) do objeto, assim como sua disponibilidade e sua
acessibilidade. Nesses termos, o trabalho de graduação me permitiu enfrentar a relação
dos índios com o mundo material indo na contramão de quase todos os estudos sobre
tecnologia, que, contrariamente, conotam a técnica a partir da produção de artefatos, na
maioria dos casos como processo de transformação da natureza. A quarta parte da
presente tese traz uma consideração especificamente sobre este argumento.
Fechado o período italiano de minha formação, permanecia no meu enfoque uma
certa incongruência, entre, por um lado, uma minha abordagem à técnica (fortemente
vinculada a uma visão política da organização material dos Guarani), e, por outro, a
aceitação de uma análise sistêmica da organização social, territorial e religiosa desses
índios. Isto decorria, em certa medida, do fato de ter eu relegado a segundo plano estas
últimas questões, delegando a autores consagrados (como Cadogan, Melià e Grünberg
entre outros) sua definição etnográfica e analítica. Foi durante o mestrado, sob a
orientação do professor João Pacheco de Oliveira, que me deparei com uma literatura
que se revelou fundamental para a redefinição de minha abordagem teórica e
metodológica. As leituras especialmente da obra recente de Fredrik Barth contribuíram
de modo decisivo para resolver as minhas preocupações a respeito das incongruências
de meu enfoque, anteriormente explicitadas. Mas isto ocorreu de modo progressivo. Em
um primeiro momento, até mesmo pelos curtos tempos de que dispunha durante o
mestrado para desenvolver uma acurada pesquisa de campo, não consegui me dedicar
como queria aos outros aspectos que não fossem o da vida material desses índios.
Nestes termos, aproveitando dos dados procedentes de minhas pesquisas anteriores,
enveredei para a realização de um levantamento pontual de quase dois meses,
desenvolvido em Jaguapire e Pirakua, sobre o ciclo de construção das habitações nas
unidades residenciais. Estabelecendo uma correlação com a abordagem que Barth faz à
cultura (1984, 1987, 1989, 1992 e 1993), considerando-a como uma correnteza, um
fluxo de conceitos, idéias e valores, tracei um paralelo com o mundo material. Assim,
ao passo que Barth considera os indivíduos constituindo, ao longo de suas experiências,
estoques culturais (cultural stocks), por meio dos quais dão vida a seus atos atos estes
que, por sua vez, contribuem para a geração de novas experiências –, propus
23
correspondentes estoques material e técnico
6
. Neste sentido, através da interação entre
indivíduos inscritos em uma especifica tradição de conhecimento, fluxos culturais,
materiais e técnicos seriam organizados socialmente, em um contexto histórico
determinado.
Como dizia, por motivo de tempo, durante o mestrado não consegui aprofundar
em sua complexidade os aspectos que contribuem para a organização desses três
estoques, limitando-me a enfrentar os últimos dois aqui listados. Além disso, também
me mantive em um nível de escala bastante micro, abordando em detalhes as
características organizativas, de um ponto de vista técnico e material das unidades
residenciais, simplesmente indicando, no último capítulo, que os processos que aí
ocorrem estão intimamente vinculados à organização mais ampla da família extensa
(entendida como grupo doméstico que engloba várias unidades residenciais). Nestes
termos, como me foi justamente observado durante a defesa da dissertação, a
organização social do grupo abordado encontrava-se apenas esboçada, demandando um
aprofundamento. Com efeito, nas próprias conclusões daquele trabalho (dedicadas
justamente às variações de escala), eu explicitava a necessidade de enveredar, em um
segundo momento, para uma abordagem de mais ampla envergadura, fazendo uma
análise das atividades dos indivíduos à luz da organização do grupo doméstico.
Foi assim que durante meu primeiro ano de doutorado, paralelamente a trabalhos
sobre tecnologia que permanecia o tema central de minha pesquisa –, procurei
aprofundar estudos sobre unidades domésticas e organização social, mas ainda não me
preocupava muito com a organização territorial. Permanecia eu então vinculado, de
modo a-crítico, às formulações de Melià et al. (1976) sobre a territorialidade indígena,
formulações estas amplamente aceitas pela maioria dos estudiosos dos guarani. Durante
o segundo ano, porém, por ocasião de um trabalho como perito judicial para verificar a
tradicionalidade de uma terra reivindicada por uma comunidade ñandéva, me deparei
com um fato para mim insólito. Entre os quesitos apresentados pela parte que se opunha
aos índios, constava o seguinte: “Qual a bibliografia da Etnografia e da Etnologia
brasileiras, que poderiam definir o que seriam os “Tekohá” e onde estivesse localizada a
Comunidade de Potrero Guasu?”. Embora a colocação fosse tendenciosa, visando
6
Em lugar do termo “estoque”, preferi aqui lançar mão do termo “bagagem”, termo este que, com relação
ao primeiro, evoca também a imagem de um transporte dos elementos “estocados”.
24
claramente a desconsiderar a produção paraguaia sobre os Guarani (sem dúvida entre as
mais ricas), e a argumentação do assistente técnico dos fazendeiros fosse bastante
inconsistente
7
, tal quesito me estimulou a procurar na literatura em geral a recorrência
histórica da categoria de tekoha expressando organização territorial. Assim, foi possível
constatar que esta remonta ao início dos anos setenta, justamente com a produção de
Melià e os cônjuges Grünberg (1976) no Paraguai. Foi então que comecei a me dedicar
a um aprofundamento sobre os mecanismos de construção histórica do território e dos
sentidos e ênfases atribuídos pelos índios às suas categorias, evitando assim uma atitude
muito comum nos estudos sobre estes índios isto é, a tendência a reificar e a
descontextualizar (tanto espacial quanto temporalmente) essas categorias.
Minha desconfiança com relação ao modo de organizar os dados etnográficos e à
ênfase dada a alguns aspectos normativos, por parte da maioria dos estudiosos dos
Guarani, me levou a recuperar meu antigo interesse sobre a cosmologia destes índios.
Desta vez, porém, estava firmemente intencionado a buscar relacionar todos os
elementos por mim tratados, evitando a clássica divisão entre uma vida religiosa
resistente e vivaz, e uma vida material totalmente aculturada como é geralmente feito
na literatura sobre estes grupos. A posição teórica de Cardoso de Oliveira (1968, 1976
[1960]), que considera os índios (Terena) integrados em uma sociedade nacional, na
condição de classe subalterna – através do trabalho e do comércio, elementos que
permitem a integração material –, ao passo que se mantêm como grupo étnico,
diferenciando-se através de uma organização política, demonstra-se uma abordagem que
carece de aprofundamento; baseia-se ela em uma lógica do encapsulamento
8
, que não
leva em conta o ponto de vista indígena nas interações seja entre indivíduos aferentes
a tradições de conhecimento diferentes, seja entre estes e o fluxo de elementos
materiais. Por outro lado, também as considerações de Viveiros de Castro ao
apresentar a versão em português do livro de Nimuendaju sobre os Apapocuva Guarani
(1987) –, de que os grupos tupi-guarani se identificam mais nos aspectos cosmológicos
que naqueles sociológicos. Para mim, estas considerações constituem um modo de
evitar dar atenção às atividades cotidianas, através de um refúgio na produção
normativa que ilustra idealisticamente um Cosmo o qual, por rico que seja, representa
7
Como fica claro na leitura de seu relatório justamente sobre Potrero Guasu, a terra em questão.
8
Sobre uma crítica à lógica do “encapsulamento”, ver o primeiro capítulo de Oliveira (1988).
25
os interesses e momentos específicos da vida de indivíduos especialistas, como são os
xamãs.
Como pude verificar ao longo dos últimos anos de pesquisa, o fato de minha
primeira experiência etnográfica não ter revelado uma grande recorrência a ritos e
narrações sobre a estrutura do Cosmo não se constituía em uma observação incauta de
minha parte. Existem momentos e lugares específicos onde esses conhecimentos (bem
como os valores a eles atrelados) são sistematizados e enfatizados; fora destas ocasiões,
a vida indígena é norteada por muitos outros fatores que não podem ser relegados a
segundo plano, afirmando-se, assim, que a organização social guarani “padeceria de
uma fluidez ou simplicidade acentuadas” (Viveiros de Castro 1987: xxx). Ademais,
como espero que fique claro ao longo desta tese, não se pode separar cosmologia,
sociologia e análise das técnicas, nem mesmo com finalidades metodológicas,
procedendo-se com o escopo de posteriormente relacioná-las. Ao contrário, é necessário
se relacionar todos os elementos do Cosmo, sejam eles sujeitos e/ou objetos, através de
ações sociais, políticas, tecno-econômicas, mágicas, físicas, químicas, mecânicas etc.,
formando cadeias causais desenvolvidas processualmente. Tais cadeias, às vezes
formam redes, às vezes sistemas instáveis e abertos, mas isto sempre a partir de
contextos históricos determinados. Mas, neste ponto, uma pergunta se coloca: o que se
entende por “contexto histórico”? No meu entender, aqui não estaria em jogo
simplesmente uma realidade social, devendo ser incluídos também os elementos
materiais, e a própria causalidade material. Ademais, a configuração deste contexto não
ocorre em um lugar indeterminado, mas se inscreve ela em um espaço geográfico, a
partir do qual os atores podem desenhar a arquitetura do Cosmo, numa perspectiva
tridimensional, e mesmo multidimensional, abrangendo, neste último caso, espaços
considerados invisíveis para a maioria dos seres humanos. Nestes termos, na falta de
uma palavra específica para adjetivar o contexto, enveredei para a junção de três
aspectos que me parecem extremamente significativos na consideração da vida
indígena; em um só adjetivo, o contexto é sócio-ecológico-territorial.
Importa, por um momento, tornar à minha trajetória. Após a primeira
experiência como perito judicial (em 2002), minhas etapas de campo com fins
acadêmicos se foram alternando com aquelas dedicadas a trabalhos técnicos (como
identificações de terras, levantamentos situacionais e diagnósticos), encomendados por
organismos como a FUNAI e o Ministério Público Federal, trabalhos estes realizados na
26
companhia de Rubem Thomaz de Almeida. Nos últimos tempos, juntou-se a nós
também minha esposa, Alexandra Barbosa da Silva, também ela desenvolvendo
pesquisa de doutorado sobre os Guarani com ênfase sobre a relação destes índios com
os centros urbanos e as fazendas.
A transferência, junto com Alexandra, para Dourados (MS), cidade esta situada
a apenas 5 Km de distância da área indígena homônima, nos permitiu uma experiência
constante com os índios que vivem. A relação estabelecida com a FUNAI e o MPF,
na qualidade de consultores, nos mantinha sempre informados sobre processos políticos,
dinâmicas territoriais e processos tecno-econômicos.
Como professor visitante na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
(UEMS), entre agosto de 2003 e setembro de 2005, consegui realizar trabalhos de
campo pontuais, em linha com o tema desenvolvido no meu doutorado, além de
estabelecer uma rica parceria com o ecólogo Vito Comar, com o qual desenvolvi
algumas etapas de campo. Este tipo de relação me possibilitou aprofundar alguns
aspectos sobre processos ecológicos, muito úteis para o que eu pretendia argumentar no
presente trabalho. Nesta instituição tive também o enorme prazer de orientar o kaiowa
Tonico Benites, da T.I. Jaguapire, um de meus mais valiosos informantes, orientação
esta que se transformou em um diálogo intelectual que segue até hoje.
Relevante também foi (e é) minha experiência como co-orientador informal do
psiquiatra Antônio de Carvalho Silva, que me levou a aprofundar certos argumentos
sobre processos de cura entre os Kaiowa, os quais resultaram fundamentais na
elaboração da terceira parte deste trabalho. O posterior convite feito a mim pela
FUNASA, para elaborar um projeto de pesquisa sobre saúde mental, permitiu iniciar
uma reflexão, juntamente com Antônio, Alexandra e Tonico, sobre o aspecto
emocional-afetivo nas famílias extensas dos Kaiowa, reflexão de não pouco peso na
feitura desta tese.
Assim, os últimos quatros anos antes tornar ao Rio de Janeiro (em julho de
2005) foram caracterizados por uma inserção em campo com papéis diferenciados. A
heterogeneidade de contextos locais em que foram recolhidos os dados não constituiu,
de modo algum, um problema, revelando-se antes uma grande vantagem, visto que as
situações encontradas permitiam entender como se processavam as dinâmicas em
escalas diferenciadas, e como os índios agiam e/ou reagiam às circunstâncias
encontradas em cada lugar. Nestes termos, como equipe, incluindo Alexandra,
27
Rubem, Vito, Tonico e Antônio, e com a constante colaboração com o antropólogo do
MPF, Marcos Homero Lima, foi possível levantar uma significativa massa de dados,
conseguindo-se, por um lado, um mapeamento geral das demandas fundiárias dos
Guarani de MS. Em alguns casos foram possíveis levantamentos detalhados, pois que
nas micro-bacias dos rios Iguatemi, Apa e Brilhante-Ivinheima, chegou-se a levantar
relações de parentela, organização doméstica, aspectos emocionais-afetivos, processos
de construção de comunidades, relações simbólicas e materiais com a terra,
manifestações ritualísticas e embates políticos e bélicos (tanto entre índios quanto entre
estes e os “brancos”) consumados seja através de atos verbais, seja como com armas
materiais e imateriais, em uma escala que transcende a dimensão específica de cada
terra indígena. Foi possível também reconstruir processos de formação de
acampamentos nas terras tradicionais demandadas pelos índios e que relações as
comunidades localizadas estabelecem com fazendas, cidades e demais terras
indígenas da região. Conseguiu-se mapear também circuitos de intercâmbio de bens e
de atividades mágico-políticas, em uma escala que permitiu o entendimento das relações
estabelecidas pelos índios em ambientes diferentes, com comerciantes, fazendeiros,
peões, curandeiros, usineiros etc. O monitoramento das dinâmicas estabelecidas entre
índios, MPF e FUNAI, FUNASA, governos municipais, estadual e federal, missões e
ONGs, assim como com os vários níveis da justiça federal, permitiu, por sua vez,
ampliar a escala de enfoque, observando processos e impasses em um mais amplo
espectro de relações e interações entre atores inscritos no espaço geográfico do estado-
nação brasileiro.
Em suma, toda as minhas experiências em Mato Grosso do Sul constituíram-se
em “campo”. A heterogeneidade de situações e dinâmicas aqui assinaladas são fatores
constitutivos do referidos contextos e requeriam ser cuidadosamente estudados. Nestes
termos, tendo eu uma vez decidido me ocupar das unidades domésticas construídas
pelos Kaiowa e de suas transformações organizativas ao longo do tempo – isto como um
processo adaptativo às condições encontradas nos espaços geográficos onde
desenvolvem suas atividades –, constatei que eu não podia me limitar a considerar os
índios relacionando-se, por um lado, entre si, por outro, com o que definimos como
“natureza”, e, por outro ainda, com os “brancos”. Tampouco as relações sociais e
políticas dos indígenas podiam ser separadas das relações técnicas e econômicas. De
fato, nas observações empíricas, o que unicamente se constata é que as
28
relações/interações se dão sempre entre sujeitos e entre estes e objetos. Foi justamente a
partir destas observações que, seguindo as sugestões de Barth (1966 e 1987), busquei
construir modelos de processos, que apresentarei ao longo desta tese.
***
Dividi o presente trabalho em quatro partes, sendo que na primeira busco
desenhar cinco “situações hitóricas”, partindo do período imediatamente anterior à
conquista, por parte dos europeus, dos espaços ocupados pelos grupos Guarani. Meu
objetivo com esta parte é ilustrar as condições dos contextos sócio-ecológico-territoriais
configurados em cada uma das situações, centrando a atenção sobre os processos de
adaptação dos indivíduos que compõem as unidades domésticas às mudanças (de ordem
social e material) ocorridas nos espaços geográficos em que se encontravam. Apontando
as dificuldades para se analisar em detalhes períodos anteriores à segunda metade do
século XIX, esta parte procura principalmente reconstruir os contextos sócio-
ecológicos-territoriais das últimas três “situações históricas”, identificadas a partir do
fim da guerra entre Brasil e Paraguai. Com efeito, tomando-se esse momento é possível
reconstruir, para o cone sul de Mato Grosso do Sul, as trajetórias de muitas famílias
kaiowa e a transformação organizativa dos grupos domésticos, até os dias de hoje.
A segunda parte aborda especificamente o tema da organização territorial e
política não como expressão de uma “territorialidade” indígena, mas como o resultado
de dinâmicas territoriais protagonizadas por sujeitos indígenas e não-indígenas, em
espaços geográficos disputados para se obter seu controle e usufruto. Nestes termos, as
categorias guarani que implicam a definição de espaços geográficos, familiar e
etnicamente exclusivos, com fronteiras fixas, foram entendidas como uma construção
histórica em disputa e interação com sujeitos “brancos” dominantes, tutelados por leis
que substantivam cartesianamente as terras pleiteadas em termos de propriedade privada
e alienável. A organização das relações comunitárias e inter-comunitárias são analisadas
também como construtos em contínua transformação, devido às próprias dinâmicas de
parentesco e de controle territorial. Neste sentido, alianças situacionais entre membros
de famílias indígenas e agentes “brancos” são constitutivas dos arranjos político-
territoriais realizados em cada contexto local.
A terceira parte, por sua vez, centra o foco sobre a construção de sentido das
atividades e ações indígenas a partir de um arcabouço normativo cujos mentores
principais são os xamãs – depositários de saberes especializados, que permitem dialogar
29
de modo profícuo com as divindades, bem como operar magicamente na vida cotidiana
e em processos de cura. Por outro lado, as normas constituem um parâmetro para a
hierarquização dos saberes, distribuindo competências entre os membros de uma
determinada comunidade política local. Nestes termos, elas simplesmente servem como
ponto de referência e como advertências morais, deixando aos indivíduos certa
flexibilidade na determinação de escolhas e ações a serem realizadas, bem como na
incorporação de conhecimentos através das experiências propiciadas ao longo de suas
trajetórias de vida. Assim, toda esta parte busca colocar em evidência e analisar os
mecanismos que permitem a sistematização dos saberes e sua hierarquização, a partir de
disputas tanto entre autoridades “gestoras” dos conhecimentos valorizados quanto entre
famílias rivais. Com efeito, um determinado xamã será visto como tal por seus aliados,
mas como feiticeiro por seus inimigos. Portanto, os conflitos e a tensão constante entre
norma e práticas são abordados como fatores integradores e não como produtores de
anomias – como geralmente são considerados na literatura sobre os Guarani.
Uma vez esboçadas as dinâmicas políticas e territoriais e a tradição de
conhecimento à qual aferem os índios, na última parte deste trabalho concentro minha
atenção sobre a ecologia do grupo doméstico. Neste caso, ilustro como as
transformações ocorridas ao longo do tempo nos espaços geográficos onde vivem os
Kaiowa levaram à modificação dos contextos-sócio-ecológicos territoriais, permitindo
aos indígenas o abandono progressivo de boa parte dos objetos por eles produzidos,
favorecendo e potencializando as técnicas de aquisição. Por outro lado, é possível se
perceber que princípios morais, racionalidades, temporalidades e regras de propriedade
e uso de objetos produzem uma configuração desses objetos, configuração esta
específica das unidades domésticas kaiowa.
30
Parte I
SITUAÇÕES HISTÓRICAS
31
Os Kaiowa constituem um grupo étnico de fala guarani e, na literatura
específica, são considerados como descendentes dos Itatim (v. mapa I), índios estes em
grande parte reduzidos pelos jesuítas e que foram vítimas das incursões dos
bandeirantes (Melià et alii 1976, Susnik 1970-80, Thomaz de Almeida 1991, Gadelha
1980). Existem hoje muitas informações sobre os Kaiowa, resultando difícil, porém,
estabelecer critérios precisos que permitam registrar com segurança processos de
mudança e/ou de continuidade com relação a vários aspectos da vida social, tecno-
econômica, política e religiosa de seus antecessores, seja com relação aos primeiros
séculos após a conquista européia, seja no que concerne às épocas anteriores às
importantíssimas variáveis introduzidas pela intervenção colonial. Quanto mais nos
afastamos das condições sócio-ecológico-territoriais do presente, mais as informações à
disposição se fazem fragmentárias, a escala geográfico-temporal dilatando-se muito.
Deste modo, na extensa literatura sobre os Guarani
9
apresentam-se dados relativos a
lugares e grupos diferentes, recolhidos por missionários, viajantes e administradores
coloniais, em épocas muito distintas umas com relação às outras. Cabe observar que
nem todas as fontes apresentam o mesmo teor descritivo, muitas delas limitando-se a
nomear, em poucas frases, traços genéricos dos indígenas encontrados. Perante esta
diversidade de rigor descritivo, os trabalhos que Melià et alii (1987: 20) classificaram
como de Etnologia Antropológica e Antropologia Etno-Histórica privilegiaram um
número limitado de fontes, entre as quais se destacam as obras do jesuíta espanhol
Antonio Ruiz de Montoya. Este religioso, em 1639 redigiu tanto um rico vocabulário da
língua guarani (1876) quanto um livro (1985), onde relatou as viagens por ele realizadas
no intento de instituir reduções religiosas nas denominadas províncias do Itatim e do
Guairá.
9
Para uma panorâmica das fontes e os trabalhos relativos aos Guarani, ver Baldus 1954; Melià et
alii 1987, e Noelli 1993.
,0
Cabe observar também que os trabalhos de cunho etno-histórico não se
limitaram a tentar compreender a vida indígena no passado, remetendo as fontes
disponíveis aos contextos históricos da sua produção. O objetivo principal da maioria
desses trabalhos é o de reconstruir a vida indígena em sua totalidade, para tal propósito
prescindindo desses contextos. Aspectos da vida social, religiosa, política e tecno-
econômica são conectados entre si, tendo como norte principal as etnografias realizadas
no presente e, em grande medida, pelas categorias lingüísticas recolhidas no dicionário
redigido por Montoya. Deste modo, como se poderá ver mais adiante, traços culturais
são articulados e sobrepostos, seguindo-se imagens preconcebidas da vida indígena,
preenchendo-se esse modelo com informações oriundas de lugares e épocas distintas.
Neste proceder, o importante é que essas informações refiram-se aos Guarani (e em
muitos casos também aos Tupi), cuja cultura e organização social são considerados a
partir de uma suposta originalidade (no duplo sentido de primordial e de distinto de
outros grupos étnicos), a ser progressivamente “descoberta”. Assim, as informações
etnográficas do presente podem servir como norte, na medida em que estas se
demonstrem como “típicas” de populações silvícolas, os outros aspectos do cotidiano
sendo considerados como meramente oriundos da situação do contato com o
colonizador.
Nestes termos, o grupo trabalhado apresenta-se como bastante homogêneo, com
estruturas em larga medida a-históricas, sendo as variações abordadas como produto de
“contingências”, estas sim historicamente determinadas. Percebe-se, deste modo, o
delinear-se de dois distintos critérios para realizar comparações entre os dados
recolhidos: por um lado, para estabelecer continuidade formal e de significado no
tempo, procede-se a juntar informações tidas como originalmente indígenas,
articulando-as entre si, e buscando a coerência quase exclusivamente através de
categorias êmicas (recolhidas e comparadas indistintamente nas fontes e nas etnografias
modernas); por outro lado, para compreender as mudanças e descontinuidades, procede-
se no sentido contrário, procurando nos eventos históricos a introdução de elementos
sociais, políticos, econômicos e técnicos, que perturbariam ou obrigariam os Guarani a
mudar, sendo as variações interpretadas a partir da análise de categorias
prevalentemente éticas.
Na tentativa de “reconstruir” a suposta cultura guarani como algo atemporal,
apresentam-se claras diferenças nas formas de sistematização dos dados relativos a cada
34
um dos aspectos da vida indígena. No tocante às informações sobre organização dos
rituais, circuitos de cooperação e de organização territorial, a maior parte das
informações procede de etnografias recentes, preenchendo estas os “vazios” deixados
pelas fontes históricas e funcionando como, o que se poderia definir, “referente
contextual atemporal” para as categorias lingüísticas presentes no dicionário de
Montoya
10
. Estas últimas, por sua vez, através de um efeito feedback, são utilizadas
como estratégia narrativa para atribuir autoridade aos discursos sobre a maior ou menor
“autenticidade” da cultura guarani contemporânea
11
. Para os aspectos da vida material,
por outro lado, o procedimento se inverte, as fontes históricas e arqueológicas tornando-
se preponderantes, visto que os Guarani contemporâneos deixaram há muito de produzir
e utilizar várias técnicas e objetos que caracterizavam a vida indígena no passado.
Como observado em outro trabalho (Mura 2000), todos estes procedimentos
levam, em certa medida, a essencializar e reificar os Guarani, no momento em que
subtraem estes indígenas de seus contextos históricos onde eles produzem e reproduzem
suas categorias sociais e culturais. Além disso, esta atitude tem como conseqüência, nos
estudos sobre a realidade contemporânea, o deslocamento da compreensão do grupo
focado para o passado, subtraindo aos índios o papel de sujeitos históricos do presente,
o que lhes nega o status de serem coevos (Fabian 1983) a outros grupos sociais com os
quais compartilham a construção de um determinado contexto histórico.
Estas observações críticas sobre como operar com fontes históricas e dados
etnográficos não têm, em hipótese alguma, a intenção de negar a possibilidade de se
realizar comparações e buscar critérios que permitam entender processos de mudanças e
de continuidade na vida indígena. Aqui tão somente se quer alertar sobre alguns perigos
nos procedimentos adotados e na determinação de certos paradigmas analíticos
conseqüentes. Neste mesmo sentido, Oliveira alerta que:
“Para que a observação realizada pelo cronista faça sentido para uma
etnografia moderna (e não corresponda a uma indução do próprio cronista ou do
pesquisador atual), é necessário que ela seja localizada em um eixo que abranja
tempo e espaço. Isso requer efetivamente deixar o material falar sobre aquilo que
está sendo observado, as situações sociais concretas, deixando de lado tanto as
10
Como resultará claro mais adiante, Susnik (1879-80 e 1982), Mel (1986), Noelli (1993) e Soares
(1997).
11
Por exemplo, nas obras de Schaden (1974) e Watson (1952).
35
generalizações duvidosas feitas pelos próprios cronistas, quanto a pretensão do
antropólogo de reunir informações procedentes de diferentes tribos e diferentes
momentos num monstro mecânico e artificial (a sociedade ou a cultura tal).” (1987:
88-89).
Ciente de que em muitos casos reconstruir contextos históricos com um mínimo
de detalhes é uma tarefa muito difícil, creio que é oportuno o estabelecimento de limites
bem precisos à especulação analítica, evitando-se atribuir sentidos êmicos a dados
colhidos em contextos temporal e espacialmente muito distantes um com relação aos
outros. Além disso, seria forçar excessivamente as fontes documentais atribuir às
categorias lingüísticas colhidas por Montoya o mesmo status daquelas descritas nas
etnografias modernas, visto que estas últimas são registradas procurando entender seu
sentido a partir do contexto de uso, com o qual o pesquisador, se supõe, deveria estar
familiarizado. Para o passado, ao contrário, resulta muito difícil se ter esse nível de
controle contextual.
Levando em conta estas limitações na construção de paradigmas analíticos,
pretendo, no presente capítulo delinear diferentes situações históricas (Oliveira 1988),
cada uma com características distintivas, fato que permitirá estabelecer limites precisos
à especulação. Cabe observar que, como salienta o próprio Oliveira em sua definição, a
situação histórica “trata-se de uma construção do pesquisador, uma abstração com
finalidades analíticas...” (idem: 57). Neste sentido, o objetivo deste capítulo não é
construir ou reconstruir a história dos Guarani em geral ou dos Kaiowa em particular,
como em alguns momentos poderá parecer. Visto que outros autores forneceram
valiosas contribuições neste último sentido
12
, e estando meu trabalho focalizado mais
que tudo na realidade contemporânea dos Kaiowa, pretendo, com esta ferramenta
analítica, estabelecer critérios de comparação que permitam reconstruir as
características centrais dos contextos sócio-ecológico-territoriais nos quais os Guarani
estiveram e estão inscritos. Deste modo, será possível enfocar as mudanças e/ou a
continuidade de determinadas características sociais, ecológicas ou territoriais, não a
partir de uma suposta cultura guarani, que constituiria o “ponto zero” da comparação,
mas como variações históricas das configurações desses contextos aqui analisados.
12
Considero entre as mais significativas Susnik (1979-89), Melià (1986), Mel et al. (1976),
Thomaz de Almeida (1991), Noelli (1993) e Soares (1997). Especificamente sobre a relação entre os
Guarani e as missões, ver Gadelha 1980, Necker 1990 e Wilde 2003.
36
Capítulo I
Os Guarani pré-colombianos
1.1 Organização territorial e política
Susnik (1979-80, 1982, 1983) considera que a organização político-territorial
entre os Guarani pré-contato era expressa pelo guára, um amplo espaço territorial onde
relacionavam-se unidades formadas por famílias extensas, unidades estas definidas pela
autora como te’yi-óga, isto é, o te’yi constituindo a família extensa e óga, representando
a habitação comum que abrigava a totalidade do grupo familiar. Localizando-se os te’yi-
óga a várias léguas de distância um do outro, os encontros entre eles efetuavam-se
periodicamente, especialmente em ocasião de convites para as festas religiosas e
profanas, assim como para determinar alianças e expedições guerreiras. Na vida
cotidiana, porém, as atividades tecno-econômicas eram fruto da cooperação do grupo
doméstico constituído simplesmente por um te’yi-óga, este garantindo, assim, uma
autonomia relativa para com a unidade maior do guára.
Segundo a autora, no interior do guára
“Cuando varios “teýi” se asociaban , 5,6 o más, formábase una conciencia
socio local unitaria, el vínculo “aldeano”, “teko’á”; los Guaraníes no desarrollaron,
empero, aldeas multipoblaciones al modo de los Chané-Arawak. Al iniciarse la
conquista hispana, las unidades “teko’á” estaban en algunas regiones recién en el
proceso de integración, de donde algunas peculiaridades socio políticas de los
“guára”” (Susnik 1983: 128).
É possível observar que as três unidades sociológicas introduzidas pela
autora expressam uma visão concêntrica da organização político-territorial dos Guarani
históricos: em primeiro lugar estaria o espaço restrito do te’yi-óga, liderado por um
te’yi-ru (literalmente, pai, da família extensa); em segundo lugar, o espaço mais amplo
do tekoha, que seria um conjunto instável e incipiente quando da colonização
espanhola de te’yi-óga, unidos pelo vínculo aldeão, num modelo de povoado
constituído de residências dispersas com distâncias entre elas variáveis, liderado por um
tuvicha-ruvicha (chefe dos chefes); e, por último, o espaço regional abrangente definido
como guára, também neste caso liderado por um tuvicha-ruvicha.
37
O arqueólogo Soares, defendendo recentemente (1997) este tipo de modelo
clássico de organização político-territorial, insiste sobre o fato de que os Guarani pré-
colombianos estariam organizados em “cacicados”, fato que para ele seria evidente
devido à recorrente menção nas fontes históricas de líderes muito respeitados em escala
territorial ampla. Neste sentido, apoiando-se quase exclusivamente no vocabulário
redigido por Montoya, procura ele também definir as unidades sociológicas seguindo o
mesmo critério de Susnik, acrescentando, porém, um nível a mais nesse jogo de círculos
concêntricos. Isso ocorre porque o autor, para definir formas “aldeãs” de agrupamento e
integração social dos te’yi, prefere manter-se fiel à definição fornecida por Montoya,
usando, para este nível de organização territorial, o termo amundá. O tekoha, segundo
Soares, seria um nível intermediário entre a aldeia e o guára.
Após as observações feitas por este último autor, os níveis de
organização territoriais podem ser expostos da seguinte forma:
Para compreender qual o grau de interpretação analítica e de abstração teórica
alcançados pelos dois autores, parece-me oportuno entrar minimamente nos detalhes das
categorias nativas sobre as quais a argumentação é feita. Os termos utilizados para
denominar os quatro níveis relatados encontram-se em Montoya (1876), cujos verbetes
te’yi-óga
teko’a
amundá
guára
Figura
I
38
são apresentados a seguir, em seguida sendo feitos alguns comentários que me parecem
pertinentes.
Te’yi:
“Teiî, manada, compañia, parcialidad, genealoia, muchos. Chereiî, mi
parcialidad, Religiõ, los mios. Chereiî guará nde, tu eres de los mios, de mi Religion.
Jei heiî hecôni. Tei teiî, andan em manadas. Gueiîpe chemoyngó cherendú pãguama,
en medio me pufieron para oirme. Teiîpe haê, dixelo en publico. Teiî tape,
publicamente. Teiî upába, lugar publico, o lugar de muchos. De aqui fale. Teyûpá, el
rancho por los caminos. Nde eicó orereiîmo, fed vos nueftro caudillo. Orereiîmo
toroguerecó Perû, elijamos por nueftro caudillo a Pedro. Gueiîaé, ellos allá, fu
parcialidad dellos en fu pueblo fon muchos. Orereiî oroicó, todos los de vna
parcialidad eftamos juntos. Pendeiî aé, los vuesftros de vueftra parcialidad. Teiî eupé
aquâ. Teiî épe ahá. Teiîereheguarupé ayquie, paffaronfe al outro vãdo.” (p. 376).
Amundá:
“pueblo, la vezindad de pueblos pequeños. Amundabiguára, vezinos en
aldeas cerca de pueblos grandes. Amundára, idem. Añê amundá hecê, poner fu cafa,
o ueblo cerca de otro.Amo amundá, hago que fe pueblo cerca de otro pueblo, ò cafa.
Oroño amundá, acercamonos vnos a otros con las cafas, ò viuienda. Nache
amundábi, no tengo vezinos. Oño amundá tába oicóbo, eftàn los pueblos cercanos
vnos a otros.” (p. 34).
Teko / Teko’a:
“Tecó, fer, eftado de vida, condición, eftar, coftumbre, ley, habito. Cherecó,
mi fer, mi vida. Tecoá, cogerle fu coftumbre, imitar. Cherecoá, me imita. Ahecoá, yo
le imito. Aheco á rucá, hazer que le imite. Ñande remieco árãmã Iefu Chrifto ñ.y. el
que hemos de imitar es Iefu Chrifto nueftro Señor.
Tecoá, fuerte, caer fuerte. Cherecoá ibi catupiripe, cayome la fuerte en buena
tierra. Chriftianos reco pipé pendeco á. Cayoos la fuerte de Chriftianos; entre
Chriftianos. Tecó catupiri pipê chereco á, cayome muy buena fuerte. Cherori catú ibi
catupiri pipê nde recoári, huelgome q os aya caîdo en fuerte tan buena tierra.” (…)
(p. 363).
Guára:
“Utilidad pertenecer a cofas, y perfonas, y tiempos, conftar de materia y
forma, para de perfona, tiempos, y cofas, patria, parcialidad, paifes, region, fum, es,
fui, participio, aduerbios, tiene quatro tiempos como los demas nombres, guâra
gueréra, guârãma, gúaran, gúera.
Vtilidad.
Abá chebegúara, hombre que me es vtil. Che añõ ychupé gûara, yo folo le
foy de prouecho. (...).
Pertenecer con rehe.
39
Cherehegûara, lo que me pertenece. Chereté rehegûara, lo que pertenece a mi
cuerpo. Mbaê che rehegûara, los bienes que me pertenecen. (...)
Conftar de materia y forma.
Abá ibi rehegùara, hombre de tierra. Ogibirapé rehegùara, cafa de tablas. (...).
Para de perfona y cafas.
Chebegùarãma eheyâ amõ, dexa algo para mi. Chebeguarangùera ocañy, lo
que auia de fer para mi fe perdio. (...).
Patria.
Ponen el nombre del rio de que beuen, o lo de q toma la denominacion.
Paragùaigùara, los que fon del rio Paraguay. Paranã igùara, los del Parana. (...).
Cherêtambigùara, los de mi pueblo.
Parcialidad, Paifes, Region.
Efte, gùara, haze finalefa con ramõ. V.g. gùamo, huâmo, çuamo, dize
parcialidad. Oroyôguâmo oroycó, eftamos en parcialidades.Oyo húamoquybongùara
na pêê ramî ruguaî, los deftos paifes de aca no fomos como vsotros. (...). Oyoçu amo
rehegùara, los de fu parcialidad dellos, o de aquella region. (...).
Sum, es, fui.
Oy gúara, lo q es de oy. Pêê cúe gúaraé biñã, petuyâ bae îepé aubé,
mbitétiché imã gúara, vofotros que naciftes ayer eftais viejos, que ferè yo.
Particìpio de verbos.
Acaaú, beuer yerua, caagûara. Acaû, beuer vino. (...). Amombeú, dezir.” (p.
129-130).
Como se pode observar, Montoya é muito detalhista na definição dos termos,
indicando vários contextos lingüísticos de uso. Neste sentido, o nível de interpretação
semântica feita pelo jesuíta é reduzido - porém não ausente -, fornecendo ao leitor uma
ampla gama de significados.
Rapidamente se poderá notar que existe uma clara correspondência entre alguns
significados registrados por Montoya e aqueles atribuídos pelos autores anteriormente
citados, em três das quatro categorias examinadas. A primeira e a segunda (isto é, te’yi e
amundá) deixam pouca margem para que se faça delas uma interpretação ambígua.
para a categoria de guára, sobre a qual o jesuíta se deteve amplamente, não se pode
afirmar o mesmo. Quando o termo se refere à associação entre grupos de indivíduos e o
espaço, o significado permanece genérico, a categoria lingüística podendo se referir ao
domínio de uma residência, mas também ao de uma região neste último caso, não se
partindo de uma determinada organização político-territorial, mas em função das
características hidrográficas de um determinado lugar. Esta ambigüidade ocorre porque,
a rigor, guára significa Deve-se observar também que, em relação à classificação dos
significados, Montoya deixa transparecer certo nível de interpretação, que permite
40
localizar a projeção de suas categorias, enquanto categorias compartilhadas com a
população colonizadora. A divisão em pátria e parcialidade, países e região, por
exemplo, parece responder mais a uma tentativa de sistematização dos significados do
termo guára segundo uma imagem predeterminada dessas unidades políticas e
territoriais, imagem esta em certa medida construída a partir da ideologia européia do
século XVII. De qualquer forma, o rigor descritivo demonstrado pelo jesuíta é de
considerável apreciação, prevalecendo o significado literal do termo guára. Isto nos
permite observar que para indicar “parcialidade”, não o termo guára pode ser
utilizado, mas também te’yi. Esta comparação me parece pertinente porque se, no caso
de guára, a construção do tamanho da “parcialidade” é determinada por via indireta,
através de uma equação analítica que associa o porte de um curso fluvial ao número dos
grupos de indivíduos englobados no espaço geográfico desenhado por sua bacia (ou
micro-bacia), no caso de te’yi, “parcialidade” indica um grupo baseado no parentesco,
apresentando-se como uma categoria essencialmente social e não geográfica.
Estas últimas observações não têm como objetivo negar o entendimento do
guára como espaço no interior do qual existiam formas precisas de organização política.
Aqui se quer simplesmente indicar que não dispomos de elementos suficientes para
detalhar este tipo de organização. O simples fato de existirem indivíduos
reconhecidamente prestigiosos não nos autoriza a considerar a organização política
como sendo hierarquicamente ordenada em torno a esta figura, gerando um sistema
político centralizado em escala territorial ampla.
Referindo-se ao Itatim, Gadelha (1980) observa que esta “província” não era
povoada por uma única “parcialidade”, e para fundamentar esta posição se apóia no
seguinte trecho da Carta Ânua do padre Nicolás Mastrillo Duran, escrita em 1628:
Cada una [casa] es una grande pieza donde vive el cacique con toda su
parcialidad, o vasallos que suelen ser veinte, treinta, cuarenta, y a veces más de cien
familias; según la calidad del cacique (apud Gadelha 1980: 258).
A autora considera este documento como esclarecendo “que a parcialidade vem
a ser o ‘cacique principal’ e sua linhagem” (idem: 258). Além disso, acrescenta que a
relação entre “cacique” e número de famílias conjugais permanece constante nas
descrições feitas pelo padre Antonio Sepp no século XVII, sendo que o padre Cardiel,
no século XVIII, afirmava que o número de famílias podia chegar a ser mais de
41
duzentas (ibidem). Nestes termos, se calculamos como média cinco pessoas por família,
ter-se-ia, em casos excepcionais, pouco mais de 1.000 indivíduos.
Não podemos perder de vista o fato de que as fontes apresentadas por Gadelha
são fortemente emprenhadas das concepções políticas da época, a hierarquia
estabelecida entre “cacique principal” (tuvicha ruvicha
13
) e “cacique” (tuvicha,
mburuvicha) não sendo endossada por uma efetiva demonstração empírica dessa
eventual divisão de status político. O caso do “cacique principal” Ñanduavusu é
apresentado pela autora (idem: 260) como sendo emblemático especialmente do grande
poder religioso exercido por esta figura em escala territorial ampla, gozando ele do
respeito e da consideração de muitos outros “caciques” da região do Itatim. Isto, porém,
não implica diretamente que existisse uma relação de mando e nem indica o tempo
efetivo em que este importante líder-xamã teria mantido seu grande prestígio.
Um trecho de Azara é extremamente significativo, pelo fato de nos fornecer
(segundo sua óptica, obviamente) preciosos detalhes sobre o papel dos “caciques”. Este
viajante, no final do século XVIII, afirmava que
El cacicazgo es una especie de dignidad hereditaria como nuestros
mayorazgos, pero muy singular, porque el que la posee no se difiere de los demás
indios en casa, vestido ni insignia, ni exige tributo, respecto, servicio ni
subordinación, y se ve precisado a hacer lo que todos para vivir. Tampoco manda en
la guerra, y si es tonto le dejan y toman otro (Azara apud Gadelha 1980: 260).
A descrição que nos fornece o autor contrasta plenamente com a imagem do
líder desenhada por outras fontes coloniais, aproximando-se mais daquela oferecida
pelas etnografias modernas
14
. Isto nos deveria alertar para evitarmos definições frágeis e
pouco confiáveis de um modelo de organização política dos Guarani pré-coloniais
baseado no “cacicado”. Acredito que os dados numéricos fornecidos por duas tabelas
redigidas por Wilde (2003), apresentadas a seguir (v. tabelas I e II), podem colocar
ainda mais dúvidas neste sentido.
Nelas, embora se fale de “cazicazgos”, com um simples cálculo pode-se
perceber que a relação entre o número de líderes e as pessoas a eles associadas desenha
grupos relativamente pequenos, constituídos de poucas dezenas de indivíduos. Nestes
13
Cf. Susnik 1979-80.
14
Ver especialmente Melià et al. 1976, Thomaz de Almeida 2001, L. Pereira 1999, 2004, Mura 2000,
2004.
42
termos, o que os Jesuítas chamavam de cacique, com muita probabilidade era
simplesmente o tamõi (avô), chefe da família extensa, ou um de seus filhos.
Também Melià apresenta sérias dúvidas sobre a presumida organização política
em grandes “cacicados”, como fica evidente na seguinte argumentação:
Lo que los españoles de la época y entre ellos los jesuitas llamaban
cacicazgos, no eran muchas veces sino aquellos “téyy” cuyo significado, según el
Tesoro de la lengua guarani de Montoya (Madrid 1639b: f. 376), es “compañía,
parcialidad, genealogía, muchos”. Y estas parcialidades por linaje no contaban con
un número fijo de familias. Aquellas 400 familias, respondiendo a 27 caciques, que
se juntaron en San Pablo de Iniay, dan una media de 15 familias por cacique. (Melià
1986: 79-80).
Podemos concluir que para formular modelos minimamente confiáveis de
organização político-territorial dos Guarani do período colonial é necessário ter à
disposição muito mais elementos dos que nos fornecem as fontes. Dever-se-ia saber
também a ênfase que era dada pelos índios aos fatores de ordem política, religiosa,
bélica e tecno-econômica, cuja variação poderia resultar na determinação de
configurações sensivelmente diferentes entre si, dependendo do lugar e das
circunstâncias historicamente dadas.
43
Tabela I
Evolução de censos
PUEBLOS 1647 1676 1735 1747
(Querini)
1772 1784
(Melo)
1796
(Alós)
1800
Loreto 44 66 64
Itapua 55 55 53
San Ignacio Mini 32 85
San Ignacio Guasu 31 23 21
Corpus (14) 44
Jesús 31 26
Santa Rosa 21
Santiago 27 26
Nuestra Señora de Fe 23 21
Trinidad 24 24
Santa Ana 39
San Cosme 23
Pueblos del Paraná 269
Pueblos del Uruguay 302
Fonte: Susnik 1966 (Wilde 2003)
Tabela II
Número de cacicados por Pueblo em 1799
PUEBLOS PRESENTES FUGITIVOS Nº DE CACICADOS
Santa Ana 1329 1689 39
Itapua 2244 793 53
Jesús 981 824 26
San Ignacio Mini 771 1046 72
Loreto 1212 840 64
Trinidad 937 528 24
Candelaria 29
Santa Rosa 1228 286 21
San Cosme 939 358 23
Santiago 1289 266 26
Corpus 2287 1671 43
Santa María de Fe 21
San Ignacio Guazu 24
Censo de “pueblos” (reduções) sob jurisdição paraguaia realizado por Lazaro de
Rivera em 1799. Dados obtidos de AGN Sala IX.18.2.2. (apud Wilde 2003)
44
Por exemplo, o fator religioso como elemento central na construção da tradição
de conhecimento dos Kaiowa contemporâneos, unido às condições de sujeição à
dominação colonial exercida pelos Estados brasileiro e paraguaio que impôs regras de
acesso aos espaços geográficos alheias àquelas anteriormente consideradas por estes
índios favoreceu o surgimento de formas específicas de organização territorial,
reforçando sentimentos de autoctonia e introduzindo critérios dinâmicos de divisão de
espaços etnicamente exclusivos, indicados através da importante categoria de tekoha
15
.
Tornando às quatro categorias listadas anteriormente, uma delas cujo
significado registrado por Montoya não corresponde àquele atribuído pelos autores
analisados: justamente a de tekoha. Como foi evidenciado, hoje tekoha, como categoria
que indica espacialidade, é uma noção muito importante para os Kaiowa, bem como
para os outros grupos guarani, mas seu significado no dicionário do jesuíta não nos
oferece qualquer indício neste sentido. Registrando o significado de “teko” Montoya
fornece uma clara descrição de sua conotação como “ser, estado de vida, condição,
estar, costume, lei e hábito”. Na extensíssima descrição deste verbete, porém, o autor
trata sinteticamente as formas tecóá” e “tecoá”, a primeira significando imitação” e a
segunda “sorte”.
Em face da enorme riqueza descritiva fornecida pelo jesuíta sobre o verbete
“teko”, parece ser muito estranho ter-lhe passado despercebida a conotação de tekoha
como categoria de espacialidade; não obstante, boa parte da literatura recente sobre os
Guarani históricos e pré-históricos parece enveredar neste sentido.
Para preencher essa presumida lacuna nessas e outras descrições da época, Melià
propõe o seguinte:
“El tipo de poblados que describen las fuentes jesuíticas presenta notables
coincidencias con los tekoha, tal como se conocen a través de la etnografía moderna;
de ahí que sea permitido inducir supuestas analogías incluso para aquellos aspectos
que la documentación histórica no señaló” (1988: 104).
15
Deste tema me ocuparei no segundo capítulo, dedicado à dinâmica territorial desenvolvida
recentemente nos territórios onde vivem os Kaiowa contemporâneos. Aqui o que se quer é sublinhar o
fato de que, com os elementos à disposição, não é possível desenhar apropriadamente, através de
categorias êmicas e poucos elementos contextuais, a natureza organizativa dos guára, tanto do ponto de
vista de suas variações regionais como em sua amplitude sócio-política.
45
Entre as fontes mais significativas às quais se refere Melià, encontram-se as
fornecidas pelo próprio Montoya em outro livro (“A Conquista Espiritual”). Vejamos o
trecho que diz respeito ao tema tratado:
“Note-se que chamamos ‘Reduções’ aos “povos” ou povoados de índios que,
vivendo à sua antiga usança em selvas, serras e vales, junto a arroios escondidos, em
três, quatro ou seis casas apenas, separados uns dos outros em questão de léguas
duas, três ou mais, ‘reduziu-os’ a diligência dos padres a povoações não pequenas e
à vida política (civilizada) e humana, beneficiando algodão com que se vistam,
porque em geral viviam na desnudez, nem ainda cobrindo o que a natureza ocultou.”
(1985 [1639], p. 34)
Como é perceptível, o tipo de descrição feita pelo jesuíta nos oferece tão
somente uma imagem sobre a distribuição das residências de modo disperso nos espaços
geográficos; o autor não detalha a organização interna a essa unidade territorial.
Portanto, não existindo uma “etnografia do povoado” realizada na época colonial,
muitos autores pretendem associar significados do presente a essas imagens fornecidas
pelas fontes da época.
A analogia proposta por Melià, no trecho anteriormente citado, entre o presente
e o passado seria mais pertinente se tivéssemos à disposição registros recorrentes da
categoria tekoha pelo menos nos últimos cem anos de história; isto porque seria possível
estabelecer certa continuidade organizativa entre os grupos guarani atuais e aqueles que
até a segunda metade do século XIX habitavam o Paraguai Oriental e o sul do Mato
Grosso, sem excessivas condicionantes coloniais no que diz respeito ao controle do
território. Contudo, autores como Nimuendaju, Müller, Cadogan, Galvão, Watson,
Schaden, entre outros, não registraram o termo tekoha em suas etnografias
16
.
Este tipo de crítica não se destina a refutar a hipótese de que a categoria tekoha
possa ter sido utilizada no passado para indicar espacialidade; o que se quer é sublinhar
o fato de poderem existir (como de fato ainda hoje existem) diferentes modos de referir-
se à organização espacial, variação esta que depende de o ponto de vista ser religioso,
político ou tecno-econômico. Deste modo, se pode perceber que o registro das
16
Fato que resulta ser ainda mais significativo se levamos em conta que os primeiros três autores
apresentados eram exímios conhecedores da língua indígena, tendo eles realizado extensos trabalhos de
campo entre os Guarani.
46
categorias de espacialidade dependerá muito da ênfase dada a cada uma dessas
definições, privilegiando-se um ou outro desses pontos de vista, dependendo do
contexto histórico onde os índios estão inseridos e para o qual contribuem na sua
definição. O conceito de tekoha, assim como expresso pelos Kaiowa hoje, tem fortes
conotações religiosas e simbólicas, que dizem respeito à situação vivida por eles no
presente, como será esclarecido na segunda parte deste trabalho. Tentar projetar essas
características do presente em um passado longínquo reificando a noção de tekoha
parece ser um recurso metodológico que, por quanto cômodo que seja, demonstra-se
perigoso, visto que exemplifica e homogeneíza o que é historicamente complexo e
diversificado.
Este tipo de problema pode ser encontrado na interessante e rica dissertação na
área de arqueologia, de Francisco Noelli (1993) (cujas contribuições recentes têm
fornecido importantes observações para a compreensão da vida tecno-econômica dos
Guarani pré-coloniais) a partir do título de seu trabalho: “Sem tekoha o teko”.
Visto que grande parte de suas argumentações estão baseadas no vocabulário de
Montoya, este título apresenta-se, quando menos, paradoxal, visto que o jesuíta
espanhol não registrou a categoria de tekoha como categoria de espacialidade,
dedicando, como observado, amplo espaço ao termo teko. Poder-se-ia afirmar com
tranqüilidade exatamente o inverso desta oração, isto é, que “sem teko não há tekoha
17
.
O termo tekoha é um lexema constituído do substantivo teko mais o sufixo
haque, entre vários significados, tem o sentido de “lugar”. Assim tekoha é entendido
atualmente pelos índios como “o lugar onde realizamos nosso modo de ser” (cf. Melià
et al. 1976). Fica, portanto, óbvio o fato de que, com o variar do modo de ser e as
circunstâncias históricas, mudará também o entendimento e as características do tekoha.
Ademais, como se verá na segunda parte, nada estabelece que com o termo tekoha se
indique simplesmente a “aldeia”, podendo ele ser usado também para designar o espaço
exclusivo de uma família extensa ou amplas regiões onde se desenvolvem relações
intercomunitárias. Do mesmo modo que a expressão guára em Montoya (1876) estava
como “procedente de”, tekoha está, hoje, numa definição geral, como “desenvolver o
teko em um determinado lugar”, como categoria apresentando as mesmas ambigüidades
quando nos referimos aos diversos níveis de organização político-territorial. Neste
17
Sobre uma observação símile, ver Pereira (2004).
47
sentido, para compreender cada um desses níveis, que se recorrer à reconstrução das
condições sócio-ecológicas-territoriais de cada contexto local, em um determinado
período histórico.
Noelli (1993), contudo, sobrepondo lingüística histórica, infra-estrutura material
e etnografia contemporânea, procede de modo contrário, construindo um modelo
analítico com base em uma das definições de tekoha atuais, oferecida por Melià e o
casal Grünberg (1976: 218), partindo eles da situação vivida pelos Paî-Tavyterã
(Kaiowa) nos anos de 1970, no Paraguai Oriental. O fato de que os dados arqueológicos
dos mais de 1200 sítios atribuídos aos Guarani
18
apontam como tendo havido poucas
variações nas técnicas e na infra-estrutura material, por um período de
aproximadamente 3000 anos, nas vastas regiões ocupadas por este grupo étnico, e
sendo este aspecto da vida indígena, segundo o autor, extremamente vinculado à vida
social e cultural, por si autorizaria a se fazer a seguinte equação: ao não mudar o mundo
material de referência, não mudariam tampouco os outros aspectos a ele correlatos. De
fato, o autor assim se exprime a propósito:
“Será defendida a hipótese de que os Guarani reproduziam sua cultura e
impunham sua ideologia perante as outras sociedades das regiões que iam sendo
paulatinamente colonizadas, desde a Amazônia até a foz do rio Paraná, bem como
das regiões limítrofes no Leste e no Oeste. Nesta hipótese também procuro operar
com um postulado que desafia frontalmente a noção antropológica de “mudança”,
aplicada indistintamente sobre as populações Guarani. Parto do princípio de que
desde que adquiriram sua identidade étnica a partir da Proto-Família Lingüística
Tupi-Guarani, os Guarani atravessaram mais de três mil anos até os primeiros
contatos com os invasores vindos da Europa, reproduzindo fielmente sua cultura
material e as técnicas de sua confecção e uso, sua subsistência. Concomitantemente,
a linguagem definidora destes objetos, técnicas e comportamentos.” (1993: 09).
Deve ser destacado, porém, que em publicação mais recente (2004) o autor
chega a redimensionar a posição extrema assumida em sua dissertação, admitindo que:
En lo socio-político, la mayoría de las fuentes apuntan hacia la tendencia de
incorporar gente no-Guarani, aparentemente incorporada como esclava, raramente
aliada, bajo el ñande reko (ethos o “modo de ser” Guaraní). La cultura material
conocida de 2.900 yacimientos arqueológicos, aparentemente muestra que la
incorporación no trajo cambios considerables, pero aún no es posible determinar su
efecto en la organización social, etnicidad y otros aspectos de la cultura tradicional
Guaraní. Bajo la unidad lingüística y cultural, los Guaraníes presentaban
18
Em publicação recente (2004), Noelli eleva os sítios ao número de 2900.
48
agrupaciones independientes, circunstancialmente enemigas, compuestas de
comunidades de estructura y dimensiones variables.
1.2 Atividades tecno-econômicas
As nuances presentes no último trecho citado são extremamente significativas,
permitindo-nos recuperar os assuntos centrais das argumentações de Noelli, constituídos
pela reprodução da bagagem material que caracterizava a vida cotidiana dos Guarani. O
fato de existirem diferentes grupos, cada um com características distintivas do ponto de
vista sócio-político e religioso, mas com uma bagagem material similar, nos permite
abordar este último aspecto da vida indígena através de uma análise trans-cultural; isto
é, verificar qual o papel das técnicas de produção e de aquisição nas atividades
domésticas desses índios, no período pré-colombiano, a partir das condições ecológicas
da época e das características dos objetos e conjuntos técnicos utilizados
19
. Fica
evidente, porém, que a análise é por si limitada, faltando justamente o entendimento das
técnicas de uso
20
, único elemento que, em meu entender, permite estabelecer uma
imediata relação entre a esfera material e aquela social, como será demonstrado na
última parte deste trabalho. Lamentavelmente não dispomos de suficientes evidências
históricas e arqueológicas para tecer especulações razoáveis nesse sentido. A
organização político-territorial, como visto, pode ser suposta, e não demonstrada, em
seus detalhes, os dados sobre a primeira fase da colonização européia sendo
insuficientes para tal propósito.
Embora em seu trabalho de 1993 Noelli enverede para arriscadas especulações
sobre a língua e a organização social dos Guarani, suas descrições sobre o mundo
material com que lidavam esses índios se limitam, quase exclusivamente, às atividades
desenvolvidas pelas famílias extensas, o que não poderia ser diferente, visto que os
19
Leroi-Gourhan afirma que “… não existem técnicas mas conjuntos técnicos determinados por
conhecimentos mecânicos, físicos ou químicos gerais. Quando se possui o princípio da roda, se pode
também obter a carroça, o torno de ceramista, o fuso, o torno para madeira; quando se sabe costurar, se
pode obter não apenas uma roupa de forma particular, mas também vasos de cortiça costurada, toldos
costurados, canoas costuradas; quando se sabe direcionar o ar comprimido, se pode obter a zarabatana, o
acendedor a pistão, o fole a pistão, a seringa” (1993: 29 tradução própria). Nestes termos, ao se
identificar, através de dados procedentes de sítios arqueológicos, determinados conjuntos técnicos e não
outros, pode-se deduzir um leque de possíveis atividades tecno-econômicas a eles associadas.
20
Por uso aqui não entendo apenas aquele utilitário, mas também o político e simbólico.
49
sítios arqueológicos apresentam, como estrutura, tão somente as características
organizativas desta unidade tecno-econômica.
Para este nível de organização doméstica, representado pelo que Susnik definia
como te’yi-óga, temos nas fontes coloniais uma importante descrição feita em 1620 por
um jesuíta anônimo; ei-la:
“Esta nacion es muy estendida y toda tiene una lengua: es gente labradora,
siempre sembra en montes y cada tres años por lo menos mudan chacara. el modo de
hacer sus sementeras es: primero arrancan y cortan los arboles pequeños y después
cortan los grandes, y ya cerca de la sementera como estan secos los arboles
pequeños (aunque los grandes no lo estan mucho) les pegan fuego y se abraça todo
lo que han cortado, y como es tan grande el fuego quedan quemadas las raíces, la
tierra hueca y fertiliçada con la çeniça y al primer aguaçero la siembran de mais,
mandioca y otras muchas raíces y legumbres que ellos tiene muy buenos: dase todo
con grande abundancia.
Habitan en casas bien hechas armadas en çima de buenos horcones cubiertas
de paja, algunas tienen ocho y diez horcones y otras mas o menos conforme el
cazique tiene los basallos porque todos suelen vivir en una casa, no tiene division
alguna toda la casa, esta esenta de manera que desde el prinçipio se vee el fin: de
horcon a horcon es un rancho y en cada uno habitan dos familias una a una banda y
otra a otra y el fuego de estambos esta en medio: duermen en unas redes que los
españoles llaman hamacas las quales atan en unos palos que quando haçen las casas
dejan a proposito y estan tan juntas y entretejidas las hamacas de noche que en
ninguna manera se puede andar por la casa. Tienen por los lados tapia françesa y
cada aposento tiene dos puertas una de cada lado pero no tienen ventanas. no tienen
puerta ni caja ni cosa cerrada. Todo esta patente y no ay quien toque a cosa de otro.
Sus poblaciones antes de reduçirse son pequenas porque como siempre siembran en
montes quieren estar pocos porque no se les acaben y tambien por tener sus
pescaderos y caçaderos acomodados. [...]
Hombres y mujeres andan comúnmente desnudos aunque siembran algodón y
haçen sus vestidos. estos indios no tienen plata ni oro ni cosa de valor. su haçienda
es el arco y flechas. no haçen provisiones para el año. La tierra es su trox porque no
sacan mas raizes de las que son menester para aquel dia. el mais aunque lo cuelgan
en sus casas para haçer vino (que de esto les serve communmente porque su pan es
la mandioca) de ordinario lo dejan en sus chacras en sus cañas del mesmo mais de
donde lo cogen quando lo han menester.” (MCA, Vol. I, 1951: 166-168).
A partir destas descrições, pode-se deduzir a importância central da agricultura
de corta/queima na vida econômica dos Guarani, assim como das atividades de pesca e
de caça. Fica claro também o fato de que as populações se organizavam a nível local em
grupos não muito numerosos, famílias extensas vivendo sob um único teto. As
atividades tecno-econômicas, por seu turno, requeriam a exploração e o conhecimento
de espaços territoriais diversificados, a maioria deles sendo não muito distante dos
assentamentos onde os índios tinham, como diz o jesuíta, seus “pescadeiros e caçadeiros
50
acomodados” (ibidem)
21
. Isto quer dizer que o grupo doméstico podia ter à disposição
um amplo leque de elementos materiais para desenvolver suas atividades cotidianas,
sem ter que recorrer a longos traslados. Os próprios integrantes desses grupos locais
podiam construir todos os objetos e instrumentos necessários para a vida tecno-
econômica, não sendo necessária a presença de especialistas, visto que, dependendo da
divisão social do trabalho, o grupo era amplamente independente para com os outros
grupos da região, aliados ou não.
Deve-se considerar, entretanto, que a construção de recipientes não se limitava a
cestas e objetos em madeira, fibra ou cabaça, cujo material podia ser encontrado nos
arredores das residências. A cerâmica era muito difundida entre esses índios,
constituindo um amplo repertório de estilos e formas. O cozimento de alimentos era
geralmente feito neste tipo de recipiente, sua utilidade sendo central na vida doméstica.
Outro tipo de atividade, ainda mais importante, era a indústria lítica. Deve-se levar em
conta que a maior parte das atividades indígenas não poderia ser desenvolvida sem a
presença de ferramentas, cujas lâminas cortantes eram feitas de pedras duras, com
características bem precisas.
Estes dois tipos de atividades modificaram sensivelmente a lógica de
apropriação dos espaços territoriais por parte dos índios. Enquanto que para as outras
atividades a seleção dos espaços onde desenvolver a caça, a pesca e a coleta podiam
produzir pequenas variações na dieta dos Guarani, cabe observar que sem ferramentas
apropriadas e recipientes idôneos para o cozimento desses alimentos, a organização
global da vida cotidiana indígena deveria mudar substancialmente. Ocorre que os
espaços onde se aprovisionar de argila e, sobretudo, de material lítico apropriado, o
são tão difusos como os outros, obrigando muitas vezes os índios a percorrerem longas
distâncias à sua procura.
Baseando-se na idéia de tekoha, Noelli (1993) procurou aplicar seu modelo de
entendimento das atividades práticas dos Guarani pré-colombianos a um sítio
21
Com base nas minuciosas descrições feitas pelo etnólogo e naturalista Miraglia (1941, 1975) das
armadilhas e outros instrumentos de caça e pesca utilizados por estes índios na década de 1930, Susnik
(1982) e Noelli (1993) constroem possíveis modelos de atividades tecno-econômicas adotados pelos
Guarani em todos os lugares e épocas. Importa observar que não necessariamente a totalidade dos
instrumentos descritos pelos autores deveria estar presente em cada lugar, a imagem de riqueza e
complexidade fornecida tendo que ser, a meu ver, devidamente redimensionada. Os sítios arqueológicos
não conservam materiais orgânicos e a quase totalidade dos instrumentos em questão era confeccionada
justamente com madeiras e fibras vegetais, rapidamente perecíveis.
51
arqueológico localizado nas margens da Lagoa dos Patos, pouco distante da atual
cidade de Porto Alegre. Estabeleceu ele como critério um raio mínimo de ação dos
indivíduos integrantes uma unidade doméstica, de aproximadamente 50 quilômetros.
Isto se deve ao fato de que as jazidas de material lítico apropriado para a confecção de
ferramentas localizavam-se a notáveis distâncias do sítio tomado em consideração (mais
de 60 quilômetros).
O autor considera fundamental para o transporte deste material bem como das
argilas necessárias para a indústria cerâmica o uso difuso da navegação fluvial, por
meio dos vários tipos de canoas construídas pelos Guarani. Ao mesmo tempo, observou
também que esse amplo espaço de circulação dos índios transcendia o domínio de um só
tekoha, levantando então a hipótese de que as jazidas de material lítico não eram
exclusivas de um determinado grupo local, requerendo alianças políticas mais amplas
em escala territorial que incorporassem esses lugares como de uso comum.
Este mesmo autor, analisando os dados procedentes dos estudos da região por
ele abordada, cita as conclusões de outros arqueólogos (Mais & Schmitz 1987), que
afirmam que os sítios arqueológicos mais distantes das jazidas de basalto apresentam
uma quantidade menor de material lítico em relação aos mais próximos desses lugares.
Embora esses autores afirmem que possam existir falhas metodológicas nos
relevamentos arqueológicos, este tipo de dados permite indicar a possibilidade de que os
índios operassem com uma bagagem reduzida de objetos em pedra. Por outro lado,
embora não tendo informações precisas sobre possíveis redes de trocas desses materiais
a nível regional, se poderia fazer uma hipótese neste sentido, visto que os grupos
estavam relacionados por laços de parentesco, tornando possível a instauração de
amplos circuitos de distribuição dos objetos de difícil captação. Outra possibilidade para
o aprovisionamento desses materiais podia ser através dos saques sistemáticos, durante
as incursões bélicas contra grupos inimigos.
Para poder articular todos estes lugares, que no complexo compõem o espaço de
desenvolvimento das atividades de um conjunto relacionado de unidades domésticas,
Noelli (1993), como vimos, considera a navegação como o meio de comunicação
preponderante. Isto, porém, contrasta com os dados procedentes das fontes coloniais,
que descrevem mais que tudo deslocamentos terrestres dos Guarani históricos, como o
próprio autor coloca em destaque. Segundo ele, esta contradição se deveria ao fato de
que durante a colonização européia os indígenas teriam sido obrigados a distanciar-se
52
dos grandes cursos fluviais, em decorrência dos conflitos bélicos, o que teria levado ao
abandono progressivo do uso de embarcações.
Este tipo de afirmação do autor, embora plausível, me parece insuficiente, e em
certa medida paradoxal, com relação à sua própria argumentação. De fato, ele se refere
ao uso das canoas não em função de evidências arqueológicas – visto que os objetos em
madeira não sobrevivem longamente à intempérie, o deixando vestígios nos sítios
analisados mas a partir dos verbetes presentes no vocabulário redigido por Montoya
em 1639, isto é em pleno período colonial. Deste modo, parece-me mais prudente
considerar a navegação complementar, e não alternativa, à comunicação por terra.
Sumarizando, é possível identificar esquematicamente as características que
considero centrais para a constituição dos contextos sócio-ecológico-territoriais na
primeira situação histórica.
Em primeiro lugar, fica evidente que a base de toda articulação política e tecno-
econômica era constituída pelo teyi-óga, organizando-se este como um grupo local
cujos integrantes moravam juntos, sob um único teto. As técnicas de produção, de
aquisição e de uso eram aplicadas por esse grupo, que constituía um circuito de
cooperação privilegiada em relação a outros níveis de circulação de saberes e de
objetos. Contudo, não se deve descartar a possibilidade de que, para objetos e materiais
especiais, pudessem existir circuitos mais amplos de distribuição em escala territorial.
Em segundo lugar, não temos à disposição dados precisos sobre a organização
político-territorial dos guára nem sobre sua amplitude. Com muita probabilidade, a
eleição de grandes líderes, respondia mais que tudo a momentos específicos para
enfrentar guerras (combatidas com armas materiais e imateriais, neste segundo caso
através dos poderes xamanísticos); em outras circunstâncias, como aponta Susnik
(1979-80, 1983), predominavam os interesses dos grupos locais, relativamente
autônomos nos afazeres cotidianos
22
. J. Monteiro por sua vez, coloca em relevo o fato
de que
22
“...la formación y la perduración del asociativo “teko'á” creaban intensas rivalidades entre los
“tuvichá” en busca del estatus de un “tuvichá-ruvichá”, provocando fricciones intercomunitarias, éstas un
factor disociativo con consecuencias funestas cuando el impacto de la conquista-colonización. La
tradición avá se fundamentaba en “teýy-óga”, en reciprocidad del estrecho “oréva”; era, por ende, siempre
latente el recelo a la solidariedad del “teko'á”, de donde la falta de una estructuración sociopolítica
mayor” (Susnik, 1979-80: 19).
53
“De qualquer modo, permanece a dúvida sobre se se tratava de cacicados
emergentes a partir de um processo histórico autóctone ou se estas lideranças foram
projetadas nestes papéis pelas circunstâncias da conquista, quando a presença de
interesses coloniais redundou na reestruturação do quadro das alianças” (1992: 481).
Estas considerações podem também ser feitas com relação à configuração
daqueles que os índios hoje denominam de tekoha, unidade organizativa por muitos
autores utilizada como modelo privilegiado de entendimento da construção do território
por parte desses índios.
Em terceiro e último lugar, eu indicaria o fato de que a guerra desempenhava um
papel central na vida dos Guarani, favorecendo a integração de bens (através dos
saques), de mulheres e cativos (por meio de raptos), e a prática da antropofagia, com o
conseqüente consumo ritual de inimigos capturados durante as incursões bélicas.
Lamentavelmente, não disponho de suficientes informações a respeito para poder
desenhar a dinâmica da guerra e sua função social e religiosa, razão pela qual não
dedicarei um espaço específico a este argumento.
54
Capítulo II
Os Guarani após a conquista européia
No momento da conquista européia os grupos guarani ocupavam vastos
territórios, com uma população estimada em mais de 2.000.000 de pessoas (Melià 1986,
Noelli 2004). Nos três séculos seguintes à chegada do europeu, a história destes
indígenas será marcada por uma forte presença cristianizadora missionária jesuítica,
assim como pelo assédio de encomenderos espanhóis e por ataques de bandeirantes
portugueses.
O impacto representado pela colonização foi muito grande, acarretando
significativas modificações na organização territorial, nas atividades desenvolvidas
pelos índios e no jogo de alianças guerreiras que permitiam o controle sobre as terras
ocupadas pelos Guarani.
2.1 O regime das encomiendas, as reduções jesuíticas e as bandeiras
paulistas
A ocupação territorial por parte dos espanhóis não foi imediatamente capilar,
assentando-se eles em lugares estratégicos para o desenvolvimento de atividades
agrícolas que permitissem produzir alimentos para a colônia. A fundação da cidade de
Assunção (atual Paraguai) representava justamente esse tipo de necessidade. A
instalação das encomiendas requeria grande quantidade de mão-de-obra, esta buscada
principalmente entre os indígenas ali encontrados.
Segundo Susnik (1979-80), o engajamento de indígenas nas atividades da
colônia hispânica se deu por meio de distintas modalidades, cada uma implicando
diferentes formas e exercício do poder para com as populações autóctones. Isso ocorria
porque, através do processo de construção das cidades se objetivava, por um lado,
concentrar a população indígena sujeitada em povoados (táva), por outro, constranger
parte dessa população a uma vida social isolada, como cativos nas encomiendas,
enquanto que, por outro ainda, também eram utilizados serviços temporários prestados
pelos índios, que periodicamente se dirigiam a essas fazendas para ter em troca
55
mercadorias e outros tipos de bens. As três situações eram denominadas
respectivamente de mitazgo, yanaconado e conchabo libre. Como ilustra Susnik:
“En contraste con el Guaraní mitayo que tributaba con el servicio de sus
brazos por unos meses al o a fin de “doctrinarse y civilizarse”, el Guaraní
yanacona fue declarado socialmente “inapto y económicamente dependiente del
amo. La relación del mitayo con su encomendero fue periódica, siendo a la vez
miembro de la comunidad del nuevo “táva” indígena; la relación del yanacona con
su encomendero implicaba la pauta de relación individual entre el “amo” y el
“siervo”. Todos los yanaconas fueron deslocalizados de sus antiguas tierras,
descomunanizados y reunidos a veces por el simple azar de las jornadas
“pacificadores”, siendo omisos sus derechos naturales” (1979-80: 84).
No estabelecimento de seus empreendimentos, os espanhóis, embora utilizassem
formas repressivas para se aproveitar dos serviços indígenas, assim sujeitando parte da
população Guarani que era introduzida nessa estrutura colonial, não praticaram
“caçadas” sistemáticas com o intento de capturar os índios durante as incursões bélicas,
como era o caso dos bandeirantes paulistas. As formas mais comuns de receber
indígenas para transformá-los em cativos era através das alianças estipuladas com
grupos guarani, alianças estas estabelecidas através de relações de cunhadismo, como
consta no seguinte trecho do já referido jesuíta anônimo:
Es esta gente valerosa en la guerra y donde quiera que estan tienen sujetas las
naciones çircunveçinas. son altivos y soberbios y a todas las naçiones llaman
esclavos sino es al español, pero no le quiere llamar señor, sino cuñado o sobriño
porque diçen que solo dios es su señor, porque como he dicho el ayudar al español y
admitirle en sus tierras fue por via de cuñadasgo y parentesco (MCA Vol. I, 1951:
167).
O jesuíta, porém, coloca em destaque o fato de que este tipo de relação não se
caracterizou como estável, os índios progressivamente assumindo uma postura de
hostilidade para com os europeus.
Empero despues viendo los indios que los españoles no los trataban como a
cuñados y parientes sino como a criados se començaron a retirar y no querer servir al
español. el español quiço obligarle: tomaron las armas los unos y los otros y de aqui
se fue encendiendo la guerra la qual ha perseverado casi hasta agora (idem).
56
O regime colonial baseado nas encomiendas teve uma pida evolução, o que
implicava numa sempre maior pressão sobre as populações autóctones, das quais se
aproveitava a mão-de-obra
23
. Num primeiro momento, quando foram promulgadas as
primeiras “ordenanças”, as atividades econômicas limitavam-se à produção dos bens
necessários à manutenção dos encomenderos, apenas num segundo momento foi
introduzida a pecuária e a exploração dos ervais, atividades estas que tiveram
significativo impacto na relação entre os índios e os espanhóis, provocando numerosas
rebeliões (Susnik 1979-80: 71). Como relata Melià (1986: 31), na documentação
histórica constata-se que, entre 1537 e 1616, ocorreram nada menos que 25 revoltas dos
Guarani contra os espanhóis.
Em contraste com os métodos da colônia hispânica e com a atitude dos
franciscanos, que operavam em conluio com o sistema das encomiendas, os jesuítas
procuraram implementar um modelo diferente de relacionamento com os indígenas,
modelo este que deu vida às reduções. Contudo, embora estes últimos missionários
manifestassem forte hostilidade para com a lógica exploradora instalada na colônia
espanhola, eles também compartilhavam dos mesmos preconceitos a respeito das
práticas indígenas. Poligamia, antropofagia e as “bebedeiras” por ocasião das
festividades guarani eram consideradas condutas ligadas à obra do diabo e portanto era
necessário combatê-las (Montoya 1985). Para tal propósito, concentrar os índios nas
estruturas das reduções permitia um melhor controle sobre o grupo objeto de
evangelização (Melià 1986). As estruturas das missões jesuíticas apresentavam as
características dos povoados e das cidades européias, com uma praça central, frente a
qual se erguia uma igreja, sendo que em seu entorno distribuíam-se as residências
destinadas aos evangelizados. As habitações mantinham a estrutura formal das casas
23
Cabe observar que, em pouco mais de um século e meio, o processo colonial levou a uma modificação
da organização das encomiendas no tocante também às modalidades de relacionamento com os indígenas.
Com efeito, depois da última expulsão dos jesuítas da colônia espanhola (ocorrida na segunda metade do
século XVIII), o conchabo libre não era mais uma opção para os Guarani. Grande parte deles, sendo
incorporada em situações de trabalho e de organização territorial, abandonou a identidade indígena,
contribuindo para a formação de significativa parte da população paraguaia contemporânea. Por outro
lado, com relação aos Guarani que permaneceram ou voltaram para as matas, muitos deles ancestrais
daqueles que são abordados nesta tese, não temos quase informações que nos ilustrem as modalidades de
relacionamento com o poder colonial. Sem dúvida, poder-se-ia pensar esse período como constituindo
uma derradeira situação histórica, porém justamente em decorrência dos extremamente parcos dados que
lhe dizem respeito, preferi aqui colocar esta etapa como sendo de transição para uma terceira situação
histórica, que será descrita mais adiante.
57
comunais indígenas, sendo muito compridas, porém, para evitar o que se considerava
como uma intolerável promiscuidade, eram divididas com paredes internas, formando
espaços íntimos destinados as famílias conjugais (Gutiérrez 1974: 127-28).
Para tornar os índios “civilizados”, a ação dos jesuítas não se limitava apenas a
divulgar os preceitos do evangelho. De fato, como dito, esta ordem da Igreja
pretendia construir uma alternativa colonial com relação ao regime das encomiendas, e,
portanto, grande parte das atividades realizadas nas reduções era tecno-econômica,
visando produzir e estocar alimentos. Os índios eram, assim, também neste caso,
submetidos a um ritmo de trabalho cotidiano que não correspondia aos tradicionalmente
adotados quando viviam dispersos nas florestas. Além disso, para construir um espaço
urbano com as características de um povoado europeu, eram indispensáveis todos os
ofícios braçais, os índios tendo que ser capacitados como ferreiros, carpinteiros,
pedreiros etc.
Submeter os diversos grupos guarani a essa nova ordem sócio-econômica não
era tarefa fácil. Montoya relata que para estabelecer contatos profícuos com os
indígenas era necessário providenciar regalias que estes apreciavam muito, como
anzóis, facas e contas de vidro (1985: 110). Também no interior das reduções,
administrar os índios apresentava problemas, os padres sempre se queixando do baixo
ritmo produtivo dos indígenas e das constantes relações que estes estabeleciam com
Guarani que se mantinham livres dessa realidade e à qual se contrapunham.
Uma vez mais, como acontecia com o regime das encomiendas, muitos Guarani
optaram pela rebelião, como fica evidente no seguinte trecho:
Ficou com gosto na boca aquele grande feiticeiro Yeguacaporú por causa da
morte que, por sua ordem, se executara no santo Pe. Cristóvão de Mendoza.
Procurou ele fazer o mesmo nos demais, mas lhe atalho os pasos a sua morte
desditosa.
Não lhe faltaram herdeiros em seus embustes e magias. Construíram eles
igrejas, nelas colocaram púlpitos, faziam as suas práticas e chegavam a batizar. Era
esta a forma de seu batismo:
“Eu te desbatizo!”
E com isso lavavam todo o corpo dos “batizandos”.
As práticas endereçabam-se ao descrédito da e da religião cristã,
ameaçando aos que a recebessem e aos que, tendo a recibido, não a detestassem,
pois seriam devorados pelos tigres (Montoya 1985, 237).
58
Não obstante essa oposição à ação dos jesuítas por parte de inúmeros indígenas,
pode-se afirmar que a presença das reduções no panorama colonial representou uma
grande limitação para o processo de captação de mão-de-obra para as encomiendas. Os
jesuítas não corresponderam às expectativas desse modelo econômico e, “na medida em
que as reduções foram sendo implantadas, os religiosos revelaram facetas contrárias ao
ideal colonial, despertando sentimentos de aversão nos hispanos paraguaios” (Thomaz
de Almeida 1991:10); como afirma Melià: “las reduccionesde Guaranies nacieron a
partir de la situación de encomienda, y fueron la anti-encomienda; y los colonos lo
comprendieron así desde el primer momento” (Melià 1986: 119).
Se as reduções representaram um importante instrumento contra a lógica da
encomienda, não se pode afirmar o mesmo a respeito dos ataques realizados pelos
bandeirantes paulistas. Com efeito, as reduções, concentrando grandes contingentes de
índios com relação às formas tradicionais de distribuição territorial das famílias guarani,
eram reservatórios apetecíveis para esses caçadores de escravos, os quais conseguiam
vencer, com o poder de fogo que possuíam, e com o auxílio de outros grupos étnicos, a
frágil resistência oferecida pelos assentamentos jesuíticos.
Contrastando a estrutura colonial baseada no regime da encomienda, os jesuítas
sofreram quatro expulsões dos espaços territoriais sob jurisdição da coroa espanhola, até
serem definitivamente afastados, em 1767 (Melià, 1986: 119).
Embora o Tratado de Tordesillas de 1494 dividisse formalmente as áreas de
jurisdição sobre as Américas das duas potências coloniais, Espanha e Portugal, muitos
espaços coloniais sul-americanos constituíam, de fato, territórios onde se sobrepunham
ações procedentes das duas coroas européias.
Usando como base de partida a cidade de São Vicente, as bandeiras paulistas
moviam-se à procura daquela que na época era considerada pelos europeus como a
única riqueza disponível entre São Paulo e Assunção: a mão-de-obra escrava encontrada
entre os índios. Como afirma Thomaz de Almeida (2000), o impacto das bandeiras
sobre os espaços ocupados pelos Guarani foi rápido e devastador:
Em 1628, Antônio Raposo Tavares e Manuel Preto dirigirão a primeira
bandeira destinada à Província paraguaia do Guairá (v. mapa No. 1), expedição que
contava com 900 paulistas e dois mil índios (cf. Belmonte, 1948). Antes de 1630,
"los portugueses de São Paulo asoladores de estas tierras destruyeron a la dicha
Provincia del Guairá" (MCA 1951: V. II, 31).
59
Repletas de “índios mansos”, as reduções jesuítas serão alvos prioritários das
bandeiras, “convictas” de que atuavam em terras portuguesas. Após o
aprisionamento da população indígena do Guairá, os paulistas desceram para as
Missões do Uruguay (Tapes); saltaram o Paraná; destruíram Santiago de Xerez no
Itatin, e aldeias circunjacentes (Correia Fo., 1946:36). Na terceira década do século
XVII os paulistas eram donos de todas as terras entre a vila de São Paulo e o Rio
Paraná. (idem: 7-8).
Para se ter uma idéia sobre o impacto desse processo sobre os Guarani, basta
usar como exemplo a situação do Guairá. Melià comenta que nesta “província” os
índios capturados pelos bandeirantes nas reduções jesuíticas eram estimados em torno
aos trinta mil, sendo que outros doze mil tiveram que fugir para não ser escravizados
(1986: 86). Se considerarmos a atuação global desses caçadores de escravos entre 1628
e 1632, o número de índios atingidos é bem maior. Segundo informa o governador de
Buenos Aires, Pedro Esteban Dávila, em carta dirigida ao rei, mais de sessenta mil
pessoas teriam sido trazidas pelos bandeirantes para São Paulo e Rio de Janeiro, sem
calcular os prováveis quinze mil mortos deixados para trás durante as incursões
militares (ibidem: 82-87).
À atuação desestabilizadora dos bandeirantes paulistas uniam-se também as
incursões bélicas de grupos indígenas inimigos dos Guarani. Os Mbayá-Guaicurú
formaram um destes grupos. Habitando regiões do alto rio Paraguai, nas imediações dos
territórios ocupados pelos Itatim, e apoderando-se rapidamente das técnicas de guerra
associadas ao uso dos cavalos, estes índios representaram uma séria ameaça para os
Guarani e as missões jesuíticas. De fato, as pressões bélicas sofridas nas duas frentes, do
leste pelos bandeirantes e do oeste pelos Mbayá-Guaicurú, estiveram entre as principais
causas que levaram grandes contingentes de índios do Itatim a migrarem em direção ao
sul, indo além dos rios Apa e Brilhante-Ivinheima, assentando-se no cone sul do atual
estado de Mato Grosso do Sul e no Paraguai Oriental, regiões estas consideradas na
época colonial como pertencentes à província do Guairá.
2.2 Os Guarani no sul da Província de Mato Grosso
As incursões dos bandeirantes se caracterizaram como profundamente
despovoadoras, provocando uma radical mudança na organização territorial e bélica dos
60
grupos indígenas por elas afetados. Contudo, cabe observar que ao findar do século
XVII o interesse por parte da colônia portuguesa pela mão-de-obra indígena passou a
declinar frente à descoberta, no Mato Grosso, de pedras e metais preciosos, novo alvo
dos empreendimentos da coroa (Mura & Thomaz de Almeida 2002: 11). As minas
objeto de atenção, não localizando-se no sul da província, deixaram amplos espaços
territoriais praticamente inexplorados por longos períodos de tempo, especialmente a
região do atual cone sul do estado de Mato Grosso do Sul, onde ainda habitam
populações guarani.
As primeiras informações relativas a esses índios procedem dos diários das
viagens realizadas em 1752, para a redefinição dos limites territoriais entre as duas
metrópoles (Espanha e Portugal), decorrentes do Tratado de Madrid (1750),
mencionando-se a presença de roças e armadilhas, antes de encontrar-se com os
próprios indígenas (Academia Real de Ciências 1841: 528-533).
Tivemos que aguardar quase um século para voltar a ter notícias sobre essa
presença guarani, desta vez procedentes de expedições encomendadas pelo Barão de
Antonina com o objetivo de encontrar uma rota apropriada que comunicasse Mato
Grosso com o Paraná. Vejamos a descrição que fornece de um daqueles encontros
(ocorrido em 1848) o encarregado da viagem, João Enrique Elliot:
“(...) oito leguas abaixo da barra do Vaccaria com o Avinheima [v. mapa II],
encontrámos muitos vestígios de índios na margem direita: n’este mesmo dia,
dobrando uma volta, os avistámos de repente lavando-se no Rio: Seriam cincoenta, e
correram para o mato da barranca, ficando alguns mais corajosos por verem sómente
uma canôa com quatro pessôas dentro. Confiados na fortuna que nos têm seguido
passo a passo em todas estas explorações, nos approximámos à praia, e saltando em
terra os abraçámos, e os brindámos com mantimentos, muitos anzóes, facas e
alguma roupa que traziamos de resto. Eram Caiuás da mesma família d’aquelles que
encontrámos nas margens do Rio Ivahy em 1845, tinham o labio inferior furado, e
traziam dentro do orificio um batoque de rezina, que á primeira vista [parecia]
alambre, cobriam as partes que o pudor manda esconder com panno de algodão
grosso; os cabellos eram compridos e amarrados para traz (...) Suponho que elles
têm relações com a gente do estado do Paraguay, porque tendo elles no pescoço e
nos braços alguns fios de missangas, e pegando eu n’ellas, responderam-me –
castilhano e apontaram par o rumo de S.O. (...) Fallei algumas palavras de lingua
guarany, e entenderam-me perfeitamente (...) Estes índios pareciam de boa índole,
fáceis de reduzir, e podem ser muito úteis aos navegantes: resta que o governo
boas providencias a respeito, para que os não hostilise, matando uns, captivando
outros, e affugentando o resto.” (Elliot 1848: 173).
61
Dois anos depois, uma outra expedição encomendada pelo Barão de Antonina e
comandada por Joaquim Francisco Lopes fornecia mais informações sobre os índios por
ele encontrados:
“(...) Chegamos emfim ao aldêamento, impropriamente assim chamado,
porque as casas acham-se disseminadas e como por bairros. Entramos em um rancho
coberto de folhas de caetê, sendo outros cobertos de folhas de jerivá.
A aldêa é collocada entre as suas roças ou lavouras, que abundam
especialmente em milho, mandioca, abobora, batatas, amendoins, jucutupé, carás,
tingas, fumo, algodão, o que é tudo plantado em ordem; e toda época é própria fora a
sementeira (...)
(...) os terrenos que habitam vão até o Iguatemi junto à Serra de Maracajú,
que tem d’aqui um caminho por terra que vai ao Paraná , ao qual se deve seguir
sempre pela terra firme e boa, desviando os pantanos; pela margem do Ivinheima
tem muitos capinzaes, e que d’aqui em quatro dias se sahe n’uma grande agua, mas
que encontrando por ahi os indios cavalleiros, de quem se temem e com quem têm
guerra aberta, não têm ido lá mais vezes.” (Lopes 1850: 320-321).
As viagens realizadas pelos dois viajantes forneceram informações que
despertaram interesses nos governantes da época, suscitando avaliações morais e
políticas sobre esses índios. Em 1848, o Diretor Geral de Índios da Província de Mato
Grosso, falando dos indígenas que habitavam as regiões banhadas pelo Rio Iguatemi e
seus afluentes, denunciava o pouco conhecimento que se tinha sobre aquela população,
afirmando também que “continuando a irem se povoando os nossos terrenos do Sul de
Miranda hão de tomar incremento as nossas relações com os Cayvás e he de esperar que
a sua cathequeze seja tão fácil como vantajoza.” (Relatório de Diretor Geral dos Índios
da Província de Mato Grosso, 1848).
Foi a partir desses interesses que quase duas décadas depois se desenvolveu um
processo que culminou na formação de um aldeamento indígena missionário organizado
na confluência do rio Santa Maria com o rio Brilhante (v. mapa II)
24
, numa das regiões
mais povoadas pelos Kaiowa.
Em 1863, um ano antes que começasse o conflito entre o Brasil e Paraguai,
chegou à colônia militar de Dourados o frei capuchinho Ângelo de Caramonico,
chamado especificamente para atrair os Kaiowa e Ñandéva para esse acampamento (E.
Monteiro 2003: 27). O padre chegou a entrar em contato com alguns indígenas,
24
Local hoje reivindicado pelos Kaiowa como sendo parte do tekoha Karumbe.
62
levando-os à presença do Presidente da Província de Mato Grosso, o qual, em relatório
dirigido ao Governo Imperial e ao Diretor Geral dos Índios, assim se expressou:
Fr. Ângelo, depois de uma excursão de alguns meses pelos bosques e rios
d’aquelle districto, regressou à esta capital, e apresentou-me um cacique Cayuá e
outro Guarany, não para provar as diligencias que fez a fim de bem cumprir sua
missão, como para que ouvisse dos próprios caciques a decidida vontade que tinhão
elles e todos os seus subordinados de se aldearem regularmente à discrição do
Governo, manifestando, porém o desejo de faze-lo em qualquer ponto, menos junto
ou próximo da Colônia dos Dourados. Felizmente os desejos destes aborigenes
acharão-se em harmonia com o pensamento e Ordens do Governo Imperial,
expressos nas instruções expedidas pelo Ministério do Império a 25 de Abril de
1857... (Relatório do Presidente da Província de Mato Grosso Apud E. Monteiro,
2003: 27)
O parecer favorável permitiu ao frei Ângelo começar tal aldeamento, cuja vida,
porém, foi muito curta. Aconteceu que em 1869, em pleno conflito lico entre Brasil e
Paraguai, incursões do exército paraguaio devastaram a missão, os índios voltando a se
“dispersar” pela matas da região.
Um ano depois dessas incursões, chegou-se ao fim do conflito entre essas duas
nações, estabelecendo-se a derrota do Paraguai, o que permitiu o começo de um novo
período, caracterizado este por uma maior estabilidade territorial nos espaços do atual
Cone Sul do Estado de Mato Grosso do Sul. Esses espaços passaram assim a ser
definitivamente incluídos no território brasileiro, sujeitos às regras da soberania
nacional.
O aldeamento na confluência do rio Santa Maria e rio Brilhante, porém, não
voltou a ser constituído, o que não quis dizer que os interesses do Império respeito aos
índios não continuassem os mesmos. Isto fica claro na seguinte passagem do relatório
do Presidente da Província de Mato Grosso, datado de 1873:
A maior necessidade que na Província, no sentido de catequizar os Índios,
é a de missionários. Com elles, estou convencido de que as cousas mudarão de face,
convergindo ao grêmio da civilização uma grande parte das famílias errantes.
Lucraria então a lavoura que definha a falta de braços úteis ao trabalho (apud E.
Monteiro 2003: 63).
Fica evidente nesta passagem o grande interesse apresentado pelos governantes
da época em estabelecer uma junção entre atividade missionária e empreendimento
tecno-econômico, se pensando a população indígena como potencial reservatório de
mão-de-obra. Nos territórios povoados pelas populações guarani tivemos que aguardar,
porém, quase meio século para que este tipo de relação chegasse a se concretizar. Neste
intervalo de tempo configurou-se uma terceira situação histórica, cujas peculiaridades
serão expostas mais adiante.
2.3 Organização territorial e atividades tecno-econômicas
Como ficou evidente nos itens anteriores, o impacto da conquista européia sobre
os Guarani foi catastrófico, implicando numa diminuição drástica da população e na
eliminação da própria presença em amplos espaços territoriais onde antes se
concentravam. Isto é fragrante para o caso dos Itatim, que antes se localizavam nas
regiões a oeste da atual cidade de Campo Grande. Os seus prováveis descendentes, os
Kaiowa, a partir de pelo menos a segunda metade do século XVII, encontravam-se no
cone sul do Estado de Mato Grosso do Sul e no Paraguai oriental, a mais de 300
quilômetros de distância dos lugares onde foram instaladas as missões jesuíticas dessa
província (v. mapa III).
65
Mapa III
Região atualmente ocupada pelos Paî
-
Tavyterã/Kaiowa
Localizaç
ão da atual cidade de Campo Grande
(Apud Gadelha 1980
)
66
Não dispomos de documentação apropriada para avaliar com segurança os
acontecimentos e os arranjos estipulados pelos indígenas nessa região. Como foi
mostrado, as informações sobre a presença desses índios no Cone Sul do atual Estado de
Mato Grosso do Sul se fazem mais precisas somente na segunda metade do século XIX,
mas ainda assim continuam sendo fragmentárias e pouco claras a respeito dos domínios
territoriais dos povos, que nessa época eram diferenciados por viajantes e
missionários como sendo Kaiowa e Guarani (Ñandéva)
25
. O que se pode apreender
destas informações é o fato de que esses indígenas tinham sua força militar bem mais
limitada com relação ao passado, visto que, como fica claro na passagem de Lopes,
temiam enormemente os “índios cavaleiros” (Mbayá-Guaicurú), que dominavam os
territórios situados a noroeste com relação a onde estavam assentados os Kaiowa e
Ñandéva. Susnik (1982) relata que em meados do século XIX também os Terena e
outros grupos Chané-Guaná procedentes do oeste faziam incursões à procura de cativos
guarani.
Outro fator muito relevante, que parece ser uma constante nas fontes do século
XIX, é a descrição dos Kaiowa e Ñandéva, como sendo “mansos”, fáceis de contatar.
Os viajantes Elliot e Lopes não descrevem nenhuma dificuldade ou conflito no
relacionamento entre os membros das expedições e os nativos. A mesma coisa pode-se
dizer respeito às outras fontes. somente uma declaração do Presidente da Província
de Mato Grosso de 1879 que relata estes índios como cometendo contínuas correrias, e
que, portanto, deveriam ser civilizados através da ação de missões religiosas (apud E.
Monteiro, 2003: 26-27).
A imagem “dócil” dos Guarani e o temperamento pouco guerreiro apresentado
nas fontes referidas a este período histórico, como se pode facilmente perceber,
contrasta frontalmente com aquela fornecida pelas documentações procedentes dos
primeiros períodos da conquista. Como vimos, estes índios eram considerados, na
descrição do jesuíta anônimo, como sendo altivos, capturando cativos entre os membros
25
Ainda assim, embora não seja possível aprender sua organização territorial e política na época,
mais adiante, ocupando-me da terceira situação histórica, tentarei levantar algumas hipóteses sobre a
distribuição desses dois grupos e sua mobilidade territorial. O importante neste momento é colocar em
destaque o fato de que, a partir do momento em que os bandeirantes e o jesuítas cessam de atuar, os
indígenas residentes nessa região, cujos descendentes constituem o interesse principal deste trabalho,
permaneceram desde meados do século XVII até a segunda metade do século XIX (isto é por mais de
duzentos anos) quase ignorados pelas ações das duas coroas (espanhola e portuguesa) e, a seguir, pelos
estados brasileiro e paraguaio.
67
de outros grupos étnicos, e não como sendo vítimas deles. Montoya coloca em destaque
o fato de que a instalação das missões não era coisa fácil, encontrando os jesuítas muita
resistência entre os índios. As rebeliões guarani no primeiro século da conquista
européia eram fatos corriqueiros, assim como os conflitos inter-grupais provocados pela
interferência do novo colonizador
26
.
Com certeza a diminuição demográfica e a redução dos espaços territoriais à
disposição dos indígenas podem ter sido importantes fatores na determinação de uma
mudança radical na organização e no desenvolvimento das atividades bélicas, chegando
a ter implicações no plano dos rituais e da composição das famílias extensas. A
antropofagia ritual dependia de constantes capturas de inimigos, assim como os
matrimônios poligâmicos exigiam a integração de mulheres procedentes de outros
grupos, incorporadas através das incursões guerreiras. Portanto, é possível que a falta de
condições concretas para desenvolver estas práticas, unida à valorização de outros
aspectos rituais, tenham contribuído para uma transposição da antropofagia para o plano
da feitiçaria. Tal hipótese é, a meu ver, bastante plausível, em se pensando que hoje
esses índios referem-se ao ato de comer um indivíduo como sendo prática de um
feiticeiro, sob encomenda de famílias rivais da vítima, o que chega a desencadear fortes
processos de vingança
27
. Isto poderia justificar uma possível manutenção do conflito,
desenvolvendo-se guerras entre famílias, muitas com epílogos dramáticos, de modo
similar àquelas narradas pelos indígenas para as primeiras décadas do século XX,
quando unidades políticas inteiras foram dissolvidas e muitas pessoas mortas
queimadas, em decorrência de acusações de feitiçaria. O conflito, porém, nestes casos,
ficaria restrito a uma luta intra-étnica, a transformação das relações com o mundo
exterior necessitando de outro tipo de interpretação.
A produção de uma clara assimetria nas técnicas de guerra utilizadas pelos
índios, devida à introdução do cavalo e armas de corte metálicas, seguramente influiu na
26
Segundo Melià, “los Guaraní, amigos y “vasallos” se vieron pronto envueltos en acciones contra
otros Guaraní “libres” que ya empezaban a rebelarse contra las insoportables exigencias de los
“cristianos”. Las luchas entre parcialidades guaraní no eran ciertamente desconocidas se sabe que la
antropofagia ritual no se practicaba sólo con prisioneros de otras etnias, sino con prisioneros Guara
(Núñes Cabeza de Vaca 1971:108,125) pero desde entonces aumentaron en magnitud y frecuencia y,
sobre todo, salieran de las propias pautas culturales para adecuarse a las motivaciones extrañas de los
“cristianos”. Las represalias contra Aracaré, su ajusticiamiento por la horca, la guerrilla promovida por su
hermano Taberé y el sometimiento de éste, es un triste y significativo episodio de la ambigüedad en la
que estaba entrando la ‘alianza hispano-guaraní’ (Núñes Cabeza de Vaca 1971:157, Schimidl 1947:76-
77)” (1986: 24).
27
Aprofundarei este argumento na terceira parte deste trabalho.
68
inferiorização militar dos Guarani com relação a outros grupos indígenas, como os
Mbaya-Guaicurú, e com maior razão no que concerne ao colonizador branco. Isto
poderia explicar simplesmente a necessidade das famílias indígenas fugirem ou
recuarem frente ao perigo de instaurar-se um conflito bélico interétnico; mas não
explica uma atitude contrária, isto é, a grande disponibilidade que os Guarani
demonstraram para relacionar-se com as várias expedições de viajantes, assim como
com militares e missionários.
A meu ver, para melhor compreender esse tipo de atitude, devemos dirigir nossa
atenção para a esfera material da vida desses índios. As mudanças provocadas pela
colonização européia, com a introdução de objetos metálicos, não foram de pouca
importância para os indígenas, alterando de modo significativo os contextos sócio-
ecolôgico-territoriais nas regiões conquistadas, e indiretamente naquelas circunvizinhas.
Antes da colonização, a maior parte dos artefatos produzidos pelos índios era, como
vimos, o resultado de uma indústria lítica, vinculada à localização e controle de jazidas
de pedra. A circulação dos materiais necessários para determinar todas as etapas da
cadeia operativa (Leroi-Gourhan 1977), que vai da extração do mineral ao objeto
acabado (uma lâmina ou um percussor), podia ocorrer em espaços relativamente
restritos (por exemplo, no caso apresentado por Noelli, uma distância de 60 quilômetros
entre a jazida e o assentamento indígena), sendo possível que todas as operações dessa
cadeia fossem realizadas pelos mesmos indivíduos, ou pelo menos entre indivíduos
diretamente relacionados entre si.
A introdução de machados e facas metálicas representou, como justamente
observou Metraux (1959), uma verdadeira revolução
28
. A maior eficácia desses novos
instrumentos com relação aos de pedra era um fato indiscutível, e isto foi rapidamente
percebido pelos índios. As experiências de trabalho nas reduções e nas encomiendas
permitiram que muitos indígenas se familiarizassem com esses instrumentos.
28
Em importante experimento realizado por Godelier e Garanger entre os Baruya da Nova Guiné
(1973), os autores conseguiram medir a eficiência dos machados de pedra e os de aço, chegando-se à
conclusão de que os segundos são quatro vezes mais eficientes com relação aos primeiros, tendo
despertado grande interesse entre os indígenas, numa crescente adoção dos instrumentos metálicos (idem:
216). Entre as conseqüências mais relevantes dessa mudança no equipamento de instrumentos técnicos,
afirmam os autores, não estaria o incremento da produção, mas o aumento de tempo livre aproveitado
pelos Baruya para “chasser, à visiter des parentes ou des partenaires commerciaux et surtout à faire la
guerre” (idem: 217).
69
No primeiro caso, a própria construção das missões requeria mão-de-obra
especializada: como ferreiros, carpinteiros, pedreiros etc., cargos estes que foram
paulatinamente ocupados pelos índios
29
. Como foi visto, com a dissolução das
reduções, boa parte desses indígenas foram juntar-se aos que viviam ainda nos
assentamentos tradicionais, levando consigo toda uma bagagem de conhecimentos onde
se incluíam seguramente as técnicas de uso dos instrumentos introduzidos pelos
europeus. O forno para o cozimento de cerâmica, ausente anteriormente nos
assentamentos guarani, passou a ser utilizado, provavelmente em decorrência da
aprendizagem a respeito de seu uso e construção durante a experiência reducional.
A experiência nas encomiendas também foi fundamental para familiarizar e
introduzir os artefatos metálicos entre os Guarani. Especialmente a relação de trabalho
baseada no conchabo libre permitia justamente que se estabelecesse um intercâmbio de
mão-de-obra por mercadorias entre as mais prestigiosas os machados e as facas que
entravam em circulação entre as famílias indígenas que continuavam desenvolvendo
suas atividades tradicionais paralelamente a esse engajamento com os empreendimentos
dos “brancos”. As contínuas rebeliões por parte dos indígenas revoltados contra a
colônia levaram progressivamente muitos deles a abandonar as relações com o
colonizador, procurando se afastar dos centros de poder embrenhando-se em territórios
mais afastados.
Temos, assim, uma história desenvolvida em quase três séculos, que levou
famílias indígenas a conviver com conhecimentos e objetos materiais dos quais antes
não tinham a mínima noção. Os processos que se desenvolveram levaram também a
uma diferenciação marcada entre os índios que, incorporados na estrutura colonial
hispânica (como trabalhadores nos povoados e nas encomiendas) ou naquela lusitana
(como escravos capturados pelos bandeirantes), foram destinados a constituir parte da
população atual do Paraguai, Bolívia, Argentina e Brasil, e aqueles que, conseguindo
fugir dessa sorte, puderam se manter afastados o bastante para não serem atingidos
29
Com base na consulta de inventários dos ofícios existentes em vários “pueblos”, no momento da
expulsão dos jesuítas (AGN, Sala IX, Leg. 22-IX-4), Gutiérrez afirma que “los talleres artesanales
existentes em los 30 puebos abarcaban uma amplísima gama de ofícios: Plateros, herreros, retablistas,
imagineros, carpinteros de lo basto, carreteros , rosarieros, panaderos, canteros, albañiles, tejadores,
curtidores, fundidores de campanas, constructores de órganos y espinetas, relojeiros, toneleros, torneros,
cafeteros, mieleros, azucareros, molineros, zapateros, peltreros, etc., como probablemente no tuvieron
organizados los centros urbanos del Rio de la Plata em ese mismo período” (1974: 94).
70
pelos empreendimentos dos colonizadores. Os Guarani do Cone Sul do atual estado de
Mato Grosso do Sul representam justamente esta última situação.
Mas conseguir manter-se afastados não quer dizer ter rompido com uma série de
conhecimentos e utilidades que passaram a fazer parte da vida cotidiana das famílias
indígenas. O abandono da indústria lítica era nesse sentido um fato irreversível e,
portanto, era necessário o acesso aos novos instrumentos metálicos. Uma possibilidade
poderia ser a de eles próprios produzirem esses objetos, mas, diferentemente da cadeia
operativa da produção de lâminas e percussores líticos, isto não seria possível, por duas
motivações: por um lado, a falta de nível técnico entre os Guarani para desenvolver a
metalurgia
30
, requerendo-se fornos e elevadas temperaturas de fusão, por outro, a falta
de acesso ao mineral, cujas jazidas não estariam próximas como as de pedra.
Para ter acesso constante a esses novos instrumentos, a solução estaria em passar
a se privilegiar as técnicas de aquisição com relação às de produção, tentando-se refinar
estratégias de relacionamento interétnico que pudessem favorecer o abastecimento de
materiais metálicos. Neste sentido, voltando à postura de abertura manifestada pelos
Guarani do século XIX com relação aos “brancos”, pode-se dizer que, com muita
probabilidade, esta se devia à necessidade de obtenção de vantagens materiais. O
mesmo pode ser dito sobre as “correrias” de que nos informa o Presidente da Província
de Mato Grosso em 1879, estas podendo ser destinadas a saquear os “brancos”, com o
aprovisionamento dos objetos por estes possuídos
31
. O interesse também manifestado
pelos índios com relação ao aldeamento proposto por frei Ângelo no rio Santa Maria,
poderia este estar relacionado à vontade de conseguir acesso a mercadorias por eles não
produzidas. Com relação especificamente à viagem de Elliot, temos também uma
aproximação indígena, que manifestava aos olhos do viajante o conhecimento que os
30
O fato de que muitos Guarani que foram instruídos como artesãos nas reduções jesuíticas
haviam se juntado aos índios distribuídos nos assentamentos tradicionais não é suficiente para incentivar
a criação de ciclos inteiros de produção técnica. Para tanto seria necessário que os indígenas mudassem
radicalmente a organização do trabalho e a própria temporalidade, fatores estes que estão vinculados a
outros elementos da vida social e religiosa, extremamente relevantes. De fato, como será amplamente
elucidado no capítulo IV, pode-se afirmar que até hoje essas diferenças constituem o elemento
organizador do mundo material, subordinando os saberes individuais aos ritmos impostos pela vida
doméstica indígena.
31
Deve-se que levar em conta que o empreendimento necessário de parte dos índios para
conseguir os objetos suficientes à sua sustentação podia ser modesto, sendo também modesta a própria
estrutura material. Isto ocorrendo, implicaria que os índios manteriam contatos intermitentes com o
mundo dos “brancos” tanto quanto necessário para incorporar os objetos básicos o que não exclui, em
havendo a possibilidade, o estabelecimento de relações mais douradoras.
71
nativos tinham dos paraguaios, com os quais demonstraram ter contatos e dos quais
recebiam objetos de várias naturezas.
Cabe observar também, como coloca claramente Susnik (1982, 1986), que no
século XIX não só as lâminas cortantes eram objeto de atenção dos índios, sendo
também incorporados nas unidades domésticas recipientes metálicos especialmente
panelas –, que passavam a substituir aqueles cerâmicos. A autora se manifesta de modo
contraditório perante este fenômeno, num primeiro momento atribuindo ao utilitarismo
indígena um valor positivo, como fica evidente no seguinte trecho:
La pobreza instrumental caracteriza a los Chaqueños y a los Guaranies; su
dependencia subsistencial de la natureza también implica el simple aprovechamiento
directo del material instrumental. El hombre de culturas paleolítica y neolítica es
utilitario, predominando el aprovechamiento inmediato, las ventajas circunstanciales
y la eficacia inmediata. El primer contacto con la cultura hispano-cristiana les
facilitó “el hierro”, los indígenas lo aprovecharon, lo buscaban hostil o
pacíficamente, pero siempre dentro de sus propias necesidades… (1982: 169).
Num segundo momento, contudo, se referindo aos Guarani modernos, passa
ela a considerar o processo de incorporação de novos objetos como fato negativo:
En contraste con el apego a la manufactura cestera, los modernos Guaraníes
abandonaron su tradicional alfarería; la “olla de hierro” y los modernos recipientes
influyeron en una rápida adopción utilitaria, perdiendo muchas vasijas de uso
festival su motivación funcional (Susnik 1986: 35).
Quando a autora se refere aos Guarani históricos, o utilitarismo adquire, aos seus
olhos, uma característica intrínseca ao estilo de vida e às técnicas de subsistência dos
índios – sendo portanto considerado como fator constitutivo dessa realidade sócio-
técnica; em época contemporânea, ele é interpretado como o efeito de um processo
aculturativo, onde a incorporação de objetos não produzidos pelos nativos levaria a (ou
seria o efeito de) um processo de abandono, não apenas de conjuntos técnicos, mas
também de determinadas atividades sócio-religiosas.
Igualmente a Schaden (1974), esta autora focaliza vários aspectos da vida social
e material indígena como holisticamente integrados, num sistema fechado e auto-
referenciado. Neste sistema presumido, quando os elementos materiais são
preponderantemente produzidos pelos nativos, tende-se a considerá-los como
“autenticamente” guarani. A integração de matéria-prima como argila, sílex ou madeira
72
é entendida como interna a um processo técnico que leva a transformar esses elementos
em “cultura material”, através do ato de produzir. Uma vez que eram destinadas
exclusivamente à confecção de ferramentas, as lâminas cortantes metálicas, é de se
observar, melhoraram a eficácia técnica, mas não alteraram de fato a tipologia de
objetos que formavam a bagagem material desses índios. Por tal razão, para essa
abordagem, a incorporação das lâminas não chega a ser entendida como um fator
negativo, pelo menos nessa primeira fase do relacionamento interétnico com os
“brancos”. Toda a compreensão é diversa quando os índios passam a incorporar objetos
destinados a um uso cotidiano, sendo estes equivalentes ou mais versáteis com relação
aos por eles construídos. Neste sentido, a possibilidade de os recipientes cerâmicos
serem progressivamente substituídos pelos metálicos era muito grande como de fato
aconteceu. Isto o quer dizer que este fenômeno seja acompanhado e/ou esteja
interligado a um eventual abandono de práticas rituais tradicionais. Contudo, tentando
equacionar cerâmica com recipientes metálicos, Susnik não percebe que, do ponto de
vista ritual, as antigas vasilhas (em cerâmica) destinadas à fermentação do kaguî (bebida
fermentada, preparada principalmente com milho ver mais adiante) eram substituídas
pelas canoas monóxilas, cavadas em troncos de cedro, cujo valor simbólico continua
ainda hoje sendo muito importante para os Kaiowa e Ñandéva. Por outro lado, os
recipientes menores para servir a bebida passaram a ser de cabaça (hy’akua),
recentemente sendo incorporados aqueles em vidro e em material plástico. Nesses
termos, a introdução dos recipientes metálicos não foi diretamente responsável pelas
mudanças na organização técnica e material dos rituais, como supõe Susnik. Esta foi,
sim, responsável pela sistemática substituição da cerâmica na esfera das atividades
culinárias o que deve ter feito diminuir a produção de objetos cerâmicos,
desmantelando-se paulatinamente o ciclo técnico a ele associado. A única possibilidade
de sua manutenção poderia ter sido justamente os usos simbólicos desses recipientes,
mas, como vimos, os índios preferiram substituí-los por aqueles de madeira.
O exemplo da cerâmica mostra claramente que os Guarani foram atores
históricos, operando escolhas bem determinadas que os levaram, por motivos técnicos, a
descartar toda uma indústria. Neste sentido, foi uma certa flexibilidade na atribuição
simbólica ao mundo material que permitiu o procedimento nestes termos, sem que
fossem sofridas conseqüências negativas na reprodução da tradição de conhecimento
indígena. Não se trata, pois, de falta de “apego” a uma determinada indústria, como
73
indica Susnik para o caso da cestaria visto que, embora em épocas mais recentes,
também esta foi práticamnte abandonada.
Devemos levar em conta também que os índios não escolhem novos objetos
abandonando os velhos de uma vez para sempre e de modo uniforme. As famílias
indígenas determinam suas experiências de modo heterogêneo, produzindo situações
diversificadas, tanto espacial quanto temporalmente. Assim, a possibilidade de
reproduzir ou não um ciclo técnico não dependerá de uma abstrata e presumida
influência aculturativa, mas das condições sócio-ecológico-territoriais onde as famílias
operam, bem como das necessidades apontadas pela tradição de conhecimento indígena.
Não podemos nos permitir fazer fáceis equações ao oferecer explicações que
exemplificam a realidade social e material, acabando necessariamente por ser
reducionistas como no último trecho citado de Susnik. A quantidade cada vez maior
de objetos materiais presentes na vida doméstica dos Guarani que não são por eles
produzidos, levou-os paulatinamente a diversificar e refinar as técnicas de aquisição.
Até o final da Guerra do Paraguai este processo ainda não se apresentava com toda sua
especificidade, os índios não mantendo contato permanente com os “brancos”. Foi após
esse evento, quando este contato se tornou intenso, que se instaurou uma nova situação
histórica para estes índios, as técnicas de aquisição adquirindo uma função determinante
na flexibilização da organização técnica e territorial das famílias extensas guarani.
74
Capítulo III
O ciclo da erva mate
3.1 A Cia. Matte Larangeira e o “sistema” do barracão
A redefinição das linhas de fronteira entre o Brasil e Paraguai, após o conflito
bélico, deixou livres para a exploração extensos ervais, justamente coincidentes com os
espaços ocupados pelos Kaiowa e Ñandéva. Duas grandes companhias passaram a
explorar sistematicamente esses ervais: no Paraguai, a Industrial Paraguaya (Reed
1995), e no Brasil, a Cia. Matte Larangeira, esta última, fundada em 1892, começando a
operar com concessões fornecidas pelo governo da Província de Mato Grosso, que lhe
garantiam direitos exclusivos sobre esses enormes espaços territoriais (Corrêa Filho
1969, Thomaz de Almeida 1991, Brand 1997, 2001, Arruda 1986). Deste modo, a
presença de indivíduos, assim como qualquer atividade que viesse a se desenvolver
nesses espaços, exigiam a explícita autorização da Cia, a qual, em poucas décadas,
construiu portos, rodovias e até ferrovias, destinadas ao transporte da erva mate, criando
para isso infra-estruturas apropriadas que garantissem todas as fases de extração,
elaboração, estocagem e escoamento do produto comercializado (Corrêa Filho 1969,
Arruda 1986, Serejo 1986). Nesses espaços não havia lugar para a ação missionária,
mas sim para se definir uma sistemática e contínua relação de trabalho, envolvendo
quase a totalidade dos Kaiowá e Ñandéva que ali residiam.
O ciclo da extração da erva mate inaugura, portanto, uma nova modalidade de
relação entre esses indígenas e os “brancos” nessa região, não mais esporádica, mas
contínua e capilar, tendo importantes implicações para esses Guarani.
A literatura histórica é pouco clara a respeito do montante de indivíduos que
foram engajados nas diferentes fases do trabalho durante o período em que a
Companhia esteve atuando; de qualquer modo, fica claro que se tratavam de milhares de
pessoas
32
. Outro fato obscuro é a pouca diferenciação que os historiadores encontraram,
nas fontes, entre paraguaios e índios, que eram contratados para trabalhar nas fases mais
32
Arruda (1986) fala em cerca de três mil trabalhadores, enquanto que para Serejo (1986) foi
atingida a soma de dezoito mil.
75
pesadas de modo particular na extração e no primeiro transporte a pé, ambas funções
levadas a cabo pelo “mineiro”, como era denominado esse trabalhador no jargão local.
A falta de diferenciação étnica é relativamente compreensível, visto que ambos os
grupos falavam guarani e conduziam um estilo de vida material bastante parecido,
constituindo realidades muito distantes e de difícil alcance para os olhares da época.
Segundo informa em entrevista o sr. Milton D. Batista, comerciante na região
em causa durante a década de trinta, a diferença entre os índios e os paraguaios estava
na conduta assumida perante o patrão e o trabalho pelo qual eram contratados.
Referindo-se aos paraguaios, o sr. Milton afirma que estes últimos eram muito
indisciplinados, fazendo arruaças e mesmo cometendo roubos, a Cia. frequentemente
recorrendo ao uso da força para manter a ordem nos ervais. No caso dos índios, a
situação era diferente, sendo estes considerados como muito “mansos” e trabalhadores
(ver também Serejo 1986).
Autores como Arruda (1986) e Brand (1997) colocam em evidência o fato de
que as condições de trabalho nos ervais não eram das mais favoráveis, os trabalhadores
muitas vezes sendo mantidos à força, através do esquema do “barracão” eram
adiantados dinheiro e mercadorias, a fim de gerar uma dívida, que dificilmente poderia
ser quitada. Este sistema era muito comum na época, em várias regiões do Brasil.
Deve-se observar, contudo, que no caso da relação entre os Guarani e os ervateiros no
sul de Mato Grosso, esta não parece ter atingido a perversidade e a crueldade que
caracterizaram, por exemplo, a vida dos Ticuna no Alto Solimões, os quais, como indica
Oliveira (1988), foram submetidos pelos seringalistas a um verdadeiro regime de
escravidão. Embora Brand (1997) tenha recolhido relatos dos Kaiowa e dos Ñandéva de
casos de violência durante o trabalho nos ervais, existem muitos outros casos em que os
índios referem-se a esse período com certo heroísmo, destacando empresas individuais
no corte e no transporte da erva mate
33
. Cabe evidenciar também, o fato de que as
informações procedentes dos indígenas referem-se a uma época durante a qual a Cia.
Matte Larangeira havia perdido o monopólio sobre a totalidade das terras do cone sul do
33
Na reserva de Sasso e na área indígena de Jaguapire, espaços estes amplamente atingidos pelas
atividades extrativistas, os índios referem-se ao período em que estavam envolvidos nos trabalhos nos
ervais como sendo marcado pela dureza das tarefas que lhes eram exigidas. José Benites e seu cunhado
Feliciano Romero, pessoas idosas de Jaguapire, querendo marcar a diferença com relação aos jovens de
hoje, relataram justamente o nível de empenho que colocavam na época, chegando a coletar, carregar e
transportar centenas de quilos de erva em suas costas.
76
então estado de Mato Grosso. Nesse sentido, embora essa grande empresa estivesse
alcançando, na década de 1920, o auge de sua produção, comprava parte significativa da
erva mate coletada de pequenos produtores independentes, que, a partir de 1927, se
vinham afirmando, em decorrência da distribuição de lotes de 3600 ha colocados à
venda pelo governo do estado de Mato Grosso (Arruda 1986)
34
. Para se ter uma idéia da
rápida transformação do mapa da produção da erva na região, a área arrendada pela Cia.
“no fim do século passado [XIX] e começo deste ultrapassou a 5.000.000 de hectares,
não chegando a 2.000.000 de hectares no período [década de 1920]” (idem: 244-45).
Vale a pena relatar um caso específico sobre essa época, envolvendo os índios.
Durante trabalho de campo por ocasião da revisão de limites da reserva de Porto
Lindo, no município de Japorã, fui informado pelas famílias ñandéva originárias dessa
região sobre o fato de terem sido elas obrigadas a se afastar das cabeceiras dos córregos
onde por décadas estiveram assentadas, por efeitos posteriores à legalização da referida
reserva. A exploração da erva na região de Porto Lindo era conduzida pelo Sr. Ataliba
Viriato Baptista, ex-funcionário da Cia. Este ervateiro começara a explorar os
exuberantes ervais na margem direita do rio Iguatemi anos antes da formação da reserva
indígena (instituída em 1928), e teve participação ativa na definição do local,
estabelecendo gestões junto ao SPI na defesa de seus interesses. No intuito de controlar
espaços convenientes à exploração dos ervais próximos ao Rio Iguatemi, Ataliba, como
afirmam veementes os índios, arquitetou para que a reserva indígena pretendida fosse
delimitada a aproximadamente 05 quilômetros de distância da margem do rio. Contudo,
como afirmam tanto os Ñandéva do local quanto o sr. Fabiano Pereira (“branco”, que
trabalhou na região desde a década de 1930), nas terras exploradas por Ataliba existiam
numerosas famílias indígenas vivendo, inclusive após a saída do ervateiro, ocorrida por
volta de 1950 (Mura & Thomaz de Almeida 2002). Com efeito, os índios, quando se
referiam às relações pessoais com o ervateiro, não demonstraram nenhuma hostilidade,
34
A Resolução 930 de 16 de julho de 1925, em seus primeiros três artigos reza que: “Art. 1º.-
As terras do município de Ponta Porã, situadas entre as margens direita do rio “Emboscada” e esquerda
deste até sua cabeceira, abrangendo todos os seus afluentes, não poderão fazer parte de novos contractos
de arrendamentos de hervaes e ficam reservados a contar de de janeiro de 1927, à venda em lotes de
3.600 hectares. Art. 2º.- A cada requerente não poderão ser concedidos mais de dois lotes de 3.600
hectares. Art.3º.- Aos ocupantes de terras devolutas na zona reservada, com moradia habitual e cultura
effectiva anterior a 1923, será garantida dentro do prazo de dois annos, a preferencia para a acquisição de
nova área, também nunca superior a prevista pelo artigo 2º”(apud Arruda 1986: 296).
77
tendo percebido o “engano” décadas depois dos arranjos institucionais
35
. Diferente
foram os relatos indígenas quando se rememorava a relação com Davi Centurión,
ervateiro paraguaio, que era vizinho de Ataliba, e que também atuou nas terras
tradicionalmente ocupadas por esses ñandéva. Davi era violento e costumava chicotear
as pessoas, chegando mesmo a matá-las, os indígenas considerando-o como um péssimo
“patrão”.
O caso relatado permite entender o fato de que os índios fazem nítidas distinções
entre os “patrões” com os quais tiveram relações. As mudanças no gerenciamento dos
ervais parecem ser, portanto, significativas para a compreensão do relacionamento entre
Guarani e “brancos”, não sendo possível fazer generalizações. Na quarta parte,
dedicando-me às relações entre índios e comerciantes nos dias de hoje, aprofundarei
este tema, introduzindo variáveis muito significativas, que dizem respeito ao
relacionamento político-cosmológico entre os kaiowa e os “brancos”.
3.2 Dinâmica territorial e organização doméstica
As transformações de ordem material advindas nos territórios onde vivem os
indígenas em causa, conseqüência da penetração extrativista nesses lugares, levaram a
um aumento considerável da circulação de objetos provenientes do exterior. A nova
configuração do contexto sócio-ecológico-territorial possibilitou novas técnicas e
estratégias de subsistência para os índios, constituídas pela troca sistemática de objetos
e mercadorias, bem como pelo estabelecimento de relações de trabalho temporário com
os novos colonos, denominadas de changa (Thomaz de Almeida 2001, Mura 2000).
Contrariamente ao que apontavam alguns autores nos anos cinquenta, norteados pelo
paradigma da aculturação (Schaden 1974 [1954], Watson 1955), o engajamento dos
indígenas nestas novas atividades o implicou em uma mudança radical do seu estilo
de vida (Thomaz de Almeida 2001, Mura 2000). De fato, passaram eles
progressivamente a transformar a organização das unidades domésticas, tornando-as
mais flexíveis e adaptadas às novas circunstâncias (Mura 2000). O trabalho nos ervais
requeria dos Guarani deslocamentos e assentamentos inéditos. Os indivíduos adultos do
35
Não cabe dúvida sobre o fato de terem ocorrido arranjos favoráveis ao Sr. Ataliba, visto que,
segundo as indicações do auxiliar do SPI, Genésio Pimentel Barboza, datadas de 1927, a reserva devia ter
como um de seus limites o rio Iguatemi e uma superfície de 3.600 ha (Barboza 1927: 71), e não apenas
1648 ha, como foi efetivamente demarcada no ano seguinte.
78
sexo masculino preferiam, a maior parte das vezes, criar bases nas proximidades dos
locais onde prestavam serviço para os “brancos”, levando consigo cônjuges e filhos
menores. Utilizavam nesses casos habitações de pequenas dimensões e de rápida
construção, que alocavam uma infra-estrutura de objetos e instrumentos técnicos
sumamente simplificada. Estas bases, porém, construídas com propósitos temporários,
muitas vezes representavam formas duradouras de organização doméstica, em alguns
casos chegando-se a formar redes de habitações, que abrigavam parte substantiva das
famílias extensas. Em casos excepcionais, como nas proximidades dos portos instituídos
pela Cia., podia acontecer também que se chegasse à concentração de muitos grupos
macro-familiares, todos distribuídos nesses tipos de abrigos “temporários”.
A relação dos índios com o dinheiro ganho durante as empreitadas e/ou o
recebimento do pagamento diretamente em mercadorias e ferramentas, permitiu o
progressivo abandono de ciclos técnicos de produção de parte substantiva da infra-
estrutura material com a qual estavam acostumados. Assim, o ciclo da cerâmica foi
rapidamente abandonado, em decorrência do emprego de novas “técnicas de aquisição”
de objetos metálicos, procedentes de relações comerciais ou de troca, objetos estes com
maior durabilidade e de mais fácil emprego com relação aos tradicionalmente por eles
utilizados. Muito embora fossem incorporadas roupas fabricadas, a atividade de
tecelagem se manteve, pelo fato de ser ela, juntamente com a costura, fator
complementar e integrativo na vestimenta e decoração dos indivíduos. O mesmo se
pode dizer com relação à cestaria.
Os processos que levaram à troca de partes significativas da infra-estrutura
material dos Guarani tiveram como efeito a construção de sistemas sócio-técnicos cuja
articulação transcendia os espaços de coleta e a transformação de materiais orgânicos e
inorgânicos, tradicionalmente restritos às atividades do grupo doméstico. Os índios
passaram a integrar técnicas aquisitivas que requeriam o estabelecimento de relações
sociais e políticas com os “brancos”, cuja distribuição dos resultados, contudo, era
sempre voltada para os circuitos de cooperação primária, isto é, internamente às famílias
extensas. A conspícua incorporação de objetos e ferramentas procedentes de fora
muito versáteis, devido à sua durabilidade e transportabilidade teve grande peso na
determinação de uma progressiva flexibilização técnica dos grupos macro-familiares,
podendo as famílias nucleares passar a manter uma relativa autonomia na construção de
um conjunto básico de pertences destinados ao próprio uso.
79
O novo tipo de distribuição das atividades e das técnicas de aproveitamento dos
recursos presentes no território, a mobilidade espacial para desenvolvê-las, unidos às
novas características da bagagem material adotada, contribuíram para a modificação das
formas de habitar das famílias extensas. Deste modo, teve-se a passagem do viver todos
em uma única casa (denominada óga jekutu ou oygusu) à distribuição das famílias
nucleares em construções menores (óga ou oy), estabelecidas em torno da residência do
tamõi e/ou jari (ou tamõi guasu e/ou jari guasu), líderes da família extensa (Thomaz de
Almeida 2001, Mura 2000, 2004). Esta transformação implicou também numa
adaptação das novas formas habitacionais às condições do trabalho agrícola, da caça, da
pesca e da coleta, reproduzindo no interior do espaço de domínio da família extensa as
mesmas regras que eram adotadas para distanciar esta de outras. Isto ocorria porque
cada família nuclear se estabelecia em um espaço que pudesse garantir o cultivo dos
campos, a colocação de armadilhas, a coleta de plantas medicinais, frutos selvagens,
mel etc. Nestas condições de produção, cada família nuclear integrante dos grupos
macro-familiares podia também administrar as atividades desenvolvidas seguindo
estratégias e temporalidades diferentes: algumas podiam, por exemplo, num
determinado período, investir o próprio tempo em trabalhos remunerados, ausentando-
se dos espaços sob influência do te’yi, enquanto outras podiam dedicar-se ao cultivo dos
campos, e outras ainda, à caça e/ou à pesca. Num período seguinte, essa ordem podia
ser invertida. Criava-se assim uma configuração espacial muito dinâmica das famílias
extensas, as quais, para desenvolver suas atividades, distribuíam seus integrantes de
modo diferenciado no território, mas mantendo como centralidade da organização
doméstica primeiramente as atividades agrícolas sumamente importantes para o
calendário econômico-religioso guarani – e secundariamente as atividades exploratórias
do território, representadas principalmente pela caça, a pesca e a coleta.
A nova configuração espacial, embora apresentando novidades, dava
continuidade à lógica de apropriação do território perpetrada pelos índios. As práticas
da Cia. Matte Larangeira também não interferiram muito nas atividades e processos
indígenas, tendo em vista que a simples atividade de extração da erva não pressupunha a
aquisição de títulos de propriedade e muito menos viria a alterar as características do
meio-ambiente local visto que de sua conservação dependia o êxito das atividades
implementadas.
80
Além de provocar a flexibilização das famílias extensas indígenas na
apropriação dos recursos disponíveis nos territórios por elas ocupados, a instauração do
ciclo da erva permitiu também a manifestação de status diferenciados de valentia,
expresso através das categorias de guapo (ou vale), cuja relevância é marcada ainda
hoje. Como foi apontado, os Guarani referem-se às atividades por eles desenvolvidas
nos ervais de modo heróico, os indivíduos disputando entre si o primado de coleta e
transporte da erva. O uso de poderes mágicos associados ao rendimento nesses
empreendimentos, assim como a procura de status sociais ligados à valentia, me
permitem levantar outra hipótese, desta vez sobre as mudanças históricas na
organização das atividades bélicas. É muito provável que o papel desempenhado pela
guerra na construção desse tipo de status tenha encontrado certa continuidade nas
atividades desenvolvidas nos ervais; tanto a changa quanto o trabalho nas usinas de
álcool desempenham hoje essa função e serão objeto de atenção, na parte final deste
trabalho.
81
Capítulo IV
A espoliação das terras guarani
4.1 O processo de aldeamento compulsório
A partir das primeiras décadas do século XX, tendo a Cia. Matte Larangeira
perdido os direitos exclusivos sobre os ervais, abriram-se espaços para a colonização da
faixa fronteiriça, passando colonos procedentes do sul do país a ocupar porções de terras
onde viviam os índios. Por outro lado, como foi possível ver, ex-funcionários da Cia.
também passaram a explorar os ervais por conta própria, requerendo do governo de
Mato Grosso títulos e concessões. O Estado brasileiro participou ativamente desse
processo, através da atuação do Serviço de Proteção aos Índios
36
(SPI), que com suas
práticas levava os indígenas a residir em espaços extremamente reduzidos,
absolutamente incompatíveis com suas características de organização social e territorial.
Embora o organismo manifestasse atitudes protecionistas para com os nativos, o que sua
atuação acabava por produzir era a liberação de terras para a colonização do interior do
país. Nestes termos, entre 1915 e 1928 o SPI instituiu oito áreas indígenas, com
superfícies não superiores a 3600 ha, sendo duas em territórios ñandéva e seis naqueles
kaiowa, o resto das terras ficando à mercê dos colonos.
A instituição dessas oito reservas não foi um fato progressivo, ligado a um plano
bem definido por parte do órgão tutor, nem representou uma ação opulenta de sua parte.
A primeira delas, Amambai (1915), se constituiu de imediato em Posto Indígena, e
embora devesse ser demarcada com 3.600 ha, resultou em apenas 2429 ha, devido a
negociações realizadas pelo SPI com posseiros locais. Somente a segunda e a terceira
respectivamente Dourados (de 1917) e Caarapo (de 1924) conseguiram preservar a
superfície padrão. Uma vez demarcadas estas três minúsculas áreas, todas localizadas
em territórios kaiowa, o SPI não tinha previsão de outras delimitações. Foi Pimentel
Barboza, funcionário deste órgão, que, após visita à reserva de Dourados, em 1923,
36
Órgão indigenista oficial do Estado brasileiro, instituído em 1910 e em 1967 substituído pela
atual FUNAI (v. Lima 1995).
82
denunciou à Inspetoria Regional a necessidade urgente de serem encontradas outras
terras para os índios em questão (Pimentel Barboza 1923).
Em 1927, por encomenda do Inspetor Estigarribia, o próprio Pimentel iniciou
uma viagem de perlustração pelo cone sul do atual MS, com o objetivo específico de
encontrar outras áreas a serem reservadas para os Kaiowa e Ñandéva. Em relatório
sobre essa viagem, o funcionário apresentou uma imagem dos índios como dispersos,
não reunidos em “aldeias”, com exceção de alguns casos, como nas imediações do Porto
Sassoró
37
, no distrito de Iguatemi. Segundo a interpretação desse funcionário
desinformado sobre os critérios de organização territorial e espacial desses indígenas –,
o fato de as famílias guarani residirem nas cabeceiras de córregos, a grandes distâncias
uma das outras, era devido à ação dos ervateiros que as exploravam. Deste modo,
observa emblematicamente em seu relatório:
Escolhi, tambem, na região de Ipehum, outra area de terras destinadas aos
indios, que em numero superior a quinhentos, vivem nas margens dos rios Pirajuy,
Taquapery, Aguará e outros.
Esses indios estão em serviços de herva de Marcellino Lima e não têm aldêa
propriamente dita. Formam pequenos nucleos, espalhados, que reunidos em uma
propriedade formarão um numero elevado talvez a mais de mil, se reunidos forem
todos.
[...] As terras acima constam de matta de cultura e herval, e devem ter a
extensão de 3.600 hectares.” (Pimentel Barboza 1927: 24, destaques meus).
Pimentel Barboza identificou as outras cinco áreas destinadas pelo SPI aos
índios em 1928, com essa referida superfície padrão. Porém, posteriormente, durante a
demarcação, todas elas foram reduzidas em tamanho o Órgão facilmente cedendo
frente às pressões e interesses dos colonos, que naquele período começavam uma
sistemática ocupação dos territórios tradicionais dos Kaiowa e Ñandéva.
37
A reserva homônima instituída por Pimentel Barboza justamente devido ao fato de os índios
estarem ali morando em grande número, é ainda hoje indicada pelos Kaiowa como não sendo um
assentamento tradicional. Estes se referem à reserva de Sassoró como tendo sido um “acampamento”, por
eles denominado ainda de Ramada, nome este devido ao fato de que as habitações construídas
antigamente nesse lugar eram provisórias, erguidas como base de apoio, e cobertas por ramas.
Curiosamente os índios afirmam que os espaços de habitação tradicional eram os que o auxiliar do SPI
indicava em seu relatório como sendo ocupados por ervateiros, insinuando ele, sem nenhum
conhecimento etnográfico, que os indígenas estariam ali simplesmente por obrigação para com seu
“patrão” (Barboza 1927).
83
Além de liberar espaços para colonos, o processo de aldeamento visava também
controlar os índios, submetendo-os a lógicas de desenvolvimento norteadas pela
ideologia positivista do órgão. Pensava-se que o estilo de vida indígena, tido como
arcaico, estava destinado a desaparecer e era portanto necessário integrar os indígenas
na estrutura produtiva do Estado, na qualidade de trabalhadores nacionais (Lima 1995).
Assim, as “aldeias”, entendidas nos moldes do pensamento ocidental, isto é espaços
nucleados, com formas burocráticas de administração e representação política, são
transformadas no lócus privilegiado para se levar os índios a se integrarem em uma vida
“civilizada” e “ordenada”. Nesta mesma linha passaram também a atuar algumas
missões religiosas, que a partir de 1928 instalaram-se justamente nas proximidades
dessas unidades administrativas do Estado, com o propósito de evangelizar os índios,
subtraindo-os a uma suposta vida selvagem.
A Missão Evangélica Caiuá (MEC), a mais antiga na região, iniciou a sua
atuação unindo os esforços das congregações protestantes americanas das igrejas
presbiteriana e metodista. Na década de 1960 passou a atuar na região também uma
igreja fundamentalista alemã, a Deutsche Indeaner Pionier Mission (DIPM),
estabelecendo-se em proximidade com a reserva ñandeva de Pirajuy (Thomaz de
Almeida 2001). Para ter mais eficácia em suas ações, estas missões não se limitavam a
divulgar o evangelho, mas implementavam trabalhos na área de saúde e de educação,
com o escopo de atrair os indígenas e fixá-los nas aldeias instituídas pelo SPI,
contribuindo assim para uma política mais geral, determinada pelo Estado
38
.
Pode-se afirmar que foi após a década de 1920 que as coisas começaram a
mudar no panorama das atividades e da organização territorial na região. A
38
Em fevereiro de 2002, por ocasião de um trabalho pericial por mim realizado entre os Ñandéva
de Potrero Guasu, no município de Paranhos (MS), me deparei com a atitude integracionista da DIPM.
Ocorria que a comunidade indígena que se encontrava acampada em uma fração da terra delimitada pela
FUNAI (e objeto de contenda com fazendeiros e chacareiros locais) se negava a procurar assistência
medica na vizinha reserva de Pirajuy, reserva esta onde as famílias de Potrero permaneceram por quase
25 anos, antes de voltar aos lugares hoje reivindicados. Os índios alegavam que foi exatamente a DIPM
que na década de sessenta convenceu as últimas famílias que ainda resistiam em Protrero Guasu (sob a
forte pressão de fazendeiros e posseiros) a integrar-se na reserva vizinha. Dizem os índios que o
argumento utilizado na época pelos missionários era de que eles poderiam ser melhor atendidos pela
Missão, alem de ganharem ferramentas e outros objetos que lhes pudessem interessar. Na ausência do
pastor desta Missão, entrevistei sua esposa, dona Ana, a qual afirmou com muita veemência que os
missionários nunca interferiram nas decisões dos indígenas. Contudo, ela mesmo narrando um episódio
em que uma criança falecera, seus pais solicitando a DIPM para que lhes fornecesse o caixão, disse que a
Missão rejeitou o pedido. A alegação foi que em um acampamento ilegal” eles não prestariam
assistência, convidando os índios a voltarem para a reserva. A narração da missionária manifestava, pois,
uma atitude oposta à anteriormente explicitada, claramente caindo em contradição.
84
diversificação das atividades desenvolvidas pelos colonos, que progressivamente iam
ocupando as terras no sul do estado, comportou formas diferentes de relacionar-se com
os indígenas. Por um lado, os que se constituíram em cooperativa de extração da erva
continuaram a conviver com os Guarani, destes se servindo como mão-de-obra,
enquanto que outros, dedicando-se à criação de gado, solicitavam a intervenção do SPI
para afastar os indígenas dos locais por eles colonizados. Deve ser notado, porém, que
até a década de 1950 os espaços dedicados à pecuária eram modestos, constituindo
apenas pequenas frações das fazendas, que progressivamente se instalavam na região. A
maior parte da paisagem era dominada por densas florestas, estando a grande maioria
dos índios nelas embrenhada.
Neste sentido, a título de exemplo, são significativos os dados à disposição sobre
o então Distrito de Iguatemi findando a década de 1940. Ocorre que os moradores das
reservas instituídas pelo SPI nessa região (Porto Lindo e Sassoró) eram uma minoria
com relação à totalidade dos índios desse distrito. No relatório do funcionário do SPI,
Joaquim Fausto Prado, de 1948, consta que na época existiam numerosas famílias
indígenas vivendo “fora dos Postos Indígenas”, muitas delas assentadas em “fazendas
oficiais e particulares e em terras tidas como devolutas, terras estas que rapidamente
estavam sendo ocupadas, os índios, por sua vez, sendo expulsos pelos invasores” (Prado
apud E. Monteiro 2003: 120). Nesse documento Prado apresentava uma “Estimativa da
população indígena do sul de Mato Grosso, que vive fora dos Postos, em terras tidas
como devolutas, em reservas sem instalações do SPI e em fazendas particulares” (Prado
apud E. Monteiro 2003: 113). Tanto para Porto Lindo quanto para Sassoró, o
indigenista indicava populações de 250 indígenas, enquanto que para a Vila Iguatemi
(isto é, o distrito, excluindo as reservas) a estimativa era de 1500 índios.
Na década a seguir estes índios travaram conflitos pontuais com fazendeiros, que
os encontravam nos “fundos” das fazendas durante a derrubada das matas para
introdução da pecuária, que se ia intensificando, várias famílias indígenas sendo
paulatinamente “aldeadas” nas referidas reservas, através da ação do SPI
39
.
39
A tulo de exemplo desses procedimentos, numa “relação das ‘aldeias’ indígenas” realizada
pelo SPI, com data não indicada no ofício, consta na rubrica “Aldeia Porto Lindo” um processo da I.R. 5
– nº 18 de 1957, documentando a “retirada de vários índios localizados em terras das glebas São
Francisco de Assis e Santa Cecília, situadas no Município de Amambai, distrito de Iguatemi” (Exposição
de motivos da aplicação de projetos de desenvolvimento em áreas indígenas da 5 ª Inspetoria Regional do
SPI. 26.03.1963. Filme 022 – sem classificação em fotogramas –, Museu do Índio, Rio de Janeiro).
85
Com relação especificamente à região denominada de “Grande Dourados” (entre
os rios Brilhante e Dourados), um dos espaços mais povoados pelos Kaiowa, o Governo
Federal havia criado, em 1941, uma Colônia Agrícola Nacional, com o intento de
favorecer a colonização dessa região para torná-la produtiva, segundo as intenções de
Getúlio Vargas durante o “Estado Novo” (Brand 1997: 73). Esta iniciativa gerou um
extenso loteamento desses amplos espaços territoriais, levando muitos índios a serem
aldeados na vizinha reserva de Dourados, algo que já desde cedo conduziu a um inchaço
dessa pequena Terra Indígena, diferentemente do ocorrido nas outra unidades
administradas pelo SPI como é possível ver na tabela III
40
. Nesse processo, porém,
resistindo às tentativas de expulsão, duas comunidades conseguiram se manter em seus
lugares, embora sendo restritas a pequenos espaços. Estas eram Panambi e
Panambizinho, a primeira conseguindo permanecer em 500 ha enquanto que a segunda
em apenas 60 ha41. No tocante especificamente à situação de Panambi, em relatório de
1949, Prado coloca em evidência a situação negativa vivida pelos índios, assim como as
negociações que o SPI teve que fazer na época com a administração da referida Colônia
no intuito de preservar terras para os Kaiowa. Eis um trecho deste documento:
Esta chefia opina para que a Colonia, que é detentora da extensíssima gleba
de 300 mil hectares, faça cessão não apenas de 500 hectares, e sim de 2 mil, o que
não representa nenhum favor, visto que o direito de posse das terras do Panambi,
pelos indios Caiuás, está garantido por lei, pela sua ocupação de mais de 40 anos,
conforme declarações de 5 pessoas idôneas residentes em Dourados; tão pouco seria
sacrificada a Colonia com a cessão dos 2 mil hectares, uma vez que os indios ali
localizados, e que vivem em permanentes sobressaltos pelo temor de espoliação,
agora, cientes e concientes da posse mansa e pacifica das terras, seriam grandes
colaboradores para o aumento global da produção da Colonia; iriam produzir tanto
ou mais, porque sabem com precisão infalível a época propicia á semeia, - ainda
com atenuante de não sobrecarregarem a Colonia com despezas de instalações, tais
como: casas, cercados, abertura de poços, etc., etc.,. (Prado apud E. Monteiro 2003:
124).
A partir de meados dos anos 60 até final dos 70, quando a ocupação do cone sul
do Mato Grosso do Sul se fez mais persistente, levando a um sistemático desmatamento
da região, o processo de aldeamento se faz mais intenso em toda a região. Os índios
passaram a ser utilizados como mão-de-obra para derrubar as florestas, sendo que, uma
40
Compare-se, por exemplo, a população das reservas no ano de 1965.
41
Com efeito, a Panambizinho não foi concedido esse espaço na qualidade de terra indígena, as famílias
localizadas sendo tratadas de modo similar aos colonos, a administração da Colônia Agrícola
concedendo-lhes apenas dois lotes de 30 ha cada um.
86
vez acabada a tarefa, as famílias indígenas que nelas se encontravam eram, em sua
maioria, expulsas e conduzidas às oito reservas instituídas pelo SPI. Durante a década
de 1970 a FUNAI registrou um aumento considerável da população dessas terras, sendo
que, em alguns casos, chegou-se à duplicação dos números de um ano para outro e à
triplicação em apenas dez anos (v. tabela III).
4.2 Índios “aldeados” e “desaldeados”
Não obstante este processo, que inexoravelmente subtraía significativos espaços
de ocupação exclusiva aos Guarani, a ação do Estado que visava “aldear” e assimilar os
índios, até aquele momento não passava de uma mera tentativa. Apesar de todos os
esforços do SPI e das missões, não foram conseguidos muitos êxitos nesses propósitos
desenvolvimentistas, interagindo os índios com a nova situação que se lhes apresentava
de modo diverso ao que esperavam os agentes. Ocorria que as famílias residentes nas
reservas mantinham fortes laços de parentesco em outras localizadas a várias dezenas de
quilômetros do local em questão, assentadas nas densas matas que ainda existiam na
região – deste modo mantendo uma ampla rede de relações e uma intensa mobilidade de
seus membros. Os índios, assim, embora sofrendo ações compulsórias por parte de
indigenistas e fazendeiros, continuavam se organizando política e socialmente a partir
de espaços territoriais bem mais amplos do que os das reservas. As atividades primárias
e as lógicas de produção, integração e distribuição de bens também permaneceram com
pouca variação com relação à situação histórica anteriormente descrita.
O maciço desmatamento ocorrido nos anos de 1960 e 1970 levou os indígenas
não residentes nas reservas a deslocarem-se continuamente, fugindo das áreas
ecologicamente descaracterizadas e da hostilidade dos colonos “brancos”.
Tabela III
População das reservas 1947- 1984
Fonte: FUNAI (apud Thomaz de Almeida 1991: 47c).
1947 1949 196
5
1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1981 1983 1984
Piraju´y 350 260 267 267 352 442 448 487 502 500 500 500 588 685 1562
Porto
Lindo
250 300 307 310 310 572 591 609 600 600 914 1102 1019 1725
Sassoro 250 150 144 352 352 600 1000 1500 2253
K
118
Ñ
1563
Limão
Verde
311 252 380
Amambai 470 315 677 1846 1617 1947 3428
Takuapiry 520 375 254 211 211 378 371 414 504 536 557 563 609 618 620 814 906 2511
Caarapo 500 382 932 1271 1296 1620 2141
Dourados 548 745
K
346
Ñ
372
T
1902 1902 2171 2348 2344 2700 3354 4490 6075
No final dos anos 70, quase não havendo mais áreas de floresta que pudessem
mantê-la fisicamente isolados dos colonizadores, a maioria dos índios foi reconduzida
às reservas.
Os despejos que se sucederam nas diversas regiões ocupadas pelos Guarani não
provocaram apenas o inchaço dessas reservas. Os índios eram conduzidos a esses locais
pela FUNAI, levando-se em conta tão somente as distâncias de onde eram expulsos e os
aspectos logísticos que possibilitassem os traslados. Deste modo, famílias indígenas
(muitas vezes inimigas entre si) eram assentadas em um mesmo lugar, obrigadas a
conviver em espaços cada vez mais reduzidos, o que ocasionou um aumento da eficácia
da intervenção dos agentes coloniais (incluindo os missionários), permitindo a
construção de estruturas de poder que tiveram significativas conseqüências na
organização interna das reservas. Efetivamente, ocorreu que o papel de “capitão”
indígena, introduzido pelo SPI para mediar as relações com os índios, passou a ser
entregue exclusivamente nas mãos das famílias que se coadunavam aos interesses
desses agentes, gerando inúmeros conflitos e desencadeando ações violentas
42
.
Para agravar a situação, em virtude da ideologia desenvolvimentista que
vigorava na época e que provocou o intenso desmatamento da região para a
implantação de atividades de agropecuária extensiva –, a FUNAI decidiu seguir o
modelo dominante implementando nas reservas, os chamados “Projetos de
Desenvolvimento Comunitários” (Fernandes Silva 1982, Thomaz de Almeida 2001). A
intenção do Órgão, ao introduzir a agricultura mecanizada, era levar as reservas a uma
auto-suficiência econômica que desagravasse o Estado da incumbência de assisti-los.
Óbvio é que a ideologia de base mantinha-se substancialmente a mesma do SPI,
pensando-se que os índios iriam integrar-se na sociedade regional, compartilhando dos
modelos tecno-econômicos vigentes. Para tal propósito se chegou ao desmatamento
quase completo das terras indígenas, o que ocasionou grande transtorno às famílias
guarani, cuja agricultura de coivara dependia justamente dessas matas.
42
Sobre este tema voltarei em vários momentos nos capítulos seguintes, visto que ainda hoje se registram
efeitos dessas ações de Estado, em diversas esferas da vida social, política e tecno-econômica dos índios
aqui focados.
89
Capítulo V
Conflito fundiário e Constituição Federal de 1988
Esta última situação histórica é ela alvo privilegiado de atenção do presente
trabalho, sendo suas peculiaridades descritas e analisadas nas partes que vêm a seguir.
Portanto, neste capítulo não me deterei muito sobre os diferentes itens apresentados,
limitando-me a apontar seus aspectos mais significativos.
5.1 Da luta pela terra à redefinição do papel do Estado após a CF de 1988
O sistemático desmatamento da região, a conseqüente expulsão massiva de
famílias indígenas de lugares tradicionalmente por elas ocupados e a situação dramática
das reservas, conformavam uma situação insustentável para a vida dos Guarani, o que se
revela na organização de seu movimento de reivindicação por terras iniciado no final de
1978 (Thomaz de Almeida 2001), movimento que se foi avolumando nos últimos vinte
e oito anos neste período foram identificadas vinte áreas Guarani no MS. Embora em
diferentes estágios do processo de regularização, e apesar de superfícies longe de
satisfazer plenamente as necessidades territoriais desses índios, essas vinte áreas
identificadas representam, para os índios, conquistas relevantes na relação com o mundo
ocidental contemporâneo.
As reivindicações fundiárias indígenas advêm de demandas localizadas em
conjuntos de famílias extensas aliadas em torno da noção de pertencimento e origem
comuns a uma determinada terra, e que, de modo autônomo e constituídas em
comunidades políticas, desencadeiam processos e se articulam, em diferentes níveis, no
sentido de reaver terras das quais foram obrigados a sair ou, em outros casos, para se
manter no lugar de ocupação tradicional. Cabe indicar que inexiste entre eles uma
organização política centralizada desse movimento; não uma associação com a
propriedade de representar o grupo étnico, formalizada e centralizada em mãos de
dirigentes instituídos. Revela-se, na questão fundiária, a manutenção da tradicional
autonomia política dos grupos familiares Kaiowa e Ñandéva. As características étnicas
desse processo de ordenamento político em busca de espaços para se viver, expressam-
se na existência da aty guasu (assembléia geral), um organismo intercomunitário que
90
surgiu em 1978. A rigor, essas “assembléias gerais” o tradicionalmente realizadas no
interior de cada comunidade e se espera a participação de todo os habitantes do lugar,
pois se trata de foro onde são discutidos assuntos do interesse de todos homens,
mulheres, jovens e crianças.
Outro fator importante na história recente e que afeta significativamente a
relação entre os povos indígenas e o Estado é representado pela promulgação da
Constituição Federal de 1988, a qual, além de favorecer a identificação das “terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios”, conforme o artigo 231, redefine o papel do
Ministério Público Federal, atribuindo-lhe função importante em defesa das minorias
étnicas. No caso específico dos Guarani do MS, as conseqüências desta redefinição
institucional do Estado brasileiro vêm sendo enormes, gerando mudanças muito rápidas,
no sentido de interferir nas estruturas de poder construídas nas reservas em mais de
trinta anos, minando-as em seus pontos nevrálgicos, isto é, deslegitimando o papel do
“capitão” e do chefe de Posto da FUNAI – estes hoje quase todos ocupados por
indígenas –, favorecendo assim o manifestar-se de uma pluralidade de lideranças
tradicionais, subjugadas durante as últimas décadas.
Embora seja cedo para se fazer um balanço geral sobre estes efeitos, pode-se
tranqüilamente afirmar que es em marcha um processo no sentido de uma
“descolonização” das áreas indígenas, impulsionando-se uma redefinição do papel do
Estado para com os índios. No bojo da interação que ocorre com muita intensidade entre
o MPF e as lideranças de famílias extensas, até mesmo a FUNAI se obrigada a
adequar-se ao processo de mudança, “admitindo” erros históricos na lida com este
grupo étnico. Na próxima parte, ocupando-me da organização política dos Kaiowa e dos
Ñandéva contemporâneos, considerarei detalhadamente este importante argumento,
recorrendo a algumas descrições etnográficas.
5.2 Da flexibilização à diversificação das atividades domésticas
Os intensos e violentos despejos sofridos pela maioria dos índios, o inchaço das
reservas e o conseqüente movimento que os levou os Guarani a lutar pela terra,
recuperando parte significativa dos territórios tradicionais processo ainda longe de ser
concluído –, representam momentos significativos na história desses indígenas, as
famílias sendo impulsionadas a buscar estratégias adaptativas para se ajustarem às
91
condições sócio-ecológico-territoriais passo a passo encontradas. Com relação às
últimas duas situações históricas abordadas, existem mudanças quantitativa e
qualitativamente marcantes para a vida indígena. A seguir sintetizarei aquelas mais
significativas, observando seus efeitos sobre a organização das atividades domésticas.
Um primeiro fator significativo de mudança que ocorreu nos anos 60 e 70 é a
mecanização sistemática da produção agrícola, que, como vimos, afeta também de
modo marcante as áreas indígenas administradas pelo Estado. Mas, embora todos os
projetos implementados pela FUNAI seguindo esta ideologia tenham fracassado, a
lógica da mecanização ainda perdura na região, sendo periodicamente proposta e re-
proposta aos índios através de organismos estaduais e municipais, marcando as políticas
públicas com as quais os índios se vêem obrigados a lidar.
Um segundo fator de mudança refere-se a um período mais recente e diz respeito
a um fortalecimento das instituições burocráticas do Estado-Nação nas áreas indígenas.
Refiro-me, por um lado, à difusão da escola, e, sobretudo, à incorporação de professores
indígenas nas salas de aula; por outro, à intervenção da FUNASA, que também
incorpora indígenas entre seus agentes de saúde, e, ainda, à eleição de índios Guarani
para cargos administrativos da FUNAI, como chefes de Posto e administradores
regionais. Todos estes casos incorporam a variável salário, passando a constituir uma
nova fonte de recursos para os índios que conseguem acessar a essas instituições e, por
conseqüência, para as famílias às quais estão ele referidos. Outra fonte de recursos
inédita é constituída pelas aposentadorias obtidas por idade.
Um terceiro fator de transformação, também advindo nestas últimas décadas, é a
progressiva intervenção de ONGs, missões e organismos públicos, em todos os aspectos
da vida indígena, visando contribuir para sua “melhoria”. Implementam-se, assim,
cestas básicas, instrumentos para costura, tecelagem e artesanato em geral, recursos para
a feitura de habitações e construções para uso simbólico e ritual, sementes e
implementos para agricultura (algumas vezes mesmo tratores), etc.
O panorama que se apresenta hoje aos Guarani é, portanto, bastante variado e
complexo. Além das reservas anteriormente demarcadas pelo SPI, os índios podem
contar com um certo número de tekoha, onde as famílias extensas têm a possibilidade
de articular seus membros e desenvolver as atividades primárias em melhores condições
sócio-ecológico-territoriais, com relação às primeiras. Contudo, essas melhorias são
limitadas, visto que, devido ao intenso desmatamento ocorrido na região e à invasão das
92
pastagens africanas, as condições ecológicas são hoje altamente desfavoráveis, fatos
estes que dificultam sobremaneira a aplicação de técnicas tradicionais baseadas na
coivara e na agricultura agro-florestal praticada por esses índios. Outro elemento
negativo a ser considerado é a forte densidade demográfica que caracteriza as áreas
reservadas pelo SPI, devido à integração compulsória nesses lugares das famílias
indígenas expulsas das fazendas fator agravado hoje pelo alto crescimento vegetativo
entre esses índios. Assim, os espaços reduzidos e ecologicamente descaracterizados para
plantar, caçar, pescar e coletar, passaram a ser alvo de uma super demanda.
Os três fatores de mudança, assim como as condições de prática tecno-
econômica das terras sob jurisdição exclusiva dos índios, levam as famílias extensas a
construir estratégias que permitam uma integração material e de conhecimentos ainda
mais complexas do que as realizadas na situação histórica anterior. Neste sentido, fazem
elas um uso muito sofisticado e articulado das políticas interétnicas e das técnicas
políticas de aquisição de recursos. Como estratégia mais abrangente, os Guarani
procuram sempre com maior insistência recuperar esses espaços étnica e familiarmente
exclusivos, visto que são eles os únicos que tanto garantem o assentamento das famílias
extensas com certa estabilidade, quanto permitem a constituição de lógicas de
cooperação adequadas para se determinar também alianças políticas mais ampliadas.
Isto não quer dizer que essas famílias, ou parte de seus integrantes, restrinjam-se
somente a esses espaços. Ocorre que existem ainda hoje famílias extensas que residem
no interior de fazendas, nas margens de rodovias ou nas periferias de cidades,
continuando a construir redes amplas de parentesco a nível territorial, como exposto
antes. É possível observar que, embora essas últimas escolhas pareçam constituir
assentamentos precários, muitas vezes os espaços ocupados apresentam condições
ecológicas apropriadas para o desenvolvimento das atividades primárias desses índios
como matas, rios e terras férteis. Levando-se em conta a intensa mobilidade que os
indivíduos mantêm no interior desses espaços territoriais, bem como a rede de relações
sociais que eles tecem, podemos afirmar que os Guarani integram hoje os recursos
materiais e os saberes através de uma articulação processual de espaços étnica e
familiarmente exclusivos com aqueles não exclusivos, numa região privilegiada e
socialmente circunscrita, por eles denominada tekoha guasu. Na próxima parte me
ocuparei especificamente deste tema.
93
No que concerne à integração de objetos e recursos não produzidos pelos índios,
é possível afirmar que os Guarani atualmente o se limitam às relações de trabalho
com os “brancos” o que caracterizava a situação histórica anterior. As famílias
indígenas passam a afinar técnicas políticas para adquirir, de ONGs, missões e
instituições públicas, recursos que poderíamos chamar de “assistenciais”; assim, os
índios recebem tanto objetos quanto serviços (como indumentárias, alimentos,
ferramentas, preparação do solo para agricultura, transporte de objetos e pessoas, etc.).
Em relação aos recursos integrados através do trabalho, também uma diferença com
relação ao passado, diferença esta constituída por uma bem mais ampla variedade de
ofícios hoje disponíveis aos indígenas, incluindo entre estes os desenvolvidos dentro das
“aldeias”. Nestes termos, as famílias extensas atingem, nesta situação histórica, não
um alto grau de flexibilização, mas também uma certa diversificação das tarefas
realizadas por seus integrantes. Nestas situações, pode ocorrer que famílias nucleares
possam manter maior mobilidade em relação a outras, justamente por causa dessa
diversificação, sem, porém, chegar-se à alteração das relações de cooperação internas ao
grupo macro-familiar onde estão inscritas. Ao produzir uma gama bastante ampla de
entradas de recursos materiais, esta diversificação de atividades permite, em alguns
casos, reduzir os esforços na produção agrícola em lugares ecologicamente
descaracterizados, diminuindo-se as superfícies cultivadas. Em casos mais radicais,
pode-se chegar a uma produção apenas simbólica de alimentos, destinados a festas
religiosas que cadenciam o calendário anual. Até mesmo quando as comunidades
possuem tratores, implementos e recursos “assistenciais” para dar vida às atividades
“tradicionais”, isto pode não ocorrer de modo massivo, visto que é exigido um tempo de
dedicação muito grande, implicando na escolha, por parte de alguns, de outras
estratégias de integração econômica. A família extensa como um todo encontra também
em seus integrantes mais idosos (que tradicionalmente atuam como guia e/ou eixo do
grupo doméstico) um fator de estabilidade financeira, devido ao recebimento da
aposentadoria. Em muitos casos, esta fonte de recursos passa a ser a única constante
para todo o grupo, fortalecendo, assim, os vínculos internos à família extensa.
Todas estas mudanças contribuíram e ainda contribuem significativamente para
a formação, transformação e/ou incorporação dos elementos que compõem o Cosmo,
fazendo com que os índios tenham que lidar com novas situações emocional-afetivas,
políticas, tecno-econômicas e cognoscitivas. Neste sentido, as ações dos xamãs, longe
94
de serem uma simples tentativa de resistência a essas mudanças, constituem-se em focos
centrais na organização e atualização da tradição de conhecimento indígena, algo que
será amplamente tratado na terceira parte do presente trabalho.
5.3 Dados sobre a situação contemporânea das Terras Indígenas Kaiowa
e Ñandéva
O Mato Grosso do Sul concentra hoje o maior contingente populacional guarani
do Brasil. Em abril de 2005 os Kaiowa e os Ñandéva distribuíam-se em trinta áreas,
com dimensões variadas e em diferentes condições de regularização fundiária
(demarcadas, identificadas ou em acampamentos aguardando reconhecimento do
Estado) (v. mais adiante tabela IV e mapa IV).
Em termos históricos, como foi visto, todo o Cone Sul deste Estado
compreendendo aproximadamente 3,5 milhões de hectares é território de ocupação
tradicional guarani. Entretanto, em 2005 as terras delimitadas para estes indígenas
alcançavam apenas 88.817 hectares, sendo que tão somente 42.490 hectares em efetiva
posse dos índios, o que indica uma drástica redução territorial.
Do ponto de vista demográfico, os dados levantados por Barbosa da Silva e
Comar (2005) que reúnem informações da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) e
da FUNAI, apontam, em abril de 2005, a cifra de cerca 35.000 indivíduos
43
;
descontando-se os pouco mais de 2000 Terena presentes na reserva de Dourados.
que se levar em conta o fato de que esta população não está distribuída
homogeneamente na superfície anteriormente indicada. Com efeito, nos
aproximadamente 20.000 ha constituídos pela soma das reservas, residem mais de
27.000 indígenas, algo que nos permite indicar para esses lugares uma densidade
demográfica média de aproximadamente 2,7 hab/ha, sendo que para as outras 22
localidades, que resultam de uma recuperação de terras através da luta indígena, a
densidade é de cerca de 0,4 hab/ha, isto é, 6,75 vezes mais espaço à disposição.
43
Com relação à situação populacional no lado paraguaio da fronteira, o “II CENSO NACIONAL
INDÍGENA DE POBLACIÓN Y VIVIENDAS 2002” (2003), aponta 13.132 indivíduos Paî-Tavyterã,
distribuídos em 57 comunidades, e 15.414 Ava-Guarani/Ñandéva, distribuídos em 114 comunidades. No
lado brasileiro, os números não estão diferenciados por grupo étnico, nem por lugares de assentamento.
95
Finalizando, precisar-se-ia somar a esses dados uma pequena, mas ainda
significativa população considerada “desaldeada”, residente em cidades, vilarejos, beira
de rodovias e fazendas, para a qual não existe um censo, com a FUNAI estimando
tratar-se de aproximadamente 10% da população total. Nestes termos, em abril de 2005
ter-se-ia em Mato Grosso do Sul um número aproximado de 39.000 indivíduos kaiowa e
ñandéva.
Tabela IV
Situação das Terras Indígenas kaiowa e ñandéva de Mato Grosso do Sul em Abril de 2005
Nome Observação Área_
delimitada
(ha)
Área
ocupada
(ha)
Situação
administrativa
Etapa
Municípios
Grupos
População
AER
Amambaí Indicaçõ
es de problemas na
relação área X população
2429 Total Regularizada Reservada SPI Amambai Kaiowa 5826 Amambai
Arroyo Kora
5 ações, sendo 2 interdito
s
proibitó
rios, 2 indicados
como ações diversas
e 1
para garantir acesso da
Funai aos imó
veis. Resposta
às contestaçõ
es sendo
concluídas.
6870 200 Delimitada Contraditório Paranhos Kaiowa 253 Amambai
Caarapo Indicaçõ
es de problemas na
relação área X população
3594 Total Regularizada Reservada SPI
Caarapó Kaiowa,
Ñandéva
3309 Dourados
Cerrito Área com reivindicaçã
o por
revisão; indicaçã
o de 2
processos sem descrição
1950 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Eldorado Ñandéva
556 Amambai
Dourados 3474 Total Regularizada Reservada SPI
Dourados,
Itaporã
Kaiowa,
Ñandéva
Terena
9668 Dourados
Guaimbe 716 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Laguna
Carapã
Kaiowa 546 Amambai
97
Guasuty Indicação de 2 açõ
es
cautelares arquivadas e 1
proc
esso indicado como
ação diversa
958 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Aral Moreira
Kaiowa 330 Amambai
Nome Observação Área_
delimitada
(ha)
Área
ocupada
(ha)
Situação
administrativa
Etapa
Municípios
Grupos
População
AER
Guyraroka 1 interdito proibitó
rio
indicado como concluso
.
Resposta às contestaçõ
es
sendo concluída.
11440 25 Delimitada Contraditório Caarapó Kaiowa 150 Dourados
Jaguapire Indicação de 1 açã
o por
reintegraçã
o de posse
julgada improcedente e 1
processo de interdito
proibitó
rio indicado como
concluso para sentença
2349 Total Regularizada Certidão SPU Tacuru Kaiowa 844 Amambai
Jaguari 1 açã
o requerendo nulidade
da P.
Declarató
ria indicada como
concluso para despacho.
404 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Amambai Kaiowa 261 Amambai
Jarara 2 ações por indenizaçã
o,
sendo 1 contra a FUNAI; 1
ação por reintegraçã
o de
posse. Í
ndios reivindicam
revisão de limites.
479 Total Regularizada Certidão SPU Juti Kaiowa 347 Dourados
Jatayvary Resumo para publicação
foi
encaminhado. 1 açã
o
8.800 180 Confirmada Estudos
complementares
Ponta Porã Kaiowa 174 Amambai
98
declaratória de domínio.
Kokuei Relató
rio reprovado.
Procedimento poderá
ser
retomado após revogaçã
o da
Portaria de GT em vigor. 2
ações de reintegraçã
o de
posse com indicaçã
o
concluso para despacho.
0 120 Confirmada Estudos
complementares
Ponta Porã Kaiowa 133 Amambai
Limão
Verde
668 Total Regularizada Reservada SPI Amambai Kaiowa 804 Amambai
Nome Observação Area_
delimitada
(há)
Área
ocupada
(ha)
Situação
administrativa
Etapa
Municípios
Grupos
População
ERA
Ñande
Ru
Marangatu
1 ação de reintegraçã
o de
posse; 1 açã
o cautelar pela
revogação da P. Declarató
ria
extinta; 1 ação ordiná
ria
indicada como
concluso
para despacho.
9300
26 + 400
+ 12
Declarada Homologação Antônio João
Kaiowa
366 + 275
(Campestr
e )
= 641
Amambai
Panambi Área de 500 ha é
ocupada
pelos í
ndios, mas nunca teve
destinação final
documentaçã
o precisa ser
avaliada para definiçã
o do
encaminhamento á
rea de
30 ha adquirida pelo SPI.
30
500 Regularizada Aquisição Douradina Kaiowa 777 Dourados
Panambizin
ho
1272 Total Homologada Registro cartorial Dourados Kaiowa 292 Dourados
99
Paso Piraju 0 15 - - Dourados Kaiowa 120 Dourados
Pirajuy 2118 Total Regularizada Terra tradiciona
l.
Concluído
Paranhos Ñandéva
1522 Amambai
Pirakua 2384 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Bela Vista,
Ponta Porã
Kaiowa 447 Amambai
Porto Lindo
(Jakarey)
1649 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Japorã Ñandéva
3661 Amambai
Yvy Katu Área após revisã
o limites de
Porto Lindo. Processo no MJ.
9454
(incluindo
Jakarey)
400 Delimitada Contraditório Japorã Ñandéva
200 Amambai
Potrero
Guasu
1 ação civil pú
blica para
garantir ocupação indí
gena;
2 açõ
es antecipadas de
prova; 2 ações c
autelares; 1
ação de reintegraçã
o de
posse; 1 açã
o para anular
procedimentos
4025 240 Declarada Planejamento
demarcação
Paranhos Ñandéva
484 Amambai
Rancho
Jakare
777 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Laguna
Carapã
Kaiowa 365 Amambai
Nome Observação Area_
delimitada
(ha)
Área
ocupada
(ha)
Situação
administrativa
Etapa
Municípios
Grupos
População
ERA
Sassoro Indicaçõ
es de problemas na
relação área X população
1922 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Tacuru Kaiowa 1981 Amambai
Sete Cerros 1 açã
o cautelar com
indicação
concluso para
8584 Total Regularizada Certidão SPU Paranhos Kaiowa,
Ñandéva
391 Amambai
100
despacho
Sucuriy 1 açã
o cautelar arquivada; 1
ação ordinária
aguardando
cumprimento de despacho
535 80 Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Maracaju Kaiowa 121 Amambai
Takuaraty/Y
vykuarusu
2609 Total Regularizada Certidão SPU Paranhos Kaiowa 508 Amambai
Takuapiry 1776 Total Regularizada
Terra tradicional.
Concluído
Coronel
Sapucaia
Kaiowa 2439 Amambai
Takuara 1º GT DESTITUÍDO. NOVO ESTUDO
ANTROPOLÓGICO EM ANDAMENTO.
1 AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE
POSSE; 1 INTERDITO PROIBITÓRIO.
JUSTIÇA AGUARDA CONCLUSÃO DA
IDENTIFICAÇÃO PARA JULGAR
EFEITO SUSPENSIVO DA
REINTEGRAÇÃO
0 180 Confirmada Estudos
complementares
Juti Kaiowa 162 Dourados
TOTAL
88.917 42.490
37.312
Fonte: FUNAI e FUNASA (Apud Barbosa da Silva e Comar 2005).
101
Mapa IV
Demarcada
A demarcar
(Elaboração da FUNAI revista, corrigida
e adaptada
)
.
Terras Indígenas kaiowa e
ñandéva
Em demarcação
Parte II
TERRITÓRIO E POLÍTICA
103
Capítulo VI
Dinâmica territorial
Devo aqui observar que em minhas reflexões opto por utilizar a noção de
“dinâmica territorial”, entendendo com isto o movimento continuado no tempo,
resultante de uma pluralidade de processos que ocorrem em um determinado espaço
geográfico e que levam os integrantes de grupos sociais e étnicos a configurar e/ou
ajustar territórios de um determinado modo. Neste sentido, não deve esta concepção ser
confundida com a noção de “construção do território”, que também evoca uma imagem
de movimento temporal, e que será amplamente usada no presente capítulo. É de se
ressaltar que neste segundo caso a atenção recai sobre como os membros de um
determinado grupo configuram seus espaços territoriais, em uma específica situação
histórica. Com a idéia de dinâmica territorial pretendo ir para além disto, relevando
ações, intencionalidades e concepções culturais procedentes de indivíduos procedentes
de grupos distintos, mas em contato permanente. No que concerne aos Kaiowa (e, de
modo mais geral, também aos Ñandéva de MS), interessa-me entender justamente como
a construção do território por parte destes índios (no correr de mais de um século de
contato compulsório com os colonos “brancos”) foi norteada não só pelas características
da morfologia social do grupo em pauta, por um lado, e, por outro, pelas ações
constritivas do Estado. Ambos aspectos são importantes, mas não se pode, contudo,
pensar que os resultados possíveis de tal relação interétnica sejam a “manutenção” da
territorialidade indígena ou a “imposição” daquela outra que seria expressão das
políticas do Estado.
A própria noção de territorialidade, cujo uso é muito difuso na antropologia e na
geografia, manifesta geralmente algo de finito e prévio, um conjunto de imagens,
símbolos e regras de acesso e de uso aos/dos espaços geográficos, e/ou cósmicos, que
expressaria o modo através do qual os integrantes de um grupo humano determinam
seus territórios. Portanto, esta noção, assim entendida, nos leva a pensar os territórios
como sendo o resultado da projeção cultural sobre uma superfície externa, negando ou
tornando insignificantes os acontecimentos históricos, como conflitos interétnicos e
dominação colonial, acontecimentos estes que resultam ser extremamente importantes
na formulação das próprias categorias culturais. Neste sentido, sem optar por descartar o
104
termo, prefiro considerar a territorialidade expressada pelos integrantes de um grupo
como um resultado e não como uma determinante, um resultado sempre inacabado e
sujeito a muitas variações, dependendo das situações em que se encontrem os grupos
sociais ou étnicos tomados em consideração.
Tornando aos Guarani, penso que para compreender os fatores que alimentam o
processo de construção dos territórios destes indígenas é indispensável levar em
consideração os efeitos derivantes da ação assimétrica, hierarquicamente dominante, da
construção dos territórios por parte de agentes dos Estados brasileiro e paraguaio,
efeitos estes não no sentido de impedir a manifestação da territorialidade indígena, mas
de favorecer a geração de categorias espaciais inéditas de parte dos Guarani, assim
como formas de organização política adequadas às exigências da vida contemporânea.
6.1 Relações cosmológicas com a Terra
Entre os Kaiowa, como a literatura específica indica, os rituais constituem um
excelente elemento de organização social, que favorece a integração do grupo. Entre os
mais importantes figuram aqueles da consagração do milho e das plantas novas
(avatikyry), como culto agrário, e, fora do período da colheita, também os jeroky,
cerimônias estas prepostas em grande medida à manutenção do equilíbrio cósmico.
Manter em equilíbrio o mundo para os Kaiowa significa criar os pressupostos éticos e
morais positivos (teko porã) que possibilitem a manutenção de uma conduta sagrada
(teko marangatu). Esta última se expressa através de ações e atividades humanas
voltadas a que a Terra (Yvy) não sofra males, os quais, em última instância poderiam vir
a dar-lhe fim.
A Yvy
44
deve ser entendida como a parte do Cosmo criada por Ñane Ramõi
(Nosso Avô) e destinada por seu filho, Ñande Ru (Nosso Pai), aos cuidados dos índios.
Ñande Ru criou também os próprios Ava Guarani (Homem Guarani), que emergiram
das primeiras sementes por ele plantadas nessa terra, ato este que instituiu a relação
44
Para os Guarani, yvy é contemporaneamente terra (matéria inorgânica), mundo e solo. A
distinção entre uma ou outra característica se faz através da contextualização lingüística da palavra yvy
ou, no caso do solo, através da adjetivação que permite diferenciá-los; por exemplo, yvy morotî (terra
branca), yvy pytã (terra vermelha), yvy (terra preta) e yvy sayju (terra amarela), cada um com
propriedades específicas para a agricultura, atividade esta que permite e dá sentido a essa classificação.
105
entre os índios e o solo, como relação ctônica que serve como base para a construção do
sentimento de autoctonia.
Dessa forma, a terra assume sentido especial para os índios e, diferentemente de
uma concepção ocidental, esta não pode ser considerada como parcela ou como
propriedade, cuja posse estaria nas mãos de um indivíduo ou conjuntos destes. Ao
contrário, os Guarani indicam com insistência que são eles que pertencem à terra, sendo
a sua própria ação fator central para a conservação desta. Assim sendo, as atividades
xamânicas e ritualísticas sintetizam, de algum modo, as condições que cada comunidade
vive e as próprias dificuldades para manter tal equilíbrio cósmico.
O risco eminente de uma catástrofe apocalíptica faz convergir os diversos grupos
guarani em torno da necessidade de conservar uma ordem moral cuja base encontra sua
razão de ser numa concepção cultural que cria um vínculo simbiótico entre os seres
humanos prediletos (os próprios Guarani) e a Terra. Aqui, esta última é entendida não
simplesmente como espaço físico, mas como um ser vivente: as árvores são os cabelos
da Terra dizem os Kaiowa de Ñande Ru Marangatu (v. Spyer 1999, cf. Melià et al.
1976). As metáforas utilizadas pelos Guarani para indicar as características da Terra são
geralmente ligadas ao corpo humano, onde as funções primárias de comer, descansar e
alimentar passam a ser atributos importantes para sua fisiologia. Neste sentido, os índios
permitem que a Terra se alimente durante o descanso previsto nas técnicas de coivara,
mediante o qual haverá um reflorestamento espontâneo (denominado pelos índios de
ñemboka'aguyjevy, ou seja, “deixar o mato voltar a crescer”), enquanto no lugar plantado
será a própria Terra que alimentará os índios. Os rituais (como o avatikyry), por sua vez,
permitirão que esta Terra não adoeça, mantendo o equilíbrio nessa relação simbiótica.
As plantas, como o milho, são tratadas como crianças, colocando-se mais uma vez em
destaque a visão antropomorfa dos elementos do Cosmo. A propósito são importantes
também as considerações de Paulito Aquino, um reconhecido xamã (já falecido) da área
indígena de Panambizinho. Frente às dificuldades para conseguir lenha para a
comunidade que pertence àquele lugar visto o exíguo espaço no qual por décadas esta
foi constrangida a viver (60 ha, para mais de 200 hab.) e a total ausência de árvores no
seu interior –, Paulito assim se exprimiu:
“Después del azul (hovy mboypýri), todo lo que existe es gente. Un día
Ñande Ru, Nuestro padre, nos mandó buscar leña, después del azul, pero allá sólo
encontramos personas de cuerpo bien largo. Volvimos y Ñande Ru nos dijo que esas
106
personas bien altas eran árboles para hacer leña. Entonces yo le di una hachada en la
mitad de la pierna y ese cuerpo se cayó al suelo, todo cortado en pedazos de leña
buena. De ella no sale humo, sólo sale llama” (Paulito, em Chamorro 1995: 51)
45
.
A relação xamanística com outras dimensões do Cosmo muitas vezes visa à
superação dos impasses da vida cotidiana. No caso dos Kaiowa, existe uma
continuidade entre o mundo por eles habitado e aquele onde acontecem os fenômenos
referidos no trecho citado. Pode-se dizer que, dependendo das condições vividas pelos
índios em cada situação local (possibilidade ou não de acessar a terra, de manter e/ou
implementar as atividades agrícolas, de caça, de pesca e de coleta, de respeitar as
relações de reciprocidade entre os grupos macro-familiares etc.), podem ser ativadas
manifestações rituais prolongadas, com o intuito de alcançar outros mundos. Deste
modo, procura-se antecipar a prevista destruição do superfície da Terra, que ocorrrerá
através de fenômenos meteóricos enviados pelas divindades (marãna, isto é,
tempestades, de vento, fogo, água e granizo). Em outras ciricunstâncias, busca-se, ao
contrário, postergar as catástrofes, através do diálogo instaurado pelos xamãs com os
deuses, tentando convencê-los a renunciar (momentaneamente) a seus propósitos
apocalípticos. Esse tipo de relação com a Terra se estabelece através de danças rituais
(jeroky) em frente aos yvyra marangatu uma espécie de altar onde são depositados os
ornamentos cerimoniais e objetos poderosos, como os chiru (varas insígnias). Entre
outras funções, os chiru são designados a mediar as relações dos homens com a Yvy e,
assim fazendo, com as divindades extraterrenas. Segundo o xaLuís Velário Borvão,
morador da área de Jaguapire, o poder (mágico e metonímico) destes elementos é muito
grande:
“…Pa’i Tani [um dos nomes atribuído ao ser criador]…, ele plantou o chiru,
plantou. Então, ele nasce…desse tamanho [indica uma árvore de uns 20 m de altura
localizada ao lado de seu pátio]. Tani então fez quinhentas e tantas rachas pra
distribuir pra comunidade. Mas foi tempo, não era agora …mas foi tempo… Ele
distribuiu pra comunidade, pra remédio, …pra salvar a criança, o homem. Se te
acontece que a barriga dói…, a cabeça i… lava e coloca embaixo daquele
porongo [cabaça], aí ele dá de comer, aí já sara. Em aquele tempo, não tinha remédio
dos brancos,… não tinha injeção, não tinha nada! O índio não sabia de pastilha, ele
45
Com o termo “azul”, o xamã está se referindo ao “céu”, além dele existindo apenas os seres perfeitos,
todos constituindo humanidades, em contraposição àqueles presentes na Terra, espaço dominado pela
impureza e pela distinção de níveis de degradação com relação ao período das origens, quando todos os
seres eram homens e xamãs, em uma dimensão dominada pelas relações simétricas. Este tema será
amplamente desenvolvido na terceira parte do presente trabalho.
107
raspava [o chiru]. Quando eu estou com gripe, raspo…” (Luís Velário Borvão, em
Mura 2000: 60).
Os chiru, conseqüentemente, representam uma ligação primordial com as
divindades, e as famílias que os conservam dão continuidade a esta relação instituída no
espaço-tempo das origens (Ára Ypy). Os aspectos benéficos destes elementos o são
automáticos, mas dependem essencialmente do uso adequado por parte de quem os
possui. Por esta razão, nem todos estão habilitados ao uso destes importantes
instrumentos rituais, e ainda menos pessoas são delegadas à sua conservação. Os
poderes negativos decorrentes de um uso inadequado desses objetos podem ser
extremamente catastróficos, como indica o próprio Luís, quando afirma que “aquele
chiru é muito poderoso. Quando coloca pra jujera [chão], aí cria qualquer coisa:
pernilongo, formiga, marimbondo,... tudo. (idem: 61)
46
.
A negatividade representada pela desordem causada por usos incorretos dos
instrumentos rituais e pela falta de condições ideais para a realização do teko porã
(modo correto de ser) pode levar os índios a desejar um caminho rápido para reunir-se
com os seres imortais. Como afirma Chamorro (1995: 65), “los Kaiowá serán buscados
por un tocador de mbaraka que los guiará por el camino que está oculto atrás de la cruz
(tape kurusu ojopívare).
“Él va a arrancar la cruz y con eso se revelará el camino perfecto (tape
aguije), por donde caminaremos hasta el karoapy, un lugar cerca del yváy, donde
hay una casa de rezos para nosotros” (Paulito, em Chamorro 1995:65).
A autora destaca justamente a importância que a imagem do caminho (tape) tem
para esses índios. Era através de trilhas que os heróis culturais cumpriam as ações no
espaço-tempo das Origens, enquanto que na atualidade estas passam a ser o guia para as
viagens xamanísticas ao além. Na vida cotidiana, a rede dos caminhos (tape po’i) que
podem ser fisicamente percorridos pelos seres mortais constitui o suporte através do
qual se relacionam famílias e comunidades, como se verá no próximo item. A cruz
(kurusu), por sua vez, representa o suporte (jekoha) da Terra, cujo símbolo é elemento
central nos rituais de manutenção do equilíbrio cósmico. Arrancar a cruz significa
46
Vista a importância do chiru na tradição de conhecimento indígena, adiante, na terceira parte, será
desenvolvido um capítulo específico sobre este tema.
108
alterar profundamente esse equilíbrio e, portanto, representa um último estágio da vida
da Terra e da história da relação entre os Kaiowa e este mundo
47
.
Embora este estágio da vida da Terra seja continuamente esperado, na maioria
dos casos o que mais se procura é manter o equilíbrio cósmico, tendo o risco da
catástrofe como advertência moral, a partir da qual articular a própria ética e modo de
ser (ñande reko). Neste sentido, são eloqüentes as considerações feitas por Júlio,
integrante da comunidade de Ñande Ru Marangatu, que descreve a marcada diferença
entre o modo adequado de viver no espaço fato que será possível quando essa área
indígena estiver em plena posse destes Kaiowa e as condições de restrição territorial à
qual sua comunidade está ultimamente vinculada um acampamento de 26 ha para
aproximadamente 400 pessoas:
“Os bichos gostam muito desse lugar, não é da beira do rio. Aqui nós
temos quati, paca, tatu. Temos recursos para plantar, arroz, milho, batata. Vai dar
bom. Uma parte dos índios vai morar aqui, outra para o Estrelão, outra para o
Bananal, outra para... Vai esparramando gente. Ficar longe para plantar qualquer
coisa. Se ficar junto assim, apertado, não dá para plantar, criar galinha. Se ficar terra
pequena, teko fica pequeno” (Spyer 1999:18-19). [grifos meus].
Esta última frase exprime uma equação extremamente significativa: à terra
reduzida corresponde um modo de ser (teko) enfraquecido. Por conseqüência, um teko
enfraquecido não pode contribuir adequadamente para a manutenção do equilíbrio
cósmico. Neste sentido, a perda de acesso à terra por parte dos índios, devida às
condições de domínio colonial ao qual os Kaiowa foram constrangidos, implica um
risco crescente de catástrofe. A luta para recuperar terras ocupadas tradicionalmente por
esses índios leva consigo a necessidade de dar continuidade a um processo de
relacionamento constante com a Yvy para que esta não adoeça, procurando restabelecer,
na medida do possível, as condições da morfologia social indígena que permitam a
manifestação de um adequado modo de ser kaiowa (teko porã). O fato de os índios, para
obter essas condições, procurarem uma distribuição espacial “esparramada”
47
Há que se levar em conta que, na seqüência dos eventos cosmológicos concebidos pelos
Kaiowa, a superfície da Terra foi destruída uma vez, tendo sido renovada por Ñande Ru e entregue por
seu filho, Pa’i Kuara (o guardião do sol), aos cuidados desses índios enquanto Paî-Tavyterã que são, isto
é, “habitantes destinados a viver no centro da terra”. Segundo a historicidade indígena, após a próxima
destruição da superfície da Terra, esta será renovada mas não será mais habitada por seres mortais, sendo
destinada apenas aos seres perfeitos ou àqueles que tenham alcançado a perfeição (aguije) (Melia et al.
1976, Chamorro 1995).
109
(sarambipa) das próprias famílias, coloca em evidência a peculiaridade morfológica das
relações sociais dos Kaiowa, relações estas que serão objeto de atenção no próximo
item.
6.2 Morfologia social
A forma que um grupo social assume fisicamente no espaço não é algo
definitivamente dado e imutável; sua formação é um fato histórico, em contínua
transformação e adaptação às condições do contexto sócio-ecológico-territorial onde tal
grupo desenvolve suas atividades. É de se destacar a importância que neste processo
revestem os princípios de organização social, como elementos básicos para a agregação
dos indivíduos e a fixação dos traços culturais necessários para a consolidação de um
determinado sentido de pertencimento (familiar, comunitário, étnico, nacional, etc.) e de
uma determinada visão do mundo.
Inaugurando os estudos sobre morfologia social
48
, Marcel Mauss dedicou-se à
compreensão do modo como se estabelece a relação justamente entre os princípios de
organização social e as condições materiais de existência de um grupo humano.
Elaborando informações sobre os esquimós do Alasca (1993 [1904-1905]), colocou ele
em evidência dois fatores centrais para a compreensão da morfologia social nas mais
diversas sociedades. De um lado, os aspectos ecológicos e as atividades técnicas e
econômicas que têm um importante peso na construção das relações sociais dos
indivíduos e das famílias; de outro, estes aspectos não podem ser considerados como
determinantes da forma social adquirida pelo grupo, mas apenas como fatores
limitativos, indicando as possibilidades que este grupo tem à disposição em um
determinado território para desenvolver sua vida social. A demonstração consiste em
fazer notar que, com uma paridade dos meios técnicos em um ambiente ecológico
símile, podem existir formas sociais muito diferentes, como, por exemplo, aquelas
manifestadas pelos Atapascanos e os Algonquinos, povos vizinhos dos esquimós, com
os quais estes últimos mantinham contatos comerciais continuados. Durante o verão, os
48
“On sait que nous désignons par ce mot la science qui étude, non seulement pour décrire, mais
aussi pour l’expliquer, le substrat matériel des sociétés, c’est-à-dire la forme qu’elles affectent en
s’établissant sur le sol, le volume et la densité de la population, la manière dont elle est distribués, ainsi
que l’ensemble des choses qui servent de siège à la vie collective » (Mauss 1993: 389).
110
esquimós dispersavam as famílias nucleares em um território imenso, escolhendo como
tipo de moradia as tendas, e reservando para o inverno uma vida nucleada de toda a
comunidade. Esta nucleação permitia reunir as famílias dispersas em residências
estáveis e de grande porte, residências que compactavam as famílias extensas. Por seu
turno, os atapascanos e os algonquinos mantinham durante todo o ano uma mobilidade
territorial contínua, utilizando como moradias exclusivamente tendas. As razões de tais
diferenças morfológicas, afirma Mauss, devem ser buscadas nas especificidades sociais
de cada povo, procurando-se relacionar a morfologia social com as características da
vida religiosa, política, jurídica e econômica.
Partindo destas considerações, pode-se salientar que os aspectos sociais e a visão
de mundo de um determinado grupo humano, que vão se constituindo historicamente,
remarcam determinadas características culturais que, por sua vez, discriminam outras
formas de organizar as relações entre indivíduos e indivíduos, entre famílias e famílias e
entre os grupos sociais. Criam-se, assim, formas específicas de distanciamento (e
aproximação) social que vêm determinar o que é denominado espaço social
49
. Este não
é construído abstratamente, mas encontra as condições da sua expressão em um espaço
físico, a partir tanto das condições ecológicas e geográficas, quanto das características
das atividades tecno-econômicas adotadas pelo grupo, bem como das limitações ou
possibilidades oferecidas pelo eventual contato interétnico (guerra, comércio e/ou troca,
relações de trabalho, de dominação, etc.).
No caso dos Kaiowa, temos uma morfologia social baseada na dispersão das
áreas residenciais em espaços territoriais considerados como passíveis de ser
percorridos pelos indivíduos, no intuito de desenvolver suas atividades econômicas e
efetuar as visitas cotidianas e periódicas aos parentes, estabelecendo alianças
matrimoniais e políticas necessárias à construção do sentimento comunitário e
intercomunitário. Como é colocado em evidência pela literatura específica sobre este
povo, na base da organização social destes indígenas está a família extensa
50
,
denominada te’yi, a qual, dependendo da coesão social e do contexto histórico, pode
49
Sobre o distanciamento social e cultural ver, entre outros, E. Hall 1977. Este autor elabora uma
interessante subdivisão analítica entre distâncias íntimas, pessoais, sociais e públicas, em situações de
relacionamentos interculturais, relativos a contextos de diferentes sociedades.
50
Para tal tema, pode-se ver, entre outros, os seguintes autores: Nimuendaju (1987 [1914]),
Schaden (1974 [1954]), Melià et al. (1976), Melià (1986), Susnik (1979-1980, 1983), Bartolomé (1977),
Thomaz de Almeida (1991, 2001), Chamorro (1995), Reed (1995) e Mura (2000).
111
conter, em seu interior, acinco gerações. Com a morte dos líderes da família extensa,
o tamõi (avô) e a jari (avó) ou o tamõi guasu (bisavô ou tataravô) e a jari guasu (bisavó
ou tataravó), e ao ampliar-se o grupo pelo movimento temporal da linha genealógica
com o surgimento de novas gerações, diminui o vínculo entre os filhos do falecido. Isto
ocorre porque, estes últimos, tornando-se por sua vez tamõi e/ou jari, encontram-se em
condições de formar novas famílias extensas espacialmente independentes, podendo
assim dar vida a configurações territoriais diferentes em relação à situação anterior
51
.
A família extensa kaiowa tem funcionado, no tempo e no espaço, como um
módulo com características de autonomia relativa a partir do qual os indígenas
constroem formas de agregação mais ampliadas, caracterizando relações políticas
comunitárias, intercomunitárias e interétnicas, delineando uma tradição de
conhecimento que objetiva legitimar a própria organização social, discriminando-a
perante outras. Ela é também quadro de referência para os indivíduos no
desenvolvimento das atividades econômicas e técnicas. Em sendo semi-autônoma, seus
integrantes estabelecem estratégias diferenciadas de sobrevivência e de realização do
teko (o modo de ser guarani), com relação aos dos outros te’yi, contribuindo, através das
contínuas interações que realizam entre si, para a organização de um corpus comum de
normas, valores e conceitos que geram consensos sociais e dão sentido e ampliam a
visão de mundo kaiowa.
Em situações favoráveis, isto é até as primeiras décadas do século XX, os te’yi
se estabeleciam preferencialmente nas nascentes de rios e córregos, distribuindo-se as
famílias nucleares ao longo e ao redor destes cursos fluviais ou minas d’água. O espaço
intercorrente entre os lugares de domínio de uma família extensa e os de outra tendia a
seguir as características da rede fluvial, podendo ocorrer, portanto, que os grupos
estivessem muito distantes uns dos outros. O que unia estes grupos familiares entre si
fisicamente era a já referida rede de trilhas (tape po’i), através das quais os indígenas se
comunicavam e mantinham elevada circulação de pessoas, seguindo a lógica do guata
(andança)
52
.
51
Este tema será amplamente desenvolvido no próximo capítulo.
52
O ir de uma residência a outra, justamente guata, é uma instituição motivada culturalmente,
cujos reflexos estão presentes na cosmologia kaiowa. Nas narrações sobre o espaço-tempo das origens, as
divindades do panteão indígena percorrem caminhos que os levam de residência em residência e, através
disto, fundam as instituições para a humanidade, bem como as relações com os outros elementos do
Universo, como ficará claro nas descrições cosmológicas expostas na terceira parte deste trabalho.
112
Em virtude de seu papel central na manutenção do equilíbrio cósmico, os rituais
são fundamentais para a formação e a manutenção das relações sociais e econômicas.
Era justamente por ocasião das cerimônias religiosas, às quais freqüentemente se
seguiam danças profanas (guachire), que os indivíduos provenientes de vários lugares
podiam travar conhecimentos e solidificar alianças, dando lugar a uniões matrimoniais e
alianças entre grupos.
As regras de relacionamento comunitário, por outro lado, eram sancionadas
através de aty guasu (grandes reuniões) das quais todos podiam participar, mas que
exprimiam principalmente as linhas políticas dos líderes das famílias extensas. Durante
estas reuniões se designava, com base em qualidades pessoais, um mburuvicha (líder
comunitário), que iria coordenar atividades comuns, e representar externamente as
políticas da comunidade. Por ocasião de conflitos entre as diversas famílias extensas
que davam vida aos liames comunitários, podiam efetivar-se as seguintes situações: 1)
simplesmente interrompiam-se as relações, ficando o grupo minoritário isolado, 2) em
ausência de fronteiras físicas e jurídicas que se interponham entre os indígenas e os
recursos materiais disponíveis no território, os grupos minoritários podiam deslocar-se
para nascentes ou margens de rios mais distantes, ou 3) a partir da sua localização, o
grupo minoritário estabelecia novas relações com famílias extensas mais distantes,
incorporando-se nelas ou dando vida a uma outra relação comunitária.
Estas características da vida política comunitária e inter-comunitária que foram
descritas até aqui espelham uma morfologia social do grupo em situações nas quais,
como foi evidenciado, existia uma continuidade territorial e ecológica que não impunha
aos indígenas barreiras indevassáveis, obrigando-os a estar em espaços reduzidos e com
fronteiras bem delimitadas. Como visto na primeira parte, os Guarani do atual estado de
Grosso do Sul foram progressivamente levados a essas últimas condições pela política
desenvolvida pelos organismos indigenistas brasileiros, coadjuvado pelas atividades
missionárias que se implantaram na região a partir das primeiras décadas do século XX.
No tocante aos Guarani no Paraguai, a situação é em certa medida análoga, embora o
INDI (Instituto Nacional Del Indígena), organismo indigenista desse país, tenha iniciado
suas atividades apenas nos anos 70 do século passado. Ao mesmo tempo, as relações
compulsórias com as frentes coloniais têm produzido efeitos significativos sobre a
113
maneira dos índios entenderem e conceituarem o espaço onde desenvolvem sua
existência. Porém, contrariamente aos entendimentos mais corriqueiros, os Guarani não
têm adotado outra óptica cultural (sabidamente a das frentes coloniais); ao contrário, o
conhecimento adquirido com as relações de contato tem permitido aos grupos macro-
familiares refletir sobre suas categorias espaciais tradicionais, produzindo ricas e
detalhadas formulações, expressas através da noção nativa de tekoha, isto é, o “lugar
onde realizamos nosso modo de ser”.
6.3 A noção de tekoha
Segundo Melià e o casal Grünberg:
“El tekoha es ‘el lugar en que vivimos según nuestra costumbre’ [...] Su
tamaño puede variar en superficie [...], pero estructura y función se mantienen igual:
tienen liderazgo religioso propio (tekoaruvixa) y político (mburuvixa, yvyra’ija) y
fuerte cohesión social. Al tekoha corresponden las grandes fiestas religiosas
(avatikyry y mipepy) y las decisiones a nivel político y formal en las reuniones
generales (aty guasu). El tekoha tiene un área bien delimitada generalmente por
cerros, arroyos o ríos y es propiedad comunal exclusiva (tekohakuaaha); es decir que
no se permite la incorporación o la presencia de extraños. El tekoha es una
institución divina (tekoha ñe’e pyru jeguangypy) creada por Ñande Ru(Melià et al.
1976: 218).
Esta definição é o resultado de pesquisas realizadas pelos autores entre os Paî-
Tavyterã (Kaiowa) nos anos 70 do século XX, junto às comunidades situadas no
Paraguai, em situações não muito diferentes daquelas vividas pelos mesmos índios no
lado brasileiro. Porém, no seu conteúdo esta parece não considerar devidamente as
condições históricas nas quais os índios manifestam suas categorias e instituições.
que se levar em conta que os autores apresentam análises em grande medida resultantes
do trabalho desenvolvido pelo PPT (Proyecto Paî-Tavyterã), projeto este que contribuiu
para a formação das Colonias (terras indígenas) oficiais desses índios no Paraguai. Das
24 áreas demarcadas a1975, apenas uma superou os 11.000 ha, e assim mesmo por
condições especiais e com a intervenção de militares simpatizantes dos índios; uma
outra foi legalizada com pouco mais de 5.800 ha. Superior a 2000 hectares somente
outras duas, sendo seis as que oscilaram entre 1000 e 2000 ha. As 14 áreas restantes
oscilam entre 52 e 846 ha. No caso, por exemplo, dos tekoha que constituem hoje o
complexo dos Mberyvopegua (isto é, os que vivem nas nascentes do rio Mberyvo
114
[Aquidabán] e que compartilham um teko específico), temos a seguinte situação
apresentada pelo PPT (1978: 21-22):
Takuara: Es um tekoha que se ubicó hasta 1974 em las cabeceras del
Arroyo Takuara y se disolvió por la imposibilidad de legalizar sus tierras, que fueron
compradas por el Sr. Duque, brasileño. En el 73 contaron 9 familias con 45
personas, lideradas por Nenito Núñez. Una parte de ellos emigró a Panambiy, otra a
Tavamboae. Pertenecen al teko mberyvopegua.
Panambiy (Cumbre, Timbo’y, Yvyatã’i): Este tekoha pertenece al teko
mberyvopegua y se ubitradicionalmente entre el río Aquidabán (Mberyvo) y los
arroyos Piray y Tatupire en el lugar conocido por los criollos como Yvyatã’i
(Timbo’y). Fue trasladado unos 4.000 mts río abajo por violentos conflictos por las
tierras y se encuentran actualmente entre el Cerro Cumbre, el río Aquidabán y el
arroyo Panambiy (Arroyo Azul), donde se localizó la mensura de 403 Has. Como
C.I. Panambiy. El tekoaruvixa antiguo es Simeón Suárez (coronel pyahu) y Rafael
Suárez. Población: 44 familias, 215 personas.
Pirity: Un pequeño núcleo de 7 familias (25 personas) se localiza junto al
Arroyo Ita en “Lote 22(Pirity) y busca la legalización de 52 Has. Pertenecen al
teko mberyvopegua.
Ndyvaa (Sereno, Okenda): Este tekoha, también perteneciente al teko
mberyvopegua, incluye los lugares de Yvu (Sereno), Yrovy (Cerro Liberal), Ndyaa
(Potrero’i), Cerro Akapiti y Arasunungue. Son sus líderes Mario Suárez
(Administrador dirigente de la Colonia), Remigio Romero y Horacio Valiente. Junto
al Arroyo Takuara se habilitó como C.I. Ndyaa una fracción de 300 Has ampliada
con la adquisición de una fracción lindante de 249 Has totalizando 549 Has.
Población: 33 familias, 192 personas”.
A situação apresentada coloca em clara evidência a natureza negociada dos
espaços a serem demarcados. Ainda mais evidentes se mostram as medidas reduzidas
das superfícies legalizadas, em decorrência da impossibilidade de superar as barreiras
impostas pela situação local, absolutamente subordinada ao domínio das frentes
agropecuárias, estas “legalmente” em posse de enormes latifúndios
53
.
Mas este estado de coisas não se limita às regiões onde vivem os Paî. Em um
recente trabalho, Richard K. Reed (1995), que realizou suas pesquisas junto aos Chiripa
(Guarani Ñandeva) no Paraguai, dedica um amplo espaço à descrição de como as
atividades empresariais, ligadas em um primeiro momento à extração da erva mate e,
posteriormente, à pecuária, restringiram progressivamente os espaços territoriais
disponíveis para os indígenas. Reed, apresentando um mapa, expõe um certo número de
comunidades do entorno da Colônia Itanarãmi, que foram abandonadas em decorrência
das pressões exercidas pelos não-índios.
53
Por exemplo, o Sr. Lunardelli, brasileiro, consta como possuindo nessa região aproximadamente
100.000 ha (Chase-Sardi et al. 1990).
115
Outro aspecto importante a ser salientado é a tendência, nos estudos sobre os
Guarani realizados nos anos 70 e 80 do culo passado, de considerar as categorias
apresentadas pelos índios como imanentes e procedentes de tempos imemoráveis –
como salientado no primeiro capítulo do presente trabalho.
Para superar o risco de uma visão estática e atemporal do que seriam as
categorias espaciais dos Guarani, seria oportuno tomar em consideração a definição de
tekoha anteriormente citada, levando em conta justamente a situação histórica (Oliveira
1977, 1988) imposta pelo contato interétnico compulsório que em Mato Grosso do Sul
vem caracterizando as relações entre índios e não-índios, a partir das primeiras décadas
do século XX. Esta situação histórica é em boa medida caracterizada pela tentativa de
territorializar os índios, constrangendo-os a espaços limitados e com fronteiras fixas.
Como chama a atenção o próprio Oliveira, territorialização seria “uma intervenção da
esfera política que associa (de forma prescritiva e insofismável) um território bem
determinado a um conjunto de indivíduos e grupos sociais” (1998: 56).
A imposição, por parte dos Estados nacionais, de regras de acesso e posse
territorial que são alheias às características da territorialidade dos índios tem
significativas conseqüências na organização das comunidades indígenas, especialmente
nas suas elaborações culturais e no gerenciamento das políticas de relacionamento
interétnico. Ainda segundo Oliveira (idem), entre os fatores mais significativos,
decorrentes de processos de territorialização, temos, entre os indígenas, o
estabelecimento de papéis formais permanentes de mediação com o Estado (e os não-
índios em geral) e a re-elaboração da memória do passado.
No caso específico dos Guarani, a rigidez introduzida com o intento de aldeá-los
levou à formação de mecanismos de controle e de exercícios de poderes que
extremaram a importância do mburuvicha enquanto líder, papel ao qual é superposto o
de “capitão”, autoridade reconhecida pelo órgão tutelar como mediador entre a
comunidade indígena e o Estado. Com estas mudanças, as famílias extensas, embora
mantendo os mesmos mecanismos de relacionamento recíproco, encontraram-se na
impossibilidade de regular os conflitos nos modos expressos anteriormente, isto é, sem
poder deslocar-se no espaço livremente, permanecendo encapsuladas em locais por elas
não considerados como dados e imutáveis.
A tentativa de aldeamento compulsório e as dificuldades dos Guarani do MS de
manter uma relação tradicional com a terra levou-os, portanto, progressivamente a
116
refletirem sobre a sua condição territorial e a realizar um esforço para elaborar
culturalmente as condições vividas no presente, tentando construir as relações com o
passado através da organização da memória dos rios grupos macro-familiares e da
percepção dos espaços por estes ocupados no correr do tempo, reforçando o próprio
sentimento de autoctonia. Anteriormente, porém, sobretudo devido à característica
indígena de referir-se aos lugares pelos seus acidentes geográficos ou pela memória dos
que ali haviam residido, não se requeria dos Guarani uma reflexão sobre distâncias
físicas e fronteiras bem precisas que pudessem abarcar em seu interior um número
determinado de famílias extensas. Em poucas palavras, o era necessário exprimir
medidas; simplesmente vivia-se com base na própria tradição, ou seja, respeitava-se e
implementava-se as regras do teko: o modo de ser guarani. É então em decorrência das
demandas por terra que os índios passam a dar extrema relevância ao espaço entendido
como superfície fisicamente delimitada, e isto é por eles expressado através da categoria
tekoha.
Voltando à definição de tekoha anteriormente citada, o fato de que nas
descrições dos Kaiowa sejam levadas em consideração fronteiras físicas bem claras do
espaço comunitário e este seja para eles religiosamente atribuído pelo deus criador,
coloca em evidência mais que tudo o esforço atual de conceituar espacialmente as
próprias relações sociais, fato possível em boa medida através do recurso à memória do
passado. Neste sentido é interessante comparar as condições territoriais dos
Mberyvopegua anteriormente expostas e as da região da bacia do Rio Apa.
Relativamente a esta última região, assim se exprimem Melià et al.:
“Este tekoha [Campestre (Guapo’yrapo, Cerro Marangatu)] se ubica al norte
del Estrella y llega hasta las cabeceras del río Apa y guarda relaciones muy íntimas
con el tekoha de Pysyry. No existe puesto de la FUNAI ni Misión evangélica en la
zona, tampoco una reserva de tierras para los Paî. Está liderado por Alciro Castro
Correa Villalba, que tiene un titulo sobre 7,5 Has en Campestre. El tekoha incluye
los lugares Campestre, Cabeceira cumprida, Mbakaiova, Ramakue, Jardim y
Cabeceira de Apa” (Melià et al. 1976:200-201).
O espaço territorial indicado no trecho chega a superar em muito os 250.000 ha,
representando parte significativa da bacia do rio Apa no lado brasileiro, como ilustrado
no mapa V apresentado a seguir.
117
Se levamos em consideração os padrões de dimensão dos tekoha demarcados do
lado paraguaio, nas cabeceiras do rio Mberyvo (Aquidabán), anteriormente citados, que
não superam os 550 ha, e os relacionamos às dimensões indicadas para a região do lado
brasileiro, poder-se-á notar uma diferença abismal no que diz respeito ao tamanho. A
esta marcada diferença espacial acrescentam-se também dúvidas a respeito das divisões
de ordem formal entre diversos tekoha, algo que fica claro quando os autores fazem
referência à área de Pysyry:
“El tekoha se ubica entre los arroyos Estrella, Esperanza con el Taquara y el
Pysyry llegando al sur hasta los cerros. Al mismo tekoha pertenecen también las
tierras al norte del Estrella, en el Brasil (Municipio de Antonio João, Mato Grosso),
con los núcleos Paî en Campestre (Guapo’yrapo), Cerro Marangatu, Cabeceira
cumprida, Rama-kue, Jardim y Cabeceira do Apa” (Melià et al., 1976:192). [grifos
nossos]
A partir deste trecho, cabe perguntar se Pysyry e as terras que se estendem ao
norte do rio Estrela (isto é, no Brasil) pertencem a um único tekoha, como indicado, ou
a dois (ou talvez mais), como foi exposto anteriormente.
Jatayvary
Pysyry
Takuara
Panambiy
Ndyvaa
Pirity
Pirakua
Ñande Ru Marangatu
Kokuei
Sivyrando
Cabeceira comprida
Mbakaiowa
Tekoha Guasu
Dama Kue
Legenda
Tekoha Guasu dos Apapegua
Tekoha Guasu dos Mberyvopegua
Área indígena legalizada no Paraguai
Área indígena legalizada no Brasil
Área indígena em processo de
legalização no Brasil
Área indígena antiga hoje não em
posse dos índios
Limites da identificação de um tekoha
Paraguai
Paraguai Paraguai
Paraguai
Brasil
Mapa V
Cabe também observar que o processo de diferenciação tipológica (formal e
estrutural) dos tekoha fica ainda mais ambíguo se se toma em consideração as
afirmações de Chase-Sardi et al., que inclui Pysyry entre os de teko Mberyvopegua
com a especificidade de ter “fuerte influencia de los Kayová o Paï brasileños...” (1990:
444) – enquanto no manual do PPT/PG (1977), esta característica não aparece.
Estas observações nos levam a reconsiderar a definição de tekoha oferecida por
Melià et al., procurando historicizar suas configurações. Para tal propósito é importante
analisar alguns elementos destacados pelos autores à luz dos processos ocorridos nos
últimos trinta anos entre os Guarani de Mato Grosso do Sul.
Em primeiro lugar, o papel do tekoaruvicha (aquele que fomenta o teko, a
autoridade religiosa máxima entre os Kaiowa) não é sempre o mesmo, sendo sujeito a
mudanças, dependendo das condições históricas e da posição geográfica. Em MS não
todos os tekoha atualmente têm tekoaruvicha, existindo estes em número limitado.
Além disso, a atividade social e religiosa desta importante figura, em alguns casos
parece haver mudado, acentuando sua mobilidade e participando ativamente dos
processos de recuperação de terras. A presença itinerante do tekoaruvicha passa a
exercer um papel bem diferente daquele que os índios atribuem para o passado distante,
quando ele detinha ao mesmo tempo o poder político e o religioso, mas também se
diferencia do descrito por Melià et al., pela amplitude de seu reconhecimento e
circulação em escala territorial.
Em segundo lugar, a cerimônia de iniciação masculina (mitã pepy, kunumi
pepy), em MS tem sido realizada em um único lugar, Panambizinho. A passagem para a
vida adulta entre os homens Kaiowa é marcada pela mudança da voz, na adolescência.
Com relação à importância do processo de formação da masculinidade, cabe informar
que as atividades de trabalho temporário realizadas fora dos tekoha, as changas,
passaram progressivamente a desempenhar semelhantes papéis (Thomaz de Almeida
2001, Mura 2000). Os conhecimentos adquiridos sobre o mundo dos não-índios, bem
como a construção de uma relativa independência econômica soem ser propedêuticos
para a formação de novos núcleos familiares. Tais conhecimentos serão postos à
disposição no interior dos grupos macro-familiares, onde serão julgados, hierarquizados
e socialmente distribuídos (Barth 1987, 1993, 2000, Mura 2000). Em relação aos rituais
de consagração do milho e das plantas novas, nem sempre eles são efetuados,
120
dependendo de muitos fatores, entre os quais um baixo nível de atividade agrícola ou a
falta de oficiantes especializados.
Em terceiro lugar, desde o início dos anos 80 as aty guasu no MS deixaram de
ser a assembléia exclusiva do tekoha (e, como se poderá ver, do tekoha guasu),
passando a constituir também um fórum de discussão entre membros de todas as áreas
kaiowa e ñandéva da região. Ultimamente, em virtude da debilitação da FUNAI a nível
local como organismo impositivo do Estado, os Guarani de MS têm podido
progressivamente apropiar-se de espaços substantivos da infraestrutura deste órgão. Isto
tem permitido a programação periódica das aty guasu, através da constituição de um
grupo permanente de índios, os quais, empoderados” de determinados saberes
burocráticos, desempenham papéis de mediação e informação para as comunidades
guarani do MS. A constituição de um ponto de referência permanente para as famílias
que demandam seus antigos tekoha parece ser muito importante para a organização dos
movimentos e sua compactação.
Como se pode observar, existem hoje muito mais elementos na organização do
território indígena do que apontam Melià et al. para a década de 1970 no Paraguai, e isto
contribui tanto para a continuada produção social do mesmo, quanto para a recuperação
de lugares antigos.
Em minha opinião, grande parte das limitações da definição oferecida por Melià
et al. está vinculada ao considerar-se o tekoha precisamente como a projeção de uma
unidade político-religiosa em um determinado espaço geográfico. Por tal razão, embora
mudem as características do contexto local, estrutura e função” permaneceriam,
segundo os autores, inalteradas. Assim sendo, estariam excluídos fatores de
ajustamentos devidos a uma confrontação entre diferentes critérios de entender, usar,
ocupar e dividir a superfície da terra, como a que se vêm determinando entre os Guarani
e os não-índios, onde as regras de acesso ao território são estabelecidas por instâncias
jurídicas ocidentais, num processo de dominação colonial
54
. Uma tentativa de superar as
limitações dessa definição de tekoha procede das argumentações de Pereira (1999 e
2004). Segundo este autor, seria oportuno desvincular a noção de tekoha do espaço,
54
Em um importante artigo pioneiro sobre o uso da terra na África, Bohanan (1967) colocava
em evidência as implicações da divisão cartesiana operada pelo Ocidente e que vinha se impondo através
da dominação colonial nos territórios nativos, alterando o acesso a este importante meio de subsistência.
121
procurando entender esta categoria sob uma ótica primordialmente político-religiosa,
considerando os assentamentos comunitários como efeito de circunstâncias e arranjos
históricos devidos ao relacionamento interétnico, fatos estes que, segundo ele, seriam
alheios à tradição político-religiosa indígena. Não obstante o fato de os índios
vincularem veementemente os tekoha a espaços específicos, ao procurar definir um
modelo de relação social kaiowa, Pereira passa a considerar este conceito mais como
categoria analítica do que nativa; assim fazendo, o autor acaba por exacerbar as
características a-históricas relevadas na definição de tekoha apresentada por Melià et al.
Indo em direção contrária às formulações deste autor, parece-me fundamental
considerar a o tekoha como uma unidade política, religiosa e territorial, onde este
último aspecto deve ser visto em virtude das características efetivas – materiais e
imateriais de acessibilidade ao espaço geográfico, e não de mera projeção de
concepções filosóficas pré-constituídas.
Sob este aspecto, a relação entre os Kaiowa e a terra ganha outro significado.
Enfatizando-se a noção de tekoha enquanto espaço que garantiria as condições ideais
para efetuar essa relação, os índios procuram reconquistar e reconstruir espaços
territoriais étnica e religiosamente exclusivos, a partir dessa relação umbilical que
entretêm com a terra (elemento que se sobressai das demandas fundiárias dos Kaiowa
do Mato Grosso do Sul), ao passo que flexibilizam e diversificam a organização das
famílias extensas. Desta forma, lhes é possível manter uma relação articulada e
dinâmica com o território mais ampliado, neste caso como espaço contínuo. Estes dois
movimentos, o primeiro exclusivo e o outro inclusivo, embora sejam, sem dúvida, fruto
das condições territoriais impostas pelo contato interétnico, articulam-se principalmente
a partir dos elementos centrais da tradição religiosa e da organização social dos Kaiowa,
encontrando ambos sua justificação nas exigências dos te’yi.
Analisando minimamente os dois aspectos, pode-se, por um lado, salientar o fato
de que o vínculo simbiótico entre os índios e a terra não é genérico, isto é, não existe
uma relação abstrata entre Kaiowa indiferenciados e um local também indiferenciado.
Muito pelo contrário, o que se estabelece é uma relação entre te’yi, que se vinculam
com lugares bem precisos, cuja interrupção da continuidade ocupacional pode provocar
a exaltação da noção de origem antiga (ymaguare), baseada no sentimento de
autoctonia.
122
A este propósito demonstram-se importantes algumas reflexões de Hirsch
(1995). Argumentando sobre imagem e representação na definição do “cenário”
(landscape) por parte dos grupos humanos (pp. 16-21), o autor inglês estabelece uma
importante distinção entre um paradigma cartesiano, que gera imagens preestabelecidas
do espaço, e outro vichiano (de Vico), que liga a percepção do mesmo a sentimentos.
Este segundo enfoque parece-me pertinente para descrever a construção indígena do
território, uma vez que permite relacionar elementos geográficos (simbólicos e
materiais) com sentimentos de luta e fatores emocionais/afetivos dos integrantes das
famílias extensas envolvidas nos conflitos fundiários. São justamente estes fatores que
levam os Kaiowa a produzir (quando as condições o permitem) um efeito circulação
(Thomaz de Almeida 2000). Como foi possível se observar nos casos dos te’yi de
Jaguapire, Jatayvary e Ñande Ru Marangatu, os índios procuraram se manter o mais
próximos possível dos lugares onde residiam seus antepassados, deslocando-se
circularmente em torno desses locais cada vez que eram expulsos ou importunados,
chegando ao ponto, nos três casos, de reivindicar esses espaços, organizando-se
politicamente para tal propósito. Circulando em torno dos lugares dos quais por alguma
razão foram afastados, os índios podem dar continuidade à manutenção do equilíbrio
cósmico, embora muitas vezes de modo fragmentário, reduzindo as próprias atividades
a algumas manifestações simbólicas, expressas pelas atividades ritualísticas, que
permitem minimamente a relação ctônica com a Terra (Yvy). Um afastamento radical
de todas as famílias dos espaços tradicionais, como os tentados pelas atividades
coloniais através do aldeamento compulsório, afetaria de modo extremamente negativo
esse tipo de vínculo. Daí decorrem as reivindicações fundiárias que os Kaiowa com
grande ênfase vêm manifestando nestas últimas décadas, reivindicações estas
extremamente precisas no tocante à vinculação direta entre famílias extensas e espaços
territoriais específicos
55
.
Neste sentido, os tekoha reivindicados representam a soma de espaços sob
jurisdição dos integrantes de determinadas famílias extensas, onde serão
estabelecidas relações políticas comunitárias e a partir dos quais esses sujeitos
55
A título de exemplo, ver a seguir os croquis 1 e 2, elaborados pelos próprios indígenas originários dos
lugares internos ao tekoha de Puelito Kue, na micro-bacia constituída pelo Rio Iguatemi (v. mapa VIII no
item 8.1).
123
poderão determinar laços de parentesco inter-comunitários numa região mais
ampliada.
Além disso, uma vez regularizados, sendo os tekoha terras da União
transformadas em unidades administrativas, os índios poderão e deverão estabelecer
relações interétnicas formais com representantes da esfera pública do Estado-Nação,
decorrendo daí a exaltação do papel de “capitão” como figura de intermediação, e da
figura dos professores e dos agentes de saúde indígenas, como depositários de saberes
burocráticos, decorrentes do nível de escolarização e de inserção nas instituições
implementadas pelos não-índios.
6.4 Dinâmica territorial e organização do te’yi
Complementarmente ao movimento que leva os índios a recortar da superfície da
terra espaços exclusivos, temos, como eu dizia, outro tipo de movimento, que procura
manter laços muito mais flexíveis a nível territorial. De fato, quando os espaços forem
demarcados como TI.s (Terras Indígenas), os integrantes das famílias extensas não
limitarão suas atividades apenas aos espaços internos ao tekoha, isto é, grande parte
deles dedicar-se-ão à changa nas fazendas das redondezas, estabelecerão,
possivelmente, bases nas cidades dos arredores, e se dirigir-se-ão às usinas de álcool.
Alguns te´yi, por sua vez, não constituirão moradia fixa na TI., preferindo viver perto de
rodovias e cidades. Estes fenômenos, diferentemente do que geralmente se pensa, não
são indicativos de um processo de mudança que levaria a descaracterizar a vida
indígena, tornando-a mais próxima à dos não-índios. Contrariamente, é esse processo de
diversificação das atividades desenvolvidas pelos índios – que permite o acesso a
conhecimentos também diversificados que justamente contribui para a organização
política das famílias extensas kaiowa a nível inter-comunitário, favorecendo a
recuperação das terras tradicionais. A fim de melhor ilustrar este fenômeno e sua
importância, é oportuno dedicar atenção à natureza do te´yi enquanto unidade
doméstica.
124
Croqui I
Tekoha de Puelito Kue
125
Croqui II
Tekoha de Puelito Kue
126
Como vimos com Susnik (1979-80, 1982), os integrantes de um te’yi residiam
antigamente sob um único teto, desenvolvendo atividades, em sua maior parte, em
conjunto, num meio ambiente ecologicamente constituído exclusivamente de matas e
campos naturais. Deste ambiente os índios obtinham os recursos para a própria
sustentação, a partir de equipamentos técnicos produzidos no seio da unidade
doméstica. As mudanças a nível territorial têm diversificado as fontes de recursos e sua
acessibilidade, mudança esta acompanhada pelos índios através de um processo
contínuo de adaptação da organização das famílias extensas às circunstâncias por elas
vividas. Neste processo foram produzidas diferentes formas de habitar e de organizar as
atividades domésticas. Para poder classificar e entender as características de cada uma
delas, são muito úteis as formulações propostas por Wilk (1984, 1997), na definição dos
diferentes tipos de households (unidades domésticas) entre os Kekchi Maia do Belize.
Este autor propõe definir as households dos Kekchi a partir das atividades de produção e
distribuição, mais do que a partir dos parâmetros de co-residência (Wilk & Netting,
1984).
O grupo que vive sob um único teto, Wilk propõe chamá-lo dwelling unit
(unidade habitacional), a qual em alguns casos não forma propriamente uma household.
Uma household composta por uma única unidade habitacional será definida independet
household (unidade doméstica independente), enquanto um aglomerado de unidades
habitacionais sob única direção formaria uma household cluster. Por sua vez, as
household cluster, observa o autor, podem ser de dois tipos, isto é, tight (restrita) e loose
(flexível) (Wilk 1984: 224-227). No primeiro caso, as atividades realizadas pelos
integrantes da household estariam vinculadas mais que tudo a um trabalho coletivo,
sendo que, no segundo caso, embora mantendo como objetivo beneficiar a família
extensa como um todo, as atividades podem ser muito diversificadas e desenvolvidas de
modo autônomo por cada unidade habitacional.
A classificação das unidades domésticas oferecida por Wilk centra-se sobretudo
nos aspectos econômicos e, portanto, a definição de household limita-se a salientar a
produção e a distribuição de bens materiais como fatores determinantes. Para enfrentar a
especificidade da realidade vivenciada pelos Kaiowa, me parece oportuno ampliar as
características que definiriam unidades domésticas como os te´yi incluindo aspectos
imateriais como conhecimentos, cargos e, especialmente, emoções e afetos. Para tal
127
propósito, além da produção e distribuição, resultam ser importantes também a
aquisição e a organização social de todos os elementos culturais e materiais à
disposição. Neste sentido, pode-se dizer que entre os Kaiowa os te’yi são os motores da
tradição de conhecimento e, assim, devem ser tomados como unidade analítica de base
para poder entender formas de organização política mais ampliadas, como as
comunitárias e inter-comunitárias. De fato, nos tekoha, fora dos espaços domésticos não
existem formas institucionais neutras ou autônomas. No caso das escolas, enfermarias e
bases logísticas da FUNAI que no complexo compõem o que se poderia definir a
“infra-estrutura do Posto” –, sem a administração de instituições da esfera pública do
Estado-Nação, por não constituírem bens de nenhuma família especificamente, estas
seriam abandonadas. Por outro lado, os benefícios que estas instituições oferecem aos
indígenas em termos de cargos e, sobretudo, salários, representam uma fonte
econômica, de conhecimentos e de acessibilidade política ao mundo dos não-índios,
considerados de grande valia por muitos Kaiowa.
Em se tendo como base da organização social indígena os te’yi, as três formas de
unidades domésticas propostas por Wilk (i.e., “independente”, “agregada restrita” e
“agregada flexível”) podem nos permitir entender o nível de projeção destes sobre o
território, e a complexidade das relações que estabelecem, seja com outros te’ yi seja
com os não-índios.
A primeira forma de household, isto é, “independente”, caracterizava a realidade
do passado, quando o te´yi vivia sob um único teto
56
(ver croqui III). Hoje esta forma é
muito rara, embora possa ser encontrada. Em território brasileiro, apesar de as oygusu
não serem mais utilizadas como casa comunal, existem casos de famílias extensas que
vivem sob o mesmo teto em construções com telhado e paredes separadas
57
. As formas
de unidades domésticas agregadas restritas e flexíveis são, sem dúvida, as que
constituem o panorama da grande maioria dos te’yi atuais, com uma tendência
generalizada a se assumir, de modo estável, a segunda opção (ver croqui IV). Falo de
tendência porque não necessariamente estas duas formas são alternativas uma em
56
Em território brasileiro, as últimas oygusu que hospedavam famílias extensas deixaram de ser
construídas com essa finalidade nos anos cinqüenta do século XX.
57
É o caso de situações onde existem fortes restrições territoriais e penúria de materiais, como nas
reservas densamente povoadas. Na quarta parte argumentarei mais detidamente sobre esta situação.
128
relação à outra, visto que em muitos casos podem elas constituir fases no processo
organizativo de cada te’yi.
Em alguns casos, a ênfase dada pelas famílias extensas às atividades agrícolas, à
caça e à pesca podem, em determinados períodos, limitar muito as atividades aos
espaços de própria jurisdição no tekoha, assumindo mais as características de tight
household cluster. Mas as necessidades exogâmicas e a lógica do guata (andança)
levam a manter elevada a mobilidade, estabelecendo-se alianças entre membros de
famílias residentes em diferentes tekoha, e propiciando o estabelecimento de relações de
trabalho nas fazendas das redondezas.
A forma loose household cluster, levando-se em conta a natureza variada de
recursos que o território oferece, parece ser a mais adapta às circunstâncias atuais
vividas pelos índios. De fato, as atividades de changa, a necessidade, em alguns casos,
de trabalhar nas usinas de álcool, assim como as relações que se estabelecem com os
organismos públicos, missionários e ONGs, levam os membros dos te´yi a diversificar
as atividades de cada uma das unidades habitacionais que os compõem a unidade
doméstica, com o objetivo de fortalecer suas organizações perante outros te’yi e também
com relação aos não-índios (aliados e não). Para alcançar estes objetivos, em casos
significativos temos a constituição de bases habitacionais em cidades das proximidades
das TIs., ou mudanças temporárias de famílias nucleares para fazendas das vizinhanças,
fato que amplia os espaços de distribuição das unidades habitacionais de um único te’yi,
transcendendo de muito os limites do próprio tekoha. Em outros casos se pode
verificar que te’yi inteiros prefiram residir por décadas nas margens de rodovias nas
proximidades de centros urbanos, sem por isto deixar de manter fortes relações com as
famílias do tekoha de origem.
Como se pode notar, a complexidade e a variedade de relações que os Kaiowa
estabelecem com os espaços territoriais não podem ser reduzidas a uma visão abstrata e
idealizada de instituições político-religiosas, a ser vinculada simplesmente a uma área
exclusiva denominada tekoha; estas relações configuram-se, como vimos, de modo
dinâmico, em áreas geográficas muito mais amplas, as quais, porém, como revelam
estudos feitos nas últimas décadas, não são ilimitadas.
Croqui III
Simulação de ocupação
territorial de um te’yi de três
gerações organizado como
unidade doméstica
independente.
5 0
10 0
0
mt.
Croqui IV
Simulação de ocupação
territorial de um te’yi de três
gerações organizado como
unidade doméstica agregada
(restrita ou flexível). A
residência no meio da imagem
representa a unidade
habitacional do tamõi; as
demais ilustram as dos
filhos(as) conjugados(as)
com ou sem prole.
Estes tipos de espaço territorial são pelos índios indicados como espaços de
antiga ocupação, denominados de tekoha guasu, onde se desenvolviam intensas relações
entre os te’yi que neles residiam.
6.5 - O tekoha guasu
Em termos espaciais, o tekoha guasu coincidiria com a unidade territorial dos
Guarani históricos por Susnik (1979-80) denominada de guára, a qual, conforme visto,
era uma unidade onde diversos te’yi-óga mantinham relações de parentescos e
realizavam alianças guerreiras. Sua característica principal era ser um território
contínuo, sem barreiras físicas, a jurisdição exclusiva sobre uma micro-região (ou parte
dela) construindo-se a partir de regras de parentesco e de alianças políticas, que
permitiam às famílias extensas escolher, a partir de um amplo leque de possibilidades,
os lugares que considerassem mais apropriados para assentar-se e, a partir destes,
projetar-se no território para desenvolver suas atividades. Em sentido positivo, os
limites do guára eram determinados pela projeção geográfica dos assentamentos e das
atividades desenvolvidas por todas essas famílias extensas que eram entre elas aliadas e,
geralmente, com uma orientação religiosa comum. Por outro lado, os limites territoriais
do guára dependiam também de fatores negativos, devidos a inimizades com as famílias
de guára vizinhos ou com outros grupos étnicos confinantes. Considerando as
características distributivas dos te’yi sobre o espaço territorial, distanciando-se estes
entre si dezenas de quilômetros, no interior dos guára as áreas destinadas à exploração
comum eram de considerável dimensão. Assim sendo, na região onde se constituía esse
território, não se fazia necessário tornar exclusivos boa parte dos espaços e seus
recursos.
Atualmente a situação mostra-se bastante diversa. Como argumentado, a
maior parte dessa superfície geográfica, tendo sido apropriada pelos não-índios, não
permite mais aos Kaiowa constituírem espaços exclusivos para assentar as famílias
extensas, nem manter o controle sobre os recursos naturais, fato que cria significativas
dificuldades ao desenvolvimento de suas atividades tecno-econômicas e religiosas
58
. É
58
Os te’yi que ainda hoje vivem em fazendas ou nas periferias das cidades e que mantêm laços
tênues com os espaços exclusivos nas áreas indígenas encontram-se fragilizados até mesmo na
reprodução da própria organização familiar. Isto ocorre porque as unidades habitacionais que compõem
132
justamente perante estas dificuldades impostas pelo contato interétnico com os não-
índios que os Kaiowa hoje, além de reivindicar como exclusivos os espaços onde
estavam antigamente assentados os antepassados, procuram sempre em maior proporção
recuperar também partes significativas dos espaços de caça, pesca e coleta fundamentais
para o desenvolvimento de suas atividades, incorporando-os nos limites dos tekoha, e
assim tornando-os etnicamente exclusivos.
O elemento étnico componente nova nas configurações espaciais indígenas
tem-se demonstrado extremamente significativo para nortear as demandas indígenas,
isto se baseando na reconstrução do território que recorre à memória do passado
elaborada pelo grupo. Assim, todo um conjunto de recordações e narrações que
permitem aos índios ir constituindo, num continuado processo de elaboração cultural,
uma espécie de mapa espaço-temporal que os ajuda a configurar as demandas atuais.
Neste conjunto, destacam-se as recordações das moradias dos antepassados, dos locais
onde aconteciam festas sagradas e profanas (determinando os ko arasa, circuitos de
visitação mútua entre famílias que podiam proceder de diversos tekoha), as narrações de
experiências de caçadas coletivas, de encontro com animais e seres perigosos (por
exemplo, as onças, que desempenham também importante papel no espaço-tempo das
origens, e os personagens das florestas, como a malavisión, kurupy e jaguarete ava), de
encontro com espíritos nocivos (mãetirõ, anguéry e añã), de locais onde moravam
xamãs prestigiosos, que com suas ações podiam manipular os elementos da natureza
tornando-os vantajosos para a própria comunidade, ou catastrófico para os inimigos
(aplacar ou provocar tempestades, produzir do próprio corpo as mais diversas sementes
para propiciar os cultivos, realizar viagens ao além, etc.), de lugares onde aconteceram
eventos excepcionais produzidos pelas divindades, assim como de experiências de
trabalho nos ervais e nas fazendas.
O resultado desses mapeamentos e elaborações indígenas são justamente os
tekoha guasu, que, sob este aspecto, se apresentam como “territórios-memória”. Por
outro lado, sendo o tekoha guasu uma categoria definida em função das exigências do
uma unidade doméstica não têm acesso constante a espaços exclusivos que sirvam como eixo para
garantir o desenvolvimento das próprias atividades. Com efeito, ocorre que as famílias indígenas muitas
vezes ficam reféns das exigências dos fazendeiros que as “hospedaria”, sendo sujeitas a freqüentes
expulsões, com conseqüente dispersão de seus membros, o que interfere negativamente na instauração de
uma específica lógica de cooperação.
133
presente, todos os elementos citados formam uma bagagem de conhecimentos que,
organizados socialmente, norteiam a historicidade indígena e participam da
configuração do território contemporâneo, segundo a perspectiva dos Kaiowa. Levando
em conta o fato de que ainda hoje a construção de alianças baseia-se nas relações de
parentesco, que superam os limites comunitários, mas que se mantêm circunscritas aos
lugares de maior perambulação e conhecimento, os tekoha guasu contemporâneos são
territórios onde os índios articulam dinamicamente espaços familiar e etnicamente
exclusivos (os tekoha), com aqueles inclusivos (as beiras de estrada, as fazendas e as
cidades). A tendência histórica nessa articulação é reconstituir cada vez mais espaços
familiar e etnicamente exclusivos o que na historicidade kaiowa quer dizer afastar o
máximo possível o risco de eventos cataclísmicos, que acabariam com a humanidade.
Isto porque, segundo o “modo de ser” desses indígenas (teko), nos dias de hoje são estes
tipos de espaços os que podem com maior adequação tornar cada vez melhor o
relacionamento simbiótico com a Terra (Yvy).
Para melhor ilustrar este tipo de dinâmica territorial, podemos recorrer a um
exemplo. Se tomarmos em consideração o tekoha guasu constituído na bacia do rio
Apa
59
, conforme o mapa anteriormente apresentado, poder-se-á notar que os limites do
tekoha de Pirakua desenham uma superfície bem inferior com relação às de Kokue’i e
Ñande Ru Marangatu (respectivamente 2380 ha, 7500 ha e 9317 ha). Isso não é devido
a uma diferença populacional entre o primeiro e os últimos dois, mas às condições
históricas em meio às quais ocorreram as identificações oficiais dessas TI.s. No caso de
Pirakua, o levantamento foi realizado em 1985, enquanto que Ñande Ru Marangatu é de
1999, sendo que o de Kokue’i está ainda em andamento. Para o primeiro caso, os índios
hoje declaram que este tekoha era bem mais amplo, estendendo-se até Mbakaiowa,
Sivyrando, Dama Kue e Kokue’i. Foi a luta extenuante pela terra tradicionalmente
ocupada, buscando o reconhecimento oficial do Estado perante tentativas de expulsão
desses espaços por parte de fazendeiros, que levou os índios a definir e configurar o que
hoje se apresenta politicamente como a “comunidade de Pirakua”, com fronteiras
territoriais bem precisas. De fato, levando-se em conta as informações sobre essas
59
Refiro-me, portanto, aos Kaiowa que podem ser definidos como Apapegua. O sufixo “gua”
assim como o “guára” registrado por Montoya (1876) tem o significado de “proceder de”, sendo que,
neste caso específico, os índios procedem de um espaço geográfico desenhado pelo rio Apa e seus
afluentes.
134
regiões nos anos 70 apresentadas por Melià et al. no trecho anteriormente citado –,
pode-se notar que Pirakua, Kokue’i e Sivyrando não constam na lista das localidades
referidas pelos autores. Não penso que isto seja devido a uma falha etnográfica, mas a
uma diferença de ênfase simbólica atribuída pelos índios em diferentes momentos
históricos às localidades por eles ocupadas.
Neste sentido, parecem-me apropriadas as considerações feitas por Bensa
tratando dos Kanak da Nova Caledônia. O autor francês (1996) demonstra como a
toponímia dessa ilha da melanésia está fortemente vinculada à construção histórica das
genealogias clânicas dos Kanak que remetem, por sua vez, aos ancestrais desse povo:
Los recorridos memorizan, de sitio en sitio, una migración que de hecho
refuerza el lazo genealógico al unir a los miembros de la unidad de parientes con su
ancestro fundador. El espacio por sus lugares nombrados que convendría
cartografiar consigna una grande historia familiar siempre susceptible de
extenderse de nuevo a partir de las últimas viviendas ocupadas. En torno de estos
“monumentos”, restos tangibles de la antigua presencia de los ancestros y de los
hombres, se piensa y se reactualiza – con una simple mirada – la identidad actual del
grupo” (Bensa s.d: 3).
Assim, a relação com o espaço estabeleceria uma hierarquia de grupos onde a
ordem de chegada em um determinado local, fundamentada pela relação com um
específico ancestral autóctone, outorgaria aos habitantes mais antigos uma posição
privilegiada. Pode-se traçar um significativo paralelo entre o exposto por Bensa sobre os
Kanak e a relação estabelecida com o território por parte dos Guarani do Mato Grosso
do Sul e do Paraguai Oriental, que também produzem uma significativa toponímia. A
experiência de vida de um conjunto de famílias num determinado lugar permite que se
estabeleça uma marca no espaço que possa servir como ponto de referência para outras
famílias com as quais direta ou indiretamente se está vinculado. Geralmente, quando o
topônimo utilizado não se refere a uma marca da paisagem, pode assumir o nome de
uma importante personagem do passado. Neste caso a partícula kue” estará a indicar
justamente o fato de que um determinado lugar “era” ocupado por alguém (por
exemplo, Galino Kue, que indica o espaço onde vivia Galino importante xamã de
Sassoró – junto com seus familiares e aliados políticos). O que resulta ser significativo é
que não acontece o contrário, isto é, um lugar não pode ser denominado com o nome
das pessoas que aí habitam no presente.
135
Esta diferença entre um lugar humanizado atual e outro que o era no passado
parece ser central para compreender como um determinado espaço se define como
espaço sócio-político a partir de um conjunto de marcas que podem ser utilizadas
simbolicamente em uma disputa entre famílias antagônicas. Identificar uma região
através de um topônimo que remete a uma passada e específica ocupação humana pode
permitir, a partir da construção social de uma distância temporal, dois diferentes usos
dos símbolos geográficos produzidos. Por um lado, para que estes possam ser
reconhecidos por todos, devem ser suficientemente “naturalizados”, procurando-se
amenizar as conotações políticas a eles associadas (efeito produzido através do uso da
partícula kue”). Por outro lado, no momento em que um determinado espaço começa a
ser disputado, o fato de ter sido habitado no passado pode readquirir fortes implicações
políticas no presente, as marcas geográficas passando a ser reivindicadas por grupos
antagônicos, como sendo legitimamente ligadas à própria história familiar. De tal forma,
os símbolos espaciais tanto aqueles “naturais” quanto os “naturalizados” não
constituem meros mapas topográficos, mas mapas geográfico-experienciais.
Tornando às configurações político-territoriais da bacia do rio Apa, podemos
pensar que provavelmente na época em que Melià et al. realizaram o levantamento
etnográfico, os índios não se haviam organizado a nível local nas modalidades como
vemos hoje. Nestes termos, os topônimos que atualmente são extremamente valorizados
pelos indígenas, antes constituíam meramente uns das tantas marcas no mapa
geográfico-experiencial produzido durante numerosas décadas por esses Kaiowa
60
.
Os pontos geográficos internos ao tekoha guasu têm de ser entendidos, em
primeiro lugar, como eixos simbólicos a partir dos quais se articulam espaços de
jurisdição das famílias extensas, relacionadas estas em redes de parentesco, conforme a
morfologia social do grupo como referido. Sendo a mobilidade das famílias
nucleares, e mesmo das famílias extensas, muito alta dentro desse território, ocorre que
em diferentes momentos históricos podemos encontrar articulações políticas locais
também diferentes. O sentimento de pertencimento a um determinado espaço geográfico
é de se atribuir principalmente a um jogo de relações baseadas numa hierarquia de
60
Pirakua significa toca de peixe, Sivyrando um tipo de palmeira que abundava na localidade
homônima, e Kokue'i, pequena roça, todos elementos gerados pelas experiências baseadas em atividades
tecno-econômicas.
136
vínculos socialmente organizados entre pessoas e entre estas e os elementos do Cosmo.
Os Kaiowa reputam que os indivíduos integrantes de uma família extensa se “apóiam”
(ojeko) na figura de seu líder o tamõi (avô), a jari (avó), ou ambos, estes últimos
tornando-se jekoha (suportes) do grupo macro-familiar. Por sua vez, o tamõi e a jari
relacionam-se com a Terra (Yvy), “apoiando-se” em um lugar escolhido como de
própria jurisdição, onde se pode desenvolver plenamente seu modo de ser (teko).
Finalmente, como vimos no início, a Terra encontra seu suporte em uma cruz (kurusu
ojekoha). Cabe observar que na ausência de limites físicos no espaço geográfico, este
jogo hierárquico de relações entre eixos de articulação sócio-político-territorial pode ser
reproduzido em cada local onde as famílias se assentem
61
.
A negação dessa possibilidade de escolha devido à intervenção neocolonial
conduz a uma exaltação do valor da relação de apoio entre o líder da família extensa e o
lugar do qual foi obrigado a se afastar, mudando a natureza simbólica dos eixos
geográficos internos ao tekoha guasu. As configurações políticas existentes nesses
territórios não necessariamente correspondem às que se determinaram no momento da
demanda por terra. Deste modo, as famílias mais prestigiosas e mais aguerridas na luta
pela recuperação ou pela defesa dos espaços tradicionais, relacionadas
genealogicamente com um determinado local, terão prioridade na nomeação do tekoha
que será configurado, nomeação esta que na maioria dos casos deriva dos topônimos
desse local. Assim, temos hoje uma série de lugares que progressivamente têm vindo à
tona, adquirindo significados bem precisos para os índios, como espaços destinados a
ser recuperados num marco político de referência atual. Sivyrando, por exemplo, até
não muito tempo atrás desconsiderado nas demandas dos índios sendo que a maioria
das famílias que aí habitavam foi dizimada por epidemias de varíola e outras doenças na
década de 1950 (v. Brand 1997) –, é hoje objeto corriqueiro de lembrança. Algumas
pessoas originárias desse lugar, e que d saíram quando jovens para se integrar nos
espaços de jurisdição das famílias de Pirakua e Ñande Ru Marangatu, sendo atualmente
chefes de famílias extensas, potencialmente encontram-se na condição de reivindicar
61
Neste sentido, como bem ilustra Atanás Teixeira talvez o mais reconhecido tekoaruvicha
kaiowa existente atualmente no Brasil –, desde o rio Paraguai até o rio Paraná, tudo era tekoha. Com isto
o xamã coloca em evidência a continuidade territorial que existia entre um assentamento e outro, sendo
todos esses espaços aptos para a realização do próprio modo de ser.
137
esses espaços, podendo reconfigurar, uma vez mais, a realidade política do tekoha
guasu de referência.
Estas dinâmicas territoriais aqui expostas não se limitam aos Apapegua. Estudos
mais recentes, que venho realizando junto com outros colegas
62
, sobre os tekoha guasu
situados em cinco sub-bacias hidrográficas presentes no Cone Sul do Mato Grosso do
Sul (dos rios Apa, Brilhante-Ivinheima, Dourados, Amambai e Iguatemi), confirmam
plenamente este tipo de processo histórico. Com relação aos territórios paî-tavyterã,
localizados no lado paraguaio da fronteira, recentemente Lehner (2002), em
levantamento realizado para a ONG Servicios Profesionales Socio-Antropológicos y
Jurídicos, embora partindo de uma perspectiva diferente
63
, também está reconstruindo
os tekoha guasu, os resultados desse mapeamento sendo ilustrados em um mapa.
Finalizando este capítulo, para que o leitor tenha uma panorâmica da
distribuição geográfica destes territórios em ambos os lados da fronteira, a seguir
apresento o referido mapa de Lehner (mapa VI) e outro elaborado por mim (mapa VII),
que ilustra os tekoha guasu no lado brasileiro. É importante de se levar em conta o fato
de que estes territórios estão ainda em estudo; para alguns se dispondo de informações
suficientemente claras sobre dinâmicas internas e suas extensões, como os dos
Apapegua e Iguatemipegua; sobre os tekoha guasu dos rios Dourados, Brilhante-
Ivinheima e Alto Amambai, os dados são mais parcos, não permitindo ainda uma
elaboração dos processos que neles ocorrem, indicando, porém, suas prováveis
dimensões espaciais. Finalmente, sobre o do Médio Dourados-Amambai, disponho de
pouco conhecimento, o indicado no mapa correspondendo apenas a uma suposição.
62
Alexandra Barbosa da Silva e Rubem F. Thomaz de Almeida.
63
Considerando os tekoha como unidades político-territoriais instáveis, a autora procura reconstruir o
espaço do tekoha guasu supondo que no passado teria existido a figura de um líder político-religioso
forte, que articulava os grupos locais em um território amplo. Deste modo, Lehner não foge do clássico
entendimento da organização territorial como expressão de um cacicado, sem perceber que a instabilidade
por ela descrita para a unidade do tekoha é constitutiva das relações comunitárias e intercomunitárias
como veremos no próximo capítulo.
Mapa VI
139
Brilhante-Ivinheima
Apa
Alto-Médio Dourados
Médio Dourados-Amambai
Alto Amambai
Iguatemi
Mapa VII
Tekoha Guasu no Brasil
Capítulo VII
Organização política
Foi possível ver aqui que a dinâmica territorial entre os Guarani de Mato Grosso
do Sul não pode ser entendida fora de um quadro de referência que contemple tanto as
situações históricas pelas quais passaram estes índios, quanto os contextos sócio-
ecológico-territoriais onde estavam e/ou estão inseridos. Cabe observar que, em se
tratando de processos históricos ocorridos em situações assimétricas de dominação
colonial com os Kaiowa e os Ñandéva submetidos ao exercício do poder do Estado-
nação brasileiro –, a construção dos territórios indígenas se ressente muito dos fatores
que estas comportam, as estratégias políticas sendo parte constitutiva da construção da
territorialidade destes Guarani. Não é, portanto, possível se separar a organização
política indígena (e suas transformações) da dinâmica territorial. Sem perder de vista
estas advertências, a seguir procurarei analisar cargos, alianças, conflitos e lógicas de
construção comunitária e intercomunitária.
7.1 O te’yi e a construção da comunidade política
Conforme visto até agora, podemos considerar a família extensa como elemento
central na organização social, política, religiosa e tecno-econômica dos Kaiowa. Como
foi repetidamente afirmado, é a partir desta instituição que se configuram todas as
relações sócio-políticas destes índios. Gostaria, portanto, neste item, de aprofundar os
mecanismos de construção de “comunidades” entre os Kaiowa, salientando o fato de
que estas se determinam essencialmente a partir da aliança entre um conjunto de te’yi.
As situações históricas e os contextos sócio-ecológico-territoriais em que estas relações
se estabelecem são fundamentais para entender amplitudes, profundidades, simetrias,
assimetrias, estabilidades e instabilidades das configurações comunitárias, oferecendo-
nos uma imagem dinâmica do fenômeno. Nesses termos, a seguir, deter-me-ei
amplamente sobre princípios de organização social e política, mostrando o quanto as
possibilidades de acesso e controle dos espaços territoriais são importantes para a
construção, manutenção e/ou desmantelamento das comunidades políticas dos Kaiowa,
bem como para a produção e variação de regras de parentesco.
141
Foi aqui visto que a família extensa, enquanto grupo social básico e indivisível, é
composta por três gerações, tendo como eixo de articulação os avôs e/ou avós (tamõi e
jari), principais responsáveis pela educação moral, religiosa e prática das crianças,
representando o ponto de referência para todos os integrantes dessa unidade sociológica.
O movimento genealógico e a integração de cônjuges através de práticas exogâmicas e
de uma lógica bilateral na organização das relações de parentesco dos Kaiowa leva os
te’yi a ampliarem a órbita dos integrantes em torno deste referido eixo.
A tendência dos líderes das famílias extensas é a de manter tanto quanto possível
unida a maior parte de seus filhos, de ambos os sexos, no espaço territorial de sua
jurisdição, embora aspectos normativos indiquem a necessidade moral de reter as filhas,
exportando os filhos. Esta contradição, porém, é aparente, necessitando-se de mais
detalhes para se chegar a uma compreensão adequada dos mecanismos de construção
das relações familiares e comunitárias.
Em primeiro lugar, vejamos os aspectos organizativos conseqüentes da aplicação
dessa referida regra. Fica evidente que ela favorece a integração de indivíduos
masculinos, permitindo, assim, o estabelecimento de dois distintos vínculos que
sujeitam os novos membros do te’yi: aquele entre sogro-genro (ratyu-rajyme)
64
e aquele
entre cunhados (rovaja). Embora o primeiro destes vínculos seja o mais relevante, pela
característica hierárquica que subordina moral e politicamente o genro às necessidades
de sua nova família, que se levar em conta que a lógica de cooperação (teko joja) e
de apoio mútuo (mbojeko), que permite ao te’yi articular-se, solidificar-se e,
eventualmente, ampliar-se, faz da relação entre cunhados um importante meio na
construção e manutenção do grupo macro-familiar. Ademais, do ponto de vista da
transmissão de conhecimentos ligados ao mundo feminino e sua subordinação a um
quadro moral seguido pela família, a norma garante à esposa ainda inexperiente uma
relação privilegiada com uma pluralidade de mulheres consangüíneas de maior
proximidade como sua mãe e tias uterinas, bem como suas irmãs genéticas e
classificatórias (primas paralelas).
64
Para uma visão ampla da terminologia de parentesco entre estes índios, ver Melet al. 1976: 224-27 e
L. Pereira 1999.
142
Nestes termos, a regra representa um fator positivo na construção de unidades
sociais básicas. Ela permite também uma distribuição equilibrada e simétrica dos
sujeitos entre os te’yi aliados, contrastando a força centrípeta exercida pelos chefes de
cada um deles na tentativa de reter todos seus filhos e filhas nos espaços de jurisdição
de suas famílias.
Por outro lado, deve-se observar que raramente se dão as condições para o
estabelecimento de uma simetria perfeita na organização comunitária dos Kaiowa. De
fato, uma determinada família sempre prevalece sobre as outras, constituindo-se como
motor e centro da articulação das alianças políticas. Mas para que isto acorra, as
possibilidades podem ser duas: ou se transgride a norma, lesando seu caráter prescritivo,
ou esta fica associada a normas complementares, que contemplam casos excepcionais
ou diferenciados. Hoje em dia os Kaiowa optam por esta segunda opção, estabelecendo
que a residência pós-marital de uma mulher que teve experiência de divórcio pode ser
bilocal. Assim, fica evidente que, nestas ocasiões, se a família extensa do marido
possuir maior prestígio, melhores condições de acesso ao território e a seus recursos
(materiais e imateriais) e/ou oferecer ao casal uma melhor acolhida emocional/afetiva, a
escolha da residência poderá ser virilocal, e não obrigatoriamente uxorilocal, como
estabelece a regra para o primeiro casamento da mulher
65
. Em termos históricos, não se
pode saber se a segunda regra aqui descrita veio a complementar a primeira após a
ocorrência de transgressões, ou seja, se ela foi destinada a regulamentar exceções. O que
efetivamente se constata hoje é que, uma vez alcançada a idade adulta (após a primeira
menstruação, no caso da mulher, e da mudança de voz, no caso dos homens), os Kaiowa
de ambos os sexos passam por várias experiências matrimoniais, indicando o fato de
que a segunda norma aqui analisada (isto é, a bilocalidade na opção residencial) refere-
se à maioria dos casos, e não apenas a algumas exceções.
Com base nas observações morais feitas pelas pessoas idosas, poder-se-ia pensar
que o fenômeno dos divórcios como um fato corriqueiro é relativo a tempos recentes.
Isto porque quase invariavelmente os indivíduos referem-se ao passado (quando eram
jovens) como sendo caracterizado por uma forte estabilidade matrimonial uma vez
que os casamentos eram combinados pelos relativos chefes de famílias extensas,
65
Com relação específicamente ao papel jogado pelo prestígio nas escolhas da localidade post marital, ver
também Melià et al. 1976: 220.
143
mantendo-se sobre os novos cônjuges um férreo controle, seja com relação a seus
comportamentos, seja a respeito de seus deslocamentos e relações públicas
66
. Neste
sentido, os índios consideram o divórcio de modo negativo, atribuindo este
comportamento a tempos recentes, os jovens não estando mais devidamente respeitando
as indicações dos próprios pais. Porém, os dados à disposição procedentes
principalmente de identificações de terras indígenas (Mura & Thomaz de Almeida
2002), levantamentos preliminares (Barbosa da Silva 2005) e perícias judiciais (Mura
2002) –, demonstram claramente que a instabilidade matrimonial entre os Kaiowa e
Ñandéva de Mato Grosso do Sul é muito mais antiga do que os próprios indígenas
declaram. Efetivamente, as críticas feitas aos jovens pelos idosos hoje na posição de
tamõi ou jari podem ser bem aplicadas a eles próprios, visto que, na grande maioria
dos casos, vivenciaram eles mais de um matrimônio. Portanto, parece-me inoportuno
associar este fenômeno à determinação de eventuais anomias sociais, como os
depoimentos indígenas poderiam deixar entender.
O fato de que a ocorrência de divórcios data de tempos passados permite
também levantar a suspeita sobre a própria existência de uma época em que teria
existido uma relação totalmente simétrica entre os te’yi aliados. A meu ver, é muito
mais provável que as normas relativas ao primeiro casamento [da noiva] tenham sido
introduzidas para regulamentar uma flexibilidade conjugal preexistente, derivante de um
sistema anterior, não baseado na matrilocalidade e na monogamia. Com efeito, como as
fontes apontam
67
, os Guarani históricos eram polígamos, o que indica que as relações
66
Os Kaiowa indicam que durante o período em que todos os membros do te’yi residiam juntos
sob um único teto o status de casados era alcançado quando o novo casal dormia pela primeira vez juntos
na rede, realizando a primeira experiência sexual. Isto acontecia na presença dos outros membros da
família, existindo como único elemento de privacidade a cobertura dos corpos com um pano. Os índios
alegam que os casamentos eram combinados entre as mães dos cônjuges, tendo o novo marido que prestar
o serviço da noiva, trabalhando junto com seu sogro na roça e participando das atividades de caça, pesca e
coleta de materiais. A vida pública de todos os indivíduos era, portanto, muito controlada pelos líderes
das famílias extensas, especialmente durante a participação nas atividades festivas (rituais religiosos e
danças profanas), quando os jovens de distintos te’yi entravam em contato. Cabe observar que muitos
destes comportamentos foram mantidos após o abandono das oygusu. Hoje o controle dos tamõi e das jari
não é tão intenso como declaram ter sido antes, existindo condições sociais diferentes com relação ao
passado, visto que os jovens indígenas conseguem se encontrar em espaços públicos longe do olhar dos
adultos como nas escolas, cidades e fazendas. Tudo isto, se por um lado tem acarretado conflitos
intergeracionais, por outro produziu como efeito uma certa flexibilização, deixando às pessoas maior
liberdade na escolha de seu parceiro (ou parceira).
67
Montoya 1985 [1639], carta de Jesuíta anônimo datada de 1620 (MCA, Vol. I, 1951: 166-168), entre
outras.
144
entre as famílias extensas que compunham um grupo local
68
eram necessariamente
assimétricas, visto que nem todos os indivíduos adultos tinham acesso a um grande
número de mulheres. Como descreve Susnik (1979-80), as relações exteriores de aliança
eram realizadas através de cunhadismo, com a exportação de sujeitos de sexo feminino
e a escolha da residência pós-marital sendo de tipo patrilocal de modo contrário às
normas atuais.
que se observar que também pode ter existido, contemporaneamente a esse
sistema virilocal, a prática do avunculato e de casamentos entre primos cruzados (patri e
matrilateral), como foi amplamente documentado para os Tupinambá (Fernandes, F.
1963: 214-23) e como é registrado para alguns grupos tupi contemporâneos (Fausto
1995). Entre os atuais Kaiowa, tais opções matrimoniais são moralmente reprovadas.
Segundo Watson (1952: 33 e 118), porém, existiriam vestígios que indicariam sua
prática no passado, equiparando-os aos tupi coloniais
69
. Em sendo isto comprovado,
poderíamos ter uma explicação plausível do porquê da passagem de um sistema
prevalentemente patrilocal para outro bilocal. De fato, a procura constante de prestígio
poderia levar um tamõi mais opulento a querer manter a maioria de seus filhos (de
ambos os sexos) em seu te’yi, fato que poderia ser favorecido pelo avunculato e o
matrimônio entre primos cruzados, que garantem uma maior integração de parentes
consangüíneos (v. diagrama I), dando maior estabilidade à família extensa por ele
liderada. Neste sentido, estas práticas poderiam ter favorecido também formas
assimétricas de relacionamento entre te’yi, que desta vez, diferentemente dos
desequilíbrios provocados pela presença da poliginia (centrada na patrilocalidade), as
assimetrias seriam produzidas através da introdução de critérios matrilocais de
residência, paralelos à virilocalidade em vigor.
68
O trecho do jesuíta anônimo, datado de 1620 citado no primeiro capítulo –, descreve este tipo
de organização.
69
Também Melià et al. (1976: 254-55) são deste parecer, acrescentando a possibilidade de ter ocorrido
também casamentos, sendo ego masculino, com a irmã do pai.
145
Diagrama I
Relação simétrica entre te’yi em
um sistema patrilocal com matrimônio
preferencial avuncular e (sendo ego
masculino) entre primos cruzados
Relação assimétrica entre te’yi
em um sistema patrilocal, com
matrimônio preferencial avuncular e
(sendo ego masculino) entre primos
(A)
(B)
146
O desmantelamento do sistema de relações baseado no binômio antropofagia-poligamia
pode ter ocorrido devido a fatos históricos que levaram os índios a perderem o controle
territorial do ponto de vista bélico. Neste sentido, a impossibilidade de capturar
mulheres pode ter impedido a construção de grandes haréns, contribuindo para o
nivelamento das assimetrias sociais internas ao grupo. Visto que hoje os Kaiowa
consideram-se monogâmicos embora existam casos isolados, mas significativos de
poliginia
70
–, tudo indica que critérios mais simétricos de acesso às mulheres teriam sido
introduzidos no período colonial. Para esses casos de poliginia, observa-se que a
reprovação moral não chega a ser taxativa e prescritiva; os indivíduos masculinos que
conseguem ter simultaneamente mais de uma mulher passam a ser objeto de fofocas,
mas também de inveja, adquirindo um claro prestígio. Fica evidente, no entanto, que
não é através deste mecanismo que são construídas as alianças, permanecendo eles,
portanto, casos isolados.
O que aqui se pretende colocar em evidência é o fato que a ausência da
poligamia não é devida a uma mudança estrutural (que normatizaria a monogamia), mas
à falta de condições para sua efetivação
71
. Sob este prisma, poderia ser levantada a
hipótese de que após a dissolução do sistema poligâmico, a flexibilidade matrimonial
pode ter-se mantido, garantindo, em alguns casos, a indivíduos prestigiosos, uma maior
integração de sujeitos consangüíneos em seu te’yi desta feita através de uma lógica
bilocal de residência. Observe-se que tal fato responderia às necessidades centrípetas
anteriormente explicitadas. Vejamos em que sentido.
Um indivíduo adulto, alcançando o status de tamõi ou de jari e tendo passado
por diversos casamentos, poderá manter (ou, em um segundo momento, recrutar) a
maior parte de seus filhos de ambos os sexos, fruto de suas diversas relações conjugais,
no espaço de sua jurisdição. Em alguns casos, poderá também manter geograficamente
próximas(os) a si, mulheres (homens) das (dos) quais se havia divorciado, cujo elo
70
Na maioria dos casos trata-se de poliginia sororal, o homem casando-se com duas irmãs. Melià
et al (1976: 255) relatam que em cinco casos de poligamia por eles conhecidos, três eram justamente
deste tipo. É também comum, porém, que um homem contraia matrimônio contemporaneamente com
uma mulher viúva (ou divorciada) e uma filha desta em idade de casamento.
71
O papel jogado pelos elementos emocional/afetivos, como inveja e ciúmes, é, em meu entender,
sumamente importante e coadjuvante dos jogos políticos que tendem continuamente entre os Kaiowa a
desestabilizar todo processo de concentração de poder e prestígio nas mãos de poucos, e historicamente
pode ter pesado muito na determinação dos fatores reguladores das relações conjugais.
147
atual, do ponto de vista das relações comunitárias, seria estabelecido através da prole
em comum
72
. Neste sentido, a flexibilidade conjugal se demonstra um excelente
instrumento para o agrupamento de consangüíneos, reproduzindo (embora parcialmente,
quando o sujeito prestigioso for do sexo masculino) os efeitos tidos com o sistema
poligâmico. A diferença substancial com relação a este sistema se deveria ao fato de a
integração das mulheres ocorrer não simultaneamente, mas sequencialmente. Um caso
análogo pode ser observado através do comportamento de alguns xamãs de grande
prestígio, os quais têm a reputação de ter contraído um grande número de casamentos
durante suas vidas, e em lugares distintos, disseminando sua prole em um vasto
território
73
.
que se considerar, porém, que, baseando-se na bilateralidade, atualmente o
sistema de parentesco permite a integração dos membros consangüíneos em torno a um
jekoha (suporte) feminino, constituído por uma jari. Isto hoje não representa somente
uma possibilidade, visto que em muitos casos grupos políticos construídos deste
modo. A forte presença de jari (muitas vezes jari guasu) como jekoha de referência na
construção de grupos locais nos reconduz à lógica da norma do primeiro casamento,
desta vez com a introdução de duas variáveis fundamentais: a relação com a terra e o
sentimento de autoctonia.
No processo de recuperação de um acesso exclusivo a parte significativa de seus
territórios nas últimas décadas, a exaltação dos lugares de origem levou, em muitos
casos, os Kaiowa a reconstruir suas comunidades políticas a partir da memória de um
antepassado comum masculino (geralmente um líder político), mas cujos descendentes
diretos mais antigos que mantiveram uma relação com esse lugar são do sexo feminino.
Neste sentido, de um ponto de vista probabilístico, a uxorilocalidade prescrita para o
primeiro matrimônio pode permitir uma maior permanência de sujeitos femininos em
um determinado lugar, passando este a ser considerado simbolicamente, pelos te’yi, para
a construção de um sentimento de autoctonia.
72
Um exemplo disso é o caso de Francisco Benites, de Jaguapire (ver o diagrama III e o croqui V, no
próximo capítulo).
73
Atanás Teixeira seria um destes xamãs, os Kaiowa afirmando que teria ele contraído mais de
trinta casamentos até hoje. Embora este número possa ser exagerado para amplificar os efeitos de sua
excepcionalidade, não cabe dúvida sobre a ocorrência deste fenômeno.
148
As considerações feitas até aqui levaram em conta as relações possíveis entre
te’yi constituídos por três gerações, isto é, foram tomados como pontos de referência os
tamõi e as jari. Isto porque, em um primeiro momento, se queria destacar as relações
entre as famílias extensas enquanto unidades sociológicas mínimas e indivisíveis.
Tomando-as em consideração como sendo todas constituídas por três gerações,
pretendia-se salientar também o fato de cada te’yi ter formalmente as mesmas condições
de base dos seus aliados, seja em número de seus integrantes, seja em normas de
relacionamento que permitem uma distribuição simétrica do poder, distribuição esta
que, do ponto de vista ético (teko porã), é sempre procurada pelos Kaiowa.
Como visto anteriormente, embora a organização mínima do te’yi preveja três
gerações, ocorre que em situações específicas a família extensa pode englobar quatro
ou, mais raramente, cinco gerações. Nestes casos, teríamos um tamõi guasu e/ou uma
jari guasu, constituídos como jekoha de referência, tendo o te’yi um espaço de
abrangência de sua jurisdição bem mais amplo do que os anteriormente considerados.
De fato, a configuração territorial construída em torno de tamõi guasu e/ou jari guasu
passa a ser um espaço que engloba espaços menores, estes dizendo respeito à jurisdição
dos tamõi e das jari articulados social e politicamente ao redor dos referidos jekoha.
Nestes últimos casos, não estou me referindo tão somente aos espaços administrados
pelos filhos retidos pelos tamõi guasu e/ou jari guasu em questão, mas também de certo
número de te’yi de três gerações dos quais procedem os cônjuges de seus netos e netas,
assim como de te’yi de quatro gerações aos quais pertencem os genros e as noras
estes últimos politicamente em posição subordinada, e geralmente contando com um
número mais limitado de integrantes com relação à família extensa articuladora da
configuração comunitária.
Como se pode notar, ao considerar um te’yi constituído por quatro ou mais
gerações, além de possíveis assimetrias devidas à referida bilocalidade dos Kaiowa
(que permite que algumas famílias retenham a maior parte dos filhos de ambos os
sexos), temos outro elemento de hierarquização, representado pela presença
centralizadora dos tamõi guasu e/ou jari guasu. Constate-se que, nestes casos, o líder
político (mburuvicha), é escolhido preferencialmente entre os filhos e os netos desses
jekoha dominantes, criando as condições contextuais – e não formais – para uma
transmissão genética do poder. Este tipo de configuração comunitária pode chegar a
149
integrar algumas centenas de indivíduos, e, em determinadas circunstâncias, representa
o modelo de comunidade mais estável entre os Kaiowa. As circunstâncias favoráveis às
quais estou aludindo referem-se ao fato de existir um acesso limitado a espaços familiar
e etnicamente exclusivos para a maioria das famílias indígenas, sendo estas obrigadas a
viver em áreas e reservas reduzidas em tamanho e com fronteiras invariáveis. Neste
sentido, os te’yi que tempos se estabeleceram nas reservas, consolidando alianças
políticas, e os que tenazmente conseguiram recuperar espaços de antiga ocupação, são
os que historicamente tiveram mais probabilidades de articular em torno de si um
número significativo de famílias, dando vida ao referido tipo de configuração
comunitária.
Deve-se constatar, contudo, que ultimamente nas reservas este fenômeno está
sujeito a um constante desgaste. Isto se deve principalmente ao aumento
desproporcional da população nesses espaços, o que produz uma heterogeneidade na
constituição da arena política local, com violentas disputas para ocupar o cargo de
“capitão” como se poderá ver mais adiante. Existe também outro elemento de
instabilidade, desta vez devido à própria dinâmica temporal na construção comunitária.
A morte do tamõi guasu e/ou da jari guasu dominantes tende a enfraquecer os vínculos
de cooperação entre seus filhos e filhas. Havendo estes últimos perdido os jekoha em
torno dos quais se determinavam as alianças, e sendo eles próprios chefes de famílias
extensas, terão a possibilidade ou o desejo de construir comunidades políticas
autônomas. Em não existindo normas formais na transmissão do poder, os germanos em
questão poderão entrar em disputas entre si, gerando inimizades que podem, com o
passar de uma ou duas gerações, separar definitivamente os grupos locais, vindo a se
negar qualquer tipo de relação que possa permitir a estipulação de alianças através de
vínculos matrimoniais. A seguir, no diagrama II e na figura II, apresento graficamente
uma simulação de possível organização comunitária assimétrica. No próximo capítulo,
falando da recuperação dos espaços territoriais de Jaguapire, sempre com o auxílio de
ilustrações e diagramas de parentesco, poderemos ver um exemplo concreto deste tipo
de configuração política e suas variações no tempo.
Diagrama II
Simulação de configuração comunitária assimétrica
G 0
G
-
1
G+1
G
-
2
G
-
3
G+2
C
D
E F
G
A
B
151
G 0
G-1
G-1
G-1
G-1
G 0
A
B
C
E
D
G
G-1
F
G+2
G-1
G 0
G-1
G-1
G-1
G-1
G 0
A
B
C
E
D
G
Figura II
Simulação de cisão de configuração comunitária
assimétrica, em duas comunidades antagônicas
7.2 Relações intercomunitárias simétricas e assimétricas
Como vimos, as dinâmicas temporais podem ser responsáveis por profundas
mudanças na configuração de uma determinada comunidade política, acarretando cisões
e, até mesmo produzindo grupos inimigos entre si. Nestes termos, quando a terra à
disposição é abundante, permitindo distâncias satisfatórias no processo de assentamento
das famílias indígenas e o acesso de todos aos recursos, a redefinição da arena política
não impede a autonomia dos grupos locais que paulatinamente vão-se formando. Isto
significa que até que não existam esforços aglutinadores e conciliadores, ou ocasiões
específicas para concentrar em torno da figura de destaque um certo número de te’yi,
nos encontraremos defronte a uma realidade territorial constituída de uma pluralidade
de configurações locais, cada uma delas centrada na autoridade do tamõi e/ou da jari.
Em conseqüência desta situação hoje ideal na maior parte dos casos –,
podemos ver que as relações intercomunitárias podiam ser estabelecidas a distâncias
notáveis, internamente aos tekoha guasu ao qual as famílias tomadas em consideração
faziam e fazem ainda referência. De fato, os circuitos festivos (ko arasa) que eram
determinados no interior destes territórios permitiam que se realizassem grandes
reuniões (aty guasu) periódicas, contando com a participação de aliados procedentes de
diferentes comunidades políticas. Seguindo este raciocínio, é perceptível que no interior
do espaço que em um determinado momento configurava-se um único tekoha guasu,
com o passar do tempo podem apresentar-se contemporaneamente outros circuitos de
relações intercomunitárias, conforme as cisões ou os reagrupamentos políticos do
momento. Neste sentido, o que podemos estaticamente imaginar como sendo uma única
configuração territorial, para os índios, dependendo do período, pode ser palco de várias
relações políticas, definindo e redefinindo os tekoha guasu construídos no interior do
espaço tomado em consideração. Isto ocorre porque, como afirmamos, este amplos
territórios não são constituídos de espaços obrigatoriamente exclusivos. Neste nível de
escala na organização territorial, a convivência de circuitos diferentes e autônomos de
relações entre comunidades locais não constitui em si um problema, mas, antes,
representa a norma.
Quando voltamos a atenção para a organização interna das reservas e das áreas
indígenas recuperadas nos últimos decênios, a situação muda sensivelmente. Não
podemos absolutamente cometer o erro de considerar estes espaços como sempre
153
coincidentes com as comunidades políticas locais; pode-se dizer, antes, que atualmente
isto é assaz raro
74
. Estes espaços hoje são geralmente caracterizados por fortes conflitos
internos, em uma pluralidade de comunidades políticas locais, levando a uma luta
continuada pela monopolização do cargo de “capitão”.
Se em um primeiro momento, nas reservas instituídas pelo SPI o cargo de
“capitão” se sobrepunha àquele do mburuvicha, isto se devia ao fato de que nesses
locais se configurava uma única comunidade política. De fato, se verificamos a
população existente nas oito áreas reservadas pelo extinto órgão tutelar, podemos
constatar que até o fim dos anos 60, excluindo-se Dourados, as cifras eram modestas, a
maior parte das famílias indígenas vivendo fora dessas unidades administrativas (v.
tabela III no capítulo IV). O boom demográfico registrado nos decênios sucessivos
levou a se configurar dentro dos espaços exíguos das reservas um número sempre
crescente de comunidades políticas locais, geralmente conflitantes uma com relação às
outras. Este fenômeno, contudo, em vez de favorecer a multiplicação dos centros de
poder nas reservas, repropondo em uma escala territorial mais reduzida a simetria que
caracterizava as relações intercomunitárias no interior dos tekoha guasu, permitiu
exatamente o contrário. Na maior parte dos casos, o poder permaneceu firmemente nas
mãos das comunidades políticas que souberam tirar proveito das relações interétnicas,
estabelecendo alianças estratégicas com representantes da FUNAI e/ou das missões
religiosas, importante variável no estabelecimento dos poderios. Por exemplo, no caso
da reserva de Pirajuy, em pleno território ñandéva, no fim dos anos 70, o configurar-se
de uma comunidade numericamente considerável, composta por famílias provenientes
de áreas vizinhas, das quais haviam sido despejadas, criou uma forte polarização
interna. Os que chegaram, uma vez aliados com os fundamentalistas da Deutsche
Indeaner Pionier Mission (conhecida na região como “Missão Alemã”, operante em
Pirajuy desde a metade dos anos 60), conseguiram assumir o poder nessa reserva,
obtendo tanto o cargo de “capitão”, quanto o afastamento do chefe de Posto local (v.
Tomaz de Almeida 2001, Mura 2001). Após haver solidificado sua posição,
74
Pode-se relatar o caso raro de Jaguari, terra demarcada com 404 ha, contando, em abril de 2005,
com 260 habitantes (dado FUNASA), a qual, desde sua oficialização por parte do Estado (em 1992),
mantém-se sob o controle de um único tamõi guasu: Júlio. A liderança deste kaiowa não está em
discussão, visto que nesta área configura-se uma única comunidade política, centrada em um te’yi mais
opulento, exatamente nos moldes descritos no item anterior.
154
conseguiram manter-se no poder até 1994, quando a intensificação dos conflitos
internos e a ruptura das alianças com os missionários levaram à reivindicação da área
vizinha de Potrero Guasu da qual a maior parte das famílias procedia e onde hoje se
encontram acampados, à espera de uma solução jurídica que desbloqueie o processo
administrativo de demarcação e homologação da área. Em outras áreas, o cargo de
“capitão” foi ocupado, por períodos muito longos, por uma mesma pessoa, como é o
caso de Amambai e Jakarey (Porto Lindo), onde a permanência se deu por mais de trinta
anos, e de Limão Verde, com quase vinte e cinco anos.
Com relação aos poderios que vieram a se constituir, estes não podem, de
qualquer modo, ser interpretados como uma transformação ocorrida na lógica de
construção comunitária. Com efeito, não se verifica um desmantelamento das
comunidades políticas antagônicas; temos, antes, a afirmação de uma dominação
situacional, sustentada por alianças interétnicas estruturadas. Neste sentido, podemos
nos referir à arena política que vem a estabelecer-se nas reservas como sendo relações
intercomunitárias de tipo assimétrico, baseadas no antagonismo e na luta, em oposição
aos circuitos de aliança construídos a nível do tekoha guasu, caracterizados estes pela
simetria relacional.
Voltemos agora nossa atenção para a realidade das áreas recuperadas pelos
indígenas. Nestes casos temos certamente uma mais adequada distribuição da população
nos espaços reavidos, visto que os grupos que haviam lutado tornaram a ocupar os
lugares onde viveram seus antepassados. Demograficamente falando, temos também
uma situação diferente com relação às reservas, visto que, uma vez estabelecidas, as
famílias autóctones passam a controlar o ingresso de novas famílias nos espaços de sua
jurisdição, o que é feito com extremo rigor. A integração de novos membros nas áreas
dependerá sempre da vontade dos tamõi do lugar, a mudança sendo feita uma vez que
formalmente se comunica o fato ao mburuvicha ou ao “capitão” da área em questão.
Não se pode afirmar que estes critérios, quando possível, não sejam adotados também
nas reservas, mas, na maior parte dos casos, a forte pressão demográfica que caracteriza
hoje as áreas instituídas pelo SPI, juntamente com a elevada litigiosidade interna entre
as comunidades locais, impedem de fato a aplicação de critérios comuns na
regulamentação da ocupação e do uso das terras em questão. Antigamente, quando as
reservas albergavam uma única comunidade política, a situação se mostrava diversa,
155
certamente símile ao que ocorre quando se está por recuperar uma terra tradicional ou
quando isto recém ocorreu.
Devemos, de qualquer modo, destacar o fato de que a recuperação dos tekoha
não significa absolutamente o início de um processo que leva à restauração da realidade
política passada como espero ter demonstrado ao longo deste capítulo. Neste sentido,
parece-me oportuno explicitar algumas particularidades atuais. Deve-se distinguir entre
a fase em que se está lutando para recuperar uma determinada terra e aquela sucessiva,
em que já se alcançou o controle.
Quando uma comunidade política se encontra na fase de reivindicação de um
determinado espaço, seus membros geralmente residem nas reservas, sendo possível que
algumas famílias se encontrem no lugar disputado, na iminência de serem expulsas.
Nestas circunstâncias, o líder que se encarrega de articular a luta e representar o grupo
junto a outras comunidades guarani e às autoridades públicas, dificilmente assumirá o
papel de capitão”. Normalmente, estes personagens preferem ser considerados como
mburuvicha ou como tendota este último termo podendo ser traduzido como
“condutor/guia”. Os dotes de valentia e de habilidades políticas que possam conduzir o
grupo ao sucesso, superando a condição de conflito fundiário são tidos como requisitos
importantes para se ocupar tais posições no seio da comunidade. Estes dotes não
necessariamente estão presentes em quem ocupa o cargo de “capitão”. Existem também
outros fatores que, ademais, contrapõem tais líderes aos “capitães”. Como se dizia, as
comunidades políticas em luta pela terra encontram-se em grande número nas reservas.
Após grandes esforços, obtêm da FUNAI um escasso reconhecimento como realidades
políticas autônomas, mas, ao mesmo tempo, do ponto de vista administrativo, o órgão
tutelar – juntamente com a FUNASA e as prefeituras –, continua considerando as
famílias come parte integrante da terra indígena onde estão assentadas. Esta atitude
geralmente leva à subordinação dos líderes em luta aos interesses do “capitão” local,
que pode ser um inimigo ou indiferente às necessidades da comunidade que reside
momentaneamente nesse lugar.
Uma vez recuperada a terra, o comportamento das famílias geralmente se
transforma, mesmo porque, além de se haver obtido o controle exclusivo sobre os
“novos” espaços, uma redefinição das relações que estas mantêm com o Estado, as
missões e as ONGs. Nestas novas circunstâncias, as famílias mais prestigiosas tenderão
156
progressivamente a construir também aqui poderios, abandonando paulatinamente as
características que as distinguiam quando estavam em pleno conflito fundiário. Neste
sentido, encaminhar-se-ão em direção a uma maior burocratização no estabelecimento
do poder. Isto, em poucos anos, leva famílias que antes estavam na posição de luta a
assumir o papel anteriormente ocupado por seus rivais, isto é, assumindo o cargo de
“capitão”, com tudo o que isto implica.
Come se pode constatar, existe uma certa similitude entre a postura assumida
pelas famílias dominantes nas reservas e aquela das famílias hegemônicas nas áreas
recuperadas. De qualquer modo, no segundo caso, uma vez que as famílias se
estabelecem firmemente nas micro-regiões das quais são originárias, a possibilidade de
que se determinem fortes assimetrias, como ocorre nas reservas, é certamente pequena.
As diferenças assinaladas entre as duas formas de representatividade política nos
levam a considerá-las weberianamente como correspondendo a diferentes conformações
comunitárias
75
. Temos, de um lado, a comunidade de luta, cuja compactação e decisão
reconduzem o grupo aos critérios de autoctonia e, portanto, podem também ser
definidas como sendo contemporaneamente comunidades de origem e de sangue; do
outro lado, no caso das áreas estabelecidas como espaços administrativos do Estado
brasileiro, temos comunidades que tendem a construir poderios, como já afirmado. Estas
últimas, legitimadas pelos agentes estatais e/ou missionários, passam a exercitar sobre
outras comunidades políticas presentes na mesma terra indígena, uma dominação
burocrática, quer se trate das reservas ou das áreas recuperadas
76
.
7.3 O cargo de “capitão” e as políticas interétnicas
Neste ponto, uma pergunta surge quase espontânea: por que as famílias em luta,
uma vez que se encontrem liberadas das características da vida nas reservas, tendem a
reproduzir a lógica do capitanato? Dois fatores parecem-me importantes para responder
75
Ver Weber 1964 [1922].
76
De qualquer modo, também neste último caso o grupo se compactará com base nas relações de
parentesco, como descrito anteriormente. Assim sendo, devemos estar atentos e não atribuir excessivo
poder de transformação à lógica ocidental de organização burocrática, as características e os interesses da
família extensa permanecendo mesmo hoje firmemente na base de toda relação e interação indígena.
157
a este quesito. De um lado, as atitudes e as práticas da maior parte dos agentes
indigenistas, das ONGs e das missões religiosas que interagem com os Guarani do MS;
do outro, os interesses que, pelo menos nos últimos quinze anos, vêm alimentando o
desejo dos indígenas de ocupar o cargo de “capitão”.
Não obstante décadas de frustradas tentativas de transformar os indígenas em
segmentos rurais da sociedade nacional, tornando-os eficientes produtores a maior parte
dos agentes ocidentais continua hoje projetando sobre os indígenas as próprias lógicas
de organização política, territorial e tecno-econômica. Tendo como ponto de referência
os parâmetros organizativos que ordenam unidades político-territoriais como os
municípios, pensam que as terras indígenas onde vivem os Guarani de MS têm ou que
devam ter o mesmo tipo de organização
77
. O “capitão”, seguindo esta ótica,
representaria a totalidade da população presente na reserva ou na área recuperada
tomada em consideração, e cuja legitimidade seria determinada através de critérios que
levam à centralização do poder. Até pouquíssimos anos atrás, para os agentes que
compartilham este ponto de vista, a menos que se chegasse a conflitos tais que
colocassem totalmente em risco os programas de ação implementados (projetos de
desenvolvimento, atividades missionárias, “assistência” médica e políticas públicas),
pouco importava se a escolha do “capitão” era o resultado de consenso ou era imposto
por uma elite dominante. No caso específico da FUNAI, o que se buscava era antes uma
certa “tranqüilidade” nas terras indígenas, “tranqüilidade” esta muitas vezes fruto de
violentas imposições
78
.
Mesmo hoje, defronte ao manifestar-se de conflitos internos, a maior
preocupação da AER de Amambai e do Núcleo de Dourados que “administram” a
totalidade das terras guarani presentes em MS é de que se alcance o mais breve
possível acordos a fim de que o órgão tutelar possa continuar a trabalhar. É de se
observar que, não obstante hoje se chegue à manifestação de fortes conflitos (por vezes
sanguinários) em muitas terras de MS, como se verá em seguida, a natureza dos acordos
77
Não podemos esquecer que as reservas destinadas aos Guarani no MS não superam os 3600 ha,
com populações hoje elevadíssimas, situação marcadamente diferente das vividas nas terras indígenas
demarcadas na Amazônia Legal, terras estas que podem alcançar dimensões consideráveis, na ordem dos
milhões de hectares. Em Mato Grosso do Sul, com exceção do território Kadiuweu, sendo as terras
indígenas extremamente reduzidas em tamanho tende-se a considerar-las como “aldeias”.
78
Na quinta parte, centrando-nos em Dourados, poderemos considerar mais os detalhes sobre os
mecanismos utilizados pelas famílias dominantes para manter tal “tranqüilidade”.
158
não pode segundo o ponto de vista da maioria dos agentes da FUNAI local colocar
em discussão a lógica organizadora que sustenta a relação entre os indígenas e o órgão
tutelar. Assim sendo, em face da explosão de contendas entre diversos líderes de uma
mesma terra indígena, tais agentes manifestam relutância em reconhecer estas figuras
como possuindo o mesmo peso perante o Estado, fato que atribuiria parelha
legitimidade às comunidades políticas que formam a arena política local. Assim
procedendo, a FUNAI mantém uma relação privilegiada com o “capitão”, propondo,
ultimamente, nas tentativas de serenar os conflitos, eleições formais, como nas
democracias ocidentais, alcançando, no entanto, pouco sucesso. Mas por que, poder-se-
ia perguntar, tanta obstinação por parte da FUNAI em manter a instituição do
capitanato? Os agentes indigenistas têm a compreensão de que é difícil administrar, em
uma terra indígena, os recursos que o Estado disponibiliza aos índios. Neste sentido,
tratores, escolas, enfermarias, e outras infra-estruturas que tendem a centralizar e
hierarquizar a distribuição de papéis e poderes, não poderiam, segundo eles, ser
administradas adequadamente, visto que os responsáveis mudariam em continuação,
devido à constante variação dos arranjos políticos entre as comunidades locais guarani.
Permanece evidente o fato de que, para a FUNAI e, por extensão, para a maior parte
dos organismos ocidentais que atuam junto aos Guarani de MS –, não é concebível uma
gestão flexível dos recursos, não necessariamente vinculada ao espaço territorial.
Do ponto de vista do Estado, a relação entre seus aparatos e os indígenas se
necessariamente através das terras onde estes estão destinados a residir; em suma, as
estruturas políticas são construídas como efeito da territorialização dos índios nos
termos que vimos com Oliveira (1998). As infra-estruturas que são construídas e os
instrumentos técnicos que são introduzidos nas terras indígenas são tidas como “coisas
públicas”, em contraposição àquelas privadas, em sintonia com a tradição ocidental, que
funda suas raízes nas concepções do direito romano, baseado este justamente na
contraposição publicus/privatus (Sabbatucci 1976). Assim fazendo, o Estado associa o
que é público ao espaço territorial, representado pelas terras indígenas e suas infra-
estruturas materiais, e o que é privado às famílias indígenas que aí habitam. Deste ponto
de vista, a variação de população e de configurações políticas determinadas pela
organização territorial guarani é irrelevante para os agentes do Estado, visto que os
indígenas serão responsabilizados pela administração da “coisa pública”, na medida em
que são vistos como representantes do espaço onde essas infra-estruturas estão
159
localizadas e não de famílias aliadas. Em poucas palavras, na concepção do Estado
ocidental, não temos comunidades políticas na terra x, y ou z, mas, necessariamente,
comunidades políticas da terra x, y ou z.
Sem sombra de dúvida, entre os indígenas a contraposição entre público e
privado é desprovida de sentido; de fato, para estes não existem espaços neutros, isto é,
não existem lugares que não estejam sob a jurisdição de uma determinada família, ou de
um espírito dono/guardião (járy), ou ainda de uma divindade. Aqui se faz premente
colocar em evidência o fato de que a lógica dos Guarani parte de princípios de gestão
dos recursos que é contrastante com aqueles implementados pelo Estado.
Não devemos esquecer que os Kaiowa e os Ñandéva são submetidos a uma
dominação colonial por parte do Brasil e do Paraguai. É também oportuno lembrar que
o contato permanente com o homem branco é antigo, havendo os indígenas adquirido
um discreto conhecimento de suas concepções de mundo, bem como de suas práticas
jurídicas e administrativas. Neste sentido, a necessidade compulsória de dever adequar-
se às infra-estruturas do Estado não implica que isto se dê sem uma adaptação às
exigências organizativas dos Guarani, respondendo sobretudo aos interesses das
famílias mais hábeis e/ou prestigiosas de uma determinada localidade.
Ocupemo-nos agora dos interesses indígenas sobre o cargo de “capitão”. Quando
os grupos locais tinham a jurisdição sobre a totalidade dos espaços onde estavam
assentados, a construção da liderança era centrada quase exclusivamente na valentia e a
capacidade de articulação política dos mburuvicha, no sentido de conseguir beneficiar a
comunidade política como um todo. Nestes termos, as disputas internas a estas
configurações políticas eram motivadas mais que tudo pela busca de prestígio, não
sendo os membros da comunidade economicamente afetados, de modo significativo,
pelo fato de que um ou outro dos candidatos tivesse assumido o cargo em questão. O
papel de “capitão” sobrepondo-se, em um primeiro momento, àquele do mburuvicha, e
este último sendo subordinado e/ou coincidente com aquele de tamõi, não modificava a
organização política local, sobretudo no que concerne à lógica que sustentava e atribuía
legitimidade à liderança. O aumento vertiginoso da população nas reservas, advindo
durante os anos 70, e a impossibilidade de uma adequada atividade agrícola, devida ao
desmatamento promovido pela própria FUNAI, unidos à introdução da mão-de-obra
160
indígena nas usinas de álcool, são eventos que contribuíram em muito na redefinição do
papel de “capitão”.
Como vimos, desde o período da extração da erva mate, os Guarani do MS
conduziram atividades periódicas em troca de dinheiro ou mercadorias, definidas como
changa. Estas atividades, até os anos 80 eram conduzidas por pequenos contigentes de
pessoas, geralmente aparentadas entre si, que se distanciavam dos espaços onde eram
articulados os grupos locais no máximo algumas dezenas de quilômetros, raramente
saindo dos tekoha guasu que tinham por referência. As atividades principais para todos
era representada pela agricultura de coivara e, logo em seguida, pela caça, pesca e
coleta, implicando portanto uma certa rotatividade que permitisse às famílias extensas,
em sua complexidade, aprovisionar-se de todos os elementos materiais de que
reputavam ter necessidade.
Durante os anos 60 e 70, com o maciço desmatamento da região em causa,
houve uma sistemática utilização da mão-de-obra indígena, instituindo-se a figura do
“gato” (chamado hoje de “cabeçante”), índio intermediário entre os empreendedores e
os trabalhadores guarani. Até a primeira metade dos anos 70, os contingentes de
trabalhadores indígenas eram modestos, sendo que uma vez que uma fazenda
completava a derrubada, cessava também a relação de trabalho. Esta atividade
permanecia, então, como uma ulterior forma de changa, sem alterar em muito a
organização sócio-técnica dos Guarani.
Após as derrubadas, a partir dos anos de 1970, cresceram as plantações de
cana-de-açúcar em MS, bem como no estado limítrofe de São Paulo, paulatinamente
requerendo-se um maior investimento em mão-de-obra, no processo mais árduo,
representado pela fase do corte. As usinas de álcool que se foram implantando,
passaram, assim, a incorporar mão-de-obra indígena, incorporação que era mediada uma
vez mais por “gatos”, que arregimentavam contingentes significativos de trabalhadores
nas reservas.
Nos anos 90, a saída de grupos de trabalhadores indígenas em direção às usinas
de álcool das cidades de Nova Andradina e, a seguir, Naviraí (assim como para lugares
mais distantes, no vizinho estado de São Paulo), tornou-se corriqueira, os problemas de
ordem trabalhista ganhando visibilidade. Foi assim que através de um acordo entre a
FUNAI e os usineiros, chegou-se a uma regulamentação que não previa apenas a
161
regularização do trabalhador indígena e do “gato”, através de contratos legais, mas
também a instituição do que foi denominado de “taxa comunitária”. O acordo previa
que do salário de cada trabalhador indígena fossem retirados R$ 7,50, e outros tantos
fossem disponibilizados pelo dono da usina (totalizando R$ 15,00 por pessoa). O
objetivo era o de constituir um fundo a ser revertido para as terras de onde os
trabalhadores procediam, com o objetivo de favorecer a suposta “comunidade” nela
residente. Em um primeiro momento, a “incumbência” de administrar esse fundo recaiu
sobre a figura do chefe de Posto, cargo na época ocupado exclusivamente por
“brancos”. Rapidamente, porém, os “capitães” sendo eles que formalmente estavam
destinados a coordenar as atividades “comunitárias” reivindicaram o direito de
administrar os recursos procedentes das usinas. Ultimamente, se considerando que as
reservas possuem população da ordem de milhares de pessoas, a quantidade de
indivíduos, na maioria entre os 18 e 25 anos de idade, que se dirigem às usinas é
considerável. É de se levar em conta também que cada pessoa pode realizar cinco
contratos por ano, cada um deles representando períodos de 60 dias de trabalho.
Tomando-se como exemplo a reserva de Amambai, onde a população supera as 6.500
pessoas, temos potencialmente um contingente de mais de 500 indivíduos. Em um
rápido cálculo e considerando-se apenas três ciclos de trabalho por ano por cada
indígena, se terá um ingresso da ordem de R$ 22.500, 00 concentrado nas mãos do
“capitão”.
Os ingressos econômicos dos “capitães” nas reservas com densidade
demográfica mais elevada não se limitam à taxa comunitária. Especialmente aquelas
que estão praticamente coladas nos centros urbanos recebem a visita cotidiana de
dezenas de mascates, vendendo-se desde picolés a roupas. É comum nestes casos que,
para ter a “autorização” para desenvolver seu comércio, esses ambulantes “contribuam”
com impostos informais nos “caixas” do “capitão”.
Isto no que concerne às reservas. No caso das áreas recuperadas, vistas as
modestas populações nelas residentes, a taxa “comunitária” não representa um ingresso
respeitável a ponto de ser objeto de contenda entre pretendentes ao cargo de “capitão”.
O mesmo pode ser dito com relação aos mascates, de freqüência inexpressiva, quando
não inexistentes. Nestas áreas, a estratégia dos “capitães” é a de obter ingressos
econômicos através do arrendamento ilegal de parte da terra disponível seja para gado
162
extensivo, seja (menos comumente) para o plantio de soja. Para se ter uma idéia da
importância da primeira modalidade de arrendamento, basta informar que até pelo
menos meados de 2004 na Área Indígena de Pirakua se chegou a arrendar mais de 800
ha, o que constitui mais de um terço da superfície total da área, atingindo-se um número
superior às 1.000 cabeças de gado. Levando-se em conta que o valor mensal por cabeça
é cotado na região por não menos de R$ 4,00, suspeita-se que Pirakua tenha atingido
valores de ingresso em torno dos R$ 4.000,00 por mês, procedentes dessa atividade
79
.
O caso de Pirakua não é isolado. Na Área Indígena de Paraguasu o arrendamento para
criação de gado parece ter atingido um rebanho de cerca de 1.500 cabeças, e, embora
não se disponha de dados a respeito, sabe-se que existem casos significativos de
arrendamento para gado também nas Áreas Indígenas de Cerrito e Sete Cerros, além de
tentativas mal sucedidas em Jaguapire. Nas reservas, com o pouco espaço à disposição,
o arrendamento de gado, embora existente, é uma fonte de recursos inexpressiva.
Atentando-se para o arrendamento para plantio de soja, pode-se dizer que, com exceção
da reserva de Dourados onde o arrendamento envolve principalmente uma elite de
Terena em parceria” com “brancos” –, temos uma única experiência de significativo
porte, na Área Indígena de Guasuty, com o plantio de mais de 300 ha, o que representa
aproximadamente um terço da superfície total da terra à disposição dos indígenas. A
experiência, porém, foi limitada a uma única safra, tendo ocorrido conflitos que levaram
à remoção do “capitão” responsável pelo acordo com os fazendeiros. Na reserva de
Amambai, a FUNAI, que de modo muito negativo este tipo de arrendamento
(diferentemente daquele destinado à criação de gado), flagrou o próprio chefe de Posto
do Órgão (um indígena) cometendo este “crime” em um pedaço de terra modesto
(poucos hectares), interrompendo abruptamente essa experiência.
Até aqui falou-se sobre as fontes de recursos que atingem diretamente o
“capitão”. que se levar em conta que para que esta figura obtenha apoio e certa
estabilidade, ela deve permitir que seus parentes e aliados possam obter vantagens
tangíveis. Assim sendo, por via indireta, o “capitão” pode garantir o acesso a cargos de
professor(a), merendeira, agente de saúde, etc. Nas reservas, procurará também
79
Segundo informações da FUNAI (AER de Amambai), ultimamente o arrendamento teria sido
abandonado. Algumas lideranças que dele se beneficiavam parecem ter formado rebanhos próprios,
enquanto que outros, tempos contrários à criação de gado (tanto próprio quanto por arrendamento),
preferiram continuar apenas com as atividades agrícolas, como é de costume dos Kaiowa.
163
possibilitar que seus aliados desempenhem funções melhor remuneradas, como chefe de
Posto, diretor(a) de escola e coordenador(a) pedagógico.
Pois bem, é possível constatar que, especialmente nos últimos tempos, ocupar o
cargo de “capitão” implica obter uma enorme quantidade de vantagens materiais, e um
posicionamento na arena local no ápice de uma estrutura política assimétrica. Por outro
lado, deve-se ressaltar também o fato de que, ao aumentarem esses interesses,
incrementam-se os conflitos entre comunidades políticas inimigas, e o que por décadas
apresentou-se como uma instituição bastante estável, acaba por ser hoje muito frágil. A
fragilidade deve-se especialmente ao claro aumento e manifestação da força política (e
por vezes bélica) das famílias que durante muito tempo estiveram sujeitadas aos
referidos poderios, poderios estes muitas vezes mantidos lançando-se mão do uso da
violência, através da muito temida “polícia indígena”.
Alguns eventos e atitudes têm possibilitado o redimensionamento das relações
de força entre as comunidades políticas, fatos muito importantes especialmente para a
vida política das reservas. Em primeiro lugar, é significativo o posicionamento da
própria FUNAI que, em decorrência das acusações feitas por ONGs e o CIMI sobre as
violências perpetradas nas terras indígenas, resolveu proibir e inibir o uso da força por
parte dos “capitães” e seus ajudantes. Em segundo lugar, ainda mais significativo, a
presença e atuação do MPF de Dourados, cada vez mais marcante na vida social e
política indígena da região.
Os novos ajustamentos políticos nas terras indígenas onde vivem os Guarani
parecem ter também afetado um nível de escala mais amplo nas relações político-
territoriais dos indígenas. O grau de interferência dos “capitães” e chefes de Posto (hoje
quase todos indígenas) para determinar a escolha do administrador regional da FUNAI
e, conseqüentemente, a política do Órgão a nível local, parece ser hoje muito mais
elevado do que no passado
80
. No ano de 1999 determinou-se uma luta para promover ao
cargo de administrador da AER de Amambai um indígena. Dois foram os candidatos:
por um lado, o chefe de Posto da reserva de Sassoró e, como seu adversário, o então
diretor da escola-pólo da reserva de Amambai. Do confronto saiu ganhador o segundo,
o resultado da luta deixando não poucas seqüelas no mapa político da região sob
80
O poder constituído na reserva de Dourados (nas mãos de uma elite de Terena) conseguiu que se
instituísse, em meados dos anos 90, um Núcleo da FUNAI na cidade homônima.
164
jurisdição dessa Administração. O indígena vitorioso, não pertencendo ao quadro da
FUNAI, foi nomeado chefe de Posto da reserva de Porto Lindo no lugar do filho do
“capitão” desta reserva, que contemporaneamente sofreu a derrota que o afastou do
poder, onde havia permanecido por mais de trinta anos. O capitão” de Porto Lindo
havia sido aliado do chefe de Posto de Sassoró na tentativa de alcançar o poder na AER
de Amambai, sendo que também este último, após as eleições, acabou por perder seu
cargo, juntamente com o “capitão” de Amambai, outro seu aliado.
Embora se determinassem todos estes acertos, que visavam minar as forças
daqueles que acabaram por perder a eleição, o novo Administrador não conseguiu se
manter no poder por muito tempo, multiplicando-se e desdobrando-se os conflitos entre
as facções. Dois de seus maiores aliados, o “capitão” e o chefe de Posto da reserva de
Limão Verde, acabaram por ser os mais aguerridos sustentadores da necessidade de
removê-lo do cargo, em favor de um funcionário “branco” da FUNAI de Amambai. A
transição foi rápida, sendo que o indígena deposto foi desempenhar a função de chefe de
Posto em Porto Lindo, com muitas resistências locais, mas demonstrando aceitar a
subordinação a seu substituto no cargo de Administrador, do qual ainda hoje é aliado.
A situação atualmente voltou a ser tensa, novos acontecimentos mudando as
relações políticas nos espaços de atuação da AER. Ainda uma vez o “capitão” de Limão
Verde (embora em forte conflito com o chefe de Posto desta reserva) se manifesta
contra o Administrador, que foi por ele anteriormente apoiado, pedindo sua demissão e
imediata substituição. A ele se junta na luta o irmão do “capitão” anteriormente deposto
em Amambai, gerando-se um movimento que levou à ocupação da sede da
Administração por duas vezes: a primeira em fevereiro de 2005, e a outra se está
efetuando ainda neste momento (outubro deste mesmo ano).
O conflito a nível de administração espelha sobretudo uma grande instabilidade
interna na disputa do cargo de “capitão” em três das seis reservas sob jurisdição da AER
de Amambai, apresentado violentos conflitos e o recurso ao uso da força física por todas
as partes envolvidas. Outro fator a agravar a situação é o fato de que as três reservas
encontram-se muito próximas à sede regional da FUNAI, as reservas de Amambai e
Limão Vede localizadas praticamente nas margens da cidade, enquanto que Takuapiry
situa-se a apenas 25 quilômetros de distância desta, o que permite às lideranças um
acesso constante, cotidiano, às estruturas burocráticas do Órgão indigenista.
165
Recentemente os “capitães” de Amambai e Takuapiry foram presos por porte ilegal de
arma de fogo, o que favoreceu enormemente as partes adversárias nas respectivas arenas
locais, enquanto que em Limão Verde, desde meados de 2004 vem se consumando uma
disputa acirrada entre duas comunidades, com epílogo dramático em fevereiro de 2005,
com a hospitalização de sete pessoas gravemente feridas por armas de corte. Isto se deu
como conseqüência de uma batalha ocorrida no interior da reserva entre membros das
comunidades políticas em confronto. Neste último contexto, houve um explícito pedido
de intervenção do MPF por parte de uma das facções envolvidas pedido este feito
meses antes desses eventos dramáticos –, dando vida a um processo de negociação que
envolvia propriamente este órgão federal, a FUNAI, os índios em pauta, e a minha
pessoa, como consultor do Procurador da República. Vale a pena relatar os fatos em
detalhes, visto que nos oferecem importantes elementos para compreender as mudanças
mais recentes no processo de relacionamento interétnico e na atribuição, por parte dos
índios, de legitimidade aos órgãos federais com os quais se relacionam.
7.4 O conflito na reserva de Limão Verde e seu desfecho
Em dezembro de 2004, o Procurador da República de Dourados, Dr. Charles,
entrou em contato convidando-me para acompanhá-lo em uma visita de dois dias ao aty
guasu regional, que estava sendo realizado na reserva de Amambai entre os dias 2 e 5
daquele mês. Ocorre que na reserva de Limão Verde, pouco tempo antes, a FUNAI
promovera eleições formais para o cargo de “capitão”, tentando, com este recurso
aplacar, ou ao menos diminuir, as tensões entre os grupos rivais. na ocasião,
integrantes do grupo liderado por Mauro contrário a Adolfinho, o “capitão” quase
25 anos no cargo tentaram envolver o MPF nos afazeres internos, pressionando para
que se legitimasse o processo eleitoral como todo para a escolha da liderança formal
da reserva. As eleições, contrariamente ao esperado, aumentaram enormemente a
litigiosidade na reserva, visto que Adolfinho, embora com pouca diferença de votos, foi
novamente confirmado como “capitão”. Ao chegar a Amambai, o Dr. Charles foi
rapidamente abordado por pessoas vinculadas a Mauro, descontentes com o resultado
das eleições. Estes argumentavam que no momento em que foi realizada a votação,
muitos integrantes da comunidade liderada por este indígena encontravam-se fora da
reserva, trabalhando nas usinas de álcool; o próprio Mauro estava vinculado a este
166
trabalho, sendo um dos “cabeçantes” no processo de contratação de mão-de-obra
indígena. Outro elemento por este grupo colocado como desfavorável foi o fato de
Adolfinho, segundo eles, ter recrutado para a eleição boa parte das pessoas na vizinha
reserva de Amambai, fato que deveria, por si, justificar a anulação do pleito. Estes
índios pediam, a partir de uma interpretação bastante heterodoxa das regras eleitorais no
Estado brasileiro, que se realizasse um segundo turno das eleições, quando na verdade
existiam desde o primeiro momento apenas dois candidatos disputando a liderança na
reserva.
O Dr. Charles chegava a Amambai tendo acumulado experiências de mais de
dois anos de lida com a situação da reserva de Dourados, onde mais de 40 líderes
comunitários localizados haviam obtido, de parte do MPF e, em certa medida, do
Núcleo da FUNAI, o reconhecimento formal. Esta atitude de importantes representantes
do Estado começava a desestabilizar a lógica do capitanato, arriscando os “capitães” das
duas aldeias que compõem a reserva de Dourados, a ver o próprio poder
redimensionado, uma vez que seriam considerados como uma das tantas lideranças, e
não mais como a única legítima. Porém, o processo era lento, a FUNAI não aceitando
por completo tal posição, limpidamente tomada pela Procuradoria da República,
chegando então a manifestar uma conduta ambígua, sendo que de um lado reconhecia
uma pluralidade de líderes em Dourados, enquanto por outro se negava a colocar
totalmente em discussão a instituição do capitanato. Isto ficou claro em várias reuniões
realizadas na sede do MPF, das quais participei como consultor, tanto desta instituição
quanto da própria FUNAI. Os membros do Órgão tutelar se manifestavam, por
exemplo, relutantes em divulgar um decreto criado pelo então recém empossado
presidente da própria instituição, o qual declarava ilegais as “carterinhas” de “capitão”,
além de se negar a difundir o fato de que a lei garante aos indígenas o direito de
escolher a forma de representação política que mais se conforme às necessidades e
interesses da organização social do povo em pauta. Frente a esta relutância, o MPF
assumiu a tarefa de intimar a própria FUNAI a fornecer informações sobre o referido
decreto, informações estas que seriam divulgadas nas reuniões com os índios.
Foi justamente na aty guasu de Amambai que os documentos da FUNAI,
chegados de Brasília, foram divulgados, discursando o Dr. Charles sobre eles e sua
importância. Aproveitando esta argumentação, também numa reunião mais reduzida
167
com os aliados de Mauro, o Procurador enfrentou a questão da propriedade ou não da
renúncia ao cargo de “capitão”, sendo reconhecidas, em Limão Verde, duas
comunidades distintas, com duas lideranças, ambas legítimas perante o Estado. A facção
de Mauro mostrara-se desconfiada com esta proposta, argumentando que Adolfinho não
a aceitaria. Todavia, embora de vontade, concordaram em voltar a discutir esta
possibilidade.
Durante esta aty guasu o Procurador teve a oportunidade de ouvir tão somente
uma das partes em conflito e o Administrador da AER, William, presente durante essa
reunião. O próprio William acabou por legitimar o resultado das eleições, embora
Adolfinho manifestasse forte dissenso com relação à sua pessoa, acusando-o de apoiar o
grupo rival. Esta atitude da FUNAI local, na prática, acabou por deixar descontentes
todos os envolvidos no conflito, visto que Adolfinho, após as eleições, considerava-se
vitorioso, não na disputa interna, mas também com relação ao próprio Administrador
da FUNAI, ganhando mais entusiasmo na tentativa de destituí-lo do cargo. A situação,
portanto, continuava em um impasse. Não havendo tempo nessa ocasião para reunir
todos os envolvidos, o Dr. Charles propôs aos partidários de Mauro, à FUNAI e a mim,
marcar um encontro entre todos, ouvindo, obviamente, também o parecer da
comunidade liderada por Adolfinho. Optou-se, para tal, pela data de 27 de janeiro de
2005.
Lamentavelmente, não foi possível respeitar a data fixada, os empenhos da
Procuradoria obrigando o Dr. Charles a dedicar-se a outros assuntos. Foi assim que, em
fevereiro de 2005, antes de poder marcar outra data, a situação em Limão Verde
precipita-se, chegando ao referido confronto armado entre as partes em conflito. Frente
à gravidade do ocorrido, o Procurador decidiu encontrar-se com os índios, novamente
solicitando a minha presença. Saímos de Dourados por volta das seis horas da manhã do
dia 16 de fevereiro de 2005, em direção à cidade de Amambaí. Sabíamos então que
índios aliados de Adolfinho, procedentes não das reservas de Limão Verde e
Amambai, estavam ocupando mais de três dias a sede regional da FUNAI, pedindo a
remoção imediata de William do cargo de Administrador e propondo em alternativa um
kaiowa originário de Dourados, Maciel. William havia-se comunicado com Dr. Charles
pelo telefone, pedindo a presença do MPF para convencer os índios a desocupar o
espaço físico da Administração. O Procurador, porém, respondeu enfaticamente ao
168
funcionário da FUNAI que não estaria disposto a enfrentar esse problema, visto que iria
para a cidade de Amambai exclusivamente para discutir com os índios de Limão Verde
sobre os conflitos internos à reserva.
Chegamos ao nosso destino às oito horas da manhã, encontrando-nos em um
primeiro momento com a Polícia Federal, cuja presença havia sido solicitada pelo
Procurador vista a exaltação dos ânimos em Limão Verde. Em seguida, fomos ao
encontro de William, convencidos de que este nos acompanharia à referida reserva;
nossas expectativas, porém, foram rapidamente frustradas. O Administrador da FUNAI
levou-nos a uma sala da ACIA (Associação de Comércio e Indústria de Amambai),
onde havia reunido várias lideranças e chefes de postos de diversas reservas e áreas
indígenas sob jurisdição da AER de Amambai. Entre estes, os que se manifestaram com
mais ímpeto contra Adolfinho foram os atuais “capitães” de Porto Lindo, Amambai,
Jaguapire e os chefes de posto de Limão Verde e Porto Lindo este último, como
vimos, foi Administrador da FUNAI antes de William. Enquanto todos faziam pressão
para que se desocupasse a sede da FUNAI, paralisada em suas funções burocráticas
havia dias uma vez que William, advogando que devia garantir a incolumidade física
de seus funcionários, havia decidido suspender o expediente
81
– os mais incisivos
pretendiam que Adolfinho fosse expulso de Limão Verde e que disto se ocupassem as
autoridades do Estado ali presentes. Rejeitavam também a possibilidade de reunirem-se
todos na sede da FUNAI, onde estavam os aliados do “capitão” questionado, afirmando
que deveriam ser estes últimos a participar da reunião, na sala da ACIA.
Também desta vez Dr. Charles decidiu argumentar a partir da experiência de
Dourados, sem perceber, porém, que a platéia agora era formada quase exclusivamente
por “capitães” e chefes de posto, extremamente apegados à lógica do “capitanato”, uma
vez que desta instituição tiravam todos os proveitos dos quais se falou
abundantemente aqui. Fui também convidado pelo Procurador a aprofundar o
argumento sobre as formas Guarani de organização e representatividade, sendo aquele o
momento menos apropriado para tratar deste argumento. Contudo, pressionado pela
situação, tive que reforçar as colocações do Dr. Charles. Como era de se esperar, o
81
A suspensão por dias das atividades da Administração acabou por criar problemas a alguns
líderes que decidiram de participar da reunião, não por terem sido chamados pelo Administrador, mas por
estar revoltados contra Adolfinho e seus aliados, responsabilizados pelas dificuldades encontradas.
169
chefe de posto de Limão Verde, um dos mais envolvido no conflito, reagiu
violentamente, interrompendo minha argumentação fato inusitado entre os Guarani.
Afirmou que aquele não era o momento de falar de história, mas do problema que
estavam vivendo. Era evidente que os ali reunidos não queriam enfrentar o problema
estrutural da relação dos índios com os aparatos do Estado, estando a maioria deles
acomodados nos moldes reconhecidos décadas pela FUNAI, e por eles considerados
como os únicos possíveis até o momento. Deve-se observar, porém, que a minha
argumentação antropológica, assim como aquela de ordem jurídica do Procurador,
colocavam para os índios no vértice dos poderios o problema de como lidar com uma
instituição tão poderosa como o MPF, que dava então ouvidos também para os
mburuvicha e líderes das famílias extensas. Os índios, a cada reunião ou encontro com o
MPF, se convenciam mais de que na arena política local a FUNAI, instituição titubeante
e ambígua, não ocupava mais um espaço privilegiado, perdendo claramente terreno
perante o avançar rápido e decidido da Procuradoria da República.
Tornando aos fatos de Amambaí, após aproximadamente duas horas de reunião
com os indígenas que apoiavam William, foi a vez de encontrar-nos com Adolfinho e
seus aliados, no interior da sede da FUNAI – por estes ocupada. Fomos acolhidos
cordialmente por estes indígenas, que concordaram rapidamente em fazer uma reunião
com o Procurador, porém, sem a presença de funcionários do Órgão tutelar, e muito
menos a do Administrador. A reunião foi breve. Os índios afirmaram que, embora
ocupassem a sede, nunca impediram os funcionários de desempenhar suas funções
atendendo seus “patrícios”
82
, e que estavam dispostos a realizar um encontro em Limão
Verde com o grupo adversário. Entretanto, queriam algumas garantias sobre a equidade
na participação e sobre como a reunião seria conduzida. Sugeri que, embora pudessem
participar todos os integrantes das duas comunidades inimigas, fossem escolhidos tão
somente dez representantes de cada parte, de modo que as vozes pudessem ser
equilibradas. Minha proposta foi rapidamente aceita, e o encontro foi marcado para as
duas horas da tarde, no espaço territorial sob a jurisdição de Adolfinho. Após esta
decisão, os indígenas em protestos aceitaram liberar a sede da FUNAI, voltando esta a
suas atividades administrativas.
82
Expressão utilizada pelos Guarani para se referir, perante aos “brancos”, aos membros de seu
grupo étnico ou outros indígenas.
170
Deve-se considerar que, não obstante a disponibilidade demonstrada por
Adolfinho e seus aliados, o clima permanecia tenso, as acusações que um grupo fazia do
outro anunciavam uma reunião, no mínimo, agitada. Por tal razão, O Dr. Charles se
convenceu a aceitar a presença também das polícias Civil e Militar, sugestão feita pelo
Delegado da Polícia Federal. Depois do almoço, em comboio, “escoltados” por três
viaturas das forças policiais, chegamos a Limão Verde, nas proximidades de uma das
escolas da reserva, onde nos estavam esperando os integrantes da comunidade
representada por Adolfinho, além de algumas lideranças das comunidades de Ka’ajari,
Samakuã e Mbarakay, terras tradicionais em reivindicação pelos índios, e um “capitão”
recentemente deposto de seu cargo, procedente da Área Indígena de Guasuty. A reunião
se realizaria sob a sombra de uma árvore, sendo que para foram levadas cerca de
vinte e quatro cadeiras, dispostas em círculo. Mauro e seus aliados chegaram em
cortejo, e quando estavam a uns 20 metros de distância, os dois grupos iniciaram a
intercambiar insultos, alguns deles tentando ultrapassar a barreira formada pela polícia.
O Delegado da PF, temendo perder o controle da situação, passou a ameaçar as partes,
os policiais fazendo ostentação de todas as armas de fogo à disposição. Este clima de
tensão acompanhou toda a reunião, as partes continuando a se insultar à distância.
A escolha de quem devia falar foi feita rapidamente. As partes na contenda
formaram dois semicírculos cujas extremidades eram separadas pela presença, de um
lado do Delegado da PF e William, enquanto do outro, pelo Dr. Charles e eu. Após uma
breve introdução feita pelo Procurador, que tentou resumir os fatos decorrentes do
conflito, a palavra foi dada aos indígenas, sendo que nenhum dos dois grupos queria se
manifestar primeiro. Superado este impasse, a discussão começou a fluir melhor, os
representantes manifestando-se um por um. Os partidários de Mauro afirmaram que nos
últimos tempos vinham sofrendo constantes ameaças e violências cometidas pelos
inimigos, pretendendo, então, que as eleições fossem refeitas, pelas razões
anteriormente descritas. Do outro lado as acusações não eram distintas, acusando-se os
adversários de possuir e utilizar armas de fogo, o que seria ilegal. O tom das acusações
foi progressivamente aumentando e, frente à pergunta formulada pelo Procurador de
qual seria, no entender de cada parte, a solução possível para pôr fim ao conflito, as
respostas convergiam unanimemente: expulsar da reserva o grupo adversário. Os
aliados de Mauro tentavam justificar tal reivindicação afirmando que eram os
originários de Limão Verde, enquanto que a maioria dos aliados de Adolfinho
171
procederiam de Ka’ajari e outras áreas hoje reivindicadas pelos índios. Do outro lado se
argumentava que Adolfinho havia ganhado as eleições e que os adversários teriam sido
apoiados e, até, incentivados por William, para dar vida a uma “rebelião” interna,
rebelião esta que teria como objetivo primordial neutralizar o poder do “capitão” dessa
reserva, principal opositor do Administrador da AER.
Uma vez ouvidas as reclamações e reivindicações dos envolvidos, o Dr. Charles
argumentou que não era possível se proceder à expulsão de ninguém, afirmando
enfaticamente que o que ele estava presenciando de modo muito claro era a disputa
entre dois grupos praticamente equivalentes do ponto de vista populacional. A própria
declaração dos indígenas denotava uma clara divisão territorial da reserva, as
comunidades em questão distribuindo-se simetricamente nos dois lados dessa T.I. As
eleições que haviam sido então realizadas reforçavam ainda mais a convicção do
Procurador, visto que a diferença de votos se reduzia a poucas unidades, sobre uma
população total que supera as oitocentas pessoas. A contraproposta do Dr. Charles foi
ainda uma vez a de se renunciar à representatividade única, formalizando a presença de
duas comunidades legítimas em Limão Verde, cada uma com suas lideranças. Embora
este tipo de colocação fosse dirigida principalmente aos indígenas, de fato colocava em
jogo também a FUNAI, cujos funcionários estavam presentes em bom número no local
da reunião.
Os índios não acolheram de bom grado as argumentações do Procurador. Os
aliados de Adolfinho rejeitaram firmemente a possibilidade de ver reconhecidas duas
comunidades em Limão Verde, continuando a insistir sobre a expulsão do grupo rival.
No caso dos representantes da comunidade liderada por Mauro, a desconfiança era
grande, perguntando sobre como a FUNAI iria se comportar frente a uma situação como
aquela descrita pelo Procurador. Alguns dos representantes desta comunidade chegaram
a aceitar a possibilidade de se formalizar duas lideranças na reserva, mas pediam
garantias de que o Órgão tutelar iria respeitar o acordo. Frente a tal colocação, o
Administrador da AER de Amambai mais uma vez não se manifestou claramente, mas
demonstrou, ao menos formalmente, a vontade de respeitar o acordo que sairia desta
reunião. Finalmente, Mauro junto com seus aliados aceitaram a proposta do Dr. Charles,
o que deixou os adversários profundamente irados, reafirmando que Adolfinho havia
ganhado as eleições e, portanto, era ele o único legítimo representante de Limão Verde.
172
A reunião voltava novamente a um impasse. De minha parte eu tentava
convencer os aliados do “capitão” de que o que estava sendo proposto era a única
alternativa possível, uma vez que existia um evidente equilíbrio entre os grupos em
conflito. Meus, esforços, porém, foram em vão, uma vez que Adolfinho e seus aliados
consideravam o acordo como uma derrota frente às duas lutas: a de manter o controle
total sobre a reserva e a de afastar o Administrador da FUNAI de seu cargo.
Já se aproximavam as seis horas da tarde não existindo ainda uma mínima
esperança de se chegar a um acordo, quando o Dr. Charles, unilateralmente, exercendo
todo o poder que sua função lhe outorga, declarou que a partir daquele momento,
independentemente do que a própria FUNAI opinasse, o MPF receberia tanto Mauro
como Adolfinho como representantes daquelas que ele considerava como sendo duas
comunidades distintas e legítimas. A reunião foi então dissolvida, a FUNAI fugindo
literalmente do local, seus funcionários temendo ser detidos pelos aliados de Adolfinho,
enquanto que a comunidade encabeçada por Mauro voltava para seus espaços
novamente em cortejo, gritando e aclamando, como se tivessem alcançado uma grande
vitória.
Este caso detalhado apresentado sobre os conflitos na reserva de Limão Verde
coloca em evidência as recentes transformações nas ações indigenistas perpetradas pelo
Estado brasileiro, através de suas instituições. Entrando em detalhes na descrição
pretendi evidenciar as dinâmicas que decorrem dessas ações, e como os índios reagem
às circunstâncias vividas em cada contexto local, pondo em circulação uma série de
informações, fruto dessas experiências pontuais, que lhes permite fazer ajustamentos
importantes na definição de alianças e lutas entre comunidades políticas antagônicas.
Foi possível ver também que, embora exista uma clara autonomia na determinação das
políticas locais, os conflitos que se desenvolvem internamente a uma determinada
reserva ou área indígena não podem ser considerados isoladamente, alimentando-se de
alianças que transcendem as configurações do local em exame. Como vimos, a
interferência da FUNAI nessas relações políticas regionais até não muito tempo eram
centrais e decisivas na configuração de poderios, e o exemplo aqui detalhado deixa
entender as conseqüências que o poder desse órgão federal tem produzido na
solidificação de cargos centralizados como o de “capitão”. Há que se observar, porém,
que nestes últimos tempos a ação do MPF, cada vez mais capilar na região, vem
173
claramente minando a relação privilegiada que a FUNAI mantinha com as supostas
comunidades indígenas, os Guarani de MS procurando cada vez mais diversificar as
fontes de legitimação de suas ações perante o Estado
83
.
7.5 As Aty Guasu
Como foi afirmado repetidamente, os Guarani discutem seus problemas em
reuniões denominadas aty guasu. Geralmente estes encontros dizem respeito às
necessidades de formalização das tomadas de decisão das famílias que compõem a
unidade política do tekoha; em casos mais raros, referem-se a reuniões de aliados de
diferentes comunidades locais, internas a um determinado tekoha guasu. o temos,
assim, até o início da década de 1980, um encontro generalizado envolvendo os Kaiowa
e Ñandéva no Cone sul do estado de MS.
Devido à insustentável situação de precário acesso à terra nos anos de 1970,
temos uma mudança significativa no relacionamento entre a quase totalidade das
comunidades locais destes dois grupos em pauta, originando-se um processo de
articulação política mais “macro”, que envolve estruturalmente as relações interétnicas.
A origem deste novo fenômeno está na atuação de algumas famílias da atual área de
Paraguasu, em uma reunião promovida pela ONG “Projeto Kaiowa-Ñandeva” (PKÑ)
em 1978
84
. Tal reunião foi realizada na reserva de Pirajuy para discutir o andamento dos
grupos de trabalho agrícola financiados por essa ONG (v. Thomaz de Almeida, 2001).
Pancho Romero, que liderava essas famílias, na ocasião denunciou as perseguições
perpetuadas por um grupo de fazendeiros que com insistência queriam expulsá-los dos
lugares onde residiam e desenvolviam suas atividades produtivas (agricultura) e
aquisitivas (caça, pesca e coleta). O fato teve repercussão ampla entre esses índios, de
tal modo que a partir daquele momento eles passaram periodicamente a promover aty
guasu para discutir os problemas de terras que afetavam várias comunidades da região.
83
A diversificação não deve ser vista tão somente como operada por grupos e facções, podendo os
indivíduos mover ações perante o Estado, a Constituição de 1988 permitindo que os indígenas possam
contratar, como indivíduos, assessoria jurídica, passando progressivamente a se emancipar do poder
tutelar exercido pela FUNAI. Em Dourados, recentemente uma indígena Ñandéva moveu uma ação
judicial contra o Chefe do Núcleo de Dourados, por este tê-la ofendido durante uma reunião pública,
tendo o juiz condenado o funcionário da FUNAI.
84
Sobre as atividades tecno-econômicas do PKÑ ver mais adiante, no item 16.3.
174
As discussões e os problemas que emergiram durante essas reuniões levaram à
identificação, no espaço de poucos anos, de três tekoha kaiowa, respectivamente os de
Paraguasu (Yvykuarusu/Takuaraty), Jaguapire e Pirakua. De fato, a luta pela terra
conduzida por essas comunidades teve o apoio de muitos líderes procedentes de
diversos lugares, relacionando Ñandéva e Kaiowa, ambos grupos extremamente
sensíveis ao problema fundiário por razões longamente explicitadas no decurso deste
trabalho. Para se ter uma idéia da abrangência das relações que as aty guasu
sintetizavam, personagens como Otávio Pires, de grande importância na luta para
recuperar os espaços de Potrero Guasu nos anos 90, participaram ativamente e
fisicamente na defesa da comunidade de Pirakua, que na década anterior teve que
enfrentar um poderoso e violento fazendeiro que pretendia despejá-la. Potrero Guasu e
Pirakua encontram-se a mais de 300 quilômetros de distância um do outro, sendo o
primeiro um tekoha em pleno território ñandéva, que se situa ao sul dos espaços
tradicionalmente ocupados pelos Kaiowa, enquanto que o segundo demarca o limite
norte dos territórios deste último grupo guarani.
Como se pode notar, as aty guasu em escala regional de fins dos anos 70 e na
década de 80 encontraram sua razão de ser nas necessidades impostas pelas novas
regras de acesso ao território, impostas pelo contato interétnico compulsório. O
problema da terra, como não podia deixar de ser, mobilizou também líderes religiosos,
fazendo das aty guasu ocasiões para promover jeroky guasu, danças sagradas
intimamente vinculadas à manutenção do equilíbrio cósmico. Nesse sentido, até final
dos anos 80 a aty guasu manteve as características de uma qualquer reunião guarani,
limitando-se à função de fórum de discussão e de redistribuição de conhecimentos em
escala regional, legitimada e sublimada por atividades religiosas. Assim, plenamente em
linha com as necessidades de organização social e territorial desses índios, as famílias
que constituíam as comunidades locais mantinham o poder e a autonomia nas decisões
que lhes dizia respeito, até mesmo quando as próprias políticas transcendiam o nível
local, alcançando instâncias públicas estaduais e federais.
As aty guasu, porém, no final dos anos 80 e início dos 90, sofreram tentativas de
transformação de sua estrutura no sentido da burocratização desta instância de discussão
indígena, tornado-a mais próxima dos modos ocidentais de entender a
representatividade e as tomadas de decisão. Este tipo de processo foi encaminhado a
175
partir das relações institucionais entre algumas lideranças kaiowa e ñandéva com
agentes indigenistas tanto do CIMI quanto da FUNAI.
O primeiro destes dois organismos pretendia com suas ações que os índios
formassem associações ou organizações indígenas, em analogia com o que acontecia
com outros grupos étnicos no Brasil e em outras nações limítrofes
85
. O CIMI partia do
pressuposto de que os Guarani não eram capazes de se organizar de modo eficaz para se
relacionar com organismos públicos e assim reivindicar a terra e outros direitos. Outro
fator que caracterizava esse órgão missionário, bem como toda a corrente católica ligada
à Teologia da Libertação, à qual o CIMI aferia, era o fato de considerar os índios como
“pobres”, associando-os com os segmentos de mais baixo status da sociedade brasileira.
De orientação marxista, o principio era o de conscientizar as massas, incluindo nelas os
índios, assim negando a priori características étnicas distintivas de organização política
e social. Por outro lado, alguns Guarani, geralmente jovens alfabetizados, tentando
aproveitar os recursos que esses missionários disponibilizavam, procuraram
experimentar essas formas de associacionismo e passaram a articular políticas no seio
das aty guasu.
A composição muito mais diversificada dos participantes dessas reuniões fez
dessas políticas dos homens “ligados” ao CIMI uma corrente que nunca chegou a ser
preponderante. Contudo, esse organismo missionário continuou fazendo pressões para
que a aty guasu alcançasse o máximo possível de formalismo político, típico do
associacionismo ocidental (presidente, secretário, tesoureiro, comissões etc.). Este tipo
de política, embora boicotada continuamente pela tendência dos Guarani de conduzir as
reuniões de modo acéfalo, teve uma significativa repercussão, a ponto de os índios
incorporarem compulsoriamente algumas dessas regras organizativas que lhes eram
alheias.
A partir da segunda metade da década de 1990, os indígenas que passaram a
ocupar o cargo de Chefes de Posto participavam das aty guasu como representantes, ao
85
Em num primeiro momento, os agentes do PKÑ compartilhavam esta opinião. Pensavam que
através da criação de organizações indígenas formalizadas, como pessoa jurídica, os índios podiam
melhor defender seus interesses. Contudo, a partir dos primeiros anos de atuação, os antropólogos
dessa instituição perceberam que as modalidades guarani de gerenciamento das assembléias e de tomada
de decisão eram incompatíveis com os moldes de organização política reconhecidos pelo Estado
brasileiro. Neste sentido, o PKÑ desistiu rapidamente de querer formalizar as reuniões, preferindo
assessorar e dar suporte às aty guasu organizadas segundo a tradição indígena.
176
mesmo tempo, tanto das políticas dos seus grupos macro-familiares e seus aliados,
quanto do órgão indigenista ao qual estavam afiliados no momento. O resultado dessas
políticas teve como eixo central uma disputa entre facções, que levou à eleição de um
índio para o cargo de administrador da FUNAI, acarretando mudanças de poder
significativas em algumas áreas de Posto Indígena. O jogo político entre “capitães”,
chefes de Posto indígenas e outros agentes “brancos” da FUNAI afinados com a
administração de Amambai
86
, encontrou por um período sua expressão formal nas
reuniões do aty guasu. Estes sujeitos, ao desviar a atenção do problema fundiário para
outros temas ligados a questões administrativas que diziam respeito às aldeias
estruturadas (como agricultura, trabalho nas usinas, educação, saúde etc.), intentavam
beneficiar os grupos que constituíam as facções, burocratizando a reunião geral dos
Guarani, e assim monopolizando sua organização. A aty guasu chegou então a
estruturar-se em comissões, ligadas aos vários assuntos discutidos, elegendo-se também
um presidente e uma série de assessores
87
.
O processo de burocratização da aty guasu, porém, não teve muito êxito. A
maioria dos Guarani comportaram-se como geralmente se comportam frente a tentativas
de induzir suas políticas a formas hierárquicas de organização: esvaziando esse fórum
de discussão, tanto em participação quanto em conteúdo. Os primeiros a renunciar
foram os xamãs, retirando apoio religioso às reuniões. Logo após foi a vez dos líderes
de famílias que insistentemente lutavam para recuperar suas terras, e alguns mburuvicha
de facções opostas àquelas estabelecidas. Isto levou por breve período a uma estagnação
das aty guasu e à procura, por parte de várias lideranças indígenas, de formas
alternativas de se reunir, que fossem, por um lado, mais adequadas às exigências da
organização política guarani e, por outro, que permitissem reconstruir alianças com o
objetivo de reintroduzir critérios de reciprocidade nesse tipo de discussão inter-
comunitária. A prioritária necessidade sentida por parte da maioria dos índios de
discutir a problemática da terra e a intolerância destes para com personagens que se
arrogavam o direito de decidir e articular com organismos públicos a partir da lógica
ocidental da “procuração”, levou progressivamente à destituição do presidente da aty
guasu e à definitiva eliminação deste cargo. A seguir, este mesmo movimento
86
O Núcleo da FUNAI de Dourados foi instituído posteriormente.
87
A transversalidade da política faccional articulada pelos Guarani levou também a integrar-se
nessa estrutura burocrática indivíduos que anteriormente orbitavam em torno ao CIMI.
177
conseguiu que fosse demitido o administrador da FUNAI de Amambai, índio
comprometido com esta lógica burocrática.
Atualmente a aty guasu voltou a constituir-se em fórum de discussão e de
redistribuição de informações, mantendo porém as comissões, a fim de diversificar os
assuntos tratados conforme os interesses dos participantes. A comissão “Áreas em
Conflito” passou a desenvolver apenas o papel de articuladora da discussão sobre o
problema fundiário, deixando total autonomia às comunidades locais sobre
modalidades, tempos e características da luta desenvolvida por cada uma delas, em
plena sintonia com as exigências da organização política e territorial dos Guarani de
MS. Fora destes encontros, os membros da comissão, na qualidade de especialistas,
passaram a assessorar as famílias em movimento de reivindicação fundiária,
acompanhando os andamentos jurídicos e administrativos, oferecendo informações
procedentes de contatos com organismos federais e estaduais, e funcionando como
ponto de referência para a articulação de indígenas dispostos a apoiar fisicamente
processos de “entrada” (aike) nas terras de antiga ocupação, solidificando assim a luta
das famílias locais.
Concluindo este item, pode-se dizer que o papel da aty guasu é fundamental no
desenvolvimento da luta pela terra dos Guarani de Mato Grosso do Sul. Deve-se
observar, porém, que esta instância de relações inter-comunitárias o passa de
simplesmente um fórum de discussão e de redistribuição dos conhecimentos; neste
sentido, não representa de maneira alguma uma síntese completa da situação política e
fundiária das comunidades desses índios. Como foi possível ver no breve histórico
apresentado sobre esta instituição, existem muitas almas que se manifestam neste
fórum, muitas vezes não indígenas e, dependendo da situação e do período, podem
ser prevalentes umas ou outras. Cabe salientar que atualmente o forte fermento nas
demandas por terra permite que a aty guasu alcance maior participação com relação a
alguns anos atrás, as danças religiosas (jeroky guasu) voltando a se manifestar no seu
bojo. A falta de participação de alguns líderes não deve ser vista como pouco interesse
de sua parte, mas como impossibilidade de obtenção de recursos para montar uma rede
estrutural que assegure a todos a afluência a esse importante fórum. Isto coloca uma vez
mais em destaque o risco de se produzir no seio das reuniões desigualdades, devido ao
178
fato de que personagens ligados à FUNAI e ao CIMI sempre possuem condições de
participação, enquanto os outros estão sujeitos a transportes e caronas ocasionais.
179
Foto I
Aty Guasu inter-comunitária na reserva de Amambai.
Panorâmica da reunião. Dezembro de 2004.
Foto II
Aty Guasu inter-comunitária na reserva de Amambai.
Fala de Tonico Benites, da T.I. Jaguapire. Dezembro de 2004.
Foto III
Aty Guasu inter-comunitária na reserva de Takuapiry. Falas das ñandesy (xamãs) Ordúlia (com o microfone) e Inácia,
respectivamente de Guaiviry (área de antiga ocupação) e da T.I.Guasuty. Maio de 2005.
Foto V
Foto IV
Aty Guasu inter-comunitária na reserva de Takuapiry. O Procurador da República,
Charles Pessoa (ao centro), no momento de seu batismo. Maio de 2005.
Aty Guasu inter-comunitária na reserva de Takuapiry.
Encerramento da reunião. Maio de 2005.
182
Capítulo VIII
Dinâmica territorial e processos políticos na T.I. Jaguapire
Nas próximas linhas me ocuparei do processo de reivindicação e reocupação de
Jaguapire, apresentando-o como um caso detalhado, procurando descrever relações
políticas e de parentesco que se articulam a partir da noção de procedência antiga dos
locais reivindicados. Reputo importante entrar nos detalhes deste processo visto que ele
permite ilustrar, com o auxílio de expedientes gráficos (como mapas, diagramas e
croquis), estratégias e lógicas sócio-culturais de apropriação do espaço e de construção
da territorialidade indígena. Ainda mais importante – como ficará claro na descrição dos
eventos –, com este caso detalhado se quer oferecer informações sobre os níveis de
articulação das comunidades políticas que se configuram em torno das demandas
fundiárias. Mostrar-se-á também que muitas vezes essas articulações encontram sua
base em configurações anteriores como é o caso da comunidade de Karaguatay, que
passou a ser articulada a partir de alianças com as famílias de Jaguapire (na TI.
Jaguapire) estabelecidas.
8.1 Jaguapire e o tekoha guasu de referência
88
A Terra Indígena Guarani Kaiowa de Jaguapire (município de Tacuru) foi
demarcada com uma superfície de 2349 ha, em 1992, no interior do espaço desenhado
pelos afluentes da margem direita do rio Iguatemi, alcançando a cabeceira do rio
Mbarakay. Segundo dados procedentes de minhas pesquisas e do levantamento
preliminar realizado por Barbosa da Silva (2005) sob os auspícios da FUNAI, essa
ampla região foi palco de intensas relações e de circulação de famílias kaiowa,
configurando os tekoha de Mbarakay, Puelito Kue, Mboi Vevê, Karaguatay, Jukeri,
Botelha, Kamakuã, Ka’ajari, Karaja Yvy, Kurusu Amba, Arroyo Kora,
Yvykuarusu/Takuaraty, Takuapyry e Limão Verde, somando mais de 400.000 ha de
88
A descrição histórica que se segue está baseada, além de em dados de minha pesquisa de campo,
naqueles procedentes de Thomaz de Almeida 1985, Pauletti et alii 2001, Mura 2000 e Barbosa da Silva
2005.
183
superfície (v. mapa VIII). Como visto (no cap. IV), a reserva de Sassoró, instituída pelo
SPI em 1928, não era pelos índios considerada como constituindo na época um tekoha,
mas havia ali uma concentração de indígenas devida ao trabalho nos ervais e no Porto
Sassoró – lugar de embarque da erva.
que se considerar que esse grande território o hospedava uma unidade
político-territorial unitária, formando-se circuitos diferenciados de aliança e, portanto,
grupos entre eles antagônicos. Estes circuitos se apoiavam muitas vezes em figuras de
relevo, como os tekoaruvicha, pontos de apoio para as articulações político-religiosas.
No caso específico de Jaguapire, no passado, as famílias originárias desse local e seus
aliados viviam sob a influência de um importante tekoaruvicha, conhecido como
Metério Vargas (v. diagrama III, 1). Ainda hoje, é de se observar, muitos continuam
determinando suas políticas a partir da relação de ascendência de parentesco com esta
importante figura, as famílias disputando a primazia em relação a Metério, dada a
importância que ele assumiu para o reconhecimento e a legitimidade em relação aos
espaços de Jaguapire.
A profundidade genealógica dos levantamentos feitos remete Metério Vargas a
princípio do século XX, numa situação de intenso contato interétnico com os
“brancos”. Não dispomos, até o momento, de suficientes dados para saber de todas as
razões que levaram à dissolução da unidade político-religiosa-territorial liderada por
Metério. Seguindo as informações dos indígenas relativas a esse período histórico, essas
mudanças na organização e distribuição das famílias no território se atribuem
especialmente a acusações de feitiçarias entre líderes indígenas, as quais teriam levado a
perseguições e mortes por vingança. Entre os acusados de feitiçaria estaria também o
próprio Metério, obrigado a fugir por um período de Jaguapire. Este tipo de situação,
unida às sucessivas atividades dos índios nos ervais da região e a um elevado número de
mortes por epidemias ocorridas nos anos de 1940 e 1950, teria modificado
sensivelmente o ordenamento e os equilíbrios políticos da região.
Embora não seja possível reconstruir em detalhes as relações da época, bem
como a área de influência de Metério nas várias etapas de sua atuação nesses lugares,
sabe-se que numerosas famílias residentes na reserva de Sassoró e na T.I. Jaguapire
(juntamente com outras residentes hoje em Amambai e Limão Verde, por conseqüência
184
de despejos e traslados efetuados pelo SPI e a pela FUNAI) são fortemente relacionadas
entre si, todas reconhecendo a grande importância desse tekoaruvicha.
8.2 Processo de reivindicação e reocupação da terra de Jaguapire
Não é possível hoje saber da totalidade dos filhos de Metério Vargas, e, por
conseqüência, de todas as linhas de descendência que dele derivaram. Sabemos apenas
da existência de dois filhos desse importante líder, que dão vida aos dois ramos através
dos quais as famílias de Jaguapire disputam a legitimidade em relação aos lugares
ocupados. Eram esses Francisco Vargas e Catulino Romero Vargas (v. diagrama III,
48 e 2). Os deslocamentos destes dois líderes de famílias extensas foram, por longo
tempo, diferentes. Por um lado, Francisco Vargas parece ter sempre permanecido nos
arredores da atual A.I. de Jaguapire, enquanto que Catulino e sua família ter-se-iam
dirigido para locais distantes, para fugir das ameaças de morte, ao ser ele, como seu pai,
acusado de feitiçaria. Uma vez aplacada a ira de seus acusadores, Catulino tornou às
proximidades de Jaguapire, assentando-se na reserva de Sassoró, onde faleceu nos anos
de 1980. Sobre a morte de Francisco Vargas não dispomos de informações. De qualquer
modo, tudo indica que ele não foi consideravelmente afetado por conflitos com
fazendeiros, como aconteceu com seus descendentes diretos, nos princípios da década
de 198 pois que foi justamente nesse período que emergiram com certa força as
demandas por terra por parte desses índios.
Em 1983, o marido de uma filha de Francisco Vargas, Genuário Ximenes (v.
diagrama III e croqui V, 49)
89
, tamõi guasu de considerável importância, denunciou
ao chefe do Posto de Sassoró as continuadas violências então perpetradas pelos
fazendeiros que ocupavam Jaguapire, os quais repetidamente teriam destruído e
queimado as habitações indígenas. De fato, ocorria que em 1981 teriam sido vendidas as
fazendas Redenção e Modelo ao Sr. José Fuentes Romero, o qual, através de seu
administrador, teria exercido pressões violentas sobre os índios para que se afastassem
do lugar. Deve-se levar em conta que as relações tensas entre os índios e esse
proprietário foram, até os primeiros meses de 1984, intercaladas por épocas de relativa
89
Todos os números a seguir dizem respeito a, além do diagrama considerado, também ao croqui V a ele
associado, indicando-se o local de residência.
185
calma, durante as quais os próprios indígenas eram utilizados como mão-de-obra na
fazenda. As relações se deterioram quando Sr. Fuentes arrendou parte de “suas” terras
para terceiros, acirrando-se o conflito com os índios, que acabaram por ser, em março
de 1985, despejados e levados para as proximidades da sede da Missão Evangélica
Caiuá, perto da reserva de Sassoró.
Esses acontecimentos amplificaram a mobilização política entre os índios que
reivindicavam as terras de Jaguapire. Às vinte e sete pessoas que compunham o te’yi de
Genuário juntaram-se mais quarenta e sete, ligadas por parentesco com sua esposa,
Tomásia Vargas (v. diagrama II, 49a), todas intencionadas a regressar ao tekoha que
consideravam de origem. No período durante o qual se realizou o trabalho de
identificação (1985), em Jaguapire estavam presentes 105 pessoas. Esse posterior
aumento populacional deveu-se ao translado, de Sassoró, de outro conjunto de famílias,
vinculadas estas a José Benitez (v. diagrama II, nº 28), importante líder indígena, casado
com Emília Romero (v. diagrama II, nº 28a), filha de Catulino.
A população em Jaguapire foi, assim, aumentando tanto que existiam 178
pessoas no local quando deu-se um posterior despejo ocorrido em setembro de 1989.
Desta feita, as famílias aliadas a Genuário foram levadas pela FUNAI para a mais
distante reserva de Porto Lindo, em pleno território ñandeva, enquanto que a facção de
José Benites voltou para Sassoró. O exílio durou quase três anos. Desta vez,
impulsionadas pela forte pressão exercida pelas mulheres, as famílias indígenas
voltaram novamente a Jaguapire, uma vez realizada a demarcação, sem que, contudo,
houvesse a autorização da Justiça Federal. Assentaram-se nesse local aproximadamente
200 pessoas, os índios tomando posse de boa parte da área demarcada. Contudo, um
espaço considerável, denominado Jaguapire Memby, ficou, por um tempo, sob
interdição judicial, as famílias indígenas não podendo aí se assentar.
Em 1993 a população de Jaguapire já superava as 200 pessoas e as pressões para
ocupar Jaguapire Memby se faziam cada vez mais insistentes, até que em agosto de
1996, uma vez mais sem aguardar ordem judicial, as famílias indígenas decidiram entrar
(aike) nesse local, hoje densamente povoado.
Em outubro de 2000, oito anos após a identificação, em Jaguapire existiam
mais de 400 habitantes, tendo duplicado seu contingente demográfico. Boa parte do
aumento populacional foi devido ao crescimento vegetativo, mas também que se
186
destacar a presença de grande número de famílias que se integraram em Jaguapire
através de específicas dinâmicas políticas e de parentesco internas à então recém-criada
T.I. enquanto unidade administrativa do Estado federal. Estas dinâmicas são relevantes
para se compreender a construção da legitimidade de acesso à terra por parte dos
indígenas, e serão objeto de atenção do próximo item.
8.3 Dinâmica territorial e de parentela em Jaguapire
90
Desde que houve a demarcação de Jaguapire, os índios não se viram mais
obrigados a sair da terra. Cabe observar, porém, que nem todos os ali localizados
participaram do movimento que levou à reocupação do espaço. De fato, deve-se levar
em conta ajustes nas relações de parentesco entre as famílias “originárias” do lugar e
outras, que, por relações de afinidade, foram se agregando àquelas. Para melhor
entender este tipo de fenômeno, parece-me relevante descrever tais ajustes de
parentesco em função de duas variáveis: a distribuição espacial e a luta política pelo
controle do espaço territorial recuperado.
Uma vez tornados do “exílio” de Porto Lindo e Sassoró, os índios se
distribuíram seguindo uma específica relação com o território, especificidade esta
devida às distintas experiências passadas nessa região, bem como ao antagonismo entre
os dois grupos e, ainda, à relação comum por ascendência com o tekoaruvicha Metério
Vargas. Por um lado, o ramo relacionado à Tomásia e Genuário se assentou num local
central da região considerada como sendo Jaguapire em senso estrito (v. croqui V),
lugar este de onde foram expulsos na última vez. Se tomarmos em consideração o mapa
IX, será possível constatar que os deslocamentos dos Vargas-Ximenes foram realizados
internamente a uma superfície, de modo circular, passando-se repetidamente pelo lugar
onde atualmente estão assentados. Os integrantes dessas famílias apresentam relatos
heróicos sobre esses deslocamentos, manifestando fortes sentimentos de autoctonia.
90
Os processos e as elaborações relatados neste ítem, como também as que se seguem, estão baseados
tanto em informações procedentes de minha pesquisa de campo, quanto em dados presentes em Thomaz
de Almeida 1985, Brand 1997, Pereira 1999 e Mura 2000.
187
Analisando o croqui V, podemos constatar que em outubro de 1999, em
Jaguapire propriamente dito, estavam distribuídos exclusivamente os descendentes
consangüíneos dos dois casamentos de Tomásia Vargas, e seus respectivos aliados por
laços de afinidade. Assim, a parte central dessa região da área demarcada se constitui
como um eixo de articulação político-religioso-territorial dessa parentela. Num primeiro
momento (1992-93), Tomásia Vargas e Genuário Ximenes construíram sua residência
em proximidade com o local onde atualmente vive Celestino Vargas (nº 53) – filho mais
velho de Tomásia, gerado em casamento anterior –, lugar este que tinha sido habitado
pelo casal décadas antes. Uma vez falecida Tomásia, Genuário mudou-se para um lugar
mais central, onde construiu uma ogapysy
91
(nº 53), remarcando assim sua jurisdição
sobre o espaço ocupado por sua comunidade política.
Pelo descrito até aqui, fica evidente a importância política atribuída aos Vargas-
Ximenes no processo de assentamento das famílias em Jaguapire, logo após a
demarcação. Isto teve reflexo também na atribuição do cargo de “capitão”, logo no
início, a Rosalino Ximenes (v. diagrama II, nº 55), filho de Genuário.
Neste ponto, me ocuparei de outro ramo de descendência de Metério Vargas,
isto é, os Romero-Benites. Como foi argumentado, quando Jaguapire foi demarcada,
o local denominado Jaguapire Memby (v. croqui V) ficou interditado por ordem
judicial. Tanto os Romero quanto os Benites passaram então a reivindicar com
insistência esse espaço, assentando-se nas proximidades da área interditada e afastando-
se, assim, dos lugares ocupados pelos membros da família rival, da qual questionavam a
autoridade e a legitimidade Rosalino como líder do tekoha.
Em 1996, como visto, sem esperar uma ordem judicial, os Romero-Benites e
seus aliados decidiram entrar em Jaguapire Memby, onde ainda hoje estão assentados.
Tal ação, que ampliou de fato o espaço habitável, contou com os deslocamentos para
esse lugar de outros três irmãos de Emília Romero, com seus respectivos te’yi:
91
Construção de tipo teto beira-chão, feita com técnicas tradicionais, considerada pelos índios como o
espaço mais adequado para abrigar e cuidar os instrumentos rituais. No caso específico de Jaguapire, sua
função está vinculada também, e de modo preponderante, ao poder dos conjuntos de famílias extensas
relacionadas com a terra. Foram construidas duas ogapysy, localizadas nos conjuntos habitacionais de
Genuário Ximenes e JoBenitez (ver croqui V, 49 e nº 28), este último líder de família oposta à dos
Vargas, como veremos mais adiante. A respeito deste tipo específico de construção, ver o cap. XIII, item
13.2.
188
Feliciano, Arsênio e Nuco (v. diagrama II, respectivamente nºs 8, 10 e 11). Nuco,
especificamente escolheu um local afastado no interior de Jaguapire Memby, devido a
uma forte hostilidade manifestada com relação a seu cunhado José, hostilidade esta que
se estendia a toda a aliança política estabelecida entre os Romero e os Benites
92
.
A hostilidade alcançou elevados níveis de intolerância, Emília e José chegando a
ser acusados de feitiçaria, fato que os obrigou a se afastar momentaneamente de
Jaguapire, para que se acalmassem os ânimos. Francisco Benites, filho de José e Emília
(v. diagrama II, nº 32), por longo período “capitão” de Jaguapire, também sofreu
violência, sobretudo exercida pelo filho mais velho de Nuco, Alcide Romero (v.
diagrama II, 22). Estes conflitos levaram à progressiva formação de uma aliança
transversal entre os integrantes da família extensa de Nuco Romero e os Vargas-
Ximenes, exercendo todos eles um exacerbado obstrucionismo à autoridade” de
Francisco como “capitão” e a seus aliados. Deve-se levar em conta que, o obstante o
perdurar dessa situação de conflito, os integrantes do te’yi de Nuco mantêm-se
estabelecidos nos espaços de origem, não pensando em mudar de lugar.
Isto até aqui descrito coloca em destaque a importância da autoctonia e da
memória sobre os lugares como fatores de suma importância na procura de um espaço
social e simbolicamente consoante com as exigências do grupo macro-familiar ao qual
se pertence. Tanto Nuco Romero e sua família quanto os Romero-Benites,
reivindicavam um espaço em comum, embora naquele período não existisse nenhuma
relação política estabelecida entre eles e, pior ainda, estando em constante conflito uns
com os outros. Se tomarmos em consideração o mapa IX, se poderá observar que o
espaço de Jaguapire Memby encontra-se no itinerário de deslocamento tanto dos
Romero quanto dos Benites. A amplitude deste espaço, como fica claro, vai bem além
da superfície restrita da T.I. demarcada em 1992, sob a denominação de Jaguapire. A
extensão inclui também a região indicada como sendo o tekoha de Jukeri, da qual seria
originária boa parte dos Benites, enquanto que os Romero procederiam justamente de
Jaguapire Memby. Reconstruindo, a partir da memória, a região onde seus parentes têm
residido, trabalhado e lutado, os Benites deixam hoje transparecer a amplitude dos seus
92
Para se ter uma idéia gráfica da amplitude dessas alianças, ver no croqui V as residências circunscritas
pela linha bicolor vermelho/azul, excluindo-se, obviamente, o te’yi liderado por Nuco Romero,
representado com um círculo vermelho.
189
espaços de origem. Porém, as condições sociais e políticas em Jaguapire até o momento
não deram ensejo a uma mobilização suficientemente organizada para tentar recuperar
esses lugares de antiga ocupação. Como foi já argumentado, durante muito tempo,
grande parte do controle sobre Jaguapire esteve nas mãos dos Romero-Benites – o cargo
de “capitão” sendo ocupado por Francisco desde 1998. Há que se levar em conta,
porém, que a instabilidade política em Jaguapire é um fator constante. Por tal razão, os
Benites não renunciam a seus direitos sobre o espaço por eles ocupado, adquirido
através das relações de afinidade com os Romero, deixando momentaneamente de lado
a possibilidade de entrar em Jukeri e usando a imagem de e a memória sobre este lugar
simplesmente como elementos ordenadores de uma realidade territorial de referência
bem mais ampla, a qual lhes confere maior legitimidade de autoctonia na região.
Mas se no caso de Jukeri não há, pelo menos momentaneamente, nenhum
movimento organizado para sua recuperação, não podemos afirmar o mesmo com
relação às dinâmicas políticas e familiares que configuram a demanda por outro lugar de
antiga ocupação indígena: Karaguatay. Em Jaguapire, nos últimos anos, foram se
agregando famílias originárias justamente destas duas áreas, participando direta ou
indiretamente da situação política local. Delas me ocuparei no próximo tópico.
8.4 A luta política em Jaguapire e a reivindicação de Karaguatay
Deve-se observar que houve a passagem do cargo de “capitão” das mãos dos
Vargas-Ximenes para a família rival, na pessoa de Francisco Benites. Tal fato deveu-se
a um complicado processo de construção de alianças, durante o qual esse cargo passou
pelas mãos de Rosalino Ximenes (o citado filho de Tomásia Vargas) e depois pelas de
um seu sobrinho, Dorival Fernandes (v. diagrama III e IV, 65) filho de Marculino
Fernandes e Micaela Vargas (v. diagrama III e IV, 52 e52a). Em decorrência da
bilateralidade do parentesco kaiowa, que atribui aos descendentes de ambos os lados o
direito originário sobre a terra, Dorival pode se considerar como pertencendo, por via
materna, a Jaguapire, sendo que por via paterna pode se inscrever entre os descendentes
das famílias de Karaguatay, visto que seu pai, Marculino, procede desse antigo tekoha.
A importância política de Dorival em Jaguapire não se deve simplesmente a
relações de ascendência com os Vargas. De alguma forma, também seu pai, enquanto
190
agregado desta prestigiosa família, tinha lutado muito para reconquistar Jaguapire,
ganhando um lugar de destaque na arena política comunitária. As relações de Marculino
com seu cunhado Rosalino foram sempre muito boas e, até a alguns anos, juntos
mantinham uma forte hostilidade para com os Romero-Benites. A partir de 1996, com a
chegada do te’yi de seu irmão, Arturo Fernandes (v. diagrama IV, nº 51) – te’yi este que
foi o último a sair de Karaguatay –, e em decorrência de algumas alianças estipuladas
com famílias ñandéva assentadas em Jaguapire, Marculino conseguiu potencializar a
posição de sua família extensa, seu filho Dorival justamente assumindo o cargo de
“capitão”.
Tal cargo não durou muito na posse desse jovem indígena. Ocorreu que Dorival
havia participado de um curso de tratorista e a FUNAI, durante seu mandato como
“líder” da “comunidade” de Jaguapire, entregou em suas mãos um trator, instrumento
este que permitiu o desenvolver-se de uma série de negociações, que culminaram em
um acerto entre o próprio Dorival e os Benites. O acordo previa que o cargo de
“capitão” passaria para Francisco, sendo que Dorival permaneceria como tratorista de
Jaguapire, cargo este que conta com um salário periódico do órgão tutelar. A mudança
de liderança não foi bem aceita por Rosalino, mas este não teve condições para reverter
de imediato a situação, visto que o acerto não era devido a uma simples troca de favores
entre esses dois indivíduos, envolvendo, de fato, novos ajustamentos nas alianças
familiares em Jaguapire.
Como dito, as polarizações políticas em Jaguapire são um fato constante.
Embora oficialmente a FUNAI não o reconheça, substancialmente o tekoha está
dividido politicamente em duas regiões claramente distintas, e é a partir desta situação
básica que as famílias originárias de outros lugares articulam seus grupos específicos.
Neste sentido, voltando às figuras de Marculino e Dorival Fernandes, tentarei agora vê-
las a partir de outra óptica, isto é, em função da construção da comunidade política que
hoje está reivindicando Karaguatay.
A organização política e social da comunidade que demanda Karaguatay tem seu
eixo em alguns personagens chaves. Por um lado, temos a posição bem afirmada de
Marculino Fernandes em Jaguapire, enquanto que, por outro, temos a figura central de
seu irmão, Arturo, o último a ter saído de Karaguatay e o articulador político da luta
para a recuperação deste tekoha.
191
O te’ yi de Arturo passou por diversas vicissitudes. Sua família inteira deixou
sua terra (v. mapa VIII) na metade da década de 1980, trasladando-se para Jaguapire
pouco antes que as famílias deste último lugar fossem despejadas. Junto com estas, a
família de Arturo foi obrigada a residir na reserva de Porto Lindo.
A primeira saída obrigatória de Karaguatay ocorreu pelo fato de que a fazenda,
na qual a família de Arturo vivia e trabalhava, foi vendida, acontecendo algo parecido
com o exposto para Jaguapire. Mas, diferentemente do destino das famílias pertencentes
a esta última área, o te’yi de Arturo, saindo de Porto Lindo, conseguiu voltar a trabalhar
em Karaguatay, onde permaneceu até 1994, quando então foi expulso definitivamente.
Obrigados novamente a voltar a Jaguapire, Arturo e sua família, não conformes com
essa situação compulsória, passaram a articular as famílias originárias de Karaguatay,
muitas delas presentes em Jaguapire.
Observando o croqui V e o diagrama IV, podemos notar a localização e a relação
existente entre os indivíduos que reivindicam esse tekoha. Fica evidente que algumas
dessas pessoas situam-se também na comunidade de Jaguapire, Dorival Fernandes
representando um exemplo sobressalente, como assinalado. desde sua fase como
“capitão”, fazia ele parte de um circuito de colaboração econômica cujo principal eixo
era seu tio Arturo, envolvendo grande parte das famílias que demandavam Karaguatay.
O que se ia formando era uma comunidade política interna às redes de relações de
Jaguapire, justificada em grande medida pelo sentimento de origem em um espaço em
comum, sentindo-se, nessa fase histórica, “desterritorializada”. A luta para reconquistar
esses espaços de origem criou, assim, os pressupostos básicos para que se constituísse
uma liderança própria, identificada na figura de Arturo Fernandes. Em decorrência desta
luta, esse líder decidiu convidar um xamã, procedente da reserva de Sassoró, para residir
nas proximidades de sua residência e para quem construiu uma residência. Sua intenção
era poder dar vida a rituais propiciatórios para alcançar os propósitos da luta. Esta
mudança, no entanto, por razões desconhecidas, não foi efetivada. De qualquer forma, a
construção não foi desperdiçada, o próprio Dorival mudando-se para esse local (de 65
para 65x, no croqui V), consolidando a relação de colaboração com seu tio paterno. Esta
colaboração perdurou até 2001, demonstrando a tendência dos Fernandes a compactar-
se nas atividades desenvolvidas no interior de Jaguapire, em certa harmonia com os
Benites.
192
É importante ressaltar que em seguida os eventos políticos voltaram a re-
configurar a arena política local, Dorival restabelecendo relações cordiais com seu tio
materno Rosalino, ao lado do qual estabeleceu uma derradeira residência. Levou
consigo o trator, após entrar em forte conflito com Francisco Benites, utilizando este
meio técnico para beneficiar apenas seus parentes e “novos” aliados, em troca de
bebidas alcoólicas, uma vez que a FUNAI não o contratou mais como tratorista. A
colaboração com seu tio paterno sofreu uma provisória estagnação, colaboração esta que
voltou a se efetivar em decorrência da chegada progressiva, a partir de 2002, de outros
te’yi de Karaguatay, anteriormente assentados na reserva de Limão Verde. Estes novos
acontecimentos levaram também a uma posterior mudança na representatividade
política formal frente à FUNAI, sendo que em 2004, Vanildo Martins Rocha (liderança
de um desses te’yi egressos de Limão Verde) assumiu o cargo de “capitão”, em aliança
com os Vargas-Ximenes.
O número de integrantes da comunidade de Karaguatay foi, assim, aumentando
em Jaguapire. Contudo, o fermento anteriormente manifestado para retomar o antigo
tekoha já não era o mesmo. Arturo e sua família perdiam de fato o primado na condução
da luta, uma vez que Vanildo, como “capitão”, chegava a ofuscar sua figura. O
enfraquecimento do papel central ocupado pelo te’yi de Arturo deve-se também ao fato
de que uma de suas filhas, altamente empenhada no processo de luta, havia se afastado
de Jaguapire, em decorrência de um divórcio, reduzindo assim as potencialidades
políticas do grupo doméstico que integrava. Todos estes fatores momentaneamente têm
diminuído as manifestações de demanda por Karaguatay, sem com isso indicar que
houve uma desistência. Com efeito, a qualquer momento dependendo da situação
política local e dos circuitos de cooperação em Jaguapire, e levando-se em conta o
significativo aumento, nesse lugar, de membros do tekoha pleiteado –, a demanda por
Karaguatay pode se manifestar com mais firmeza, com relação aos dias de hoje.
8.4 Algumas considerações gerais
O caso detalhado aqui apresentado nos permite fazer alguns comentários de
ordem geral. Em primeiro lugar, deve-se ressaltar que as demandas apresentadas pelos
índios não podem ser vistas como compartimentos estanques, isto é, não se pode pensar
193
quantitativamente numa soma aritmética de comunidades independentes entre si, às
quais correspondem determinados espaços de origem. Os dados e os processos
apresentados para o caso de Jaguapire mostram que as famílias indígenas constroem e
reconstroem as comunidades segundo as condições políticas de acessibilidade aos
espaços onde algumas delas residiram num determinado período histórico. Isto coloca
em destaque o fato de que membros pertencentes a uma determinada comunidade num
período “x” poderão participar legitimamente da construção de, ou integrar-se em, outra
comunidade, no período “y”.
As descrições feitas deixam claro que alguns sujeitos que participaram
intensamente da luta para recuperar Jaguapire, num segundo momento participaram da
reivindicação de Karaguatay, usando como ponto de referência outra configuração
comunitária. Por outro lado, numa fase ainda incipiente de um processo de luta, se
podem detectar indivíduos e famílias que, dependendo de seus interesses, alianças e/ou
condições do conflito fundiário, se reconhecerão originários de um ou outro lugar, ou de
ambos. Tal situação se concretiza, por exemplo, nos indivíduos que por bilateralidade se
remetem tanto a Karaguatay quanto a Jaguapire. Neste sentido, parece-me oportuno
considerar as famílias indígenas em rede, isto é, relacionadas umas a outras. Para
construir relações comunitárias a partir do recorte dessa rede, os índios determinam
critérios de inscrição e exclusão através do vínculo que as famílias possuem com os
lugares de origem. O binômio famílias-espaço passa a ser, assim, um fator
discriminante, que limita a extensão da rede – o que deixa pensar que exista um número
bem definido de indivíduos que podem aspirar aos espaços de um determinado tekoha
guasu. No caso específico apresentado, pode-se dizer que, conforme se configuram
situações políticas específicas, a rede de relações à qual a maioria dos moradores dessa
região faz referência permite que sejam reivindicados Mbarakay, Puelito Kue, Mboi
Vevê, Karaguatay, Jukeri, Botelha, Kamakuã, Ka’ajari, Karaja Yvy, Kurusu Amba, e
outros espaços eventuais, que ainda não foram formulados pelos índios pelo fato de que
representariam formas inéditas de imaginar e configurar relações comunitárias. Estas
considerações levam à seguinte conclusão: a demanda de espaços internos a um
determinado tekoha guasu pode ser potencialmente infinita, no sentido de que, em
algum momento desses últimos cem anos de história houve seguramente alguma família
indígena que usou ou morou num determinando lugar dessa região mais ampla. O fato
de que os índios configuram suas comunidades no presente dando ênfase a algumas
194
delas não exclui a possibilidade de que num futuro boa parte dos membros dessa mesma
comunidade crie outra configuração comunitária, que remete a outro lugar e a outras
famílias de origem. Por outro lado, pode-se constatar que, dado o fato de que existe um
número finito de indivíduos, demarcando-se áreas que relacionam, de modo aceitável,
família conjugal/espaço (aproximadamente 170 ha por família), a possibilidade de haver
essas enormes variações de configuração comunitárias diminuiria drasticamente, e com
elas a demanda por terra.
Em segundo lugar, o caso detalhado pretende mostrar que a luta pela terra
depende também das condições internas às áreas indígenas atuais. Não se pode
desconsiderar as variáveis ligadas ao poder que as famílias possuem dentro destas e os
conflitos que nelas podem ser gerados. Isto afeta as escolhas indígenas na definição de
prioridades sobre quando acelerar o processo de recuperação de um determinado tekoha.
Neste sentido, os casos apresentados representam duas fases distintas da luta pela terra:
aquela em estado avançado, da comunidade de Jaguapire, que chegou a desafiar várias
vezes os fazendeiros e recuperar definitivamente o tekoha, e a de Karaguatay, cuja
demanda ainda está em fase embrionária. Em Jaguapire, a situação interna até o
momento permite uma certa autonomia, as famílias que o se consideram do lugar
tendo espaço político e acesso à terra o que não configura uma situação dramática,
como nos casos das famílias que vivem nas reservas densamente povoadas. Isto pode,
de algum modo, pesar nas tímidas manifestações das famílias de Karaguatay em querer
entrar em suas terras, com toda a instabilidade que isto implica.
Em terceiro e último lugar, gostaria de colocar uma variável fundamental para
compreender os níveis de fermento no processo de luta: os rituais. No caso de Jaguapire,
no período de sua reconquista, a presença na comunidade do citado xamã Atanás
Teixeira (v. diagrama III, 54), então cunhado de Rosalino Ximenes, exercia a
importante função de intermediar as relações das famílias indígenas com as divindades,
propiciando a reocupação da área pleiteada. No que diz respeito à comunidade de
Karaguatay, lembramos a tentativa de Arturo levar um xaao local de sua jurisdição
em Jaguapire, justamente para desenvolver essa importante função religiosa. A tentativa
não foi bem sucedida, colocando uma vez mais em evidência a natureza embrionária da
luta para a recuperação do antigo tekoha.
Sassoro
Jaguapire
Jukeri
Botella
Karaguatay
Puelito Kue
Mbarakay
Mboi Vevê
Kajari
Kamakua
Karaja Yvy
Karusu Amba
Yvykuarusu/takuaraty
Arroyo Kora
Takuapiry
Limão Verde
Mapa VIII
Tekoha Guasu dos Kaiowa Iguatemipegua
Terra Indígena legalizada
Terra Indígena em processo de legalização
Terra Indígena hoje não em posse dos índios
Jukeri
Jaguapire
Jaguapire Memby
B
Cidade de Iguatemi 30 km
A
B
A
B
B
C
C
C
Área de maior ocupação dos Romero-Benites
Área de maior ocupação dos Vargas-Ximenes
Mapa IX
Espaço de circulação dos te’yi
A
Área de caça e coleta
Área de caça, pesca e coleta.
Área de caça e coleta
B
C
Croqui V
Espaço destinado ao Diagrama III. Para visualizar este diagrama, ver versão
impressa da tese. Ele é composto de quatro páginas articuladas, não sendo portanto
possível anexá-lo neste ponto.
199
Espaço destinado ao Diagrama IV. Para visualizar este diagrama ver versão
impressa da tese. Ele é composto de duas páginas articuladas, não sendo portanto
possível anexá-lo neste ponto.
200
Foto VI
Foto VII
T.I. Jaguapire. Rosalino Xinemes (à esquerda)
e seu pai, Genuário. Setembro de 1999.
T.I. Jaguapire. O xamã Atanás Teixeira
(à direita) e sua esposa, Roberta Vargas
Ximenes. Março de 1993.
201
Foto VIII
Foto IX
Francisco Benites.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
José Benites e Emília Romero. T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
202
Parte III
TRADIÇÃO DE CONHECIMENTO
203
Há mais de 50 anos Schaden escrevia:
Um fato que dificulta não pouco a descrição exata da religião Guarani dos
grupos hoje existentes no Brasil, quer no tocante à doutrina, quer ao ritual, é a
extraordinária variabilidade observada de aldeia em aldeia, de um sacerdote a outro,
ou ainda entre os representantes de um mesmo grupo. A sistematização dos
elementos daria por si margem para extensa monografia. As divergências e
contradições, mesmo no interior deste ou aquele subgrupo, desta ou daquela aldeia,
são tão numerosas e de tal modo acentuadas que se torna praticamente impossível
apresentar a religião tribal em formulações “dogmáticas” ou peremptórias. (1974:
106).
As angústias apresentadas pelo autor refletem em grande medida as
preocupações da maior parte dos estudiosos que pesquisaram os Guarani, tanto em
campo quanto nas fontes. É surpreendente, como bem observa Viveiros de Castro
(1986), a grande dedicação existente na literatura sobre os Guarani à formulação de
compilações e exegeses. Neste sentido, transcrições de cantos e mitos e elaborações de
vocabulários ocuparam grande espaço na monumental produção sobre este povo. Por
outro lado, é interessante colocar em destaque o fato de que a sistematização do material
coletado quase sempre visa a construir ou reconstruir um corpus doutrinário enquanto
sistema normativo. Assim sendo, é deixado de lado ou é dada pouca relevância aos
mecanismos sociais que permitem a geração dos conceitos formulados nas narrações,
cantos e/ou representações rituais, assim como as modalidades de distribuição dos
saberes, dependendo do papel de cada sujeito indígena e de seu contexto. A tendência
na literatura a se querer interpretar a vida social, política, religiosa e prática dos índios
unicamente a partir desse corpus de doutrinas acaba inevitavelmente por produzir uma
imagem da vida indígena incongruente com os comportamentos que podemos
cotidianamente observar entre os Kaiowa.
Assim, em vez de procurar reconstruir uma uniformidade do pensamento
cosmológico destes índios para concluir depois que isto é impossível, visto a grande
diversidade de opiniões e versões apresentadas pelos informantes como no caso de
Schaden –, prefiro dirigir minha atenção para dois fatores que reputo centrais na
construção da tradição de conhecimento dos Kaiowa. Por um lado, as especificidades
dos princípios e lógicas contidas nas narrações e seu uso moral, procurando entender os
mecanismos através dos quais os índios produzem, incorporam e/ou interpretam
conhecimentos e, dependendo das características destes conhecimentos, quem possui
204
legitimidade para tal propósito; por outro lado, é importante procurar entender qual o
grau de correspondência entre os postulados das normas e observações morais e os
comportamentos práticos manifestados pelos indivíduos. Neste segundo caso, não
procuro observar, como normalmente ocorre na literatura sobre os Guarani, se as
práticas dos índios se desviam ou não daquelas pretendidas pelas normas e os preceitos
morais e éticos do grupo, para chegar à conclusão de que estes são mais ou menos
kaiowa. Os estudos neste sentido tendem sempre a reproduzir, em um plano analítico, as
considerações nativas de que antigamente tudo era melhor e que hoje os índios não se
comportam mais segundo o teko porã, o correto modo de ser.
Minha visão neste sentido foi manifestada, quando me referi ao grande
número de divórcios entre os índios, apontando-se claramente que as afirmações nativas
não correspondem às práticas efetivas. Isto não se restringe apenas à lógica de
parentesco e de organização política, sendo possível encontrar “incongruências” deste
tipo em vários aspectos da vida indígena. Minha insistência sobre este ponto poderá
parecer um posicionamento ingênuo, uma vez que Malinowski, na introdução a
“Argonautas do Pacífico Ocidental” (1978 [1922]), assinalava a diferença existente
entre as declarações dos nativos e suas práticas efetivas, argumento este reforçado por
Firth (1964), quando propõe a distinção entre estrutura social, expressa através das
normas, e organização social, resultante da efetiva ação dos indivíduos. Entretanto, a
literatura antropológica tem sempre dado maior relevância ao “dizer”, aos discursos, e
menos ao “fazer”, objeto privilegiado da observação. Assim sendo, as normas ocupam
um lugar especial, sendo que os comportamentos são comumente vistos como adesão ou
desvios com relação ao quadro normativo. Eu, ao contrário, considero que não podemos
entender as normas fora do contexto sócio-ecológico-territorial onde vigoram e, se no
caso específico dos Kaiowa, numerosas práticas apresentam-se “incongruentes” com as
observações morais, não podemos absolutamente concluir que se está passando por um
processo de mudança, uma vez que este tipo de comportamento reitera-se há pelo menos
seis décadas. Nesses termos, considero importante dirigir o olhar não simplesmente para
205
as normas ou para as ações, mas para a específica relação estabelecida entre as
primeiras e as segundas
93
.
Portanto, minha tarefa, aqui não será a de avaliar se os índios fazem o que
dizem, mas a de procurar entender que papéis revestem as normas e as advertências
morais na vida cotidiana, relevando graus de idealização e encantamento deste
cotidiano. Um objetivo é também o de verificar processos de mudanças no
comportamento das famílias indígenas, e como estas são interpretadas. Em meu
entender, submetidos a uma dominação neocolonial para se defender de formas diversas
de compreender a realidade, conceituadas como pertencentes ao karai reko (modo de
ser dos “brancos”), os Kaiowa utilizam mecanismos que exaltam e idealizam um
conjunto de comportamentos, servindo este como ponto de referência; uma espécie de
tipo ideal, baseado na lógica da perfeição e plenitude (aguije) que, como se verá, são
elementos centrais na construção das relações cosmológicas destes índios. Ademais, a
construção e o uso constante da dicotomia “modo de ser antigo” (teko aymã) versus
“novo modo de ser” (teko pyahu) não é devida a uma degeneração da vida social e
cultural indígena como resultado do contato aculturador com os “brancos”. Existe, sim,
uma clara correspondência entre esta contraposição e a distinção que os índios fazem
entre um espaço-tempo das origens (Ára Ypy), onde tudo era equilibrado, e o espaço-
tempo atual (Ára Ypyrã), dominado pelas iniqüidades e diferenças hierárquicas entre os
seres que povoam o Cosmo. Além disso, a dicotomia moral entre corretos e incorretos
modos de agir dos humanos é um dispositivo moral voltado a se evitar posteriores
degenerações destes seres com relação à humanidade originária. Estes dois fatores
levam a pensar que este modo de interpretar a vida passada é peculiar, cabendo aqui se
fazer os devidos aprofundamentos.
93
Como aponta justamente Bourdieu, “la reducción brutalmente materialista que describe los
valores como intereses colectivamente no-reconocidos[méconnus], reconocidos por tanto, y que recuerda
con Weber que la regla oficial no determina la practica excepto cuando el interés por obedecerla
predomina sobre el interés por desobedecerla, ejerce siempre un saludable efecto de desmitificación; pero
no debe hacer olvidar, sin embargo, que la definición oficial de lo real forma parte de una definición
completa de la realidad social y que esta antropología imaginaria tiene efectos muy reales: se le puede
negar a la regla la eficacia que le concede el juridismo sin ignorar por elle que existe un interés por estar
en regla que puede estar en el origen de las estrategias encaminadas a ponerse en regla, a poner , como se
dice, el Derecho de su parte, a atrapar, por así decirlo, al grupo en el juego de uno mismo presentando los
intereses bajo la apariencia desfigurada de valores reconocidos por el grupo” (1991: 184).
206
Há ainda um outro fator que me parece importante destacar na literatura sobre os
Guarani. O fato de a maioria dos autores ter dedicado amplo espaço às normas e
representações dos índios não teve simplesmente como efeito o de confundir as
formulações ideais com as condutas manifestadas pelos indígenas. Este tipo de
abordagem acaba também por ofuscar práticas que, no entanto, são extremamente
significativas para compreender tanto o papel central revestido pelo xamã, quanto as
relações entre diferentes famílias extensas. Neste sentido, a feitiçaria, que permeia a
vida social dos Kaiowa e dos Ñandéva de MS, foi quase totalmente desconsiderada pela
literatura, de modo que, quando mencionada, é interpretada simplesmente como uma
técnica exclusivamente mágica, desvinculada dos fatos considerados como religiosos;
seguindo-se, portanto, a distinção feita por Mauss entre magia e religião
94
.
É importante se considerar que parte significativa dos autores mais conceituados
que se dedicaram a analisar os Guarani são cristãos praticantes, militantes e/ou
sacerdotes, na maioria católicos, as instituições às quais estão ou estiveram ligados,
também sendo quase todas eclesiásticas
95
. Isto em parte poderia explicar o porquê de
tanta dedicação aos fenômenos religiosos. A procura constante de uma quimérica
originalidade dos princípios indígenas, baseados no amor e na equidade, vistos como
concretizados nas condutas dos índios, perpassa toda a obra de Cadogan, Melià e de
Chamorro, por exemplo. A idéia de encontrar uma via indígena que conduza a Deus
96
,
baseada em experiências que colocariam em prática princípios homólogos aos cristãos,
parece ser relevante para essas abordagens, visto que marcariam a diferença com o
Ocidente, que não chega a concretizar o que predica. As experiências indígenas tornam-
94
“... la religion tend vers la métaphysique et s’absorbe dans la création d’images idéales, la magie
sort, par mille fissures, de la vie mystique oú elle puise ses forces, pour se mêler à la vie laïque et y servir.
Elle tend au concret, comme la religion tend à l’ abstrait. Elle travaille dans le sens travaillent nos
techniques, industries, medicine, chimie, mécanique, etc. La magie est essentiellement un art de faire et
les magiciens ont utilisé avec soin leur savoir-faire, leur tour de main, leur habileté manuelle. Elle est le
domaine de la production pure, ex nihilo; elle fait avec des mots et des gestes ce que les techniques font
avec du travail” (Mauss 1993: 134).
95
Cadogan e os cônjuges Grünberg, católicos praticantes; Melià, jesuíta e “discípulo” de Cadogan; Brand,
ex-coordenador regional do CIMI e atual coordenador do programa Kaiowa/Guarani da Universidade
Dom Bosco, em Campo Grande; Chamorro, teóloga luterana, e L. Pereira, ex-missionário metodista.
96
Uma coletânea em que escreve também Melià intitula-se justamente “O rosto índio de Deus” (1989),
algo que manifesta claramente os postulados do Conselho Vaticano II, os quais reformulam a prática
missionária católica, não sendo mais considerada como um levar a palavra de Cristo às populações da
Terra (como reza o Evangelho segundo Lucas: Cap. 24, vers. 46 e 47), mas como “inculturação”; isto é,
uma experiência através da qual o missionário conseguiria se enriquecer da religiosidade indígena.
207
se, assim, fontes de comparação no debate teológico contemporâneo, como fica evidente
nos trabalhos de Chamorro (1995 e 1998) e Melià (1989). Conclui-se, deste modo, que
para todos estes enfoques, aprofundar temas como feitiçaria, vingança e conflitos em
geral como sendo intimamente entrelaçados com o modo dos índios se organizarem e se
relacionar implicaria certamente na produção e manifestação de inúmeros elementos de
contradição com a visão idealística dos índios tão exaltada pela literatura produzida pelo
que poderíamos definir de filão cristão nos estudos sobre os Guarani.
Aqui, ao contrário, mostrarei como o poder do xamã (devido ao domínio de seus
conhecimentos), a noção de pessoa, as lógicas de vingança e as práticas de cura se
entrelaçam entre si, dando vida a complexos processos que fortalecem as relações entre
parentes, contribuindo assim para circunscreverem-se grupos sociais. Focalizarei
também as tensões e ambigüidades existentes entre paradigmas normativos e prática
social, procurando localizar os diferentes papeis ocupados pelos indígenas durante seus
diferentes estágios de suas vidas, assim como a partir das diferenças estabelecidas
segundo sexo e idade. No complexo, me interessa verificar quais as características da
tradição de conhecimento à qual aferem os Kaiowa, quais seus principais promotores, e
como idéias, conceitos, conjunto de normas são produzidos, adquiridos, modificados
e/ou abandonados, e quais são as figuras mais apropriadas para julgar e promover
valores. O xamã sem dúvida ocupa um papel de destaque como maior interprete e
interventor na ordem do Cosmo, e portanto receberá uma atenção especial. Contudo,
diferentemente de como foi geralmente abordado o xamanismo guarani, não estou aqui
interessado tanto no conteúdo de sua produção intelectual e de seus rituais. Assim como
Barth (1984, 1987, 1993 e 2000), Hannerz (1998) e T. Schwartz (1978), preocupo-me
com a natureza distributiva da cultura e a organização social dos significados e formas
significantes. Barth, especificamente, busca representar a cultura como um fluxo, uma
correnteza de conceitos, valores, idéias, imagens etc., que se projetam temporal e
espacialmente no Cosmo (1984). Apoiando-se nas argumentações de Theodore
Schwartz (1978)
97
, o autor norueguês busca entender como esses fatores se distribuem
97
A este propósito, a seguinte passagem de Schwartz resulta ser significativa: “If culture is not to be
defined as a shared or common set of constructs held by all members of a society, how should it be
delimited? We may begin by defining the ‘personality’ of each individual as the total set of implicit
constructs derived from his experience in all the events making up his life history, as well as from new
formations base don manipulation, combination, or transformation of such constructs. His personality is
the individual’s version or, more precisely, his “portion” of his culture. The personalities of the
208
entre os indivíduos, sendo estes sujeitos os que, concretamente, com o auxílio de
técnicas e meios à disposição, transportam e comunicam para outros o conteúdo e os
esquemas culturais em sua posse, fazendo do fluxo cultural algo não abstrato. Tais
conteúdos e esquemas, embora comunicados e adquiridos no processo de interação
social, não são, contudo, distribuídos de modo homogêneo ou aleatório, mas
organizados em tradições de conhecimento. Essas tradições, por sua vez, são articuladas
através de indivíduos especialistas autorizados a avaliar e valorizar os saberes e os
meios comunicativos adotados para armazená-los, modificá-los e/ou transmiti-los
(Barth 1987, 1993, 2000a, 2000b, 2000c, 2002).
Do ponto de vista do método, optei nesta parte da tese por restringir meu diálogo
apenas aos autores que se ocuparam dos Pai-Tavyterã/Kaiowa, evitando assim
enveredar para a descrição de um Guarani genérico. Nestes termos, trabalhos
significativos sobre cosmologia e xamanismo entre os Ñandéva
98
e os Mbya
99
ficaram
propositalmente excluídos. Serão utilizadas particularmente as obras que me permitam
reconduzir os dados a contextos e, em alguns casos, até a indivíduos específicos. Assim,
considero, por exemplo, Chamorro (1995), que teve como informante privilegiado o já
referido Paulito Aquino, de Panambizinho, discípulo de Pa’i Chiquinho, este último
importante xamã que na década de 1950 contribuiu para a pesquisa de Schaden
(1974[1954]). Galvão (1996 [1943]) e Schaden (op. cit.), por sua vez, o primeiro
pesquisando na reserva de Takuapiry e o segundo principalmente em Amambai, citam
informações fornecidas por José Borbon, avô e mestre do xamã Luís, um de meus mais
preciosos informantes. O mesmo Galvão (idem) teve como interlocutor o jovem Atanás
Teixeira (na época com cerca de quinze anos), hoje um dos mais relevantes xamãs
kaiowa no Mato Grosso do Sul, cujos relatos por mim registrados constituirão
significativa parte deste trabalho. Finalmente, L. Pereira (1999, 2004) entre seus locais
individuals of a society constitute the individualized texture of a culture, its distributive locus, and its
social units. Between the extremes of total homogeneity and total heterogeneity we may speak of a
“structure of commonality”, which consists of all the intersects among personalities” (1978:218).
98
Como a clássica obra sobre os Apapocuva-Guarani de Nimuendaju (1986[1914]), Bartolomé (1977),
Perasso e Vera (1987), Cadogan (1959), entre outros.
99
Sobre cosmologia e atividades xamanísticas ver principalmente Cadogan (1948, 1949, 1950, 1951 e
1959), Gorosito (1987), Ladeira (1992) e Pissolato (2006).
209
de pesquisa teve Jaguapire e Pirakua, onde eu também pesquisei, tendo com este autor
muitos informantes em comum.
Como eu afirmava, significativa parte deste trabalho constitui-se de trechos de
entrevistas realizadas com Atanás, cujo raciocínio constituirá a trilha por mim seguida
na descrição do Cosmo e das regras morais. Nestes termos, não pretendo aqui apresentar
“a versão” canônica da cosmologia kaiowa até mesmo porque cada xamã manifesta
versões bastante originais. O meu escopo é o de compreender os mecanismos que
permitem justamente a geração dessas variações, e acredito que isto seja possível
evitando-se a generalização e a padronização de conteúdos culturais.
210
Capítulo IX
Arquitetura e dinâmica do Cosmo
9.1 O Ára Ypy (o espaço-tempo das origens) e suas transformações
Transcrevo neste item uma longa narrativa de Atanás, registrada em 06 de
agosto de 2000, no acampamento constituído pelos índios na Terra Indígena Ñande Ru
Marangatu, município de Antônio João (MS), na época identificada, mas ainda não
demarcada. Observe-se que foi feita uma revisão, eliminando-se pequenas sentenças e
palavras que se repetiam, fato típico da oralidade, mas que tornavam a leitura bem
menos fluida. Foram também unificadas algumas denominações de personagens. Neste
sentido, o deus supremo Ñane Ramõi Vusu Papa (Nosso Grande Avô Eterno) aparecerá
com sua forma abreviada Ñane Ramõi, muito mais freqüente na narrativa. O mesmo
pode-se dizer do filho deste personagem, Ñande Ru Pavê (Nosso Pai de Todos), que
será transcrito simplesmente como Ñande Ru, divindade esta que às vezes pode ser
denominada Ñande Ru Vusu (Nosso Grande Pai), Ñande Ru Ára Kurusu (Nosso Pai do
Espaço-Tempo da Cruz) ou Ñande Ru Marangatu (Nosso Pai Sagrado). Não deve ser
confundido com ñanderu, grafado em minúsculo, que, embora literalmente possua
também o significado de “nosso pai”, designa simplesmente o xamã.
Como fica evidente, os Kaiowa (assim como todos os outros Guarani)
classificam as divindades a partir da terminologia de parentesco. Deste modo,
excetuando-se os personagens anteriormente citados, todos os outros são Ñande Rykey,
“[Nossos] irmãos mais velhos” com relação aos Ava Kaiowa, que seriam, relativamente
a esses deuses, tyvyry, isto é, “irmãos mais novos”. Na classificação guarani não existe o
termo genérico de “irmãos” e “irmãs”, as relações entre os filhos de um determinado
casal sendo hierarquicamente orientadas segundo a posição ocupada pelo indivíduo, à
qual são sempre associadas especificidades comportamentais e níveis experienciais.
Neste sentido, devido à posição por eles ocupada, os Kaiowa são cosmologicamente
subordinados aos deuses, não como ontologicamente diferentes, mas como partes
diferenciadas de uma única parentela. As divindades podem ser também denominadas
genericamente de Tupã, mas o uso deste termo é menos freqüente.
Foto X
O xamã Atanás Teixeira gravando narrativa sobre cosmologia, na companhia do jovem Mariano Vilhalba. T.I. Ñande Ru Marangatu.
Agosto de 2000.
Foto XI
Atanás Teixeira e sua atual esposa Roberta.
T.I. Ñande Ru Marangatu. Agosto de 2000.
Foto XII
Atanás com os procuradores do MPF de Dourados, Pedro Paulo (à sua direita) e
Charles (à sua esquerda), e o antropólogo Marcos Homero, também do MPF.
Aty Guasu na reserva de Amambai. Dezembro de 2004.
213
É de se observar também que, com exceção das citadas, as divindades femininas são
muito raras, razão pela qual os índios, quando se referem aos deuses no plural, adotam
sempre o termo Ñande Rykey. Assim, pois, ao longo deste trabalho será utilizada esta
denominação, alternada com sua tradução, “Nossos Irmãos”, que tem que ser lida
sempre como sendo “nossos irmãos mais velhos”.
A narrativa de Atanás, como se verá, concentra sua atenção sobre os eventos que
marcaram fortemente, através de uma série de transformações originárias, a vida atual
de todos os seres do Cosmo. Por ocasião da entrevista aqui transcrita, o xamã não
dedicou espaço a outros eventos do Ára Ypy, como a teogonia e a criação da primeira
Terra (Yvy ypy) e sua primeira expansão, momentos que, de fato, tiveram menos
relevância na determinação das regras, hierarquias e divisões do Cosmo atual,
especialmente no tocante às relações entre as humanidades e outros seres que o povoam.
De qualquer forma, a título informativo, farei algumas breves descrições sobre estes
eventos.
Segundo os Kaiowa, o processo de criação do mundo teve início com Ñane
Ramõi, que constituiu a si próprio a partir da Jasuka, uma substância originária, vital e
com qualidades criadoras e geradoras. Do centro de seu jeguaka (cocar) ele fez surgir
Ñande Jari (Nossa Avó) e, a seguir, criou os primeiros deuses, junto com os quais criou
os espaços do Cosmo. Viveu sobre a primeira Terra (Yvy Ypy) por pouco tempo. Devido
a um desentendimento com a esposa, subiu, sem morrer, para a sua morada atual, no
patamar (yváy) mais elevado do Universo. Tomado de profunda raiva e ressentimento
causado por ciúmes, aborreceu-se (ñemyrõ) e quase chegou a destruir a primeira Terra,
sendo impedido por Ñande Jari, com a entoação do primeiro canto sagrado (mborahei)
realizado sobre esta parte do Cosmo, tendo como acompanhamento o takuapu bastão
de ritmo, feito de taquara, de uso feminino (Thomaz de Almeida & Mura 2003)
100
.
Deste casal nasceu Ñande Ru (Nosso Pai), que se casou com Ñande Sy (Nossa Mãe),
casal que teve uma sorte similar ao anterior, como será descrito mais adiante na
narrativa.
Como fica evidente, os eventos citados ocorrem sobre a primeira Terra que,
segundo Atanás, teria sido criada pelos deuses Verandyju e Yvakaju. Em um primeiro
100
Para mais detalhes sobre esta fase do Cosmo, ver Cadogan 1962, Melià et. al. 1976, Chamorro
1995.
214
momento, esta Terra era um pequeno disco, disco este que se constituiria no seu futuro
centro (Yvy Pyruã). De fato, estas divindades, tomando o disco como centro geográfico
de partida, procederam à sua ampliação, através de ñengáry (orações com elevado poder
xamanístico). Nesses termos, a primeira Terra foi criada pelo próprio poder da palavra,
expresso através desses cantos gicos. Uma vez ampliado este patamar do Universo,
Ñane Ramõi completou a obra, criando o mato, as águas e as montanhas. O centro da
primeira Terra, assim como daquela atual (Yvyrã
101
), encontra-se no Paraguai, na
localidade de Cerro Guasu, e está protegido pela substância Jasuka, que nele fez sua
morada (Jasuka renda).
Pois bem, feita esta breve premissa sobre a teogonia e a criação da primeira
Terra, deixemos a palavra a Atanás. O xamã começou sua longa narração respondendo à
minha seguinte pergunta: “Como viviam os antepassados, o que aconteceu?”
Na época viviam nessa Terra Chiru Yryvera, Chiru Guyra Pepoti. O
Ñande Ru mandou crescer ou subir a água para destruir a Terra. Naquela época
todos os pássaros ou aves de hoje eram humanos como nós; no princípio eram
pessoas humanas. Essas pessoas eram xamãs também. Naquele momento essas
pessoas não acreditavam que a terra estava sendo destruída pelo Ñande Ru.
Enquanto muitas famílias se preparavam para não se afogar, preparando
canoas, outras pessoas, como Aka’e Kapi, falavam: “Não vai acontecer isso!”,
duvidavam das decisões do Ñande Ru.
O Juperu e o Aka’e não acreditavam nas informações do Ñande Ru. Logo
depois foi enviado o dilúvio para que eles acreditassem que as informações não
eram mentiras. Além disso, eles falavam brincando: “Se por acaso isso realmente
acontecer, o y’vu, eu posso transformar palhas de milho em canoa.” Depois
dessas conversas com Nosso Irmão Yrapare, começou a chover, e Yrapare já tinha
feito a canoa para subir junto com as enchentes. Quando começou a chuva,
Yrapare recomendou imediatamente a sua mãe e irmã, ao seu grupo, trazer para
101
O sufixo “-rã” indica o futuro. Nestes termos, seria a futura Terra, contabilizando-se o tempo a
partir das Origens.
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dentro da grande canoa os vários tipos de alimento, como batata, amendoim,
banana, mandioca, milho seco, para subir juntos.
Enquanto as famílias estavam em apuros, corriam carregando as comidas
para a canoa. Sua irmã menor passou mal; era a sua primeira menstruação. A
mãe jogou em cima dela uma grande bacia para protegê-la dos males, que
podem se encarnar em moças nesse momento e poderiam causar muitos males.
Naquele instante, Aka’ê Kapi, Juperu e suas famílias, que não acreditavam no
dilúvio, ficaram preocupados e começaram a perguntar seriamente ao Yryvera,
que dia começaria. Então Yryvera começou a explicar-lhes que tinha
começado e que ia chover direto. A água iria subir até em cima, e
apareceriam relâmpagos de todos os lados, sem parar. Explicou aos que
duvidavam, dizendo que ele tinha sua ñengáry (oração) especial para não ser
destruído pelo dilúvio: Che ru Yryvera katu marã hereko nde kurusu va piraguái
remo pu’ã ojekua a mani che jeupe (Meu pai, que é o brilho da água e ilumina
a água, apoiado em sua cruz sagrada, que está levando para eu ver e me
abençoar e proteger.) Assim começou a explicar, através desse ñembo’e (reza), e
já começou a se comunicar com o dono do dilúvio. O som desse ñembo’e
atravessou o mundo inteiro e chegou até onde está o Ñande Ru, no céu.
Enquanto isso, começou a chover por quase um mês inteiro.
Quando começou a enchente, a canoa subiu. O Chiru Pepoti foi pousar
nas folhas do coqueiro, porque o coqueiro se erguia e ele não afundava. Foi
transformado em ave, por isso voava ao redor do coqueiro. Assim foi o coqueiro
acompanhando o dilúvio e a canoa do Yryvera. Muitos dias depois, Pepoti, que
era ave, começou a soltar os coquinhos para baixo, para ver se a água
continuava levantando ou se secara. A canoa se encostava no céu, por isso
Chiru Avaete abriu a porta da canoa para olhar. O Guyra Pepoti, continuando
a jogar pedrinhas e coquinhos para baixo, finalmente estas não caíram mais na
água, mas ma terra. Enquanto isso, a canoa se encostou na montanha mais alta
e parou lá. Essa história os crentes contam diferente, não contam onde está a
canoa, onde parou.
Essa canoa está agora; está cheia de água. Ficou para ser uma mina
de chuva grande. Se acaso o dono (járy) a virar para baixo, podem ocorrer o
216
dilúvio e as chuvas descontroláveis. Todos os Ñande Rykey, Jakairajapaire Vusu,
Mba’eja Vusu, Karavire Vusu, etc., chegaram todos lá onde está Jakaira e
Mba’ejary Pyahu. Cada um começou a brilhar, ou seja, se comunicar através de
seu brilho, na forma de relâmpago, para todos os lados.
Apareceram relâmpagos iluminando o mundo inteiro. Dessa forma se
cumprimentam e se comunicam o tio e o irmão. Ficaram longe um do outro.
Depois disso, se reuniram para conversar, discutir sobre o mundo e transformar o
restante dos seres e contar aos outros suas origens, de que surgiram. Alguns
surgiram da água da cruz. Quase todos surgiram da água da cruz, porque
Nossos Irmãos surgiram da cruz. Naquele momento eles ainda conversavam aqui
na terra e começaram a subir para o céu, pra seu lugar sagrado. Nesse
momento de conversa e decisão, o Ñande Ru chegou também. Todos ficaram em
silêncio. Começaram a recebê-lo com jerosy. Então ele convidou todos para ir a
sua casa tomar kaguî
102
e festejar. Todos disseram que iriam, mas no fundo
ficaram com medo, e bravos também, com o Ñande Ru. Foram o Guyra Pepoti e
Chiru Yryvera; se prepararam, bem enfeitados e levaram o mimby (apito).
Quando tinha bastante chicha, começaram a tomar e conversar sobre assuntos de
seus interesses com o Ñande Ru.
Quando a conversa foi sobre o dilúvio anterior, começou o
desentendimento entre os Ñande Rykey, porque cada um queria rebaixar o
outro. Por isso, o Ñande Ru fez interferência para acalmar a discussão. O poder
do Ñande Ru brilhou mais forte no meio e enfraqueceu os brilhos dos Ñande
Rykey e ele lhes disse que eram parentes entre si, que precisavam se reconhecer,
se considerar, e não discutir, pois todo o nosso princípio é a cruz. Precisamos
respeitar os poderes de um e de outros, aconselharmos uns aos outros. Depois
dessa longa conversa e aconselhamentos, ele tomou muito kaguî e foi pousar na
beira da estrada. Isso deixou um exemplo para nós que hoje muitas vezes após
desentendimentos dormimos na estrada.
102
Bebida fermentada de milho e/ou batata doce e cana-de-açúcar, também chamada de chicha.
217
No outro dia, o Yryvera foi interrogado pelos outros. Ele afirmou que
tinha discutido muito com Ñande Ru e quase brigaram. Comparando com as
crianças, Ñande Ru falou mitã reko (um jeito próprio das crianças). Depois
disso, cada um escolheu o seu lugar para estar ou morar eternamente. Um falou:
“eu vou lá”, “eu vou aqui perto”, e assim aconteceu. Depois combinaram apagar
os rastros deles para não serem vistos por ninguém. O xamã procurou o caminho
e rastros dos Ñande Rykey para saber onde foram morar.
Para o crente, o nome do Chiru Yryvera é Pa’i Noé. O Jesus Cristo vem
muito tempo depois. Nosso Pai, Ñande Ru, e Nossos Irmãos, Ñande Rykey, são
princípios que surgiram primeiro.
Os Ñande Rykey subiram primeiro e Ñande Ru ainda continuava
morando aqui. Ele tinha algumas filhas moças. Uma delas casou-se com Pa’i
Tambeju, que sabia muitos ñembo’e para casamento. Quando, na época, a terra
queimou, o Pa’i Tambeju ergueu a sua casa e foi morar lá no céu.
Depois disso, muitos anos depois, apagou-se totalmente o sol. Houve a
destruição total de novo, ou seja, o mundo acabou novamente, só que desta vez o
sol apagou-se. Depois desta destruição nós acabamos ou fomos destruídos e o sol
ficou apagado. Quando o sol começou a iluminar novamente, as duas moças
apareceram na estrada das roças com mynaku (cesto). Elas se escondiam atrás de
madeiras, deitadas. Todos os homens queriam se casar com elas. que estavam
cercadas pelos seus futuros esposos, elas se protegeram de males, pois poderiam
ser enlouquecidas pelos guaruje
103
e mbopi guasu
104
. Foram então protegidas.
Naquele momento, o sol ficou escuro novamente, mas isto foi muito rápido.
Quando ele voltou a iluminar, as duas ficaram com os dois homens; os
quatro ficaram naquele momento.
A irmã menor não queria aceitar o seu esposo. Por isso, sua irmã maior
conversou com ela, explicando, e finalmente a convenceu a se casar com ele.
Essas eram as origens, ou seja, para originar a nós, depois das destruições do
103
Monstro voador.
104
Outro monstro voador representado como um morcego gigantesco.
218
mundo. Por fim, eles se juntaram, casaram. O homem se tornou ñanderu e a
mulher ñandesy e tiveram filhos.
Depois disso, um dia chegou uma tempestade forte, que era para limpar o
mundo, e esses ventos fortes levaram tudo para cima. A Terra então ficou vazia,
tinha areia e céu. Logo depois foram autorizados os seres, que desceram aos
poucos pra de novo. Todos os animais mandaram descer um casal de cada
espécie. O casal ñanderu e ñandesy, em vez de descer, foi subindo mais, para
outro espaço mais longe. Durante essa ida, um dos filhos casou com uma filha
de Pa’i Tani. Este homem era chamado San José, e a filha (de Pa’i Tani) era
Tupã Sy Ka’acupe. Esse casal era o princípio do branco ou não-Ava. Ele é nosso
parente realmente; os seus filhos, os não-índios, são nossos parentes de longe,
secundários, ou sobrinhos. São abençoados pelo Ñande Ru, apesar de sermos
diferentes hoje. O Jakaira ficou bêbado e casou com outra filha de Pa’i Tani.
Uma vez todos se reuniam para conversar com Pa’i Tani. O princípio do
branco, que era o cunhado, não queria vir, mandou suas mensagens através
de relâmpagos, raios. Por isso foi nomeado o Ñu mbaire para trazê-lo à força.
Ñu mbaire foi bem enfeitado e equipado de brilho e força; não fez barulho para
não ser ouvido. Quando chegou brilhando, soltando raios em cima dele e de sua
casa, pegou-o de surpresa. Naquele momento aconteceu brilho e relâmpago
para todos os lados; os poderes deles ficaram iluminado o mundo; cada um
queria ser melhor que o outro. O poder do seu cunhado enfim foi enfraquecido,
mas este não queria vir para ser misturar ou ficar com seus cunhados; ficaram
separados. O princípio do não-índio, desde esse tempo não se entendeu com os
Ava.
Depois o Pa’i Tani começou a andar e transformar os seres em outros seres.
Durante esta visita, muitos animais e plantas estranhavam e falavam e se
comportavam mal diante dele. A maioria considerava que ele seria um monstro
ou assombração, por isso tratavam-no mal. Assim sendo, foram sendo
transformados durante o seu contato. Alguns homens foram transformados em
árvores e animais, também conforme a fala de cada um.
219
Pa’i Tani chegou para conversar com seus netos para subirem. Durante
essas conversas, ele lembrou que seu genro (San José) tinha morrido durante a
troca de raios; tinha se queimado e morreu. Mas ele (o Pa’i Tani) garantiu que
iria ajudar a filha a revivescê-lo. Por isso, quando San José reviveu das cinzas já
era branco. Porém, Nossa Irmã não estranhou. Acontece que o homem era
branco; a esposa tem a pele igual à nossa. Eles tiveram filhos, mas nasceram
meninos brancos. Esse ava branco começou a juntar todos os tipos de objetos,
diferentes materiais, etc.; começou a ser diferente.
O Jesus Cristo é filho desse casal. Quando nasceu, foi procurado pelo añáy
(demônio), ameaçado por ele. Ao nascer, foi coberto pela lã de ovelha e o
demônio se transformou em raposa pequena e deitou-se em cima da lã. Ele
começou a perseguir o bebê, porque Pa’i Tani tinha dado vários tipos de
poderes e conhecimento sagrado ao Cristo, para servir ao branco; ele foi enviado
para cuidar deste. Mas ele é específico do branco. Foi enviado pelo nosso avô
Pa’i Tani por ser diferente da pele, que fica em baixo do poder de Pa’i Tani;
sua inteligência e poder são controlados por ele. E ele depende muito de Nane
Ramõi também para controlar o poder dos males da terra. Todos que seguem o
Cristo estão com ele, (mas o Cristo) não vai passar o poder dele. Ele [a pessoa]
surge do poder do Cristo, ou seja, não precisa passar além dele porque ele está
pertinho e é fácil surgir dele. Mas, também dotados de poder estão os outros
Ñande Rykey; eles estão muito longe. Eles têm poder de transformar os animais,
plantas e homem em outros seres, e isso o Cristo não tem.
Após essas transformações, todos os animais transformados – macacos,
quati, etc. queriam rezar de novo, mas a reza não saiu mais como antes. No
entanto, eles ainda rezam. Esses animais transformados foram orientados sobre
como seria o seu jeito, como eles serviriam ao homem (e aos outros “animais”), o
lugar de cada um. Os princípios também subiram, foram para cima; aqui
ficaram só seus seres. A origem está lá em cima; aqui estão seus parentes.
No princípio, a seriema era auxiliar do Ñande Ru vivia e andava
juntamente com ele. Ele foi transformado em seriema porque cometeu um erro
grave: ele se apaixonou pela sua cunhada e desobedeceu ao mandamento ou
regimento. Isso que não podia ou nunca tinha acontecido antes. Porém, depois
220
disso vem acontecendo. Então ele foi transformado e expulso de auxiliar pelo
Ñande Ru. Ele queria se apaixonar pelas mulheres com facilidade, e isso não era
permitido ao auxiliar do Ñande Ru. Ele não contava para ninguém, mas o
Ñande Ru já sabia todo o comportamento, o sentimento do kongoe ypy (o
princípio da perdiz). Ele praticava guahu para que alguém se apaixonasse por
ele. Cantava assim: Kunami rembipota teim che jeguaka... ( bis).
O kongoe vestia o cocar do Ñande Ru desses pintados, e brincava e
cantava esse guahu. Por isso, o fogo foi chamado pelo Ñande Ru e isso fez o
kongoe correr na direção da água, e ele derrubou o jeguaka do Ñande Ru na
água. Ñande Ru ficou nervoso e o chamou de ave do mal. Toda vez que ele
cantava, estava noticiando males. Ele foi transformado para noticiar os males,
doenças; só cantava para chamar males.
Depois de transformar todas as coisas, Ñande Ru casou com duas
mulheres; conseguiu ter duas esposas também pela primeira vez, deixando um
exemplo ou modo de ser para nós Ava. Por isso existem alguns homens que
imitam o exemplo dele aqui na terra.
Uma das esposas era a mãe dos gêmeos Pa’i Kuara e Jasy, que se
encontrava grávida, enquanto ele continuava viajando. Essa Nossa Mãe no
princípio decidiu ir atrás do Ñande Ru, pois estava grávida. Um dos filhos
[dentro da barriga] falava para sua mãe que sabia o caminho por onde o pai
dele passou; era seguir o rastro que ele indicava a sua mãe. Durante a
viagem, Pa’i Kuara e Jasy pediam todos os tipos de flores. Cansada de colher as
flores, a mãe falou nervosa que isso ele poderia pedir depois de nascer, não
naquele momento. Ao ouvir isso da mãe eles ficaram tristes e nervosos, e não
indicaram mais o caminho por onde seu pai fora. Porém, indicou o caminho da
onça, do cão que come a pessoa. Um caminho por onde ninguém deveria ir,
porque era perigoso.
A mãe grávida chegou na casa das onças e naquele momento estava a
avó delas. Quando a viu, a onça velha ficou alegre; colocou-a escondida debaixo
de uma grande bacia. Muitas horas depois chegaram os outros, que estavam na
221
caçada. Quando chegaram, sentiram o cheiro e pensaram que havia alguém
ali. Perguntaram à avó, mas esta negou.
À noite, chegaram muitos companheiros da onça e cães carnívoros, como
jagua rovy, jaguarõ, jaguarete, entre outros, percebendo o cheiro de carne ou
caçada dentro do quarto da avó. Cheirando, encontraram-na e a mataram para
comer a carne. Encontraram dois filhotes bebezinhos, que eram Jasy e Pa’i
Kuara. Como era de costume, quem comia os filhotes das barrigas era a avó, a
mais velha. Naquele momento o Pa’i Kuara inventou a reza (ñembo’e) para
esfriar o fogo e escapar do perigo, ou até da morte. Utilizou-a pela primeira
vez.
A avó da onça queria comê-los assados, mas o fogo se apagou; queria
colocá-los no espeto, mas a ponta do espeto se quebrou; queria comer cozido,
mas a água se esfriava. Assim, a avó decidiu deixá-los crescer para serem os seus
animais de estimação, ou para criar como se fossem seus filhos, pois o poder de
Pa’i Kuara surgiu daquele momento em diante, isto é, todos os tipos de ñembo’e
para se escapar e esfriar um momento difícil.
Quando cresceram, pela primeira vez eles fizeram a flecha e o arco para se
proteger e para matar os pássaros. Eles começaram a fazer caçadas perto da casa
da onça; matavam muitas aves. Um dia a avó, que era dona desses dois
meninos, falou para eles: “Vocês podem caçar nesta região”, e foi indicado que
para o outro lado não se poderia ir, nem chegar perto. Era local perigoso, sendo
proibido caçar lá. Ouvindo isso, o Pa’i Kuara pensou: “O que é que tem nesse
lugar proibido?” Um dia decidiu e eles foram até o lugar. Quando chegaram lá,
viram diversos tipos de aves. Estavam o jaku e outras aves, que contam a história
da região; eles eram uma fonte de informações. Jasy ficou louco ao ver aves tão
bonitas e que falavam. Ele ia atirando. tinha matado bastantes pássaros
quando se aproximou do jaku; atirou em sua direção e quase o acertou. Quando
ia atirar novamente, o jaku começou a falar com eles. Então, Pa’i e Jasy ficaram
ouvindo e perguntando; foi longa a conversa. Eles foram bem informados da
historia da região e da história da sua mãe, e deles mesmos. Depois disso, os dois
ficaram tristes e aborrecidos. Jasy até chorou com medo, mas seu irmão sempre o
consolou e lhe garantiu que não iria ocorrer o pior com eles; precisavam de
222
calma e paciência naquele momento. Falava: “Namarãi chene jaiko.” (“Por pior
e difícil que seja a vida, ela sempre se tornará melhor de novo.”) Por isso não é
preciso se preocupar muito com os problemas difíceis. Isso era muito falado pelo
Pa’i Kuara.
O Pa’i Kuara e Jasy perguntaram ao jaku como eles poderiam fazer a
melhor vingança e escapar da mãe das onças. Eles foram orientados a procurar
Ñane Ramõi, que era o avô deles. Primeiro era preciso apresentar-se a ele.
“Depois, na volta, vocês fazem nascer guavíra
105
do outro lado do córrego. Esses
são os primeiros passos”, falou para eles o jaku.
Pa’i Kuara e Jasy foram até Ñane Ramõi para perguntar e foram
recebidos por ele. Ñane Ramõi não era o pai, era o avô. Afirmou que eles são
seus netos-filhos
106
; que seria responsável por eles, garantiu. E o pai de verdade,
negou-se a reconhecer seus filhos, falou que ele não tinha filhos.
Jasy e Pa’i Kuara seguiram os conselhos do jaku sobre o Ñane Ramõi e
fizeram a guavira. Levaram um pouco na mochila para o grupo das onças.
Quando chuparam as frutinhas da guavira, as onças gostaram e decidiram ir
coletá-las no outro dia. A avó perguntou ao Pa’i Kuara se eles não tinham
encontrado nenhuma ave que fala. Eles responderam que não, que não haviam
encontrado. Na madrugada, todos levantaram cedo para ir coletar guavira. Pa’i
e Jasy eram os únicos que sabiam onde estava a fruta. Quando chegaram na
margem do rio, eles falaram para o grupo das onças que era do outro lado do rio
e que era preciso passar através de uma pinguela, que eles já haviam feito. Essa
pinguela eram as flechas de Pa’i e de Jasy. Os dois combinaram que assim que as
onças estivessem todas bem no meio da pinguela, imediatamente interromperiam
as flechas, para que não sobrasse nenhuma onça. A intenção deles era derrubar
todas as onças no rio; essa era a vingança combinada. Então as onças foram
passando. Uma delas estava gestante e, justamente, quando viu que a pinguela
estava caindo, pulou e conseguiu escapar, correndo para o mato. Neste momento
105
Uma fruta extremamente apreciada pelos Kaiowa.
106
É muito comum entre os Kaiowa, após divórcios de filhos (as) e/ou outros parentes próximos, o tamõi
e a jari ficarem com toda ou parte da prole destes.
223
o Pa’i Kuara lhe falou que ela seria transformada em onça, e que todos os
homens iriam persegui-la. Da mesma forma, ela perseguiria o homem, e não
haveria quem gostasse dela; ela não teria amigos.
Todos os animais que caíram no rio se transformaram em outros bichos,
inúteis, nocivos. Duas crianças que restavam em casa foram transformadas em
cobra que come o morto embaixo da terra. A velha avó das onças foi enganada
para cair no monde (armadilha). Pa’i e Jasy lhe falaram que o monde pegara
uma presa e que ela podia ir buscar. Assim acabaram as onças e ficaram os
dois. Então eles pensaram em ampliar a terra e criar diferentes tipos de solo.
Assim fizeram, com a ajuda do avô. Por exemplo, fizeram o solo igual do
Paraguai, que é solo argiloso, queimado. Assim faziam, e o mundo era
ampliado.
Depois os dois começaram a andar pelo mundo já ampliado. Chegavam na
casa de todos os povos e grupos que hoje estão transformados em animais. Eles
eram sofridos e resistentes. Passaram fome e outros tipos de dificuldades. Jasy era
menor, sabia pouco e não tinha muito poder. Porém, o Pa’i Kuara era maior,
sabia de tudo e tinha o poder máximo, inclusive de transformar as coisas. Uma
vez, eles estavam passando muita fome e viram o añáy (diabo) pescando no
anzol grande com chipa
107
Daí, Pa’i Kuara mergulhou na água e foi pegar a
chipa do anzol do añáy. Trouxe-a para Jasy, que achou gostoso e falou que, da
vez seguinte, ele iria buscar. Pa’i Kuara falou: “Não, você não vai, é perigoso.
O añáy pode ter pegar ou te pescar.” Um dia ele teimou e foi, e realmente o añáy
o pegou. Quando Pa’i Kuara o procurou, ele tinha sido comido pelo añáy;
sobraram os ossos. Então, dos ossos ele fez novamente Jasy. Juntou ossos e Jasy
levantou como era antes: vivo.
Eles recomeçaram a viajar e foram ao jeroky (dança ritual) do añáy, na
montanha. Os añáy rezavam na beira de um grande poço, que era muito fundo;
quem caía não tinha volta. Pa’i Kuara pensou que entraria no meio deles,
empurrando-os no poço durante a reza; deste modo iria acabar eles. Um dia Jasy
107
Massa preparada com farinha de milho.
224
decidiu que iria derrubar todos os añáy e Pa’i Kuara falou para ele: “Cuidado!
Cuidado, Jasy! Eles já te conhecem e podem te derrubar lá no poço fundo.” Mas
Jasy foi até e foi percebido. Então, foi jogado e morreu de novo. Dessa vez foi
difícil para Pa’i Kuara achar os ossos do Jasy no fundo do poço. Mas ele não
desistiu de procurar; conversou com todos os seres e se comprometeu a dar uma
recompensa a quem trouxesse os ossos de Jasy. Todas as espécies de formigas e
marimbondos correram em busca dos ossos, mas era muito difícil, pois o poço era
muito fundo. Alguns traziam e ficavam cansados, derrubando-os antes de sair
fora. Finalmente o cupim foi chamado por Pa’i Kuara para fazer a busca. Ele
cupim desceu pela parede, construindo estradas, e conseguiu trazer ossos do Jasy.
Então Pa’i Kuara falou para o cupim que todos os seus pedidos seriam
atendidos. O cupim pediu uma casa de areia, com a proteção de que nessa casa
não poderia entrar água. Pa’i Kuara garantiu isso ao cupim, dizendo-lhe que
essa casa poderia ser construída nas árvores, no chão, onde ele quisesse,
garantiu.
Logo depois os irmãos visitaram o veado. Este não aceitou que Pa’i Kuara
e Jasy se esquentassem em seu fogo. “Aqui é lugar do meu pé, aqui é lugar da
minha orelha”, ele dizia, e não sobrava espaço para os irmãos. Mas os dois se
esquentaram no fogo do guasu, e este saiu, correndo, para buscar as frutas da
guavira. Aí Pa’i Kuara falou: “Assim você será para sempre: correndo; servirá de
comida para a onça e não terá mais fogo, nem casa”, e transformou o veado em
animal. Em seguida, ele transformou o inambu kongoe
108
; ele tinha pegado o
seu fogo e queria correr deles. Mas foi transformado para voar de susto. Assim,
irá continuar sempre esquecendo o fogo. Em seguida eles chegaram na casa do
beija-flor, que lhes informou muitas coisas. Pa’i Kuara gostou dele e falou:
“Você será mensageiro, será o pássaro mais veloz do mundo e terá comida
especial. Você vai trazer as mensagens, notícia boa”, garantiu. Então eles foram
para a casa de urutau, para deixar Jasy e Pa’i continuar a viagem sozinho. Ele
estava procurando a sua mãe, os rastros dela. Assim, foi sozinho.
108
Espécie de galináceo.
225
O urubu queria levar Pa’i Kuara para procurar sua mãe. Ele tinha medo
porque urubu não voa reto, vai para cima e para baixo. Então recusou a ajuda
do urubu e lhe deu uma recompensa: ele não seria perseguido pelo homem, não
se tornaria comida. Pa’i Kuara encontrou o jacaré. Ele também se comprometeu
a levar, mostrar o rastro da sua mãe, além de ajudar a atravessar o rio. Porém,
o jacaré queria brincar com Pa’i Kuara, queria mergulhá-lo. Por isso,
mergulhando, Pa’i Kuara o transformou em jacaré. “Você vai morar no rio”,
falou para ele. Depois disso, o encontro foi com o tuiuiú, que estava pescando.
Pa’i Kuara perguntou-lhe se ele não sabia do rastro de sua mãe. O tuiuiú
respondeu que sabia que a mãe poderia estar do outro lado do mar, longe dali.
Ele disse: “Espere aí, vamos tomar kaguî e depois vou te acompanhar.” Voando,
ele deu carona ao Pa’i Kuara, até o outro lado, onde era a tava (casa, oga).
Então Pa’i Kuara deu tudo para o tuiuiú e disse: “Você será o mensageiro de
Tupã (Ñane Ramõi), atravessará o mundo voando e levará a mensagem de Tupã
e minha. Por fim, ele foi buscar informações sobre sua mãe. Encontrou a coruja,
que o levou até onde estava a sua mãe. A coruja começou a piar perto da casa
dela. A mãe estava fumando cachimbo. Quando ouviu a coruja, falou sozinha:
“Vai para lá, você veio aqui com canto feio”, ficou brava com a coruja, e Pa’i
Kuara, que estava junto, percebeu a voz de sua mãe. Combinaram fazer de
novo, e Pa’i Kuara lhe diria que seu filho chegou. Ela diria que sente saudade
dos filhos e os filhos sentem saudade dela, pensou sozinho, sentado. Quando a
coruja fez de novo, Pa’i Kuara falou e mãe reconheceu a voz do seu filho. Ele
chegou até sua mãe e eles conversaram para subir da terra. Ela tinha como suas
todas as espécies de aves que falam (louro, periquito, arara etc.). Cada uma
dessas aves iria ter sua morada especial, longe uma da outra, isso foi combinado
com seu filho.
Pa’i Kuara falou: “Vou retornar para buscar meu irmão Jasy.” Mas
quando voltou, caiu na armadilha do añáy. Essa armadilha era de grudar, um
tipo de cola. Jasy caiu primeiro e suas mãos ficaram presas. Pa’i Kuara foi
ajudá-lo e também ficou com as mãos grudadas. Naquele momento o añáy
estava vindo ver a sua armadilha e encontrou os dois presos. Ele ficou alegre.
queria matá-los mas Pa’i Kuara conversou com ele: “Espera aí, añáy. Eu vou
226
te dar jeguaka e qualquer outro objeto que você queira, para não nos matar”. O
añáy concordou em ouvir a proposta de Pa’i Kuara.
Pa’i Kuara ofereceu sua irmã ao añáy em troca da libertação. O añáy
pode ser entendido como o diabo, que possui poder que se opõe ao poder do
Ñande Ru e de Ñande Rykey, que são sagrados. O añáy vivia como qualquer
Ava Kaiowa antes da destruição da terra. No princípio ele queria ser cunhado
de Pa’i Kuara. Uma vez, quando se encontraram, ele chamou Pa’i Kuara de
cunhado e perguntou-lhe: “Cadê a tua irmã, que será minha futura esposa?”
Pa’i Kuara respondeu: “Sim, vou entregar minha irmã para você. Porém, vou te
aconselhar como se comportar com ela, o que pode ser feito e o que não pode.”
Ficou acertado que no encontro seguinte ele entregaria sua irmã ao añáy. Pa’i
Kuara ofereceu sua irmã para ele e o añáy aceitou imediatamente. Ficou louco
pela mulher, pois o añáy gosta muito de mulher.
No dia seguinte Pa’i Kuara fez uma mulher de cera de abelha jate’i e
levou para entregar ao añáy. Durante a entrega, recomendou que a irmã não
podia cozinhar nada, nem ficar perto de fogo e do sol. Quando chegou a noite,
o novo casal se preparou para dormir na rede. O añáy amou tanto a sua
primeira esposa que não aceitou que ela passasse frio na rede, então
carinhosamente juntou a brasa embaixo da sua rede para esquentá-la. Quando
começou a esquentar, o corpo de sua esposa foi derretendo rapidamente. Ele
ficou sem esposa. No outro dia, desesperadamente procurou Pa’i Kuara para
contar o ocorrido. Pa’i Kuara falou para ele: “Vou te entregar outra irmã,
espera.” Essa outra mulher era feita de cinza. Ele recomendou que ela não podia
se molhar. Porém, o añáy mandou buscar água da lagoa e ela se derreteu na
água. O añáy retornou mais bravo; queria uma irmã que durasse para sempre
com ele. Assim, Pa’i Kuara fez uma última, de pedaço de jeguaka, que existe até
hoje. Assim, o Pa’i Kuara é considerado cunhado do añáy.
Existe o Chiru Kurupíry Avaete abaixo do Ñane Ramõi. Um dia, de feliz
Pa’i Kuara ficou bêbado. Enquanto isso, foi feito piraguai (um tipo de
armadilha poderosa): tremor de terra, fogo soltando faísca, pedra quente; era a
última prova. O pai de Pa’i Kuara disse: “Se são meus filhos, vão escapar dessas
piraguái e vão chegar até aqui – onde já estavam a mãe e o pai de Pa’i Kuara e
227
Jasy. Esse pai estava com outra esposa (que não era a mãe de Pa’i Kuara e de
Jasy), observando se os dois passariam na última prova. O Pa’i Kuara foi na
frente e Jasy segurou na sua cintura. Eles conseguiram esfriar o fogo e controlar
o tremor da terra e brilharam como o pai. Conseguiram passar essas piraguai
difíceis e chegaram, primeiro, no lugar onde se enfeita o parente, Jeguahaty
(lugar onde se pinta, se prepara, etc.). começaram a se comunicar com o seu
pai e mãe utilizando mimby (apito). Neste momento se pronunciou o maracanã
(ave que fala). O pai continuou falando: “Se são meus filhos, vão rezar, se
comunicar, vão fazer certinho. Exigiu dos filhos tudo para confirmar que
realmente eram filhos dele, para poder subir com ele. Começou a falar um guahu
de despedida da Terra: “Añente po ko che nda che ara kuaai. Añente po ko
cheve che ru nda che kuaai?” ( É verdade que ninguém me conhece e nem conhece
meu céu. Será que meu pai não me reconhece?”). O pai, que estava deitado na
rede, velhinho, quando ouviu isso, ficou emocionado e convencido de que
realmente eram seus filhos. Depois todos juntos subiram lá para o céu.
Logo depois se reuniram para provar quem poderia assumir o cargo da
confiança do Ñane Ramõi. Para isso tinham que mostrar o seu brilho. Um se
mostrava na seqüência do outro. Um tinha o brilho fraco, outro tinha mais
forte, e assim por diante. Este momento era o da escolha de guarayrã (que vão
brilhar). Finalmente o Ñande Ru principal começou a rezar e brilhar, e foi
atravessando o mundo. Era um brilho bonito o dele, e mais forte. Quando
voltou, chamou os dois, Pa’i Kuara e Jasy: “Se são meus filhos, serão igual ou
parecidos ao meu brilho, que ilumina o mundo.” Nesse momento o Pa’i Kuara
pegou seu jeguaka e mbaraka. Enquanto se preparavam, os dois irmãos não
paravam de brilhar. Quando começaram realmente a mostrar seus brilhos,
cobriram o mundo, eram os brilhos mais reluzentes de todos. Assim, conseguiram
o encargo de iluminar o mundo: o irmão Jasy cuida da noite e Pa’i Kuara brilha
de dia. Haverá o momento em que os três brilhos (de pai e filhos) se juntarão. É
isso o que ocorre no mês de janeiro, que é muito quente.
Quando viu esse brilho do Pa’i Kuara, o pai dele, que duvidara, retornou
à Terra para observar daqui, e ficou assustado, achando que a Terra ia ser
queimada, o brilho era forte demais.
228
A lua (Jasy) morreu muitas vezes na Terra, por isso ela nasce, cresce e
morre.
A longa narrativa de Atanás aqui apresentada oferece uma grande quantidade de
elementos que justificam a organização do Cosmo atual. Utilizando o espaço-tempo das
Origens como base de informações e como ponto de referência privilegiada, os xamãs
descrevem as características da vida, do ordenamento e das possíveis futuras
transformações do Universo. No próximo item, me dedicarei justamente a estes temas,
bem como ao quadro normativo e moral que é construído como resultado da
interpretação do processo cosmológico.
9.2 O Ára Ypyrã (o espaço-tempo atual
109
) e o Ararapyre (o fim do tempo
do bom viver)
Os eventos transformadores das origens delinearam progressivamente uma nova
estrutura do Cosmo. Os seres que possuíam as mesmas propriedades e condições de
existência e ação, uns com relação aos outros, e que compartilhavam os mesmos
espaços, passaram a ser hierárquica e espacialmente distribuídos.
Em primeiro lugar, que se destacar que os Kaiowa distinguem entre dois
diferentes tipos de lugares: por um lado, a Terra (Yvy) e, por outro, os yváy, patamares
distribuídos tanto vertical quanto horizontalmente, seguindo os pontos cardeais
110
.
A Terra superfície plana e circular é o espaço e a dimensão onde os seres
mortais, incluindo os homens, se percebem e se relacionam durante o período em que se
109
O sufixo “-rã” indica o futuro. Neste caso seria o futuro com relação ao tempo-espaço das
Origens, portanto, a realidade atual.
110
No momento em que descrevem esta distribuição, os índios o fazem de modo antropocêntrico,
tomando como ponto de referência a superfície do universo onde os homens vivem, isto é, a Terra (Yvy),
disco apoiado sobre uma cruz (kurusu), cujas extremidades representam os quatro pontos cardeais. A
maioria dos eventos cosmológicos como atos transformadores dizem respeito a contextos desta parte do
Universo, a partir do qual se tem a subida de divindades para suas moradas celestes. Neste sentido, a
descrição é ordenada de baixo para cima, até se alcançar o limite do Cosmo, representado pelo
firmamento. Deve-se observar, porém, que, no momento em que se referem às ações atuais e futuras das
divindades, os índios colocam maior ênfase numa descrição oposta, centrada nos yváy celestes, sendo a
partir destes que elementos são retirados da Terra e levados para cima fato que veremos em detalhes
mais adiante neste item.
229
encontram nessa condição transitória, isto é, durante a vida na Terra. Neste lugar, estes
seres podem perceber tão somente o que definiríamos como mundo sensível, isto é,
percebido através das sensações dos cinco dispositivos sensoriais (visão, audição, tato,
paladar e olfato). eles tomam conhecimento e interagem com paisagens, campos,
mato, caminhos, montanhas, pedras, água etc, que são exclusivamente da Terra.
Outro tipo de dimensão é aquela que define os yváy. Nestes lugares vivem os
seres imortais, como as divindades, as almas, os espíritos-donos e guardiães das almas,
bem como os espíritos maléficos. Essas duas dimensões estão intimamente ligadas entre
si de modo hierárquico, tendo sido isto determinado nas origens.
Como foi possível observar nos fatos ocorridos durante o Ára Ypy,
primordialmente existia uma unidade entre alma e corpo, ambos os elementos sendo
imortais. Todos os indivíduos possuíam as qualidades dos xamãs, o que lhes permitia
0perceber e se relacionar diretamente com a totalidade dos seres do Cosmo. Portanto, no
Ára Ypy, embora existisse uma distinção entre os diferentes tipos de lugares do
Universo, havia continuidade e bi-direcionalidade comunicativa entre estes, não se
podendo falar ainda da existência de duas dimensões do Cosmo. O processo de
transformação dos seres originários em outros seres levou muitos deles a decair da
condição privilegiada que ocupavam, perdendo a imortalidade do corpo e as qualidades
xamanísticas. Além disso, ocorreu a ocultação das redes de caminhos (tape po’i) que
permitiam a comunicação entre a superfície da Terra e os diferentes yváy, assim
determinando a separação em duas dimensões, ocultação esta que poderia ser
desvendada justamente através de refinadas e poderosas técnicas de comunicação e
viagens xamanísticas. Este ato, porém, não era efetivado unanimemente por todos os
seres do Universo, sendo o resultado da ação unilateral daqueles que, partindo da Terra,
conseguiram alcançar os diferentes yváy, preservando essas técnicas que eram negadas
aos seres mortais. De fato, os seres imortais são aqueles que possuem o dom de transitar
pelas duas dimensões, mas que, através daquele ato primordial, negaram aos seres
mortais esta possibilidade.
Estes fatos, porém, mais de que instituir uma separação definitiva entre duas
dimensões do Universo, introduzem elementos hierárquicos e assimétricos na
determinação da comunicação, em uma perspectiva dinâmica que visa alcançar, no
futuro, posteriores transformações que permitam a restauração de uma relação
230
bidirecional entre as duas dimensões criadas ao menos no que diz respeito àquela
estabelecida entre os seres humanos e as divindades. Com efeito, a Terra está destinada
a ser, no futuro, povoada por seres imortais e perfeitos, o que excluiria, portanto, as
humanidades com as qualidades que as tornam peculiares atualmente. Esta perspectiva
dinâmica no relacionamento cosmológico atribui um espaço relevante à
intencionalidade dos sujeitos. Dependerá então das intenções e do modo de agir dos
indivíduos o refinamento de formas de comunicação e ação que lhes permita adquirir
essas qualidades xamanísticas perdidas durante o Ára Ypy. Isto ocorre de modo similar
aos eventos protagonizados pelos heróis civilizadores, Pa’i Kuara e Jasy, cujo
reconhecimento e reunião com o próprio pai foram determinados através de provas e
avaliações de condutas. A recuperação dos dotes de xamã não representa apenas a
possibilidade de transitar pelos diferentes espaços do Cosmo; esta permite também
estabelecer o papel de mediador entre esses mundos e os indivíduos que, pertencendo ao
próprio grupo, não conseguiram adquirir essas qualidades. Deve-se destacar que os
Kaiowa, embora atribuam a todos a potencialidade de conseguir as propriedades
xamanísticas, poucos possuem, por características de sua alma espiritual (ayvu), as
condições e as capacidades de se tornar um ñanderu (ou ñandesy). Deste modo, cria-se
uma distinção muito relevante para a vida sócio-cósmica destes índios, que coloca os
saberes, as técnicas e as práticas xamanísticas em uma posição privilegiada,
produzindo-se uma significativa assimetria na distribuição dos conhecimentos no seio
do grupo social.
Como foi dito, o Cosmo está em constante movimento, as ações e práticas
realizadas pelos seres tendo efeitos sobre a sua arquitetura, ao ponto de poder
desencadear significativas mudanças. As relações cosmológicas, portanto, devem ser
consideradas como dinâmicas de transformação, visto que também na atualidade
existem micro mudanças, anunciadas pelos deuses aos grandes xamãs. O tekorã, por
exemplo, é o conjunto de normas, comunicado periodicamente aos ñanderu, e cujas
peculiaridades passam a ser discutidas durante os encontros como as jeroky guasu
(grandes danças rituais) e as aty guasu
111
.
111
Adiante me deterei mais sobre o tekorã e suas conseqüências.
231
O papel dos Ava no presente é, assim, procurar fazer com que o movimento do
Universo seja direcionado em vantagem própria, buscando restabelecer as condições
originárias dessa humanidade (os próprios Ava). Para tal propósito, os Kaiowa devem
manter uma conduta exigida pelos deuses, cujas características apresentam-se hoje
opostas àquelas que caracterizavam as próprias divindades durante o Ára Ypy.
Ñande Ru, Ñane Ramõi e os Ñande Rykey exigem que estes índios hoje
mantenham um bom comportamento (o teko porã); ou seja, eles devem espelhar-se no
modo de viver dos deuses na atualidade: se amam, não brigam nem se desentendem, não
desmancham casamentos, cooperam entre si, não gritam, utilizam certos tipos de
enfeites, dançam continuamente, se comunicam exclusivamente cantando etc.
Alcançando plenamente todas estas virtudes, os Kaiowa poderão atingir a perfeição e
pureza, entrando em um estado definido como aguije (literalmente “maduro”), conceito
que poderia ser traduzido como “plenitude” e perfeição”. Atingido este tipo de estado,
o corpo torna-se leve, livre de impurezas, podendo ascender, juntamente com sua alma
espiritual, aos yváy de onde esta última procede, nas proximidades da morada dos
deuses. O estado de aguije permite, pois, a um homem tornar-se imortal, um kandire
112
.
Entre os Guarani do período colonial existiram várias tentativas por parte de
xamãs de reunir um séquito de índios, conclamando-os a dançar e cantar
incessantemente, com o objetivo de se juntar, em vida, às divindades (v. Melià1986,
Susnik 1979-80). casos relatados nos anos 70 entre os Pai-Tavytedo Paraguai, de
comunidades que começaram a dançar, com este mesmo objetivo (Wicker 1997), suas
esperanças sendo frustradas, ou melhor, suas perspectivas sendo redirecionadas. No
Mato Grosso do Sul, o reconhecido xamã Pa’i Chiquinho, da área de Panambizinho,
encabeçou um movimento similar, que durou mais de duas décadas, entre os anos 50 e
70, segundo informam hoje os índios
113
. No caso de eventos futuros, como vimos na
declaração do grande xamã Paulito (cf. Parte II), sucessor de Chiquinho, existe a
expectativa de que um dia se chegue ao fim deste ordenamento do mundo, com a
ascensão coletiva dos Kaiowa para o karoapy, yváy situado próximo às moradas dos
deuses.
112
Ver Cadogan (1962: 71) e Melià et al. (1976: 234).
113
Pa’i Chiquinho foi um dos principais informantes de Schaden.
Foto XIII
O xamã Paulito Aquino (com a cruz de chiru) junto com os neófitos e demais participantes, na dança de encerramento do ritual de
iniciação masculina (kunumi pepy). T.I. Panambizinho. Abril de 1993.
Tal coisa seria possível através da revelação do tape aguije, a trilha perfeita, que
comunica as duas dimensões
114
. Entretanto, a história do Cosmo demonstra claramente
aos Kaiowa que não é ainda possível reunir o grupo como um todo com as divindades,
mas ao mesmo tempo relata o sucesso de grandes xamãs que se tornaram kandire
115
. O
aguije é, de fato, um estado que se alcança individualmente, embora no caso de não se
ser um xamã, requeira um guia espiritual. As técnicas de comunicação cosmológica que
permitem entender, interpretar, e às vezes condicionar, os desejos das divindades são
excelentes instrumentos nas mãos dos ñanderu, podendo estes xamã julgar as condições
para saber se é possível ou não alcançar o estado de aguije em uma determinada
situação histórica do Cosmo.
Pelo argumentado aagora, é possível deduzir que para os Kaiowa a distinção
entre a vida na Terra e nos yváy não é ontológica, mas hierárquica. Os seres que moram
na Terra hoje não têm as qualidades necessárias para encontrar os caminhos que lhes
permitiriam deslocar-se para os outros patamares do Cosmo. Isto determina a existência
de duas dimensões no Universo. Os índios constatam que, enquanto a alma é destinada a
voltar para o yváy de onde procede, após a experiência na Terra, o corpo está destinado
a perecer. A imortalidade deste permitiria reconstruir o primordial monismo que
caracterizava os Ava Ypy, os homens das origens.
A necessidade ou desejo de manter unidos alma e corpo parece ser uma das
preocupações mais relevantes para os kaiowa, e isto não somente para a vida
extraterrena. Com efeito, a interpretação das doenças e as técnicas de cura estão ligadas
a esta concepção, assim como os efeitos da feitiçaria, e serão objeto de atenção nos
próximos itens. Interessa-me aqui colocar em destaque o fato de que, para os índios, o
114
Interpreto aqui o karoapy como um yváy, entendido como sendo localizado numa dimensão
diferente da vida na Terra. Considero que no momento em que Paulito o define como um lugar perto do
yváy (Paulito, em Chamorro 1995: 65), intentava estabelecer uma hierarquia entre os lugares ocupados
pelos deuses e aqueles de onde procedem as almas e os kandire. Chamorro (idem: 180-83) interpreta este
lugar como sendo localizado na Terra, e não no Céu, onde viveriam os deuses. A autora faz esta
observação para comparar o pensamento kaiowa com o cristão, este último distinguindo entre Céu e Terra
e localizando o paraíso no primeiro. Neste sentido, a autora argumenta que para os índios, ao contrário, o
paraíso seria um lugar na Terra, um lugar perfeito, o yvyaraguije, isto é, a “terra do espaço-tempo
perfeito”. Não cabe dúvida de que para os Kaiowa o destino em si está ligado à Terra, até mesmo porque
foi este o espaço que lhes foi destinado por Ñande Ru, nas origens. O que não me parece pertinente é
atribuir à noção de yváy o significado de “Céu”, nem pensar que os índios conceituem um paraíso, nos
termos cristãos. O que os índios procuram é distinguir entre espaços impuros e imperfeitos daqueles puros
e perfeitos, almejando alcançar este segundo tipo de lugar, onde os indivíduos são libertados do trabalho
pesado, corpo e alma sendo imortais e podendo desenvolver intensa vida social.
115
Os índios relataram a Cadogan (1962:71) casos de xamãs que se tornaram kandire, como Chiru
Vusu, Kunumi Guasu, Kuña Ru’i e Ñemoû.
234
que importa é viver bem, e isto significa ter a própria alma solidamente assentada no
corpo e não perturbada, quer esta esteja na Terra ou no yváy de origem, na condição de
kandire. Para que isto aconteça, que se evitar que determinados espíritos interfiram
na vida dos Kaiowa na Terra. Mas que espíritos seriam estes? Para responder a esta
questão deve ser incorporada uma outra distinção feita pelos índios na organização do
Cosmo.
Os Kaiowa consideram que os yváy presentes no Universo são organizados tanto
verticalmente, como patamares sobrepostos, quanto horizontalmente, em volta da linha
do horizonte, orientados pelas quatro pontas da cruz sobre a qual está assentada a Terra
(os pontos cardeais)
116
. O primeiro destes tipos de organização tem mais peso, vista a
lógica hierárquica que orienta as relações cosmológicas atuais. Sobre a quantidade
destes patamares, os indígenas oferecem muitas versões. Por exemplo, Chamorro (1995:
68) argumenta que os habitantes de Panambizinho consideram que as divindades que
interferem na vida terrena habitam os primeiros vinte e quatro patamares do Céu. Os
vinte e quatro que se seguem seriam habitados por deuses mais sábios, porém, devido à
maior distância, mais ociosos. Na área de Jaguapire, o xamã Luís Borvão fala de nove
yváy. Independentemente do número, deve ser observado que, em ambos os casos, os
índios estão se referindo aos patamares onde vivem as divindades relacionadas por
parentesco com os próprios Kaiowa; excluem-se deste raciocínio os lugares onde vivem
seres imperfeitos, malvados e/ou impuros. Neste sentido, o número dos yváy varia
enormemente, o prestigioso xamã Atanás afirmando que no total, os patamares que se
interpõem entre a superfície da Terra e o firmamento seriam mais de trezentos
117
. O
ordenamento dos yváy, como foi repetidamente afirmado, é hierárquico na linha
vertical; mas não é simplesmente progressivo. Ocorre que existe uma linha de fronteira
que delimita aqueles yváy habitados pelos deuses e outros seres perfeitos, puros e sábios
daqueles onde moram, ou de onde procedem, os seres imperfeitos, impuros, maléficos
e/ou potencialmente maléficos. Esta linha é representada pela Yvy Rendy a sombra
116
Ver Melià et al. (1976: 234) Chamorro (1995) e L. Pereira (2004: 238 e 241-43). Este último autor
identifica, alem da Terra e os patamares do céu também uma dimensão subterrânea habitada por seres
imperfeitos.
117
Durante uma longa entrevista em sua atual residência, na reserva de Limão Verde, (município de
Amambai) Atanás descrevia (em 30/05/2004) a sobreposição dos patamares a partir do chão, subindo, em
forma de espiral, em direção ao Céu.
235
brilhosa da Terra
118
. É a partir desta marca que os Kaiowa separam o Cosmo em duas
partes, verticalmente posicionadas: aquela que agrupa os patamares localizados aquém
da Yvy Rendy e aquela que reúne os que estão além desta linha de fronteira. Por sua vez,
cada uma destas partes hospedará várias categorias de seres (correspondendo à
totalidade de yváy ali presentes), seres guiados, protegidos e dominados pelos
respectivos járy: os espíritos-donos.
Cada uma daquelas que classificaríamos como espécies de animais constitui uma
categoria em si. Assim, existem tantos yváy quantos são estas categorias de onde
procedem as almas destes “animais” –, e a cada uma delas estará associado um espírito-
dono. Existe, porém, uma exceção que define uma categoria, cuja classificação diverge
da lógica Lineana (de Lineu), constituída por aqueles seres que nas origens foram
destinados a serem comidos pelos Ava; estes são reunidos em um único grupo, cujo
dono é so’o járy literalmente, o dono da carne de caça. Existe também uma categoria
geral para indicar todos os “animais”: mymba. Mas ocorre que ela não permite que estes
seres sejam agrupados entre si, como no caso da nossa classificação em um “reino
animal”. De fato, mymba (ou timba) significa simplesmente “‘animais’ de alguém”, isto
é, que esses seres pertencem a seu járy, de modo que não é possível referir-se a eles de
modo abstrato como “os mymba”.
que se colocar em destaque o fato de que do ponto de vista da tradição de
conhecimento indígena, não é possível imaginar a existência de lugares, caminhos, seres
vivos e inanimados, como sendo neutros, autônomos, sem proprietários. No Cosmo
atual todos os elementos que o compõem possuem donos, constituindo domínios e
respondendo a uma lógica extremamente significativa no processo de hierarquização do
Universo. Neste sentido, dependendo do ser ou elemento e de onde estes procedem,
terão associados járy, cujos poderes podem variar muito, seguindo a escala hierárquica e
a posição com relação à Yvy Rendy. Isto não se refere tão somente aos espíritos
guardiães, mas também às próprias humanidades, cujos membros possuem objetos e
espaços de jurisdição hierarquicamente organizados, segundo os princípios de
organização social e política – como foi possível ver na segunda parte deste trabalho.
118
Sombra visível apenas pelos xamãs.
236
Voltando à constituição do Universo atual, os seres originários ou moradores de
yváy localizados aquém da Yvy Rendy são os seguintes: todos os “animais” que
constituem fonte de alimentação para as humanidades atuais (como anta, veado, cateto,
paca etc.) e aqueles considerados como de mau augúrio, nocivos e repugnantes (como
onça, lobo-guará, morcego, cobra, besouro, vermes etc.). Moram também nesta parte do
Universo diferentes tipos de járy, como os relativos às categorias anteriormente
descritas: o Kurupíry (dono das pedras), o Ka’aguyavaete
119
(dono do mato), Ava Sovy
(dono do arco-íris), Sanja Járy (dono das fossas e valas), Tape Kue Járy (dono dos
caminhos abandonados), Óga Kue Járy (dono das casas ou construções abandonadas), e
tantos outros donos de espaços “desumanizados”. Ainda se localizam nesta parte do
Cosmo os añáy (demônios). Todos estes járy e añáy são considerados pelos Kaiowa
como sendo ma’etirõ, termo que é utilizado frequentemente para designar seres e
também substâncias maléficos
120
. Concluindo, temos aqui também as anguê
121
, isto é,
as almas corporais dos seres humanos, que se desprendem do corpo após a morte do
119
Também conhecido como Malavisión ou Pitajovái (literalmente “os calcanhares para frente e
para trás”), espírito que grita no meio da floresta e assusta e amedronta os caçadores.
120
Cadogan (1962: 73) registra outro significado para este termo, que é recuperado por Melià et al.
(1976: 234) e traduzido como “almas penadas”. O autor paraguaio transcrevia uma expressão de um Paî-
Tavyterã que definia os ma’etirõ como sendo “almas de habitantes de la tierra como nosotros, que
pecaron” (idem). Em lugar algum cheguei a registrar uma semelhante tradução. Em Limão Verde,
Dourados, Sassoró e Jaguapire, onde pesquisei o assunto, consideram ma’etirõ como sendo um quid
malignum. Nunes, de Dourados, falou de ma’etirõ rembiapo (o trabalho, atuação do ma’eti), sendo,
portanto, uma força maligna em ação, que viria no vento, causando doenças. Segundo Bastião Arce, da
mesma reserva, ma’etirõ é um espírito que faz mal às pessoas. Da mesma opinião é Alda, que o tem como
sinônimo de añáy (demônio); Getúlio Juca, seu esposo, importante líder e aspirante a xamã, distingue
entre ma’etirõ e mba’etirõ, o primeiro sendo um ser maligno e o segundo um objeto, uma coisa, maléfica.
Os xamãs Atanás (em Limão verde) e Luís (em Jaguapire) confirmam todas estas versões em suas
narrativas, muitas vezes fazendo uma combinação entre elas, isto é, o ma’etirõ sendo ao mesmo tempo o
agente causador e o objeto causa de uma determinada doença. Cadogan considera que a a palavra em
questão é composta pelo termo “tetirõ” (1962: 73), remetendo seu significado à tradução feita por
Montoya (1876: 385) de “che reko tetirõ”: “ando inquieto, no tengo asiento, soy incostante”. que se
considerar que o jesuíta, na abertura do verbete “tetirõ”, como significado geral lhe atribui o sentido de
“qualquiera cosa, comunicar, aun, hasta, em ninguna manera”, mostrando a característica polissêmica
deste termo. Cadogan, como muitos autores, buscam muitas vezes no dicionário redigido por Montoya no
longínquo 1639, significados que depois são atribuídos aos contextos sociais e lingüísticos atuais. Se a
esta atitude acrescentamos as próprias ambigüidades de sentido que o autor do vocabulário aponta para o
termo em questão, devemos considerar a afirmação de Cadogan, pelo menos como uma das possíveis
interpretações do termo em exame. A meu ver, com base nas informações obtidas, é muito provável que
“ma’e” seja uma contração de “mba’e” (objeto). Assim sendo, “mba’etî”, poderia ser traduzido como
“sustancia, cuerpo gaseoso, gás, vapor” (Guasch e Ortiz 2001: 646) e “yrõ” como “odiar, depreciar: odio,
desprecio” (idem: 795), o que nos levaria a interpretar o lexema como sendo “sustância etérea maléfica”,
em convergência com as informações por mim obtidas de parte dos indígenas.
121
Também denominada anguéry. Para mais detalhes, ver adiante, no próximo item.
237
indivíduo a qual, como se verá, não coincide com a ayvu, a alma espiritual. Estas,
após vagarem por certo período em torno das residências dos correspondentes defuntos,
dirigem-se para sua morada definitiva, no Kururu’y
122
(literalmente “água onde vivem
os sapos”), yváy situado no Sudoeste, onde se inicia a escuridão. Podemos indicar para
esta parte do Universo uma subdivisão que diz respeito ao comportamento dos seres que
a povoam; refiro-me à contraposição entre o dia e a noite. Os índios atribuem ao período
noturno o domínio dos seres maléficos, das almas dos animais noturnos e das anguê.
Como afirma Atanás “a noite é o dia para esses ma’etirõ, não é como para nós, que tem
outro significado”.
Ocupemo-nos agora do além da Yvy Rendy. Esta parte do Universo começa com
o Okára Rendy e se estende verticalmente até o último patamar (Yváy Paha), chamado
Guara Rendy (o yváy do sol). Segundo Atanás, neste último patamar se encontram tão
somente as divindades supremas. Ele é fixo, tendo as estrelas a função de pregá-lo no
céu. O xamã afirma que os yváy de além de Yvy Rendy estão bem ancorados,
diferentemente daqueles de aquém desta linha, sempre em movimento e instáveis.
Povoam os patamares do além Yvy Rendy as diversas divindades, as almas dos
diferentes “animais” considerados pelos deuses como seus mensageiros como o beija-
flor e o tuiuiú –, as dos peixes, as almas das plantas cultivadas, as almas de todos os
seres humanos, cada categoria ocupando um yváy específico, com exceção das almas
dos Kaiowa que, segundo as informações mais comuns, procedem de diferentes
patamares do além Yvy Rendy, geralmente os mais elevados e posicionados ao Leste
123
.
Os espíritos-donos associados a essas categorias são os próprios deuses. Temos, entre
outros, Ñande Ru, que é o kaiowa járy (dono dos Kaiowa), Pa’i Kuara que é o kaiowa
reko járy (dono do modo de ser dos Kaiowa) e o kuarahy rendy járy (dono da luz do
dia), Jasy sendo o pyhare rendy járy (dono da luz da noite), Jesu Kristu, instituído como
karai reko járy (dono do modo de ser dos brancos”), Jakaira como temity járy (dono
122
Cf. Cadogan (1962).
123
As almas dos Kaiowa podem ser enviadas à Terra por Pa’i Kuara, Jasy, Ñande Ru, Ñane
Ramõi, Pa’i Tambeju etc. Portanto, dependendo de sua procedência, pertencerá ela ao yváy de um ou
outro desses personagens. A título de exemplo, Atanás explica que as crianças que possuem manchas na
pele foram enviadas por Jasy, personagem que cuida da Lua, astro que tem manchas em sua superfície.
238
das plantas cultivadas), Kaja’a
124
, a pira járy (dona dos peixes e dos outros seres das
águas). Temos também nesta parte do universo os donos dos elementos vitais e, ao
mesmo tempo, destruidores e renovadores do Cosmo, como Chiru Kurusu Ñe’engatu,
que é instituído como yvy járy (dono da Terra), Pa’i Tambeju, que e o tata járy (dono
do fogo), Ke’y Mirî
125
sendo o marány járy (dono do vento e das tempestades),
Verandyju, que é o ára vera járy (dono do relâmpago), Ñane Ramõi representando o
hyapu guasu járy (dono do trovão máximo), apenas para citar os mais relevantes
126
.
Passarei agora a descrever uma terceira divisão cósmica, também instituída no
espaço-tempo das origens: aquela étnica e de ética comportamental (teko). Como foi
possível ver na narração de Atanás, apresentada no item anterior, é dada muita ênfase à
separação que foi determinada entre os Ava (incluindo também os Ñandéva) e os
“brancos”. O mito de fundação estabelece uma distinção nítida entre os objetos e
comportamentos que caracterizam cada uma destas humanidades.
Aos Ava, como vimos, cabe imitar o comportamento dos Ñande Rykey,
divindades que limparam e purificaram os ouvidos dos Kaiowa e Ñandéva a fim de que
eles possam ouvir e guardar (na cabeça e na alma) os conhecimentos recebidos.
Ademais, estes índios devem produzir objetos e instrumentos a partir dos materiais que
lhes foram concedidos nas origens como madeira, pedras, fibras vegetais etc. Para se
alimentar, também lhes foram destinados certos tipos de “animais”, para serem caçados
e pescados, através de técnicas específicas. No tocante às roupas e aos adornos, para
serem reconhecidos pelos deuses como Kaiowa (e aqui se colocam elementos de
diferenciação para com os Ñandéva), eles devem vestir-se com ku’akuaha (pano de
algodão, adornado com pompons, que cobre a cintura), já’asaha (adorno do tórax, com
penas de aves e/ou pompons), jeguaka (cocar com penas de aves e/ou pompons); nas
124
Em uma narrativa de Atanás este personagem aparece como sendo uma das filhas de Ñande
Ru.. Ela teria se desentendido com o pai, entrando em estado de ñemyrõ (sentimento de ressentimento,
aborrecimento e depressão), transformando-se na dona dos seres das águas e casando-se com Mborevi ypy
(a origem da anta). Neste sentido, seria uma personagem feminina. É muito comum, porém, ouvir os
índios se referirem a esta divindade como sendo masculina, assim como o registra Cadogan (1962: 70).
125
Esta divindade anda sempre em um cavalo voador (kavaju vevê), os índios afirmando que os
“brancos” referem-se a ele com o nome de São Jorge. Cadogan (1962: 71) atribui a este personagem a
função de “dono dos barreiros” (tuju járy) ou dos animais comestíveis (so’o járy).
126
Não procederei aqui a desenvolver maior detalhamento na descrição das duas partes do
Universo identificadas. Mas adiante, quando se falar na formação do xamã, serão oferecidas mais
informações. Neste ponto interessa-me mais focar princípios organizativos, para ver depois que
implicações estes têm na vida indígena.
239
mãos devem utilizar mbaraka (chocalho), guyrapa (arcos) e chiru (varas insígnias), no
caso dos homens, ou takuapu (bastão de ritmo em bambu), para as mulheres. Além
disso, para serem plenamente reconhecidos como Kaiowa, os homens adultos devem
ostentar o tembeta (adorno labial de resina vegetal, recebido após o ritual de iniciação
masculina, denominado Kunumi Pepy).
Com relação aos “brancos”, no Ára Ypy eles receberam roupas de metal, vidro e
plástico, motivo pelo qual esta humanidade fabrica seus objetos de uso com estes tipos
de materiais. Jesu Kristu, dono do comportamento destes homens, destinou-lhes
“animais”, como vacas, ovelhas, burros, porcos, cavalos, patos, galinhas, enfim, todos
os animais” por estes criados hoje para transporte, vestimenta e/ou alimentação. O
comportamento dos “brancos” deve ser relacionado aos ditames de seu dono, sendo que
o relacionamento com este dono será feito através das rezas cristãs, que são os ñengáry
de uso exclusivo desta humanidade
127
. Com relação à aquisição e ao armazenamento de
conhecimentos, os “brancos” foram contemplados com o papel (kuatia).
Tendo identificado divisões e clivagens na organização do Cosmo, posso agora
explicitar outro elemento central na determinação das relações em seu interior: a
Ararapyre, “o fim do tempo do bom viver”. Os índios afirmam que esta Era teria
começado, razão pela qual a descreverei neste item.
Há muitos fatores que indicam para os Kaiowa o fato de que o Ararapyre teve
início. Efetivamente, uma progressiva diminuição dos elementos vitais que foram
disponibilizados para os Ava nas origens, como o mato, os animais comestíveis, as
plantas oficinais, assim como certos ñembo’e (rezas) e conhecimentos técnicos
relacionados à construção de instrumentos e objetos, à prática da agricultura e às
atividades de caça e pesca. Segundo eles, estes elementos não teriam sido destruídos
e/ou esquecidos, mas simplesmente levados pelos próprios deuses para seus yváy,
através do ato de pyte rupi, ação que pode ser traduzida como “sugar para cima”
128
.
127
Atanás foi enfático em afirmar que os índios crentes não conhecem o ñengáry de Jesu Kristu,
visto que este não lhes foi concedido nas origens. Esclareceu também que as rezas dos “brancos” apenas
permitem a comunicação com Jesu Kristu, sendo que este personagem, embora possuindo sabedoria
(arandu), não recebeu nas origens o poder de transformar o mundo e os seres em outros seres. Neste
sentido, em tendo acesso exclusivo aos Ñande Rykey, os xamãs kaiowa podem interferir sobre o
andamento do Cosmo e suas transformações, coisa que os sacerdotes e pastores cristãos não podem fazer.
128
Partindo deste princípio, o desmatamento, com todas as suas conseqüências ecológicas, seriam
mais que tudo sintomas e não causas da falta da floresta.
240
Esta atitude das divindades estaria relacionada a uma avaliação do comportamento
mantido pelos Kaiowa, sendo por elas julgado como heterogêneo: muitos não
observariam os ditames do teko porã (o correto modo de ser), outros o obedeceriam
parcialmente e poucos seriam os que o respeitam quase na íntegra. que se observar
que o teko porã não é entendido pelos Kaiowa como sendo o resultado de uma opção,
de um ato de livre arbítrio; este, se não é usado ou, melhor, praticado, é passível de ser
levado progressivamente para a morada dos deuses, do mesmo modo que os outros
elementos anteriormente descritos. Portanto, temos na Terra uma diminuição
progressiva de teko porã, o que abre espaço para a manifestação de teko reta (muitos
modos de ser), a maioria sendo interpretada como teko vai (maus comportamentos) e
associados ao ato de imitar (ahekora’â) o comportamento e as práticas dos “brancos”.
Outros elementos que são considerados conseqüência dessas mudanças
comportamentais e de condutas tecno-econômicas são as pragas que se difundem pela
Terra como poluição das águas e do solo, plantas gramíneas e insetos que atacam os
cultivares etc. e as mudanças climáticas, como secas e chuvas de granizo. Finalmente,
há também as doenças, as epidemias de “suicídio” e a proliferação de mortes violentas.
Como se pode constatar, o Ararapyre é um fenômeno progressivo, indo os
índios em direção a um futuro inexorável. Diz-se que o fim da vida na Terra será
marcado por eventos cataclísmicos similares aos acorridos durante o Ára Ypy, como a
chegada de tempestades de grande magnitude, enviadas e manobradas por Ke’y Mirî,
produzindo-se o dilúvio, a luz do dia sendo apagada por Pa’i Kuara, e Pa’i Tambeju
procederá à queima do solo. Pouco antes da chegada deste momento, os Kaiowa que
restarem serão também levados para os yváy de onde procedem suas almas. Isto
acontecerá quando os deuses não enviarem mais almas para serem incorporadas nas
crianças, estas as recebendo tão somente dos seres maléficos do aquém de Yvy Rendy.
Nesse momento as crianças não serão mais verdadeiras, possuindo comportamentos
impostos pelos ma’etirõ. Nascerão também deformes, sem braços ou outras partes do
corpo. Antes que os seres humanos sejam levados, serão “sugados para cima” as
plantações, os “animais” de caça e domésticos. Assim, as sementes não crescerão e os
“animais” não se reproduzirão, não existindo mais alimentos disponíveis para os
homens. Após a destruição da superfície da Terra, como ocorreu várias vezes, esta
será esfriada e repovoada; mas, como foi dito, desta vez viverão nelas tão somente
241
seres perfeitos e puros, eliminando-se grande parte das diferenças instituídas durante o
Ára Ypy.
9.3 Relações cosmológicas: entre quadro normativo e prática social
A organização do Cosmo atual, as condições de existência dos Kaiowa e as
obrigações comportamentais deles exigidas pelos deuses apresentam aos índios um
quadro normativo aparentemente muito rígido e esmagador. No entanto, deve-se
observar que o Ára Ypyrã não teria significado pleno se não fosse continuamente
cotejado, por um lado, com as condições e os comportamentos das origens e, por outro,
com o destino imposto pelo Ararapyre (“o fim do tempo do bom viver”). Estaríamos
enganados se pensássemos que este cotejamento conduz a um reforço desta rigidez,
tornando ainda mais nefastas as expectativas dos Kaiowa frente a um panorama que os
utilizar cada vez mais elementos materiais, objetos, técnicas e saberes
cosmologicamente atribuídos aos “brancos” o que claramente dificulta a possibilidade
de se tornar kandire (imortais), e/ou de ascender coletivamente aos yváy de origem. Pelo
contrário, o que ocorre nestes casos é o reforço do papel do xamã, sendo que seu
prestígio e eficácia perante seu público dependerá de sua interpretação flexível e
dinâmica dos eventos cosmológicos passados, presentes e futuros, unidos a uma
marcada demonstração de sua força e capacidade comunicativa e persuasiva para com
as divindades. Vejamos os dois tipos de cotejamento em questão.
Através da primeira comparação os xamãs tendem a justificar os
comportamentos e os estados emocionais dos indígenas atuais. Como foi possível ver,
no Ára Ypy (as origens) a conduta dos deuses manifestava agressividade, sentimentos de
vingança, aborrecimento, desejos de relacionamento sexual exagerado, curiosidade etc.,
características muito freqüentes na vida social dos Kaiowa. Neste sentido, certas
atitudes e comportamentos dos índios contemporâneos são interpretados como
fraquezas, condutas contrárias às estabelecidas pelas normas atuais, mas que são
resultantes de um processo de imitação e experimentação daquilo que os próprios Ñande
Rykey fizeram no passado. Constata-se também o fato de que estas divindades não
foram punidas e obrigadas a morar aquém do Yvy Rendy, como ocorreu com certos
personagens pertencentes a outras humanidades originárias. Este tipo de
242
condescendência para com os Ñande Rykey por parte de Ñande Ru nos permite
identificar outro elemento importante nas relações cosmológicas do espaço-tempo das
origens: o “aconselhamento”
129
.
É através de continuados aconselhamentos geralmente não seguidos que o
herói civilizador Pa’i Kuara se relacionava com seu irmão menor Jasy e, embora este
último perseverasse em errar e desobedecer, o sentimento de amor e proteção fraternal
fez com que o mais velho dos “gêmeos” voltasse numerosas vezes a revivescer seu
irmão, após as mortes sofridas por obra de um añáy. Seguindo esta mesma lógica, os
Ñande Rykey (enquanto irmãos mais velhos) se relacionam com seus irmãos menores,
os Kaiowa, lhes permitindo errar e ajudando-os a se defender dos perigos representados
pelos ma’etirõ.
Contudo, que se dizer que obter esta proteção não é coisa fácil, visto que os
Kaiowa precisam permanentemente ser reconhecidos pelos Ñande Rykey como seus
parentes consangüíneos
130
. Esta atitude manifestada pelas divindades tem sua origem na
conduta mantida por Ñande Ru para com seus próprios filhos, Pa’i Kuara e Jasy, no
momento em que lhes exigia certos comportamentos, adornos e práticas rituais a fim de
reconhecê-los como seus parentes
131
– reconhecimento este que tem que ser confirmado
a cada instante para indivíduos e grupos. O reconhecimento é, portanto, outro fator
importante nas relações cosmológicas atuais e de outrora. A utilização constante de
ñembo’e e o uso do mimby (um tipo de apito) podem permitir aos Kaiowa serem
percebidos pelos Ñande Rykey, mas isto não significa que frente a um descontentamento
para com seus irmãos menores, estas divindades não procedam a retirar os elementos
vitais para os Kaiowa, dando vida ao Ararapyre.
129
O ato de aconselhar unido à ação de imitar e praticar constitui o binômio fundamental do
processo educativo entre os Kaiowa (v. Benites 2003). O xamã, enquanto operador ritual e administrador
e avaliador da ética comportamental, relaciona-se sempre com seu séquito através do aconselhamento,
assim como ele próprio recebe dos deuses os conselhos necessários à sua prática xamanística.
130
As relações de afinidade sendo excluídas, visto que o próprio demônio chegou a ser cunhado de
Pa’i Kuara, o que demonstra a potencial hostilidade existente entre as famílias que são
circunstancialmente aliadas.
131
Também neste caso temos a atitude condescendente de Ñane Ramõi, avô de Pa’i Kuara e Jasy,
muito mais clemente com os gêmeos”, visto que os reconheceu como seus netos sem muita
desconfiança. Isto ilustra sobre o comportamento normalmente mantido pelos avós, que tendem a
absorver as crianças oriundas da dissolução dos casamentos de filhos ou sobrinhos, com as quais mantêm
uma relação de proximidade, acolhendo-as e as educando.
243
Ocupemo-nos agora justamente do cotejamento entre as regras que deveriam ser
observadas no espaço-tempo atual e a dinâmica imposta pelo Ararapyre. Como vimos,
existe uma tendência inexorável que leva à destruição da vida na Terra. Mas,
diferentemente do Apocalipse bíblico, que é previsto para uma época prefixada
132
,
sendo seus acontecimentos o resultado da batalha entre as forças demoníacas e aquelas
celestes, o fim do tempo do bom viver para os Kaiowa não é uma data precisa, podendo
ser continuamente modificada pelas divindades. Outra diferença relevante que nos
permite entender a peculiaridade do pensamento kaiowa a respeito é o papel
desempenhado pelos seres humanos na transformação do Cosmo. No caso do
cristianismo, nenhum homem (nem sacerdote ou pastor) possui capacidade para
interferir nas decisões divinas, assim como não é dotado de poderes especiais para
contrastar os malefícios demoníacos
133
. O cristão, a partir do livre arbítrio, poderá
escolher unicamente como comportar-se, ciente de que sua opção terá como resultado
final ou uma recompensa (o Paraíso) ou uma condenação eterna (o Inferno), o Juízo
Final permitindo tão somente que as almas se reencontrem com seus respectivos corpos.
Para os Kaiowa, ao contrário, a salvação da alma não está em questão, visto que esta é
ontologicamente pura; uma vez que o corpo falece, ascende ela para o yváy de onde é
originária, independentemente de sua opção. Se em alguns casos a ascensão não ocorrer
de imediato, os índios atribuem o motivo a ações externas, contrárias à vontade da
132
Isto independe do fato se os seres humanos estarem ou não informados sobre quando ocorrerá o
Juízo Final. O importante para o cristão é saber que tal evento terá lugar.
133
São excluídos desta consideração os exorcistas, mas que se observar que esta categoria de
sacerdotes não goza de boa reputação no interior da Igreja Católica, a ponto de ter um papel pouco
relevante nessa instituição. Diversa é a situação das igrejas pentecostais. Neste último caso, se pode, de
fato, constatar que o papel do pastor ou dirigente coloca-se como um claro mediador entre o poder de
Jesus Cristo e as pessoas, com o intuito de que Deus expulse eventuais demônios encarnados ou doenças,
sua ação (de Deus) podendo ser caracterizada como um processo de cura. É indiscutível neste caso a
similitude com a prática xamanística, mas persiste ainda uma clara diferença. O xamã kaiowa recebe dos
Ñande Rykey poderes que passam a ser próprios, ao ponto tal de poder utilizá-los para contrastar as forças
enviadas pelas próprias divindades. No tocante à ação dos espíritos maléficos, os ñanderu podem lançar
mão de suas próprias forças para aniquilá-los, requerendo-se a intervenção divina apenas no momento em
que este poder for considerado limitado. Os pentecostais, ao contrário, não possuem poder algum, o
próprio papel do pastor sendo tão somente o de mediador. O poder do xamã é um poder mágico, enquanto
que no caso das igrejas pentecostais, que se inscrevem na tradição cristã, a magia é filosoficamente
excluída, tida como obra do diabo. Como justamente observa Sabbatucci (1987), incorporando as ópticas
grega e romana, a tradição cristã negou na sua origem a mageia, prática procedente do zoroastrismo,
religião antagônica na época. De qualquer forma, o processo de cura instaurado pelas igrejas pentecostais
merece atenção, visto o claro sucesso que vem tendo entre os Kaiowa e Ñandéva. Mais adiante, falando
justamente das práticas de cura, voltarei a este argumento.
244
pessoa, sendo ela contaminada por espíritos malvados, que a tornam pesada, cheia de
bichos e objetos maléficos, necessitando, pois, passar por um processo de purificação.
O problema para este povo indígena é essencialmente como preservar o bom
viver na Terra, o que em condições ideais seria garantido pelo teko porã. Contudo,
reputando não existirem mais todas as características necessárias para que isto ocorra de
modo pleno, os indivíduos procuram amenizar os efeitos do teko vai (o modo incorreto
de se comportar), contrastar os males enviados pelos ma’etirõ e aplacar os eventuais
eventos meteóricos produzidos pelos Ñande Rykey. Em algumas circunstâncias, se as
condições dos contextos sócio-ecológico-territoriais se tornarem mais positivas, os
índios podem também esperar uma recuperação de algumas características do bom viver
atribuídas ao passado recente, enquanto que em outras, consideradas como muito
negativas, podem intensificar as práticas rituais, procurando alcançar os yváy de origem
na condição de kandire (imortal). Esta atitude assumida pelos índios perante os
acontecimentos cósmicos parte do pressuposto de que o processo instaurado pelo
Ararapyre pode ser acelerado ou desacelerado, dependendo das condições de vida; neste
caso, quem avalia o modo de proceder e possuem poderosas forças mágicas para influir
sobre o destino desta parte do Cosmo são os xamãs.
Estas figuras precisam estar constantemente informadas sobre as intenções das
divindades, assim como devem tentar convencê-las a aplacar sua ira ou, ao contrário,
enviar à Terra todo tipo de eventos catastróficos. Se por acaso os Ñande Rykey enviarem
tormentas e outras calamidades não esperadas, o xamã deve ter a capacidade de aplacá-
las ou desviá-las, fazendo uso dos poderes que lhes foram entregues justamente por
esses deuses. O xamã deve também saber criar um clima de expectativa e de segurança,
algo que lhe permita angariar respeito, prestígio e, principalmente, legitimidade.
Transcrevo a seguir um trecho de uma entrevista feita com Atanás
134
, cujo conteúdo e
forma expositiva nos oferece um claro exemplo da performance xamanística.
Ñaroñe pyru maranda ryapuite…âva ko Tupã Avaete Marandete poty ro
je arae…(vamos começar nossos poderes e vozes, fazer brilhar e iluminar, pois
isso é de deus).
134
Trata-se de uma longa entrevista, referida, realizada, em 30/05/2004, na reserva de Limão
Verde.
245
Tupã Avaete (deus) é Ava puro, legítimo. Chama-se Marandente porque
brilha e ilumina. Os deuses quando brilham e iluminam, eles estão falando,
contando de seu modo. Enquanto isso, nós daqui da Terra dormimos, não
fazemos como eles, por isso não vimos nada, sabemos dormir. Se nós também
fizéssemos como eles, teríamos esses saberes sagrados, tais como brilho e
iluminação. Quando eles vêm, chegam por aqui, nós passamos depressa, sem
saber por que estão vindo, para que. Não percebemos que eles estão passando por
esta Terra de várias formas: de chuva, de vento forte, de relâmpago, de raio, etc.
Muitas vezes ficamos assustados e com medo quando eles chegam. Por outro
lado, alguém que faz contato. Por exemplo, eu fiz contato recente com eles.
Vimos conversando sobre isto e outras coisas. Não faz muito tempo que amanheci
conversando com eles. Quando fiz mitã mongarai (revelação do nome das
crianças), repassei alguma coisa dessas conversas para todos [os Kaiowa
presentes]. Falei que está previsto o vento forte, que a tempestade forte está
vindo. Então me perguntaram: “Vai mesmo chegar?” Falei que sim. Por isso que
não ocorreu a geada. Isto significa que a tempestade pode vir de forma de chuva
de pedra ou chuva forte. No final dessa estação de frio, vai ocorrer um
pouquinho de geada, depois podem se preparar e aguardar, mas ao mesmo tempo
não devem ter medo, ajeitem suas casas.
Vieram três crianças; pareciam crianças, mas não eram, apenas se
transformaram em crianças para me contar e conversar comigo, pedindo minha
opinião sobre suas propostas. Primeiro me falaram, me ordenaram continuar
orando para os chiru. Consideraram-me como chiru, me chamaram de chiru.
Porque o vento forte está pronto para vir; os cavalos de vento estão em
movimento, as asas dos cavalos estão enfeitadas pelos ventos fortes. Mboi
Jusu, a cobra principal, ou origem da cobra, também se encontra em
movimento inicial, em estado de preparação. Ouvindo isso, fiquei preocupado,
então relembrei para eles que ainda existem todos os seres enviados e criados pelo
Supremo! Então perguntei: “Por que vocês vão fazer isto? Existem ainda muitos
filhos de Ñande Ru aqui na Terra, filhos de Mburuvicha, filhos de No’endusu,
filhos de Karavire; ainda vivem aqui na Terra filhos de Jakaira, de Tanimbu
Guasu, de Ára Ry Vusu, de Pa’i Kuara”. Após terem me ouvindo atentamente,
246
me disseram: “Então você precisa pedir e explicar; não concordando com essas
propostas, você pode conversar com eles (os cavalos de vento) para serem
controlados.” Então comecei a pedir: maranda ryapu ojepyte rupi, maranda
ryapu ojepyte rupi... maranda ryapu ojepyte rupi, ehh, ehh, ehh. (O som da
tempestade vai ser controlado e diminuído). Através deste ñengáry fui pedindo
para que fossem diminuídos o som e o movimento do vento. Assim eles foram
voltando a seu local sagrado; anunciando através do som de um trovão e um
relâmpago, foram sumindo. Quase todos viram esse relâmpago, que apareceu no
céu. Muitos acharam que eram estrelas brilhando.
Um mês depois, depois do almoço, apareceu. Logo falei: “Aí está
chegando!" Era o cavalo de asa com vento e a cobra. Acreditando em minhas
palavras, esses Nossos Irmãos tinham concordado para segurar essas
tempestades fortes, para não liberar esse cavalo e essa cobra. Foi uma conversa só
entre eles: “Nós não podemos ainda fazer isso, primeiro temos de ouvir a fala dos
ñanderu, dos nossos irmãos da Terra. Se não tiver mais condições de
sobrevivência desses ñanderu, a prática de reza, nós neste momento podemos
tomar essa decisão.” Esse foi o tema da discussão entre Nossos Irmãos supremos.
Todos estavam presentes: Kurusu Ñe’engatu õi ave e Ñande Ru falaram pra eles:
“Podem continuar rezando, não liguem. Embora muitas rezas sagradas estejam
retornando a sua origem, vocês que estão vivos, continuem rezando”. Eu também
falei para eles que irei contar a todos e continuar rezando e conversando com
todos da Terra. uma cruz de onde está saindo faíscas, quase pegando fogo:
eles pediram para apagar, para evitar a queimada da terra, que pode acontecer
ainda; podemos esperar durante anos. E pode ocorrer também um dilúvio, pois
desde o princípio isso foi acertado entre Chiru Yryvera e Chiru Pepotî. Havia
também Chiru Kurupiry, que pode gerar doenças através de suas rezas, males,
que nós ñanderu não podemos controlar ainda. Se assim nós vivermos, sempre
fazendo esse controle, iremos ter sempre tranqüilidade e harmonia. Sempre
controlando os males, superando essas fases de desafio e dificuldades de vida
para garantir esta vida equilibrada, para não praticarmos males aos outros nem
a nós próprios. Nossos Irmãos supremos vão mesmo nos levar um dia; não
podemos ficar com pressa, com medo ou desesperados. Não podemos ficar
247
preocupados antecipadamente. Eu falo pra vocês: “Estou feliz de ver os meus
netos e netas com saúde.” A estas pessoas desejo a mesma saúde e força para que
ninguém enfraqueça. Vou ajudar, dar-lhe força para não enfraquecer as
atividades. Fico magoado quando vejo alguém cujo trabalho bom enfraquece.
Fico triste, minha alma fica dolorida. Vou imitar essa voz: vou falar um
ñengáry para entrar em contato com os Irmãos que são responsáveis pelo
marány. Poderosos protetores sagrados dos Ava. Estou fazendo se movimentar e
agirem as autoridades supremas:
Amo neiko chereyi ramyja rusu meme ... Che arovera, arovera marány
ryapu ry eñesû ke cheryvy no’a mo’a mba’e megua va cheryvy ... E no’a mo’a
mba’e megua va ... (Estou fazendo se mexer o poder de marány, a força da
tempestade, do relâmpago, do raio e o som do trovão para controlar os males da
Terra, para serem protegidos os meus irmãos menores da Terra. Gostaria que
vocês rezassem, pedissem proteção, porque vejo muitas coisas ruins dominando
na Terra, fazendo mal aos meus irmãos e irmãs). Ouvindo isso eu perguntei ao
marány járy (o dono do marány), que nós chamamos de Ke’y Mirî, que sempre
anda em um cavalo que tem asas e é o responsável pelo vento forte – o não-índio
chama esse irmão de São Jorge quando o vi, vindo com seus ajudantes, neste
momento eu perguntei a ele sobre um ñembo’e para controlar o marány. Eles me
perguntaram se eu não tinha aprendido, ouvido antes. Falei que já tinha ouvido
alguma coisa, mas que queria ouvir mais. Eles me contaram tudo novamente,
que tem muitos ñembo’e para controlar: tyapu avaete papaha, marány papaha e
outros. Orientaram-me que quando começasse a ventar e cair relâmpago, eu
devia usar todos esses ñembo’e para controlar, e eles iriam me reconhecer. Assim
que o temporal começar, tem de iniciar o ñembo’e para controlar, todos os tipos
de ñembo’e. Tem que imitar a fala dele, imitar tudo. Desse jeito ele me ensinou:
“Tyapu Avaete kurusu nê’ êngatu gui ombouva e hahã kuri ehahã” (O som
sagrado que veio da cruz do Avaete que eu enviei imitando sua voz). Ele me
falou: hi che ru papa Karavire avaete nde pope gua rendy pype mo’ã chemohe
ndyju chemohêndy ju ... Pende popegua pe añemohendy ne che ...” (O meu pai
Karavire, que é Ava puro, tem em sua mão o poder que brilha e ilumina áureo...
248
do qual estou me vestindo e começando a brilhar e iluminar...). (Limão Verde,
30/05/2004).
Como se pode deduzir das palavras de Atanás, o risco de piora das condições de
vida na Terra é constante, os Ñande Rykey estando sempre prontos a enviar tempestades
e outras manifestações meteóricas, que podem acelerar o Ararapyre. Porém, fica claro
também o fato de que estas divindades não podem agir sem consenso entre si e sem o
parecer dos xamãs, estes sendo consultados e muitas vezes solicitados para ajudar a
restaurar as condições cósmicas necessárias para que a vida na Terra seja a melhor
possível.
Sobre a benevolência dos Ñande Rykey para com seus irmãos menores e sobre a
estabilidade das condições de vida na Terra, Atanás é ainda mais explícito, no final de
outra entrevista realizada no acampamento de Ñande Ru Marangatu. Na ocasião, este
importante xamã expressou-se do seguinte modo:
...sempre seremos irmãos dos Ñande Rykey. Apesar de hoje usarmos roupas
diferentes e enfeites diferentes dos Ñande Rykey, eles vão nos reconhecer por meio
de colar, voz, ñembo’e, jeguaka etc. Com estes enfeites, vão nos reconhecer.
Mesmo nós tendo errado porque não nos comportamos mais como eles; mesmo que
vivamos diferentes deles, pois ficamos bêbados, violentos, brincamos muito;
mesmo que nossas roupas, alimentos, atitudes, modo de ser, sejam diferentes de
Nossos Irmãos; mesmo que queiramos ser diferentes deles, isto é impossível porque
eles são Nossos Irmãos legítimos, são nosso princípio, sempre gostam de nós! Eles
aceitam, não estão nos excluindo por causa de nossos novos comportamentos.
Eles têm a missão e a obrigação de cuidar dos seus irmãos menores em qualquer
situação. Eles também têm medo de Pa’i Kuara, o irmão maior e supremo e que
cuida da luz do mundo. Se Nossos Irmãos não cuidarem bem de nós, ele (Pa’i
Kuara) pode apagar a luz. Isso será difícil, não para nós, mas para todos no
mundo, isto é, para todos os seres vivos da Terra e dos yváy. Por isso que o fim
do mundo está nas mãos de Pa’i Kuara. Mas este tem afirmado definitivamente
que não apagará a luz, não neste tempo, visto que nem s ñanderu na Terra
249
nem os Ñande Rykey concordam com que ocorra o fim do mundo. Punições aos
povos de diversas formas, isso sim! Os crentes anunciam que vai acabar o mundo,
mas é mentira; às vezes alguns ñanderu também falam a mesma coisa, mas não é
verdade. O único que sabe é Pa’i Kuara (Ñande Ru Marangatu, 06 de agosto
de 2000).
Os dois cotejamentos operados pelos xamãs na temporalidade cósmica
permitem-nos entender que o quadro ideal constituído de normas morais e éticas
comportamentais aparentemente rígidas desempenha mais que tudo a função de um
dispositivo, que é ativado circunstancialmente para chamar a atenção sobre os
acontecimentos do mundo, cabendo aos ñanderu fazer sínteses, avaliações e oferecer
sugestões sob a forma de aconselhamentos. O corpus de conhecimentos sobre a ordem e
os processos transformadores do universo permite ao xamã tornar o quadro normativo
um dispositivo regulador, dispositivo este que acaba não por proibir determinados
comportamentos ou a utilização de determinadas técnicas, materiais e objetos não
atribuídos nas origens aos Kaiowa, mas por limitar ou condicionar o afluxo destes,
sujeitando-os às regras do ñande reko (o modo de ser indígena), isto é, à própria
tradição de conhecimento. Visto que a maioria destes elementos considerados pelos
indígenas como externos procede do relacionamento interétnico com o mundo dos
“brancos”, boa parte das considerações morais e éticas feitas por xamãs, assim como
por tamõi e jari, visam justificar o fracasso de determinadas tentativas kaiowa de imitar
o karai reko (o modo de ser do branco), chegando-se à conclusão de que assumir esse
comportamento não é apenas negativo, mas também impossível, visto que de fato não
conduzem a uma melhora das condições de vida, na medida em que não contribuem
para a ética do “bom viver” dos Kaiowa, nem tampouco melhoram a própria infra-
estrutura material. Fazendo os xamãs referência a determinadas atividades tecno-
econômicas conseqüentes do relacionamento com os “brancos” como é o caso da
criação de animais domésticos para a alimentação (sendo porcos, galinhas e patos os
mais comuns), assim como a pecuária –, colocam eles em evidência os limites dos
índios em conseguir que esses animais, que não lhes foram atribuídos no Ára Ypy,
possam se reproduzir em grande número. Neste sentido, não se nega a possibilidade de
apropriação dessas práticas, mas se constata o fato de que não podem ser alcançadas
250
transformações no estilo de vida indígena a partir de sua aplicação, devendo, portanto,
serem elas regulamentadas. O mesmo pode ser dito sobre a agricultura e sua
mecanização, bem como sobre os outros elementos da vida material com que hoje se
deparam os Kaiowa, visto que as técnicas de produção de objetos foram quase
completamente por eles abandonadas, hoje se fazendo uso de ferramentas e utilidades
adquiridas do mundo dos “brancos”, através da intensificação e refinamento de
determinadas técnicas de aquisição.
Até este ponto me ocupei das relações cosmológicas a partir das normas e de seu
uso e interpretação por parte de indivíduos especializados, como são os xamãs. Também
a maioria dos tamõi e das jari, enquanto líderes de famílias extensas, lança mão deste
mecanismo de pressão moral, especialmente para controlar e exercer poder sobre as
novas gerações. Contudo, que se observar que independentemente das observações
morais e críticas enunciadas constantemente, todos, incluindo xamãs e idosos, incorrem
em erros e, pelo menos no tocante aos bens materiais beneficiados pelo contato
interétnico, ninguém realmente se exime de deles usufruir.
Neste sentido, pode-se observar que as afirmações feitas por Atanás a respeito
das distinções entre os Kaiowa e os “brancos”, instituída no espaço-tempo das origens,
levam a demarcar áreas de atuação e competências específicas. Deste modo, fica
evidente para os Kaiowa o porquê de eles não terem sido beneficiados, na origem, com
os mesmos bens e objetos de que os brancos” dispunham e dispõem em abundância.
Ao mesmo tempo, que se observar que, através de um uso flexível dos eventos do
Ára Ypy (origens) e controlando o Ararapyre (“o fim dos tempos do bom viver”), o
xamã não chega a negar a possibilidade de entrar em contato com estes objetos e utilizá-
los; o que se procura é justificar e sublimar o fato de que estes não podem ser
produzidos, reproduzidos e acumulados pelos índios, o que de fato caracterizaria o
comportamento tecno-econômico dos “brancos”.
Outro fato que fica claro para os Kaiowa é o uso limitado que pode ser feito das
técnicas verbais representadas pelos ñembo’e. Para entender estes limites e suas
conseqüências nas atividades tecno-econômicas desenvolvidas por estes índios, urge o
abandono de abordagens que estabelecem uma relação entre os “homens”, no sentido
genérico do termo, e uma “natureza”, também genérica. Em seu lugar, devemos
considerar que o Cosmo, conforme entendido pelos Kaiowa, contempla a existência de
251
seres, objetos e lugares organizados em domínios sob o controle de diversos járy.
Assim, para estes índios, as atividades tecno-econômicas, no momento em que visam
constituir, modificar ou ampliar a bagagem material e de conhecimentos de indivíduos
ou famílias indígenas, demandam necessariamente a subtração dos elementos
necessários de outros domínios, sejam estes (os elementos) procedentes de outras
humanidades, do mato, dos rios ou dos campos. Assim, por exemplo, a domesticação
não seria para estes índios uma mudança da condição do “animal” de “natural” para
“artificial” entendendo este último conceito como produção humana –, mas
simplesmente a subtração desse ser do domínio de um determinado járy (humano ou
espiritual) para ser destinado àquele de quem está efetivando a ação; a rigor, seria a
passagem de uma situação doméstica para outra, os seres em questão nunca deixando a
condição de mymba (“animais” propriedade de alguém).
Existem, porém, marcantes diferenças sobre como conduzir ou obter a passagem
entre domínios, isto dependendo do tipo de elemento que se pretende adquirir.
Quando se trata de relacionar-se com So’o járy (o dono dos animais de caça) para obter
a carne necessária para a sobrevivência, com Kaja’a (a dona das águas) para realizar
uma boa pescaria, com Ka’aguy Ava Ete (o dono do mato) para não ser importunado
quando se coleta frutos, ervas medicinais e materiais necessários para a construção de
residências e utensílios, com Jakaira (o dono da agricultura) para ter uma boa colheita
etc., os Kaiowa recorrem a diversos ñembo’e
135
, isto é, orações específicas para dirigir-
se a esses járy, cuja eficácia, em situações favoráveis, é considerada infalível. Quando,
porém, as ações são voltadas para um relacionamento interétnico, cuja intencionalidade
é a de obter objetos procedentes do domínio dos “brancos” – ou dos donos (járy)
relacionados a esta humanidade –, os Kaiowa encontram-se “desarmados”; não possuem
eles ñembo’e para tal propósito.
A falta de ñembo’e para agir sobre alguns domínios do Cosmo coloca ainda mais
em evidência os efeitos devidos à clivagem étnica introduzida durante o Ára Ypy. Isto
implica na determinação de duas esferas de relacionamento cosmológico privilegiadas:
uma centrada nos Ava (Kaiowa e Ñandéva) e outra atribuída aos “brancos”. Como
vimos, segundo os índios, a clivagem étnica impõe às humanidades diferentes
135
Ver Schaden 1974, Melià et al. 1976, Chamorro 1995 e L. Pereira 2004.
252
comportamentos morais, religiosos, políticos e tecno-econômicos, fato que se reflete
também nas esferas de relações cosmológicas.
Contudo, que se constatar que, embora seja estabelecido que cada
humanidade possua suas peculiaridades na determinação das atividades e dos
comportamentos assumidos, existe sim uma forte homologia entre as relações que são
estabelecidas através de ñembo’e e aquelas direcionada pelos Kaiowa ao mundo dos
“brancos” e seus bens. De fato, em ambos os casos se objetiva conseguir a passagem de
determinados elementos do Cosmo de um domínio para um outro. No segundo caso,
num relacionamento interétnico, o que aparenta haver a mais é a necessidade de que os
elementos, para passar de uma esfera de relacionamento cosmológico para outra, sejam
necessariamente submetidos às regras da tradição de conhecimento kaiowa. No entanto,
em certa medida isto ocorre também quando se subtrai um elemento do domínio dos
próprios járy visto que o Ka’aguy Ava Ete, por exemplo, segue as normas
comportamentais vinculadas ao ka’aguy reko, isto é, o modo de ser do mato, e não dos
Kaiowa. Portanto, mover os elementos de um domínio para outro implica sempre em
uma mudança organizativa no uso desses elementos. Assim, o que efetivamente
caracteriza o relacionamento entre os elementos das duas esferas cosmológicas é
uma limitação prevalentemente técnica, e não uma diferença em termos
meramente comportamentais. Neste sentido, justifica-se o fato de que assumir o
comportamento do “branco” não é negativo, mas também ineficaz. Assim, para os
Kaiowa resta apenas tentar contornar a barreira encontrada, enfrentando a esfera que
não lhe compete, a partir de seu próprio modo de agir, assumindo o fato de, neste
sentido, encontrar-se numa posição cosmologicamente desvantajosa.
Deve ser levado em conta que a produção cultural indígena a respeito procura
responder aos impasses devidos ao relacionamento interétnico em uma clara posição
assimétrica, que os Kaiowa submetidos à dominação colonial por parte dos Estados
brasileiro e paraguaio. Neste sentido, ao passo que os índios procuram reproduzir e
potencializar uma específica tradição de conhecimento, produzindo conceitualmente
clivagens entre esferas separadas de relacionamento cosmológico, um outro
movimento, que projeta as ões dos indígenas preponderantemente em direção aos
objetos e aos conhecimentos que procedem de um mundo por eles até não muito tempo
desconhecido seguramente distante daquelas que eram as suas necessidades
253
cotidianas. Estes objetos e conhecimentos exercem grande fascínio, despertando certa
curiosidade. Tal projeção ocorre a partir de crescentes experiências desenvolvidas pelos
indígenas, as quais permitiram constatar a maior eficácia técnica e o melhor
desempenho dos materiais de boa parte dos objetos e instrumentos introduzidos em seus
territórios pelos “brancos”, com relação àqueles por eles produzidos. A diferenciação
feita pelos Kaiowa entre técnicas de ñembo’e e outras formas verbais de relacionamento
entre domínios diferentes nos informa, em certa medida, sobre o quanto o acesso a esses
elementos é um fato novo de difícil manipulação e controle para eles –, mas que, ao
mesmo tempo, não é algo impossível. Embora não utilizem ñembo’e para tal, é a partir
da própria tradição de conhecimento e das experiências historicamente acumuladas que
os índios dirigem-se aos “brancos”, com o intento de obter vantagens de alguma ordem.
Assim, ao abordá-los, o fazem demonstrando temor, suspeita, procuram não contradizê-
los e magoá-los, enfim utilizam os mesmos cuidados que costumam utilizar com os járy
com quem lidam nas matas, campos e rios presentes em seus territórios.
Enfim, com ñembo’e ou não, os Kaiowa servem-se de formas verbalizadas para
relacionar-se com o mundo, fruto de sua tradição de conhecimento, a qual coloca a
oratória num patamar elevado. É principalmente a partir desta que estes índios
constroem estratégias, determinam alianças e executam ações que permitem o
aprovisionamento de bens de toda ordem, bens estes sempre sob o domínio de alguém
(járy). Nestes termos, como afirmado, para os índios não existem lugares, objetos ou
seres neutros, que possam ser acessados, coletados, capturados através de técnicas de
aquisição fruto de uma simples relação entre os índios e esses elementos; isto é, não é
possível atribuir a este povo uma concepção marxiana, que considera o homem como
“transformador da natureza”
136
, relação esta entendida como ontologicamente diferente
daquela estabelecida entre os homens
137
. Para os Kaiowa, toda ação técnica destinada a
136
Ver entre outros Godelier (1978 e 1985), Cresswell (1976 e 1996) e Ingold (1986).
137
Referindo-se aos ameríndios em geral, Descola afirma que estes impõem uma continuidade entre o
social e o natural, continuidade esta por ele definida como sistema anímico (1992: 114). Tal sistema seria
a inversão simétrica do totemismo, uma vez que este último seria uma classificação do mundo social a
partir de especificidades naturais, enquanto que o primeiro seria a classificação do mundo natural a partir
de atributos sociais. Como é fácil se deduzir deste jogo de inversões simétricas, Descola rejeita estender a
oposição natureza/sociedade a ontologias não ocidentais, mas, inscrevendo-se em uma corrente de
Antropologia simbólica, de cunho estruturalista, pretende mantê-la como “an anaytical device in order to
make sense of myths, rituals, systems of classification, food and body symbolism, and many other aspects
of social” (Descola & Pálsson 1996: 2). Assim sendo, este autor acaba por optar por uma visão de sistema
254
adquirir objetos, seres e conhecimentos está subordinada a técnicas complementares,
verbais, cujos efeitos são preponderantemente políticos. As relações cosmológicas são,
conseqüentemente, determinadas através de técnicas políticas, técnicas estas sem as
quais não haveria integração material, social e de conhecimento.
externo aos contextos sócio-ecológico-territoriais onde se dão as relações e interações sociais,
apresentando-nos, de fato, sistemas cognitivos e/ou simbólicos a serem “objetivados”, em um segundo
momento, na realidade material. Sempre internamente a uma perspectiva estruturalista, temos outra
posição, expressa por Viveiros de Castro (1996), com relação ao entendimento das teorias ameríndias
sobre a organização do Cosmo. Segundo este autor, os indígenas também operariam a oposição
natureza/cultura, mas de modo inverso com relação ao modo como é operado no Ocidente: se nas
ontologias ocidentais se teria uma única natureza e uma pluralidade de culturas, os ameríndios
entenderiam que o universo é formado por um único campo sócio-cósmico, as diferenças em seu interior
sendo determinadas por uma pluralidade de naturezas. Tanto Viveiros de Castro quanto Descola
descrevem as relações entre os vários seres que povoam o Cosmo como sendo simétricas e
intercambiáveis, o que lhes permite operar através de dicotomias paralelas e inversões lógicas. Uma das
oposições simétricas utilizadas pelos autores é aquela entre humanidade e animalidade. Na cosmologia
kaiowa, no entanto, o Universo não se encontra organizado de tal forma; como vimos, no tempo das
origens, todos os seres eram humanos e divinos: possuíam o dom da imortalidade, poderes xamanísticos e
capacidade de falar. Foram determinados eventos os que levaram as divindades a fazer decairem certas
humanidades, estas perdendo todas ou algumas destas propriedades e/ou adquirindo outras, consideradas
negativas. A distinção entre animal e humano, isto é, entre natural e cultural (ou social) é, portanto,
imprópria para descrever a dinâmica do Cosmo segundo os Kaiowa. A distinção, instituída nas origens, é
de fato um processo de hierarquização entre conjuntos de seres, assim como destes com relação aos seus
espíritos-donos (járy). Assim, as distinções entre os diferentes grupos de seres podem ser consideradas
entre estes índios como sendo de grau, e não de natureza, como pretenderia Viveiros de Castro. A
condição de ser kaiowa outorga a estes sujeitos um certo número de propriedades, configurando-se assim
um grupo específico, e definindo-se seu lugar no Cosmo no sentido também relacional, isto é, sua
capacidade de estabelecer comunicação e interação de um certo tipo, seja entre seus membros, seja com
os deuses, assim como com aqueles pertencentes a outras humanidades atuais ou àquelas que decaíram
ainda mais com relação a seu status nas origens. Nesses termos, podemos dizer que em um contínuo de
propriedades existentes no Cosmo, os recortes feitos, através do agrupamento de algumas destas, faz dos
deuses os deuses, dos járy os járy, dos Kaiowa os Kaiowa, dos “brancos” os “brancos”, das onças as
onças, e assim por diante. que se salientar o fato de que, também nos dias de hoje, cada sujeito pode
adquirir propriedades ou perdê-las, sejam estas positivas (como os poderes xamanísticos), ou negativas
(como a feitiçaria), podendo, assim, se elevar de sua posição sócio-cósmica ou, ao contrário, decair mais
na escala relacional entre os seres do Cosmo.
255
Capítulo X
O modo de ser kaiowa (ñande reko) e a integração social do
indivíduo
10.1 Construção da pessoa
Segundo os Kaiowa, em condições consideradas normais, o corpo (tetê) dos
indivíduos adultos possui dois distintos tipos de alma: a corporal e a espiritual. Existe
também, assentado no ombro do indivíduo, o tupichúa (espírito familiar identificado
com um “animal”) (cf. Cadogan 1962: 81).
A primeira das referidas almas começa a se formar quando o ser humano
alcança a maioridade, se expressando através da sombra (ã). Com o passar dos anos,
esta alma se reforça, sendo que, como vimos, uma vez falecido o corpo, ela dele se
desprende, tornando-se anguê. A picardia e agressividade da anguê dependerá de sua
“idade”, tornando-se, assim, mais ou menos perigosa para os vivos.
No tocante ao espírito animal, este acompanha o corpo durante toda a vida, sua
característica variando muito de indivíduo para indivíduo. o tupichúa pode ser
agressivo, quando é identificado com a onça, o gavião, etc., ou irreverente, quando seria
um macaco, ou ainda fugaz e medroso, quando é interpretado como sendo uma ave não
de rapina e não predadora. Ao tipo de animal que caracterizaria o tupichúa é também
atribuído o apetite do corpo do indivíduo, determinando o gosto e a avidez alimentar,
assim como seu desejo sexual. Portanto, pode-se dizer que o espírito animal condiciona
o comportamento do corpo do indivíduo, conformando o que, numa linguagem
ocidental, poderia ser interpretado como o temperamento e o instinto do corpo dos
Kaiowa. que se colocar em destaque, porém, como fica evidente, que estes fatores
são considerados por estes indígenas como afetando a vida do corpo, não podendo ser
definida como sendo parte da personalidade do indivíduo.
Os Kaiowa não se identificam absolutamente nem com o tupichúa nem com a
anguê, mesmo quando esta alma ainda se encontra no corpo em que se formou e
desenvolveu. Como foi possível apreender até aqui, a identidade destes indígenas está
associada à alma espiritual, cujos atributos são em certa medida expressados através dos
256
diferentes nomes que a ela são atribuídos: ayvu e ñe’ê, cujo significado é “palavra” e
“linguagem” (cf. Melià et al. 1976: 248), e guyra, que significa “pássaro”. No primeiro
caso, é destacada a importância da pessoa como parte de uma rede mais ampla de
relações, determinadas através do ato comunicativo (verbal e do canto); no segundo
caso, a identificação metafórica e metonímica da alma espiritual com uma ou mais aves,
coloca em evidência sua propriedade de voar, de se desprender de seu assento (apyka),
localizado no interior do corpo
138
, bem como a sua instabilidade, estando ela sempre
sujeita a ser espantada, afastando-se de sua sede corporal. Seja no caso em que o ayvu é
descrito como uma ave apenas, seja quando é interpretada como composta de muitos
pássaros
139
, temos um único princípio, que unifica as diferentes versões: o entendimento
de que o afastamento da alma espiritual do corpo é um ato progressivo. Este
entendimento se conceitua, na primeira acepção, através da medição da distância física
da alma do seu suporte corporal, o enfraquecimento dos laços com este último
aumentando ao passo que o ayvu se afasta dele; na segunda acepção, a debilitação
ocorre através da diminuição no corpo da quantidade de pássaros que a compõem.
Existe também uma diversidade de interpretações sobre como a ayvu vem a se
assentar no corpo. Alguns xamãs atribuem ao ato de concepção a chegada da alma
espiritual no corpo do futuro nascituro; outros consideram que o corpo nasce possuindo
uma alma provisória (ohero), o ayvu se incorporando num segundo momento. Em
ambos os casos o momento mais importante é representado pela cerimônia do mitã
mongarai durante o qual, na primeira versão, o xamã procede a descobrir o nome
(entendido como sendo a própria ayvu), enquanto que na segunda versão, o ñanderu
estaria a favorecer a sua incorporação. No primeiro desses casos, a postura dos parentes
é a de cuidar para que a alma espiritual em questão permaneça no corpo onde se
encontra, aceitando ou, melhor, reconhecendo os parentes que a estão acolhendo na
Terra; no outro caso, temos um comportamento similar, a família reunida durante o
138
Na encruzilhada dos braços com o tórax, como afirma Lauro em Panambizinho, ou na altura da
garganta, segundo outra versão (v. Melià 1976: 248).
139
Em uma entrevista realizada em julho de 2004 pelo psiquiatra Antonio de Carvalho Silva (por
mim co-orientado em sua pesquisa de mestrado), o ñanderu Lauro, de Panambizinho, comentava que o
Kaiowa possui 12 pássaros, distribuídos em diferentes partes do corpo: nos ombros, no peito, na região do
apêndice xifóide, atrás da nuca (não chegam a tocar o corpo), nos braços e outros locais. No caso de todos
voarem, o corpo falece.
257
ritual aguardando que o espírito decida se encarnar, manifestando assim que aceita seu
novo lar. Pode-se notar que nas duas versões o princípio organizador mais importante é
o mesmo, associando-se a estabilidade corporal da ayvu aos níveis de cuidados e
manifestações afetivas de seus familiares presentes na Terra.
As ayvu são preexistentes à constituição dos corpos nos quais se incorporam,
configurando um número finito e invariável de Kaiowa existentes no Cosmo
(considerando-se os residentes na Terra e aqueles presentes nos diversos yváy). A
necessidade dos parentes estarem unidos e de apoiarem uns aos outros (mbojeko), faz
com que a família que se constitui na Terra queira manter juntos os ayvu, razão pela
qual se procura constantemente reter o máximo possível as almas espirituais em seus
respectivos corpos. É especialmente neste caso que a noção de jekoha (suporte) se faz
relevante, visto que uma família bem assentada em seu espaço territorial e bem apoiada
em seus chefes (tamõi e jari) permite uma maior estabilidade das relações familiares,
favorecendo assim a determinação de um teko mbojeko porã, isto é, um modo de ser
baseado em boas relações mútuas. Por sua vez, o determinar-se destes comportamentos
mútuos é sintomático da manifestação do tão procurado “bom viver” (tekove porã).
Garantir a estabilidade espiritual do indivíduo no seio da família extensa é,
portanto, garantia de estabilidade para todos os membros dessa unidade sociológica. De
fato, a alma espiritual permanecerá no corpo em função dos cuidados e do carinho que
os integrantes da família demonstrem no dia-a-dia, representando um desafio cotidiano,
constante para o modo de viver dos Kaiowa.
Na vida do sujeito, o período mais instável é representado pelas várias fases da
infância, especialmente até os sete anos de idade. Durante esta etapa, o risco da alma
espiritual se assustar e desprender-se do corpo é muito grande. Por tal razão as crianças
não podem ser maltratadas, não se pode falar-lhes levantando a voz, sendo necessária
muita cautela no processo educativo. Geralmente se lhes concede quase tudo o que
desejam, as obrigações de reciprocidade sendo introduzidas aos poucos, através de
técnicas educativas que incutem sentimentos neste sentido, isto não por meio de
coerção, mas pela valoração do dar e a reprovação da acumulação
140
.
140
Para mais detalhes sobre este argumento, ver adiante a quarta parte deste trabalho.
258
Após os aproximadamente seis ou sete anos de idade é que começa a divisão do
trabalho por sexo, mas se continua permitindo aos sujeitos a manutenção de uma vida
lúdica em comum, visto que ainda não são considerados como adultos. Contudo, o
controle social sobre o indivíduo passa a ser intenso. Isto ocorre porque as pessoas nessa
faixa etária começam a desenvolver atividades tecno-econômicas fora do espaço
doméstico, correndo o risco de encontrar sujeitos indesejáveis, não pertencentes à
própria família extensa, portadores de formas diferenciadas de teko. Neste sentido, as
crianças passam a ser controladas por adultos pertencentes ao seu circuito educativo,
que procuram acompanhá-las em todos os seus deslocamentos quando elas transcendem
os espaços de jurisdição da comunidade política na qual estão inscritas.
O controle social sobre a pessoa durante esta etapa de sua vida aumenta
progressivamente, tornando-se ainda mais intenso quando ela passa a manifestar marcas
biológicas consideradas como sendo indicadoras da passagem para a vida adulta: a
primeira menstruação (ñemondy’a), no caso do sujeito ser mulher, e a mudança de voz
(kariay), quando este é do sexo masculino
141
. Ambos os casos são considerados pelos
índios como sendo um estado quente (teko aku), tornando-se necessário que a pessoa
nessa condição siga dietas e manifeste comportamentos adequados, ao passo que,
concomitantemente, seus familiares mais próximos têm a obrigação de reservar-lhes
mais cuidados (jeko aku)
142
.
Uma vez alcançada a maioridade, no caso de a pessoa ser do sexo feminino, a
intensidade do controle social não diminui, sendo ela legada quase exclusivamente à
vida doméstica, em virtude de sua preparação para futuramente contrair matrimônio.
Durante este período, existindo possibilidades concretas do sujeito manter contato com
o outro sexo ou precisamente com parceiros que passaram por experiências sexuais,
obviamente pertencentes a outras famílias, a vigilância familiar é a mais alta possível.
141
A iniciação masculina (kunumi pepy), sendo hoje pouco praticada, é, como diria Bourdieu
(1996: 97), mais que um ritual de passagem, um rito de instituição, cuja função, neste caso, por um lado
remarca a diferença entre aqueles que passam pela cerimônia, consagrando-se Kaiowa “autênticos”, e
aqueles que não, enquanto que, por outro lado, é remarcada a diferença entre os sexos. Neste sentido, este
evento o constitui variável significativa no ciclo de vida contemporâneo destes índios, excetuando-se
para um pequeno grupo de neófitos, pertencentes a algumas famílias do tekoha guasu do rio Brilhate-
Ivinheima.
142
Para entrar em detalhes sobre as práticas de jeko aku no caso das mulheres, depois da primeira
menstruação e dos partos, assim como do controle social exercido pelas famílias, veja-se Melià et al.
(1976: 253-54), além de Schaden (1974: 85-88). Sobre o jeko aku como fase da iniciação masculina, ver
Melià et al. (op.cit.: 236-38).
259
Isto ocorre porque, do ponto de vista moral, é taxativamente proibido que
conhecimentos decorrentes de experiências relativas à vida de casado venham a ser
comunicados aos que nunca estiveram nesta situação. Deve ser destacado o fato de que
a fase delicada representada pelo primeiro casamento não esgota os momentos de crise,
o teko aku sendo atribuído também aos períodos de gestação e parto, igualmente sujeitos
a restrições alimentares e comportamentais (jeko aku).
No caso do indivíduo ser homem, tem-se uma situação em certa medida diversa,
não pelo fato de seus familiares diminuírem o controle a seu respeito, mas por ser este
controle de difícil efetivação. De fato, uma vez alcançada a vida adulta, o jovem kaiowa
começa a projetar-se espacialmente para fora do espaço de jurisdição de sua família,
dando vida a um itinerário experiencial que será percorrido durante toda a sua existência
terrena. Além de dedicar-se ao desenvolvimento de atividades de caça, pesca e coleta, o
indivíduo dedicar-se-á a trabalhos periódicos em fazendas e usinas de álcool (changa),
com o intuito de conseguir uma relativa independência econômica, a qual lhe permita
construir, no futuro imediato, um núcleo familiar.
A exigência de contrair casamento, almejando-se estabelecer relações com uma
mulher cuja reputação seja respeitada, leva grande parte dos jovens kaiowa a ter que
mudar de residência, em decorrência da referida regra que prescreve a
matrilocalidade para o primeiro matrimônio da mulher. Neste sentido, sendo ego o
candidato ao casamento, deverá ele demonstrar ao sogro com o qual residirá durante
alguns meses, antes de construir sua própria residência, nas proximidades desta mesma
casa possuir as qualidades necessárias para ser integrado no novo grupo local: saber
cultivar, caçar e pescar, e ser suficientemente hábil na captação de recursos procedentes
do mundo dos “brancos”, seja através de políticas interétnicas (atraindo projetos e obras
assistenciais), seja por meio de changa. Nos primeiros meses, ego deverá trabalhar na
roça do sogro, estando sempre à disposição deste para outras tarefas tecno-econômicas,
pagando assim o preço da noiva. Contudo, há que se observar que esta relação de
dependência estabelecida para com o sogro não cessa após a fase em que o novo casal
reside na mesma unidade residencial dos pais da mulher; toda uma série de obrigações
de reciprocidade e de respeito lhe é exigida durante o período em que permanecer
260
vivendo no espaço de jurisdição da família extensa na qual foi incorporado
143
. Em não
havendo divórcio, e se a família do sogro mantiver seu espaço de jurisdição no tempo,
ego adquirirá certa autonomia apenas quando ele próprio se tornar sogro, alcançando a
seguir o status de tamõi, isto é, ao nascerem seus primeiros netos. Nesse momento
começa a se formar outra família extensa, o sogro de ego tornando-se, por sua vez,
tamõi guasu.
Concluindo este item sobre a construção da pessoa e seu itinerário de vida,
parece-me importante ressaltar o fato de que para os Kaiowa, o acúmulo de experiência
permite ao indivíduo alcançar níveis de sabedoria cada vez mais elevados, sendo que a
posição de um jovem, por mais que tenha ele contraído matrimônio, não será nunca
comparada à de uma pessoa idosa. Neste sentido, num processo educativo e de exercício
moral e político, o papel de mãe ou pai, quando o sujeito é jovem, será sempre
subordinado àquele dos próprios pais e/ou avós ou dos sogros; especialmente no tocante
à educação das crianças e à determinação dos cuidados necessários para o seu bem-estar
espiritual. Isto se deve principalmente ao desejo de manter sempre unidas pelo menos
três gerações, a neolocalidade sendo excluída nas opções residenciais destes indígenas.
Assim, é possível dizer que a pessoa kaiowa procurará sempre se amparar no circuito
privilegiado da família extensa, circuito emocional-afetivo por excelência que lhe
garante uma estabilidade do ponto de vista social, econômico e espiritual.
Contudo, que se observar que as variações experienciais, quando abruptas ou
determinadas em contextos sócio-ecológico-teritoriais que encontram os índios sob
constante pressão colonial, podem produzir ou favorecer distintos modos de interpretar
o que seria um comportamento adequando, permitindo a manifestação de conflitos inter
e intra-geracionais, configurando o referido teko reta: os múltiplos modos de ser
kaiowa.
143
Aprofundarei este argumento na quarta parte do presente trabalho, onde reflito sobre a
organização doméstica.
261
10.2 O teko porã perante o teko reta e as conseqüências para a família
extensa
Como foi aqui afirmado na primeira parte, a vida contemporânea implica a
integração de atividades que progressivamente adquiriram relevância econômica para os
Kaiowa. Existem hoje indígenas ocupando cargos como professores, agentes de saúde,
chefe de posto, merendeiras etc., além de receberem cestas básicas, aposentadoria por
idade, bolsa maternidade e bolsa escola. Estes tipos de atividades e benefícios têm
provocado transformações na organização da família extensa, no que tange à escolha
das atividades consideradas como fundamentais para manter unido o grupo macro-
familiar. Atualmente quase todos os te’yi procuram ter entre seus integrantes o maior
número possível de pessoas ocupando esses cargos e recebendo benefícios, visto que
isto garante uma determinada estabilidade econômica, além de, muitas vezes, propiciar
a construção ou consolidação do prestígio perante outras famílias extensas.
Se por um lado o processo adaptativo das famílias extensas kaiowa tem
propiciado sua flexibilização, sendo incorporadas novas atividades e cargos, observa-se
que na maioria dos casos este processo representa um desafio para a prática do teko
porã. Pode-se dizer que as variações experienciais produzidas pela vida contemporânea
(assim como a falta de condições ecológicas e espaciais apropriadas para aplicação de
seus modelos tecno-econômicos tradicionais) obrigam os índios a realizar rápidas
reflexões sobre a vida. Para tal propósito, como vimos, os xamãs de grande prestígio em
escala territorial procedem periodicamente a anunciar o tekorã isto é, o conjunto de
normas que irá vigorar no futuro imediato –, que lhes é comunicado pelas divindades.
Este fato é denotativo de uma grande flexibilidade e adaptabilidade da tradição de
conhecimento kaiowa, mas, ainda assim, as famílias extensas encontram hoje
dificuldades para enfrentar problemas pelos quais passam seus integrantes em grande
medida devido às muitas variáveis apresentadas pelos múltiplos modos de ser kaiowa.
A vida contemporânea propicia uma grande quantidade e variedade de
experiências aos indivíduos que integram as famílias extensas. Um kaiowa pode, no
correr de sua vida, passar por experiências de changa nas fazendas e/ou nas usinas de
álcool, trabalhar nas missões protestantes, “virar” crente, e logo depois trabalhar como
professor indígena e/ou como agente de saúde, voltar à usina, ser ajudante de um xamã
e, uma vez alcançada a maturidade, eventualmente “surgir” (ojehu) como ñanderu
262
(xamã). Cabe relembrar que o desenvolvimento dessas atividades dependerá muito do
sexo e, especialmente, da idade da pessoa.
A família extensa integra, portanto, indivíduos que se encontram em estágios
experienciais diferentes, desenhando um leque muito amplo de posturas morais e de
conhecimentos muitas vezes considerados incompatíveis entre si pelos líderes dessa
unidade sociológica. Assim sendo, o teko reta acaba acentuando ou promovendo
conflitos intergeracionais, as famílias buscando sempre modalidades para superar os
impasses por ele produzidos, bem como tentando processar os novos conhecimentos e
modalidades de comportamento adquiridos por seus membros, adaptando-os e
hierarquizando-os para que se tornem coerentes com a tradição de conhecimento
indígena, cujo motor o os próprios te’yi. Entretanto, estando todos os indivíduos em
uma relação de interdependência no interior da família embora mantendo diferentes
pesos na hierarquia social –, seria reducionismo atribuir apenas à autoridade do tamõi e
da jari e ao xamã de referência a determinação do modo de agir e de se comportar. Por
tal razão, fica evidente que frente a uma crescente diversificação das experiências e dos
conhecimentos disponíveis para os Kaiowa, multiplicam-se os entendimentos de quais
seriam os comportamentos mais adequados e/ou eficazes para se alcançar o tão buscado
“bom viver”.
A título de exemplo, entre os fatores mais relevantes que concorrem atualmente
para os atritos entre gerações estão as experiências decorrentes da freqüência à escola.
As lógicas de socialização que essa instituição do Estado impõe vigorando em lugares
fisicamente distantes daqueles sob jurisdição de uma determinada família extensa –,
apresentam-se aos olhos da tradição indígena como potencialmente negativas, na
medida em que impedem ou dificultam a determinação do referido controle social, fato
que veremos em detalhes no capítulo XV. As experiências nas usinas de álcool, nas
fazendas e nas cidades são outros elementos importantes a serem contemplados, visto
que podem ter também como conseqüência a manifestação de conflitos intra-
geracionais.
O teko reta representa para a tradição de conhecimento indígena um desafio que,
embora controlado eficientemente por xamãs, não deixa de produzir desentendimentos
entre os diferentes integrantes dos te’yi. Por sua vez, o enfraquecimento ou ruptura de
laços familiares pode produzir nos indivíduos uma sensação entre a ofensa e o
263
ressentimento, com um conseqüente fechamento em si mesmo, estado este denominado
de ñemyrõ, condição emocional/afetiva que, como visto, é muito comum nos episódios
do Ára Ypy (o tempo-espaço das origens). O ñemyrõ é pelos índios conceituado como
sintomático de perturbação ou afastamento da alma espiritual (ayvu), o que deixa
transparecer a compreensão de que os indivíduos que se encontram nessa situação assim
estão pelo fato de serem eles o produto social da comunidade educativa indígena. Nestes
termos, é possível constatar o fato de que, embora o intensificar-se de conflitos intra-
familiares seja, em certa medida, devido à manifestação de comportamentos decorrentes
de experiências inéditas, os estados emocionais por estes provocados procedem da mais
íntima e central concepção da pessoa entre os Kaiowa. Caberá, portanto, a cada te’yi
buscar os mecanismos mais apropriados para superar esses momentos de crise,
regulamentando as relações a serem estabelecidas entre “velhos” e “novos”
comportamentos e valores, assim contribuindo para uma contínua adaptação da tradição
de conhecimento indígena.
Os elementos culturais e sua organização no seio das famílias extensas são
extremamente significativos para a compreensão destes fenômenos, levando-se em
conta também o fato de que, do ponto de vista educativo, os fatores em jogo deveriam
ser vistos de modo relacional e não dicotômico. Efetivamente, não podemos considerar
os comportamentos decorrentes do teko reta como produto de influências culturais
ocidentais, que seriam contrapostas aos valores e preceitos morais perorados pela
tradição indígena. O problema principal não é de ordem cultural, mas de organização
social dos elementos culturais disponibilizados aos indígenas. Tomado deste ponto de
vista, o teko reta embora considerado negativo por tamõi, jari e xamãs
144
faz parte
da tradição kaiowa contemporânea, visto que permite uma constante adaptação das
famílias extensas aos contextos históricos e, conseqüentemente, formulações mais
flexíveis de teko porã.
144
A queixa de que as condições do presente apresentam-se como negativas, visto que não se
respeitam mais os ditames da tradição não é fato novo entre os Guarani de MS. Galvão (1996) relata que,
na década de 1940, os moradores da reserva de Takuapiry reclamavam sobre a carência de xamãs e/ou da
atuação destes, com relação às décadas anteriores.
264
10.3 Doenças e práticas de cura
Como espero que tenha ficado claro, o teko reta é o resultado das múltiplas
experiências que caracterizam a vida contemporânea dos indivíduos kaiowa. Os
comportamentos diversificados podem gerar divergências entre os sujeitos pertencentes
a um grupo e/ou aqueles de outros agrupamentos, provocando assim significativos
conflitos. Não cabe dúvida, porém, que todos os membros da família kaiowa buscam
constantemente alcançar formas consideradas satisfatórias de “bom viver”. Um dos
fatores mais preocupantes, que ameaça a cada instante o estabelecimento deste padrão
de vida, é o estado de doença, sempre interpretado como denotativo de anomias sociais
e cósmicas, transcendendo-se assim a dimensão puramente individual.
A noção de pessoa que anteriormente foi descrita permite entender que para os
Kaiowa existe uma clara diferença entre o corpo e os diferentes espíritos que neste
podem se assentar ou desenvolver. A saúde do indivíduo é para estes indígenas
relacionada com a estabilidade da ayvu (a alma espiritual) em seu suporte corporal, mas
como foi amplamente tratado, esta estabilidade não é algo fácil de se garantir. Com
efeito, para obtê-la é necessário que a ayvu consiga manter o controle sobre o corpo,
impedindo que outros espíritos produzam nele indesejadas afecções. O comportamento
moralmente aprovado, o respeito das restrições alimentares durante os momentos
críticos de teko aku, e uma sólida inclusão da pessoa no jogo relacional do teko mbojeko
porã (modo de ser baseado em boas relações mútuas) podem permitir a supremacia da
ayvu sobre o tupichúa (espírito “animal”), no que diz respeito ao controle do corpo,
mantendo-se solidamente assentada. Ao mesmo tempo, a ayvu poderá impedir que
outros espíritos maléficos e impurezas venham a se assentar no corpo do indivíduo, com
o escopo de usurpar ou dominar a alma espiritual, isto é a pessoa kaiowa. A saúde plena
não deixa de ser, contudo, ideal, sempre existindo níveis de instabilidade devidos à
condição humana atual, os Kaiowa sofrendo as conseqüências da própria decadência
com relação ao Ára Ypy: a vida na Terra leva as pessoas a conviver com impurezas,
diferentemente do que ocorre além da Yvy Rendy.
A noção de saúde entre os Kaiowa inverte o ditado latim mens sana in copore
sano (mente saudável em corpo saudável), sendo tranqüilamente possível dizer: “corpo
saudável quando a mente é saudável” onde por mente leia-se ayvu. Por exemplo, os
índios descrevem as deformidades corporais como uma precária condição da alma no
265
corpo (quando não está ela completamente ausente). Como foi possível ver ao falar-se
do Ararapyre, quando as ayvu dos Kaiowa não se incorporarem mais, as crianças
nascerão sem braços ou outras partes do corpo, o sendo mais seres humanos
verdadeiros, os corpos sendo já controlados completamente pelos ma’etirõ.
Este tipo de concepção de saúde e doença leva os Kaiowa a estabelecer uma
clara hierarquia entre a cura espiritual e os cuidados destinados ao corpo, hierarquia esta
que se reflete no processo de cura, determinando itinerários terapêuticos específicos,
com a distribuição de competências bem determinadas a distintos operadores médicos,
sejam eles inscritos na tradição de conhecimento indígena
145
, sejam procedentes da
tradição popular paraguaia e fronteiriça, ou ainda da medicina ocidental. A lógica da
estabilidade/instabilidade da alma é, por sua vez, vinculada ao binômio ro’y/aku
(frio/quente), onde a prática de cura é interpretada como processo de esfriamento
(omboro’y).
As doenças que manifestam sintomas como dor de barriga (inclusive diarréias),
dores musculares e das articulações, são geralmente tratadas pelos índios fazendo-se uso
de plantas medicinais, bem como de diversos tipos de gorduras de animais de caça. Para
tal propósito, os Kaiowa possuem uma ampla e detalhada farmacopéia. No caso de dor
de cabeça e de dente, geralmente se costuma banhar a parte do indivíduo afetado, com
água derivada da infusão de cortiça de cedro (ygáry), árvore esta considerada sagrada,
seus galhos sendo utilizados na confecção de altares e o tronco para a construção da
canoa monóxila onde se fermenta o kaguî, a bebida para uso ritual. Nestes casos,
quando disponível, é também utilizado o chiru (vara insígnia, também em forma de
cruz), cujo efeito é considerado extremamente poderoso: coloca-se o objeto ou resíduos
seus na água, para o doente posteriormente banhar-se, ou simplesmente o operador
médico lhe salpicá-la na região da cabeça
146
.
Para os primeiros tipos de doenças, quando elas são consideradas como leves e
passageiras, pode-se omitir a prática coadjuvante da cura espiritual. Neste caso, o uso
dos remédios (poha) pode ser prescrito no âmbito familiar por qualquer pessoa (mas
145
Para uma descrição de técnicas de cura e distintos tipos de operadores médicos tradicionais entre os
Kaiowa, ver Melià et al. 1976: 49-51; Schaden 1974: 124-31; Müller 1989.
146
Para mais detalhes sobre poderes e usos do chiru, ver mais adiante, o item 11.1.
266
geralmente com certa idade) que possua conhecimentos oficinais. Para as doenças
relativas à região da cabeça, região superior, interpretada pelos índios como o lugar
onde se manifesta a ayvu, o uso da cura espiritual é considerado o mais eficaz, embora,
quando não se manifeste de modo crônico, ou não produza significativas afecções no
corpo do indivíduo (como manifestações de agressividade e bruscas mudanças
comportamentais), se possa também fazer recurso a fármacos procedentes do mundo
dos “brancos” ou prescritos por curandeiros residentes nas cidades e vilas presentes nos
territórios de ocupação dos Kaiowa.
Em todos estes casos, a ayvu, embora importunada, não chega a correr sérios
perigos, o uso simultâneo ou alternativo de diferentes operadores e práticas médicas
sendo algo comum. Há que se considerar que todas essas doenças leves podem se tornar
recorrentes, interpretadas como graves pelos índios, os familiares e/ou a própria vítima
passando a atribuir uma ordem distinta e hierárquica ao itinerário terapêutico. A ayvu,
ora encontrando-se em perigo, passa a ser objeto de atenção absoluta, sendo nesta fase a
cura espiritual considerada a única válida, tornando-se as outras práticas médicas,
portanto, subordinadas, quando não inúteis ou perigosas. A grande freqüência e
persistência dos sintomas anteriormente descritos apresentam para os índios um quadro
clínico alterado. O quadro é também diferente quando os Kaiowa se deparam com
manifestações de comportamentos incoerentes, tidos como de doença mental (teko
tavy). Tudo isto revela as condições (sociais, emocionais-afetivas e ambientais) nas
quais se encontra o sujeito doente, assim como a causa e a origem da doença.
Entre as condições que levam a enfraquecer a ayvu, tornando-a vulnerável, tem-
se, por um lado, os comportamentos mantidos pela própria vítima, como a transgressão
de normas sociais especialmente as relacionadas aos momentos críticos do jeko aku
anteriormente descritos –, assim como daquelas práticas alimentares a elas associadas.
Por outro lado, sempre devido a fatores sociais, tem-se as transgressões de parte dos
parentes mais íntimos da vítima.
Com relação aos aspectos emocionais-afetivos, verifica-se situação análoga, a
vulnerabilidade da pessoa podendo ser atribuída a um seu fechamento em si mesmo por
ter brigado (oiko vai) e/ou se desentendido (ñe’e rei ja’o) com um ou mais membros de
sua família, ou, ao contrário, quando o isolamento é devido à própria atitude de seus
parentes em seu confronto; em ambos os casos, é gerado no sujeito um estado de tristeza
267
(ndovy’ai) e, mais gravemente, de ressentimento/aborrecimento (ñemyrõ). Porém, o
mais provável é que esta situação seja o produto de comportamentos bilaterais, mais que
unilaterais, a família como um todo sendo afetada. Em uma perspectiva moral, quando a
vítima é acusada de transgredir as referidas normas sociais, devido às experiências
procedentes do teko reta, a tendência dos operadores médicos tradicionais é a de atribuir
a “culpa” à própria vítima; quando o sujeito doente for tido como respeitador do teko
porã, a “culpa” recairá sobre o comportamento de seus familiares ou, como veremos
mais adiante, sobre ações desenvolvidas por inimigos, através de feitiçaria. No caso
específico de a vítima ser criança, como vimos, a responsabilidade é geralmente tida
como de seus parentes, seu isolamento e fragilidade emocional/afetiva sendo atribuída a
estes últimos.
A instabilidade da ayvu pode ser também relacionada a condições ambientais,
como é o caso em que o indivíduo e/ou seus parentes encontram-se em lugares hostis ou
precários do ponto de vista do desenvolvimento satisfatório das atividades sociais,
políticas e tecno-econômicas; em outras palavras, não dispondo o te’yi de espaço
suficiente onde se assentar, sendo ausentes características ecológicas apropriadas para a
prática da agricultura, da caça, da pesca e da coleta, e não havendo autonomia política
com relação a outras famílias, tidas como inimigas. Fatores ambientais negativos são
também os referidos à presença de espíritos malignos, como os diversos járy, anguê e
añáy, assim como aos devidos aos períodos do ano considerados como em estado
quente”, o próprio espaço-tempo (ar, lugares, objetos etc.) sendo impregnado e portador
de doença (ára rasy).
Geralmente os Kaiowa atribuem às doenças da alma duas causas possíveis: o
susto (ñemondýi) e a introdução de objetos e/ou de espíritos nefastos no corpo da
pessoa.
Como vimos, ao ser a alma espiritual entendida como sendo um (ou mais)
pássaro(s), pode ela justamente voar, quando assustada. Em casos extremos, a ayvu não
retorna, provocando a morte do corpo onde estava assentada, ou pode este último
permanecer com vida, mas controlado por outro espírito. Em outras ocasiões, o xamã,
através do ritual de mongarai, pode favorecer a incorporação de outra alma espiritual, o
que leva o sujeito a adquirir uma nova personalidade; isto ocorre normalmente quando o
comportamento manifestado pelo corpo é considerado como uma afecção deste,
268
justamente devido ao controle por parte de espírito indesejado. Deve ser observado que
o susto é a causa mais recorrente das doenças que afetam as crianças, mas pode ser
comum também nos adultos.
A doença causada pelo susto pode dever-se a comportamentos agressivos de
parentes e estranhos, mas geralmente é atribuída à presença da anguê de algum parente,
que procura voltar ao lugar de sua antiga residência, assim como a ataques de añáy, ou
pela manifestação de diversos járy presentes ou circulantes nas redondezas das
residências, assumindo o aspecto corporal de animais perigosos (onças, lobos guará,
tamanduás etc.). O susto pode ser provocado também por ayvu que se desprenderam do
corpo após o “suicídio”
147
.
A incorporação de objetos e/ou espíritos pode ser conseqüência de um susto,
mas não necessariamente. Nestes casos, a ayvu passa a conviver com impurezas, que lhe
produzem mal-estar, transtorno e, em muitos casos, dependência com relação aos
espíritos maléficos. Em decorrência da persistência destes males, a alma espiritual pode
chegar a se desprender temporária ou definitivamente do corpo, com conseqüências
idênticas às anteriormente descritas para o caso do susto. As origens dos espíritos e
objetos podem ser muitas. Entre as doenças mais freqüentes que geram dependência
para com um járy maléfico, m-se as decorrentes do consumo de bebidas destiladas,
podendo o sujeito perder o controle de si, os comportamentos manifestados passando a
ser considerados como produto de sua manipulação por parte do caña jary (o “dono da
cachaça”). Neste caso, não se tem por conseqüência a morte do sujeito. Quando, porém,
a incorporação de objetos malignos (mba’e vai) é obra de feiticeiros ou, como afirmado,
quando a pressão dos espíritos malignos torna-se insuportável, pode-se chegar à morte,
muitas vezes sendo o sujeito levado a enforcar-se ou se envenenar. A causa de doenças
147
Neste caso coloco aspas na palavra “suicídio” porque, em uma perspectiva êmica, este não é um ato de
auto-agressão, como é geralmente considerado nos estudos especializados. Com efeito, não é a própria
pessoa que provoca a morte do corpo onde ela está assentada, mas as afecções comportamentais
produzidas nesse corpo pela agressão de espíritos e/ou feiticeiros. A rigor seria um homicídio e não um
suicídio. A morte nestes casos é provocada por enforcamento (ajejuvy) ou, mais raramente, por
envenenamento, ambos casos entendidos pelos índios como causando o fechamento do canal através do
qual se expressa a ayvu. Neste caso, não havendo saída pela boca (orifício por onde sairia normalmente),
a alma espiritual acaba por sair pelo ânus, permanecendo por vários meses na Terra antes de voltar para
seu yváy de origem, isto devido à necessidade de se liberar das impurezas adquiridas ao passar por este
canal de saída. Durante essa fase de transição, é comum ela importunar os parentes vivos, levando, por
sua vez, muitos deles a cometerem enforcamento. Deste modo os Kaiowa dão explicação aos freqüentes
suicídios em cadeia.
269
pode ser atribuída também aos chiru (varas insígnias), quando estes são descuidados
e/ou abandonados pelas pessoas das quais estão sob custódia
148
.
Em todos estes casos, como afirmado, o itinerário terapêutico privilegia a cura
espiritual, a qual pode ser praticada por xamãs e/ou curandeiros e dirigentes
pentecostais indígenas.
No primeiro caso, como técnica verbal, utilizam-se ñembo’e específicos, cujo
escopo é aquele de localizar, esfriar e, consequentemente, enfraquecer o poder de quem
e/ou do que causa a doença. Do ponto de vista da ação física, o ñembo’e é coadjuvado
pelo peju, o sopro, ato este que permite ao operador médico contribuir para o
esfriamento do ponto doentio (geralmente a parte superior do tórax e a cabeça), e
subtrair os objetos e/ou espíritos causadores da doença do corpo da vítima. Por sua vez,
esta técnica é acompanhada de gestuais, denominados jovasa, realizados com as mãos,
através dos quais, neste caso
149
, se aferra e, sucessivamente, se afasta metonimicamente
a causa do mal. Para completar a prática, é entoado outro tipo de ñembo’e, definido tihã,
oração esta que objetiva defender o sujeito de eventuais outros ataques
150
. Quando o
diagnóstico realizado denota o afastamento e não simplesmente o transtorno da ayvu, o
xamã lança mão de seus ñengáry, ñembo’e estes que, como foi amplamente descrito,
permitem estabelecer uma comunicação entre o ñanderu e seres que se encontram em
outra dimensão – neste caso específico, a alma que se afastou.
que se observar que nem sempre é necessária a presença do xamã. Em um
primeiro momento, quando se manifestam os primeiros sintomas, os familiares da
vítima podem recorrer a alguém do próprio te’yi ou algum parente do enfermo ou de seu
cônjuge. Quando, por exemplo, a causa é considerada o susto cuja origem é um anguê,
os próprios parentes da vítima tentarão convencê-lo a deixar em paz os familiares vivos,
em especial a vítima, isto através de ñembo’e. Se a ação não for eficaz, faze-se
148
No próximo item será aprofundado o tema relativo ao consumo de bebidas alcoólicas e à prática do
suicídio entre os Guarani (não só os Kaiowa), sendo que no item seguinte me deterei amplamente sobre a
feitiçaria. Com relação à ação dos chiru, o aprofundamento ocorrerá adiante, no item 11.1.
149
O jovasa é utilizado também para purificar o ambiente, liberando os lugares onde se desenvolvem as
atividades sociais e/ou tecno-econômicas dos males que os deixam ou poderiam deixá-los “quentes”.
150
O uso de tihã é muito freqüente quando as pessoas estão prestes a viajar ou a realizar atividades em
lugares afastados das próprias residências, isto é, em localidades que são potencial ou reconhecidamente
perigosas. A técnica é equiparada a uma técnica militar de defesa. Mais adiante, falando da feitiçaria,
voltarei sobre este assunto.
270
necessário recorrer a outros especialistas, xamãs ou curandeiros podendo ser contatados
para tal propósito. No caso de a escolha recair sobre o ñanderu (ou ñandesy), este
poderá fazer uso de ñembo’e mais eficazes. Contudo, se isto também não for suficiente,
poder-se-á lançar mão de ñengáry para requerer a intervenção de algum Ñande Rykey,
cuja ação é, sem dúvida, mais poderosa. De qualquer forma, quando o ambiente é
considerado excessivamente doentio, a possibilidade de insucesso é elevada, é a
mesmo quando um anguê é afastado, o risco deste e outros virem juntos a importunar os
parentes vivos permanece constante, motivo pelo qual a prática comumente usada pelos
Kaiowa como ação preventiva é a de queimar (ou desmontar) a residência onde faleceu
o corpo que deu origem ao anguê em causa, a família nuclear mudando-se para outro
local, geralmente nas proximidades.
O recurso a curandeiros para cura espiritual, localizados esses nas cidades ou
vilas das redondezas, é também um fato freqüente, muitos deles sendo indígenas
incluídos em vastos circuitos de relações de aliança, várias vezes estabelecidas através
de laços de parentesco. Os rituais terapêuticos utilizados nestes casos se servem de
litanias, recitadas geralmente em espanhol, procedentes da tradição popular paraguaia e
fronteiriça. Seu uso cnico no processo de cura é extremamente semelhante àquele do
ñembo’e. No que concerne ao aspecto gestual, lança-se mão de imagens antropomorfas,
como estatuetas de santos católicos, que são passados pelo corpo do paciente na parte
afetada pela doença. O ritual de cura é geralmente efetuado na frente de um altar onde
estas estatuetas são apoiadas, em prateleiras acompanhadas de velas e inúmeras
iconografias representando também esses santos. Há que se constatar o fato de que estas
práticas não são exclusivas dos curandeiros residentes nas regiões urbanas, sendo que
mesmo xamãs respeitados fazem uso delas
151
. Neste último caso, os santos católicos são
equiparados aos Ñande Rykey
152
(ver fotos XIV e XV). O uso de estatuetas por parte de
xamãs não é, porém, restrito aos pacientes indígenas.
151
Sobre o uso mágico das imagens dos santos, ver Schaden 1974: 139-40.
152
Como foi possível ver em uma das narrações de Atanás, São Jorge é identificado com Ke’y Mirî, dono
dos ventos e das tempestades. Luís Velário, outro xamã, residente em Jaguapire, atribui a Santo Antônio
propriedades curativas excepcionais; adornando com jeguaka (cocar) a estatueta que o representa (ver
foto a seguir), este ñanderu coloca o santo no panteão indígena, considerando-o justamente como um
Ñande Rykey.
271
Foto XIV
Foto XV
Imagens de santos na residência do xamã Luís Velário Borvão. T.I. Jaguapire. Outubro de 2004.
Estatueta de Santo Antônio com jeguaka (cocar).
Residência de Luís Borvão.
T.I. Jaguapire. Outubro de 2004.
272
De fato, enquanto, por um lado indivíduos Kaiowa dirigem-se a curandeiros na cidade,
por outro, uma vasta procura ao ñanderu nas aldeias por parte de “brancos”
residentes nas áreas urbanas e rurais das redondezas. Em ambos os casos, os serviços
requisitados não se restringem às práticas de cura, sendo incluídas também atividades de
magia positiva e negativa destinadas a outros escopos, algo que será tratado mais
adiante.
Outro tipo de operador médico existente é o dirigente indígena que ministra
cultos nas igrejas pentecostais presentes, nestes últimos anos, em várias áreas kaiowa
(especialmente nas reservas). A proliferação destas igrejas é um fenômeno recente, cuja
dinâmica deveria ser melhor estudada, vista a rápida penetração e acolhida por parte de
muitas famílias indígenas. Contudo, com base nos meus dados, não cabe dúvida sobre o
fato de que uma das razões de tanto sucesso deve-se à forte ênfase dada pelo
pentecostalismo à prática da cura espiritual. Com efeito, boa parte dos cultos nas igrejas
“indígenas” centra-se na tentativa de cura de doenças. Também neste caso, como nos
anteriormente descritos, a causa das doenças da alma é interpretada como devida à
incorporação de espíritos maléficos (neste caso, demônios), interpretados como járy,
incorporação esta favorecida por condições ambientais e sociais negativas, que levam o
indivíduo a manifestar maus comportamentos e atitudes. A feitiçaria também é tida
como causadora de enfermidades espirituais e físicas que podem levar à morte da
vítima. As técnicas utilizadas baseiam-se, também neste caso, na formulação de orações
similares aos ñengáry, através do qual o dirigente procura comunicar-se com Jesus, por
meio de um ritual mais performático do que comunicativo
153
. Do ponto de vista gestual,
153
Como se pode constatar, a similitude com o ponto de vista perorado pela tradição de conhecimento
kaiowa é flagrante, embora existam claras diferenças na organização e transmissão dos saberes. Com
relação às técnicas utilizadas, nota-se que as orações proferidas pelos dirigentes e seus auxiliares no altar
da igreja são quase exclusivamente em língua portuguesa, o guarani sendo utilizado tão somente para uma
comunicação horizontal entre oficiantes e “fiéis”. Nestes termos, a linguagem utilizada para estabelecer
contato com Jesus, constituída de sentenças curtas e repetitivas, torna-se incompreensível em conteúdo
para a platéia. O uso também da Bíblia por parte do dirigente é puramente simbólico e performático, a
consulta ao texto não prevendo leitura de versículos, mas simplesmente sua abertura em vários pontos,
durante o culto. Muitas vezes o próprio dirigente é analfabeto ou quase, sendo estabelecida a escolha da
igreja sobre a sua pessoa como seu representante mormente por suas qualidades como orador e/ou pela
sua posição sócio-política nas áreas e reservas. O papel do dirigente não é, portanto, o de ser interprete
das “sagradas escrituras” ou seu divulgador; tampouco é o de favorecer a salvação das almas dos
indígenas, elementos de pouco interesse para os Kaiowa, mas sim de curar os indivíduos e de promover
novos equilíbrios emocionais/afetivos para a vida familiar. Suas orações e seus preceitos tornam-se,
assim, muito similares aos dos xamãs, embora em um forte antagonismo com estes. O interesse de te’yi
específicos em “abraçar” a proposta de determinadas igrejas deve ser também analisado a partir do jogo
273
é utilizada a imposição das mãos do dirigente na testa dos doentes, gesto este que, com
o auxílio da oração, permitiria o afugentamento do demônio e/ou da doença.
A evidente similitude existente entre a prática de cura promovida pelos
dirigentes pentecostais indígenas e aquelas até agora descritas permite a boa parte dos
Kaiowa recorrer a estes operadores médicos, especialmente nos casos em que o paciente
(ou seus parentes próximos) considere estar dependente das bebidas alcoólicas e/ou
manifeste comportamentos agressivos para com seus familiares. O regimento imposto
por essas igrejas, entendido como extremamente rigoroso pelos índios, seria, em um
primeiro momento, um dos motivos que conferiria a essa prática de cura (que é
acompanhada de uma específica regra comportamental prescrita ao paciente e sua
família) um elevado índice de eficácia. Há que se observar, porém, que, em um segundo
momento, esse próprio rigor torna-se, na maioria dos casos, excessivo para o padrão de
comportamento mantido geralmente pelos Kaiowa, ao ponto de muitos renunciarem ao
estilo de vida imposto pela igreja, quando não chegam a contrapor-se-lhe. Um dos
elementos que caracterizam o pentecostalismo é a tendência ao fechamento no processo
de socialização que o regimento imposto pelas igrejas provoca. Exige-se dos “fiéis”,
além da renúncia ao hábito de beber e fumar, também que se evite a freqüentação a não
“fiéis” e às suas práticas rituais e médicas, imposição esta que procede dos pastores não-
indígenas aos quais formalmente os dirigentes estão subordinados. O controle das
igrejas, como é tradição nas atividades missionárias protestantes entre os Kaiowa desde
1928, é exercido com ameaças, afirmando-se que se os índios não seguirem o rígido
regimento por elas proposto, serão vítima de demônios e/ou feiticeiros.
O fenômeno pentecostalismo, embora permita experiências pontuais de acesso a
suas práticas de cura a um número amplo de indígenas, acaba por circunscrever grupos
de oposições faccionais que os Kaiowa constroem. Resulta ser claro o modo de os índios organizarem e
multiplicarem as sedes físicas das igrejas, cada congregação e, às vezes, cada igrejinha, representando os
interesses de uma família extensa ou de uma comunidade política. que se chamar também a atenção
sobre o fato de que a adesão dos índios a essas igrejas pode ser muito efêmera, seu regimento sendo
sempre um elemento de extrema pressão, algo que em muitos casos leva integrantes a desistirem com
facilidade. Como foi argumentado até o momento, o conceito de conversão é desprovido de sentido para
os Kaiowa e provavelmente para a maioria dos indígenas sul-americanos. Como evidencia, de modo
convincente, Viveiros de Castro (2002) para os antigos Tupinambá, a própria noção de alma dos índios
lhes permitia se “converter” e se “des-converter” com extrema facilidade, suscitando nos missionários da
época profunda indignação. Especificamente sobre os Guarani, como vimos com Montoya (1985: 237),
os índios chegavam a realizar rituais de “des-batismo”, o cristianismo sendo interpretado não como um
credo mas como um poder mágico.
274
limitados de “fiéis”, os quais, diversamente ao que pretenderiam os pastores não-
indígenas, acabam por ser grupos exclusivos de parentes, isto é, famílias extensas
aliadas entre si. Nestes termos, os circuitos de socialização diferenciados que as igrejas
determinam acabam por, pelo menos a nível normativo, limitar os itinerários
terapêuticos à escolha exclusiva de dirigentes pentecostais indígenas, hostilizando até
mesmo as atividades dos médicos da FUNASA
154
.
A seguir, para que se tenha uma idéia mais precisa da dinâmica determinada por
um processo de cura espiritual, relatarei um caso específico, ilustrando o itinerário
terapêutico então seguido. Pela natureza dos fatos que serão descritos, existindo
acusações de feitiçaria e desentendimentos entre vários atores que participaram do
processo, utilizarei nomes fictícios de pessoas e lugares.
A Área Indígena Pindoty é uma das terras recuperadas pelos Kaiowa durante
uma luta que durou mais de uma cada. Em uma região desta área se estabeleceu um
prestigioso te’yi que tinha sua origem, liderado pelo tamõi guasu Ildo Sárate. Esta
família extensa, antes de poder voltar à sua terra de origem, residiu por décadas em uma
das reservas instituídas pelo SPI, lugar este onde se travaram relações de parentesco
com famílias procedentes de outros espaços internos ao mesmo tekoha guasu no qual se
situa Pindoty (bem como a reserva), mas que, embora reivindicados, o foram ainda
identificados pela FUNAI. O translado para Pindoty abrangeu boa parte dos membros
da comunidade política que se havia configurado na reserva, dando vida a uma dinâmica
interna que, em mais de dez anos, levou à consolidação do poder desta comunidade no
novo local. Um dos filhos de Ildo, Otávio Sárate, vinha mantendo relações desde o
tempo da vida na reserva com a família dos Gonçalves, especialmente com seu cunhado
João, este também se tendo mudado para Pindoty. Por sua vez, Jorge – um dos filhos de
Otávio, fruto de um casamento anterior tendo se divorciado havia pouco, também se
transferiu para Pindoty, reunindo-se com a maioria de seus parentes consangüíneos.
Durante a estadia no local de sua nova residência, Jorge, com 25 anos de idade,
voltou-se a casar, desta vez com uma das filhas adotivas de João, reforçando-se, assim,
a aliança entre os Sárate e os Gonçalves. Edna, a nova esposa de Jorge, contava, na
154
Um médico que presta serviço no Pólo de Dourados comentava-me justamente que as famílias
vinculadas ao “capitão” de Bororó ligadas à igreja “Deus é amor” oferecem muita mais resistência ao
atendimento da FUNSA, com relação às outras, que procuram geralmente xamãs e/ou curandeiros.
275
época, 15 anos, sendo este o seu primeiro casamento. A mãe adotiva, Angelina, embora
se resignando vistas as evidentes vantagens políticas do casamento e o claro
entendimento entre os novos cônjuges –, não acolheu seu genro com entusiasmo, isto
devido ao fato de Jorge ter passado por uma experiência conjugal então recente.
Edna teve três filhos em cinco anos. Aproximadamente cinco meses após a
segunda gravidez, quando se encontrava ela à beira de uma mina d’água, avistou um
sapo e levou um susto, permanecendo imóvel, em estado de choque, ao ponto de ter que
ser socorrida e reconduzida à sua residência. A partir daí começou a manifestar
comportamentos incomuns: estranhava o bebê, falava sozinha e tinha crises de riso
incontido, além de não se alimentar regularmente. Nesse estado, não conseguindo se
responsabilizar pela recém-nascida e tampouco acompanhar o desenvolvimento do filho
mais velho, Angelina, a avó, resolveu, em um primeiro momento, assumir as crianças,
sendo que posteriormente acolheu também a filha Edna em sua residência, Jorge (o
marido) permanecendo sozinho por algumas semanas.
João, respeitado xamã em Pindoty, interpretou que os sintomas manifestados por
sua filha denotavam um afastamento da ayvu causado pelo susto originado por espírito
maléfico sob a forma de sapo. Edna ter-se-ia assustado com certa facilidade devido ao
fato de sua ayvu ser constitutivamente frágil, sendo ela jopara (mestiça) – a mãe
biológica é irmã uterina de Angelina e o pai, um não-índio. De qualquer forma, João
demonstrava otimismo, afirmando que o ayvu de Edna, embora tivesse superado a
Yvy Rendy, ainda não havia alcançado seu yváy de origem, sendo possível reconduzi-la
a seu corpo. O xamã localizava o posicionamento da alma através de suas viagens
oníricas e por meio dos ñengáry que entoava cotidianamente. Por sua vez, para tornar
ainda mais eficaz o processo de cura e convencer a ayvu a voltar, resolveu-se levar Edna
para a cidade de Tatuí, situada a aproximadamente 35 quilômetros de Pindoty, onde
morava Marta, uma curandeira, prima cruzada matrilateral de Angelina. Desenhando no
chão, João me explicava que, enquanto ele cercava a ayvu pelo lado esquerdo, Marta,
através de suas rezas, se conduzia pelo lado direito, a ação conjunta permitindo que a
alma fosse firmemente segurada e trazida novamente para assentar-se no corpo. Jorge (o
marido da doente) acompanhou-a na ida a Tatuí por três vezes, juntamente com sua
sogra, sendo que após algumas semanas podiam-se constatar claros sinais de melhora.
276
Meses mais tarde Edna voltava à sua vida normal junto a seu marido e ao filho mais
velho, a filha menor permanecendo, porém, sobretudo na companhia da avó.
Não obstante a evidente melhora, os problemas para Edna não findaram. Jorge
ausentava-se periodicamente do tekoha, às vezes permanecendo semanas longe de casa,
devido a seus empenhos fora de Pindoty. Devido a estas freqüentes ausências, as
pressões de familiares, através de fofocas, levavam Edna a alimentar um crescente
ciúme. Angelina por sua vez, sempre desconfiada com relação a seu genro, incentivava
a filha a romper relações com Jorge. É neste clima de instabilidade que Edna
engravidou novamente, conduzindo sua gestação muitas vezes distante do marido.
Ademais, o nascimento do terceiro filho coincidiu com uma perda grave para a família
Gonçalves. Marcos, um filho de João, que estava ausente de Pindoty havia mais de um
ano, havia perdido a vida em um acidente, justamente quando pensava em voltar a viver
no espaço de jurisdição de seu pai, onde mantivera sua casa, sua esposa e filhos nela
residindo.
Algumas semanas após esse trágico episódio, Edna começou novamente a
manifestar os sintomas que se haviam seguido ao segundo parto, desta vez com maior
freqüência e gravidade. Um médico da FUNASA resolveu encaminhá-la para o hospital
da vizinha cidade de Ibicuí, onde seria submetida a tratamento com psicofármacos.
Obteve ela liberação no dia seguinte, em um estado aparentemente melhor. Nesse
período de instabilidade, Jorge decidiu ficar o mais próximo possível da esposa,
levando-a consigo durante suas viagens. O estado de Edna, porém, permaneceu instável,
sendo que após o manifestar-se de outras crises, o médico da FUNASA resolveu
interná-la novamente. A família ficou alarmada e Jorge fez tudo o possível para que ela
tivesse alta, voltando para sua residência, o que ocorreu alguns dias depois. Edna
chegou em casa tratada com psicofármacos, tendo a indicação médica de continuar
regularmente com esses tipo de remédio. Contudo, seus sintomas não não
diminuíram, como eram, desta vez, acompanhados de tremores pelo corpo, algo que
alarmou Jorge, que imediatamente entrou em contato comigo por telefone. Ele sabia que
eu orientava Antônio, um psiquiatra, que desenvolve pesquisas com os Kaiowa, e queria
saber se o médico estaria disposto a fazer uma visita a Edna. O temor de Jorge era que
no hospital tivessem prescrito fármacos equivocados e também que ocorresse uma nova
tentativa da FUNASA de subtrair Edna de sua família, levando-a para um lugar
277
asséptico como o hospital, algo que não seria tolerado, sobretudo por João, visto que
interferiria sobremaneira na tentativa xamanística de trazer o ayvu para seu corpo, além
de expor este a possíveis ataques de feiticeiros.
Antônio não teve disponibilidade imediata, mas se demonstrou muito
interessado no caso, programando uma estada de alguns dias em Pindoty, para a semana
seguinte ao telefonema de Jorge. Minha esposa Alexandra, também antropóloga,
resolveu acompanhá-lo nessa viagem, visto que gozava de certa intimidade com Edna,
algo que poderia contribuir para que Antônio tivesse acesso a informações mais
detalhadas para a compreensão do fenômeno. A viagem se demonstrou muito profícua,
os fatos deixando transparecer posteriores elementos no correr do processo. Edna,
durante essa fase conturbada, teve uma seqüência de sonhos protagonizados por Otávio,
seu sogro, personagem que, no sonho, demonstrava grande agressividade para com ela e
seus familiares. Estas manifestações oníricas ocorreram após uma discussão acirrada,
então recente entre Otávio e João (pai de Edna), algo que havia abalado as relações
cordiais entre esses cunhados. As interpretações xamanísticas dos sonhos de Edna,
unidas à situação crítica pela qual estava passando a aliança entre os Sárate e os
Gonçalves, teve como desfecho a acusação de feitiçaria lançada por estes últimos com
relação ao pai de Jorge, agravando posteriormente a frágil relação entre Edna e seu
marido. Por outro lado, os parentes consangüíneos de Jorge, acusaram a própria família
Gonçalves de ser responsável pela doença sofrida por Edna, a avó paterna de Jorge
afirmando que durante os últimos dois partos não se teria procedido tecnicamente de
modo adequado, isto é, não teriam sido esfriadas as mãos da parteira e a vagina da
parturiente, procedimento que esse evento e o momento (considerado de teko aku)
exigem.
Com relação à ação do psiquiatra, pode-se dizer que, vista a experiência do
segundo parto da mulher e o manifestar-se dos sintomas em tempos bastante tardios,
Antônio descartou a hipótese de se tratar de depressão pós-parto, num primeiro
momento pensando que pudesse ser uma forma incipiente de esquizofrenia. Porém,
depois de ter participado das dinâmicas locais e observado mais detidamente o
comportamento de Edna, concluiu, mas com muitas reservas, de que a doença mais
provável era uma psicose maníaco-depressiva, cuja componente cultural poderia ser
278
central, seja para sua manifestação seja para sua regressão; as práticas xamanísticas
sendo, portanto, relevantes no processo de cura.
A família Gonçalves, embora tivesse aceitado de bom grado a contribuição
psiquiátrica, se havia encaminhado para um enfrentamento com os Sárate, as
acusações recíprocas entre as duas famílias em litígio levando João e sua esposa a
quererem isolar Edna. Do ponto de vista deles, o fechamento da família em torno à
doente iria protegê-la de ameaças, diatribes ou outros fenômenos que poderiam causar
posteriores perturbações em sua ayvu, agravando sua condição. Foi a partir desses
fatores que a relação entre Edna e Jorge sofreu uma rápida desafeição, este último sendo
moralmente obrigado a sair do espaço de jurisdição de seu sogro, com a conseqüente
dissolução das relações do casal.
Meses depois, Edna melhorou sensivelmente, como havia acontecido após os
eventos que se seguiram ao segundo parto. As informações mais recentes são de que
goza de ótimas condições, tendo voltado a se deslocar com seus familiares em visitas
em outras áreas indígenas, onde parece ter estabelecido novas relações as quais lhe
podem permitir casar-se novamente. Por seu turno, imediatamente após o divórcio,
Jorge foi vítima de um acidente de carro, sofrendo fraturas, seus parentes consangüíneos
chegando desta feita a acusar João de ter enfeitiçado seu ex-genro. Os conflitos, porém
não chegaram a abalar totalmente a aliança entre os Sárate e os Gonçalves, as relações
tendo se normalizado com o passar do tempo.
10.4 O consumo de bebidas alcoólicas e a prática do suicídio
Não é de meu conhecimento um estudo específico sobre o uso de substâncias
psicoativas entre os Guarani de MS. É de se dizer que, sendo este povo milenarmente
agricultor, dá ele uma grande relevância ao consumo de uma bebida alcoólica antes aqui
referida, derivada da fermentação de plantas cultivadas (milho, mandioca, batata doce
e/ou cana-de-açúcar), denominada kaguî (ou chicha). O uso desta substância sempre
esteve associado a atividades coletivas, como rituais, festas profanas e mutirões.
Segundo Grunberg (1991), com quem concordo, o consumo de bebidas alcoólicas
permite aos Guarani superar estados de tristeza (ndovy’ai). Efetivamente, os índios
279
apontam o estado de ebriedade como sendo de dois tipos: ka’u porã e ka’u vai, o
primeiro positivo e o segundo negativo.
O primeiro estado é alcançado justamente com o consumo de kaguî, e até
mesmo de bebidas destiladas, como a cachaça, sempre que o indivíduo não apresente,
durante o estado de embriaguez, atitudes agressivas. O segundo estado é alcançado
quase exclusivamente por uma ingestão excessiva de álcool, seguida por
comportamentos anti-sociais que expressam raiva, irritação e outras manifestações
emotivas tidas como de teko vai (modo incorreto de ser, mau comportamento). Nestes
casos, mais que atribuir a culpa ao indivíduo, os índios referem-se a uma condição de
fraqueza da pessoa, que acaba por ser dominada, como vimos, por caña járy (o espírito
dono da cachaça). Cabe observar, contudo, que nos casos de pessoas que não
manifestam agressividade durante a embriaguez, mas que se sentem dependentes da
bebida, esta condição também pode ser atribuída a caña járy. Para resolver este tipo de
problema, o sujeito “dominado” pode se dirigir ao xamã, que, através de mongarai,
poderá fazer com que a cachaça consumida seja desvinculada da ação deste perigoso
járy. Ocorre, porém, que nem sempre a ação xamanística tem o efeito desejado,
podendo o indivíduo, então, procurar igrejas pentecostais para se “desintoxicar”, sendo
que, mais tarde poderia ele voltar a beber, como ocorre freqüentemente.
É possível afirmar que o primeiro estado de ebriedade, sendo relacionado a uma
regulação das emoções, pode contribuir para reforçar tanto os laços afetivos familiares
quanto aqueles sociais mais amplos. Em termos comportamentais, os Guarani são
contidos, sendo levados a uma não manifestação de descontentamentos, raivas,
angústias e mágoas, ou seja, a manifestação de comportamentos extremados é vista
como algo negativo. As bebidas alcoólicas, uma vez controladas individual e
socialmente, representam um elemento central no estabelecimento de boas relações no
interior das famílias extensas e seus aliados, permitindo aos indivíduos, justamente
nesses momentos, desabafos emocionais e manifestações de hilaridade.
O segundo estado de embriaguez apresenta-se aos olhos dos índios como um
descontrole social e é, portanto, veementemente reprovado. O cil acesso às bebidas
destiladas, os conflitos entre famílias rivais e a alta densidade demográfica das reservas
instituídas pelo SPI, são todos elementos que desenham contextos altamente explosivos,
nos quais pode, com certa facilidade, ocorrer não meramente um desabafo emocional,
280
mas a manifestação de ações de violência. Os conflitos intra-familiares, anteriormente
descritos, também podem gerar comportamentos altamente agressivos sob o efeito do
ka’u vai.
Contrariamente àqueles relativos ao consumo de álcool, os estudos sobre o
suicídio entre os Guarani de MS foram-se avolumando a partir do final da década de
1980. O trabalho de maior pretensão, que resultou na publicação de um livro, é de
cunho psicanalítico (Levcovitz 1998). O autor realizou breve trabalho de campo e
relacionou os resultados com uma bibliografia variada e pouco homogênea. Pode-se
observar que embora leve em consideração o fato de que o fenômeno esteja vinculado a
fatores culturais específicos do grupo focado, Levcovitz envereda para uma explicação
abstrata, muito distante dos contextos reais onde se consumam os atos de auto-agressão.
Para tal, postula como explicação uma noção de pessoa baseada num fantasmagórico
complexo guerreiro-antropofágico, que seria comum aos povos tupi-guarani, em todos
os lugares e épocas.
Cabe ressaltar que o é entre todos os Guarani que se registram casos
freqüentes de suicídio. Entre os Mbya e os próprios Ñandéva que não vivem no MS e no
Paraguai Oriental, a prática de auto-agressão é ausente ou rara. Neste sentido, a
perspectiva que o fenômeno como produto de fatores puramente culturais,
psicanaliticamente analisados, demonstra-se, quando menos insuficiente, e se, ademais,
levamos em conta que entre os Guarani de MS existe uma crescente taxa de suicídio
feminino, referir-se ao complexo “guerreiro-antropofágico” mostra-se inadequado, visto
que diria isto respeito mais a uma realidade masculina.
Em seu trabalho, Levcovitz deixa transparecer seu pouco domínio etnográfico
sobre o grupo abordado. Por outro lado, autores com grande experiência neste sentido
têm se limitado a redigir breves artigos e/ou relatórios sobre o suicídio entre os Guarani
de MS e do Paraguai Oriental, levantando algumas hipóteses e apontando alguns
caminhos para enfocar o problema.
Melià (1994b) considera a auto-agressão entre esse povo como a negação da
lógica de “boa morte”, que permite a passagem da ayvu para o yváy de sua origem, de
modo harmonioso. Neste sentido, como os próprios xamãs indicam, quando se comete
suicídio, a alma espiritual sairia pelo ânus, e não pela boca, como seria o normal. Assim,
seguindo as interpretações das autoridades religiosas nativas, o fenômeno teria um
281
caráter negativo, associado a formas de anomia social, que levariam o indivíduo a
assumir um comportamento anti-social. Esta tese enquadraria o suicídio entre os
Guarani como sendo anômico – ou mesmo egoísta, em se tomando a classificação
proposta por Durkheim (1982 [1897]). Neste sentido vão também os trabalhos de
Azevedo (1987), Grünberg (1991), Morgado (1991), M. A. Pereira (1995), Wicker
(1997) e Brand (1997).
Parece existir, portanto, certa unanimidade sobre o fato de que a alta taxa de
suicídio registrada nas últimas décadas seja devida a perturbações na vida social desses
índios. Melià (1994b e 1995), porém, justamente observa que existem registros do
fenômeno em tempos antigos, nos séculos XVI e XVII, o que denotaria que não se trata
de algo novo, mas, ao mesmo tempo, frente ao manifestar-se da grande quantidade de
casos nos últimos tempos, aponta para a sua natureza enigmática. O antropólogo jesuíta,
que trabalhou junto aos Paî-Tavyte(Kaiowa) do Paraguai na década de 1970, nunca
registrou casos de suicídio, o que leva a entender que o fenômeno esteja, então, ligado à
incidência ou intensificação de fatores em tempos mais recentes.
Deve-se observar que, embora os autores citados convirjam em considerar o
suicídio uma doença contagiosa na sociedade guarani, sobre as causas que levariam à
sua realização, as hipóteses e explicações são as mais diversas. Para Grünberg (1991)
que, assim como Melià, também trabalhou durante anos com os Paî-Tavyterã no correr
da década de 1970, as altas taxas de suicídio referentes a quatro áreas indígenas no
Paraguai seriam devidas à interferência missionária, visto que em três delas estavam
agindo igrejas protestantes, que provocariam conflito social entre os índios, levando ao
rompimento da tradicional lógica de reciprocidade. O historiador A. Brand (1997),
referindo-se ao MS, considera que o problema principal seria devido à desestruturação
progressiva das famílias extensas, por conta do processo que denomina de
“confinamento”, o que, segundo o autor, impediria os Guarani de deslocar-se pelo seu
amplo território histórico, sendo obrigados pelo Estado a permanecer nas minúsculas
reservas. M. A. Pereira (1995) indica muitos fatores como sendo causais na
determinação do fenômeno em foco, todos eles apontados pelos índios. Segundo a
autora, os Guarani de Dourados teriam indicado como causa o feitiço, mas ela releva
que as condições inapropriadas de vida colocam em crise os tekoha (“lugar onde
realizamos nosso modo de ser”), crise devida em certa medida ao confinamento
282
territorial como o aponta Brand. Por sua vez, Wicker (op. cit.) outro que também
pesquisou os Paî-Tavyterã na década de 1970 –, segue as formulações de Durkheim
(1982 [1897]), atribuindo a causa da recente epidemia de suicídio a uma progressiva
diminuição da integração social do grupo étnico, negando que isto seja devido à falta de
espaço, condições ecológicas e/ou outros fatores necessários para o desenvolvimento de
uma vida tradicional, visto que os lugares no Paraguai onde se comete mais suicídio não
são densamente povoados e depauperados como o são outros que não registraram
significativos casos de auto-agressão. A visão preponderante deste autor é que o
caminho em direção a uma integração à sociedade nacional é irreversível. De um
parecer similar a este é Morgado (op. cit.), que considera o suicídio entre os Guarani de
MS como um efeito do que define como “recuo impossível”, isto é, a perda de
condições culturais originais e a impossibilidade de recuperá-las.
É plausível concordar com estes dois últimos autores sobre o fato de que os
Guarani o podem voltar a conduzir uma vida como a do passado. Concordo também
com o próprio Wicker (reforçado por Thomaz de Almeida [1996]), sobre o fato de que
os elementos indicados pela maioria dos estudos como sendo causais do fenômeno
suicídio são parciais, não explicando todos os casos. Discordo deles, porém, em um
ponto central, isto é, sobre o fato de que os Guarani estariam passando por um processo
de desorganização social. O próprio Wicker indica que na década de 1970, quando não
ocorriam suicídios em escala ampla, os cerimoniais de iniciação masculina no Paraguai
eram menos freqüentes do que em períodos mais recentes. O autor aponta como uma
forma de apatia a condição atual desses índios, que dispõem de terras legalizadas,
enquanto que, nos anos de 1970, estando marginalizados e em processo de luta para
manter ou recuperar o controle sobre parte de seus territórios, se apresentavam mais
motivados e unidos, através de lógicas de cooperação. Se dirigirmos o olhar para a
realidade no lado brasileiro, podemos constatar que esse processo de luta dos índios se
desenvolveu posteriormente, existindo ainda hoje muitos acampamentos e comunidades
indígenas mobilizadas neste sentido. Porém, em acampamentos, como o de Ñande Ru
283
Marangatu, por exemplo, onde existe uma extraordinária compactação do grupo, a taxa
de suicídio mostra-se ultimamente elevada
155
.
Pode-se constatar, portanto, que também o trabalho de Wicker (e
conseqüentemente o de Morgado) apresenta falhas consideráveis. A meu ver, isto se
deve ao fato de que estes autores da mesma forma que aqueles por eles criticados –,
no momento em que procuram caracterizar o suicídio entre os Guarani como anomia,
utilizam como ponto de referência para a comparação uma suposta vida social
harmônica desses índios, que teria se desenvolvido no passado. Assim fazendo, todos
enfatizam as interpretações êmicas do fenômeno suicídio em particular, e das condições
de vida social em geral, como sendo os indicadores de um afastamento da tradição. Em
minha opinião, todos esses autores não levam em devida consideração o fato de que as
argumentações dos indígenas são, como vimos, fortemente carregadas de moralismo,
exaltando as formas normativas de conduta, o que os leva a idealizar o passado,
considerando e exaltando unicamente seus aspectos positivos.
Portanto, o objetivo de uma pesquisa que pretenda entender o fenômeno do
suicídio, bem como os efeitos das bebidas alcoólicas na vida social dos Guarani, é
justamente observar como os indivíduos procuram dar solução a estes problemas
cotidianamente, levando em conta todos os pontos de vista e contradições. Deve-se
pensar, como foi aqui repetidamente dito, que a tradição expressa pelo teko porã não se
alimenta apenas de normas e valores transmitidos do passado, mas também das
“novidades” trazidas pelo teko reta
156
. É necessário levar em conta, em detalhes e
concretamente, como se estabelecem as relações inter e intra-geracionais, na situação
histórica atual. Neste sentido, poderão ser relacionados pontos de vista diferentes frente
tanto à noção de pessoa guarani, quanto a manifestações de feitiçaria, assim como a
modalidades de resolução de conflitos de valores, o que pode nos permitir colher
variações significativas nas condutas concretas dos indivíduos, dependendo do sexo,
155
Em 2002, por exemplo, ocorreram 3 suicídios em Marangatu, alcançando-se uma taxa de 854,70 casos
em 100.000 indivíduos (fonte: SIASI-FUNASA).
156
Nestes termos, nos encontramos em plena sintonia com a seguinte passagem do trabalho de
Azevedo: “O suicídio quase sempre se em uma época em que está existindo uma mudança interna
individual, mudança esta que é negada, o indivíduo quer ser reconhecido pelo que era, ou pelo que queria
ser. A morte voluntária para os Kaiowa afirma valores, fundamenta o teko, muitas vezes pela sua antítese,
é um apelo para os que ficam, faz refletir (o que ocorre realmente) sobre o teko porã, reafirmando-o e
recriando-o” (1987: 10).
284
faixa etária e posição social, especialmente no interior das famílias extensas, condutas
estas fortemente vinculadas às manifestações emocionais/afetivas dos indivíduos.
Desta perspectiva, fica evidente que os fenômenos estudados precisam ser
reconduzidos a uma realidade cotidiana extremamente complexa do ponto de vista
social e emocional/afetivo. Não me parece oportuno continuar a relacionar, de modo
geral e genérico, uma cultura indígena idealizada (seja pelos índios, seja pelos
pesquisadores) a um corpo de dados quantitativos derivantes de epidemiologias e outras
estatísticas, sem nos remetermos à vida concreta das famílias extensas onde ocorrem
atos de violência associados à ingestão de álcool e/ou ocorreram casos consumados e/ou
tentativas de suicídios. Não podemos cometer o erro de homogeneizar a realidade
guarani, pensando-se que todas as famílias façam referência a um modelo cultural único
e estático, sendo um te’yi o decalque do outro. Cada família extensa guarani, justamente
em decorrência de sua tradicional autonomia organizativa, possui suas especificidades,
as quais não podem ser desconsideradas.
10.5 Feitiçaria e técnicas mágicas positivas
Em artigo dedicado à comparação entre o entendimento da morte para os
Guarani e a importância dada a esta pelo mundo ocidental, Melià (1994a) coloca muita
ênfase sobre o fato de os índios viverem esse momento como uma conquista de vida.
Ele afirma que os Guarani morreriam para viver, algo que os convenceria a enfrentar a
morte corporal com serenidade, sem temor, portanto, muito diferente do que ocorreria
no Ocidente cristão. O autor apóia-se mais que tudo em um item da consagrada
monografia sobre os Pai-Tavyterã, por ele publicada junto com os cônjuges Grünberg
(1976:255-56). Nesta, se afirma que os índios rezam para que os parentes em fase
avançada de doença e/ou velhice possam preparar-se para morrer, tentando convencê-
los de que, uma vez deixado o corpo, poderão reencontrar-se com os familiares mortos.
Fala-se também de que, muitas vezes, o próprio sujeito iria predizer a data de sua morte,
deixando de se alimentar para tornar o corpo mais leve, favorecendo, assim, a volta da
ayvu para sua morada originária. O próprio Melià afirma que o relato etnográfico feito
nessa monografia poderia suscitar em um
285
...oyente de nuestra civilización occidental la sospecha de idealización y por
tanto falsa ideologización de hechos que nosotros ciertamente vivimos de modo muy
diferente (31).
O autor, porém, aparenta fazer recurso a estas considerações mais que tudo
como retórica para valorizar um discurso que tornaria os Guarani impressionantes e
profundamente diferente de nós. Neste sentido, uma atitude que manifeste surpresa e
suspeita frente à generalização de certos relatos etnográficos, pelo fato de proceder de
membros da civilização ocidental, pode ser rapidamente taxada de escassa autoridade
científica. Parece-me óbvio que, frente à possibilidade de deparar-nos com
manifestações superficiais e moralísticas, calcadas no senso comum, procedentes de um
mundo pouco familiarizado com a cotidianidade indígena, queira-se exaltar a
diversidade cultural; mas que dizer quando a perplexidade e desconfiança procede dos
próprios índios?
O Kaiowa Tonico Benites, morador da Área Indígena Jaguapire, foi meu
orientando na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul no ano de 2003. Durante a
discussão de textos teóricos de antropologia e monografias sobre os Guarani, foram
enfrentadas justamente essas contribuições a que Melià faz referência. Naquela ocasião,
Tonico manifestou perplexidade sobre a noção de “boa morte”, justamente como posta
pelos autores, mas o que mais o contrariou foi a afirmação de que indivíduos tentassem
convencer um parente doente a morrer, e ainda por cima fazendo recurso a rezas
específicas. Segundo Tonico, isto não poderia ser possível, pela simples razão de que o
indivíduo que manifestasse interesse em acelerar ou favorecer a morte de outro seria,
com muita probabilidade, acusado de feitiçaria.
A objeção de Tonico não desmente totalmente as afirmações de Melià, no
sentido de existirem preparativos específicos para que a pessoa possa tornar o próprio
corpo mais leve, favorecendo a saída da alma. Nestes termos, escolhas individuais para
acelerar o processo de morte e traspasse parecem ser bastante difundidas
157
, assim como
157
Segundo Bastião Arce, de Dourados os velhos que estão doentes, prestes a morrer, ficam
rezando todo o tempo para “morrerem bem”. Por exemplo a mãe de Ireno Isnard (mburuvicha e tamõi
muito respeitado na reserva) ficou cantando, todas as madrugadas, por uma semana, para depois “cair
tranqüila, falecida”. Também o velho Basílio, avô de Getúlio Juca, rezou muito antes de morrer. Com
relação ao fato das famílias auxiliarem a pessoa no processo que leva à morte, Bastião foi explícito,
confirmando a posição de Tonico, isto é, “suas famílias não fazem isto; elas não rezam”.
286
idealmente é contemplada a morte por velhice, como conclusão de uma etapa na história
de uma pessoa – etapa esta instituída durante o Ára Ypy. Embora em minha experiência
de campo não me tenha deparado com casos deste tipo, pode ser também que, em
algumas situações, ocorra que parentes manifestem uma atitude solidária com essas
pessoas, contribuindo com ñembo’e para favorecer a ascensão. Pelo menos após o
sétimo dia da morte de um indivíduo, utilizando-se de um calendário decorrente do
cristianismo, os Kaiowa costumam, justamente, entoar ñembo’e e, em alguns casos,
também litanias típicas do mundo religioso paraguaio e fronteiriço, com o claro escopo
de tornar mais fácil o retorno do ayvu para seu yváy de origem. Este tipo de atitude
torna-se obrigatória em casos em que a pessoa haja perecido por morte violenta, como
homicídio ou suicídio (algo que, como vimos, é também interpretado como sendo um
assassinato).
Contudo, que se constatar que a objeção central de Tonico, partindo de uma
experiência de vida e de uma reflexão científica, coloca em evidência o fato de que não
podemos generalizar certos tipos de comportamentos, e muito menos afirmar que os
Guarani enfrentam a morte como sendo algo totalmente positivo, assim como Melià e os
cônjuges Grünberg declaram com ênfase. Com efeito, ao menos entre os Kaiowa das
áreas onde pesquisei, geralmente, até que se prove o contrário, toda morte é considerada
como produzida por fatores externos e não por causa “natural”, na maioria dos casos
sendo apontanda como sua origem a feitiçaria
158
.
Acredito que existe um equívoco de fundo nesta questão uma vez mais devido
à projeção de aspectos idealísticos (normativos) sobre a realidade prática. Assim, não
podemos confundir a origem e a causa da morte com a tentativa dos parentes de querer
que, uma vez constatada a impossibilidade de curar o sujeito, pelo menos seja
favorecido o traspasse da alma. Nestes termos, a segunda situação não teria como
escopo a de considerar a morte como algo positivo, mas ao contrário, algo não mais
evitável.
que se considerar que para os Kaiowa as relações sociais e políticas
apresentam sempre certo grau de periculosidade. As alianças estabelecidas por afinidade
158
Já Müller (1989: 105) relatava que todas as doenças e mortes repentinas são atribuídas pelos Guarani à
feitiçaria, sendo provocadas lutas e violentas vinganças.
287
são sempre instáveis
159
, sendo possível que até cunhados, genros e sogros se tornem
inimigos entre si, como vimos no exemplo relativo à área denominada ficticiamente de
Pindoty. As fofocas permanentes, que preenchem grande parte dos tempos de
socialização cotidiana, apresentam as relações sociais e políticas como um cenário de
guerra. Isto corrobora a inversão do aforismo de Clausewitz realizada por Foucault
(1992: 29), o qual coloca a política como sendo a guerra continuada com outros meios.
Neste caso específico, pode-se ir além do teorizado pelo filosofo francês, afirmando que
para os Kaiowa a política não é o único meio através do qual se continuidade à
guerra, sendo os poderes mágicos elementos importantes no estabelecimento de
verdadeiras batalhas entre indivíduos e grupos.
No capítulo 2 foi levantada a hipótese de que o canibalismo entre os Guarani
teria sido transposto para o plano da feitiçaria; agora parece-me oportuno completar esta
suposição com outros aspectos mágicos, referentes a técnicas de guerra que utilizam
armas “invisíveis”, porém altamente fatais. Os Kaiowa reputam que há não muito tempo
(algumas cadas) eram largamente utilizados por xamãs e guerreiros ñembo’e
específicos (denominados juru tata: “boca de fogo”)
160
para conduzir batalhas (ñorairõ)
e determinar vinganças (teko repy). Geralmente proferida com vento a favor, este tipo
de oração objetiva lançar flechas invisíveis contra os inimigos, com o escopo de matá-
los. O vento, no caso, tem a função de transportar o projétil lançado até o alvo. Os
ñanderu afirmam que hoje os deuses não lhes permitem mais usar estes ñembo’e, nem
de ensiná-los aos mais jovens. Porém, eles também se referem aos juru tata indicando
que as técnicas de feitiçaria (paje vai), em sendo o resultado das ações contrárias à
vontade das divindades supremas, continuariam sendo ainda muito praticadas na Terra.
Nestes termos apontados, teríamos, portanto, que hoje a guerra estaria reduzida
às relações de vingança e contra-vingança geradas pela prática e pela acusação de
feitiçaria, e às disputas políticas. No primeiro caso, se faz uso exclusivo de técnicas
mágicas negativas, sendo que, no segundo, além destas, é muito comum o recurso a
sortilégios e amuletos (pajei, týra) considerados como de magia positiva (paje porã).
159
Sobre o argumento, ver também L. Pereira 1999.
160
Outras denominações são ñe’e tata (“palavras de fogo”), ñengarai (forma contraída de ñengáry vai) e
teko papa (cf. Schaden 1974: 126).
288
Os feiticeiros (paje vai járy) não se diferenciam formalmente dos demais xamãs:
eles podem se comunicar com seres invisíveis através de ñengáry e proceder à cura de
indivíduos. A rigor eles são ñanderu (ou ñandesy) como todos os outros, a diferença
sendo determinada pela sua formação que não é devida a divindades do além Yvy
Rendy, mas a seres malignos, situados aquém dessa linha divisória. É obvio que
nenhuma pessoa admitirá manter comunicação com espíritos malvados, o que indica
que a posição de feiticeiro é contextual e relacional, e não permanente
161
. De fato, um
indivíduo pode ser considerado como prestigioso xamã, sempre havendo, no entanto, a
suspeita dele poder vir a manter relações clandestinas com ma’etirõ cuja utilidade se
tornará evidente no momento em que ocorrer um determinado fato que, por sua vez,
leve um seu rival ou inimigo a acusá-lo de feitiçaria.
Pode-se dizer que entre os Kaiowa o feiticeiro é aquele que faz um uso negativo
dos poderes xamanísticos em sua posse, passando a utilizar técnicas específicas,
predatórias, o que contrasta plenamente com as que atualmente se consideram ser as
práticas lícitas dos ñanderu. Com efeito, os xamãs ganham prestígio e consideração em
virtude de suas capacidades de conciliar pessoas e grupos, buscando caminhos para
determinar alianças e alicerçar relações de reciprocidade, especialmente durante as aty
guasu (reuniões), sejam comunitárias ou inter-comunitárias. Eles não podem ser
interpretados como sendo guerreiros, mas como moderadores e diplomatas. Porém,
que se observar que seus poderes, assim como os das divindades que eles evocam,
podem ser requisitados em circunstâncias críticas, claramente marcadas por confrontos
bélicos. Assim, é comum a participação dos xamãs durante a luta para a recuperação de
terras, onde o enfrentamento com o colonizador se faz mais evidente. É voz corrente
161
Difere, portanto, do relatado por Evans-Pritchard (1976) para os Azande. Entre estes existiria uma
distinção bem precisa entre “nobres” (Avongara) e “plebeus”, os primeiros não podendo integrar
feiticeiros. Deste modo, de maneira alguma o oráculo (um dos meios para detectar a origem de um
feitiço) poderia apontar um nobre como agente desse tipo de mal. O autor indica também que o oráculo
apresenta-se como “neutro”, sua predição não podendo ser normativamente contestada, adquirindo um
papel jurídico, como uma espécie de tribunal. A não contestação dos resultados é, em certa medida,
garantida justamente através do deslocamento do controle sobre o oráculo para uma categoria de pessoas
que não pode incluir feiticeiros, algo que permite aos Avongara exercer seu poder sobre o resto da
população, contribuindo para a regulação dos conflitos. Para os Kaiowa, ao contrário, não existindo um
ordenamento hierárquico entre as famílias extensas e todas elas podendo integrar xamãs e feiticeiros, a
acusação de feitiçaria faz coincidir geralmente a facção acusadora com aquela julgadora do evento, a
regulação do conflito sendo determinada através de uma relação de vingança (teko repy) e da manutenção
de uma guerra continuada entre famílias inimigas, assim como através da produção de eventuais novas
facções.
289
entre os índios o fato de que determinados fazendeiros que faleceram durante conflitos
fundiários e/ou que tiveram desgraças em família sofreram as conseqüências das
ações de determinados ñanderu, especificamente convocados para tal propósito. Os
Kaiowa atribuem o sucesso obtido nesses casos à intervenção de divindades, cuja
efetivação teria sido possível através dos ñengáry dos ñanderu, descartando-se, assim a
possibilidade de que os xamãs tivessem utilizado juru tata, técnicas estas que, como
vimos, teriam sido proibidas pelos deuses. Contudo, que constatar que existe sempre
certa ambigüidade nas afirmações dos índios, uma vez que a negação do uso de juru
tata parece ser mais que tudo uma defesa da neutralidade axiológica do xamã,
salvaguardando-se, assim, do ponto de vista normativo, seu papel singular frente aos
outros indígenas, cujos comportamentos durante as batalhas podem claramente
manifestar hostilidade e violência. É muito comum, durante o processo de luta, estes
últimos afirmarem metaforicamente que vão comer” os inimigos (ja’u huguy
162
), algo
que permite traçar claramente um paralelo com os atos de canibalismo, outrora
concretamente praticados por estes índios. Como um ato de antropofagia (isto é, de se
comer) é também interpretada a morte perpetrada através de uma ação violenta
(decorrente de brigas, por exemplo).
Fica, portanto, clara a existência de um comportamento ético apropriado para o
ñanderu, ao qual não é licitamente (normativamente) permitido manter uma postura
predatória. O feiticeiro, por outro lado, é, por definição, a sua antítese. Neste sentido, as
técnicas utilizadas serão voltadas para agredir e eventualmente matar a vítima escolhida.
Visto que a predação por excelência é o ato canibalesco, a prática da feitiçaria é
interpretada como uma ação que objetiva matar e comer (juka hembia) não
metaforicamente, mas realmente o indivíduo predestinado. Vejamos, então, algumas
modalidades de execução, detecção e contraste do ato de feitiçaria, e seus possíveis
desfechos.
Galvão (1996 [1943]) é o autor que nos oferece mais informações sobre as
técnicas de feitiçaria adotada entre os Kaiowa e Ñandéva de Mato Grosso do Sul. Em
seu diário de campo relativo à sua estadia na reserva de Takuapiry, o autor relatava que
162
Literalmente “comer o sangue”, entendendo-se com isto, comer até o sangue e não apenas esta
substância.
290
O pohã rajara, feiticeiro, quando quer fazer pohã ray, utiliza-se de qualquer
resto de comida (mandioca, batata etc.), jogada fora ou deixada cair pela futura
vítima. Um menino é que apanha os restos, de modo aos outros não perceberem. De
posse de um pedaço de resto de comida, o feiticeiro vai para a mata, onde cava um
buraco do tamanho do antebraço. O pedaço é envolto em qualquer wirapire, pano, e
atravessado com pedaços de pau ou espinhos. Segundo versões diferentes, é
enterrado ou posto para secar sobre o fogo, a maioria das vezes, ao que parece, é
enterrado. Assim que começa a secar ao fogo, ou imediatamente após enterrado,
conforme o caso, a pessoa começa a sentir os primeiros sintomas, ficando doente. A
vítima treme muito, tem febre e sente pontadas, devido aos paus atravessados. O
feitiço se aloja abaixo do último par de costelas, dos lados. Justino diz que esta parte
se chama hianga. A vítima morre em pouco tempo, pois não consegue se alimentar,
tudo que come, vomita. Vomita sempre e, então, acaba morrendo. No primeiro dia,
sente-se muito mau, e “não enxerga nada”. No segundo dia, está pior ainda, mas, “aí
começa a enxergar”. A vítima parece ver a aproximação do feiticeiro e o reconhece.
O feiticeiro é visto pela vítima, saindo de casa, aproximando-se e, de repente, caindo
de quatro patas e transformando-se num cachorro, que, então, salta em cima da
vítima. Neste momento, a vítima fica morta, só melhorando quando o pohã rajara se
afasta. (1996: 217-18).
Da mesma forma que Schaden, a quem os índios se negaram a contar técnicas
sobre como fazer feitiços (Schaden 1974: 126), eu também não tive acesso a tal tipo de
informação. Isto sobretudo porque evitei dirigir perguntas neste sentido, cuja resposta
poderia imediatamente colocar os informantes sob a suspeita de serem feiticeiros (ou
seus parentes). Com relação aos sintomas e às modalidades de diagnosticar sobre a
origem do mal, assim como os modos de o feiticeiro se manifestar e as práticas
utilizadas para contrastar sua obra, a atitude dos informantes muda significativamente.
No caso da referida área de nome (fictício) Pindoty e na reserva situada em suas
proximidades, os índios
163
confirmaram o narrado por Galvão no trecho citado, sobre o
fato de o agressor se apresentar na frente do enfeitiçado sob forma de um animal
carnívoro. Neste caso não se trataria, porém, de um cachorro
164
, mas de um monstro
(vicho vai) de forma parecida com a de um lobo guará (guara guasu). Jorge Sárate
comparou-o a um lobisomem, que pode andar tanto em duas como de quatro patas.
163
Em se tratando de informantes das mesmas terras indígenas consideradas no exemplo utilizado para
ilustrar um processo de cura, ao longo deste item recuperarei os nomes fictícios que foram utilizados,
acrescentando outros conforme a descrição de fatos que envolvem casos de feitiçaria e de embates e
antagonismos entre grupos através do uso de poderes mágicos.
164
Melià et al. (1976: 249) também falam do feiticeiro como se transformando em um cão.
291
O xamã João Gonçalves, argumentando sobre o diagnóstico para verificar se
realmente se trata de feitiço, diz que o tipo de doença contraída pela vítima pode ser útil
na avaliação. As doenças repentinas, de ação lenta e dolorosa, são consideradas como de
grande probabilidade de indício de ataques de feiticeiros o mesmo sendo relatado por
Schaden (1974: 126).
Com relação à identificação do responsável, na melhor das hipóteses, a vítima de
feitiçaria localizaria o próprio agressor através de sonhos; em outras circunstâncias,
alguém teria assistido diretamente a um evento que indicaria o culpado do ato maligno.
Nestes casos, enquanto fase de identificação, a participação direta de um xamã não é
necessária; ademais, se o feiticeiro for imediatamente obrigado a desmanchar seu feitiço
(denominado pohã vai ou mohã), também o seu (do xamã) serviço como autor de
contro-feitiço (pohanõ) pode ser dispensado. Em outras circunstâncias, porém, quando o
enfeitiçado consegue apenas descrever objetos ou acontecimentos de difícil
compreensão, a presença do xamã é necessária, visto que este é quem possui a plena
legitimidade para interpretar os sonhos da vítima e de seus parentes próximos. Nestes
casos, para que a o paje vai járy seja identificado, monta-se uma espécie de inquérito,
baseado em um verdadeiro paradigma indiciário. Neste processo todos os parentes são
envolvidos, requerendo-se deles esforços de memória para lembrar fatos que possam
revelar conflitos entre a vítima (ou seu parente) e alguém, assim como eventos que
possam reconduzir as imagens sonhadas a um contexto inteligível. Uma vez
identificados possíveis suspeitos, o xamã pode tirar dúvidas aproximando-se dos
acusados, buscando identificar neles uma atitude agressiva. Se em proximidade de
alguns deles o ñanderu, por exemplo, sangrar pela boca, tudo indicaria que se trata do
indivíduo procurado.
que se considerar que a maioria dos casos interpretados como feitiçaria diz
respeito a doenças que acabaram por matar a vítima. Estas o as circunstâncias em que
seus familiares manifestam-se com maior virulência com relação ao ocorrido, e se eles
não conseguirem reconhecer imediatamente o feiticeiro, as atividades do xamã tornam-
se fundamentais para dar vida à procurada vingança (teko repy)
165
. Após a morte da
165
Müller relatava que “muerte repentina se considera siempre como efecto de hechicería del
mismo modo enfermedad repentina y grave. La comprobación de un tal efecto de hechicería tiene, por
regla general como consecuencia peleas o bien venganza sangrienta” (1989: 105).
292
pessoa, é preciso agir rápido, antes que o feiticeiro consiga retirar do corpo da vítima o
objeto introduzido através da feitiçaria – o que lhe permitia, à distância, comer o
indivíduo atacado. Segundo me informaram, após a morte da pessoa agredida, nos três
ou quatro dias seguintes, o feiticeiro está sob risco constante de ser localizado, visto que
o corpo vitimado permanece em estado quente, necesitando ser esfriado ação esta que
desmancharia definitivamente o ato de feitiçaria. Neste caso, como também relata
Schaden (1974: 126-27), o feiticeiro precisa desenterrar o corpo para levá-lo a um curso
d’água, a fim de esfriá-lo. Referiram-me também que na ausência de um rio nas
proximidades, em alternativa se deveria furar o túmulo, introduzindo-lhe água até
atingir o corpo sepultado.
Falando agora sobre as práticas de contra-feitiço (pohanõ), me foi indicado que
estas objetivam fazer com que o agressor se torne, por sua vez, vítima; não através de
uma ação parecida a por ele produzida, mas fazendo com que a mesma prática do paje
vai járy se torne perigosa para ele, chegando, em alguns casos, a matá-lo. Nestes
termos, o pohanõ funcionaria como uma espécie de espelho, que reflete e devolve o
feitiço para o remetente.
Seja em Pindoty, seja na vizinha reserva, falaram-me que uma vez falecida a
vítima, coloca-se em seu corpo cacos de vidro, pregos, arame farpado e/ou qualquer
outro objeto cortante, de modo que o feiticeiro, estando ainda comendo o enfeitiçado,
chegue a se machucar ou até morrer pelas feridas causadas pelos elementos introduzidos
no defunto pelos seus parentes. Se por acaso o feiticeiro não morrer, este ao menos
poderá ser reconhecido com mais facilidade, identificando-se nele as marcas das feridas
na boca, podendo-se assim condená-lo e puni-lo
166
, muitas vezes com pena capital
167
,
sendo ele amarrado e queimado. Se ainda assim não for possível reconhecer o paje vai
járy, não resta senão aos parentes armados fazer tocaia durante a noite nas proximidades
da tumba da vítima, buscando surpreender e matar o feiticeiro transformado no vicho
vai buscando desterrar o corpo enfeitiçado. Neste caso, as pessoas devem ser muito
rápidas em suas ações porque o feiticeiro, quando se manifesta com seus ataques, é
muito veloz, podendo facilmente cumprir com seus propósitos, passando despercebido.
166
Sobre várias modalidades de punição de feiticeiros reconhecidos antes que sua vítima faleça, sendo
estes obrigados a admitir e desfazer o feitiço, ver Galvão 1996: 220-22.
167
Cf. Melià et al. 1976: 249.
293
Dito isto, gostaria agora de narrar um episódio que me parece ilustrar bem o
nível de mobilização desencadeado por uma acusação de feitiçaria, assim como seu
desfecho. Chegando uma vez em Pindoty, tomei imediatamente conhecimento de que
Ênio, um neto de Júlio Rosati, havia-se enforcado perto do córrego localizado nas
proximidades de sua residência. Visto o estado de avançada putrefação, estimava-se
que o jovem, de cerca de 17 anos, tivesse falecido havia uns três dias. O suicídio foi
imediatamente associado a um ataque de feitiçaria, cujo autor, neste caso específico, foi
rapidamente identificado. Segundo Júlio e seus parentes, tratava-se de Ana, ex-sogra de
Ênio, a qual, desconforme com o fato de sua filha ter sido abandonada por esse jovem
para se juntar com outra mulher havia pouco mais de um mês, teria decidido matá-lo por
meio de feitiço. Todos os mobilizados não mantinham dúvida alguma sobre o fato da
suspeita ser realmente culpada, uma vez que um sobrinho de Júlio teria presenciado uma
discussão em que Ana declararara que Ênio não iria ficar muito tempo com sua nova
esposa. Ana também tinha uma reputação bastante negativa, tendo sido expulsa de um
reserva justamente sob acusação de feitiçaria.
Uma vez resolvido quem era o culpado, Enrico genro de Mário, este último
irmão de Júlio resolveu encabeçar uma ação punitiva e, juntando quase todos os
homens adultos dos dois te’yi (de Júlio e de Mário), dirigiu-se para a residência de Ana
– que vivia apenas com sua filha e alguns netos – para expulsá-la de Pindoty. A acusada
teve que deixar imediatamente o local de sua moradia e dirigir-se para outro paradeiro.
Toda a dinâmica da expulsão ocorreu na ausência do “capitão” de Pindoty, que
encontrava-se na cidade, onde acabou por deparar-se com Ana. Uma vez percebido o
ocorrido, decidiu ele recorrer à Polícia Militar, visto que as pessoas revoltadas haviam-
se armado para a ocasião, Júlio circulando por Pindoty armado de uma espingarda. O
“capitão” confiava na ação repressora da polícia, a qual efetivamente acabou por
apreender as armas e deter, por um dia, alguns dos revoltosos, algo que permitiu a Ana
voltar para sua residência. No dia seguinte, porém, os ânimos não se aplacaram, as
famílias de Júlio e de seu irmão Mário decidindo atacar novamente a casa de Ana, desta
vez para destruí-la e com isto ameaçar sua dona; ação esta que teve um imediato
sucesso, visto que a presumida feiticeira decidiu se mudar definitivamente para longe de
Pindoty.
294
O “capitão” de Pindoty manifestou-se em um primeiro momento a favor de Ana,
visto que também ele havia sido expulso junto com todo seu te’yi da mesma reserva de
onde procedia a acusada. Há que se considerar, porém, que, em um segundo momento,
frente ao ímpeto dos que se sentiram agredidos pelo que consideravam como ataques de
feitiçaria, o “capitão” recuou na tentativa de manter a acusada no local. Verifica-se,
também que Ana possuía uma posição política frágil em Pindoty, não fazendo parte de
nenhuma das principais comunidades residentes nessa terra indígena. Sua integração no
local ocorria unicamente através de laços de afinidade estabelecido por meio do
casamento de sua filha com o neto de Júlio. Nestes termos, o divórcio deste casal de
jovens, acarretou imediatamente a dissolução das relações com os Rosati e, inexistindo
outros seus parentes no local, Ana não teve respaldo político suficiente para enfrentar os
ataques. Frente aos acontecimentos, o julgamento da maioria das pessoas em Pindoty a
indicava como sendo efetivamente uma feiticeira, sua expulsão sendo algo necessário.
No caso do “capitão”, que aliás também não é originário de Pindoty, uma insistência na
defesa da acusada poderia levantar a suspeita de que ele estivesse envolvido nessas
práticas nefastas, colocando em perigo o próprio cargo.
O caso narrado apresenta um contexto de luta bastante assimétrico, um dos lados
não tendo as mínimas condições de fazer valer suas razões, que negavam as acusações
que lhes eram feitas. Esta situação é, portanto, diferente do processo antes descrito para
o caso da doença manifestada por Edna, que levou a uma troca de acusações de
feitiçaria entre os Sárate e os Gonçalves, em uma situação mais equilibrada. que se
considerar que, neste caso, seja Edna seja Jorge alvos presumidos de feitiçaria
conseguiram com certa rapidez voltar a um estado de saúde satisfatório, não envolvendo
episódios irreversíveis, como a morte de indivíduos. Ocorre, porém, que em muitos
casos, mortes atribuídas à feitiçaria podem envolver grupos rivais bastante equilibrados
no tocante ao número de integrantes, influência e mobilização de força militar. Nestas
circunstâncias, como é relatado pelos índios para os períodos anteriores aos anos de
1960 (v. Brand 1997), a feitiçaria podia provocar batalhas entre famílias inimigas,
consumando-se vinganças e contra-vinganças sangrentas. Recentemente, a mobilização
de grupos inteiros em torno a episódios de feitiçaria são menos freqüentes e dificilmente
295
têm como desfecho o desencadear-se de enfrentamentos armados em grande escala
168
.
Em certa medida, a interferência dos organismos indigenistas e das forças policiais do
Estado brasileiro nas disputas indígenas inibem (mas não erradicam) estas batalhas.
que se considerar, porém, que por outro lado, como os próprios Kaiowa indicam, o
número de casos de feitiçaria produzida por feiticeiros índios internos às terras
indígenas teria diminuído muito nos últimos tempos, algo que justificaria a
relativamente recente ordem dos deuses, de não se praticar e/ou ensinar juru tata;
técnica esta que, como vimos, era antigamente utilizada nas relações de vingança.
A diminuição de feiticeiros índios nas áreas e reservas indígenas não significou
uma diminuição da feitiçaria. Muito pelo contrário, este fenômeno tornou-se mais
complexo, envolvendo relações interétnicas e a incorporação, nos circuitos de atividades
mágicas, de cidades e vilarejos localizados nas proximidades dos assentamentos kaiowa.
No caso específico de Pindoty e da reserva vizinha, a relação privilegiada é
principalmente com curandeiros (indígenas e não) residentes na cidade de Tatuí, estes
procurados tanto para práticas de cura (como vimos para o caso de Edna) quanto para
realizar feitiços e sortilégios com o objetivo de prejudicar ou beneficiar alguém. Os
índios nos tekoha temem particularmente a prática realizada por aqueles que
denominam de saravazeiros, apavorando-se quando se deparam com o indício de uso de
velas pretas ou escuras (elementos nefastos, indicadores de feitiços). Afirmam que,
como ocorre no caso de feiticeiros internos às terras indígenas, o feitiço deve ser
desmanchado pelo próprio autor, mas este, se encontrando em um local fora de alcance
militar do grupo atingido, dificilmente poderia ser pressionado para retirar sua agressão.
No caso em que este seja “paraguaio”
169
, existiria também a agravante de os xamãs não
terem condições de realizar contra-feitiços para induzi-lo a se manifestar e/ou para que
168
Em minha etnografia, não tive ocasião de presenciar o desencadear-se de um nível tão elevado de
conflito armado. Contudo, em Pindoty, no ano de 1999, os fortes atritos estabelecidos entre membros dos
dois grupos originários do lugar (os Sárate e os Perez) levaram à aglutinação de pessoas dos Perez a fim
de mobilizar uma ação punitiva contra membros dos Sárate, estes acusados de terem matado, por meio de
feitiçaria, uma filha de um tamõi da família rival. A mobilização levou a alguns episódios violentos com o
uso de yvyrapara (bastão de guerra), acarretando porém apenas ferimentos sem maior gravidade nos
agredidos. Com o correr de um ano, dada a morte do referido tamõi, os ânimos foram se aplacando,
configurando-se assim outras relações em Pindoty. A nova situação levou também à reinterpretação da
morte antes entendida como por feitiço, como uma equivocada atividade de cura do sujeito defunto por
parte de seus próprios parentes, estes últimos acabando por se convencer desta versão dos fatos.
169
Termo utilizado para indicar indivíduos não-indígenas de fala guarani.
296
suas ações se lhe voltem contra
170
. Estas especificidades dos curandeiros urbanos levam
à redefinição da organização do campo de batalha indígena, uma vez que hoje é possível
deslocar para estas figuras muitas delas local e politicamente “neutras” a função de
perpetrar feitiços e/ou proferir rituais mágicos cujos efeitos se manifestem nas terras
indígenas. Nestes termos, em certas circunstâncias, alguns destes magos podem ser
contratados indistintamente por um ou outro grupo indígena em conflito entre si.
A título de exemplo, segundo me informaram em Pindoty, nas últimas eleições
municipais e para o cargo de “capitão”, na vizinha reserva, grupos rivais lançaram mão
de um único curandeiro de Tatuí, dando vida a uma batalha de feitiços e contra-feitiços.
O grupo que pretendia evitar a reeleição do atual “capitão” teria feito um pedido para o
referido curandeiro obstaculizar o candidato. Ocorreu, porém, que logo depois o próprio
“capitão”, recompensando esse mesmo curandeiro com uma soma mais conspícua, teria
conseguido que fosse desmanchada a prática mágica que o prejudicaria, conseguindo se
reeleger; além disso, fez ele um pedido para enfeitiçar um indivíduo do grupo rival, com
o escopo de impedir sua eleição ao cargo de vereador, feitiço este entendido pelos
índios como tendo sido eficaz, visto que o indígena em questão não conseguiu ser eleito
para a Câmara Municipal.
No caso de Pindoty e arredores, não consegui informações sobre episódios de
feitiçaria causados por não-indígenas que teriam provocado a morte de pessoas. Em
outros lugares, as mortes de líderes como Lázaro da área de. Pirakua, Dom Quitito, de
Marangatu, e Paulito de Panambizinho, foram interpretadas por alguns como tendo sido
causadas por ataques de feiticeiros “brancos”.
Há que se salientar o fato de que, paralelamente ao uso dos poderes mágicos que
agem diretamente sobre os indivíduos que se pretendem obstaculizar ou até matar,
existem também práticas positivas voltadas a fortalecer ou produzir qualidades na
pessoa que as está requisitando e/ou se defender de ataques de inimigos, espíritos
malvados e feiticeiros. Seja procurando curandeiros urbanos, seja requisitando-se
170
A explicação desta impossibilidade técnica remete à clivagem étnica produzida pela divisão das que
defini como sendo duas esferas de relacionamento cosmológico (v. item 9.3). Os índios afirmam que esta
impossibilidade é recíproca, também os “brancos” não tendo a possibilidade de atingir os xamãs
indígenas. que se constatar que paralelamente à procura indígena de curandeiros nas cidades, existe
uma ampla demanda de operadores mágicos índios, residentes nos tekoha, estes recebendo visitas
constantes para interferir em questões que dizem respeito ao mundo não-indígena.
297
xamãs, podem-se obter amuletos denominados cachumbita, irû (companheiro) e/ou
paje’i –, colocados em saquinhos e pendurados no pescoço ou em outros lugares do
corpo, ou ainda na residência ou em outras localidades que o beneficiário julgue útil
para seu propósito
171
. Nestes termos, o indivíduo pode ter maior eficiência e velocidade
nas atividades manuais (trabalho nos ervais, derrubada de mato, corte da cana nas usinas
de álcool, atividades de caça e pesca, entre outras), mais eficácia nas lutas políticas,
mais sucesso nas relações amorosas, maior resistência frente às agressões sofridas etc.
Gostaria de voltar agora a argumentar sobre a pouca importância dada, nos
estudos sobre os Guarani, aos fenômenos mágicos, enquanto elementos que permitem a
compactação de grupos em torno da necessidade de se defender, atacar ou contra-atacar.
Eles contribuem para a manutenção de um estado constante de conflito, uma guerra
combatida através de meios invisíveis, mas não menos efetivos. Como bem observava
Simmel (1964), o conflito, ao invés de ser um elemento desagregador, desempenha
papel contrário, permitindo justamente que os seres humanos construam solidariedades
de grupo. A meu ver, entre os Kaiowa as armas mágicas contribuem para determinar,
renovar ou redefinir alianças entre famílias, reforçando lógicas de pertencimento a
grupos específicos. Melià et al. (1976), ao contrário, consideram o manifestar-se do
fenômeno da feitiçaria como sendo sintomático de anomia social. Os autores, como
membros do Projeto Paî-Tavyterã, afirmavam que a única coisa que podiam fazer era
…prevenir y combatir las enfermedades supuestamente causadas por mohãy
[…] y apoyar a los Paî que muestran dudas sobre la causa mágica de las
enfermedades que afligen a miembros de su tekoha. Así podemos ayudar a los Paî
responsables a disminuir los casos de paje vai reconocidos y dar más seguridad y
estabilidad a las comunidades. Cuanto mejor sea la salud de los Paî, tanto menos
mohãy habrá y con eso menos necesidad de aplicar medidas que en sus
consecuencias sociales son totalmente negativas. (Melià et al. 1976: 249-50 ênfase
minha).
Mais uma vez me parece que os autores dão excessiva relevância aos aspectos
normativos, que atribuem evidentemente um papel negativo à feitiçaria, entendida como
171
Escreve Müller que “el hechizo se mete em un trapo o en una bolsita de piel de animal, llevado como
amuleto al cuello, o en un punta del vestido o en la bolsa de piel, o descubierto en una cuerda al cuello o
llevado en la mano, o como sea, a la cercanía de aquel sobre el cual debe obrar; por ejemplo puesto bajo
su yacija o escondido bajo el techo de la casa…” (1989: 105).
298
elemento causador de doenças. Deve-se observar também que, como os próprios
indígenas apontam, em períodos passados (antes dos anos de 1950), os casos de
feitiçaria teriam sido mais numerosos, o que provocava batalhas sangrentas. Nestes
termos, utilizando-se como parâmetro o manifestar-se da feitiçaria, seria bastante
contraditório referir-se à situação dos anos de 1970 e às décadas que se seguem como
sendo mais “anômica” com relação ao passado.
Combater a feitiçaria com a pretensão de dessaraigá-la como fenômeno era (e é)
uma das maiores tarefas das atividades missionárias. No caso específico dos Guarani de
Mato Grosso do Sul, para tal propósito, sempre que possível os missionários têm-se
apoiado e estabelecido alianças com famílias indígenas, estas últimas procurando
contrastar os feiticeiros identificados em integrantes dos grupos rivais
172
. Com relação
ao período colonial, como observa Wilde,
…el hallazgo reciente de dos sumarias por “maleficios” en uno de los treinta
pueblos de Misiones guaraníes [Loreto
173
], ambas posteriores a la expulsión de los
jesuitas, pone en jaque varios de los supuestos asumidos hasta ahora sobre las
características de la vida interna de las reducciones jesuíticas de esta parte de
América. Uno de esos supuestos es que la “hechicería” había sido eliminada por los
jesuitas en el siglo XVII. Nueva evidencia demuestra que, aunque con un nuevo
sentido, una gran cantidad de estos conocimientos y prácticas se preservó en las
reducciones. Los mismos no sólo circulaban con cierta fluidez por los pueblos sino
que eran, en su mayor parte, guardadas en secreto por los mismos jesuitas (2005: 1).
Os documentos encontrados trazem à tona aspectos importantes para a
compreensão da natureza política das práticas de feitiçaria, visto que ambos os casos
tratados dizem respeito a atos mágicos direcionados a atingir indígenas que ocupavam
cargos de relevo na organização das reduções (Wilde 2004 e 2005). Permitem eles ainda
entender que os jesuítas, por séculos, fizeram o possível para negar o fenômeno. Wilde
destaca também nesses trabalhos a atitude das autoridades coloniais da época em
legitimar uma certa medicina indígena, destinada exatamente a curar indivíduos e não a
172
Para um exemplo deste tipo de configuração política e de ação mágica, ver adiante (no item 12.2) o
caso da intervenção da Missão Evangélica Caiuá na reserva de Sassoró, nos anos de 1970.
173
“Las sumarias se encuentran en un legajo del Archivo General de la Nación. La primera lleva por
título ‘Copia de la Sumaria que hizo Don Francisco Bruno de Zabala siendo Gobernador de los Pueblos
de Misiones contra Don Cristobal Guray y Silverio Caté por maleficios’. La segunda ‘Sumaria remitida
por Don Francisco Piera contra Marías Mendoza, Don Cristobal Guiray y Silverio Caté del Pueblo de
Loreto por maleficios’. Loreto, 1777-1781. AGN IX.32.1.6.” (Wilde 2004: 1).
299
prejudicá-los. Em 1770 o jesuíta Cardiel se expressava sobre estes operadores médicos
do seguinte modo:
El cuidado en lo espiritual de los enfermos, y la caridad en lo temporal es
grande. Para esto hay en el pueblo tres o cuatro indios, que como apunté llaman
curusuyá, el de la cruz, porque siempre lleva como por váculo una cruz de dos varas
en alto, y gruesa como el dedo pulgar. Estos desde pequeños aprenden a curar y
hacer medicamentos o medicinas (…) (Cardiel apud Wilde 2004: 14).
Desta forma, a partir da ideologia cristã, os jesuítas têm demarcado uma nítida
distinção entre aspectos espirituais e curativos de certos indivíduos, por um lado, e
aqueles demoníacos, por outro, estes últimos atribuídos formalmente sempre aos grupos
não missionarizados
174
. Assim, a divisão realizada por estes religiosos entre religião e
magia acabava também por reproduzir categorias diferenciadas de operadores destas
duas formas de se agir sobre o Cosmo. Seguindo-se esta lógica, seria de fato impossível
se pensar que, dependendo da situação e dos pontos de vistas manifestados em um
determinado contexto, uma pessoa possa ser considerada ora um kurusuja
175
, ora um
feiticeiro. As súmulas, indicando a natureza individual e o caráter oculto das práticas de
feitiçaria, são, a meu ver, ilustrativas não de uma distinção entre diferentes categorias de
operadores (religiosos versus feiticeiros), mas de uma contraposição entre
manifestações públicas, baseadas em um arcabouço normativo legitimado pelo poder
vigente, e outras privadas, motivadas pelas disputas entre famílias rivais. Não podemos
nos deixar guiar pelo roteiro criado pelas fontes, cujo norte é estabelecido, na maioria
dos casos, pela ideologia missionária. Nestes termos, parece-me mais provável que os
índios, na experiência reducional, frente a um interlocutor refratário à compreensão das
ambivalências nos usos de práticas mágico-religiosas, tenham sido levados a ocultar
174
Montoya (1985[1639]), por exemplo, dedica amplo espaço para caracterizar os xamãs guarani não-
reduzidos como feiticeiros a serviço do demônio.
175
De kususu (cruz) + [járy] (dono) = “dono da cruz”. Os Kaiowa, entre os Guarani contemporâneos,
são os únicos que utilizam cruzes e varas insígnias, podendo se traçar certo paralelismo com os kurusuja
do período jesuítico. Como se verá nos próximos dois capítulos, sejam as cruzes, sejam as varas insígnias,
entre estes índios, são elas feitas com diferentes tipos de madeiras, o que lhes confere maior ou menor
poder mágico. Dependendo do uso feito desses instrumentos, podem-se ter efeitos tanto positivos quanto
negativos. A forma do objeto é também subordinada à substância; por exemplo, uma cruz de madeira
yvyra paje (Myrocarpus frondosus) não possui os poderes de uma vara insígnia de chiru (Myroxilon
peruiferum).
300
certos aspectos, exaltando outros. As práticas predatórias, associadas ao canibalismo e
às atividades bélicas, o poderiam não ser condenadas pelo poder dos jesuítas; as
lógicas de mútuo apoio entre as pessoas, por outro lado, podem ter sido favorecidas
pelos missionários e conceituadas através da tradução da noção cristã de “amor” pela
palavra guarani “mborayhu”.
Tentando uma comparação entre os Guarani e os Tupi da região amazônica,
Fausto (2005) levanta a hipótese de que entre os primeiros
o contato com o cristianismo missionário e a experiência colonial conduziram
a uma crescente negação do canibalismo como fundamento do poder xamânico e da
reprodução social, processo ao qual podemos dar o nome de "desjaguarificação".
Sugerirei, ainda, que esse esquecimento do canibalismo abriu espaço para uma outra
idéia-chave, a do amor. (Fausto 2005: 387)
Concordo parcialmente com o autor sobre o fato de que sempre de modo
hipotético mudanças nos contextos históricos
176
podem ter levado grupos guarani a
desvalorizar, em termos normativos, o canibalismo. Discordo porém sobre o fato de que
este eventual processo teria determinado a substituição de uma ótica relacional baseada
na antropofagia por outra fundamentada na categoria do “amor” (ibidem: 398)
177
. Meu
entender é que como visto nas narrativas de Atanás, no capítulo IX as divindades,
assim como todos os seres do Cosmo, são descritos como manifestando, dependendo do
contexto, atitudes solidárias ou agressivas, isto de acordo com relações mágico-políticas
estabelecidas entre os personagens protagonistas dos relatos. Por exemplo, os Ñande
Rykey devem cuidar dos Ava Kaiowa, estes últimos sendo seus irmãos menores. Em
outras circunstâncias, esses mesmos Ñande Rykey são descritos como Avaete, seres que
chegam à Terra punindo, com eventos meteóricos, quem nela se encontra, sua ira sendo
aplacada através da intermediação dos xamãs. San José, por sua vez, foi morto,
176
Mudanças estas nas relações de força presentes nas interações entre os diferentes grupos indígenas em
um contexto colonial, bem como uma diminuição demográfica e o estabelecimento de um
diálogo/confronto entre índios e os missionários; ver capítulo II.
177
Em meu entender, o autor foi conduzido a erro por ter se balizado por uma específica bibliografia de
apoio. Suas conclusões resultam de reflexões a partir de uma literatura sobre os Guarani, a qual defini
como produzida por um “filão cristão” De fato, este filão tende a enfatizar as conceituações religiosas dos
índios associáveis à noção cristã de “amor”, contribuindo, paralelamente, para a ocultação de outros
elementos importantes na determinação das relações cosmológicas.
301
fulminado, durante a troca de raios produzida pelos Ñande Rykey. Pa’i Kuara e Jasy,
antes de descobrirem ter sido enganados pelos jaguarete ypy (as onças do princípio),
mantinham com estas uma relação solidária, caçando e coletando frutas para os que
pensavam serem seus familiares; uma vez percebido o engano, os irmãos descobrindo
não serem de fato parentes das onças, enveredam para levar a termo a legítima
vingança, tentando aniquilar os que ora demonstravam-se inimigos, responsáveis pela
morte da mãe de Pa’i Kuara e Jasy.
Podemos constatar que os exemplos aqui expostos apontam para o delineamento
de uma distinção entre os comportamentos mantidos com os aliados por parentesco e
aqueles manifestados perante inimigos. Quando se trata de parentes, a solidariedade de
grupo é idealizada e expressa através do conceito de teko mbojeko porã (o bom modo de
ser fundamentado no apoio mútuo). Nestes termos, o “amor” pode ser considerado um
elemento importante, não no sentido cristão de manifestação de um sentimento de
carinho desinteressado, relacionado muitas vezes ao sacrifício individual, mas como
elemento que permite o reconhecimento da pessoa como parente. Um dos papéis dos
xamãs é justamente permitir que os Ñande Rykey reconheçam os Kaiowa como seus
irmãos e, portanto, não os cacem como inimigos. Este reconhecimento, observe-se,
assim como as alianças entre grupos, não pode ser considerado como definitivo, tendo
que ser continuadamente legitimado. que se considerar o fato de que a relação
vertical estabelecida pelos xamãs com as divindades coloca em comunicação estas
últimas com as famílias kaiowa às quais esses operadores rituais estão vinculados. Isto
quer dizer que, embora idealisticamente a ação do nanderu seja a de favorecer todos os
Kaiowa, na realidade ele estará agindo em benefício de seu grupo, o qual considera
outras famílias como inimigas. Nestes termos, a comunidade em questão procederá a
acusar os xamãs de seus inimigos de terem se “formado” através da relação vertical não
com os Ñande Rykey, mas com os espíritos malvados, tornando-se, portanto, um
feiticeiro algo que ficará mais claro no próximo capítulo. Quando então são
identificados feiticeiros e inimigos, as relações com estes não são determinadas através
de uma lógica do amor mútuo, como entre parentes, mas manifestando conflito bélico.
Assim, os integrantes do grupo podem se vingar das ofensas sofridas, utilizando meios
militares, juru tata e/ou requisitando a intervenção dos deuses neste último caso,
advogando-se que os supostos inimigos estariam abraçando o teko vai (o modo negativo
302
de ser), o que insinua que eles não seriam mais identificáveis como irmãos pelas
divindades supremas.
Pode-se concluir, portanto, que os Kaiowa combinam atividades xamanísticas
centradas no reconhecimento de parentes e outras baseadas na oposição entre parentelas,
as primeiras, de natureza não agressiva, as segundas eminentemente predatórias,
podendo-se nelas incluir também ações mágicas canibais, como as perpetradas por
feiticeiros. As batalhas, como vimos, prevêem também ações que são entendidas pelos
índios como sendo, metaforicamente, agressões antropófagas e hematófagas
178
. É
portanto através da combinação de todas estas diferentes atitudes e não da substituição
de uma pela outra que se deve, a meu ver, compreender a reprodução das relações e dos
grupos sociais entre os Kaiowa.
178
Lembro que o espírito familiar (o tupichúa), que participa da determinação do temperamento do
indivíduo, pode ser um predador, caracterizando a atitude bélica de um guerreiro. É interessante o fato de
que Montoya (1876: 404) traduz o termo tupichúa tanto como espírito familiar, quanto como feiticeiro.
303
Capítulo XI
O xamã
Como tem sido possível apreender ao longo desta parte, o xamã tem um
importante papel na interpretação das características do Cosmo e suas mudanças, bem
como na formação de uma moral e uma ética específicas (teko porã), e ainda na
definição e estabilidade emocional-afetiva da pessoa kaiowa (por meio de mongarai,
processos de cura e no diagnóstico e combate à feitiçaria). Tal atuação contribui para
que as famílias extensas possam ter uma percepção do mundo atualizada, o que lhes
garante a possibilidade de realizar atividades práticas e simbólicas consideradas
eficazes. Não cabe dúvida, portanto, que os saberes possuídos pelo xamã, assim como
sua organização e uso, são extremamente importantes para a tradição de conhecimento
desses indígenas. A maior parte dos autores que se ocuparam dos Kaiowa, assim como
de outros grupos guarani, privilegiaram analisar os conteúdos e as práticas derivantes
desse conhecimento, não dando muita relevância aos mecanismos que permitem sua
reprodução, diversificação e mudança. Schaden, porém, parece representar uma exceção
neste sentido. Embora sumariamente, este autor tentou avançar algumas explicações
sobre a existência de grandes variações nos depoimentos e manifestações rituais destes
índios. Assim, para tal ele apresentou duas causas:
“Primeiro, o caráter individual, ou melhor, individualista, da religião
Guarani. Por destacada que seja a importância social das cerimônias religiosas e,
vice-versa, o significado religioso das manifestações principais da existência
comunitária, cumpre não menosprezar o extraordinário papel da vivência religiosa
individual, pois em qualquer circunstância pode a pessoa entrar em contacto com o
sobrenatural, recebendo consolação, conselhos e revelações das divindades ou dos
espíritos protetores, isto é, cada qual tem as suas experiências religiosas próprias, de
acordo com o caráter e os pendores sticos de sua personalidade. Assim, no
decorrer dos anos, vai formando sobre o fundo doutrinário comum, evidentemente
– a sua própria concepção do mundo, o seu sistema interpretativo, com inovações ou
“aberrações” mais ou menos “heterodoxas”, de acordo com as suas tendências ou
experiências pessoais. Segundo León Cadogan, que encontrou dificuldades
semelhantes em suas pesquisas entre os Mbüa do Paraguai, fixidez e
uniformidade notáveis no conjunto das doutrinas secretas, privativas dos sacerdotes,
ao passo que as representações religiosas públicas estão sujeitas a grande variação.
Em segundo lugar, a multiplicidade de idéias e crenças deve ser interpretada
em termos de incongruências decorrentes de contactos com a religião cristã, de um
lado, e da fusão das diferentes doutrinas subgrupais produzida pelas migrações, que
304
levaram à formação de aldeias em que se reúnem, em uma mesma comunidade de
vida e de culto, famílias de dois ou até mesmo dos três subgrupos.” (1974: 106-107).
Aprofundando o argumentado até o momento, pretendo neste capítulo
demonstrar que a segunda causa a que se refere o autor, no lugar de ser uma influência
aculturativa, representa para os Kaiowa uma rica fonte de saberes procedentes de outras
tradições de conhecimento, o que lhes permite realizar comparações e reflexões sobre a
dinâmica do Cosmo em uma situação histórica que os dominados pelos Estados-
Nação brasileiro e paraguaio. Neste sentido, o que Schaden interpretava como
incongruências, são respostas contextuais oferecidas por informantes, politicamente
posicionados perante o pesquisador, dando sentido à realidade por eles vivenciada no
momento. O conteúdo, portanto, pode variar muito, a lógica da narrativa indígena
organizando os saberes à sua disposição seguindo as pressuposições morais, éticas e
políticas do grupo nas circunstâncias em que ele se encontra.
Fica, porém, aberta a questão de se os Guarani são individualistas na prática de
sua religião, como aponta o autor, cada indígena podendo manter uma relação
privilegiada com as divindades, formando uma opinião própria sobre o ordenamento do
mundo. Uma vez mais, embora parcialmente, devo discordar de Schaden.
É verdade que todos os Kaiowa podem ter experiências de relacionamento
cosmológico com seres como os járy (para desenvolver atividades práticas, como caça,
pesca, coleta e agricultura), os Ñande Rykey (para obter proteção durante as viagens e
outros afazeres), e os chiru (também para obter proteção, além de garantir prosperidade
e saúde). Ocorre, no entanto, que para poder discutir assuntos que dizem respeito ao
modo de ser (teko), sua interpretação e suas mudanças, bem como para interferir sobre a
realidade ao ponto de poder modificá-la, o relacionamento com as divindades deve ser
mediado e administrado exclusivamente por xamãs, únicos sujeitos que, como vimos,
podem viajar por todas as dimensões e partes do Cosmo, dialogando e interagindo com
os seres que as povoam. O xamã é, portanto, figura central na tradição de conhecimento
indígena, sendo ele quem tem a legitimidade para avaliar moral e eticamente os saberes
que circulam e estão à disposição dos índios. Os Kaiowa distinguem claramente entre
vários tipos de ñanderu, distinção que pode ser hierárquica (isto é, o xamã alcançando
vários níveis de relacionamento com as divindades) ou dicotômica (entre os neófitos
que se formam mantendo relação com os deuses e aqueles outros que obtêm
305
conhecimentos e técnicas de cura através do contato com seres malignos, tornando-se
feiticeiros). É óbvio que, como visto, esta última condição será sempre atribuída a um
inimigo, nenhum ñanderu aceitando este rótulo. Deve-se ressaltar, todavia, que os
critérios através dos quais se operam as distinções remetem diretamente a uma avaliação
do comportamento mantido pelos neófitos durante sua formação e trajetória de vida,
assim como à eficácia que resultará da aplicação dos conhecimentos e técnicas de cura
adquiridas pelo novo ñanderu.
11.1 A formação
A formação do xamã não é algo que diz respeito tão somente à aprendizagem de
conhecimentos e técnicas por parte do neófito. Este processo coloca em jogo toda uma
gama de fatores emocionais e de natureza onírica, a relação entre mestre e aprendiz
apresentando características psicológicas peculiares. Para evitar perder a carga emotiva
que este processo manifesta, em lugar de descrever “friamente” suas fases, prefiro uma
vez mais dar a voz a Atanás, ele próprio nos oferecendo um vivo testemunho de sua
formação, unido este a importantes comentários sobre sua relevância e sobre os perigos
enfrentados durante essa experiência. Na seqüência, aportarei outras informações,
procedendo também a tecer algumas observações analíticas.
“Desde criança a minha família me preparou para ser ñanderu, me
acompanhou em todas as fases de preparação e purificação do meu teko, o meu
ser, tomando-o, assim, como teko marangatu, o modo de ser sagrado. Foi feita
para mim uma pequena cruz de yvyra paje, que não é chiru
179
.
Durante essa fase comecei a ver os invisíveis, isto é, o que não pode ser
visto pelo homem comum, ou seja, sem os olhos purificados. No início me dava
muito medo ver e ouvir os seres invisíveis, os seus movimentos, vozes entre eles.
Vi os seres invisíveis que andavam à noite, que andavam debaixo das folhas
179
Ambas seriam madeiras procedentes de árvores leguminosas, que emanam uma perfumada fragrância.
A primeira, Myrocarpus frondosus, é conhecida com o nome vulgar de cabreúva; a segunda, Myroxilon
peruiferum, é denominada popularmente de cabreúva vermelha.
306
caídas do mato, gritando maledicências. Ao ver e ouvir esses seres, eu ficava
muito assustado, mas os meus mestres
180
que me acompanhavam nesse processo de
formação sempre me encorajavam, me ajudavam de todas as formas. Conforme a
orientação, eu não podia contar e descrever os seres que estava vendo e ouvindo,
pois chegaria o momento em que eu iria ser interrogado sobre isso. Antes eu não
podia contar a ninguém.
Um dia me ensinaram um ñembo´e que serve para plantar sementes de
milho. Fui de manhã plantar sementes. Foi-me orientado que eu tinha que
cantar esse ñembo´e durante a plantação. Eu não sabia para que era esse
ñembo´e, por isso, apenas cumpri. Fui, plantei e voltei para casa logo. Logo
depois me falaram para eu voltar para a roça e ver a semente de milho
plantada. Quando cheguei na roça, o milho tinha crescido, estava pronto
pra colheita.
Durante essa fase eu não podia comer carne dos bichos ou animais que são
preguiçosos como tatu poju, tamanduá, karaja, etc. Era proibido até tocar o
dedo nesses animais preguiçosos e lentos, que dão preguiça. Eu comia peixe,
paca, cutia, macaco, etc., os animais que são leves, rápidos, velozes, que não
são preguiçosos e lentos. A carne desses animais era a minha alimentação.
Mandioca e batata-doce eram excluídas da minha comida, porque as raízes estão
embaixo da terra, como tatu, que mora embaixo da terra. Depois de cumprir
tudo junto, comecei a rezar sozinho, mais ou menos, tinha onze anos de
idade.
Quando entrava no mato sozinho, ouvia a voz dos ma´êtirõ. Se
encontravam entre eles, o dono da cobra, o dono da lagarta, donos de todos os
males. Esses ma´etiro também rezavam. Eu ouvia também, que entendia
que se tratava do ma´êtirõ, do añáy (diabo). Para quem não sabe, parece
ñengáry de verdade. Se o formando da atenção a esses donos ou ma´etiro, pode
se formar deles, e paralisar a formação de verdade, dos Nãnde Rykey. É possível
180
Atanás refere-se a seus parentes, pais e avós.
307
ser enganado pelo poder dos ma´etiro durante essa fase, porque os seus ñengáry
são parecidos com os dos ñanderu da Terra.
Naquele momento o meu pai falou que eu podia contar no ouvido dele
e no da avó e do avô o que é que eu estava vendo e ouvindo; quer dizer,
murmurando no ouvido deles. Se contasse para todo mundo ou se todos ouvissem
a explicação de quem está se formando, poderia atrapalhar toda a formação, até
mesmo poderia ser reprovado, fazendo cair todas as asas. Se contasse a todos,
ficaria sem asas, sem poder ver e ouvir os invisíveis.
Depois de formado, depois de trinta ou quarenta anos de idade, podia
contar a todos o necessário, ou conforme a necessidade. Antes os
acompanhantes podiam comentar entre eles os seus saberes alcançados ou fazer
avaliação do futuro ñanderu.
Uma vez eu fui enganado pelo Kurupiry, dono da pedra. Ele me chamou
para me contar o ñembo’e para purificar o tempo, esfriar o fogo, as doenças, e
vestiu em mim a linha branca e a fumaça dele. Quando voltei, comecei a
passar mal, fiquei doente. Naquele momento descobri que fui enganado, que ele
não era um Ñande Rykey de verdade, era Kurupiry (um ma’etirõ). Fiquei doente
por causa desse contato. O poder dos ma’etirõ pode causar doença mental: a
pessoa cai de repente e fica gemendo, tremendo por algum tempo. Os ma’etirõ
podem atacar dessa forma se tiver o nome do Kuatiára
181
. Por isso, que os
ma’etirõ não podem saber o nome da pessoa do Kuatiára, nem podemos contar
para ele, para não atacar; se ele souber, ele domina. Se acontecer isso, precisa
pegar ou buscar o nome da pessoa de volta, ou pegar da o dos ma’etirõ. Que
nem o branco tem lista de pessoas conhecidas, ele conhece cada um; o m a’êtirõ é
igual, pode ter o nome através do Kuatiara, pode perseguir, atacar e maltratar
as pessoas e sua alma do Kuatiara.
Se a pessoa contar que ouviu a voz do Ñande Rykey logo no começo,
isso pode atrapalhar; ele pode ter ouvido ma’etirõ. Pode até mesmo se formar
definitivamente de algum ma’etirõ, que não é um Ñande Rykey. O lugar do
181
Lista em posse das divindades e de conhecimento dos ñanderu onde constam os nomes das ayvu das
pessoas.
308
ma’etirõ é bem pertinho da terra; o poder dele é mais ou menos meio metro de
altura da terra (Atanás faz o gesto, mostrando e medindo com a altura das
pernas, comparando). Porém, para ser realmente ñanderu, precisa ultrapassar
rapidamente esse local, nem pode adorar esse poder do ma’etirõ, que parece um
poder bom, mas não é. O lugar de verdade do ñanderu fica muito longe, precisa
passar por vários lugares. A sombra da terra que brilha (Yvy Rendy) fica depois.
Yvy Rendy é depois do lugar do ma’etirõ (ma’etirõyváy). O ñanderu passa por
diferentes kurusu (lugar ou aquilo que segura, suporta este lugar). Depois de
passar dos kurusu já ver o brilho dos poderes, raios e relâmpagos, mas ainda está
longe. Esses lugares são iluminados pelos brilhos dos relâmpagos, que são
poderes de verdade dos Ñande Rykey.
Quando está próximo, um dos Ñande Rykey vem te receber com seu brilho.
De longe ele brilha em tua direção e pode te purificar, isto é, ele te dá um banho
de relâmpago; neste momento você fica livre de ma’etirõ. O poder do Ñande
Rykey está em você, mas esse momento é apenas o primeiro contato. Antes de
passar por esse processo de purificação ainda não se tem o poder dos Ñande
Rykey, dos ma’etirõ. Durante e antes disso os ma’etirõ sempre vão estar te
perseguindo, através do sonho.
Abaixo da Yvy Rendy existe o lugar (yváy) dos outros seres, como cobra,
besouros. Os donos desses animais cuidam destes yváy. Esses lugares do mundo
também recebem luz igual à do Sol. Além desses lugares há ainda outro yváy,
que pertence também a um ma’etirõ. Logo depois desse lugar se encontra o
yváy da onça. O dono é invisível, quem está em processo de preparação, após
ter os olhos purificados pode vê-lo. Para quem o pela primeira vez esse dono
pode aparecer como Teko Járy (dono do teko), pois é muito parecido com ele. Os
donos das cobras têm mais ou menos cinco anos. Um é chamado Pa’i kunhambia,
da aratimbo; o dono da cascavel é Arartimbo Guasu Makangua; Kyryryu, de
outra cobra, da mboiju,. O dono da cobra mais temida é o Makangua Guasu,
isto é, o dono da Guyrõ. O dono da onça é chamado Pa’i Jurutipyu, de outro
yváy. Hoje o nome do dono da onça foi substituído; era Pa’i Jurutipyu, hoje é
Tyvyasa. Os donos das cobras também são tupã (deuses) desses lugares
pertencentes aos grupos dos ma’etirõ, eles são muito bravos, têm facilidade de
309
ficar nervosos, por qualquer coisa atacam o homem com seus poderes
maléficos. Por isso, quem se forma desses donos também são agressivos, praticam
males iguais ao sarava, faz feitiçaria; faz esse tipo de trabalho que não vai a
lugar nenhum, fica por aqui, preso na mão dos ma´êtirõ. Os Ñande Rykey estão
muito distantes desses lugares dos ma´êtirõ, por isso, a pessoa que se forma do
poder dos Ñande Rykey é muito diferente; é perfeito e puro. Os Ñande Rykey
não aceitam os trabalhos dos ma´êti e os ñanderu que têm formação dos
Ñande Rykey não gostam de fazer feitiçaria, não colaboram com ma´êtirõ. A
fala ou o som da voz dos ma´êtirõ é muito quente, deixa o lugar em estado
quente. Quando atinge o homem, deixa-o mal, doente e desequilibrado. a
palavra, o som do relâmpago dos Ñande Rykey esfria o tempo quente, purifica,
deixa o lugar livre dos males. É muito difícil alcançar os yváy dos Ñande Rykey.
Precisa, antes de mais nada, passar esses yváy dos ma´êtirõ, por isso poucas
pessoas conseguem alcançá-los.
O sapo também tem seu yváy, de onde vem a água da chuva. O yváy de
pássaros como o urutáu se localiza na divisa com Yvy Rendy. O dono deste é
añáy. O dono do urutáu é perigoso também. Ele mora na moita do mato.
Quando alguém mata suas aves ele castiga, por isso não é permitido matar
urutáu. Para não serem perseguidas, as almas dos seres animais moram no
próprio yváy; cada yváy é diferente.
Em cima de todos esses yváy começa outro, onde os Ñande Rykey chegam e
andam; esse yváy chama-se Okara Guyje, começo do Oka (pátio) dos Ñande
Rykey. Quanto mais você for, mais vai entrar nos vários Oka; é preciso
atravessar vários, existem o Oka Vera, Oka Rendy ( pátio iluminado, onde mora
o Tekojary (dono do teko dos seres humanos). Os outros yváy, onde os donos são
ma´êtirõ, ficam embaixo desses lugares. No yváy do Jaguarete e de outros
animais maléficos, a noite ou escuridão é tempo para andar, perambular,
trabalhar, pois é assim para eles. Para nós humanos, a noite significa outra
coisa.
Depois de Oka Rendy já tem outro lugar: o Itaju, lugar de pedra brilhosa,
áurea. Nesse lugar tem comida, como banana e outras coisas, e banquinhos
para sentar. Os Ñande Rykey sempre vêm visitar; eles vêm de Okara Guyje. O
310
ñanderu que conversa realmente com os Ñande Rykey, recebe visita e mensagens
deles aqui (no Itaju), por isso, o ñanderu não podem estar ocupado em outras
atividades ou não pode se envolver com trabalhos que possam atrapalhar tais
contatos.
Os Ñande Rykey ou suas mensagens não visitam qualquer pessoa. Todas
as vezes que eles chegam, conversam sobre o teko ou tekorã, sobre outras coisas
que ocorrem ou que estão previstas. Muitas vezes eles visitam após reunião deles,
para repassar ao ñanderu da Terra os resultados dessa reunião. Isso acontece
freqüentemente. Eles discutem em aty a situação da Terra, das plantações, o
modo de ser e de viver, etc. Cada Ñande Rykey também toma nova posição após
essa reunião. Estas posições e decisões é que eles vêm informar ao ñanderu, para
este estar ciente e também para que possa tomar posição e decisão precisas diante
das informações que lhe foram transmitidas. Os Ñande Rykey Rusu Mba’eja
também enviam os auxiliares que são responsáveis pelo trovão. Eles são enviados
para observar a situação da Terra; têm missão de controlar os males, esfriar o
tempo quente e manter contato com os ñanderu. Também purificam os lugares e
as pessoas. Quando voltam da Terra, comentam as mudanças por eles
provocadas.
Em Okarayvoty (pátio de flores) é onde os Ñande Rykey conversam sobre
as mulheres, os filhos delas, o futuro desses filhos delas, como elas devem se
comportar e agir para cuidar deles; estes são os temas das conversas que os
Ñande Rykey mantêm no Okarayvoty. Em cada yváy eles vão estar conversando,
tendo reunião, planejando as atividades deles.
Quem manda no teko marãney é Ñande Rykey Pa’i Kuara Rendy. Ele é
quem cuida do modo de ser sem mal; ele é quem envia os auxiliares para
purificar e esfriar os lugares. Quando eles passam por aqui, vêm com chuva,
relâmpagos e trovões, indo na casa do Ñane Ramõi, que é Hyapu Rusua, quer
dizer, o trovão máximo. A voz do Ñane Ramõi é o poder de trovão máximo.
Eu consegui alcançar o yváy do Ñane Ramõi após quarenta e nove anos de
idade. Comecei a fazer jeroky (dança ritual) desde criança. Comecei a ouvir a
voz dos Ñande Rykey com mais ou menos dezessete anos de idade; ouvi. Antes
311
ouvi os ma´êtirõ e outros seres da terra, isso quando tinha onze anos. que
não liguei. De noite fazia fogo e continuava fazendo jeroky; meus mestres não
me deixavam dormir, sentavam na beira do fogo e continuavam dançando e
orando. Dessa forma aconteceu para não falhar; se falhasse, teria dificuldade de
repor o tempo perdido. Os meus mestres me ensinaram alguns ñengáry para os
Ñande Rykey me ouvirem; mostraram para mim o caminho. Então os ñengáry
eram somente para fazer valer a minha reivindicação, que estava pedindo o
poder dos Ñande Rykey e novos ñengáry: Eropyru chupe agujje, mostrar para
mim o caminho, só isso. Eu repetia, antes de ouvir, um ñengáry durante mais de
dois meses, depois trocava por outro, que pedia a estrada iluminada (tape vera).
Fui trocando de ñengáry cada dois meses. Meus mestres diziam para eu colocar
posicionar meus ouvidos em diversas direções para o céu. Eu ficava um longo
tempo com o ouvido posicionado para todos os lados, para ver se havia alguma
mensagem. Muitas vezes meu pescoço chegava até a doer de tanto querer ouvir
algo. Nesse momento, os acompanhantes ou mestres e outros não podem fazer
nenhum barulho; precisava estar em silêncio total. Alguns podiam falar no
ouvido do outro, murmurando. Depois de algum tempo continuava-se o jeroky.
meus mestres perguntavam se ouvi. Se tivesse ouvido, contava para eles,
isto é, a fala que ouvi do além, dos Ñande Rykey; podia contar para eles.
Lembro quando cheguei pela primeira vez, quando fiz o primeiro contato, fui
recebido pelo relâmpago, que me iluminou, me purificou. Fiquei completamente
brilhante e transparente, fiquei igual a uma garrafa de vidro. Depois desse
processo de purificação, ele vestiu em mim a roupa de ñengáry, isto é, a raiz do
ñengáry, de onde iria segurar o meu ñengáry. Nesse momento fui enfeitado de
jeguaka, jeasaha, mbaraka, ku’akuaha, kurusu. Depois disso eles me pediram
para fazer jeroky, para eles poder-me observar. que não precisou perguntar
do ñengáry para eles; comecei jeroky logo que eles pediram. Podia cantar
utilizando diversos ñengáry meus próprios; isso para eles me avaliarem.
Meu pai, minha mãe, meu avô e minha avó me acompanharam durante a
primeira fase da minha formação.
Em Okaraju (Oka com brilho amarelado) também precisava chegar para
conhecer onde os Ñande Rykey parecem não pisar diretamente no chão. E eu
312
também parecia estar saindo do chão para voar. também tem uma fase de
purificação. Se a pessoa tiver no corpo os objetos ou algo do ma´êtirõ, nesse
Okaraju eles tiram tudo do corpo, fazem uma limpeza geral no corpo. Muitas
vezes pode, no corpo ou na tua cabeça, ter onças, marimbondos, formigas ou
cobras, que te deixam nervoso, bravo, violento, mau, ruim. Por isso, neste
momento, no Okaraju, os Ñande Rykey limpam tudo, te deixam puro e perfeito.
Os Ñande Rykey te assopram som, com ar da boca deles, e limpam
tudo, tiram tudo que você tem vestido de mal no corpo e na cabeça, quer dizer, o
que é da Terra. Nós temos no corpo uma borboleta que sono. Quando essa
borboleta dorme, nós também dormimos. Essa borboleta pode ser tirada e,
quando se tira, a pessoa dificilmente terá sono.
Através do sono podemos ver muitas coisas ruins e coisas boas. Os ma´êtirõ
podem aparecer nos sonhos, logo após dormir, mas geralmente eles aparecem nos
sonhos de madrugada. Antes do sol nascer ou brilhar, os ma´êtirõ podem
aparecer, até mesmo quando você anda pela estrada bem cedo é possível eles
estarem por ali. Por isso, antes de andar de madrugada ou cedo, antes do sol
aparecer, precisa fazer motihã (ñembo’e de proteção) nos pés e na estrada, para
que seus pés possam espantar os ma’etirõ, através do jeovasa (gesto de
movimentar os braços, balançando-os, para limpar).
O ñanderu recebe as informações a qualquer momento, através dos sonhos
ou não. Não tem horário certo para receber a comunicação dos Ñande Rykey. Os
ma´êtirõ também aparecem nos sonhos do ñanderu. Depois de sonhar com os
ma´êtirõ, você pode se sentir mal, com dor de cabeça, pois estes querem
maltratar o ñanderu, por isso aparecem nos sonhos dele e no dia seguinte o deixa
mal. No jeroky os Ñande Rykey traziam sempre um novo ñengáry e
recomendavam usá-lo na seqüência do anterior. Dependendo da situação, eles
podem trazer três a quatro ñengáry em cada jeroky. serão repetidos conforme
a orientação dos Ñande Rykey que trouxeram os ñengáry. (Limão Verde,
30/05/2004).
313
Por ocasião de outra entrevista
182
, Atanás comentava-me que o processo de
formação de ñanderu requer a passagem por cinco estágios, por ele denominados de
aguije, isto é cinco fases que atingem cada uma delas um determinado grau de
perfeição, purificação e plenitude
183
. Durante esse processo, a pessoa pode adquirir
níveis diferentes de relacionamento com os seres invisíveis. Em um primeiro momento,
do ponto de vista sensorial, a formação permite tão somente ouvir (ahendu) esses seres,
o aprendiz tendo que chegar a distinguir, tão somente a partir das vozes, se se trata de
espíritos bons ou maus. A passagem para além de Yvy Rendy permite ao neófito
alcançar um nível de pureza suficiente para que não os ouvidos, mas também a vista
seja liberada das impurezas que lhe impedem de enxergar (aheicha). Neste caso,
temos uma pessoa formada como xamã, podendo ela desenvolver uma certa gama de
atividades rituais. Contudo, que se observar que, embora ela possua a faculdade de
ouvir e ver seres que são para a maioria invisíveis e cujas vozes são incompreensíveis,
ainda não possui conhecimentos e nível de aperfeiçoamento suficientes para se deslocar
durante suas viagens xamanísticas aos yváy mais elevados, onde residem as figuras
divinas mais poderosas; isto é, não pode ser ainda considerado como um oheichakáry:
“aquele que tudo vê”.
Outra observação a ser feita, é que também na fase em que o aprendiz consegue
apenas ouvir embora com os devidos cuidados e ressalvas
184
pode ser considerado
pelos parentes como um possível ñanderu (ou ñandesy), especialmente se se apóia na
autoridade de xamãs consagrados e/ou, ainda melhor, nos mestres que o estão
formando em sua família. Nestes termos, podemos constatar que o xamã constrói o seu
status aos poucos, sendo possível dizer que sua formação é progressiva, contudo, o
necessariamente continuada no tempo.
Esta última especificação (isto é, a da formação não ser continuada no tempo)
me parece ter uma relevância fundamental na compreensão da especificidade do
182
Em 21/11/2002, na TI. Jatayvary.
183
Relembro que o termo “aguije” significa literalmente “maduro”, as fases sendo, portanto, estágios de
maturação do indivíduo.
184
Como o próprio Atanás deixa claro em seu relato, nas primeiras fases da formação, o risco de o
aprendiz ser orientado por espíritos malvados é muito grande.
314
processo de formação do xamã e de sua relação com a comunidade educativa onde este,
em um primeiro momento, ocorre. É a partir deste fenômeno que reputo ser possível
apreender as características centrais da organização e distribuição dos conhecimentos
sagrados entre os Kaiowa e, portanto, ele demanda uma argumentação mais detalhada.
11.2 Xamanismo e tradição de conhecimento
Como ficou claro no relato de Atanás, enquanto o neófito não supera Yvy Rendy,
obtendo pela primeira vez os próprios ñengáry, ele depende exclusivamente daqueles
que lhe são fornecidos por seus mestres. Nessa primeira fase, também a interpretação da
qualidade das relações estabelecidas com os seres invisíveis permanece com os mestres
terrenos, o aprendiz não podendo avaliar suas experiências autonomamente. Este
também não poderá comunicar as próprias sensações, audições e visões para ninguém,
fora do circuito limitado de seus mestres, sob pena de uma interrupção abrupta e
repentina de toda a sua formação, representada metaforicamente como um “corte das
asas” do formando. Nestes termos, a circulação de imagens e saberes necessários à
formação, assim como as emoções por esta geradas, permanecem num espaço de
interação social extremamente circunscrito. Durante este estágio, o futuro xamã poderá
participar de cerimônias públicas, mas sempre na condição de yvyrai’ja (assistente) de
seus mestres.
Tudo muda substancialmente no momento em que o neófito passa a receber os
próprios ñengáry. Desde esse momento, os mestres passam a ser os Ñande Rykey,
determinando-se uma relação privilegiada e vertical entre o novo xamã e as divindades.
Alcançado o nível de Okaraju, segundo Atanás, o xamã possui um corpus de
conhecimento e um nível de perfeição muito significativo, sendo que, na sua
interpretação, é esse o patamar mais elevado até onde atualmente chega a maioria dos
ñanderu com certeza o último possível de ser atingido por aqueles que não passaram,
quando na puberdade, pelo ritual de iniciação masculina: o kunumi pepy
185
.
185
Sendo hoje este cerimonial muito raro em Mato Grosso do Sul, o número de xamãs que
atingiriam o Yváy Paha (o patamar mais elevado do universo) seria hoje, segundo a lógica de Atanás,
muito reduzido. Voltarei a este tema mais adiante. Neste momento, o que pretendo é colocar em evidência
315
Durante uma conversa, Atanás foi muito explícito e incisivo, afirmando que os
ñengáry são rezas pessoais e que não podem ser transmitidas e ensinadas pelo xamã,
que as leva consigo após a morte. Elas podem ser imitadas, mas, fora do processo de
formação descrito e do contexto ritual dirigido pelos mestres, isto seria inútil, quando
não perigoso, visto que as divindades não reconheceriam o orador, este correndo
também o risco de ser seduzido pelos diversos ma’etirõ. O prestigioso xamã afirmou
também, remarcando a diferença, que os ñembo’e tiha (orações que, como vimos,
objetivam defender e defender-se de males) podem ser ensinados a todos. Também o
mborahei puku (canto longo), a reza central do importante ritual de consagração do
milho e das plantas novas (avaty kyry), assim como as técnicas e rezas relacionadas ao
kunumi pepy (que também integra o mborahei puku), podem ser ensinados; porém, para
serem reproduzidos, é necessário que os aprendizes tenham alcançado o status de xamã,
isto é, possuir ñengáry próprios.
Podemos constatar que a maioria dos conhecimentos adquiridos pelos
aprendizes, assim como por pessoas que participam das atividades religiosas coletivas,
ocorrem principalmente durante o período entre a puberdade e o momento em que se
contrai matrimônio
186
, a atenção sendo dedicada depois mais que tudo à formação do
núcleo familiar, os homens começando longos períodos exploratórios do território à
procura de recursos materiais, adquirindo também conhecimentos (técnicos e
intelectuais) procedentes das relações com os “brancos” e determinando relações e
alianças políticas.
A fase exploratória dura por quase toda a vida, mas é particularmente intensa no
período compreendido entre os 15/17 e 40/45 anos, quando os homens se dedicam
periodicamente às atividades de changa, caça, pesca e coleta. Também quem teve
o fato de que o elemento determinante para a obtenção da autonomia do ñanderu para com seus mestres
na Terra é a aquisição de ñengáry próprios.
186
A maior parte dos xamãs e pessoas idosas afirma enfaticamente que, antigamente, quem se
encaminhava para uma formação religiosa, adiava seu casamento, lhe sendo também exigidos longos
períodos de abstinência sexual. Afirma-se que hoje, casando-se cedo, os jovens estariam inaptos ou teriam
sérias dificuldades para se tornar ñanderu (ou ñandesy). Ocorre, contudo, do mesmo modo como se
com as declarações a respeito da estabilidade conjugal, que as coisas não eram exatamente como hoje são
relatadas. Em seu diário de campo sobre sua viagem entre os Kaiowa da reserva Takuapiry, no começo da
década de 1940, Galvão (1996) relata queixas muito parecidas com as atuais. Também na época afirmava-
se que os jovens não gostavam mais de jeroky, a dança ritual (p.223). Nesses termos, não podemos
atribuir à situação atual uma condição de excepcionalidade. Tudo indica que a formação xamanística
requer certo empenho pessoal e uma evidente aspiração, estas sim condições excepcionais.
316
formação xamanística não está eximido de buscar os recursos necessários para formar
seu núcleo familiar. Nestes termos, as atividades ritualísticas e a vida retirada que
caracterizavam sua formação inicial como xamã, passam a ser redimensionadas e
adaptadas às novas circunstâncias. Durante todos esses anos, pode mesmo ocorrer que a
pessoa não pratique assiduamente as atividades ritualísticas ou venha a estabelecer
relações vantajosas com missionários, tornando-se “crente”. É, porém, após superar os
40/50 anos, o indivíduo tornando-se tamõi e, assim, adquirindo outra posição social, que
poderá voltar a cultivar com mais assiduidade as relações com os Ñande Rykey.
Também em virtude de sua condição de homem maduro, poderá gozar de maior respeito
entre seus próprios aliados. Durante este último período de sua vida, o ñanderu
procurará alcançar níveis cada vez mais altos do Universo. O próprio Atanás afirma que
alcançou o patamar mais elevado do Cosmo a idade de aproximadamente 45 anos.
Outro elemento importante que caracteriza a formação xamanística é o sonho. A
maior parte da inspiração de um ñanderu (ou ñandesy
187
) é obtida durante as viagens
oníricas. Através dos sonhos o xamã obtém as informações necessárias para dar
continuidade à sua formação e aperfeiçoamento.
Pelo até agora descrito, pode-se facilmente deduzir que na formação xamanística
existem três períodos que expressam modalidades diferentes de aquisição, valorização e
sistematização de conhecimentos: a puberdade-juventude, a vida adulta e a maturidade.
A primeira é caracterizada pela preponderância de aquisição de informações
transmitidas verbalmente por mestres, familiares e/ou obtidas em contextos rituais.
Durante este período os conhecimentos derivados das viagens oníricas são reduzidos e
são sistematizados exclusivamente por seus formadores. Na segunda fase, a exploração
187
Em minha etnografia, os dados relativos à formação feminina foram muito reduzidos e obtidos por via
indireta. A literatura específica é ela também bastante avara na descrição do mundo feminino. A
dissertação de Montardo (2002) constitui uma feliz exceção, visto que foca sua atenção sobre uma
reconhecida ñandesy kaiowa, dona Odúlia, do antigo tekoha de Guaivyry, hoje residente na reserva de
Amambai. A descrição realizada pela autora do processo de aprendizagem dessa ñandesy permite
confirmar, justamente, o claro paralelismo existente com as técnicas, aspectos pedagógicos e os valores
morais e éticos que caracterizam a formação dos ñanderu. Refiro-me aqui às modalidades de
estabelecimento de relações entre aprendiz e mestres e ao uso das técnicas consideradas necessárias para
adquirir e transmitir conhecimentos; é evidente que do ponto de vista das atividades rituais a serem
presididas, existe uma clara diferença, marcada pela oposição de gênero. As mulheres não podem fazer
mitã mongarai, oficiar os avatykyr e tampouco presenciar a parte mais delicada da iniciação masculina (a
perfuração do lábio inferior dos neófitos). Por outro lado, no tocante às atividades de cura e à
intermediação com os deuses, o poder das ñandesy não tem nada a invejar aos possuídos pelos ñanderu,
algumas delas, a esse respeito, sendo mesmo mais conceituadas do que muitos homens.
317
do território permite o acesso a conhecimentos e idéias disponibilizados pelas diferentes
igrejas protestantes presentes na região e pelos adeptos da religiosidade rural fronteiriça,
o sujeito podendo também observar os comportamentos assumidos pelos “brancos”
(karai reko) e compará-los com os mantidos pelos Kaiowa (ñande reko). A terceira fase
é caracterizada pelo domínio da dimensão vertical de relacionamento cosmológico com
as divindades, o fator onírico sendo central na transação de saberes. Nesta última fase a
aquisição de conhecimentos através de uma relação horizontal com outros seres
humanos acaba por ser mais modesta.
Cabe agora localizar, durante o percurso de vida do xamã, o momento em que
ocorrem os cinco aguije de que nos fala Atanás. Os ñanderu e ñandesy afirmam que,
geralmente, o surgimento (ojehu) como xamã se ainda durante a juventude, isto é,
quando o neófito encontra-se direta e intensamente sob a custódia e controle de seus
mestres terrenos. Ocorre, porém, que do ponto de vista da vida pública, podemos
constatar que dificilmente um jovem (ou uma jovem) poderá ser considerado(a) como
um(a) líder religioso(a), sendo o sujeito ainda imaturo do ponto de vista social. A
manifestação de seus poderes mágicos em um raio de ação superior ao do espaço social
de sua família – onde recebeu sua formação – poderá despertar a suspeita de este ser um
feiticeiro ou, na melhor das hipóteses, um charlatão. Portanto, embora o sujeito tenha
alcançado cedo o primeiro aguije, ele não poderá socializar os conhecimentos
adquiridos fora do seu circuito de socialização primária, sendo também as
possibilidades de contribuir para uma interpretação e moldagem pessoal dos mesmos
reduzidas na época, os seus mestres prevalecendo neste sentido.
Durante a segunda fase, aquele que na juventude alcançara seu primeiro aguije
poderá dar continuidade à sua formação, no âmbito privado, os seus mestres terrenos
continuando a avaliar os resultados, mas desempenhando um papel secundário. Está
em jogo neste momento a necessidade de tornar públicas as suas faculdades, e para
tanto deve ele alcançar níveis mais elevados de preparação, demonstrando a todos sua
postura moral e eficácia prática. O fato de ter que trabalhar e formar família interfere no
processo, mas as experiências procedentes de suas viagens, assim como os contatos
mantidos com xamãs já consagrados, são elementos que lhe permitem refinar seus
conhecimentos. Durante este período, o sujeito pode atingir um status mais elevado,
chegando ao segundo e, talvez, ao terceiro aguije, surgindo publicamente como novo
318
xamã. Neste caso, o raio de ação deste novo ñanderu se ampliará, podendo agora
presidir os rituais de mita mongarai (revelação do nome das crianças). Sua reputação
será ainda maior se no correr de sua formação tiver adquirido as técnicas e
conhecimentos necessários para oficiar a cerimônia do avatykyry (consagração do milho
e das plantas novas), algo hoje considerado muito raro e precioso
188
.
que se observar, porém, que os casos em que os indivíduos tornam-se xamãs
reconhecidos durante a segunda fase de seu percurso de vida são bastante raros. É muito
mais comum que isto ocorra no terceiro período de sua existência. Deve ser considerado
também que a maioria dos indivíduos, embora tenham recebido durante a infância e
juventude os ensinamentos necessários para desenvolver uma vida religiosa, não
conseguiram alcançar um grau de relacionamento vertical com as divindades ao ponto
tal de conseguir seus próprios ñengáry. Nestes casos, sendo a fase seguinte dedicada de
modo preponderante a outras atividades sociais e tecno-econômicas, as pessoas poderão
não reputar necessário continuar com a formação xamanística, desistindo ou
simplesmente não considerando necessário se tornar ñanderu. Assim, os conhecimentos
e técnicas adquiridos passarão a constituir um estoque cujo uso poderá limitar-se aos
contextos rituais onde os indivíduos periodicamente estarão inscritos, acompanhando as
atividades de outros xamãs, ou como integrantes dos grupos de dança ou, em um nível
mais intenso de entrosamento, como yvyrai’ja (auxiliar) destes operadores cerimoniais.
Os avatikyry, unidos aos mita mongarai e jeroky, realizados periodicamente nas
diversas áreas indígenas, assim como os jeroky guasu, que geralmente acompanham as
aty guasu, e os mais restritos e raros rituais de iniciação masculina, além de se
constituírem como contextos onde os jovens xamãs podem tornar blico seus poderes,
permitem também que indivíduos que durante a segunda fase ainda não alcançaram seu
188
De fato, o mborahei puku (o canto longo), elemento fundamental do avatikyry, é constituído de uma
seqüência ampla de orações que não se repetem e devem ser recitadas, de modo ordenado, desde o pôr-
do-sol até o amanhecer ininterruptamente. Isto exige do xamã a aquisição, com a prática, de uma técnica
de ordenamento mnemônico fora do comum, sendo que atualmente poucos deles são considerados aptos a
presidir este tipo de ritual. A raridade de oficiantes deve-se, em certa medida, à falta de condições para a
realização do ritual, hoje as plantações de avati moroti (milho branco), fundamentais para dar vida à
cerimônia, tendo-se tornado esporádicas. Assim, a possibilidade de haver uma continuidade de atuação
xamanística nestes contextos é muito pequena, a reprodução das técnicas necessárias sendo restritas a
circuitos mais reduzidos de comunicação de saberes.
319
primeiro aguije, possam entrar em estado de reflexão
189
e empreender um caminho por
eles abandonado ou, melhor, interrompido décadas antes
190
.
A terceira fase da existência do indivíduo é sem dúvida a que permite as
melhores condições para dar continuidade e aprofundar as relações verticais com os
Ñande Rykey. O indivíduo gozando do devido prestígio atribuído às pessoas que se
encontram na condição de “ser maduro”, e liberado de grande parte das incumbências
relativas à manutenção econômica da família onde está inscrito, pode dedicar tempos
mais longos ao exercício ritualístico. É durante este período que os xamãs mais
prestigiosos conseguem alcançar os últimos aguije e receber das divindades o tekorã (o
conjunto de normas que vai vigorar) para ser comunicado aos Kaiowa. Embora não seja
formalmente estabelecido, é também durante esta fase que se chega ao prestígio
suficiente para presidir o ritual de iniciação masculina (kunumi pepy). De fato, o xa
que tenha adquirido os conhecimentos e técnicas necessários para oficiar este tipo de
cerimonial e detenha as condições morais para promovê-lo e efetivar, é sem dúvida
considerado como estando entre os tekoaruvicha (líder do teko) mais respeitados. Neste
caso, o xamã deverá ter obrigatoriamente passado, durante a puberdade, por esse ritual,
sendo muito poucos os que hoje possuem este requisito
191
.
189
Como indica Turner (1974) ao descrever o “drama social”, os contextos rituais considerados pelo
autor como “comunitas” ou “antiestruturas” permitem aos indivíduos se afastarem momentaneamente
dos conflitos cotidianos, tornando-se momentos de reflexão individual e coletiva. Deste modo, uma vez
que volta a atuar nas arenas políticas, participando novamente de disputas e negociações, o sujeito poderá
dar continuidade à determinação processual da estrutura social, aportando novos pontos de vista ou
ponderações resultantes do exercício reflexivo realizado durante a experiência ritualística.
190
É assim que devido à premente necessidade dos Kaiowa lutarem para recuperar o controle de parte
significativa de seus territórios e/ou enfrentar as negatividades decorrentes da aceleração do Ararapyre (o
fim dos tempos do bom viver), e ainda, para contrastar os malefícios interpretados como decorrentes da
imposição de regras comportamentais alheias (como o karai reko), vários indígenas que não haviam
pensado em se dedicar às atividades xamanísticas decidiram se preparar para alcançar um contato
duradouro com as divindades . As passagens periódicas de grandes xamãs pelas diferentes áreas kaiowa
para efetuar os referidos rituais, ou a confluência de indivíduos e famílias aos locais onde estes são
praticados, leva, muitas vezes, jovens e adultos e mesmo pessoas que alcançaram a terceira fase da
própria existência, a empreender ou a dar continuidade ao aprendizado xamanístico. No próximo capítulo,
ao se falar sobre as formas contemporâneas de cuidar dos chiru (as varas insígnias), oferecerei alguns
exemplos da influência que as cerimônias religiosas exercem sobre os Kaiowa, e como acontecimentos
históricos de diferentes naturezas permitiram o manifestar-se de formas diferenciadas de distribuição de
tarefas e incumbências na tentativa de manter o Cosmo em equilíbrio.
191
Há que se observar, porém, que atualmente o kunumi pepy é destinado a um público muito reduzido de
crianças, estas devendo ser filhas de pessoas que foram por sua vez iniciadas quando na puberdade. Quase
a totalidade das famílias que possuem este pré-requisito no Mato Grosso do Sul encontra-se em um único
território (tekoha guasu), situado na margem esquerda dos rios Brilhante e Ivinheima. Figuras muito
importantes como o Pa’i Chiquinho e, seu sucessor, Paulito, da área indígena Panambizinho, sempre
320
Analisando estes processos, pode-se dizer que a primeira fase do percurso de
vida de um indivíduo seja ele ou não intencionado a tornar-se um xamã é
caracterizada por uma formação religiosa dominada por transações de conhecimento
“para cima” – onde a aquisição de saberes e técnicas se dá quase exclusivamente a partir
de um relacionamento vertical com os mestres terrenos
192
. A esfera privada também
prevalece. Nessa fase, a natureza reservada da circulação e reprodução desses
conhecimentos faz com que possam existir formas e versões diferentes de
sistematização de saberes. Isto se torna possível também porque, não existindo controle
e avaliação moral e política procedente de um público mais amplo, é possível que
diversos xamãs, antagônicos entre si, possam manter coesas e livres de críticas as
pessoas sobre as quais eles exercem forte influência. Nesta fase, os neófitos acessam às
primeiras noções sobre a gênese, estrutura e dinâmica do Cosmo e recebem e podem
colocar em prática técnicas verbais como ñembo’e tiha (orações para proteger e para se
proteger) e outros ñembo’e propiciatórios (como os destinados às atividades tecno-
econômicas: caça, pesca, coleta, agricultura, changa etc.). Estes ñembo’e permitem aos
jovens familiarizar-se com o mundo dos járy: temê-los, defender-se deles e,
eventualmente, aliciá-los e enganá-los. Através destas orações pretende-se obter
também a proteção dos diversos Ñande Rykey. O salto qualitativo de poder vir a se
relacionar com as divindades é, como visto, condicionado à obtenção de ñengáry
próprios, algo que exige muito treinamento, o respeito rigoroso às evitações sexuais e
alimentares e, sobretudo, a capacidade de empreender viagens oníricas. Por tal razão,
poucos se dedicam a este propósito, dando vida à primeira diversificação hierárquica na
administração das relações cosmológicas.
promoveram o kunumi pepy, ritual que geralmente é realizado com uma periodicidade de 4 ou 5 anos.
Contudo, desde 1993 não se vida à iniciação masculina nessa região. Ademais, Paulito, em idade
muito avançada, faleceu em 2000. Jairo, o seu sucessor “oficial”, cuja idade aparenta ser, hoje, entre os 45
e 50 anos, embora esteja se dedicando intensamente a oficiar avatikyry em diversas áreas vizinhas, ainda
não se manifestou sobre a necessidade de realizar um outro kunumi pepy. Esta sua posição não pode ser
interpretada como uma falta de interesse ou de capacidade; com efeito, deveria-se averiguar o efetivo
interesse das famílias em submeter seus filhos a este cerimonial, levando-se em conta o fato de que, ainda
relativamente jovem, Jairo pode não ser considerado suficientemente maduro para ser incumbido de
semelhante tarefa.
192
A terminologia aqui utilizada para analisar o processo de transmissão e distribuição de conhecimentos
foi por mim cooptada de um estimulante artigo de Barth (2000b), artigo este que será largamente
comentado ao final do presente item.
321
A segunda fase, a mais longa, é, por outro lado, caracterizada pelo domínio da
esfera pública e pela aquisição de saberes e técnicas procedentes de lugares e grupos
sociais e étnicos distintos, assim como de diversas tradições de conhecimento. Neste
caso, temos quatro distintos tipos de comunicação e interação: um, horizontal (não
hierarquizado), que permite a circulação de saberes e técnicas entre atores e contextos
heterogêneos, de forma bastante fluida e livre; outro, vertical, que diz respeito à
transação de conhecimento “para cima” com os xamãs reconhecidos e afirmados os
quais permitem, especialmente durante os rituais, que os indivíduos possam ter acesso a
paradigmas que objetivam distribuir, sistematizar e avaliar os conhecimentos
adquiridos; um outro ainda, “para cima”, com as divindades, referido aos poucos
neófitos que estão à procura de aguije, e, finalmente, um “para baixo”, os novos xamãs
passando a transmitir os conhecimentos adquiridos, especialmente no interior do espaço
familiar. Não cabe dúvida de que os dois primeiros tipos de comunicação e interação
são os que preponderam no tocante à massa de informações mobilizada.
A terceira fase é dominada por duas formas de comunicação e interação: por um
lado, a estabelecida “para cima” com as divindades, seja através de cultos privados, seja
por meio de rituais públicos e, especialmente, através das viagens oníricas; por outro
lado, as “para baixo”, no processo formativo de discípulos, no âmbito doméstico e no
contexto ritual, com a comunicação de normas morais, avaliações do teko atual e a
transmissão do tekorã. Nesta terceira fase da vida do xamã, as transações horizontais se
fazem desprezíveis, o ñanderu continuando sua formação quase exclusivamente através
da relação com os deuses. No que diz respeito às transações “para cima” com mestres
terrenos, estas são praticamente inexistentes.
Pelo exposto até o momento é possível se constatar que o xamã aumenta
consideravelmente seu prestígio no momento em que passa a ganhar o reconhecimento
público. Isto ocorre especialmente quando é atingida a terceira fase de sua existência.
Outra consideração importante, é que para conseguir esse prestígio e mudar de status,
ele deve progressivamente se liberar das relações “para cima” com mestres terrenos, e
daquelas horizontais, adquirindo uma crescente autonomia. Isto quer dizer que as
transações “para cima” com as divindades devem ser incrementadas, o que lhe permite
transacionar conhecimento “para baixo”, capturando a atenção do público. Verifica-se
que seus seguidores atribuirão mais credibilidade ao xamã quanto este demonstrar
322
através de suas práticas, performances e discursos ter eficácia nos processos de cura,
na obtenção de abundância (na agricultura, na caça, na pesca, na coleta e nas outras
atividades de captação de recursos) e nas lutas para a recuperação da terra; enfim, o
ñanderu (ou a ñandesy) deve saber administrar apropriadamente as relações
cosmológicas, transacionando conhecimento “para baixo”, com os discípulos, e “para
cima”, com as divindades, através de atos sumamente contextualizados. Nestes termos,
fica evidente o fato de que não será o conteúdo transmitido durante suas atividades que
lhe elevará o status, mas justamente a eficácia de sua prática. Por sua vez, sua eficiência
neste sentido dependerá do número de ñengáry por ele obtidos, permitindo-lhe
comunicar (refinando sua capacidade de interlocução e persuasão) com o maior número
possível de divindades.
Em termos de conteúdo, as informações repassadas pelos xamãs passam a
constituir um corpus de conhecimento bastante fluido e heterogêneo. A heterogeneidade
deve-se especialmente à natureza doméstica, circunscrita, da aquisição de saberes
durante a primeira fase da vida de um indivíduo, onde o espaço de domínio de
determinados xamãs permite uma moldagem original dos conhecimentos valorizados
nesse circuito social restrito. Assim sendo, existem versões e entendimentos sobre a
arquitetura do Universo, sobre a noção de pessoa, as práticas ritualísticas, o modo de ser
kaiowa etc., que podem ser distintos de grupo para grupo. Quando, porém, passa-se do
âmbito doméstico para uma vida pública mais ampla, os conhecimentos adquiridos
pelos indivíduos, assim como os paradigmas de referência através dos quais organizá-
los, valorizá-los e hierarquizá-los, são colocados em confronto, horizontalmente,
especialmente durante a segunda fase da vida da pessoa. Neste caso, embora a massa de
informações disponíveis para os indivíduos aumente consideravelmente, serão os xamãs
considerados publicamente como prestigiosos os que procederão, durante os rituais, à
moldagem do corpus geral dos saberes contemplados. Segundo relatam os índios, os
grandes xamãs (tekoaruvicha) no começo da século XX conseguiam moldar as
informações gerenciadas por integrantes de famílias pertencentes a um determinado
tekoha guasu (v. segunda parte)
193
. Hoje, através dos jeroky guasu (realizados
193
O tekoha guasu da margem esquerda dos rios Brilhante e Ivinheima é um bom exemplo para ilustrar
tal procedimento e sua profundidade histórica. Pa’i Chiquiño, amplamente citado por Schadem, foi por
longo tempo o tekoaruvicha dessa região, sucedido então por Paulito. Hoje, como visto, Jairo ocupa esta
posição, realizando os rituais mais importantes nas localidades internas a este referido território.
323
especialmente durante as aty guasu) e em decorrência da efervescência produzida pelo
conflito fundiário, xamãs prestigiosos conseguiram ampliar em muito o próprio raio de
ação. Atanás, por exemplo, vista a sua fama de conseguir relacionar-se brilhantemente
com Yvy Járy (o dono da Terra), é requisitado por muitas comunidades localizadas em
diferentes tekoha guasu, especialmente em ocasião dos embates com os produtores
rurais. Durante essas viagens, o conceituado xamã não se limita a oficiar rituais
propiciatórios para a obtenção da terra e o esfriamento dos “brancos”, diminuindo,
assim, a conflituosidade, considerada doentia; ele também realiza mitã mongarai,
esfriamento de chiru (as varas insígnias), instruções sobre como conservar estes
importantes instrumentos sagrados (v. o próximo capítulo), pratica curas de indivíduos,
conversa sobre o teko e vida a outros rituais que forem considerados necessários.
Todas estas atividades permitem, dinamicamente, moldar saberes, conceitos e valores,
assim como ensinar técnicas segundo o ponto de vista e a trajetória deste importante
xamã.
O que foi até aqui descrito ilustra a existência entre os Kaiowa de modalidades
bem específicas de transmissão, distribuição e organização dos saberes, algo que
permite realizar comparações com outras tradições de conhecimentos, situando essas
modalidades em um quadro analítico mais amplo. Em um relevante artigo (2000b), sob
uma perspectiva justamente comparativa, Barth busca remarcar as diferenças entre dois
tipos diversos de tradições de conhecimento (as do sudeste da Ásia e as da Melanésia),
não a partir da descrição destas enquanto totalidades, nem em decorrência do material
utilizado, nem ainda de princípios de associação de idéias que as caracterizariam
194
. O
autor centra sua atenção sobre as modalidades de organizar, valorizar e transmitir o
conhecimento, por um lado pelos gurus, e por outro pelos iniciadores. O seu escopo é
“trazer à tona as fontes de duas economias informacionais basicamente distintas, através
da identificação das pressões que direcionam os esforços intelectuais daqueles que
assumem dois papéis muito diferentes” (idem: 146). Em Bali, para garantir a
manutenção ou a ascensão de status, os gurus precisam adquirir conhecimentos em
continuação, para transmiti-los verbalmente a seus discípulos, evitando que alguns
destes possam alcançar e até superar seu nível de sabedoria o que os rebaixaria na
194
Muitos destes princípios e idéias, diz Barth (2000b), encontram-se em ambas as tradições cotejadas.
324
hierarquia de sujeitos autorizados na avaliação do comportamento moral dos indivíduos
que aferem à tradição de conhecimento fomentada por esses tipos de oficiantes. Para tal
propósito, além de incorporar saberes através da leitura, os gurus viajam, buscando
adquirir conhecimentos inéditos, sendo que aqueles que são muçulmanos procuram
fazê-lo em Meca. Por outro lado, em Nova Guiné, os iniciadores transacionam
conhecimentos com os ancestrais, iniciando os neófitos através de performances que
objetivam criar uma atmosfera de mistério e segredo, através da manipulação de
“símbolos concretos” (sangue, ossos, taro etc.) (v. Barth 1987). Com relação aos
conhecimentos que os oficiantes possuem, estes são transacionados com os ancestrais,
não sendo transmitidos aos iniciandos.
Cotejando as duas economias informacionais, Barth considera que o status do
guru se através da transação “para baixo” de conhecimentos verbalizados,
armazenáveis em suportes externos à memória de indivíduos. Com relação ao iniciador
melanésio, afirma que o status é obtido em certa medida de modo contrário ao do guru,
se negando a comunicação verbal para baixo dos saberes possuídos, o status lhe sendo
atribuído pela eficácia de sua performance, a qual demonstraria a posse dos
conhecimentos transmitidos pelos ancestrais. Desta forma, pode-se argüir, afirma o
autor, que a tradição centrada na figura do guru é rica em massa de informações, os
conhecimentos sendo fortemente descontextualizados e facilmente transportáveis por
um número significativo de oficiantes e neófitos, o que permite uma significativa
propagação dos mesmos no tempo e no espaço. Contrariamente, a forma de
conhecimento centrada na figura do iniciador, “ainda que possa ser forte no que diz
respeito a ‘significado’, é fraca quanto à abstração e transportabilidade, bem como
relativamente limitada em termos de massa” (2000b: 160). A partir desta argumentação,
Barth conclui que os gurus e os iniciadores, por meio de
…inúmeras atividades, tendem a moldar as expressões culturais,
respectivamente nas formas características do sudeste asiático e da Melanéia, não
importando de onde vieram originalmente as imagens e as idéias particulares que
empregam e desenvolvem. Com isso, o contraste entre a Ásia e a Melanésia é
reproduzido, mesmo que haja passagem de itens culturais através desse divisor. As
áreas culturais não são, portanto, apenas um produto da história passada: em um
sentido bastante palpável, elas são produzidas agora, pelos esforços de diferentes
intelectuais, que elaboram diferentes tipos de conhecimento. Por isso, nossa tarefa
de comparar áreas culturais não pode mais se limitar à construção de um quadro
sinóptico do conjunto diversificado de formas particulares existentes em cada área.
Em vez disso, a tarefa principal é a identificação das dinâmicas contrastantes que
geram características convergentes em cada área ou região. (2000b:161).
325
O argumentado por Barth permite constatar que no caso dos xamãs Kaiowa
ocorre algo análogo ao descrito para os iniciadores melanésios. De fato, embora entre
estes índios a palavra seja sumamente valorizada, aquelas que procedem dos deuses são
adquiridas por oficiantes que possuem ñengáry, meio de locomoção e de comunicação
na posse de poucos eleitos. Os conhecimentos mais importantes através dos quais se
forma o quadro moral e normativo que serve como parâmetro para os indivíduos kaiowa
na terra –, são transacionados “para cima”, exclusivamente por operadores autorizados,
como os xamãs. Por outro lado, em se tratando de uma área geográfica onde se cotejam
indivíduos que aferem a tradições de conhecimento contrastantes – no tocante às formas
de organização, valorização e transmissão dos saberes foi possível ver como a
aquisição de imagens, conceitos e até mesmo valores, procedentes de fluxos culturais
originados em lugares muito distantes, permite aos intelectuais kaiowa elaborar idéias
baseadas em comparações de ontologias e visões de mundo diferentes. Nestes termos,
os xamãs avaliam as propostas cristãs de interpretação dos eventos cósmicos e a eficácia
que os sacerdotes “brancos” têm com relação às necessidades práticas e simbólicas da
vida cotidiana. É a partir deste tipo de cotejamento e da incorporação de conhecimentos
antes não possuídos que os xamãs elaboram as clivagens étnicas no tocante às
competências atribuídas aos Kaiowa e aos “brancos” a respeito do comportamento
moralmente aceito pelos deuses, formando um quadro moral normatizado.
Há que considerar que os conhecimentos adquiridos não se limitam aos
manipulados pelos xamãs, estes sujeitos tendo mais o papel de administrar as relações
cosmológicas, dando vida a processos de cura de indivíduos e do próprio ambiente. O
indivíduo comum pode, portanto, se beneficiar de inúmeras experiências que o contexto
sócio-ecológico-territorial lhe permite desenvolver, cada um formando bagagens de
saberes, técnicas e objetos materiais sensivelmente diferentes umas com relação às
outras. Neste sentido, a tradição de conhecimento não determina os saberes específicos
e a forma que estes assumem na bagagem de cada sujeito que a ela aferem. A liberdade
individual de avaliar conhecimentos, técnicas e objetos que não colocam em risco a
reprodução da tradição de conhecimento é, de fato, muito grande.
ainda que se considerar que o que caracteriza a tradição de conhecimento à
qual aferem os Kaiowa é o xamanismo, mais que a específica ação do xamã. Nestes
326
termos, as atividades de figuras como dirigentes pentecostais e curandeiros o
avaliadas pelas famílias indígenas a partir justamente de sua similitude com a prática do
ñanderu, sendo inscritas em uma visão de mundo muito peculiar. Assim, não me parece
oportuno afirmar que os Kaiowa, até mesmo os que se consideram circunstancialmente
“crentes”, estejam ligados a diferentes tradições de conhecimento. Não me parece que
as terras kaiowa e ñandeva de Mato Grosso do Sul possam ser comparadas com alguns
vilarejos do norte de Bali, descritos por Barth (1993), cujos habitantes aferem a
tradições de conhecimento distintas, como a islâmica e a hindu. Neste último caso, fica
evidente que as distintas visões do mundo são construídas pelos gurus de ambas
tradições a partir de regras, trajetórias espirituias e um imaginário claramente diversos.
Por outro lado, me parece apropriado comparar o corpus de conhecimentos adquiridos
pelos Kaiowa nas transações com os “brancos”, com aquele obtido pelos balineses do
que Barth define para Bali como “setor moderno”. O autor norueguês afirma que os
balineses vão às escolas, desenvolvem comércios e se relacionam com os objetos e
saberes de procedência ocidental a partir de suas específicas tradições de conhecimento.
No caso específico dos Kaiowa, pode-se acrescentar a estes saberes e objetos também
aqueles devidos ao cotejamento com o cristianismo criastianismo este que se
apresenta os olhos indígenas sob múltiplos aspectos.
327
Capítulo XII
A trajetória histórica dos chiru
Os Kaiowa não demonstram, pelo menos na atualidade, um grande interesse em
cuidar dos objetos materiais com que se deparam na vida cotidiana. As habitações, por
exemplo, o construídas seguindo, indiferentemente, vários padrões formais e
consorciando diversos materiais, como os de origem vegetal coletados nas matas e
campos da região e aqueles de origem industrial (Mura 2000). Uma vez construídas,
estas habitações podem ser continuamente modificadas, sempre sem que seja dado
grande cuidado à sua conservação, sendo abandonadas a um inexorável desgaste. Os
objetos que estão contidos nessas habitações não fogem a esta lógica, sendo geralmente
deixados à mercê de crianças e animais, necessitando, portanto, de contínuos reparos até
que suas condições não permitam mais sua utilização funcional.
Com relação à construção, organização e conservação da maioria dos
instrumentos e adornos rituais a situação é diferente. Os mbaraka (chocalhos) e os
takuapu (bastão de ritmo, feito de taquara) recebem com certeza maiores cuidados.
Ocorre, porém, que estes sofrem desgastes é são periodicamente substituídos. Por outro
lado, lança-se mão dos mais diversos materiais papelão, penas de galinha, algodão
pintado, plástico etc. para a confecção de jeguaka (cocar), ja’asaha (adorno do tórax)
e ku’akuaha (adornos da cintura). Os padrões formais, por seu turno, também passaram
a ser dos mais variados, havendo, por exemplo, cocares adornados com pequenas penas
de tucano ou com bolas de algodão e outros adornados com as muito compridas
penas de ema, tingidas.
A relação entre a esfera espiritual e a infra-estrutura material pareceria ser, entre
os Kaiowa, extremamente tênue e fluida. Os objetos em posse de indivíduos que
falecem, geralmente acompanham o defunto, sendo colocados sobre a sepultura o que
é indicador de uma ausência de um critério formal e bem definido de transmissão de
herança.
Entretanto, existe uma categoria de objetos que apresentam características
diametralmente opostas às descritas. Estes são os chiru, varas insígnias e cruzes,
328
derivadas de um tipo específico de madeira (yvyra marangatu
195
), cuja característica é
de ser invariável na forma e no material, no espaço e no tempo, sendo transmitidos e
conservados por gerações (v. fotos XVI e XVII).
12.1 Características do chiru
Os Kaiowa entendem que os chiru são objetos muito poderosos, cuja
manipulação requer um certo cuidado. Neste sentido, nem todos podem lidar com eles e
muito menos podem eles ser construídos por pessoas desprovidas de conhecimentos
específicos. Com relação à sua procedência, o xamã Atanás afirma que Ñande Ru teria
construído muitos desses objetos
196
, tanto em forma de cruz (chiru kurusu) quanto de
varas (chiru yvyra’i). Antes de subir para o yváy onde hoje reside, Ñande Ru distribuiu
uma parte para os Ñande Rykey, enquanto que outra foi deixada no local de subida,
denominado Ñeypyru (hoje conhecido como Colonia Indígena 1, situada no
Paraguai), com a intenção de que posteriormente fossem distribuídos aos kaiowa ypy;
por fim, uma terceira parte foi levada consigo para sua nova morada. Os kaiowa ypy,
para poder tomar posse desses chiru, deveriam dançar e orar por um período de pelo
menos um mês, sendo que cada ñanderu e/ou tamõi podia receber tão somente uma
unidade.
Esta narrada teria sido a primeira vez a terem sido construídos e distribuídos
esses instrumentos sagrados. Levando-se em conta que, enquanto povo predileto, esses
índios foram destinados pelas divindades a cuidar da Terra (Yvy), a doação desses
instrumentos representa um grande auxílio para o desempenho de tal incumbência.
Porém, o poder dos chiru não se transformaria automaticamente numa fonte de bem,
podendo estes objetos, ao serem mal utilizados ou se descuidados, representar o oposto:
uma progressiva e crescente manifestação de males, chegando-se, como extrema
conseqüência, à destruição da Terra, significando o fracasso do povo Kaiowa para com
suas obrigações cósmicas.
195
"Myroxylon peruiferum”, árvore leguminosa de diversas variedades, conhecida no Brasil
também com o nome vulgar de “pau de bálsamo”.
196
O ñanderu Luís, neto do xamã José Borbon – que foi um dos principais informantes de Schaden
(1974) –, narra outra versão. Pa’i Tani, no tempo das origens (ara ypy), teria rachado com um raio uma
árvore sagrada (yvyra marangatu), produzindo mais de 500 pedaços, distribuindo dois ou três deles para
cada tamõi (chefe da família extensa).
329
Após este feito instaurador, os Kaiowa puderam construir outros exemplares de
chiru, de modo estritamente necessário e respeitando-se rigorosamente as regras
introduzidas por Ñande Ru nos tempos das origens, isto é procedendo, através de
orações (ñembo’e), ao “esfriamento” (omboroy) da madeira coletada, o que permite o
controle do poder do chiru recém “surgido” (ojehu).
Deste modo, há muitos destes objetos extremamente antigos e em perfeito estado
de conservação, que permanecem ainda na posse dos Kaiowa e que são atribuídos à
obra de Ñande Ru; outros são considerados como produzidos por poderosos xamã do
passado. Existem ainda os que são construídos no presente, diretamente por ou sob a
guia desses líderes religiosos (v. fotos XVIII). Nos dois primeiros casos, é difícil
discernir entre uns e outros no acervo, assim como estabelecer uma linha de fronteira
entre esses xamãs como personagens históricos ou como figuras meta-históricas – como
foi anteriormente colocado em evidência. O importante neste ponto é registrar que para
os Kaiowa todos os chiru se apresentam como o resultado de processos ocorridos no
interior de uma ordem cósmica, que visam transformar um determinado objeto, o yvyra
marangatu, em outro objeto, o próprio chiru, mudando o estado inicial através do
“surgimento” (ojehu) de seu poder mas não sua substância. A mudança, além de
estabelecer uma relação de ordem diferente entre os seres humanos e essa substância,
implica, no correr do processo (corte da madeira, refinamento do objeto e sua colocação
no altar, também denominado de yvyra marangatu), a produção de um “estado quente”
(teko aku), estado este muito delicado, associado a uma condição de desordem, que
permite a afirmação de vários tipos de males, colocando-se assim em risco a própria
organização da parte do Universo onde vivem os Kaiowa. Fator importante, então, a ser
considerado, é o papel desempenhado pelo operador dessa transformação, que deve agir
contrabalançando essa condição negativa, “esfriando” através de ñembo’e o objeto
produzido.
O esfriamento deve ser entendido como um processo e não como uma ação
instantânea. De fato, antes mesmo de se iniciar a atividade técnica de corte e elaboração
do chiru, que se proceder ao esfriamento das ferramentas utilizadas, das mãos do
operador do corte, bem como das próprias árvores.
Com relação à construção do apyka (suporte) onde será apoiado o instrumento
produzido, pode-se afirmar o mesmo. O material, neste caso também tem de ser
330
específico, podendo ser de ygáry (cedro) ou, em sua ausência, takuara (bambu). Um
exemplo pode esclarecer melhor a importância dada pelos Kaiowa a este delicado
processo. No acampamento de Ñande Ru Marangatu presenciei, em agosto de 2000, a
construção de um altar onde seriam depositados vários chiru em forma de cruz, que
haviam sido feitos recentemente. Adelo Villalba, na época com 19 anos, era o
responsável por essa construção, sob a supervisão de Atanás que na época vivia neste
mesmo lugar. Na mesma noite Adelo, acompanhado de sua mãe e de uma de suas
esposas, realizou jeroky que durou até uma hora da manhã, em frente aos chiru
assentados no altar. No dia seguinte, o próprio Atanás participou da dança, na qual
estavam envolvidos muitos integrantes da família Villalba. Uma semana depois, foi vez
de outro kaiowa, Salvador Reinoso, requisitar a presença desse importante xamã para
participar da dança em frente aos chiru yvyra’i por ele (Salvador) construído havia
pouco. Ocorre, no entanto, que anos depois, no final de 2004, Adélo se envolveu em
uma briga, vindo posteriormente a matar, a sangre frio, o seu rival, apunhalando-o com
uma faca. Além disso, pouco antes ele havia também esfaqueado uma de suas mulheres,
encontrando-se hoje preso. Em um de meus últimos encontros com Atanás, na reserva
de Limão Verde, onde reside atualmente, falando-se justamente sobre os chiru e os
cuidados que lhes devem ser endereçados, foi lembrado o exemplo de Adelo, afirmando
Atanás que, contrariamente ao caso de Salvador, homem experiente, aquele então rapaz
não conhecia os ñembo’e necessários para se construir os importantes instrumentos
rituais. O xamã afirmou, então, que havia prevenido Adelo sobre as conseqüências de se
aventurar em seu intento sem os devidos conhecimentos, mas o jovem teria igualmente
procedido em sua empresa. Segundo o ñanderu, Adelo também teria sido rejeitado pelos
Ñande Rykey, não podendo mais ser seu (de Atanás) yvyra’ija, como o era em um
primeiro momento. O seu comportamento, portanto, teria acabado por sofrer mudanças,
seu teko sendo entregue pelos próprios chiru aos ma’etirõ, manifestando ele, assim,
agressividade e rejeição às regras morais note-se que ele possuía três mulheres, e não
duas, como até poderia ter sido admitido, tornando-se um sujeito muito mal visto.
O ato de esfriar, fazendo-se uso do conhecimento de técnicas verbais adequadas,
representa, assim, uma ação que visa a re-equilibrar uma situação cuja alteração foi
produzida pelo próprio operador, isto é, a uma ação, se contrapõe uma contra-ação,
intentando-se, assim, re-equilibrar, e, portanto, conservar, a ordem constituída.
331
Contudo, uma vez produzidos e guardados os chiru, não se pode afirmar que o
equilíbrio cósmico tenha se restabelecido. Inaugura-se, de fato, uma delicada relação
entre o destinatário da conservação desses objetos e os próprios objetos, que passam, a
partir desse momento, a manifestar a exigência da construção de um diálogo quase
cotidiano com eles. O diálogo passa a ser realizado também com os “donos” dessas
árvores sagradas (os yvyra marangatu járy), que anteriormente cuidavam desses
fragmentos que hoje estão sob a custódia dos homens. Estes “donos” têm suas moradas
em diferentes patamares do Cosmo e exigem dos humanos o máximo cuidado para com
os chiru. Nas narrativas indígenas, as suas vontades e exigências muitas vezes
confundem-se com as dos próprios chiru, estes últimos possuindo características
psicológicas similares aos dos seres humanos (sofrer de solidão, sentimento de
abandono, de raiva etc.). Com efeito, para não ocorrerem problemas, a interrupção do
diálogo não pode atingir períodos superiores a 4 ou 5 dias, sob pena de se ver os chiru
irritarem-se, voltando então ao estado “quente”. Conforme o tempo do abandono do
diálogo, os chiru podem matar animais domésticos, atrair pragas para as roças,
favorecer as atividades dos espíritos maléficos que vagam pela terra (ma’etirõ),
produzindo enfermidades nas pessoas (como no caso de Adelo), ou mesmo sua morte,
etc. A negatividade aumenta ainda mais quando um ou mais chiru são guardados de
modo inadequado, jogados ou mesmo tocando o chão – isto é, fora do “assento” (apyka)
específico construído no altar ou pior ainda, quando queimados. Nestes casos, gera-se
um estado generalizado (e não ocasional) de males na Terra, podendo-se chegar, em
última instância (isto é, se não se buscar re-equilibrar as relações de força), ao fim da
vida neste patamar do Universo, provocada por eventos meteóricos catastróficos,
enviados pelas divindades descontentes com a ação dos Kaiowa.
Tratando agora dos aspectos positivos, como afirmado, os chiru não foram
destinados aos Kaiowa para prejudicá-los, mas para reforçar sua ação na Terra no
desenvolvimento de suas atividades práticas e religiosas. Neste sentido, os chiru podem
ser usados como remédios para todo tipo de doença, utilizando-se a água onde foram
imersos para ingerir ou lavar partes doentes do corpo, ou acompanhando os rituais
religiosos nas mãos dos que deles estão cuidando ou dos xamãs que deles se servem
para melhor estabelecer diálogos com as divindades distantes, nos vários patamares
(yváy) do Cosmo.
332
Como dito anteriormente, os chiru, uma vez construídos, mudaram de estado
mas não de substância. De fato, dependendo do solo de origem da árvore de onde foi
extraída a madeira, esse objeto adquirirá uma característica específica. Teremos, assim,
entre outros:
Chiru itakui – a origem é um solo constituído de pedra triturada,
Chiru itavera – originário de lugar onde há pedras brilhantes,
Chiru itahu – que vem das pedras escuras/pretas,
Chiru pirary – cuja árvore de origem cresceu dentro das águas de um rio,
Dependendo dessas características originárias, serão necessários cantos
específicos, cantos estes que devem ser entoados ou pelos que estão cuidando dos chiru,
ou por aqueles que deles se servem. Esses cantos podem ser realizados na presença dos
chiru ou à distância, através de ñengáry, que como vimos são orações que visam
comunicar de longe, muito utilizadas nas viagens xamânicas. A comunicação com os
chiru tem que levar em conta essas diferenças, sendo que eles têm e assumem
comportamentos diferentes. Os itakui, por exemplo, são os mais bravos e precisam de
maior cuidado, enquanto que outros exigem cantos mais longos – caso dos itahu
197
.
12.2 Chiru e a dominação colonial
Para poder melhor focalizar o papel que tem o chiru na vida contemporânea dos
Kaiowa, é oportuno dedicarmos nossa atenção à historia recente deste povo. O objetivo
é compreender como o grupo étnico reagiu e organizou sua tradição de conhecimento
perante a relação compulsória com a frente neocolonial, definindo estratégias de
197
Por suas características e modalidades de uso ritual, os chiru poderiam ser considerados como
“símbolos concretos”. Ao analisar os rituiais de iniciação entre os habitantes das terras altas da Nova
Guiné, Barth (1987) define como “símbolos concretos” elementos como sangue, taro, ossos, caveiras etc,
que permitem a realização de performances com um conteúdo informacional analógico baseado na
própria natureza desses objetos, os quais possuem propriedades específicas (indicando fertilidade, força,
pureza, impureza etc.). Os chiru, por sua vez, também possuem características distintivas e são veículos
de informações e poderes bem definidos.
333
adaptação às novas circunstâncias encontradas. Sobre as características gerais das
últimas duas situações históricas vividas pelos índios, tenho amplamente falado aqui, ao
longo das duas primeiras partes. Entrando mais em detalhes, quero relatar dois casos
específicos, tentando reconstruir a trajetória da maior parte dos chiru hoje presentes nas
reservas de Dourados e Sassoro.
A reserva de Dourados situa-se no município homônimo e foi instituída em
1917, com uma superfície de 3474 ha. O local encontra-se no interior da bacia do rio
Brilhante-Ivinheima, densamente povoada pelos Kaiowa. Em 1923, um ex-funcionário
do SPI deslocou de Buriti para Dourados algumas famílias terena, que rapidamente
entraram em conflito com os Kaiowa do local (Mura & Thomaz de Almeida 2003).
Após essa primeira migração terena, houve outras, o SPI considerando vantajoso trazer
esses indígenas para “educar” os Kaiowa a cultivar mais eficientemente a terra, visto
que os primeiros apresentavam-se aos olhos dos “brancos” como “mais civilizados”. No
final de 1950, Cardoso de Oliveira (1976: 86-87) relatou a existência, em Dourados, de
quatro comunidades, três delas lideradas por Kaiowa e uma por Terena, sendo os
espaços ocupados pelos primeiros então preponderantes, cada grupo mantendo certa
autonomia. A família mais influente e numerosa da área era a dos Fernandes, seguida
por aquela dos Isnard, ambas kaiowa.
Nos anos de 1970 o equilíbrio interno de Dourados mudou, a família Fernandes
perdendo espaço territorial com a avançada dos Terena, sob a liderança de Ramão
Machado. Com a divisão formal da reserva em duas aldeias, Jaguapiru e Bororó, Ramão
passou a ser capitão” da primeira, deixando a segunda sob a orientação do influente
kaiowa, Ireno Isnard.
O surgimento de Ramão como liderança deveu-se principalmente ao apoio
obtido da Igreja Metodista (que lhe entregou um trator), da Missão Evangélica Caiuá e
do chefe do Posto da época, instituições estas reputando que este apoio contribuiria para
o “desenvolvimento” da reserva. Na época, em plena sintonia com as atividades
regionais, a própria FUNAI contribuiu para desmatar a área indígena, abrindo espaço
para a mecanização da agricultura. A partir daquele momento, segundo informam os
kaiowa, o líder terena, com a ajuda de sua “polícia indígena”, teria sido autor de
inúmeras violências e expulsões de líderes políticos e religiosos, chegando a ter, após a
morte de Ireno Isnard (ocorrido no fim dos anos 80), o pleno controle da reserva.
334
O sucessor de Ireno, Carlito Oliveira, assumiu o poder por poucos anos. Durante
esse período, juntou muitos chiru, entre os quais vários que estavam em poder do líder
falecido. No começo dos anos 90, no pátio de Carlito foi construída uma oygusu as
construções antigamente utilizadas pelos Kaiowa como residência, hoje denominadas
ogapysy (de oga ypy sy, “casa mãe das origens”), destinadas a uso ritual e como símbolo
de diferenciação étnica. Embora não seja obrigatório, os índios indicam essas
construções como o lugar mais apropriado para se conservar os chiru.
No final dessa década, a situação mudou e algumas famílias kaiowa passaram a
denunciar às autoridades externas (MPF e PF) as violências sofridas. Algumas
lideranças, fazendo um uso político da tradição religiosa kaiowa, passaram a se definir,
especialmente perante os brancos”, como “caciques”, termo que entre os Guarani de
Mato Grosso do Sul é utilizado como sinônimo de “rezador”. Embora não sejam
considerados como indivíduos que tenham alcançado o status de xamã (ñanderu), estes
podem ser yvyra’ija, apoiando-se na figura dos mestres ou num conjunto destes que
oficiam as cerimônias principais desenvolvidas na reserva. Hoje em Dourados não
existem xamãs, devendo ser estes periodicamente convidados de outros lugares. Deste
modo, os “caciques” passaram a reivindicar a própria diferença, implementando a
tradição. Entre estes encontra-se Adimiro Arce, que hoje construiu uma ogapysy, no
interior da qual conserva a maioria (vinte) dos chiru da reserva, incluídos os que Carlito
havia juntado. Com o consenso dos mais importantes xamãs da região, Adimiro cuida
desses importantes objetos, que são periodicamente visitados e utilizados pelos ñanderu
durante os rituais organizados por este “cacique”.
Passando agora a considerar a reserva de Sassoró, ela se localiza no município
de Tacuru, compreendida na bacia do Rio Iguatemi. Sua instituição data do ano de
1928, delimitada com uma superfície de 1932 ha, nas proximidades do porto
homônimo, no rio Hovy, porto este que era utilizado pela Cia. Matte Larangeira para
transporte da erva coletada na região. Sassoró encontra-se no interior de um tekoha
guasu antigamente densa e homogeneamente ocupado pelos Kaiowa, cada comunidade
política tendo seu lugar de origem (tekoha) em diversos locais desse grande espaço
territorial. Nos anos de 1940 e 1950, essa região foi atingida por epidemias (malária,
sarampo, catapora e tuberculose) (Brand 1997), provocando intensos conflitos entre
famílias rivais, que atribuíam, umas às outras, práticas de feitiçaria, indicadas como
335
causa principal dessas doenças. Até final dos anos 60, porém, a maior parte da
população desse território residia fora da reserva em questão, as famílias mantendo
relações com aquelas residentes no espaço reservado pelo Estado. Foi entre final dos
anos 60 e a primeira metade dos anos 70 que, atraídos pela Missão Evangélica Caiuá
(MEC) – que prestava atendimento médico – e/ou expulsos pelos fazendeiros, um
significativo contingente de famílias passaram a residir em Sassoró.
Em meados dos anos 60, A MEC havia construído uma sede adjacente à reserva.
Fornecendo, além de assistência médica, roupas e outras utilidades, conseguiu
aproximar dessa sede boa parte das famílias do local, chegando a se formar uma
estrutura de vila, organização espacial totalmente alheia aos Kaiowa. As demais
famílias, rivais das primeiras, permaneciam nos “fundos” da reserva, longe das práticas
missionárias e do chefe do posto que, durante os anos 70, apoiava a política da Missão.
Segundo relatos dos índios, a violência perpetrada pelo pastor Benedito Troquez
chegava a atos extremamente ofensivos para os Kaiowa. Emblemático é o caso do
ñanderu Quincas que, no final dos anos 70, procedendo do tekoha de Mbarakay, teve
seu mbaraka (chocalho) queimado em público por esse pastor, que acusou o xamã de
praticar obras do diabo (cf. Thomaz de Almeida 1991). Após ter sofrido esta ação,
Quincas voltou a trabalhar nas fazendas das vizinhanças do seu tekoha de origem,
voltando para Sassoró apenas na metade dos anos 80.
Neste clima de terror instaurado na reserva, as famílias dos “fundos” podiam
praticar suas rezas apenas de modo clandestino, e é justamente neste clima de
clandestinidade e de medo que ocorria a transmissão dos chiru, com nefastas
implicações para boa parte dos Kaiowa.
Hoje, na residência de Juarez Borvão encontram-se 17 chiru, em perfeito estado
de conservação e sendo bem cuidados. Mas nem sempre foi assim, uma vez que Juarez
teve a obrigação de cuidar desses objetos a partir de 1987, quando lhe foram entregues.
Antes, por mais de uma década o destino desses chiru foi marcado pelo abandono e a
total falta de cuidados. Vejamos suas trajetórias.
Os 17 chiru foram reunidos nas mãos de Estanislau até a metade dos anos 70.
Estes procediam de vários líderes religiosos e de famílias extensas, de distintos lugares
no interior do tekoha guasu onde se encontra Sassoró. Uma parte eram de Mbopi,
336
importante xamã do tekoha de Pueblito Kue, que faleceu nos anos 60, outros eram de
Galino, relevante xamã do passado, de Sassoró; havia ainda os chiru de Antonino, neto
de Galino e também ñanderu, alguns outros de Catulino, e um de Cassimiro, xamã do
tekoha de Kamakuã. A concentração ocorreu através dos parentes destas importantes
figuras, que, impossibilitados de cuidar desses objetos sagrados, resolveram entregá-los
a Estanislau, que assumiu esse compromisso. Contudo, Estanislau desatendeu a esse
pedido quando pressionado pelo pastor da MEC: “converteu-se” ele, formalmente, ao
cristianismo. Em seguida, abandonou os chiru recebidos, deixando-os relegados ao chão
de sua residência.
O abandono dos chiru foi interpretado por várias famílias kaiowa como a causa
de muitas doenças e da instauração de um clima de hostilidade e violência dentro da
reserva, elementos tidos como contrários ao correto modo de viver (teko porã). O
próprio Estanislau passou a sofrer de alucinações, ouvindo continuamente vozes, tanto
de dia como durante o sono, doença esta interpretada pelos Kaiowa como efeito dos
males trazidos pelos chiru, já há muito em estado quente (aku).
A mudança política na reserva, ocorrida na metade dos anos 80, criou novas
condições para que os Kaiowa pudessem oficiar à “luz do sol” suas cerimônias
religiosas, o novo “capitã”o passando a apoiá-las e o novo chefe de posto não opondo
obstáculos. A Missão também mudou de postura, sendo sua prática menos opressiva.
Foi assim que, em 1987, foi organizado um jeroky guasu em Sassoró, com a presença de
importantes xamãs, procedentes de várias regiões. O encontro foi possível através do
apoio do PKÑ (v. adiante a seu respeito), que forneceu alimentos e garantiu o transporte
dos convidados.
Dialogando à distância (através de ñengáry) com os chiru abandonados, foi
possível estabelecer quem seria o novo escolhido para deles cuidar, os próprios chiru
indicando a pessoa de Juarez. Foi assim que esses importantes objetos foram primeiro
esfriados (oñemboroy), para poderem ser transportados e posteriormente entregues ao
novo responsável. Até aquele momento, Juarez não tinha os conhecimentos apropriados
para desempenhar essa função, mas ao ser ele o indicado, os próprios xamãs,
repassaram-lhe alguns conhecimentos básicos, ficando como tarefa dos ñanderu a
realização de visitas periódicas, através de viagens físicas ou xamânicas estas através
dos ñengáry.
337
A partir desse jeroky guasu ficou estabelecido que tal evento seria repetido
aproximadamente a cada quatro anos, periodicidade esta que foi mantida até 1998.
Nesta última data, o encontro foi realizado contemporânea e complementarmente à aty
guasu inter-comunitária que ocorreu em Sassoró. Após essa data, não foram mais
realizados jeroky guasu nessa reserva.
12.3 Chiru e tradição de conhecimento
Como foi possível ver, os chiru representam para os Kaiowa importantes
elementos nas atividades cosmo-políticas, cuja conservação, distribuição e trajetória são
relevantes para a construção e/ou manutenção de relações e reivindicações étnicas,
mobilizando os indígenas em escala territorial ampla. Isto diz respeito à situação
contemporânea, que exige respostas bem precisas destes índios perante uma dominação
neocolonial, a qual lhes subtraiu o controle de grande parte das terras tradicionais,
depauperando o meio-ambiente, assim negando ou dificultando o acesso dos nativos a
boa parte dos recursos materiais necessários para sua existência sócio-econômica.
Lutar com uma certa eficácia para recuperar espaços territoriais onde
desenvolver a vida comunitária seguindo as regras do ñande reko (“nosso modo de
ser”), significava, e significa ainda, ter que se mobilizar a nível intercomunitário; para
tal propósito era necessário relacionar-se e interagir com aliados “brancos”, de modo a
obter benefícios em termos de infra-estruturas tecno-econômicas e viaturas, os quais
possibilitassem a concentração, em poucos dias, de indivíduos procedentes de lugares
distantes uns com relação aos outros. Em suma, enfrentar as condições historicamente
impostas pelo colonizador implicava lançar mãos de certas características da
modernidade e a criação de novas instâncias de interação social e religiosa supra-locais
(as aty guasu e as jeroky guasu).
No entanto, como vimos aqui na segunda parte, nos enganaríamos se
pensássemos que este tipo de mudança implicou numa construção de unidades político-
territoriais superiores aos tekoha guasu, e que os englobasse, cuja instância de discussão
e de manifestação ritual se expressasse periodicamente nas aty guasu e jeroky guasu.
Muito pelo contrário, nestas instâncias se refletem aspectos importantes da organização
social e da tradição de conhecimento dos Guarani da região e em hipótese alguma
338
constituem um princípio de hierarquização política e religiosa. Seguramente este nível
de interação permite a produção e a acumulação paulatina de experiências que
contribuem para modificar e melhor adaptar a vida social e religiosa dos Kaiowa (assim
como a dos Ñandéva) às circunstancias históricas do momento. Contudo, este mesmo
nível de interação gera formas organizativas e processos singulares, que exigem
previamente uma discussão sobre as características básicas da tradição de conhecimento
desses índios o que nos permitirá compreender melhor o papel que jogam os chiru
nesse processo de adaptação sócio-religiosa.
Os casos de Dourados e Sassoró retratam alguns caminhos percorridos pelos
Kaiowa a fim de poder transmitir e conservar os elementos centrais de sua visão de
mundo perante situações adversas submetidos que foram, por mais de um século, à
dominação colonial pelo Estado brasileiro. A descrição da trajetória histórica dos chiru
nas duas reservas escolhidas permitiu mostrar um processo de concentração desses
símbolos concretos (Barth 1987), os Kaiowa instituindo embora ainda não se tenha
formalizado – o papel de seu “guardião”. Esta figura tem obrigações para com os
“objetos” custodiados e com os ñanderu que lhes repassam as normas de conduta a
serem adotadas frente aos chiru, formando-se deste modo um vínculo privilegiado entre
guardiães e xamãs. Esse tipo de relação pode levar à formação de novos ajudantes
(yvyra’ija), que, dependendo da própria dedicação, poderão no futuro ter seus próprios
ñengáry, “surgindo” (ojehu) também eles como xamãs. Assim, estes poderão ganhar
progressivamente prestígio, em primeiro lugar perante as famílias com as quais estão
aliados, e, futuramente, a nível inter-comunitário.
339
Foto XVI
Foto XVII
Chiru na ogapysy de Adimiro Arce.
Reserva de Dourados. Maio de 2006.
(Foto de Alexandra Barbosa da Silva).
Chiru na casa de Juarez Velário Borvão.
Reserva de Sassoró. Outubro de 2004.
340
Foto XVIII
Foto XIX
Chiru recém construídos por Salvador Reinoso. T.I. Ñande Ru Marangatu. Agosto de 2000.
341
Foto XX
O “cacique” Adimiro Arce na Aty Guasu na reserva de Takuapiry. Maio de 2005.
342
Parte IV
ECOLOGIA DO GRUPO DOMÉSTICO
343
O grupo doméstico é sem dúvida a unidade mais relevante para a organização
das atividades cotidianas dos Kaiowa, sejam elas de ordem material, intelectual ou ainda
espiritual. Como foi possível ver, este grupo se constitui como grupo local através da
articulação de um conjunto de unidades residenciais, articulação esta determinada
através de laços de parentesco.
Segundo Godelier (1985: 28-29), em todas as “sociedades” existem relações
sociais que organizam o funcionamento da parentela, os mecanismos de autoridade e do
poder, da comunicação com os deuses e com os antepassados, mas não é em todas as
“sociedades” que as relações de parentesco, políticas ou religiosas dominam. Segundo
este autor,
...certas relações sociais dominam quando funcionam, simultaneamente,
como relações sociais de produção, como quadro e suporte sociais do processo
material de apropriação da natureza (idem: 29).
Em outra obra (1978), dedicada justamente ao processo de apropriação da
natureza, o autor francês considera este fenômeno como “trabalho”. Seriam, portanto, as
relações de trabalho as que permitiriam a organização do território, da economia e das
normas que regulamentam a propriedade e a transmissão de bens. Assim, buscando
oferecer definições teóricas a respeito destes fatores, Godelier chega às seguintes
conclusões:
La nature se presente donc pour l’homme sous deux formes, deux réalités
complémentaires, mais distinctes (on pourait aussi bien dire comme les deux côtes
d’une même réalité) : à la fois sous la forme du corps organique de l’homme,
c’est-à-dire sa réalité d’espèce animale sociale, et d’autre part, comme le milieu où il
trouvera les moyens de se reproduire socialement, ce milieu formant en quelque
sorte le corps ‘inorganique’ de l’homme, pour reprendre la belle expression de Marx
dans les ‘Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie’. On appellera donc
‘territoire ’ la portion de nature et d’espace qu’une société revendique comme le lieu
ses membres trouveront en permanence les conditions et les moyens matériels de
leur existence. (...).
Ce que revendique donc une société en s’appropriant un territoire, c’est
l’accès, le controle et l’usage, tout autant des réalités visibles que des puissances
invisibles qui le composent, et semblent se partager la maîtrise des conditions de
reproduction de la vie des hommes, la leur propre comme celle des ressources dont
ils dépendent. Voilà donc ce que nous semble recouvrir la notion de ‘ propriété d’un
territoire ’. Mais cette ‘proprieté n’ existe pleinement que lorsque les membres
d’une société se servent de ces règles pour organiser leurs conduites concrètes
d’appropriattion des ressources de leur ‘territoire’. Ces formes d’action sur la nature
sont toujours des formes sociales, qu’elles soient individuelles ou collectives, et
344
elles se présentent sous la forme de ce que nous appelons les activités de chasse, de
cuillette, de pêche, d’élevage, d’agriculture, d’artisanat ou d’industrie. Dans notre
société on appelle ces activités du ‘travail’ et l’on dénomme le développement
organisé de chacune d’elles, un ‘procès de travail ’. (...)
En bref, les formes de proriété d’un territoire sont une part essentielle de ce
que nous appelons la structure ‘ économique ’ d’une société, puisqu’elles constituent
la condition légale sinon legitime d’accès aux ressources et aux moyens de
production. Ces formes de propriété sont toujours combinées avec des formes
spécifiques d’organisation des procès de travail et de redistribution des produits
issus de ces procès, leur combinaison formant la structure économique d’une
société, le cadre social de la production, son ‘mode de production’, son systéme
économique. Décrire et expliquer les formes diverses de propriété de la nature c’est
élaborer, grâce à la collaboration des sciences historiques, de l’anthropologie et de
l’économie, l’histoire ‘raisonnée des systèmes économiques qui se sont succédés
au cours de l’évolution de l’humanité.
Les formes de propriété d’un territoire sont donc à la fois un rapport à la
nature et un rapport entre les hommes, lui-même double : c’est un rapport entre des
sociétés et en même temps un rapport à l’intérieur de chaque société entre les
individus et les groupes qui la composent. (1978: 17-18).
Como é possível observar, estes trechos apresentados, por um lado nos oferecem
um quadro bastante claro da abordagem marxista adotada pelo autor francês para
compreender as atividades dos seres humanos com relação ao mundo material; por
outro, nos permitem eles identificar alguns conceitos e pré-requisitos a partir dos quais
essa abordagem se substancializa, adquirindo a forma de um paradigma. Tais conceitos
e pré-requisitos são: 1) a dicotomia natureza/sociedade-cultura, 2) a integração material
entendida essencialmente como produção humana, e 3) uma visão sistêmica, que eleva
os sistemas a sujeitos de ação, transcendendo as relações e interações efetivadas pelos
indivíduos.
A definição de território formulada pelo autor pressupõe uma natureza pré-
existente, sobre a qual o homem se inclina, para dela recortar uma parte, parte esta da
qual obterá seu sustento através do trabalho, o qual, por sua vez, é entendido
exclusivamente como produção. Nestes termos, o procedimento de Godelier se
através da formulação de dicotomias, cujos elementos de articulação não o homens e
objetos, mas figuras, predefinidas como naturais, versus aquelas sociais. Assim, quando
o autor fala de “homem”, na verdade, entende “sociedade” ou uma sua “subdivisão”, e
quando se refere a “natureza”, não entende um ou outro objeto, mas um conjunto destes,
relacionados uns aos outros a partir de fatores não sociais ou culturais. Um processo de
apropriação da natureza é, portanto, algo que socializa estes objetos, isto é, os coloca
numa ordem que reproduz os aspectos materiais de uma relação social (Godelier 1978:
345
16). Nesta vertente de análise, apropriar-se da natureza é produzir os objetos, os quais
deixam de ser naturais para se tornar justamente produtos, isto é, cultura material.
Seguindo-se tal lógica, uma determinada ação sobre uma matéria “natural” tornaria esta
última algo artificial. Mas, o que dizer quando a ação é dirigida a um objeto que foi
construído por outro ser humano como amplamente descrito para o caso dos Kaiowa?
As dificuldades impostas pelo paradigma em questão devem-se particularmente ao fato
de se considerar os homens e a natureza em termos abstratos, constituindo totalidades
homogêneas, organizadas pelo pesquisador como tipologias pré-constituídas externas
aos indivíduos concretos. Segundo esta abordagem, os Kaiowa seriam considerados
como subsumidos à economia capitalista, focalizando suas relações como sendo de
dependência e não de interdependência com os “brancos” como as descrevi ao longo
das três primeiras partes desta tese.
Godelier seguramente concordaria sobre o fato de que, entre os Kaiowa, o que
dominam são as relações de parentesco, que permitem a definição de um grupo
doméstico, mas a necessidade do autor de condicioná-las a uma noção de trabalho como
simples produção lhe impediria de abordar o processo de aquisição e distribuição de
bens como sendo o fulcro da organização material da unidade doméstica. Esta
dificuldade, porém, não é exclusividade de uma abordagem marxista ao grupo
doméstico
198
; ela está intimamente relacionada a uma visão ocidental da organização
material e técnica dos seres humanos, baseada nos três fatores anteriormente indicados:
visão sistêmica, contraposição natureza/sociedade, conotação da tecnologia a partir das
lógicas de produção, e não das necessidades de uso dos objetos
199
.
198
Do qual Cresswell (1976 e 1996) é um exemplo.
199
Em algumas abordagens, por exemplo, os sistemas técnicos são fortemente vinculados aos
pretendidos sistemas simbólicos, passando estes últimos a determinar a coerência dos primeiros
(Lemonnier 1980, 1983, 1992, 1993, 1994; Lemonnier & Latour 1994; Bromberger 1979; Descola 1994;
Baudrillard 2000). Este tipo de relação fica bem clara na seguinte passagem de Lemonnier: “Social
representations of technology are also a mixture of ideas concerning realms other than matter or energy.
In short, the mental processes that underlie and direct our actions on the material world are embedded in
a broader, symbolic system (1993: 3)”. A maioria destas abordagens busca analogias e metáforas na
estrutura da língua como instrumentos analíticos para definir as relações internas aos sistemas produzidos
(simbólicos e materiais). Destes enfoques dispomos de muitos, com vários graus de sistematização e de
ênfases, mas a colocação mais forte parece ser a seguinte: A tecnologia conta-nos uma história rigorosa
dos objetos, onde os antagonismos funcionais se resolvem dialeticamente em estruturas mais amplas.
Cada transição de um sistema para outro melhor integrado, cada comutação no interior de um sistema já
estruturado, cada síntese de funções faz surgir um sentido, uma pertinência objetiva independente dos
indivíduos que a utilizarão: achamo-nos no nível de uma língua; por analogia com os fenômenos da
346
Para poder entender a procura de coerência nas concatenações técnicas nas
perspectivas sistêmicas, pode-nos ser útil a seguinte definição de tecnologia oferecida
por Ingold (1986):
The totality of the conceptions and their interrelations, located in men’s
minds, constitues a technology. It is vital that we should not confuse the technology
with the assemblage of material equipment recovered from a particular context.
Archaeologists do not dig up technologies from prehistoric sites, they dig up their
material expression in the form of artefacts, leaving us to guess how they were
made and used. A technology consists, in the first place, of corpus of knowledge that
individuals carry in their heads, and transmit by formal, symbolically encoded
instruction (:43).
Neste sentido, uma tecnologia não é uma concatenação de técnicas. Ela é um
design na mente de um indivíduo. Contudo, como o próprio Ingold observou em outro
trabalho (1988: 152), a etimologia da palavra “tecnologia”, como junção de tekhnê e
logos, remete a tempos relativamente recentes. A noção se deve ao processo de
racionalização da produção na Europa nos últimos três séculos e às influências dos
pensamentos de Galileu, Descartes e Newton (idem). Outro fator ainda resulta ser
fundamental: a comparação (operada por ilustres expoentes da denominada “Nova
Ciência”) do universo com as máquinas criadas pelos homens
200
. As máquinas
projetadas concatenam técnicas racionalmente, para dar como resultado um determinado
produto. Nesse sentido, a projeção do design da mente do projetista às características da
Lingüística, poderíamos chamar “tecnemas” a esses elementos técnicos simples diferente dos objetos
reais – cujo jogo fundamenta a evolução tecnológica.” (Baudrillard 2000: 12-13). Como é possível notar,
nos últimos dos trechos aqui citados, os sistemas simbólicos se objetivariam nos sistemas técnicos,
através do ato de produzir. Especificamente Baudrillard deixa transparecer que considera as relações
funcionais entre aqueles que define de “tecnemas”, independentemente do uso destes elementos feito
pelos indivíduos. De fato, com esse entendimento, o filosofo francês acaba por despolitizar os atos tecno-
econômicos.
200
Boyle, por exemplo, considerava o universo como sendo “una grande máquina semoviente” (Rossi
1966: 134). A comparação entre as máquinas e os corpos biológicos, assim como o entendimento de que
Deus seria o mecânico do Cosmo (opinião comum entre vários autores entre os séculos XV e XVII) cria
uma evidente analogia entre as atividades e obras do homem e aquelas do divino. Rossi afirma que “la
admisión del modelo máquina, la integral explicación de la realidad física y biológica en términos de
materia y movimiento, implicaban una profundísima modificación del concepto de naturaleza. Esta no
aparece ya como una urdimbre de formas y esencias en la que se inserten las “cualidades”, sino como un
conjunto de fenómenos cuantitativamente mensurables. Todas las cualidades que no sean traducibles en
términos matemáticos y cuantitativos son excluidas del mundo de la física. En la naturaleza no se dan
“jerarquías”, y el mundo no aparece ya como a la medida del hombre. Todos los fenómenos, lo mismo
que las piezas que componen una máquina, tienen el mismo valor. Conocer la realidad quiere decir caer
en la cuenta del modo como funciona la máquina del mundo, y la máquina puede (al menos teóricamente)
ser desmontada en sus elementos constitutivos para después volver a ser compuesta pieza por pieza…
(1966: 135)”.
347
máquina implica uma idéia de sistema fechado e coerente. As peças de uma máquina se
relacionam uma com a outra, ao mesmo tempo, exatamente nas modalidades previstas
pelo projetista. Mas, fora das propriedades de uma máquina, podemos falar de uma
correspondência entre designs e concatenação das técnicas operadas por homens
distintos, em momentos distintos, muitas vezes com perspectivas e ideologias também
distintas? As perspectivas sistêmicas pareceriam responder positivamente a esta
questão. Assim fazendo, indicam confundir a lógica da máquina com a das relações
sociais, e, os diferentes designs, com a lógica da representação simbólica.
Ocorre que não sempre no Ocidente a organização material devida às ações
humanas foi entendida desta forma. Platão, por exemplo, focava de modo diverso as
técnicas. A tal respeito me parecem extremamente pertinentes as seguintes afirmações
de Cambiano
201
(1971) sobre o pensamento do filósofo grego:
Platão distingue dois níveis de consideração de uma técnica. Cada técnica é,
por um lado, técnica de produção ou de aquisição e tem como êxito um objeto
produzido ou adquirido; por outro lado ela é também técnica de uso de determinados
instrumentos para a produção e a aquisição de um objeto. Mas cada técnica de
produção e aquisição, depois de ter executado a própria tarefa, deixa aberto o
problema do uso do objeto que ela produziu ou adquiriu.[...] Os produtos das
técnicas de produção e, conseqüentemente, as mesmas técnicas de produção tornam-
se úteis na medida em que existem técnicas de uso de tais produtos. Isto significa
que entre as técnicas se estabelece uma hierarquia que subordina as técnicas de
produção e de aquisição às técnicas de uso” (Cambiano 1971: 159-60 tradução
própria).
Colocando no ápice da escala as técnicas de uso, Platão tentava dar prioridade às
necessidades dos beneficiários dos objetos produzidos ou coletados, sobre as ações
técnicas dos especialistas (artesãos). Ademais, ainda conforme Platão, apenas uma
“técnica, diferente daquelas artesanais, pode garantir a convivência ordenada, que torna
possível o uso social das técnicas com as vantagens correspondentes, e a solução de
eventuais conflitos. Ela é a técnica política...” (Cambiano 1971: 16 - tradução própria).
Colocar as técnicas de uso em uma posição preeminente, e a técnica política
como técnica organizadora de técnicas – conforme proposto por Platão – permite formas
de análise alternativas às visões sistêmicas. Através deste enfoque podem ser
201
Ver também considerações similares em Galimberti 2000.
348
observados elementos de desordem e incoerência como constitutivos das concatenações
técnicas e das relações sociais, que estariam em jogo muitos pontos de vista,
relacionados através de temporalidades diferentes. Estes pontos de vista podem exprimir
clivagens étnicas, perspectivas de diferentes tradições de conhecimento e design. A
imposição de um ou mais pontos de vista sobre os outros dependerá, como sugere Elias
(1991), das relações de poder estabelecidas através de um jogo relacional e de
interdependência entre as partes atuantes. Neste sentido, assumindo uma ótica
processual que nos reconduz à dimensão histórica dos eventos, onde se concatenam as
técnicas, podemos afirmar que os sistemas não constroem, mas são construídos (Vincent
1986, Barth 1992). Isto nos permite ver os sistemas técnicos produzidos como resultado
do cotejamento entre indivíduos que expressam parâmetros tecnológicos diferentes.
A seguir, portanto, recuperando as formulações de Platão, pretendo focar a
organização material dos Kaiowa em função das suas necessidades de uso dos objetos.
Buscarei entender os processos que levaram as unidades domésticas a mudarem as
estratégias de composição de suas bagagens materiais e técnicas, no seio de contextos
sócio-ecológico-territoriais que não contemplam unicamente a presença desses índios,
mas também, e de modo conspícuo, significativos contingentes de “brancos”. Estes
“brancos” foram responsáveis, em mais de um século de história, pela modificação
radical do meio-ambiente e pela introdução de objetos e técnicas antes desconhecidas
pelos índios em questão. O progressivo deslocamento da própria atenção das técnicas de
produção para as técnicas de aquisição tem levado os Kaiowa a estabelecer relações
muito mais amplas e intensas com indivíduos o-indígenas, dando vida a atividades e
lógicas específicas de distribuição de bens. Nesta quarta e última parte do presente
trabalho pretendo justamente descrever e analisar estes fatores e suas conseqüências
para a organização doméstica dos Kaiowa.
349
Capítulo XIII
Bagagem material e atividades tecno-econômicas
De início, deve ser observado que a variedade de objetos, técnicas e atividades
desenvolvidas pelos Kaiowa é bastante ampla, de modo que o objetivo nas páginas
seguintes não é o de oferecer um panorama completo, em termos quantitativos, destes
elementos, e tampouco se pretende falar sobre um Kaiowa genérico deparando-se com o
mundo material.
A bagagem de objetos e técnicas e as atividades que serão aqui relatadas e
analisadas dizem respeito principalmente a famílias assentadas em quatro lugares
específicos: as áreas de Jaguapire e Pirakua, o acampamento de Jatayvary e arredores, e,
finalmente, a reserva de Dourados. Especificamente com relação a esta última
localidade, vista sua complexidade e a enorme quantidade de objetos e técnicas que nela
circulam, farei referência a certos fenômenos que se apresentam como mais
generalizados, cuja descrição considero importante para a compreensão das estratégias
adaptativas dos Kaiowa contemporâneos. Embora com relação a outros lugares exista
maior possibilidade de realizar inventários bastante exaustivos dos tipos de objetos e
técnicas disponíveis aos indígenas residentes, também neste caso o entrarei em
detalhes
202
, limitando-me a apresentar, mais adiante, um quadro sinóptico, com os itens
mais recorrentes (v. tabela VII). Meu escopo é mostrar principalmente lógicas de
integração material e de valorização dos objetos, focalizando as características do
universo material com que se deparam hoje os indígenas, além do quadro de referência
sócio-técnico onde os fenômenos singulares estão inseridos.
202
Uma exposição detalhada de objetos e técnicas, assim como a conseqüente análise dos
comportamentos tecno-econômicos singulares, exigiriam um espaço muito grande e uma exaustiva
descrição e análise das “cadeias operativas”, o que vai além das pretensões deste trabalho. Da perspectiva
de uma Antropologia da Tecnologia, acho indubitavelmente relevante este tipo de aprofundamento, algo
que pretendo empreender futuramente.
350
13.1 O habitat
O amplo espaço geográfico onde foram construídos os diversos territórios paî-
tavyterã/kaiowa abrange parte das bacias hidrográficas dos rios Paraguai e Paraná (v.
mapa X), totalizando, como visto, mais de cinco milhões de hectares. A fronteira entre o
Brasil e o Paraguai foi estabelecida seguindo a espinha da serra de Maracajú, justamente
o divisor de águas entre essas duas importantes bacias hidrográficas da região. No lado
paraguaio, os tekoha guasu foram desenhados por estes indígenas seguindo as
ramificações dos numerosos córregos que constituem as sub-bacias dos rios Apa,
Aquidabán, Ypane e Aguaray Guazu, todos afluentes da margem esquerda do Rio
Paraguai. No lado brasileiro, a maior parte das sub-bacias são determinadas por
afluentes do Paraná, como os rios Brilhante-Ivinheima, Amambai e o Iguatemi. que
se destacar também um afluente do Rio Ivinheima, o Rio Dourados, o qual, pelo seu
porte, cumprimento e ramificações, foi e é ainda um importante curso fluvial,
contemplado nas estratégias dos Kaiowa de assentamento e exploração de recursos. Faz-
se presente ainda o rio Apa, que, como visto, deságua no rio Paraguai, mas que se
forma, através de vários afluentes, em território brasileiro, tendo sido palco da
construção do tekoha guasu dos Apapegua – como foi descrito no capítulo VI.
Como ilustra o ecólogo Comar em relatório ambiental sob os auspícios do
MPF sobre o espaço territorial reivindicado pela comunidade Kaiowa de Kokue’i,
situado na sub-bacia do rio Apa,
A região encontra-se em importante zona de transição de floresta
semidecídua e decídua
203
entre pelo menos quatro diferentes biomas
204
, sendo
reportadas espécies próprias da mata atlântica, do cerrado, do chaco paraguaio e
argentino e de elementos da Amazônia, advindo de fluxos gênicos da Bolívia. […]
O solo predominante é o Podzólico vermelho-escuro, textura argilo-arenosa
com boa aptidão para lavouras, favorecidas pelas condições de relevo, profundidade,
ausência de pedregosidade e boa drenagem […]
Clima caracterizado como Eumesaxérico “Subtropical do Sul de Mato
Grosso do Sul”, com precipitação entre 1.400 a 1700 mm., com boa distribuição ao
longo do ano. A temperatura média nos meses mais frios é de 14 a 15 ºC, com
ocorrência de geadas (ATLAS MS, 1990). (2006: 5-6).
203
“Ecossistema formado por vegetação que perde todas as folhas ou parte delas em uma época
determinada” (Ormond 2004: 130).
204
“Categoria de habitat em uma determinada região do mundo incluindo vegetação, clima, solo e formas
de vida” (Ormond 2004: 46).
Região onde se configuram os territórios
dos Paî-Tavyterã/Kaiowa.
Mapa X
O agrônomo Spyer (1999), em relatório similar sobre a T.I. Ñande Ru
Marangatu, situada na mesma sub-bacia, acrescenta que em tempos anteriores ao
intenso desmatamento sofrido pela região existiam aproximadamente 800 espécies de
árvores e arbustos, e mais de 600 espécies herbáceas. Referindo-se especificamente à
sub-bacia do rio Apa, o autor, a partir de dados do IBAMA, destaca que nos anos de
1960-70 existiam, somente no município de Ponta Porã, 800 serrarias, sendo que, no
final dos anos de 1990, apenas duas permaneciam de pé. Do ponto de vista de sua
cobertura vegetal originária, estes dados não deixam dúvida sobre o fato de que esse
espaço geográfico encontra-se hoje fortemente descaracterizado.
Comar (2006), assim como Mello (2002)
205
, apresenta as conseqüências
ecológicas do processo determinado pelo desenvolvimento, na região, de atividades
produtivas fomentadas pelo Estado, baseadas no extrativismo massivo de madeira e na
mecanização da agricultura, bem como na introdução de insumos químicos
(fertilizantes, herbicidas, inseticidas etc.) na disseminação de pastagens exóticas
(colonião, braquiária etc.) e na expansão da pecuária extensiva. Segundo Mello,
...pouco da rica vegetação natural foi poupada na região, e a maioria dos
fragmentos de mata existentes já foram explorados no passado, de onde foram
retirados nobres exemplares de Perobas, Cedros e Ipês.
Os fragmentos de Cerrado e Matas remanescentes são pequenos e
descontínuos... (2002: 5).
Ambos autores colocam em evidência os aspectos fortemente negativos do ponto
de vista ecológico, relacionados ao isolamento dos fragmentos de matas, umas com
relação às outras, fato este que permite o manifestar-se do denominado “efeito borda
fenômeno que é descrito por Fernandez da seguinte forma:
A partir do momento que uma pequena mata passa a estar cercada por áreas
abertas, uma série de alterações microclimáticas começam a ocorrer em cadeia na
periferia do fragmento. Uma outra alteração, com efeitos inesperadamente drásticos,
é o aumento da exposição ao vento; a cada ventania as árvores externas tombam em
grande quantidade, por sua vez expondo suas vizinhas internas para serem as
próximas – a borda vai entrando cada vez mais para dentro do fragmento que vai aos
poucos morrendo e se encolhendo ... Logo, as plântulas das grandes árvores (em
geral adaptadas a germinarem na sombra) simplesmente deixam de vingar, com o
recrutamento praticamente nulo das plântulas das grandes árvoreso fragmento não
205
Ecólogo que elaborou o laudo ambiental sobre a Terra Indígena ñandéva de Yvy Katu, situada no
extremo sul do Cone Sul do MS.
353
tende a se recuperar, mas a permanecer indefinidamente como uma mata estranha e
empobrecida. Com a mudança completa da estrutura dos fragmentos, os animais
começam a ser afetados; a composição da comunidade animal também muda
drasticamente acarretando em perda da diversidade. (Fernandez apud Mello 2002:
51)
206
.
Para se ter uma idéia mais precisa da situação ecológica em que se encontra
atualmente o Cone Sul do Mato Grosso do Sul, é suficiente observar o mapa X;
podemos notar a clara diferença entre o lado brasileiro e o paraguaio da fronteira, o
primeiro tendo sido mormente afetado pela penetração da agricultura mecanizada e a
pecuária extensiva. No Paraguai ainda existem maciços florestais consideráveis, embora
a maioria deles esteja afastada das linhas fronteiriças.
De um ponto de vista numérico, para compreender a porcentagem de matas
existentes na região em causa, é interessante a seguinte tabela, desenhada por Mello
(2002: 4), a partir de dados de 2000, procedentes do IBGE.
Tabela V
Remanescentes de mata nativa nos municípios da região em 31/12/1.999
Iguatemi Japorã Mundo Novo Naviraí Eldorado Sete Quedas
10% 3,7% 4,8% 10% 13% 10,8%
Os municípios levados em conta pelo autor referem-se aos localizados no
extremo sul do estado. Contudo, vistas as imagens de satélite, se pode verificar que nos
demais municípios do Cone Sul a situação não é diferente. Se cotejamos estas imagens
com os mapas da região, elaborados em 1969 pelo Exército brasileiro, percebe-se que
naquela época o Cone Sul do MS era ainda coberto por pelo menos 50% de suas matas
nativas.
206
Comar (2006) aponta também a ão dos agrotóxicos como contribuindo para a determinação do
“efeito borda”.
354
O desmatamento massivo nos espaços geográficos em questão não acarretou
simplesmente uma drástica diminuição da população vegetal e animal (tanto em
números de indivíduos quanto em variedades de espécies por hectares); este fenômeno
provocou também significativas modificações na rede hidrográfica. Muitos rios
diminuíram o porte de água, sendo afetadas a fauna aquática e a morfologia dos cursos
de água. A título de exemplo, um estudo recentemente realizado pela Universidade
Estadual de Mato Grosso do Sul (Daniel et al. 2004) revela que nos últimos 20 anos o
Rio Dourados diminuiu seu porte de água em quase a metade, alguns de seus afluentes
tendo totalmente perdido as matas ciliares, secando por completo. Outros fenômenos,
relacionados à falta de cobertura vegetal nativa, são o processo erosivo e o
assoreamento dos cursos fluviais, ambos agravados pela ação física exercida pela
pressão no solo dos membros dos bovinos, presentes em grande número na região, solo
este, por sua vez, sujeito facilmente à descompactação, por falta de vegetação. Um
derradeiro fator de mudança provocado pela falta de vegetação nativa é aquele relativo
ao nível pluviométrico. De fato, de um clima úmido, constante em todas as estações,
nestes últimos anos tem-se passado a um clima diversificado, com períodos cada vez
mais significativos de seca, especialmente durante o inverno (de junho a setembro), com
fortes rajadas de vento, o que favorece rápidas e devastadoras propagações de incêndios.
O argumentado até aqui se refere ao retrocesso e degrado das características
ecológicas originárias. Neste sentido, coloquei em evidência processos de perda de
elementos materiais que muitas décadas eram disponíveis em abundância para as
famílias indígenas. Contudo, estas devastações não foram provocadas pelos “brancos”
repentinamente e muito menos estes abandonaram a região após a devastação. Se assim
fosse, os índios se deparariam com a base material de seus territórios sumamente
empobrecida, se cotejada com aquela que tinham à disposição no século XIX. Mas o
habitat não sofreu simplesmente devastação; ele foi mudando seu perfil, com a
introdução progressiva de estruturas materiais, circulação de objetos e saberes técnicos
ligados a seu uso e/ou sua reprodução. Os “brancos” foram os principais atores desta
355
transformação material dos espaços territoriais kaiowa e ñandéva, muitas vezes se
servindo da mão-de-obra destes indígenas para tal propósito
207
.
Como vimos na primeira parte deste trabalho, a terceira situação histórica
caracterizou-se pelo domínio do extrativismo da erva mate. Nas duas primeiras décadas
do século XX, embora tivessem sido introduzidas pela Cia. Matte Larangeira infra-
estruturas consideráveis para a época, o extremo sul do então Mato Grosso possuía tão
somente dois municípios: Bela Vista (1908) e Ponta Porã (1912), as outras nucleações
urbanas não passando de pequenas vilas. Essas vilas foram se desenvolvendo, ganhando
progressivamente o status de distritos, para depois serem emancipadas em municípios.
Este processo foi, porém, lento. Para se ter uma idéia, Dourados conseguiu se emancipar
como unidade administrativa tão somente na década de 30 do século XX, Amambai, na
década de 40, Iguatemi (centro importante no período ervateiro) e Antônio João
conseguiram se constituir em município na década de 60, enquanto que Tacuru se
emancipou apenas em 1980 estas considerações referem-se apenas aos municípios
onde se localizam as famílias indígenas entre as quais realizei minha pesquisa.
O período de maior mudança da realidade material da região em pauta é, sem
dúvida, o das décadas de 1960 e 1970, com a já referida mecanização do campo, quando
se passou a implementar um massivo comércio de instrumentos técnicos e maquinários,
comércio este que favoreceu o crescimento dos centros urbanos locais. O produto
interno bruto dos municípios cresceu também consideravelmente; a renda, porém, foi
distribuída de modo desigual, com forte concentração nas mãos de grandes e médios
proprietários rurais. Com efeito, a mecanização permitiu a formação de latifúndios,
caracterizados pela pecuária extensiva e a introdução de monoculturas, especialmente a
soja.
Hoje o Cone Sul do Mato Grosso do Sul apresenta um habitat profundamente
mudado com relação àquele de que os índios dispunham pouco mais de três décadas.
A tabela VI, apresentada a seguir, elaborada a partir de dados recentes do IBGE, nos
oferece a magnitude desta mudança. Analisando os dados nela contidos, pode-se
rapidamente deduzir a desproporção existente entre os recursos decorrentes da produção
207
Relembro que muitos Kaiowa e Ñandéva participaram, como mão-de-obra, da derrubada do mato da
região, especialmente durante a década de 1960.
356
daquela que nós definimos como natureza, e aqueles introduzidos ou colocados em
circulação pelos “brancos”. Tecendo alguns cálculos a partir dos dados apresentados,
podemos rapidamente verificar que o plantio de soja ocupa 16,76% da superfície
determinada pelo conjunto de todos os territórios dos municípios contemplados. Por
estimativa, pode-se afirmar que os centros urbanos juntos não superam 0,87% da
superfície
208
, porcentagem quase equivalente àquela constituída pela soma das terras
indígenas de posse efetiva dos Kaiowa e Ñandéva da região. Levando-se em conta estes
números e adicionando-lhes aproximadamente 10% de matas remanescentes, fica claro
que mais de 70% da superfície total da região é destinada a abrigar e sustentar as
3.869.372 cabeças de gado indicadas na tabela VI
209
.
Considerando agora a relação entre o produto interno bruto total de cada
município e aquele adicionado pela agropecuária, podemos claramente verificar a
grande importância que a produção rural ocupa nestes lugares, superando, em muitos
casos, 50% da produção do município. que se considerar também que grande parte
das atividades industriais e de serviço é direta ou indiretamente vinculada à lógica rural
de produção. Até mesmo nos casos como Dourados e Iguatemi, onde o produto interno
bruto adicionado pela agropecuária apresenta-se como mais modesto (se cotejado com o
dos outros municípios), verifica-se que a maior parte das atividades industriais são
processos de transformação ligados à produção rural
210
. Com relação ao comércio,
podemos tecer as mesmas considerações. A maioria das lojas dedica-se a oferecer
assistência para os produtores rurais.
208
Não disponho de informações sobre a dimensão da maioria dos centros urbanos, mas sabe-se que
Dourados, a mais extensa e populosa cidade da região, foi construída em uma gleba de 3.600 ha. Neste
sentido, sendo as outras cidades bem menores, podemos estimar que todas as vinte e três (23) juntas,
unidas aos respectivos distritos, não chegam a totalizar 40.000 ha.
209
O IBGE não fornece a relação entre cabeça de gado e número de hectares necessários para sua
sustentação. Contudo, sabe-se que a proporção em média é de 1 por 1, podendo esta aumentar para 3 por
2, ou mesmo para 2 por 1, em casos mais raros, quando a terra é mais generosa, oferecendo pastos mais
nutritivos. Outras culturas, além da soja, assim como a criação de outros animais, não foram aqui
contemplados, por ocuparem espaços percentualmente desprezíveis.
210
Dourados constitui-se em significativo centro de industrialização de aves, enquanto Iguatemi hospeda
dois importantes frigoríficos da região (abate, corte e estocagem de carne bovina).
TABELA VI: Dados do IBGE sobre os municípios de Mato Grosso do Sul estabelecidos em parte ou
totalmente nos espaços geográficos tradicionalmente ocupados pelos Kaiowa e/ou Ñandéva
Município Populaçã
o/ano
2005
Superfície em
Ha
Cabeças de
Bovinos/
ano 2003
Superfície
ocupada por
soja em
Ha/ano 2003
Produto
interno bruto
adicionado
pela
agropecuária
em reais* /ano
2002
Produto
interno bruto
adicionado
pelos serviços
e indústria em
reais* /ano
2002
Produto interno
bruto total em
reais /ano 2002
Amambai 31.697
420.200
405.127
21.000
70.540.000
113.544.000
184.084.000
Antonio João 7.892
114.400
112.830
10.200
21.247.000
15.837.000
37.084.000
Aral Moreira 8.049
165.600
82.762
67.000
65.265.000
26.394.000
91.659.000
Bela Vista 23.411
489.600
451.933
9.500
51.979.000
49.779.000
101.758.000
Caarapó 19.587
209.000
164.704
63.000
98.267.000
91.618.000
189.885.000
Coronel Sapucaia 13.562
102.900
98.227
5.000
17.677.000
28.059.000
45.736.000
Douradina 4.726
28.100
14.463
8.300
19.174.000
13.155.000
32.329.000
Dourados 183.096
408.600
268.835
145.462
193.910.000
982.044.000
1.175.954.000
Eldorado 11.080
101.800
115.902
7.147
33.640.000
45.904.000
79.544.000
Fátima do Sul 17.204
31.500
16.814
7.000
24.113.000
51.134.000
75.247.000
Glória de Dourados 8.873
49.200
67.042
700
34.626.000
24.635.000
59.260.000
Iguatemi 15.194
294.700
294.305
8.000
34.954.000
66.179.000
101.133.000
358
* Além da soja e gado, o IBGE contempla no cálculo da produção agropecuária também suínos, eqüinos, asininos, muares, bubalinos, coelhos, ovinos, galinhas, galos,
frangos e pintos, codornas, vacas ordenhadas, leite de vaca, ovinos tosquiados, lã, casulos de bicho-da-seda, ovos de galinha, ovos de codorna, mel de abelha, abacaxi,
algodão, alho, amendoim, arroz, aveia, batata doce, batata inglesa, cana-de-açúcar, cebola, centeio, cevada, ervilha, fava, feijão, fumo, juta, linho, malva, mamona, mandioca,
melancia, melão, milho, rami, sorgo, tomate e trigo. No cone sul do MS, além da soja e do gado, constitui importante produção a de aves e suínos e as lavoras de milho, trigo
e aveia (culturas estas utilizadas geralmente nas entre-safras da soja), além de arroz e feijão. Com exceção feita para Naviraí, nos demais municípios aqui considerados, a
cana-de-açúcar é praticamente inexpressiva, quando não ausente. que se considerar, entretanto, que em municípios vizinhos, imediatamente adjacentes aos territórios
ocupados pelos Kaiowa e os Ñandéva, existe considerável produção deste vegetal, cujo corte e estocagem é baseado essencialmente na mão-de-obra indígena.
Itaporã 17.740
1.322
57.217
45.000
69.190.000
73.808.000
142.998.000
Japorã 7.157
42.000
64.550
2.000
11.238.000
9.889.000
21.127.000
Juti 4.798
158.500
151.220
7.200
23.366.000
11.084.000
34.450.000
Laguna Carapã 6.090
173.400
88.330
65.000
53.127.000
37.955.000
91.082.000
Maracaju 28.236
529.900
348.765
145.000
189.460.000
148.385.000
337.845.000
Mundo Novo 14.271
47.900
52.107
1.200
10.948.000
49.018.000
59.966.000
Naviraí 40.416
319.400
295.150
18.000
72.301.000
239.268.000
311.569.000
Paranhos 10.675
130.200
110.800
110
13.118.000
17.355.000
30.473.000
Ponta Porã 67.190
532.900
302.688
132.500
145.285.000
284.750.000
430.035.000
Sete Quedas 8.394
82.600
106.600
2.500
16.829.000
21.466.000
38.295.000
Tacuru 9.647
178.500
199.001
2.500
24.622.000
16.541.000
41.163.000
Total 558.985
4.612.222
3.869.372
773.319
1.294.876.000
2.417.801.000
3.712.676.000
Mesmo uma cidade como Dourados (a segunda do estado em tamanho)
apresenta uma estrutura da rede comercial não muito diferente de um centro bem menor
como é, por exemplo, Iguatemi. Em ambas encontram-se lojas de venda de artigos de
agropecuária bem abastecidas, onde é possível encontrar ferramentas, vestimentas
especializadas, produtos veterinários etc. A diferença pode ser estabelecida mais em
termos de quantidade do que em diversidade de artigos a serem encontrados.
As atividades rurais não se limitam, porém, a influenciar o ritmo das cidades
sulmatogrossenses. que se levar em conta também o fato de que o trabalho braçal é
realizado por pessoas humildes, cujos alojamentos, permanentes ou temporários que
sejam, estão localizados no interior das fazendas. Além disso, existem assentamentos
rurais, acampamentos de trabalhadores rurais “sem-terra” e as próprias terras indígenas
situadas distantes das cidades. Nestes termos, tendo como clientes este leque de
indivíduos, disseminam-se pela região pequenos estabelecimentos comerciais,
conhecidos como “bolichos”. Nestes locais, além de se fazer compras, é possível
realizar transações econômicas na base da troca, e é praticada a venda a crédito. Muitos
deles também funcionam como lugares de socialização e consumo de bebidas
alcoólicas.
Tomemos agora em conta as implicações que estas transformações tiveram para
os Kaiowa e Ñandéva da região. Para estes índios, a mudança de distribuição de
recursos, que caracteriza a realidade atual de seus espaços territoriais, não é o resultado
de uma mecânica substituição e/ou incremento de materiais e objetos com relação a
épocas passadas. Não se pode simplesmente afirmar que hoje existe, por exemplo, 70%
da superfície regional onde pastam milhões de bois, e cidades contendo significativas
quantidades de objetos e alimentos estocados, no lugar de densas florestas povoadas por
uma grande diversidade de seres e recursos. Os índios não podem, em total autonomia,
caçar ou capturar esses bovinos ou coletar esses objetos e alimentos. Existem, de fato,
significativas mudanças nas modalidades através das quais os Kaiowa e Ñandéva
podem ter acesso aos recursos por eles desejados. A delimitação física (através de
cercas) de enormes espaços territoriais, constituídos em propriedades privadas nas mãos
de “brancos”, e a construção de centros urbanos que concentram e distribuem alimentos
(também nas mãos de não-índios), colocam outros tipos de constrangimentos para os
Guarani. Para poder explorar eficientemente seus territórios, eles precisam cogitar
estratégias novas, a serem adicionadas àquelas utilizadas no passado.
360
O redimensionamento da disponibilidade de materiais e alimentos na região,
assim como os critérios que pautam sua acessibilidade, redesenha a geografia dos
recursos nos espaços territoriais kaiowa e ñandeva, criando condições para o
estabelecimento de itinerários de aprovisionamento compósitos. Efetivamente, os índios
devem levar em conta que o habitat onde vivem hoje não lhes permite assentarem-se
onde considerem mais oportuno; isto é, não podem eles ocupar sistematicamente as
cabeceiras de quase todos os córregos da região, como ocorria há quase um século. Hoje
eles dispõem de exíguos espaços, constituídos pelas terras indígenas – que, como vimos,
não chegam a ser 0,9% da região em pauta –, as beiras das rodovias e os centros
urbanos. Existe também a possibilidade das famílias indígenas conseguirem morar (ou
permanecer) em fazendas, estabelecendo relações de trabalho com os seus “donos”. De
qualquer forma, os locais de acesso aos recursos se reduziram em muito com relação ao
passado. Por outro lado, que se considerar que a tipologia dos materiais coletados
também mudou, assim como sua forma de distribuição no espaço geográfico. As
cidades concentram a maior parte dos alimentos, utensílios e objetos hoje utilizados
pelos indígenas, constituindo-se assim num lugar de aprovisionamento privilegiado. O
fato de este local concentrar, em espaços relativamente reduzidos, o considerado
necessário para constituir a própria bagagem material, re-orienta de modo significativo
as atividades de jeheka (“procura de”) dos Kaiowa, algo que será detalhado mais
adiante.
Existe outro aspecto fundamental do habitat atual: os recursos procedentes das
atividades indigenistas. Neste caso, ao invés dos índios terem que explorar a região,
temos um fenômeno em certa medida contrário, com o afluxo de bens direcionados aos
espaços domésticos das famílias indígenas por obra de organismos públicos, ONGs e
missões religiosas.
A configuração do habitat aqui descrita coloca em evidência a complexidade dos
fatores e variáveis que entram em jogo na determinação das relações que os índios
precisam tecer para poderem executar as ações que lhes permitam se aprovisionar dos
recursos e saberes considerados necessários para a vida doméstica. Nestes termos, os
espaços geográficos não têm uma composição material e social homogênea. Pode-se
afirmar, como propõe Barbosa da Silva (s.d.), que os territórios Kaiowa e Ñandéva
atuais estão constituídos por diferentes ambientes”, como as terras indígenas, as
361
fazendas, as cidades e as margens das rodovias. Cada um desses ambientes exige
modalidades específicas para acessar e manejar os recursos neles presentes, assim como
para, eventualmente, constituir nelas unidades residenciais. Como justamente argumenta
essa autora (idem) – criticando trabalhos de Cardoso de Oliveira sobre os Terena (1968,
1976[1960]) –, não teríamos índios de aldeias, de fazenda e/ou de cidade, mas índios
nas aldeias, nas fazendas e nas cidades. Destaca a autora que, no território de própria
referência, os Kaiowa tecem redes baseadas no parentesco, que colocam em
comunicação vários te’yi. A maioria dos te’yi podem estar assentados nos espaços de
sua jurisdição em diferentes tekoha, mas outros podem se encontrar em fazendas,
rodovias ou cidades das redondezas. Existem ainda casos em que uma única família
extensa tenha alguns de seus membros distribuídos temporariamente em fazendas ou em
centros urbanos.
À exceção das beiras de rodovia cujas famílias assentadas são uma minoria
–, os demais ambientes são contemplados pelos itinerários experienciais de
praticamente todos os indígenas. As atividades agrícolas, de caça, pesca, coleta, changa,
as transações comerciais, as relações com os organismos públicos etc., contemplam um
certo tipo de mobilidade, que acaba inevitavelmente por conduzir um indivíduo a se
deparar com esses ambientes, assim como com suas peculiaridades em termos de
disponibilidade e acessibilidade aos recursos materiais e imateriais neles presentes. A
partir das especificações do habitat assim desenhado, constituem-se contextos sócio-
ecológico-territoriais específicos, caracterizados tanto pela dominação colonial dos
Estados brasileiro e paraguaio, quanto por intensas relações interétnicas entre índios e
“brancos” e pela confrontação de distintas tradições de conhecimento e tecnologias.
Nestes contextos, cada kaiowa, levando em conta as exigências de sua unidade
doméstica, terá à disposição um determinado repertório de possibilidades, repertório
este que poderá ser ampliado ou diminuído dependendo de sua competência técnica,
habilidade política, seu prestígio social e sua inserção no te’yi ao qual pertence.
13.2 Organização habitacional
Em minha dissertação de mestrado (Mura 2000), dediquei-me especificamente à
análise das habitações dos Kaiowa contemporâneos, buscando perscrutar as razões pelas
362
quais estes índios teriam abandonado as oygusu (denominadas também de óga jekutu:
“teto fincado no chão”), isto é as grandes construções que albergavam em seu interior
famílias extensas inteiras (v. fotos XXI, XXII e XXIII e figura III). Na ocasião, rechacei
duas explicações deste abandono que, por um lado se apresentavam em contraposição
uma com relação à outra, mas que, por outro, compartilhavam um ponto de vista, a meu
ver relevante.
A primeira das referidas explicações era a tese procedente das abordagens
calcadas na teoria da aculturação (Castro Faria 1951, V. Watson 1955 e Schaden 1974),
que atribuía a mudança a influências externas ao grupo indígena, este último sendo
entendido como progressivamente se tornando caboclo e, portanto, adotando formas
habitacionais tidas como específicas do mundo rural brasileiro. Abordando este tema,
Schaden chegou à seguinte conclusão:
Quanto aos Kayová, entre os quais está em plena atividade o processo de
individualização econômica, através do entrosamento do silvícola nas atividades
extrativas e produtivas regionais, a adoção da morada da família elementar
corresponde à imperiosa necessidade imposta pela transformação da economia.
[…]Hoje em dia, as habitações Kayová construídas segundo a técnica
tradicional da tribo são bem raras. A quase totalidade dos índios passou a preferir
casas de tipo caboclo ou, quando muito, as constrói em estilo misto, que tende a
perder, cada vez mais, os traços de origem silvícola. A casa Kayo tradicional
satisfazia a uma série de requisitos da organização social e religiosa. Constituía
abrigo ideal para o conjunto de famílias elementares que, congregadas em família-
grande sob a égide de um chefe único, formavam estreita comunidade de vida, com
interesses econômicos, religiosos e políticos em comum. As novas condições de
vida, a que a tribo está sujeita alguns decênios, acarretaram, como veremos, o
fracionamento da família grande e, concomitantemente, a substituição da casa
grande por algumas cabanas de tipo caboclo mais ou menos próximas umas das
outras.
O tipo da casa grande não é adequado às novas condições de vida dos
Kayová. A família elementar vai-se tornando cada vez mais a unidade fundamental
de produção e consumo. A economia, deixando de ser auto-suficiente, obriga o
homem a sair da aldeia e a trabalhar nos ervais, a fim de ganhar o dinheiro de que
precisa para obter umas tantas coisas que veio a considerar indispensáveis e que
somente a civilização lhe pode proporcionar. Pelo fato de cada homem adulto
isoladamente ganhar o seu dinheiro segundo os serviços que presta ao patrão,
rompe-se a primitiva produção grupal (Schaden 1974 [1954]: 28).
363
Foto XXI
Foto XXII
Ogapysy (“casa de rezas”) na residência de Adimiro Arce.
Reserva de Dourados. Abril de 2006. (Foto de Alexandra Barbosa da Silva).
Outro ângulo da ogapysy de Adimiro Arce. Reserva de Dourados. Abril de 2006.
(Foto de Alexandra Barbosa da Silva).
364
Foto XXIII
Figura III
Oygusu em uma foto de final do século XIX. Nos fundos da imagem, construção com teto a duas águas e
postes centrais. (Bates apud Castro Faria 1951).
Esqueleto de ogapysy.
365
A segunda tese, bem mais recente, é a proposta por Thomaz de Almeida (1991).
O autor também atribui a mudança na escolha da forma de habitar dos Kaiowa às
conseqüências do contato interétnico com os “brancos”. Ele, porém, neste fenômeno
uma transformação de ordem estética, acrescentando que fatores demográficos e a
escassez de materiais apropriados (devidos às condições ecológicas atuais) seriam
condições suficientes para o abandono da antiga casa comunal. Contrariamente ao
argumentado pelos partidários da teoria da aculturação, Thomaz de Almeida foca sua
atenção sobre a manutenção e não sobre o abandono da organização social e espacial
das famílias extensas. Assim, chega ele a criticar indiretamente as posições peroradas
por Schaden, no trecho anteriormente citado, quando afirma que
[…]Há, sem dúvida, uma fragmentação da família extensa ou te'yi que,
como descrito pela literatura, vivia então ‘baixo um mesmo teto’. O contato em
grande medida terá responsabilidades pelo fato dos Guarani abandonarem esta
arquitetura, e a estrutura à qual está ligada. Esta fragmentação do te'yi Kaiowa
sugere a existência de um processo de ‘descaracterização da organização familiar
Guarani’. Indubitavelmente que a arquitetura (estética), a matéria-prima, a
disposição das famílias e a própria concepção de habitar sofreram mudanças. Parece,
no entanto, que se mantêm regras que normatizam relações de parentesco, as quais,
mantidas estruturalmente, se organizam no espaço segundo essas determinações.
De fato, com o contato, as casas-grandes ogajekutu se desfazem e se
decompõem em diversas ‘casas regionais’ de estilo regional caboclo ou camponês,
apropriadas à família nuclear. Essa nova forma de apropriação do espaço sugere ao
observador incauto a descaracterização das formas tradicionalmente usadas por esses
índios. A articulação das estruturas do sistema de parentesco permite afirmar que a
casa-grande, ao ser desfeita, levou as famílias nucleares a ocuparem área maior ou
fragmentada, que antes era ocupada apenas por uma grande casa. Diversifica-se o
espaço destinado à moradia. O que antes se resumia à rede de dormir localizada
dentro da casa grande, hoje passou a ser uma residência do tipo caboclo-regional
[…] Mantêm-se inalterada, no entanto, a área de cada família para roça de
subsistência, água e, na medida do possível, o ka'aguy (mato para caça). Unidade
econômica nuclear e extensa, solidariedade, reciprocidade, organização política,
relações de parentesco, domínio de regiões, respeito de território, etc., permanecem
essencialmente inalterados, apesar da aparente ‘desorganização’ e aleatoriedade na
ocupação do espaço (1991: 229-230).
Embora os dois trechos citados apresentem duas diferentes e opostas visões
sobre as condições de “bem estar” da organização social das famílias extensas kaiowa,
não cabe dúvida de que ambos os autores argumentam a partir de um referencial que
atribui a originalidade do ser Kaiowa a uma condição pretérita. No primeiro caso, se
defende a causa de estes indígenas estarem abandonando a vida silvícola, com uma
conseqüente desorganização social e cultural do grupo; no segundo, se rechaça a
366
mudança para este aspecto da vida social, embora se admita a existência de
significativas transformações do ponto de vista da estrutura material com que se
deparam os índios.
As explicações fornecidas por Thomaz de Almeida para justificar o abandono da
oygusu são facilmente refutáveis. Primeiramente, nunca houve escassez de recursos
materiais ao ponto de impedir a construção deste tipo de casa. No momento em que
escrevia Schaden (década de 1950), as oygusu eram raras, mas as matas (para o
aprovisionamento de madeira para construção do esqueleto da habitação, e fibras para
fazer ataduras e costuras) e os campos naturais (para a coleta do sapé destinado à
cobertura das construções) eram ainda abundantes
211
. Segundo, é de se observar que, se
se somassem os madeiramentos e as superfícies das coberturas de todas as habitações
pertencentes à totalidade dos membros de um te’yi inteiro, teríamos seguramente uma
quantidade de recursos bem superior aos exigidos para construir uma única casa grande.
Finalmente, o aspecto demográfico também não constituiria um problema, visto que
uma das características centrais da oygusu é a de não ter paredes e colunas centrais, o
que permite a sua ampliação ou diminuição, conforme o tamanho da família (ver figura
III e foto XXIII).
A tese de Schaden, por seu turno, é refutável pelo fato de se basear no que o
próprio Thomaz de Almeida coloca com muita propriedade: uma observação incauta.
De fato, preocupado mais com a justificação de seu modelo teórico (da aculturação),
Schaden não conseguiu descrever e analisar adequadamente as relações existentes entre
as diferentes unidades residenciais que compõem o espaço de jurisdição de um
determinado te’yi. As informações que suprem esta deficiência desfazem por completo
sua argumentação. Com efeito, no momento em que atribuía ao trabalho assalariado (a
changa) a responsabilidade por um processo de individualização da economia dos
Guarani, Schaden pressupunha a existência de uma organização econômica coletiva
prévia, idealizada e abstrata, em certa medida baseada em uma noção de uma genérica
propriedade comunal. Nestes termos, não chegou ele a perceber que, contrariamente ao
211
Ao contrário, existe também uma foto (Bates apud Castro Faria 1951) datada de final do século XIX
que mostra para aquela época a presença de uma construção com telhado e paredes separadas (como a
maioria das atuais) junto a uma oygusu (v. Foto XXIII), o que indica que as mudanças de formas e
técnicas construtivas não podem ser atribuídas a constrangimentos ecológicos.
367
que imaginava, estes indígenas possuem circuitos bem definidos de distribuição e
redistribuição de bens, desconhecendo a noção de propriedade coletiva, até mesmo no
interior da maioria das unidades residenciais que albergam tão somente a família
conjugal como veremos no próximo item. Assim, o autor não conseguiu captar que a
solidariedade econômica (e também a política e emocional-afetiva) do grupo doméstico
não se baseia necessariamente na co-residência, podendo ela se determinar e reforçar
através de outras estratégias de ocupação espacial e organização residencial.
As explicações de ambos os autores são, portanto, insatisfatórias. Isto se deve, a
meu ver, ao fato de considerarem eles os indígenas como uma realidade, em certa
medida, a-histórica, a análise recaindo sobre se estes continuam ou não, por exemplo,
sendo Kaiowa, a partir de uma imagem-modelo atemporal. Indo em sentido contrário, o
objetivo de minha dissertação era abordar o te’yi como uma instituição do presente. Os
critérios de continuidade ou descontinuidade com relação ao passado não eram,
portanto, pautados por uma preocupação de se estes continuavam ou não sendo o que
eram. Ao contrário, meu intuito era entender por que a família extensa kaiowa é
organizada e habita de tal forma e não de outra e, a partir daí sim, enveredar para uma
análise das transformações historicamente ocorridas para que se chegasse à organização
atual
212
.
Em primeiro lugar, a pesquisa apontou que os Kaiowa hoje possuem uma
bagagem de conhecimentos técnicos e estão inseridos em contextos sócio-ecológicos-
territoriais que permitem configurações de habitações, com o consórcio de materiais de
diferentes tipos e não aqueles procedentes das matas e campos da região em que
vivem.
212
Embora focalizando detalhadamente algumas delas, a pesquisa levou em consideração praticamente
todas as unidades habitacionais das áreas indígenas de Jaguapire e Pirakua, presentes em agosto e
setembro de 1999. Com relação às construções de oygusu (que, como se verá, hoje o definidas
ogapysy), foram consideradas as de Dourados, Limão Verde e Panambizinho, além das de Jaguapire
(estas últimas de menor dimensão, mas com idêntica estrutura formal e uso de materiais). Durante o
período da pesquisa de doutorado, foi possível descrever e analisar este tipo de construção também nas
áreas de Jatayvary e Kokue’i e a correspondente ñandéva, na reserva de Porto Lindo.
368
Tipos de construções domésticas (Fotos XXIV – XLV)
Foto XXIV Foto XXV
Foto XXVI Foto XXVII
Foto XXVIII Foto XXIX
T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
T.I. Pirakua. Abril de 2004.
(Foto de Vito Comar).
T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
369
Foto XXX Foto XXXI
Foto XXXII Foto XXXIII
Foto XXXIV
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999. T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
T.I. Pirakua. Abril de 2004. (Foto de Vito Comar).
370
Foto XXXV Foto XXXVI
Foto XXXVII Foto XXXVIII
Foto XXXIX Foto XL
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999. T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Guasuty. Junho de 1993. .
T.I. Guasuty. Junho de 1993.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
371
Foto XLI Foto XLII
Foto XLIII Foto XLIV
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
T.I. Jaguapire. Setembro de 1999.
Foto XLV
372
Podem ser, assim, construídas casas com coberturas feitas de sapé (a mais freqüente),
folhas de palmeiras (onde escasseia o sapé), de chapas metálicas, de telhas de barro
cozido, de telhas de cedro, de telhas de fibra de cimento (“eternit”) ou de plástico; as
paredes podem ser de cortiça de palmeiras, de taquara batida
213
, de tábuas ou de
plástico; ainda, podem existir (mais raramente, e não por eles edificadas) casas de
alvenaria com ou sem piso de cimento.
Em segundo lugar, foi possível constatar que estas construções podem assumir
uma ampla variedade de formas com telhado e paredes separados ou “beira-chão”, com
ou sem colunas centrais, estas últimas técnica e formalmente iguais às oygusu, mas de
menor porte. Isto depende principalmente de três fatores: por um lado, o repertório de
possibilidades disponível para cada indivíduo que toma a decisão de construir sua
habitação ou modificá-la; por outro lado, aos limites impostos pelas características dos
materiais utilizados; e por outro ainda, à natureza modular das construções, que
permitem que se associem partes resultantes da aplicação de técnicas diferentes,
adquiridas pelo construtor durante sua trajetória experiencial. Nestes termos, se a
escolha foi a de construir uma edificação com teto em duas águas, é possível a
utilização de praticamente todos os materiais anteriormente listados. Quando, porém, o
projeto prevê a utilização de teto em três ou quatro águas ou beira-chão, excluem-se
completamente materiais como fibras de cimento (“eternit”) e chapas metálicas,
enquanto que as telhas de barro resultam ser de difícil aplicação; de fato, os índios não
possuem os instrumentos técnicos necessários para moldar estes materiais
214
,
adequando-os às junções das águas. Além disso, constatava-se que as formas das
habitações, embora previamente planejadas pelo executor da obra, não necessariamente
213
Antes de ser utilizado, o bambu vem percutido com o fio do machado, produzindo-se cortes
longitudinais suficientemente profundos para que a superfície possa se abrir e formar uma lâmina flexível,
mas não o suficiente para que se quebre de todo. Desta maneira, com uma única cana se pode produzir
uma superfície de cobertura superior à que podem três delas caso não passem por este tipo de tratamento.
214
A bagagem de ferramentas disponíveis para os Guarani é muito limitada, não se possuindo
instrumentos aptos a cortar metais e moldá-los. Ainda mais improvável é o corte das telhas em fibra de
cimento. Ademais, ainda que fosse possível, o nível de desperdício das partes restantes tornaria, aos olhos
dos índios, inconveniente seu uso. Para fazer tetos de mais de duas águas, com telhas de terra cozida,
torna-se necessário a posse de peças específicas para pôr nas junções das águas. Os índios dificilmente
compram as telhas (com exceção feita para as de fibra de cimento), sendo elas geralmente obtidas por
desmantelamento de construções rurais edificadas por fazendeiros ou através de transações com outros
índios ou regionais; além disso, dificilmente conseguem de uma só vez a quantidade necessária para fazer
uma cobertura inteira. Nestes termos, o estoque que vem a se constituir desse material é heterogêneo, não
programado em função das características arquitetônicas que se pretende dar à habitação.
373
se concretizava como programado. Assim, a escolha de um ou outro tipo de esqueleto
permitia ao proprietário ter um leque mais ou menos amplo de materiais a serem
escolhidos durante todo o processo de construção; deste modo, dependendo do que
conseguisse com suas transações tecno-econômicas (atividades de coleta e/ou
intercâmbio de bens), progressivamente completaria a obra
215
- valendo isto também em
caso de reparos e/ou modificações.
Em terceiro lugar, a organização espacial das construções de uma unidade
residencial depende do lugar central constituído pelo pátio (oka). É neste lugar ao ar
livre (ou sob coberturas sem fechamento) que se desenvolve a maioria das atividades
domésticas e sociais. As partes fechadas (koty) são utilizadas para um número reduzido
de atividades, sendo estas o cozimento (mas não a totalidade da preparação) dos
alimentos e o consumo do mate matutino, o depósito de provisões e ferramentas e o
descanso noturno. Neste sentido, as construções são projetadas para ter a função de
dormitório, de cozinha e de galpão.
Em quarto lugar, existe também uma clara hierarquia entre as três funções
descritas, algo que, unido ao entendimento que os Kaiowa têm dos materiais utilizados,
condiciona a sequência temporal de edificação e/ou modificação dos cômodos no
interior do pátio residencial. Com efeito, as construções são entendidas por estes índios
como sendo sujeitas a um inevitável desgaste, na melhor das hipóteses podendo ter uma
duração de aproximadamente 20 anos; geralmente, porém, são realizadas edificações
com duração estimada entre 6 e 12 anos. O assentamento de uma unidade residencial
em um determinado lugar pode ser bem mais longo com relação ao tempo útil dessas
construções. Existe também a possibilidade de estas poderem ser destruídas antes do
tempo estimado de duração, por conta de incêndios devidos à propagação do fogo, algo
freqüente durante o período de estiagem. Levando em consideração estas características
técnicas e suas prioridades na atribuição de funções às habitações, os Kaiowa
desenvolvem o que então defini como “ciclo de construção da unidade residencial”.
Primeiro é construída uma única edificação, contendo em seu interior os três
espaços necessários para desenvolver as atividades descritas como sendo normalmente
215
Os tempos de construção podem dilatar-se muito com relação aos previstos no começo do processo.
Em Jaguapire era muito comum observar esqueletos de habitações ou parte delas que permaneciam meses
sem cobertura.
374
desenvolvidas em lugares fechados. Conforme o repertório de possibilidades do
construtor e o incremento da bagagem material na unidade residencial (objetos e
instrumentos), se toma a decisão de construir um novo cômodo destinado a dormitório,
geralmente em separado, visando o afastamento da fumaça produzida pelo fogo
doméstico. Desta forma, o primeiro cômodo passa a desempenhar tão somente a função
de cozinha e de galpão. Em um terceiro momento, quando a primeira edificação
construída começa a apresentar claros sinais de degradação, os índios enveredam para a
construção de um derradeiro cômodo, uma vez mais para desempenhar a função de
dormitório. Assim, passa-se a re-alocar as três funções, sendo que a segunda construção
adquirirá o status de cozinha, a primeira permanecendo como galpão. O ciclo se fecha
no momento em que um quarto cômodo é construído, isto ocorrendo geralmente quando
o primeiro alcançou seu limite de durabilidade, desabando ou sendo desmontado para
reutilização das partes ainda aproveitáveis (as outras sendo destinadas a alimentar, como
lenha, o fogo doméstico) (v. Figura IV). A construção do último cômodo permitirá ao
segundo e ao terceiro cômodos a re-alocação de suas funções, seguindo-se sempre o
mesmo critério de prioridades com relação às construções de mais recente feitura.
Dormitório
Cozinha
Galpão
É evidente que o ciclo de construção da unidade residencial constitui uma
modalidade de administração das edificações no interior do pátio doméstico, e não uma
regra formal sobre quantos cômodos devem existir em seu interior. Nestes termos,
famílias podem permanecer por todo o tempo com um único cômodo ou dois. Isto
dependerá muito do nível de incremento de objetos em sua bagagem material e de sua
escolha sobre qual será sua construção inicial. Em alguns casos, os mais opulentos,
grandes construções podem ser feitas, estabelecendo-se de imediato em seu interior,
distâncias razoáveis entre o lugar do fogo e o espaço dormitório.
375
Cozinha/
Galpão
Dormitório
Cozinha
Galpão
Dormitório
Galpão
Cozinha Dormitório
Galpão Cozinha Dormitório
Figura IV
Ciclo de construção da unidade residencial
T1
T2
T3
T4
376
Nestes casos, a partir de um primeiro momento se constrói um modo galpão em
separado. Ao findar a vida útil dos cômodos, se procede a uma renovação total das
construções
216
. É possível que em alguns casos se encontrem mais de três cômodos em
um pátio. Nestes casos, se a unidade residencial abriga apenas uma família conjugal, os
cômodos excedentes serão destinados a uso galpão; se nela habita uma família extensa,
pode-se ter também a multiplicação de cômodos dormitórios. Em hipótese alguma é
possível ter o desdobramento do fogo doméstico; se isto ocorresse, teríamos
formalmente a divisão em duas unidades residenciais, com a delimitação espacial de
outro pátio adjacente.
Em quinto e último lugar (e este de fundamental importância), resta observar o
valor atribuído pelos Kaiowa ao objeto “casa”. Como antecipei no capítulo XII, estes
indígenas dão uma importância relativa ao mundo material, um significativo número de
objetos recebendo poucos cuidados e sendo transacionados com muita facilidade, o que
os deixa nas mãos de um determinado proprietário por relativamente curtos períodos de
tempo. Na verdade, existe uma hierarquia entre os diferentes tipos de objetos, o que
proporciona comportamentos tecno-econômicos diferenciados nos circuitos de troca
destes índios
217
. Nesses termos, as casas, indubitavelmente, não ocupam um nível muito
elevado nessa escala de valores, e aqui um exemplo pode ser útil para ilustrar a
consideração os kaiowa têm por tal objeto.
Em 1999, Atanás, que ainda morava em Jaguapire, decidiu se desfazer de uma
casa de madeira de quatro cômodos, cobertura de telhas francesas e dois pórticos,
construção de excelente feitura, realizada pelos fazendeiros antes que os índios
recuperassem a terra (v. foto VII no capítulo VIII). Queria ele voltar a morar em uma
habitação de sapé, com paredes de cortiça de palmeira. Odair, outro habitante dessa área
indígena, de posse de um velho revólver calibre 22, que gerou o interesse de Atanás,
propôs a arma em troca da casa, alcançando-se logo o acordo. A habitação foi
rapidamente desmontada e transportada para o pátio de Odair, que na época possuía
uma casa muito pequena e mal-acabada, também construída com tábuas de madeira, e
216
O caso do tamõi Clemente Franco (foto XXVII), de Pirakua, é exemplar. O tamanho de sua habitação,
que abriga tão somente uma família nuclear, e notável. A foto aqui apresentada mostra sua última
construção, que veio a substituir uma semelhante, a qual durou por quase 20 anos.
217
Com base em dados referidos principalmente a famílias de Jaguapire e Pirakua, no próximo item
aprofundarei este importante tema.
377
parcialmente coberta de telhas francesas. Sua família nuclear estava crescendo, tendo
ele cinco filhos. Reconstruir a casa trocada pelo revólver teria sido uma boa solução
para resolver o problema da habitação, mas isto não ocorreu. Odair distribuiu a maior
parte das telhas para seu pai e um seu irmão, doando parte das tábuas para seu avô
paterno. O material restante serviu para melhorar a cobertura de sua habitação e uma
parede (foto XXX), sendo que mais de um quarto da madeira foi estocada no pátio, em
vista de eventuais outras transações. Com o passar do tempo, porém, esta foi
progressivamente consumida para alimentar o fogo doméstico.
O exemplo permite relevar que, em seus cálculos, Odair privilegiou reforçar as
relações internas à sua família extensa, onde ocupa uma posição frágil, pelo fato de se
ausentar freqüentemente para trabalhar nas usinas de álcool. O valor material da casa
passa, portanto, a segundo plano, assim como aconteceu com Atanás, que se desfez
dessa habitação em decorrência de sua imediata integração no espaço residencial de seu
sogro, onde, ressalte-se, eram conservados oito chiru os quais, como vimos, são os
objetos mais conceituados pelos Kaiowa.
Este descrito não representa um caso isolado, muitos outros podendo ser
ilustrados, demonstrando claramente o pouco apego dos Kaiowa para com suas casas.
De fato, o que fica mais evidente é o papel central ocupado pelo pátio, determinando o
espaço privilegiado para a constituição de uma unidade residencial – algo que nos
convida a não confundir as partes construídas como sendo “a” residência destes índios.
À guisa de conclusões parciais, pode-se afirmar que a pouca valorização dada às
construções habitacionais, a disponibilidade/acessibilidade de/aos recursos, a
competência técnica e as escolhas dos indivíduos, são todos estes os fatores que, juntos,
permitem que se edifiquem tipos de habitações bastante variados em forma, tamanho e
materiais utilizados. Porém, há que se constatar que as estruturas e as formas que podem
ser assumidas não são infinitas, devendo-se isto aos limites impostos pela reduzida
bagagem de ferramentas nas os dos índios, as quais permitem trabalhar um leque de
materiais não muito amplo
218
.
218
Com efeito, contando apenas com os instrumentos técnicos disponíveis, os Kaiowa não poderiam
construir, por exemplo, um prédio com estrutura em concreto e instalação hidráulica e elétrica. Isto
independentemente da competência técnica individual.
378
Considero estas conclusões como parciais porque, embora a argumentação nos
permita entender o fato de que os Kaiowa podem construir habitações de várias formas
e materiais dentro de um leque de possibilidades bastante definido, não foi enfrentado
ainda o motivo que levaria estes índios a produzir toda esta variação. Isto é, considero
não ter explicitado ainda de modo exaustivo o porquê da existência de tanta
heterogeneidade de escolhas indígenas a respeito de que tipo de habitação deve ser
construído. Efetivamente, a primeira objeção que poderia ser feita à argumentação que
desenvolvi até aqui é que, não obstante exista uma gama bastante ampla de materiais e
formas a serem escolhidos, nada impede os índios optarem tão somente por um conjunto
limitado deles, criando-se ou mantendo-se, assim, um padrão culturalmente identificável
de habitação kaiowa.
Para poder responder a esta objeção, reputo importante introduzir duas noções: a
de “sistema de settings”, proposta por Rapoport (1994), e a de “função primeira”/
“função segunda” introduzida por Eco. Segundo Rapoport, uma construção não pode ser
considerada como destinada a um uso específico a partir de sua estrutura e/ou forma.
Segundo o autor,
…a dwelling itself can be shown to be a particular system of settings within
which given sets of activities take place. Thus one cannot, as is so often done,
compare buildings as dwellings merely because –in form and structure– they appear
to us as such. In the study of dwellings the proper units of comparison are the
system of settings, which have first to be discovered before they can be compared.
This discovery helps to avoid the problems that can arise from the discrepancy
between our own analytic concepts and those of the peoples whom we study, that is
between ‘etic’ and ‘emic’ models.
The cues that communicate the appropriate situation and behaviour, and the
elements defining settings, are not only architectural, or what can be called ‘fixed
feature elements’. More important are semi-fixed feature elements –the furnishings
of environments, whether outdoor or indoor: signs, plants, elements of
personalization, furniture, bric-à-brac, and so forth (idem: 463).
Por sua vez, Eco (1976: 204-215), analisando do ponto de vista semiótico os
detalhes arquitetônicos, também distingue entre fatores fixos e semi-fixos, propondo
definir como “função primeira” os elementos que seriam considerados pelo planejador
como principais (denotados), sujeitos a maior fixidez, e “função segunda”, os que lhes
estão subordinados (conotados), sendo portanto mais variáveis. Utilizando como
exemplo os detalhes das abóbadas de uma catedral gótica, o autor destaca como função
primeira a concepção ideológica medieval, baseada na lógica da transcendência e no
379
mistério divino; como função segunda, as características de ordem técnica que permitem
à estrutura assumir a forma extremamente verticalizada que produz efeito de escuridão,
algo que melhor expressa justamente a ideologia da época. Eco afirma, entretanto, que
no processo histórico, os elementos relacionados às duas funções mudaram de posição,
os aspectos técnicos vindo, assim, a prevalecer na definição da obra arquitetônica.
Fazendo uso da eloqüente argumentação de Rapoport, podemos constatar que no
caso dos Kaiowa o que define a habitação não é sua forma, mas justamente os conjuntos
de atividades e objetos presentes na unidade residencial (unidade que, como vimos, não
se restringe apenas aos espaços fechados), unidos a um específico valor atribuído ao
mundo material com que os índios se deparam neste caso em particular, no tocante às
construções habitacionais. Como será detalhado mais adiante, levando-se em conta estes
fatores, é possível constatar que existe uma certa homogeneidade de tipos de atividades
e de modos de conduzi-las, assim como em constituir bagagens materiais e
equipamentos técnicos. Assim, não obstante as diferentes formas de habitações que elas
albergam, as unidades residenciais são muito parecidas, umas com relação às outras,
podendo-se mesmo falar de elevada homogeneidade, quando estas se circunscrevem em
um único espaço doméstico, isto é, a área de abrangência de um determinado te’yi de
três gerações.
A pouca valorização simbólica do objeto “casa” coloca em evidência seu uso
prático e dinâmico como habitação. Assim, ao variar o número de pessoas a serem
hospedadas, o equipamento culinário e os objetos a serem armazenados, poderá variar
também o tamanho, a forma e os materiais a serem escolhidos para edificar o(s)
cômodo(s). Nestes termos, pode-se dizer, conforme a proposta de Eco, que a função
primeira das habitações Kaiowa é o uso dormitório, cozinha e galpão. É a partir destas
determinantes que conotam-se as características materiais, estruturais e formais da(s)
construção(ões).
Estas argumentações ficam ainda mais evidentes se consideramos o destino
histórico que teve a oygusu. Como vimos, no período em que Schaden escrevia, esta
grande construção era muito rara. Na década de 70 em Mato Grosso do Sul ao menos
pelo que revelam as informações à disposição nenhuma família extensa abrigava-se
nesse tipo de habitação. Efetivamente, os jeroky (dança ritual) passaram a ser realizados
no pátio da residência do anfitrião, sendo que, para os avatikyry, começaram a ser
380
construídas, no espaço residencial, coberturas temporárias, necessárias para acolher o
yvyra marangatu koty pegua (o altar interno), colocado em frente ao yvyra marangatu
oka pegua (o altar externo), este último orientado na direção leste. Terminada a
cerimônia, a construção, assim como os altares, são geralmente desmontados, suas
partes podendo ser destinadas a outros fins, geralmente utilitários.
No caso específico do ritual de iniciação masculina (o kunumi pepy), temos uma
situação diversa, sendo mesmo necessária uma construção como a oygusu. Conforme
descrevem Melià e os cônjuges Grünberg para a fase de reclusão dos neófitos
entendida como de jeko aku (que, como vimos é de cuidados especiais) –, o
tekoaruvicha precisa de uma “casa tradicional (óga jekutu) que a veces es construida
para el efecto, si ya no es su própria casa...” (1976:236). Os autores referem-se à
realidade do Paraguai, onde a iniciação masculina é ainda bastante difundida. No caso
de Mato Grosso do Sul, porém, nos anos de 1970 este tipo de cerimônia se restringia
apenas à área de Panambizinho, onde Paulito ainda construía em seu pátio a oygusu
necessária para tal escopo, construção esta que foi sendo continuamente renovada até a
morte deste importante xamã.
Denunciando as condições negativas em que se encontravam, os indígenas
passaram a manifestar reivindicações especialmente de ordem fundiária –,
apresentando aos agentes indigenistas um discurso retórico, profundamente
padronizado. Tal discurso, idealizando a vida do passado, afirma que grande parte dos
males que afetam hoje os Kaiowa é devido ao fato de eles não possuírem mais, entre
outras coisas, as ogapysy; isto é (conforme este termo me foi traduzido e explicado pelo
“cacique” Getúlio, da reserva de Dourados), a “casa (óga) mãe (sy) das origens (ypy)”
(v. fotos XXI e XXII). É assim que, a construção que anteriormente era definida a partir
de suas características técnicas (oygusu e óga jekutu)
219
, nos últimos vinte anos,
aproximadamente, passou a ser denominada em função de um seu uso simbólico, como
“casa de reza”
220
. que se observar, porém, que a função primeira da ogapysy não
219
A primeira denominação indica a grande dimensão da casa, enquanto que a segunda coloca em
destaque o fato de esta ter o teto fincado no chão.
220
De fato, quando é efetivamente utilizada para atividades rituais, nela se coloca o altar, com os chiru e
os demais instrumentos rituais, os apyka (banquinhos) para assentar as pessoas a serem curadas ou
batizadas pelos xamã, e o cocho, para a preparação do kaûi (ou chicha), a bebida fermentada para uso
festivo.
381
denota tão somente seu uso nas relações cosmológicas, adquirindo ela também
importância como marca de distinção étnica e como instrumento de relacionamento
político interétnico. Com efeito, as retóricas dos Kaiowa levaram representantes da
Igreja Católica (Pastoral Indígena e CIMI) e, posteriormente, também da FUNAI
221
e da
prefeitura de Dourados, a apoiar os indígenas, financiando este tipo de construção. Hoje
este fenômeno generalizou-se de tal modo que, imediatamente recuperado um antigo
tekoha, os indígenas solicitam aos agentes indigenistas recursos para a construção de
casas de reza. Ademais, na reserva de Dourados, ultimamente foram construídas
diversas ogapysy, financiadas pela prefeitura do município homônimo. Nelas, os
indígenas guardam os instrumentos rituais lado a lado com os objetos produzidos para
serem vendidos como souvenir para turistas esporádicos e/ou “brancos” curiosos que se
dirigem a esses lugares buscando formas e estéticas exóticas.
Como espero que tenha ficado claro, salvo em raros casos, as oygusu hoje não
podem ser consideradas como “casas”. Em outras palavras, sua função primeira mudou,
denotando relações cosmológicas, distintividade étnica e atividades políticas. Para tal
propósito, a estrutura, a forma e os materiais utilizados para edificar uma ogapysy não
tendo como escopo o de obedecer a um uso utilitário, mas simbólico devem ser
altamente padronizados, a função segunda conotando regularidade e imprimindo
estreitos limites na escolha das técnicas a serem utilizadas para a realização da obra
arquitetônica
222
.
Neste ponto do trabalho, ao me deter amplamente sobre a organização
habitacional, não tenho a intenção de ser exaustivo sobre os tipos de escolha e formas de
construção de casas existentes entre os Kaiowa. Para tal propósito eu poderia tão
221
Em 1995, por conta da FUNAI, a psicóloga Maria Aparecida C. Pereira realizou uma pesquisa sobre o
fenômeno do suicídio na reserva de Dourados. Na publicação dos resultados deste trabalho, ocorrida no
mesmo ano, a autora conclui que os Kaiowa e os Ñandéva estariam em uma fase de desestruturação
social, contrastada pelos índios através de uma rebelião silenciosa. O fenômeno do suicídio é visto pela
autora como reversível, afirmando que é urgente adotar “medidas capazes de dar o suporte exigido para a
revitalização dinâmica dos tekoha, Nhandeva e Kaiwá (1995: 51)”. Entre estas medidas encontrava-se
justamente a liberação de recursos por parte do órgão tutelar para a construção de ogapysy.
222
Neste caso as restrições são, de fato, muito rigorosas. Na sua estrutura formal, a ogapysy kaiowa não
se diferencia tão somente das habitações dos brancos humildes, mas também das casas de reza dos
Ñandéva. Estes últimos não constroem edificações de tipo “beira chão”, suas estruturas para uso ritual
sendo constituídas por um esqueleto que sustenta um telhado separado do solo, com cobertura de sapé ou
folha de palmeira, geralmente sem paredes frontais e laterais, a dos fundos protegendo o altar interno.
Para se ter uma idéia de uma das possíveis formas da casa de rezas ñandéva, ver Perasso & Vera (1987:
fig. 18).
382
somente ter conduzido o leitor à leitura de minha dissertação de mestrado (certamente
bem mais detalhada sobre o argumento), limitando-me aqui a descrever o ciclo de
construção da unidade residencial. O que deve ser ressaltado aqui é o fato de que as
habitações são hoje os únicos objetos de utilidade coletiva e que exigem notável
investimento de energia, mão-de-obra e tempo – a serem ainda construídos pelos índios,
o que poderia levar a supor justamente que estes são os objetos que nos permitem
deduzir a distintividade cultural do grupo, isto é, pensá-los como produção de cultura,
de “cultura material”. O até aqui demonstrado permite justamente colocar em evidência
o contrário, mostrando que o que orienta os Kaiowa a realizar ações sobre a matéria não
é a necessidade de produzir, mas a de usar essa matéria. Dependendo do nível de
acabamento em que se encontrem os objetos, quando coletados ou transacionados, será
necessário aportar-lhes transformações para torná-los úteis para a finalidade de uso
utilitário ou simbólico que seja. É evidente que os Kaiowa não podem, salvo raros
casos, coletar ou transacionar habitações inteiras, sendo portanto obrigados a construí-
las. Mas, ainda assim, muitos dos materiais hoje utilizados para realizar essas obras
arquitetônicas, e praticamente todas as ferramentas necessárias para sua construção não
são produzidas pelos Kaiowa. Esta situação remete a fatores mais amplos, que implicam
atividades cada vez mais centradas nas técnicas de aquisição do que as de produção,
como tem sido repetidamente afirmado. Implica também na dependência do construtor
de objetos e mão-de-obra que transcendem sua unidade residencial. Embora os índios
possam transacionar objetos em circuitos muito amplos, interagindo com sujeitos social
e politicamente bastante distantes de sua realidade doméstica, é para o seio do próprio
te’yi que será direcionado o resultado material e simbólico dessas operações tecno-
econômicas. A unidade residencial e suas atividades formam, assim, parte de uma
organização material mais ampla, que diz respeito à soma de todas as unidades
residenciais englobadas por um te’yi, cuja lógica de cooperação determina uma unidade
doméstica agregada – nos termos (já vistos) de Wilk (1984, 1997).
13.3 Formação e diversificação da bagagem material
Há mais de 70 anos atrás (em 1934), Müller escrevia:
Un elocuente testimonio de la pobreza cultural de los indígenas Guaraníes es
su exiguo caudal o, más bien, su casi total falta de herramientas.
383
Como herramientas realmente autóctonas, de factura muy primitiva, deben
considerarse las herramientas de piedra que se hallaron a orillas del río Jejui, que
hoy están completamente en desuso entre las tres etnias y que aún son usadas por los
Guayaquí.
Los punzones, lo mismo que las agujas para techar y la aguja de la nervadura
de la palmera Pindó para perforar el labio y el lóbulo de la oreja, así como la espina
de la palmera Mbocadjy para perforar el lóbulo de la oreja, deben ser, asimismo,
originales.
Si se agrega el cuchillo de tacuarembó, el palo cavador y el gancho para
cultivo, el papel de lija indígena de la hoja del árbol ambay rôtî
223
que contiene
ácido silícico y el raspador de concha de los Guayaquí, ya se habria agotado la
enumeración de las “herramientas” autóctonas.
Las restantes herramientas y objetos de uso corriente son, como casi siempre
su nombre deja ver, importación del tiempo de la Colonia española o la era
industrial (…)” (1989: 93).
Curiosamente, em seguida (pp. 93-96) o autor alemão não oferece informações
precisas sobre quais seriam os objetos e ferramentas industriais introduzidas entre os
Guarani. Ele dirige sua atenção ao que os índios construíam algo que faz de modo
meticuloso, sua contribuição sendo de grande valia – e não ao que incorporavam.
Portanto, quando nos fornece exemplos da influência do “branco”, limita-se a descrever
casos que identificava como sendo imitações das ferramentas introduzidas pelos
ocidentais.
Aproximadamente 40 anos depois da obra de Müller, Melià et al. (1976: 204-
205) oferecem uma lista de ferramentas utilizadas pelos Paî-Tavyterã do Paraguai,
ordenando-as hierarquicamente segundo sua importância de uso. Ei-la:
Machete (facão): el elemento más importante, que sirve para todos los
trabajos: limpiar rozados, edificar casas, buscar miel, sacar tubercolos. Hace más de
100 años se usaron también instrumentos de piedra (yvyrapehê).
Hacha (machado): es el segundo en importancia y se presta frecuentemente.
Sirve principalmente para derribar el monte y buscar leña. Antes, de piedra (jy).
Foice: de uso cada vez más frecuente para el kokuere.
Azada (enchada): para el uso principalmente en la agricultura (ojeka'api,
ramañoty, takuare'êñoty); muy usada por las mujeres.
Sarakuá: para plantar varios cultivos, pero obligatorio para el avati morotî: de
uso femenino casi exclusivo.
Maquina (plantadora, sembradora): para sembrar arroz, poroto, soja y maíz.
De uso moderno.
223
Mais adiante no texto (p. 95), Müller diz que especificamente aos Kaiowa utilizariam, além desta
folha, também fragmentos de garrafas quebradas.
384
Kyse (cuchillo, faca): de hierro para uso ltiple. Antes de piedra
(itaraimbe), madera (yvyraraimbe) y dientes de roedores, especialmente del akuti;
también de takuarembo (1976: 204-205).
Comparando esta lista com o trecho citado de Müller, temos em comum tão
somente o sarakua (bastão cavador). Os dois primeiros itens e o último eram
seguramente utilizados já na época em que escrevia o autor alemão, sendo por ele
deliberadamente excluídos de sua descrição, pelas motivações anteriormente expostas.
Neste sentido, apenas a foice, a enxada e a máquina plantadora podem ser consideradas
como novos instrumentos
224
.
Não obstante se tenha passado mais de trinta anos desde quando escreviam
Melià et al., pode-se dizer que a lista de ferramentas por eles elaborada mantém-se
quase inalterada se cotejada com o equipamento básico de cada unidade residencial
kaiowa
225
, a bagagem instrumental permanecendo, portanto, ainda hoje bastante
reduzida. Discordo, porém, com Müller sobre o fato de que esta denote pobreza, visto
que os índios consideram a maioria dos instrumentos por eles utilizados como sendo
multifuncionais
226
. Com efeito, o leque de tarefas que os Guarani podem realizar
servindo-se de instrumentos constituídos de lâminas cortantes é bastante amplo. Além
dos já ilustrados por Melià et al. na referida lista, com estas ferramentas é possível fazer
instrumentos de madeira, como agulhas para tecer o telhado das habitações (de que fala
Müller), fusos, teares etc, além dos cabos das próprias ferramentas metálicas. Pode-se
também construir recipientes de madeira e de cabaça para a estocagem e o
processamento de alimentos, bem como para o armazenamento de materiais de
diferentes naturezas. É ainda possível confeccionar armas, armadilhas e instrumentos
para a coleta e produzir ou modificar objetos de lata, plástico e/ou borracha isto
apenas para enumerar as tarefas mais relevantes para a vida cotidiana dos índios.
Neste ponto da argumentação surge quase espontânea uma pergunta: por que,
frente à progressiva e nos últimos 30 anos exponencial mudança do habitat, com a
224
Mais adiante procurarei avançar prováveis motivos da afirmação destas ferramentas entre os Kaiowa.
225
A esta lista deve ser acrescentada a lima. Este instrumento demonstra-se de grande importância
porque, sendo a maioria das ferramentas enumeradas constituídas de lâminas cortantes, sujeitas a
desgaste, necessitam elas de um instrumento complementar para lhe renovar constantemente o gume.
226
Como se verá, além das ferramentas, muitos outros objetos podem desempenhar múltiplas funções.
385
afluência, para seus territórios, de uma enorme variedade de ferramentas, os Kaiowa
limitaram-se a integrar em seus equipamentos residenciais um número tão reduzido de
instrumentos? Em um primeiro momento, com certeza, os altos custos (para os
parâmetros desses indígenas) dos objetos trazidos pelos “brancos”, constituía uma
barreira no aprovisionamento desses materiais
227
; mas não podemos pensar que para os
dias de hoje uma explicação semelhante possa ser satisfatória. O valor pecuniário de,
por exemplo, martelos, serrotes, chaves-de-fenda, chaves-de-boca, alicates e pinças não
é muito elevado, todos eles podendo ser adquiridos de uma vez, com o dinheiro
conseguido em apenas uma semana de changa.
Em minha opinião, a explicação para o pouco interesse revelado para com esses
instrumentos deve-se a três fatores entre si relacionados. O primeiro refere-se à natureza
técnica do processo de montagem dos objetos produzidos pelos índios. Este processo
baseia-se sobre um preponderante uso de ataduras, tranças, costuras e polimentos, o uso
de parafusos, porcas e pregos sendo, portanto, dispensáveis e com eles os instrumentos
específicos relacionados. Como segundo fator, o processo de concentração dos
equipamentos técnicos mais especializados da família extensa nas mãos do tamõi,
cabendo-lhe também a administração de seu uso. Finalmente, como terceiro fator, o
progressivo incremento, nas residências indígenas, de objetos adquiridos com
estrutura formal e funcional completa, requerendo do usuário pouca ou nenhuma
modificação, o que, também neste caso, torna desnecessário o uso de ferramentas
especializadas.
Com relação ao primeiro fator, parece-me desnecessário tecer posteriores
argumentações. O segundo e o terceiro, porém, pelas suas implicações, precisam, a meu
ver, ser esclarecidos.
Até aqui, quando me referi à formação de um equipamento técnico básico,
especifiquei sempre que se tratava da bagagem material de cada unidade residencial, e
não a de um agregado destas que forma uma unidade doméstica (isto é, um te’yi
227
Nélson, hoje residente em Dourados, comentando sobre a vida de Juvêncio, seu avô materno, disse que
uma vez este precisando de metal para construir pontas de flechas e outras utilidades, perguntou para o
fazendeiro seu “patrão” se ele tinha à disposição o material procurado. O fazendeiro disse que possuía
uma barra de ferro de aproximadamente 1,5 m, e que estava disposto a trocá-la por vinte sacas de milho,
uma quantia considerável para o parâmetro de produção agrícola de um kaiowa. Ainda assim,
considerando o metal como um material sumamente precioso, Juvêncio realizou a transação.
386
constituído de três gerações). Neste sentido, o objetivo era o de colocar em evidência a
pouca variabilidade na composição dos conjuntos de ferramentas que podem ser
administrados com relativa autonomia pelos membros dessas unidades. Por outro lado,
quando dirigimos a atenção para a organização material e técnica das famílias extensas
em si, verifica-se um comportamento bastante diferente, neste caso se podendo notar
significativas variações na composição dos equipamentos dos diferentes te’yi.
As diferenças podem ser devidas às características do habitat no espaço
geográfico onde estão assentadas as famílias extensas, mas estes não são certamente os
únicos motivos; o tipo de atividade desenvolvida periodicamente pelos seus membros,
assim como as escolhas de cada tamõi sobre as atividades que devem ser privilegiadas
pelos membros que integram seu te’yi, são elementos indispensáveis para compreender
as modalidades de composição da bagagem material do grupo doméstico e os saberes
técnicos a ela relacionados. Os exemplos a seguir, relativos às áreas de Pirakua e
Jaguapire, são significativos para a compreensão deste fenômeno.
Em Pirakua, o te’yi liderado por Clemente Franco dedica-se à criação de gado no
espaço de sua jurisdição, mais de década e meia. A agricultura continua sendo uma
opção, especialmente para a integração constante, na dieta cotidiana, de mandioca.
Ainda que seja menos significativo, cultiva-se também arroz. De qualquer forma, a
criação e a transação de cabeças de gado na área rural nos arredores da área indígena,
especialmente nos bolichos ali presentes, representa, com certeza, uma das fontes de
renda mais importante desse grupo
228
. Em função dessa importante atividade para a
economia de sua família, Clemente procurou implementar as técnicas geralmente
adquiridas pelos Kaiowa durante os trabalhos desenvolvidos nas fazendas, e formar uma
bagagem de ferramentas que permitisse a formação e manutenção de cercas e o uso de
cavalos, como animais de montaria, muito úteis para a criação de gado. Neste sentido,
foram incorporadas ferramentas como alicates e pinças (para uma mais apropriada
manipulação de arames), e de martelos e serras (para o trabalho de tábuas), e,
finalmente, de máquinas manuais para a colocação de postes.
228
Outra é a aposentadoria do casal líder do te’yi, recurso este, porém, muito difundido hoje nas terras
indígenas, não sendo, portanto, causa de diferenciação entre tipos diferentes de organização doméstica.
387
O te’yi liderado por João Morel, também morador de Pirakua, apresenta um
perfil totalmente diferente, sendo este tamõi profundamente contrário à criação de
bovinos aliás, como a maioria dos Kaiowa. Assentada em clareiras no meio do mato,
a unidade doméstica de João possui todas as condições para desenvolver as atividades
de agricultura baseada na técnica de corte e queima, técnica esta tradicionalmente
aplicada pelos Kaiowa. Embora com espaços reduzidos para uma rotação suficiente dos
espaços dedicados aos kokue (roças), o tamõi tem desenvolvido cultivares
suficientemente estáveis no tempo, o que lhe permite obter safras constantes de grande
variedade de plantas cultivadas. A partir desta atividade principal e das transações
(especialmente de milho) com comerciantes das redondezas de Pirakua, João deu muita
relevância à formação de uma bagagem de ferramentas direcionadas à elaboração dos
produtos da agricultura, como máquinas manuais debulhadoras, moedoras de cana,
diferentes tipos de foices e enxadas, mas também, como no caso de Clemente, de
martelos e serras. Estes últimos instrumentos o incorporados sobretudo para um
aperfeiçoamento da carpintaria – para a composição ou modificação de objetos ou
arquitetura das unidades residenciais, especialmente na construção de bancos e
bancadas, de tábuas e/ou de troncos de árvores – algo muito comum em Pirakua. Porém,
neste caso específico, o uso destas ferramentas motiva-se também pela necessidade de
criar suportes em madeira estáveis para as maquinas anteriormente citadas, e para um
conserto e/ou modificação mais acurada das ferramentas destinadas à agricultura.
Passando agora à área de Jaguapire, tomarei em consideração o te’yi liderado
pelo xamã Luís Velário Borvão. O assentamento desta unidade doméstica é feito no alto
de uma colina, nas proximidades das nascentes do córrego Jaguapire Memby, córrego
este que atualmente não possui mais as mata ciliares, os mananciais que o formam
sofrendo sério assoreamento, tornando crítica a captação de água para os que moram em
suas redondezas. As terras em torno das quatro unidades residenciais que formam este
te’yi são bastante férteis, porém estão quase totalmente tomadas pelo colonião,
pastagem esta de muito difícil extirpação. As matas mais próximas encontram-se a mais
de um quilômetro de distância, o que dificulta o aprovisionamento de madeira para a
construção e lenha para o fogo doméstico.
Não obstante os evidentes fatores negativos, Luís e seus filhos permanecem
nesse lugar há quase dez anos, com condições econômicas satisfatórias se cotejadas com
388
as de muitos outros te’yi assentados em lugares francamente melhores. Para conseguir
manter esse nível satisfatório, esta unidade doméstica enveredou para uma
diversificação de suas atividades, incluindo de modo preponderante os trabalhos
“assalariados”, como os de professor e agente de saúde indígena, sendo que os dois
filhos e o genro de Luís ocupam estes cargos. Deste modo, boa parte dos recursos
procede de fontes monetárias constantes, incluindo-se as aposentadorias do próprio
Luís e de sua esposa. Este te’yi possui também em Jaguapire uma posição política
privilegiada, sendo aliado de uma das famílias mais prestigiosas do lugar (os Benites), o
que por vários anos lhe possibilitou um acesso permanente ao único trator presente
nessa área indígena.
Gozando, portanto, de uma relativa opulência econômica, os membros desta
unidade doméstica, em lugar de ter que procurar em localidades distantes os recursos
necessários para a construção de bancos, prateleiras, paredes de residências e outros
objetos mais de uso cotidiano, enveredaram para a aquisição (através de trocas ou
compra) de tábuas de madeira. Este material, porém, para ser trabalhado de modo
minimamente eficiente, demanda o uso de instrumentos adequados, como martelos e
serras, fato que levou os membros do te’yi a adquirirem estes tipos de ferramenta. Por
outro lado, o trabalho de agente de saúde, que implica uma grande mobilidade cotidiana,
assim como a constante ida dos professores à escola, favoreceu o uso constante de
bicicletas, veículo muito difundido hoje nas áreas kaiowa e ñandéva, permitindo a
formação de um equipamento específico, constituído de pinças, chaves-de-boca,
bombas e colas para o conserto em caso de furos nas câmaras de ar. Os dois primeiros
itens deste equipamento podem também tornar-se úteis para ocasionais consertos em
meios mecânicos como o trator, veículo este que, que como vimos, tornou-se
indispensável nos lugares tomados pelo capim colonião.
Nos três exemplos citados, o lugar no qual se concentram os equipamentos
específicos é a residência do tamõi. Até mesmo no último caso, onde as bicicletas são
de propriedade dos filhos e do genro de Luís, as ferramentas para seu conserto, assim
como os aros de reserva, concentram-se na residência do tamõi, cabendo a este
administrar o seu uso, distribuindo-os aos integrantes do te’yi, segundo as prioridades e
necessidades. Cria-se, assim, a obrigação de devolução, devido à relação hierárquica
estabelecida dentro da unidade doméstica, entre os membros que a compõem. Outro
389
fator importante, intimamente relacionado como este comportamento centralizador de
determinados bens, é o fato de que geralmente as pessoas que se encontram na segunda
fase de suas vidas (v. item 11.2) mantêm um comportamento diferente se cotejadas com
os sujeitos mais maduros, transacionando um número elevado de objetos – algo que será
melhor explicitado adiante. Neste sentido, para reduzir o risco de uma rápida e
indesejável alienação de objetos considerados de constante utilidade para o te’yi, estes
são concentrados nas mãos dos indivíduos mais idosos.
Venho, até aqui, me concentrando sobre o aspecto da bagagem material relativa
aos equipamentos que permitem a produção ou modificação de outros objetos. Neste
sentido, ressaltei o fato de que os Kaiowa, com um parco leque de ferramentas,
conseguem dar vida a uma ampla variedade de atividades tecno-econômicas. De fato,
com essas ferramentas é possível se fazer trabalhos e/ou produzir instrumentos para a
agricultura, a caça, a pesca e a coleta de frutos e madeiras nos campos e matas da
região, construir casas e utilidades domésticas. Nestes termos, poder-se-ia imaginar que,
com exceção feita às próprias ferramentas, o resto dos objetos necessários para a vida
cotidiana fosse produzido pelos indígenas. Porém, como foi repetidamente afirmado,
isto não ocorre. Ao contrário, a maioria dos bens que integram hoje a bagagem material
das residências kaiowa é de origem alheia à manufaturação indígena. Mas por que os
índios não produzem mais “seus” objetos?
Quando procurei oferecer possíveis explicações sobre o porquê de tanta variação
nas formas das habitações entre os Kaiowa, identifiquei como um dos fatores mais
importantes o escasso valor atribuído por estes indígenas ao objeto “casa”. Acredito que
também neste caso se possa dizer o mesmo, isto é, que quase todos os objetos que
compõem sua bagagem material possuem pouco valor simbólico, sendo possível
substituí-los com facilidade. Anteriormente porém, me limitei a oferecer um exemplo
que mostrasse esta falta de apego dos indígenas para com suas habitações, não
aprofundando o porquê desta pouca afeição; algo que farei a seguir.
Como foi possível ver na terceira parte deste trabalho, a visão cosmológica dos
Kaiowa a respeito do mundo material que ressalta a divisão entre objetos, por um
lado, cuja competência técnica (no duplo sentido de produzi-los e utilizá-los) é atribuída
aos índios e, por outro, aqueles destinados aos “brancos”–, responde principalmente a
necessidades normativas. O escopo é o de manter um controle moral sobre os
390
indivíduos, orientando suas ações e justificando impasses em suas práticas tecno-
econômicas. Não existem mecanismos compulsórios destinados a coibir a produção ou
o uso de objetos metálicos, plásticos, vítreos, ou qualquer outro que não seja
contemplado no elenco definido pelas divindades durante o tempo das origens. Esta
posição analítica é ainda mais valorizada quando se observa o comportamento mantido
pelos próprios xamãs, os quais “contradizem” plenamente as normas por eles
anunciadas no momento em que utilizam muitos dos itens por eles considerados como
de uso exclusivo dos “brancos”.
Os aspectos ideológicos nos permitem mais que tudo entender o nível de
reflexão feita pelos índios sobre as experiências que geram saberes práticos. Eles não
prescrevem os atos técnicos sobre a matéria, nem os orienta; limitam-se a destacar
aspectos positivos ou negativos no processo de integração material. O sujeito é livre
para escolher qual atividade e qual conjunto de objetos considera mais apropriado/a para
sua vida cotidiana, sabendo que, dependendo do tipo de ações que realizar, seu prestígio
perante o grupo onde está inscrito poderá aumentar, diminuir ou manter-se constante.
Nestes termos, a visão normativa funciona como elemento limitador, cujo nível de
constrangimento pode ser muito variável, dependendo do peso simbólico atribuído a
uma ou outra atividade empreendida lembre-se, por exemplo, a diferença entre a
construção de uma habitação e de uma casa de reza. que se observar, porém, que
para que os atores possam fazer suas escolhas segundo uma escala de valores
socialmente aceitos, as informações procedentes da visão cosmológica que contrapõe
objetos e atividades indígenas àqueles dos “brancos” não são suficientes; isto porque, se
assim fosse, se teria uma radical separação étnica dos objetos materiais, algo que não
ocorre. Para poder localizar quais são os parâmetros que permitem aos atores realizarem
suas escolhas, considero então importante dirigir a atenção para outras elaborações
culturais produzidas pelos indígenas.
Os Kaiowa distinguem entre um corpus de conhecimento intelectual (uma
sabedoria, definida arandu), e outro que expressa o saber-fazer prático (chamado de
katupyry). Pode-se afirmar que entre estes índios existe, muito mais do que no Ocidente,
uma elevada acentuação e valorização do primeiro corpus de conhecimento, corpus este
que se manifesta através da linguagem. Por sua vez, como a literatura sobre os Guarani
coloca unanimemente, a própria linguagem é intimamente vinculada à noção de alma.
391
O conhecimento intelectual é de fato um conhecimento espiritual, cuja
comunicação e/ou transação pressupõe a relação/interação entre pessoas (humanas ou
não). É verdade que toda ação tecno-econômica pressupõe este tipo de relação/
interação. Seja quando um Kaiowa se dirige a um outro ser humano para transacionar
objetos, seja quando este é negociado com algum járy, a performance apresenta-se
como política e técnica. Mas isto não quer dizer que estes dois aspectos sejam
necessariamente simultâneos. Ao contrário, são eles geralmente o resultado de uma
concatenação. Assim, se, por exemplo, se procura obter eficácia na caça com
armadilhas, teríamos pelo menos cinco seqüências concatenadas entre si, informadas
por distintos tipos de saberes: uma primeira ligada a um conhecimento de tipo arandu,
que escolhe o lugar mais adapto para colocar o instrumento venatório; uma segunda,
sempre de origem intelectual, que formula um ñembo’e para se proteger dos espíritos da
floresta; uma terceira, procedente de um saber katupyry, que constrói a armadilha; uma
quarta informada por conhecimentos arandu, que reza um novo ñembo’e para que a
presa caia nela; finalmente, uma quinta, ligada a um saber-fazer técnico, que retira o
“animal” e arma o mecanismo para poder capturar outro. Se se toma em consideração
agora o fato significativo de que para os Kaiowa os objetos (mba’e), excluindo os
instrumentos sagrados (mba’e marangatu)
229
, não possuem alma, podemos traduzir as
seqüências apresentadas anteriormente como sendo o resultado da relação/interação
entre: sujeito /sujeito, sujeito /sujeito, sujeito/objeto, sujeito /sujeito e sujeito/objeto.
A distinção hierárquica estabelecida pelos Kaiowa entre um conhecimento
arandu e outro katupyry permite intuir o fato de que uma cadeia operativa é constituída
de partes com valores simbólicos claramente diferentes. Com efeito, os xamãs afirmam
que os objetos da Terra, isto é, de aquém de Yvy Rendy, são impuros, interferindo nas
relações com as divindades. É em decorrência dos momentos interpretados como sendo
de maior crise, que os Kaiowa procuram desvestir-se de todos os materiais presentes na
Terra para poder ascender em vida para os yváy como kandire.
O mundo material é, portanto, considerado como secundário; consequentemente,
a relação/interação entre pessoa e objeto é também subordinada àquela entre as pessoas.
229
Por exemplo, como foi possível ver na terceira parte deste trabalho, os chiru são considerados como
seres vivos. Os instrumentos musicais como os mbaraka (chocalhos) e takuapu (bastão de ritmo),
possuem uma voz própria, portanto, uma espiritualidade.
392
Agora, o maior nível de interação e comunicação entre os sujeitos é expresso pelos
momentos festivos, onde o processo de socialização é mais intenso, mas também
durante as visitas diárias a parentes, nas caçadas coletivas, nas idas à changa e outros
contextos mais que permitem aos índios interagir entre eles. As atividades práticas
sempre foram dedicadas a assessorar esse tipo de relação/interação, e não o contrário. O
cálculo econômico entre estes indígenas procura capitalizar tempo livre, não bens
materiais. Deste modo, no lugar de aproveitar da opulência técnica e material oferecida
pelo habitat atual para produzir mais objetos e alimentos, os Kaiowa vão para a direção
contrária, procurando incorporar em sua bagagem material não grandes quantidades de
ferramentas, mas bens manufaturados por outros, prontos para o uso, com igual ou
maior eficácia técnica dos por eles anteriormente produzidos.
Concluindo este item, para que o leitor possa ter uma idéia da preponderância
destes bens na vida doméstica indígena, apresento a seguir um quadro sinóptico que
expõe esquematicamente os objetos e materiais mais significativos presentes nas
residências dos Kaiowa
230
.
230
No quadro serão obviamente omitidas as ferramentas, visto que já foram descritas ao longo da
argumentação.
393
TABELA VII
Quadro sinóptico dos objetos mais comummente encontrados nas
unidades domésticas kaiowa
Item Material
Produzido/
Adquirido
Técnica e instrumento
de produção
Local e técnica de
aquisição do objeto
ou material
Freqü
ência
Moveis
Banco de
tabuas
Madeira e
pregos Produzido
Percussão apoiada
perpendicular longitudinal
/serra.
Percussão lançada
perpendicular
longitudinal/martelo.
Cidades e fazendas/
compra ou troca. Alta
Banco de
madeira
monóxilo
Madeira Produzido
Percussão lançada obliqua
longitudinal /machado e facão
(machete)
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal
/machado
Baixa
Cadeira
Madeira,
Madeira e
metal
Adquirido
Cidades e área indígena /
compra, no primeiro caso,
troca e/ou coleta (nas
escolas indígenas)
Médio/
baixa
Estante de
tabuas
Madeira e
pregos Produzido
Percussão apoiada
perpendicular longitudinal
/serra.
Percussão lançada
perpendicular
longitudinal/martelo.
Cidades e fazendas/
compra ou troca. Alta
Estante de
cortiça de
palmeira,
taquara e/ou
galhos
Madeira,
fibras
vegetais
e/ou
plásticas
Produzido
Percussão lançada obliqua
longitudinal / facão
(machete);atadura
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal /facão
(machete) Alta
Estantes de
madeira
conglomerada
Madeira
conglomer
ada
Adquirido
Cidades e fazendas/
compra ou troca.
Médio/
baixa
Mesa
Madeira Adquirido
Cidades e fazendas/
compra ou troca.
Médio/
Baixa
Cama de
cortiça de
palmeira,
taquara e/ou
galhos
Madeira,
fibras
vegetais
e/ou
plásticas
Produzido
Percussão lançada obliqua
longitudinal / facão
(machete);atadura
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal /facão
(machete)
Alta
Cama
Madeira Adquirido
Cidades e fazendas/
compra ou troca. Baixa
Instrumentos
culinários
Panela
pequena
Alumínio Adquirido Cidade/ compra Baixa
Panela média
Alumínio Adquirido Cidade/ compra Alta
Panela grande
Alumínio Adquirido Cidade/ compra
Médio/
Alta
Pratos
Louça,
plástico
Adquirido Cidade/ compra Alta
Copos
Vidro,
aluminho,
lata Adquirido Cidade/ compra, coleta Alta
394
Item Material
Produzido/
Adquirido
Técnica e instrumento
de produção
Local e técnica de
aquisição do objeto
ou material
Freqü
ência
Instrumentos
culinários
Colheres
Aço Adquirido Cidade/ compra Alta
Garfos
Aço Adquirido Cidade/ compra Baixa
Fogão a lenha
Barro,
aço,
madeira
Produzido Adobe/facão, enxada, mãos
Pátio residencial, mato/
facão, enxada, mãos
Alta
Fogão a gás
Ligas
metálicas Adquirido
Cidade/ compra; T.I.
compra, troca Média
Cocho
Madeira Produzido
Percussão lançada obliqua
longitudinal /machado e facão
(machete)
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal
/machado
Baixa
Pilão
Madeira Produzido
Percussão lançada obliqua
longitudinal /machado e facão
(machete)
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal
/machado Alta
Instrumentos
de limpeza
Vassoura
Madeira,
fibras
vegetais
e/ou
plásticas
Adquirido Cidade/ compra Alta
Vassoura
caseira
Madeira,
fibras
vegetais
e/ou
plásticas
Produzido
Percussão lançada obliqua
longitudinal / facão
(machete);atadura
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal /facão
(machete) Média
Escova
Madeira,
fibras
vegetais
e/ou
plásticas Adquirido Cidade/ compra Alta
Recipientes
De cabaça
Cabaça e
fibras
vegetais
Produzido
Percussão apoiada
perpendicular
longitudinal/facão (machete)
Redor do pátio/roça Média
Galões
Plástico,
metal Adquirido Cidade/coleta Alta
Latas
Metal Adquirido Cidade/coleta e compra Alta
Bacias
Alumínio Adquirido Cidade/compra Alta
Garrafas
Vidro,
plástica Adquirido Cidade/coleta e compra Média
Armas
Arco e flechas
Madeira,
fibras
vegetais Produzido
Percussão apoiada
perpendicular
longitudinal/facão (machete);
atadura
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal /facão
(machete)
Médio/
baixa
Borduna
Madeira Produzido
Percussão apoiada
perpendicular
longitudinal/facão (machete
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal /facão
(machete)
Alta
Estilingue
Madeira,
fibras
vegetais
e/ou
plásticas Produzido
Percussão apoiada
perpendicular
longitudinal/facão (machete);
atadura
Mato/ Percussão lançada
obliqua longitudinal /facão
(machete)
Alta
395
Item Material
Produzido/
Adquirido
Técnica e instrumento
de produção
Local e técnica de
aquisição do objeto
ou material
Freqü
ência
Armas
Espingarda
Madeira,
ligas
metálicas
Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca Media
Revolver
Madeira,
ligas
metálicas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca Media
Vestuário e
calçados
Calças,
camisas,
casacos, saias,
vestidos
Tecidos
industriais
Adquirido
Cidade/compra; T.I./
doação
Alta
Roupa íntima
Tecidos
industriais
Adquirido Cidade/compra Alta
Sapatos e
botas
Couro,
borracha
Adquirido
Cidade/compra; T.I./
doação
Alta
Sandália para
trabalho na
roça
Borracha
de pneus
Produzido
Percussão apoiada
perpendicular
longitudinal/facão (machete);
atadura Cidade/coleta
Médio/
baixa
Meios de
transporte
Bicicleta
Ligas
metálicas,
plásticas
Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Alta
Carroça
Madeira,
ligas
metálicas,
plásticas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Média
Carros
Ligas
metálicas,
plásticas,
borrachas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Baixa
Eletrônicos
Rádios toca
fitas
Ligas
metálicas,
plásticas,
borrachas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Alta
Rádios toca
CD
Ligas
metálicas,
plásticas,
borrachas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Médio/
baixa
Televisores
Ligas
metálicas,
plásticas,
borrachas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Baixa
Celulares
Ligas
metálicas,
plásticas,
borrachas Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Alta
Relógios
Ligas
metálicas,
plásticas,
borrachas
Adquirido
Cidade, fazenda, T.I./
compra, troca
Alta
396
13.4 As atividades tecno-econômicas
Pode-se dizer que quase todas as atividades tecno-econômicas desenvolvidas
pelos Kaiowa têm como ponto de partida e de chegada o espaço doméstico. É, portanto,
a partir de este espaço que descreverei estas atividades, seguindo como critério dois
níveis territoriais de exploração e articulação dos recursos materiais: a área de jurisdição
de um te’yi de três gerações e o espaço interno ao tekoha guasu de sua referência. Este
segundo nível, por sua vez, dependendo de alianças e constrangimentos físicos, políticos
e administrativos, poderá ter configurado em seu interior diferentes lugares e ambientes,
cuja articulação desenhará um mapa de condições de acesso aos recursos, contribuindo
para determinar o repertório de possibilidades do grupo doméstico, assim como os
itinerários de atividades a serem percorridos por seus integrantes. Os lugares e
ambientes mais significativos são, sem dúvida, a área de abrangência da comunidade
política da qual o te’yi faz parte, a terra indígena na qual eventualmente este está
assentado, as fazendas, a margem das rodovias e as cidades. A divisão aqui proposta
deve-se às características das atividades que são desenvolvidas em cada um desses
lugares e ambientes, atividades estas que estão relacionadas a diversos níveis de
mobilidade, segundo idade e sexo.
A área de jurisdição de uma unidade doméstica pode variar bastante em
superfície, dependendo do contexto sócio-ecológico-territorial em que se encontra. Ele
pode oscilar entre o pátio de uma única residência (que alberga o te’yi inteiro), com
poucos hectares de terra a seu redor como ocorre em alguns casos nas reservas de
Dourados e Amambai, ambientalmente descaracterizadas e com alta densidade
demográfica
231
– e uma superície de mais de 100 ha, como em Pirakua, área esta onde a
relação espaço/habitante é muito mais vantajosa
232
, ainda conservando 40% das matas
nativas
233
. No interior do espaço doméstico são desenvolvidas as atividades culinárias,
231
Respectivamente 330 e 269 habitantes por quilômetro quadrado.
232
12 habitantes por quilômetro quadrado.
233
Lembro que se está falando do espaço relativo a um te’yi de apenas três gerações. Em condições ideais
e dependendo da configuração da rede fluvial e minas d’água, este poderá distribuir seus membros em um
espaço de mais de 300 hectares. que considerar que para uma família extensa constituída de quatro
gerações, a abrangência do espaço de sua jurisdição não pode ser calculada apenas somando-se as áreas
ocupadas pelas unidades domésticas que a compõem. De fato, entre uma e outra existem áreas em
comum. A mesma coisa pode ser dita para o território de jurisdição formado através da aliança entre
397
criação de animais, a construção de objetos e instrumentos, a coleta de lenha e água e as
tarefas de limpeza. Pratica-se a agricultura e, se existem matas, é possível que nelas
sejam desenvolvidas atividades venatórias, através do uso de armadilhas, além da coleta
de plantas medicinais, e eventualmente de algum fruto e/ou mel.
Em condições suficientemente favoráveis, com certa estabilidade de ocupação
territorial, os índios plantam árvores frutíferas no pátio (oka) das unidades residenciais,
o que no tempo certo lhes garante produção de laranja, tangerina, goiaba, mamão,
amora, manga, abacate etc., além de sombra, elemento este importantíssimo, visto que a
maioria das atividades é desenvolvida ao ar livre. Nas bordas do pátio podem se
distribuir cana-de-açúcar, abacaxi, bananeiras, urucum, feijão-de-corda (kumanda
puku), amendoim (manduvi), plantas medicinais (pohã ñana) e diversos temperos.
No pátio também se desenvolve a criação de “animais” com escopo alimentar
234
.
A presença de galinhas e patos é permanente, sendo que às vezes também o
encontrados perus e gansos. As tarefas relativas à manutenção e reprodução destes
“animais” é tipicamente feminina. A criação de porcos é também comum, e cabe aos
homens cuidar deles. que se considerar, porém que sua presença como fonte de
proteína não é constante, sendo geralmente poucas as cabeças contempladas por cada
unidade doméstica, e por períodos de tempo bem limitados
235
; geralmente os índios
criam um casal em um chiqueiro. Quando este tem cria, pode-se chegar a ter que cuidar
de mais de sete cabeças, sendo que os filhotes são deixados livres no pátio durante o dia.
Ocorre, porém que uma vez alcançado um peso considerado aceitável, todos os animais,
incluindo o casal inicial, são rapidamente transacionados ou carneados, suas partes
sendo distribuídas, em primeiro lugar, no interior da unidade doméstica e, se a carne for
abundante, para além desta, contemplando os aliados políticos mais próximos. É muito
vários te’yi de quatro gerações, que determinam uma comunidade política. Diferente é, por outro lado, o
caso da área total da Terra Indígena. Se esta não coincidir com a configuração de uma única comunidade
política, os espaços que se interpõem entre as partes em conflito não podem ser considerados como sendo
em comum, mas como lugares em permanente disputa para seu controle. Nestes casos, cada comunidade
política estenderá seu espaço de controle territorial até onde inicia aquele da comunidade vizinha,
podendo-se dizer, assim, que cada Terra Indígena é constituída pela soma aritmética dos espaços de
jurisdição das comunidades políticas aí presentes.
234
Cf. Melià et al. 1976: 209.
235
Em Pirakua, Clemente Franco chegou, em um caso excepcional, a criar mais de vinte cabeças de
porcos, porém de um ano para o outro este tipo de atividade foi abandonada, o te’yi por ele liderado
preferindo dedicar-se ao gado.
398
difícil ter duas unidades residenciais do mesmo te’yi criando simultaneamente porcos;
isto devido principalmente ao fato de que uma rotação permite uma distribuição da
carne de modo parcelado no tempo. Os Kaiowa não estocam as carnes, consumindo
imediatamente o “animal” abatido. A criação de porcos é considerada também uma
tarefa que exige muita dedicação, uma grande abundância de água e representa também
um perigo constante para os cultivares (próprios e de vizinhos), que podem ser
depredados por estes suínos quando escapam ao controle de seus donos
236
. Nestes
termos, este tipo de atividade exige a presença constante dos habitantes dessa
residência, algo que lhes reduz muito o nível de mobilidade espacial
237
.
As atividades culinárias, a preparação da bebida fermentada (kaguî) e a
limpeza da unidade residencial e seus objetos (incluindo as roupas) são peculiarmente
femininas. As meninas, a partir de aproximadamente seis/sete anos de idade, lavam as
louças e varrem o pátio e o interior das habitações, acompanhando também as adultas
nos córregos, açudes e/ou minas d’água, ajudando estas últimas no transporte das roupas
a serem lavadas
238
.
A captação da água é geralmente realizada nos mananciais. Na falta destes, é
possível se servir de córregos, mas a opção mais conveniente é a construção de poços
caipira
239
; ultimamente a FUNASA está construindo também redes de água encanada,
com pontos de distribuição constituídos por torneiras ou kits de saneamento básico.
Procurar água e transportá-la é tarefa geralmente realizada por crianças de ambos os
sexos de sete anos até a puberdade –, coadjuvada pelo auxílio das mulheres adultas
quando o transporte exige carregamentos de grande quantidade desse líquido. Os
236
Quando morava na reserva de Sassoró, Luís Velário Borvão costumava criar porcos. Mudando-se para
Jaguapire, deu continuidade a esta atividade, mas acabou por desistir, pelo fato de a captação de água
exigir, sendo distante, um trabalho mais oneroso do que costumava ser antes.
237
Em alguns casos é possível colocar alguém para cuidar da residência e de seus bens, mas que se
considerar que esses bens não são tidos como de propriedade coletiva da unidade doméstica, mas tão
somente de alguns membros dela, algo que limita as obrigações coletivas. No próximo item, falando
sobre as regras de propriedade e uso dos objetos, aprofundarei este tema.
238
Estes lugares encontram-se a distâncias que variam entre uns cinqüenta e trezentos metros das
residências.
239
Em Pirakua, onde existe escassez de mananciais, os índios são muitas vezes obrigados a coletar água
dos três cursos fluviais presentes nessa terra indígena. Estes cursos, porém, contaminam-se com
facilidade devido à freqüente presença de animais em processo de putrefação em seu interior, levando os
Kaiowa desse lugar a preferir a construção de poços em suas residências, utilizando as águas de rios e
córregos tão somente para tomar banho e lavar roupa.
399
recipientes utilizados para o carregamento da água são os mesmos destinados ao seu
armazenamento, sendo geralmente de plástico, com diversas capacidades volumétricas
(entre 5 e 20 litros). Quando as distâncias entre os pontos de captação e as residências
são elevadas, e sempre que as famílias possuam as condições econômicas necessárias,
adquirem-se como meio de transporte dos referidos recipientes, carrinhos-de-mão
utilizados geralmente na construção civil.
A coleta e o corte da lenha são tarefas realizadas por indivíduos adultos de
ambos os sexos. Quando os galhos são de pequeno porte, o carregamento e o transporte
são geralmente de competência de meninos pré-púberes.
Das atividades desenvolvidas no espaço do te’yi destinadas à integração de
alimentos na economia familiar, sem dúvida a mais importante é a agricultura. Os
Kaiowa, quando escolhem o lugar para construir suas residências, tomam em
consideração a presença de água nas proximidades e a fertilidade do solo, este tendo que
ser apto para a constituição de cultivares. Em situações favoráveis, cada família
conjugal terá ao redor de sua residência mais de 10 ha de terra disponíveis para o cultivo
de plantas alimentares, mas explorará tão somente uma pequena porção desta superfície,
as roças não superando geralmente os 3 ha. A subutilização desse espaço não é devido à
falta de condições materiais para trabalhá-lo, mas às características das cnicas de
corte/queima (v. foto XLVI) adotadas pelos indígenas, que exigem uma periódica
rotação dos lugares cultivados, de modo que o solo possa descansar, recuperando
nutrientes
240
. A área maior de jurisdição de cada residência serve justamente a este
escopo.
240
Segundo Moran (1994), este tipo de técnica, extremamente difundida nas regiões tropicais, teria sido
considerado por muito tempo na literatura como sendo primitiva. O autor, porém, coloca em evidência
que esta opinião não passa de um preconceito, visto que cientificamente é comprovada a grande eficiência
deste método de cultivo. A derrubada de árvores no meio do mato, formando pequenas clareiras, e a
conseqüente queima dos troncos e galhos, permite que “todos os nutrientes [sejam] depositados na forma
de cinzas, exceto o nitrogênio e o enxofre, que se perdem na forma de gazes. [...] O depósito de cinzas
reduz a acidez do solo, conforme é indicado por um aumento no pH. [...] A presença de cationtes nas
cinzas ocasiona um aumento favorável nos níveis de radicais livres de cálcio, magnésio e potássio que
contribuem para melhorar as condições de crescimento das culturas” (idem: 328-29).
400
Foto XLVII
Foto XLVI
Derrubada e queimada de porção de mato para fazer um kokue (roça).
T.I. Jaguapire. Abril de 2004. (Foto de Vito Comar).
Kokue (roça) consorciando milho, mandioca, abóbora, banana e cana em meio ao mato.
T.I. Pirakua. Abril de 2004. (Foto de Vito Comar).
401
Nos lugares em que fazem suas roças, os Kaiowa não formam monoculturas,
consorciando vários tipos de plantas alimentares (v. foto XLVII), como milho,
mandioca, arroz, feijão, batata doce, cará, abóbora, cana-de-açúcar, banana e outras
mais; plantam também urucum (usado como tintura) e tabaco (principalmente para
mascar)
241
. Embora todas estas plantas façam parte da dieta dos índios, sem dúvida as
mais importantes são a mandioca e o milho. A mandioca é cultivada durante todo o ano,
constituindo-se em alimento que fornece carboidratos cotidianamente. As diversas
variedades de milho ocupam um lugar pariticular
242
. O avati moroî (milho branco), de
modo especial, é importante nas relações cosmológicas, estando na base da cerimônia
anual do avatikyry (o batismo do milho e das plantas novas), que ocorre entre fevereiro
e março.
A derrubada das árvores, as queimadas e a preparação do solo para o plantio são
tarefas eminentemente masculinas. Ás mulheres cabe a semeadura, através do uso de
bastão cavador, enquanto que a utilização de máquinas manuais para esta finalidade
pode ser feita por ambos os sexos. A limpeza dos cultivares, para livrá-los das plantas
daninhas, é feita pelas mulheres. A colheita, antigamente exclusivamente feminina, hoje
pode ser realizada também pelos homens. Por sua vez, a colheita especificamente da
mandioca é atividade prevalentemente masculina.
Os cuidados para com as roças de cada unidade residencial são mantidos pelos
membros desta. Existem momentos, porém, em que as tarefas exigem maiores esforços,
requerendo-se a presença de um número maior de braços. Estes (momentos) são, por um
lado, constituídos pela fase da derrubada e preparação do solo, e, por outro, pela
colheita. Nessas ocasiões pode se envolver no trabalho o te’yi como um todo e, se a
safra é abundante, mesmo aliados políticos desta unidade doméstica. É esta a prática do
puchirõ (mutirão), onde, por um dia, a convocação para o trabalho em troca de
alimentação e “farra” com kaguî (como visto, bebida fermentada de alguns vegetais)
241
Para entrar mais em detalhes sobre a prática da agricultura, ver Melià et al. 1976: 208-209.
242
“Puesto que labrar su propia tierra no es considerado trabajo, sino más bien cumplimiento del
deber religioso y social (teko, ndaha'ëi tembiapo), la agricoltura está muy vinculada a su ideología.
Especialmente el avati morotï (avati tavyterã, avati jakaira, avati puku, avati mitã) es cultivo genuino y
sagrado de los Paî, es como criatura (mitãixa). Se preparan sus rosados aparte, en la mejor tierra y nunca
se mezclan sus semillas con otras variedades de maíz” (Melià et al. 1976: 208).
402
e/ou cachaça, fornecida pelo promotor do evento. No caso de o evento ser ligado
especificamente à colheita do milho branco (além de outra plantas novas), as atividades
confluirão no já citado ritual do avatikyry, com a convocação de um xamã especializado
para tal tarefa. O puchirõ não se limita às atividades que dizem respeito aos interesses
de uma unidade residencial. Em determinadas situações, o líder da unidade doméstica
pode convocar seus parentes para o plantio ou colheita de uma grande roça ou para
outra atividade produtiva.
Até aqui apresentei, mais que a realidade das práticas agrícolas dos kaiowa
contemporâneos, suas potencialidades. Nestes termos, fica claro que não se trata de um
modelo ideal, mas de atividades que podem se concretizar quando existem apropriadas
condições sócio-ecológico-territoriais. que se constatar, porém, que, de um ponto de
vista quantitativo, as unidades domésticas que hoje conseguem colocar em prática esse
tipo de agricultura que lhe garantiria variedade e qualidade alimentar, além de uma
relativa abundância – são uma ínfima minoria. Com efeito, a descaracterização do ponto
de vista ecológico e a falta de espaço tornaram, em muitos casos, as atividades agrícolas
pouco rentáveis, em termos da quantidade e da variedade de alimentos produzidos
243
;
outras atividades, como se verá, m hoje o primado na arrecadação da maioria dos
recursos necessários para o sustento da família.
Apesar disso, deve-se tomar em consideração o fato de que a agricultura é para
os Kaiowa mais que uma mera atividade tecno-econômica. Sua prática está intimamente
ligada ao modo correto de ser destes índios (o teko porã). As festividades estão
vinculadas aos tempos de produção dos cultivares; o calendário anual e o ritmo
243
Os Kaiowa continuam desafiando as condições adversas em que se encontram os espaços onde
constituem suas roças, tentando aplicar as técnicas de corte/queima em todos os casos encontrados. Os
resultados são muito variáveis, mas na maioria dos casos o que ocorre é uma perda evidente das
propriedades agronômicas do solo. As queimadas, que em um primeiro momento são eficientes porque
eliminam boa porte das pragas que atacam os cultivares (podendo comprometer o crescimento das
plantas), quando realizadas reiteradamente no mesmo lugar, acaba por eliminar quase por completo a
micro e a meso-fauna responsável pela decomposição dos organismos que contribuem para nutrir o solo.
Com o tempo, pois, a terra torna-se cada vez menos fértil, com evidente diminuição da produção agrícola
(informações procedentes de comunicação pessoal com o ecólogo Vito Comar). Outro problema, talvez
maior, que devem enfrentar os índios, é a presença de pastos exóticos introduzidos pelos fazendeiros,
cujas sementes, através da ação do vento, acabaram por infestar até as reservas indígenas. Estas pastagens
não conseguem ser extirpadas nem com o uso do fogo, sendo necessário recorrer-se a meios mecânicos
(grade e arado), ou à pratica manual da capinação com a enxada, algo muito fadigoso, que exige tempos
elevados de dedicação, em grande medida incompatíveis com os ritmos de trabalho cotidianos dos
Kaiowa.
403
cotidiano, embora com importantes modificações (que serão descritas no próximo item),
estão também associados às práticas agrícolas. Por tal razão, até nas mais adversas das
situações, ao menos alguns dos membros da unidade doméstica procuram sempre
formar roças, mesmo que exclusivamente de mandioca
244
. O cultivo de milho branco,
antes abundante, representando uma clara contribuição na dieta destes índios, hoje é
muito reduzido e praticado por poucas famílias; ainda assim, embora em escala
reduzida, sua manutenção, a conservação das sementes e sua distribuição, é algo
sistemático, justificado pelo fato de estes cultivares terem passado a desempenhar
(como no caso das ogapysy) um papel prevalentemente simbólico, estando na base da
cerimônia do avatykyry.
As roças atraem animais de diferentes espécies e, para capturar alguns deles, os
Kaiowa costumam colocar nas proximidades dos cultivares armadilhas que funcionam
através da força de gravidade (monde), proporcionando um golpe mortal à presa, ou de
laço (ñuhã)
245
, impedindo sua mobilidade
246
(v. foto XLVIII e figura V). A construção e
a manutenção das armadilhas são tarefas masculinas. Elas são inspecionadas
diariamente, concomitantemente ao trabalho realizado nas roças. Às vezes são
colocadas monde de modestas dimensões para a captura de pequenos roedores. Nestes
casos, com o auxílio de adultos, são as crianças que se encarregam da construção e
manutenção deste meio de caça, sendo também elas as principais beneficiárias das
presas capturadas, que são imediatamente consumidas, assadas na brasa do fogo
residencial.
244
Planta esta que exige menos cuidados, crescendo também em terrenos menos férteis.
245
Susnik oferece uma descrição sintética bem precisa destes dois tipos de armadilha: “Las
trampas puestas sobre los carriles de los animales, pueden dividirse en dos grupos: a) “mondé”, las
trampas más usadas que actúan por fuerza de gravedad; los animales siguiendo su carril, hacen caer la
varita—resorte que libra el disparador y determina la caida del pesado palo; suele emplearse para los
animales menores: “tatú, pacá, acutí” (Dasypódidos, Dasiproctas). Otra variante es “mondé yowai”
(doble), siendo ambos estremos de los dos troncos de palma “pindó” suspendidos por palancas; esta
trampa pesada úsase para tigres, javalíes y venados. b) “ñuhá” es la trampa que actúa por la fuerza de
elasticidad, funcionando mediante el lazo hecho de la corteza de “gwembepí” (Philodendron), cuyos
estremos están sujetos a una rama clavada en el suelo, de modo que actúa de resorte; se cazan a“acutí,
apereá (Cavia aperea), mboreví (Tapirus americanus), tamanduá (Tamanduá Myrmecophaga) y otros
animales”. (Susnik 1982: 46).
246
A construção das armadilhas ocorre no lugar onde são colocadas, sendo que também os
materiais utilizados procedem do local; as ferramentas utilizadas são o facão (machete) e o machado. As
técnicas de construção baseiam-se na percussão lançada oblíqua longitudinal e nas ataduras.
404
Foto XLVIII
Figura V
Monde (armadilha que proporciona um golpe mortal na presa por efeito da gravidade).
T.I. Jaguapire. Abril de 2004.
Ñuha (armadilha de laço que captura a presa utilizando a flexibilidade
de fibras e madeiras). (Miraglia apud Susnik 1982, fig.24).
405
Ocupemos-nos agora das atividades desenvolvidas fora do espaço doméstico.
Neste amplo espaço territorial pratica-se a caça, a pesca, a coleta, trabalhos
remunerados, transações de objetos e alimentos, através de trocas e/ou compra/venda.
Neste espaço, a caça pode ser realizada também com o auxílio das armadilhas
anteriormente descritas. Isto ocorre quando a presa pretendida mantém comportamentos
arredios, não se aproximando das roças e residências dos índios. Este é o caso, por
exemplo, da anta (mborevi), animal que costuma circular nas beiras dos cursos fluviais.
Nestes casos, são colocadas ñuhã (armadilha de laço) quando o caçador ou diversos
deles se alternando inspeciona o local cotidianamente, algo que implica uma distância
raramente superior aos 5 Quilômetros de distância das residências da unidade
doméstica, distância esta que permite a ida e o retorno do(s) indivíduo(s) no mesmo dia.
Os monde podem também ser colocados fora do espaço doméstico, especialmente
quando as áreas florestais se encontram distantes da área de jurisdição do te’yi, o
comportamento do caçador sendo similar ao há pouco descrito.
As atividades de caça mais freqüentes neste amplo território são as determinadas
através do auxílio de instrumentos portáteis, como as armas de arremesso
247
arcos
248
,
estilingues, espingardas e rifles. Esta é uma tarefa masculina, realizada individualmente
ou em grupo
249
(Melià et al. 1976, Susnik 1982, Mura 1997). Dependendo do “animal”
que se pretende caçar, podem ser escolhidos lugares distantes das residências, muitas
vezes transcendendo-se bastante os limites das terras indígenas, dirigindo-se os índios
para fragmentos de matas localizados em fazendas dos arredores
250
. As expedições
247
Para uma classificação das armas, ver Leroi-Gourhan, 1993 [1945].
248
Os arcos são de dois tipos: guirapa e guirapape (bodoca). O primeiro é composto de uma única corda,
lança flechas, enquanto que o segundo, com duas cordas paralelas e um alojamento central, arremessa
projéteis de barro ou de pedra. Este último instrumento raramente é utilizado, sendo sua função hoje
realizada pelo estilingue, arma que veio a substituí-lo.
249
Em Pirakua é muito comum a realização de caçadas coletivas, envolvendo parte significativa do grupo
doméstico (v. foto XLIX). Assim como em Ñande Ru Marangatu e Kokuei (áreas que completam a
população kaiowa do tekoha guasu dos Apapegua), o uso do arco é generalizado, muitas vezes ao lado
das armas de fogo. Em Jaguapire, ao contrário, o arco é pouco utilizado, as atividades venatórias sendo
realizadas individualmente ou em pequenos grupos de indivíduos que envolvem também jovens e
crianças.
250
Os Kaiowa de Pirakua costumam realizar caçadas ao longo do rio Apa, bem além dos limites da
área indígena, assim como a uma distância de 10 quilômetros, numa localidade conhecida como fazenda
Brasília. Em Jaguapire, quando são procurados porcos do mato (kurei), capivara (kapi’íva) ou veados
(guasu), dirigem-se as pessoas para remanescentes de floresta situadas a aproximadamente 05-07
quilômetros em direção norte e nordeste (v. mapa VII, letras “A”); quando se vai à procura de antas
406
venatórias podem se estender por mais de um dia, procurando-se acompanhar o
comportamento da caça. Nestes casos, como foi possível observar nas áreas de
Jaguapire e Pirakua, os índios constroem bases para tocaia em pontos estratégicos, onde
freqüentemente pernoitam.
A pesca é uma atividade desenvolvida por todos
251
, mas existem diferenças de
sexo e idade de acordo com o tipo desenvolvido. No caso do uso de linhas e anzóis
(com ou sem varas) para captura de peixes em córregos ou em rios situados próximos
aos espaços domésticos, a tarefa pode ser realizada por indivíduos de ambos os sexos e
de diferentes idades. No caso em que se use tarrafa, a atividade é desenvolvida por
homens adultos, em pequenos grupos. A prática da pesca através do uso de veneno de
timbó é desenvolvida nas águas com baixo nível de oxigenação, como as lagoas
formadas pelos desvios estacionais dos cursos fluviais, e é uma atividade coletiva
prevalentemente masculina
252
. Capturam-se peixes também através de barragens nos
rios, construídos com pedras e galhos, lugares estes que funcionam como armadilhas
para onde a presa é atraída, através do uso de ceva geralmente à base de milho
torrado
253
. Finalmente, utiliza-se o arco para a pesca em rios com correntezas
254
. A
coleta de alimentos é desenvolvida principalmente por mulheres e crianças de ambos os
sexos. Hoje esta atividade não se limita às matas e aos campos, mas também se pratica
nos centros urbanos próximos aos assentamentos indígenas. Nas matas e campos são
coletados frutos
255
e plantas medicinais.
(mborevi) ou pacas, os lugares escolhidos são as matas adjacentes ao rio Pytã, tanto no interior quanto no
exterior da terra indígena (v. mapa VII, letras “B”). A caça ao tatu é desenvolvida prevalentemente em
campo aberto, assim como ao lagarto (teju) e à ema (guaripi), o local podendo ser, assim, mais próximo
das residências (v. mapa VII, letras “C”).
251
Ver Susnik (1982: 57), Melià et al. (1976: 207).
252
Em Jaguapire, por exemplo, quando se encontram as condições apropriadas, pratica-se ainda este tipo
de pesca.
253
Atividade muito comum em Pirakua.
254
A micro-bacia formada pelos afluentes do Rio Apa constitui local apropriado para este tipo de pesca,
muito praticada pelos índios dessa região.
255
Para uma descrição exaustiva das frutas coletadas nas matas e nos campos, ver Melià et al. 1976: 209-
210).
407
Foto L
Clemente Franco com filhos e netos
indo caçar e pescar ao longo do
Rio Apa. T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
Netos de Clemente Franco com uma paca
capturada durante a expedição de caça.
T.I. Pirakua. Outubro de 1999.
Foto XLIX
408
Nas cidades e nas áreas rurais, este tipo de prática pode estar associada a outras formas
de aquisição, como as transações através de troca e/ou compra/venda nos
estabelecimentos comerciais (pequenos supermercados e bolichos), esta última
atividade não sendo mais prerrogativa feminina. A coleta nos centros urbanos exige dos
índios, além de um conhecimento detalhado desse ambiente, uma atenta análise do
comportamento dos “brancos” com os quais se deve necessariamente interagir, sendo
que dessa interação dependerá muitas vezes o nível de sucesso alcançado pelas
atividades tecno-econômicas desenvolvidas pelos índios nesse local.
Todos os municípios com terras indígenas em seu interior ou nas proximidades
têm seus centros urbanos transformados em alvos privilegiados dos Kaiowa para o
aprovisionamento de alimentos e objetos materiais. Há, porém, que se constatar que,
dependendo do posicionamento geográfico das cidades, certas atividades de coleta
podem se tornar, para certas famílias indígenas, sistemáticas, adquirindo uma curta
periodicidade, quando não são cotidianas. Este é o caso de núcleos urbanos como
Amambai e Dourados, que foram construídos a não mais de 5 quilômetros de distância
de reservas, hoje densamente povoadas
256
. Significativos me parecem certos itinerários
e técnicas de coleta adotadas por mulheres e crianças da reserva de Dourados, algo que
pretendo aqui relatar.
A reserva de Dourados foi criada em 1917, com a medida, padronizada na
época, de uma légua em quadra, isto é, 3.600 ha, que constituía uma gleba. Atualmente
a área tem 3474 ha, e abriga, segundo os últimos levantamentos da FUNASA (março de
2006), cerca de 10.000 hab. Também a cidade homônima foi construída em uma gleba,
tendo crescido bastante, indo um pouco além desse espaço inicial e contando com mais
de 180.000 hab. Como se pode notar no mapa apresentado a seguir (mapa XI), a
distância existente entre a reserva e o centro da cidade é de apenas 5 quilômetros, se
considerando a via de acesso mais utilizada pelos índios que procedem de Jaguapiru
(uma das duas aldeias que desde os anos de 1970 dividem formalmente essa terra
indígena)
257
. Estes transitam intensamente entre reserva e cidade servindo-se da rodovia
256
No primeiro caso, me refiro à reserva homônima de Dourados; no segundo, às de Amambai e Limão
Verde.
257
A outra aldeia chama-se Bororó. A divisão é puramente formal e foi introduzida por interesses
políticos de repartição de poder de jurisdição sobre diferentes micro-regiões da reserva, em vantagem de
409
Dourados-Itaporã, que corta a aldeia de Jaguapiru no sentido norte-sul. Com relação às
pessoas procedentes de Bororó, a rota de acesso principal é constituída pela rodovia
Dourados-Itaum, que permite ingressar na região noroeste da cidade, alcançando-se o
centro num percurso variável entre os 6 (seis) e no máximo 12 (doze) quilômetros de
distância. Existe ainda um acesso na região nordeste da cidade, mas é um caminho mais
tortuoso
258
, sendo menos cômodo para o trânsito de carroças e bicicletas, que o os
veículos mormente utilizados pelos índios. Outro fator importante a limitar o uso desta
via de acesso é o fato de que nessa região da cidade encontra-se de interessante apenas o
Núcleo da FUNAI, que, embora seja relevante
259
, não integra os interesses da maioria
dos índios atraídos pela cidade para desenvolver atividades cujos locais privilegiados
distribuem-se entre o centro e os bairros do setor noroeste da mesma
260
. Este último
lugar de Dourados (indicado com a letra “A” no mapa), é onde vive a média e alta
burguesia, muitas de suas ruas e avenidas sendo arborizadas com plantas frutíferas,
especialmente mangueiras. No centro da cidade (letra “B” no mapa), todos os sábados e
manhãs dos domingos, desenvolvem-se as atividades de uma extensa feira, que
comercializa prevalentemente produtos agrícolas da região da Grande Dourados. Os
locais recém-descritos são tomados em consideração pelos índios como seqüências de
um itinerário semanal de atividades de coleta, empreendido por determinadas famílias
de Bororó e de Jaguapiru, de modo especial por seus membros do sexo feminino
261
.
descendentes de Terena, os quais, com o apoio da FUNAI e de missões protestantes, chegaram a controlar
por décadas parte significativa dessa terra indígena (Mura & Thomaz de Almeida 2003).
258
A parte mais tortuosa é aquela interna à aldeia.
259
O Núcleo da FUNAI é objeto de atenção mais de lideranças políticas e/ou de indígenas procedentes de
outras terras indígenas de sua jurisdição, sendo que boa parte das atividades administrativas que dizem
respeito à reserva de Dourados é desenvolvida no Posto Indígena situado em seu interior.
260
Toda a cidade se constitui em alvo das atividades tecno-econômicas dos índios, mas verifica-se uma
grande concentração na região indicada, por razões que serão explicitadas a seguir.
261
Movimentos das setas no mapa.
Rodovia Dourados-Itaum
Rodovia Dourados-Itaporã
Aldeia Bororo
Aldeia Jaguapiru
Cidade de Dourados
A
B
C
Mapa XI
A
Local de coleta de manga
nas ruas e alimentos nas
B
Feira semanal
C
Sede do Núcleo da FUNAI
Utilizando carroças, mulheres e crianças costumam, aos domingos pela manhã,
empreender atividades de coleta compósitas no ambiente urbano. A dinâmica consiste
em chegar ao setor noroeste da cidade entre as 07 e 08 horas da manhã, distribuindo as
crianças ao longo das ruas transversais com a finalidade de arrecadar alimentos variados
(especialmente pão e biscoitos) nas residências locais
262
. A técnica utilizada é
formalmente idêntica ao que entenderíamos como pedido de esmola, os índios tendo
observado e reproduzido este fenômeno do melhor modo possível, buscando comover a
pessoa alvo de suas ações. De fato, procura-se enviar as crianças imaginando suscitar no
“branco” maior efeito, conforme o escopo pretendido. Contemporaneamente a esta
prática, com o auxílio de um bastão de cerca de 4 metros de comprimento, as mulheres
coletam mangas nas redondezas, estocando-as na carroça. Ao cabo de algumas horas,
todo o grupo se dirige para a feira localizada no centro da cidade. Neste último local,
em fase de encerramento das atividades comerciais, os índios dão continuidade à coleta
de frutas e verduras, descartadas pelos feirantes, e dedicam-se eventualmente a comprar
grãos (feijão), cereais (arroz) e carnes.
Com o fenômeno descrito se pretendia colocar em evidência como em certas
circunstâncias as atividades de coleta de alimentos podem ser desenvolvidas em
ambientes cuja exploração é relativamente recente de parte dos Kaiowa, refinando eles,
para tanto, técnicas específicas de aquisição. De qualquer forma, não é certamente este o
uso mais difuso que os índios fazem desses locais, a maior parte dos alimentos
conseguidos procedendo principalmente de transações comerciais. Por outro lado, os
itinerários de ida cotidiana ou periódica às cidades não são motivados simplesmente
pela necessidade de captar alimentos, sendo também significativo o aprovisionamento
de bens materiais de diferentes tipos, como roupas, objetos para as atividades culinárias,
ferramentas, pólvora e chumbo para a caça, anzóis e linhas para a pesca, eletrônicos e
outros objetos mais.
Diversamente do uso que os índios fazem das cidades – algo relativamente
recente a relação estabelecidas com comerciantes é bem antiga, datando de quase cem
anos, quando da formação dos barracões que forneciam utilidades e alimentos nos
ervais administrados pela Cia. Matte Larangeira. Como vimos na primeira parte deste
262
Muitas vezes hospedado na casa de um colega residente no setor noroeste, acordava eu todo
domingo com o som da campainha, cuja responsável era sempre uma mesma menina kaiowa, de cerca de
07 anos de idade.
412
trabalho, estes estabelecimentos comerciais estavam intimamente relacionados com a
própria atividade extrativista, em um primeiro momento da “Cia.”, e a seguir com os
ervateiros independentes que forneciam a erva a essa grande empresa. O binômio
ervateiro/barracão foi significativo na trajetória histórica de relacionamento dos índios
com os “brancos”, ao ponto de que os primeiros ainda hoje se referem aos comerciantes
com os quais estabelecem vínculos duradouros, com o apelativo de “patrão” o mesmo
atribuído aos sujeitos que os empregam durante as atividades de changa. Pelas suas
implicações no estabelecimento das relações entre índios e comerciantes, esta categoria
se revela de suma importância e será analisada no próximo item, quando enfrentarei a
natureza dos vínculos estabelecidos entre estes sujeitos, bem como as diferentes
racionalidades tecno-econômicas que permitem a regularidade dessa relação no tempo.
Aqui basta indicar sua relevância, permitindo-nos relevar comportamentos
diferenciados mantidos pelos índios quando interagem, por um lado, com os
“comerciantes patrões” e, por outro, com os donos de lojas onde os indígenas fazem
compras ocasionais ou que implicam gastos modestos com pagamentos à vista. A maior
parte dos bens que integram a bagagem material dos índios (como roupas usadas e
especialmente os gêneros alimentícios) procede da primeira categoria de comerciantes;
eletrônicos, móveis ou outros objetos de custo relativamente alto, são geralmente
adquiridos em estabelecimentos pertencentes à segunda categoria.
Embora as relações de troca objeto/objeto ainda ocupem significativo espaço nas
transações (especialmente entre indígenas), não cabe dúvida sobre o fato de que a maior
parte da bagagem material é determinada através do intercâmbio dinheiro/mercadoria
(principalmente entre indígenas e “brancos”). Nestes termos, a maioria dos processos
tecno-econômicos de aquisição de objetos prevê etapas ou momentos de aquisição de
dinheiro, isto hoje sendo possível através das diferentes formas de changa, do trabalho
assalariado nas terras indígenas e/ou conseguindo-se benefícios sociais e aposentadoria.
A changa é a modalidade mais antiga de trabalho e ainda hoje é a que diz
respeito à maioria da população indígena adulta. Como indica Thomaz de Almeida, que
dedica amplo espaço ao fenômeno, a
... changa é geralmente uma atividade coletiva, raramente individual. Até
meados dos anos 1980, era praticada, no Mato Grosso do Sul, em grupos de dez a 12
homens, que atendiam a demandas de fazendas. Os interessados no trabalho
413
indígena iam às aldeias e, pessoalmente ou através de um intermediário (conhecido
na região como “gato”), contratavam os índios para uma determinada empreitada.
Procuravam o Posto ou, se fossem conhecidos, falavam diretamente com o
“capitão”, que designava alguém para anunciar que havia patrão” procurando
homens para o “contrato”.
Invariavelmente, como em todas as formas de organização guarani, os grupos
de changa têm um “porta voz”, que exerce a liderança e coordena as relações entre o
grupo e o “patrão” ou seu representante. Essa liderança é mais evidente quando a
intermediação entre o “patrão” e o grupo de trabalho é feita por um índio, que
assume a responsabilidade pela empreitada, tendo a obrigação de organizar os
trabalhos, cumprir as tarefas estipuladas, receber do “patrão” e pagar os
companheiros. (2001: 161).
O autor escreve ainda que as empreitadas são geralmente de curtos períodos de
tempo, sendo que, em casos menos freqüentes, pode-se verificar que os índios estejam
engajados em trabalhos de duração mais longa, em locais distantes das áreas indígenas.
Nesses casos, os índios se transladam com mulheres e filhos, reproduzindo no lugar “o
cotidiano da aldeia” (idem: 163). Thomaz de Almeida considera a changa como uma
atividade preponderantemente masculina, existindo casos muito pontuais em que as
mulheres realizariam atividades remuneradas. Estes casos seriam também os únicos de
changa “interna”, consistindo em realizar trabalhos domésticos (lavar roupa, louça e
preparar comida), em regime muito instável, para empregados dos Postos Indígena das
reservas. O autor também narra um caso, referido ao ano de 1978, em que os índios
realizavam trabalhos assalariados, com carteira assinada, em uma pedreira de Dourados.
Afirmava, porém que, “entretanto, não é representativo o número de índios nessa
situação, e em um desses casos o trabalhador assalariado deixou o emprego alegando a
necessidade de fazer a roça para sua família” (idem: 165-66).
A descrição de Thomaz de Almeida das modalidades de changa refere-se ao
período que vai da metade dos anos de 1970 até meados dos de 1980. Nos últimos vinte
anos verificaram-se mudanças, com significativas implicações na organização do
trabalho dos indígenas.
Em primeiro lugar, as fazendas passaram a requisitar sempre menos mão-de-
obra indígena, a changa nestes locais sendo hoje principalmente de tipo individual ou
em pequenos grupos. O “contrato”, que mobiliza grande quantidade de indivíduos de
sexo masculino, passou a ser exclusivo para o corte de cana nas usinas de álcool, estas
situadas em localidades distantes das áreas indígenas, fora dos territórios dos Kaiowa e
Ñandéva. A organização das empreitadas permanece a mesma descrita por Thomaz de
414
Almeida, o “gato” sendo hoje denominado de “cabeçante”, e os contratos coletivos
263
sendo estipulados não mais através dos chefes de posto da FUNAI, mas com a
intermediação dos “capitães”. A magnitude do fenômeno com relação a tempos
anteriores é, porém, uma mudança significativa, existindo hoje “cabeçantes” que
mobilizam centenas de índios, contribuindo para configurar esquemas de poder político-
econômicos com evidentes repercussões na organização comunitária nas terras
indígenas como foi amplamente descrito no capítulo VII. Outra importante diferença
com relação ao passado recente é a periodicidade no desenvolvimento dessas
empreitadas. Se antes os índios permaneciam changueando nas fazendas das redondezas
por algumas semanas – levando consigo mulheres e filhos, quando os tempos eram mais
longos e os lugares distantes –, hoje nas usinas milhares de homens permanecem
consecutivamente por dois meses, podendo chegar a trabalhar por mais de seis meses,
com intervalos bimestrais de apenas quinze dias.
Em segundo lugar, a changa feminina não se limita mais ao contexto do trabalho
doméstico no interior das reservas, mas pode ser realizada também nos campos de soja
das fazendas das redondezas dos assentamentos indígenas, trabalhando as mulheres na
limpeza dos campos, liberando-os das ervas daninhas.
Em terceiro lugar, a changa deixou de ser o único modo de se conseguir
dinheiro, passando o trabalho assalariado dentro das terras indígenas a ter um peso
significativo na integração econômica de numerosos te’yi. Em decorrência das
reivindicações dos índios e, posteriormente, das pressões exercidas a partir dos ditames
263
O Ministério Público do Trabalho (MPT) considera uma conquista de direito trabalhista a estipulação
de contratos coletivos. Esta convicção deve-se a uma visão superficial da organização política dos índios,
calcada no senso-comum. que se constatar, porém, que em recentes reuniões ocorridas entre esta
instituição e antropólogos o do Ministério Público Federal e os consultores do Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a positividade do contrato coletivo foi colocada em
discussão, algo que começou a sensibilizar os procuradores do trabalho. Com efeito, nesta modalidade, o
trabalhador não tem carteira assinada, seus direitos individuais, tutelados pela CF de 1988, permanecendo
subordinados a uma gica coletiva que favorece a centralização do poder nas figuras dos mediadores
“cabeçantes” e “capitães”. Estas reuniões estão prefigurando mudanças significativas no cenário do
trabalho indígena local. Por exemplo, no que diz respeito à reserva de Dourados, os índios e o MPT
chegaram a um acordo, propondo a suspensão do pagamento da “taxa comunitária” aos capitães e a
criação de uma conta onde esta seria depositada, em juízo, na espera de se encontrar outros caminhos para
destinar esses valores às famílias dessa reserva.
415
constitucionais e leis estaduais
264
, as secretarias municipais de educação foram
progressivamente integrando professores e merendeiras kaiowa e ñandéva nas escolas
indígenas. Além disso, recentemente começaram a se formar “escolas-pólo” indígenas,
cuja direção e coordenação pedagógica também foram atribuídas aos índios.
Recentemente foi instituído também o cargo de vigia das escolas. A FUNASA, como
cargos assalariados, implementou o de agente de saúde indígena e, atualmente, também
o do zelador das instalações que esse órgão federal constrói nas terras indígenas. A
FUNAI, por seu turno, integra hoje indígenas como chefes de posto e, em raros casos,
como motoristas; embora com certa irregularidade tendo portanto uma característica
mais próxima à da changa –, instituiu também o papel de tratorista, com contratos
trimestrais, de modo que, justamente, não constitua vínculo empregatício
265
.
Outra fonte de ingresso de dinheiro de suma relevância são os benefícios sociais,
como a bolsa-escola (ou família
266
) e o auxílio maternidade, e a aposentadoria por
idade, recebida atualmente pelos índios como trabalhadores rurais. Esta última, pela
maior regularidade e por constituírem rendas de um salário mínimo (que no caso de um
casal de idosos significa um ingresso constante de 700 reais por mês), é muito
procurada pelos índios. É também ela um tipo de recurso que leva a territorializar os
índios, uma vez que para tramitar o recebimento da aposentadoria, o sujeito deve ser
residente em uma terra indígena
267
.
Os recursos financeiros procedentes especialmente dos salários e das
aposentadorias permitiram o surgimento de uma forma inédita de changa, estabelecida
264
Pelo Artigo 210 da Constituição Federal/88; pela LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional) 9.394/96, Artigos 78 e 79; pela Lei Estadual 10.172/01; e pela Deliberação do CEE/MS
(Conselho Estadual de Educação) Nº 6767/02.
265
Como foi possível notar em Jaguapire, as limitações impostas pela Lei podem ser contornadas
estabelecendo-se seqüências de contratos com diferentes titulares, que funcionam como “laranjas”, de
modo que, na prática, uma única pessoa ocupe o cargo de tratorista.
266
A bolsa família” é um pacote que veio a substituir vários benefícios, como “bolsa escola”, que é de
15 reais por aluno, num ximo de três crianças entre 06 e 15 anos; “cartão alimentação”, de 50 reais
para famílias com renda per capita menor que esse valor; “bolsa alimentação”, de 15 reais para crianças
de 00 a 06s anos, e “vale gás”, de 7,5 reais, em meses alternados. O valor total da “bolsa família” pode
ser, no máximo, 95 reais.
267
Para contrastar este fenômeno, a FUNAI, durante a administração presidida por Glênio da Costa
Álvares, emitiu um decreto que impunha a seus agentes registrar a identidade de pessoas com idade não
superior aos 07 anos e com comprovada descendência indígena. O decreto teve um efeito político
considerável, uma vez que famílias tidas pelo órgão tutelar como “desaldeadas”, muitas vezes sem
nenhum documento ou apenas com registro civil, passaram a ser reféns dos interesses de chefes de Posto
e/ou “capitães”, sendo elas favorecidas ou prejudicadas conforme as alianças políticas locais.
416
pelos índios dentro da própria terra indígena. Com efeito, a dedicação quase exclusiva
às atividades assalariadas, bem como a avançada idade dos casais em posse de recursos
regulares, levaram muitas famílias indígenas a requisitar mão-de-obra geralmente fora
da unidade doméstica, mas dentro da comunidade política local, para o desenvolvimento
de trabalhos pontuais nas roças, coleta de materiais no mato e no campo (madeira e
sapé) e/ou construir habitações.
A partir destas últimas considerações, parece-me oportuno redefinir a noção de
changa introduzida por Melià e os cônjuges Grünberg 30 anos, adaptando-a à
realidade contemporânea. Os autores referiam-se a este fenômeno como sendo “...el
‘trabajo ajeno’ con patrones mbaíry [“brancos”] por plata o mercancias” (Melià et al.
1976: 214). Este tipo de definição parece-me concentrar muito sua atenção sobre duas
relações dicotômicas: uma espacial, que determina a contraposição entre as atividades
tecno-econômicas internas ao tekoha e as desenvolvidas fora dele; outra étnica, que
associa o trabalho por dinheiro ou mercadorias unicamente à relação entre índios e
“brancos”. Pelo que foi descrito, fica evidente que ambas contraposições não abrangem
todas as modalidades de changa desenvolvidas hoje pelos índios. Assim, pois,
considero ser mais oportuno definir este fenômeno como um trabalho temporário,
cujo produto será destinado a quem o encomendou, o changueador recebendo em
troca dinheiro ou mercadoria. Deste modo, pode-se dizer que a changa se distingue
dos empregos assalariados não tanto pela natureza das tarefas realizadas, mas pela
quantidade de tempo que ela demanda. Por sua vez, se diferencia da maioria das
atividades realizadas no âmbito do espaço doméstico, pelo fato de que os produtos
destas últimas serão de propriedade de quem os produziu. No próximo capítulo,
ocupando-me das diferentes temporalidades com que se deparam e/ou às quais estão
submetidos os índios, assim como das lógicas de intercâmbio de bens, se ve a
importância destas diferenças no processo de integração material de um grupo
doméstico.
Para fechar a lista das atividades desenvolvidas pelos Kaiowa para a obtenção de
bens materiais, devemos considerar os recursos não em dinheiro, procedentes das
intervenções assistenciais e planejadas realizadas nas terras indígenas por diferentes
setores do Estado, ONGs e missões religiosas. As atividades assistenciais veiculam
alimentos (como as cestas sicas fornecidas pelo programa estadual Segurança
417
Alimentar”) (v. fotos LI e LII) cuja afluência é constante no tempo, e, menos comum,
por organismos municipais e estaduais, bem como por ONGs e missões religiosas.
Prerrogativa das missões religiosas – sejam elas protestantes (presbiteriana e metodista),
sejam católicas (CIMI e Pastoral Indígena) – é a distribuição periódica de roupas
usadas, arrecadadas por esses organismos. As atividades planejadas podem ser de
diferentes naturezas, mas todas as missões objetivam realizar projetos com o escopo de
“melhorar” as condições de vida dos indígenas.
Os mais difundidos são os projetos para o desenvolvimento de cultivares e/ou a
criação de animais, pretendendo envolver nestes os indivíduos de sexo masculino, e as
atividades de costura, tessitura e artesanato, cujo alvo é principalmente o público
feminino. A Pastoral Indígena, às vezes com o auxílio do CIMI regional, desenvolve
também pequenos projetos para captação de água, como poços caipira e a instalação de
rodas de água, e para a construção de ogapysy. A principal responsável pela
implementação de projetos agrícolas e de criação de animais é o organismo estadual
IDATERRA, mas no caso de Dourados, a Prefeitura tem se empenhado na
implementação destes tipos de projeto, assim como os de artesanato e, também, de
construção de casas de reza. A FUNAI, que com sua opulência entre a década de 1970 e
princípios da de 1980 implementava sistematicamente os denominados “Projetos de
Desenvolvimento Comunitários”, hoje mal consegue arcar com a manutenção dos
maquinários agrícolas (tratores e implementos) e participar com parte do combustível
necessário para seu funcionamento.
Todas estas atividades implicam na introdução de uma vasta gama de materiais,
ferramentas, objetos e alimentos. Por tal razão, os Kaiowa ficam sempre muito atentos
às ofertas procedentes dessa constelação de agências indigenistas, correndo atrás de
agentes à procura de projetos, seja quando estes visitam as terras indígenas, seja
buscando-os nos locais de origem de suas instituições. As temporalidades,
racionalidades e tecnologias que se confrontam durante o processo de captação e
implementação de projetos são fundamentais para compreender a importância das
relações interétnicas estruturadas, e as estratégias distributivas e redistributivas
desenhadas pelos Kaiowa. Vista sua relevância, terão um lugar privilegiado nas
descrições e análises do próximo capítulo.
418
Foto LI
Foto LII
Entrega da cesta básica pelo Programa Segurança Alimentar (Governo do Estado de MS),
na T.I. Pirakua. Abril de 2004.
Mulher kaiowa conversando com Wiliam Rodrigues, Administrador da AER. Amambai,
após recebimento da cesta básica. T.I. Pirakua. Abril de 2004.
419
Finalizando este item, gostaria de chamar a atenção sobre a grande
complexidade e variedade de atividades em que hoje podem se envolver os Kaiowa,
com o objetivo de integrar, de modo eficiente, a bagagem material da unidade
doméstica à que pertencem. Foi possível ver que as atividades desenvolvidas no espaço
de jurisdição de um te’yi de três gerações são direta ou indiretamente destinadas à
produção de objetos e alimentos. Com efeito, materiais como madeira, sapé e fibras,
entre outros, coletados, não se constituem ainda nos objetos finais destinados ao uso
doméstico, mas simplesmente em matéria-prima, necessitando ainda ser transformada,
através de técnicas de construção. Por outro lado, a exploração do território mais amplo
permite a incorporação de objetos acabados, objetos estes que, especialmente nas
últimas décadas, têm-se tornado preponderantes na vida cotidiana destes índios.
Também os alimentos procedentes de estabelecimentos comerciais e os implementados
pelas agências indigenistas passaram, na maioria dos casos, a ser numericamente
superiores aos produzidos pelos Kaiowa. Cabe dizer que os bens obtidos através das
transações comerciais são, sem dúvida, qualitativa e quantitativamente os mais
significativos, e para tanto é necessário desenvolver atividades que permitam captar
dinheiro, elemento este indispensável para os fins descritos.
Podemos concluir, portanto, que as atividades de aquisição tornaram-se
preponderantes com relação às de produção. Os Kaiowa consideram o conjunto de
ações que permitem a aquisição de materiais, objetos, alimentos e, inclusive,
dinheiro
268
, nos campos, matas, fazendas e cidades, como sendo o resultado de
(a)jeheka (literalmente, “ir à procura de”). O verbo se diferencia de outro similar,
(a)heka, pelo fato de este último referir-se à ação de ir buscar um objeto bem preciso,
em um lugar bem determinado. O primeiro, por sua vez, resulta da composição do
segundo, mais a partícula jere”, que implica o ato de circular ((a) - jere- heka). Neste
sentido, as atividades de jeheka se referem a um conjunto de ões que, concatenadas
entre si temporal e espacialmente, determinam um resultado tecno-econômico
268
O dinheiro pode ser o resultado de uma atividade de produção (changa e/ou emprego), mas cujo
produto não é destinado ao uso do trabalhador. O trabalhador voltará a seu espaço doméstico, trazendo
consigo dinheiro ou mercadorias, estes sendo os objetos da procura e cuja captação motivou o indivíduo a
se empenhar nessa atividade.
420
específico, o qual, embora seja suscitado por uma determinada intencionalidade, não é
certamente o fruto de uma programação prévia. As ações concatenadas podem ser de
natureza política, técnica e/ou simbólica, em conjunto dando um sentido específico ao
processo tecno-econômico. A dinâmica do jeheka, mais do que o tipo de atividade
realizada, é um fator que coloca em evidência a especificidade do comportamento
tecno-econômico kaiowa, razão pela qual será importante objeto de atenção do próximo
capítulo.
421
Capítulo XIV
Racionalidades, temporalidades e tecnologias em confronto
No capítulo anterior, por comodidade expositiva, descrevi as atividades
desenvolvidas pelos Kaiowa separadamente, buscando apresentar as características de
cada uma delas e sua importância na integração da bagagem material destes indígenas
nos dias de hoje. Coloquei, assim, em destaque a grande variedade de opções à
disposição com relação ao passado não muito distante, mas advertindo também sobre o
fato de que os índios, motivados pela manutenção e/ou ampliação dos tempos de
socialização, enveredam por escolher um número relativamente reduzido delas, seja em
qualidade, seja em quantidade. Por outro lado, que se considerar que estas atividades
estão geralmente articuladas entre si. Também se destaca o fato de que diversamente do
passado, não todos os integrantes de uma unidade doméstica necessariamente se
dedicam a desenvolver os mesmos tipos de atividades. Por exemplo, se antes,
dependendo da época do ano, os homens adultos primeiro preparavam o solo para o
plantio, dedicando-se depois prevalentemente à changa, à caça e à pesca, a seguir
organizando e/ou participando dos rituais, para depois novamente voltar a preparar o
solo, renovando assim o ciclo de atividades, agora a concatenação temporal das práticas
é bem mais diversificada e complexa. Ocorre que, enquanto um indivíduo de um te’yi se
dedica predominantemente à agricultura, outro pode, com muito mais freqüência, ir para
a changa, e outro ainda trabalhar cotidianamente como professor ou agente de saúde.
Por sua vez, os tamõi e jari, em decorrência da avançada idade, contam com os recursos
procedentes da aposentadoria. Por tais razões, o calendário das atividades dos Kaiowa
contemporâneos não pode mais ser como o que se segue:
422
Después de las heladas (ro'yguasu) empieza el nuevo año (ombopyahujey
ñande yvy). En agosto (tajyipotyha) plantan avati morotî, dando inicio al ciclo
agrícola. Octubre (‘karai octubre’ del folclore paraguayo) es también entre los Paî el
mes de la penuria (karuvai) y se extiende hasta la cosecha del choclo (avatiky) a
partir de la segunda quincena de noviembre. La época del avatiky es tiempo festivo
(arete) con el avatikyry y convites para chicha y se extiende hasta fines de marzo.
Abunda la comida, que facilita la extensión de la vida social (ñembory, mitãka'u, aty
etc.) y los viajes. A partir de abril empiezan los trabajos de derrumbamiento y
preparación de los nuevos rozados (koyrã). Hacia fines de julio o en agosto, según el
tiempo y la dirección del viento, prenden fuego al rozado (ohapy kóy). Los meses de
marzo a agosto son también los meses de oferta de trabajo (changa) por parte de los
“patrones” de la región (Melià et al. 1976: 207-8).
Neste calendário as atividades são todas relacionadas ao ciclo agrícola, este
último, por sua vez, dependendo das estações do ano. Os autores colocam a changa
como sendo desenvolvida exclusivamente entre março e agosto pelo fato de que nessa
parte do ano existir oferta de trabalho. Ocorre que hoje a changa que envolve a maioria
dos indígenas é o corte de cana nas usinas de álcool, existindo oferta praticamente
durante todo o ano, o que permite também arrecadar-se recursos durante o período de
escassez (tembiu sa’i). Melià e os Grünberg indicam também que a agricultura “es
actividad principal y suministra un 80% de los alimentos consumados” (idem: 207).
Mais adiante no texto, porém, falando da changa, eles afirmam que “aunque no la
consideran parte de sus costumbres (ndaha'éi teko), sin embargo, es la fuente de ingreso
más importante” (idem: 214), esclarecendo o fato de esta atividade permitir a aquisição
dos “bienes de consumo que ellos [os índios] no producen, como género (tela), habõ
(jabón), juky (sal), inimbo (hilo), katíra (caña), kerosen etc” (ibidem, ênfase minha).
423
Ao menos no tocante aos Kaiowa de Mato Grosso do Sul, não seria exagerado se
dizer que hoje o processo de integração material inverte as proporções expostas pelos
autores acima, os produtos de seus cultivares não chegando a 20% dos alimentos
consumidos. Neste sentido, a prática de jeheka passa a ser responsável por mais de 80%
das necessidades alimentares desses indígenas, algo que leva a alterar
significativamente o calendário das atividades tecno-econômicas por eles
desenvolvidas.
No novo contexto sócio-ecológico-territorial que veio a se configurar, três tipos
de relações/interações parecem-me importantes de serem consideradas: aquelas com os
comerciantes, aquelas com os empregadores (fazendeiros e/ou usineiros) e, finalmente,
com os agentes indigenistas. Porém, antes disso é oportuno explicitar as noções de
propriedade, as lógicas de uso e de troca dos recursos, assim como os critérios adotados
pelos Kaiowa para tomar suas decisões e empreender, continuar, suspender, modificar
e/ou interromper uma determinada atividade tecno-econômica. Isto poderá, por um lado,
permitir uma melhor compreensão da racionalidade dos atos praticados pelo sujeito
indígena perante aqueles manifestados pelos diferentes atores (índios e “brancos”) com
os quais interage; por outro, da temporalidade que a concatenação destes atos contribui
para conformar, e, finalmente, o calendário seguido, configurado a partir da composição
desta temporalidade com as dos outros atores que participam da interação, bem como da
imposição de fatores climáticos.
14.1 Normas e práticas de transação e uso dos recursos materiais
É relevante observar que a organização do te’yi não se baseia sobre um critério
de propriedade coletiva. Parece ser também improvável que isto possa ter ocorrido no
passado pretérito, como afirmam Schaden (1974) e Susnik (1979-80, 1982), autores
estes que atribuem ao fenômeno do “contato” a responsabilidade do desencadear-se de
um presumido processo de individualização da economia dos Guarani. As razões que
me levam a levantar estas suspeitas é a constatação empírica da existência de uma
grande exacerbação dada atualmente pelos Kaiowa exatamente ao oposto, isto é, à
propriedade individual.
424
Todos os objetos (mba’e), animais domésticos (rymba) e até frações das roças,
têm proprietários individuais, com exceção da terra. desde o nascimento o indivíduo
recebe em dom objetos que ficam em sua posse até que ele decida se e como
transacioná-los. As crianças costumam ter galinhas, patos e/ou outros animais
domésticos. Quando alcançam a idade de aproximadamente seis anos, lhe é concedido
um pequeno espaço, destinado ao plantio de sua roça particular, cujos produtos serão
considerados de sua propriedade. Em um primeiro momento serão os adultos a
acompanhá-las nos trabalhos agrícolas. O mesmo ocorre com a eventual construção ou
modificação de ferramentas e armas, destinadas a desenvolver as atividades tecno-
econômicas. Não desenvolvendo ainda atividades de jeheka que lhes possam fornecer as
ferramentas e os objetos considerados importantes para o desenvolvimento das
atividades que, conforme a idade e o sexo, lhes competem, os índios podem receber
estes elementos em dom ou utilizar os de outros membros da família extensa. Como é
de se imaginar, os objetos de uso culinário, bem como todos os que são destinados à
realização de atividades prevalentemente femininas, pertencem às mulheres. Seguindo a
mesma lógica, as armas e as ferramentas para o trabalho agrícola e a coleta de materiais
de construção, são por sua vez, propriedade dos homens da unidade doméstica. Com
relação às construções residenciais, estas sendo construídas no interior do espaço de
jurisdição de um determinado te’yi, serão, na maioria dos casos, consideradas como de
propriedade do cônjuge relacionado por laços de consangüinidade com o tamõi e/ou jari
que o lidera. A mobília, se existir
269
, é na maioria dos casos propriedade da mulher que
chefia a unidade residencial, especialmente os objetos relacionados às atividades
culinárias.
Em caso de divórcio, os objetos presentes na unidade residencial permanecem
com os respectivos donos, o chefe da residência que sair da área de jurisdição do seu
sogro levará consigo os seus pertences e eventualmente todas ou parte das crianças fruto
da união matrimonial que está se dissolvendo.
269
Na maioria das casas kaiowa, a mobília é inexistente, os lugares destinados a uso dormitório e a
cozinha contando apenas com prateleiras e tarimbas construídas como extensão da estrutura da própria
habitação. Ocorre, porém, que sempre com maior freqüência encontram-se móveis procedentes de
atividades de coleta, troca ou transação comercial.
425
No passado, quando falecia um indivíduo, seus objetos o acompanhavam até o
túmulo, sendo colocados em cima da tumba (Schaden 1974). Há que se constatar,
porém, como aponta Müller (1989), que já na década de 30, os objetos mais valorizados,
como as ferramentas com lâminas metálicas, permaneciam com os vivos. Hoje a
maioria dos indivíduos acumula, até o momento de sua morte, um número de objetos
bem superior ao que chegava a possuir décadas, colocando-se na tumba apenas os
objetos de uso pessoal de pequeno porte e aqueles de conotação simbólica, como por
exemplo instrumentos rituais e paje’i (amuletos). Os bens restantes são distribuídos
entre os parentes consangüíneos mais próximos do falecido, conforme o uso ao qual
estão destinados.
Não existe entre os Kaiowa transmissão de herança formalizada. Eles não
constituem um “patrimônio”, cujo destino é regido por lógicas sucessórias com base na
proximidade de parentesco e a diferença de sexo e idade. Como agricultores,
manifestam uma clara diferença no relacionamento que mantêm com a terra, se
cotejados com outros povos que têm como base alimentar os produtos da lavoura
como em casos na ampla literatura sobre sociedades camponesas. A necessidade de
manter o patrimônio fundiário o mais íntegro possível, leva os camponeses a elaborarem
normas que atribuem a apenas um herdeiro (geralmente o primogênito de sexo
masculino) o direito sobre a propriedade da terra (Bourdieu, 1962). Entre os Kaiowa
este tipo de comportamento é absolutamente imoral. Com efeito, como foi amplamente
argumentado no capítulo VI, a terra não é propriedade de ninguém; resulta ser também
impreciso considerá-la como “propriedade comunal”, como afirmam Melià et al. (1976:
218). Ela é única e indivisível, seu dono sendo Ñande Ryke’y Pa’i Kuara. Foi ela
entregue aos Kaiowa para que estes possam dela tirar seu sustento, porém com a
incumbência de ter que com ela se relacionar, segundo as normas do teko porã (o
correto modo de ser). Nestes termos, dentro do espaço de jurisdição de um determinado
te’yi, os membros de cada família conjugal poderão construir sua residência e seus
cultivares no lugar que considerarem mais oportuno, sempre respeitando os espaços
ocupados pelos outros membros da unidade doméstica.
No caso em que ocorra a dissolução de uma unidade residencial, devido a
divórcio ou morte de algum membro importante, o espaço anteriormente ocupado passa
a ser disponível para novos casais ou para os estabelecidos que pretendam mudar de
426
local. A morte do tamõi ou da jari assim como o movimento temporal que, com o
incremento de uma outra geração, permite a formação de novas unidades domésticas
relativamente independentes leva ao remanejamento do espaço de jurisdição
originário, mas nunca como forma de herança. O direito de morar nesse determinado
local é de todos os descendentes consangüíneos de um determinado antepassado
simbolicamente considerado como primeiro morador dessa fração do tekoha guasu. Até
mesmo nas reservas onde hoje o espaço escasseia, valem as mesmas considerações, com
uma significativa exceção constituída pela reserva de Dourados motivo pelo qual este
caso específico merece ser minimamente descrito e analisado.
Em decorrência de um processo desencadeado pelo SPI na década de 60,
corroborado sucessivamente pela FUNAI, a reserva foi (ilegalmente) dividida em lotes,
atribuindo-se de início a cada família presente 25 ha. Com o passar dos anos e em
decorrência do aumento vertiginoso da população, a maioria desses lotes foram
posteriormente divididos, para se chegar, em muitos casos, a formar “datas”, espaços
estes similares aos lotes urbanos, com superfícies que podem chegar a ter menos de 300
m². Lotes e “datas” foram considerados informalmente pelo órgão tutelar como
propriedade privada, provocando um amplo mercado interno desses espaços, que
passaram a ser, portanto, alienados. O mercado foi em larga medida implementado por
“Terena descendentes”
270
, que, em transação com Kaiowa e Ñandéva, levavam (e ainda
levam) estes últimos a contrair dívidas dificilmente quitáveis, o que provocava a perda
de lotes ou datas em favor do credor.
Em reuniões organizadas pelo MPF de Dourados, das quais participei como
antropólogo consultor, os procuradores chegaram a manifestar a legítima dúvida sobre
se décadas de transações comerciais (com a terra como objeto de compra/venda) não
teriam levado os Guarani a modificar as regras de acesso e utilização desse importante
bem. Com a incumbência de ter que intervir, após inúmeras denúncias apresentadas a
esse órgão federal por parte de índios em conflito entre si, por motivos de
reconhecimento de propriedade e de direito à herança, os procuradores estavam com
270
O termo “terena descendentes” por mim utilizado traz propositalmente consigo toda a ambigüidade
apresentada por estes sujeitos quanto à própria identidade étnica. Em alguns casos, preferem eles
considerarem-se simplesmente como “índios”, especialmente frente aos “brancos”. Os Kaiowa, os
Ñandéva e os Terena se referem a eles como “mestiços”.
427
temor de interferir na contenda em nome de uma forma indígena de gerenciar os
recursos materiais que poderia se demonstrar anacrônica. A resposta a esta questão não
procede apenas da constatação de que os Kaiowa e Ñandéva de outras áreas ainda
consideram a terra inalienável, mas também do comportamento mantido por famílias
que por décadas moraram justamente em Dourados, hoje residindo em espaços
recuperados do tekoha reivindicado de Jatayvary, a cerca de 45 quilômetros da reserva.
Neste lugar, a distribuição das famílias e os direitos de uso da terra excluem totalmente
a possibilidade de que ela se torne propriedade privada. Com efeito, é muito comum
ouvir os Kaiowa e Ñandéva de Dourados dizerem que estão submetidos a lógicas de
utilização deste bem que lhes é alheia. Ocorre que muitos Guarani, pressionados pelas
circunstâncias, chegam a “vender” a terra, sem, contudo, pensar ter perdido o direito
originário e divino sobre esse espaço. Do seu ponto de vista, o que se estaria vendendo
seria mais a “posse” momentânea do espaço, e não a terra propriamente dita o que
esclarece a aparente contradição no comportamento mantido por estes indígenas no
momento da venda, com relação àquele manifestado quando reivindicam novamente
esse lugar. A volta dos que saíram torna-se, pois, motivo de conflitos; conflitos estes
muitas vezes “resolvidos” se os retornados tiverem condições de “comprar” o espaço
em causa, para sobre ele tornar a exercer o direito originário.
O exemplo de Dourados não coloca apenas em evidência o quanto é
significativo para a organização doméstica dos Kaiowa o fato de não se considerar a
terra como um bem alienável. Ele destaca também empiricamente a diferença existente
entre o “direito de uso” e o “direito de propriedade” referido a um determinado bem. No
caso específico da reserva de Dourados, a relação entre estes dois direitos sobre a terra
expõe um claro problema moral, visto que ocorre que os homens estariam usurpando o
direito à propriedade sobre este bem, que é exclusivo das divindades. Diferente é o caso
dos outros objetos, onde o direito de propriedade é dos seres humanos. Estes podem ser
efetivamente transacionados, como de fato ocorre, mas existem também aqui obrigações
morais, cuja pressão condiciona o comportamento tecno-econômico dos indivíduos,
especialmente no interior da unidade doméstica. Este condicionamento permite a
geração de mecanismos de classificação dos objetos, nos termos notoriamente
marxianos, segundo seu “valor de uso”, limitando e regulando suas transações, estas
determinadas segundo seu “valor de troca”.
428
Traçando um paralelismo com a hierarquia estabelecida entre as técnicas de uso
e aquelas de produção e aquisição, pode-se afirmar também neste caso o fato de ser a
necessidade de uso dos objetos o que orienta a atribuição dos valores a eles associados.
As atividades sagradas, agrícolas e domésticas, colocam hierarquias bem
precisas na valorização e na necessidade de permanência dos objetos no interior da
família extensa, sendo ferramentas, utensílios de cozinha e recipientes dificilmente
alienados, enquanto que os instrumentos e adornos rituais não podem ser em hipótese
alguma transacionados. Muitos deles podem ser doados ou emprestados, os movimentos
destes, porém sendo sempre monitorados através da intermediação de ñembo’e,
especialmente quando se trata da passagem de chiru da guarda de um indivíduo (e de
um local) para outro. Objetos como relógios, rádios, bicicletas, celulares, televisores,
revolveres etc., são os que estão mais sujeitos a ser transacionados. Os relógios são
frequentemente utilizados como moeda para a obtenção de cachaça, enquanto que os
celulares e os rádios com CD são hoje os objetos com mais elevado valor de troca.
Todos estes objetos estão continuamente em circulação, permanecendo nas mãos dos
indivíduos por um período bastante limitado, geralmente uns poucos meses. Embora
nestes circuitos de troca participem todos os adultos de ambos os sexos, não cabe
dúvida de que são as pessoas que com mais freqüência vão para a changa
(especialmente para a usina) as que mais fomentam este fenômeno, vista sua mobilidade
territorial e a periódica obtenção de dinheiro, que permitem imitir no circuito de
intercâmbio os bens sujeitos à transação. que se observar que o fluxo de objetos
determinado pelas seqüências de transações não é totalmente livre. Com efeito, também
neste caso existem estratégias para regular a permanência destes tipos de objetos na
unidade doméstica. Quando querem que um determinado objeto seja retido mais
longamente neste espaço, uma das estratégias mais comuns utilizadas pelos Kaiowa é
atribuir sua propriedade a uma criança em tenra idade, fato que posterga em anos a
possibilidade do proprietário manifestar sua opinião sobre a possibilidade de este ser
trocado ou vendido. Outra possibilidade – como falado a respeito das peças de bicicletas
é colocar o objeto sob a custódia dos chefes da família extensa, pessoas estas que
garantem uma maior permanência dos bens no espaço doméstico, permitindo um maior
tempo de uso.
429
No que diz respeito aos alimentos, deve-se levar em consideração outros
aspectos. Salvo casos isolados, os Kaiowa não estocam animais nem plantas
desvitalizados
271
; conservam eles sementes, tubérculos e ramas de mandioca tão
somente para o plantio. A disponibilidade de comida para cada indivíduo no correr do
tempo é garantida, portanto, através de dois mecanismos: por um lado, o ciclo anual do
plantio, que garante colheitas periódicas, e as atividades constantes de caça, pesca e
coleta; por outro, a possibilidade de uma pessoa fornecer aos outros integrantes da
família extensa parte dos alimentos de sua propriedade, criando, assim, o vínculo moral
que os levará a retribuir o favor, quando for o caso. Este último comportamento é ainda
mais acentuado quando se refere a víveres altamente perecíveis, como a carne. Neste
caso, a distribuição será feita seguindo uma lógica hierárquica que impõe a filhos e
genros, a obrigação moral de compartilhar a presa primeiramente com o pai ou sogro e,
dependendo do seu tamanho, com o resto da família extensa. Esta regra,
primordialmente utilizada para distribuir o resultado da caça e da pesca, foi, por
extensão, aplicada ao consumo dos animais domésticos, aos recebidos em troca e às
carnes adquiridas nos estabelecimentos comerciais.
Isto aqui descrito diz respeito aos mecanismos que possibilitam e/ou limitam a
transação de recursos materiais. Cabe agora dedicar atenção às modalidades de uso dos
objetos durante a permanência no espaço doméstico.
Como foi apontado em se falando da bagagem de ferramentas disponíveis para
um te’yi, dificilmente ocorre que certos instrumentos considerados especiais se repitam
nas várias unidades residenciais. Assim sendo, o proprietário estará obrigado a
emprestá-lo cada vez que alguém do grupo doméstico o requisitar. Geralmente quando
não for o próprio chefe do te’yi a possuir estes objetos, ele os receberá em custódia,
podendo assim regular o acesso a seu uso. Há que se considerar que, na verdade,
potencialmente todos os objetos presentes no espaço doméstico (com exceção dos
sagrados) podem ser requisitados por qualquer membro da família extensa, o
proprietário sofrendo pressões para que os disponibilize. Neste sentido, enquanto o
271
O único lugar onde encontrei alimentos estocados foi na residência de João Morel, em Pirakua. Em
Jaguapire foi possível observar que o arroz é estocado em um primeiro momento não com o escopo de
fornecer regularmente esse alimento durante o decorrer do ano, mas para utilizá-lo como moeda de troca
sendo imitido em poucas semanas nos circuitos de transação gerados pelos índios.
430
proprietário não tomar a iniciativa de vender o objeto em questão, o “direito de uso”
prevalece sobre o “direito de propriedade”. Ocorre, porém, que, como no caso das
transações, o uso dos objetos é socialmente regulamentado. Todas as unidades
residenciais devem possuir uma bagagem material básica, tornando-se inoportuno que
alguém requisite objetos e ferramentas que por dever moral ele deveria possuir. Este
tipo de mecanismo leva a determinar uma certa uniformidade na composição dos
estoques materiais, tornando possível equivalências nas que poderíamos definir de
“relações de uso”. Assim, embora todos normalmente possuam, por exemplo, enxadas,
não necessariamente elas serão do mesmo tipo, uma pessoa podendo pedir emprestado
de seu irmão, cunhado, pai e/ou sogro aquela que apresenta características técnicas
diferentes com relação à de sua propriedade. Outro fator importante na distribuição das
obrigações de empréstimo é o fato de existir uma clara hierarquia, conforme a posição
do indivíduo no seio do grupo doméstico. Com efeito, as relações duais entre pai/filhos,
sogro/genros, mãe/filhas e mãe/noras são prioritárias na determinação de obrigações, se
cotejadas com as entre irmãos(as) ou cunhados(as). Os chefes dos te’yi possuem maior
acesso aos bens da unidade doméstica
272
, os outros componentes, em troca, podendo
contar com uma sábia administração e uma distribuição eqüitativa de acesso ao uso de
boa parte dos recursos materiais da família extensa.
14.2 Relação com os “patrões”
Como visto anteriormente, os Kaiowa consideram os comerciantes com os quais
estabelecem relações douradoras, bem como com os empregadores que lhes permitem
realizar suas atividades de changa, como sendo “patrões”. Na interação com estas
figuras – assim como com qualquer “branco” do qual pensam poder obter algum
benefício –, estes índios assumem uma posição de subalternidade, manifestando
suspeição e temor para com eles, procurando não contradizê-los, além de estarem
272
Tonico Benites, encontrando-se em Dourados e precisando comprar um par de sapatos “apropriado”
para calçar na cerimônia de sua formatura de graduação, me comentava que as possibilidades de que este
par pudesse se conservar em bom estado depois do evento, para ser utilizado em outras ocasiões
parecidas, eram francamente muito remotas. Observava que, uma vez tornado a Jaguapire, onde morava, e
deixando os sapatos em sua própria residência, seu sogro, que nela podia entrar com toda liberdade, até
mesmo em sua ausência, poderia utilizá-los para trabalhar na roça, como já havia ocorrido pontualmente
com outros pares por ele (Tonico) adquiridos.
431
continuamente observando suas reações. Em outras palavras, os índios mantêm para
com estes brancos” alguns cuidados específicos, exatamente como fazem ao se
dirigirem aos járy.
Como coloca justamente Thomaz de Almeida (2001), os índios utilizam
estratégias comportamentais baseadas no que eles denominam de ñembotavy
(literalmente “fazer-se de bobo”). Este tipo de comportamento, longe de ser algo
extemporâneo, é uma verdadeira instituição, que permite regular as relações entre
indivíduos e/ou grupos, buscando-se conseguir a maior vantagem possível, quando se
julga estar em posição social e política desfavorecida
273
.
Por outro lado, a relação com um sujeito como “patrão” implica considerá-lo
também como alguém que está devendo algo em troca de um serviço prestado o que
fica claro no caso da changa, da qual me ocuparei mais adiante. Com relação ao
comerciante, a natureza da dívida é, porém, diversa. Ela se baseia sobre a constituição
de uma clientela e na venda a crédito. Com efeito, no momento em que um determinado
indígena estabelece uma relação com o dono de um supermercado ou de um bolicho,
determina-se um vínculo de interdependência que postula contemporaneamente a
obrigação dos índios de saldarem periodicamente as dívidas e a do comerciante
continuar a vender a crédito. Na prática, ocorre que o débito total nunca é extinto, parte
dele sendo quitada e novas despesas sendo feitas. Este tipo de comportamento, em uma
primeira análise, pareceria simplesmente agravar a dependência do cliente para com o
comerciante; mas esta visão não é de todo acertada, em certa medida se dando o
contrário. Efetivamente, a não quitação total da dívida obriga o dono do estabelecimento
comercial a renovar o crédito, e com ele todos os favores que os índios demandam e
esperam, para que este seja considerado um bom “patrão”. Em poucas palavras, são os
índios que consideram importante e fundamental manter vínculos duradouros, uma
racionalidade que será explicitada a seguir.
Os Kaiowa costumam transformar imediatamente o dinheiro ganho a cada mês
(com a aposentadoria ou outras fontes de pagamento) em mercadorias de uso cotidiano.
Chegam eles, na maioria das vezes, a adquirir objetos e alimentos que superam o valor
273
Mais adiante, no próximo capítulo, voltarei sobre esta prática comportamental, muito importante para
se compreender o nível de sintonia existente entre as determinações das políticas indigenistas e as práticas
efetivas dos índios.
432
recebido do Estado ou das outras fontes pagadoras. As transações comerciais estão,
portanto, intimamente vinculadas à lógica do crédito, único mecanismo que pode
permitir tal comportamento econômico. O crédito, porém, não é algo cogitado pelos
índios; ele decorre de um vínculo específico, estabelecido entre um determinado
comerciante e um grupo de indivíduos, que realizará compras exclusivamente em seu
estabelecimento comercial. Do ponto de vista do comerciante, a garantia para a
concessão do crédito é obtida, hoje na maioria dos casos, com a retenção dos cartões de
aposentadoria dos “clientes” indígenas, estes últimos quase sempre chefes de famílias
extensas. É este mecanismo que lhe permite sacar regularmente o dinheiro a cada mês,
chegando a exaurir a conta bancária do “cliente”. Isto é feito mais que tudo para obter
certa regularidade no pagamento das mercadorias fornecidas, mas não para estabelecer o
vínculo necessário para manter um relacionamento duradouro com o freguês. Para este
último propósito, o comerciante deverá atender às exigências dos índios, os quais, de
seu próprio ponto de vista, exigem do “patrão” o comprometimento de realizar, no
momento oportuno, uma série de favores, que transcendem em muito o imaginado para
uma transação comercial: transportar objetos do “cliente” ou uma sua eventual
mudança, receber telefonemas e recados, ler e interpretar cartas e/ou documentos etc.,
além, obviamente, do transporte das mercadorias adquiridas até a residência do
comprador. Os comerciantes competem entre si para conquistar a confiança de um
“cliente” indígena, e geralmente aceitam realizar os favores por estes exigidos. Deve-se
considerar que se trata de estabelecimentos de pequeno porte, onde os preços dos
produtos são bem mais elevados do que os das lojas maiores, estas últimas
sistematicamente evitadas pelos índios por duas razões: falta de relacionamento pessoal
“patrão”-cliente e a negação de venda a crédito, ambos elementos relevantes para os
propósitos dos Kaiowa.
O apego dos índios a este critério de relacionamento com o comerciante “patrão”
é algo interpretado muitas vezes como efeito da lógica de dominação que teria sido
instaurada através da introdução dos “barracões” na região em pauta. Ocorre, contudo,
que várias investidas da Polícia Federal na tentativa de resgatar os cartões de
aposentadoria dos indígenas, punindo o comerciante pelo crime cometido, foram
acolhidas por muitos Kaiowa e Ñandéva como atos negativos, interpretados como uma
433
profunda interferência nas relações por eles estipuladas
274
. Na cidade de Iguatemi, anos
atrás, várias casas comerciais chegaram a ser temporariamente fechadas, afetando-se
significativamente parte das famílias indígenas de Jaguapire, Sassoro, Porto Lindo e
Cerrito
275
. Na ocasião, como relatou Dr. Lásaro Silva, o então delegado chefe da Polícia
Federal de Dourados, em uma reunião no MPF da cidade homônima, os índios
manifestaram clara hostilidade para com a operação policial.
Estaríamos muito enganados se atribuíssemos esta reação indígena a um
sentimento de lealdade para com os “patrões”. Com efeito, os Kaiowa não se sentem
ligados à pessoa do comerciante; eles não mantêm com os “brancos” nenhuma relação
tecno-econômica baseada em uma obrigação moral, como ocorre no interior do grupo
doméstico e, mais amplamente, com os membros da comunidade política que integram.
A relação com o “patrão”, nos termos descritos, e tão procurada porque esta figura
permite a temporalidade de acesso a recursos e serviços, que mais se ajusta ás
exigências tecno-econômicas indígenas. Os Kaiowa bem sabem que os preços dos
produtos vendidos por esses comerciantes são mais elevados, com relação aos de outros
estabelecimentos comerciais e que, portanto, seus “patrões” estariam especulando, mas
eles suportam tal fato como um ônus na relação de interdependência. Pode-se dizer que
os índios, assim como os comerciantes, fazem cálculos para avaliar os custos e
benefícios derivantes do pacto estipulado entre as duas partes. Ocorre apenas que os
primeiros realizam este raciocínio a partir do valor de uso e de uma certa regularidade
de acesso aos recursos materiais, enquanto que os últimos enveredam para um cálculo
baseado exclusivamente no valor de troca. Mais adiante, falando especificamente sobre
as diferentes temporalidades que participam na construção do calendário de referência
para os Kaiowa, voltarei sobre este importante tema. Por ora me deterei na consideração
das relações estabelecidas por estes índios com os empregadores durante as atividades
de changa.
274
É verdade que muitas das denúncias contra comerciantes procedem também de indígenas, mas na
maioria dos casos estas se devem à tentativa de punir o “patrão” que se considera como tendo quebrado a
confiança de algum freguês. Outra possibilidade é a de proceder à denúncia para lesar um inimigo
político, atingindo diretamente o comerciante para indiretamente afetar seu(s) cliente(s).
275
Na época, a aposentadoria era recebida unicamente através do Banco Bradesco, cuja agência mais
próxima das três terras indígenas era justamente aquela da cidade de Iguatemi. Atualmente os índios de
Jaguapire e Sassoro podem beneficiar-se também da agência do Banco do Brasil, presente em Tacuru,
mudança esta que teve significativo impacto no ordenamento das relações entre os estabelecimentos
comerciais das duas cidades e as famílias indígenas destas duas áreas.
434
É freqüente ouvir pessoas no MS, calcadas no senso comum, definirem os índios
como “vagabundos”. No dia 27 de abril de 2006, o “Diário MS Online” publicou o
resultado de uma enquete por ele realizada na internet, cujo resultado é o seguinte:
Dos 317 leitores que responderam à pergunta Você acha que todas as áreas
apontadas como terra indígena em MS devem ser imediatamente demarcadas e
entregues aos índios?”, 242 (76,34%) responderam “Não, terra não resolve o
problema porque índio não gosta de trabalhar” (destaque meu).
Muito curiosamente, o corte da cana nas usinas de álcool da região, um dos
trabalhos mais duros, que exigem uma grande dedicação e longos tempos de fadiga
física, é realizado quase exclusivamente por mão-de-obra indígena. Também nas
fazendas, o trabalho de capinação em torno às cercas, para protegê-las de eventuais
incêndios nas invernadas, tarefa frequentemente destinada aos índios, exije muita
dedicação e preparo físico. Existe, portanto, uma evidente contradição nas afirmações
do senso comum a respeito da propensão indígena ao trabalho braçal. Mas como será
que se geraram tais afirmações? Seriam elas simplesmente o fruto da ignorância da
maioria da população regional com relação à vida dos Kaiowa e dos Ñandéva ou elas se
fundariam na incompreensão e/ou no rechaço da temporalidade das atividades destes
indígenas? Sem dúvida, esta última opção me parece ser a mais provável.
Existe uma clara diferença entre os momentos em que o trabalho realizado por
indígenas é planejado e dirigido por “brancos” e aqueles em que são os próprios Kaiowa
a determinarem os tempos e lógicas de produção. No primeiro caso, em se partindo de
uma visão e uma divisão cartesiana dos tempos de trabalho, envereda-se para um
planejamento semanal ou mensal rigoroso e invariável, com etapas concatenadas entre
si, onde o indivíduo trabalhador faz parte de uma mais ampla programação das
atividades de fazendas e/ou usinas de álcool. A mão-de-obra indígena nestes casos é
subordinada aos meios, técnicas e lógicas de produção, que visam alcançar, em uma
determinada unidade de tempo, um resultado econômico predefinido. Neste sentido,
pode existir uma elevada variação de trabalhadores, o processo produtivo tornando-se
em certa medida impessoal, uma etapa de trabalho sendo desenvolvida por
determinados homens enquanto que as que se seguem podem tranquilamente ser
realizadas por outros, sem que a lógica da empresa tecno-econômica como um todo seja
afetada. O planejamento e a execução de uma símile estratégia de produção implica em
435
uma elevada flexibilização da mão-de-obra, algo típico dos empreendimentos
capitalistas.
Do ponto de vista dos indígenas, as atividades desenvolvidas por fazendas e
usinas o representam, como nós as entendemos, parte das forças produtivas da
“sociedade”; eles não se engajam nessas atividades para se tornarem trabalhadores
nacionais”, como era a pretensão do antigo SPI e da própria FUNAI, posteriormente. Os
Kaiowa se submetem a esses ritmos elevados de trabalho braçal com o único escopo de
conseguir uma determinada quantia de dinheiro e/ou um conjunto específico de
mercadorias. Assim sendo, as atividades de changa se inscrevem na temporalidade mais
ampla da trajetória experiencial de um indivíduo. Nesta temporalidade, não são os
trabalhadores a serem flexibilizados, mas a própria atividade de changa. Este tipo de
comportamento o diz respeito simplesmente aos indivíduos que saem periodicamente
das terras indígenas para desenvolver semelhante atividade, mas caracteriza também
boa parte das famílias que ainda permanecem morando no interior de fazendas. Senão,
vejamos.
Raul, um kaiowa originário de Jatayvary (terra indígena reivindicada pelos
índios, e em processo de identificação fundiária por parte da FUNAI) está muito
integrado no te’yi constituído em torno a sua sogra, cujos membros sempre residiram
fora de reservas e áreas indígenas. Os integrantes deste te’yi décadas se assentam no
interior de fazendas situadas no município de Laguna Carapã (MS), a cerca de 25
quilômetros de Jatayvary. aproximadamente três anos, Raul escolheu construir sua
unidade residencial no espaço de uma fazenda de cerca de 500 ha, onde residia seu
jovem cunhado (pai de dois filhos). Esta fazenda situa-se a 05 quilômetros de distância
da casa da sogra e da cunhada de Raul, localizada na beira de uma rodovia
intermunicipal, rodovia esta que permitia a comunicação entre os diferentes núcleos
familiares. Raul estabeleceu um acordo com o fazendeiro, que lhe permitia manter-se
com uma mínima estabilidade no local escolhido, acordo este reforçado através de
vínculos de parentela espiritual, sendo que o indígena escolheu seu “patrão” como
padrinho de sua filha menor. O acordo previa que, em determinados momentos do ano e
por breves momentos, o indígena realizaria trabalhos braçais pontuais, tendo em troca,
além de um lugar onde erguer sua casa, uns poucos hectares de terra para produzir
alimentos para sua família, e uma parca remuneração em dinheiro e mercadorias. Raul
436
construiu sua residência a uns duzentos metros de distância de um piscoso córrego e na
beira de um matagal que lhe fornecia a lenha e a madeira necessárias para a construção
de boa parte dos objetos domésticos, mantendo-se também próximo à referida rodovia,
o que lhe favorecia o acesso a meios de transporte locais. O cunhado de Raul, por sua
vez, trabalhava periodicamente como tratorista, tanto nessa fazenda quanto em outras
vizinhas.
Os núcleos familiares aqui descritos mantêm-se no local na medida em que
conseguem subordinar os ritmos de trabalho exigidos pelos “patrões” à temporalidade
determinada pela concatenação das atividades dos indígenas, que exigem altos tempos
de socialização, a realização de pequenas roças, o desenvolvimento de atividades de
caça e pesca e, finalmente, uma elevada mobilidade, que permite a comunicação e a
participação em festas organizadas por outras famílias indígenas da região.
A fragilidade da relação entre indígenas e “patrões” das fazendas é um fato
muito evidente. A perda das condições de manutenção de uma temporalidade
considerada aceitável para o desenvolvimento do grupo doméstico, levou e leva ainda
muitas famílias extensas, ou famílias conjugais destas, a terem que abandonar os locais
onde por décadas estiveram assentadas, para se dirigir a terras indígenas ou beiras de
rodovias. A título de exemplo, mais de três anos encontrei uma parte de um te’yi
kaiowa assentado na beira de uma rodovia, a aproximadamente 05 quilômetros da vila
de Itaum (município de Dourados), que havia recentemente saído de uma fazenda das
redondezas. Assentaram-se numa das margens dessa rodovia por que a distância
existente entre o asfalto e a cerca da fazenda limítrofe era bastante ampla nesse local,
permitindo a utilização do espaço intermédio para plantar. O lugar possuía, no raio de
uns quinhentos metros, minas d’água, mata para aprovisionamento de madeira e lenha, e
um córrego piscoso. A jari que liderava o grupo tinha dois filhos morando nas
proximidades da vila Itaum, igualmente em margens de rodovias. Segundo informaram,
não teriam sido expulsos da fazenda onde haviam permanecido por mais de vinte anos.
Eles afirmavam que nos últimos tempos o fazendeiro, que antes se dedicava à criação de
gado, resolveu arrendar parte significativa de “sua” propriedade para o cultivo de soja.
Esta mudança levou à restrição dos espaços de roça dos kaiowa residentes, além do
fato do “patrão” explicitamente lhes proibir a caça e a criação de porcos, ambas
atividades consideradas pelo fazendeiro como colocando em risco o plantio da soja. A
437
única alternativa que permanecia aos índios era aquela de se tornarem peões da fazenda,
como os outros empregados não-indígenas, algo que o te’yi em pauta considerou
inoportuno, visto que isto iria contrariar a temporalidade e as características
organizativas do grupo doméstico. Portanto, entre permanecer e ceder à negação do
próprio estilo de vida, esses indígenas preferiram se assentar na beira da rodovia, onde,
embora com evidentes dificuldades, podiam ainda dar vida às atividades por eles
consideradas como mais relevantes, respeitando a própria temporalidade.
14.3 Atividades indigenistas
O confronto entre as diferentes racionalidades e temporalidades que ocorrem nas
fazendas e nas usinas de álcool é o resultado de uma relação/interação que leva os
índios a se deslocarem periodicamente de seus lugares de assentamento. Nestes termos,
o aprovisionamento de recursos (dinheiro e/ou mercadorias) através de changas implica
numa evidente diversificação espacial entre os locais prepostos a esta tarefa e aqueles
onde são desenvolvidas atividades de produção cujos produtos beneficiam diretamente
os índios (isto é, os espaços de jurisdição dos te’yi). Nestes termos, as experiências de
submissão a ritmos e a uma organização do trabalho que lhes é alheia, são espacial e
temporalmente circunscritas pelos Kaiowa. Com efeito, sair da fazenda, ou da usina de
álcool, implica na imediata adoção de outro ritmo de trabalho e de socialização.
Como vimos, quando as famílias encontram-se assentadas no interior das
fazendas, elas estão sujeitas a uma constante instabilidade de ocupação territorial,
devido às pressões que podem vir dos “patrões”, algo que em determinados momentos
pode levar à expulsão dos índios ou a estes decidirem abandonar o local, reputando não
existirem mais as condições idôneas ao desenvolvimento da vida doméstica perorada.
Embora com características muito diferentes, como veremos ao longo deste
item, ambas as situações descritas podem se verificar também no interior das terras
indígenas. Com efeito, por um lado, as atividades indigenistas, constituindo como alvo
de atuação estes lugares e tendo como objetivo envolver os índios em seus
empreendimentos, passam a desempenhar na organização do trabalho papel semelhante
àquele desenvolvido pelos patrões” nas fazendas; embora declarando-se que os
projetos implementados são em “benefício” dos índios e não dos agentes que os
438
promovem. Por outro lado, o nível de interferência destas ações chega, em muitos
casos, a afetar os espaços de jurisdição dos te’yi, condicionando a vida doméstica
indígena.
No Cone Sul do estado de Mato Grosso do Sul, as atividades indigenistas que
tiveram continuidade no tempo, começaram a partir da instituição das primeiras reservas
destinadas aos Guarani, entre 1915 e 1928. desde esse período existia uma evidente
preocupação em tornar estes indígenas o máximo possível eficientes em termos
econômicos, procurando paulatinamente incorporá-los à nação brasileira. Com efeito,
no começo da década de 1920 o SPI levou para a reserva de Dourados algumas famílias
terena, com o explícito objetivo de influenciar os Guarani para que “melhorassem” suas
atividades tecno-econômicas, reputando que os Terena tinham atingido um mais
elevado nível de civilização (Mura & Thomaz de Almeida 2002).
Há que se considerar que embora o SPI envidasse esforços para introduzir
programas de produção agrícola dentro das reservas, não vivendo os índios, em sua
maioria, no interior destas unidades administrativas do Estado, e os próprios programas
não sendo numerosos, pode-se dizer que até a extinção desse órgão tutelar (e mesmo
nos primeiros anos da atuação da FUNAI), o impacto sobre esses índios foi muito
reduzido, do ponto de vista tecno-econômico. Por outro lado, as atividades indigenistas
introduzidas pelos missionários protestantes (presbiterianos e metodistas) a partir de
1928, concentrando-se sobre a educação escolar e implementando programas de saúde
(Fernandes Silva 1982), naquele momento tiveram efeitos pouco relevantes sobre a vida
tecno-econômica dos Kaiowa e dos Ñandéva.
Na década de 1970 a situação mudou substancialmente. Sob o efeito da
denominada “revolução verde”, devida a uma sistemática mecanização da agricultura
em todo o país, a FUNAI decide também implementar nas reservas programas tecno-
econômicos opulentos (Thomaz de Almeida 2001), com a finalidade de alcançar o que o
SPI intentava: a integração progressiva dos índios à economia regional. Para tal
propósito, como coloca em evidência Fernandes Silva (1982: 81), a partir de 1973 a
FUNAI “cita a palavra ‘emancipação’ relacionada aos projetos de desenvolvimento e à
demarcação de terras”. A autora coloca igualmente em destaque o fato de que “também
foi nesta fase que se deu maior atenção a monitores indígenas de ensino bilíngüe, que se
pretendia, caminhasse pari-passu com a formação de monitores agrícolas” (ibidem).
439
Deste modo, os Projetos de Emancipação eram associados aos que eram definidos como
sendo Projetos de Desenvolvimento Comunitário (PDC) (Fernandes Silva 1982: 81;
Thomaz de Almeida 2001: 56). Nestes termos, como indicava, em 1974, o general
Ismarth de Oliveira, então presidente da FUNAI, era necessário “dar a esses projetos
uma feição cio-econômica que motive a comunidade tribal para uma futura
integração” (Jornal do Brasil, 22/03/74 apud Fernandes Silva 1982: 81). Como aponta a
autora, as linhas destes “novos” planos apareceram em 1976, sob a rubrica “Nova
filosofia”, a FUNAI afirmando que
...pretende dar condições à comunidade indígena para participar da economia
regional através de projetos comunitários agrícolas ou pecuários para subsistência do
grupo e comercialização dos excedentes e capacitar o índio, ao mesmo tempo, a
assumir a responsabilidade de execução dos próprios projetos, através dos
conhecimentos adquiridos (Informativo FUNAI ano 5, junho de 1976; apud
Fernandes Silva 1982: 81).
Foi, porém, tão somente em 1978 que se tornou pública a minuta do Projeto de
Emancipação, que no seu artigo 1º cria uma comissão específica, a qual
...promoverá a elaboração e a execução de um plano integrado de ação de
desenvolvimento das comunidades indígenas, a ser desdobrado com medidas de
curto, médio e longo prazo, par permitir maior assistência técnica, econômica e
social àquelas comunidades e aos silvícolas, visando a incorporá-los gradativamente
à comunhão nacional, mediante a integração ou à emancipação de forma a
assegurar-lhes o pleno direito de seus direitos civis (Estado de S. Paulo, 17/11/78;
apud Fernandes Silva 1982: 82-83).
Após se tornarem públicas estas intenções, os Projetos de Emancipação foram
fortemente criticados por muitos antropólogos, pela Igreja Católica e mesmo por alguns
funcionários da própria FUNAI, ao ponto de que em 1979 estes eram abandonados
pelo Estado. Como afirma Fernandes Silva, estas críticas não foram dirigidas também
de modo significativo aos PDC, os quais, ao contrário, ganharam visibilidade, sendo
extensivamente aplicados. Segundo a autora, estes projetos
...de uma forma geral tem sido muito bem recebido pelas pessoas que
trabalham mais diretamente com o índio. De certa forma, os projetos implantados
pela Funai e Ministério do Interior são vistos como a redenção das comunidades
indígenas, a solução para o “problema”, etc (1982: 83).
440
Em Mato Grosso do Sul a tentativa de implantar esses projetos ocorreu de várias
formas. Uma delas foi através do convênio realizado pela FUNAI com a
Superintendência de Desenvolvimento do Centro-Oeste (SUDECO), dando vida a um
Grupo de Trabalho (GT FUNAI-SUDECO) interdisciplinar (contando com
antropólogos, sociólogos, economistas, educadores, enfermeiras, agrônomos e
veterinários), que iria “elaborar um pretensioso ‘Plano Diretor’ que abrangeria as
reservas Guarani então existentes naquele Estado (Thomaz de Almeida 2001: 58-59)”.
Na qualidade de consultor do referido GT, o antropólogo Thomaz de Almeida realizou
um levantamento sobre a situação sócio-econômica dos Guarani de Mato Grosso do Sul,
entre julho e dezembro de 1976, após o quê avançou uma série de propostas e
ponderações sobre como introduzir projetos de desenvolvimento que respondessem às
aspirações dos índios (idem: 59). Segundo ele, todas as suas sugestões foram ignoradas,
algo que o convenceu a desenvolver autonomamente trabalhos junto aos Guarani. Foi
assim que nesse mesmo ano Thomaz de Almeida fundou o Projeto Kaiowa-Ñandeva
(PKÑ), que passou a operar através de financiamentos europeus, entre os quais os da
agência ADB (Algeemen Diakonal Bureau). No entender deste autor que, de 1973 a
1976, havia participado das atividades do Proyecto Paî-Tavyterã (PPT), abordando os
Guarani localizados no Paraguai –, era preciso promover projetos comunitários
baseados num intenso diálogo com os indígenas. A literatura que tinha à disposição no
momento, dominada pelos trabalhos de Schaden, indicava-lhe uma situação diferente
com relação àquela encontrada no Paraguai, os índios apresentados como em um
avançado processo de aculturação. Foi justamente a partir desta imagem de aparente
desorganização social que o PKÑ começou seus trabalhos, considerando-se que “essas
condições permitiriam supor que [os índios] ‘estariam aptos a um desenvolvimento
programado’”(idem: 184).
Na opinião de Fernandes Silva (1982: 88), existiria consenso entre antropólogos
(do PKÑ), missionários católicos e a FUNAI sobre o fato de que os índios não estariam
em condições de produzir alimentos, compreendendo-se necessária a implementação de
projetos tecno-econômicos visando à melhoria de suas condições de vida. A autora
atribui também a estas três instituições indigenistas uma visão comum sobre as formas
tradicionais de organização do trabalho por parte dos indígenas, pensando-se que o
comunitarismo de gestão dos meios de produção e de condução das atividades tecno-
econômicas fosse a forma mais apropriada. Nestes termos, todas elas estabeleceram
441
relações com os índios com o propósito de formar grupos de trabalho baseados neste
princípio organizador. Ocorre, porém, que as finalidades de cada uma delas eram
diferentes. No caso da FUNAI, como vimos, procurava-se introduzir os índios no
mercado regional, com vistas a uma futura integração à “sociedade” nacional
276
; o
PKÑ, ao contrário, buscava apóia-los para que estes pudessem ganhar autonomia, sendo
que os missionários católicos, partidários da Teologia da Libertação, os apoiavam no
intuito de incluí-los em uma mais ampla luta dos povos oprimidos.
Frente às propostas avançadas pelas instituições indigenistas, os Kaiowa e os
Ñandéva manifestavam um comportamento tecno-econômico não muito diferente dos
que acostumavam ter com os “patrões” das fazendas, buscando benefícios,
especialmente em mercadorias e ferramentas. Eles encaravam as atividades
implementadas pelos “brancos” nas terras indígenas como se fossem changas internas,
mas sem abandonar a tradicional mobilidade no tekoha guasu de referência, mobilidade
importante no desenvolvimento das experiências de vida dos indivíduos segundo sexo e
faixa etária. Isto comportava que a changa nas fazendas continuava sendo uma opção
válida de integração material e de desenvolvimento experiencial, as atividades
indigenistas vindo a incrementar e não a substituir esse fenômeno quase secular.
Na decada de 1970, todas as três instituições indigenistas consideravam o
fenômeno da changa como um elemento desagregador, tido como responsável pela
insuficiente produção econômica no interior das reservas. Nestes termos, com
estratégias específicas, cada uma delas buscava contrastar sua efetivação, no intuito de
manter o máximo possível os índios no interior das terras indígenas. que se
considerar, porém, que o decorrer das interações entre os Guarani e estes organismos
levou ao desenho de experiências que configuraram formas distintas de atuação dos
organismos, algo que merece atenção, visto que, no que concerne às atividades
desenvolvidas junto a esses índios, seus desdobramentos constituem o panorama que
atualmente encontramos em Mato Grosso do Sul.
276
Nesta linha de atuação podem-se colocar também as missões protestantes. Embora até a decada de
1970 estas não manifestassem interesse em fomentar diretamente atividades econômicas, agiam com o
intuito de transformar os índios, favorecendo sua integração na nação brasileira. Como se verá mais
adiante, especialmente através de algumas intervenções na reserva de Dourados em colaboração com o
chefe de posto desse lugar –, os metodistas passaram a fomentar atividades tecno-econômicas, chegando
mesmo a introduzir meios mecânicos de produção agrícola.
442
Com relação às modalidades de implantação das atividades produtivas por parte
da FUNAI, são eloqüentes os resultados da pesquisa desenvolvida por Fernandes Silva
(op. cit.: 101-114) entre os Kaiowa das terras indígenas de Panambi e Panambizinho,
áreas estas situadas nas proximidades da cidade de Dourados. Através de sua proposta,
em agosto de 1977 a FUNAI convidou a totalidade das famílias indígenas destas áreas a
desenvolverem roças comunitárias em cada uma delas, nas quais seriam plantados
milho, arroz e, principalmente, soja. Toda a população masculina adulta (excluídos os
mais idosos, que na época dispunham de aposentadorias) foi engajada no
empreendimento, sendo “43 homens e ainda cinco menores” (idem: 101). A autora
relata que no momento em que foi instalado o projeto, os índios estavam passando por
penúria alimentar, fato que favoreceu a adesão em massa dos índios à proposta da
FUNAI. De fato, para cada trabalhador, o órgão tutelar oferecia em troca suprimentos
semanais, retirados de um armazém instituído ad hoc no interior das terras indígenas.
Cada estoque semanal contava com: “10 quilos de arroz, 1 lata de óleo, 1 quilo de sal,
1,5 quilos de açúcar, 2 quilos de feijão e 1 quilo de erva mate. [...] Eventualmente era
entregue charque, lingüiça, linha para costura, etc” (idem:102). O controle sobre a
afluência e o tempo dedicado ao trabalho por parte dos trabalhadores indígenas era
realizado através de uma lista de chamadas matutina e vespertina, nas mãos de um
fiscal, escolhido pelo órgão tutelar entre os próprios indígenas do local.
Devido a uma grande seca, a primeira safra foi desastrosa, chegando-se a perder
a totalidade do arroz plantado e 60% da soja. A população, o recebendo mais os
suprimentos que eram entregues até a colheita, voltou a passar dificuldades econômicas.
Nas temporadas seguintes, os suprimentos tornando-se quinzenais e não variando em
quantidade, levou os Kaiowa a perderem progressivamente interesse por esse tipo
especial de changa que era o trabalho nas “roças da FUNAI”, como eram denominadas
pelos índios. Os Kaiowa passaram também a perceber que paulatinamente a FUNAI
lhes estava subtraindo os espaços onde edificar suas casas e dar vida a suas roças. Com
efeito, como indica Fernandes Silva,
Para o ano agrícola 81/82 está previsto o plantio no Posto Indígena Panambi
de 60 hectares de arroz, 15 de milho, 51 de soja. Ainda serão plantados, de acordo
com o projeto, 6 ha de feijão e 3 ha de milho em lavouras familiares. A Funai
ocupará ao todo 135 ha das terras existentes neste Posto. Em Panambizinho serão
ocupados 40 hectares e em Lagoa Rica 86 hectares.
443
A área total do Posto Indígena, somadas as duas aldeias é de 300 ha; isto
significa que a Funai está se apropriando de 45% dessas terras para a execução de
seu projeto, terras que praticamente deixam de pertencer aos Kaiowa (1982: 107).
Ocorre que “em janeiro de 1981 apenas um rapaz estava trabalhando nas roças
‘comunitárias’, mas não voluntariamente: fora ele acusado de assassinato, e como
castigo deveria trabalhar sob as ordens da FUNAI... [...] Em Panambizinho apenas o
tratoriasta continuava trabalhando” (idem: 105-6). Durante esse período, “pelo menos
70% da população da aldeia estava trabalhando na colheita de amendoim, incluindo
mulheres e crianças que saíam diariamente da aldeia pela manhã, voltando à tarde,
perfazendo cerca de oito horas diárias de trabalho” (idem: 106).
Não obstante esta desistência em massa, a FUNAI continuou implementando
seus projetos, isto devido ao fato de que em 1981 as roças eram totalmente
mecanizadas, sendo necessária apenas a mão-de-obra do tratorista, do pulverizador e do
motorista da colhedeira mecânica, maquinários estes destinados principalmente ao
cultivo da soja, alimento este não contemplado na dieta dos índios.
Passemos a nos ocupar agora das atividades do PKÑ. Esta ONG começou a
operar sob a direção de Thomaz de Almeida promovendo, nos primeiros anos, a
implantação de roças comunitárias, definidas de kokue guasu (roças grandes), e a
criação de suínos. Para trabalhar nas kokue guasu formaram-se grupos de roça, que
recebiam suprimentos e ferramentas. O objetivo era o de que os índios alcançassem a
auto-suficiência econômica sem violentar seus métodos de trabalho e, para tanto, ao
contrário dos projetos da FUNAI, pretendia-se implementar técnicas e ferramentas
reputadas compatíveis com as características da agricultura praticada pelos Guarani.
Nestes termos buscava-se contrastar o fenômeno da changa, algo que fica evidente no
seguinte trecho, extraído de um dos relatórios enviados às agências financiadoras do
PKÑ:
O arado de tração animal, a adubação natural e a introdução de culturas
alternativas deverão ampliar a possibilidade de trabalho na pouca quantidade de
terra nas reservas; com isso e pouco a pouco é possível prever se não o total
rompimento da atividade ao menos sua diminuição, numa perspectiva a longo
prazo. É um dos objetivos do Projeto anular ao máximo esta atividade de
“changa” (Arquivo do PKÑ: relatório de fevereiro de 1981).
444
O referido relatório apresentava os resultados de três anos de atividades com
vistas à renovação do contrato com as agências financiadoras. Nestes termos, visava-se
promover uma ampliação das atividades do projeto, no intento de beneficiar outras áreas
indígenas. Este tipo de atitude despertou a preocupação da ADB, que se manifestou
através de um seu agrônomo, em carta dirigida ao coordenador do PKÑ; eis um
significativo trecho seu:
O seu objetivo sempre tem sido incentivar os índios Kaiowa e Ñandeva a
formarem pequenos grupos para a produção de alimentos nas roças. No início
dá-se a um novo grupo sementes, ferramentas, etc. Até a respectiva colheita,
eles ganham alimentos para viver. Assim que acabou a colheita, dela podem
separar sementes para o próximo ano. Feito isto, podem armazenar o alimento
necessário para um ano, e, caso ainda sobre, isto pode ser vendido.
Sendo assim, o fornecimento de sementes, ferramentas e alimentos pode
ser reduzido a uma única vez, no início, caso não falhe a primeira colheita.
No seu relatório, entretanto, entendemos que vocês continuam dando a
cada ano, as sementes e alimentos, e além do mais (mensalmente!?),
ferramentas.
Se fora assim, isto nos parece incorreto, por três motivos:
1. os grupos permanecem dependentes de Vocês, enquanto o seu objetivo
é justamente o de torná-los independentes.
2. deste modo, vocês tem muito menos meios e tempo disponíveis para
continuarem a ajudar novos grupos pela primeira vez.
3. se o Projeto terminar em 1983, os grupos não poderão prosseguir
sozinhos e todo o trabalho desmorona.
Com isto, estarão mais infelizes do que antes de 1980 (PKÑ: carta de 17
de novembro de 1981).
Como se pode deduzir deste trecho, uma organização social do trabalho
cuidadosamente programada nos mínimos detalhes era considerada a base para uma
eficiente atividade tecno-econômica, que permitisse aos índios alcançar o objetivo
pretendido pelo projeto e as agências que o financiavam. Nestes termos, a crítica
dirigida pelo agrônomo ao coordenador do PKÑ era seguramente legítima se cotejada
com as intenções do próprio projeto, derivantes de uma ótica cartesiana baseada na mais
meticulosa previsão dos fatos sociais. Ocorre, porém, que os próprios agentes do PKÑ,
no momento em que propunham a expansão de suas atividades, se encontravam em
fase de reflexão e modificação de suas atividades, fruto da constatação das dinâmicas
observadas desde a instalação do projeto, em 1976. Foi observado que quanto mais se
445
insistia na implementação de atividades comunitárias nas referidas kokue guasu e na
criação de porcos, mais os índios aproveitavam os recursos introduzidos pelo projeto
para beneficiar suas roças particulares e os circuitos de troca por eles produzidos
(Thomaz de Almeida 2001). Ao passo que o PKÑ promovia as atividades coletivas
segundo sua lógica programática, os índios aproveitavam para se reunir, socializar e, no
momento oportuno encontrando-se em melhores condições econômicas, promover
significativos e opulentos avatikyry, como ocorreu no local de Takuara, situado na
reserva de Takuapiry, em março de 1978. Thomaz de Almeida coloca justamente em
destaque que neste evento
Nos dias que antecederam a cerimônia propriamente dita, havia 25 homens
para os ñembo’e [rezas, orações] de preparação, muito diferente do avati kyry de
1976, quando no Takuara não havia mais de que dois ou três homens e suas
mulheres nas orações preparatórias (2001: 112).
Na continuidade, os membros do PKÑ também observaram que não apenas os
trabalhos comunitários, mas as próprias técnicas e temporalidades de sua execução
implementadas pelo projeto eram inapropriadas para conseguir o escopo perseguido por
essa instituição (idem: 106), visto que os índios reagiam manifestando outra
racionalidade tecno-econômica.
Não possuo dados específicos sobre as atividades tecno-econômicas
implementadas pelos agentes da Igreja Católica na mesma época. Fernandes Silva
(1982: 88) limita-se a referir que eram de pequeno porte (de subsistência) e relacionadas
a um processo de “conscientização” do grupo, com o intuito de que este pudesse se
reorganizar socialmente “em torno de lideranças que consideram autênticas...” (ibidem).
A partir das três experiências de ação indigenistas aqui apontadas,
desenvolveram-se três paradigmas de atuação, cujas linhas são encontradas hoje em
diferentes instituições, dando vida a práticas com diversos graus de impacto na vida dos
Guarani de Mato Grosso do Sul. Em primeiro lugar, o paradigma que poderíamos
definir de “modernizante” e “integrador”, promovido outrora pela FUNAI com certa
opulência é hoje seguido com muito menos impacto principalmente por segmentos do
Idaterra, o organismo estadual preposto ao desenvolvimento rural, e pela maioria das
prefeituras de Mato Grosso do Sul. A FUNAI, especialmente nas proposições dos
446
agentes das administrações locais, permanece também vinculada a esses princípios de
atuação, mas sem nenhuma possibilidade concreta de dar vida a práticas estruturadas
nesse sentido, limitando-se, na maioria das vezes, a buscar parcerias com os organismos
anteriormente citados. Em outubro de 2000, o chefe substituto do Setor de Atividades
Produtivas (SAP) da AER de Amambai que foi também chefe de posto de Panambi
entre 1980 e 1983 me comentava que antigamente, quando eram aplicados os PDC
(que cessaram em meados dos anos 80), a FUNAI tinha condições de mudar a sorte e os
métodos utilizados pelos índios em suas práticas agrícolas. Ele se queixava, por um
lado, das fortes restrições econômicas pelas quais estava passando o órgão tutelar,
enquanto que, por outro, acusava os Guarani de fazerem um péssimo uso dos parcos
recursos materiais que lhes eram disponibilizados pela FUNAI e outros organismos
indigenistas. Afirmava que os indígenas se obstinam em utilizar o trator em roças de
pequeno porte, o meio técnico sendo obrigado a trabalhar em círculo, o que no correr do
tempo lhe impunha um maior desgaste mecânico. Além disso, o pouco cuidado
dedicado a esse instrumento de trabalho não sendo ele devidamente guardado em
galpões e sendo abastecido muitas vezes com óleo diesel sujo de terra e/ou areia leva,
na maioria das vezes, ao comprometimento da bomba injetora do trator, quando não se
chega à própria fusão do motor.
No “Projeto de Atividades Produtivas” relativo ao ano de 1999, encaminhado
para avaliação e financiamento ao Departamento de Desenvolvimento Comunitário
(DDC) da FUNAI em Brasília, se afirmava que
Primeiramente será necessário concertar conjuntamente com as famílias todas
as incertezas e fracassos econômicos das roças de subsistência Guarani-Kaiowá,
mediante uma auto-análise crítica por parte das próprias lideranças e chefes das
unidades domésticas de subsistência (FUNAI-AER de Amambai).
Fica assim patente que, no entender dos agentes da FUNAI, são os indígenas a
terem que fazer auto-crítica e não o órgão tutor, manifestando uma clara invariabilidade
com relação às premissas adotadas por este último pelo menos trinta anos. O DDC,
porém, desatendeu às expectativas da administração regional, disponibilizando, segundo
informações do chefe substituto do SAP, nem um quinto dos modestos recursos
requisitados, que eram de R$ 674.125,80, para atender” na época a uma população
indígena de cerca de 19.000 pessoas, distribuídas em 19 áreas. Frente a esta frustrante
447
condição, no ano seguinte o SAP elaborou um novo projeto, redimensionando
drasticamente suas pretensões. Assim sendo, avançou um pedido de recursos por um
total de apenas R$ 126.323,00, o administrador da AER, em carta que acompanha o
projeto, datada de 13/03/2000, afirmando que
...a presente programação, devido ao valor que fora elaborado não atenderá às
necessidades básicas das comunidades indígenas jurisdicionadas a esta AER, haja
visto atendermos uma população estimada em 19 mil indígenas. Razão pela qual,
solicitamos os bons préstimos de Vossa Senhoria em aprova-la na integra, para
poder oferecer o mínimo necessário para esta população que apresenta extrema
carência (FUNAI-AER de Amambai)
Na verdade, nem o “mínimo necessário” era possível ser realizado com esse
orçamento, como é fácil de se deduzir, analisando-se alguns itens do projeto. Se
consideramos, por exemplo, os valores destinados às terras indígenas Jaguapire e
Pirakua, encontramos respectivamente R$ 5.318,00 e R$ 5.778,00. Em outubro de 2000,
o trator de Jaguapire encontrava-se na oficina, precisando da substituição da bomba
injetora por um valor além dos R$ 2.000. No caso de Pirakua, o trator estava em desuso
havia muitos anos, com o motor fundido, necessitando-se de mais de R$ 4.000 para
consertá-lo. Se levarmos em conta outros gastos de manutenção e de combustível, se
poderá entender que os valores destinados a essas áreas limitam-se, quando a FUNAI o
considera necessário, apenas ao funcionamento desses maquinários.
Ocupando-me agora das atividades indigenistas das outras instâncias de
governo que seguem o mesmo paradigma do órgão tutelar, que se considerar que,
embora disponham de mais recursos materiais, não chegam a disciplinar as atividades
internas às terras indígenas, como ocorria outrora. No caso das prefeituras, isto se deve
principalmente ao fato de que sua ação indigenista, na maioria dos casos, limita-se a
periódicos preparativos do solo, deslocando por alguns dias suas “patrulhas
mecanizadas”, constituída de tratores e seus implementos (arado, grade etc.). Nestes
casos, são escolhidos espaços contínuos de no máximo 50 ha, sem preocupação alguma
sobre as formas de organização do trabalho e distribuição territorial das famílias
indígenas, se imaginando que estes agiam sempre comunitariamente, com o “capitão”
como líder reconhecido por todos, cabendo-lhe a distribuição dos eventuais produtos da
lavoura. Geralmente, junto com os serviços da “patrulha mecanizada”, são distribuídos
448
sementes (milho, arroz e/ou feijão) e, às vezes, ferramentas. Raramente estas roças
conseguem alcançar colheitas produtivas, quando a safra não chega a ser perdida por
completo. Ainda assim, mais que contar com o resultado esperado pela prefeitura, os
índios pertencentes às famílias extensas que conseguem se engajar neste tipo de
empreendimento almejam obter uma vantagem tecno-econômica imediata: parte das
sementes é redistribuída entre parentes e se apropriam eles das eventuais ferramentas
que lhes foram “doadas”. É de se considerar também que, na maioria dos casos, esses
projetos são realizados sob pedido e pressões dos próprios índios, fruto de suas políticas
dirigidas a esses organismos de governo. No caso dos projetos implementados pelo
Idaterra, temos uma situação não muito diferente, exceção feita para o nível de
opulência demonstrado. Com efeito, além de fomentar atividades agrícolas, este órgão é
responsável pela “doação” de tratores e/ou seus implementos a certas “comunidades”.
Agora passemos a considerar os desdobramentos das atividades do PKÑ. Os
membros desta ONG, seguindo o paradigma por eles próprios produzido, baseado em
atender às demandas dos próprios índios, em conformidade com as necessidades de sua
organização social, tecno-econômica e territorial, decidiram assessorar os Kaiowa e os
Ñandéva quase exclusivamente em suas demandas fundiárias. Para tal propósito, os
antropólogos se dedicaram, e se dedicam ainda, a realizar laudos de identificação de
terras indígenas e perícias judiciais
277
, bem como a oferecer assessoria e consultoria a
organismos públicos como MPF, PF, prefeituras e a própria FUNAI. Nestes termos,
pelo menos até este momento, os caudatários da experiência do PKÑ não têm se voltado
para a atuação em atividades relacionadas à produção de recursos
278
.
O paradigma construído através da atuação da Igreja Católica baseia-se sobre
uma visão anômica da vida social e cultural dos índios abordados. Nestes termos,
agentes da Pastoral Indígena e do CIMI e até mesmo intelectuais ligados a esta linha de
277
Embora nunca tenha trabalhado no PKÑ, reconheço a minha própria atuação como técnico como
sendo caudatária do paradigma produzido por essa experiência.
278
Juntamente com Thomaz de Almeida e o ecólogo Vito Comar, elaborei um programa de gestão
territorial sob encomenda da FUNAI de Brasília, cuja execução deveria ficar sob nossa coordenação,
envolvendo cinco áreas kaiowa. Este programa foi intitulado “Programa Kaiowa-Ñandeva”, retomando a
sigla do organismo extinto, assim como o paradigma que ele produziu com sua experiência. A FUNAI,
porém, não obstante seu aparente interesse inicial, abandonou a tentativa de tornar esse programa uma
realidade prática. Embora com as devidas mudanças, este mesmo programa será proximamente
encaminhado ao Banco de Desenvolvimento Social (BNDES), com cujos representantes eu e Thomaz de
Almeida tivemos uma reunião prévia, o banco demonstrando-se interessado na empresa.
449
pensamento constroem a imagem dos indígenas como passando por um franco processo
de desagregação social, com o conseqüente abandono das pautas culturais entendidas
como sendo autenticamente” guarani. Para contrastar este presumido processo,
agentes e estudiosos forjam e planejam atividades de intervenção com a declarada
intenção de contribuir para a recomposição do grupo, fomentando o “resgate” da cultura
e de práticas tidas como tradicionais. Ocorre, contudo, salvo alguns casos, que estas
intenções não se baseiam no estabelecimento de um diálogo com tamõi e/ou jari,
preferindo-se a aproximação com jovens, estes considerados como sendo mais
maleáveis e, portanto, aptos a passar por um processo de “conscientização” sobre a
necessidade de se proceder ao referido resgate cultural.
A meu ver, podemos atualmente localizar três linhas de atuação decorrentes
deste paradigma: a explicitamente política, através da prática do CIMI, a tecno-
econômica e assistencial, nas mãos principalmente da Pastoral Indígena, e a de
educação escolar, sob a égide do Programa Kaiowa/Guarani, da Universidade Católica
Dom Bosco (UCDB) de Campo Grande, em colaboração com algumas prefeituras e o
governo do estado. o cabe dúvida de que especialmente a primeira e a terceira destas
linhas têm um significativo impacto na determinação de políticas a nível regional, com
conseqüências para os indígenas. Com relação à atuação do CIMI, considero suficiente
o argumentado no capítulo VII
279
; portanto me dedicarei aqui a descrever minimamente
as outras duas linhas, buscando mostrar também seus desdobramentos ao nível de
políticas públicas (prefeituras e governo de estado), assim como, por outro lado, as
respostas indígenas a essas práticas.
As atividades da Pastoral Indígena centram-se principalmente na atuação de um
sacerdote aposentado: frei Álido. Este frei se dedica à condução de micro-projetos que
envolvem várias áreas indígenas guarani da região. Entre as atividades financiadas
encontramos: casas de “reza”, poços de água, produção de artesanato (principalmente
tecidos), criação de gado bovino em pequena escala etc. Os projetos são sempre de
modesta dimensão, envolvendo em cada área um número limitado de famílias. Os
recursos consistem no fornecimento de materiais e técnicas para serem implementadas
nas áreas. A suposição é que os índios sejam desprovidos de conhecimentos técnicos
279
Sobre as características de atuação do CIMI, ver também Thomaz de Almeida 2001.
450
suficientemente válidos para enfrentar as adversidades da vida. Segundo o frei, a
intenção com estes micro-projetos é criar uma rede de famílias indígenas agrupadas em
associações (de criadores de gado, de produtores de artesanato, por exemplo), visando a,
em suas palavras, “melhorar sensivelmente a vida miserável desses índios.” Para
conduzir tais atividades, o sacerdote se serve de uma infra-estrutura situada na cidade de
Iguatemi e de uma rede de relações internas à Igreja Católica. Até 2001, este sacerdote
mantinha uma comunicação privilegiada com o CIMI, junto ao qual cumpria algumas
ações. Hoje, após mudanças na coordenação regional deste organismo, o frei rompeu
essas relações, algo que diminuiu suas potencialidades de atuação.
Diferentemente das intervenções de outros segmentos da Igreja, os projetos
desenvolvidos por frei Álido baseiam-se de fato em uma certa comunicação com os
líderes das famílias indígenas. Porém, deve-se considerar que, embora ele tenha
convivido décadas com estes índios, a imagem preconcebida de que eles
tradicionalmente devem trabalhar coletivamente continua sendo a mais importante na
orientação de suas atividades. Assim sendo, a idéia de criar associações de mulheres, de
aposentados, de criadores de boi etc. responde mais a suas idéias de desenvolvimento
comunitário do que a um efetivo interesse por parte dos Kaiowa e dos Ñandéva com os
quais trabalha. Para se ter uma idéia concreta da interação entre este frei e os índios,
vale a pena ilustrar algumas dinâmicas de relacionamento em uma área indígena
específica.
No final dos anos de 1990, frei Álido implementou em Jaguapire projetos de
desenvolvimento envolvendo mulheres na produção de tecidos (mantas e redes). O
sacerdote fornecia retalhos arrecadados pela Igreja e ramas de mandioca para a criação
de uma roça comunitária, cuja produção deveria contribuir para sustentar as mulheres
envolvidas no empreendimento durante o período de trabalho. Segundo o raciocínio do
sacerdote
280
, explicitado aos índios, os produtos artesanais seriam vendidos através da
rede da própria igreja, assim como parte da mandioca produzida, a outra parte sendo
destinada ao consumo das trabalhadoras. Parte do dinheiro arrecadado seria reinvestida
para dar continuidade à atividade e eventualmente ampliar o número de mulheres
trabalhando no projeto, enquanto que outra parte seria utilizada para melhorar as
280
Ele próprio, em entrevista, relatou-me detalhes dessa dinâmica por mim indiretamente observada,
através da versão dos índios.
451
condições das roças das famílias às quais as mulheres pertenciam. O frei descreve a sua
primeira tentativa como desastrosa, os índios (familiares das mulheres engajadas no
projeto) se apropriando rapidamente da mandioca produzida. Para contrastar este
fenômeno, sabendo que os Guarani apenas utilizam mandioca doce, decidiu ele
introduzir nas roças comunitárias mandioca brava, cuja safra seria por ele vendida para
uma fecularia, os índios desta vez não podendo mais dela se aproveitar para a
alimentação. Contrariamente ao que esperava, após a primeira safra a reação dos
Kaiowa de Jaguapire não foi a de ficar dependendo dos ritmos do frei, mas a de se
apropriar dessa nova experiência para ampliar seus horizontes de transações, eles
próprios procurando a fecularia para vender o produto. Ademais, nos anos a seguir,
várias roças particulares previam uma porção plantada com mandioca brava, destinada à
comercialização
281
.
Mostra-se importante observar que a educação escolar não é um veículo novo de
disciplinamento para os missionários. Muito pelo contrário, é através deste meio que
geralmente as diversas igrejas cristãs procuram fazer proselitismo, levando o evangelho
e a “civilização” aos povos considerados “pagãos”. Nestes termos, o ato de disciplinar
através da escola é algo profundamente arraigado nas práticas das instituições religiosas.
As instituições que fazem referência à Teologia da Libertação não constituem exceção,
embora neste caso, em lugar de querer que os índios se transformem em “civilizados”,
buscam recuperar ou manter o que consideram como sendo a verdadeira cultura nativa.
Esta “cultura” é vista como sendo mais genuína, menos ligada aos fatos mundanos,
expressando, como intitula uma coletânea publicada por uma editora católica, “o rosto
índio de deus” (Marzal 1989). Resgatar cultura é, portanto, uma necessidade de busca
espiritual destes católicos, mais que uma efetiva prática indígena. É assim que em
decorrência de mudanças constitucionais que favoreceram a implementação de um
ensino diferenciado, bilíngüe e intercultural, intelectuais católicos passaram a
implementar, através de um projeto denominado “Ára Vera” (tempo iluminado), um
magistério específico destinado a formar professores kaiowa e ñandeva no nível de
Segundo Grau completo, com o intuito de que estes estejam capacitados a dar aula de
281
Em outubro de 1999, alguns índios chegaram a me comentar que estavam esperando que o preço da
farinha de mandioca subisse para arrancar as ramas de que dispunham em suas roças, raciocínio este que
demonstra claramente o grau de compreensão dos Kaiowa para com os cálculos da economia formal do
mercado regional.
452
primeira à quarta séries do ensino fundamental, nas terras indígenas. Além disso, tendo-
se chegado à formação de oitenta professores indígenas, os promotores desse
magistério procuraram dar continuidade à experiência do “Ára Vera”, promovendo um
terceiro grau indígena, cuja tramitação iniciou-se na Universidade Estadual de Mato
Grosso do Sul (UEMS), em parceria com a UCDB e a então UFMS (hoje Universidade
Federal da Grande Dourados - UFGD).
Nesses termos, segundo a argumentação do professor e pedagogo kaiowa Tonico
Benites (2003 e 2004), que participou de muitos eventos promovidos pelo projeto “Ára
Vera”, os pressupostos básicos desse magistério seriam equivocados, uma vez que não
levam em consideração os pontos de vista das famílias indígenas, oferecendo uma
imagem estática e uniforme do modo de ser guarani, o ñande reko. Criticando, em sua
monografia, as argumentações da dissertação em Educação de um membro deste
referido projeto (Rossato 2002), Benites afirma que
Em primeiro lugar, pelo que venho argumentando, [...] conclui-se que a
família Ava [kaiowa e ñandéva] é a única instituição social responsável por ensinar
às crianças sua tradição. Portanto é equivocado afirmar que uma instituição externa a
essa tradição, como a escola, possa ocupar esse papel. Os professores indígenas
estão, conseqüentemente, impossibilitados e destituídos de autoridade para tal
propósito. Além disso, só recentemente as comunidades têm permitido aos Ava
escolarizados ensinar a escrita, o que atribui a eles pouco prestígio perante as
famílias extensas que mandam suas crianças para a escola.
Em muitos casos também o agravante de os professores indígenas terem
que se mudar para lecionar em aldeias onde não têm nenhum vínculo político ou de
parentesco com as famílias que nelas moram. Nesses casos, esses professores são
ainda mais inferiorizados e dependentes da vontade política da comunidade local. Se
eles não obedecerem às exigências das famílias ou, pior ainda, se tentarem usurpar
às funções destas, estarão obrigados a sair, o somente da escola, mas também da
comunidade que os tinha acolhido.
Em segundo lugar, o modo de ser dos Ava e a prática da cultura não são
estáticos, não estão parados no tempo e no espaço. Por isso, a autora está equivocada
quando deixa entender que a escola deveria ter o papel de valorizar o teko ymaguare
(modo de ser antigo), visto que ela atribui ao teko pyahu (novo modo de ser) a
característica de não ser mais Ava (Oréva). [...]
Adiantando o que será explicitado nos próximos itens, pode-se dizer que é
impossível e indesejável para os Ava voltar ao modo de ser antigo; eles se adaptam
continuamente às condições do presente e isto faz deles uma realidade
contemporânea e não mera reminiscência do passado. Neste sentido, a argumentação
de Rossato acaba por gerar dúvidas nos indígenas: será que o modo de ser presente
não está sendo dos Ava Guarani e Kaiowa? (pp. 19-20).
453
A questão levantada pelo autor com esta interrogação é relevante, uma vez que
através dela podemos ter uma idéia mais precisa sobre os efeitos da dominação exercida
por meio de teorias científicas. A crítica de Benites, que responde a Rossato
apropriando-se de argumentação antropológica, acaba por trazer à tona todo um aparato
educativo, cientificamente justificado, que pretende, a meu ver, “ensinar os índios a
serem índios”, através de mecanismos escolares que são alheios às famílias kaiowa e
ñandéva – uma vez que estas não consideram a escola como uma instituição própria. Os
promotores e sustentadores do projeto “Ára Vera” não percebem que a organização da
cultura, para que seja indígena, requer instituições e princípios organizativos inscritos
na própria tradição de conhecimento, tendo os índios, assim, a possibilidade de
transmiti-los, adaptá-los e modificá-los, dependendo da situação histórica em que se
encontrem. Interessa-me, antes de mais nada, colocar em evidência o alto nível de
descontextualização da cultura e das práticas tidas por tradicionais pelos agentes
católicos, cultura e práticas estas que se pretende reproduzir como se se estivesse em
um laboratório no interior de aparatos e a partir de lógicas organizativas alheias aos
índios, como a escola, o associativismo (de jovens, mulheres, idosos, etc.), e formas de
representatividade política típicas das democracias ocidentais.
Dediquei aqui consideração ao fenômeno da escola como instituição dado que
grande parte dos projetos tecno-econômicos implementados por organismos indigenistas
(governamentais ou o) é colocada em prática através da intermediação de professores
indígenas. Estas instituições entendem que é através destes (ou, em alguns casos, por
meio de agentes de saúde) que é possível gerenciar melhor os recursos repassados aos
indígenas. Por sua vez, tudo indica que os Guarani escolarizados constroem sua posição
perante os “brancos nem mais nem menos do que através do já referido jogo do
ñembotavy (“fazer-se de bobo”), isto é, procurando não contradizer o interlocutor no
que diz respeito à sua ideologia. Nestes termos, para poder obter a máxima vantagem
desta relação (salários, possibilidade de fazer viagens etc.), reproduzem, como uma
imagem refletida num espelho, os discursos de seus interlocutores, o que, por efeito
feedback, convence posteriormente a maioria dos indigenistas a continuar fomentando
esses projetos baseados no paradigma sob exame. É assim que, por exemplo, na reserva
de Dourados foram implementados projetos de diferentes naturezas como: produção de
cerâmica, tecidos, piscicultura, avicultura, e “casas de reza”, quase sempre através da
intermediação da escola-pólo desta reserva, esta, por sua vez, vinculada a secretarias do
454
município, como a de educação e de agricultura
282
. De fato, a atual administração (do
PT), que governa a cidade quase seis anos, contratou entre seus funcionários
indígenas escolarizados, direta ou indiretamente relacionados com as linhas católicas de
atuação. Uma ONG vinculada ao vice-governador (também do PT) chegou a promover
um projeto que previa a introdução de atividades circenses (malabarismo, palhaçadas
etc.) e a produção de um jornal, entre outras práticas comunicativas e recreativas,
instituindo, para tanto, cursos específicos dirigidos aos “adolescentes” indígenas.
Com exceção feita às “casas de rezas” e a algumas formas de artesanato, cuja
administração passou a ser feita autonomamente pelas famílias interessadas, as outras
atividades se revelaram um fracasso. Os projetos ligados ao desenvolvimento da
piscicultura, tão decantados por seus promotores, argumentando-se que os índios, por
razões religiosas, tradicionalmente apreciam muito o peixe como alimento
283
,
produziram claros conflitos inter-familiares. Algumas famílias acabavam por reclamar o
direito de usufruto pelo fato de o açude construído pela prefeitura estar no interior do
espaço por ela jurisdicionado. Em outras circunstâncias, os cuidados para com as
instalações implementadas (pretendidos pela prefeitura como devendo ser coletivos)
acabavam sendo realizados por poucos indivíduos, estes rejeitando a possibilidade de
distribuir o peixe produzido se não fossem devidamente assalariados; tudo indicando
uma atitude de distanciamento do empreendimento, considerado, então, como sendo
282
A Secretaria Municipal de Agricultura de Dourados justificava um de seus projetos
implementados na reserva homônima e na área de Panambizinho (entre junho de 2001 e junho de 2003)
do seguinte modo: “O uso da casa grande está desestimulado. As referências políticas e religiosas estão
diluídas em razão das novas estruturas de poder instituídas (capitão) e agregadas com a entrada das
igrejas evangelizadoras e neo-pentecostais (novos credos).
A organização de produção e consumo perdeu o senso da coletividade e está desestruturada
em razão do loteamento das áreas e da necessidade de sair para trabalhar fora (changa) ou sob
longos contratos nas usinas de cana de açúcar, em troca de alimentação para si e para a família. O
afastamento muitas vezes prolongado dos homens deixa a família desassistida e é fator de desintegração
do núcleo familiar que constitui a unidade básica da sociedade, em torno do qual se articulam as
atribuições de produção. (ênfase minha).
As elevadas taxas de suicídio, fenômeno eminentemente contemporâneo, sobretudo entre jovens
adultos, representa um profundo impasse cultural e a sua superação indica o caminho do resgate do modo
de ser tradicional Kaiowa-Guarani”.
Como objetivo geral, o projeto pretendia: Resgatar a função de espaço de celebrações e de
aglutinadora da família extensa emprestada à Casa de Reza, metáfora de uma rede de relações calcada na
economia de reciprocidade, revitalizando aspectos da cultura própria, conciliando conhecimentos
novos incorporados e exercitando a forma tradicional de organização produtiva participativa destas
comunidades indígenas" (ênfase minha).
283
Única fonte protéica de origem animal permitida aos xamãs durante os rituais e fases de formação
religiosa.
455
uma “atividade da prefeitura”. No caso também em que esses açudes acabavam por ser,
de fato, utilizados privadamente, a falta, da parte dos indígenas, tanto de técnicas
específicas quanto de interesse, para promover a oxigenação da água, bem como para
manejar os alevinos, levava a uma rápida extinção da fauna aquática. No caso da
avicultura, foram construídos em muitos pátios residenciais, galinheiros de concreto e
fibra de cimento, com o escopo de convencer os índios a criarem as aves em lugar
fechado, evitando assim o espalhar-se de doenças e uma maior produção de peso do
animal, por falta de mobilidade. Os índios passaram a utilizar estas infra-estruturas
como depósitos, dividindo entre os parentes próximos os pintos a eles entregues pelo
projeto, pondo, então, fim à iniciativa. Por seu turno, a tentativa (que nem chegou a se
concretizar) de introduzir atividades comunicativas e recreativas parece-me ainda mais
explicitar uma ideologia que entende os índios como desagregados, não possuindo os
mínimos mecanismos de socialização. Parece ser no mínimo paradoxal o fato de
“brancos” pretenderem ensinar modalidades para estabelecimento de comunicação
interpessoal e formas recreativas a um grupo cuja constituição está baseada em uma
intensa interação vis a vis e em elevados tempos de socialização cotidiana.
14.4 Racionalidades, temporalidades e a dinâmica do jeheka
Como foi possível ver ao longo deste capítulo, os Kaiowa conseguem a maior
parte dos recursos através de atividades que envolvem direta ou indiretamente os
“brancos”. Nestes termos, se antes dependiam quase exclusivamente do ritmo imposto
por fatores climáticos, hoje existem tempos estabelecidos por calendários burocráticos
adotados pelo Estado brasileiro e aqueles planejados por “patrões” e/ou agentes
indigenistas. As aposentadorias e os salários estão ligados a uma ciclicidade mensal; as
atividades nas fazendas e nas usinas de álcool, embora dependendo também de fatores
climáticos, são o resultado de uma minuciosa programação, que permite a formação de
etapas de trabalho constantes e previsíveis, algo que se concretiza em uma periodização
regular da oferta de emprego; a prática indigenista através de programas assistenciais
(como os benefícios sociais) faz afluir às terras indígenas recursos com periodicidade
456
também mensal
284
. No que concerne à relação estabelecida com o comerciante
“patrão”, é possível tecer considerações similares. Este último, em virtude de sua
racionalidade que o leva a um aprovisionamento constante de mercadorias e à
manutenção de uma infra-estrutura básica (veículos, telefone, galpão etc.) –, se constitui
em um ponto de referência constante para a aquisição de bens e serviços,
independentemente da disponibilidade de dinheiro possuído pelo cliente indígena no
momento em que esses recursos e/ou serviços são solicitados.
É da maior relevância se notar que, frente às novas configurações dos contextos
sócio-ecológico-territoriais, os Kaiowa não modificaram substancialmente suas
temporalidades, sendo obrigados a adotar aquelas de seus interlocutores “brancos”.
Muito pelo contrário, estes indígenas passaram a aplicar os mesmos critérios utilizados
nas relações estabelecidas com os diversos járy, das quais dependia o aprovisionamento
dos recursos materiais. Analisando minimamente a construção das temporalidades
nessas circunstâncias, pode-se apreender que os Kaiowa constroem simbolicamente o
entendimento do ritmo temporal, este sendo atribuído principalmente à ão
xamanística a qual, através da manifestação de poderes e do diálogo com as
divindades, contribui para regular o devir do Cosmo. Além disso, as rezas destinadas às
várias etapas do ciclo agrícola, assim como aquelas direcionadas às atividades de caça,
pesca e coleta, permitem aos índios interpretar o aprovisionamento dos recursos como
sendo o produto da eficácia político-religiosa no relacionar-se com esses espíritos-
donos. Deste modo, mudanças climáticas episódicas e até mesmo períodos considerados
como de carestia (tembiu sa’i) são imputados a desequilíbrios nas relações
cosmológicas, desequilíbrios estes cujas causas muitas vezes são atribuídas ao próprio
comportamento dos seres humanos. O clima e as estações do ano, que pela própria
causalidade material possuem um ritmo bastante constante, passam a ser entendidos
como o resultado das atividades de todos os seres do Universo. Como conseqüência
deste entender, cabe aos Kaiowa agir não programando suas atividades por períodos
longos de tempo algo cuja determinação não depende exclusivamente deles mas, ao
contrário, dedicando-se a enfrentar as circunstâncias quase imediatas, com o intuito de
284
No caso das atividades indigenistas planejadas, a situação é diferente, a execução de seus
projetos sendo, na maioria das vezes, algo pontual ou pouco constante, representando uma fonte de
recurso ocasional.
457
prevenir desequilíbrios, especialmente familiares, visto que tal ação reverbera nas mais
amplas condições do Cosmo.
Em poucas palavras, os Kaiowa dão vida a suas atividades tecno-econômicas
adaptando-se a uma causalidade material cuja temporalidade lhes garante um acesso
constante aos recursos. Com efeito, as práticas agrícolas não necessitam ser planejadas,
visto que a experiência reiterada neste campo permite aos índios agir no momento
oportuno e assim é também no caso da caça, da pesca e da coleta. As mudanças
contextuais ocorridas nos espaços geográficos onde vivem estes índios implicaram,
segundo o raciocínio dos Kaiowa, em uma ampliação das relações cosmológicas que
condicionam a causalidade material. Assim sendo, alguns “brancos”, com suas
atividades, passaram a desempenhar papel semelhante ao dos járy, fornecendo, com
suas atividades, recursos materiais e constituindo novas temporalidades com as quais
lidar para obtê-los.
Pelo apresentado, é possível se constatar que hoje, para que possam determinar
um aprovisionamento constante de elementos materiais, os índios precisam construir
suas ações cotidianas a partir de calendários compósitos. Nestes termos, tanto o
calendário derivante dos tempos burocráticos do Estado brasileiro
285
, quanto aquele das
atividades de changa, bem como o dos comerciantes, ou ainda o determinado por
fatores climáticos e sazonais, funcionam para os Kaiowa como pano de fundo a partir
do qual construir uma temporalidade transversal, baseada esta numa previsão e
programação das tarefas individuais que o superam o lapso de três dias (ko’e mbuérõ
pevê) a partir do momento da tomada de decisão. Durante este período, um Kaiowa
consegue manter o controle sobre as variáveis consideradas necessárias para satisfazer
os interesses das pessoas que direta ou indiretamente estão a ele vinculadas e que se
beneficiarão também com seus empreendimentos tecno-econômicos. Cada uma das
pessoas adultas que participam de um determinado circuito de cooperação este
geralmente coincidente com a composição de uma família extensa realizará, portanto
esses planejamentos, tendo que reavaliar as variáveis ao cabo de aproximadamente três
dias. Uma visita que traz uma informação imprevista, a necessidade de manter coeso,
integrar-se ou integrar alguém em um grupo local, a chegada de novos agentes na arena
285
Tempos estes que permitem regularidade de recebimento de recursos em dinheiro (por aposentadoria,
salário e/ou benefícios sociais), assim como de entrega de cestas básicas e outros recursos materiais.
458
política etc. são fatores que podem levar o indígena a ter que tomar pidas decisões
fruto da contingência e seus atos serão avaliados por seus parentes em função disto, e
não por planos ou uma conduta mantida em longos períodos de tempo.
Tomando-se em consideração períodos mais longos, é possível perceber que os
processos tecno-econômicos derivantes desse modo de agir não podem ser reconduzidos
à execução de sistemas coerentes predeterminados; estes processos resultam da
concatenação de micro ações, concatenação esta sujeita a contínuas variações. O efeito
feedback no acúmulo da experiência é portanto fundamental para se compreender a
construção social do comportamento tecno-econômico do indivíduo kaiowa.
A seguir, a título de exemplo, apresento o calendário de atividades de jeheka que
veio a se determinar na T.I. Jaguapire nos últimos tempos, assim como suas
conseqüências tecno-econômicas.
Como vimos no capítulo VIII, Jaguapire situa-se no município de Tacuru (MS).
Foi demarcada em 1992, com uma superfície de 2.349 ha, após mais de uma década de
lutas das famílias originárias desse local. As famílias hoje residentes em Jaguapire
mantêm fortes relações de parentesco tanto com aquelas que vivem na reserva de
Sassoró (localizada a aproximadamente 35 Km de distância da primeira, no mesmo
município, e instituída em 1928 pelo SPI com uma superfície de 1932 ha), quanto com
aquelas que residem nas fazendas das redondezas e, finalmente, com as localizadas nas
pequenas cidades de Tacuru e Iguatemi
286
, situadas a, respectivamente, 20 e 45 Km de
distância da área em pauta. Desenha-se, assim, uma rede social e de captação de
recursos que se estende sobre uma ampla região de aproximadamente 200.000 ha,
região esta interna ao tekoha guasu de referência das famílias kaiowa aqui tomadas em
consideração. Atualmente este território não é mais de uso exclusivo dos Kaiowa, uso
este que se efetua apenas nos espaços exíguos de Jaguapire e Sassoró, onde se concentra
a maior parte da população indígena da região sul desse tekoha guasu, com pouco mais
de 2.800 pessoas segundo dados recentes da FUNASA
287
. Com relação às outras
286
Com base no último censo do IBGE, em 2005 a primeira cidade contemplava uma população de 9.647
hab., já a segunda, um pouco maior, 15.194 hab.
287
Dados relativos a março de 2005, constando 844 hab. em Jaguapire e 1981 hab. em Sassoró.
459
famílias (aí não residentes), não se dispõe de dados precisos, a FUNAI estimando o
número em cerca de 10 % da população indígena dessa região.
Do ponto de vista ecológico, atualmente a superfície em questão não alcança os
10% de cobertura vegetal, os maciços florestais sendo geralmente pequenos e isolados
entre si, a maioria constituindo as matas ciliares dos rios Pytã e Hovy (v. Mapa XII).
Embora possua ainda aproximadamente 20% de matas originárias, Jaguapire apresenta
um panorama constituído essencialmente por colonião e braquiária pastos estes de
difícil erradicação se submetidos às técnicas de corte/queima, tipicamente aplicadas
pelos Kaiowa –, o que dificulta enormemente o desenvolvimento de uma agricultura
tradicional eficiente. Isto, porém, não implica dizer que as atividades desenvolvidas
outrora por estes indígenas voltavam-se exclusivamente à agricultura, caça, pesca e
coleta, tendo eles, desde o fim do culo XIX, estabelecido intensas relações de
trabalho com os brancos” que começavam a explorar os extensos ervais presentes na
região – tendo Jaguapire sido palco privilegiado da extração, e, Sassoró, ponto de
concentração de índios à espera de serem contratados para o trabalho.
A situação atual apresenta um leque de possibilidades para os índios bem mais
amplo com relação ao período dos trabalhos nos ervais e da conseqüente derrubada do
mato, as duas cidades próximas das terras indígenas em pauta constituindo fonte
privilegiada de recursos. Por outro lado, houve também um empobrecimento das
características ecológicas propícias ao desenvolvimento das atividades tecno-
econômicas tidas como primárias pelos Kaiowa. Isto leva a um ajustamento continuado
das atividades de jeheka às condições locais encontradas pelos índios de Jaguapire,
determinando-se um calendário compósito. Vejamos sua configuração.
Entre os dias e 15 de cada mês os índios recebem as aposentadorias e os
salários de professores e agentes de saúde indígenas. Durante este período os
comerciantes das cidades de Tacuru e de Iguatemi organizam viagens cotidianas de
camionetes e/ou ônibus para ir em busca dos aposentados, que geralmente seguem
acompanhados por algum parente.
Rio Iguatemi
Rio Hovy
Rio Pytã
T.I. Sassoro
a - Área de caça e coleta
b - Área de caça, pesca e coleta
c - Área de caça e coleta
Mapa XII
Espaços de jeheka
Cidade de Iguatemi
Cidade de Tacuru
a
a
c
c
c
c
T.I. Jaguapire
c
c
b
b
b
Determina-se assim um fluxo constante de viaturas, que permite aos índios
construir um revezamento das pessoas internas a um determinado circuito de
cooperação familiar, na ida às cidades. A primeira metade de cada mês é a que permite
uma maior entrada de recursos externos em Jaguapire, favorecendo um fluxo constante
de pessoas entre esta área e as cidades das proximidades, assim como a realização de
uma visitação mais intensa aos parentes na reserva de Sassoró ou, reciprocamente, o
recebimento destes últimos em suas casas. Em decorrência do afluxo mais intenso de
recursos externos, esta fase permite ainda a realização de um maior número de bailes.
Por seu turno, embora os rituais religiosos não sejam vinculados a esta periodização,
encontram eles maior possibilidade de serem realizados nesta fase do mês. Nestes
termos, os índios consideram este período como sendo o de maior abundância.
Entre os dias 15 e 20 não existem mais recursos procedentes de fora, dedicando-
se os índios aos trabalhos nas roças, à caça, à pesca, à coleta e à changa.
Entre os dias 20 e 27 é distribuída a cesta básica familiar, promovida pelo
governo do estado de Mato Grosso do Sul, através do programa “Segurança Alimentar”.
A cesta básica provoca uma clara diminuição das atividades anteriormente descritas
mas, diferentemente do que ocorre na primeira quinzena do mês, permite a distribuição
e a troca de bens exclusivamente interno à área indígena – e portanto de menor porte.
Finalmente, entre os dias 27 e do mês seguinte temos um comportamento
similar ao estabelecido entre os dias 15 e 20.
Grande parte dos produtos adquiridos pelos índios fora da área indígena é
constituída por alimentos. Sendo impossível estocá-los por longos períodos, devido à
obrigação de distribuí-los entre parentes, os Kaiowa de Jaguapire enveredam para uma
aquisição das mercadorias diluída no tempo. Ocorre que, diferentemente das atividades
agrícolas, de caça, pesca e coleta, que podem ser realizadas cotidianamente, o
aprovisionamento de alimentos realizado por um indivíduo na cidade deve ser
necessariamente feito em determinados momentos do mês, em decorrência do
calendário descrito. Isto se deve a que, por um lado, os transportes disponibilizados
pelos comerciantes o permitem um fluxo cotidiano de toda a população indígena de
Jaguapire para as cidades, enquanto que, por outro, as aposentadorias e os salários,
sendo recebidos na íntegra, levam os Kaiowa a concentrar a aquisição de bens quando
da saída da área indígena. Nestes termos, não existiria a possibilidade de se realizar uma
compra fracionada no tempo. Existe, porém, uma variável fundamental na
462
administração do dinheiro por parte dos indígenas; estes reservam sempre uma pequena
parte para ser gasta independentemente da ida à cidade, ou pedem pequenos
empréstimos aos comerciantes e, ademais, entradas financeiras devidas às atividades
de changa e/ou venda de algum objeto, produto da colheita e/ou um animal doméstico.
Fazendo este uso do dinheiro, os Kaiowa de Jaguapire conseguem administrar as
compras na primeira quinzena de cada mês, gerando o seguinte mecanismo: um
aposentado vai à cidade comprar alimentos básicos não perecíveis e uma quantidade de
carne na maioria das vezes, o dorso de bovinos e de aves. Tornado à residência,
distribuirá entre os membros de sua família extensa a carne adquirida, sendo esta
consumida em no máximo três dias. Finda esta, será a vez de sua cônjuge, filho ou
genro ir à cidade, trazendo uma nova porção, que será distribuída da mesma forma. Em
havendo momentaneamente falta de dinheiro, um núcleo familiar pode encomendar a
alguém que vai à cidade a aquisição de alimentos, fato que será considerado como
forma de empréstimo (viru jeporu, oje vale), a ser devolvido nos mesmos termos,
quando o devedor, por seu turno, for às compras. Este último método pode ser também
estendido a parentes menos próximos e, em alguns casos, até a não parentes, visto que
isto pode garantir um aprovisionamento mais fracionado e regular dos bens consumidos
cotidianamente.
Pois bem, a partir do exemplo apresentado sobre Jaguapire e à luz do que foi
descrito ao longo deste capítulo, gostaria, à guisa de conclusão deste item, de fazer
algumas breves reflexões de ordem teórica sobre a questão da racionalidade e da
temporalidade nas atividades tecno-econômicas.
Argumentando sobre as diferenças existentes entre as sociedades baseadas no
capitalismo e aquelas tradicionais, P. Bourdieu (1963, 1977) concentra sua atenção na
descrição de como estas últimas considerariam o cálculo racional tanto como alheio à
própria realidade quanto tido como diabólico e portanto indesejável. Segundo este
autor, as sociedades tradicionais seriam norteadas por uma estrutura econômica
inculcada a partir do processo educativo primário, baseada ela em técnicas e
condições materiais de existência que imporiam uma ciclicidade temporal. Por si, esta
condição excluiria a possibilidade de que este tipo de sociedade esteja inscrito na
história. Tal fato dever-se-ia principalmente a que a tradição impõe como única
alternativa a repetição da experiência do presente, através da qual se interpretaria o
463
passado. O futuro, por sua vez, seria, portanto, uma repetição perpétua desse presente,
sendo ele o resultado de uma relação cíclica entre fatores naturais (ciclo agrícola, por
exemplo) e rituais (cerimônias periódicas). Em suma, as sociedades tradicionais se
baseariam na “prevenção” de uma indesejável mudança e não na “previsão” de um
futuro a ser escolhido entre tantos como seria o caso das atividades desenvolvidas nos
empreendimentos capitalistas.
Embora a distinção esquemática e heurística entre “prevenção” e “previsão” seja
altamente relevante para diferenciar duas diferentes ópticas de interpretação das
atividades objetiva e subjetivamente tecno-econômicas, a análise de Bourdieu parece
homogeneizar excessivamente as características das sociedades pré-capitalistas,
produzindo uma imagem rígida e estereotipada do que na realidade são diferentes
configurações sociais, historicamente formadas nas mais diversas regiões do Globo.
A experiência dos Kabile da Argélia, a partir da qual o autor francês constrói seu
modelo, deveria ser, a meu ver, tomada em sua singularidade, evitando-se, através dela,
desenhar o perfil do que seria “a sociedade tradicional”, como sendo um fenômeno
generalizado.
O aqui apresentado sobre os Kaiowa coloca em evidência que o cálculo racional
não só não é refutado por esses índios, mas constitui um elemento importante na
construção de estratégias tecno-econômicas
288
, com o duplo escopo de, por um lado, se
obter uma integração material satisfatória e, por outro, um aumento de prestígio social.
Não podemos, neste caso, porém, associar este tipo de cálculo à óptica da “previsão” de
um futuro programado. Com efeito, assim como para os Kabile, do ponto de vista
normativo, os Kaiowa buscam prevenir indesejáveis mudanças, estas entendidas, na
maioria dos casos, como levando à constituição de comportamentos negativos (teko
vai), comportamentos estes que podem acelerar o processo que leva à destruição do
mundo (Ararapyre) – como visto na terceira parte deste trabalho. Por outro lado, há que
288
Firth justamente observa que muitas vezes os antropólogos pensam que “a obediência aos imperativos
sociais da ‘tradição’ inibe o cálculo racional” (1972: 160 tradução própria), mas que isto em muitos
casos não ocorre. Afirma ele que nas “regiões montanhosas da Nova Guiné ou dos territórios da Austrália
habitados por aborígines, para cada proposta de utilização de recursos existe uma vivaz discussão sobre
modos alternativos para isto, bem como sobre as relativas vantagens econômicas na troca com alguns
bens mais do que com outros, e são examinadas as qualidades dos bens trocados e dos serviços obtidos
(ibidem).
464
se levar em conta também que a curiosidade e a lógica da experimentação da novidade
não é algo novo para os Kaiowa, quando os próprios deuses são descritos como
manifestando este tipo de atitude. O xamã Atanás afirma que os índios são curiosos e
que imitam tudo, e que, assim como os irmãos menores imitam os irmãos mais velhos,
os Kaiowa tendem a imitar os Ñande Rykey; quando isto não ocorre, imitando-se os
“brancos”, é que, segundo ele, ocorrem os problemas contemporâneos e a produção
dos múltiplos modos de ser (teko reta) o que, como vimos, é considerado de modo
negativo. Nestes termos, pode-se afirmar que de um ponto de vista prático, os indígenas
tendem a experimentar novas formas de administração tecno-econômica. Ocorre,
porém, que assumir estas mudanças tem custos sociais e até mesmo tecno-econômicos
notáveis. Conseguir um acúmulo de capital em termos de riquezas materiais implica em
ter que sofrer as pressões dos parentes para que estas riquezas sejam redistribuídas
289
.
Além disso, para se chegar a obter uma sensível mudança na infra-estrutura material a
ponto de gerar um excedente, dever-se-ia investir em certas tarefas tecno-econômicas
que exigem tempos de dedicação muito elevados; tempos estes a serem subtraídos
daqueles de socialização. E, no entanto, estes últimos são os principais meios para a
estipulação de alianças e a obtenção de prestígio e de status social e político. A moral
kaiowa a respeito, portanto, embora se apresente normativamente como preventiva,
decorre e adquire eficácia a partir da constatação empírica dos fracassos daqueles que
tentaram efetivamente adotar condutas evidentemente diferentes daquelas geralmente
seguidas por estes indígenas. Assim, programar e prever não são negativos a priori, nem
incompatíveis em termos conceituais com a lógica da prevenção; o problema consiste
em definir o que se está programando e que nível de controle o ator tem sobre os
resultados históricos derivantes de suas previsões, estes medidos em termos de custos,
289
Numa conversa em sua residência em Jaguapire, Tonico Benites comentava que a iminente chegada da
energia elétrica a esta terra indígena permitiria a alguns comprar geladeiras para estocar alimentos
facilmente perecíveis, ele também almejando fazer este tipo de investimento. Argumentei que, uma vez
que os Kaiowa quase não consomem verduras, seria melhor adquirir um freezer, algo melhor para
armazenar carnes por longos períodos de tempo, o que permitiria adquirir quantidades consideráveis deste
alimento nos mercados, com uma evidente economia, tanto em termos de tempo e custos de deslocamento
para a cidade, quanto na escolha de ofertas vantajosas. Tonico discordou, demonstrando o quanto os
cálculos por mim adotados eram inapropriados para o meio tecno-econômico indígena. Argüiu ele que
quanto mais carne estocasse, mais deveria distribuir, isto ocorrendo praticamente no mesmo período de
tempo em que normalmente ocorre o consumo (aproximadamente 3 ou 4 dias). Nestes termos, a geladeira
tinha como objetivo conservar melhor alimentos durante curtos períodos de tempo, além de garantir água
gelada para o consumo cotidiano do terere (bebida preparada com erva mate), em plena sintonia com os
mecanismos indígenas de armazenamento, utilização e distribuição dos recursos alimentares.
465
benefícios e efetiva realização do projetado. Os Kaiowa entendem, pois, que programar
longos períodos de tempo é tão oneroso quanto ineficaz no tocante a seus propósitos,
preferindo criar vínculos com “brancos”, aos quais é relegada tal tarefa.
Em um outro trabalho (1991), argumentando sobre as estruturas temporais,
Bourdieu estabelece também uma nítida diferença entre relações sociais que
implicariam um intervalo entre uma ação e uma contra-ação, caracterizado ele pela
incerteza, e outras (relações) que não. Assim, falando da natureza do dom, afirma que
(...) se observa en toda sociedad que, para no constituir una ofensa, el contra-
don debe ser diferido y diferente, pues la restitución inmediata de um objeto
exactamente idéntico equivale com toda evidencia a un rechazo: el intercambio de
dones se opone, pues, al toma y daca que, como el modelo teórico de la estructura
del ciclo de reciprocidad, enfrenta en el mismo instante el don y el contra-don; se
opone igualmente al préstamo, cuya restitución explícitamente garantizada por un
acto jurídico queda como ya efectuada en el mismo momento en que se establece un
contrato capaz de asegurar la previsibilidad y calculabilidad de los actos prescritos
(1991:178).
No momento em que procura estabelecer conceitualmente essas diferenças, o
autor francês acaba, a meu ver, por produzir relações duais. Com efeito, ao dom é
esperado unicamente como retorno um contra-dom, enquanto que a um empréstimo se
está esperando a devolução do objeto ou favor emprestado, e assim por diante. Porém,
na prática observada entre os Kaiowa, as concatenações de ações realizadas pelos
indivíduos produzem redes ou séries abertas, sem que ocorra a separação conceituada
por Bordieu. Ao doar algo a uma pessoa, um sujeito pode receber desta um favor,
através do empréstimo de alguma coisa que lhe agrade; pode também favorecer um
terceiro relacionado à primeira, ou ainda trocar algo de interesse destas pessoas, e assim
por diante, integrando temporalmente na interação outros indivíduos. Nestes termos,
como postulado por Elias (1991), gera-se uma relação de interdependência entre os
atores. Esta interdependência ocorre através da concatenação temporal de ações social e
materialmente heterogêneas (entre sujeitos-sujeitos e sujeitos-objetos), fazendo com que
os cálculos racionais (a partir dos quais se fazem previsões) e as incertezas (que
justificam uma atitude preventiva) sejam ambos constitutivos dos processos tecno-
econômicos promovidos ou nos quais estão engajados os indígenas.
Antes de concluir este item, gostaria me deter ainda um pouco sobre os perigos
de abordar as relações sociais e materiais produzindo-se dicotomias paralelas (Ingold
466
1995). O exemplo mais nítido deste perigo é a clássica fórmula proposta por Sahlins
sobre a reciprocidade (1980: 195-208). Este autor vincula de modo dual os três tipos de
reciprocidade por ele classificados, a três conjuntos de espaços sócio-políticos
específicos. Assim, ao nível do doméstico ele atribui a reciprocidade generalizada
(baseada no dom puro, desinteressado); ao nível da linhagem, do vilarejo e tribal,
associa a reciprocidade equilibrada (esta promovendo intercâmbios de interesses mútuos
entre os interessados, um ator sem lesar os interesses do outro); finalmente, ao nível
inter-tribal, Sahlins vincula a reciprocidade negativa (baseada na tentativa de uns
prevalecerem, com seus interesses, sobre os outros, como em certas atividades
comerciais, no furto, no saque, na guerra etc.).
Se aplicarmos semelhante modelo aos Kaiowa, imediatamente se poderá
compreender sua falha em dar conta das relações e obrigações geradas pelas ações
destes índios. Em primeiro lugar, no nível doméstico, ao serem os indivíduos
hierarquicamente organizados em torno da figura principal do tamõi e/ou da jari, as
relações não são absolutamente simétricas, implicando obrigações diferenciadas entre os
membros; em segundo lugar, as relações com outros grupos domésticos pode se dar na
condição de aliados, mas muitas vezes são estabelecidas entre inimigos, não se
podendo, nestes casos, falar em reciprocidade equilibrada; em terceiro e último lugar, as
relações com os “brancos” podem ser conflituosas mas também de aliança, cabendo
intercâmbios mais equilibrados
290
. Assim, antes que através de fórmulas duais
estabelecidas a priori, são as configurações locais e as variações temporais dos circuitos
de alianças o que nos permitem entender o tipo de vínculo que se estabelece entre os
atores.
290
Numa perspectiva teórica mais ampla, Ingold (1986: 232) também é desta opinião. Criticando Sahlins,
o autor afirma que em todos os três níveis indicados, todos os tipos de reciprocidade podem ser
encontrados.
467
Conclusões
468
De início gostaria aqui de manifestar minha esperança de que a seqüência por
mim estabelecida no ordenamento das partes que compõem este trabalho não tenha
causado estranheza ao leitor. Em um primeiro momento, meu intento era o de iniciar
pelo particular, ou seja, tomando a vida doméstica como ponto de partida, para, em um
segundo momento, enveredar para aspectos mais gerais, que contextualizassem as
atividades cotidianas dos Kaiowa. Nestes termos, a última parte que constitui esta tese
havia inicialmente sido planejada como sendo a segunda. Em minha dissertação de
mestrado (Mura 2000) este foi justamente o caminho escolhido, focalizando eu as
atividades materiais relativas às unidades residenciais, abrindo em seguida espaço para
um capítulo final, mais geral, que situa essas atividades em diferentes níveis de escala
níveis de escala estes que foram por mim abordados nas conclusões daquele trabalho.
que se considerar, porém, que na ocasião eu não possuía elementos e reflexões
detalhadas sobre a constituição dos territórios kaiowa, bem como sobre a composição
dos contextos sócio-ecológicos-territoriais, na sua complexidade, conforme foram
expostos aqui, ao longo desta tese.
Especificamente a organização do Cosmo por parte dos Kaiowa, que nega a
distinção entre natureza e sociedade, permitiu olhar as relações que se desenvolvem
entre mundo social e material de modo diferente daquele como estamos acostumados a
vê-las, em nossa tradição cartesiana. Por sua vez, a organização territorial e política
estabelecida em um específico espaço geográfico, no qual ocorrem dinâmicas de
relacionamento interétnico e para onde confluem objetos e idéias procedentes de lugares
diferentes, é algo que considerei fundamental de ser descrito de modo prévio, sob pena
de uma compreensão parcial e distorcida das atividades domésticas dos índios em causa.
Assim, na tese, antes de me dedicar à esfera material com que lidam os índios, optei por
reconstruir contextos e fatores organizativos, sobre os quais gostaria agora de voltar, a
fim de fazer uma síntese conceitual; o intuito é o de dar vida a algumas breves reflexões
conclusivas.
Com relação aos aspectos territorial e político, os elementos levantados ao longo
do trabalho permitem concluir que as condições materiais de acesso aos espaços
geográficos, assim como aos recursos que neles circulam, são fundamentais na
definição histórica das estratégias indígenas de organização doméstica e comunitária. A
territorialidade kaiowa é o resultado de dinâmicas territoriais que não são determinadas
469
tão somente pelos índios, contemplando também, e de modo decisivo, a presença dos
“brancos” na região em pauta. Os limites impostos por legislações, relações de força,
assim como pelo processo de territorialização desencadeado pelo Estado brasileiro,
através de seus organismos indigenistas, foram elementos fundamentais na configuração
de um cenário a partir do qual os Kaiowa foram obrigados a construir seus territórios
atuais, definir mobilidade espacial, determinar alianças, construir e/ou eventualmente
desmantelar hierarquias etc. Evitando privilegiar uma visão normativa e cosmológica na
definição dos territórios, bem como uma pura percepção cognitiva dos espaços
geográficos, busquei dar ênfase mais aos processos de acúmulo e distribuição de
conhecimentos entre sujeitos e famílias diferenciados, todos eles passando por
experiências históricas concretas. Deste modo, a valorização da práxis xamanística foi
colocada em destaque, não como um a priori, mas como parte constitutiva de um
contexto de enfrentamento étnico. A ênfase dada pelos índios a um determinado espaço
geográfico, hoje considerado como bem delimitado e onde se desenvolve o ñande reko
(“nosso modo de ser”), leva à exaltação da categoria territorial de tekoha, com fortes
conotações religiosas. É portanto a partir de dinâmicas territoriais específicas que se
determinam as prioridades e se ativam processos rituais específicos, o que leva à seleção
de determinados xamãs por parte dos grupos domésticos ligados a um determinado
lugar.
Como foi possível ver também, a organização da família extensa, mais que
depender exclusivamente de aspectos formais devidos a lógicas de filiação e/ou de
alianças simétricas por intercâmbios matrimoniais, está vinculada ela ao
desenvolvimento de um grupo ou comunidade política local. O aspecto territorial
(recursos e espaços exclusivos limitados e delimitados) torna-se fundamental na
formação de estruturas políticas e de parentesco, dando vida a configurações
comunitárias e intercomunitárias simétricas e assimétricas. A relação formal com os
representantes das instituições dominantes do Estado brasileiro é também fator relevante
na determinação de estratégias de acomodação e consolidação de grupos domésticos
dominantes, assim como da definição de lutas faccionais no interior das Terras
Indígenas.
Com relação à formação, propagação, reprodução, modificação e variação de um
arcabouço normativo que serve de referência moral e ética para as famílias indígenas,
470
foi possível ver que as práticas indígenas estão centradas em uma concepção do mundo
onde as doenças e as práticas de cura não dizem respeito tão somente aos indivíduos,
mas também e de modo significativo ao equilíbrio (ou desequilíbrio) das comunidades
políticas e grupos familiares, bem como (por conseqüência) sobre o ambiente e as
condições de existência da Terra contemporânea. Os riscos constantes de se alcançar
aceleradamente o inevitável fim do mundo (Ararapyre) é o elemento central de
advertência moral nas mãos de xamãs e pessoas anciãs, personagens estes legitimados a
avaliar os saberes acumulados pelos Kaiowa. Ao mesmo tempo, porém, o arcabouço
moral e ético não age prescritivamente, mas tão somente como fator limitador, deixando
ampla liberdade aos indivíduos para estabelecer relações e dar vida a percursos
experienciais diversificados, muitos dos saberes que estes adquirem e distribuem não
sendo objeto de particular atenção das observações feitas por xamãs, se não a nível
geral. Nestes termos, as produções, incorporações e distribuições de conhecimentos
ideais e materiais podem ser diversificadas. Por um lado aquelas de caráter sagrado ou
que envolvem a manipulação generalizada das forças cósmicas estão vinculadas
inevitavelmente a especialistas como os xamãs, sendo estas figuras as que possuem a
competência e as técnicas mágicas apropriadas e legitimadas para poder operar com
esses elementos do Cosmo. Nestes casos, o segredo e o particularismo na formação e
propagação das práticas xamamanísticas torna a formação do arcabouço normativo
flexível e diversificado, existindo uma canonização bastante tênue e sempre sujeita a
revisão, dependendo das circunstâncias vividas pelos índios. Por outro lado, a maioria
dos Kaiowa (inclusive os próprios xamãs), quando se depara com questões técnicas e
materiais ou com situações de relacionamento interétnico que porte benefícios e
recursos possui ampla liberdade de decisão, o que gera uma multiplicidade de formas de
transações, realizadas por estes indígenas.
Em suma, é possível se dizer que as configurações sociais e materiais, conforme
foram descritas ao longo desta tese, dependem da formação de contextos específicos,
contextos estes construídos pelos atos de homens que ocupam posições de poder e que
possuem entendimento do mundo diversificado. Por sua vez, esses atos não podem ser
empreendidos simplesmente ou, melhor, exclusivamente, como ações sociais, sendo
elas inseridas em concatenações causais, onde os aspectos materiais são fundamentais.
Também não podem eles ser desvinculados de um suporte territorial, onde os sujeitos
desenvolvem suas atividades cotidianas. Nestes termos, como afirma Barth,
471
“a ‘sociedade’ não pode ser abstraída de seu contexto material: todos os atos
sociais estão inseridos em um contexto ecológico. Assim, não faz sentido separar
“sociedade” e “meio-ambiente” e depois mostrar como a primeira afeta o segundo
ou es a ele adaptada. Ainda que o agregado dos comportamentos sociais tenha
efeitos significativos sobre o meio ambiente, e na verdade esteja contido dentro
deste, as decisões sociais tomadas em todos os níveis estão conectadas a essas
variáveis ecológicas e suas formas são significativamente afetadas por elas. Assim, o
social e o ecológico não podem ser tratados como sistemas separados no que diz
respeito à análise das formas de eventos e instituições sociais” (2000c: 171 ênfase
minha).
Foi a partir deste tipo de preocupação teórico-metodológica que cheguei a
cunhar a noção de “contexto sócio-ecológico-territorial”. Em uma primeira
aproximação, esta noção poderia aparecer como sendo a simples justaposição e/ou o
cotejamento entre os aspectos conotados pelos três adjetivos utilizados. Tal intuição
poderia ser justificada se ainda se permanecesse abordando a realidade empírica
focando-a a partir da formação e definição analítica de sistemas e subsistemas, os quais
relacionam fatores considerados homólogos, a partir da distinção dicotômica entre, por
um lado, o mundo “social” e “cultural” e, por outro, aquele “natural”. Ter-se-ia, assim, o
cotejamento entre sistemas social e cultural e aqueles ecológicos, podendo eles ser
relacionados entre si de forma simétrica, ou ordenados de forma hierárquica, através da
linha de oposição natureza/sociedade-cultura, estabelecida nas tradições de
conhecimento dominantes nos países ocidentais.
Ao não diferenciar entre um mundo humano e um outro natural
291
, o pensamento
cosmológico kaiowa exigiu e veio a ajudar-me na formulação de modelos de processos
que evitem tanto quanto possível a ordenação dos dados coletados seguindo-se essa
referida oposição ontológica. Assim, o descrito e analisado na terceira parte deste
trabalho permite apreender que para estes índios o Cosmo é movido por forças, as quais
são utilizadas por personagens que se encontram na posição de sujeitos da ação, ação
esta exercida sobre algo ou alguém que se encontra na posição de “objeto”.
Concomitantemente, as ações são limitadas por constrangimentos de diferentes tipos,
sejam eles sociais, culturais e/ou materiais. O poder dos personagens dependerá do nível
de controle sobre as forças, determinando-se, assim, hierarquias e posições
291
Assim como a maioria dos povos ameríndios.
472
diferenciadas dos sujeitos no Cosmo, o que implica numa distribuição desigual e
diferenciada de recursos materiais e imateriais em um espaço definido.
Estas considerações levam a colocar em destaque outro aspecto importante, que
emerge ao longo desta tese: a política, que se constitui em fator organizativo central no
processo de configuração dos contextos sócio-ecológico-territoriais, assim como das
comunidades, dos grupos domésticos kaiowa e das redes que estes índios tecem com os
“brancos” com quem compartilham os espaços territoriais.
Na introdução à clássica obra “Political Anthropology” (1966), Swartz, Turner e
Tuden identificam três características que permitiriam recortar do universo o que é
político e o que não o é; assim propõem eles que
The adjective “political,” as we have so far defined it, will apply to every
thing that is at once public, goal-oriented, and that involves a differential of power
(in the sense of control) among the individuals of the group in question (: 7).
Estas características parecem bem expressar o comportamento político nos
termos que têm sido por mim entendidos –, com exceção da primeira delas. Com efeito,
no âmbito doméstico claramente podem ser encontradas as outras duas características
indicadas pelos autores, sendo, portanto, a meu ver, inoportuno diferenciar entre esfera
pública e privada neste sentido. Por outro lado, parece-me que a diversidade de pontos
de vista entre os sujeitos envolvidos, juntamente com o diferencial de poder entre eles, é
um fator importante a ser levado em conta. De qualquer forma, devido ao fato de não
ser restritiva, a definição geral fornecida pelos autores me parece excelente. que se
considerar, contudo, que pouco mais adiante no mesmo texto, quando buscam recortar
do universo um específico campo de atuação política, Swartz, Turner e Tuden chegam à
seguinte conclusão:
If we look at the religious ceremony from the point of view of the processes
by which the group goals are determined and implemented (how it was decided that
a ceremony was to be held, how the time and place were determined, how the things
to be used in the ceremony were obtained, etc.) and by wich power is differentially
acquired (which ritual experts are successful in telling the “laity” what to do, how
these experts marshal suport for their power and undermine that of their rivals, etc.),
we are studying politics. If, however, we look at the ritual from the perspective, say,
of the way it relates the group to the supernatural and the way this relationship
affects the relations among the constituent parts of the group, we are studying
473
religion or at least we are studying something other than politics. (ibidem ênfase
minha).
Como é perceptível, a única justificativa substantiva fornecida pelos autores para
distinguir entre o domínio da política e aquele da religião é apelar para a relação com o
sobrenatural. Temos portanto, também aqui, uma clivagem determinada por uma
distinção dicotômica, desta vez entre natureza e sobre-natureza. Como foi possível ver
entre os Kaiowa, as relações cosmológicas estabelecidas através de técnicas de ñembo’e
se apresentam com as mesmas características utilizadas pelos três autores para definir o
comportamento político. Ao classificar as divindades através da nomenclatura de
parentesco, estes índios posicionam-se perante elas como sendo seus netos, filhos e
irmãos mais novos. Assim, o relacionamento com estas se através de processos de
alianças e de reconhecimento enquanto parentes. Neste sentido, as atividades voltadas
para a construção das comunidades políticas entre os homens não difere daquelas
desenvolvidas para com os seres invisíveis. O papel do xamã, por seu turno, é também
central nas tentativas que esta figura empreende para convencer os Ñande Rykey tanto a
não prejudicar seus parentes terrenos quanto a beneficiá-los. Estas tentativas ocorrem
em reuniões celestes protagonizadas por deuses e ñanderu, com debates em que se
expressam diferentes pontos de vista e se colocam em prática estratégias. Paralelamente
às relações verticais, aquela que se processa com os espíritos donos (os járy) também
exige astúcia, picardia, capacidade de persuasão e de enganar. Por sua vez, todas as
relações cosmológicas implicam em um diferencial de poder entre os sujeitos que
interagem. Assim sendo, os dados sobre os Kaiowa me levaram a considerar inoportuno
restringir o comportamento político à mera realidade sensível. Ademais, parecia-me
também inapropriado compartimentar e/ou estabelecer campos separados a priori,
sendo preferível se pensar mais em termos de comportamentos e atitudes que mobilizam
forças e recursos (materiais e imateriais). Deixaria, assim, para a realidade empírica
focada a verificação da configuração local dos elementos, o modo como essas forças e
recursos são distribuídos, e os meios adotados para determinar essa distribuição.
Não cabe dúvida de que na vida cotidiana, quando nos deparamos com a
interação processual entre sujeitos e não apenas naquela de cada um destes com
objetos –, os aspectos políticos (na acepção geral aqui considerada) são os mais
relevantes no processo de concatenação de elementos e na distribuição e controle de
474
forças. Os atos políticos podem, assim, ser considerados como técnicas voltadas a
articular e configurar (ou contribuir para a configuração de) todos estes fatores. Nesses
termos, podemos recuperar proficuamente o afirmado por Platão discutido aqui na
introdução à parte IV a respeito da política como sendo uma técnica de uso
ordenadora de técnicas.
Com relação especificamente ao papel das relações de poder na administração
das forças e recursos materiais e imateriais, parece-me relevante a contribuição analítica
fornecida por Elias. Utilizando como base de argumentação a teoria dos jogos, este
autor afirma “que ‘la force au jeu’ est un concept relationnel. Il désigne les chances qu’a
un joueur de l’emporter sur un autre” (1991: 86). A partir desta afirmação, Elias
envereda para a seguinte definição:
Lorsqu’on parle du pouvoir qu’un joueur exerce sur l’autre, ce n’est pás par
référence à quelque chose d’absolu, mais à la différence qui existe, en sa faveur,
entre sa force au jeu et celle de son adversaire. (idem: 94).
A definição de força e de poder como relacionais se inscreve em uma mais
ampla visão do autor alemão sobre a vida social. Com efeito, também a própria noção
de função social é por ele entendida como um fato relacional, sendo as relações
consideradas como um processo de interpenetração e interdependência entre os
indivíduos, que leva a uma configuração social específica.
A configuração social proposta por Elias como modelo das relações entre os
indivíduos revela-se um excelente instrumento, o qual permite ver que as redes sociais
são construídas no tempo, sendo o resultado de um processo de concatenação de ações
de sujeitos de modo similar às descrições feitas ao longo deste meu trabalho. O autor
alemão, porém, limita-se a analisar as relações sociais separadamente do mundo
material. Isto, em certa medida, se deve à concepção (lamentável) de que o mundo
social e suas regras são relativamente independentes dos outros elementos do Cosmo
(Elias 1991: 124).
Com o presente trabalho minha intenção era justamente mostrar que a forma em
que se a interdependência entre os indivíduos é o resultado da configuração de
contextos, onde as relações sociais são tão somente um aspecto, certamente dos mais
relevantes, mas não o único. Reiterando as advertências de Barth anteriormente citadas,
475
não podemos extrair o social do contexto ecológico onde os homens estão inscritos.
Cabe aqui, porém, se perguntar qual é o nível de potencial organizativo e transformador
que as atividades realizadas pelos homens possuem no contexto em que estes vivem.
Não cabe dúvida de que os seres humanos, com relação aos outros seres pertencentes à
realidade sensível, são aqueles com uma enorme capacidade de produzir e/ou utilizar
instrumentos técnicos capazes de aportar grandes transformações na composição do
quadro material de uma determinada área geográfica. Mas também fica claro que as
proporções e o impacto das atividades humanas sobre o contexto dependem muito do
nível e da forma de articulação que se dão entre essas atividades. Pelo modo como as
descrevi, esta articulação é prevalentemente política, na medida em que é o resultado da
intencionalidade dos sujeitos que agem e colaboram entre si, a partir de pontos de vista
e interesses particulares. Nestes termos, informações, idéias e quadros de valores
contribuem para que estas concatenações causais ocorram, sendo que tais concatenações
não são totalmente livres, as possibilidades de execução dependendo da posição,
reputação e prestígio que os sujeitos das ações possuem, e de como estes reconhecem e
aceitam seus parceiros nas empresas que desenvolvem em suas atividades cotidianas.
Por outro lado, esta articulação dependerá também das restrições devidas ao nível de
disponibilidade de recursos materiais e ideais para que a execução das tarefas seja
realizada.
Entre os Kaiowa, como espero ter ficado claro, a construção do quadro moral ao
qual estes fazem referência como tipo ideal depende de um cotejamento constante entre
o ñande reko (“nosso modo de ser”) e o karai reko (modo de ser do “branco”), éticas
estas, na maioria de seus elementos, consideradas como sendo contrastantes entre si. A
avaliação da maioria das informações, idéias, valores, objetos e recursos materiais que
os Kaiowa podem utilizar, armazenar e/ou descartar ocorre através dessa oposição
ideológica, colocando para todos os indígenas princípios gerais que possam fornecer
explicações culturalmente plausíveis sobre o porquê de determinados fracassos nas
experiências individuais e/ou perigos para o ordenamento cósmico. Nestes temos, a
tradição de conhecimento funciona como um fator limitador, na incorporação de
conhecimentos e execução de habilidades (práticas e não). Por outro lado, que se
considerar que essa tradição não é algo abstrato; ela não é uma estrutura subjacente, a
sua manifestação, conservação, propagação e também transformação, dependendo de
sujeitos históricos bem precisos, principalmente xamãs e pessoas maduras. Estes
476
sujeitos compartilham também com os outros com que configuram grupos domésticos e
comunidades políticas, estilos de vida semelhantes. O papel de itinerários experienciais
individuais ao longo das diferentes etapas da vida dos índios na Terra faz com que a
massa de informações e recursos (materiais e imateriais) por eles acessados, ou
potencialmente à disposição seja muito grande e bastante heterogênea, se cotejada com
aquela usufruída há pouco mais de cinqüenta anos atrás. Nestes termos, o fato de que os
Kaiowa frente a estas potencialidades escolham recortar um número limitado de saberes
e recursos e os hierarquizem de modo peculiar, depende muito do nível de atualização
que os xamãs e sujeitos anciãos podem fazer do quadro normativo por eles enfatizado.
De fato, o cotejamento constante entre os próprios princípios éticos e morais e aqueles
atribuídos aos “brancos” algo que constitui um dos fatores centrais da cosmologia
atualmente produzida por estes índios baseia-se sobre uma progressiva aquisição de
saberes e observação de atitudes e comportamentos atribuídos aos brasileiros e
paraguaios.
Com base no argumentado até aqui, pode-se argüir que se por um lado a
tradição, através de seus promotores, serve como fator limitador e organizador dos
elementos procedentes das experiências individuais, não cabe dúvida que por outro estas
experiências são as que permitem a produção constante de variações conceituais e
normativas, assim como o enriquecimento da bagagem de conhecimentos e recursos
materiais disponíveis para os Kaiowa.
Na tentativa de desenhar as características que possuiria a estrutura da ação
social, Barth mostra como os atos dos indivíduos geram eventos, cuja interpretação por
parte do sujeito pode permitir a realização de ulteriores atos, contribuindo assim para
uma concatenação histórica na acumulação e modificação de conhecimentos que
constituem justamente a experiência gerada. Sigamos o autor que nos oferece mais
detalhes sobre tal dinâmica:
A intenção é o objetivo da pessoa que age, a orientação em relação a um
objetivo a partir da qual surgiu o ato. Não se deve confundi-lo com a questão mais
restrita da racionalidade: a intenção pode surgir tanto da urgente necessidade de
expressar um estado de espírito, quanto em função da busca inteligente e
instrumental de um determinado fim. Em geral, os atos são ao mesmo tempo
instrumentais, nesse sentido mais restrito, e expressivos, ou seja, mostram a
orientação, a condição e a posição do ator. Rastreando as ligações dos atos em
direção às suas raízes, encontramos planos e estratégias, afirmações identitárias,
477
valores e conhecimentos. O produto imediato dessa intenção é um evento, porém um
evento que tem para o ator essas propriedades de ato.
Seguindo na outra direção, o evento decorrente pode ser retransformado em
ato pela interpretação, ou seja, através de um diagnóstico da intenção do ator feito
por aquele que observa o evento, e também um julgamento de sua eficácia e efeito.
Assim, o evento é percebido como algo que traz informações a respeito do outro e
como uma fonte de conseqüências. O outro pode acionar um conjunto considerável
de conhecimentos para conseguir chegar a uma interpretação. Na verdade, uma vez
realizado o ato, o ator também pode adotar essa perspectiva de observador e
(re)interpretar o ato, revendo então sua concepção sobre o que era realmente aquele
ato ou o que realmente aconteceu. E tanto o ator como o outro podem voltar, tempos
depois, a essa mesma questão e construir novos insights a respeito do ato,
escrevendo e reescrevendo a história. O precipitado da interpretação dos atos na
pessoa é a sua experiência e, sinteticamente, em um plano mais distanciado, seus
conhecimentos e valores, que por sua vez podem retroagir sobre planos e objetivos
futuros, bem como sobre futuras interpretações de atos.
Devemos notar que as interpretações e reinterpretações podem ser feitas ao
mesmo tempo, nas interações, conversas e rememorações junto a terceiros. Em tais
ocasiões, pode haver transmissão de conhecimentos e de esquemas culturais, e
também de informações adicionais, inclusive avaliações referidas às reações ao ato e
outras conseqüências do mesmo. Esses processos de reflexão discursiva promovem,
entre os participantes, uma convergência de compreensão, conhecimentos e valores,
levando também a um aprimoramento da orientação do ator ante a realidade.
É evidente que a interpretação fornecida por um observador a determinado
ato pode não coincidir com a intenção do ator, e que isto pode também ocorrer com
as interpretações dadas por dois observadores diferentes. O evento-enquanto-ato
permanece sempre contestável e maleável. Além disso, o evento pretendido e
interpretado como um ato terá normalmente conseqüências objetivas para além das –
ou talvez em contradição com as – intenções e interpretações dos atores. Essas
conseqüências e decorrências, por sua vez, podem ter importantes efeitos sobre o
ambiente e sobre a situação de oportunidades dos atores e dos outros. (173-175).
Este trecho coloca bem em evidência as características processuais da
incorporação e da interpretação dos conhecimentos por parte dos indivíduos.
Estendendo para os objetos e as técnicas estes discernimentos, podemos desenhar os
mecanismos através dos quais se tem a integração da bagagem material e técnica por
parte destes sujeitos. As trajetórias experienciais desenvolvidas nas diferentes etapas da
vida dos indivíduos kaiowa permitem que se determinem eventos a partir de atos
diferenciados, em decorrência do lugar ocupado pelo sujeito com base na idade e no
sexo. Por sua vez, as disputas e os conflitos entre gerações fazem com que
conhecimentos, objetos e técnicas procedentes de experiências heterogêneas sejam
cotejados e avaliados por indivíduos que manifestam pontos de vista diferentes.
Com as formulações de Barth me encaminho para a conclusão deste trabalho.
Considero que os aspectos políticos, de interdependência e de geração de princípios e
478
modelos de interação entre sujeitos (e destes com os objetos materiais) o valiosas
contribuições a mim fornecidas respectivamente por Swartz, Turner, Tuden, Elias e
Barth, para poder completar o paradigma que me permitiu descrever e analisar aqueles
que defini como contextos sócio-ecológico-territoriais. É indubitável que nestes
contextos, tendo como base de articulação um determinado espaço geográfico (o cone
sul de Mato Grosso do Sul, no caso), as articulações dos elementos neles presentes e
suas transformações são efetuadas a partir de saberes, técnicas e objetos materiais
procedentes de fluxos canalizados por sujeitos aferentes a tradições de conhecimento
diversas. Assim, a nível local se configuram relações de força profundamente
assimétricas entre todos os sujeitos que atuam. Nos contextos sócio-ecológico-
territoriais assim configurados, não tive a intenção de focar e analisar os pontos de vista
e as dinâmicas desencadeadas pelos diversos atores presentes, com o objetivo de
entender o contexto enquanto tal; ao contrário, busquei descrever os modelos de
processos moldados por um conjunto limitado de atores kaiowa, cuja inserção nesse
contexto articula de modo específico os elementos com que interagem. A conclusão à
que pude chegar é que a maioria dos esforços em capturar, armazenar e transformar
energias (de toda ordem) por parte destes índios está direcionada à construção constante
do grupo doméstico e à procura do “bom viver”.
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em fotogramas). 3 pp.
499
Glossário
500
à = sombra, alma corporal que cresce no indivíduo adulto e que se expressa através da
sombra.
Aguije = amadurecimento, perfeição.
Amundá = povoado, aldeia, conjunto de casas próximas.
Anguê = (ou anguéry) alma corporal que se desprende do corpo após sua morte.
Añáy = demônios.
Ára Ypy = espaço-tempo das origens.
Ára Ypyrã = espaço-tempo atual.
Arandu = conhecimento intelectual, sabedoria.
Ararapyre = fim dos tempos do “bom viver”.
Aty guasu = grande reunião.
Ava = Homem.
Avatikyry = ritual de batismo do milho e das plantas novas.
Ayvu = alma espiritual.
Cabeçante = índio intermediário entre os empreendedores e os trabalhadores guarani.
Capitão = autoridade reconhecida pelo órgão tutelar (SPI ou FUNAI) como mediador
entre a comunidade indígena e o Estado.
Changa = trabalho temporário.
chiru = varas insígnias.
Encomienda = fazenda do período colonial hispano-americano.
Gato = índio intermediário entre os empreendedores e os trabalhadores guarani.
Guachire = dança profana.
Guára = “procedente de”, no período colonial territórios com base na hidrografia local
de onde procedem determinados grupos guarani.
Guata = andança.
Guyra = pássaro, alma espiritual (sinônimo de ayvu e ñe’e).
501
Hy’akua = de hy’a (cabaça) e kua (furo). Trata-se de um tipo de cabaça apropriada para
produzir recipientes.
Jari = avó
Jari guasu = bisavó ou tataravô.
Járy = espírito dono/guardião.
Jasuka = substância originária, vital e com qualidades criadoras e geradoras.
Jasy = guardião da lua, irmão mais novo de Pa’i Kuara.
Jeheka = “procura de”, atividade de aquisição de bens.
Jeko aku = resguardo nas fases críticas de existência de um indivíduo.
Jekoha = suporte.
Jeroky = dança cerimonial.
Jeroky guasu = grandes danças rituais.
Kandire = Kaiowa que ascendem em vida para os yváy tornando-se imortais.
Kariay = mudança de voz.
Katupyry = saber-fazer prático.
Kokue = roça
Kunumi pepy = (ou mitã pepy) ritual de iniciação masculina.
Kurusu = cruz
Ma’etirõ = espíritos e/ou substâncias maléficos.
Marãna = tempestades, de vento, fogo, água e granizo.
Mba’e = objeto.
Mbojeko = apoio mútuo
Mburuvicha = líder político comunitário.
Mitã mongarai = ritual de incorporação (ou descoberta) da alma espiritual nas crianças.
Mohã = feitiço.
Ndovy’ai = tristeza.
502
Ñande Jari = Nossa Avó, divindade feminina esposa de Ñane Ramõi.
Ñande Reko = “nosso modo de ser”.
Ñande Ru = Nosso Pai, divindade filho de Ñane Ramõi.
Ñande Rykey = divindades entendidas como sendo “[Nossos] irmãos mais velhos”, com
relação aos Ava Kaiowa.
Ñande Sy = Nossa Mãe, divindade feminina esposa de Ñande Ru.
Ñanderu = xamã
Ñandesy = xamã de sexo feminino.
Ñane Ramõi = Nosso Avô, divindade máxima.Ñembotavy = “fazer-se de bobo”
Ñe’ê = palavra, linguagem e alma espiritual (sinônimo de ayvu e guyra)
Ñembo’e = reza, oração com poder mágico.
Ñemondy’a = primeira menstruação.
Ñemondýi = susto.
Ñemyrõ = estado de profundo aborrecimento.
Ñengáry = ñembo’e que permitem viagens xamanísticas e estabelecer uma comunicação
entre o ñanderu e os seres que se encontram em outra dimensão.
Óga (ou oy) = casa, residência.
Ogapysy = de oga - ypy - sy, “casa mãe das origens”, casa de rezas.
Ojehu = “surgimento”.
Omboro’y = esfriamento.
Pa’i Kuara = guardião do sol e irmão mais velho dos gêmeos, principais heróis
civilizadores, filho de Ñande Ru.
Paî-Tavyterã = autodenominação dos Kaiowa significando “habitantes destinados a
viver no centro da terra”.Tamõi = avô.
Paje vai = feitiçaria
Paje vai járy = feiticeiro.
503
Poha = remédio.
Poha vai = feitiço.
Pohanõ = contro-feitiço.
Rajyme = genro
Rasy = doença.
Ratyu = sogro
Rovaja = cunhado
Sarambipa = esparramado.
Tamõi = avô.
Tamõi guasu = visavô ou tataravô .
Tape po’i = rede dos caminhos.
Táva = povoado.
Teko = modo de ser, conduta.
Teko aku = estado quente.
Teko aymã = modo de ser antigo.
Teko joja = cooperação
Teko marangatu = conduta sagrada.
Teko porã = bom modo de ser, pressupostos éticos e morais positivos.
Teko pyahu = novo modo de ser.
Teko repy = vingança.
Teko reta = múltiplos modos de ser.
Teko vai = modo negativo de ser.
Tekoaruvicha = aquele que fomenta o teko, a autoridade religiosa máxima entre os
Kaiowa.
Tekoha = “lugar onde realizamos nosso modo de ser”.
504
Tekoha guasu = espaço territorial amplo que inclui diversos tekoha, constituindo-se em
palco de redes de relações intercomunitárias.
Tekorã = conjunto de normas comunicado periodicamente aos ñanderu pelas
divindades.
Tekove porã = “bom viver”.
Te’yi = família extensa.
Te’yi-óga = grupo local. De te’yi, constituindo a família extensa, e óga, representando a
habitação comum que abrigava a totalidade do grupo familiar.
Tupã = termo genérico para indicar divindades.
Tupichúa = espírito familiar identificado com um “animal”.
Tuvicha = chefe.
Tuvicha-ruvicha = chefe dos chefes.
Ymaguare = origem antiga.
Yváy = patamar do Universo.
Yvy = Terra.
Yvyra marangatu = altar onde são depositados ornamentos e objetos cerimoniais.
Yvyra’ija = auxiliar.
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