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Cristina Isabel Abreu Campolina de Sá
A Palavra de Perón:
análise do discurso e da política trabalhista argentina
1943-1949
Belo Horizonte
Departamento de História
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2007
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Tese aprovada em 07/11/2007 pela Banca Examinadora constituída pelos Professores
Doutores:
______________________________________________________
Heloisa Maria Murgel Starling – UFMG
Orientadora
______________________________________________________
Marcus Joaquim de Carvalho – UFPE
______________________________________________________
Rubem Barbosa Filho – UFJF
______________________________________________________
Carla Maria Junho Anastasia – UFMG
______________________________________________________
João Pinto Furtado – UFMG
2
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Cristina Isabel Abreu Campolina de Sá
A Palavra de Perón:
análise do discurso e da política trabalhista argentina
1943-1949
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de
Pós-graduação em História da Universidade
Federal de Minas Gerais, como parte dos
requisitos para obtenção do título de Doutora em
História, sob a orientação da Profa. Dra. Heloisa
Maria Murgel Starling.
Belo Horizonte
Departamento de História
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2007
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A Palavra de Perón: análise do discurso e da política trabalhista argentina 1943-1949
Cristina Isabel Abreu Campolina de Sá
Banca Examinadora:
Professora Doutora Heloisa Maria Murgel Starling (Orientadora – UFMG)
Professor Doutor Marcus Joaquim de Carvalho (UFPE)
Professor Doutor Rubem Barbosa Filho – UFJF
Professora Doutora Carla Maria Junho Anastasia – UFMG
Professor Doutor João Pinto Furtado – UFMG
Belo Horizonte
Departamento de História
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG
2007
4
“Não importa o que fazem com você, mas o que você faz do que fizeram com você”.
Sartre
Essa tese é dedicada à memória de meu pai,
à minha mãe,
às minhas meninas, Priscila, Rachel, Paula,
e às menininhas Lara e Estela.
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Agradecimentos
Escrever uma tese é uma tarefa fácil se a vida vai bem. Mas se ao lado dessa
obrigação acadêmica temos que lidar com um cotidiano árduo a tese torna-se um peso.
Durante 16 anos lutei com ela, nesse tempo ela não me saiu da cabeça nem um segundo
sequer. Sinto que tenho um pouco de medo do vazio que será causado com a ausência
desse fardo. Alguém disse que nós nos acostumamos com tudo na vida, até com as
coisas ruins. Uma tese não é uma coisa ruim, o problema está em associá-la a uma vida
cheia de percalços. Para muitos esses percalços são parte da própria vida, eu tive mais
dificuldade em enfrentá-los.
No entanto, tudo se torna leve quando estamos cercados de pessoas que até na
ausência física estão presentes. Quantos vezes tenho pensado em meu pai, que se foi
31 anos e eu, de alguma forma, escuto sua voz dizendo: prossiga, não desista. Minha
mãe, hoje com 80 anos, é uma estimuladora incansável do meu trabalho. Muitas vezes
no seu olhar percebia que ela acreditava que isso teria um fim. Que alento ter a mãe
que tenho e que alento ter tido o pai que tive. Minhas meninas, Priscila, Rachel e Paula,
ah, essas já riam quando eu falava em tese, parecia um conto sem fim. São as estrelinhas
da minha vida, gosto de cada uma mais que da outra, não sei nunca qual é uma ou qual é
outra. A Priscila eu devo um agradecimento muito mais que especial, ela esteve ao meu
lado nos momentos derradeiros da organização da tese com uma paciência incomum.
Obrigada, Priscila querida.
Meus irmãos, esses são uma festa, nunca entenderam uma tese que não saía e eu
estava sempre às voltas com ela, quantos encontros familiares perdi, afinal...estava
escrevendo a tese.
William, sempre querido, obrigada pelo estímulo e pelo tempo de grande espera.
Meus amigos que são tantos, Carla Anastasia, Eliana Dutra, amigas históricas e
do coração, Mônica Mata Machado, adoro ela, Evantina Vieira Pereira, professora
querida, Luis Carlos Villalta, amigo novo, meu amor, Eduardo Paiva, adorável
companheiro, Adriana Romeiro, oi Cristina querida, que doce, Adriana Vidotte, minha
6
amiga nova e por seguro para sempre, Kelly e Valteir dupla que anima a alma, Dora H.
da Costa, que fina flor, me acolheu um mês em sua casa no Rio de Janeiro para tentar
finalizar o trabalho e muito mais gente que não está aqui nesse papel mas no coração de
quem o escreve.
Professor Love, a ele o meu fervoroso agradecimento pela paciência e amizade
de tantos anos, mas a ausência dos manuscritos nos afastou. Professor Love foi meu
mestre, com ele aprendi quase tudo que sei e é a ele que devo esse trabalho, meu eterno
reconhecimento.
Para Carla, Mônica e Villalta, mais que um agradecimento formal, reconheço o
papel fundamental que cumpriram nas leituras críticas e nas valiosas opiniões que
deram nesse trabalho.
Agradeço ao meu querido aluno Daniel Ferreira pelas tardes que passou comigo
selecionando documentos e muitas vezes me apontando problemas. Agradeço a Eduardo
Salles pelos ajustes técnicos na elaboração desse trabalho
Finalmente agradeço ao CNPq, órgão que me financiou por 5 anos no curso de
doutoramento na Universidade de Illinois e ao Departamento de História da UFMG que
me acolheu calorosamente para que eu concluísse essa tese no Brasil. O esforço e
empenho de minha colega e amiga Regina Horta, coordenadora da Pós-graduação do
Curso de História. A Heloisa Starling, minha orientadora, cujo desprendimento em
aceitar essa missão jamais será esquecido por mim. Obrigada, Helô.
Obrigada a todos.
7
Sumário
Introdução..................................................................................................................... 11
Capítulo 1: Formação da classe trabalhadora na Argentina.......................................... 15
Imigração estrangeira......................................................................................................16
Migração......................................................................................................................... 21
Organização da classe trabalhadora................................................................................ 23
Conclusão....................................................................................................................... 32
Capítulo 2: Processo político na Argentina nos anos 1930 e 1940................................34
Antecedentes da Revolução de 1930...............................................................................34
A Revolução de 1930......................................................................................................39
A década infame: 1930-1943...........................................................................................40
Revolução de 1930: interpretações..................................................................................46
Os trabalhadores e a Revolução de 1930.........................................................................47
O golpe de 1943...............................................................................................................51
Interpretações do golpe de 1943......................................................................................53
Ascensão de Perón...........................................................................................................54
Perón e o 17 de Outubro de 1945....................................................................................66
Conclusão........................................................................................................................76
Capítulo 3: Estratégias discursivas e ação política de Perón.........................................80
Perón, peronismo, peronistas...........................................................................................80
Primeira matriz temática..................................................................................................80
Segunda matriz temática..................................................................................................88
Terceira matriz temática................................................................................................100
Nacionalismo e amor à pátria........................................................................................103
Conclusão......................................................................................................................110
Capítulo 4: El conductor: a afirmação do poder de Perón...........................................112
A adesão dos trabalhadores a Perón e a reação da esquerda.........................................121
Comunistas e Socialistas no pós-46...............................................................................131
Conclusão......................................................................................................................146
Capítulo 5: A construção discursiva da doutrina política Peronista.............................150
A comunidade organizada.............................................................................................150
Conclusão......................................................................................................................166
Conclusão.....................................................................................................................169
Referências...................................................................................................................177
8
Resumo
Essa tese tratará da política trabalhista de Juan Domingo Perón na Argentina
desde sua atuação na Secretaria de Trabalho e Provisão a partir de 1943 até a
incorporação dos Direitos dos Trabalhadores na Carta Magna do país na Reforma
Constitucional de 1949. Através de uma política trabalhista efetiva junto ao discurso e
prática corporativistas, Perón recebeu o apoio da classe trabalhadora argentina até ser
deposto do poder pela Revolução Libertadora de 1955. Analisar-se-á os discursos de
Perón, as imagens utilizadas por ele para referendar seu poder, a forma como os
sindicatos foram pouco a pouco aderindo à política oficial e à posição assumida pelos
Partidos Comunista e Socialista.
9
Abstract
This dissertation will discuss Juan Domingo Perón’s labor policy in Argentina
since his activities in the Labor and Prevision Secretary, starting in 1943, until the
incorporation of the Worker’s Rights in the country’s Magna Letter in the 1949
Constitutional Reform. Through an effective labor policy associated with a corporative
discourse and practice, Perón received the support of the Argentine working class until
he was overthrown from power by the Liberator Revolution in 1955. This text will
analyze Perón’s speeches, the images used by him to validate his power, how the unions
were adhering, little by little, to the official policy and the position assumed by the
Communist and Socialist Parties.
10
INTRODUÇÃO
Ainda hoje, a questão do trabalhismo renova-se no pensamento latino-americano e
em que pese temas mais recentes, as ciências sociais a têm examinado. Assim, a
preocupação em reconstruir a história do trabalho na América Latina ainda tem seu
lugar e é objeto de debate constante entre acadêmicos. Nos casos do Coronel Juan
Domingo Perón, na Argentina, de Getúlio Dornelles Vargas, no Brasil e do General
Lázaro Cárdenas, no México, o ingrediente propulsor, permanente referência e objeto de
sistemática reflexão, é o caráter mítico desses três presidentes. O mito contém em seu
interior, elementos que nunca se revelam integralmente.
A história da legislação trabalhista na Argentina encontrou seu ponto máximo no
governo de Perón, especialmente com a inclusão dos “direitos do trabalhador” na
Reforma Constitucional de 1949. A dignificação do trabalho, ainda que nos entraves de
um Estado corporativo, foi ao lado de sua capacidade de encantar as massas pela
palavra, o grande mérito ou triunfo de Perón e uma das razões de sua eleição em 1946 e
reeleição em 1952.
O mundo do trabalhador na Argentina, antes de Perón, estava enraizado na prática
e na percepção da sociedade oligárquica. A sobrevivência de uma política liberal e
excludente até 1930, seguida pela Década Infame marcada pelo autoritarismo até 1943,
não indicava mudanças que favorecessem a classe operária. Embora esse quadro possa
ser um demonstrativo de que o modelo aparentemente dinâmico do funcionamento
daquela sociedade não perduraria por muito tempo, dado as tensões sociais, a destruição
do antigo regime, o nascimento do “novo” ou a utopia da revolução estavam apenas
entre aqueles que depositaram na esquerda todas as suas esperanças.
No caso do peronismo, a identidade criada entre Perón e o Messias abriu espaço
para a esperança de uma “nova Argentina” que, no campo da luta política daquele
tempo, teve um papel definidor. Ainda que a mobilização dos trabalhadores feita por
Perón aparentasse ser para analistas da oposição um jogo de sombras e de labirintos, o
mito Perón ou a mitificação de Perón foi um catalisador de energias de excepcional
potência (ver Sorel, 1993).
Com isso, não se faz uma referência positiva ao governo de Perón ou à sua própria
figura. Apenas afirma-se que, usando ou não este instrumento de ordenação mental, a
11
legislação trabalhista argentina foi a materialização de um plano bem elaborado. Posta
nesses termos, as leis sociais foram parte da percepção de Perón de que a mera
repressão física às manifestações de descontentamento dos trabalhadores não seria
suficiente para a preservação da ordem social. O vasto programa de incorporação das
“massas” à política, que ele iniciou em1943, direcionava e controlava os trabalhadores
por meio de leis que deflagraram uma grande operação de controle dos sindicatos. O
núcleo dessa poderosa manobra estava no projeto de construção de uma nova sociedade,
que se voltava para o domínio das motivações internas dos indivíduos e os levava à
adesão aos valores estabelecidos e à aceitação da ordem política corporativa.
Ao invés de jogar sua sorte em imponderáveis promessas que apenas consolassem
o povo, Perón agiu. Ele lutou, ou seja, a luta foi o “estado de espírito superior que
cercou seu pensamento cristão” e fortaleceu o controle sobre as massas.
O percurso histórico que levou à criação da legislação trabalhista e à incorporação
dos Direitos dos Trabalhadores na Constituição de 1949, iniciou-se com o aparecimento
de Perón no cenário político em 1943, escolhido como o marco temporal inicial desta
tese, uma vez que assinala o princípio de uma nova fase na história da Argentina do
século XX, até então muito conturbada politicamente. Contudo, quaisquer que sejam os
recortes, não podemos perder de vista duas estratégias que se alinharam a esse tempo e
que matizaram o discurso de Perón. A primeira foi a filosófica e a segunda foi a cristã.
Com ambas, Perón inaugurou um espaço próprio para a apresentação de suas idéias, que
mais se assemelham a uma atividade do intelecto, de apropriação reflexiva e singular do
líder argentino, do que a simples incorporação de um princípio cristão ou filosófico que
regesse sua maneira de fazer política.
Nesse ponto, ao propor o diálogo com a filosofia, Perón pinçou os temas de seu
interesse e os submeteu à sua própria verdade, a seus próprios desígnios e projetos, para
cujo sucesso foi fundamental a ausência de uma orientação naquela sociedade, que
tivesse seus princípios estruturados em torno da conquista da liberdade, característica da
idade moderna. Além disso, ao franquear a entrada para a filosofia em seus discursos,
Perón se referiu às “verdades sólidas” para enfrentar as mudanças no país.
1
A
perspectiva providencialista do seu poder acabaria por se constituir numa inesgotável
1
Ver: La Comunidad Organizada, p. 15.
12
fonte de legitimação de seu papel de condutor da libertação argentina. Sob essa a dupla
orientação, filosófica e cristã, Perón construiu, insistimos, sua imagem mítica.
Mas, a vitória de Perón junto aos trabalhadores não foi alcançada de um golpe,
como também não foi uma ficção. Pelo contrário, foi um caminho traçado de maneira
lenta e metódica segundo um plano estratégico preconcebido. Pouco a pouco, Perón
conseguiu implantar uma ordem social diferente da conhecida na Argentina. A
solidificação de seu poder também se deu graças à apresentação de um programa de
aplicação da justiça social, da busca da cidadania plena, e da luta contra a
“malignidade” dos governos pretéritos. Se por um lado, Perón se apropriou da filosofia
ou do providencialismo para angariar a confiança dos trabalhadores, esses, por sua vez,
se apropriaram, no interior da ordem imposta, dos benefícios da legislação. O que se
pretende demonstrar nesse trabalho é que no esquema elaborado pelo futuro Presidente
da Argentina houve dois procedimentos: o primeiro foi a sedução retórica e carismática;
o segundo foi a implantação da Legislação Trabalhista. Os trabalhadores, com
demandas muito frustradas, se harmonizaram com o líder beneficiando-se com as
novas leis trabalhistas. De um lado, Perón com o “poder”, de outro, o trabalhador com
as conquistas permitidas pela Legislação.
Para demonstrar esta tese, dividimos nosso trabalho em 5 capítulos. No primeiro
capítulo, apresenta-se o contexto político-social argentino em que se deu a formação da
classe operária. Dadas às características daquela sociedade, de dependência econômica
externa, aliada a um processo político excludente, com pouco espaço para o exercício da
cidadania, o campo era propício para a emergência de um líder “messiânico”. Perón
soube usar do contexto histórico para construir sua imagem e tornar-se o salvador da
pátria com o “referendum divino”: mais do que uma escolha pessoal, ele, Perón,
segundo seu próprio discurso, teria recebido o dom de Deus para ser o condutor do povo
argentino. No segundo capítulo, trataremos do processo político argentino nos anos
1930 e 1940 para compreender a conjuntura política que possibilitou,
independentemente de todas as forças tradicionais atuarem no sentido contrário, a
formação da Secretaria do Trabalho e a afirmação de Perón, o secretário, como o
“protetor dos trabalhadores”. Iniciou-se a organização dos sindicatos, agora sob a tutela
do Estado e a reunião sistematizada da legislação trabalhista que seria integrada à
Constituição de 1949. O terceiro capítulo mostra a eficácia da ação de Perón na
13
Secretaria de Trabalho, sua estratégia discursiva que possibilitaria a sua eleição à
presidência da Argentina em 1946. O quarto capítulo tratará de Perón, na presidência
da República. Ainda nesse capítulo mostraremos como Perón seria apoiado pelos
trabalhadores, inclusive pelos comunistas, impossibilitados de oferecer qualquer outra
alternativa que fosse vista como melhor pelos trabalhadores. Frustradas as intermináveis
e turbulentas promessas e tentativas de ultrapassar os limites do capitalismo
“selvagem”, empreendidas pelo Partido Comunista e pelo Partido Socialista, a posição
da esquerda se dividiria. Inatingíveis em seus princípios ideológicos, os socialistas
resistiriam bravamente ao novo regime, enquanto os comunistas, depois de 1946 fariam
uma autocrítica e dariam um apoio não irrestrito às políticas de Perón. De forma mais
concreta, o PC “velaria” pelos interesses dos trabalhadores, ao lado de Perón, sem por
isso aliar-se ao presidente. Com base na distinção entre apoiar e não se opor
sistematicamente ao novo governo, pode-se atribuir aos comunistas uma atuação de
vigília - e não de cooperação como foram acusados pelos socialistas. Em outros termos
e preservando a distinção entre os diferentes caminhos trilhados pela esquerda, isso
demonstra como a história da relação Perón/trabalhador possuiu um caráter particular. É
possível associá-lo a um quadro de valores de luta pelos direitos sociais, mas que, na
prática, temia a adoção de comportamentos tipificados em modelos da esquerda. O
quinto capítulo tratará do discurso peronista, sobre o embasamento filosófico da ordem
política estabelecida na Argentina a partir de 1946: a comunidade organizada.
Em síntese, nosso objetivo é demonstrar como, através dos benefícios sociais
implementados no país e de um discurso político persuasivo levado ao máximo, Perón
conseguiu o apoio da classe trabalhadora que o manteve no poder por dois mandatos
consecutivos até ser deposto pelos militares na Revolução Libertadora de 1955.
Enquanto a política social teve um efeito inovador real na sociedade argentina, o
discurso peronista construiu a idéia de distribuição da justiça e do bem comum. A
hipótese geral desta tese é que, na ausência de outra alternativa que possibilitasse
ganhos na área social, a classe trabalhadora, vivendo em condições precárias, apoiou
Perón, em troca da efetivação da política trabalhista. Perón, ademais, procurou construir
uma imagem de líder, tendo sido tão bem sucedido nessa empreitada que se tornou
objeto de verdadeira adoração por parte dos trabalhadores.
14
Capítulo 1
FORMAÇÃO DA CLASSE TRABALHADORA NA ARGENTINA
O processo histórico de formação da classe trabalhadora como ator político na
Argentina é fator importante para a análise da história econômica, política e cultural do
país. O peronismo, em seu momento de gestação, foi um movimento com bases
populares. Portanto, examinar a formação da classe trabalhadora é imprescindível neste
trabalho.
A partir da segunda metade do século XIX, começou o processo de diversificação
na estrutura produtiva do país provocado principalmente pela grande exportação de lã.
À época, com o crescimento das cidades-porto, aumentou vertiginosamente a demanda
de mão-de-obra, sobretudo a qualificada. Assistiram-se, então, a dois movimentos de
população diferenciados: as imigrações européias e as migrações internas.
2
O fluxo
maciço de estrangeiros para o país, principalmente a partir de 1880, foi responsável por
mudanças sociais, culturais e econômicas no período conhecido como the alluvial
era”.
3
As migrações internas se deram, sobretudo, depois da Grande Depressão, com o
crescimento do setor industrial no país.
2
Para migrantes usa-se o conceito de Alfredo Lattes (1972): “São migrantes as pessoas que frente ao
censo residem em um lugar distinto de seu nascimento” (para nativos-distintas províncias) (p. 9).
3
Desde a Independência em 1810, o novo regime esteve aberto à entrada de estrangeiros no país com o
objetivo de eliminar o isolamento imposto pelos colonizadores. Inspirada pelo pensamento ilustrado do
século XVIII, a classe alta urbana criolla, principalmente de Buenos Aires, se dava conta de que a
implantação de uma Estado nacional moderno seria viável com a transformação da estrutura social e a
mudança na composição humana. Seria necessário europeizar a população argentina para que se
produzisse o que Sarmiento chamou de “regeneração das raças”. Essa política foi estimulada pelo
Presidente Bernardino Rivadavia, totalmente inibida por Rosas e retomada a partir da Constituição de
1853. Ver sobre o tema Germani (1970, p. 289-331).
15
Imigração estrangeira
Influenciada por Alberdi (1981),
4
a Constituição do país elaborada em 1853,
5
continha, no artigo 25, a disposição do governo federal de estimular a imigração de
europeus, com o propósito de povoar e promover o progresso:
o governo federal fomentará a imigração européia e não poderá
restringir, limitar nem gravar com imposto algum a entrada no
território argentino dos estrangeiros que tenham como objetivo lavrar
a terra, melhorar as indústrias, introduzir e ensinar as ciências e artes
(SAMPAY, 1973, p. 361; tradução da autora).
Em outubro de 1876, o presidente da república Nicolás Avellaneda promulgou a
lei de imigração conhecida como Ley Avellaneda”, inspirado na Homestead Act
adotado nos EUA em 1862.
6
Foi criado o Departamento de Imigração, dependente do
Ministério de Agricultura, que regulamentou a entrada dos imigrantes e estabeleceu
uma série de medidas para estimular sua fixação, entre elas, a promessa do acesso às
terras, vistas como incentivo para a vinda de camponeses europeus. Até 1890, foram
criadas colônias agrícolas, principalmente nas províncias de Santa Fé, Entre-Rios e
Córdoba. No entanto, no final do século XIX o Estado encerrou o “ciclo de distribuição
de terras”, dando preferência à prática do aluguel de terras a rendeiros. Como afirmou
4
Juan Bautista Alberdi, considerado o pai da primeira Constituição da Confederação Argentina,
elaborada em 1853, foi um convicto defensor da imigração. Sendo um dos mais influentes precursores do
positivismo no país, seu livro Bases serviu como guia para a Constituição de 1853. Segundo Alberdi
(1981) “a Europa nos trará seu espírito novo, seus hábitos de indústria, suas práticas de civilização, nas
imigrações que nos envie. (...) Queremos plantar e aclimatar na América a liberdade inglesa, a cultura
francesa, o trabalho do homem da Europa e dos EUA! Tragamos pedaços vivos delas nos costumes de
seus habitantes e radiquemo-los aqui” (p. 89). Alberdi defendeu a imigração demonstrando como essa
seria a fórmula perfeita para povoar e desenvolver o país. Considerava que sem uma grande população
não haveria desenvolvimento da cultura nem progresso. Aconselhava o governo a provocar o fluxo
imigratório facilitando, “sem medida, nem regra,” as tendências úteis para o país. Criticava a redução da
América Latina ao catolicismo com exclusão de outros cultos, apontando para a fatalidade de um país de
católicos ser despovoado. Nessa medida, a liberdade de cultos seria a primeira ordem para possibilitar
uma autêntica imigração. A xima de Alberdi que se notabilizou na história foi: “Governar é povoar”
(Tradução da autora).
5
A Constituição de 1853 foi a conseqüência do compromisso de unir o país, então dividido entre a
minoria liberal portenha (argentinos residentes em Buenos Aires), responsáveis pelas Constituições de
1819 e 1826, e os grupos federais mais democráticos, dos quais Juan Manuel de Rosas, foi seu
representante mais poderoso.
6
O Homestead Act de 1862 estabelecia que qualquer estrangeiro que declarasse sua
intenção de tornar-se um cidadão poderia registrar a posse de uma seção de um quarto
de território público (160 acres) e, após provar que estava morando no país mais de
cinco anos, receber o título de proprietário com o pagamento de uma pequena quantia.
(Tradução da autora).
16
Bourdé (1987, p. 16), “para os imigrantes a oferta de terras não era mais que uma
miragem”.
De acordo com o primeiro censo argentino realizado em 1869, a população era de
1.737.076 habitantes. Segundo Lattes (1972, p. 9), avaliações posteriores revelaram
várias omissões desse censo sendo a população do país incluindo os indígenas, estimada
em 1.900.000 habitantes, naquele ano. No segundo censo nacional, realizado em 1895, a
população passou a 3.954.911 habitantes; em 1914 elevou-se a 7.885.237, alcançando
em 1947, 15.893.827 habitantes.
7
Quanto à distribuição da população argentina entre as áreas urbanas e rurais, tem
se que, em 1869, mais da metade da população estava nas zonas rurais. Em 1895 a
desproporção entre as duas áreas foi estreitada e, já 1914, a maioria da população estava
nos grandes centros urbanos. Em 1947, 62,5% da população morava nas cidades. Para
essa característica contribuíram o êxodo rural e imigração de estrangeiros, desde o fim
do século XIX.
8
A grande maioria dos imigrantes que chegou à Argentina estabeleceu-se nas
grandes cidades. O censo de 1869 mostrou que 87% dos estrangeiros estavam radicados
em Buenos Aires, Santa e Entre Rios. Havia imigrantes de quase todas as nações da
Europa, África e Ásia, mas foram os três países mediterrâneos Itália, Espanha e
França e os limítrofes da Argentina Chile, Brasil, Paraguai e Bolívia que
contribuíram com a maior parte deles, cerca de 85% do total.
9
7
Para efeito de análise foram utilizados apenas os dados oficiais.
8
“Aportaciones Positivas de los Migrantes”, Revista de la Dirección Nacional de Migrante (Republica
Argentina, Ministerio del Interior, Ano I, n. I, enero-marzo, 1959, Unesco), p. 171.
9
Segundo Bourdé (1987), nos três quartos de século que a Argentina assistiu à entrada
de cerca de 8.000.000 (oito milhões) de imigrantes, pelo menos a metade desses
indivíduos fez o caminho de volta atestando que o Rio da Prata não era o ‘País de
Cocanha’, descrito pela atraente propaganda oficial. Bourdé (1987) mostra que no
período entre 1857 e 1924, em tempos e ritmos diferentes, a Argentina recebeu:
2.604.000 italianos; 1.780.000 espanhóis; 226.000 franceses; 100.000 alemães; 64.000
ingleses; 92.000 austro-húngaros; 169.000 russos e 151.000 sírio-libaneses. Os italianos
foram os primeiros a entrar no país seguidos pelos espanhóis e posteriormente os
franceses. Os outros grupos mencionados não são considerados trabalhadores não-
qualificados como os três primeiros; ocupavam altos cargos administrativos e
burocráticos. O autor verifica que os grupos estrangeiros se diferenciaram por seus
comportamentos demográficos. Cada comunidade se isolava como em um ghetto
voluntário”, preservando sua língua, seu modo de vida, tradições e resistiram à
integração com a sociedade local pelo menos no espaço de duas gerações. Foram
criados inúmeros bancos estrangeiros que drenavam a poupança transmitindo os fundos
17
Antes do censo de 1869, à exceção de alguns dados esparsos, não informações
sobre as migrações internas na Argentina. À época do censo de 1869, a proporção de
migrantes internos sobre o total da população era de 8,3%, destacando-se Buenos Aires
como unidade espacial separada, essa proporção elevava-se a 14,4%. Entre esses
migrantes predominavam os homens; seu nível de alfabetização era mais baixo que o
dos estrangeiros. A distribuição espacial dessa população migrante se concentrou,
também, como os estrangeiros, nas províncias de Buenos Aires, Santa Fé e Entre Rios.
Outro aspecto importante é que tanto os migrantes como os imigrantes não consti-
tuíam grupos homogêneos entre si. Pelo contrário, eram altamente diferenciados
formando subgrupos de acordo com sua região de origem (LATTES, 1972, p. 15-27).
10
De acordo com Gino Germani (1970, p. 303), até o final do século XIX, a
composição social do país estava formada por duas classes, não existindo, entre elas,
uma classe média numérica e economicamente forte. A estrutura político-econômica
vigente dificultou a conversão do imigrante em dono de terra. O Estado foi ineficiente
em facilitar a aquisição de maquinário agrícola, que estimularia a fixação dos imigrantes
nas áreas rurais.
11
Por outro lado, a população imigrante tinha entrado no país com a
aos países de origem. Cada grupo dispunha de uma sociedade beneficente que favorecia
a entrada de seus compatriotas através da construção de hospitais, associações
filantrópicas, jornais, associações esportivas, culturais, filosóficas, religiosas e políticas.
Segundo Bourdé (1987), “todas essas associações se esforçavam para reviver o clima de
seu país natal na terra estrangeira” (p. 15-27; tradução da autora).
10
A não-homogeneidade entre os imigrantes foi ressaltada por Bourdé (1987) em vários
aspectos: nível de instrução, nível de qualificação etc. “Na busca por trabalhadores mais
qualificados as autoridades argentinas abriram agencias para recrutá-los na Alemanha,
Dinamarca, Suécia, Escócia etc. Na primeira onda imigratória entre 1860-1895, os
italianos do Norte-Piemonte, Lombardia, Toscana, os espanhóis do Norte-Basco e
catalães, os franceses do sudoeste, os austríacos e os alemães do Sul, que chegaram,
vinham com pouco dinheiro, apresentavam baixo nível de especialização (agrícola,
artesanal) instrução primária e um grande desejo de ascender na escala social. Na
segunda onda imigratória em 1895 e 1930, alemães, ingleses e franceses que entraram
no país eram mais qualificados e serviram, sobretudo, às empresas estrangeiras
instaladas na Argentina. No entanto, ao longo do período entre 1860-1930, sobretudo na
Belle Époque e depois da Primeira Grande Guerra Mundial, os operários agrícolas da
Andaluzia e Sicília, os camponeses miseráveis da Galícia e Extremadura, os
desempregados de Nápoles e Palermo, os vendedores ambulantes de Beyrouth, enfim,
uma grande soma de homens com instrução e qualificação nula mas dispostos a não
morrer de fome, atravessaram o Atlântico, formando uma grande massa proletária”
(BOURDÉ, 1987, p. 24; tradução da autora).
11
Alberdi advertiu em sua obra sobre os perigos de um plano de imigração falacioso. Ao estrangeiro
deveriam ser assegurado os direitos de: propriedade, liberdade civil, segurança, aquisição e livre trânsito.
18
intenção de mudar de vida e abandonar a ocupação, predominantemente rural, que tinha
em seu país de origem. A combinação desses dois fatores foi decisiva para promover
um distanciamento dos imigrantes do campo e sua concentração nas cidades,
principalmente em Buenos Aires, com ocupação gradativamente maior nos setores
secundários e terciários da economia.
O segundo censo argentino realizado no ano de 1895 detectou grandes
transformações nos 26 anos intercensais. A imigração foi maciça, a agricultura ampliada
e o setor pecuário transformara-se significativamente. Numa estimativa aproximada,
cerca de 400.000 trabalhadores ocupavam-se da produção de matérias-primas
(agricultura e pecuária) sendo 250.000 argentinos e 150.000 estrangeiros. Os primeiros
dedicaram-se principalmente à pecuária, enquanto os segundos alocaram-se nas regiões
dedicadas à agricultura.
A grande maioria dos imigrantes que chegou na segunda metade do século XIX
na Argentina, havia exercido em seu país de origem atividades ligadas à agricultura. A
partir 1890 foi diminuindo e, no início do século XX, a maior parte deles, ao registrar-
se, declarou ocupação não-agrícola em seu país de origem.
O setor secundário foi constituído por indústrias manufatureiras e de artesanato
em sua maior parte ligadas à pecuária. O setor terciário caracterizou-se por intenso
comércio e atividades no setor de serviços. Nos anos subseqüentes a 1914, a
burocratização da administração pública concorreu para uma grande afluência de
trabalhadores nesse último setor.
Entre 1914 e 1946, a entrada de imigrantes na Argentina diminuiu bastante com a
mudança de orientação da política imigratória expressa nos decretos restritivos dos anos
1923, 1932 e 1938.
12
Somou-se a isso a condição externa pouco propícia à imigração
com a Primeira Guerra Mundial e a crise econômica de 1929. À exceção dos anos 1921
e 1930 os saldos imigratórios diminuíram significativamente, aumentando a partir de
1947 pela nova demanda de mão-de-obra interna e pelo contingente populacional
europeu que se refugiou na América no pós-guerra.
Depois de 1880 os estrangeiros que ficaram no país exerceram, em geral,
atividades não-agrícolas. Como foi mencionado um número considerável de
12
Não se teve acesso aos números e dispositivos desses Decretos. Sabe-se apenas que eram de teor
restritivo à entrada dos imigrantes.
19
imigrantes voltou a seu país de origem dado as dificuldades de tornar-se proprietário de
terras na Argentina. O sistema de arrendamento foi um forte inibidor da aquisição de
terras, que chegaram a preços proibitivos a partir de 1870. O Estado não teve a
preocupação em outorgar ao imigrante a propriedade da terra que proporcionasse um
povoamento real. Convertido em arrendatário ou peão assalariado, o imigrante
insatisfeito deslocava-se das zonas rurais para os centros urbanos em busca de
oportunidade de melhores trabalhos. Por conseguinte não se formou uma classe média
rural que fomentasse a ampliação do mercado de consumo. Houve sim, um processo de
proletarização que gerou uma urbanização sem um desenvolvimento industrial que
absorvesse a força de trabalho. A estrutura de propriedade da terra, elemento mais
importante na estratificação social, fonte geradora de poder político e econômico, não
foi modificada. Assim, apesar da fluidez da sociedade a estrutura de poder manteve-se
inalterada em seus altos estratos (BEYHANT, et al. apud DI TELLA, 1965).
13
Embora não houvesse impedimentos legais para que o imigrante tivesse acesso à
propriedade da terra, existia uma imposição econômica que tornava inviável tal
aquisição. Das duas uma: ou o imigrante possuía capital suficiente para adquirir a terra,
ou tinha relações de estreita amizade com elementos poderosos que lhe outorgasse o
favor político. A terra, nessa perspectiva, não estava ao alcance do imigrante. A cidade
era a alternativa para aqueles que ainda vislumbravam um futuro melhor no país, que
incentivou a imigração, mas não mostrou competência para lidar com o estrangeiro.
As províncias que absorveram a maior quantidade de estrangeiros foram: Buenos
Aires, 305 estrangeiros para cada 1.000 habitantes; Santa Fé, 156 para cada 1.000
habitantes; Entre-Rios, 136 para cada 1.000 habitantes; Corrientes, 68 para cada 1.000
habitantes. A concentração da população, principalmente, na Capital Federal e seus
arredores foi uma característica demográfica do país, evidenciada no censo de 1914.
Este também revelou que 49% do total da população da Grande Buenos Aires era
estrangeira.
13
A colonização na Argentina não deu os resultados esperados por seus inspiradores na promoção da
vinda de imigrantes europeus para povoar e cultivar a terra. O Estado concorria com o elemento essencial,
a terra, mas com a substituição do governo da Confederação pelo de Buenos Aires, novamente
prevaleceram os interesses dos pecuaristas. A colonização deixou de ser uma empresa estatal para
converter-se em uma gestão particular, na qual os interesses comerciais primavam sobre os objetivos
nacionais. O acesso à propriedade da terra foi cada vez mais difícil para o colono, pela crescente
valorização, obrigando-o a converter-se em arrendatário, meeiro ou ‘peón’ de campo.
20
Entre 1914 e 1935 houve uma redução no processo de urbanização pelo declínio
da imigração estrangeira; mas, a partir de 1936 as cidades receberam levas de migrantes
internos, provenientes de centros urbanos menores e das zonas rurais (BEYHANT, et al.
apud DI TELLA, 1965).
Migração
Redistribuindo a população sobre o território, as migrações transformam as
condições demográficas e socioeconômicas das áreas envolvidas nesse processo. Os
movimentos populacionais podem gerar condições favoráveis e/ou não-favoráveis nas
sociedades receptoras e nas abandonadas. No primeiro caso, havendo desenvolvimento
econômico e social, aumentam as possibilidades de uso mais eficiente dos recursos
humanos disponíveis; mas podem acentuar desequilíbrios regionais contribuindo
concomitantemente para o congestionamento (hiper-população) das grandes cidades
e/ou despovoamento das áreas rurais. Assim sendo, as migrações podem gerar situações
que otimizam e aceleram as transformações econômico-sociais, mas também podem
preservar o sistema existente ou até piorá-lo (BOGUE apud LATTES, 1973).
Germani (1965) sugere três níveis de análise para o fenômeno migratório: o
objetivo o normativo e o psicossocial.
No nível objetivo inclui duas categorias principais: os fatores expulsivos do lugar
de origem e os fatores atrativos do lugar de destino.
14
No nível normativo as
expectativas e pautas de comportamentos institucionalizados proporcionam o marco
dentro do qual as pessoas percebem e avaliam as condições objetivas.
15
A pauta
normativa é um item importante porque pode facilitar a migração de certas pessoas e
dificultar a de outras. Ou seja, condições econômicas favoráveis são avaliadas
subjetivamente. Nesse sentido no terceiro nível, o psicossocial, deve se ter em conta as
atitudes e expectativas dos indivíduos concretos. Em uma sociedade perfeitamente
14
Entre os fatores expulsivos/atrativos podemos enumerar: a) condições econômicas favoráveis ou
desfavoráveis no campo (estado dos recursos naturais, sua deterioração ou melhoria, taxa de crescimento
demográfico, relação população/terra, sistema de propriedade grau de concentração da propriedade da
terra, técnicas ineficientes ou atrasadas e baixa produtividade da agricultura ou ao contrário,
modernização e redução da demanda de mão de obra rural); b) inexistência de oportunidades alternativas
no ambiente rural; c) condições econômicas favoráveis ou desfavoráveis nas cidades (oportunidades de
emprego, nível de salários); d) outros diferenciais rurais-urbanos não-econômicos, condições
educacionais, sanitárias, serviços recreativos, condições políticas e segurança pessoal.
15
Normas ideais: referem-se ao comportamento prescrito pela sociedade. Normas reais: referem-se ao
comportamento empírico dos indivíduos.
21
integrada, sem desvios da pauta ‘ideal’, o marco normativo estaria refletido nas atitudes
e expectativas internalizadas dos indivíduos.
Segundo o autor, o essencial é que em qualquer caso, direta ou indiretamente, o
aspecto psicológico é muito forte e interfere nas atitudes individuais condicionando a
decisão de emigrar, o caráter da migração e o comportamento do migrante na nova
sociedade. As condições objetivas, normativas e psicológicas, formam a complexidade
do processo migratório face às condições objetivas da sociedade urbana, dos grupos
sociais que a compõem, e do profundo impacto com a entrada dos emigrantes e sua
posterior integração (GERMANI, 1965).
No caso da Argentina, a intensificação das migrações internas coincidiu com as
crises produzidas pela evolução desfavorável dos termos de intercâmbio internacional e
a conseqüente diminuição da capacidade importadora do país. Essa favoreceu o rápido
crescimento industrial, localizado sobretudo na Grande Buenos Aires, caracterizado
pela substituição de importação de bens de consumo. Nesse ambiente de mudanças
econômicas e sociais deram-se a incorporação definitiva da Argentina na economia
mundial, e a formação da classe operária do país.
Essa corrente migratória começou a ganhar força quando o fluxo da imigração
começou a decrescer. Desde o início da década de 1930, em função da política
protecionista e da industrialização, se percebia nas cidades o fluxo migratório
proveniente, principalmente, daquelas áreas não afetadas pela imigração estrangeira até
os centros urbanos transformados pelo impacto imigratório. A população da Grande
Buenos Aires, por exemplo, cresceu entre 1934 e 1943 em um ritmo anual de 85.000
habitantes dos quais 72.000 eram provenientes do interior. Entre 1943 e 1947 esses
números elevaram-se em 117.000 habitantes por ano. Os migrantes que em 1936 eram
16% da população da Grande Buenos Aires atingiram 28% em 1943 e 30% em 1947.
Essa grande massa de peões rurais, artesãos ou “personal de fatiga”, transplantada
de maneira rápida às cidades e transformada em operários industriais, adquiriu
significação política sem que ao mesmo tempo tivesse acesso aos canais institucionais
necessários para integrar-se ao funcionamento da democracia. A política repressiva dos
governos desde os fins do século XIX até começos do século XX, a ambivalência e
relativo fracasso dos governos da classe média entre 1916 e 1930, as severas limitações
ao funcionamento da democracia depois desta data, a descrença e o ceticismo unidos à
22
ausência de partidos políticos capazes de proporcionar uma expressão adequada a seus
sentimentos e necessidades, deixaram essas massas disponíveis para serem aproveitadas
por qualquer aventureiro que lhes oferecesse alguma forma de participação, afirma
Germani (1965, p. 226).
Organização da classe trabalhadora
É sabido que a fisionomia do movimento sindical e trabalhista de cada país
aparece relativamente determinada pelas características próprias do processo de sua
conformação social. Os primeiros esforços para organizar a classe operária na Argentina
não foram uma iniciativa de uma classe eminentemente criolla. Bailly (1984, p. 20)
aponta a forte influência estrangeira desde meados do século XIX, nos primórdios da
formação da classe operária argentina. Segundo o autor, os estrangeiros trouxeram seus
métodos de organização e agitação assim como programas e ideologias. Entre 1857 e
1910, o número de estrangeiros era superior nas organizações operárias e na liderança.
Em comparação com o imigrante, os nativos não estavam organizados para questionar a
ordem social e econômica vigente, mas também não se opuseram aos imigrantes quando
esses organizaram e conduziram o movimento operário.
Entende-se que as possibilidades de vitória dos trabalhadores de uma jovem
nação, que no seu período pós-independência foi cenário de sangrentas lutas internas,
governada por caudilhos e sem nenhuma prática no exercício da cidadania, seriam
poucas. A experiência histórica dos trabalhadores argentinos, em grande parte
indígenas, dificultaria as suas possibilidades de participação política, pelo menos
através dos canais institucionais tradicionais. No entanto, em que pese os limites
inerentes à imensa massa de trabalhadores, analfabetos e tiranizados por governantes -
que na maioria dos casos, não eram legítimos representantes do povo - aderir ao
movimento organizado por estrangeiros não lhes extraiu o protagonismo.
A Argentina viveu esse processo e não escapou do temor liberal relativo às
conseqüências “perversas” que poderiam advir dos institutos da soberania popular e da
igualdade política cada cabeça um voto e todos os votos com o mesmo valor. No
entanto, a “tirania da maioria”, que era a conseqüência esperada em função da extensão
da cidadania política a todos os indivíduos alfabetizados maiores de 18 anos não se deu,
23
porque essa não foi acompanhada da universalização do direito de vocalização das
preferências. Os novos cidadãos tinham apenas o direito de escolher entre os candidatos
apresentados, ou seja, as alternativas dadas não foram formuladas por eles
(MACPHERSON, 1978, p. 91).
As correntes ideológicas que tiveram ressonância no meio operário argentino
entre, 1870 e aproximadamente 1914, foram o anarquismo, o socialismo e o
sindicalismo. O comunismo apareceu depois de 1918, quando foi fundado no país o
Partido Socialista Internacional, denominado Partido Comunista em dezembro de 1920.
Por volta de 1870, o anarquismo foi introduzido na Argentina e difundiu-se
principalmente entre os operários que pertenciam às sociedades de resistência formadas
nas últimas décadas do século XIX.
16
Sua difusão deveu-se à propaganda que faziam
destacados anarquistas europeus como Enrico Malatesta e Pietro Gori que estiveram no
país durante 1885-89 e 1898-1902, respectivamente. (CAMPO, 1971, p. 44) Ainda que
houvesse diversas tendências dentro do anarquismo, mesmo entre Malatesta e Gori, no
final do século XIX as quatro características fundamentais que prevaleceram na
Argentina até a primeira década do século XX foram: a ação coletiva, a greve contra o
Estado, o apoliticismo e o internacionalismo (MATSUSHITA, 1983, p. 24). O
anarquismo defendia a ação coletiva direta: os operários deveriam organizar-se em
sindicatos para combater com êxito a classe capitalista. Por essa razão os anarquistas se
empenharam muito na organização de sindicatos, enquadrando o anarquismo de então
no anarco-sindicalismo. A greve era o método de luta entendido pelos anarquistas como
a arma mais eficaz para destruir o Estado. O antipoliticismo se expressava na oposição à
formação de partidos políticos que, segundo os princípios do anarquismo, acabava por
incorrer na busca do poder político, daí ser a organização de cunho puramente
econômico. Defendiam também o internacionalismo: a pátria era o mundo inteiro, as
fronteiras entre os povos não tinha razão de ser.
17
16
Em 1857, foi criada a entidade operária Sociedade Tipográfica Bonarense, considerada a mais antiga do
país. Em 1858, essa sociedade liderou a primeira greve importante da Argentina. Foram criadas em 1881,
a Unión Obreros Panaderos, a Sociedad de Obreros Molineros, em 1882 a Unión Oficiales Yeseros, em
1883, a Sociedad Obreros Tapiceros e a Sociedad de Mayorales y Cocheros de Transvias, a Sociedad de
Resistencia de Obreros Marmoleros, em 1885, a Sociedade de Obreros Panaderos e em 1887, os
condutores e foguistas ferroviários organizaram La Fraternidad. Ainda que esses grêmios fossem
basicamente de ajuda mútua, os três últimos tinham uma tendência à luta social. Ver Hiroschi
Matsushita (1983, p. 22).
17
Os anarquistas usaram largamente a imprensa. Desde 1860, foram publicados os primeiros jornais que
tratavam da classe operária e de sua condição social. Entre 1870 e 1880, os jornais anarquistas que
apareceram em grande número tiveram vida curta e distribuição limitada. Por volta de 1890, El
24
Notadamente, a história do movimento trabalhista argentino até aproximadamente
1910 foi fortemente marcada pela influência dos anarquistas. Com base nas teorias que
prevaleciam na Europa a idéia angular do anarquismo seria a destruição do Estado
nacional para reconstruir uma sociedade “pura” e regenerada. As conseqüências geradas
por esse tipo de ação foram a repressão duramente imposta pelo Estado ao ativismo
insurrecionalista dos anarquistas na primeira década do século XX. Era impossível
ameaçar continuamente a ordem estabelecida no país sem sentir o peso da reação dos
aparelhos repressivos do Estado.
O socialismo foi outra ideologia que disputou o controle do movimento operário
paralelamente aos anarquistas. Em 1882, foi formada na Argentina a primeira
importante organização socialista por trabalhadores alemães refugiados de Bismarck.
Era um grupo político parecido com o Vorwarts alemão (German Worker’s Club), do
qual conservou seu nome e inspiração. Seu semanário, também chamado Vorwarts
apareceu com uma certa regularidade após a publicação de seu primeiro número em
1886. Com a intenção de repetir na Argentina o sucesso do Germany’s Social
Democrats, o Clube obteve sucesso entre os imigrantes da comunidade germânica
(ODDONE, 1949, p. 196-197).
Os socialistas passaram a ter influência no movimento operário depois da
fundação do Partido Socialista Argentino (PSA) em 1896, sob a liderança do argentino
Juan B. Justo. Em 1890, Justo, recém-chegado de uma temporada de dois anos na
Europa, integrou o comitê executivo da União Cívica, para pouco tempo depois,
desiludido com o Partido, entusiasmar-se com as idéias socialistas. Em 1894, apareceu a
primeira edição do jornal socialista La Vanguardia. Justo foi o seu primeiro editor.
Durante os primeiros anos do século XX, quando a sociedade argentina assistia à
violência do círculo vicioso de ação e reação trabalhador/Estado –, o PS posicionava-
se entre as medidas extremistas dos anarquistas e as táticas restritivas dos
conservadores. Claramente defensores das demandas da classe trabalhadora, os
socialistas não concordavam com políticas extremistas como a greve geral, por
considerá-las contraproducentes e estimuladoras de medidas repressoras por parte do
Estado.
18
No entanto, mesmo não sendo o alvo específico da polícia, o Partido Socialista
Perseguido chegou a distribuir 4.000 cópias. Ver Emilio Corbiere (apud WALTER, 1977 [1971], p. 36).
18
Os socialistas opuseram-se veementemente à primeira greve geral argentina em 1902, que gerou a Lei
de Residência de 23 de novembro do mesmo ano.
25
sofreu severas sanções, entre elas a suspensão da circulação do jornal La Vanguardia,
que continuou a sair clandestinamente.
Sob a mira do Estado que, entre 1902 e 1910, foi implacável na repressão às
manifestações públicas da classe operária, fossem essas moderadas ou extremistas,
19
as
tensões aumentavam entre os trabalhadores socialistas e anarquistas impedindo a
possibilidade de uma luta organizada que, a partir de uma linha mestra única,
enfrentasse o Estado.
O sindicalismo, outra corrente ideológica européia forte no movimento operário
argentino, foi introduzido no país em 1903 por dissidentes socialistas. A essência da
ideologia dos sindicalistas podia ser traduzida na seguinte frase: “O sindicato e não o
partido político é a principal arma da luta proletária”. O sindicalismo apareceu como
uma reação contra os partidos socialistas de tendência reformista e parlamentarista. Isso
não significa que os sindicalistas não reconhecessem certo valor na atividade
parlamentar, ou nos partidos que servissem aos interesses da classe. Eles se opunham ao
antipoliticismo do anarquismo, mas também não confiavam irrestritamente no
parlamento, assim como os socialistas. Os sindicalistas colocavam-se em uma posição
intermediária entre as duas tendências: socialistas e anarquistas. Segundo o italiano
Arturo Labriola, um dos ideólogos do sindicalismo, os sindicatos são as únicas
instituições que respondem à mecânica interna da luta de classes. Labriola (1987)
defendia a Confederação dos sindicatos como a forma natural da organização da classe
operária e afirmava que: “Nela (a Confederação) se organiza precisamente a classe
como tal: os proletários como tais” (p. 198; tradução do autor).
Na realidade, a partir da década de 1870, a luta ideológica marcaria
acentuadamente a história da Argentina. Em oposição ao socialismo freqüentemente
rudimentar e pobremente expresso desse período estava o movimento anarquista que
19
Em 1902 ocorreu a chamada greve geral liderada pelos trabalhadores do Mercado Central de Frutos. O
governo respondeu com o decreto de estado de sítio. Os anos de 1903 e 1904 foram marcados pelo
aumento do número de greves, principalmente, depois da violência da polícia nas celebrações do primeiro
de maio de 1904. A essa altura os socialistas que sempre foram contra as greves, passaram a apoiar e
organizar “greves parciais” que, segundo eles, se realizadas com ordem, não provocariam reações do
governo. Ainda assim a polícia não permitiu nenhum tipo de demonstração popular até o sério confronto
de maio de 1909, quando oito anarquistas foram mortos e vários outros feridos. Em novembro de 1909,
enquanto os socialistas continuavam a advogar pela não-violência, foi assassinado o odiado chefe de
polícia Ramón L. Falcón, “símbolo da lei e da ordem na Argentina”. O Estado respondeu ao ato
criminoso com o decreto do estado de sítio por 60 dias; censura de jornais; proibição de reuniões; e
deportação de militantes políticos (WALTER, 1977, p. 48-53).
26
sobreviveu até 1920. A magnitude da influência conseguida pelo movimento anarco-
sindicalista argentino provocou fortes reações do governo para frear sua expansão.
Como instrumento legal para tal propósito, o Estado usou da Ley de Residencia
(lei 4.144) sancionada em 1902 e a Ley de Defensa Social (lei 7.029) de 1910. Ao lado
dessas, a Lei Eleitoral de 1912 eliminou sobremaneira a marginalidade dos operários
nativos.
20
Por essas razões a década de 1920 registrou um enfraquecimento do
movimento anarquista pela expressiva diminuição de associados.
Às vésperas do século XX a Argentina tinha dois partidos políticos organizados, a
Unión Cívica Radical (UCR) e o Partido Social Obrero Internacional que em 1896
passou a chamar Partido Socialista Argentino (PSA). A UCR tinha como principal
objetivo a derrocada da oligarquia e defendia alguns pontos em comum com o PSA
como o sufrágio universal, o sistema eleitoral proporcional e a autonomia municipal.
Enquanto as questões políticas eram mais importantes para os radicais, os socialistas
colocavam ênfase nos problemas sociais e econômicos. Justo sempre advogou pela
assimilação do trabalhador imigrante por acreditar que esses seriam mais capazes de
desenvolver o socialismo na Argentina. Segundo suas previsões, em pouco tempo os
“velhos elementos criollos seriam absorvidos pelos imigrantes que constituíam a parte
ativa da população.
Mais avançados politicamente que os radicais, os socialistas propunham: sufrágio
para mulheres, maior facilidade para a naturalização dos estrangeiros, medidas anti-
clericais e a defesa do divórcio. A essas propostas os radicais se opunham assim como
na questão do poder político. Os socialistas acreditavam que poderiam participar do
admitidamente corrupto processo político do país e contribuir para modificações
significativas na vida nacional, através de um modelo moderno de organização política.
Para os radicais, a única forma possível de eliminar a corrupção seria uma política de
total intransigência (WALTER, 1977, p. 22).
20
A Lei de Residência autorizava o governo a deportar todo o estrangeiro cuja conduta “comprometesse à
segurança nacional ou perturbasse a ordem pública”, proibia a entrada dos culpados de delito e poderia
deportar no prazo de três dias a quem fosse passível de condenação. A Lei de Residência tinha como
objetivo isolar o trabalhador imigrante da sociedade argentina. A participação em greves poderia
convertê-lo em um estrangeiro indesejável, agitador profissional ou elemento subversivo. A lei de Defesa
Social foi promulgada em 1910, em conseqüência da greve geral de 1909 marcada pela violência e o
assassinato nesse mesmo ano do chefe de polícia de Buenos Aires. Essa lei reforçou a Lei de Residência,
facultando o governo deportar de imediato os dirigentes estrangeiros indesejáveis e a adotar outras
medidas necessárias para preservar a ordem. A Lei Sáenz Peña é o conjunto de leis da reforma eleitoral
promulgada em 1912. A partir de então foi estabelecido o sufrágio universal obrigatório para nativos
maiores de 18 anos (WRIGHT & NEKHOM, 1990).
27
Em 1906, os sindicalistas passaram a controlar a Unión General de Trabajadores
(UGT), até então sob o comando dos anarquistas, e também a Confederación Obrera
Regional Argentina (CORA) criada em 1909, da qual participavam alguns socialistas e
anarquistas. Em 1914, a CORA uniu-se à Federación Obrera Regional Argentina
(FORA), uma das mais importantes centrais operárias das primeiras décadas do século
XX, dirigida por anarquistas. No IX Congresso da FORA realizado em 1915, a
hegemonia sindicalista era evidente (MATSUSHITA, 1983, p. 31).
Enquanto o socialismo e o anarquismo sofriam violenta repressão por parte do
Estado desde o início do século XX, o sindicalismo, por apresentar uma ação mais
moderada, foi a tendência que mais se expandiu até a década de 1920. Ao lado disso, na
medida em que os sindicatos mais ligados ao setor exportador – marítimos e ferroviários
começaram a ter mais importância, os operários se tornaram cada vez mais
combativos e optaram pela via sindical na reivindicação de seus objetivos econômicos.
Nesse aspecto, a luta pela solidariedade entre todos os operários, na perspectiva
anarquista, perdia sentido no ponto de vista dos setores mais qualificados da economia
nacional (ROCK, 1975, p. 101-102).
Matsushista atribui o crescimento do sindicalismo no pós Primeira Grande
Guerra, à tímida política trabalhista do presidente radical HipólitoYrigoyen (1916-1922)
e também “à perda do conteúdo filosófico do sindicalismo”; em primeiro de abril de
1915, foi realizado em Buenos Aires o IX Congresso do FORA. Os congressistas
encontravam-se divididos entre duas tendências: a sindicalista e a anarco-sindicalista. A
proposição mais importante apresentada pela comissão designada para elaborar os
fundamentos ideológicos do FORA foi a anulação da resolução do V Congresso que era
favorável ao comunismo anárquico, substituindo-a por uma definição ideológica plural.
Segundo esta proposição vencedora pelo voto, deliberava-se que o FORA:
(...) é uma instituição eminentemente operária, organizada por grupos
de ofícios afins, cujos componentes pertencem às mais variadas
tendências ideológicas e doutrinárias, que para manterem-se em sólida
conexão necessitam a mais ampla liberdade de pensamento, ainda que
em suas ações seja imprescindível que se enquadrem dentro da maior
orientação revolucionária da luta de classes, da ação direta e com
absoluta independência dos grupos e partidos políticos que militam
fora da organização dos trabalhadores argentinos. O FORA não se
pronuncia partidário nem aconselha a adoção de sistemas filosóficos
nem ideologias determinadas (...) deverá permitir o mais amplo e
28
tolerante discurso de temas científicos, filosóficos e ideológicos, em
homenagem aos diferentes modos de pensar dos trabalhadores
federados (MAROTTA, 1960, p. 186;
21
tradução do autor).
Além disso, o IX Congresso indicou a hegemonia sindicalista e reafirmou as
posições tradicionais do conjunto do movimento operário, como a redução da jornada
de trabalho, contra leis repressivas, escolas livres, e em favor do livre-cambismo. Na
resolução a favor do livre-cambismo houve uma coincidência entre sindicalistas,
anarco-sindicalistas e a minoria socialista. Segundo esta resolução,
(...) considerando que tudo quanto seja imiscuir-se nos interesses
unilaterais da classe burguesa ou em suas expressões materiais, que
são a indústria e o comércio, cuja gestão direta lhes pertence, é
contribuir para a confusão no critério proletário quanto às finalidades
das duas classes que se excluem entre si e que medidas de proteção
oficial à indústria têm uma marcada tendência particularista, que se
patentizam em não ocupar-se com os prejuízos que impõem ao
proletariado em geral, explicando-se este fato pela índole da classe
dos governos burgueses que as ditam, resolve: pronunciar-se contra o
protecionismo, pelo qual reconhece que se bem o intercâmbio livre e
universal pode em certos casos levar interesses circunscritos, o
protecionismo representa uma forma artificial de concorrência na
produção que pode sustentar-se às expensas das classes
consumidoras encarecendo o preço real das mercadorias (MAROTTA,
1960, p. 187; tradução do autor).
Foram posições políticas como essas que caracterizaram o sindicalismo. Se por
um lado, não radicalizavam ideologicamente, por outro lado, tinham claros os limites
impostos aos trabalhadores em razão das práticas políticas da burguesia.
A partir do IX FORA,
22
a corrente sindicalista, como foi mencionado, registrou
uma expansão que se acentuou por toda a década de 1920. A história da ascensão do
sindicalismo, como conseqüência de uma posição mais branda conforme decisão no IX
Congresso, teve um significado muito expressivo na política operária em geral. Uma
vez que não se enfrentava o governo diretamente e na busca de ganhos mais imediatos
21
Observação: Sebastián Marotta foi secretário geral do IX FORA.
22
A partir de 1915, passaram a existir dois FORA. O do IX Congresso (IX FORA) e o do V Congresso (V
FORA) realizado em 26 de agosto de 1905 em Buenos Aires. Este último foi controlado pelos anarco-
sindicalistas, fortalecidos perante os socialistas pela presença dos sindicalistas. Para reforçar suas
posições e reafirmar suas posturas ideológicas negaram qualquer acordo obrigando os sindicalistas a
seguirem suas posições. Isso levou a posterior ruptura interna entre sindicalistas e anarco-sindicalistas. O
V Congresso do FORA passou à história do movimento operário como o Congresso do “comunismo
anárquico”.
29
dos benefícios sociais, o melhor seria recuar ou pelo menos buscar estratégias de luta
mais institucionais.
23
Embora o novo movimento operário organizado tenha alcançado seu apogeu em
1920, a eleição de Marcello T. Alvear para a presidência da República, em 1922,
indicou um retrocesso na política trabalhista do governo de Yrigoyen. O FORA IX foi
dissolvido em 1922 e substituído pela Unión Sindical Argentina (USA). Quando da
dissolução do FORA, o PCA criado em 1920, se pronunciava abertamente sobre as
questões operárias.
24
Desde a formação do PCA em 1920, os comunistas que atuavam dentro do FORA
desenvolveram uma árdua campanha a favor da unidade sindical. No X Congresso do
FORA realizado entre 29 e 31 de dezembro de 1918, os comunistas organizaram o
Comité de USA que, no Congresso de 1922, substituiu definitivamente o FORA. Na
USA os comunistas mantiveram certa influência apoiando os sindicalistas, enquanto os
grêmios ferroviários, controlados pelos socialistas, retiraram-se para formar em 1926,
junto aos sindicalistas reformistas, a Confederación Obrera Argentina (COA), que
contou com 80 mil cotizantes, dos quais 70 mil eram ferroviários:La Fraternidade a
Unión Ferroviária”. À diferença da liderança do FORA IX, os dirigentes da USA
23
Segundo Foucault (1999), Boulainvilliers “definia o princípio daquilo que se poderia denominar o
caráter relacional do poder: o poder não é uma propriedade, não é uma potência; o poder sempre é apenas
uma relação que se pode, e se deve estudar de acordo com termos entre os quais atua essa relação.
Portanto, não se pode fazer nem a história dos reis nem a história dos povos, mas a história daquilo que
constitui, um em face do outro, esses dois termos, dos quais um nunca é infinito e o outro nunca é zero”
(p. 200).
24
A mudança do nome do Partido Socialista Internacional para Partido Comunista foi
uma obediência às deliberações do II Congresso da Internacional Comunista, realizada
em Moscou, em 2 de julho de 1920. A direção do Partido Socialista Internacional
Argentino convocou o I Congresso Extraordinário, que se realizou nos dias 25 e 26 de
dezembro de 1920, em Buenos Aires, com a finalidade de aceitar as 21 condições
aprovadas pelo II Congresso da Internacional Comunista. Neste Congresso Victorio
Codovilla anunciou os fundamentos sobre a necessidade de mudar o nome do Partido:
“Na mesma situação de ontem, quando o nome de nosso Partido teve de agregar-se à
palavra ‘Internacional’ para reafirmar categoricamente nosso conceito notadamente
internacionalista frente ao chauvinismo nacionalista e ‘patriotero’ do mal chamado
Partido Socialista, hoje devemos mudar o nome do Partido Internacional pelo de Partido
Comunista reivindicado pelo nome do glorioso Manifesto Comunista de Marx e
Engels”. Tanto a mudança do nome como as 21 condições da Internacional foram
aceitas por unanimidade. Ver: Esbozo de Historia del Partido Comunista de la
Argentina. 1918, 6 de Enero 1948 (Buenos Aires, Editorial Anteo, 1947, p. 44;
tradução da autora)
30
interpretaram o gremialismo apolítico de tal forma que eliminaram por completo sua
colaboração com o governo. Eles acreditavam que o programa de seus predecessores
(FORA IX) tinha sido infrutífero, pois não evitou o desemprego, e propiciou o
enfraquecimento do movimento operário. A declaração dos princípios que norteavam a
USA foi um intento de reativar programas contra o Estado, próprio dos anarquistas
anteriores à Primeira Guerra Mundial. Sustentavam que:
a ação direta, o incessante batalhar nos sindicatos, a educação
revolucionária do proletariado, têm dado frutos positivos, livrando os
trabalhadores de tutelas vergonhosas de políticos e espertalhões de
toda espécie; (...) que as tendências proletárias argentinas são
manifestamente adversas ao colaboracionismo, anti-políticas e
ferventemente revolucionárias (MAROTTA, 1960-1961, p. 83-84;
tradução do autor).
Ao lado da declaração de princípios, a USA determinava entre outras medidas, o
direito de intervenção e tutela às facções organizadas em partidos políticos. Eles
reafirmavam a luta contra o imperialismo, chegando ao extremo da revolução social, e
finalmente conclamavam, “todo o poder aos sindicatos”, para o caso de uma efetiva
revolução como a única que se enquadra à tradição sindical revolucionária do país
(MAROTTA, 1960-1961, p. 83-84).
Analisando o pensamento ideológico do USA, Hugo Del Campo (1983, p. 29)
afirma que a Central calculou mal a natureza e a importância das mudanças ocorridas na
classe operária. As divergências entre as diversas correntes ideológicas transformaram o
primeiro congresso da USA, em abril de 1924, em um campo de batalha entre
sindicalistas (maioria), comunistas e socialistas. Em 1926, os sindicalistas de orientação
socialista sentindo-se rechaçados pelo “embandeiramento” sindicalista da USA e por
seu extremismo verbal, decidiram formar a referida COA que, entre 1926 e 1930, foi a
federação mais importante de todo o país (CAMPO, 1983, p. 29).
Finalmente, às vésperas da Revolução de 1930, o movimento operário argentino
estava dividido em quatro centrais: FORA, COA, USA e o Comité de Unidad Sindical
Clasista (CUSC), central comunista criada em 1929 por dissidências com os princípios
da USA. Matsushita (1983, p. 43-44) afirma que esta divisão não favoreceu os
interesses da classe trabalhadora, que sofria o problema de desocupação sob a aparente
prosperidade da década. Segundo o mesmo autor, quando em 1930, os integrantes do
31
COA e do USA se uniram para formar a Confederación General del Trabajo (CGT),
essa nascia com uma importância primordial no período que precedeu ao surgimento do
peronismo (p. 44).
Conclusão
No caso da formação da classe trabalhadora argentina, foi de importância
fundamental a articulação da cultura operária local com a cultura dos imigrantes de
diferentes procedências e também com a cultura da elite. É necessário reconhecer que
não existe um espaço delimitado na sociedade para esse ou aquele indivíduo ou classe
social desenvolver suas idiossincrasias. Na medida em que os imigrantes chegavam à
Argentina, instituía-se paulatinamente a combinação das culturas através da influência
recíproca entre trabalhadores nativos e trabalhadores estrangeiros e numa perspectiva
mais ampla com os outros setores da sociedade.
25
de se considerar as características da história do capitalismo nos países
periféricos em geral e as particularidades sócio-culturais de cada um deles. No caso
argentino, a economia agro-exportadora articulava-se como parte do sistema capitalista
mundial sem passar pela lenta formação das cidades; tampouco a industrialização
atravessou o processo clássico, desde a cooperação capitalista simples até a constituição
de um proletariado de origem servil. A classe operária formou-se com imigrantes
provenientes de países capitalistas associados aos trabalhadores de um país de economia
periférica, exatamente quando se dava o início da fusão do socialismo com o
movimento operário em escala internacional. Isso significa que esses imigrantes
chegavam à Argentina predispostos a dar continuidade à luta social iniciada nos países
de origem e nesse novo lugar, traduzi-la para outra língua e para outro contexto político,
social e sobretudo intelectual (COSTA, 1985, p. 17).
26
25
De acordo com Thompson (1993) “uma cultura é também um conjunto de recursos diversos, na qual o
tráfico passa entre o literal e o oral, o que é superior e o subordinado, a vila e a metrópole; é uma arena de
elementos conflitantes, que exige uma pressão obrigatória - como, por exemplo, nacionalismo ou
ortodoxia religiosa predominante ou consciência de classe - para se constituir como ‘sistema’. E, de fato,
o próprio termo ‘cultura’, com sua confortável súplica de unanimidade, pode servir para distrair atenção
das contradições sociais e culturais, das rupturas e oposições dentro do todo. Neste ponto generalizações
para idéias universais de ‘cultura popular’ ficam vazias a não ser que sejam firmemente situadas em
contextos históricos específicos” (p. 6-7).
26
Ver sobre o tema Molas Rodríguez (1968) Alsina (1910) e Godio (2000).
32
Nesse sentido as aspirações frustradas desses imigrantes ao chegarem na
Argentina refletiram-se na ação de resistência ao capital e na forte predisposição para
assimilar ideologias anarquistas e socialistas que conheciam. Os imigrantes tiveram
que inteirar-se com os trabalhadores nativos, aceitando-os e também se integrando à
cultura nacional dentro dos limites inerentes ao status de imigrante. O paradoxo da
situação ficou patente na forma que esses estrangeiros atuaram na reivindicação de seus
direitos, como trabalhadores e através da ação política, como aspirantes a cidadãos. A
organização política foi a forma usada por esses trabalhadores para evitar a repetição
das condições de exploração sofridas nos países de origem. Os movimentos sociais
organizados com essa finalidade foram ordenados no interior da nova sociedade, então
composta de uma grande quantidade de trabalhadores estrangeiros e argentinos.
A luta pela conquista da cidadania e dos direitos sociais e políticos iniciou-se no
século XIX, mas a implantação pelo Estado de uma política trabalhista, conquistada
pelos trabalhadores, coube ao final da primeira metade do século XX com o peronismo.
Referindo-se aos migrantes Ratier (1971) afirma: “eles vinham de toda parte e em 1940
ameaçavam mudar a fisionomia de Buenos Aires assim como os imigrantes fizeram no
início do século” (p. 23; tradução do autor)
Ainda de acordo com o mesmo autor, foi uma massa triunfante que engrossou as
colunas operárias no movimento de 17 de outubro de 1945 e tornou possível a eleição
de Perón como Presidente da República em 1946. Ali estava o matiz que fez a diferença
no enfrentamento político a toda coalizão opositora. Chamados de cabecitas negras”,
os migrantes, rejeitados pelos portenhos, enquadravam-se na máxima: “Ser negro era
ser peronista e ser peronista era ser negro” (p. 23).
33
CAPÍTULO 2
PROCESSO POLÍTICO NA ARGENTINA NOS ANOS 1930 E 1940
Neste capítulo pretende-se analisar a conjuntura político-social da Argentina,
entre os anos 30 e 40 do século XX, quando a política trabalhista passou a figurar na
agenda política. A centralidade da política trabalhista nesse período tornou-a tema de
grande importância na historiografia sobre os golpes político-militares de 1930 e 1943
no país.
Em 1930, encerrou-se na Argentina, através de um golpe político-militar liderado
pelo General José Felix Uriburu, o ciclo dos governos radicais iniciado com a eleição de
Hipólito Yrigoyen para a presidência da Repúbica, em 1916.
27
Essa foi a primeira vez,
desde 1860, que um presidente eleito foi deposto, inaugurando-se o processo de ‘fazer e
desfazer’ governos pelos militares. Entre 1930 e 1973, apenas dois presidentes eleitos
cumpriram integralmente seus mandatos, o General Agustin P. Justo, que governou
entre 1932 e 1938, e o General Juan Domingo Perón, que completou seu primeiro
governo em 1952 e teve seu segundo mandato interrompido pela Revolução Libertadora
de setembro de 1955 (ver MORENO, 1994).
Antecedentes da Revolução de 1930
Nas eleições de 1916, foi aplicada pela primeira vez a Lei Sáenz Peña, criada na
Reforma Eleitoral de 1912, que estendeu o direito de voto a todos os homens maiores de
18 anos.
28
Durante o governo do Presidente Roque Sáenz Peña (1910-1914), os setores
mais progressistas das classes dominantes, entre eles o próprio presidente, deram-se
conta de que a sobrevivência do sistema liberal só seria assegurada através de mudanças
de caráter político e social. Essas implicavam a ampliação dos princípios do liberalismo,
envolvendo, entre outras medidas, a incorporação das massas no sistema político.
27
Hipólito Yrigoyen foi candidato às eleições pela Unión Cívica Radical, partido criado na década de
1880 em protesto contra o controle político e as práticas corruptas da oligarquia; os reformadores,
dirigidos por Leandro N. Alem e Aristóteles del Valle, demandaram a garantia de liberdades públicas, o
sufrágio honesto e a não-intervenção do governo nas eleições.
28
Durante o governo de Roque Sáenz Peña, foi dada prioridade máxima à elaboração de uma reforma
eleitoral. A lei estabeleceu o voto obrigatório e secreto para todos os homens maiores de 18 anos. Não
estendeu o direito do voto aos estrangeiros.
34
Para os conservadores, o confronto com um novo tipo de eleitor foi o aspecto de
incerteza da Lei 8.871 (Sáenz Peña). A consequência imediata dessa abertura política
foi a eleição de Hipólito Yrigoyen, líder da Unión Cívica Radical, partido que mais
lutou pela reforma do sistema eleitoral. Esse resultado afetou diretamente os
conservadores, que tiveram sua representação reduzida no Congresso Nacional e nos
governos provinciais (ver SMITH, 1974, p. 26). Como a Lei não permitia que
estrangeiros não-naturalizados votassem e esses compunham a maior parte da classe
trabalhadora, a reforma eleitoral tendeu a beneficiar mais a classe média do que a classe
operária. Ainda assim, a eleição de um radical foi uma clara demonstração de
insatisfação da população com o tipo de política praticada no país até então. De acordo
com José Luis Romero, essa lei estava destinada a modificar a fisionomia da Argentina,
ampliando os espaços de participação política (ROMERO, 1987, p. 97).
A Ley Sáenz Peña, para os conservadores, teve como resultado o período
chamado de “perigo democrático”. As revoltas, ocorridas entre 1914 e 1922, abalaram a
segurança psicológica das elites liberal-conservadoras. Segundo Rouquié (1978a), a
multiplicação das greves entre 1914 e 1919 foi a expressão de uma situação econômica
pouco sã, mas dinâmica. Em janeiro de 1919, ocorreu em Buenos Aires um violento
confronto entre grevistas metalúrgicos do bairro operário de Nueva Pompeya e grupos
de civis partidários da ordem. O saldo de inúmeras mortes no confronto deixou sua
marca no período conhecido como a “Semana Trágica”.
A posição do presidente Yrigoyen foi ambígua. Por um lado, apoiava os grevistas,
e por outro, colocava o exército nas ruas para impor a ordem. Nesse período, foram
criadas organizações privadas de defesa social, como a Liga Patriótica, encabeçada por
antigos colaboradores do presidente, que se encarregaram das tarefas repressivas
(posteriormente a Liga Patriótica romperia definitivamente com o presidente). Esse
grupo paramilitar de civis e de alguns militares teve um desempenho repressor nos
conflitos ocorridos na Patagônia em 1920. Foi enviada à região, por ordem do
presidente, uma pequena expedição militar integrada por tropas do 10º Regimento de
Cavalaria, sob comando do militar radical tenente Coronel Varela, que autorizou o
fuzilamento em massa dos rebeldes.
A atitude de Varela não foi compatível com a imagem que os radicais queriam se
identificar. Como conseqüência, o presidente não lhe conferiu as glórias que o próprio
35
julgava-se merecedor. A medalha de honra ao mérito lhe foi dada pela Liga Patriótica.
Esse episódio aumentou o desgaste nas relações entre o Estado e os militares, que
acusavam o governo de estar mais preocupado com sua imagem que em recompensar ou
justificar seus exércitos. Para os militares, Yrigoyen utilizou homens treinados para
fazer a guerra com fins policialescos e apelava para o exército como última alternativa
quando a situação tornava-se incontrolável (ver ROUQUIÉ, 1978a, p. 140-149).
Somava-se ao “perigo democrático” o chamado “perigo vermelho”, gerado pela
Revolução Russa de 1917. Embora anticomunista, Yrigoyen não compartilhava da
apreensão dos conservadores, que entendiam todas as demandas operárias como
influência das idéias bolchevistas. Consciente do aumento do custo de vida, o presidente
considerava justas as exigências dos trabalhadores e defendia a liberdade política e o
bem-estar social (ver MAZO, 1955, p. 210 e p. 223-226).
Segundo Skidmore e Smith (1984, p. 84), essa posição derivou da necessidade dos
radicais obterem os votos dos trabalhadores na constante disputa com os conservadores.
Por outro lado, na medida em que Yrigoyen teve, pelo menos na aparência, uma atitude
política pró-trabalhadores, estes últimos criaram a expectativa de possibilidade de
mudança nas relações entre o Estado e o trabalho.
Yrigoyen não desenvolveu uma política social que institucionalizasse os direitos
trabalhistas. A ação do governo ficou restrita à resolucão de cada manifestação operária
específica. Em algumas situações, não teve dúvidas em neutralizá-las através da
repressão policial.
29
Independentemente do reduzido escopo da ação social do presidente
Yrigoyen, ele foi o primeiro governante na história argentina a receber delegações de
operários na Casa Rosada e também,o primeiro a criticar, perante o Congresso
Nacional,
as condições precárias em que se desenvolvia o trabalho dos
ferroviários devido ao pouco empenho que as empresas haviam posto
em melhorar sua situação, antes de acontecer a greve de setembro (...)
Esse movimento de reivindicação operária estava justificado em suas
causas determinantes (YRIGOYEN, 1953, p. 143; tradução da autora).
Esse fragmento do discurso proferido em 1918 traduzia uma defesa aberta do
presidente da greve dos ferroviários, de setembro de 1917, e um indisfarçado apoio à
29
Sobre repressão aos movimentos grevistas ver Smith (1963, p. 77).
36
causa dos grevistas. Ainda que após 1919 (Semana Trágica), o interesse de Yrigoyen
pela causa trabalhista tenha arrefecido, não se pode negar o importante fato de que, na
década de 1920, o presidente radical era reconhecido pelas classes trabalhadoras como
seu porta-voz, tendo usado, em suas falas públicas, a linguagem esperada por elas.
Não obstante o reconhecimeto da questão trabalhista que de resto não favoreceu
os trabalhadores com a implantação de uma política social –, o governo radical foi
duramente criticado pelos setores militares, que se viam excluídos dos centros de
decisão política, e pelos conservadores, que se sentiam ameaçados pela “rebeldia” dos
operários, expressa nas greves e nos movimentos reivindicatórios, que se estendiam
ao campo (ROUQUIÉ, 1978a, p. 140-153).
Plotkin indica Yrigoyen como o ator fundamental na quebra do consenso liberal.
A seu ver, o presidente não tinha um programa concreto de governo, mas estava seguro
de sua legitimidade por duas razões: a primeira, por ser uma resposta das urnas e, a
segunda, por acreditar que o êxito eleitoral de seu partido simbolizava a “pátria
mesmo”. Para Yrigoyen, ele e o partido encarnavam a união cívica que representava as
aspirações do povo argentino. O autor reconhece que, durante o primeiro governo de
Yrigoyen, a liberdade de expressão não sofreu limites, embora o discurso oficial não
reconhecesse a oposição como um interlocutor legítimo no cenário político. Plotkin
(1994) caracterizou essa situação como de “dupla deslegitimação”: a do próprio
governo vigente em relação à oposição e a da oposição conservadora, que colocava em
questão a “legitimidade do governo radical e do marco ideológico e institucional que o
tornou possível” (p. 23).
Em 1922, o radical Marcelo T. Alvear foi eleito presidente do país com uma
inexpressiva oposição. Alvear, chamado “o oligárquico”, em contraposição ao
“popular” Yrigoyen, apoiou-se em políticos que se opunham ao governo anterior. Em
1924, a insustentável divisão interna do Partido Radical levou à constituição de dois
partidos distintos. De um lado, estavam aqueles que se mantiveram fiéis ao chefe, os
yrigoyenistas, também conhecidos como genufletos e, do outro lado, os
antipersonalistas que, junto aos conservadores e socialistas, eram chamados de
contubernistas”.
30
30
Genuflexos (aquele que está de joelhos) foi a denominação daqueles que obedeciam a Yrigoyen
incondicionalmente. Contubernistas era a palavra, segundo Romero, nova e afortunada, que qualificava os
acordos entre antipersonalistas, conservadores e socialistas (viver em contubérnio: amasiados). Sobre
isso, ver Romero (1994, p. 79).
37
A cisão interna entre os radicais passou a dominar as discussões políticas no país,
principalmente a partir da eleição de 1926, quando os yrigoyenistas ganharam muitas
posições no governo federal. Os ataques dos conservadores ao yrigoyenismo tornaram-
se cada vez mais virulentos. As tensões, que foram abrandadas durante a presidência do
radical Marcelo T. de Alvear (1922-1928), recrudesceram com a proximidade das
eleições de 1928. A Lei Eleitoral foi considerada na época a traicionera encrucijada
del cuarto oscuro
(BUCHRUCKER, 1987, p. 32-33).
De acordo com Luis Alberto Romero, a frente política anti-yrigoyenista foi
consideravelmente aumentada com a dissidência do Partido Socialista Argentino, o
recém-formado Partido Socialista Independente, liderado por Antonio de Tomarso e
Federico Pinedo e por outros grupos minoritáros que propagavam idéias contra o
sufrágio universal e a chamada “democracia obscura”. Romero afirma que, nessa
ocasião, a direita Argentina estava segura dos seus objetivos e do apoio das classes
proprietárias. No caso de um resultado frustrante na eleição, se considerava a
alternativa de acabar com o regime democrático que, segundo seus preceitos, “não
assegurava a eleição dos melhores” (ROMERO, 1994, p. 80).
A propaganda contra Yrigoyen não foi eficiente o bastante para impedir sua
consagração nas eleições de 1928, com 60% dos votos, mesmo sem o apoio do
presidente em exercício, Marcelo T. Alvear. A resposta das urnas acelerou o movimento
de cunho anti-democrático contra o novo presidente, que finalizariam com a eclosão da
Revolução de 1930. O centro das discussões passou a ser quando e como se daria a
intervenção para depor o presidente eleito. Segundo a avaliação dos conservadores, a
autoridade de Yrigoyen foi algo inédito na Argentina, uma vez que o poder político
atuou com relativa autonomia em relação aos que controlavam a economia. Esse novo
estilo de poder era inaceitável para os setores economicamente fortes, acostumados com
a permanente colaboração do Estado. Yrigoyen era visto pela oposição como a
encarnação dos “vícios da democracia”, da agitação social, do caudilho autoritário e
causador de todos os desmandos do país.
38
A Revolução de 1930
As eleições de 1928, que levaram Hipólito Yrigoyen pela segunda vez à
presidência da nação, deixaram as forças opositoras sob tensão. Na concepção do
General Uriburu, a “hora da espada” havia chegado.
31
Apesar do apoio das massas
populares a Yrigoyen, expresso nos 838.583 votos que o Partido Radical obteve, contra
os 414.026 recebidos pela Frente Única, os 64.985 do Partido Socialista e os poucos
votos obtidos pelo Partido Democrata Progressista e pelo Partido Comunista, o golpe
não foi evitado.
A rigor, pode-se dizer que o golpe de 1930 foi consequência da intolerância dos
conservadores, aliados aos militares, à forma do governo tratar as inúmeras greves que
ocorreram no país principalmente a partir de 1914. Smith (1963, p. 77) afirma que a
atuação de Yrigoyen, até 1919 marcada por uma acentuada simpatia aos trabalhadores,
foi inibida com o desenrolar dos movimentos grevistas da Semana Trágica. As violentas
batalhas entre trabalhadores e a polícia nas ruas de Buenos Aires teriam posto termo no
ardor trabalhista de Yrigoyen, podendo explicar sua subseqüente indiferença com
respeito aos problemas sociais.
A resistência ao golpe foi inexpressiva, e Yrigoyen, que havia pedido licença do
cargo no dia anterior, saiu do cenário político, rompendo definitivamente o consenso
liberal democrático iniciado na década de 1880.
32
Os perigos que ameaçaram a paz no
período de 1916 a 1922 (primeiro governo de Yrigoyen) não se repetiriam sob o
controle de um governo forte. Com isso, a direita conservadora retornava ao poder e
legitimava o golpe pelo clima de “caos social”.
31
Essa expressão foi usada pelo poeta Leopoldo Lugones em discurso, em Lima, em
1924, e publicado pelo Círculo Militar. Segundo o poeta e patriota, velho anarquista e
depois nacionalista reacionário, era chegado o momento de reagir contra o mal: “A hora
da espada havia chegado”. Esse chamado à intervenção do exército na política
significava a necessidade de uma restauração dos valores morais que a política de
Yrigoyen havia esquecido. Ver Troncoso (1957, p. 39-40). Segundo Gerassi (1968),
“Lugones foi o primeiro argentino esquerdista que condenou abertamente o processo
democrático. Foi o primeiro que declarou o amor à Pátria como o único valor moral e
político aceitável” (p. 43, tradução da autora).
32
Até 1930, a Argentina viveu em um esquema idealizado conhecido como modelo del ochenta”.
Tratava-se das concepções liberais herdadas do século XIX. Ver Amadeo (1956).
39
A década infame: 1930-1943
Os anos que se estenderam entre a Revolução de 1930 e o golpe de junho de 1943
foram marcados por sucessivas transgressões dos governantes às normas
constitucionais. A coalizão vitoriosa no golpe foi liderada pelo General José Félix
Uriburu, nacionalista de extrema direita, que estava convencido de que o sistema
democrático não fecundaria na Argentina. Uriburu exerceu o cargo de presidente do
governo provisório, entre 6 de setembro de 1930 e 20 de fevereiro de 1932. Ele liderava
a facção de direita, defensora da implantação de um Estado corporativo de inclinação
fascista, que se dispunha a acabar com os partidos políticos, modificar corporativamente
a estrutura do Congresso, impor o voto qualificado e estabelecer um Estado autoritário.
Propunha, ainda, a instituição de uma ordem hierárquica baseada na função social. O
voto, contrariando a Ley Saenz Peña, deveria estar nas mãos dos membros mais
“qualificados” da sociedade. O Congresso seria composto por legisladores eleitos, que
representariam interesses funcionais ou corporativos, substituindo os “agentes de
comitês políticos”, como Uriburu se referia aos congressistas. Uriburu governou o país
sob lei marcial durante nove meses, criando a imagem de um regime brutal e
implacável.
A tendência política líderada por Uriburu rompeu abertamente com a política
social de Yrigoyen, através da implantação de uma “ditadura militar-policialesca”,
fortalecida pela mobilização de milícias na rua. No período imediato após o golpe,
Uriburu contou com o apoio, ou pelo menos com a boa vontade, de amplos setores da
opinião pública argentina. Isso não significa que os grupos que se uniram a Uriburu
comungassem com as idéias do General. A princípio, Uriburu catalizou, em razão de
seu prestígio castrense, as forças políticas anti-yrigoyenistas dos radicais, os
conservadores e os socialistas independentes. Durante a fase em que contava ser contra
o governo de Yrigoyen, os setores acima apoiaram Uriburu na guerra contra o governo
constitucional, mas, posteriormente, não avalizaram sua conduta política. Certamente o
uriburismo não representava uma força política homogênea e bem organizada. A frente
opositora se deu pelo consenso anti-liberal, principal ponto de convergência da
oposição. Uriburu não se destacou por grandiosas idéias ou por um notável talento
político. Ao seu lado, atuaram dois importantes intelectuais argentinos, considerados os
40
mais ilustres nacionalistas à época da Revolução de 1930: Leopoldo Lugones e Carlos
Ibarguren.
Leopoldo Lugones, famoso poeta argentino, defendia, na década de 1920, um
nacionalismo militarista, depois de ter transitado pelo anarquismo, pelo socialismo até
pelo liberalismo tradicional. Foi um grande admirador do fascismo italiano e do Estado
forte. A consolidação dessa posição se deu com a Primeira Grande Guerra, quando
passou a defender a idéia de que,
Antes da guerra era possível, ao meu entender, crer na liberdade, na
justiça, na democracia, na igualdade e nas demais ideologias do
racionalismo cristão. Depois daquele experimento não vejo como. O
chefe é o resultado de uma necessidade vital e a força é a única
garantia positiva de viver e, nas raças de combate como a humana, a
suprema razão é o triunfo da força. Se nasce leão ou se nasce ovelha,
ninguém sabe por que. Mas o que nasce leão come o que nasce
ovelha, simplesmente porque nasceu leão (BUCHRUCKER, 1987, p.
52; tradução da autora).
Na lógica de Lugones o poder deveria estar nas mãos do mais forte, sendo a
vontade democrática uma expressão bruta, sem qualquer traço de inteligência. Depois
da Revolução de 1930, Lugones reforçou suas idéias anti-liberais, acusando o
liberalismo de produtor de tendências esquerdizantes. Acreditava que a democracia e
seu postulado básico, governo de todos e para todos, eram uma forma de comunismo.
Em seus livros La patria fuerte e La grande Argentina, ambos editados em 1930,
Lugones atribuiu à Ley Sáenz Peña a qualidade dos parlamentos, compostos por
elementos eleitos por uma massa de eleitores moral e intelectualmente baixos. A teoria
do corporativismo argentino foi desenvolvida por Carlos Ibarguren. Em
pronunciamento na cidade de Córdoba, em 15 de outubro de 1930, sobre o sentido e as
consequências da Revolução de 6 de setembro, no qual defendia a tese da
compatibilidade entre o sistema de representação da opinião pública e a dos grêmios,
Ibarguren afirmava:
no parlamento pode estar representada a opinião pública e permitir-se
também representação aos grêmios e corporações que estão
solidamente estruturadas. A sociedade tem evoluído profundamente
do individualismo democrático em que se inspira o sufrágio universal
à estruturação coletiva que responde a interesses gerais mais
complexos e organizados em forma coerente dentro dos quadros
sociais (ROMERO, 1983, p. 162; tradução da autora).
41
Segundo Romero, a doutrina de Ibarguren era conciliatória, uma vez que evitava
as críticas da opinião pública ao corporativismo e resolvia, dentro dos critérios
conservadores, a questão da representação justa.
Diretamente ligado à agitação nacionalista desde o final da década de 1920 e à
facção do General Uriburu, Ibarguren defendia a idéia de que o Estado constituía o
único mecanismo capaz de atuar rapidamente frente às influências estrangeiras,
conservando a tradição criolla”, em confronto com as influências do racionalismo
britânico e com os comunistas. No Estatuto del Estado Nacionalista”, de autoria de
Ibarguren, os temas que se referiam ao trabalho continham, em seu interior, o matiz
autoritário do tipo de Estado que acabava de ser instalado:
o Estado deve amparar e assegurar o trabalho, sua retribuição
equitativa e constituir solidamente a previsão e a assistência social, de
modo que todos os trabalhadores possam ter uma existência digna
conforme o seu nível de vida, que será verificado periodicamente em
diversas regiões do país. Por intermédio dos respectivos grupos sociais
organizados grêmios, sindicatos, corporações e profissionais liberais
–, o Estado coordenará e regulamentará os interesses patronais e do
trabalho, em paridade de condições, homologará os contratos coletivos
que se acordem, dirimirá as questões que suscitem, a cujo efeito
instituirá a magistratura do trabalho, evitando assim os conflitos e a
chamada luta de classes (tradução da autora).
33
O alcance e a magnitude da avaliação dos nacionalistas argentinos sobre a
conjuntura política do país e a influência que exerceram sobre os governantes
resultaram em um empecilho irremediável para a retomada do poder pela via
democrática. Ao lado de Ibarguren e Lugones, nacionalistas como Ernesto Palacio, Julio
Razusta e Julio Meinvielle foram figuras que se acercaram de Uriburu sob o signo
antiliberal.
33
Estatuto del Estado Nacionalista redigido por Carlos Ibarguren. Citado por Romero (1983, p. 162; sem
data do Estatuto). O pensamento político corporativista e o nacionalismo argentino marcaram parte da
década de 1920, a década de 1930 e a de 1940. Sabemos que a trajetória política de Perón, antes de sua
ascensão ao poder a partir de 1943, esteve muito próxima dos presidentes que governaram o país durante
a “Década Infame”, quando as idéias nacionalistas foram a mais forte tendência da direita. O princípio
que norteava a premência do Estado forte e controlador dos conflitos sociais, e da necessidade de
aplicação da justiça social foi a tônica do pensamento de Ibargurem e a marca do governo de Perón. Não
encontramos nos discursos de Perón nenhuma referência à Ibarguren, mas certamente suas idéias
coincidem com os princípios do último.
42
Uriburu foi reconhecido como chefe dos jovens nacionalistas e dirigente
provisório da controvertida aliança antiyrigoyenista. em 1932, seus atos políticos e
seus discursos provocaram polarizações no interior da frente política que dirigiu antes.
A rigor, desde 1931, o governo de Uriburu não se sustentava: faltava-lhe apoio
significativo dentro do próprio exército, além de ser impopular. Pressionado por todos
os lados, Uriburu se viu na contingência de convocar eleições, nas quais foi consagrado
como presidente constitucional o General Agustín P. Justo, líder de uma frente política
recém-formada, conhecida como La Concordancia”.
34
Com efeito, sob o signo de
práticas políticas condenáveis, como a fraude eleitoral, mais uma vez a democracia
argentina foi ferida pela traiçoeira Revolução de 1930.
Apesar de ter participado da revolução e comandado as Forças Armadas nos dias
que se seguiram, Justo havia renunciado ao cargo em seguida, convertendo-se em
opositor a Uriburu quanto aos objetivos da revolução. As divergências entre os dois
Generais (Uriburu e Justo) tiveram seus limites determinados pela oposição comum ao
retorno do governo radical. Enquanto Uriburu desejava que os militares ficassem
indefinidamente no poder e realizassem uma reestruturação no sistema político, Justo
concebia a presença dos militares por um curto período, para logo devolver o controle
do poder aos civis. Justo atribuía ao exército a função de assegurar a soberania nacional,
de acordo com a Carta de 1853: seu dever era a obediência à Constituição (POTASH,
1971).
35
A estratégia política de Justo foi manter-se à margem do governo Uriburu,
evitando firmar qualquer tipo de compromisso com o governo instalado.
Assumindo a presidência da Argentina em 20 de fevereiro de 1932, Justo
desdenhou o projeto de reforma constitucional que sintetizava os sonhos corporativistas
de Uriburu. O novo Presidente procurou orientar seu governo dentro das normas
constitucionais, apesar dos vícios eleitorais de sua origem e da utilização dos
34
Nas eleições para governadores, em 5 de abril de 1931, na província de Buenos Aires, os radicais
triunfaram, conseguindo impor o princípio da continuidade constitucional e demonstrando o repúdio aos
conservadores. Diante de tal resultado, o governo começou a preparar um vigoroso dispositivo eleitoral
que permitisse o triunfo da candidatura governamental nas eleições convocadas para 8 de novembro de
1931. Entre outras medidas, foi vetada a candidatura do radical Marcelo T. Alvear. Com isso, os radicais
se abstiveram de concorrer às eleições, conclamando seus possíveis eleitores a votar em branco. Apenas a
fraude permitiu levar o General Justo à Presidência da República. Justo foi eleito com o apoio dos
conservadores das províncias, que, abandonando sua velha tradição de autonomia local, formaram o
Partido Democrata Nacional junto aos radicais antipersonalistas e aos socialistas independentes. A frente
política formada por essas diferentes forças ficou conhecida como Concordancia”. A oposição foi
formada pelo Partido Socialista e o Partido Democrata Progressista. Ver Palacio (1954); Rouquié
(1978a).
35
Sobre as diferentes linhas da direita argentina, ver Deutsch e Dolkart (1993) e Ciria (1964).
43
mecanismos fraudulentos para sustentar a frente política em que se apoiava. Uma das
primeiras medidas tomadas por Justo foi tentar construir sua imagem como figura
nacional dissociada dos militares. Com essa atitude, o novo presidente pretendia dar à
Revolução uma fisionomia diferente da idéia de ditadura, inscrita no registro mental
dos argentinos. Justo favoreceu os civis na indicação para os cargos políticos, à exceção
dos ministérios da Guerra e Marinha e da Política da Casa Civil e articulou um corpo de
ministros formado por membros da classe governante tradicional, que haviam
desenvolvido atividades seja como radicais ou como conservadores, mas em ambos os
casos em oposição ao yrigoyerismo e às tendências ditatoriais de Uriburu.
As eleições para presidente estavam previstas para 1938. O General Justo sentiu-
se à vontade para indicar seu ex-ministro da Fazenda, o civil Roberto M. Ortiz como seu
sucessor. Eleito, Ortiz assumiu a presidência da república em fevereiro de 1938, tendo
como vice-presidente o arqui-conservador Ramon S. Castillo, que tinha servido ao
governo de Justo, desde 1936, como ministro da Justiça e da Instrução Pública. Embora
eleitos em um pleito de caráter duvidoso, uma vez instalado no governo, Ortiz, um
liberal-conservador, declarou sua intenção de acabar com o controle das eleições e
procurar uma conciliação com os radicais da UCR.
36
Apesar da intenção de promover a
abertura democrática no país, Ortiz não tinha base de apoio político forte que
defendesse e bancasse uma mudança na máquina administrativa, totalmente manipulada
pelos conservadores.
O aparato militar também não estava sob o controle do presidente, que tentou uma
aproximação com as Forças Armadas, através de concessões e da reorganização do
exército, promovida pela Reforma Orgânica, em decreto de dezembro de 1938. Em
1940, Ortiz fez vários inimigos entre os setores da extrema direita anti-liberal do
Círculo Militar, ao demonstrar publicamente suas simpatias pelos aliados no conflito
internacional, ainda que reiterasse a tradicional política de neutralidade assumida pelos
governos anteriores.
37
Em julho deste mesmo ano, foi obrigado, por motivos de saúde, a
36
Ortiz foi eleito pela Concordancia e, desde 1935, exerceu o cargo de ministro da Fazenda no governo
de Justo. Em 1920, Ortiz foi eleito deputado nacional pela UCR e pertencia à facção radical política anti-
personalista. Uma das medidas políticas mais coerentes que Ortiz tomou em seu governo, com o que
havia proposto após assumir a presidência, foi a deposição, em 1940, do governador de Buenos Aires,
Manuel Fresco, notabilizado pela sua política corporativista e líder da oposição à liberalização política.
37
O Presidente Ortiz tinha o apoio do ministro de guerra Márquez e dos oficiais que compartilhavam das
tradições liberais da Argentina. O presidente propunha uma política nacional de restauração dos métodods
eleitorais limpos e a manutenção da política de neutralidade em relação à guerra na Europa. Demonstrava
claramente seu sentimento de simpatia às vítimas da agressão nazista. Em 14 de maio de 1940, em
44
delegar suas funções ao vice-presidente Ramón Castillo, que assumiu o cargo em 1942,
mediante pedido de demissão do presidente. Com a ascensão de Castillo à presidência, o
sistema político interno tornou-se mais conservador e autoritário, interrompendo
novamente os 'ares democráticos' ensaiados no governo de Ortiz. Logo no início de sua
gestão, Castillo revitalizou a tradição da fraude de seus antecessores.
Em 4 de junho de 1943, quando Castillo se preparava para encaminhar as
eleições que deveriam ser realizadas em 1944, foi surpreendido por um novo golpe
militar: “uma revolução pretoriana análoga a que lhe havia dado origem”.
38
Marcos
Kaplan sintetiza com precisão o período:
Durante toda a “Década Infame”, as Forças Armadas terminaram por
ser mero e único sustentáculo da dominação oligárquica e de seu
governo. (...) A soberba do presidente Ramón Castillo, que pretendeu
relegar às Forças Armadas um papel mais subordinado e instrumental,
precipitou os acontecimentos. Em 4 de junho de 1943, um golpe
militar derrubou o Presidente e instaurou uma outra ditadura militar
que desembocou numa experiência política não prevista pelos líderes
iniciais do movimento. O cenário e os atores estão presentes, a cortina
se abre sobre o drama. O coronel Juan Domingo Perón não tardará a
fazer sua entrada em cena (KAPLAN apud CASANOVA, 1988, p. 40;
tradução da autora).
Nesse dia, o General Arturo Rawson dirigiu aos argentinos um pronunciamento
que justificava a intervenção militar como medida definitiva para por fim à “fraude, à
venalidade e à corrupção”. Esse era o tom do discurso que condenava o sistema político
derrocado por ter levado o povo à prostração moral e à alienação política.
A opinião pública, tanto de esquerda como de direita, que simpatizava com o
movimento faccioso por diferentes motivos, teria que tratar de decifrar o verdadeiro
sentido político do primeiro golpe de Estado sem a participação de nenhum civil na
história da Argentina. Pelas manifestações nas ruas favoráveis ao exército “libertador”,
o golpe configurava-se como a sinalização simbólica do fim de uma época, inaugurada
por Uriburu há 13 anos (ver REAL [1962]; ROUQUIÉ [1978a] e CIRIA [1964]).
mensagem ao Congresso Nacional, o presidente reafirmou a decisão argentina de não reconhecer as
conquistas realizadas mediante a força e a intenção de não interromper as relações diplomáticas com os
países ocupados; “somos neutros”, observou o presidente no início de seu discurso, “mas a neutralidade
argentina não é e nem pode significar uma atitude de absoluta indiferença e insensibilidade” (POTASH,
1971, p. 172; tradução da autora).
38
Para as eleições de 1944, Castillo inclinou-se a apoiar a candidatura de Robustiano Patrón Costa, que
servia a uma tendência pró-Estados Unidos e uma política contrária à neutralidade. Manifestações
operárias, como a de de maio de 1943, organizada pela CGT.2 (socialistas e comunistas), serviram
também para confirmar as suspeitas do grupo do exército de posição marcadamente nazista.
45
Revolução de 1930: interpretações
A interpretação mais tradicional sobre a Revolução de 1930 atribui o golpe
político-militar à crise econômica de 1929. Contrário a essa tese, Peter Smith (1974)
argumenta que os efeitos e as mais importantes repercussões da Grande Depressão
puderam ser constatados depois do golpe político. Esse teria sido, então, impulsionado
pela recusa dos radicais em aceitar dividir o poder com a tradição conservadora. O
divórcio entre o poder político e o poder econômico teria levado a elite agrária a negar a
legitimidade das instituições democráticas e tomar o poder pela força.
David Rock (1975), em oposição à Smith, reafirma a interpretação tradicional.
Rock argumenta que os Radicais limitavam-se a administrar a ordem econômica e social
existente e não tinham nenhum projeto de introduzir mudanças na estrutura social
argentina ou nas relações do país com a economia internacional. No entanto, a situação
econômica dava claros sinais de crise bem antes da Revolução, o que preocupava as
elites políticas e econômicas do país.
Segundo Carlos Waisman, a oposição dos Radicais aos Conservadores inscrevia-
se em matérias de natureza puramente política. Não obstante a Depressão de 1929 tenha
sido seguida pela restauração oligárquica, o autor considera que a quebra da democracia
não foi causada pela Depressão. A crise política argentina teve lugar quando as normas
da democracia liberal começaram a ser institucionalizadas. Para Waisman, retrocedendo
às eleições de 1916, quando da transferência do poder dos Conservadores para os
Radicais, as diferentes forças políticas e sociais estavam apenas começando a
desenvolver formas compartilhadas de poder. Embora esses grupos legitimassem a
ordem social e o sistema político, esse ainda era um tipo pragmático e contingencial de
legitimação. Com base na nova conjuntura política, Waisman (1987) afirma:
a Depressão, que afetou os interesses básicos de todos os grupos da
sociedade, colocou um fim ao processo de democratização. A
deslegitimação não começou na base da estrutura social, mas no seu
topo. Apreensivos com a eficácia das regras democráticas pela
proteção dos seus interesses econômicos e sua hegemonia sobre outras
forças sociais, a classe alta agrária e seu partido conservador
inauguraram um período no qual as regras se basearam na força, na
fraude e na proscrição (p. 85; tradução da autora).
46
No entendimento das forças conservadoras argentinas, desde a primeira eleição de
Yrigoyen, em 1916, o país se encontrava sem governo, e as greves e movimentos
sociais configuravam-se como o sinônimo do caos social e da ausência do Estado. A
classe dominante, desde a I Guerra Mundial, mostrava-se apreensiva com a ameaça do
comunismo, que era associada à presença dos imigrantes.
39
Assim, teria sentido que a
repressão ao comunismo implicasse também uma política de restrição aos imigrantes
que “traziam com eles o vírus da agitação profissional, do anarquismo, sindicalismo e
comunismo” (SORONDO apud WAISMAN, 1987, p. 220).
40
O medo vinha de todo lado. Enquanto a esquerda, com base nos acontecimentos
internacionais, temia pela possibilidade do estabelecimento de uma política de caráter
fascistizante, a direita não suportava conviver com o fantasma do comunismo às portas
do país. Assim, as condições estavam propícias para que as forças contra o governo de
Yrigoyen se unissem, selando o fim da era da “Argentina moderna”. O retrocesso
político com o golpe militar evidenciou a progressiva degradação da democracia que, se
era imperfeita até 1930, também era, no revés da moeda, promissora e viável.
Os trabalhadores e a Revolução de 1930
Preocupados com as idéias antidemocráticas e antiliberais de Uriburu, a direção
da CGT preferiu não arriscar uma divisão no movimento operário recentemente
unificado e afrontar a ira do governo, caso se unisse à oposição política, que se formara
no caos da revolução.
41
Apesar da mitificação de Yrigoyen, alguns setores operários que
o apoiaram estavam desgostosos com a sua incapacidade administrativa, principalmente
após as eleições de 1928. Aliava-se a isso a especificidade do movimento operário
argentino que, até 1930, tinha como princípio o não engajamento político, ao qual se
preferiu dar continuidade.
39
Ver primeiro capítulo desta tese.
40
Cabe mencionar que, mesmo no período liberal do governo de Yrigoyen, o liberalismo era
dimensionado em uma forma diferente do liberalismo europeu. O liberalismo argentino não integrou os
estrangeiros que, no caso, não tinham direito ao voto e à participação política.
41
Em 27 de setembro de 1930, poucas semanas após o golpe, os integrantes da Confederación Obrera
Argentina (COA), controlada pelos socialistas, a Unión Sindical Argentina (USA), controlada pelos
sindicalistas e um grupo de sindicatos autônomos se uniram para estabelecer a organização que ficou
conhecida como Confederación General del Trabajo (CGT). A essa época, o Partido Comunista estava
na ilegalidade. Baily, 62. Ver também Casanova (1984).
47
Matsushita (1983, p. 79) afirma que a Revolução significou para a classe operária
a repressão governamental, a ofensiva capitalista e o crescente desemprego (esse
diretamente ligado aos efeitos da crise de 1929). O novo governo, tão logo instalado,
passou a restringir drasticamente a ação do movimento operário, pondo termo no
diálogo entre o Estado e a classe trabalhadora que com todos os limites apontados,
existiu durante o governo democrático de Yrigoyen.
Na tentativa de evitar um retrocesso nos escassos ganhos políticos, os dirigentes
da CGT publicaram uma declaração expressando sua posição de neutralidade:
a Confederação Geral do Trabalho, órgão representativo das forças
operárias sãs do país, está convencida da obra de renovação
administrativa do governo provisório e disposta a apoiá-la como está
em sua ação institucional e social (...) Esta Confederação também está
convencida de que o governo provisório mantém a vigência da lei
marcial para assegurar a tranqüilidade pública (GALLETTI, 1961,
p. 94; tradução da autora) .
Não obstante o tom de adesão ao governo golpista, a CGT buscava apenas uma
forma de retomar o diálogo com o Estado nas mesmas bases do período anterior à
revolução. Indiferentes às declarações de apoio da central operária, as primeiras
estocadas contra a classe trabalhadora foram desferidas logo após o golpe. A
intervenção nos sindicatos, a ação policial para reprimir as greves, o fechamento dos
sindicatos dirigidos por anarquistas e comunistas e o desrespeito à legislação trabalhista
existente foram os primeiros sinais do tipo de relação que o Estado estava disposto a
manter com a classe trabalhadora. A posição apolítica adotada pela CGT não surtiu
efeito com o novo governo, pouco afeito ao diálogo e que violava abertamente os
direitos constitucionais ao negar-lhes um lugar na sociedade e limitar as conquistas
efetivadas.
Os dirigentes da CGT percebiam que, assim como Uriburu, o presidente Justo,
que representava diferentes grupos da sociedade, também era hostil ao sindicalismo.
Desde sua formação em 1930, com a nítida intenção de evitar disputas sectárias, os
dirigentes da central operária insistiam no caráter independente da organização em
relação aos partidos políticos e grupos ideológicos
42
. No entanto, a constante violação
42
A redação dos estatutos formais da CGT foi elaborada por um Comité Nacional Sindical provisório,
composto por quinze membros do COA (Confederación Obrera Argentina de orientação socialista),
quinze membros do USA (Unión Sindical Argentina de orientação sindicalista) e por dez membros de
sindicatos autônomos. A função do Comitê era redigir os estatutos e convocar uma assembléia
48
dos direitos legais e constitucionais dos trabalhadores produziu sérios conflitos dentro
da CGT. As soluções encontradas entre os sindicalistas e socialistas eram diferentes,
enquanto os primeiros propunham a continuação do programa de gremialismo apolítico,
os socialistas passaram a defender o oposto. Para os últimos, na medida em que se
conservasse a neutralidade política, a organização estaria prestando um serviço de apoio
tácito à coalizão pró-fascista e anti-operária. Por outro lado, o crescimento da taxa de
desemprego e a queda do salário real levavam grande parte dos operários a concordar
com as críticas dos socialistas.
Até o final de 1933, os sindicalistas que controlavam o comitê executivo do
Comité Nacional Sindical mantiveram o programa apolítico e se defendiam
veementemente das acusações socialistas que os acusavam de fascistas e aliados do
governo reacionário. Os conflitos na CGT acirraram-se em 1934, quando os
empregados do comércio passaram a se opor sitematicamente ao Comité Nacional
Sindical, considerando fracos seus conceitos políticos.
Em 1935, sindicatos fortes dirigidos por socialistas, como a Unión Ferroviária, a
Unión Transviaria, a Confederación General de Empleados de Comercio, a Unión de
Obreros Municipales y Trabajadores del Estado, retiraram seu apoio ao Comité
Nacional Sindical (sindicalistas da CGT) e, em 12 de dezembro de 1935, constituíram
um novo comité executivo da CGT. Para os novos dirigentes, o programa do
gremialismo apolítico e de cooperação com o governo foi eficiente em uma gestão
liberal como a de Yrigoyen. na conjuntura pós-30, o isolamento político ou a
neutralidade da CGT resultava ineficaz, senão suicida (BAILY, 1984, p. 67). Segundo
Puiggrós (1968), “os dirigentes da CGT careciam de poderes outorgados pela massa de
afiliados (...) sua origem era tão fraudulenta quanto a do governo de Justo” (p. 205;
tradução da autora).
A influência dos comunistas no movimento operário, tímido na década de 1920,
tinha outra face, em 1935, quando os mesmos concorreram com os sindicalistas pela
direção da CGT. Isso se deveu ao crescimento industrial do país e à presença dos
comunistas na organização dos novos trabalhadores fabris. Em 1936, foi criada a FONC
Federación Obrera Nacional de la Construcción, sob controle dos comunistas, que,
ao afiliar-se à CGT, alterou substantivamente o equilíbrio das forças sindicais.
constituinte para oficializar a organização. Ver Oddone, Gremialismo, 328-330.
49
Advogando a favor da unidade sindical e pela formação de uma frente única do
proletariado, os comunistas criticavam os antigos dirigentes da CGT por sua política
capituladora e anti-unitária.
43
A Segunda Guerra Mundial foi outro tema polêmico na CGT. Para os socialistas,
o problema estava na escolha entre o fascismo ou a democracia, repudiando
energicamente toda a expansão totalitária. Para os comunistas, o problema da guerra era
a rivalidade dos imperialismos; contra essa, propunham uma declaração em repúdio ao
conflito bélico e respaldavam a neutralidade argentina.
44
Em que pese a disputa pelo controle do movimento operário, não foram ações
incisivas dos comunistas ou socialistas que levaram à divisão da CGT em 1943 em duas
facções: CGT 1 e CGT 2. A divisão foi uma conseqüência das rivalidades entre
membros do Partido Socialista na disputa pelo controle da central operária. Uma das
facções, a liderada por José Domenech filiado ao Partido Socialista e secretário geral
da CGT –, que era muito mais leal ao movimento operário que ao partido, encontrou
uma forte oposição dos socialistas líderados por Angel Borlenghi e apoiados pelos
comunistas. Nesse contexto, a CGT 1, liderada por Domenech, foi composta por
grêmios, cuja primeira lealdade era o comprometimento com o movimento operário
independente em relação aos partidos políticos. Foi apoiada, entre outros, pela poderosa
Unión Ferroviaria, pela Unión Transviaria e pelo Sindicato de Cerveceros e passou a
disputar o controle dos sindicatos argentinos com a CGT 2, liderada por Pérez Leirós.
Essa estava inclinada a vincular o movimento operário aos partidos políticos (socialistas
ou comunistas) e foi apoiada pela Unión de Obreros y Empleados del Estado,
Confederación General de Empleados de Comercio e a FONC. Interessa destacar que o
importante sindicato de ferroviários La Fraternidad teve representantes que apoiaram a
CGT 1 e outros, que apoiaram a CGT 2 até julho de 1943, quando foi decidido, no
43
“A maior parte das greves que ocorreu na década de 1930 foram lideradas pelos comunistas. As greves
entre 1931-32 dos operários dos frigoríficos (dirigida por José Peter), do calçado, da madeira, dos
petroleiros de Comodora Rivadavia (dirigida por Rufino Gomez), dos colectivos, dos ferroviários e nas
lutas dos estudantes e da construção civil (dirigidas por Chiarante, Fioravanti, Iscaro e outros),
encontraram em postos dirigentes os comunistas que atuavam através do Comitê de Unidade Sindical
Classista, enquanto a direção da CGT se desinteressava por essas lutas, ou intervinha para evitá-las. Essas
greves culminaram com a grande greve geral de 1936, e nelas estavam incluídas as lutas dos camponeses
pelo preço mínimo das colheitas”. Ver: Esbozo del Partido Comunista de la Argentina, Redactado por la
Comision del Comite Central del Partido Comunista (Buenos Aires, Editorial Anteo, 1947, p. 78;
tradução da autora).
44
Sobre as diferentes posições assumidas pelo PC em consonância com a orientação do Comintern
durante a Segunda Guerra Mundial, ver: Godio (2000) e Poppino (1964; terceira parte).
50
congresso do grêmio, a suspensão da adesão de seus afiliados a qualquer central
operária (MATSUSHITA, 1983, p. 242-249).
45
No final da década de 1930 e no início da década de 1940, o movimento operário
cresceu em tamanho e força. Os dados fornecidos por Murmis e Portantiero, no estudo
sobre as origens do peronismo, mostram que o número total de afiliados nas
organizações gremiais em 1941, de acordo com a Dirección Nacional del Trabajo,
Organización Sindical, contabilizou um total de 441.412 trabalhadores divididos entre a
CGT, a USA (reconstituída fora da CGT em 1937), a FACE e os Autônomos,
perfazendo um total de 356 sindicatos. Dos 441.412 trabalhadores afiliados aos
sindicatos, 144.922 pertenciam à indústria (englobando os ocupados na construção),
154.907 vinculavam-se aos transportes; 117.709 pertenciam ao setor de serviços e
29.674 ligavam-se às atividades primárias e profissões liberais. O setor industrial
contava, em 1941, com 729.731 trabalhadores, dos quais aproximadamente 144.902
estavam afiliados a algum sindicato. A proporção de trabalhadores sindicalizados não é
considerada baixa, dada à obstaculização imposta pelo Estado para a sindicalização. Foi
com base nos dados sobre o crescimento do movimento operário, principalmente a
partir de 1941, que Murmis e Portantiero (1971, p. 79) concluíram que o apoio gremial
ao peronismo foi instrumentado por uma estrutura sindical pré-existente em sua
essência, sem que se pudesse falar de uma descontinuidade com o passado.
Essa era a situação do movimento operário às vésperas do golpe de 1943. À falta
de uma central trabalhadora unida, operante e coerente com seus objetivos, a esquerda
encontrava-se desmobilizada para um confronto com as forças estatais inequivocamente
mais fortes.
O golpe de 1943
Em 1943, o curso da guerra indicava o êxito dos fascistas, estimulando elementos
do exército argentino que apoiavam a ideologia militarista, o corporativismo e a tomada
do poder pela força. A oficialidade que participou do golpe de 4 de junho de 1943 e que,
em grande medida, responsabilizou-se pelo governo entre 1943 e 1945, esteve
profundamente dividida em relação à política exterior e à política interna.
45
Ver também Odone (1949).
51
Em 10 de março de 1943, foi formado, dentro do exército argentino, o Grupo de
Oficiales Unidos (GOU). Essa foi uma sociedade secreta, de tendência nacionalista,
composta inicialmente pelos Tenentes-Coronéis Miguel A. Montes, Juan Carlos
Montes, Urbano y Agustin de la Vega, Emilio Ramirez, Aristobolo e Arturo Saavedra e
Juan Domingo Perón, criada com o propósito de ampliá-la, através do recrutamento
gradativo de todos os chefes e oficiais combatentes do exército. O grupo se propunha a:
impedir a consagração eleitoral do então candidato indicado por Castillo, Patrón Costas,
preservar a intromissão do exército na política, precaver-se de um possível levante
comunista e rejeitar a pressão norte-americana. A organização e o funcionamento do
GOU, segundo seus membros, baseavam-se em um plano muito bem elaborado, que
justificava a intromissão do exército na política como uma “derivação da política
moderna”, por membros dessa organização. Somente o exército poderia prevenir a
sociedade dos profundos males que a política poderia ocasionar. Segundo Rouquié, o
filósofo e ideólogo do GOU foi o nacionalista argentino de ultra-direita Jordán Bruno
Genta.
Em conferência realizada no Círculo Militar, Genta afirmou que “a nação é uma
realidade militar” e “a virtude tem se refugiado nos quartéis”. Os civis não têm nenhum
direito de conduzir os destinos do país e de seus habitantes. Segundo Genta, “a
liberdade é um estado de disciplina (...) o cumprimento do dever (...) não a liberdade
liberal e revolucionária, princípio de morte e da degeneração que permite duvidar de
todos, de Deus, da Pátria, do Estado e da família”. Essa concepção autoritária e anti-
liberal da moral e da vida social alimentava o militarismo.
46
A “camarilha de coronéis”,
conduzida por Juan Domingo Perón, que desejava uma revolução social e econômica,
ganhou o controle do GOU e assumiu o governo depois de Revolução. O GOU incluía
simpatizantes do nazismo dominados pelas idéias nacionalistas, anticomunistas e de
defesa da soberania econômica.
47
Um dos pontos fundamentais seria a consciência da
ameaça do “flagelo vermelho” e da maçonaria (POTASH, 1984, p. 44-60 e p. 101-102).
46
Ver: Revista Militar (junho de 1943), 3-17. In: Rouquié, 1978b, p. 31; tradução da autora).
47
Ver Araújo (1970). A importância dos coronéis não pode ser desprezada no movimento revolucionário
de 1943. Embora tenham sido os Generais (presidentes) os líderes do golpe, uma vasta rede de coronéis
estava por trás da trama. Esses tinham circulação livre na Casa Rosada e no Ministério da Guerra,
enquanto o General Farrell ocupava a pasta. Ainda que à época do golpe, para alguns autores, a força dos
coronéis situava-se no domínio do mito, esta aumentou a tal ritmo que o GOU, logo após a revolução, era
considerado um prolongamento do referido ministério.
52
Em 6 de junho, o General Rawson, que deveria prestar juramento ao governo
como Presidente da República, renunciou por não suportar as pressões políticas,
sobretudo dos militares, perante a impossibilidade de consenso nos nomes que
constituiriam o novo gabinete.
48
O General Pedro P. Ramírez, ex-ministro da Guerra de
Castillo, assumiu o cargo de chefe do governo provisório em 7 de junho. Seu discurso
de posse não mostrou posição diferente daquela de Rawson: persistia a ambiguidade em
relação à política exterior. Em 18 de junho, foi eliminada, por decreto, a designação de
Governo Provisório, título oficial dado ao período de arranjos políticos para a
organização da nova situação. Esse foi o indício de que os militares, no poder, não
pensavam, pelo menos a curto prazo, em devolvê-lo aos civis. Pouco a pouco, liberais,
radicais, comunistas e antifascistas veriam a verdadeira face do golpe.
Interpretações do golpe de 1943
Segundo a interpretação de Rouquié, o golpe de 4 de junho teve, como elemento
detonador, as vicissitudes da sucessão presidencial. A apreensão dos mentores do golpe
residia no que representaria, se eleito, Patrón Costas, apoiado pela ‘Concordancia’ e
candidato de Castillo. Na política interna, Costas daria continuidade à prática de
eleições fraudulentas e, na política externa, corriam rumores de que seu primeiro ato
seria a ruptura das relações diplomáticas com o Eixo. Essas suposições situavam-se no
campo da especulação, dada à ambigüidade política do candidato à presidência. Quanto
ao êxito do golpe, o autor o atribui à confluência de “vários complôs com objetivos
distintos e até mesmo opostos”. O elemento complicador estava no fato de que, assim
como em 1930, “os homens que tomaram o poder estavam de acordo sobre esse
primeiro passo” (ROUQUIÉ, 1978b, p. 16-18; tradução da autora).
Rouquié (1978b) discorda dos autores que defendem a tese do interesse dos
militares ou do Exército na política econômica. Segundo a visão desses autores, os
oficiais “industrialistas” teriam se sublevado para proteger as frágeis indústrias
argentinas, ameaçadas pelo retorno da economia de paz e pela eleição de um presidente
48
duas hipóteses sobre a renúncia de Rawson, que vão além da dificuldade do Presidente na
constituição do gabinete. Segundo a primeira hipótese, o Presidente teria manifestado sua intenção de
romper relações diplomáticas com os países que compunham o Eixo. A segunda hipótese seria
exatamente o contrário, quando um grupo de militares se opôs à nomeação de ministros com simpatia
manifesta pelo Eixo. Basicamente, a questão residia na correlação de forças entre os militares.Ver Ciria
(1964, p. 100).
53
conservador, com forte tendência a defender os interesses agropecuários. Para esses
autores, o exército seria “o tutor de uma burguesia industrial incapaz de defender-se por
si mesma” (ver RAMOS [1957], ARREGUI [1960], PERELMAN [1961] e BELLONI
[1960]). Entretanto, Patrón Costas exercia atividades na indústria açucareira em El
Tabacal, na província de Salta: ele mesmo era um industrial que necessitava de
proteção alfandegária, logo, um candidato adequado. Por outro lado, na plataforma
política apresentada pela Concordancia’, em abril de 1943, estavam incluídas a
proteção à indústria e a criação de um programa de crédito industrial.
Nas palavras de Alberto Ciria (1964, p. 100), a gênese do 4 de junho de 1943 não
obedece a nenhum processo linear. Ali desencantaram-se radicais, conservadores,
comunistas e socialistas.
Segundo Marcos Kaplan (1971, p. 42), os acontecimentos de junho de 1943 e o
novo governo tiveram, a princípio, um sentido puramente militar, de reafirmação do
poder de casta, com uma inspiração ideológica tipo nazi-fascista. O golpe, na realidade,
refletiu a crise política gerada pela revolução de 1930.
Em geral, as explicações sobre o golpe político-militar de junho de 1943 têm
como ponto de partida a crise ideológica e o tipo de política empreendida pelo regime
conservador, em um mundo de guerra. de se ter em conta que o alinhamento das
grandes potências dividiu os setores conservadores que controlavam o Estado. O dilema
residia na incompatibilidade entre os interesses econômicos e culturais, por um lado, e a
posição política e ideológica, por outro. Noutras palavras, enquanto o capitalismo e o
liberalismo constituíam-se em um forte atrativo, o fascínio pelo fascismo era maior.
Ascensão de Perón
Imediatamente após o golpe, foram tomadas severas medidas de repressão contra
os sindicatos comunistas. Esse fato, afirma Bergquist (1990), não foi capaz de deter a
mobilização operária e a capacidade das agremiações marxistas para lanzar costosas e
masivas huelgas (p. 198). Segundo o mesmo autor, nesse cenário de luta social quase
incontrolável foram formuladas as políticas trabalhistas corporativistas, pela facção
peronista dentro da junta militar (GOU). A urgência da implementação de uma política
trabalhista, para enfrentar os problemas das classes desfavorecidas, havia sido
54
manifestada pelo general Ramírez: “Resolver nossos problemas sociais, sobre bases
justas, que sejam garantia de tranquilidade e bem estar coletivos” (La Nación,
8/8/1943).
A política social do governo da revolução caracterizou-se pelo rigor. Tratava-se
de um paternalismo autoritário que exigia a obediência e disciplina dos trabalhadores,
em troca de alguns benefícios sociais. Pelo estatuto sindical de agosto de 1943, ficou
patente o controle que o Estado exerceria sobre os trabalhadores. Os sindicatos
poderiam funcionar com personeria gremial e teriam suas reuniões e manifestações
públicas regulamentadas e fiscalizadas pelo Estado. Em 27 de novembro de 1943, pelo
Decreto 156.074, o Departamiento Nacional del Trabajo, até então uma dependência do
Ministério do Interior, foi transformado em Secretaria de Trabajo y Previsión, sob a
titularidade do Coronel Juan Domingo Perón.
49
Em documentação qualificada pela GOU como “estrictamente confidencial e
secreta”, Potash (1984) detectou em seu conteúdo um estilo de discurso que muito
provavelmente tenha sido elaborado por Perón:
as cidades e os campos estão povoados de lamentações que ninguém
ouve. (...) o operário explorado pelo patrão, (...) A solução está
precisamente na supressão do intermediário político, social e
econômico. Para o qual é necessário que o Estado se converta em
órgão regulador da riqueza, diretor da política e harmonizador social.
(...) Isso implica a extirpação do agitador social (...) (p. 187-188;
tradução da autora).
Tudo indica que esse foi o mote usado por Perón para empreender sua trajetória
política e viabilizar suas intenções pessoais: o medo do avanço comunista, que nunca
ficou velado; pelo contrário, o fantasma vermelho estava em toda parte e em todas as
agrupações clássicas como a Acción Argentina e a Defesa de los Pueblos Libres. Logo,
“perante esse ‘estado de emergência’ haveria de se tomar atitudes firmes contra todo
tipo de pressão” (POTASH, 1984, p. 208-209; tradução da autora).
No dia primeiro de dezembro de 1943, Perón assumiu a Secretaria de Trabajo y
Previsión, base do lançamento de toda sua estratégia política. Perón explorou um novo
tipo de relação com os Gremios de Trabalhadores, incomum no comportamento de um
49
Segundo Bergquist (1988), “Perón nunca ocultou seu temor a um movimento operário com consciência
de classe; e foi muito honesto com os trabalhadores em torno da natureza corporativista de sua filosofia e
o significado de seu programa.” p. 198 ;tradução da autora).
55
militar profissional que exercia uma função simplesmente burocrática. Forjou-se uma
rede de comunicação com o setor sindical, com o objetivo de construir uma imagem da
revolução revestida de grande sensibilidade aos problemas da classe trabalhadora. Para
a concretização dessa política, foi tomada uma série de medidas legislativas, criando-se
novos beneficios sociais para a classe trabalhadora rural e urbana. Os benefícios
existentes foram estendidos a setores que ainda não tinham sido favorecidos, por serem
menos combativos ou menos expressivos, se comparados com os trabalhadores das
ferrovias, frigoríficos e têxteis. A política trabalhista, com sua natureza corporativista e
controladora, era, para Perón, a única forma de impedir a concretização de seu temor:
um movimento operário organizado e atuante.
Ao mesmo tempo em que Perón empreendia sua política, através da Secretaria do
Trabalho, graves conflitos, ocasionados por dissensões internas entre nacionalistas-
GOU e os liberais, minavam o comando do governo golpista. Ramírez permaneceu na
presidência durante oito meses, após os quais, por razões políticas, entregou o cargo ao
vice-presidente provisório, General Edelmiro A. Farrell. Antes, porém, rompeu as
relações com o Eixo através do decreto de 26 de janeiro de 1944.
50
A remoção de
Ramírez (segunda depois do golpe de 4 de junho) deixou claro, para a oposição civil ao
governo (líderada pela UCR), que a volta à normalidade institucional era apenas um
sonho a ser acalentado. Perón destacou-se novamente assumindo a vice-presidência do
país e o Ministério da Guerra, cargos que manteve comitantemente ao da Secretaria do
Trabalho.
Em discurso proferido em primeiro de dezembro de 1943, quando da posse como
secretário do trabalho, Perón demonstrava notável habilidade política:
o Estado Argentino tratará de intensificar o cumprimento de seu dever
social. Todos os conflitos que detêm a atividade industrial ou
comercial afetam profundamente a economia pública e privada, além
de destruir o equilíbrio e a harmonia social, tão necessários para uma
evolução progressista. Nesse sentido, o Estado não pode continuar
sendo um espectador irresoluto e estático... É necessário interpretar a
Secretaria de Trabajo y Previsión como um organismo (...) para
enfrentar a solução dos problemas criados por uma época de evolução
50
Ramírez, conhecido como “o amigo dos coronéis”, foi acusado em 1944 pelos Estados Unidos de
envolvimento com o golpe político-militar liderado pelo Movimento Nacionalista Revolucionário
boliviano, que derrubou o governo em dezembro de 1943, e de esforços para obter armas da Alemanha
nazista. Essas acusações foram responsáveis por sua saída do governo.
56
e cultura de massas, por uma divisão equitativa dos frutos da terra e do
trabalho (La Nación, 2/12/1943; tradução da autora).
Dessa fala infere-se que, no entender de Perón, o Estado seria o mediador dos
conflitos sociais. No dia seguinte, 2 de dezembro de 1943, em mensagem transmitida
pelo rádio, Perón (1944) desferiu oficialmente as primeiras críticas ao governo anterior:
que não realizava atividades sociais como era seu dever fazê-lo (...) O
Estado se mantinha apartado da população trabalhadora. (...) Os
governantes não se davam conta que a indiferença que mostravam
frente ao conflito social servia para difundir a rebelião. (...) Os
operários, por sua parte, ao conseguir o predomínio das agrupações
sindicais, enfrentavam a própria autoridade do Estado, pretendendo
disputar o poder político (p. 29; tradução da autora).
Partindo do princípio de que o poder do Estado deveria aplicar-se mais em favor
do trabalho que do capital, o novo secretário passou a desempenhar funções inusitadas
na Argentina. Convicto da precisão do diagnóstico da situação caótica do país,
proveniente da ausência de virtude pública, Perón pavimentou o caminho que o levaria
à presidência da República.
Para tornar a Argentina um grande país, segundo Perón, a primeira medida seria o
saneamento político. Até 1943, com sua entrada na política, a incompetência teria sido
socialmente condicionada pela imobilidade dos setores dominados e pela astúcia dos
setores dominantes. Com a criação da Secretaria do Trabalho, o país teria dado os
primeiros passos concretos em matéria de legislação social. A segunda medida seria a
tomada de consciência de patrões e empregados, que, ao levarem em conta a dimensão
das pendências sociais, perceberiam que os problemas eram de todos. Nesse contexto,
as empresas poderiam traçar previsões para o futuro desenvolvimento de suas
atividades, pois teriam a garantia de que, se as retribuições e o trato que dessem a seu
pessoal concordassem com as regras de uma convivência saudável, receberiam da parte
do Estado o apoio necessário para a melhoria da economia em geral e, por
conseqüência, o engrandecimento do país. Os operários teriam a garantia de que as
normas do trabalho, estabelecidas nos direitos e deveres de cada um, seriam exigidas
pelas autoridades do trabalho com o maior cuidado, sendo explicitadas severas sanções
ao não cumprimento das mesmas (PERÓN, 1944, p. 14). A terceira medida seria a
erradicação do “vírus” causador da enfermidade das massas operárias, as ideologias
57
estranhas: o comunismo e o socialismo (PERÓN, 1944, p. 19). Equacionadas essas
pendências, o esforço conjunto da sociedade pela paz social e pelo progresso do país,
levaria todos os argentinos a uma única categoria a dos que se esforçariam pela
regeneração da Pátria. Sobre esses pilares, a dominação autoritária foi tomando forma.
Entre os anos de 1943 e 1946, foram editados 111 decretos e leis, enquanto apenas
7 foram editados entre 1940 e 1943. Perón aproximava-se cada vez mais dos sindicatos
organizados, entre os quais procurava apoio para o desenvolvimento de sua política
trabalhista. A Secretaria do Trabajo y Provisión tinha status ministerial, com a
prerrogativa de interferir em todas as secretarias e departamentos provinciais, que
estivessem relacionados com assuntos trabalhistas de ordem regional. Vários
organismos do sistema nacional de saúde e previsão social, como a Comisión de
Desempleo, o Tribunal de Rentas, a Casa de “Ahorro” Postal e a Comisión de Casas
Baratas, foram encampados pela Secretaria. A centralização de poder permitiu que
Perón dirigisse o processo de controle da classe operária, sem precedentes na história do
país.
O artigo 2 do Decreto 156.074 deliberava que todas as agências, serviços,
divisões, escritórios e outras dependências do Departamento Nacional do Trabalho, da
Divisão da Higiene Industrial e Social, Divisão do Bem-estar Social, Leis do Serviço
Público Nacional de Saúde, de Acidentes, a Comissão Nacional de Baixo Custo de
Moradia,o Escritório de Aluguéis, o Escritório de Imigração, Banking Court, a
Comissão Honorária para Ajustamento do Indígena Convertido, a Associação Nacional
para Reduzir Desemprego estavam incorporados ao Ministério. A Secretaria também
tinha controle sobre todas as funções e serviços de conciliação e arbritagem, do
Escritório do Diretor Geral de Estradas de Rodagem e da Comissão Nacional para
Coordenação de Transportes; do Serviço de Saúde Industrial da Inspecção Técnica de
Higiene da Municipalidade de Buenos Aires; da inspeção das sociedades mutuais
formalmente sob controle da Inspeção de Justiça; dos serviços relativos ao trabalho
marítimo, em rios e portos formalmente sob controle da Prefeitura Marítima Geral e
vários outros assuntos relacionados com legislação, inspeção, estatística e censura que
interessassem ao trabalho.
De acordo com o artigo 12 do Decreto 156.074, ficou estabelecido que todos os
departamentos de trabalho, divisões ou escritórios nas Províncias passariam a ser
58
escritórios regionais da Secretaria do Trabalho e Bem-estar. Foi criado o Tribunal do
Trabalho, em 1944, através do Decreto 32.347, no qual o Estado, como instância
superior, tinha autoridade nas disputas e conflitos trabalhistas.
51
Em abril de 1944, a lei sobre feriado remunerado incluiu todos os feriados
públicos, ditaram-se normas sobre o trabalho do menor, regulamentaram-se a jornada de
trabalho e suas condições para empregados bancários, telegrafistas, padeiros,
empregados hospitalares e outros grupos. Também foram regulamentados, no mês que
precedeu o primeiro de maio (dia do trabalho), os reajustes salariais de acordo com a
inflação e a Direção Geral de Assistência e Provisão Social para Ferroviários (dia l7).
Ainda em abril foram anunciados os termos de um empréstimo com o qual a Secretaria
construiria casas populares e, no dia 22 do mesmo mês, modificou-se a lei que regia os
acidentes de trabalho.
52
O poder de intervenção da Secretaria foi a base angular que deu sustentação à
relação entre Perón e os sindicatos. Resultaria daí o desenvolvimento de uma política
particular do secretário, independente do governo do presidente Ramírez. Sob o lema da
'harmonia e proteção' e através dos orgãos estatais, Perón controlou políticamente a
classe operária. No 1º de maio de 1944, em discurso à Nação, Perón afirmava:
estamos buscando a unidade de todos os Argentinos (...) de modo que
o capital, em harmonia com o trabalho, possa formar a base de nosso
engrandecimento industrial e bem-estar coletivo. (...) O exército não
abandonou seus quartéis movido por um sentimento de ambição. Foi o
clamor da rua, da oficina, e do campo que chegou até ele, para golpear
a suas portas em demanda de justiça (PERÓN, 1944, p. 53).
Nesse momento, ganhou pleno sentido o sindicalismo como base de apoio ao
governo (catalizador das tensões sociais) e à legislação social. Perón buscava não
controlar a classe operária como também garantir seu apoio ao bloco de poder que se
constituía.
51
Esses dados foram extraídos do Pan American Union, Laws of Argentina (Washington, D. D. 1951, p.
126. In: ZAMOR, Jean Claude Garcia. Public administration and social changes in Argentina:
1943/1955. Rio de Janeiro, 1968).
52
Ibid. Alguns outros Decretos-lei, desse período até 1946, que o Parlamento posteriormente ratificou,
foram: o estatuto do Peão do Campo (1944), a Lei de Proteção à Maternidade (1944), Instituto Nacional
de Remunerações (12/1945), Aprendizagem, Trabalho e Regime de Salários para Menores (12/1945),
Estatuto para o Pessoal Administrativo de Empresas Periódicas (maio/1946), Estatuto dos Operários do
Petróleo (maio/1946), Estatuto dos Empregados Bancários (junho/1946) e Férias Anuais para Todos os
Trabalhadores (janeiro/1946).
59
A base política de Perón, no plano sindical, concentrou-se fundamentalmente nas
organizações que constituíam a CGT1 e a USA. As atividades da CGT2, formada
principalmente por socialistas, foram proibidas por decreto em julho de 1943, enquanto
a CGT1 recebia inúmeras vantagens.
53
Os setores sindicais mais politizados, que não se
mostraram dispostos a colaborar com a Secretaria do novo governo, tiveram suas
entidades fechadas e colocadas sob intervenção do Estado. Foram criadas várias
associações tendo em vista o esvaziamento daquelas que se opunham a Perón, enquanto
a CGT1 tornava-se, para o secretário, um instrumento de importância vital na
viabilização, a partir do aparelho de Estado, do controle e cooptação dos demais
sindicatos.
54
A política social do governo foi violentamente criticada por entidades patronais
integrantes da Câmara do Comércio e da União Industrial que, em 16 de junho de 1945,
publicaram o “Manifesto das Forças Vivas”.
55
Aos protestos das associações patronais à
política social oficial, seguia-se o questionamento da legalidade das medidas de reforma
na legislação trabalhista. O texto, que foi publicado no jornal La Nación de 12 de junho
de 1945, atesta a apreensão das classes proprietárias perante o ambiente de agitação
social que danificava a disciplina e o esforço produtivo da coletividade.
o clima de descontentamento que se origina é instigado desde as
esferas oficiais. Longe estamos de negar a existência de um genuíno
problema social, de caráter permanente e universal, cuja solução
pode chegar através da honesta colaboração das partes e sob a serena
supervisão do Estado. Nossa oposição é contra a criação de um clima
de suspeita, provocação e rebeldia, que estimula o ressentimento e
gera reclamações permanentes. (...) Desde a criação da Secretaria do
Trabalho, este espírito e o sentido unilateral das decisões, justificadas
pela necessidade de extirpar o comunismo, têm interferido na
resolução dos problemas sociais. Esta situação é ainda mais
lamentável quando se considera que é o produto de uma vontade
53
A CGT2 foi extinta por ser considerada de esquerda. La Nación, 14 de junho de 1943.
54
Ao analisar o Brasil no pré-35, quando houve uma grande campanha do Estado para que os sindicatos
se vinculassem ao Ministério do Trabalho, Vianna comenta: “No pré-35, entre o par
mobilização/desmobilização, esse último é que se reveste de caráter fundamental no trânsito para a
estrutura corporativa. Para assumir a ‘representação’ das classes subalternas, primeiro o Estado teria de
liquidar suas organizações independentes, tendo reprimido seus líderes, cooptado outros e corrompido a
uns tantos. A partir daí implementa-se a nova política, combinação de coerção e de manipulação do
consenso através da via corporativa, facilitada em parte pela mudança na composição da classe operária,
com o recrutamento maciço de um contingente dócil à mobilização ideologizada praticada pelo Estado”
(VIANNA, 1976, p. 142).
55
O Manifesto foi elaborado pela Bolsa de Comércio, Câmara Argentina de Comércio, Confederação
Argentina de Comércio, Indústria e Produção, Bolsa de Cereais, Câmara de Grandes Feiras e Anexos e
Camara de Exportadores.
60
pessoal, que é sempre transitória (La Nación, 12/6/1945, p. 2; tradução
da autora).
A elite agrária, através de La Sociedad Rural, também se pronunciou contra a
promulgação do chamado Estatuto del Peón. Os fundamentos da ordem existentes,
segundo a Sociedade Rural, eram ameaçados pelas reformas realizadas pelo Secretário
do Trabalho (Perón). A nova legislação, segundo um porta-voz da Sociedade Rural,
“haverá de semear o germe da desordem social, ao inculcar em pessoas de cultura
limitada aspirações irrealizáveis e colocar o jornaleiro acima do patrão em comodidades
e remuneração” (TORRE, 1988, p. 124; tradução da autora).
Assim, ficavam claramente definidas a insatisfação e a ruptura das classes
patronais com o governo. Segundo Waisman,
o plano de Perón acarretava mais do que a “socialização” de uma
fração da produção previamente apropriada pelas classes agrárias e
industriais mais altas. Também envolvia uma redistribuição mais
permanente do poder político. As elites econômicas foram obrigadas a
contribuir para a institucionalização deste Estado independente, ao
qual viam mais como um instrumento de um indivíduo, Perón, do que
como um mecanismo neutro que regularia o conflito social
(WAISMAN, 1987, p. 175; tradução da autora).
A burguesia industrial e a oligarquia mostravam o desagrado com a política de
Perón por estarem convictas de que a aplicação das leis trabalhistas incidiria
negativamente na acumulação de capitais. Mas, a essa altura, qualquer outro projeto de
dominação, que previsse a exclusão de Perón no poder, tornava-se fadado ao fracasso,
dada à influência que ele exercia sobre o General Farrell, que substituíra o presidente
Ramírez e pelo encaminhamento irrevogável da política trabalhista.
Perón declarava sua posição em relação à classe dominante através da rádio
oficial, na busca do apoio popular em nome da defesa da Revolução de Junho. Em 20 de
julho de 1945, foi publicado no jornal La Prensa um discurso no qual Perón anunciou o
nascimento de um novo mundo pela “afirmação dos direitos, das responsabilidades e da
intervenção das massas operárias na solução dos problemas fundamentais. (...) A
Secretaria do Trabalho seria, no caso, a fonte da passagem da dominação da burguesia à
dominação das massas” (La Prensa, 20/6/1945; tradução da autora). Apesar do tom
radical do discurso, vale lembrar que essa fala, apesar de impactante, está longe de
61
conter um significado político revolucionário. Perón movia-se num espaço paradoxal
onde necessitava, simultaneamente, enfatizar a política trabalhista e indispor-se o
mínimo com os patrões.
A reação dos sindicalistas ao Manifesto foi imediata, culminando no grande
comício de 12 de julho de 1945, com a participação da CGT.1, cuja chamada era: “Em
defesa das melhorias obtidas por intermédio da Secretaria do Trabalho e Previdência”.
Em 24 de junho de 1945, a manchete de La Prensa anunciava à Nação:
os trabalhadores fazem escutar sua voz. Afirmava o periódico: A
propósito de recentes declarações de entidades patronais, que têm
criado incerteza e mal-estar nas classes trabalhadoras, os grêmios que
subscrevem a presente, reunidos espontaneamente, nessa oportunidade
resolveram reafirmar e fazer públicas outras adesões formuladas à
“obra humana” e definitiva de política social, iniciada e levada à
prática pela Secretaria de Trabajo y Provisión (tradução da autora)
56
.
Candido Gregorio, integrante do Consejo Directivo de la Unión Obrera Textil,
enfatizou o sentido e conteúdo da manifestação, afirmando:
a classe trabalhadora e os trabalhadores têxteis não podem permanecer
indiferentes ante à situação criada, por entender que nesta emergência
o aparente ataque à Secretaria de Trabajo y Previsión e suas atuais
autoridades reflexas nas “Forças Vivas” demonstram o desejo de
manter um estado de coisas com o conceito arbitrário que sempre tem
sustentado as mesmas (La Prensa, 26/6/1945; tradução da autora).
O Ato Público, de 12 de julho de 1945, foi uma prova do vigor dos trabalhadores
pela luta pelos direitos sociais. O Ato refletiu o estado de espírito dos trabalhadores,
56
No manifesto de 12 de julho, observa-se como os operários foram gradativamente
incorporando às medidas governamentais, que, mesmo atreladas ao Estado, atendiam
aos seus interesses. Segue a relação das primeiras associações que se manifestaram
contra as “Forças Vivas”: Confederação de Empregados Recebedores de Grãos e
Anexos; Federação dos Operários e Empregados Telefônicos; Associação Argentina de
Telegrafistas, Radiotelegrafistas e afins da Ação Sanitária e Amparo Social; Sindicato
de Operários do Frigorífico La Negra, Anglo, Ciabasa e Cuatreros; Associação
Bancária; Confederação Geral dos Empregados do Comércio; Associação de Operários
de Empresas de Seguro; Associação Pessoal de Hospitais e Sanatórios Particulares;
União Transviaria; Sindicato Operário da Indústria do Vidro; Operários da Indústria da
Carne. Em 26 de junho de 1945, novas adesões foram somadas às primeiras: Federação
de Operários Ladrilheiros e Anexos; União Operária Metalúrgica; e União Operária
Têxtil.
62
através de uma operação que pretendia exorcizar os demônios dos governos anteriores e
da reacionária classe patronal. O orador que mereceu maior destaque foi Angel
Borlenghi, representante dos empregados do comércio e secretário da Comisión de
Unidade Sindical. Na defesa do sindicalismo, Borlenghi criticou a reação capitalista e
defendeu veementemente a manutenção dos direitos conquistados pelos
trabalhadores. Quanto à questão da participação política, Borlenghi declarou:
não estamos conformados que se fale em nosso nome, vamos falar por
nós mesmos. E temos claro que o movimento sindical argentino,
colocando-se à altura dos mais adiantados do mundo, gravita na
solução dos problemas políticos, econômicos e constitucionais da
república e com absoluta independência (La Prensa, 12/6/1945;
tradução da autora).
Segundo Susana Pont (1984),
o conteúdo do discurso tinha um sentido mais político que sindical,
mas ali estavam as evidências de como o movimento operário
entendia a relação entre política e sindicatos que havia começado a ter
relevância a partir de 1940, aproximadamente, adquirindo real
gravitação quando as condições políticas, econômicas e gremiais se
fizeram favoráveis a partir de 1943. Desse modo, a autonomia política
converteu-se em uma reivindicação importante para o movimento
operário organizado e no instrumento mais efetivo para fortalecer e
manter a autonomia sindical (p. 34; tradução da autora).
Foi a partir do manifesto das “Forças Vivas” que a classe operária organizada
pôde compreender a necessidade de criar um porta-voz político que garantisse, em nível
nacional, a defesa de seus interesses de classe (PONT, 1984, p. 37; tradução da autora).
A idéia da ação política do movimento sindical surgiu, nesse momento, como uma
necessidade histórica, aos olhos da classe operária argentina. Diante da política social
desenvolvida pela Secretaria de Trabalho e Previsão, um novo comportamento foi
adotado pela classe operária, com o objetivo de preservar os benefícios conquistados.
57
O direito de exercer atividades políticas foi obtido pelos sindicatos através do Decreto
23.582, sancionado em 2 de outubro de 1945, que, entre outros itens, determinava:
57
Segundo Foucault (2000), “o poder está localizado no aparelho de Estado e nada mudará na sociedade
se os mecanismos de poder que funcionam fora, abaixo, ao lado dos aparelhos de Estado no nível muito
mais elementar, quotidiano, não forem modificados” (p. 149-150). Ver também: Foulcault (1999).
63
o direito das organizações sindicais participarem circunstancialmente
em atividades políticas sempre que seja resolvido por uma assembléia
geral ou congresso. Só no caso da Associação Profissional decidir pela
participação permanente e contínua na atividade política deverá
ajustar-se às leis, decretos e regulamentos que regem os partidos
políticos. A Associação Profissional poderá constituir-se livremente
sem necessidade de autorização prévia sempre que seu objetivo não
seja contrário à moral, às leis e às instituições fundamentais da
nação.
58
Esse foi um ganho importante para os trabalhadores, por assegurar a liberdade do
direito do exercício de atividades políticas. No entanto, o decreto, que funcionou como
um amortecedor dos conflitos sociais, impôs os limites desse direito, definidos pela
fidelidade à moral, às leis, à ordem social e às intituições fundamentais da nação. Esses
dispositivos, de cunho autoritário, possibilitaram ao Estado impedir a formação de um
sindicalismo autônomo e independente. Com efeito, as organizações sindicais poderiam
ser livremente constituídas, mas não sobreviveriam no caso de qualquer transgressão à
concessão de privilégios patrocinados pelo Estado.
Marcos Kaplan (1971) afirma que:
a base do peronismo consistiu em utilizar como instrumentos o apoio
das Forças Armadas, da Igreja, da polícia, da burocracia governamental
para conquistar a adesão maciça dos operários industriais e, em geral,
das massas pobres do campo e das cidades (p. 44; tradução da autora).
Kaplan está entre os autores que reconhecem o surgimento de um novo
sindicalismo de massas, dependente do Estado, em substituição às velhas burocracias
sindicais de orientação socialista (transporte) e comunista (indústria), que foram
deslocadas da direção das centrais trabalhadoras pela repressão ou suborno.
Para Ernest Gonzalez (1974, p. 23), o movimento operário anterior a Perón foi,
em organização e concentração das associações de trabalhadores, inexpresssivo. Os
sindicatos tinham vida efêmera e constituíram-se, em geral, em conjunturas conflitantes.
Segundo o autor, o sindicalismo daquela época ostentava a marca do reformismo. As
correntes anarquistas do princípio do século haviam se desarticulado (medidas do
governo contribuíram para isso), dando lugar aos socialistas, comunistas e sindicalistas
58
O Decreto 23.582 foi inspirado no modelo corporativista condensado na Carta del Lavoro da Itália de
Mussolini e estava em sintonia com a preocupação oficial de colocar a organização dos interesses sociais
sob a supervisão do Estado. Ver Doyon (apud TORRE, 2002, p. 370).
64
“puros”. O principal objetivo da luta operária era a reivindicação econômica, sem
nenhuma perspectiva política ou revolucionária.
Murmis e Portantiero, ao analisarem as origens do peronismo, assinalam que o
primeiro aspecto que o distingue de outros processos “germinativos de movimentos
populistas” é a importância que o sindicalismo tem no peronismo como fator
constituinte. Embora esse aspecto seja reconhecido por todos os observadores do
fenômeno, segundo Murmis e Portantiero eles enfatizam notadamente as diferenças
(psico-sociais) entre sindicatos novos e velhos e entendem o processo como de
manipulação das massas operárias por uma elite alheia à classe, que cresce e se
desenvolve sobre um vazio de organização proletária autônoma. Afirmam que não
havia, no enorme contingente de novos trabalhadores, recém-urbanizados, uma tradição
associativa nem uma consciência de autonomia.
59
Consideram que o apoio das massas
ao populismo seria em função da debilidade do sindicalismo anterior a Perón, e de um
súbito crescimento da nova classe operária que, com seus novos dirigentes e suas novas
organizações, substituiu os velhos dirigentes e os estreitos marcos associativos então
existentes, para se expressar através de canais de participação criados pelo Estado
(MURMIS, PORTANTIERO, 1971, p. 74-75).
Murmis e Portantiero discordam dessa tese e afirmam que, no processo da gênese
do peronismo, a participação das antigas organizações gremiais chegou a ser
fundamental nos sindicatos da CGT e foi muito atuante também na formação do Partido
Laborista. Os autores não descartam o papel cumprido pelos operários recém-
incorporados às indústrias e aos grêmios em 1943. Eles não concordam que tenha
havido uma divisão interna da classe operária, mas sim uma unidade como setor social
submetido à acumulação capitalista, sem distribuição dos lucros, no processo de
industrialização a partir de 1930. Portanto, se antes de 1943, desenvolveu-se na
sociedade argentina um processo de crescimento capitalista, a classe operária pôde,
nesse período, acumular reivindicações que foram atendidas entre 1944 e 1946 por
definidas políticas estatais. Foi sobre esta base que a maioria dos sindicatos antigos e
novos, embora não abrindo mão de suas pretensões tradicionais de autonomia e
59
Thompson (1966, p. 9; tradução da autora) entende classe como “(...) um fenômeno histórico. Eu não
vejo classe como uma estrutura, nem mesmo como uma categoria, mas com alguma coisa que de fato
acontece (e pode ser mostrado que tem acontecido) nas relações humanas”.
65
independência frente a outros setores sociais, articulou uma política de alianças com o
aparato estatal.
Os autores são enfáticos em afirmar que “o apoio gremial ao populismo foi
instrumentado por uma estrutura sindical no essencial pré-existente, sem que se possa
falar em uma descontinuidade marcada com o passado imediato.” (MURMIS e
PORTANTIERO, 1971, p.79)
Perón e o 17 de Outubro de 1945
Em 9 de outubro de 1945, Perón foi deposto dos cargos públicos que ocupava por
um grupo de oficiais que se opunha à sua crescente influência no regime militar, para
retornar, triunfalmente, no dia 17 de outubro, em conseqüência de grande mobilização
popular levada a efeito pelos líderes sindicais. Se a jornada de 9 de outubro, quando
alijado do poder e levado à ilha Martin Garcia, significou a vitória dos setores “civis”
ou anti-Peronistas, o 17 de outubro significou a vitória de Perón e a força que o
contingente operário assumia no campo político. A ampla ressonância do 17 de outubro
na Argentina foi um desdobramento das posições assumidas pelos trabalhadores em
resposta ao “Manifesto das Forças Vivas” de 12 de junho de 1945. Ao par disso, a
classe operária reforçava e conferia legitimidade a um pacto cada vez mais explícito
com Perón.
Para os sindicalistas, o caminho de retrocesso na política trabalhista era
inconcebível. Em 1945, eles reconheciam os benefícios sociais promovidos pela
Secretaria do Trabalho e mostravam-se dispostos a aceitar a assistência do Estado,
qualquer que fosse sua origem para obter resultados positivos em suas reivindicações
(TORRE, 1988, p. 34-35).
Segundo Torre, a questão da posição apolítica defendida pelas organizações
operárias modificou-se depois da Revolução de Junho de 1943. Em que pese o
distanciamento para a consolidação de sistema democrático formal e o caráter
fascitizante do novo regime militar, esse se mostrava mais aberto à questão social que
os governos que o precederam, tanto antes como depois da revolução de 1930. Assim,
mostra Torre (1988),
66
a inovação importante consiste em que, ao apelar à dita tradição (de
prescendência política), os dirigentes sindicais não se propõem a
abandonar o terreno dos enfrentamentos, mas a buscar um lugar
autônomo em meio à crescente polarização política (p. 34-35;
tradução da autora).
Entre julho e outubro de 1945, as organizações operárias estiveram ausentes das
“ruas”, dificultando a possibilidade de se tornarem uma terceira força entre a elite
militar e os setores de oposição. Apoiar abertamente Perón implicava identificar-se
definitivamente com o mesmo regime militar. Todo esse período foi marcado por uma
intranquilidade e insegurança, que implicaram uma certa precaução natural dos
trabalhadores. As mudanças ocorriam em ritmo acelerado e, ainda que favorável às
classes desassistidas, o projeto político de Perón ainda era uma incógnita para eles. A
preocupação dos dirigentes sindicais, frente à força que adquiria a ofensiva opositora,
deixava-lhes como única alternativa pender para o lado ganhador. Pelo menos naquele
momento Perón era esse lado. Entende-se que o apoio a Perón foi mais que uma escolha
ou contingência: foi um cálculo político.
Frente a essa posição, os socialistas foram críticos ferrenhos da CGT, acusando-a
de colaboracionista e estimulando seus filiados a rechaçarem as reformas promulgadas
pela Secretaria do Trabalho, por considerá-las anticonstitucionais. A ordem era o
desligamento em massa dos trabalhadores da central operária (CGT), cunhada com o
espírito da política de direita.
Curiosamente, os comunistas, severamente perseguidos por Perón, declinaram de
uma atitude radical e assumiram outra, parcialmente colaboracionista, uma vez que
constatavam os ganhos sociais alcançados pelos trabalhadores. Sob rigorosas acusações
dos socialistas e de sindicatos como La Fraternidad, La Unión Obrera Textil e o
Sindicato dos Calçados que se retiraram da CGT, o PC se defendia, reiterando a função
histórica que cumpria como o legítimo defensor dos interesses da classe trabalhadora.
O jornal comunista La Orientación publicou, em 1946, a discussão de Rubens
Iscaro sobre a posição do Partido Comunista em relação à importância da “unidade do
movimento operário argentino e à necessidade de sua materialização a curto prazo em
torno de uma central operária única: a CGT”. Afirmava Iscaro:
67
apoiamos a dissolução dos velhos sindicatos de gloriosa tradição para
facilitar sua unidade com organizações paralelas: por isso, propomos,
sem deixar de assinalar ausência do espírito democrático de alguns
dirigentes, a necessidade de concretizar em torno da CGT a unidade
do movimento operário argentino (p.7; tradução da autora).
Respondeu também aos socialistas:
Frente a essa política clara e realista que consulta os interesses mais
apreciados da classe operária e do povo, que são os interesses do país,
contrastam a atitude e as declarações da comissão socialista de
coordenação gremial quando qualifica de ‘manobras comunistas’
nossa política sindical. (...) Nem antes nem depois de 24 de fevereiro
[eleição de Perón] militantes socialistas que dirigiam organizações
sindicais contribuíram em algo para consolidar ou favorecer a unidade
da classe trabalhadora (La Orientación, 18/9/1946, p. 7; tradução da
autora).
Dentro desse quadro, a verdadeira disputa era pela marca trabalhista; por ela
brigavam comunistas, socialistas e Perón, o único líder nacional sem nenhum adversário
que diluísse seu poder. Nem mesmo os apelos dos tradicionais partidos de esquerda
alteravam a centralidade da figura e do poder carismático de Perón.
60
Ciente da resistência patronal à política trabalhista e sendo ele, Perón, o fundador
do trabalhismo e criador da legislação trabalhista, o manifesto das “Forças Vivas” podia
representar um entrave de ordem operacional imprevisível. Percorrendo o caminho
contrário, ao invés de pressionar os sindicatos a tomar uma posição a seu favor, Perón
estrategicamente redobrou as concessões trabalhistas, enfrentando o desagrado da classe
patronal. O Decreto 23.842 de 1945, sobre as Associações Profissionais, se constituía
em um novo estatuto sindical e incorporava as várias demandas dos dirigentes dos
trabalhadores, foi uma das medidas adotadas para dar prosseguimento à sua missão de
pôr ordem no caos social.
A queda de Perón em 9 de outubro e sua gloriosa volta no 17 de outubrom dois
sentidos: um, para Perón e outro, para a classe operária. Para Perón, o terreno para a
futura eleição à presidência da República estava pavimentado. No discurso pronunciado
pelo então chefe do Poder Executivo, General Farrell, no dia 17, para a multidão de
trabalhadores presentes na Praça de Maio, não faltaram palavras para referendar o poder
60
Sobre partido e carisma, ver Panebianco (1988).
68
de Perón e reconhecer sua importância para a classe trabalhadora. Declarou o
Presidente:
trabalhadores: vos falo outra vez com a profunda emoção que pode
sentir o presidente da Nação ante uma multidão como esta que está
congregada hoje na praça. Outra vez está junto a vocês o homem que,
com sua dedicação e empenho, tem sabido ganhar o coração de todos:
o coronel Perón. De acordo com o pedido que me foi feito, quero
comunicar que o gabinete atual renunciou. O senhor Tenente Coronel
Mercante será designado Secretário do Trabalho e Previsão. Atenção
senhores: de acordo com a vontade dos senhores, o governo não será
entregue à Suprema Corte de Justiça Nacional. Estão sendo estudadas
e consideradas, nas formas mais contrapostas possíveis para os
trabalhadores, as últimas petições apresentadas. O governo necessita
tranquilidade. Para isso, lhes pede trabalho, dedicação, que estejam
unidos, mas sempre respeitando aos demais, porque assim como hoje,
serão mais dignos que qualquer outro grupo cidadão. Finalmente,
desejo que cada um tenha sua convicção de que, com a união e o
trabalho, havemos de chegar a obter a mais completa vitória da classe
humilde que são os trabalhadores. Nada mais (La Prensa, 18/10/1945,
p. 7; tradução da autora).
Em seguida, sob grande aclamação do público, falou o ex-vice-presidente Coronel
Perón:
trabalhadores: fazem quase dois anos que destes mesmos balcões disse
que tinha três honras em minha vida: a de ser soldado, a de ser patriota
e a de ser o primeiro trabalhador argentino (...). Este é o povo sofrido
que representa a dor da terra mãe, que temos de reivindicar. É o povo
que é a tria. (...) Desde hoje sentirei um verdadeiro orgulho de ser
argentino, porque interpreto este movimento coletivo como o
renascimento de uma consciência dos trabalhadores, que é o único que
pode fazer grande e imortal a pátria. (...) dois anos que pedi
confiança. Muitos me disseram que esse povo a que eu sacrifiquei
minhas honras de dia e noite iria me trair. Que saibam hoje os
indignos farsantes que este povo não engana a quem os ajuda. (...) Que
seja essa unidade indestrutível e infinita, porque nosso povo não
somente forma essa unidade como também sabe diferentemente
defendê-la (...) (La Prensa, 18/10/1945, p. 7; tradução da autora).
Com efeito, o 17 de outubro conferiu aos trabalhadores a participação social que
almejavam, daí a percepção da necessidade de unir-se e constituir uma força política
nacional em nome dos interesses da classe.
61
Com o 17 de outubro, marcado por um alto
61
As manifestações dos trabalhadores, no 17 de outubro, anteciparam-se à data prevista pela CGT. No dia
18 de outubro de 1945, a CGT declarou à imprensa a seguinte nota: “O Comitê Central da CGT que se
encontrava reunido em sessão permanente vários dias resolveu ontem declarar greve geral dos
69
grau de espontaneidade e uma certa independência com relação à CGT, cresceu entre os
trabalhadores o sentimento de identificação nacional, reforçando o poder de Perón que,
a partir de então, passou a ter o controle sobre os militares. Esses, à alternativa da
eclosão de uma guerra civil, preferiram trazer Perón de volta ao poder.
62
um dado importante no 17 de outubro que precisa ser destacado. Embora não
possa ser negado o papel da CGT no movimento, este saiu do controle da central
trabalhadores de todo país por 24 horas, paroque se cumprirá na data com o propósito de exteriorizar o
pensamento da classe operária sobre o momento excepcional que vive a Nação. O citado organismo
como razões do momento disposto o seguinte:
1. Contra a entrega do goveno à Suprema Corte e contra todo gabinete da oligarquia.
2. Formação de um governo que seja uma garantia da democracia e liberdade para o país e consulte
a opinião das organizações sindicais dos trabalhadores.
3. Realização de eleições livres em data fixada.
4. Decreto de estado de sítio, pela liberdade de todos os presos civis e militares que tenham se
distinguido por suas claras e firmes convicções democráticas e por sua identificação com a classe
operária.
5. Manutenção das conquistas sociais e ampliação das mesmas. Aplicação da regulamentação das
associações profissionais de trabalhadores.
6. Que se termine de firmar imediatamente o decreto-lei sobre aumento de soldos e jornais, salário
mínimo básico e móvel participação nos lucros e que se resolva o problema agrário mediante o
repartimento da terra ao que a trabalha e o cumprimento integral do estatuto do peão” (La Prensa,
18/10/1945, p. 8; tradução da autora).
62
Ao lado da chamada para a greve geral para o dia 18 de Outubro, feita pela CGT, o jornal La Prensa
publicou uma nota de entidades operárias independentes, que se mostravam contrárias ao movimento.
Cito abaixo o texto de contestação dessas entidades: “Todas essas organizações tanto as independentes
que se mantêm à margem de toda orientação sindical, política ou idearia, como as devidas à Federação
Operária Argentina (FOA) ou à União Operária Local, fizeram ademais manifestações repudiando os
sucessos ocorridos à véspera, assim como as incidências resgistradas em dias anteriores na Praça San
Martin e lugares centrais da cidade. Em geral, essas entidades qualificam duramente tais fatos que exigem
o imediato retorno à normalidade constitucional com o império de um governo de ordem, de
inquestionável orientação democrática e se possível encabeçada pelo presidente da Suprema Corte da
Justiça da Nação”. Subscrevem essas declarações: Federación Obrera Argentina, Unión Obrera Local,
Federación Obrera Nacional de La Constituicción, Federación Obrera de la Industria de la Carne,
Sindicato Obreros Unidos del Puerto de la Capital, Sindicato de Chóferes de Camiones y afines,
Comissión Unitaria Central de los Obreros y Empleados de la Corporación de Transportes de la Ciudad
de Buenos Aires, Unión Obrera Textil, Obreros de las Barracas, Mercado Central de Frutas, Sacoderos
de Sarras y Anexos, Sindicato Obrero Gastronomico aderido a la Federación Obrera Gastronomica
Regional Argentina, Sindicato Obrero de la Industria del Pan, Comisión de Empleados de Comércio
Democráticos, Comisión Reorganizadora de los Trabajadores del Estado, Federación Gráfica
Bonaerense, Sindicato Obrero de la Industria Metalurgica, Sindicato Unión de Obreros e Madera,
Unión Obreros Curtidores y Anexos, Sindicato Obrero de la Industria del Calzados, Comisión de Unidad
Nacional de Obreros de la Industria de la Madera, Sindicato Autonomo de Luz y Fuerza, etc. Ver: La
Prensa (18/10/1945, p. 8). No mesmo dia 17 de outubro, o jornal antiperonista Critica denunciava as
manobras peronistas na propaganda da greve geral, chamada pela CGT para o dia 18 do mesmo mês. O
jornal informava sobre os “comunicados de numerosas organizações operárias autênticas que
desautorizavam a greve nazi-fascista”. Ver Editorial, (Critica, 17/10/1945; tradução da autora). O jornal
La Acción de San Juan, em 18 de outubro de 45, publicou uma nota informando sobre as manifestações
ocorridas no dia anterior em Buenos Aires. Ao lado da coluna que descrevia detalhes da concentração, em
frente à Casa Rosada, de pessoas que exigiam a liberdade de Perón, a Unión Obrera local deu a
conhecer, em comunicado, que elementos nazistas da Secretaria de Trabalho e Previsão e outros
valentões, apoiados pela polícia, tinham tratado de realizar a paralisação de todas as atividades do país em
70
operária, que havia marcado o paro para o dia 18. Entretanto, as respostas às
demandas da CGT foram atendidas anteriormente à data prevista para a manifestação.
Segundo Sigal e Verón (1986):
O 17 de outubro foi uma data chave para o peronismo porque selou
definitivamente a relação Perón/povo, ou seja, o Messias e o povo
eleito. Os trabalhadores adquiriram naquele momento uma nova
identidade como povo e mais, povo peronista; a operação pela qual se
constituiu esse novo ator social e político foi simultânea com a prova
de que o povo havia eleito Perón (p. 117-118; tradução da autora).
Nesse mesmo dia, Perón abriu mão de sua condição de soldado a serviço da Pátria
e assumiu definitivamente o lugar de líder dos trabalhadores: el primer trabajador”.
Para Sigal e Verón (1986, p. 117-118), foram grandes os efeitos do movimento do 17 de
outubro. Perón passou a encarnar a expressão do povo, estabelecendo a unidade entre
Pátria e povo, representado em sua própria pessoa, através do sacrifício das mais altas
honras militares. Com base na comunhão do sacrifício de Perón e do povo, o pacto se
tornaria indissolúvel. O 17 de outubro foi designado como o Dia da Lealdade: a
lealdade dos trabalhadores ao líder que, em contrapartida, cumpriria suas promessas
(“Perón cumple”).
apoio ao Coronel Perón. Alertava o povo argentino e os trabalhadores do país para que estivessem
conscientes sobre este movimento nazi-fascista. A “Unión Obrera” local fez uma chamada a todos os
operários para que se mantivessem à parte deste intento do nazi-fascismo, que pretenderia assegurar-se na
Argentina perante a derrota mundial sofrida. No dia 19 de outubro, La Acción informava que a greve do
dia anterior, para comemorar o “dia de glória” de Perón, foi motivo de enérgica censura por parte da
população sanjuanina. Comunicava também que a comissão diretora do Sindicato Operário da Construção
considerava “que a greve decretada por elementos colaboracionistas do movimento sindical em
convivência com a Secretaria de Trabalho e Provisão nada tinha que ver com os interesses da classe
trabalhadora”. O mesmo comunicado conclamava o povo a não se deixar enganar por esta “tosca manobra
do nazismo criollo”; ver Editorial, (La Acción, San Juan, 19/10/1945). O The Buenos Aires Herald, em
pequena nota, comunicou que: “Houve algumas estimativas muito exageradas sobre o número de homens
e mulheres que desfilaram ontem e anteontem. Um radialista mencionou 500.000 almas na Praça de
Maio. Seria pouco possível que aquela praça suportasse mais do que 100.000 (...) Não dúvida sobre o
caráter trabalhista das massas ontem (...) Apesar das declarações dos líderes do Partido Socialista e de
sindicatos trabalhistas mais antigos, pode-se admitir que o Coronel Perón tem uma seção muito
importante dos trabalhadores definidamente sob seu domínio. A porcentagem real de pessoas só será dada
mediante eleições honestas e justas”; ver Editorial (The Buenos Aires Herald, 19/10/1945).
Contraditoriamente, o jornal católico El Pueblo comentou o significado do movimento do dia anterior:
“em primeiro lugar de se destacar que esta reunião estava composta em quase sua totalidade por
autênticos trabalhadores (...) Não é difícil advertir as razões que mobilizaram a tão numerosa fração do
povo. As manifestações exteriorizavam uma delas, ao pedir a liberdade do ex-funcionário aludido e seu
desejo de certificar-se dela. É indubitável que sua renúncia, por outra parte, havia provocado temores no
sentido de que, desaparecido o gestor das melhores resoluções sociais nos últimos anos, também se
atenuariam esses benefícios ou ficaria incompleta a obra iniciada por aquele à frente da Secretaria de
Trabalho e Provisão”; ver Editorial (El Pueblo, 18/10/1945; tradução da autora).
71
Plotkin (apud TORRE, 1995, p. 172) analisou o processo pelo qual o 17 de
outubro foi redefinido pelo próprio regime e passou a formar parte do imaginário
político peronista, representando um recurso imbatível da propaganda oficial, para
reafirmar a imagem de Perón como líder carismático. O autor chama a atenção para um
aspecto crucial do carisma que não foi abordado no clássico trabalho de Weber sobre o
tema. Trata-se do fato de que o carisma pode ser gerado por meio de propaganda e
símbolos políticos. Usando Clifford Geertz como referência teórica, Plotkin (apud
TORRE, 1995, p. 177) demonstra como a exploração da manipulação de símbolos e
rituais políticos, durante o regime de Perón, indica a possibilidade de uma investigação
mais ampla sobre a natureza do carisma e do poder desse líder argentino. A criação da
imagem de que seu regime se baseava em um amplo consenso (consenso de que o autor
discorda) foi possível pela obtenção gradual de um monopólio por parte do Estado do
espaço público, por meio da criação de um imaginário político, pautado em uma
simbologia política que pontilhava todos os aspectos da vida pública e excluía, por
conseguinte, outros sistemas simbólicos alternativos.
O 17 de outubro foi um acontecimento com repercussão em todos os setores da
sociedade argentina e nas vicissitudes políticas dessa conjuntura histórica específica. A
data é emblemática, como a marca das transformações que a sociedade argentina vinha
processando em todos os seus aspectos.
Embora a década de 1930 seja um retrocesso na marcha pela democracia, foi
nessa década que a industrialização, que vinha crescendo desde os anos 1920, ganhou
um novo impulso e propiciou o crescimento urbano e a expansão dos setores
assalariados. Nessa conjuntura, ainda que permeada pela crise política, o movimento
operário adquiriu a visibilidade que vinha ensaiando desde o final do século XIX.
Assim, a questão social passou a ocupar um lugar definitivo na agenda política,
impondo uma maior transparência nas posições assumida pelos governantes. Ao par
disso, incorporou-se um maior grau de representatividade na arena política, a fim de
tornar governável a sociedade, impedindo a eclosão de uma revolução.
63
63
Arendt (1988) afirma que o “jovem Marx convenceu-se de que a razão pela qual a Revolução Francesa
falhara em instituir a liberdade foi porque fracassou em resolver a questão social. (...) Se Marx ajudou a
libertação dos pobres, não foi por lhes dizer que eles eram a encarnação viva de alguma necessidade
histórica, mas por persuadi-los de que a própria pobreza é um fenômeno político, e não material, uma
conseqüência mais da violência e da violação do que da escassez. Pois se a condição de miséria – que, por
definição, nunca pode produzir gente de espírito livre, porque é a condição de sujeição à necessidade
era para gerar resoluções, ao invés de levá-las à ruína, seria necessário traduzir condições econômicas em
fatores políticos, e explicá-las em termos políticos” (p. 49-50).
72
Torre (1995) afirma que Perón não sobreviveria ao 9 de outubro, quando foi
destituído do poder, se a oposição tivesse lideranças de expressão política no país. Para
o autor, ao resgatar Perón do ostracismo político, a mobilização dos trabalhadores
depositou em suas mãos uma oportunidade para concorrer à presidência em 1946. A
vitória da coalizão peronista deixou um “legado perdurável na história argentina”, uma
vez que a candidatura de Perón foi o resultado do apoio das massas, apesar delas terem
sido organizadas no “sistema de corporativismo sindical que neutralizou a influência da
esquerda no movimento operário”. Finalmente, conclui o autor,
com efeito, graças ao triunfo de sua liderança popular, o Estado sobre o
qual governará Perón a partir de 1946 ficará exposto à ação dos
trabalhadores organizados e se converterá em mais um instrumento de
sua participação social e política. O conjunto de direitos e garantias ao
trabalho incorporado às instituições, à penetração do sindicalismo na
estrutura estatal, e sua posição chave na sustentação do regime, terão o
efeito de introduzir limites certos à sua política, particularmente no
terreno econômico, e visíveis, sobretudo, ao diluir-se a prosperidade dos
três primeiros anos (1946-48) (TORRE, 1995, p. 19; tradução da
autora).
Assim, o componente popular no peronismo impôs a Perón a revalidação de sua
liderança através de uma renegociação constante de sua autoridade sobre as massas
operárias. O 17 de outubro foi a memória utilizada para recriar anualmente as condições
de origem do regime (TORRE, 1995, p. 20-21).
Em 23 de novembro de 1945 foi criado o Partido Laborista que, segundo Cipriano
Reyes (1987), um de seus organizadores, foi uma derivação do 17 de outubro de 1945.
Naquele momento, ficou claro para as lideranças sindicais que o triunfo não estaria
assegurado se não fossem consolidadas as conquistas sociais obtidas através de um
movimento operário eficaz ante a reação do capitalismo (os fatos do 17 de outubro
geraram represálias por parte de várias empresas, que suspenderam dirigentes e
delegados sindicais, por exemplo, Swift & Armour). Os operários não se sentiam
representados pelos partidos tradicionais, que se haviam unido em uma frente única, a
União Democrática, notabilizada por sua política anti-operária. Daí a necessidade de
organizar um partido político que concentrasse essa grande força massiva, que
esperava encontrar seu “leito natural” (REYES, 1987, p. 14).
73
Em 15 de novembro, foi aprovada a ata dos estatutos do novo partido, pelo
congresso partidário, presidido por Luis Gay com a seguinte declaração: “O novo
partido é orgão político dos trabalhadores que propicia a candidatura do Coronel Juan
Domingo Perón para a futura presidência da República” (REYES, 1987, p. 14). Em
de dezembro, Perón foi indicado como candidato oficial do laborismo para disputar o
cargo político máximo da Nação.
Pont (1984) afirma que o Partido Laborista foi uma organização política dos
trabalhadores realmente autônoma e que o peronismo constituiu um Estado afinado com
o movimento operário, mas com a firme intenção de intervir permanentemente no
comportamento político do mesmo. A opção pela autonomia política do movimento
sindical argentino surgiu da necessidade de protagonizar uma ação política que
nenhuma outra política assumiu como objetivo:
é assim que a gravitação crescente do movimento sindical, junto com
a crise dos partidos políticos tradicionais e a oposição organizada
contra a política social desenvolvida fizeram que a classe operária
organizada compreendesse a necessidade de converter-se em eixo de
um nucleamento político nacional para a defesa de seus interesses de
classe (...) Fundamentado em uma ampla base sindical, defendia o
respeito em forma absoluta da autonomia e independência do
movimento gremial. Elevava a classe operária ao plano político, em
cujo terreno velaria pelas reivindicações gremiais, mas sem superditar
a organização gremial à política, posto que se apoiavam e
complementavam mutuamente (PONT, 1984, p. 38-39; tradução da
autora).
Nessa perspectiva, o movimento gremial poderia aderir ao Partido Laborista se
fosse a vontade da maioria dos sindicatos, mas o partido desempenharia sua função
política e ao sindicato caberia a função gremial. A criação de um partido dos
trabalhadores foi uma decisão tomada conscientemente, em nome da defesa da
manutenção da política social desenvolvida pela Secretaria do Trabalho e Provisão
Social, dirigida por Perón, e um meio oficial e legítimo de participar no
encaminhamento das soluções dos problemas nacionais.
Em resposta a Joseph F. McEvoy, diretor de notícias de La Prensa Associada,
afiliada ao The Associate Press, em 10 de maio de 1946, sobre a interferência de Perón
na criação do Partido Laborista, Luis Gay afirmou: “A ação do Coronel Perón é que
apressou e facilitou a criação do Partido Laborista, surgido como uma necessidade
74
histórica em momentos de intensa e dramática atividade revolucionária” (PONT, 1984,
p. 56; tradução da autora). No entanto, da mesma forma que Perón apressou e facilitou a
criação do Partido Laborista, sua dissolução significou o primeiro passo para o fim da
autonomia política do movimento operário argentino.
Com o retorno de Perón ao poder, foi iniciada sua campanha presidencial. Perón
foi apoiado pelo Partido Laborista, composto pela maioria dos líderes da CGT1, de um
setor dissidente do Partido União Cívica Radical do Povo, chamado Junta Renovadora,
do Partido Patriótico, constituído por antigos conservadores e nacionalistas, e outras
agremiações políticas menores. A fórmula Perón/Quijano venceu as eleições de 24 de
fevereiro de 1946, apesar da forte oposição da União Democrática, frente política que
reunia a UCR, o PDP, o PS, o PC e contava ainda com um hesitante apoio conservador.
Até o advento de Perón, a classe operária organizada não contava com uma
estrutura orgânica que respaldasse as suas reivindicações. Essa afirmativa tem que ser
entendida no contexto político-econômico de 1943. O PC e o PS não tiveram uma
atuação política que preenchesse essa nova realidade:
este vazio de representatividade política foi coberto pelo peronismo,
que ofereceu as condições necessárias para que o movimento operário
tivesse a oportunidade de alcançar essas metas, através de sua
integração em um partido político próprio, o Partido Laborista
(PONT, 1984, p. 48; tradução da autora).
O retrocesso da democracia nas instituições políticas argentinas, durante a década
de 30, ajudam a explicar o porquê do êxito do peronismo. Da Secretaria do Trabalho,
Perón manejou a classe trabalhadora, por meio de um sistema no qual os sindicatos
tinham que ser reconhecidos pelo Estado. No contexto da política de Perón, é possível
indagar qual foi o argumento dado às elites para justificar a política de massas que, na
década de 1920, apenas ensaiada, causara tantas reações da direita conservadora.
Waisman afirma que Perón justificou suas políticas como única forma de defesa frente
ao perigo eminente, o comunismo. O Estado corporativo e a industrialização seriam o
antítodo para a ameaça da esquerda comunista.
Waisman analisa o discurso de Perón, enfocando o público receptor e suas
reações. Enquanto os trabalhadores absorviam as vantagens da justiça social, os
capitalistas estariam protegidos dos comunistas. É notável que Perón, anticomunista e
anticapitalista, era radical quanto ao primeiro, mas considerava a possibilidade de outro
75
tipo de capitalismo, o “humano”, compatível com a justiça social para a classe
trabalhadora. Nessa ordem, Perón salvaria o capitalismo pela humanização e ainda
evitaria uma revolução comunista (WAISMAN, 1987, p. 176). O antídoto a ser aplicado
na sociedade parecia perfeito. O resultado foi um movimento trabalhista de massa sem
precedentes no país, que serviu como o pilar fundamental de sustentação de Perón no
poder. Desta forma, o governo de Perón, considerado populista por vários historiadores,
teve como principal protagonista, em sua origem, os militares, mas foram os sindicatos
que deram ao tipo de Estado que se instalou um formato peculiar, tornando a Argentina
internacionalmente conhecida como “República Sindicalista”.
64
Conclusão
O peronismo foi um fenômeno cuja origem na história pode ser indicado com
precisão. Foi exatamente no início da década de 1940 que o nome de Perón começou a
circular nos meios políticos da Argentina, alcançando seu auge no golpe de junho de
1943. Pouco tempo depois do golpe, Perón era visto e considerado como o “homem
forte” do novo regime. Em 1940, Perón havia voltado à Argentina, depois de passar um
período na Itália, onde, supostamente, tornou-se simpatizante dos métodos totalitários
nazi-fascistas. Foi enviado para a base militar da Província Andina de Mendonza,
tornando-se um dos founding fathers do GOU (Grupo de Oficiales Unidos). O GOU
foi formado por um grupo de jovens oficiais que tinha como proposta dar uma
orientação política para o exército. Em 4 de junho de 1943, um golpe de Estado,
organizado e dirigido pelo grupo, deu fim à Década Infame iniciada em 1930.
As condições políticas em que se deu o golpe de junho de 1943 foram muito
distintas daquelas de quando se deu o golpe de militar de 1930. Entre outros fatores
mencionados, a oposição a Yrigoyen em 1930 era clara o suficiente para que o golpe
64
Sobre o populismo, ver: CHAUÍ, Marilena. Teocracia dos dominantes e messianismo
dos dominados. In:-. DAGNINO, Evelina (Org.). Anos 90. Política e sociedade no
Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994; FERREIRA, Jorge (Org.). O populismo e sua
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001; FERREIRA, Jorge. Queremismo,
trabalhadores e cultura política. Soberania popular e aprendizado democrático. Revista
Varia Historia, v. 28, p. 69-84, 2002; GOMES, Ângela de Castro. Reflexões em torno
do populismo e trabalhismo. Revista Varia Historia, 28, p.55-68, 2002; SANTOS,
Wanderley Guilherme dos. A gênese da ordem. In: Razões da desordem. Rio de Janeiro:
Rocco, 1993.
76
não se apresentasse como uma surpresa para a sociedade. Também não havia a mesma
desconfiança pública que previsse um golpe político-militar como em 1930. Ainda que
muitos políticos soubessem do movimento, a expectativa de um levante militar era para
setembro, quando estavam previstas as eleições presidenciais.
65
O golpe foi realizado por um grupo de oficiais divididos, mas com o objetivo
comum e primordial de “colocar a Nação em ordem”. Foi pela ausência de harmonia e
sintonia entre as personalidades golpistas e a incapacidade dos mesmos de enfrentar as
decisões políticas fundamentais, que Perón se destacou e pavimentou o que seria a
“peronização da Argentina”. A ordenação da sociedade em desordem foi a palavra de
ordem do peronismo.
O golpe deu fim ao regime conservador, quando assumiu o poder o General
Rawson, substituído dois dias depois pelo General Pedro Pablo Ramirez, ex-ministro de
guerra do deposto Presidente Castillo. Para o cargo de Ministro de Guerra, foi
designado o General Farrell, chefe de Perón, que o nomeou sub-secretário do ministério.
O gabinete formado pelo Presidente Ramírez estava profundamente dividido. De um
lado, estavam o General Diego Mason, ocupando a pasta da Agricultura; Benito Sueyro,
como Ministro da Marinha; o coronel Albert Gilbert, ocupando o Ministério do Interior
e o General Edelmiro Farrell, como Ministro da Guerra. Esses eram notórios
simpatizantes do Eixo ou tinham uma opinião neutralista. De outro lado, estavam o
Almirante Storni, como Ministro das Relações Exteriores, o banqueiro Jorge
Santamarina, como Ministro das Finanças; o Almirante Ismael Galindez, na carteira de
Obras Públicas e o Coronel Elbio Arraya, com o cargo de Ministro da Justiça e
instrução Pública. Esses desmonstravam uma franca simpatia pelos aliados e inclusive
propunham relações mais estreitas com os mesmos.
65
Potash (1971) afirma que os militares não atuaram sem ter em conta o setor civil.
Ainda que houvesse grandes diferenças entre os oficiais, eles compartilhavam de uma
inquietação sobre os planos eleitorais do Presidente Castillo e tinham fortes contatos
com dirigentes políticos, sobretudo os da União Cívica Radical. Para o autor, os oficiais
nacionalistas seriam incapazes de se organizar sem o apoio do setor liberal e pró-aliado
do exército. Potash (1971) cita uma comunicação de um funcionário da Embaixada dos
Estados Unidos dez dias depois de golpe: Ainda que o movimento revolucionário
tenha sido realizado principalmente por uns poucos coronéis e tenentes-coronéis com
mando de tropas, dirigidos pelos Generais Arturo Rawson e Pedro P. Ramírez, é
provável que não se desecandearia se os dirigentes radicais não houvesem assegurado
que a derrocada do governo Castillo por um golpe de Estado militar teria pelo menos o
apoio moral do povo” (p. 290; tradução da autora).
77
Ainda que submetido ao General Farrell, Perón buscou cada vez mais o apoio dos
jovens oficiais, incentivando-os a afiliar-se ao GOU como uma maneira de demonstrar
seu apoio ao governo militar. Ao par disso, a política oficial favorecia o GOU, criando
uma base forte de poder através dos vários regimentos da Capital Federal e do Campo
de Mayo, que foram confiados a membros da Loja.
A atitude catalizadora de Perón criou um grande mal-estar entre os chefes que
haviam participado da derrocada de Castillo, inclusive pressionando o General Farrell a
impedir as investidas de Perón. Este, respaldado pelo Ministro da Guerra, atribuia à
GOU os acontecimentos do 4 de junho e o “verdadeiro espírito da revolução”
(POTASH, 1971, p. 304).
Entende-se que o processo de peronização teve como grande articulador o próprio
Perón, que se valeu de seus cargos políticos para construir o que chamou de “Nova
Argentina”. Sua figura transformou o cenário político do país dividindo-o em peronistas
e anti-peronistas. Enquanto os grupos políticos tradicionais e as elites sociais e
econômicas o enfrentavam contra a política social e trabalhista, Perón era defendido
pelos trabalhadores, que reconheciam o caráter social de seu plano de reformas, em que
pesem a repressão e as medidas autoritárias, que eram visíveis antes de eleito
presidente da República.
Concorda-se com a tese de Murmis e Portantiero, que afirmaram a presença dos
antigos sindicatos no suporte à política de Perón, apoiado por uma grande massa de
trabalhadores, que buscava ganhar espaço dentro do campo sindical. O fato de grande
parte dos sindicatos argentinos, especialmente os antigos, serem de orientação de
esquerda não impediu que, aos poucos, se submetessem à política peronista e se
aproveitassem dos benefícios advindos da Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social.
Foi no contexto de violentos enfrentamentos com a polícia, de um lado, e com
algumas lideranças sindicais mais radicais, de outro, que a identidade entre a massa
trabalhadora e Perón foi formulada e afirmada. A peronização do país teve como base
uma política promovida pelo Estado, referendada em 1945 pela mobilização dos
trabalhadores nas ruas, no histórico 17 de outubro.
No entanto, o peronismo e a peronização da Argentina não foram uma obra
exclusiva de Perón. Foram uma estratégia política notável, construída por agentes
sociais, aliados a uma grande estrutura burocrática, com quadros encarregados de
78
elaborar políticas peronistas: deputados dispostos a sancionar leis peronistas,
funcionários públicos envolvidos com a implementação do peronismo, intelectuais
peronistas e uma vasta rede de propaganda para publicizar e tornar viável a legitimação
da nova ordem.
Líder inquestionável dos trabalhadores argentinos, a ideologia da ordem e da
nação em paz foi a bandeira sob a qual a comunidade foi organizada. Conquistar a
massa foi uma tarefa simples perante a tarefa futura de mantê-la conquistada. Como
afirmou Torre, Perón teria sua liderança renovada se se mantivesse em constante
negociação com as massas, para referendar sua autoridade sobre elas. Assim como na
psicanálise a volta ao passado é uma permanente atualização de sentimentos, na política,
as condições da origem de certos fenômenos, como foi o peronismo, tinham que ser
revisitadas de tempos em tempos para manter o fôlego do regime.
No próximo capítulo serão analisadas as estratégias discursivas e a ação política
de Perón. Se as estruturas corporativistas colaboraram para o êxito da sua política, a
preparação das massas argentinas através da palavra e as políticas sociais reais
asseguraram a eleição de Perón em 1946, a reeleição em 1952 e sua permanência no
poder até 1955.
79
Capítulo 3
ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E AÇÃO POLÍTICA DE PERÓN
Perón, peronismo, peronistas
Os estudos sobre a história do peronismo concentram-se em torno de três temas
principais: o primeiro explora a figura enigmática de Perón, o líder carismático, o
orador populista, o militar, o político, o artífice do trabalhismo argentino; o segundo
analisa o peronismo a partir de sua ideologia, o justicialismo, e a prática política de
Perón na construção da “Nova Argentina”; o terceiro trata de identificar o “espírito” do
peronista, as razões do apoio ou oposição ao líder e a natureza das relações que se
estabeleceram entre Perón e os trabalhadores, que consentiram na permanência no
poder, por tanto tempo, de um líder reconhecidamente autoritário.
A especificidade do peronismo foi ter acontecido no pós-guerra, quando o repúdio
às tendências fascistas era um sentimento relativamente mundial. As análises
documentais contradizem os reiterados intentos de alguns analistas em negar o apoio
recebido por Perón pelo trabalhador argentino. Motivador de infindáveis polêmicas, o
fenômeno da popularidade e aceitação do peronismo pode ser empiricamente
sustentado.
66
Primeira matriz temática
A primeira matriz temática, concentra-se no mito que foi criado em torno da
figura do líder carismático, que soube captar a nova ordem emergente e transportá-la
habilmente para o plano de realizações políticas, encoberta pela máscara do “Estado
Benefactor”.
67
Sabe-se que os dirigentes do golpe militar de 1943 entraram em ação, em grande
medida, para impedir as possibilidades visíveis de uma agudização das tensões sociais.
Nesse contexto de desordem e ausência de uma liderança política real, abriu-se um
espaço que oportunamente Perón soube ocupar. As manifestações populares do
66
Ver capítulo 2.
67
Para uma discussão sobre Estado Benefactor, ver Vianna (1976, cap. 3).
80
Primeiro de Maio de 1943 confirmaram a intensidade da insatisfação popular e
impuseram uma resposta definitiva às questões sociais. O encaminhamento
institucionalizado de uma política trabalhista, quando assumiu a Secretaria do Trabalho,
conferiu a Perón o papel de redentor da Pátria, salvador dos trabalhadores e, em 1946,
presidente do país. Para as elites amedrontadas, ainda que sob séria desconfiança, Perón
também poderia ser o salvador de uma ordem social que poderia ser subvertida a
qualquer momento.
Para entender o mito Perón, pode-se utilizar o trabalho de Girardet (1987), que,
explorando o imaginário político, indica quatro conjuntos mitológicos: a Conspiração, a
Idade de Ouro, o Salvador e a Unidade. De acordo com o autor, esses mitos não se
diferenciam dos grandes mitos sagrados das sociedades tradicionais; fluida e imprecisa
em seus contornos, a conspiração não é necessariamente acompanhada de exclusivas
conotações negativas: a margem do “complô demoníaco” tem como contrapartida a da
“santa conjuração”:
o tema salvador, do chefe providencial, aparecerá sempre associado a
símbolos de purificação: o herói redentor é aquele que liberta, corta os
grilhões, aniquila os monstros, faz recuar as forças más. Sempre
associado também à imagem de luz o ouro, o sol ascendente, o
brilho do olhar e as imagens de verticalidade o gládio, o cetro, a
árvore centenária, a montanha sagrada (GIRARDET, 1987, p. 15-17).
Em seus discursos, Perón explorava sua “bondade intrínseca e o valor de seu
espírito humanístico”. Desde a outorga divina de “conductor das massas argentinas”,
Perón construía sua imagem à perfeição, como homem de sentimentos e princípios
irrepreensíveis. Governar, para ele, era um ato de amor:
mas mais importante que isso é que o governante não seja um
burocrata, mas que governe com amor e faça sua obra com
entusiasmo, sentindo que governa homens, porque no conceito de
Pátria, uma coisa que está sobre todas as outras: a Pátria se forma
em primeiro lugar por homens (PERÓN, 1948, p. 87; discurso
proferido em 10/8/1944, tradução da autora).
Esse ato de amor era potencializado quando o governante, através da vibração
nacional, percebia as ânsias de melhoria de vida dos humildes, dos que se empenhavam
no cumprimento de seus deveres:
81
o governante sente transbordar seu coração do sentimento mais puro,
que contém os princípios imutáveis da igualdade e fraternidade
humana e anseia que aqueles afãs e aqueles esforços encontrem o
condigno reconhecimento na justiça humana (PERÓN, 1948, p. 86;
discurso proferido em 25/4/1945, tradução da autora).
Perón tentava convencer militares e empresários, alarmados com suas ambições
políticas, a apoiá-lo nas reformas sociais, em nome da vitória sobre o inimigo vermelho.
Perón impediria uma convulsão social, protagonizaria o papel de líder dos trabalhadores
e salvaria o país do caos eminente. As leis trabalhistas anteriores às eleições de 1945
anteciparam a vitória daquele que as criara. Nessa conjuntura, a política trabalhista,
aliada à participação política (eleições democráticas) e a Perón, passou a constituir um
todo homogêneo.
A propósito da ação de Perón, Donghi (1993) afirma, com propriedade, que “o
controle do mundo do trabalho significava para Perón o butim disputado por duas elites
rivais, uma admiravelmente organizada pela Terceira Internacional e outra, que seria
sua tarefa organizar e guiar nesse combate” (p. 34; tradução da autora)
Para explicar as realizações de Perón, de se compreender as qualidades
invisíveis e abstratas atribuídas a ele, que não se prestam facilmente a uma estereotipia
ou caricatura. Entre elas, sua intuição, sua compreensão quase sobrenatural da psiquê
popular e sua sensível percepção da cultura argentina. Proclamado “Primeiro
Trabalhador Argentino”, na cidade de Rosário, em 1943, Perón deteve, em menos de
um ano de exercício do cargo de secretário do trabalho, mais prestígio que qualquer
outro político do país.
68
Sua atuação política era feita, então, voltada para o objetivo
de assumir a presidência da República. O objetivo prioritário de Perón eram as massas.
No entanto, para chegar a elas, seus opositores tinham que ser apeados do poder. Desse
modo, Perón enfrentaria seus opositores ao mesmo tempo que se posicionaria
explicitamente ao lado das massas trabalhadoras. Em 1944, Perón declarou: “(...) nós
dividimos o país em duas categorias: uma, a dos homens que trabalham e outra, a dos
68
Segundo Page (1984), “Era a primeira vez que o governo tratava os trabalhadores com respeito e não
com repressão. Os operários começavam a sentir-se como cidadãos e deviam essa gratificação psíquica ao
coronel. Perón mais tarde se referiria a esta etapa de sua carreira como o período carismático. Começou a
fazer aparições nos sindicatos de todo o país levando sua mensagem de esperança. Os trabalhadores
respondiam com entusiasmo. O tom havia sido imposto em uma assembléia de ferroviários na cidade de
Rosário, em dezembro de 1943, quando um dirigente apresentou Perón como o ‘primeiro trabalhador da
Argentina’. O mito do coronel começava a tomar forma” (p. 91; tradução da autora).
82
homens que vivem dos que trabalham. Perante esta situação, nos colocamos
abertamente ao lado dos homens que trabalham” (PERÓN, 1955, p. 20; discurso
proferido em 17/7/1944, tradução da autora).
Sustentava que o trabalho é uma necessidade humana que levaria ao
desenvolvimento material e moral.
69
Para que essas demandas naturais do homem
fossem atendidas, deveriam ser tomadas providências, que, mais do que gestos e
retórica, se cristalizassem em obras, em conquistas para os trabalhadores. Para tanto,
mais uma vez, Perón denegria a imagem dos que eram contra as classes trabalhadoras:
não queremos agitadores a soldo, verdadeiros vampiros sociais,
sensíveis aos agrados do dinheiro patronal e do estrangeiro, espécie de
filibusteiros do campo gremial e afeiçoados a “erguer-se com o santo
e a esmola” e a disputar o luxo e os benefícios da vida burguesa que
cobrem de anátemas. Estes animálias são inimigas das conquistas
sociais (PERÓN, 1955, p. 16; discurso proferido em 1/5/1944,
tradução da autora).
Assim, o atendimento às demandas das massas pressupunha a eliminação do
inimigo. O mal da Argentina estaria personificado não nos maus governos ou nas
“ideologias estranhas”, mas também na burguesia. Era neste mundo, de natureza
eternamente avessa à ordem e à justiça social, que Perón faria um novo tempo irromper
do antigo. A “nova Argentina”, termo que apareceria depois de 1946, foi planejada e
arquitetada nos estertores do arcaísmo político e social, contra o qual se lutou em 1943.
Porém, a classe patronal, chamada para superar a luta de classes abrindo mão, em nome
da grandeza da nação, do luxo burguês, era uma inimiga conciliável. A ordem do dia era
o acordo, não a intransigência. Para isso, Perón tinha a fórmula certa para subir do
inferno aos céus. De seu ponto de vista, a luta entre o capital e o trabalho resultava da
inoperância e apatia do Estado. Patrões de um lado, operários de outro. Esse
reconhecimento público lhe servia de escudo para justificar a ação do Estado como
pulverizador e exorcista dos males que destruíam a sociedade. em 1943, as
69
O trabalho, como um atributo da condição humana, tem sido cunhado como virtude nas mais diferentes
correntes ideológicas, assim com na psicanálise. Não obstante a diferença dos registros, ao trabalho é
atribuído um valor universal e uma redoma ética, inquestionavelmente sustentados pela cultura ocidental.
Exaltado como virtude no imaginário ocidental, a burguesia o enaltece como fonte de todos os valores.
Autores como Karl Marx, Hannah Arendt e Freud dedicaram ao “trabalho” parte de seus estudos. Ver
Dutra (1997, p. 296).
83
manifestações públicas de Perón soavam como a de um estadista referendado pela
sociedade.
É importante chamar a atenção para os traços da personalidade de Perón. A
imagem que fazia de si próprio e sua auto-suficiência deixaram-no míope perante os
possíveis obstáculos na viabilização das políticas propostas. Tratava-se de um indivíduo
megalômano e vaidoso, traços esses visíveis em sua personalidade. Em virtude desse
caráter acentuadamente narcisista do presidente, a idéia de “realizador” teve um impacto
tão forte em seu ego”, que a fantasia da completude e da onipotência o acompanhou
em toda sua carreira política. Perón considerava que nele estavam concentrados a
verdade, milenarmente buscada pelos filósofos, a inteligência, o saber, a virtude e o
poder, capazes de transformar o novo sistema político argentino em modelo para toda a
América Latina.
A auto-denominação el conductor é um sinal perceptível da visão super-
dimensionada que ele tinha de si mesmo.
70
Os dons que Perón se atribuía, como el
conductor”, permitiriam-lhe a superação da condição humana, que ele teria sido um
escolhido de Deus. Deste ponto de vista, com o suposto aval divino, a razão deu lugar à
paixão, quase uma religião. O comportamento passional, que ele demandava de seus
seguidores, passou a ser um elemento identificador do “ser peronista”.
Para referendar esse sentimento, Eva colaborava com seus discursos inflamados e
apaixonados:
Perón, em sua grandeza, que unida à sua sinceridade o fazem genial,
seja como eu sou: fervorosa e fanaticamente peronista. (...) Os outros,
os que pensam, sem dizer-me que sou demasiado peronista, esses
pertencem à categoria dos “homens comuns”. Não merecem resposta.
(...) digo em meus discursos e minhas conversas que a causa de Perón
é a causa do povo, e que Perón é a Pátria e é o povo (...) Perón, para
mim, que o tenho analisado profundamente, é perfeito (PERÓN, Eva,
1998, p. 35-36 e 139-140; tradução da autora).
70
A atuação dos “conductores” é antiga na história. Tratando da tirania do século XV, Burckardt ([s.d.])
nos mostrou que: (...) “A mais alta expressão e a forma mais admirada de ilegitimidade, no século XV, é a
do condottiere que se torna príncipe soberano seja qual for a sua origem (...) É desta época que datam
essas relações imorais, fora de toda a medida, entre os governos e os seus condottieri’, relações que dão
ao século XV um caráter tão estranho (...)” (p. 20-29). Page (1984, p. 50) considera a estadia de Perón na
Itália, em 1939, como o período que talvez possa tê-lo influenciado em sua simpatia pelo fascismo. Pelo
menos a utilização do espetáculo das massas empreendido por Mussolini, como arma política, o virulento
sentimento anticomunista e a importância do movimento sindicalista causaram forte impressão em Perón.
84
O mito criado em torno da figura de Perón é o ponto chave da propaganda
peronista. O mito, no entanto, não está limitado exclusivamente a Perón. um
simbolismo muito forte ao se associar Perón à figura de Eva, de um lado, e das massas,
de outro. Perón, o líder, existiu por causa das massas que o apoiaram e veneraram.
Sua esposa o identificava com a Pátria e o povo. Figura também idealizada, Eva
idolatrou o líder, assim como a Pátria e o povo. A Perón foi atribuído o papel fundador
da ordem política instituída, com centralidade absoluta. Mas o equilíbrio e a
funcionalidade desse tipo de arranjo político se materializaram pela comunicação
entre os elementos que formaram essa tríade: Perón, Eva e as massas.
As massas, para Perón, deveriam ser dotadas de paixão, sentimento construído por
meio da “catequese” e da propaganda:
as massas não pensam, sentem: uma massa, geralmente não tem valor
intrínseco mas sim o poder de reação como massa. Seu poder, seu
verdadeiro poder de reação e de ação, está nos dirigentes que a
enquadram (...) Mas quem as produz? Aquele que as conduz.
(PERÓN, 1952, p. 284; tradução da autora).
Afirmava que:
para conduzir, o primeiro a ser feito era formar o instrumento com que
se vai conduzir, valer-se de todos os meios para formá-lo e para que
resulte apropriado à própria condução. (...) Essa é a idéia moderna da
condução. Para fazê-la e formá-la, hoje o mundo e os condutores
dispõem de meios extraordinários que antes não tinham. A difusão, a
informação, a propaganda, são extraordinárias (PERÓN, 1952, p. 63;
tradução da autora).
É preciso admitir que, no século XX, a formação de opinião através dos recursos
da “difusão radiofônica, da informação e da propaganda” foi o grande avanço em
relação aos limites da imprensa. Para a viabilização da política de massas, como o foi o
nazismo ou o peronismo, o rádio foi fundamental para consolidar o contato entre o líder
e as massas. Não por coincidência, a propaganda também era vista por Hitler como um
meio de eficácia incontestável para sensibilizar as multidões.
71
Para Perón:
71
Explicando o uso político do rádio, Hitler afirmava: “Há um meio mais eficaz que o terror: é a
transformação metódica da mentalidade e da sensibilidade das multidões. É uma espécie de propaganda
mais fácil em nossa época porque dispomos do rádio” (RAUSCHNING, 1962, p. 234; tradução da
autora).
85
as formas novas ou modernas têm permitido muito da elevação
cultural das massas. Antes se efetuava mediante a difusão
fragmentária, difícil, do contato direto com as massas para poder
educá-las ou instruí-las. Hoje, o agricultor, que não vai à cidade
durante um ano, escuta o que dizemos todos os dias através do rádio.
Vale dizer que as conquistas modernas da ciência nos facilitam a
tarefa (PERÓN, 1952, p. 48; tradução da autora).
Consciente da importância do rádio, mesmo antes de sua posse, em 1946, Perón
mandou elaborar o “Manual de instruções para as estações de radiodifusão”. Logo após
a posse, o presidente assinou um decreto pelo qual todas as atividades radiofônicas, os
scripts, as expressões de abertura e encerramento das programações seriam
rigorosamente controladas (HAUSSEN, 1992, p. 151).
Ainda que Perón entendesse a arte da condução como um dom, esse dom não
prescindia de um permanente e bem articulado movimento para manter a massa
conquistada e sob a tutela do Estado. Totalmente avesso a qualquer tipo de autonomia
sindical, Perón tinha também a fórmula para domesticar a massa e confiná-la no
sindicalismo oficial:
de tomar homem por homem, inculcando neles essa mentalidade.
Quando todos tiverem essa mentalidade, quando todos
compartilharem de coração de nossa doutrina, teremos o instrumento
para a condução, e então qualquer um será conduzido. É como um
cavalo, que quando é potro o domador o conduz, mas quando está
adestrado até uma criança pode fazê-lo. Assim é a condução (PERÓN,
1952, p. 63; tradução da autora).
A condução de homens, comparada ao adestramento de animais, revela a idéia
que Perón tinha sobre os homens que liderava. A defesa dos operários e a aplicação da
justiça social possibilitariam o adestramento e a domesticação da massa. Assim, do
ponto de vista mais imediatista, “adestrar” os trabalhadores não seria uma tarefa tão
difícil como mantê-los “adestradas”. O prestígio de Perón sobreviveria desde que as
principais demandas econômicas e profissionais, que formavam parte da agenda de
reivindicações dos trabalhadores, fossem atendidas. Esse era um compromisso do qual
líder não poderia se abster.
Para a manutenção do mito Perón, foi de vital importância o papel cumprido pelos
mediadores políticos na organização do aparato simbólico e da propaganda.
86
Segundo Capelato (1998),
em qualquer regime, a propaganda política é estratégia para o
exercício do poder, mas nos de tendência totalitária ela adquire uma
força muito maior, porque o Estado, graças ao monopólio dos meios
de comunicação, exerce censura rigorosa sobre o conjunto das
informações e as manipula. O poder político, nestes casos, conjuga o
monopólio da força física e simbólica. Tenta suprimir, dos
imaginários sociais, toda representação de passado, presente e futuro
coletivos distintos dos que atestam sua legitimidade e caucionam seu
controle sobre o conjunto da vida coletiva (p. 66)
72
.
O trabalho de Rein mostra a impossibilidade de compreender a modelação do
movimento e a doutrina peronista prescindindo dessa função mediadora dos chamados
apóstolos do peronismo. O autor argumenta que,
para que a massa seja ativada pela retórica do líder carismático e para
que essa se traduza em depositar o voto correto nas urnas, se requer
um trabalho prévio de preparação por parte de setores intermediários
que, no caso peronista, não foram nem os partidos políticos
estabelecidos nem organizações com grande penetração na vida
política local, mas, sim diversas personalidades e organizações com
uma presença relativamente nova no panorama, surgidas pouco antes
da chegada ao governo e diversas agências governamentais
73
depois de
assumir o mandato.
74
72
A autora não define o peronismo e o varguismo como fenômenos fascistas, mas leva em conta a
importância da inspiração das experiências alemãs e italianas nesses regimes, especialmente no que se
refere à propaganda política.
73
De acordo com Hannah Arendt (1979): “Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do
totalitarismo; as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda” (p. 390). A propaganda foi
uma estratégia largamente usada por Perón. Várias revistas foram controladas pelo governo e se
incumbiram de fazer a difusão ideológica do peronismo. Entre elas, podemos citar: Mundo Argentino, La
Época, La Razón, Crítica, Selecta, Mundo Atômico, Mundo Infantil, Mundo Radical, Caras y Caretas, e
Mundo Peronista. O rádio foi outro meio de comunicação muito usado por Perón. Vale lembrar que Eva
Perón tinha muita familiaridade com o rádio, onde começou sua carreira.
74
Rein (1998, p. 33) se refere a personalidades como, entre outras, Juan Atílio Bramuglia, militante do
Partido Socialista, que, desiludido com a esquerda, se aliou a Perón na Secretaria de Trabalho e Previsão,
influenciou a Comissão Diretiva da União Ferroviária para que essa apoiasse Perón; José Miguel
Francisco Luis Figuerola Tresols, nascido na Espanha, designado em 1944 secretário geral do Conselho
Nacional do Pós-guerra e que formulou inúmeras leis e decretos e redigiu vários discursos importantes
para Perón, além de diversos documentos do partido Justicialista. Figuerola é considerado o arquiteto do
Plano Qüinqüenal para o desenvolvimento e modernização nacional, que foi publicado em 1947. Outro
nome é Miguel Miranda, representante dos novos industriais. Temeroso a princípio da política de Perón,
em 1946 estava à frente do grupo de industriais que apoiava Perón, em oposição à União Industrial. Foi
designado, em 1946, para dirigir o Conselho Econômico Nacional, tornando-se a figura mais poderosa na
área econômica do governo. Domingo Mercante, entre os líderes da G.O.U., foi o principal
colaborador de Perón na promoção da política trabalhista, foi o presidente a Assembléia Constituinte de
1949. Por fim, Angel Gabriel Borlenghi, maior líder da CGT até 1943, ex-militante socialista, trabalhou
para captar ativistas socialistas para a causa peronista. Borlenghi contribuiu com as concepções socialistas
incorporadas à “doutrina peronista”.
87
Quanto à institucionalização do aparato simbólico, deve-se a Plotkin (1993) a
discussão sobre o intenso conteúdo emblemático e alegórico do 17 de outubro e do
Primeiro de Maio (dia do trabalhador), ambos peronizados para reforçar a imagem de
Perón como líder carismático. Criou-se, entre Perón e peronistas, a “unidade espiritual”
para dar um contorno mais definido ao imaginário político da “nova Argentina”. O
autor afirma que: “Perón também usava os rituais para recriar periodicamente a base
mítica da legitimidade do regime: o contacto direto com o povo” (p. 130; tradução da
autora).
Na busca da memória do mito no imaginário dos trabalhadores, Perón associava
seu nome ao de Yrigoyen. A chamada “Década Infame”, nesse caso, foi o interregno
nefasto que impediu a continuidade de uma política que poderia evoluir positivamente
para a incorporação das massas no cenário político. Essa associação ou invocação de um
passado próximo ou mesmo longínquo (Perón muitas vezes se comparou a Rosas),
tratou de atualizar a memória coletiva e deve ser entendida como um recurso para
inventar uma tradição histórica. Ao se comparar a Yrigoyen, Perón se colocava como
seu sucessor no que se diz respeito à política trabalhista ensaiada pelo presidente
radical.
75
Segunda matriz temática
Na segunda matriz temática, predominam as análises voltadas para o peronismo
como o princípio de uma nova ordem, um corte entre o velho e o novo. Enquanto
constituía-se como uma força política, Perón elaborava sua doutrina, apresentada
posteriormente como o Justicialismo.
76
75
Segundo Hobsbawn (1984): “Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas, normalmente
reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica visam
inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente,
uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre que possível, tenta-se estabelecer uma
continuidade com um passado histórico apropriado” (p. 9).
76
A doutrina peronista foi chamada oficialmente de Justicialista” a partir de 1949. De acordo com o
esquema proposto por Buchrucker, certos desenvolvimentos especiais, principalmente aqueles que se
referem à filosofia da história, foram produzidos depois de 1946. No entanto, a gênese do justicialismo é
bem anterior. O autor ordena a combinação das influências ideológicas e as experiências vitais de Perón
em oito etapas:
1. a questão social (1913-1920);
2. as Forças Armadas como modelo orgânico (1920-1942);
88
Toda nova ordem política implica a adoção de algum princípio norteador das
mudanças a serem realizadas nas diversas áreas de atuação do Estado. A ordem política
estabelecida na Argentina, a partir de 1946, com a eleição do Coronel Juan Domingo
Perón, já havia sido anunciada antes do resultado das eleições. A sistematização das
idéias e políticas que deu o formato dessa nova conjuntura pode ser identificada como
uma organização corporativa do Estado.
77
A proposta peronista, conhecida como a “Terceira Posição”, teve sua expressão na
Argentina através da implantação da doutrina “Justicialista”. A doutrina foi, na
concepção de seu artífice, Perón, uma nova proposta para superar todos os sistemas
conhecidos, desde o “cruel capitalismo de direita até o mais cruel esquerdismo
comunista” (PERÓN, 1952, p. 299). Diluída nos discursos de Perón, a expressão
“Terceira Posição” (ou “Justicialismo”) evocava uma nova atitude, um conjunto de
comportamentos e de valores que dariam uma fisionomia peculiar ao regime peronista.
78
3. a doutrina social da Igreja (aproximadamente 1930-1945);
4. o nacionalismo (1930-1945);
5. os modelos hispano-americanos (1930-1945);
6. as influências européias (1939-1941);
7. as experiências na Secretaria do Trabalho e Previsão (1943-1945);
8. o conflito com Braden (1945-1946).
Essa hipótese é consistente na medida em que se sustenta nas declarações de Perón e em sua
coerência com o justicialismo apresentado em 1949. Ver Buchrucker, 301. O justicialismo é a doutrina
baseada na idéia de uma terceira solução: nem capitalismo nem socialismo. Ver também: François
Perroux, “Capitalismo e corporativismo: socialização do produto Corporativismo e salário” Revista
Forense 77, year 36 (jan. 1939, p. 402-405). Citado por Joseph L. Love, Crafting the Third World
Theorizing Underdevelopment in Rumania and Brazil. California, Stanford University Press, 1996, p.
147.
77
“Para Perroux, na década de 1930 o Estado equilibraria monopólios opostos de sindicatos trabalhistas
numa economia corporativista. O planejamento corrigiria as distorções produzidas pelo jogo de força do
mercado. Trabalhadores e patrões se organizariam nas mesmas corporações de produtores, e a
colaboração de classe, no lugar de conflito de classe, caracterizaria a nova economia. O Estado eliminaria
lucros excessivos. Conselhos de trabalhadores e capitalistas, sujeitos ao controle do Estado,
estabeleceriam preços e salários. Inspirado pelo catolicismo social, Perroux usou repetidamente metáforas
como ‘comunidade de trabalho’ e ‘família’ para enfatizar a colaboração de classe” (LOVE, 1996, p. 111;
tradução da autora).
78
Segundo Gambini (1999, p. 246), a Terceira Posição do peronismo em sua política exterior foi apenas
uma expressão verbal sem fatos concretos. Quando nos anos 1960 os países do Terceiro Mundo
alcançaram projeção internacional, Perón atribuiu a si próprio a paternidade da idéia, desconhecendo que
esse conceito havia sido forjado quatro décadas antes nos países afro-asiáticos. O autor afirma que as
conferências anticolonialistas celebradas em Bierville e Berlim, em 1926, e em Bruxelas, em 1927, foram
antecedentes do Pacto de Bandung firmado em 1955, cujos protagonistas mais importantes foram Nehru e
Chou En Lai. O projeto terceiro-mundista foi apoiado por Tito, Nasser e Sukarno, que fizeram as
convocações para a conferência preparatória do Cairo em 1961. Três meses depois, em setembro, foi
realizada em Belgrado a Primeira Conferencia dos Países Não-Alinhados, que deu nascimento ao Bloco
do Terceiro Mundo. O peronismo nunca participou dela nem como governo nem como movimento
político. Page (1984) afirma que “a meta de Perón com a Terceira Posição era andar pelo terreno do meio,
entre duas grandes ideologias, o capitalismo e o comunismo. (...) Na realidade a Terceira Posição não
passou de um slogan” (p. 218-219).
89
Com essa política, Perón assumia uma atitude neutra em relação ao conflito mundial,
evitando afiliar-se ao bloco capitalista ou ao comunista.
A primeira menção à doutrina da “Terceira Posição” foi feita no pronunciamento
de Perón em, 28 de novembro de 1946, no Teatro Colón, em Buenos Aires.
79
Neste
discurso, Perón manifestou a necessidade de fazer evoluir as formas de governo
existentes. Se, por um lado, o capitalismo mostrava sinais evidentes de decadência, o
comunismo, por sua vez, era a mais pura representação do absolutismo estatal. Nenhum
dos dois sistemas, segundo Perón, traria resultados positivos para as nações que
escolhessem posicionar-se ao lado de um dos blocos hegemônicos em que o mundo
havia se polarizado, após a Segunda Guerra Mundial. Assim, a busca de um novo
equilíbrio, que se assentasse nas forças representantes de um Estado moderno e
soberano, apresentava-se, para Perón, como a única solução possível.
Nos pronunciamentos anteriores a 1946, Perón vaticinava a falência dos extremos:
capitalismo e comunismo. O Justicialismo seria a Terceira Posição, ou seja, o substrato
ideológico do peronismo, com projeções tanto na ordem interna como no plano das
relações internacionais. Perón criticava o individualismo e a socialização, evitando os
termos capitalismo e comunismo. Ao defender a Terceira Posição, centrista, Perón o
fazia excluindo os sistemas conhecidos que, para ele, não chegavam a lugar algum:
80
o individualismo favorece o homem isolado, mas com isso não faz a
humanidade feliz. Contra ele, como forma de reação, se desloca
rapidamente um movimento até a socialização total; isso significa que
o homem desaparece como entidade para o agrupamento aparecer
como ente. Esses dois extremos têm sido sempre, como todos os
extremos, organizações que não resistem ao tempo. Um meio termo é
o que parece ter sido, na história, o mais estável como organização
humana. Por isso, eu penso que, observando o movimento do mundo,
passamos agora, nesse movimento pendular, para o centro, para a
vertical do pêndulo que oscila entre o individualismo e a socialização
(PERÓN, 1948, p. 376; discurso proferido em 28/7/1944, tradução da
autora).
O peronismo não se enquadrava nem na direita nem na esquerda. Assumir uma
Terceira Posição na eterna luta entre o Bem e o Mal, entre a justiça e injustiça social,
problema de todos os povos e de todos os tempos, sempre atual, conferia ao General
79
Ver, entre outros: Frenkel e Arzac (1984, p. 240).
80
Trata-se da Terceira Via, expressa na defesa das estruturas corporativas. A Terceira Via tem servido
para designar fenômenos políticos tais como o fascismo.
90
Perón a autoridade para dirigir-se aos homens do mundo e dizer-lhes que a salvação é
possível, se essa é procurada pelo magnífico caminho da solidariedade. Finalmente, os
argentinos estavam protegidos de desvios que seguissem os preceitos individualistas ou
das doutrinas socialistas, que por sobreporem o Estado ao indivíduo, “debilitam o
primeiro e destroem o segundo”. A rota da salvação estava traçada pelo conductore
ultrapassava os limites nacionais, para abarcar todos os homens do mundo. A salvação
veio por meio do líder que valorizava, permanentemente, “sua concepção humanista”,
que considerava o homem em sua relação com o infinito, e todas as coisas em suas
relações com o homem. Nesse sentido, o princípio da solidariedade surgia da firme
convicção de que o ser humano é a imagem de Deus. Assim se apresentava o
peronismo.
Na percepção de Perón, a “Terceira Posição” significava uma aritmética que não
era a síntese das duas anteriores, mas representava uma posição independente, sem
comprometimento com ideologias ou sistemas políticos estrangeiros. Assim, além de
nortear a institucionalização das relações entre o Estado e a sociedade na Argentina, a
“Terceira Posição” seria a referência para as futuras decisões sobre a política externa.
Convicto acerca da opção pela neutralidade, Perón reiterava, em 1947, a distância de
sua posição em relação à bipolarização mundial em pronunciamento aos “cidadãos do
mundo” e “compatriotas”:
o trabalho para conseguir a paz interior deve consistir na anulação dos
extremismos capitalistas e totalitários, sejam estes de direita ou de
esquerda, partindo da base do desenvolvimento de uma ação política,
econômica e social adequada pelo Estado e da educação dos
indivíduos encaminhada a elevar a cultura social, dignificar o trabalho
e humanizar o capital e, especialmente, substituir os sistemas de luta
pelo de colaboração (PERÓN, 1948, p. 355; discurso proferido em
6/7/1947, tradução da autora).
Através da doutrina Justicialista, Perón conferiu à sua política um marco
conceitual firmemente delineado.
81
Desde 1945, por uma questão de estratégia política,
tornara-se necessário dissociar a Argentina do Eixo. Aquele não era o momento para
defender o nazi-fascismo, ou mesmo demonstrar simpatia pelos regimes totalitários.
Perón, afirma, então, que não havia nenhuma possibilidade de sustentar uma doutrina
81
A palavra justicialismo, nomeação específica na Argentina da “Terceira Posição”, apareceu, segundo
Blankstein, em discurso proferido por Perón em abril de 1949, por ocasião do Congresso de Filosofia
realizado na Universidade Nacional de Cuyo, na cidade de Mendoza.
91
política universal, uma vez que as condições dos diferentes países do mundo eram
específicas. Tal constatação, no entanto, não excluiu a influência fascista no pensamento
de Perón e não impediu a utilização de elementos de doutrinas forâneas na construção
do justicialismo.
A doutrina, segundo ele, tinha que ser 'amada' para ser eficiente. O peronismo
devia ser apregoado entre as massas, através dos doutrinadores, seus verdadeiros
apóstolos. A sacralização do movimento era fundamental para que o peronismo se
tornasse uma paixão política, como aspirava Perón:
os grandes movimentos de qualquer ordem m na vida uma força
motriz superior a todas as demais; é essa mística que o coração e a
mente chegam a desenvolver nos homens que lutam pela mesma
causa. Os trabalhadores devem possuir essa mística, os dirigentes
estão na obrigação de desenvolvê-la, pensando que dentro da massa
não de haver sentimentos díspares com os sentimentos que
proponham a melhoria moral e material da própria massa (...)
(PERÓN, 1955, p. 32; discurso proferido em 9/4/1945).
O movimento peronista passaria a ser o início de uma nova ordem, ancorada em
uma doutrina inédita. Nela não havia lugar para a antítese entre interesses particulares e
gerais, então a necessidade de um poder soberano, que a todos abrigasse. A partir do
slogan “um para todos e todos para um”, sacramentaram-se, por vínculos de lealdade, a
reafirmação e a consolidação de uma ordem superior. “Um”, no caso, Perón, chefe
supremo do Estado, disciplinador, e protetor da sociedade. “Todos”, a massa, então
transformada em um único corpo.
82
O escopo da autoridade de Perón iria além de
qualquer outra forma de poder que se apresentasse. O princípio do centralismo nortearia
a organização do Estado: todos estariam submetidos às ordens e deliberações do chefe.
Os interventores das unidades partidárias locais seriam eleitos pelo conselho supremo
do partido, dirigido pelo chefe. A esses interventores caberia o direito de eleger os
82
Sobre a questão do “Um” e do “Outro” em Boétie, Lefort comenta: “No corpo visível do tirano, que é
apenas um entre outros, fixa-se a imagem de um corpo sem igual, sem réplica, a um tempo inteiramente
separado daqueles que o vêem, nisso inteiramente referido a si mesmo, e que, vendo tudo, agindo em
tudo, não deixaria subsistir nada fora de si. Imagem do poder separado, dominando do alto a massa dos
sem-poder, senhor da existência de todos e de cada um; mas também imagem de sociedade inteira reunida
e possuindo uma e mesma identidade orgânica. Ou, melhor dizendo, a mesma imagem condensa a
divisão e a indivisão. Eis alguém, subtraído do número, designado pelo signo, pelo nome de Um, e, assim,
o outro toma corpo, o absolutamente outro. Configura-se uma ruptura fantástica entre o povo e o senhor”.
Claude Lefort, “O Nome de Um”, in Discurso da Servidão, Boétie, p. 141.
92
congressistas. Segundo Crassweller (1987), “era um círculo grande mas fechado” (p.
211; tradução da autora).
A doutrina foi fundamentada sobre três pilares: a justiça social, a independência
econômica e a soberania política. A justiça social, que é de maior interesse neste
trabalho, foi a mola mestra que permeou toda a atuação política de Perón. Antes de ser
eleito presidente da república, Perón advogava pela necessidade de estruturar um código
do trabalho, que se baseasse em políticas efetivas e não em simples teorizações
legalistas. A criação da Secretaria do Trabalho foi a concretização desse desejo,
expresso um sem número de vezes e que, sem dúvida, foi a pedra fundamental de toda a
história do peronismo e da massa peronista.
Os humildes clamavam por justiça em um país onde tolerar a miséria era
impensável em razão das suas riquezas naturais. O atendimento a esse clamor social
significava uma sensibilidade ao sofrimento dos despossuídos, vítimas de políticos
viciados que ignoravam as conflitantes questões sociais. A conseqüência do descaso do
Estado em superar esse drama social foi a intensa agitação das massas, revoltadas com a
miséria em que viviam, em contraste com a opulência de outros. Segundo Perón, o
problema da agitação das massas seria resolvido por meio da verdadeira justiça
social, em função das riquezas do país e das possibilidades da sua economia, que o
bem estar das classes dirigentes e da classe operária estaria sempre em razão direta com
a economia nacional (PERÓN, 1948, p. 226; discurso proferido em 10/8/1944).
Perón argumentava que a Revolução teria tido pouca razão de ser se não fossem
cumpridas as suas propostas iniciais no caso, a justiça social seria o carro-chefe de
todos os postulados construídos para sustentá-la.
83
Em sua perspectiva, as revoluções
deveriam ser profundamente inovadoras em suas finalidades. No caso argentino, a
inovação fundamental estava em propiciar às massas trabalhadoras um bem-estar
superior ao que haviam gozado até então. Esse seria o meio que possibilitaria a união de
todos os argentinos e a criação da nacionalidade, de modo que essa não se rompesse
frente aos embates entre as classes (PERÓN, 1948, p. 228; discurso proferido em
2/9/1944).
Clamando pela compreensão e colaboração das classes dominantes, Perón, em
1945, criticava aqueles que combatiam sua obra social e demonstrava que as vantagens
83
A revolução a que Perón se refere é o golpe de junho de 1943.
93
“outorgadas” aos trabalhadores não incidiam negativamente nos lucros dos patrões, e
sequer os privavam do mais insignificante de seus gastos supérfluos. Pelo contrário, a
adesão à sua política não prejudicava os resultados financeiros das empresas, pois,
contribuindo com a melhoria de vida de milhares de pessoas, a paz social estaria
definitivamente assegurada (PERÓN, 1948, p. 227; discurso proferido em 25/9/1945).
Conforme declarou abertamente, as leis sociais haviam sido outorgadas, ou seja,
Perón, o protetor, presenteou a massa trabalhadora com uma legislação e, na busca da
ordem e da harmonia social, tentava sensibilizar os patrões para as melhorias que essa
legislação conferiu a milhares de pessoas. Nesse ponto, lei, direito e boa ação
misturavam-se. A lei era ampla na medida da outorga do Estado; o direito passou a
existir quando esse mesmo Estado reconheceu que a democracia pressupunha também a
cidadania.
84
Por tudo isso, os patrões, ao aceitar a legislação, deviam se inspirar em
“elevados ideais de humanidade”. Em verdade, com ou sem outorga, a questão social na
Argentina não seria mais um “caso de polícia” e, sim, estritamente regulada pela lei.
Em março de 1945, Perón (1955) afirmava que:
é interessante contemplar o panorama dos operários argentinos, que
pela primeira vez alcança esta justiça plena e bem intencionada, sem
que por trás das ações de nosso organismo estatal estejam escondidos
mesquinhos interesses políticos (p. 32; discurso proferido em
9/9/1945; tradução da autora).
Nesse mesmo discurso, Perón reconhecia o esforço do trabalhador pela grandeza
da Pátria. O governo que não fosse capaz de perceber a importância da justiça social não
podia ser considerado governo. Embora Perón considerasse a aplicação da justiça social
o cumprimento mais elementar dos deveres do governante, ele afirmava que o
trabalhador agradecia os benefícios que lhe foram dados. Esse agradecimento foi o
84
Segundo Telles (apud DAGNINO, 1994), “Os direitos são práticas, discursos e valores que afetam o
modo como desigualdades e diferenças são figuradas no cenário público, como interesses se expressam e
os conflitos se realizam. (...) Como forma de sociabilidade e reciprocidade, os direitos constroem,
portanto, vínculos propriamente civis entre indivíduos, grupos e classes. (...) se tudo isso passa pela
normatividade legal e institucional da vida social, depende sobretudo de uma cultura pública democrática
que se abra ao reconhecimento da legitimidade dos conflitos e da diversidade dos valores e interesses
demandados como direitos” (p. 91-92).
94
reconhecimento, por parte dos beneficiados, da outorga realizada pelo Estado
Benefactor”.
Dessa maneira, efetuou-se a transição para a estrutura corporativa. Como 'protetor'
das classes subalternas, o Estado acabou com as organizações independentes, por
repressão ou por cooptação. Iniciou-se a implementação da nova ordem política,
combinando a coerção e a manipulação através da via corporativa, facilitada pelo
enquadramento ou a “domesticação” dos trabalhadores afeitos à mobilização
ideologizada efetivada pelo Estado. A resistência sindical e operária à estrutura
corporativa, como se viu no capítulo anterior, teve vida curta. Tendo a CGT como órgão
mediador entre os sindicatos e o Estado, Perón atuou com desenvoltura na arte de
condução.
85
Os princípios éticos da justiça social se resumiram a três pontos: a) a elevação da
cultura social; b) a dignificação do trabalho; e c) a humanização do capital (PERÓN,
1955, p. 33; discurso proferido em 9/4/1945), que aparecem desordenadamente nos
pronunciamentos de Perón. No que toca à elevação da cultura social, Perón defendia a
idéia de que a única forma de se ter uma melhoria integral na vida do trabalhador seria
por meio da cultura. A partir do momento em que o trabalhador se tornasse mais culto,
“como homem e como cidadão”, cresceria sua capacidade de produção, elevar-se-ia sua
condição social, com melhores salários e estreitar-se-iam as valas que separavam os
diversos segmentos sociais (PERÓN, 1955, p. 23; discurso proferido em 24/7/1944).
Naturalmente, isso não implicava maior mobilidade social, mas a elevação do padrão de
vida da classe trabalhadora. O sentido da extensão da cultura social deslocava-se,
portanto, sutilmente, do homem para o homem/trabalhador. Dar ao homem, como
trabalhador, um tratamento justo, era a tarefa prioritária da nova justiça instaurada. Esse
não seria um investimento estéril feito pelo Estado, pelo contrário, o retorno para o país
seria o aumento, qualitativo e quantitativo, da produtividade desse homem/trabalhador.
O ganho seria geral.
85
De acordo com Doyon (apud TORRE, 2002), “No momento em que o governo começava sua luta para
atacar as mais flagrantes desigualdades sociais, o princípio da autonomia sindical aparecia como uma
traição à causa peronista porque nos fatos questionava a identidade de interesses entre Perón e o
sindicalismo (...) Com critério realista, uma maioria de dirigentes operários preferiu não insistir em uma
posição que levasse à ruptura com um sócio que era indispensável para avançar nas demandas operárias
(...) Deste modo, a CGT deixou de aspirar a ser um representante do movimento operário perante o
governo para comportar-se como um representante do governo perante o movimento operário” (p. 368).
95
Quanto à dignidade do trabalho e à humanização do capital, Perón apresentava
uma proposta conciliatória entre esses dois fatores. A dignidade do trabalho teria sido
recuperada, ou melhor, edificada, graças à ação de Perón na Secretaria do Trabalho, que
evitara, assim, uma insurreição generalizada das classes oprimidas. A humanização do
capital seria o expediente mais inteligente da classe dominante, para impedir o
acirramento da luta de classes.
No citado discurso de Perón, em 1943, detecta-se o conteúdo corporativo nos
enunciados de suas concepções políticas:
para saldar a grande dívida que ainda temos com as massas sofridas e
virtuosas, temos de apelar à união de todos os argentinos de boa
vontade, para que em reuniões de irmãos consigamos que em nossa
terra não haja ninguém que tenha que queixar-se com fundamento na
avareza alheia. (...) Os patrões, os operários e o Estado constituem as
partes de todo problema social. Eles e não outros têm de ser quem o
resolvam, evitando a inútil e suicida destruição de valores e energias
(...) A unidade e a compenetração de propósitos dessas três partes
deverão ser base de ação para lutar contra os verdadeiros inimigos
sociais representados pela falsa política, ideologias, sejam estas quais
forem; os falsos apóstolos que se introduzem no gremialismo para
prosperar com o engano e a traição das massas e as forças ocultas de
perturbação do campo político-internacional (PERÓN, 1955, p. 11;
discurso proferido em 2/12/1943).
Aqui, encontrou-se o início da gestação das idéias que permeariam o novo regime
a partir de 1946, e da ideologia que sustentava a imagem de uma sociedade que ia se
construindo homogênea e una. O controle social tinha como objeto a normalização e
uniformização do conjunto da vida social em nome do bem comum e da manutenção da
paz interna. Ao par disso, foi construído um imaginário sobre o comunismo
extremamente ameaçador, em contraposição ao imaginário realizador e construtivo da
“nova Argentina”, na incansável luta pela manutenção do corpo social coeso. Segundo
Sigal e Verón (1985), “a construção do inimigo permanecerá inseparável, no discurso
de Perón, do imaginário da sombra: o inimigo é oculto, opera na sombra, se infiltra;
seus propósitos são inconfessáveis” (p. 68).
Quando Perón tratava da justiça social, antes de tornar-se presidente, essa aparecia
blindada pela virtude social inspiradora de uma ação redistributiva do Estado. O Estado
96
apresentava-se como a figura-árbitro que conduziria, sem a intromissão dos setores da
sociedade, todos os conflitos trabalhistas até então negligenciados pelos governos
anteriores. Nessa ótica, os direitos sociais constituir-se-iam a partir de sua concretização
no ordenamento jurídico da “virtude social”. Perón tinha o intuito de transformar a
sociedade, a partir da superação dos conflitos sociais, numa etapa do progresso social,
que tinha sido atingida pelos países do Primeiro Mundo, referidos em seus discursos
como os “países cultos”. Seguindo a linha preconizada por esses países, Perón nutria a
convicção de que os choques de interesses seriam suavizados, na medida em que os
conflitos entre o capital e o trabalho fossem regulados por uma justiça permanente
(PERÓN, 1955, p. 13; discurso proferido em 2/12/1943).
O discurso peronista anterior à sua eleição e depois de eleito transformava os
problemas de ordem social e política em escolhas éticas. A oposição Bem/Mal seria o
binômio que pode ser aplicado em qualquer esfera, ou seja, no político, no social e até
mesmo na economia. Assim, o capitalismo, o imperialismo, ou o comunismo, nesse
mundo em ordenação, eram sempre figurados como o mal. Ao identificar-se com o
bem, o novo governo condenava o outro, não importava qual ele fosse, como a
representação do mal. As imagens transformadas em idéias nos mostram a vida
cotidiana dos trabalhadores envolta no clima nefasto do “esmagamento” e do
“esquecimento”. O Estado, consciente da miséria nacional e do desamparo social,
elevava-se como o libertador na luta contra os inimigos do povo. Os inimigos poderiam
surgir de toda parte: de dentro e de fora do país. A tarefa histórica a ser empreendida
pelos trabalhadores argentinos, frente à ameaça anunciada “das forças ocultas”, seria a
formação de um bloco intransponível para encarar os inimigos:
a tarefa dos trabalhadores argentinos comporta uma grave
responsabilidade histórica neste momento. A união deles deve ser
indissolúvel. Ninguém deve desertar nessa obra, que pode ser trágica
para todos. Cada um, braço com braço, coração com coração, a lutar
pela causa do povo. Eu estou absolutamente persuadido de que isto
de suceder nos dias que vem. Cada um de nós deve por tudo de sua
parte para convencer aos camaradas, para reafirmar a organização
operária, porque, sendo este um governo que defende a massa
trabalhadora, necessita ter os trabalhadores unidos e solidários em sua
própria organização. Não devem desviar-se; devem seguir sendo
gremialistas nos sindicatos, com a única preocupação de lutar pela
97
defesa de seus ideais (PERÓN, 1955, p. 47; discurso proferido em
18/8/1946).
86
Assim, perante as adversidades que poderiam recair sobre os trabalhadores, o
Estado engendrava mecanismos de enquadramento da massa trabalhadora no cenário
político, controlados pelos sindicatos, que estavam sob o domínio da CGT.
87
O
grande elenco de imagens, elaboradas e divulgadas para confinar esses novos atores em
um lugar, estava longe de ser o espaço público democrático no qual a pluralidade de
opiniões se expressaria. Considerando que a cidadania se definiria como problema
político e histórico, caberia ao Estado entrar na defesa dos não-assistidos; uma aparente
experiência democrática convivia e era conivente com práticas inequivocamente
autoritárias.
A título de exemplo, seguem-se algumas referências às expressões pelas quais os
trabalhadores eram representados na tentativa de se criar a imagem síntese do homem
argentino: “massas sofridas e virtuosas” (PERÓN, 1955, p. 11; discurso proferido em
2/12/1943), “cidadãos isolados, incultos, desamparados e economicamente débeis”, ou
“peão do campo que se encontra em situação pior que a do escravo” (PERÓN, 1955, p.
31; discurso proferido em 17/11/1944), ou “massas traídas e enganadas por ideologias
estranhas e falsos apóstolos” (PERÓN, 1955, p. 15; discurso proferido em 1/5/1944).
Perante a constatação da impotência dos trabalhadores, foi feita a justificativa da
interferência do Estado. Ao mesmo tempo em que protegeria esses “cidadãos isolados e
desamparados”, o Estado ignorava a possibilidade de participação política do operariado
através de outros canais que não os sindicatos sob a tutela estatal, desqualificava o
operário “inculto”, que poderia ser facilmente ludibriado pelas promessas vãs e
mentirosas das forças ocultas. Nesse cenário de desolamento e infortúnio, restava a
essa massa trabalhadora ser salva pela Pátria “que nunca os esqueceu”. A Pátria nunca
86
Observe que Perón usava o termo “camarada” para se referir aos trabalhadores. Em outro discurso,
antes das eleições, Perón foi categórico ao afirmar, sem nenhum constrangimento, que usava a linguagem
que os trabalhadores já estavam acostumados a ouvir dos líderes comunistas.
87
Em discurso proferido em 17 de junho de 1944, Perón (1955, p. 19) criticava os movimentos gremiais
considerando que nesses movimentos o operário defendia o próprio grêmio e a própria organização.
Em 4 de agosto de 1944, Perón (1955) explicava a diferença entre o sindicalismo gremial e o sindicalismo
político: “Não me surpreende que alguns queiram ter um sindicalismo político, um sindicalismo
socialista, um sindicalismo radical ou conservador. Mas eu sei onde vão; não à defesa do grêmio, mas à
defesa dos partidos. Tenho sustentado e continuo sustentando que todos os homens que se ocupam do
mesmo trabalho se agrupem em um sindicato, porque o sindicalismo deve ser gremial e não político, nem
religioso, nem de nenhuma outra natureza” (p. 24). No discurso de 18 de agosto de 1946, quando Perón se
referiu ao gremialismo nos sindicatos, a idéia era que os grêmios da mesma categoria fossem organizados
em um único sindicato, e esse, afiliado à CGT.
98
se esqueceria de quem trabalhava. Ao trabalhador estava assegurado um lugar nobre na
sociedade: o do trabalho,
sustentamos a necessidade de que todo o que trabalha obtenha uma
compensação moral e material que assegure o bem-estar a que todos
temos direito, como consideramos indispensável que os trabalhos se
exerçam em um regime humano e alegre, com seus descansos
reparadores, em meios higiênicos, sãos e seguros, e sobretudo dentro
de uma grande dignidade e respeito mútuos. (...) Com a provisão
social vamos abolir os tristes quadros do desocupado, do enfermo, do
inútil ou do velho, porque não é justo que em uma sociedade onde
tanto sobra, não haja o suficiente para recolher, com coração humano
e cristão, a quem não tem força ou meios para ganhar subsistência
como seu próprio braço (PERÓN, 1955, p. 26; discurso proferido em
10/8/1944). (...) Uma Argentina de trabalhadores com salários
miseráveis poderá enriquecer a alguns poucos, mas lavrará segura e
fatalmente sua própria ruína. O capital deve ser criador, como é o
produto honrado do próprio trabalho. Quando tudo isso for bem
compreendido, quando ambos os fatores, capital e trabalho, sob a
tutela do Estado, atuem e se desenvolvam harmoniosamente, os
símbolos da paz social presidirão o vigoroso progresso da Nação
(PERÓN, 1955, p. 29; discurso proferido em 10/10/1944).
Esses fragmentos dos discursos de Perón são exemplos da representação
imaginária dos trabalhadores peronistas. “A Pátria era uma palavra vazia” que, com o
novo governo, ganhou uma existência real e ‘justa’. Nessa medida, a figura da oposição
era também a encarnação do mal a ser eliminado, o mal ameaçador do mundo do
trabalho ordenado, o único mundo possível. Reconhecer e aceitar esse princípio era
também endossar o compromisso com o progresso da Nação. A afirmação do poder era
feita través da insistência em dar conhecimento à sociedade da ação do Estado. A Pátria
era usada no sentido de “governos anteriores”. A Pátria nova era a Pátria construída
pelo novo governo, era a Pátria pedagógica que incorporava o trabalhador e o protegia.
A recorrente exaltação ao trabalho, por um lado, e o dever de dignificá-lo, por outro,
eram partes do discurso que finalmente unificava a sociedade pelo valor intrínseco do
mesmo. Por tudo isso, a figura do inimigo era fundamental porque ameaçava a nova
ordem com seu poder desintegrador. E foi nessa dicotomia, entre o Bem e o Mal, que os
trabalhadores tomaram consciência da necessidade de exorcizar os demônios e legitimar
o Estado exorcizador.
99
Terceira matriz temática
A terceira matriz temática refere-se aos peronistas. De um lado, Perón, o Messias,
o Salvador, o condutor e, do outro, o séquito de fiéis adeptos, os peronistas. O peronista
tinha que ser, antes de tudo, um pregador do pensamento e da ação do chefe. Se o chefe
fora escolhido para ser o Salvador, caberia aos “apóstolos” o papel de divulgar e
apregoar sua obra. Segundo Perón,
os quadros peronistas devem ser preenchidos não por homens que
trabalhem para nosso movimento, mas que sejam também pregadores
de nossa doutrina. Todos os movimentos de ação coletiva, se
necessitam de realizadores, também necessitam de pregadores.
88
O
realizador é um homem que faz sem olhar para trás. O pregador é o
homem que persuade para que todos façamos, simultaneamente, o que
temos que fazer (PERÓN, 1952, p. XIX; tradução da autora).
Se o fenômeno for interpretado psicologicamente, pode-se considerar a razão
subjetiva como o marco definidor e esclarecedor do sucesso do peronismo. Segundo
Rozitchner (1985),
algo se passou em cada um, em cada peronista, para que Perón
imperasse como forma humana ao qual lhe rendiam, submissos, a
devoção. Algo comum, pesem as diferenças, deve ter feito coincidir
cada peronista com o destino dos outros, atando-os indissoluvelmente
aos ditames de Perón. E o que é mais importante ainda: algo deve
conspirar em cada um contra si mesmo para continuar mantendo a
adesão e a fidelidade a Perón, ainda que este freasse a força popular e
pretendesse dirigi-la, submetida e frustrada, a favor do sistema de
dominação (p. 22; tradução da autora).
Na opinião do autor, algum tipo de satisfação imaginária deve ter determinado,
em cada operário e também em cada membro da classe média, a credulidade e o
comportamento passivo perante o chefe. Estendendo sua análise à década de 1970,
Rozitchner conclui que a prolongada lealdade ao líder expressa na frase Perón o
88
Analisando a relação entre partido e movimento e a diferença no entendimento dessa relação, na Itália e
na Alemanha, Arendt (1990) mostra que: “No tocante aos fascistas, seu movimento havia terminado com
a tomada do poder pelo menos no que se referia à política doméstica; (...) Quanto aos nazistas, mesmo
antes de tomarem o poder, mantiveram-se claramente alheios a essa forma fascista de ditadura, na qual o
‘movimento’ serve apenas para trazer o partido ao poder, e conscientemente usaram o partido para ‘levar
adiante o movimento’, que, ao contrário do partido, não deve ter quaisquer ‘objetivos definidos,
rigorosamente determinados’” (p. 291). O peronismo foi inspirado no modelo fascista.
100
muerte”, lema da juventude peronista, assumiu a forma de um tenebroso sacrifício
ritual, a que só a morte pôs um fim.
Essa idéia está clara também na obra de Boètie (1987),
não penseis que pássaro algum melhor caia no laço, nem que peixe
algum, pela gulodice da isca, mais depressa se aferre ao anzol pois,
como se diz, todos os povos são prontamente logrados para a servidão
pela primeira pluma que lhes passam na boca; e é maravilhoso como
cedem rápido, contanto que lhes façam cócegas. (...) Os tiranos
prodigalizavam um quarto de trigo, um sesteiro de vinho e um
sestércio; e então dava pena ouvir gritar: Viva o rei! (p. 27-28).
Metaforicamente, as leis trabalhistas foram como as plumas, e o “viva o rei”
indica a falta de consciência do trabalhador de seus direitos, daí a gratidão e submissão
ao soberano. Ainda em Boètie (1987), “por conjectura procuremos então, se pudermos
achar, como enraizou-se tão antes essa obstinada vontade de servir que agora parece que
o próprio amor da liberdade não é tão natural” (p. 16).
Todo o poder estava concentrado nas mãos de Perón. Durante seu governo, ele
apenas tolerou aqueles que estavam em simbiose com suas idéias. Eva Perón, que
sempre teve sua palavra autorizada, foi o eco feminino do marido, engrandecendo suas
realizações e conclamando permanentemente os “descamisados”
89
a aderir ao
peronismo. Evita foi a única pessoa que sustentou tanta glória como Perón e não foi
eliminada do poder por ser tão carismática quanto ele próprio. Eva não foi uma
peronista a mais, foi uma deusa intocável e parte vital do peronismo. Disso Perón tinha
consciência.
Eva foi uma eficiente mediadora do peronismo, colaborando veementemente na
meta de transformá-lo em um semi-deus. Apologista obstinada do marido, Eva
reconhecia nele as qualidades que ele atribuía a si próprio. No que se refere ao
Justicialismo, Eva o qualificava como “o ‘fogo sagrado’ com que Perón iluminava os
caminhos da Nova Argentina: “O Justicialismo deverá clarear os caminhos da
humanidade se o mundo quer se salvar da destruição e da morte” (PERÓN, Eva, 1973,
p. 10).
89
Na “Nova Argentina”, a palavra “descamisado” era a definição oficial para intelectuais modestos e
trabalhadores manuais organizados na defesa de seu direitos políticos, sociais e econômicos. O
descamisado era o herdeiro do gaúcho do século XIX. O ressignificado da palavra foi oficializado pela lei
13.568 em 1949.
101
Eva prosseguia: “A palavra de Perón era sagrada para todos os peronistas de
verdade”; “ninguém se fará justicialista se primeiro não é peronista de coração e para
ser peronista, o primeiro é querer Perón com toda a alma”. Na função de mediadora,
Eva continuava:
a que tinha no triunfo do Justicialismo se devia ao fato dele estar
nos corações mais que nas inteligências, e a prova era que os
primeiros predicadores dessa doutrina foram os trabalhadores, os
argentinos mais humildes, os que antes de compreender o
Justicialismo o haviam sentido porque haviam querido e querem a
Perón com toda a alma. Continuando Eva concluía que, antes de
aprender a doutrina, os argentinos tinham que querer a Perón como se
quer à mãe e à Pátria (PERÓN, Eva, 1973, p. 13).
90
Mediante esse discurso apaixonado, Evita o mitificou:
a grandeza extraordinária da doutrina de Perón vai ser maravilhosa se
não é nada menos que uma idéia de Deus realizada por um homem. E
em que reside? Em realizá-la como Deus quis. Nisso reside sua
grandeza: realizá-la com os humildes e entre os humildes (...) Perón é
o rosto de Deus na obscuridade, sobretudo na obscuridade deste
momento pelo qual atravessa a humanidade (PERÓN, Eva, 1973, p.
48).
91
Eva, porém, não estava só. Crassweller (1987) relata o comentário de um bem
sucedido homem de negócios sobre Perón: “Perón para nós e, sobretudo para os
humildes, é um ídolo, um Deus. Não cabe nenhuma dúvida de que dentro de 100 ou 200
anos as pessoas se dirigirão a Deus e a Perón e não a Deus e aos santos. Disso estou
seguro” (p. 24, tradução da autora).
O apoio a Perón se baseava na apropriação, por parte dos trabalhadores, das
vantagens a eles oferecidas. A paixão pelo peronismo, que o próprio Perón incitava,
também pode ser vista como um dado que limitou a crítica de seus seguidores. A massa
peronista, nesse sentido, em razão de seu apoio incondicional ao líder, foi refém de sua
própria idolatria.
92
90
para ilustrar, Evita tratava Perón com adjetivos como: gênio, grande homem, criador, condutor etc.
A história do peronismo para Evita poderia se reduzida a dois personagens: o gênio e o povo/Perón e os
descamisados.
91
Eva Perón usou a frase que León Bloy criou para Napoleão Bonaparte: “Napoleão é o rosto de Deus nas
trevas”.
92
Segundo Arendt (1979): “É muito perturbador que o fato de o regime totalitário, malgrado o seu caráter
evidentemente criminoso, contar com o apoio das massas. Embora muitos especialistas neguem-se a
aceitar essa situação, preferindo ver nela o resultado da força da máquina de propaganda e de lavagem
cerebral, a publicação, em 1965, dos relatórios, originalmente sigilosos, das pesquisas de opinião pública
102
Segundo Baily (1984),
alguns dirigentes individuais pretenderam, sem êxito, semear dúvidas
sobre a lealdade de Perón ao movimento operário e à nação. A única
oposição sindical efetiva foi dos fiéis peronistas que exigiam e
recebiam benefícios econômicos, acreditando que os dirigentes
gremiais servis e não Perón os haviam negado. (p. 144; tradução
da autora).
Se do ponto de vista da esquerda socialista,
93
por exemplo, a massa trabalhadora
foi ludibriada, assim não pensavam os trabalhadores que apoiaram Perón. Percebe-se
que, nesse universo de paixão política, existiu uma relação de complementaridade entre
Perón e as massas. Perón precisava das massas para construir a sua imagem e exercer o
papel de “el conductor”, e elas, para o assombro da minoria opositora, clamavam por
um líder e, mais, sustentaram e legitimaram o poder que as dominou. Com efeito, o
apoio dado a Perón pelos trabalhadores se sustentaria, nas vantagens sociais já obtidas e
na manutenção das mesmas. Aqui, paixão e razão (traduzida nas vantagens sociais) se
mesclaram. Considera-se que, naqueles anos de mudança nas relações entre capital e
trabalho na Argentina, não havia clima para que qualquer ação política negasse ou
questionasse as vantagens trabalhistas recebidas. A massa trabalhadora argentina estava
vulnerável, e Perón soube tirar proveito dessa situação que, em última análise, o
favoreceu.
Nacionalismo e amor à pátria
Perón estimulava, por meio dos seus discursos, o sentimento patriota que deveria
ser demonstrado através do trabalho. A própria vida, Perón havia dedicado aos
alemã dos anos 1939-44, realizadas então pelos serviços secretos da SS, demonstra que a população
alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus ou sobre a preparação do
ataque contra a Rússia, sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime” (p. 339).
93
No jornal socialista La Vanguardia, constam as reiteradas perguntas feitas aos operários induzindo-os a
perceber o que ocorria no país e levando-os a encarar a submissão a que se viam submetidos desde 1946.
As perguntas mais recorrentes que aparecem no jornal são: a) Para que o governo submeteu os sindicatos
e lhes tirou toda possibilidade de ação espontânea e livre?; b) Se estás seguro que fazem bem e é sincero
em sua prédica trabalhista, por que se impediu, e se impede, as forças do trabalho de se reunirem, de
atuarem com independência?; c) Por que a perseguição à liberdade de imprensa? Essas perguntas eram
feitas aos trabalhadores que, segundo os socialistas, estavam entorpecidos pelas promessas do governo.
Ver: La Vanguardia. “Fazem mil promessas aos trabalhadores enquanto lhes preparam las cachipones
(Buenos Aires, 1948, março 4, n. 12).
103
trabalhadores e à Pátria. O trabalho era o princípio definidor da diferença entre o bem e
o mal e a chave para o engrandecimento da Pátria e da demonstração do patriotismo. É
esse o tom apologético que caracterizava o discurso peronista “pela Pátria e pelos que
trabalham para a grandeza da Pátria empenhei minha vida”. Era como se os conceitos de
Pátria e de trabalhador fossem sinônimos, e a defesa dos que lutavam e trabalhavam
pela grandeza da nação merecesse, como recompensa, a vida daquele (Perón) que
admitia ser a defesa do trabalhador, também, a defesa da Pátria.
A despeito da diferença entre as definições de Pátria e nação, o destaque que essas
categorias tiveram no discurso peronista atesta a importância de seu uso como símbolos
de forte apelo emocional. Como nos diz Viroli (1995), “ao invés de ter como objetivo
forjar definições científicas sobre a natureza do patriotismo e nacionalismo, deveríamos
visar à compreensão do que estudiosos, agitadores, poetas, e profetas queriam dizer
quando eles falaram de amor pelo país” (p. 5; tradução da autora). O autor insiste na
necessidade de ater-se mais às interpretações históricas que às teorias científicas para
melhor compreender o sentido dos temas, metáforas e alusões que a linguagem do
patriotismo tem sido modelada com o intuito de inflamar o universo das paixões.
Em torno de temas como revolução, trabalho e Pátria, de um lado, e anti-
comunismo e anti-imperialismo, de outro lado, mobilizavam-se as forças da sociedade,
criando um quadro com dispositivos, estratégias e conteúdos, que revelavam a
disposição controladora do novo projeto do governo. O enquadramento do mundo do
trabalho foi imediato, ele foi o ideal comum, o valor dominante para o qual
concorreriam todas as condutas estatais. Com a expressão “o trabalho dignifica o
homem”, o discurso peronista construiu uma representação positiva do trabalho e um
enaltecimento do homem trabalhador, entre os quais, ele, Perón, era o “primeiro
trabalhador”.
94
Assim, a ordem corporativa se firmava pela apresentação do perfil do trabalhador
útil e visível:
(...) a riqueza, não a constitui o montante de dinheiro maior ou menor
que a Nação possa ter entesourado; para nós a verdadeira riqueza é
constituída pelo conjunto da população, o trabalho propriamente e a
94
“Encontro-me feliz entre vocês, que em Rosário me proclamaram o ‘Primeiro Trabalhador’ Argentino.
Este título cheio de honra aos que, como eu, crêem que o trabalho é a base fundamental da grandeza do
Estado e o mais puro brasão dos povos virtuosos” (PERÓN, 1955, p. 18).
104
organização ordenada desta população e deste trabalho (PERÓN,
1955, p. 46; discurso proferido em 12/2/1946, tradução da autora).
O trabalhismo de Perón foi o caminho para a construção da nova sociedade, e a
afirmação nacional, sua condição de possibilidade. Como se afirmou, o Estado ocupou
papel central, como promotor do bem estar e como incorporador das massas excluídas.
Nesse sentido, o povo foi o depositário legítimo da identidade nacional. A apologia ao
trabalho e ao trabalhador (que é o povo) passava por vários caminhos. Em alguns
discursos, Perón se dirigia exclusivamente aos argentinos do interior, também
conhecidos como cabecitas negras por sua ascendência indígena. A chamada à
ancestralidade e à altivez desse operário criollo foi feita através do clássico poema
“Martin Fierro”, de autoria de Jose Hernandez, publicado em 1879:
nós, criollos, profundamente criollos, não temos outra
inspiração que a de Martin Fierro. E temos de cumpri-la com
seu próprio conselho, fazendo o que ele disse nos primeiros
versos: “De ninguém sigo o exemplo; ninguém vai me dirigir;
eu digo quanto convém; e o que em tal terra se planta; de
cantar quando canta; com toda a voz que tem” (PERÓN, 1955,
p. 29; discurso proferido em 22/11/1944).
A exaltação à figura fictícia de Martin Fierro no discurso peronista compara-se à
associação feita por Perón entre ele e o presidente radical Yrigoyen. Na estrofe citada
por Perón, Martin Fierro canta a independência e autonomia do criollo em sua terra
natal. Ao apropriar-se do personagem de Hernandez, Perón buscava a tradição, ligando
criollos do século XX a criollos do século XIX. Martin Fierro é a representação do
gaucho no seu cotidiano, na sua pobreza e desamparo. A precariedade da vida, porém,
nunca o desencorajou, pelo contrário, o gaúcho sempre foi um guerreiro que enfrentou a
sorte mantendo a dignidade e a virilidade criolla.
95
Esses são elementos importantes
95
Mais do que um criollo/herói frente às vicissitudes da vida, Martin Fierro denuncia o sombrio
panorama do século XIX com o descaso das autoridades frente à vida de penúria no interior do país.
Preocupado em destacar a idiossincrasia do criollo, Perón não mencionou outros trechos de Martin Fierro
sobre o trabalho incansável que, na terra sem lei, também era uma tradição argentina:Es el pobre en su
orfandá; de la fortuna el desecho; porque naides toma a pecho; el defender a su raza; debe el gaucho
tener casa, escuela, iglesia y derechos. (...) Es la memoria un gran don; calidá muy meritoria; y aquellos
que en esta historia; sospechen que les doy palo; sepan que olvidar lo malo; también es tener memoria
(HERNANDEZ, 1983, p. 150-152).
105
utilizados no nacionalismo peronista, que buscava nos heróis do passado, ou em
personagens literárias reconhecidas como heróis nacionais, ainda que ficcionais, a
identidade nacional.
Em outros discursos, Perón se dirigia a diferentes categorias de trabalhadores e
reforçava entre seus membros os laços de pertencimento à comunidade nacional. No
caso, a idéia de comunidade nacional estava estreitamente ligada às imagens de poder,
“virilidade”, força, e autonomia. As “forças ocultas”, por definição, eram o “Outro”, que
tanto poderia ser o imperialismo norte-americano, os comunistas, ou mesmo a burguesia
nacional. No discurso abaixo, as “forças ocultas” poderiam ser a representação do
grande capital internacional, principalmente o ligado à industria frigorífica, então
dominada por estrangeiros, ou a burguesia argentina que, assim como os estrangeiros,
explorava o trabalhador argentino:
quando em momentos de dúvida ou desalento me assaltava o temor de
que chegasse a malograr-se a oportunidade de enfrentar-me com as
forças ocultas que detinham o progresso econômico do país e
regateavam as concessões mais insignificantes aos trabalhadores,
perguntava-me onde estariam os redutos da virilidade criolla, daquela
hombridade tão nossa que deve harmonizar perfeitamente a altivez
com a ternura. Mas não tive que esquadrinhar muito para dar com ela,
porque em cada tapera ruída, em cada terra inculta; (...) primeiro pude
entrever e depois contemplar nitidamente, que o mais modesto
operário de nossas fábricas e o mais esquecido peão de nossos
campos, apesar do esmagamento que os haviam submetido o
abandono de muitos anos, sabiam erguer-se firmes e altivos ao
perceber que a Pátria não estava ausente de suas angústias e se
aproximava a hora de lhes serem reparados os agravos que lhe haviam
inferido e as injustiças que os haviam feito (PERÓN, 1955, p. 46;
discurso proferido em 4/6/1946, tradução da autora).
Reiterando, era da prática do discurso nacionalista a revitalização da tradição. Isso
pode ser feito, entre outros recursos, a partir da ênfase que é dada à língua, etnia, heróis
nacionais ou feitos gloriosos da comunidade. Norbert Elias (1997) explica o caráter
emocional das ligações que se estabelecem pela idéia de pertencimento a uma
comunidade nacional:
(...) os vínculos emocionais de indivíduos com a coletividade por eles
formada cristalizam-se e organizam-se em torno de mbolos comuns,
que não requerem quaisquer explicações factuais, que podem e devem
ser consideradas como valores absolutos, inquestionáveis, e formam
pontos focais de um sistema de crenças comuns (p. 139).
106
O amor e a confiança na Pátria são, na perspectiva de Anderson (1983, p. 141), o
ponto no qual o nacionalismo se inscreve. Anderson não concorda com a idéia de que o
nacionalismo seja baseado no medo e no ódio do “Outro”. Nacionalismo, para o autor,
está conectado com amor e não com racismo, fascismo ou liberalismo. Anderson trata o
tema com espírito antropológico. Deste ponto de vista, a poesia de Hernandez corrobora
em parte para a aceitação dessa tese. A imortalidade das letras do poema na literatura
argentina ou a referência a Martin Fierro como um dos símbolos da identidade argentina
caracterizam a obra como um produto do nacionalismo incipiente argentino que foi
usado por Perón. A identidade com os irmãos e compatriotas, nas desditas da vida,
coincide com o que Anderson indica como self-sacrificing love. Em continuação, o
autor mostra as diferentes formas e estilos que a música, a poesia, a ficção e outras
formas de expressão, como produto cultural do nacionalismo,demonstram esse amor
Assim cantava Martin Fierro: “(...) pois são minhas ditas desditas; as de todos
meus irmãos; eles guardarão ufanos; em seu coração minha história; me guardarão em
sua memória; para sempre meus conterrâneos” (HERNANDEZ, 1983, p. 152; tradução
da autora). Seguramente Hernandez não teve a intenção de criar uma obra de cunho
nacionalista, mas de caracterizar o gaúcho, como o homem valente do campo. Quase 60
anos depois, o gaúcho foi usado por Perón como um símbolo para a construção da
identidade nacional.
O peronismo, em sua doutrina, foi apresentado à sociedade argentina como uma
resposta à demanda pela felicidade humana. Segundo Raúl Mende (1951),
96
“o
justicialismo é a doutrina cujo objeto é a felicidade do homem na sociedade humana
pelo equilíbrio das forças materiais espirituais, individuais e coletivas” (p. 104). Mende
(1951, p. 105) enfatizou os fundamentos religiosos da doutrina, a partir da formação de
um Estado assentado nos princípios do cristianismo, que devolveria ao homem a
dignidade e o caminho em direção a Deus, última etapa do seu destino.
Desde a Secretaria do Trabalho, os discursos de Perón foram marcados pelo tom
religioso, buscando em Deus a legitimação de seus propósitos políticos. O mundo novo
que estava sendo criado na Argentina era profundamente cristão e “humanista”: “o
mundo do futuro será somente dos que possuem as virtudes que Deus inspirou como
norte da vida do homens” (PERÓN, 1948, p. 9; discurso proferido em 9/9/1945). Ainda
96
Raúl Mende foi ministro para assuntos técnicos no Ministério de Perón.
107
para reforçar a estirpe superior da República, Perón afirmava ser essa o produto da
conquista e colonização hispânica, que trouxeram para aquelas terras irmanadas, em
uma vontade, a cruz e a espada (PERÓN, 1948, p. 10; discurso proferido em
28/7/1944).
O discurso sobre o Evangelho e a Espada, como a conjugação das forças
espirituais com o poder, que representariam os dois maiores atributos da humanidade,
tinha uma razão, “a construção de uma nova consciência nacional que privilegiava o
legado hispânico, o catolicismo, e a cultura indígena como elementos centrais”. Essa
construção se relacionava com os seguintes projetos do governo: o programa de
industrialização e modernização do país, que previa a independência econômica, com a
redução da dependência cultural em relação aos países do primeiro mundo, sobretudo a
Grã-Bretanha os Estados Unidos e a França (REIN, 1998, p. 184).
Rein (1998) sugere que:
ao adotar a Hispanidade, Perón tentou implantar na sociedade
argentina, caracterizada pela imigração, um renovado mito de origem
comum, gerando uma sensação de legado ou identidade etno-nacional,
que agrupava os argentinos em um grande clã, ou uma grande família
hispânica. Esse retorno ao legado da Mãe Pátria não era uma novidade
na tradição intelectual argentina: desde começos do século XX é
possível encontrar, entre os nacionalistas de extrema direita, a
tentativa de forjar a identidade mediante um regresso ao seio da
hispanidade e do catolicismo (p. 184).
97
Como não poderia deixar de ser, em uma comunidade católica como a argentina, a
referência a Deus ou às forças espirituais teve uma forte ressonância social, na medida
em que, tendo o sagrado como aliado, um grande valor era agregado ao homem público.
Caimari aponta o catolicismo como um dos elementos primários nos quais o peronismo
se apoiou. A autora afirma que Perón reivindicou, muitas vezes, algumas encíclicas
sociais como fonte inspiradora de seu movimento, constituindo um forte elemento para
atrair os militantes católicos. Cita, como exemplo, a peregrinação ao santuário da
Virgem de Luján, como um dos marcos da campanha de cunho religioso:
os discursos se referiam quase unanimemente à inspiração dessa obra
na doutrina social da Igreja Católica desenvolvida nas famosas
encíclicas Rerum Novarum e Quadragesimo Anno de León XIII e Pio
97
Semelhante à idéia dos nacionalistas argentinos, o autor uruguaio José Enrique Rodó em sua obra Ariel,
publicada em 1900, revitaliza a Mãe-Pátria (Espanha), em oposição à valorização do “irmão do norte”.
108
XI. A adoção da Doutrina Social da Igreja como contexto ideológico
na qual Perón inseriu sua obra atraiu a muitos dentro do mundo
eclesiástico em particular aqueles que desde Juventude Operária
Católica (JOC) trabalhavam pela difusão dessas mesmas idéias em
círculos oficiais desde muito tempo (CAIMARI apud TORRE,
2002, p. 447).
A autora considera que o peronismo foi o movimento político mais católico da
história contemporânea, mas também o que teve mais conflitos com a Igreja e com os
católicos.
A exploração do mito da “nação católica” foi utilizada para dar sustentação aos
princípios da “justiça social,” por ele defendido. Perón afirmava a soberania da
Providência de Deus, e a Ele se entregava para julgar suas próprias intenções:
98
se por ter saído em defesa dos homens que trabalham, meu nome for
execrado pelos que viviam felizes, com a infelicidade de todos que
contribuíam a levantar e incrementar suas fortunas, bendigo a Deus
por ter me feito o credor de tal execração (PERÓN, 1948, p. 375;
tradução da autora).
Em seus discursos, Perón explorava sua bondade intrínseca e o valor de seu
espírito humanístico. Desde a outorga divina de “conductor das massas argentinas”,
98
Ressalta-se a importância da Encíclica Rerum Novarum, de 15 de maio de 1891. Este documento
sistematizou oficialmente as idéias que circulavam na Europa naquela época. Na Rerum Novarum,
debatem-se as idéias liberais e socialistas e apresenta-se a alternativa católica que buscava solucionar os
três problemas cruciais da questão operária: o sindicalismo, a intervenção do Estado no campo social e a
questão salarial. Ela é complementada pelo disposto na Encíclica Quadragesimo Anno. Em ambas, a
Igreja aparece como colaboradora do Estado e enfatiza um pensamento assistencialista e reivindicatório
de justiça para o trabalhador. Sem dúvida, Perón aplica na Argentina o modelo preconizado pela Rerum
Novarum. Sobre a Encíclica, ver Rivas, (1991, p. 2-7) e Silva (1991, p. 9-34). Embora vá além do escopo
desse trabalho, vale a pena mencionar a posição da Igreja Católica na primeira fase da revolução de 1943.
Segundo Zanatta (1999): “Para a Igreja a revolução militar foi o esperado evento que pôs fim ao grande
período da hegemonia liberal e o caminho para a restauração ‘argentinista’ ou ‘católica’” (p. 15). A
atitude da Igreja foi otimista no primeiro ano da Revolução, sobretudo porque ela sentia uma
aproximação maior com os militares no poder, exatamente o contrário do regime anterior. O pensamento
da Igreja argentina em 1943 era pautado pela concepção teocrática, na qual a legitimidade dos poderes
públicos derivava de Deus, a Igreja, na qualidade de única intérprete autorizada de sua mensagem,
possuía o direito de dirigir e guiar sua atuação. Esse era um direito-dever inscrito em sua missão sagrada;
a vigilância para que a sociedade temporal se conformasse o mais possível aos ditâmes da doutrina
cristã”. O autor afirma ainda que: “A ‘regeneração’ havia se manifestado Estado perante todos mediante
formas especialmente repressivas, dirigidas a Nación Católica Iglesia y ejército en los orígenes del
peronismo 1943-1946 (Bs. As.), editorial golpear o ‘comunismo’, a imprensa independente ou de
oposição, uma parte marginal do corpo docente, os sindicatos mais autônomos e batalhadores. Dela
formaram parte também significativas intervenções de censura no campo dos costumes públicos,
inspirados em um concepção moralizadora da vida social muito cara ao catolicismo (...) Em síntese, uma
Igreja triunfante e otimista presenciava o desmantelamento das pedras angulares do Estado laico, assim
como a restauração dos valores católicos, nos mais variados âmbitos da cultura, da comunicação de
massas, das instituições educativas” (p. 15-36; tradução da autora).
109
Perón construía sua imagem à perfeição, como homem de sentimentos e princípios
irrepreensíveis. Governar para ele, era um ato de amor:
mas mais importante que isso é que o governante não seja um
burocrata, mas que governe com amor e faça sua obra com
entusiasmo, sentindo que governa homens, porque no conceito de
Pátria, uma coisa que está sobre todas as outras: a Pátria se forma
em primeiro lugar por homens (PERÓN, 1948, p. 87; discurso
proferido em 10/8/1944, tradução da autora).
Esse ato de amor era potencializado quando o governante, através da vibração
nacional, percebia as ânsias de melhoria de vida dos humildes, dos que se empenhavam
no cumprimento de seus deveres:
o governante sente transbordar seu coração do sentimento mais puro,
que contem os princípios imutáveis da igualdade e fraternidade
humana e anseia que aqueles afãs e aqueles esforços encontrem o
condigno reconhecimento na justiça humana (PERÓN, 1948, p. 86;
discurso proferido em 25/4/1945, tradução da autora).
Conclusão
Não obstante o formato corporativo do Estado, considera-se que os trabalhadores
se apropriaram das vantagens proporcionadas pelo governo de Perón. As questões
políticas e sociais transformaram-se na Argentina, a partir de 1943, de cima para baixo.
Um exemplo é a reforma da Constituição Nacional em 1949. A entrada na arena política
da massa trabalhadora não teve um caráter revolucionário. Os trabalhadores acreditaram
em Perón e na idéia por ele defendida, do governo pelo bem geral e não pelo interesse
particular de alguns.
99
Aderir ao peronismo foi para os trabalhadores uma escolha, de
99
Discutindo a interpretação de Mussolini sobre a idéia do Estado corporativo, Arendt (1979) mostra que,
para o líder fascista, “esse tipo de Estado era uma tentativa de vencer os notórios perigos de uma
sociedade dominada por classes graças a uma nova organização social integrada, para assim solucionar o
antagonismo entre o Estado e a sociedade, sobre o qual o Estado-nação se havia baseado, incorporando a
sociedade ao Estado”. Para confirmar sua análise, Arendt cita parte do texto “A era fascista”, publicado
pela Confederação Fascista das Indústrias em 1939: “A principal finalidade do Estado Corporativo era a
de corrigir e neutralizar uma condição provocada pela revolução industrial do século XIX, que
desassociou o capital do trabalho fazendo surgir, de um lado, uma classe capitalista de empregadores de
mão-de-obra e, de outro, uma grande classe sem propriedades, o proletariado industrial. A justaposição
dessas classes levava inevitavelmente ao choque dos seus interesses opostos. (...) Nenhum grupo fora do
Estado, nenhum grupo contra o Estado, todos os grupos dentro do Estado, [que é] a nação articulada” (p.
291).
110
um lado, livre, mas, de outro, dirigida de cima para baixo. Perón atribuiu às leis
trabalhistas uma outorga do Estado, para obter, como moeda de troca, o apoio político.
Perón, o peronismo e ser peronista tornaram-se uma paixão política muito além do
imaginado, sobretudo pela oposição. Não havia lugar para a indiferença. Segundo Perón
(1952):
devemos considerar as forças divididas em dois aspectos: as forças
que são favoráveis à ação e as que são desfavoráveis à ação. A ação
política é uma luta de vontades. Quais obedecem a nossa vontade e
quais a nossa vontade contraria? Quem são os peronistas e quem são
contra nós (p. 99; tradução da autora)
A desesperança do período anterior foi substituída pelo “esplendor da Argentina
peronista”. Anônimo até 1943, o líder revelou-se e construiu sua imagem associada à
imagem de um país renovado.
100
O direito de governar foi assegurado para Perón com legitimidade a partir do
referendo das urnas em 1946. A retórica foi estrategicamente convincente
101
: a política
autoritária era evidente (para alguns), mas, em compensação, as leis trabalhistas foram
consolidadas na Introdução do “Direito do Trabalhador” na Reforma Constitucional de
1949.
102
100
Sobre a construção da imagem de Perón e sua relação com a Nação, ver, por exemplo: Rozitchner
(2000) e Capelato (1998, cap. 6 e 7).
101
Segundo Roger Caillais (1946), “quanto mais vaga é a palavra mais fácil é acomodá-la no discurso.
Nos encontramos perante uma extravagante e perigosa aventura. As palavras usadas valem, não pelo
sentido que têm, mas pelo efeito que produzem” (p. 9).
102
Las Constituiciones de la Argentina (1810/1972) Recopilación, notas y estúdio preliminar de Arturo E.
Sampay (Bs. As. Editorial Universitária de Buenos Aires, 1975). Ver: Capítulo III Direitos do
Trabalhador, da Família, da Velhice e da Educação e Cultura. Artigo 37, parágrafo I. Do Trabalhador.
111
Capítulo 4
EL CONDUCTOR: A AFIRMAÇÃO DO PODER DE PERÓN
Juan Domingo Perón e Juan Hortensio Quijano, candidatos vitoriosos nas
eleições à presidência e à vice-presidência da Argentina em 24 de fevereiro de 1946,
assumiram o poder em 4 de junho do mesmo ano, data em que se comemorava o
terceiro aniversário da revolução de 1943. Perón tornou-se o 25º presidente do país
desde a Constituição da 1853.
Os dados oficiais informam que 2.734.386 eleitores, representando 17% da
população nacional, compareceram para votar. Perón e Quijano obtiveram 1.527.231
votos contra 1.207.155 votos obtidos por José P. Tamborini e Enrique M. Mosca, ambos
radicais, candidatos respectivamente à presidência e à vice-presidência da República
pela União Democrática, composta por radicais, socialistas, comunistas e um informal
apoio dos conservadores. A candidatura de Perón foi apoiada pelo Partido Laborista e
por uma dissidência do Partido Radical acusada pelos radicais de “Colaboracionistas”.
A princípio, quando do lançamento da candidatura, em dezembro de 1945, o nome
escolhido para concorrer à vice-presidência foi o do Coronel Domingo A. Mercante. No
entanto, Perón vislumbrou a possibilidade de aumentar seu eleitorado, substituindo
Mercante por um ex-membro do Partido Radical, Quijano, indicado pelos
Colaboracionistas.
103
Pela primeira vez, as eleições para a presidência da República
Argentina transcorreram sem a violência, a coerção e a fraude, comuns anteriormente.
104
O final da campanha eleitoral foi marcado pela intempestiva intervenção do ex-
embaixador norte-americano Spruille Braden na política argentina. Braden criticava
severamente o governo Farrell, qualificando-o de débil, inescrupuloso e anti-
norteamericano. Acusava Farrell e Perón de fascistas e os denunciava pela
103
O Coronel Mercante, diante da nova situação, retirou sua candidatura lançada pelo Partido Laborista e,
junto aos Colaboracionistas, participou ativamente da campanha presidencial. Lembre-se que Perón
sempre associou seu nome a Irygoyen, na tentativa de construir uma tradição histórica. Entre os
Colaboracionistas de maior projeção estavam, além de Quijano, Armando G. Antille e Juan Isaac Cooke.
Todos eles exerciam cargo de ministro no governo de Farrell e, por isso, foram expulsos do Partido
Radical sob a acusação de colaboracionismo.
104
No seu mais recente livro, Di Tella (2003, p. 88-93) discute a composição heterogênea da classe
trabalhadora argentina. O autor argumenta que um movimento complexo como o peronismo não poderia
estar baseado em um só setor daquela grande massa. Di Tella critica as análises simplistas que explicam a
adesão ao peronismo negando a heterogeneidade da classe trabalhadora (Juan Torres); pela
irracionalidade dos trabalhadores (Gino Germani); como um fenômeno patológico da política argentina
(Mariano Plotkin); pelo clientelismo (Waisman); por conta de orientações afetivas (Scott Mainwaring);
ou a partir do criollo ou cabecita negra (ascendência ameríndia).
112
desobediência às resoluções da Conferência do México (Chapultepec). Segundo Braden,
o governo militar argentino continuava fazendo negócios com empresas alemãs. Doze
dias antes das eleições, foi publicado um memorando pelo Departamento de Estado
americano, popularmente chamado Blue Book”, cuja autoria foi atribuída a Braden. O
Blue Book” teria sido uma manobra para levar a eleição de Perón ao fracasso, em razão
das ligações do governo argentino com o Eixo, desde 1943.
O efeito esperado com a divulgação do Blue Book foi contrário à intenção do
autor, dada à xenofobia dos argentinos, que não admitiam a intervenção estrangeira nos
assuntos políticos domésticos. Oportunista, Perón utilizou a crítica a seu favor, criando
a fórmula Braden o Perón”, o primeiro, o representante do imperialismo yankee e o
segundo, a Pátria. Segundo Blanksten (1974),
o Blue Book foi endereçado para dois públicos: os governos de
todas as nações americanas e para os eleitores argentinos. Publicado
em 12 de fevereiro, menos de duas semanas antes das eleições
argentinas, o Blue Book foi designado por Braden para influenciar
os dois públicos contra Perón. O caso, foi apresentado no ‘Blue Book’,
com duas acusações contra Perón: a) ele tinha colaborado com o Eixo
durante a guerra; b) Perón tinha se inspirado em muitos aspectos
“Nazi-Fascistas” na “nova Argentina”. Com base nessas acusações, os
dois públicos eram conclamados a olhar Juan Domingo Perón como o
líder criminoso do Hemisfério Ocidental. Nenhum dos dois públicos
considerou o Blue Book como Braden esperava. Muitos governos
latino-americanos responderam que a Segunda Guerra Mundial
terminara e que a “questão Argentina” tinha que ser vista pelas
Américas como um problema dos tempos de guerra (p. 414; tradução
da autora).
Em 13 de fevereiro de 1946, o jornal anti-peronista La Prensa informou aos
argentinos sobre as ligações de Perón com a Alemanha nazista, denunciadas no Blue
Book”. Segundo o diário, a documentação utilizada pelos americanos foi encontrada na
chancelaria do Terceiro Reich. Denunciaram-se também a intervenção e o
desmantelamento do movimento operário argentino pelo novo regime militar,
relembrando a intervenção do governo em agosto de 1943 nos dois sindicatos mais
poderosos do país, a União Ferroviária com 90.000 afiliados e La Fraternidad com
15.000 afiliados (La Prensa, 2/12/1946, p. 5 e 9). Posteriormente, como foi
informado, ambos os sindicatos aderiram ao governo peronista e fizeram parte do
sindicalismo pró-Perón.
113
Desde 1943, a figura de Perón encarnava a condição de sujeito político da
revolução, avalizado por sua liderança no governo de Farrell. O espetáculo do 17 de
outubro foi um gesto blindado de poderosa carga simbólica. Seu efeito foi o apoio a
Perón pela maioria dos eleitores. Desde esse dia, era impossível imaginar outro político
para comandar a construção da “nova Argentina”.
A Revolução de 4 de junho de 1943, sempre evocada, foi de excepcional
importância para reforçar a idéia do grande momento histórico do país, quando o
exército, ouvindo o clamor do povo nas ruas, “saiu em sua salvação”. Foi uma
revolução em que se colocou a nova vocação do Estado: a da justiça social, com o firme
propósito de iluminar o futuro da sociedade argentina. A libertação de Perón, em 17 de
outubro, pelos militares era ilustrativa para forjar a idéia de um exército engajado na
luta popular, e não um exército acuado pela pressão popular. Nas palavras de Sigal e
Verón (1986, p. 39), a intervenção do líder ficava definida nos parâmetros da res
publica, ainda ausente, mas indispensável para que a nação existisse.
O triunfo de Perón nas eleições foi também o triunfo da pátria, da nação e do povo
argentino. Em discurso proferido diante do Congresso Nacional, em 4 de junho de 1946,
o presidente empossado declarou:
o triunfo do povo argentino é um triunfo jovem e das ruas; com sabor
de festa e empenho de romaria; com o espírito comunicativo da
juventude e a alegria contagiosa da verdade; ultrapassou o estreito
marco dos comitês políticos habituais para manifestar-se sob o sol ou
a chuva, mas sempre ao ar livre. Festa de redenção dos trabalhadores,
da liberação dos seres úteis da Pátria; festa de redenção da Pátria
mesma ao ter a noção cabal de sua liberdade e o conceito claro de sua
soberania (PERÓN, 1984, p. 70; tradução da autora).
Nesse discurso, Perón adjetivava o comportamento dos argentinos “(...) com o
espírito comunicativo da juventude e a alegria contagiosa da verdade”. O povo
argentino teria, finalmente, encontrado um novo interlocutor, que se identificava com o
“espírito comunicativo da juventude”, aliviada do peso do passado. Aquele era o
momento histórico mais marcante da vida política do país, no qual o passado era
execrado e devia ser desertado da memória. O velho dava lugar ao novo. Embora seja
uma faculdade do espírito dos homens ter presente o que irrevogavelmente passou, a
juventude tem menos história, a essência de sua preocupação é o projeto para o futuro.
114
Nas palavras de Perón, o futuro da Argentina, blindado pela alegria que a verdade
proporcionaria, começava, naquela conjuntura de glórias, a ser construído. Assumindo
para si a missão da construção da “nova Argentina” para a juventude e para os
trabalhadores, Perón dizia fazê-lo por amor à Pátria e por desprezo pelo passado.
Afirmava o Presidente:
para mim terminou o tempo do conflito, porque assim me sinto, o
presidente de todos os argentinos, de meus amigos e de meus
opositores (...) daqueles que me têm seguido com seu coração e
daqueles que me têm seguido pelas circunstâncias, daqueles grupos
representados pela maioria do Congresso e por aqueles representados
pela minoria (...) (PERÓN, 1984, p. 70, tradução da autora).
Continuava Perón:
o Parlamento é o instrumento adequado para fazer evoluir o
fundamento jurídico do Estado e para influir na vida do país em suas
mais profundas raízes. Não é um valor caduco, porém o maior ou
menor valor de um Parlamento não é o Parlamento. Não é o sistema.
Sua importância se mede pelo valor dos homens que o constituem.
Sua obra será mais valiosa quanto melhores forem os homens que
ostentem a representação popular (PERÓN, 1984, p. 52, tradução da
autora).
Quando, em seu discurso de posse, Perón pontificou sobre o ideal democrático da
Constituição do país, no que se referia ao “respeito às divergências ideológicas e
doutrinárias, se elas se inspirassem em ideais e deveres fundamentais dos argentinos”,
estavam evidentes as limitações que seriam impostas pelo novo governo aos que dele
divergissem ideologicamente. Aliás, as medidas adotadas no 23 de maio as anteciparam.
Em 23 de maio de 1946, portanto antes da posse, Perón havia tomado medidas
de restrição à liberdade: o Partido Laborista, primeiro canal de representação política
dos trabalhadores, que se propunha a participar dos problemas nacionais em uma
perspectiva diferente daqueles sindicatos, que detinham, até então, apenas uma função
gremial, foi o primeiro a ser excluído do “ar livre”. Embora o partido, criado em 23 de
novembro de 1945, tenha encarnado a verdadeira representação política do 17 de
Outubro e tenha sido um dos baluartes políticos que levou o Coronel Perón à
presidência da república, sua história marcou-se por atritos com o líder. As relações de
Perón com o laborismo, aparentemente fortes, foram se arrefecendo a partir do
115
momento em que os dirigentes do PL passaram a dar mostras de independência
(REYES, 1987).
Cipriano Reyes (1987), um dos mais proeminentes líderes do Partido Laborista,
caracterizou os líderes verdadeiros ou mitológicos referindo-se a Perón, “(...) uns
concedem a seu povo um pouco mais de pão e outros um pouco mais de liberdade,
ainda que não suficiente para que pudessem sentir-se mais felizes, mas ninguém tem
tido ainda o privilégio de dar-lhes ao mesmo tempo pão e liberdade” (p. 143; tradução
da autora). O pão, concedido por Perón aos trabalhadores através da política social,
iniciada em 1943 na Argentina, o sustentou no poder por nove anos. Quanto à liberdade,
o que se pode falar sobre ela em um contexto política em que o trabalhador estava sob a
tutela de um Estado corporativo?
Nas palavras do historiador Félix Luna (1984), “fundado em outubro de 1945, o
laborismo funcionava organicamente em janeiro de 1946, em fevereiro triunfava
sobre todos os partidos tradicionais (...) e em maio, [Perón] o dissolveu” (p. 40,
tradução da autora). O surpreendente não é saber o que Perón queria desde seu
surgimento na política, o surpreendente é, no caso de Cipriano Reyes, a morosidade em
desencantar-se com o líder, dada à proximidade entre os dois. Em seu livro La farsa del
peronismo, Reyes conta a história que ele viveu e apoiou. Sentindo-se traído pelo
presidente, fez a denúncia de algo que, desde o primeiro momento, ele tinha
conhecimento.
O mesmo aconteceu com o setor dissidente da União Cívica Radical, a União
Cívica Radical Junta Renovadora (Colaboracionistas). Os membros da UCR Junta
Renovadora contrariamente aos laboristas, não resistiram às medidas adotadas por
Perón, por razões inerentes à própria fragilidade política do partido. Ainda que se leve
em conta a experiência política dos renovadores, eles careciam de liderança, a qual o
vice-presidente Quijano não tinha condições de exercer. Restava-lhes apenas esperar o
papel que lhes seria destinado dentro das fileiras peronistas (LUNA, 1984).
Em 23 de maio de 1946, acompanhado pelo vice-presidente eleito Hortensio
Quijano, alguns senadores nacionais e o governador da província de Buenos Aires,
Domingo A. Mercante, Perón anunciou, através do rádio, a dissolução da coalisão
partidária que o havia apoiado nas eleições de 1945. No discurso que se seguiu, Perón
denunciou o conflito gerado pela ambição no interior das forças que o apoiaram nas
116
eleições (Partido Laborista e a UCR-Junta Renovadora). Perón destituiu do poder todas
as autoridades partidárias que pertenceram ao Movimento Peronista e anunciou a
criação de um comitê com o propósito de reorganizar todas as forças peronistas em um
único partido. Denominado provisoriamente Partido Único da Revolução Nacional,
passou a chamar-se Partido Único da Revolução ou Partido Único, até janeiro de 1947,
quando foi confirmado o nome de Partido Peronista.
105
Em flagrante coerência com
outros discursos, o personalismo e o individualismo deixaram sua marca no próprio
nome do Partido.
A partir de agosto de 1946, iniciou-se a formação do Partido Único o qual,
segundo Perón, seria o partido revolucionário por excelência e não receberia comitês de
nenhuma outra agremiação. Perón não vacilou em colocar em ação o plano de
concentrar as tendências favoráveis a seu governo em uma única força, sob sua égide.
Assim, o Presidente assumia o papel que, desde 1944, atribuíra a si: o de conductor.
Dois anos depois, o presidente foi escolhido pelo povo para conduzi-lo, tal qual Moisés,
iluminado por Deus, fora escolhido pelo povo hebreu.
Como conductor do país, Perón ultrapassava os limites humanos para entrar no
plano transcendental e ser visto como um homem predestinado.
Em discurso proferido em 12 de agosto de 1944, Perón (1948) afirmou que:
ninguém na história pode improvisar seus condutores nem seus
governantes. Deus soube predestinar, com uma oportunidade
extraordinária, a vida dos homens, que em seus séculos representaram
verdadeiros meteoros destinados a queimar-se para iluminar o
caminho da felicidade. Como não tem arte sem artista, também não
condução sem condutor, nem governo sem governante (p. 98;
tradução da autora)
106
.
Escolhido por Deus, que lhe concedera os dons de condutor, Perón entendeu que o
povo, ao segui-lo, revelou ser portador do dom da intuição: “Para ser condutor não é
suficiente compreender; nem a reflexão nem o raciocínio permitem conduzir as massas.
As massas se conduzem com intuição; e a intuição Deus a concede” (PERÓN, 1948,
p. 99; tradução da autora). Tal raciocínio traz embutido dois pontos significativos: a
dimensão espiritual, freqüentemente reiterada por Perón em seus discursos, e a
105
Ver sobre a formação do Partido Peronista, Mackinnon (2002).
106
Nesse discurso. Perón critica Gabriel Tarde, autor do livro A psicologia das multidões, publicado pela
primeira vez em 1901. Segundo Perón, Tarde era um psicólogo, não um condutor, por isso não entendia
do assunto.
117
dimensão material, representada pela proteção das massas que se rendiam ao novo
presidente. A dimensão espiritual protegia o presidente de qualquer acusação na medida
em que ele fora uma criação superior, fora escolhido por Deus. A dimensão material
expressava-se nos benefícios sociais que Perón foi capaz de proporcionar à massa,
então rendida ao condutor. Assim, Perón anunciava seu poder desde 1944: “(...) o
condutor nasce. Não se faz nem por decreto nem por eleições. Conduzir é uma arte, e
artista se nasce; não se faz (...) Seguros dessas verdades, temos que governar
racionalmente, procurando aproximar-se o mais possível da perfeição na condução de
nosso povo” (PERÓN, 1948, p. 99, tradução da autora).
Especialmente usado na Europa, na década de 1920, principalmente quando da
emergência dos governos totalitários, o termo massas, para designar as classes
trabalhadoras, apareceu em contraposição aos termos minorias ou elites. Segundo
Ortega y Gasset (1962),
a rigor, massa pode definir-se como fato psicológico, sem necessidade
de esperar que apareçam os indivíduos em aglomeração. Diante de
uma só pessoa podemos saber se é massa ou não. Massa é todo aquele
que não se valoriza a si mesmo no bem ou no mal por razões
especiais, mas que se sente “como todo o mundo”, e, entretanto, não
se angustia, sente-se à vontade ao sentir-se idêntico aos demais (p. 59-
67).
Para o autor, as massas não são compostas por operários, massa não é a
designação de uma classe social, mas um modo de ser homem, que ocorre hoje em todas
as classes sociais.
Agesta (1959, p. 213) considera a massa o elemento amorfo e indiferenciado ante
o chefe, que a conduz e a quem aclama. Hannah Arendt (1990) associa a organização
das massas aos movimentos totalitários. São movimentos que dependem da força
numérica, mais do que qualquer outro grupo político:
o termo massa se aplica quando lidamos com pessoas que,
simplesmente, devido ao seu mero ou à sua indiferença, ou a uma
mistura de ambos, não se poderiam integrar numa organização
baseada no interesse comum, seja partido político, organização
profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas
existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e
politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e
raramente exercem o poder de voto (p. 363).
118
Referindo-se à ascensão do movimento nazista na Alemanha e aos movimentos
comunistas da Europa depois de 1930, Arendt afirma que esses recrutaram os seus
membros dentre essa massa de pessoas aparentemente indiferentes. No caso, essas
pessoas teriam sido abandonadas por todos os outros partidos, por lhes parecerem
apáticas ou medíocres para serem merecedoras de sua atenção. A maioria dos membros
que compunha as massas consistia em elementos que nunca antes haviam participado da
política. Isso deu abertura à introdução de métodos novos de propaganda política e à
indiferença aos argumentos da oposição. Conseqüentemente, os movimentos colocados
fora do sistema dos partidos e rejeitados por ele puderam moldar um grupo que nunca
havia sido atingido por nenhum dos partidos tradicionais (ARENDT, 1990, p. 363).
Elias Canetti (1995) reconhece, como o momento da constituição das massas,
aquele em que todos que a compõem desvencilham-se de suas diferenças e passam a
sentir-se iguais. Essas diferenças são, para o autor, imposições exteriores, determinadas
pela hierarquia, pela posição social e pela propriedade. O essencial, na concepção do
autor, não reside na caracterização de uma a uma dessas hierarquias, uma vez que elas
existem por toda parte. A questão encerra-se na consciência dos homens e determina
decisivamente o seu comportamento para com os outros. É exatamente essa situação
hierárquica que conduz o homem à perda da liberdade de movimentos:
em suas distâncias o homem se faz rijo e sombrio.(...) Daí o anseio por
libertar-se dessas cargas que indubitavelmente levam as pessoas a se
arrastarem sob seu peso, além de não saírem do mesmo lugar. A
libertação das cargas da distância, será promovida se houver a
união de todos. Na descarga, deitam-se abaixo as separações, e todos
se sentem iguais (CANETTI, 1995, p. 17).
É em razão deste momento feliz, no qual ninguém é mais ou melhor que o outro,
que os homens se transformam em massa (CANETTI, 1995, p. 17).
Reconhece-se a importância da discussão sobre o caráter, as características e o
contexto histórico em que a emergência das massas. No caso específico do
peronismo, a utilização dos termos “massas trabalhadoras” ou “massa peronista” serve
mais para enfatizar o setor que socialmente foi o alvo de Perón. É evidente que as
considerações e conjecturas teóricas sobre a categoria de análise em questão podem ser
utilizadas no sentido de aproximar ou distanciar o peronismo de outros movimentos. Os
termos classe ou massa operária foram usados indiscriminadamente por Perón.
119
A massa peronista contém em sua formação alguns ingredientes sugeridos pelos
teóricos, mas ela tem outros que a descaracterizam como massa. Não há dúvida de que a
fisionomia que assumiu a relação entre Perón e os trabalhadores era bem diversa
daquela que se produziu entre Hitler e a “massa indiferente” discutida por Arendt. Um
dos respaldos mais fortes para sustentar esta idéia é a composição social dos eleitores de
Perón, representantes de vários setores da sociedade argentina, incluindo grande parte
da classe trabalhadora, novos e velhos sindicalistas, migrantes rurais e parte da classe
média. Outro fator importante foi o apoio a Perón da CGT e de vários sindicatos que,
fracos ou fortes, constituíram, após 1943, os canais institucionais de participação
política mais eficazes. Este é um aspecto para não aceitar a tese que destaca a “massa
indiferente” ou mesmo o “elemento amorfo e indiferenciado ante o chefe” de Agesta,
mas, em contrapartida, a condução do chefe, apontado por este mesmo autor, foi
inegável no caso da Argentina. Embora os conceitos de Ortega y Gasset e Canetti sejam
diferentes, o “sentir-se iguais” assemelha-se e aproxima-se do caso argentino. Nesse
ponto, considera-se que a “massa peronista” revela um modo de ser homem o
trabalhador argentino; produz-se uma articulação nesse ajuntamento –, Perón-
trabalhador; e o “sentir-se iguais” se concretiza nas leis trabalhistas. A força
emblemática do termo é quase um simulacro usado por Perón para reforçar a idéia de
popularidade.
O carisma inquestionável de Perón foi de fundamental importância para a adesão
das massas ao peronismo. A gênese da implantação do Estado autoritário na Argentina
se deu a partir de uma interação entre Perón e a classe trabalhadora, uma simbiose
peculiar, por meio da qual atores com poderes desiguais foram inteiramente
dependentes entre si.
Analisando a autoridade carismática, Weber (1982, p. 287) assinala que o
governante autenticamente carismático é responsável precisamente perante aqueles que
governa. É responsável apenas por uma coisa, que ele, pessoal e realmente, seja o
senhor desejado por Deus. Acima de tudo, porém, sua missão divina deve ser
“provada”, fazendo com que todos, ao se entregarem fielmente a ele, se saiam bem. Se
isso não acontece, o conductor, não é o mestre enviado pelos deuses. Acreditava Weber
(1984) que o líder carismático pode aparecer como resultado de um processo de
comunicação de caráter emotivo. De outro lado, o reconhecimento das qualidades do
120
líder pelos liderados é “(...) psicologicamente, uma entrega plenamente pessoal e cheia
de fé, surgida do entusiasmo ou da indigência e da esperança” (...) (p. 94).
O papel de conductor foi reiterado em discurso pronunciado na Primeira
Assembléia Nacional do Partido Peronista em 1949, quando Perón se opôs ao rótulo de
caudilho, que lhe fora atribuído um sem número de vezes.
107
Na concepção de Perón, o
caudilho apenas improvisaria, andaria por entre as coisas criadas por outros, atuaria
inorganicamente, enquanto o condutor planejaria e executa, cria coisas novas, organiza.
A diferença está no fato de ser o caudilhismo apenas um ofício, enquanto a condução é
uma expressão da arte (PERÓN, 1984, p. 23). A condição de caudilho foi rejeitada pelo
presidente que, ao ressaltar e denegrir as características desse político tradicional,
aproveitou para reforçar sua identidade de condutor, com toda a grandeza que, até
aquele momento, sua posição de líder carismático lhe assegurava. Com esse discurso,
Perón referendava sua missão, provando sua força como “o realizador”.
A adesão dos trabalhadores a Perón e a reação da esquerda
A adesão ao peronismo ficou clara nas manifestações de apoio prestadas a Perón
por vários sindicatos argentinos e na expressiva adesão à CGT.
108
Entretanto, o apoio a
107
Caudilho é o típico governante latino-americano do século XIX, que exercia o poder através do
autoritarismo tradicional, personalismo e individualismo. Em geral, o caudilho atuava frente a uma massa
de indígenas ou de sujeitos conformados com a vontade de seus líderes (PERÓN, 1952, p. 177).
108
Em 1 de março de 1947, El Obrero Ferroviário noticiou a manifestação pública organizada pela CGT,
pela comemoração do primeiro aniversário dos históricos comícios que levaram o General Perón à
cadeira de Rivadavia. Segundo o editor, “a demonstração das forças operárias agrupadas ao redor do
governo, e plenamente identificadas com ele em sua sábia política de justiça que no transcurso de 12
meses tem transformado o panorama social da República” (Editorial El Obrero Ferroviário, Buenos
Aires, Año XXVI, 1 de marzo de 1947, n. 536; tradução da autora). Em janeiro de 1948, a Federação da
Carne manifestava seu apoio a Perón: “Sem o terrível contrapeso comunista podemos criar e fortalecer as
verdadeiras organizações sindicais em nossa indústria e logo conquistar condições de trabalho e salários
que quando nossos presentes ‘salvadores’ nos amparavam parecia um maravilhoso sonho irrealizável”.
Negando o comunismo, o redator prossegue afirmando que libertado o trabalhador desse mal (o
comunismo), resta-lhe “apoiar a realização das obras previstas e o plano qüinqüenal do governo de
Perón” (Editorial El Trabajador de la Carne, Buenos Aires, Enero de 1948, Año I, n. 1; tradução da
autora). Em 1948, o presidente do Sindicato do Pessoal do Micro-ônibus da Província, Umberto Leon
Pereyra, em comício peronista informou oficialmente o apoio da categoria ao Presidente. No mesmo
comício, pronunciou-se também o presidente da Unión Ferroviária, Pablo C. Lopez, confirmando o apoio
da classe a Perón (Editorial La Hora, Buenos Aires, Año XIV, n. 1.636, 3 Dec., 1948; p. 16-17). Segundo
Alexander Robert: “Até meados de 1945 Perón transformou o movimento sindical em uma poderosa
máquina política pessoal. (...) Embora alguns sindicatos se mantivessem hostis a Perón, seu número, no
final de 1945, era comparativamente menor. O USA foi quase liquidado quando a maioria de seus
sindicatos mais importantes se juntaram a Perón e apoiaram a CGT (...)” (ALEXANDER, 1962, p. 175;
tradução da autora).
121
Perón não significava a afiliação automática à Central Operária (CGT). Um exemplo foi
a história do sindicato dos ferroviários, La Fraternidad, sob forte influência socialista.
Em dezembro de 1945, La Fraternidad dedicou uma página de sua revista para
justificar a supressão das notícias e comentários sobre política social e econômica. De
acordo com seuCuerpo Directivo”, as questões de alta política deveriam ser colocadas
publicamente, assim como conviria aos cidadãos de qualquer país. Censurar o regime
poderia ser a expressão de um sentimento, mas não deveria conter a intenção de incitar
seus membros a “fazer política”. No entanto, comissários da polícia vinham
periodicamente molestando seccionais do sindicato para se pronunciarem sobre a
política do país. A fim de evitar perturbações e para que o sindicato não fosse objeto de
ameaças externas, todo o comentário político foi suspenso (La Fraternidad, n. 828,
Diciembre de 1945, p. 737).
Desligado da CGT em 1945, em 1948, o sindicato congratulou Perón pela
criação do Instituto Nacional de Provisão Social. Segundo o editorial do periódico La
Fraternidad, a criação do INPS resolveu uma necessidade clamorosa da sociedade,
dando uma nova fisionomia à ação revolucionária. Pela primeira vez no país, o governo
colocou, como programa principal, uma política acerca deste tema, com um destino
claro e de evidente eficácia (La Fraternidad, Ano XLI, n. 878, Enero de 1948, p. 5).
O alinhamento dos sindicatos mais combativos e de primeira linha na economia
(ferroviários, indústria da carne, indústria têxtil) à política de Perón dá o testemunho das
vantagens sociais adquiridas pelos trabalhadores e possibilita a compreensão de que o
corporativismo peronista, em relação com os governos anteriores, não foi tão mal para
os trabalhadores. Os sindicatos mais fortes da Argentina sempre estiveram sob a
influência dos partidos de esquerda, e esses não tiveram condição de oferecer uma
alternativa aos trabalhadores que rivalizasse com Perón. A eleição de Perón deixou
explícito o desprestígio da esquerda e o colapso das possibilidades de implantação dos
regimes identificados com o marxismo, pelo menos a curto prazo.
A entrada das massas no cenário político, ainda que conduzidas pelas mãos de um
governante autoritário, representou, também, uma ameaça às oligarquias tradicionais. O
notável, porém, é que a burguesia argentina demorou a perceber que Perón as conduzia
com rédea curta, protegendo-as da ameaça dos debaixo. A política trabalhista do
governo de Perón tinha uma intenção bem clara: manter a massa sob controle. Para
122
controlá-la, o Estado não poderia desconhecê-la, a menos que quisesse se confrontar
com a eclosão de uma forte convulsão social.
Sugere-se que a interpretação simplificada do marxismo, que aponta o Estado
como o representante dos interesses da burguesia, não considerou que esse mesmo
Estado poderia ter estratégias para defender os negócios da burguesia e, ao mesmo
tempo, controlar as massas através de políticas paternalistas, como a de Perón, por
exemplo. Segundo Perón (1955), “buscamos suprimir a luta de classes suplantando-a
por uma acordo justo entre operários e patrões, ao amparo da justiça que emana do
Estado (...)” (p. 14; tradução da autora).
A proposta também vinculada à tradição de esquerda, de que os partidos políticos,
representantes dos trabalhadores, nunca deveriam fazer alianças políticas com os
partidos burgueses, não foi colocada em prática. No caso argentino, o Partido
Comunista, perante o impasse político, apoiou Perón. de se ressalvar que as
manifestações de apoio à política peronista tiveram um caráter contingencial e não
ideológico. Ainda que o PC fosse contra o tipo de Estado ou política que o peronismo
implantou, aquele não era considerado o momento propício para medir forças.
Entretanto, o PS manteve sua política de oposição cerrada ao peronismo e apoiou a
União Democrática, que era avessa à esquerda.
O peronismo deixou na história do movimento operário argentino uma perspectiva
sombria para o futuro, uma vez que o apoio a Perón representava um retrocesso para
alguns setores. O peronismo teve a função de desestabilizar e inibir a possibilidade de se
aplicar na Argentina o conjunto de políticas alternativas à exploração capitalista, o
comunismo, que se vislumbrara para a história do mundo a partir do século XIX. E
mais, a considerar a correlação das forças sociais até 1943, não parece um equívoco
pensar que o peronismo provocou uma revolução (termo usado pelos peronistas) no
país, ainda que dirigida do alto. O capitalismo e suas forças não foram para a Argentina
um momento transitório a ser superado. A conjuntura política da época demonstrava
que havia outras formas, ainda que menos dignas, do proletariado obter vantagens,
apoiando outro tipo de Estado.
Habilmente, e imediatamente após tomar posse na Secretaria do trabalho, Perón
apontava os governos anteriores como os responsáveis pela insatisfação geral da
sociedade. Segundo ele, a ausência de uma orientação inteligente da política social e de
123
um ideal coletivo impedia que as associações profissionais se desenvolvessem de forma
que se distinguissem do sindicalismo anárquico ou de simples sociedades de resistência
à intransigência patronal e à indiferença do Estado. Essa era a marca característica do
Estado abstencionista, que, frente a cidadãos isolados, desamparados e economicamente
débeis, teria seu poder gradativamente fortalecido (PERÓN, 1955, p. 12-14; discurso
proferido em 2/12/1943, tradução da autora). As imagens produzidas por tais discursos,
que pontilharam toda a trajetória política de Perón, estavam impregnadas de um
conteúdo que potencializava o sentimento de desamparo das massas. A essa indiferença
interna associava-se o inimigo externo, representado por “falsos apóstolos e por falsas
ideologias”. A esses era atribuído um rosto: o do comunismo.
O Perón consciente das desilusões pretéritas apresentava às massas o diagnóstico
e o antídoto. Na distinção entre o Bem e o Mal, as medidas para a realização do Bem
clamavam urgência:
queremos desterrar os fatídicos germes que os maus políticos
introduziram nas organizações gremiais para debilitá-las, fracioná-las
e explorá-las em benefício próprio. Por isso, lutamos: para desterrar a
sofistica promessa pré-eleitoral que tem permitido que nossos
operários vivam em regime arcaico e careçam de garantias frente a um
caudilho (...), que explora seu trabalho e os paga com papéis sem
valor, para que se veja na necessidade de entregá-los novamente a esse
patrão, mistura de amo, de negreiro e de legislador de conveniência
(PERÓN, 1955, p. 15; discurso proferido em 1/5/1944, tradução da
autora).
Perón retratava a sociedade argentina ameaçada pela desordem. Cabia ao Estado
reverter esse quadro político-social e enquadrá-lo no mundo da ordem, que traria a
possibilidade de previsibilidade. Propunha a noção de que a reorientação do papel do
Estado daria conta de resolver a desordem, através da organização corporativa. Os
setores dominantes deveriam estabelecer uma colaboração com o operariado e convergir
suas tensões para o Estado que seria o novo árbitro dos conflitos sociais.
o patrão é um homem que em sua vida tem a oportunidade de
melhorar suas condições intelectuais e, se não o faz, é porque não
dispõe de inteligência, entretanto ele conta com o dinheiro suficiente
para comprar a inteligência dos que a têm. Sempre encontra homens
pouco honrados para suborná-los (...) (PERÓN, 1955, p. 24; discurso
proferido em 4/8/1944, tradução da autora).
124
Esses que venderiam a sua inteligência estariam entre os “trabalhadores”, que não
podendo prescindir do dinheiro, tornavam-se venais perante a classe dominante. Perón
apontava, ainda, outro elemento perigoso, o não-patrão, aliado por razões indignas
àquele que, em última análise, também seria seu inimigo. Em outras palavras, o
trabalhador estaria cercado de inimigos, de um lado, o patrão e, de outro lado, seu igual,
mas que, por estar perto dos que mandavam, exerceria um tipo de poder que não
passava de uma outra forma de subserviência aos que realmente mandariam.
109
O servir
do operário era decorrente da ausência de condições de se rebelar contra o poder
estabelecido. O servir do indivíduo venal era uma forma falaciosa e falsa de se ter o
poder. Em síntese, afirmava que, na sociedade argentina, todos estavam contra todos.
110
Referindo-se ao operário, Perón reiterou sua atitude paternalista e protetora:
o operário, diferentemente, se salva por seus próprios meios, escassos
e rudimentares, e nunca dispõe de dinheiro suficiente para comprar o
que não tem. Em conseqüência, os conflitos são sempre decididos a
favor do patrão que tem sempre a possibilidade de contar com os
favores da justiça (PERÓN, 1955, p. 24; discurso proferido em
4/8/1944; tradução da autora).
Perón se colocava como o olho que via, capaz de perceber a sociedade em suas
mais recônditas vilezas e as denunciar. A difusão do medo e da insegurança foram
armas poderosas para fragilizar as massas e deixá-las ávidas e clamorosas por um
protetor. Foi através de seu olhar, que Perón examinou, comparou, mediu e concluiu,
com a lucidez da própria consciência, o que separava as duas classes.
A intenção política nessa denúncia ultrapassava uma simples constatação ou uma
contemplação resignada. O discurso tinha a finalidade de constatar e, depois informar,
sobretudo aos operários, sua situação de inferioridade atávica e, o que é pior, a
impossibilidade de alterar suas condições dentro do quadro político-social que até então
caracterizava o país. Nesse sentido, o olhar de Perón para a sociedade argentina não foi
apenas uma luz que deu transparência ao real, mas uma força que penetrou naquela
109
“Assim o tirano subjuga os súditos um através dos outros, e é guardado por aqueles de quem deveria se
guardar, se valessem alguma coisa: mas, como se diz, para rachar lenha é preciso cunhas da própria
lenha”. (BOÉTIE, 1982, p. 33).
110
No capítulo XIII do Leviatã (Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e
miséria), Hobbes (1979) mostra que, na natureza do homem, encontramos três causas principais de
discórdia: “A competição, a desconfiança e a glória (...) Com isso se torna manifesto que durante o tempo
em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se
encontram naquela condição a que se chama a guerra: é uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens” (p. 75).
125
sociedade e propôs sua transformação o mundo social argentino, como estava, era
inviável: a massa precisava ser protegida.
Não foi desprovido de uma intencionalidade que Perón se apresentava em
prontidão desde suas primeiras aparições em público,
para defender os que lutam e trabalham para construir a grandeza da
Nação, defendo a Pátria em cumprimento de um juramento em que
empenhei minha vida. E a vida é pouco quando é necessário oferecê-la
no altar da Pátria (PERÓN, 1955, p. 12; discurso proferido em
2/12/1943, tradução da autora).
As críticas ao passado, as projeções para o futuro, a recorrente denúncia nos
discursos não foram gratuitas. Paulatinamente, Perón foi construindo no imaginário da
classe operária uma espécie de delírio persecutório, que se expressava na
indispensabilidade de um salvador.
111
Desde seus primeiros pronunciamentos, Perón
defendeu o princípio da ordem. através da sociedade ordenada é que os homens
alcançariam a felicidade, traduzida no bem estar e na justiça social. A distinção entre a
ordem e a desordem garantiria a essencialidade do Estado disciplinador e autoritário,
sinônimo da ordem. A desordem tinha que ser enfatizada em todas as suas formas. O
comunismo, a exploração burguesa, a ausência de leis trabalhistas, a violência, a miséria
nas cidades e no campo, eram apenas algumas das partes indicadas como constitutivas
do imaginário da desordem, a grande provocadora da crise que o país atravessava. A
restauração da ordem e da racionalidade subtraída pela desordem, se daria a partir da
formação de uma “comunidade organizada”, formada por homens dedicados ao trabalho
e ao engrandecimento da Pátria.
Perón sempre advogou pela organização dos trabalhadores em uma confederação.
Combatia a divisão política dos grêmios que, em suas palavras, não passava de um ardil
dos interessados em prejudicar os trabalhadores. Sustentava que os que queriam um
sindicalismo político, um sindicalismo socialista, não agiam em defesa do sindicato,
mas falavam em nome dos partidos políticos. O sindicalismo deveria ser gremial para
eliminar as tendências ideológicas e as divergências entre trabalhadores de uma mesma
111
Canetti (1995) discute a questão do sentimento de perseguição das massas a partir de uma dupla
ameaça: a interior e a exterior. “Os muros exteriores são estreitados progressivamente, e os porões
interiores cada vez mais minados”. No caso das “massas peronistas”, o sentimento de perseguição, além
do natural da classe dominada, ainda era estimulado pelo discurso ameaçador de Perón. Do interior
ameaçavam os patrões, do exterior os “falsos apóstolos” infiltrados entre os trabalhadores indefesos (p.
22).
126
categoria. Referindo-se à função do sindicalismo, afirmava Perón (1955): “Tenho
sustentado e continuo sustentando que todos os homens que se ocupam do mesmo
trabalho se agrupem em um sindicato, porque o sindicalismo deve ser gremial e não
político, nem religioso, nem de nenhuma outra natureza” (p. 24; discurso proferido em
4/8/1944, tradução da autora).
A defesa do sindicato único foi a tônica nos discursos de Perón desde 1943. A
organização dos trabalhadores era, para ele, ponto vital para que melhor pudesse
manejá-los e eliminar, através da filiação a CGT, qualquer influência ideológica
estranha. Contradizendo seu empenho em organizar os trabalhadores, Perón, que se
auto-denominava “el conductor”, atacava os defensores do pluralismo gremial,
defendendo a autonomia da classe que ele próprio atrelava ao Estado. Sob o domínio de
uma retórica emocionada, Perón (1955) concluía:
podem querer a divisão dos grêmios os que estão interessados em
debilitá-los para prosperar a sua sombra. Não necessitam protetores,
nem condutores ideológicos. Nossa massa trabalhadora é consciente,
capaz e pode e deve dirigir-se só. E assim o exigiremos porque não
estamos dispostos a permitir que nenhum elemento estranho, se
infiltre no corpo forte dos organismos sindicais para seu prejuízo e
trair seus interesses (p. 21; discurso proferido em 23/7/1944, tradução
da autora).
Percebendo os problemas das massas, Perón assumiu uma atitude combativa em
relação aos adversários e mostrou o caminho da recuperação da condição humana
negada aos seus protegidos. Isso posto, a primeira batalha estava vencida. A articulação
política foi feita através da denúncia da realidade injusta que os trabalhadores viviam,
através das soluções apresentadas por ele próprio para a superação do problema, e o
adiantamento do resultado positivo que, por certo, todos “unidos”, em situação de
“igualdade”, desfrutariam em um porvir muito próximo.
Indiferente aos que o aconselhavam e lhe mostravam os perigos de tal
empreendimento, Perón, destemido, lutaria por sua causa até o fim. Com ele estava a
palavra final e silenciadora em nome da sua verdade, que foi mostrada e demonstrada
como absoluta e irrefutável.
A partir da análise feita acima, conclui-se que a estratégia da ação de Perón com
relação aos sindicatos se deu através de um processo simultâneo de persuasão e ação
coercitiva de cima para baixo, mas com a anuência dos “de baixo”. Estabelecidas as
127
regras do jogo, a força do peronismo era um exercício de consideração sistemática das
paixões e da relação com o poder. O tempo dessa paixão, na história, é irrelevante, mas
foi suficiente o bastante para que os operários se perfilassem junto ao chefe e
legitimassem seu poder.
Perante a astúcia política de Perón, a esquerda argentina não soube como lidar
com a classe trabalhadora e preveni-la contra os ardis do líder: essa foi a preocupação
central dos comunistas no período que antecedeu às eleições e à vitória de Perón. Os
comunistas estavam conscientes que uma parte representativa da classe operária e das
massas trabalhadoras estava sob a influência do peronismo. Através de sua própria
experiência, o PC se dava conta da impossibilidade de resolver os grandes problemas
econômicos e sociais do país através da ação de 'homens providenciais.' Na sua
concepção, os problemas deveriam ser resolvidos através da luta independente da classe
trabalhadora, dirigida por sua própria organização sindical, por sua organização
campesina, por seus comitês de luta nas cidades e no campo e, sobretudo, por seu
partido de classe, o PC.
Em dezembro de 1945, Victorio Codovilla (1946), presidente do PC, isentava as
massas por terem sido enganadas pela demagogia peronista:
(...) não incorramos no erro de culpar as massas de incompreensão,
pois os responsáveis somos nós, que não soubemos fazê-la
compreender com suficiente clareza (...). As tarefas que se farão
realizar neste período são muito complicadas e duras. Para realizá-las
com êxito, é preciso que nosso partido demonstre, por sua capacidade
política, por seu trabalho de organização, por seu empenho na luta,
que cumpra com seus propósitos de estar sempre à vanguarda da luta
comum de toda a democracia para vencer o inimigo nazi-fascista (p.
48; tradução da autora).
112
Os comunistas argentinos sabiam que concorrer com Perón àquela altura era
impossível. A adesão à CGT aumentara gradativamente desde 1943, o que ameaçava a
liderança dos partidos de esquerda no movimento operário em seu conjunto. Como
resultado da política social implantada pela Secretaria de Trabajo y Previsión, Perón
garantira o apoio dos trabalhadores beneficiados pelas novas leis. Os comunistas
estavam cientes desse fato. O 17 de outubro havia sido uma prévia de qual seria o
112
CODOVILLA, Victorio. Nazi-peronismo - Informe presentado ante la IV Conferencia Nacional del
Partido Comunista el 22 de Diciembre de 1945. Buenos Aires: Anteo, 1946. In : CODOVILLA, V. Una
trayectoria consecuente.
128
resultado das eleições. O que faltou à esquerda argentina, ao aliar-se à Unión
Democratica contra Perón nas eleições de 1946, foi uma organização sólida e um plano
e direção únicos. Não existia uma unidade entre as forças democráticas: os partidos de
esquerda, que votaram na mesma fórmula presidencial, apresentavam sua lista em
separado. A maioria dos dirigentes socialistas polemizou, no curso da campanha
eleitoral, com os comunistas e os outros aliados. Naturalmente que esses desajustes
calcados na intransigência ideológica beneficiaram e fortaleceram a campanha eleitoral
peronista.
Matsushita (1983) considera que o problema do PS estava em sua debilidade
estrutural com respeito ao movimento operário. O partido, de acordo com o princípio da
independência entre o grêmio e a política, permitia que os operários de tendência
socialista atuassem livremente no campo sindical. O autor discorda de Laurence
Stickell, que afirma ser a prioridade dada pela esquerda ao esforço de guerra a favor dos
aliados, o responsável pelo vazio de liderança habilmente preenchido por Perón. Para
Matsushita (1983), esse vazio existia antes da guerra. Por isso, quando os líderes do PS
viram o perigo na política de Perón, careciam de autoridade para fazer seus afiliados se
oporem a ele.
Quanto ao PC, o autor considera que sua debilidade tem origem diversa:
os comunistas eram contra a independência entre o grêmio e o
político, posto que conforme suas idéias, o grêmio devia estar a
serviço do político. A debilidade fundamental dos comunistas
radicava em sua incapacidade organizativa, pois, à exceção da FONC,
não conseguiram organizar grêmios que abarcassem uma parte
considerável dos operários em qualquer setor da indústria. Além disso,
a baixa sindicalização dos grêmios da linha comunista se deve, em
parte, à perseguição governamental, mas também à alta mobilização
social que caracterizava a sociedade argentina. Essa mobilidade
evidentemente não favorecia aos comunistas que se baseavam na
teoria da luta de classe (MATSUSHITA, 1983, p. 282-285; tradução
da autora).
De resto, essa característica da sociedade argentina afetou igualmente os
socialistas.
A criação do Partido Laborista (PL) foi um fato inédito na história do movimento
operário. A CGT não foi omissa ou indiferente à formação do PL. Pelo contrário, os
sindicalistas tinham consciência que o momento histórico (o fim da Segunda Grande
129
Guerra, por exemplo) demandava uma ação mais atuante por parte da classe
trabalhadora, a qual poderia ser efetivada através dos canais institucionais. Se o
sindicato era um canal institucional legal, um partido político composto por
trabalhadores faria, quando nada, oposição aos partidos políticos tradicionais, mais
conservadores, que defendiam um sistema social oposto ao reivindicado pela classe
trabalhadora. Isso não significa afirmar que o PL. tenha sido criado pela CGT, mas é
oportuno chamar a atenção para o fato de que a recusa de grande parte dos sindicatos de
se filiarem, naquele momento, aos partidos comunista e socialista, representou um
ganho para a nova ordem política que se instalava.
113
Esse dado reforça dois pontos: o primeiro foi a tensão manifestada pelos
comunistas quanto à influência do peronismo entre os trabalhadores; o segundo foi o
apoio de grande parte dos trabalhadores ao PL. A existência histórica de partidos
políticos de esquerda na Argentina não influiu no resultado das eleições de fevereiro de
1946 ficando patente o esvaziamento nas fileiras da esquerda.
A recorrência histórica do desentendimento entre comunistas e socialistas
certamente foi o fator que inviabilizou uma atuação unificada e sólida da esquerda para
concorrer nas eleições presidenciais de 1946. Os dois partidos assumiram posições bem
diferentes em relação ao novo governo, claramente demonstradas no tom e no conteúdo
dos seus discursos. Ao lado disso, outro fator que colaborou para enfraquecer a
esquerda, foi o aumento do volume de inscrição de associaciones profesionales junto
à “Direción General de Trabajo y Acción Social Directa”.
114
O Decreto-Lei 23.582, de 1945, foi importante para o movimento operário
argentino. Como parte fundamental da política trabalhista de Perón, ele traduzia
intenção oficial de colocar a organização dos interesses sociais sob a supervisão do
113
O Partido Laborista foi formado com o apoio inicial de 11 diferentes sindicatos, entre os quais 9 eram
filiados à CGT. Dos 15 membros que integravam o Comité Diretivo Central do Partido, 12 pertenciam a
grêmios confederados, sendo 4 deles membros do Comité Central Confederal de la CGT (PONTIERI,
1972).
114
Pelo Decreto-Lei n. 23.582, de 2 de outubro de 1945, ficou garantida a livre associação de
trabalhadores. Do seu artigo consta:A associação profissional poderá constituir-se livremente e sem
necessidade de autorización prévia, sempre que seu objetivo não seja contrário à moral, às leis e às
instituições da Nação”. Em 1947, a Revista del Trabajo y Previsión apresentou um quadro demonstrativo
do número de associações inscritas:
Inscritos em 1945....................... 5
Inscritos em 1946......................221
Inscritos em 1947......................227
Até o fim de 1947, a Secretaria contabilizava o total de 1.066 inscrições e pedidos de “personeria
gremial” em estudo. (Revista de Trabajo y Prevision, Buenos Aires, oct./nov./dez. 1947, p. 110-111,
tradução da autora).
130
Estado. Inspirado no modelo corporativista da Carta del Lavoro da Itália de Mussolini,
o decreto,
por um lado, consagrava formalmente a liberdade sindical ao
estabelecer que para o reconhecimento de uma organização gremial só
era exigido sua inscrição em um registro especial. Por outro lado,
condicionava essa “liberdade de afiliação” ao distinguir entre dois
tipos de associações: as simplesmente inscritas e as que possuíam
personeria gremial”. Enquanto as primeiras poderiam atuar como
qualquer entidade civil, as segundas foi dado o direito de negociar os
convênios de trabalho. A abertura para a negociação teve uma
influência inegável sobre a decisão individual de afiliar-se (DOYON,
2002, p. 370; tradução da autora).
Considerado o marco legal da expansão sindical, o Decreto-Lei 23.582 reservou
aos poderes públicos a concessão da personeria sindical”. Essa concessão habilitava o
sindicato com mais afiliados a exercer o monopólio da representação dos trabalhadores
em um determinado âmbito territorial. Analisando o impressionante crescimento do
movimento operário organizado, Doyon mostra a afluência sem precedentes dos
trabalhadores urbanos aos sindicatos e a febril atividade destes sob os auspícios do
governo. Enquanto nos sistemas liberais os conflitos de representação eram resolvidos
através de instâncias propriamente sindicais, o decreto de 1945 estabelecia que a
competência para dirimir esses conflitos correspondia às autoridades, as quais julgavam
a personeria gremiale avaliavam as credenciais dos sindicatos. Nessa perspectiva, “a
outorga do monopólio de representação permitiu descriminar a favor dos sindicatos
favoráveis à política de Perón e desarticular seus adversários” (DOYON, 2002, p. 371).
Comunistas e Socialistas no pós-46
No pós-46, os comunistas decidiram adotar um comportamento político marcado
pela vigilância ao novo governo, como uma política definida no XI Congresso Nacional
do Partido, em agosto de 1946.
O presidente do Partido Comunista, Victorio Codovilla, pronunciou um discurso
no qual explicou detalhadamente as razões da derrota da Unión Democratica em
fevereiro de 1946. Codovilla referiu-se ao resultado das eleições utilizando palavras que
amenizavam o amargo sabor da derrota: falava da possibilidade da vitória retroativa. As
131
promessas eleitorais voltaram à fala de Codovilla, na qual o condicional passou à
categoria do real, minimizando, com esse recurso, os erros da campanha eleitoral.
Segundo Codovilla (1947), o partido tinha a firme convicção de que o triunfo da
coalizão da União Democrática:
teria sido uma garantia de que o povo obteria amplas liberdades
democráticas para poder lutar com êxito por seus interesses imediatos
de caráter econômico, político, social e cultural, para impulsionar
nosso país para o progresso, a liberdade, o bem-estar social e a
independência nacional (p. 128; tradução da autora).
Depois de afirmar a convicção dos membros do partido sobre o futuro frustrado,
Codovilla (1947) voltou-se contra os eleitores:
por isso cremos e afirmamos, uma vez mais, que os operários,
camponeses e de outros setores populares, que votaram pelo candidato
continuista na crença de que esse era o caminho mais fácil e mais
curto para conseguir aumentos de salários, melhores condições de vida
e de trabalho e a entrega de terras, incorreram em um grave erro (p.
128; tradução da autora).
Codovilla desculpou as massas por terem acreditado no “demagogo” Perón.
Atribuiu a culpa desta maligna influência ao partido, por esse não ter sido capaz de levar
a massa a compreender com suficiente clareza os reais objetivos do candidato à
presidência. Naquele momento, ciente da nova situação, Codovilla apresentava a
fórmula para a vitória: “O trabalho de organização e o empenho na luta” contra o
inimigo nazi-fascista. O futuro estaria sob a responsabilidade do partido; afinal, este
sempre estivera na vanguarda da luta comum pela democracia. Contudo, o partido, que
encarnava a consciência da classe trabalhadora, não deu conta da tarefa que
historicamente lhe cabia. Um novo culpado teria que se render à realidade, que não
podia mais ser mascarado por uma retórica marcada pelo sonho e pelos bons propósitos.
Quem errou não foi o partido e, sim, o eleitor vítima do aliciamento e pressão de Perón,
segundo Codovilla. Não se tratava mais de analisar o comportamento do partido; esse
saiu incólume das eleições e convicto de que tudo teria sido perfeito se não fosse o
equívoco dos eleitores. Perón, o responsável pela vitória, havia triunfado somente por
uma pequena margem de votos. “Sabemos e todos sabem, em qual clima se
desenvolveram as eleições e quais meios utilizaram o presidente eleito e seus aliados
132
para assegurar o triunfo” (CODOVILLA, 1947, p. 128). Nessa linha de análise,
Codovilla retomou a defesa dos trabalhadores de forma implícita, ou seja, os meios do
outro candidato eram apontados como espúrios e invencíveis. Mas a condenação final
viria em seguida:
se bem que a coalizão radical-laborista, ou seja, peronista, não tenha
conseguido eleições plebiscitárias, quer dizer, um triunfo numérico
esmagador, o fato é que triunfou nas eleições graças a setores
importantes de operários, camponeses, empregados e das massas
trabalhadoras (CODOVILLA, 1947, p. 128).
Codovilla tentava ocultar, mas foi denunciado pela realidade, que o resultado das
eleições provou o descompasso entre o PC e a classe trabalhadora. Se o trabalho de
persuasão das massas, proposto pelo PC em 1945, não encontrou a ressonância desejada
entre os trabalhadores, ele representou, em contrapartida, um triunfo inquestionável do
Estado autoritário. Para os comunistas, a classe trabalhadora optou por votar em Perón,
o que se justificava pelas vantagens econômicas e sociais imediatas. As propostas de
revolução ou de políticas de longo prazo não tinham espaço na sociedade argentina,
caracterizada pela repressão política. Esperava-se por algo novo. Perón o era. Além
disso, Perón teve a habilidade política incontestável de construir uma auto-imagem
positiva e reforçada pela sua atuação da Secretaria de Trabalho e Provisão.
O argumento utilizado pelos comunistas, ao longo de muitas décadas, não
recobria a aspereza do cotidiano e nem oferecia outra alternativa à classe trabalhadora
que não fosse a via revolucionária. Assim e em dois flancos opostos, os trabalhadores
poderiam continuar depositando suas esperanças nas frustradas promessas comunistas
ou tentar o novo. A transição marcada pela não-resistência ao novo (como se pode
acreditar ou como quiseram acreditar os comunistas) não poderia ser entendida como
um mero equívoco das massas. Partindo dessa perspectiva e decorrente dela, o PC deu
um trato simplista à situação considerando uma dupla sugestão plena de significações.
De um lado, o equívoco do voto. De outro, a técnica eleitoral da democracia burguesa
latino-americana e especificamente a argentina, cujas imperfeições eram conhecidas.
Contudo, a apreensão dessa singularidade dos processos eleitorais latino-
americanos não explica, por si só, a adesão dos trabalhadores ao peronismo. Pelo
critério adotado pelos comunistas, a classe trabalhadora argentina aparece como
impotente e incapaz de reivindicar seus direitos mais elementares. Nesse sentido, a
133
classe trabalhadora poderia encontrar seu alento sob a proteção do PC, “(...) como
sempre, defendendo os interesses imediatos da classe operária, das massas camponesas
e de todo o povo” (CODOVILLA, 1947, p. 128; tradução da autora).
115
Nota-se a dificuldade dos comunistas em reconhecer o grande talento político para
mobilizar o apoio das massas do Perón autoritário, corporativista e defensor dos
interesses dos trabalhadores.
A chamada às massas foi seguida de políticas sociais reais, as quais não se
estagnaram no plano do discurso. Contrastando com a ineficácia dos comunistas em
persuadir ou ser apoiado irrestritamente pelas massas, Perón se antecipou e o fez com
maestria:
quando fui à Secretaria de Trabajo y Previsón, em 1944, primeiro
assumi o Departamento Nacional do Trabalho e de sondei as
massas. Comecei a conversar com os homens, para saber como
pensavam, como sentiam, o que queriam, o que não queriam, qual a
impressão tinham do governo, como interpretavam o momento
argentino, quais eram suas aspirações e quais eram suas queixas do
passado. Fui recebendo paulatinamente, como se estivesse mediante
uma antena muito sensível, toda essa inquietude popular (PERÓN,
1952, p. 290; tradução da autora).
Com essas palavras, Perón relatava como foi se aproximando, pouco a pouco, das
massas, para compreender os setores emergentes. A rigor, Perón sabia o que estava
fazendo e também o que decididamente queria:
o que eu tinha de fazer era parte do que eles queriam e parte que eu
queria (...) Alguns, quando eu pronunciei os primeiros discursos na
Secretaria de Trabalho e Provisão, disseram: “Este é um comunista”.
E eu lhes falava um pouco em comunismo. Por quê? Porque se eu lhes
tivesse falado outro idioma, no primeiro discurso haveriam me atirado
o primeiro naranjazo. (...) Porque eles eram homens que chegavam
com quarenta anos de marxismo e com dirigentes comunistas
(PERÓN, 1952, p. 290).
116
115
O apelo de Codovilla assemelha-se muito aos apelos dos comunistas brasileiros que, desde o final da
década de 1920, tinham como líder a legendária figura de Luiz Carlos Prestes, o “Cavaleiro da
Esperança”. O conceito de povo também era usado como a totalidade da população do país, que, uma vez
sob o governo popular nacional e revolucionário, “presidido por Prestes, (...) garantirá para todos a
cultura, o pão, a terra e a liberdade com a condição de não serem especuladores e traidores da pátria e do
povo trabalhador”. Nota-se claramente o teor de excludência na realização do Bem (Editorial, A Classe
Operária, Rio de Janeiro, 20 de setembro de 1935, p. 13).
116
O Partido Comunista Argentino foi formado em 1920.
134
Mais uma vez, o então candidato potencial às eleições presidenciais demonstrou
que os meios que utilizava para atingir sua meta final e os adjetivos que lhe fossem
atribuídos tinham pouco significado. É certo que Perón tinha total consciência da
realidade histórico-política do país e sabia bem quem seriam os seus maiores
adversários e os desafiava:
o que eu queria era agradar-lhes um pouco, mas os que me
interessavam eram os outros, os que estavam à frente, os que eu
desejava tirar-lhes. Os dirigentes comunistas me traziam gente para
que eu percebesse que eles estavam respaldados pelas massas. Eu os
recebia e os fazia crer que acreditava nisso. Mas o que eu queria era
tirar-lhes a massa, deixá-los sem a massa (PERÓN, 1952, p. 291).
Perón se referia à existência dos 40 anos de marxismo, os quais deveriam ter
deixado algo inscrito no pensamento dos trabalhadores. Subestimar esse adversário
ideológico seria, sem dúvida, um grande equívoco, ao mesmo tempo que conquistar a
massa aos comunistas e torná-la conduzível para o interior do aparato do Estado exigiu
algum talento:
durante quase dois anos estive persuadindo, e como ia resolvendo
parte dos problemas que as pessoas me apresentavam, elas foram
acreditando não no que eu dizia, mas também pelo que fazia. Essa
persuasão paulatina me deu um predicado político do qual eu carecia
anteriormente (PERÓN, 1952, p. 291).
A singularidade no discurso peronista é que a persuasão, pensada por Perón como
simples estratégia política, nunca excluiu o exercício do autoritarismo concomitante.
Segundo Arendt (1992),
(...) a autoridade exclui a utilização de meios externos de coerção;
onde a força é usada, a autoridade em si mesmo fracassou. A
autoridade, por outro lado, é incompatível com a persuasão, a qual
pressupõe igualdade e opera mediante um processo de argumentação.
Onde se utilizam argumentos, a autoridade é colocada em suspenso.
Contra a ordem igualitária da persuasão ergue-se a ordem autoritária,
que é sempre hierárquica. Se a autoridade deve ser definida de alguma
forma, deve sê-lo, então, tanto em contraposição à coerção pela força
como à persuasão através de argumentos (p. 129; tradução da autora).
Na continuação do discurso, Perón (1952) afirmava:
135
Quando chegou o momento que todos acreditavam que esse trabalho
era em vão, que eu havia perdido tempo falando, vieram os
acontecimentos que demonstraram a mim e a todos os demais que não
havíamos trabalhado em vão, que essa massa estava captada
mediante um processo lento, mas bastante efetivo (...) (p. 292;
tradução da autora).
Por tudo isso, a vitória para Perón foi apenas a concretização dessa linha de
conduta que seguia uma estratégia traçada e definida. Quando Perón afirmava que “a
massa inorgânica começou a tornar unidade e a ser conduzível”, ele estava convicto da
função da Secretaria de Trabalho e Provisão, e de como a influência das leis sociais teria
peso significativo nas decisões posteriores das massas. A ação do Estado revelava-se
forte e comprometida com os interesses populares.
O que faltou aos comunistas sobrou no peronismo. Enquanto os primeiros
repetiam o antigo jargão, calcados em sua própria história, o segundo agia com os
instrumentos que detinha em mãos e que oportunamente soube manejar. Tal processo,
por sua envergadura, poderia ser efetivado sob uma liderança que trouxesse algo
inédito e com a utilização de uma linguagem de significado estritamente alegórico, mas
conhecida pelos trabalhadores.
No XI Congresso Nacional do Partido, também foi definido o programa do PC
referente à política interna e à posição perante o novo governo. Diversamente do que se
poderia esperar, o PC, em que pesem as críticas à orientação nazi-fascista do novo
governo, assumiu uma atitude de compreensão e diríamos até esperança com relação a
Perón. Ao abrir as sessões do Congresso, Codovilla se mostrou bem mais moderado, se
compararmos seu discurso com aquele pronunciado no comício de julho. No entanto,
algumas contradições podem ser apontadas na fala de Codovilla. Referindo-se ao tipo
de governo que ora se instalara, o presidente do PC analisou-o, no encontro de de
julho, da seguinte forma:
existem alguns fatos que indicam o que será esta democracia que
deseja aparecer como algo novo. Um deles é a implantação do
Estatuto dos Partidos Políticos, que tende a destruir todos os partidos
de oposição, inclusive os partidos que contribuíram decisivamente
para o triunfo de Perón, como o Partido Laborista, com o propósito de
criar um partido único governamental, monopolizador da vida política
do país. Outro fato é a tendência do governo de apoderar-se do
136
controle da vida econômica, social e intelectual do país para os fins do
Estado corporativo. Daí seu propósito de reconhecer exclusivamente
os sindicatos operários que se submetam ao controle estatal
(CODOVILLA, 1964, p. 239, tradução da autora).
117
O sucesso do plano de Perón, que segundo Codovilla nada tinha de democrático,
dependeria da grande unidade e resistência que encontrasse na classe operária, no povo
e em todos os partidos e setores sociais amantes da democracia e da liberdade, sem
distinção de opositores e governistas. Ainda nesse encontro, Codovilla fazia uma
chamada à classe operária para a observância do aspecto nefasto do novo governo. Este
se referia à não confiabilidade daquele que se auto-denominava “pai dos pobres”. Daí a
necessidade de realizar a unidade sindical completa, de criar poderosas federações
sindicais por categorias de indústria e de impulsionar a formação de uma central
sindical única, independente dos patrões e do Estado.
Codovilla reiterou que a falta de união da classe operária argentina permitiu a
realização de mudanças bruscas em sentido reacionário e pró-fascista em momentos
decisivos da vida política do país. não seria possível pensar a realidade nacional a
partir do ângulo da não-cooperação com a dominação burguesa. O cenário político
demandava uma estratégia que se adequasse ao momento presente, ainda que essa se
afastasse do projeto clássico da esquerda. Entre outros assuntos discutidos, no sentido
de cooperar com o governo, a unidade sindical passou a ser um dos pontos centrais da
pauta dos comunistas. A decisão sobre essa unidade deveria se concretizar dentro da
CGT. Para isso, a direção do PC aconselhava a dissolução dos velhos sindicatos, não
obstante a oposição dos antigos líderes e dos dirigentes peronistas. Essa resolução do
PC combinava duas intenções: a primeira, a da união de todos os trabalhadores em uma
central sindical única e forte; a segunda, subjacente à primeira, tratava da possibilidade
de enfrentar a oposição dos elementos oficiais, assim como de alguns setores da
esquerda resistentes à unidade dentro dos sindicatos peronistas. Assim, o XI Congresso
Comunista se pronunciou tanto contra a tática da oposição sistemática ao governo,
sustentada pela maioria dos membros da ex-União Democrática, quanto contra aos que
se propunham a mudar as circunstâncias através de um golpe de força.
117
Discurso pronunciado no ato da Jornada Nacional para estabelecimento de relações com a URSS,
realizado em 1/6/1946, no Parque Romano.
137
No discurso de abertura do XI Congresso, Codovilla (1947) foi enfático na defesa
da nova política do PC, tratando inclusive de esclarecer os motivos de tais mudanças:
existem os que pensam, e os que pensam em voz alta, para que se faça
escutar, que quanto mais revolta esteja a situação política, tanto
melhor, pois segundo reza o refrão, ‘o rio revolto é o lucro dos
pescadores’. Com a autoridade que nos o fato de havermos sido os
mais perseguidos pela ditadura e de havermos lutado decididamente
pela volta à normalidade constitucional, nós, comunistas, declaramos
abertamente desta tribuna (...) que o caminho da aventura não é o
melhor caminho. Por isso, os que por um ou outro motivo, contribuam
para criar um clima de intranqüilidade política e social, queiram ou
não, não beneficiam os interesses da classe operária e do povo
argentino, mas sim os sectores reacionários (...) Os comunistas lutarão
pela formação de uma frente única na qual participem todos os que
estejam dispostos a defender, consolidar e desenvolver o regime
democrático, qualquer que seja o setor político que pertençam (p. 134;
tradução da autora).
O discurso de encerramento do XI Congresso do PC referendava as novas
medidas. A discordância quanto ao Estado corporativo seria mantida, e a oposição
sistemática daria lugar a um outro tipo de conduta:
é preciso que o partido some seus esforços aos dos setores operários e
populares que sustentam o governo atual, e lutem juntos para que
Perón se desprenda do lastro reacionário e pró-fascista e marche
conseqüentemente pelo caminho da normalização constitucional
completa do progresso nacional e do bem estar social (CODOVILLA,
1947, p. 263; tradução da autora).
Nessa linha, o Partido Comunista entendia que a ordenação política de cunho
fascista coexistiria com a luta pela constitucionalidade, até que a segunda se
sobrepusesse ao reacionarismo do Presidente Perón e se estabelecesse definitivamente.
Resultou daí uma certa esperança, por parte do PC, em alterar o curso da política
vigente, quando o novo regime se mostrasse disposto a alcançar “fins tão elevados”,
mudando, por conseguinte, o curso da história. Essa não era a República sonhada pelos
comunistas, mas o PC dava um certo crédito a Perón quando afirmava, no mesmo
discurso que, “uma vez assumido o poder, Perón (...), independentemente de sua
vontade, se viu e se cada vez mais sob duas pressões contraditórias: a dos sectores
operários (...) e a dos elementos reacionários e pró-fascistas” (CODOVILLA, 1947, p.
264). A essas pressões o PC creditava os vacilos e as ambigüidades do governo de
138
Perón na consecução de suas políticas interna e externa. Prosseguindo na mesma linha
de raciocínio, o PC, ao justificar o fato de não querer subestimar o papel do homem no
desenvolvimento dos acontecimentos históricos, criticava, também, aqueles que
acreditavam que tudo dependia da vontade subjetiva de Perón.
Para finalizar essa parte do discurso, o PC colocou em dúvida a boa vontade e a
capacidade realizadora de um caudilho (Perón), não obstante tenha, ao mesmo tempo,
evocado o marxismo para dar sustentação à crença que os acontecimentos históricos se
desenvolvem não tanto pela vontade subjetiva dos que detêm o poder, como pela
vontade e a ação das massas populares. Numa virada, até certo ponto conciliadora, o PC
redimiu Perón e atribuiu um caráter transitório ao seu governo:
Perón, integrante e porta-voz do programa pró-fascista do GOU, sob a
pressão dos acontecimentos internacionais e a ação das massas na
ordem nacional tem evoluído até declarar-se partidário do governo
constitucional, da democracia e do bem-estar social (CODOVILLA,
1947, p. 264; tradução da autora).
Com base nessas declarações, podemos afirmar que, na conjuntura pós-eleições de
1946, o PC traçou sua nova linha política em razão de uma veemente autocrítica da
atuação do partido nos anos da ditadura. Não se pode atribuir a culpa do
enfraquecimento dos comunistas no campo operário somente às perseguições fascistas.
O mea culpa dos dirigentes comunistas, explicitado no XI Congresso, foi uma prova
da conscientização de que os problemas das massas operárias iam muito além da
simples oposição à dominação burguesa. Nesse sentido, tornava-se imperativo que o
partido adotasse estratégias políticas mais eficientes. A negativa comunista de se
aproximar das principais organizações operárias, por serem essas dirigidas por
colaboracionistas, havia se revelado um erro que custara ao partido o seu afastamento
das massas. Por isso mesmo, os comunistas as haviam liberado para que seguissem
outros caminhos. Segundo a avaliação de Juan José Real, secretário de organização do
Comitê Executivo do Partido Comunista, sobre a performance do PC nos anos
anteriores, o grande erro do partido foi a crença de que quanto mais abertamente os
comunistas lutassem contra os dirigentes colaboracionistas, mais rapidamente as massas
abandonariam esses sindicatos e ingressariam nas organizações ilegais, perseguidas e
obstruídas pela reação. Para sustentar sua posição, Real (1962) citou Stalin:
139
Se os partidos comunistas querem converter-se em verdadeiras forças
da massa, capazes de impulsionar a revolução, têm que se ligar aos
sindicatos e apoiar-se neles (...) Alguns comunistas não compreendem
que o simples operário nos sindicatos, sejam bons ou maus, os
baluartes que os ajudam a defender seu salário e sua jornada de
trabalho (p. 140; tradução da autora).
Assim, o temário do XI Congresso não se restringiu somente ao controle das
classes subalternas. O PC se mostrou disposto a apoiar Perón no sentido de impulsioná-
lo ao cumprimento das promessas de renovação social, econômica e política feitas ao
povo. Certamente que essa posição não pode ser creditada à ingenuidade do PC com
respeito ao peronismo. Tratava-se de um ardil político, ou de um transbordamento de
otimismo para mascarar o sentimento de derrota e desânimo dominante. Os comunistas
aparentemente acreditavam que poderiam transformar o apoio à administração de Perón,
nos pontos que consideravam factíveis, em ganhos políticos.
Os membros do PC que se mantiveram sectários em relação às mudanças foram
sendo sucessivamente expulsos do partido. Pode-se citar nomes do gabarito de Rodolfo
Puiggrós, Amelio Bracca, Antonio Santos, N. Mac Lenan, entre outros (REAL, 1962, p.
137). A partir do ponto de vista adotado pelos comunistas depois do XI Congresso, não
era hora de discutir com minorias e, sim, de empreender uma luta na qual o PC e a
massa operária, aderida ao peronismo, se tornassem um corpo. A luta anti-partidária
era vista como inadequada, tanto no que se referia ao panorama político interno quanto
à conjuntura internacional do momento. Na verdade, o colaboracionismo era de cunho
estritamente político, ou seja, ele não significava o abandono ou rejeição dos princípios
marxistas-leninistas que haviam norteado o partido. O que se objetivou naquele
momento foi a organização do partido de acordo com as necessidades e demandas do
movimento operário.
Em resposta aos setores da oposição sistemática, o secretario geral do PC,
Jerónimo Arnedo Alvarez, manifestou-se em outubro de 1946, quando havia sido
ratificada a decisão do Comitê Central do Partido, de aconselhar aos afiliados que
atuavam em organismos sindicais independentes que propusessem sua dissolução e
ingressassem nos sindicatos aderidos à CGT, reconhecida pela Secretaria de Trabajo y
Previsón:
Alguns amigos nossos acreditavam, ou talvez ainda acreditem, que
nós comunistas dávamos um passo em falso e até perigoso nos
140
incorporando às organizações operárias chamadas de oficialistas,
tratando de reforçar a CGT como central única dos trabalhadores (...)
As idéias de sabotar os sindicatos, de não participar deles, acreditando
que aqui também se deve fazer oposição sistemática a tudo o que
pudesse ter cor oficialista, pode aparecer como muito esquerdista ou
revolucionária, mas a acreditamos pouco sensata e, sobretudo, nada
prática. Especialmente porque atenta contra a unidade e leva o
movimento gremial à guerra civil. Com justiça os operários vêm
sempre aos sindicatos, indistintamente de quem os dirija, os
defensores de seus interesses, ainda que esses, voluntariamente, por
ação de seus dirigentes, não o sejam em forma conseqüente (apud
ISCARO, 1973, p. 283; tradução da autora).
Contrariando a política preconizada pelo Partido Comunista a partir do XI
Congresso, o Partido Socialista assumiu, na conjuntura pós-vitória de Perón, uma
postura radicalmente contra o governo peronista e o PC. Cabe aqui historiar alguns
aspectos da conduta política do Partido Socialista, mostrando a tão visível diferença
entre os dois partidos de esquerda de maior envergadura no país.
Assim como o PC, o PS sempre empreendeu uma luta acirrada contra as ditaduras
militares e os sucessivos golpes na Argentina. De acordo com os socialistas, o
continuísmo ditatorial era a chave para a compreensão do caos que se estabelecia no
poder. Cada governo revolucionário que se instalava representava para a nação a
destruição de valores, princípios e da sociedade. Referindo-se à Revolução de 4 de
junho de 1943, Américo Ghioldi (1946), um dos grandes líderes socialistas, afirmava:
na fogueira da revolução ardem presidentes, sucessivamente alijados
do poder, vice presidentes, ministros, interventores, chefes de
acantonamento, generais e almirantes cuja formação custou à
República imensos sacrifícios. Cada semana é possível esperar uma
mudança. O fogo devorador do caos constituído tem engessado o
regime do niilismo (p. 7: tradução da autora).
Para o PS, o problema da continuidade das formas políticas assumia os mais
variados matizes, demonstrados em programas de governo que se contradiziam, com
promessas nunca cumpridas, e que tinham como destino final a opressão. Os socialistas,
conscientes dessas práticas, mostravam-se totalmente descrentes perante a promessa da
realização de eleições honestas, que vinham sendo anunciadas desde 1945, não obstante
seu caráter aparentemente democrático. Segundo Ghioldi, o governo da Revolução de
1943, presidido pelo general Farrell, presidente de fato, não podia assegurar
neutralidade nas eleições, pela única razão de que este governo fora constituído para
141
assegurar a perpetuação dos usuários da própria revolução. A máquina encontrava-se
montada para que as eleições se realizassem sob o signo do regime de cunho fascista,
com a aplicação sistemática de todas as formas e graus de intimidação. Por outro lado,
sabe-se que, em determinadas circunstâncias, a força não é condição de legitimidade,
razão pela qual todas as tiranias tentam revestir-se de um verniz de legalidade
(GHIOLDI, 1946, p. 8-10). As eleições prometidas comprovavam essa teoria.
O Partido Socialista fez parte da União Democrática, formada pelo Partido
Comunista, Democrata-Progressista e a União Cívica Radical, para fazer frente aos
aliados de Perón (SOLARI, 1946, p. 27). Em 31 de outubro de 1945, foi enviada uma
nota do PS a Gabriel Oddone, presidente da mesa diretora do Comitê Nacional da União
Cívica Radical. Nessa nota, o PS exortava a União Cívica Radical para que colaborasse
com as outras forças democráticas, apressando a luta para opor-se ao plano político
traçado pelo regime militar. Segundo os socialistas, os ventos políticos se dirigiam para
o continuísmo da ditadura, na pessoa do ex-ministro da Guerra, Coronel Perón.
Tornava-se necessário, portanto, que a União Cívica Radical, que representava parte
considerável da opinião “sã” do país, considerasse tal proposta e respondesse em um
curto prazo sobre a possibilidade de materializar a união democrática contra o projeto
nazi-fascista da situação. Os radicais concordaram formalmente, em 14 de novembro de
1945, em unir-se à esquerda contra Perón. Àquela altura, o Partido Socialista acreditava
que, sob o signo comum da União, e a partir de uma ação com programa e fórmulas
comuns, a luta contra a candidatura inconstitucional e nazi-fascista, que simbolizava o
continuísmo da ditadura no poder, poderia sair vitoriosa. O Partido Socialista não
apresentou candidatos de suas fileiras, porque desejava apenas participar da União
Democrática, com o máximo de desprendimento e desinteresse, exigindo apenas que
fossem oferecidos aos eleitores candidatos que estivessem identificados com o ideal da
União Democrática. Essa exigência seria uma forma de oferecer ao povo argentino uma
homenagem ao seu magnífico esforço de resistência civil (SOLARI, 1946, p. 28).
Após os resultados das eleições de 1946, derrotado, o Partido Socialista, através
de seu jornal La Vanguardia, foi implacável com o novo governo e com todos aqueles
que julgava “colaboracionistas”. O Partido Comunista e a CGT foram os alvos mais
atacados pelos socialistas, que não aceitaram a posição assumida pelos comunistas
perante o governo de Perón. A autocrítica feita pelos comunistas não encontrou
142
nenhuma ressonância entre os socialistas, os quais, em novembro de 1946,
conclamaram os trabalhadores a uma ação comum para elevar o clima cívico do país. À
situação instalada a partir da consagração de Perón, em 24 de fevereiro de 1946, os
socialistas atribuíam a imaturidade política de certos setores operários, a predisposição
de não poucos eleitores à venalidade e ao suborno; a ausência de uma reação organizada
contra a desordem e a anarquia e a propagação do temor coletivo (La Vanguardia,
5/11/1946, p. 3). Assim, o PS chamava à ação a massa trabalhadora não submetida, a
juventude que pretendesse manter aceso o fogo da paixão libertadora, a mulher que
pudesse ser chamada a traduzir em votos a defesa de seus interesses e de seus
sentimentos de mãe, esposa e educadora do homem (La Vanguardia, 5/11/1946, p. 3).
Ao contrário do PC, o PS manteve, após a derrota nas eleições, o mesmo jargão político
que se mostrara ineficiente em outras ocasiões. Pode-se afirmar que, entre projeções
futuristas e revalorização do passado nos termos da doutrina socialista, o PS estava
reduzido a um discurso onde a confiança na ação conjunta ainda produzia, em seus
militantes, a expectativa de mudanças radicais no futuro..
O que se pretende demonstrar nessa afirmativa é que as denúncias do
colaboracionismo da CGT,
118
considerada oficialmente pelos socialistas como títere do
governo, ou o repúdio à decisão dos comunistas de apoiar o positivo e atacar o negativo
nas políticas governamentais, não alteraram em nada o andamento da máquina estatal.
Inquestionavelmente, o poder do Estado e a força do peronismo, em 1946,
encontravam-se em um patamar inalcançável pela esquerda. Em outros termos, o que
importa aqui é enfatizar que Perón, naquele momento, não se comoveu com o apoio
restrito dos comunistas, nem com a veemência das críticas dos socialistas. O processo
de construção do Estado corporativo se acelerava a despeito do lamento ou do apoio da
oposição.
Nas perspectivas adotadas pelos comunistas e pelos socialistas, não se pode
encontrar um denominador comum. Os novos planos de ação dos dois partidos de
esquerda a partir de fevereiro de 1946, apresentaram um desencontro, que não era nada
118
Em 19/11/1946, o La Vanguardia publicava uma matéria intitulada “La Función de la central obrera
será la de secundar la acción revolucionaria sindical de gobierno”. A crítica era dirigida a Luis F. Gay,
ex-presidente do Partido Laborista, dissolvido por Perón. Gay se propunha a secundar a obra do
governo e conservar com o mesmo a mais absoluta unidade para o ganho das conquistas sociais por
entender que a CGT deveria ser um fator fundamental na ação revolucionária do governo. Para os
socialistas, tamanha heresia era inacreditável, pois, por princípio, a ação revolucionária sindical deveria
estar a cargo dos trabalhadores (n. 13.399, p. 4).
143
mais do que a expressão da enorme decepção da esquerda frente ao comportamento
político dos trabalhadores. Enquanto os comunistas se preocuparam com a perda de
espaço entre os trabalhadores, os socialistas voltaram suas preocupações para aqueles
que chamavam “adesistas”.
O Partido Comunista fez o mea culpa em decorrência dos resultados das
eleições e, sem abandonar seus princípios ideológicos, procurou um caminho político
que não o isolasse da classe trabalhadora. Tratava-se de uma transição, até certo ponto
inglória, da oposição sistemática a um apoio racional, não passional. Consideradas as
contingências históricas, essa foi a única saída considerada possível para o partido.
Nesse sentido, o suporte às políticas positivas de Perón e a chamada à unidade sindical
foram critérios autênticos que o PC utilizou para reafirmar sua ideologia. Avessos a
uma contemplação silenciosa da política do governo, os comunistas perceberam, por
outro lado, a esterilidade de discursos nos quais a paixão política tomou o lugar da ação.
A escolha comunista pode ser considerada lúcida no sentido de que sua presença entre
os trabalhadores abria uma maior possibilidade de continuar na luta, ainda que o preço
fosse o escárnio de outros setores da esquerda.
119
Os comunistas não podiam fazer vista grossa à tendência dos sindicatos em aderir
ao peronismo. Isso significa que as medidas de apoio ao Presidente Perón no XI
Congresso não foram uma iniciativa injustificada da direção do partido. Pelo contrário,
elas derivaram da observação da adesão espontânea de alguns sindicatos fortes à CGT,
como os: Sindicato Ferroviário de Locomotoras La Fraternidad, o Sindicato dos
Ferrocarriles La Vanguardia e a Unión Ferroviária.
Na assembléia do sindicato La Fraternidad, realizada em 6 de setembro de 1945,
foi aprovada a circular n. 34 que tratava da desfiliação à CGT. O grêmio justificou seu
ato por não considerar a CGT, naquele momento, a representante do autêntico
movimento sindical. Segundo La Fraternidad (20/9/1945, p. 25), a CGT permanecia
indiferente perante o fechamento e intervenção de sindicatos, detenção de dirigentes,
assaltos aos locais operários, e proscrição das liberdades sindical e democrática, etc...
Em janeiro de 1949, La Vanguardia anunciou o ingresso do sindicato novamente na
CGT. A medida foi anunciada como um fato importante do final do ano de 1948,
119
a título de exemplo, manchetes do jornal La Vanguardia intituladas Los Comunistas apoyan a
Perón” foram comuns desde as deliberações do XI Congresso Comunista (La Vanguardia, 29/10/1946, p.
10).
144
prometendo novas decisões para 1949. Na oportunidade, La Vanguardia publicou uma
nota explicando que a decisão tomada pela Comissão Diretiva foi a síntese da vontade
do Grêmio, em sua resolução de adesão à central operária, somando assim seu caudal
numérico, sua autoridade moral, seu prestígio geral, sua indiscutível personalidade e sua
vontade, ao das forças operárias do país, agrupadas sob essa bandeira (La Fraternidad,
5/1/1949, p. 1).
A União Ferroviária sofreu intervenção do Estado em 23 de agosto de 1943. Essa
intervenção foi considerada pelo grêmio, que teve 270 seções fechadas em todo o país,
como uma medida arbitrária, reacionária e ditatorial. Mesmo assim, foi publicada uma
matéria no jornal El Obrero Ferroviário (1/12/1944, p. 1), na qual seus dirigentes
criticavam a intervenção, mas indicavam que essa havia servido para destruir o mito de
que os ferroviários eram “agitadores profissionais”. O mesmo artigo trazia enormes
elogios a Perón, então considerado a figura chave do governo, que escutava com grande
respeito a voz do trabalhador. Afiliada à CGT, a Unión Ferroviaria opunha-se
radicalmente a interferência dos comunistas (El Obrero Ferroviário, 16/4/1943).
A Federación Obrera de la Industria de la Carne, conhecida como a Federación
de Peter (referência ao comunista histórico José Peter), ingressou na CGT em abril de
1936. Em 6 de junho de 1943, José Peter foi preso, provocando uma greve geral entre os
trabalhadores de Berisso e Avellaneda. Em setembro de 1946, a FOIC foi dissolvida, e
em junho de 1947 foi fundada a Federación Gremial del Personal de la Industria de la
Carne y sus Derivados. Em janeiro de 1948, foi criado o órgão oficial da Federação
com a unificação de todos os sindicatos da carne. Na verdade, os sindicatos da carne
estiveram desde 1945 divididos em relação ao peronismo. Como afirma Cardoso:
“Vivas ao Coronel Perón por um lado, vivas a José Peter por outro”. Em maio de 1950,
a Federação sofreu intervenção da CGT. O jornal El Trabajador de la Carne foi
suspenso por seis meses para reaparecer em janeiro de 1951 com o lema da página de
rosto mudado. Até 1950 o lema foi: “Na unidade reside a força que nos levará ao
triunfo”; mas a Junta Intersindical o substituiu por: “Praticamos um sindicalismo são em
defesa do justicialismo argentino”. Ainda em agosto de 1950, a Junta Intersindical
solicitou sua afiliação à CGT depois de plebiscito realizado nos sindicatos. Inúmeras
negociações foram feitas entre a Junta Sindical e a CGT formalizadas em outubro de
1953. O Congresso de fechamento do acordo com grandes vantagens para os
145
trabalhadores da carne foi denominado “Lealdade a Perón e a Eva Perón” (CARDOSO,
1989).
O Partido Socialista, com sua inflexibilidade perante o novo governo e, na
ausência de uma tática política que, pelo menos, amenizasse a situação, passou à
radicalização que, a longo prazo, se mostrou estéril. Sindicatos da importância da La
Fraternidad”, reconhecido pela visão e influência socialista, aUnión Ferroviária”, de
tendência comunista, a Federación Gremial de la Industria de la Carne y sus
Derivados”, também de linha comunista, foram se afiliando gradativamente à CGT.
Essa afiliação foi, sem a menor sombra de dúvida, a prova mais concreta de que o
peronismo ganhava terreno inclusive entre os sindicatos considerados menos
permeáveis.
Conclusão
Enfim, da obscuridade em 1942, o General Perón tornou-se, em 1946, a figura
mais proeminente da República Argentina. a partir de julho de 1946, vários
sindicatos, considerados contaminados por idéias avessas à “democracia de Perón”,
foram fechados, assim como a imprensa foi censurada. A repressão mais forte
apareceria a partir da formação do Partido Único até a formulação da doutrina
Justicialista do Estado Peronista.
Se a política de Perón foi sempre reiterada por suas qualidades de estadista, por
seus correligionários e como oportunista e fascista, por seus adversários, o que dizer de
seu relacionamento com as massas? As qualidades excepcionais do líder parecem
indiscutíveis. A política trabalhista na década de 1940 foi, sem dúvida, um avanço
considerando a situação das classes populares. A abertura do espaço político, que deu
ingresso a essa massa, foi um fato político importante, principalmente porque emergiu
da experiência traumática dos anos autoritários inaugurados com a Revolução de 1930.
Do ponto de vista dos trabalhadores, Perón foi coerente com o discurso que afirmava
sua capacidade de conduzir as massas para o que fosse melhor para elas, pois, ainda que
as manipulando e em que pese o autoritarismo, gerou bens políticos concretos, que não
existiam no país. A reverência ao chefe não decorreu de uma tradição política do país:
pelo menos até Perón, o século XX não é lembrado por grandes estadistas. Ainda que
146
Perón buscasse uma identificação com Yrigoyen, líder radical, simpatizante da causa
trabalhista, não foi essa identidade que lhe conferiu a ocupação de um posto sustentado
por um expressivo número de votos. Assim, a única explicação para o fenômeno
peronista, aparentemente paradoxal, foi a habilidade do líder para mobilizar apoio das
massas, junto com a capacidade de gerir os negócios de Estado.
120
O socialismo instalou-se historicamente na Argentina tendo essa mesma massa
como interlocutora. Desprovidos de um líder que encarnasse a figura do herói salvador
da pátria, o partido seria a autoridade superior que, uma vez no poder, aplicaria a justiça
e lutaria pela liberdade, ainda que através da via revolucionária, inevitável para o
desaparecimento do capitalismo (LEFORT, 1983).
121
O trabalhismo foi um tema
recorrente no discurso da esquerda, com vistas a mobilizar os trabalhadores prometendo
a instauração de uma nova ordem. Nesse aspecto, uma certa aproximação com os
discursos peronistas que, ainda que com outra intenção, também buscavam o poder com
a presença dos trabalhadores e a eliminação do sistema partidário com a subjacente
implantação do partido único. No plano político, a proposta da esquerda sempre foi
revolucionária e reproduzia formas de atuação que hoje temos como ultrapassadas
historicamente. Em 1946, ainda havia esperança de uma virada política no limite da luta
de classes.
122
120
É notável como a figura do líder sempre apareceu como uma questão teórica ao lado das primeiras
discussões mais elaboradas sobre a política. no mundo da Antiguidade Clássica, Tucídides, o primeiro
historiador político, em sua história sobre a guerra do Peloponeso, deu destaque a Péricles como o homem
que poderia ter levado Atenas à vitória. Péricles, na concepção de Tucídides é a figura arquetípica do
chefe e do verdadeiro homem de Estado. Mesmo que em Atenas todos fossem iguais perante a lei, na vida
política foi a aristocracia da habilidade que governou. Com isso, ficava resolvida a questão das relações
entre a individualidade superior e a sociedade política. Essa solução dependia fundamentalmente da
existência de um indivíduo genial. Péricles o era. Ainda que as idéias sejam diametralmente opostas, o
bom funcionamento da democracia dependia da existência de um líder que ao mesmo tempo gerenciasse
as questões do Estado e tivesse as massas sob controle (nesse contexto as massas não têm o sentido
moderno do termo) (JAEGER, 1989, p. 305-325).
121
Segundo Lefort (1983): “A Revolução é o resultado da luta de classes, mas é preciso ainda que esta se
exerça num quadro em que a divisão de classes se combine com a divisão do conjunto social e do Estado
e que todos os conflitos acumulados no seio da sociedade civil possam ser referidos à noção de uma
oposição política e de um princípio da dominação. É preciso ainda que estejam dadas as condições de
uma polarização geral entre o Alto e o Baixo, de tal maneira que em caso de enfraquecimento do Poder,
aquilo que comumente está ligado a ele, a Autoridade, cristaliza contra si todos os ódios; de tal maneira,
enfim, que em toda a extensão da sociedade, camadas estratificadas no seio das quais se repetia a relação
dominante-dominado, possam de súbito ligar-se maciçamente ao Baixo e se sublevar contra o que aparece
como pólo adversário” (p. 128).
122
Segundo Lefort (1983): “Não se poderia esquecer que o regime soviético tornou-se, desde os anos
trinta e sobretudo após a guerra, objeto de múltiplas críticas por parte de indivíduos isolados ou de
pequenos grupos revolucionários, atentos à formação de uma camada burocrática, ao desenvolvimento
das desigualdades sociais, ao aperfeiçoamento do sistema policial, à extensão dos campos de
concentração, ao culto de Stalin (...) Todavia, é também surpreendente (...) que entre aqueles mesmos que
147
Curiosamente, Perón utilizou o jargão da esquerda para trazer para si as massas
desordenadas, e a esquerda, romantizada pela teoria, não avaliou a própria fragilidade.
A opção política de Perón, pela proteção aos pobres, guardando as devidas restrições,
não diferia da opção veiculada pelos socialistas. Assim, em que pesem as diferenças,
não se pode negar em alguns aspectos a proximidade das duas tendências em alguns
aspectos. O Bem e o Mal estavam presentes em ambos, tanto o peronismo como o
socialismo execravam um ao outro, anunciando em si a única saída para a instalação do
Bem absoluto. Como nos diz Moore (1987):
se o fascismo foi estruturalmente incapaz de contribuir para qualquer
coisa que possa ser chamada de libertação humana, se seus traços
cruéis e repressivos foram ao mesmo tempo óbvios e predominantes
desde o princípio, pode parecer que não existe nenhuma razão para
buscar algum tipo de comparação com os movimentos de esquerda. O
tema simplesmente se desvanece. Entretanto, isto é correto? Seria
correto somente se tanto os movimentos revolucionários como os
regimes liberais não tivessem desenvolvido também características
selvagemente repressivas (p. 572)
Em verdade, a atitude das massas diante do líder foi um indício irrefutável da
demanda por uma autoridade superior. A origem desse sentimento encontra-se na
própria história do país, que carecia de homens fortes e corajosos que materializassem
esse desejo ou em “um sentido de impotência individual e de capacidade para controlar
o mundo que parece maligno e opressivo”, segundo Moore (1987, p. 572). Nesse
sentido, o alvo das massas argentinas naquele momento foi a figura forte de Perón, que
detinha a autoridade.
Segundo Eva Perón (1995),
o peronismo, a meu juízo, nasceu ao criar-se a Secretaria de Trabalho
e Previsão; nasceu quando o primeiro trabalhador argentino deu a mão
ao coronel Perón, pensando: “Eu gosto deste coronel”. O povo
começou a sentir que não era uma esperança e sim uma realidade.
Quer dizer que o peronismo não nasceu só com a criação da Secretaria
do Trabalho e Previsão. Nasceu quando o primeiro trabalhador
argentino, ao encontrar-se com o general Perón, pensou que tinha
quem o protegesse e que se encontrava perante a realidade. (...)
Desde esse dia, os operários, ou seja, o povo, começou a formar uma
desmontavam a mistificação do comunismo soviético, a maioria sentia repugnância em aproximar
stalinismo e fascismo evitando falar de um Estado totalitário na URSS” (p. 72).
148
força com Perón. O peronismo é isso. Uma força integrada por
Perón! (p. 97; tradução da autora).
149
CAPÍTULO 5
A CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DA DOUTRINA POLÍTICA PERONISTA
A comunidade organizada
O peronismo tem sido objeto de estudo de sociólogos, historiadores, cientistas
políticos e psicanalistas. A interpretação mais corrente é a que considera o peronismo
como um fenômeno autoritário e de inspiração “nazi-fascista”. Sabemos que os
analistas políticos buscam pontos de identificação de processos políticos através da
análise comparada. Se, por um lado, os trabalhos comparativos têm uma importância
fundamental para uma melhor compreensão da história, eles, também, podem levar o
pesquisador a uma redução simplista, ao jogar em vala comum governos, governantes,
países, sociedades e conjunturas nacionais e internacionais diferentes. No caso do
peronismo, e em que pese o valor do estudo comparativo, optar-se-á por analisar a
doutrina justicialista tal qual foi apresentada por Perón.
123
Em recente livro publicado pela Biblioteca del Congreso de la Nación, o tema
sobre a autoria do discurso de 1949 voltou à discussão. A redação do texto é atribuída
ao filósofo Carlos Astrada e ao padre Hernán Benítez, este último vinculado à corrente
tomista. Astrada, mais ligado ao campo existencialista, sempre negou sua participação
na elaboração do texto, embora admitisse ter sido consultado. Benítez atribui a autoria
do texto ao padre Juan Sepich e afirma que Astrada ou José Gabriel López Buisán
seguramente não estiveram envolvidos nessa empreitada. o filósofo Jorge Bolívar,
sustenta que depois de vários encontros com Benítez e Astrada houve entre os redatores
da Comunidad Organizada um “pacto de silêncio”.
124
Joseph Page, reconhecido biógrafo de Perón, aludiu ao fato de que “numerosas
figuras da política (...) levam muito tempo aproveitando do talento literário dos outros
para apresentar ao público versões autorizadas de suas idéias e de si mesmos” (1996, p.
12). O conteúdo dessa afirmação pode ser aplicado no caso de Perón. Isso não significa
que políticos não tenham assessores para tal tarefa, no entanto, as mãos convocadas para
123
Sobre as interpretações do peronismo, ver Miguens (apud MIGUENS; TURNER, 1988).
124
Castellucci, Oscar. Modelo Argentino para el Proyecto Nacional: em busca del tiempo perdido. In:
Perón -Modelo Argentino para el Proyecto Nacional. Buenos Aires: Biblioteca de Congreso de la
Nación, 2005, p. 41-42.
150
expressar o pensamento do “outro” passam pela própria interpretação e deixam muito
de si nessas transmissões. A Secretaria de Trabajo y Previsión é um exemplo disso. A
agência foi estabelecida sob a orientação de José Figuerola, ideólogo corporativista que
ajudou a implementar a política trabalhista do ditador espanhol Primo de Rivera, cuja
inspiração de governo foi buscada em Mussolini.
O embasamento filosófico que inspirou sua concepção doutrinária foi apresentado
no discurso de encerramento do Primeiro Congresso de Filosofia, em Mendoza, na
Universidade de Cuyo, no dia 9 de abril de 1949, publicada em 1975, com o título de La
Comunidad Organizada.
125
Nessa conferência, Perón se propôs a apresentar a base
filosófica da chamada “Terceira Posição”. O aspecto doutrinário do justicialismo é
muito conhecido através dos discursos proferidos por Perón e pela extensa literatura que
fazia a divulgação do regime. As idéias que deram corpo ao justicialismo, que são as
idéias do “conductor”, não se diferenciaram muito entre 1943 e 1955; em que pese uma
certa flexibilidade no pensamento, elas foram constantemente reiteradas
No texto La Comunidad Organizada, está contida a síntese das soluções dos
constantes conflitos entre o indivíduo e o coletivo; o espírito e a matéria; as idéias e a
prática; o egoísmo e a solidariedade; a liberdade individual e o poder do Estado. Mais
do que examinar os princípios desenvolvidos pelos filósofos, Perón anunciou fórmulas
mágicas para comandar a nova Comunidad Organizada ou justicialismo. Como afirma
Blanksten, o justicialismo se configura como uma “teoria do conflito” na sociedade e na
política e a receita de conciliação de adversários que não se concebem como
necessariamente antagônicos, o capital e o trabalho, graças à ação vigilante do Estado
(1953, p.282). Esse, em quem se encarna o chefe do movimento, se sujeitaria à
estratégia, à tática e à inspiração de Perón.
Com uma avaliação pessimista do mundo moderno e da falta de perspectivas para
o futuro, a preocupação do presidente estava na forma diferenciada pelas que as várias
gerações e sociedades lidaram com a “verdade”. Criticou veementemente as
transformações materiais que se deram no mundo moderno sem uma correspondente
mudança na preparação do espírito humano: “O homem pode desafiar qualquer
125
Segundo Hugo Gambini (1999), essa conferência não teve nome, mas, como no final Perón falou da
“Comunidade Organizada”, seus seguidores decidiram convertê-la em um rito ideológico e incluí-la na
bibliografia do líder com esse título.
151
contingência, qualquer mudança, favorável ou adversa, se está armado de uma verdade
sólida para toda a vida” (Perón, 1974, p. 13).
126
Os princípios da moral e da ética, formulados pelos gregos, estariam, segundo
Perón, sendo desvirtuados em razão de novas verdades superficiais e de simples
sofismas. Tudo isso estaria levando a uma redução das perspectivas do homem. Até
mesmo a liberdade, afirmava Perón, conquista máxima da Idade Moderna, não havia
sido construída acompanhada de uma prévia reestruturação de seus corolários. A
conseqüência foi que, no enorme descompasso entre os avanços materiais e a “verdade”,
o homem se viu impossibilitado de estabelecer a devida relação entre seu “eu”, medida
de todas as coisas, e o mundo que o cerca, então palco de mudanças fundamentais. Daí a
missão pedagógica da filosofia, de iluminar as relações diretas do homem com seus
princípios, com seus fins, com seus semelhantes e com suas realidades imediatas. Perón
comparou a crise da Idade Média com a crise do momento e sugeriu que um
“renascimento”, ainda mais esplendoroso do que o do século XVI, seria plenamente
possível, tendo em vista a condição do homem do século XX, mais livre e dotado de
uma consciência mais lúcida.
Para explicar seu pensamento sobre o homem e a comunidade, Perón analisou as
idéias de Sócrates, Platão e Aristóteles sobre a evolução das necessidades do homem. A
primeira preocupação humana teria sido a inquietação teológica, que o levara ao
questionamento da própria existência. Posteriormente, mostrou que São Tomás de
Aquino, seguindo o caminho aberto pelos gregos, tornara-se um dos mais notáveis
representantes da escolástica em que a liberdade da vontade e o livre-arbítrio seriam um
requisito da moral. De acordo com Perón, o tomismo centrou o homem em um
momento decisivo perante um panorama até então confuso.
127
126
Conferencia del Exmo. Señor Presidente de la Nación Argentina Juan Domingo Perón pronunciada
en el Acto de clausura del Primer Congreso Nacional de Filosofia. Mendoza: 9 de abril de 1949, p. 13.
Segundo Ciria (1983, p. 82), apareceu um resumido artigo sobre os prováveis assessores que prepararam
esse texto filosófico de Perón em La Opinión, em 24 de outubro de 1971: a lista foi encabeçada pelos
representantes do existencialismo criollo, Carlos Astrada e Ramón Prieto. Entre os especialistas
internacionais que participaram nas sessões realizadas na Universidade Nacional de Cuyo, em Mendoza,
fizeram conferências ou apenas compareceram: Benedetto Croce, Martín Heidegger, Karl Jaspers, Gabriel
Marcel, Julián Marías, Michele Federico Sciacca e José Vasconcelos.
127
A exposição completa da obra de Santo Tomás de Aquino está na Suma Teológica. Em sua obra, Santo
Tomás estabelece uma distinção entre razão e fé, afirmando a autonomia de ambas e a necessidade de sua
concordância. A Teologia baseia-se na Revelação e na autoridade da palavra divina, enquanto à filosofia
cabe o desafio de buscar as verdades acessíveis ao entendimento humano. Desta forma, a concordância
entre as duas não pode derivar de uma invasão da filosofia pela teologia e pela fé. O êxito da razão e da
filosofia não depende de sua origem cristã, mas da validade intrínseca de seus procedimentos heurísticos.
152
Em seguida, Perón analisou Spinoza
128
para demonstrar que o resultado final das
idéias religiosas do Renascimento e da Idade Moderna, foi uma tábua de valores,
traçada desde o pensamento helênico, chegando à definição de hierarquia que situa o ser
humano perante Deus. Caminhando ainda na esteira da Idade Moderna, Perón citou
Descartes
129
e seu pensamento dedutivo da existência, “Penso, logo existo”. Dessa
meditação rigorosa, que coloca o espírito humano face à realidade do mundo físico, a
filosofia começou a se fragmentar, segundo Perón. De acordo com seu entendimento, a
especulação científica, na busca da objetividade racionalista (Kant), apresentou algo que
se distanciava sobremaneira dos problemas de Sócrates. Assim como com Kant,
também não havia nenhum ponto de contacto entre o filósofo da Antiguidade e o
francês Voltaire. O entendimento do mundo havia mudado, e o que era um movimento
vertical transformou-se em um movimento horizontal.
Segundo Perón (1974), Comte dará conta dessa mudança, substituindo o culto a
Deus pelo culto da humanidade, inaugurando uma idade distinta, uma mutação
historicamente necessária e útil, em que:
se opera uma revolução social, grandiosa em seus aspectos materiais,
mas talvez mal acompanhada de uma visão correta das perspectivas
de fundo (...) O progresso se acentua na técnica e no movimento
social, mas não se pode dizer que vigore por si aquelas parcelas
íntimas que antes eram negadas pela intuição das magnitudes
cósmicas (p. 28).
Darwin, advertiu Perón (1974), aumentou a distância, cada vez mais acentuada,
do mundo de Sócrates. A teoria biológica da evolução não tratou da grande e primeira
questão do homem. Colocou-se, então, a pergunta se a alma humana pode digerir a
substituição do seu culto elementar e tradicional por uma explicação puramente
científica. Perón discordou: “Dessa teoria não se pode deduzir o clima de uma nova
Ética ou de uma nova Moral” (p. 30).
A intenção central da conferência, dissimulada sob o conhecimento dos grandes
postulados, do pensamento humano, foi o aparecimento de um novo filósofo, Perón,
que, conhecedor do itinerário político-filosófico, desde os clássicos, apresentou suas
128
Spinoza, filósofo holandês-judeu de meados do século XVII, defendia a livre interpretação e crítica das
Escrituras, pelo que foi julgado ímpio e expulso da Sinagoga. Para o filósofo, a realidade constituía uma
única substância infinita (Deus ou a Natureza), princípios criados ou unidade vivificadora do universo.
129
Descartes, filósofo francês de meados do século XVII, foi considerado fundador da filosofia moderna.
153
idéias, também filosóficas. Outros pensadores foram invocados ao longo do texto e
utilizados para referendar a nobreza e superioridade do novo pensador, ou para serem
desmentidos e substituídos pela sensatez daquele que se relacionava com o mundo
marcado pela virtude: Perón.
À semelhança da idéia desenvolvida por Platão, Perón seria o rei-filósofo, dotado
das qualidades imprescindíveis para governar a cidade, considerando que os indivíduos
são dotados de qualidades e aptidões diferentes. O bem governar é uma ciência
específica cujo objetivo é a idéia de justiça (PLATÃO, 2002). Segundo Platão, as
massas não têm condições de governar por não terem o domínio dessa ciência. Em O
político, na fala do estrangeiro, Platão expressa a idéia da impossibilidade das massas
em almejar esse tipo de saber com uma sugestiva comparação:
o timoneiro, velando sempre pelo bem de seu navio e de seus
marinheiros, sem estabelecer normas escritas, mas apenas fazendo de
sua arte lei, conserva a vida de seus companheiros de navegação: não
surgirá também um bom regime político daqueles que são capazes de
mandar, mas põe em prática a força de sua arte como superior às leis
(...) Que a massa, qualquer que seja, jamais se apropriará
perfeitamente de uma tal ciência de sorte a se tornar capaz de
administrar com inteligência uma cidade e que, ao contrário, é a um
pequeno número, a algumas unidades, a uma só, que é necessário
pedir esta única constituição verdadeira (PLATÃO, 1981, p. 67).
Com aquelas afirmações, Perón se colocava como possuidor do “dom da
condução” e, logo, das credenciais suficientes para definir os caminhos para a perfeita
realização da vida. O reconhecimento ou o desmerecimento de um ou outro pensador
não foi por convicção, mas sim uma escolha articulada com sua conveniência a fim de
conferir autoridade aos seus próprios argumentos e convencer os ouvintes de suas
virtuosas intenções.
A realização perfeita da vida para Perón (1974) seguia a inspiração socrática na
qual a “virtude se pela compreensão da própria personalidade e do meio circundante
que define suas relações e suas obrigações públicas e privadas” (p. 33). Perón invocou
Sócrates com a intenção de associar-se ao filósofo na idéia de virtude, que, segundo sua
concepção, foi valiosa na Antiguidade, como haveria de ser posteriormente no
cristianismo. Perón afirmava que, para Sócrates, “o operário que entende seu trabalho,
era um virtuoso, em oposição ao demagogo ou massa inconsciente”. Logo, a virtude na
154
adoção da idéia de que o trabalho jamais desonra, frente ao ocioso e ao politiqueiro,
teria sua origem no início dos tempos. Assegurava Perón que uma postura moral
procedente de um sólido fundo religioso ou mesmo de uma educação ética refinada
daria conta de definir os limites dos homens. O conjunto de valores morais criaria o
clima da virtude humana. Perón advertiu para outros valores que deveriam agregar-se à
virtude socrática: a consciência da dignidade humana e a ética.
Antes, porém, de tratar da ética, Perón situou Thomas Hobbes em um momento da
história em que as luzes socráticas e a esperança evangélica começaram a desvanecer-se
ante os frios resplendores da razão que, por sua vez, estava prestes a abraçar o
materialismo. Nesse ponto de sua apresentação, Perón lançou sua primeira farpa ao
marxismo. Até então, nenhum pensamento que tenha se sobressaído no mundo das
idéias se apresentava, para Perón, de uma forma tão real e, sobretudo, ameaçadora como
o marxismo. Tratar do pensamento de Sócrates, Aristóteles, Platão e outras estrelas
dessa constelação não ameaçava Perón no sentido de adotar os princípios filosóficos dos
gregos como escolha ou bússola da vida. Além disso, com toda a contemporaneidade do
pensamento filosófico antigo, o momento era outro, em que pese não haver nada de
desmerecedor em encarnar as características de um rei-filósofo. O que estava em
julgamento não era a República de Platão, a concepção de Estado de Aristóteles ou a
virtude de Sócrates. Não se tratava de julgar o bem ou o mal, mas de mostrar ao mundo
a consistência do seu comportamento moral, com base nos filósofos mais respeitados da
história. Naquele momento, impunha-se uma questão puramente política e a resposta
seria dada na forma filosófica atualizada de acordo com a conjuntura.
Sendo o marxismo a filosofia materialista criadora do comunismo, Perón abusou
da retórica para demonstrar tudo o que havia de pior nessa filosofia. Assim, a partir da
virtude socrática, acompanhada da consciência da dignidade humana e revestida pela
ética, que mede os valores pessoais, desenhou o quadro no qual o homem deveria inserir
a própria vida. Citando Aristóteles, Perón se referiu à importância maior da convivência
social em oposição às atitudes individuais. “O homem é um ser ordenado para a
convivência social; o bem supremo não se realiza, por conseguinte, na vida individual
humana, mas no organismo supra-individual do Estado; a ética culmina na política”
(PERÓN, 1974, p. 42). Perón defendeu a idéia de que o progresso está em absoluta
relação com o grau ético alcançado: estabelece a moral das leis e pode interpretá-las
155
sabiamente. Para a vida pública isto significa a ordem, a ação e o uso feliz da liberdade”
(PERÓN, 1974, p. 44).
A violação de qualquer um desses princípios seria o mesmo que substituir uma
ação virtuosa por dispositivos tais que levassem o homem a romper com o Bem e optar
pelo Mal. O materialismo apareceu, de uma certa forma, para romper, na concepção de
Perón, com esses axiomas. Logo, o repúdio ao marxismo não seria sem razão. Quando
Perón citou Spencer, para mostrar que o sentido último da ética consiste na correção do
egoísmo, ele mostrou, por outro lado, que o egoísmo forjou a luta de classes e inspirou
os anátemas do materialismo (PERÓN, 1974, p. 45). Nessa ordem, o materialismo
perdeu qualquer significação ética positiva, para ganhar imediatamente o peso de ser o
responsável por todos os males sociais. Enquanto Marx afirmava que a luta de classes é
o motor da história, Perón (1974) se contrapunha, indicando que “o egoísmo estava
destinado, acaso por desígnio providencial, a transformar-se em motor de uma agitada
idade humana” (p. 46). Ora, se a agitação é o contrário da ordem e da felicidade, nada
mais sábio que combatê-la. Atingido esse alvo, Perón passaria a defender a superação
da luta de classes pela colaboração social e dignificação humana. O eixo construtor do
pensamento de Perón se operou através da reafirmação das individualidades em função
dos interesses da coletividade. Para isso, Perón (1974) utilizou Hegel, visando a
sustentar sua tese segundo a qual: “O espírito que existe em si mesmo poderá chegar
ao pleno ‘ser em si’ na medida em que o ‘eu’ se eleve ao ‘nós’ ou ao ‘eu’ da
humanidade” (p. 48).
Atingido o primeiro alvo de suas divergências, o marxismo, Perón (1974, p. 50)
passou a delinear o contorno perverso do capitalismo. A revolução liberal, com o
advento do capitalismo e industrialismo, provocou, na concepção de Perón, a expansão
dos valores individuais. O fortalecimento dos valores individuais, no entanto, teve
sentido como superação da etapa dos privilégios. Perón se referia à transição histórica
para o capitalismo na qual a necessidade da liberdade se impunha. No entanto, a
instalação desse Estado liberal não foi precedido pelo dispositivo social que diminuísse
as desigualdades.
156
Por razões evidentes, a crítica de Perón pesava sobre dois pontos: a) a luta de
classes, em estado de superação; e b) o individualismo, que tem sentido em perfeita
sintonia com a coletividade.
130
Perón, em toda a conferência buscou a fórmula que, se aplicada, daria ao homem
a felicidade. O triunfo da política seria a formação de uma sociedade onde a
colaboração social e a dignificação humana fossem realizadas. Na busca de uma ordem
política estável e racional, Perón apresentou seu programa para atingir tais fins. Olhava
para trás criticamente, sustentando uma nova concepção de política que, no limite, se
aproximava da utopia. Não fosse o conhecimento por outras fontes da influência dos
princípios autoritários e das características de seu estilo de governo, a retórica de Perón,
marcada pelas virtudes democráticas, se assemelhava à dos grandes pensadores.
No decorrer de sua fala, Perón formulou explicitamente o que seria a
“Comunidade Organizada”, termo utilizado posteriormente para identificar a “nova
Argentina”. As comunidades sãs e vigorosas são caracterizadas pelo grau de suas
individualidades e o sentido com que se dispõem a se inserir no coletivo. A sociedade
teria que ser harmônica, sem nenhuma dissonância, nem predomínio da matéria, nem
um Estado de fantasia. Essa harmonia seria presidida por normas que oferecessem a
possibilidade de se falar em um coletivismo alcançado pela superação do
individualismo, pela cultura e pelo equilíbrio. A norma, na concepção de Perón, seria
aquela que se realizasse pelo conhecimento e pela educação e que se afirmasse em cada
atitude, conforme a moral. O futuro da sociedade dependeria da existência das normas.
Para isso, haveria de se constituir um sistema ordenado de limites (PERÓN, 1974, p.
111).
A comunidade organizada seria aquela em que a liberdade e a responsabilidade
constituíriam causa e efeito, em que existiria uma alegria de ser, fundada na certeza da
própria dignidade. Seria fundamental, portanto, que o indivíduo tivesse algo a oferecer
ao bem geral, e algo a que se integrar, não se limitando a uma presença silenciosa na
sociedade.
Por fim, Perón retomou o tema da auto-valorização, da ânsia de estar acima de
todos, de ser o primeiro. Nessa conferência, ofereceu um conjunto de políticas
apresentadas como prudentes para impedir o homem de cair nos dois extremos: o
130
Nesse aspecto, Perón afirmava que o todo não pode ser dissociado das partes, ou seja, o coletivo não
pode ser indiferente à condição dos elementos formativos (PERÓN, 1974, p. 52).
157
individualismo ou o coletivismo (capitalismo/marxismo). Crítico veemente da
deificação do Estado, Perón (1974) explorava o fervor cristão da platéia, inclinando-se
para um estilo populista manipulador:
Nos cataclismas. a pupila do homem tem voltado a ver Deus e, por
reflexo, tem voltado a divisar-se a si mesmo. Se devemos pregar e
realizar um evangelho de justiça e de progresso, é preciso que
fundemos a sua verificação na superação individual, como premissa
da superação coletiva (p. 114; tradução da autora).
Embora Perón reconhecesse o papel da filosofia para compreender o mundo, o
resultado até então, segundo ele, por força dos oportunismos ideológicos, não devolveu
ao homem a tão cobiçada felicidade e o caminho da verdade. Portanto, concluiu:
Nossa comunidade tenderá a ser de homens e não de bestas. Nossa disciplina
tende a ser conhecimento, procura ser cultura. Nossa liberdade, coexistência das
liberdades, que procede de uma ética para que o bem geral se encontre sempre vivo,
presente, indeclinável. O progresso social não deve mendigar nem assassinar, mas
realizar-se pela consciência plena de sua inexorabilidade. (...) Esta comunidade que
busca fins espirituais e materiais, que tende superar-se, que anseia por melhorar e ser
mais justa, melhor e mais feliz, onde o indivíduo pode realizar-se e realizá-la
simultaneamente, dará ao homem futuro as boas-vindas desde o alto de sua torre com a
nobre convicção de Spinoza: “Sentimos, experimentamos, que somos eternos”
(PERÓN, 1974, p.115; tradução da autora).
O Justicialismo foi apresentado, oficialmente, para tomar o lugar do capitalismo-
liberal e do marxismo.
131
A “Terceira Posição” tinha uma base filosófica, apresentando-
se como o equilíbrio entre o individualismo capitalista e o coletivismo marxista.
131
Em mensagem à Assembléia Legislativa, em 1 de maio de 1952, Perón retomava a questão do
nascimento do Justicialismo: “O dilema que nos apresentava era terminante e definitivo: ou seguíamos
sob a sombra do individualismo ocidental ou avançávamos pelo novo caminho coletivista. Mas nenhuma
das duas posições haviam de levar-nos à conquista da felicidade que nosso povo merecia. Por isso,
decidimos criar as novas bases de uma terceira posição que nos permitisse oferecer ao nosso povo outro
caminho que o conduzisse à exploração e á miséria” (...). Assim nasceu o Justicialismo, sob a suprema
aspiração de um alto ideal. O Justicialismo, criado por nós e para nossos filhos, como uma terceira
posição ideológica tendente a liberar-nos do capitalismo, sem cair nas garras opressoras do coletivismo”
(BARCO, 1983, p. 65).
158
Fundamentalmente, a “Terceira Posição” era uma resposta ao mundo do pós-guerra,
bipartido em dois blocos internacionais que disputavam a hegemonia.
132
Em 25 de julho de 1949, poucos meses depois da conferência de Mendoza, foi
realizada a Primeira Reunião do Partido Peronista. Nessa ocasião, Perón reafirmou sua
idéia da “comunidade organizada”, tendo como princípio básico a premissa do “um por
todos e todos por um”. O bem da Pátria seria o resultado da transformação orgânica, que
substituiria a turba pela massa organizada. O Partido Peronista, vanguarda desta
operação, teria em Perón, seu presidente, o chefe da reconstrução da Pátria. Mais uma
vez, Perón se perdeu em devaneios megalômanos, comparando sua sabedoria à de
Napoleão Bonaparte.
133
O erro não era passível de existir, Perón (1949) sempre
acertava: “Sempre, senhores, que devo considerar um problema político, pergunto aos
outros o que fazem para que eu faça totalmente o contrário: eu acerto sempre” (p. 566).
Segundo Perón, após três anos de governo, estava claro que a sua “era” vinha
sendo um tempo de redefinições. Sempre veemente na acusação a seus adversários,
Perón relembrava as eleições de 24 de fevereiro de 1946 para reiterar a legitimidade de
seu governo:
o país decidiu, em 24 de fevereiro, o que o povo queria. Agora os
opositores atuam contra esse povo e contra a vontade do mesmo. Suas
opiniões são, em conseqüência, contrárias a nós e a esse povo, e o
pior, têm se aliado com os inimigos externos da Pátria para servir-lhes
de quinta coluna (PERÓN, 1949, p. 567).
Dando prosseguimento ao discurso, dessa vez usando uma linguagem bem mais
acessível do que em Mendoza, Perón anunciou, mais uma vez seus propósitos na luta
entre o “ser ou não ser da Nação”. Considerando as políticas e os políticos anteriores
como modelos de anacronismos, que deveriam ser imediatamente superados, Perón
conclamou os peronistas a extirpar todos os males que pudessem atuar contra a
aglutinação partidária el que trabaja por su cuenta, que se vaya a outro campo. Aqui
trabajamos todos para todos” (PERÓN, 1949, p. 570).
132
Ver sobre a Terceira Posição, Blanksten (1974, cap. 17).
133
Perón recorda a passagem em que os generais austríacos diziam: “Não se pode como faz este
Napoleão desconhecer as leis mais fundamentais da guerra”. Mas não se deram conta que, com essas
violações das leis mais fundamentais da guerra, durante 30 anos Napoleão os venceu, uma e outra vez.
Napoleão, falando a seus generais, dizia com respeito aos generais austríacos: “Sabem demasiado:
demasiadas coisas para poderem vencer a mim”. Nesse ponto, Perón (1949) afirmava: “Eu digo o mesmo
dos políticos: esses políticos sabem demasiadas coisas para poder vencer a nós” (p. 564).
159
Essa fala implicava uma recriminação a alguns peronistas que falavam por
próprios e não pelo Partido. E, mais do que isso, anunciava também o fim da
“tolerância”, dos três primeiros anos de governo, com aqueles que não cumpriam o
dever sagrado de “peronista”. Doravante, a primeira tarefa do Partido seria a de
saneamento dos elementos infiltrados, oportunistas e vergonhosos. A tolerância se
justificava, segundo Perón (1949, p. 571), porque o movimento peronista era um
movimento compreensivo e humanista e não um movimento de desordem ou ódio, mas
de ordem e amor. Advertia o presidente que:
(A) tolerância tem também sua dose e sua gradação. E também
tem seu fim, e ele de vir quando os males que essa tolerância
acarretar forem superiores aos bens que puder ocasionar uma
intolerância inoportuna Nesse sentido, é que devemos acentuar
paulatinamente as tintas. Nem violenta nem rigidamente, mas
dando uma volta no parafuso todos os dias (p. 571; tradução da
autora).
Perón tinha uma visão do peronista como aquele ultrapassava o limite do homem
político ou homem livre. Era uma questão de comportamento pessoal: peronistas ou não
peronistas formavam o novo universo da sociedade argentina.
A partir de 1949, a ordem era ser implacável com aquele que fracassasse, menos
pelo mal pessoal que poderia produzir, mas pelo mal que produziria ao movimento. O
partido exigiria dos peronistas qualificações pessoais impecáveis. Não haveria lugar
dentro do partido para homens fracassados, ou de sorte, por isso a necessidade de
fazer do movimento uma composição de homens exitosos e bem capacitados
intelectualmente. Essa “limpeza” era tarefa de que todos os peronistas estavam
incumbidos – vigiar, dentro do partido, os homens que não cumpriam com seu dever, os
peronistas vergonhosos, os infiltrados e aproveitadores. Para esses, a total intolerância.
Tal seria o grande passo para a realização da nova organização do partido. À frente da
doutrina estava, conforme dizia o líder, um letreiro: “(P)rimeiro, a Pátria; depois o
movimento, e logo os homens” (PERÓN, 1949, p. 573). A doutrina peronista não
poderia se apoiar em sofismas; a doutrina peronista apoiar-se-ia na verdade desnuda, a
verdade absoluta, tal qual a concebem os homens de boa vontade e de coração puro”
(PERÓN, 1949, p. 573).
160
Essa postura de tolerância, por um tempo, e de intolerância em outro, foi um traço
típico da conduta política de Perón. Quando, em seus diversos discursos, Perón tratava
da oposição, o fazia no sentido detrator. Escarnecia de seus oponentes, chamando-os de
anacrônicos, mal-intencionados e inimigos do povo e da Pátria. Sua intolerância
derivava e exclusivamente da convicção de ser essa a verdade. Indo além, Perón
postulava e defendia a sua verdade como única e absoluta.
Se, no lado oposto, a tolerância pode também ser algo negativo, no sentido de
tudo permitir, essa não foi a tolerância praticada por Perón nos três primeiros anos de
governo. Também não praticou a tolerância que Bobbio (1992) nomeou como uma
razão prática, ou seja, tolera-se para obter um fim: o triunfo de sua verdade. Nesse
sentido, esse fim pode ser mais facilmente alcançado mediante a tolerância em conjunto
ao combate do erro à intransigência da tolerância: “O erro poderia propagar-se mais na
perseguição do que numa benévola, indulgente e permissiva tolerância (permissiva, mas
atenta)” (p. 206).
Em síntese, o fim da tolerância, conclamada por Perón, nada tem a ver com sua
intenção. Pelo contrário, a intolerância, anunciada no discurso de 1949, expressava a
necessidade de manutenção do sistema como sempre foi, de intolerância. Se Perón
defendia as liberdades individuais, essas foram permitidas no território das verdades
reconhecidas e traçadas por ele. A obediência, no caso uma exigência imposta aos
peronistas, era o reconhecimento de sua autoridade. Se por um lado, defendia a
obediência no sentido moderno, ou seja, através da lei, essa defesa era enganosa porque
à lei ele próprio não obedecia.
O que dizer, por exemplo, da falta de tolerância com a imprensa? Nada impediu
que, antes de 1949, a tolerância, até então dita respeitada, não tenha existido no que se
refere à liberdade de expressão. É supérfluo apresentar todos os casos onde jornais,
sindicatos e partidos políticos que foram suspensos, fechados ou ameaçados, por
fazerem oposição ao governo instituído.
Mas alguns casos ilustram o limite da tolerância anterior de Perón: a história dos
jornais La Prensa, La Vanguardia, La Nación e do vespertino portenho Clarín, que
foram os maiores opositores do peronismo. La Vanguardia, fundado pelo socialista Juan
B. Justo em 1894, teve sua publicação interrompida por questões políticas, em
diferentes épocas, até que, em agosto 1947, então dirigido por Américo Ghioldi, saiu de
161
circulação. Ainda em uma última tentativa frustrada de voltar a circular, em setembro de
1947, o editorial do semanário anunciou: “Eles tomam a caneta de nossas mãos,
deturpam nossa imprensa, mas dizem que temos liberdade” (La Vanguardia, 2/9/1947,
apud BLANKSTEN, 1974, p. 216; tradução da autora).
134
O jornal La Prensa, fundado em 1869, por José C. Paz, sempre foi um jornal de
grande circulação no país e de reputação respeitada internacionalmente. O jornal
primou, desde 1943, por fazer críticas sistemáticas ao governo da Revolução e, depois
de 1946, não poupou Perón, empreendendo uma campanha sem tréguas contra o seu
governo. A atitude crítica de La Prensa punha em questão a ordem instituída, tornando,
do ponto de vista do governo, insustentável a sua existência. Fechado em 1951, La
Prensa foi outra prova concreta da política de intolerância com os opositores.
135
Ganha a
guerra contra aqueles, o governo teve que lidar apenas com outros dois jornais de
oposição, La Nación e Clarín que, segundo Page (1984, p. 253), sobreviviam desde que
nada remotamente crítico à ação do governo aparecesse em suas páginas.
Ainda no discurso de 1949, Perón ofereceu uma visão de democracia que
qualificou como “democracia orgânica”. Essa consistiria em organizar um governo, em
dar à República, uma política nacional, que ninguém pudesse mudar, “porque é a
política de todos os argentinos e não a dos que chegam ao governo por casualidade”
(PERÓN, 1949, p. 575). Tornar o seu governo uma democracia orgânica foi, segundo
sua própria afirmativa, uma tarefa que lhe custou os três primeiro anos de governo.
Severo em relação aos governos anteriores, Perón (1949) criticou o sistema no qual as
eleições se realizavam a cada seis anos: “Estáseis anos e, quando tem aprendeu algo,
o tiram e põem outro, que tampouco sabe nada e que tem que começar de novo” (p.
575). Na alusão que Perón faz à Reforma Constitucional, ocorrida em março de 1949,
havia a clara intenção de alterar a proibição da reeleição do presidente para o período
subseqüente.
Era freqüente no discurso de Perón a falta de preocupação em omitir determinados
termos que denunciavam seu autoritarismo. Sua idéia de democracia demonstra a
limitação do seu conceito. Deve-se salientar que, ao se concentrar no “governo”, Perón
desviou a atenção do exame das relações entre direitos formais e reais, da liberdade de
134
Para os detalhes sobre o fechamento de La Vanguardia, ver Gambini (1999, p. 260-264).
135
Sobre os conflitos entre o governo de Perón e o jornal La Prensa, ver Panella (1999).
162
escolha, da noção da pluralidade partidária como elemento de inte-relacionamento entre
o Estado e a sociedade.
Ainda nesse mesmo discurso, Perón (1949) fez uma provocação vulgar aos
legisladores que reclamavam dos governadores provinciais:
devo reconhecer, frente aos senhores delegados, que em algumas
partes temos tido falhas lamentáveis (...) algumas províncias têm tido
a pouca sorte de equivocar-se na eleição de seus governantes, e disso,
o peronismo deve culpar-se a si mesmo e a seu eleitorado (...) uma vez
chegaram aqui mais de 20 legisladores provinciais (...) desde o
primeiro até o último me falaram mal de seu governador. Quando
terminaram, os mirei e disse: “Quem elegeu aos governadores?”. Eles
se entreolharam e disseram: “Nós”. Bem, lhes respondi, se virem
então (...). Senhores: o povo se equivoca muitas vezes, mas,
desgraçadamente, essa é a única escola que vai lhes ensinar a eleger
bem (...) têm de deixar que o povo eleja: se si equivoca, pior para ele
(p. 577).
O modo pelo qual Perón chegou a essa inversão de perspectiva é mais uma
evidência dos limites de sua idéia de democracia. Quando Perón afirma “tem que deixar
que o povo eleja: se si equivoca, pior para ele”, comete uma incoerência. O primeiro é
que “deixar que o povo eleja” pressupõe a mudança, no caso de insatisfação, ou seja,
uma alternância no poder que, na primeira parte do discurso, ele nega, quando afirma
que “daria à República uma política nacional que ninguém poderia mudar”.
Na segunda parte do discurso, Perón (1949) trata da criação de “auto-defesas”
dentro da organização peronista. Não haveria espaço para a opinião livre dentro do
peronismo. A “auto defesa” foi criada para seguir a máxima “para um peronista, não
deve haver nada melhor que outro peronista” (p. 579; tradução da autora). Em poucas
palavras: “Guerra à morte ao imoral e guerra à morte àquele que, por qualquer sistema
ou por qualquer procedimento, produza males ao peronismo” (p. 579; tradução da
autora). Para que isso acontecesse, Perón pedia que os peronistas vigiassem uns aos
outros, além de zelar para que cada peronista fosse um homem de bem: um verdadeiro
peronista. Daí o fim da tolerância e o estímulo à delação.
É notável como o autoritarismo não se limitava à relação com a oposição, “outro
mal que temos de eliminar é a obstrução política, ou a obstrução gremial aos governos
peronistas, em nome do peronismo. Quando surge um conflito entre peronistas, não
163
pode haver nenhuma causa em que seja impossível um acordo entre as partes (...)”
(PERÓN, 1949, p. 578). A isso Perón chamava de realização de um trabalho orgânico
entre os “comprovadamente peronistas”, que atuariam em cada região para estabelecer
os princípios da moral e da organização, mediante os quais seriam estabelecidas, no
país, as regras que deveriam, no futuro, ajustar todos os peronistas. O reconhecimento
do perigo eminente colocava os peronistas em estado de alerta contra o inimigo interno,
de um lado, e o inimigo externo, de outro. Enquanto os inimigos internos eram os
próprios peronistas vergonhosos, arrivistas e infiltrados no movimento, os inimigos
externos eram os adversários políticos: os conservadores, os radicais do Comitê
Nacional, os socialistas e os comunistas. Todos esses grupos deveriam ser manejados
desde fora da República: Perón ainda sofria com o fantasma de Braden (PERÓN, 1949,
p. 582; tradução da autora).
Perón distinguiu três diferentes e bem definidas etapas do governo. A primeira foi
a revolução, a segunda, o governo realizado até 1949 e a terceira, seria a consolidação
integral das etapas alcançadas e a realização das propostas para o futuro. A primeira
etapa, a da Revolução, terminou em 4 de junho de 1946, quando assumiu a presidência
da República. Nela foi realizada a reforma social, preparada a reforma econômica, e
iniciada a reforma política a partir da abolição da fraude eleitoral.
Na segunda etapa, ou seja, nos três primeiros anos de governo, Perón mostrou que
se ampliou a legislação social “para que as massas trabalhadoras fossem conquistando o
direito que lhes corresponde de acordo com as possibilidades econômicas do país”; na
área econômica, houve a nacionalização dos serviços públicos, o pagamento da dívida, a
consolidação de uma marinha mercante para o tráfico e o comércio internacional e a
realização das obras prescritas no Plano Quinqüenal, incluindo o programa de
industrialização do país. Com tudo isso, estaria sendo afirmada, definitivamente, a
independência econômica da Argentina. Perón mencionou a Reforma da Constituição, e
na ordem política, deu destaque apenas ao fim da fraude eleitoral, que, segundo seu
ponto de vista, impossibilitou o desenvolvimento da democracia na Argentina (PERÓN,
1949, p. 581; tradução da autora).
Para a terceira etapa, a ser iniciada depois da Reforma Constitucional, apresentou
três linhas de ação: a) terminar a organização do governo; b) congregar as forças
políticas do peronismo; e c) consolidar a doutrina, o governo e a justiça. Considerava
164
que a consolidação do movimento seria feita pelo cumprimento de uma tarefa
orgânica impostergável, para que o peronismo fosse a verdadeira cunha e absoluta
representação do povo da Nação.
136
O fechamento do discurso foi feito com a tão conhecida fórmula “há de se
diferenciar um conductor de um caudilho”. Privada de verdadeiros condutores, a
sociedade argentina teria agora sido privilegiada com o providencial aparecimento do
condutor, também mestre: Perón, o General, aconselhava aos peronistas que tivessem
sempre no bolso a doutrina e que essa fosse lida diariamente, compreendida e sentida.
Daí se poderia dizer que o homem teria uma alma peronista, pois a doutrina seria a
organização espiritual do movimento.
As últimas palavras do discurso foram uma repetição exaustiva do que era ser
peronista, e o que ainda era preciso fazer para se tornar um perfeito peronista. Para o
peronista médio, o manual (a doutrina), os valores espirituais e a construção nacional
eram suficientes. Para aquele que pretendia se incorporar aos quadros superiores, era
fundamental que fosse feito um estudo mais profundo da literatura. Os comandos seriam
divididos em três classes: superiores, responsáveis pela condução superior partidária;
médios, responsáveis pela direção local, das províncias ou departamentos; e diretos,
responsáveis pela condução parcial das massas. Todos os dirigentes políticos teriam de
ser, por nascimento, um condutor. No entanto, através do estudo, haveria de
aperfeiçoar-se em sua capacidade de condução. Pela primeira vez, Perón abriu
publicamente um espaço para os que não nasceram condutores: “Há os que têm chegado
a ser condutores sem haver nascido, pelo método, porque ao gênio por dois
caminhos: primeiro, nascendo, e segundo, trabalhando” (PERÓN, 1949, p. 587;
tradução da autora).
Desta forma, o termo conductor, que, até então, podia ser atribuído aos
“escolhidos”, teve uma aplicação ampliada para contemplar também aqueles que, por
livre-arbítrio, tornavam-se condutores ainda que sem a benção do dom divino. “Se esse
136
A democracia moderna corretamente definida é o poder dos indivíduos tomados um a um, de todos os
indivíduos que compõem na sociedade regida por algumas regras essenciais, entre as quais uma
fundamental, a que atribui a cada um, do mesmo modo como a todos os outros, o direito de participar
livremente na tomada das decisões coletivas, ou seja, das decisões que obrigam toda coletividade. A
democracia moderna repousa na soberania não do povo, mas dos cidadãos (...) Numa democracia
moderna quem toma as decisões coletivas, direta ou indiretamente são sempre e somente os cidadãos uti
singuli, no momento em que depositam seu voto na urna (BOBBIO, 1992, p. 120).
165
dirigente é condutor, tanto melhor, se não, bastará que seja honrado; se é capaz, melhor”
(PERÓN, 1949, p. 587; tradução da autora).
Seriam formadas unidades básicas para a organização das massas substituindo os
antigos comitês. Esse seria o fundamento do que Perón chamou de Ateneu Peronista a
escola das virtudes. A função dos ateneus seria: reunir, doutrinar, ensinar a teoria e as
formas de sua execução, tratar a fundo a doutrina, exaltar os valores espirituais do
movimento e aperfeiçoar as formas de execução com o conhecimento perfeito da teoria
e dos regulamentos. Além dessas tarefas, os ateneus seriam os órgãos de vigilância
peronista para examinar: se se cumpre a doutrina, se a lei é observada, se a ética é
observada, se os princípios peronistas são cumpridos e se os interesses pessoais, os
círculos políticos, a murmuração e a calúnia são combatidos (PERÓN, 1949, p. 587).
A autoridade de Perón, pelo visto, tinha de ser exercitada através de estratégias
políticas para evitar que a desobediência ou a transgressão pessoal dos peronistas
ferissem a ordem do partido. Sabe-se que a autoridade exige obediência e exclui a
utilização dos meios externos de coerção. A autoridade também é incompatível com a
persuasão, a qual, segundo Arendt (1986, p. 129), pressupõe a igualdade e opera
mediante um processo de argumentação. Onde se utilizam argumentos, a autoridade é
colocada em suspenso. A autoridade pode ser definida em contraposição à coerção
pela força assim como à persuasão se dá através de argumentos.
Conclusão
se analisou a forma como Perón chegou ao poder e o que ele representou de
positivo para os trabalhadores argentinos. Perón era consciente de que conquistar a alma
trabalhadora, em uma conjuntura desfavorável de duração tão longa, não seria tarefa tão
difícil. Toda a argumentação de sua importância para o destino da Nação foi vista e
revista na análise de seus diferentes e diversos discursos. Após três anos de governo,
com as emoções controladas, os trabalhadores precisavam não manejar ganhos
reais, mas, também, somar, àqueles do passado, outros ganhos. Do ponto de vista do
presidente, a vitória de 1946 não garantiria seu lugar na presidência ad eternum. O
primeiro trunfo, ele o conseguira com a Reforma Constitucional de 1949, que
legitimava a reeleição para o turno subseqüente. O segundo seria, sem dúvida, a vitória
nas próximas eleições.
166
Se, como mito, os erros do Presidente não seriam questionados, como político,
seus erros seriam implacavelmente cobrados. Para que isso não acontecesse mais
prematuramente que o esperado, Perón utilizava, como estratégia preventiva, as armas
da doutrina, para que a fidelidade partidária e seu poder fossem inquestionáveis.
Neste capítulo, apresentou-se a construção discursiva da doutrina peronista que
permitiu a Perón manter o apoio dos trabalhadores argentinos. Desde a ascensão de
Perón, o território argentino passou a ser o palco de uma “nova sociedade” com tudo
que possa ter havido de engano ou ilusão. A execução da doutrina, principalmente com
o início da intolerância, foi orientada por uma finalidade política clara: a hegemonia de
Perón e do peronismo. A esquerda enfrentava um problema crucial, a falta de uma
alternativa ao status quo do trabalhador, que fosse duplamente viável e inovadora. Essa
alternativa, Perón ofereceu. Perón foi a grande alternativa que se apresentou naquele
momento à sociedade argentina,desgastada por tantos desmandos. Nessa perspectiva,
foi aclamado não por seu carisma e liderança, mas, indiscutivelmente, por ter posto
em práticas políticas até então inexistentes.
Quando o espaço público é aberto ao ingresso das massas, ocorre um importante
fato político, em geral, de caráter irreversível: as massas, antes manipuladas,
transformam-se em atores políticos de fato. No início, o governo tem o controle do
espaço público e da participação popular. A própria manipulação traz em si uma
vantagem para os manipulados, gerando bens políticos e vantagens sociais. No entanto,
a tendência é que essa massa transforme-se em classe consciente, provocando uma
significativa expansão no sindicalismo e uma modificação no formato das demandas,
tanto na esfera política quanto na social. Em outras palavras, a organização dos
trabalhadores é também um ingrediente fundamental para que, de massa, eles se
transformem, em um período relativamente curto, em um movimento operário
organizado. A classe operária argentina não foi uma exceção.
Deixando de lado a indiscutível questão do carisma de Perón, considera-se que
toda a sociedade foi remodelada para incorporar o trabalhador nessa nova fase da
história do país. A assimilação da nova ordem foi feita através de slogans, de
propagandas, de cartilhas escolares, programas de rádio e discursos para o grande
público. Essas, foram e são as táticas mais eficientes no jogo semelhante ao
populismo de se fazer a política. Enquanto as conferências, os discursos em circuito
167
fechado a publicação das obras de Perón operavam em um meio mais selecionado, a
repercussão dessas apresentações era muito pequena e não atingia a classe trabalhadora.
Aos políticos, principalmente da oposição, analistas políticos, historiadores, sociólogos
e militantes mais esclarecidos, coube a tarefa de analisar as verdadeiras intenções de
Perón e comparar suas políticas com o modelo fascista.
À classe trabalhadora, as aparições de Perón na sacada da Casa Rosada, as falas
inflamadas de Eva Perón e, sobretudo, o trabalho de Raúl Alejandro Apold na direção
de mil e seiscentos escribas dedicados à exaltação das figuras de Perón e Eva, tiveram,
junto à política trabalhista, grande repercussão.
137
De tudo isso pode se apreender que a estratégia trabalhista, em que pesem as
diferenças na perspectiva político-econômica, também esteve presente no comunismo e
no socialismo. As palavras de ordem do líder foram assimiladas junto a uma
permanente resignificação por parte dos interlocutores. É nessa resignificação que
ganha a feição do debate racional a política peronista. Enquanto se organiza o mundo do
trabalho, todo o instrumental para controlá-lo foi acionado, convertendo setores da
administração pública em áreas de constante reforço do exercício do poder, mas,
concomitantemente a esse empenho estatal, as massas estavam em alerta.
137
Sobre o monopólio estatal de todas as emissoras de rádio, a criação da Subsecretaria de Informações
em 1943, depois transformada na Secretaria de Prensa y Difusión de la Presidencia de la Nación, dirigida
por Raúl Alejandro Apold, ver Sebreli (1983, p. 81).
168
CONCLUSÃO
Para ver que é assim, imaginemos que um membro de um pequeno
grupo de concidadãos diz para você e os outros:
Como vocês, nós também acreditamos bastante na igualdade
intrínseca. Não somos apenas profundamente dedicados ao bem
comum, também sabemos melhor do que a maioria como chegar a ele.
Portanto, estamos muito mais preparados para governar do que a
grande maioria das pessoas. Assim, se vocês nos concederem
exclusiva autoridade no governo, empenharemos nossos
conhecimentos e nosso trabalho ao serviço do bem geral; com isso,
daremos igual peso ao bem e aos interesses de todos.
A afirmação de que o governo deve ser entregue a especialistas
profundamente empenhados em governar para o bem geral e
superiores a todos em seus conhecimentos dos meios para obtê-lo – os
tutores, como Platão os chamava sempre foi o mais importante rival
das idéias democráticas. Os defensores da tutela atacam a democracia
num ponto aparentemente vulnerável: eles simplesmente negam que
as pessoas comuns tenham competência para se governar (DAHL,
2001, p. 83).
Essa citação de Dahl é a chave do argumento que o autor utiliza para discutir o
subtítulo ‘A Tutela: uma alegação em contrário’, do capítulo 7 de seu livro Sobre a
democracia. Para o autor, a tutela é o avesso da democracia. Para justificar sua
afirmativa, Dahl lança mão de exemplos nos quais a competência ou o rigor do
conhecimento científico são fundamentais na solução de alguns problemas. Governar,
no entanto, demanda muito mais do que o conhecimento científico. Governar não está
entre as ciências como a química, a física ou até mesmo a medicina. As importantes
decisões políticas não podem prescindir da ética, da honestidade sem corrupção, da
resistência firme a todas as tentações do poder, além de uma dedicação constante e
inflexível ao bem público, mais do que aos benefícios de uma pessoa ou seu grupo.
Nessa perspectiva, o conhecimento é uma coisa, o poder é outra. O efeito do poder pode
ser fatal a ponto de levar a tutela à tirania: “(...) é fato de que, pela corrupção, pelo
nepotismo, pela promoção dos interesses do indivíduo e seu grupo, pelo abuso de seu
monopólio da força coercitiva do Estado para reprimir a crítica, extrair riqueza dos
súditos ou governados e garantir sua obediência pela força, é muito provável que os
tutores de um Estado se transformem em déspotas (...)” (DAHL, 2001, p. 88).
169
Ao apresentar seus supostos para a realização da cidade ideal, na República,
Platão condiciona seu surgimento à existência de um governo que fosse confiado a reis-
filósofos. Esses chefes de Estado seriam escolhidos dentre os melhores guardiães e
submetidos a diversas provas que permitiriam avaliar seu patriotismo e sua resistência.
Mas, principalmente, deveriam realizar uma série de estudos para poderem atingir a
ciência, ou seja, o conhecimento das idéias, elevando-se até seu fundamento supremo: a
idéia do Bem. Os tutores poderiam empenhar-se em servir ao bem de todos e, assim,
como conseqüência, admitir que todos sob sua proteção fossem intrinsecamente iguais
em seu bem ou seus interesses. Na perspectiva platônica, os defensores da tutela não
consideram que os interesses das pessoas escolhidas como tutores sejam
intrinsecamente superiores aos interesses dos outros. A idéia é que aqueles que são
especialistas em governar devem ser superiores em seu conhecimento do bem geral e
dos melhores meios de alcançá-lo (PLATÃO, 1979, p. XXI).
Perón entendia a condução numa perspectiva diferente à de Platão. Enquanto
Platão pensava a condução como ciência, Perón afirmava:
Creio que ainda não existe uma ciência que capacite o homem para realizar essa
classe de trabalho. A ciência, em geral, difere da arte e se rege por leis, as quais
estabelecem que, aos mesmos efeitos, correspondem as mesmas causas. (...) De maneira
que a condução é uma arte ‘sui generis’. É distinta de todas as outras. É uma arte porque
pressupõe, permanentemente, criação. A condução sem espírito criador não existe, e é
permanentemente criação porque todos os casos que a história coloca na condução são
distintos, como são distintos os fatores que intervêm em cada caso (...) (PERÓN, 1952,
p. 162; tradução da autora). Comecemos por estabelecer que o condutor é um artista;
não um técnico. Vale dizer, que ele não elabora nada mecanicamente, que a condução é
produto de sua criação. Do contrário, não vão ter nada que agradecer a sua ação de
condutor” (...) (PERÓN, 1952, p. 174; tradução da autora). O que eu lhes posso dar é a
técnica; a arte da condução não lhes posso dar. Da mesma forma que se ensina a tocar a
170
guitarra e a perfeição da técnica da guitarra. Mas essa condição natural com que nasce o
artista, isso não se pode ensinar. Essa é a condução” (PERÓN, 1952, p. 15; tradução da
autora).
Naturalmente, que a Perón estava garantido o lugar da condução, menos por
mérito que por dom no nascimento. Perón se considerava um condutor nato, que
estabeleceu com as massas uma relação de sentimento e pelo qual seu poder passava a
ser inquestionável, porque:
Isso era o que eu necessitava para conduzir. Já tinha uma massa, ainda inorgânica,
possivelmente, para conduzir, mas que mediante distintos sistemas e maneiras de atuar
poderia conduzi-la. De imediato, contava com o primeiro que se necessita para mandar
e para conduzir: contava com o coração dos homens. Eu mandava mais que o governo
nesse momento, porque eu mandava sobre o coração de muitos milhares de homens.
Esta é, talvez, a primeira condição para conduzir. É dizer, atuar sobre o coração dos
homens, não sobre sua vontade, para que o acompanhem conscientemente e de
coração. Quando isso acontece, a condução é fácil. Se não acontece, nada é mais difícil
que a condução. Por isso, a condução não é a arte que especula com uma coisa em um
momento. A condução é uma arte que especula sobre todas as coisas e sobre todos os
momentos. Isso é, casualmente, o difícil da condução (Perón, 1952, p. 54; tradução da
autora).
Em O Príncipe, Maquiavel (1979) estabelece a diferença entre aquele que chega
“ao principado pela maldade, pelas vias celeradas contrárias a todas as leis humanas e
divinas” e aquele que se torna “príncipe por mercê do favor de seus contemporâneos”
(p. 35). Para Maquiavel, “aqueles tiranos que, sem mérito, matam seus concidadãos e
traem seus amigos, não têm fé, piedade, nem religião; podem conquistar o mando,
171
jamais a glória. Porque estes, embora não possam ser julgados como ‘inferiores a
qualquer dos mais ilustres capitães’ por sua ‘crueldade e seus inúmeros crimes’ não
podem ser celebrados entre ‘os mais ilustres homens da História’” (p. 35).
O móvel da política, segundo Maquiavel, deve ser sempre o interesse público, seja
em um principado ou em uma república. O legislador sábio (seja o príncipe ou o povo)
deve ser “animado do desejo exclusivo de servir não seus os interesses pessoais, mas os
do público: de trabalhar, não para seus próprios herdeiros mas pela pátria comum
(Discursos, cap. IX, citado por VILLANI apud ARNO DAL RI & PAVIANI, 2001, p.
111).
É possível acompanhar uma idéia semelhante à de Maquiavel no discurso de
Perón, quando este afirmava que
o condutor que trabalha para si mesmo não irá longe. O condutor
sempre trabalha para os demais, jamais para ele (...) Por essa razão são
duas as condições fundamentais do condutor: sua humildade para
fazer-se perdoar pelos demais o que não se faz por eles; e seu
desprendimento, para não ver-se nunca tentado a trabalhar para si. (...)
O condutor nunca é autoritário nem intransigente. Não coisa que
seja mais perigosa para o político que a intransigência, porque a
política é a arte de conviver, e, em conseqüência, ,a convivência não
se faz à base de intransigência, sim, de transações. (...) O condutor
nunca manda; quando muito aconselha; é o máximo que se pode
permitir. Mas deve ter o método ou o sistema necessário para que os
demais façam o que ele quer, sem que tenha que pedir-lhes (PERÓN,
1952, p. 183) (...) Atuam também seus sentimentos, seus valores
morais, suas virtudes. Um homem sem virtudes não deve conduzir, e
não pode conduzir ainda que queira ou que deva” (PERÓN, 1952, p.
55).
Como temos visto, pelas palavras do próprio presidente Perón, a representação da
sua relação com os argentinos estava confirmada através da idéia-imagem de um
sentimento superior que, em geral, transcendia a materialidade: Perón “mandava nos
corações”. Também é possível notar, na retórica peronista, contradições como “eu
mandava mais que o governo”, por um lado, e por outro, “um condutor nunca manda,
aconselha”. Tanto o ‘mandar’, o ‘aconselhar’, e o ‘mandar nos corações’ se prestavam à
estratégia de Perón para legitimar seu poder e constituíam parte simbiótica da estrutura
autoritária de seu governo.
138
Aquilo que aparece diluído no discurso como um elemento
138
“‘Poder’, disse Voltaire, ‘consiste em fazer os outros agirem como eu quiser’; está presente sempre que
eu tenha a chance de ‘afirmar minha vontade contra a resistência’ dos outros, disse Max Weber,
lembrando-nos da definição de Clausewitz de guerra como ‘um ato de violência para compelir o oponente
a proceder como desejamos’. Esta palavra, diz-nos Strauz-Hupé, exprime ‘o poder do homem sobre o
homem’. Voltando a Jouvenal: ‘Mandar e ser obedecido sem isto não poder e com isto não é
172
imprescindível dentro do conjunto de valores de um condutor, a virtude, por exemplo,
não se assemelha aos conceitos de virtude, que vem desde a Antiguidade Clássica(ver
BIGNOTTO, (1991)
Foram três as estratégias utilizadas por Perón para pavimentar seu caminho e,
depois, a sua permanência no poder: a primeira estratégia foi a política trabalhista (nesta
estava incluída a organização da massa de trabalhadores); a segunda, foi a força do
discurso como condutor e a construção de um imaginário ameaçador para a sociedade; e
a terceira estratégia foi um poderoso investimento afetivo: a figura de Eva Perón.
Os diferentes enfoques que podem ser válidos para interpretar o discurso de
Perón, quando esse se auto-denomina “o condutor das massas argentinas”, mostram que
o conceito do “condutor” não é um conceito de estilo político próprio desse ou daquele
governante. Pelo contrário, a figura do condutor é, sim, um conceito de estilo que tem
sua referência em realidades concretas e pode se repetir em múltiplas fases da história
humana. No entanto, como modelo para governar, o condutor poderia ser aquele que
Platão delineou, o “rei-filósofo” ou o Príncipe de Maquiavel, “um legislador sábio
animado pelo desejo exclusivo de servir”. Com isto, entende-se que o emprego do termo
“condutor” por suas diferentes conotações nem sempre é positiva. E isto, obviamente,
sem ignorar que ainda que o termo revele semelhanças ou congruências com
formulações teóricas de outras épocas, as especificidades históricas acabam por
reformular o conceito e adequá-lo a novas realidades, sem que com isso se renuncie a
compará-lo, com todo o rigor.
Perón, o “condutor das massas”, foi um tema amplamente discutido em
capítulos anteriores, no entanto o retomamos para concluir que Perón, considerado o
grande líder das massas da Argentina, está longe de ser portador da virtude para
governar como desenhada pelos clássicos. A experiência da liberdade e o caráter salutar
dos conflitos que possibilitam a expressão de vontades diferentes, por exemplo,
consideradas por Maquiavel, como produtores de boas instituições, não foram a tônica
do governo de Perón (VILLANI, 2001, p. 110).
Ao fazermos referência a movimentos de massa como foi o peronismo, não temos
dúvida de que, ainda que o líder mobilizasse multidões para apoiá-lo, o elemento
necessário qualquer outro atributo para que haja... A coisa essencial sem a qual não poder: ordens’”.
Trecho discutido por Arendt no capítulo Da Violência em: Arendt, Hannah. Crises da República (São
Paulo, Editora Perspectiva, 1973, p. 116).
173
degenerador da democracia e avesso a ela, o discurso da tutela, foi o grande
investimento de Perón no campo do imaginário social argentino. O diagnóstico de todos
os males que assolavam aquela sociedade foi feito por Perón desde suas primeiras
aparições públicas desde 1943. O clima de suspense criado na sociedade andava junto a
um tipo de guerra psicológica, que ameaçava os trabalhadores (esse era o alvo de
Perón), inclusive com a possibilidade de perderem os ganhos “outorgados” pela
Secretaria de Provisão.
O resultado da consciência patriótica, do zelo e o espírito de ‘salvador da pátria’
de Perón, tão reforçado em seus discursos, apareceu na prática de disseminação do
medo e na instalação de um sistema de dominação marcado pela repressão à liberdade
de expressão e à censura da imprensa. As perseguições de natureza policial, que foram
praticadas na “Nova Argentina, sob a alegação de repressão ao ‘vírus comunista’, foram
apenas algumas das estratégias para enfraquecer o movimento operário organizado e
reorganizá-lo, sob a tutela do Estado Corporativo. A extensão da repressão pode ser
avaliada pela dissolução do Partido Laborista, criado como apoio institucional para a
eleição de Perón e a imediata formação do Partido Único da Revolução, que se tornaria
o personalista Partido Peronista.
Entre extremos encontram-se os adjetivos que qualificaram Eva Duarte Perón em
sua atuação junto ao marido, Juan Domingo Perón, entre 1944 e 1952, ano de sua morte.
Em vista da paixão que Eva Perón provocou enquanto viva, e que até hoje alimenta a
memória de uma parte significativa dos argentinos, cabe fazer uma referência à terceira
estratégia utilizada pelo peronismo. Contudo, escapa ao escopo desta tese uma análise
pormenorizada sobre a atuação de Eva como a grande partner de Perón em seu primeiro
governo. Ainda que possa causar alguma estranheza, para falar de Evita, optou-se por
utilizar dois textos recentes de dois nomes de peso na produção acadêmica e literária
argentina: Abel Posse e Beatriz Sarlo. Ninguém os teria escolhido se fosse falar de Evita
como a encarnação do mal. Pelo contrário, esses dois autores tratam do tema destituídos
da paixão política que, em geral, compromete a lucidez na análise. Citaremos abaixo
alguns trechos dos textos desses autores:
Afirma Posse (2004):
Sobre Eva Perón, Evita, recaem todos os mal entendidos da fama,
como diria Rainer Maria Rilke. Sacralizada pelas massas humildes do
174
peronismo, demonizada pela burguesia e classe média de Buenos
Aires. Vetada moralmente pelos militares que a consideraram indigna
de casar-se com seu mais alto oficial presidenciável. Depois de
cinqüenta anos conseguiu superar inclusive a homenagem do cinema
comercial mundializado.
Vive como mito de sua personalidade única e como referente
constante de toda política solidária (...) O que para Perón era práxis e
teoria política, para Eva Perón consistia em imperativo ético obstinado
e indeclinável. Desde o triunfo de 1946, baseado na indiscutível
maioria popular, Eva se sentiu ungida e transformou sua vida em
missão. Assumiu o poder (de fato porque não teve nenhum cargo
oficial) com a fúria do justo que luta contra o Mal (incluído o mesmo
aparato de poder estatal tradicional enquanto instrumento de
dominação e demagogia). Se transforma em um Rimbaud da política:
uma mística do Bem em estado selvagem (o mesmo Perón se freia
perante ela várias vezes). É intransigente. Nem as astúcias de
Maquiavel nem as estratégias de Von Clausewitz, as quais seu marido
era adicto, a incitaram a qualquer transação política. Perón triunfou,
governou e criou uma doutrina. Mas Eva voou, tentou o sonho de
transformar o poder na realidade da ação solidária (...) Eva perde todo
o sentido do realismo transacional da política. mais de cinqüenta
anos de sua morte podemos perguntar qual pode ser seu legado além
do mito. (...) O balanço deste meio século não pode omitir um fato
antecipatório e central: seu feminismo intuitivo e visceral (...) Se o
peronismo segue tendo algum significado positivo na Argentina, isso
se deve à paixão, ao coração e à coragem de Eva. Neste país
desmantelado pelo pseudo-liberalismo mercantilista, sua mensagem
continua sendo permanente. São as duas palavras que sente nosso
povo nesta hora decisiva: coragem e solidariedade (p. 84-91).
É à luz dessas reflexões que o autor, evidentemente anti-peronista, apresenta uma
Eva Perón distante da imagem caricatural que seus opositores construíram. Ao dar conta
do pano de fundo das realidades políticas do mundo de Eva, Posse a salva da
implacabilidade dos julgamentos dos opositores de Perón. Ainda que expressando
claramente sua opinião sobre Perón, o autor mostra que Eva nunca foi um arremedo ou
uma sombra de seu marido, ao qual ela se referia como seu ‘Sol’. Pelo contrário, Eva
lutou contra o Mal, o Mal em que ela mesma estava envolvida: “o mesmo aparato de
poder estatal tradicional enquanto instrumento de dominação e demagogia”. O
idealismo de Eva, seu conceito de humanidade e sua solidariedade com os pobres
convertiam-se numa carga insuportável para seus opositores. Não surpreende que as
reações habituais a tudo isso tenham sido os recorrentes ataques à sua pessoa e a
propaganda para denegrir impiedosamente sua imagem. Ainda que Perón tenha tido em
Evita um elemento mediador de inequívoca força de comunicação com os
175
‘descamisados’, Evita soube usar da mesma força que empregava para realizar um
trabalho social de dimensão nunca vista no país.
Sarlo (2003) analisa Eva Perón a partir de sua excepcionalidade. Para Sarlo, “Eva
foi única”. Sem dúvida, foi o espírito de tessitura delicada de Eva que lhe deu a força da
audácia e a preservou historicamente como única.
A hipótese desta tese é que a massa trabalhadora argentina apoiou Perón e se
apropriou das vantagens trabalhistas independentemente do autoritarismo e da repressão
política de seu governo. No entanto, se adotarmos o princípio da troca para entender a
relação massas trabalhadoras/Perón, não chegaríamos a nenhuma conclusão
convincente. A compreensão dessa história não pode prescindir do elemento que a
permeou durante quase meio século: a paixão, que segundo Aristóteles, torna os homens
mais ou menos receptivos a aceitar e acolher um discurso, independentemente de ser
este verdadeiro ou não.
176
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