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DANIEL DE MENDONÇA
DEMOCRACIA SEM DEMOCRATAS: UMA ANÁLISE DA CRISE
POLÍTICA NO GOVERNO JOÃO GOULART (1961-1964)
PORTO ALEGRE, JANEIRO DE 2006.
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ii
DANIEL DE MENDONÇA
DEMOCRACIA SEM DEMOCRATAS: UMA ANÁLISE DA CRISE
POLÍTICA NO GOVERNO JOÃO GOULART (1961-1964)
Tese de doutorado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obtenção do Título de
Doutor em Ciência Política, sob a orientação da
Professora Doutora Céli Regina Jardim Pinto.
PORTO ALEGRE, JANEIRO DE 2006.
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iii
À Paola e à nossa primeira década.
iv
AGRADECIMENTOS
Agradeço inicialmente à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, esta Instituição
de Ensino Superior que me acolheu durante meus estudos de mestrado e de doutorado. Esta
tese é o corolário dos anos que nela tão entusiasticamente estudei e aprendi a amar a
carreira acadêmica. Em particular, agradeço a minha orientadora de mestrado e de
doutorado, professora Dra. Céli Regina Jardim Pinto, para a qual nunca foi segredo a minha
admiração ao seu valioso caráter e ao seu trabalho intelectual. Além disso, neste momento,
quero agradecer imensamente à qualidade inestimável do seu trabalho de orientação, que
sempre me deu a segurança e o apoio para seguir adiante na solução dos problemas
inerentes à produção do meu trabalho intelectual.
Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Nível Superior (CAPES) pelas
bolsas de mestrado e de doutorado concedidas, sem as quais esses trabalhos certamente
teriam maiores dificuldades de serem concluídos. Meus mais sinceros agradecimentos
também ao Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados que
generosamente me encaminhou todo o material por mim solicitado no que diz respeito aos
v
discursos dos deputados federais que estão nesta tese analisados. Igualmente agradeço a
forma solícita como fui atendido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História
Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas, pela imprescindível
documentação lá recolhida.
Aos meus amigos e colegas de jornada, Rafael, Rafaela, Léo e Zaira pela inestimável
cumplicidade que somente as amizades verdadeiras podem reservar. À minha família,
sobretudo a minha mãe, pela sabedoria como conduz sua vida e pela forma sempre correta e
responsável que educou a mim e aos meus irmãos. Certamente a vida pode dar viradas
sempre positivas àquelas pessoas que as buscam. Minha mãe é certamente um exemplo
vivo dessa determinação à qual guardo verdadeira veneração.
À minha amada esposa, amiga, intelectual e cúmplice Paola, que viveu todos esses
estranhos anos ao meu lado sempre de forma ativa e vibrante, sabendo na hora certa dar
aquela palavra necessária e compreensiva. Sou infinitamente grato pelos anos que já
enfrentamos o mundo lado a lado, sempre de mãos dadas, olhando para frente sem nunca,
contudo, esquecer a nossa própria história. “Eternamente ...”.
vi
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma;
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase a frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
João Cabral de Melo Neto
vii
RESUMO
Esta tese tem por objetivo analisar os discursos dos principais sujeitos políticos envolvidos
nos dois momentos de maior instabilidade política do governo João Goulart, a saber:
primeiramente, o momento da crise sucessória decorrente da renúncia de Jânio Quadros em
agosto de 1961 e o segundo momento, entre 13 e 31 de março de 1964, marcado pela crise
dos últimos dias do governo Jango. Para cada um desses momentos, serão analisados os
discursos dos diversos grupos políticos que atuaram em tais episódios, a partir das
categorias “diagnósticos de desordem” e “soluções de ordem”, à luz da Teoria do Discurso
de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
viii
ABSTRACT
The aim of this thesis is to analyze the discourses of the main political groups involved in
two moments of political instability on the João Goulart's government that follow: firstly,
the crisis after Jânio Quadros renouncement in August, 1961 and secondly, the crisis that
involved the last moments of Jango’s government, from 13 to 31 March, 1964. For each
moment, the “diagnoses of disorder” and the “solutions of order” will be analyzed for each
political group directly involved in these episodes. The discourse analysis will have as
analytic tool the Ernesto Laclau’s and Chantal Mouffe’s discourse theory.
ix
RÉSUMÉ
Cette thèse a pour but d’analyser les discours des principaux sujets politiques concernés par
les deux moments de la plus grande instabilité politique du governement João Goulart, à
savoir : le premier, c’est celui de 1961, lors de la crise de la succession du président
démissioné Jânio Quadros, et le deuxième, c’est le moment où la crise atteint le
governement de Jango et détermine ses derniers jours : du 13 au 31 mars 1964. Pour chacun
de ces moments ci-dessus présentés, il s’agit d’insister sur l’analyse des discours politiques
d’après les catégories analytiques « diagnostiques de désordre » et « solutions d’ordre » à
lumière de la théorie du discours d’Ernesto Laclau et Chantal Mouffe.
x
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ADEP – Ação Democrática Popular
AMFNB – Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil
CAMDE – Campanha da Mulher pela Democracia
CF – Constituição Federal
CGT – Comando Geral dos Trabalhadores
CNTI – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria
CODEP – Comissariado de Defesa da Economia Popular
CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura
CTI – Comando dos Trabalhadores Intelectuais
DC – Divisão de Cavalaria
DI – Divisão de Infantaria
ESG – Escola Superior de Guerra
FMP – Frente de Mobilização Popular
FPN – Frente Parlamentar Nacionalista
IBAD – Instituto Brasileiro de Ação Democrática
xi
IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais
LEEX – Lealdade ao Exército
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PDC – Partido Democrata Cristão
PETROBRÁS – Petróleo Brasileiro Sociedade Anônima
PL – Partido Libertador
PR – Partido Republicano
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PSD – Partido Social Democrático
PSP – Partido Social Progressista
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PTN – Partido Trabalhista Nacional
PUA – Pacto de Unidade e Ação
RFFSA – Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima
STF – Supremo Tribunal Federal
SUNAB – Superintendência Nacional de Abastecimento
SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária
UDN – União Democrática Nacional
UNE – União Nacional dos Estudantes
xii
LISTA DE ANEXOS
1 Fluxograma do desenvolvimento discursivo das posições de esquerda e de direita no
período do governo João Goulart (1961-1964).
xiii
SUMÁRIO
RESUMO………………………………………………………………………………….
vii
ABSTRACT……………………………………………………………………………….
viii
RÉSUMÉ………………………………………………………………………………….
ix
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS……………………………………………...
x
LISTA DE ANEXOS……………………………………………………………………..
xii
INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………...
001
PARTE 1: ELEMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS DA
INVESTIGAÇÃO...............................................................................................................
016
1 REVISITANDO AS LEITURAS DO GOLPE.............................................................
018
1.1 A interpretação de Alfred Stepan................................................................................... 019
1.2 A análise de René Armand Dreifuss............................................................................... 027
1.3 A posição de Argelina Figueiredo.................................................................................. 034
1.4 A análise de Wanderley Guilherme dos Santos............................................................. 042
2 ESTABELECENDO PREMISSAS PARA UM PLANO DE ANÁLISE: A
NOÇÃO DE HEGEMONIA NA TEORIA DO DISCURSO DE ERNESTO
LACLAU E CHANTAL MOUFFE..................................................................................
048
2.1 A noção de sobredeterminação ...................................................................................... 051
xiv
2.2 Elementos para o entendimento da lógica discursiva..................................................... 055
2.2.1 O sentido de identidade............................................................................................... 056
2.2.2 A materialidade e o funcionamento de uma formação discursiva............................... 062
2.2.3 Pontos nodais, antagonismo e agonismo..................................................................... 066
2.3 Hegemonia e ordem........................................................................................................ 075
2.3.1 As quatro dimensões da lógica hegemônica................................................................ 079
2.3.1.1 A desigualdade de poder está constituída................................................................. 080
2.3.1.2 A hegemonia suprime a dicotomia universal/particular........................................... 082
2.3.1.3 Hegemonia requer tendencialmente a produção de significantes vazios.................. 084
2.3.1.4 O terreno no qual a hegemonia se expande é o de uma generalização das relações
de representação como condição de constituição de ordem social.......................................
087
2.4 Considerações finais....................................................................................................... 090
PARTE 2: A CRISE DA RENÚNCIA DE QUADROS E O GOLPE
PARLAMENTARISTA.....................................................................................................
092
3 OS DIAGNÓSTICOS DE DESORDEM E AS SOLUÇÕES DE ORDEM DOS
MINISTROS MILITARES DE JÂNIO QUADROS......................................................
094
3.1 As manifestações do discurso “solução militar” anteriores ao manifesto dos ministros
militares................................................................................................................................
095
3.2 O manifesto dos ministros militares: o discurso oficial da “solução militar”................ 105
3.3 Documentos militares após o manifesto dos ministros militares.................................... 113
3.4 A posição de Ranieri Mazzilli, presidente da república em exercício............................ 117
3.5 Considerações finais: o “diagnóstico de desordem” e a “solução de ordem” do
discurso “solução militar”.....................................................................................................
124
4 O DIAGNÓSTICO DE DESORDEM E A SOLUÇÃO DE ORDEM DO
DISCURSO SOLUÇÃO LEGALISTA............................................................................
126
xv
4.1 O manifesto de Lott: a primeira voz militar pela legalidade.......................................... 127
4.2 Os documentos “legalistas” do III exército.................................................................... 131
4.3 A posição civil “legalista”: Brizola e o discurso constituidor da rede da legalidade..... 140
4.4 Considerações finais: o “diagnóstico de desordem” e a “solução de ordem” do
discurso “solução legalista”..................................................................................................
145
5 A CÂMARA DOS DEPUTADOS DIANTE DA CRISE SUCESSÓRIA DE
JÂNIO QUADROS: A SOLUÇÃO PARLAMENTARISTA.........................................
146
5.1 A ameaça e a apreensão do golpe e a defesa da “solução legalista”.............................. 148
5.1.1 O medo do golpe militar e o eufemismo..................................................................... 150
5.1.2 A defesa da “solução legalista” no impasse da crise da renúncia de Jânio Quadros e
a peremptória negativa à “solução de continuidade”............................................................
158
5.2 A iminência do golpe militar: o “diagnóstico de desordem” da Câmara dos
Deputados.............................................................................................................................
161
5.3 O “diagnóstico de desordem” e a “solução de ordem” no discurso “solução de
continuidade”........................................................................................................................
165
5.3.1 Os primeiros rumores do parlamentarismo e a peremptória negativa......................... 167
5.3.2 A “solução de continuidade” parlamentarista: um duplo golpe contra Goulart.......... 170
5.4 Considerações finais: os três discursos em perspectiva e a “solução de continuidade”
como a confirmação do golpe contra Goulart.......................................................................
181
PARTE 3: O GOLPE FINAL DO REGIME DEMOCRÁTICO...................................
188
6 OS DISCURSOS PRÓ-REFORMAS EM MARÇO DE 1964.....................................
193
6.1 O panfleto dos organizadores do comício da central do Brasil...................................... 194
6.2 A revolta na marinha e o discurso do cabo Anselmo..................................................... 200
6.3 Nota do comando geral dos trabalhadores...................................................................... 209
6.4 A posição da união nacional dos estudantes................................................................... 215
xvi
6.5 O CGT e a última tentativa de articulação das esquerdas.............................................. 223
6.6 Considerações finais: os “diagnósticos de desordem” e as “soluções de ordem” dos
movimentos de esquerda.......................................................................................................
240
7 A POSIÇÃO POLÍTICA ASSUMIDA POR JOÃO GOULART...............................
242
7.1 O discurso de João Goulart no comício da central do Brasil.......................................... 243
7.2 O discurso de João Goulart no automóvel clube do Brasil............................................. 281
7.3 Considerações finais: os diagnósticos de desordem e as soluções de ordem de
Goulart e a sua dúbia posição política..................................................................................
299
8 O DISCURSO MILITAR DO GOLPE 2: A COERÊNCIA COM AGOSTO DE
1961......................................................................................................................................
302
8.1 A posição de Odílio Denys............................................................................................. 303
8.2 Documento Leex (Lealdade ao Exército)....................................................................... 317
8.3 A fundamental tomada de posição do General Humberto de Alencar Castello Branco
em nome do movimento de março........................................................................................
328
8.4 O manifesto dos almirantes acerca do motim dos marinheiros...................................... 336
8.5 Considerações finais: março de 1964 e a coerência com agosto de 1961...................... 340
9 A BATALHA DISCURSIVA DOS DEPUTADOS FEDERAIS EM MARÇO DE
1964......................................................................................................................................
344
9.1 Direita e esquerda diante da manifestação de Goulart na central do Brasil................... 346
9.1.1 A reação da direita diante da manifestação de Goulart na central do Brasil............... 346
9.1.2 A defesa de Goulart diante da sua manifestação na central do Brasil......................... 362
9.2 A resposta da direita: a marcha da família com deus pela liberdade.............................. 369
9.3 As reações dos parlamentares à posição tomada por Goulart em relação ao protesto
dos marinheiros no Rio de Janeiro.......................................................................................
381
9.4 Considerações finais: “diagnósticos de desordem” e “soluções de ordem” na câmara
dos deputados e uma sumarização dos discursos antagônicos do período...........................
389
xvii
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................
399
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.............................................................................
412
ANEXO................................................................................................................................
420
INTRODUÇÃO
Foi em 31 de março de 1964 que a frágil experiência democrática brasileira, forjada a
partir de um golpe de Estado que depôs Getúlio Vargas há então 19 anos, finalmente ruiu.
Antes deste episódio fatal, a história republicana recente havia atestado outros momentos
de crise que colocaram o discurso democrático em xeque. Naqueles momentos de guerra
fria no contexto internacional, o mundo polarizado “exigia” do Brasil uma clara tomada de
posição, ou em favor dos Estados Unidos ou em favor da União Soviética. Aos brasileiros,
principalmente aqueles que tinham por dever de profissão cuidar do funcionamento da
República, os primeiros anos da década de 1960 pareciam não permitir “luxos” como o de
ser um “democrata”. Uma posição política mais firme, mais determinada urgia: ou se
tomava o poder do Estado brasileiro ou deixava este ser tomado pelo inimigo.
2
No Brasil, uma série de grupos políticos dos mais diversos matizes significavam
aquele conturbado, mas sem dúvida, rico momento em que a ordem política era diariamente
ameaçada, seja por grupos da extrema direita, seja por movimentos de extrema esquerda.
Existia certamente para os sujeitos envolvidos no período uma profunda incerteza sobre a
saúde do regime político inaugurado em 1945. Sabe-se que a então experiência democrática
brasileira passou por vários momentos críticos desde o final do Estado Novo. A literatura
especializada do período atesta facilmente esta assertiva. Mas não resta a menor dúvida que
o período João Goulart foi o mais tumultuado de toda a experiência democrática iniciada
após o fim da ditadura de Vargas.
O momento da Presidência de João Goulart foi relativamente curto. Em 7 de setembro
de 1961, ele assume o cargo deixado vago por Jânio Quadros sob a condição que seria
presidente somente num regime parlamentarista recém aprovado casuisticamente pelo
Congresso Nacional. O parlamentarismo surgiria, assim, como uma “solução de
compromisso” diante do impasse de posições antagônicas favoráveis e contrárias à posse de
Goulart. O sistema parlamentar durou pouco mais de um ano quando, em janeiro de 1963, o
resultado do plebiscito antecipado conferiu novamente a Jango as prerrogativas do poder
presidencial num regime presidencialista. Nesse interregno de pouco mais de um ano, a
experiência parlamentarista contou com três primeiros-ministros e pouquíssimas
realizações.
Já o período presidencialista de João Goulart foi marcado pela inconstância política e
pela instabilidade econômica. Por várias vezes seu ministério foi alterado, o PTB e o PSD,
3
partidos que deveriam lhe dar o suporte político no Congresso, estavam profundamente
divididos, a UDN vociferava na oposição, a produção brasileira decrescia e a inflação batia
recordes diante da instabilidade institucional.
Para além dos poderes executivo e legislativo, o Brasil conhecia um importante
crescimento de movimentos sociais, populares, sindicais, estudantis etc que insistentemente
exigiam mudanças sociais profundas que ficaram conhecidas genericamente como as
“reformas de base”. Em relação às Forças Armadas, viu-se o crescimento das insatisfações
dos escalões mais baixos da hierarquia militar que acabaram se refletindo em revoltas no
interior da caserna, como os dois movimentos que mais tiveram relevo no período
respectivamente, a Revolta dos Sargentos, em setembro de 1963, e a Revolta dos
Marinheiros e dos Fuzileiros Navais em março do ano seguinte. Março de 1964 foi repleto
de incidentes e de ações radicalizadas. Pelo lado da esquerda, a realização do Comício da
Central do Brasil foi marcada como um momento importante de apoio a Goulart e às
reformas de base. Já pelo lado da direita, a Marcha da Família com Deus pela Liberdade
serviu para atestar que o governo de Jango estava muito longe de ser uma unanimidade
nacional.
É bem conhecido o resultado desse imenso clima de instabilidade política e social que
assolou o Brasil naquela quadra. João Goulart foi deposto e o Brasil viveu por vinte e um
anos sob a égide de um regime autoritário por onde passaram cinco presidentes militares.
Várias interpretações de prestigiados cientistas sociais brasileiros ou estrangeiros visam a
4
explicar as razões para o colapso do regime democrático. As mais importantes análises a
esse respeito serão, em capítulo específico, revisitadas criticamente.
A pergunta que pode surgir agora é a seguinte: para que mais uma tese sobre os
difíceis anos do governo Goulart? Buscando sustentar uma resposta positiva a esta questão,
inicialmente é importante salientar que serão estudados primordialmente, e em
profundidade, os dois momentos de maior crise no período, a saber: a) a crise desencadeada
a partir da renúncia de Jânio Quadros em agosto de 1961 e; b) os momentos finais do
governo João Goulart, a partir do Comício da Central do Brasil em 13 de março de 1964.
Entende-se necessário um estudo aprofundado desses momentos centrais de crise, uma vez
que as análises políticas pretéritas se dedicam mais a estudar o período de forma
panorâmica e acabam por perder detalhes importantes que somente são possíveis de serem
apreendidos a partir de uma análise mais estrita.
A segunda justificativa para uma nova análise sobre o período diz respeito mais
propriamente à metodologia que será empregada. Assim, buscar-se-á iluminar o período a
partir da análise dos discursos políticos que estavam mais diretamente envolvidos com os
episódios que serão tratados. A metodologia de análise de discursos permite ao pesquisador
percorrer um caminho em direção da busca dos sentidos que estão em disputa num
determinado período, a forma como esses sentidos estão sendo construídos pelos principais
sujeitos envolvidos e como esses se relacionam com os outros sentidos produzidos.
5
Entendendo-se como justificada a necessidade da realização da presente pesquisa,
passa-se agora a enunciação da sua problemática. Dessa forma, trata-se de um estudo
acerca dos dois momentos de maior crise política do governo Goulart. Como já
mencionado, inicialmente será estudado o período compreendido entre a renúncia de Jânio
Quadros, em 25 de agosto de 1961, e a “solução parlamentarista”, em 7 de setembro. O
outro período a ser estudado diz respeito aos momentos finais do governo João Goulart,
entre a realização do Comício da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, e a deposição
de Jango, em 1º de abril. Para cada um desses dois momentos, serão buscadas respostas
para os seguintes questionamentos: como lideranças políticas nacionais, deputados federais,
movimentos sociais e militares significaram cada um dos dois momentos de crise? Esta
problemática geral de pesquisa será desmembrada a partir de outros dois questionamentos,
conforme seguem: como esses sujeitos políticos elaboraram seus respectivos “diagnósticos
de desordem” e suas “soluções de ordem” para ambos os momentos supra citados?
“Diagnósticos de desordem” e “soluções de ordem” são duas categorias construídas
para auxiliar na análise dos discursos que se procederá nesta tese. A categoria “diagnósticos
de desordem” visa a caracterizar os sentidos negativos que os diferentes grupos políticos
vislumbravam sobre cada um dos momentos escolhidos. Em outras palavras, representavam
as causas das crises identificadas pelos diferentes discursos concorrentes nos dois
momentos específicos a serem estudados. Já, as “soluções de ordem” eram as respostas que
os grupos políticos buscavam para solucionar as crises em ambos os períodos, ou seja, eram
as alternativas políticas, golpistas ou revolucionárias apresentadas em decorrência dos
impasses criados.
6
Já a hipótese central desta tese está assim enunciada: no período do governo Goulart,
o regime democrático – entendido no seu sentido formal como um método de escolha de
lideranças políticas a partir de regras institucionais pré-estabelecidas entre os adversários –
não se constituiu num discurso hegemônico, uma vez que o governo Goulart representou
justamente um momento em que o discurso democrático disputou espaço com outras
alternativas políticas não democráticas, tendo em vista a radicalização dos projetos
antagônicos da esquerda reformista e da direita conservadora.
Nesse sentido, o governo Goulart representou um período marcado por uma profunda
crise política, que gerava incertezas aos grupos políticos e sociais envolvidos. O elemento
da incerteza, fundamental para o entendimento de disputa discursivo-hegemônica, é
demonstrado por Aletta Norval:
Alguns têm descrito uma situação de crise como uma situação extraordinária ou
anormal, caracterizada por uma tensão aguda, grandes incertezas, um elemento
surpresa ou um sentimento do alcance de um divisor de águas. Contudo, quero
sugerir que o elemento da incerteza tem uma importância específica para nossa
discussão, pois marca um contexto que está definido pela “indecidibilidade”, um
ponto de virada, no qual o resultado não está predeterminado (NORVAL, 1994,
p. 117).
Dessa forma, um momento de crise hegemônica é um momento no qual um
determinado status quo, no caso específico o discurso democrático, está sendo ameaçado
por outras alternativas políticas, autoritárias ou totalitárias. Assim, o período entre 1961 e
1964 é particularmente um campo de disputa hegemônica por excelência. É, do ponto de
vista do sistema político, um momento não-hegemônico. Os sujeitos políticos visavam
7
continuamente à subversão das regras previamente estabelecidas se essas se tornassem
causas impeditivas para a consecução de seus objetivos.
A posse de João Goulart, por exemplo, só foi possível após a “solução
parlamentarista” ao impasse político gerado a partir da Campanha da Legalidade em
resposta ao veto dos ministros militares de Jânio Quadros. Empossado presidente, Goulart
trabalhou incessantemente para a derrubada do parlamentarismo, o que conseguiu em
1963, a partir de sua própria ação, da pressão popular promovida por grupos de esquerda e
da confluência de interesses por parte de lideranças políticas, como Juscelino Kubitschek,
que desejavam concorrer nas eleições presidenciais de 1965.
O que fica claro neste conturbado período da história política brasileira é que, tanto
os grupos políticos de direita, como os identificados com a esquerda, estavam dispostos
mesmo a prescindir das regras democráticas para alcançarem o poder político. Num
momento de disputa hegemônica como esse, o próprio sentido formal de democracia era
posto à prova, tamanha a fraqueza institucional que o estado democrático de direito
brasileiro estava vivendo. A idéia de desordem institucional e a incerteza em relação aos
resultados do impasse político daquele período são bem demonstrados por Argelina
Figueiredo:
De fato, os grupos esquerdistas e pró-reformas buscavam essas reformas ainda
que ao custo da democracia. Para obter as reformas, propunham e estavam
dispostos a apoiar soluções não democráticas. Aceitavam o jogo democrático
somente enquanto fosse compatível com a reforma radical. A direita, por outro
lado, sempre esteve pronta a quebrar as regras democráticas, recorrendo a essas
regras apenas quando lhes eram úteis para defender interesses entrincheirados.
8
Aceitavam a democracia apenas como meio que lhes possibilitava a manutenção
de privilégios. Ambos os grupos subscreviam a noção de governo democrático
apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza
inerente às regras democráticas (FIGUEIREDO, 1993, p. 202).
Enunciada a hipótese central desta pesquisa, passa-se à enunciação do seu referencial
metodológico. Dessa forma, a pesquisa será operacionalizada a partir da análise dos
discursos dos principais grupos políticos envolvidos nos dois momentos de crise
supracitados. A referida análise terá o suporte teórico e metodológico da teoria do discurso
de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, a qual será abordada, pelo menos no que tange às
categorias essenciais para o presente estudo, em capítulo específico nesta tese.
Uma questão sempre presente quando se escolhe trabalhar com análise de discursos
diz respeito à constituição do corpus discursivo. Este corpus, obviamente, deve estar o mais
diretamente relacionado com o tema da pesquisa e seu recorte, portanto, é sempre
arbitrário, tendo em vista os objetivos traçados pelo pesquisador. Portanto, a escolha do
corpus é também uma escolha do material que não será analisado por não ser
suficientemente representativo para a análise.
Nesse sentido, a escolha do corpus levou em consideração um elemento essencial.
Este elemento está diretamente relacionado com a abrangência que a pesquisa procura ter.
Neste caso, as análises dos discursos acerca dos dois episódios escolhidos devem levar em
consideração tanto os aspectos institucionais ligados aos discursos enunciados nos
ambientes de poder, como o Legislativo e o Executivo federais, como os aspectos
referentes aos grupos políticos que atuaram ativamente em cada um dos episódios, mas que
9
não estavam formalmente ligados nem ao Poder Legislativo tampouco ao Poder Executivo.
O objetivo de tomar os discursos de grupos “de dentro” e “de fora” do Poder reside
justamente em buscar comparar esses discursos que partem de locus diferentes, mas que,
mesmo assim, apresentam importantes pontos relacionais que permitem uma análise
política mais contextualizada e rica dos períodos em apreço.
Desta forma, no momento em que se analisa o primeiro período escolhido, ou seja, o
da crise da sucessão de Jânio Quadros, busca-se a constituição de um corpus discursivo que
revele basicamente os discursos de três diferentes grupos, a saber: a) notas,
pronunciamentos e documentos em geral dos três ministros militares, ou de sujeitos
políticos a eles ligados, que apresentaram ao Congresso Nacional o veto em relação à posse
de João Goulart; b) notas, pronunciamentos e documentos em geral que revelem o discurso
enunciado por Leonel Brizola, ou de sujeitos políticos por ele articulados, uma vez que foi
o então governador do Rio Grande do Sul o protagonista da Campanha da Legalidade e; c)
notas, pronunciamentos e documentos em geral produzidos pelos deputados federais nas
suas discussões acerca do impasse político ocorrido após a renúncia de Quadros.
Sobre esse primeiro momento, o corpus discursivo escolhido envolveu, inicialmente,
o manifesto, as notas, os telegramas produzidos pelos ministros militares, materiais que se
encontram reproduzidos em diversas publicações, que serão destacadas quando da análise
estrita dos mesmos. Praticamente nas mesmas fontes em que é possível a localização dos
documentos militares do período, é possível também localizar os documentos, telegramas e
notas produzidos pelos grupos políticos articulados pelo discurso legalista. Tais fontes
10
serão divulgadas oportunamente, quando também da análise estrita desses documentos. Já
os documentos e discursos produzidos pelos deputados federais que participaram do
episódio foram diretamente recolhidos a partir de pesquisa realizada nos Diários do
Congresso Nacional. Portanto, a partir da identificação dos principais grupos políticos
envolvidos com o primeiro momento de crise, foi plenamente possível a coleta e a posterior
incorporação dos documentos no corpus discursivo.
Já o segundo momento de análise apresenta uma série de novos sujeitos e grupos
políticos a ele relacionados. Assim, período o governo João Goulart, sob o sistema
presidencialista, é bombardeado por múltiplos sentidos, pode-se dizer, filiados aos mais
variados matizes de esquerda e de direita. Dessa forma, é preciso ampliar a análise
direcionando-a a um número muito maior de grupos. Do ponto de vista institucional, serão
analisados os discursos do próprio Goulart, na condição de presidente da República, assim
como serão também analisados os pronunciamentos de deputados federais de vários
partidos na Câmara Federal. Já, tendo em vista conhecer os discursos emanados “de fora”
dos ambientes de Poder, mas que tiveram importante relevância no período, serão
analisados nesta etapa pronunciamentos, cartas, panfletos, documentos em geral produzidos
por uma miríade de grupos e sujeitos políticos, que vão desde militares graduados e
conspiradores, passando por militares de baixa patente de esquerda, sindicatos, movimentos
sindicais, sociais, estudantis etc.
Tendo em vista o grande número de influentes sujeitos e grupos políticos envolvidos
no segundo momento de crise analisado, o corpus discursivo desta parte é obviamente
11
maior e mais diversificado, se considerados os momentos de produção e os fatos que
geraram os seus documentos. Como já aludido, o período em apreço está entre 13 e 31 de
março de 1964, tempo em que ocorreu uma série de fatores conjunturais em que
praticamente todos os grupos e sujeitos políticos analisados se envolveram
concomitantemente. Assim, a unidade analítica do corpus discursivo foi conseguida em
função de sua escolha, tendo em vista os seguintes fatos, a saber: Comício da Central do
Brasil, Marcha da Família com Deus pela Liberdade, Rebelião dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais e a Manifestação de João Goulart no Automóvel Clube do Brasil.
Desta forma, serão analisados documentos atinentes a esses episódios, desde panfletos
convocatórios para o Comício do dia 13 de março, passando por pronunciamentos
parlamentares, notas, manifestos, manifestações do presidente da República etc. Três fontes
principais forneceram o suporte documental desta tese. A primeira fonte refere-se às
publicações seja em papel (sobretudo em livros) seja em ambiente eletrônico, em que foi
recolhida a maior parte dos documentos analisados. A segunda fonte refere-se novamente
aos Diários da Câmara Federal, os quais forneceram os pronunciamentos dos deputados
federais nos grande e pequeno expedientes. A terceira fonte refere-se aos documentos,
principalmente manuscritos e datilografados, recolhidos no Centro de Documentação e
História Contemporânea do Brasil, (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas.
Tomado o corpus discursivo, a análise se procedeu da forma que segue.
Primeiramente, é importante destacar que esta tese está dividida em três partes. Assim, na
primeira parte, são apresentados os dois primeiros capítulos da tese, respectivamente o que
12
se refere às interpretações anteriores do período em questão e o que apresenta os elementos
teóricos que servirão de parâmetro desta análise. Na segunda parte, estão contidos os
capítulos atinentes à discussão sobre o primeiro momento de crise. Na terceira parte, estão
presentes os capítulos que iluminam o segundo momento de crise tomado para análise.
Enunciada a organização geral do trabalho, passa-se à apresentação de cada um dos seus
nove capítulos. Dessa forma, inicialmente será feita uma breve retrospectiva dos dois
primeiros capítulos que formam a primeira parte desta tese.
Assim, no capítulo primeiro, dedicado à análise crítica das mais influentes
interpretações acerca da crise do período Goulart e do conseqüente golpe de 1964, serão
analisados os trabalhos de quatro renomados cientistas sociais. O capítulo inicia abordando
a interpretação de Alfred Stepan, o qual sugere que o golpe militar representou o momento
em que o “padrão moderador” militar foi quebrado, o que explicaria a efetiva tomada do
poder político pelos próprios militares. Na seqüência, apresenta-se a análise de René
Dreifuss, a qual defende que o golpe de 1964 representou uma orquestrada conspiração
político-militar que teve a liderança do bloco histórico formado pelos empresários
defensores dos interesses multinacionais e associados. A terceira interpretação é a de
Argelina Figueiredo, a qual faz uma análise stricto sensu do período Goulart, demonstrando
a disputa política do período em torno da díade democracia versus reformas. Finalizando o
capítulo, será analisada a posição assumida por Wanderley Guilherme dos Santos,
mormente a partir da sua já bem conhecida categoria “paralisia decisória”, apresentada
como fator explicativo ao colapso da experiência democrática brasileira.
13
O capítulo segundo é dedicado à apresentação das principais categorias analíticas
referentes à teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, as quais nortearão às
análises dos discursos que serão realizadas. Dessa forma, inicialmente será apresentada
uma breve contextualização histórico-conceitual acerca das condições teóricas que
permitiram o desenvolvimento do modelo analítico de Laclau e Mouffe. Após, serão
apresentadas as categorias desses autores que serão utilizadas nesta pesquisa, dando-se
especial destaque às noções de discurso, prática articulatória, pontos nodais e hegemonia.
Iniciando a segunda parte desta tese, aquela dedicada ao estudo do primeiro momento
de crise do governo Goulart decorrente da renúncia de Jânio Quadros, no capítulo terceiro,
serão enfocados os “diagnósticos de desordem” e as “soluções de ordem” dos três ministros
militares que tentaram vetar a posse do então vice-presidente João Goulart. Neste capítulo,
será ainda demonstrada a posição de cumplicidade com o discurso militar adotada pelo
então presidente da Câmara dos Deputados, o deputado federal Ranieri Mazzilli.
No quarto capítulo, serão analisados os “diagnósticos de desordem” e as “soluções de
ordem” do discurso legalista, sustentado pelos grupos políticos defensores da posse de João
Goulart, a partir do impasse gerado pelos ministros militares. Assim, serão analisadas
principalmente as posições de Brizola, Lott e Machado Lopes.
No quinto capítulo, que encerra a segunda parte desta tese, será analisado o intenso
debate que ocorreu na Câmara Federal em torno da renúncia de Quadros. Serão analisadas
as diversas posições políticas assumidas pelos parlamentares que acabaram redundando na
14
“solução parlamentarista” que permitiu a posse de João Goulart na Presidência da
República. Destaque especial neste capítulo diz respeito à crítica que será construída em
torno da idéia hegemônica, entre os cientistas sociais, de que a instituição do
parlamentarismo representou uma “solução de compromisso” ao impasse gerado no
período.
O capítulo sexto inaugura a terceira e última parte desta tese, momento em que serão
analisados os últimos dias do governo João Goulart, entre o Comício da Central do Brasil,
ocorrido em 13 de março, e a sua derrubada, em 1º de abril de 1964. Neste capítulo, serão
analisados os discursos dos grupos políticos pró-reformas de base, aliados de Jango. Assim,
serão apresentadas as posições do CGT, UNE, CTI, CNTI, PUA, dentre outras
organizações de esquerda do período.
O capítulo sétimo será dedicado à análise da posição política assumida pelo
presidente João Goulart diante dos vários episódios que ocorreram nos dias imediatamente
anteriores a sua derrubada, a partir da análise de seus pronunciamentos no Comício da
Central do Brasil e nas festividades que ocorreram no Automóvel Clube do Brasil. Ver-se-á
a posição reformista assumida por Jango, contudo afirmando-se que a mesma se
concretizaria efetivamente em políticas públicas apenas nos marcos da legalidade
constitucional.
No capítulo oitavo, será analisada a posição assumida pelos militares de alta patente
que foram responsáveis pela deflagração do golpe militar de 1964. Serão, portanto,
15
analisadas suas manifestações, pronunciamentos e outros documentos que atestam a leitura
que esses militares faziam da crise que o país enfrentava. Serão apontados alguns pontos de
convergência entre o discurso do período com o discurso dos ministros militares no
primeiro momento de crise analisado.
No nono capítulo, será apresentado o intenso debate político que se desenrolou na
Câmara Federal em torno dos acontecimentos que se sucederam no período em tela. Ver-se-
á a radicalização dos pronunciamentos dos deputados e o medo comum à esquerda e à
direita sobre qual dos grupos políticos deflagraria primeiro o golpe. Era quase unânime a
idéia entre os parlamentares de que o regime democrático teria uma vida muito curta
naquela quadra. E efetivamente o teve.
A título de considerações finais, inicialmente, é retomado o clima de instabilidade
política dos períodos em questão. Após, é verificada a hipótese central suscitada.
Finalmente, realiza-se uma análise conjunta dos episódios estudados, buscando estabelecer
pontos de ligação entre os mesmos. Será dado enfoque especial, neste particular, aos
“diagnósticos de desordem” e às “soluções de ordem” em cada um dos momentos para cada
grupo político analisado.
16
Parte 1
Elementos teóricos e metodológicos da investigação
17
O paradoxal é que tudo já foi escrito, as palavras se
gastaram até a última resistência. No entanto, tudo
pode ser refeito, revisto, se sonhamos. As palavras
então são meninas no quintal do vento.
O texto, de tão antigo, se tornou criança. Entre
figueiras e metáforas. O leitor é que o acorda. E o
texto sabe reconhecê-lo. Como um terneiro sem
dono.
Carlos Nejar
18
1 REVISITANDO AS LEITURAS DO GOLPE
Em 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho deu início ao golpe que
redundou em 21 anos de regime autoritário no Brasil. Em meio a uma crise institucional
sem precedentes na história republicana, que demonstrava a quase incapacidade de diálogo
entre as forças políticas, antagônicas naqueles momentos finais do regime democrático,
João Goulart, praticamente sem demonstrar resistência, caiu e exilou-se no Uruguai.
O fato é que, naquele longo mês de março, devido às intensas manifestações, seja da
esquerda seja da direita, os sujeitos políticos não tinham horizontes bem construídos, não
tinham condições de avaliar quem por primeiro intentaria o golpe, quem por primeiro
solaparia a democracia e alcançaria o poder político a partir de uma medida extremada.
19
Esta tarefa seria obra do futuro, com mais calma, distância dos fatos e documentos
recolhidos e analisados.
Nesse sentido, neste capítulo serão apresentadas criticamente as principais leituras
realizadas acerca das causas que redundaram no golpe militar de 31 de março de 1964.
Serão analisadas, portanto, as visões de Alfred Stepan, René Dreifuss, Argelina Figueiredo
e Wanderley Guilherme dos Santos. Para cada uma dessas análises, serão apresentados os
argumentos construídos que, segundo esses autores, redundaram nas causas do movimento
militar de 1964, assim como serão também apresentados alguns pontos de crítica às suas
interpretações. A primeira apreciação será em torno da análise de Stepan.
1.1 A interpretação de Alfred Stepan
A análise de Alfred Stepan (1975) enfoca primordialmente a lógica interna de
funcionamento das Forças Armadas e a relação que estas estabelecem com o poder civil
instituído. Na primeira parte de “Os militares na política”, o autor preocupa-se
sobremaneira em apresentar ao leitor a forma como as Forças Armadas no Brasil são
constituídas, seus fundamentos institucionais e a maneira pela qual se dá o recrutamento,
tanto do corpo de soldados como dos seus oficiais.
20
Em relação ao recrutamento, é interessante de destacar uma importante observação, a
qual serve, segundo o autor, para desmistificar o caráter eminentemente nacional das
organizações militares no Brasil. Assim, argumenta Stepan que as Forças Armadas em
geral apresentam um caráter regionalizado de recrutamento, tendo em vista basicamente a
redução de custos com o transporte dos seus recrutas. Além disso, apesar de haver registros
de um grande número de analfabetos no país na época em que foi considerada a análise do
autor, as Forças Armadas tinham a preferência pelo recrutamento de homens já
alfabetizados, uma vez que isso torna mais fácil o treinamento para o uso de equipamentos
mais sofisticados. Nas palavras do autor:
Está claro que um exército organizado sobre uma base local, com um sistema
exclusivo de recrutamento que prefere os alfabetizados aos analfabetos, os
elementos urbanos aos rurais, não pode reunir soldados de diferentes setores
geográficos e educacionais do Brasil, visando a uma cooperação conjunta dentro
de uma instituição de orientação nacional (STEPAN, 1975, p. 18).
Dessa forma, o tipo de recrutamento regionalizado, urbano e de classe média possui,
conforme Stepan, conseqüências importantes. A principal conseqüência, já referida acima,
diz respeito ao fato de que as Forças Armadas não adquirem efetivamente um sentido de
“integração nacional” como é comumente anunciado, pois que seus efetivos tanto de
soldados como de oficiais apresentam tendências a defender interesses regionais
1
, fator que
1
Neste ponto, é interessante apontar que, segundo Stepan, a resistência do III Exército, localizado no Rio
Grande do Sul, em relação ao veto dos ministros militares à posse de João Goulart logo após a renúncia de
Jânio Quadros, foi o que sustentou a Campanha da Legalidade, liderada pelo então governador Leonel
Brizola. Conforme o autor: “em 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, os três ministros
militares, tentaram impedir que o vice-presidente João Goulart assumisse o cargo vago. Goulart era gaúcho e
seu violento cunhado, Leonel Brizola, governava o Rio Grande do Sul. Com o apoio da polícia estadual e do
povo, Brizola se declarou em total oposição aos ministros das Forças Armadas. O comandante do III Exército,
no Estado, de início não tomou posição no conflito, mas, com o aumento da resistência civil, a lealdade de
suas tropas vacilou. Ele enviou um telegrama aos ministros militares, declarando que não iria seguir suas
21
contribui para se afirmar que as Forças Armadas não podem ser vistas como instituições
homogêneas e, principalmente, são instituições que sofrem importantes influências do
cenário político contingente. Nas palavras do autor:
Contrariamente à suposição de que o Exército nacional é relativamente imune às
influências regionais e locais, [...], os líderes estaduais sempre conseguiram
utilizar as polícias estaduais e a retórica do regionalismo para vencer ou
neutralizar efetivamente segmentos inteiros do Exército nacional. Está claro,
[...], que, para estudar adequadamente o papel do Exército brasileiro ou qualquer
outro, não se pode partir da premissa de que o Exército, pela sua missão e
organização, é exclusivamente uma instituição unificada e de orientação
nacional. Ao contrário, [...], existe uma necessidade permanente de avaliar as
características institucionais dos militares dentro do quadro mais amplo do
sistema político global (STEPAN, 1975, p. 20).
O tipo de recrutamento regionalizado, urbano e de classe média dos efetivos militares
prepara a análise de Stepan para o que é a sua principal tese, a qual começa a ser
desenvolvida na Parte II de sua obra, ou seja, o “padrão moderador” das relações entre civis
e militares no Brasil no período de 1945 a 1964. O padrão moderador das relações entre
civis e militares no Brasil advém de uma dificuldade de adequar ao caso latino-americano
os padrões já existentes e classificados
2
.
ordens, pois isso poderia precipitar uma guerra civil. Os ministros militares capitularam, porque as outras
unidades se recusaram a marchar contra o III Exército, alegando que a opinião pública estava abertamente
contra os ministros” (STEPAN, 1975, p. 20).
2
Segundo Stepan (1975), os padrões até então existentes das relações entre civis e militares são os modelos
aristocrático, comunista, liberal e profissional. O modelo aristocrático resulta da condição assumida pelos
militares de que, antes de serem propriamente militares, eles são membros da aristocracia e, portanto, seguem
os padrões e auferem os benefícios das elites dirigentes do Estado aristocrático. O modelo comunista explica a
integração entre civis e militares, tendo em vista que os militares são tidos como, antes de propriamente
militares, membros do partido comunista, ou seja, cidadãos politicamente ativos. Já no modelo liberal, tendo
em vista a noção do conflito nas relações entre civis e militares, as elites políticas procuram evitar ao máximo
a legitimidade dos militares para agirem na esfera política. Busca-se a neutralização dos mesmos. Uma forma
encontrada para tanto é a manutenção de um corpo reduzido no exército permanente. Por fim, o modelo
profissional busca adequar os militares ao controle civil do Estado, fazendo com que os primeiros tenham
uma presença social eminentemente profissional e autônoma. Os militares são vistos e se vêem como
indiferentes à lógica política.
22
Dessa forma, como modalidade tipicamente latino-americana da relação entre civis e
militares, na acepção de Stepan, o poder moderador tem como característica principal a
utilização pelos civis do poder coercitivo dos militares no sentido de esses agirem como
moderadores da atividade política
3
, retirando o então mandatário do poder executivo e
dando tal poder a outro grupo civil. O papel moderador dos militares, acrescenta o autor,
restringe-se, portanto, a derrubar governos. Como afirma Stepan:
Em tal modelo das relações entre civis e militares, estes são chamados repetidas
vezes para agir como moderadores da atividade política, mas lhe é negado
sistematicamente o direito de tentar dirigir quaisquer mudanças dentro do
sistema político. Longe de se constituírem nos “construtores da nação”
ou nos
“reformadores”, como são encarados em alguns países, no modelo moderador os
militares têm uma tarefa que consiste essencialmente na atividade conservadora
de manutenção do sistema. O papel dos militares, de modo geral, se restringe à
deposição do chefe do executivo e à transferência do poder político para grupos
civis alternativos. A aceitação deste papel pelos militares está condicionada à
sua aceitação da legitimidade e da praticabilidade das formas políticas
parlamentares, bem como à constatação, por parte destes militares, de que
possuem, em comparação com os civis, uma capacidade relativamente reduzida
de governar (STEPAN, 1975, p. 50).
Estabelecido o paradigma do padrão moderador, Stepan analisa o mesmo no período
que inicia em 1945 até a sua dissolução em 1964. Afirma que para o dispositivo militar
moderador entrar em ação é necessário que o Executivo e os grupos políticos dos civis pró-
regime estejam profundamente divididos
4
. Nestes momentos, os vários grupos políticos
3
Nesse sentido, é importante a caracterização dos militares como parte também integrante do sistema político,
como observa o autor: “minha argumentação principal é que a instituição militar não é um fator autônomo,
mas deve ser pensada como um subsistema que reage a mudanças no conjunto do sistema político” (STEPAN,
1975, p. 101).
4
Alfred Stepan apresenta basicamente três grupos políticos em disputa no Brasil entre 1945 e 1964. O
primeiro deles é o próprio Executivo, ou seja, o grupo que representa a situação governista e que exerce a
Presidência da República. O segundo grupo é chamado de civis pró-regime, ou seja, “elementos do
Congresso, governadores, líderes políticos, editores de jornais e eleitores que geralmente aceitam o quadro
constitucional e apóiam o regime existente, mas que podem ou não apoiar o governo em períodos específicos”
(1975, p. 57). Já o último grupo é o formado pelos civis anti-regime, ou seja, “aqueles protagonistas políticos
23
buscam se acercar do poder militar ou para evitar ou para articular a deposição do
presidente. Além do Executivo e dos grupos políticos civis pró-regime, ganham especial
força nos momentos de crise política os grupos políticos classificados por Stepan como
civis anti-regime, ou seja, as facções políticas eminentemente golpistas.
Conforme Stepan, a divisão entre Executivo e civis pró-regime teve momentos de
extrema radicalização em três momentos do período em análise. Nestes três momentos, ou
seja, em 1945 com a deposição de Vargas, em 1954, com a crise que redundou no suicídio
de Vargas, e na deposição de Goulart em 1964, o poder moderador militar entrou em cena.
A razão para os movimentos golpistas bem sucedidos é diretamente proporcional ao grau
de legitimidade do Executivo, na visão de Stepan:
Os movimentos militares vitoriosos contra o executivo se relacionam com um
baixo grau de legitimidade prévia atribuída ao executivo pelas elites políticas
civis participantes e um alto grau de legitimidade prévia concedida por estes
mesmos civis aos militares, para desempenhar seu papel moderador através da
deposição do presidente (STEPAN, 1975, p. 76).
O padrão moderador atribuído aos militares foi quebrado, segundo Stepan, com o
golpe de 1964, momento em que as Forças Armadas deixaram de exercer o mero papel de
responsáveis pela deposição de governos constituídos para efetivamente passarem à tarefa
de dirigentes dos rumos políticos brasileiros. A razão principal da mudança do padrão
moderador está justamente na sua natureza. Para o padrão moderador funcionar, é
necessário que as regras gerais do jogo político sejam aceitas pelos grupos políticos. Isso
que procuram mudar as regras básicas de todo o sistema político e alterar os princípios de autoridade e
legitimidade” (1975, p. 56).
24
quer dizer que, após a deposição do presidente, os grupos políticos notadamente devem
saber qual é o passo que deve ser dado para que a normalidade política retorne.
Nesse sentido, em 1945, após a deposição de Vargas, quem assumiu a Presidência da
República até a eleição de Eurico Gaspar Dutra foi o presidente do Supremo Tribunal
Federal. Em 1954, eleições foram realizadas e o regime voltou à normalidade novamente.
Ocorre que, conforme Stepan, o nível da crise política no período da deposição de João
Goulart era de tal gravidade que os próprios políticos acreditavam que o então regime
político era inoperante. Isso abriu a possibilidade da quebra do padrão moderador: de
simples moderadores os militares, em 1964, passaram a exercer o papel de elite dirigente,
na acepção de Stepan:
Um aspecto central do papel moderador é que ele mantém as regras gerais do
jogo político. Mas, quando estas regras são elas mesmas amplamente
questionadas por muitos protagonistas políticos, o papel de moderador ou árbitro
torna-se menos importante ou praticável. Se, por exemplo, os políticos acreditam
que o regime é inoperante, torna-se muito mais difícil resolver a questão de
quem deveria receber o poder político depois da deposição do presidente. Abre-
se claramente o caminho para os militares assumirem um novo papel político na
sociedade: o de dirigente em vez de moderador do sistema político. Se os
próprios militares acham que deve ser adotado um novo conjunto de medidas,
seu papel pode mudar de mantenedor para transformador do sistema (STEPAN,
1975, p. 101).
Segundo Stepan, o modelo político passa a ser efetivamente inoperante sobretudo no
período do governo de João Goulart. Quatro são as causas conjunturais que concorrem para
tal resultado, a saber:
1) um crescente índice de reivindicações políticas e econômicas ao governo; 2) um
decréscimo da capacidade extrativa decorrente do declínio do crescimento
25
econômico; 3) um decréscimo da capacidade política de converter as
reivindicações em política concreta, devido à fragmentação do apoio; e 4) a
crescente retração do apoio ao próprio regime político.
Aliadas a essas causas exteriores ao funcionamento das Forças Armadas, Stepan
registra ainda que a revolta dos sargentos em setembro 1963 e a dos marinheiros em março
de 1964 também geraram apreensão aos oficiais superiores. Contudo, o primeiro conjunto
de causas parece ser mais relevante para Stepan. Tal conjunto revela, na visão do autor, que
os próprios militares naquele momento, portanto, tinham dúvidas acerca da capacidade
administrativa civil no exercício do poder político do Estado brasileiro. Stepan, nesse
sentido, argumenta que o golpe militar que depôs Goulart e quebrou o paradigma
moderador instaurado em 1945 ocorreu efetivamente pela perda da legitimidade do sistema
político: esse não foi mais capaz de dar respostas positivas à crescente crise de legitimidade
pela qual passava.
A análise de Stepan tem o mérito de apresentar uma série de elementos concernentes
ao funcionamento das Forças Armadas no Brasil, mormente ao que é pertinente ao
Exército. Apresenta também, em relação aos momentos finais da democracia populista,
notadamente no período do governo de João Goulart, vários índices sociais, econômicos,
políticos e militares que demonstram o grau de instabilidade política do período. Contudo,
sua análise apresenta alguns pontos que devem ser relativizados
5
.
5
Além das críticas que são produzidas neste capítulo a propósito da análise de Stepan, é conveniente ainda a
leitura do artigo de João Quartim de Moraes, “Alfred Stepan e o mito do poder moderador”, no qual são
apresentadas outras e mais detalhadas críticas ao padrão moderador de Stepan (MORAES, 1985).
26
O ponto mais crítico na análise de Stepan está justamente na sua formulação do
padrão moderador. É forçosa a sua admissão de que os militares agiam meramente como
uma força que retirava presidentes para dar novamente o governo aos membros civis
oposicionistas. Analisando o padrão moderador mais detidamente, tem-se que os militares
seriam meros “instrumentos” da ação dos civis, ou seja, eram sujeitos políticos que não
apresentavam qualquer vontade política própria, pois eram sempre monitorados pelos civis.
Isso é ainda mais contraditório no conjunto do argumento de Stepan se considerar o fato de
que o próprio autor toma o elemento militar como um subsistema do sistema político
brasileiro, ou seja, os militares eram altamente influenciados pelos acontecimentos
políticos. Como ser influenciado e não ter efetivamente uma posição política?
Outro elemento que chama a atenção diz respeito à anunciada “incapacidade” de que,
segundo Stepan, os próprios militares tinham de si próprios em relação à administração dos
negócios públicos, o que explicaria o porquê de as Forças Armadas, no período de 1945 a
1964, terem servido de meras moderadoras de grupos políticos golpistas para deposição de
presidentes. Tal argumento pode ser problematizado, por exemplo, se for levado em
consideração de que foram os próprios militares que lideraram o golpe de 1964, quebrando
assim o padrão moderador. Da mesma forma, a argumentação de Stepan nesse sentido pode
ser relativizada, se considerado o papel da ESG como núcleo civil-militar de construção de
uma Doutrina de Segurança Nacional, um projeto político anticomunista para o Brasil, ou
seja, uma posição política que vinha sendo construída desde a sua fundação em agosto de
1949.
27
Outra questão merece ser ainda destacada como mais um ponto de crítica. Diz
respeito à sobrevalorização dos aspectos extrínsecos à organização e ao funcionamento das
Forças Armadas em contrapartida a uma subvalorização dos aspectos eminentemente
organizacionais no que tange às principais causas do golpe de março de 1964. Segundo
Stepan, está claro que o movimento golpista representou uma reação militar a um sistema
político inoperante ao tempo de João Goulart. Isso é, inclusive, coerente com a
característica dos militares brasileiros de serem sensíveis aos acontecimentos políticos.
Entretanto, apesar de Stepan destacar também um certo temor dos oficiais em relação à
quebra da hierarquia nos quartéis, tal aspecto é subvalorizado pelo autor em relação às
causas para a deflagração do golpe. Em contrário a essa posição assumida por Stepan,
existe uma série de documentos, que serão analisados nesta tese, que atestam que a quebra
da hierarquia e da disciplina militar não era um acontecimento dentre outros
acontecimentos. Pelo contrário, foi fundamental esse temor para uma ação mais efetiva dos
oficiais militares responsáveis pelo golpe de Estado.
1.2 A análise de René Armand Dreifuss
René Dreifuss, em “1964: a conquista do Estado – ação política, poder e golpe de
classe” (1981), apresenta pesquisa amplamente documentada, visando a explicar a forma
como os interesses multinacionais e associados, a partir de uma “elite orgânica”, tomaram o
Estado brasileiro com o golpe de março de 1964. Inspirado na teoria política hegemônica
28
de Antonio Gramsci, Dreifuss utiliza suas principais categorias analíticas para municiar
teoricamente aquilo que, segundo o autor, os documentos e uma série de depoimentos de
pessoas envolvidas com a trama que depôs João Goulart lhe apresentavam: a formação, ao
longo de décadas, de um bloco histórico multinacional e associado que disputou a
hegemonia tanto no campo econômico como no campo político.
Nesse sentido, Dreifuss remonta a origem do bloco multinacional e associado na
década de 1930, a partir de seus elementos originais, ou seja, os donos das indústrias, que
disputavam interesses com o bloco então dominante na economia brasileira, o qual era
constituído pelos agro-exportadores. Segundo o autor, havia ainda naquele momento um
“estado de compromisso” entre esses dois grupos econômicos. Contudo, aos interesses
industriais emergentes era necessária a constituição de uma “liderança forte” no plano
econômico e posteriormente no âmbito do poder político. Nas suas palavras:
Apesar de a indústria e de os interesses agro-exportadores haverem estabelecido
um “estado de compromisso”, eles tiveram uma coexistência difícil e o período
foi marcado por crises contínuas a partir de 1932, o que levou ao
estabelecimento do Estado Novo em 1937 (...). Os industriais perceberam que
precisavam de uma liderança forte para conseguir disciplinar o esforço nacional
e para impor e administrar sacrifícios regionais e de classe apropriados para a
consolidação da sociedade industrial. (DREIFUSS, 1981, p. 22).
Com a ascensão do Estado Novo, os industriais nacionais conseguiram enfim ocupar
um importante espaço na economia nacional, graças ao projeto varguista de implantação de
sólidas bases da indústria nacional, seja no setor público seja no privado: “o Estado Novo
garantiu a supremacia econômica da burguesia industrial e moldou as bases de um bloco
histórico burguês” (DREIFUSS, 1981, p. 22). Após o final da II Guerra, com a deposição
29
de Vargas e a ascensão de Dutra na Presidência, as empresas nacionais passaram
paulatinamente a se associar a grandes grupos multinacionais. A razão dessa crescente
associação, segundo Dreifuss, consistiu no fato de que, neste período, houve uma forte
concentração econômica e centralização do capital aliado a um processo de controle
oligopolista do mercado. Nesse sentido, as grandes empresas nacionais eram, na verdade,
controladas por grandes grupos multinacionais, tornando-se assim empresas “associadas”a
esses interesses.
6
Se, a partir de Vargas, os industriais começaram a se constituir hegemonicamente no
campo econômico, essa tendência foi ampliada ao longo do período democrático de 1945 a
1964. Contudo, o projeto multinacional e associado não se restringia à esfera econômica.
Havia, conforme Dreifuss, uma luta ainda maior a ser travada: a conquista do Estado que
estava nas mãos dos agentes do bloco populista de poder. No primeiro momento, houve a
tentativa da conciliação de interesses dos capitalistas industriais com os líderes políticos
populistas, mas que não obteve êxito e, daí, a necessidade da classe “para si” agir por sua
própria conta em direção da hegemonia política no período:
Por um período de quase dez anos, o bloco de poder emergente visou a uma
acomodação com o bloco de poder populista. Ele tentou também conseguir
reformas parciais do aparelho de Estado, assegurar participação multinacional e
associada na legislação e administração, assim como apoiou o domínio populista
sobre as classes subordinadas (...). Quando os canais político-partidários e
administrativos não obtiveram êxito em atingir as reformas necessárias
prenunciadas pelo bloco modernizante-conservador, e quando os interesses
6
Nas palavras de Dreifuss: “as grandes empresas ‘nacionais’ e os grupos que as controlavam eram
predominantemente multinacionais, firmemente interligadas através de uma dependência tecnológica ou
financeiramente integrados a grupos multinacionais. A grande corporação ‘nacional’ era principalmente uma
empresa associada. Esse processo de internacionalização seria estendido ainda mais depois de 1964”
(DREIFUSS, 1981, p. 51).
30
multinacionais e associados notaram as dificuldades crescentes em se conseguir
conter a massa popular dentro do sistema político populista, o bloco de poder
emergente teve de recorrer a outros meios (DREIFUSS, 1981, p. 106-107).
O bloco de poder emergente teve de recorrer a outros meios para, enfim conseguir o
poder do Estado brasileiro. Para tanto, na análise de Dreifuss, foi criado, em fins de 1961
7
,
o complexo IPES-IBAD, cujo objetivo primeiro era o de “agir contra o governo nacional-
reformista de João Goulart e contra o alinhamento de forças sociais que apoiavam a sua
administração” (1981, p. 161). Em relação a esse objetivo, é interessante a certeza que
detinha Dreifuss acerca da homogeneidade
8
dos intelectuais orgânicos dos interesses
multinacionais e associados, apesar das disputas internas que o próprio autor enfoca ao
longo da obra, no sentido da consecução dos objetivos de enfraquecimento do governo
populista de Goulart. Tal homogeneidade relacionava-se ao fato de que, segundo Dreifuss,
em grande parte, os interesses multinacionais e associados possuíam um projeto comum de
desenvolvimento econômico que, na esfera política, estava sofrendo, por parte da elite
populista, sérias restrições. A homogeneidade, portanto, dava-se a partir de uma unidade de
projeto político e econômico para o Brasil:
Os fundadores do IPES do Rio e de São Paulo, o núcleo do que se tornaria uma
rede nacional de militantes grupos de ação, vieram de diferentes backgrounds
ideológicos. O que os unificava, no entanto, eram suas relações econômicas
multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua
ambição de readequar e reformular o Estado. Esses empresários visavam a uma
liderança política compatível com sua supremacia econômica e ascendência
tecnoburocrática, pois, como foi observado, “a direção do país não podia mais
ser deixada somente nas mãos dos políticos” (DREIFUSS, 1981, p. 163).
7
Conforme Dreifuss, a data exata de fundação do IPES é 29 de novembro de 1961.
8
Nas palavras do autor: “é também necessário compreender o ‘grau de homogeneidade, consciência e
organização’ atingido pelos intelectuais orgânicos dos interesses econômicos multinacionais e associados.
Esse momento de homogeneidade, consciência e organização no processo traduziu-se pela formação de uma
elite orgânica centrada na frente de ação do complexo IPES/IBAD” (DREIFUSS, 1981, p. 161).
31
Para a consecução da pretendida tomada do Estado, o complexo IPES/IBAD passou a
manter estreitas relações de trabalho pra tal fim com a já existente Escola Superior de
Guerra (ESG). Na visão de Dreifuss, o que ocorreu foi uma ação do complexo IPES/IBAD
9
no interior das Forças Armadas, no sentido de cooptá-las para a causa dos interesses
multinacionais e associados. A relação que existiu entre essas entidades foi tão intensa que
era muito comum os militantes do IPES serem, ao mesmo tempo, membros da ESG
10
.
Dreifuss busca demonstrar as ações que tais organizações tomaram em conjunto para, num
primeiro momento, enfraquecer o governo de João Goulart para, após, promoverem a
tomada final do controle do Estado brasileiro. Contudo, o que parece claro na análise de
Dreifuss é que o empresariado multinacional e associado não era um mero partícipe de uma
conspiração que se gestava, tendo os militares como os seus próceres principais. Pelo
contrário: os verdadeiros artífices e próceres do movimento de março de 1964 eram os
próprios empresários
11
que, com o imprescindível apoio dos militares, deram um golpe
civil-militar e derrubaram, enfim, João Goulart. Os interesses do novo bloco econômico e
de poder pós-março de 1964 apoiado pelos militares golpistas formaram, enfim, uma nova
hegemonia política e administrativa para o Estado brasileiro, na visão de Dreifuss:
9
É interessante informar que o IBAD teve sua existência formal somente até outubro de 1962. “O IBAD foi
fechado por haver sido considerado culpado de corrupção política” (DREIFUSS, 1981, p. 207).
10
Segundo o autor: “houve menção anterior ao fato de que o núcleo do grupo da ESG estava integrado ao
complexo IPES/IBAD e seus membros principais eram ao mesmo tempo líderes e ativistas do IPES”
(DREIFUSS, 1981, p. 369).
11
Sobre os empresários serem os principais responsáveis pela deposição de João Goulart, segue a seguinte
passagem de Dreifuss: “a autonomia política e a iniciativa demonstrada pelos empresários provam que eles
não eram meros suportes (Traeger) do processo de dominação, mas, sim, forças politizadas que fizeram da
conquista do poder estatal a finalidade de seu planejamento político e de sua ação” (1981, p. 484).
32
Uma vez no poder, o bloco financeiro-industrial multinacional e associado, ao
procurar uma redefinição dos critérios de inclusão/exclusão no sistema político,
não limitou sua atenção somente às classes trabalhadoras. O bloco de poder
multinacional e associado impôs uma nova relação entre o Estado, as classes
dominantes e ele próprio, que implicava a rejeição do bloco oligárquico-
industrial populista e de seus mecanismos de representação e controle de classe.
O novo bloco de poder rejeitou a ordem política anterior e procurou estabelecer
um regime tecno-empresarial, protegido e apoiado pelas Forças Armadas, um
regime tal que os políticos se tornariam anciliares e, no processo, perderiam seu
papel central (DREIFUSS, 1981, p. 485).
Apesar de revelar importantes aspectos do complô civil-militar que depôs João
Goulart, a análise de René Dreifuss apresenta pontos que merecem ser relativizados. O
primeiro deles diz respeito ao excessivo essencialismo analítico de classe quando Dreifuss
constrói o “bloco multinacional e associado”. Assim, ao ler a obra como um todo, tem-se a
impressão de que a ação do empresariado foi unívoca, sem dissensões internas, em prol de
um “bloco histórico”, típico de uma análise gramsciana. Dreifuss toma a categoria analítica
“classe” como uma realidade empírica absolutamente inequívoca, perfeitamente
orquestrada sob a batuta de seu “partido”, o IPES. É como se todos os empresários
multinacionais e associados tivessem não só apoiado, mas promovido diretamente o golpe.
É como se o esquema teórico produzido por Antonio Gramsci fosse plenamente adequado
para a explicação das causas e das ações que redundaram no golpe de 1964.
Dessa forma, para Dreifuss, o movimento que depôs Goulart não foi o resultado de
uma conjuntura política conturbada, mas uma necessidade histórica, uma “derrota
anunciada” para a democracia. Tal afirmação deve-se ao fato de que o projeto de poder dos
empresários foi iniciado na década de 1930 e teve duas fases, ou objetivos, distintos que
deveriam necessariamente ser alcançados para que os mesmos constituíssem, assim, um
33
bloco histórico hegemônico. A primeira fase, conquistada ainda no período do Estado Novo
e consolidada no governo Dutra, foi a da consolidação da hegemonia econômica dos
interesses industriais multinacionais e associados sobrepondo-se aos interesses do grupo
agro-exportador decadente. A partir de então, Dreifuss busca demonstrar as várias
tentativas de interferência deste novo bloco econômico nos governos populistas, com seus
avanços e recuos até o completo antagonismo registrado no período do governo de João
Goulart.
Contudo, uma questão deve ser levada em consideração neste particular. Os governos
populistas de Eurico Gaspar Dutra, Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek tiveram um
tratamento somente en passant na análise de Dreifuss. Basicamente esses governos e a ação
do bloco multinacional e associado foram referidos a partir de evidências históricas
conhecidas ou a partir de análises de outros autores, mas sem maiores evidências empíricas
que se seriam necessárias. O centro da análise de Dreifuss foi mesmo o governo Goulart.
Suas evidências empíricas, baseadas em farta documentação, remontam sobremaneira o
ápice da crise política do período pré-autoritário. Nesse sentido, é questionável a afirmação
de que o projeto de poder dos interesses multinacionais e associados remontasse tão longo
momento anterior ao da deflagração efetiva do golpe. A análise de Dreifuss enfoca
basicamente o período Goulart e visa ampliar seus efeitos para mais ou menos três décadas
atrás.
Não fica também plenamente comprovada a supremacia ideológica dos empresários
em relação aos militares golpistas. É duvidoso afirmar que os primeiros foram efetivamente
34
os próceres do movimento, uma vez que existem evidências empíricas, mormente a partir
de entrevistas com os militares participantes do complô, além de documentos por eles
próprios produzidos, de que os mesmos já arquitetavam um movimento de desestabilização
e de posterior derrubada do governo Goulart independente da possível ação dos
empresários que representavam os interesses multinacionais e associados. Os vários
documentos colhidos por Dreifuss e que compõem o anexo de sua obra são indícios, mas
não provas suficientes, para comprovar a efetiva liderança dos empresários multinacionais e
associados no episódio do movimento golpista de março de 1964.
1.3 A posição de Argelina Figueiredo
A análise de Argelina Figueiredo acerca das causas do golpe militar de março de
1964, centrada sobretudo na “conduta estratégica de atores políticos em situações históricas
concretas enfatizando interesses e percepções e formulando os problemas em termos de
possibilidades e escolhas” (1993, p. 29), possibilita ao leitor ter uma idéia muito
interessante dos interesses e ações dos vários “atores” que disputavam politicamente
naquele conturbado momento da vida política nacional. Nesse sentido, a autora critica
abertamente a posição tomada por René Dreifuss de que “a conspiração foi um
empreendimento conjunto, liderado por um agente político único e unificado – a burguesia
35
–, que ampliou habilmente sua influência, dirigindo outros grupos para os objetivos por ela
desejados” (FIGUEIREDO, 1993, p. 173).
Assim, acertadamente, Figueiredo, ao apresentar uma série de ações e posições
envolvendo uma miríade de “atores” políticos na trama golpista, critica Dreifuss afirmando
que:
é questionável a alegação de que a burguesia teve um papel de liderança e de
coordenação na conspiração. Parece, ao contrário, que havia diversos grupos
conspirando dentro das elites militares e civis, e, a despeito da integração entre
eles, é exagerado considerar suas ações como uma conspiração única com um
comando unificado (FIGUEIREDO, 1993, p. 174).
Para além das críticas que a autora faz às mais diversas interpretações do golpe de
1964, que estão na parte introdutória de sua obra, um dos objetivos principais de
“Democracia ou reformas” é apresentar a interessante tensão que certamente havia no
período acerca da possibilidade da continuidade do regime democrático combinando o
mesmo com reformas estruturais no país. É evidente que, como mesmo afirma Figueiredo,
ao final do período, nem democracia, nem reformas permaneceram no cenário político
posterior àqueles conturbados primeiros anos da década da 1960. Nesse sentido, o esforço
do seu trabalho é, diante da radicalidade política presente, investigar “as possibilidades de
sucesso de soluções político-institucionais que, dadas as condições vigentes, pudessem
combinar democracia com reformas sociais” (FIGUEIREDO, 1993, p. 22).
36
Dessa forma, a tensão “democracia versus reformas” acompanha todo o período do
governo de João Goulart: desde o veto militar e a solução parlamentarista, passando pela
possibilidade de reformas graduais sob o sistema parlamentar e sua derrocada antecipada,
pelas frustradas tentativas de reformas já no presidencialismo (Plano Trienal e reforma
agrária), pelo pedido de estado de sítio e a Frente Progressista, culminando no isolamento
final de Goulart até o golpe fatal no regime democrático.
A falta de consenso sobre “programas mínimos” entre os “atores” é muito bem
percebida por Figueiredo, que demonstra sobejamente no nível parlamentar a
impossibilidade de se construir o centro político, tendo em vista a crescente radicalidade
política e a posição titubeante de João Goulart. A análise, portanto, nessa esfera, é
praticamente intocável do ponto de vista da percepção e da sagacidade de reconstruir uma
história tão cheia de detalhes e “atores” em luta. Nesse sentido, suas palavras finais de
“Democracia ou reformas” parecem extremamente elucidativas:
(...) um outro fator contribuiu para impedir a realização de qualquer das duas
possibilidades de combinar reforma e democracia, ou seja, a visão instrumental
de democracia, mantida tanto pela direita como pela esquerda. De fato, os
grupos esquerdistas e pró-reformas buscavam essas reformas ainda que ao custo
da democracia. Para obter as reformas, propunham e estavam dispostos a apoiar
soluções não democráticas. Aceitavam o jogo democrático somente quando
fosse compatível com a reforma radical. A direita, por outro lado, sempre esteve
pronta a quebrar as regras democráticas, recorrendo a essas regras apenas
quando lhes eram úteis para defender interesses entrincheirados. Aceitavam a
democracia apenas como meio que lhes possibilitava a manutenção de
privilégios. Ambos os grupos subscreviam a noção de governo democrático
apenas no que servisse às suas conveniências. Nenhum deles aceitava a incerteza
inerente às regras democráticas (FIGUEIREDO, 1993, p. 202).
37
A análise de Figueiredo apresenta, contudo, dois pontos críticos intimamente ligados
e que, portanto, serão tratados aqui em conjunto. O primeiro deles reside justamente na
sobrevalorização da centralidade “democracia versus reformas”. O segundo ponto crítico
resulta da subvalorização do papel dos militares no contexto geral da sua obra.
Assim, inicialmente, qualquer análise acerca do movimento golpista de 1964 tem a
necessidade de dar especial ênfase ao papel desempenhado pelos militares durante todo o
período, simplesmente tendo em vista ao razoável fato de que foram eles próprios que
executaram a quebra do já debilitado regime democrático. Nesse sentido, a partir da análise
de documentos militares produzidos no período, não parece que o tema “democracia versus
reformas” foi tão central para os militares golpistas. A questão que parece mais pertinente
aos próceres de 1964 não são em si os termos “democracia” ou “reformas”, mas a questão
da “estabilidade política”, para eles uma discussão bem anterior a essas.
Neste particular, parece que a análise de Figueiredo apresenta um ponto crítico que
compromete o restante do seu trabalho no que tange a um possível diagnóstico de desordem
realizado pelos militares. O ponto crítico, nesse sentido, está na forma como a autora
encaminha, já no capítulo primeiro do seu trabalho, o desfecho da crise da renúncia de
Jânio Quadros. Nesse sentido, serão tomados alguns excertos do texto de Figueiredo para
ilustrar melhor a sua posição e demonstrar algumas possíveis ambigüidades de sua análise.
Já na introdução a autora anuncia:
38
No Capítulo 1 [Goulart no poder: compromisso institucional] analiso a
formação de uma forte coalizão contra a tentativa dos ministros militares de
impedir a posse de Goulart na presidência. Uma solução de compromisso foi
alcançada com a substituição do sistema presidencialista pelo sistema
parlamentarista (FIGUEIREDO, 1993, p. 31).
Tomando o capítulo anunciado, a autora menciona a posição da ala “legalista” das
Forças Armadas, contrária ao golpe pretendido pelos ministros militares:
Como vimos, a ala legalista das Forças Armadas discordava fortemente da
intervenção unilateral dos ministros, mas compartilhava da reserva com que os
ministros encaravam os pontos de vista políticos de Goulart. Por isso, embora
esse grupo considerasse ilegítimo o argumento de segurança nacional
objetivando impedir a posse do vice-presidente, era-lhe muito conveniente uma
solução intermediária que permitisse a manutenção dos poderes constitucionais
de Goulart, ao mesmo tempo em que reduzia seu poder real (FIGUEIREDO,
1993, p. 46).
Note-se que, além de interessante para a ala “legalista” das Forças Armadas, que
guardava uma série de reservas em relação a Goulart, a solução parlamentarista, que
envolvia a perda quase completa do poder decisório de Jango, era também interessante para
o maior partido do Congresso Nacional, o PSD:
Da parte do PSD havia duas outras razões para seu apoio ao regime
parlamentarista. Em primeiro lugar, sendo o partido majoritário, ele
desempenharia um papel importante na formação do gabinete. Seria, portanto,
capaz de recuperar sua influência (perdida com a vitória de Quadros) sobre a
administração central e as políticas do governo. Mas havia também um cálculo
eleitoral: empossado presidente, Goulart, que poderia vir a ser um forte
candidato presidencial em 1965, seria excluído da disputa daquela eleição
(FIGUEIREDO, 1993, p. 47).
Além de o casuístico parlamentarismo ser interessante à ala “legalista” das Forças
Armadas, o era também muito vantajoso para o PSD, que ganharia “de presente” um
governo perdido eleitoralmente com a vitória de Quadros. Ademais, o Ato Adicional da
39
alteração do sistema político foi também aceito pelos ministros militares que, no início da
crise, vetaram a posse Goulart, conforme mesmo demonstra Figueiredo:
Os ministros militares impuseram duas condições para a aceitação do Ato
Adicional (...). A primeira se referia à faculdade do presidente de dissolver o
Congresso e promover novas eleições. (...) embora a emenda garantisse
formalmente ao presidente a prerrogativa de dissolver o Congresso e promover
eleições a fim de aglutinar apoio para políticas governamentais, a utilização
efetiva desse mecanismo não era permitida a Goulart, pois, de acordo com o Ato
Adicional, todos os mandatos legislativos em curso estavam garantidos (...). A
segunda medida, também talhada para as circunstâncias específicas da crise
daquele momento, era a inclusão da vaga cláusula de “risco para a segurança
nacional” entre as condições pelas quais se poderia pedir o impeachment do
presidente (FIGUEIREDO, 1993, p. 49).
A aludida “solução de compromisso” que defende Figueiredo não se trata, na verdade,
de uma “solução de compromisso” entre as duas partes em disputa naquele momento, ou
seja, os deputados legalistas do PTB e do PSB, Brizola e a Legalidade, de um lado e, de
outro lado, os ministros militares golpistas. A dita “solução de compromisso”, na prática,
envolveu os ministros militares, a ala “legalista” das Forças Armadas, ambos
“desconfiados” de Goulart, a UDN, o PSD que contabilizava, ao final da crise e com esse
desfecho, ser presenteado com o governo federal. Nesta negociação, Goulart não teve
escolha, teve de aceitar a imposição da “solução de compromisso”. Brizola ficou
completamente isolado, sem o apoio inclusive de Machado Lopes, comandante do III
Exército, que também acabou aceitando a solução parlamentarista. A solução de
compromisso, dessa forma, deixou de fora a esquerda política brasileira.
No texto de Argelina Figueiredo nota-se um problema em defender que a “solução de
compromisso” foi uma medida política que efetivamente evitou uma “ruptura
40
institucional”. Nas palavras da autora: “formou-se, imediatamente, uma coalizão contra a
ruptura institucional, incluindo tanto os grupos esquerdistas e nacionalistas que apoiavam
as reformas de Goulart, quanto grupos e lideranças conservadoras” (FIGUEIREDO, 1993,
p. 38). Assim, deve-se registrar que a única coalizão que buscou evitar uma “ruptura
institucional” foi àquela capitaneada por Leonel Brizola e a sua Campanha da Legalidade
que teve ainda apoio dos membros do PTB e do PSB no Congresso Nacional, a qual foi
completamente alijada no final da crise, pois que seus membros não concordavam com a
“solução parlamentarista”, vista por eles, como uma “solução de continuidade”, como um
“golpe branco”, ou seja, uma ruptura casuística das regras do jogo promovida inicialmente
pelos ministros militares e que teve a aquiescência do Congresso Nacional.
O problema em se afirmar que a “solução de compromisso” evitou uma “ruptura
institucional”, pode ser percebido nas passagens que serão a seguir citadas. Nesse sentido,
num momento do seu primeiro capítulo, é afirmado: “o desenrolar dos acontecimentos (...),
não favoreceu a alternativa estritamente legal, e a solução parlamentarista prevaleceu”
(1993, p. 43). Em outro momento, Figueiredo observa:
A defesa de uma solução estritamente constitucional, ou seja, dar pleno poder
presidencial para Goulart, permaneceu confinada a uma minoria. No Congresso,
a ala esquerda do PTB e os representantes socialistas denunciaram o “golpe
branco” implícito na lei que instituía o sistema parlamentarista (FIGUEIREDO,
1993, p. 47).
Com base nestas duas passagens acima transcritas, pode-se problematizar o
argumento da autora. Ao longo do seu capítulo, ela menciona ter havido uma “solução de
41
compromisso” para garantir a manutenção do regime democrático. Não menciona, contudo,
que a “solução de compromisso” retirou plenamente da mesa de negociações do impasse,
justamente aqueles grupos que defendiam tão-somente a estrita manutenção da ordem
democrática vigente, ou seja, a simples posse de Goulart na Presidência da República sob o
regime presidencialista. Nas passagens acima, a própria autora admite que a “solução de
compromisso” não foi uma “alternativa estritamente legal” ou não foi uma “solução
estritamente constitucional”. Por mais que o Direito possa gerar exegeses amplas sobre
alterações legais de qualquer natureza, é realmente difícil, do ponto de vista jurídico, neste
caso, afirmar de que a “solução de compromisso” não passou, na verdade, de um golpe
branco contra a democracia brasileira. Neste caso específico, não existe, como busca
defender Figueiredo, alternativa mais ou menos legal. Tratou-se, na verdade, de uma
grosseira ruptura política, um verdadeiro golpe de Estado, como afirmava completamente
isolada, a esquerda política do período.
O problema na interpretação de Figueiredo assenta-se no fato de que a autora não
considerou a hipótese de que os ministros militares tão-somente não queriam Goulart como
presidente. Fora isso, eles não tinham um plano de tomada de poder, um projeto político
plenamente construído de tomada do Estado. O golpe foi contingente, pois a situação
política gerada pela renúncia de Quadros foi também contingente, absolutamente
inesperada. A autora afirma que os ministros militares buscaram uma “saída honrosa” para
a crise política por eles gerada. Não se pode igualmente concordar com isso, pois eles
próprios participaram e opinaram sobre aspectos pontuais do Ato Adicional que impôs o
parlamentarismo a Goulart, que não teve alternativa a não ser a de aceitá-lo.
42
Como será visto nesta tese, o golpe branco de 1961, ou seja, o primeiro golpe sofrido
por João Goulart, é fundamental para que se possa compreender as razões dos militares
golpistas de 1964. Em 1961, os ministros militares não queriam simplesmente Goulart no
poder, pois tinham receio das ligações que o ex-ministro do Trabalho de Getúlio Vargas
estabelecia com o “comunismo internacional”. Foi tão-somente por essa razão que vetaram
Goulart. Mas não havia um plano de tomada de poder previamente construído por eles. O
que os militares de 1961 queriam era justamente a manutenção da ordem política, da
estabilidade institucional, a qual não acreditavam poder ser mantida com Goulart exercendo
o poder político do Estado brasileiro. Nesse sentido, é importante perceber que a
preocupação militar não era em relação ao debate entre “democracia versus reformas”, mas
se esse debate, que não estava efetivamente dado antes da posse de Goulart, frise-se isso,
iria ou não desestabilizar a ordem político-institucional no período.
1.4 A análise de Wanderley Guilherme dos Santos
Em “O cálculo do conflito”, Wanderley Guilherme dos Santos (2003) elabora uma
criteriosa análise da crise política que acompanhou João Goulart ao longo de todo o seu
governo. O ponto decisivo para Santos é a caracterização de que o período enfrentou uma
crescente paralisia decisória num cenário de pluralismo polarizado. Esta paralisia, que
afetou as ações tanto do Executivo federal como do Poder Legislativo é exaustivamente
demonstrada a partir de dados empíricos que visam a evidenciar tal fenômeno negativo à
43
estabilidade do sistema político. São os seguintes os requisitos da paralisia decisória
apresentados pelo autor: “Uma crise de paralisia decisória ocorre (...) quando se dão
simultaneamente três condições, todas empíricas e mensuráveis: fragmentação política,
polarização ideológica e instabilidade de coalizões” (SANTOS, 2003, p. 265).
A introdução da categoria “paralisia decisória” possibilitou uma série de conclusões,
sempre calcadas em fartas análises empíricas, que colocam em xeque interpretações que até
então correntes entre os cientistas políticos que analisaram o período. Talvez, a mais
interessante, por ser, quem sabe, umas das mais importantes conclusões de Santos, trata-se
do desafio que o autor impôs àqueles que atribuíam a crise parlamentar do período
simplesmente à ruptura ocorrida na tradicional aliança entre o PSD e o PTB, frente política
responsável pela estabilidade do governo Kubitschek. O “estado da arte” deste tipo de
argumentação tradicional nas Ciências Sociais é assim apresentado por Santos:
Freqüente argumento alternativo (...) explica a crise do início da década de 60 no
âmbito parlamentar pela ruptura da aliança entre o PSD e o PTB – aliança,
outrossim, a que se atribui responsabilidade maior pela estabilidade dos anos de
Kubitschek. Consagrada pela tradição, e bastante razoável como hipótese,
impôs-me a necessidade de investigá-la mais detidamente, à guisa de prefácio a
meu argumento central que a ela se opõe (2003, p. 265).
A partir de uma série de induções, Santos chega à conclusão de que o argumento da
crise parlamentar ser diretamente proporcional ao rompimento do pacto entre PSD e PTB
outrora existente no governo anterior – é falho simplesmente porque, nem no próprio
governo Kubitschek esta aliança seria suficiente para manter a estabilidade parlamentar.
Dito em outras palavras: o PSD e o PTB não tinham forças suficientes para gerar
44
estabilidade no sistema. Aqui, particularmente, as conclusões de Santos são muito
interessantes e convincentes, uma vez que ele prova estatisticamente que eram necessários
votos e apoios de outros partidos políticos, inclusive da UDN, para construir a normalidade
política anterior a João Goulart. Nas suas palavras:
Em suma, durante o mandato de Kubitschek, a coalizão parlamentar
efetivamente responsável pela estabilidade do período não ficou, de forma
alguma, restrita ao eixo PSD/PTB e aliados versus UDN e aliados. Ao contrário,
sem a cooperação da UDN o sistema parlamentar brasileiro teria representado
ameaça bem maior para o Executivo do que se imagina tenha sido (SANTOS,
2003, p. 281).
Santos busca explicar, portanto, de forma alternativa à tradicional tese da estabilidade
parlamentar via aliança entre PSD e PTB, que representa, segundo ele, somente uma
parcela da verdade, que a quebra da referida estabilidade se deu por razões estruturais, ou
seja, o que ocorreu foi uma profunda crise no sistema como um todo e não tão-somente na
aliança PSD-PTB, incapaz, por si só, de manter a estabilidade do mesmo. A prova
apresentada pelo autor é que nenhuma outra coalizão posterior foi construída com êxito.
Nesse sentido, Santos argumenta:
Entender o que aconteceu no âmbito parlamentar como nada mais do que o
resultado lógico do colapso da coalizão PSD/PTB é não compreender totalmente
a profundidade do impasse. A crise afetou integralmente o sistema partidário e
não apenas uma coalizão específica. Por esse motivo, e este ponto é
absolutamente crucial, nenhuma coalizão vitoriosa foi capaz de substituir a
coalizão hegemônica anterior (2003, p. 199-200).
A idéia da “paralisia decisória”, num contexto político de pluralismo polarizado,
ocasionou, segundo Santos, o colapso em todo o sistema político. Paralisia decisória
entendida pelo autor como resultado da impossibilidade de os grupos políticos gerarem
45
consensos mínimos, mesmo sobre questões que, a princípio, eles próprios seriam
favoráveis. Neste particular, Santos dá o exemplo dos vários projetos de lei que versavam
sobre o tema da “reforma agrária”, encaminhados pelos três maiores partidos do período –
PSD, PTB e UDN – em que nenhum deles obteve aprovação pelos demais. Assim, a
característica fundamental da paralisia decisória é a impossibilidade de um projeto político,
encaminhado por determinada corrente política, não conseguir produzir um mínimo
consenso em relação às outras forças políticas, mesmo elas concordando, em tese, com o
mérito do projeto, mesmo elas sendo simplesmente contrárias, mas sem possuir um projeto
alternativo. É, nesse sentido, se tomada a idéia da paralisia decisória, que o argumento da
mera ruptura entre PSD/PTB parece realmente inconsistente para explicar o colapso da
curta experiência democrática brasileira do período. Conforme Santos:
(...) a paralisia se instala quando maiorias simples – por assim dizer, a menor das
maiorias que se pode obter – rejeitam conclusivamente propostas sem que, elas
próprias, maiorias simples, prefiram outro tipo de legislação. Ainda mais
decisivo, a indicar a diferença entre conceitos, em caso de paralisia decisória não
é necessário nem mesmo que exista alguma maioria preferindo a manutenção do
status quo. É perfeitamente possível que os diversos subgrupos parlamentares
optem por mudar o status quo, sem chegar a acordo, contudo, sobre a direção da
mudança. O status quo, nestes “imobilismos”, não é o resultado da escolha de
qualquer maioria, mas a segunda opção de todas as maiorias de veto a propostas
particulares. O destino de projetos de reforma agrária (...) exemplifica à
perfeição a materialização desta virtualidade. Não obstante os três principais
líderes de grupos parlamentares – PTB, PSD e UDN – aderiram à bandeira da
reforma no campo, cada qual apresentou alternativas ao status quo diferentes
umas das outras, sendo todas derrotadas e permanecendo o status quo, o qual
não era a primeira opção de nenhum dos três grupos (SANTOS, 2003, p. 206-
207).
Ao longo do seu trabalho, Santos consolida o potencial heurístico da “paralisia
decisória” no âmbito, seja do Executivo federal, seja do Congresso Nacional. Demonstra, a
partir de uma série de dados e informações mobilizadas, que o “imobilismo” representou
46
uma característica perigosa, produto do radicalismo das posições dos “atores” políticos
envolvidos e, portanto, muito explicativa em relação à crise política do período.
Contudo, sua análise não abriga outros sujeitos políticos, notadamente os não
institucionais, que certamente jogavam naquele momento, mesmo que de fora da arena
governamental, como movimentos populares, sindicatos, organizações de direita,
organizações de esquerda, grupos de militares conspiradores etc. Santos, após densa análise
sobre os reflexos institucionais da “paralisia decisória”, como já foi aqui afirmado, não
apresenta seus reflexos, se é que eles efetivamente existiram e em que medida, para tais
sujeitos políticos extra-institucionais. A questão a saber é a seguinte: foi o nível
institucional que gerou a instabilidade no período Goulart, a partir da crise de paralisia
decisória, ou esta instabilidade institucional foi o reflexo de uma instabilidade antes extra-
institucional? Tem-se a impressão que Santos opta pela primeira opção, ao que não parece
ser propriamente adequado de ser afirmar peremptoriamente.
Assim, não se pode relegar o papel exercido pelos militares golpistas como o de
meros coadjuvantes, tendo em vista que, efetivamente, eles deflagraram o movimento de
1964. Não se pode afirmar com certeza que os verdadeiros próceres do regime autoritário
brasileiro tinham preocupações institucionais tão claramente definidas. Pode-se dizer que
eles temiam acerca da instabilidade política do país e que o imobilismo causado pela
paralisia decisória fosse um desses elementos a serem por eles considerados. Contudo, a
que ponto não foi o parlamento que mais foi instigado pela preocupação dos sujeitos
políticos extra-institucionais como os militares, por exemplo? O veto dos ministros
47
militares a Goulart em 1961 certamente foi um aviso às instituições brasileiras sobre as suas
intenções e ideologia políticas. O período Goulart foi repleto de momentos de instabilidade,
episódios que o Congresso Nacional acompanhou com extrema atenção e que, em todos,
apresentou uma série de posicionamentos de acordo com a postura política, cada vez mais
radicalizada, de seus membros.
A análise de Santos é, nesse sentido, carente em relação à busca de elementos capazes
de se compreender qual foi o real impacto da “crise de paralisia decisória” nos demais
sujeitos políticos e, portanto, como se operou o jogo de estímulos às ações produzidas fora
e dentro do Parlamento e do Executivo naquela quadra. Além disso, Santos, assim como
Argelina Figueiredo, chega à idêntica conclusão de que a crise da renúncia de Jânio
Quadros teve um final que privilegiou a manutenção das instituições democráticas
brasileiras
12
.
Para dar início à interpretação proposta neste trabalho, no próximo capítulo, serão
apresentados os pressupostos da teoria do discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe.
Tais elementos serão fundamentais para a caminhada que será percorrida ao longo do
governo Goulart, o último de uma democracia fracassada.
12
Nas palavras de Santos: “em fins de 1961, a oposição militar não fora suficientemente forte para impedir
que João Goulart ocupasse a Presidência da República após a renúncia de Jânio Quadros”. Após essa
afirmação, Santos, tomando somente a posse do presidente como fator suficiente para caracterizar a
normalidade democrática, conclui com a seguinte indagação: “como poderia o cenário político mudar tanto, a
ponto de os oponentes de Goulart serem capazes de forçar a sua deposição em lapso de tempo inferior a três
anos?” (SANTOS, 2003, p. 170).
48
2 ESTABELECENDO PREMISSAS PARA UM PLANO DE ANÁLISE:
A NOÇÃO DE HEGEMONIA NA TEORIA DO DISCURSO DE
ERNESTO LACLAU E CHANTAL MOUFFE
Este capítulo tem por objetivo estabelecer os pressupostos teóricos e epistemológicos
que serão adotados nesta tese de doutorado que tem como tema central analisar os
“diagnósticos de desordem” e as “soluções de ordem” enunciados pelos discursos de grupos
políticos, partidários ou não, que competiam pelo poder político no Brasil entre 1961 e
1964, período presidencial de João Goulart. Assim, entende-se importante, neste momento
inicial, apresentar as principais categorias analíticas que serão utilizadas ao longo desta
pesquisa. Antes de propriamente apresentar cada categoria analítica a ser utilizada, de
forma preliminar, entende-se importante retomar a problemática de pesquisa, a hipótese,
bem como se faz necessário enunciar ainda o terreno teórico em que se está adentrando.
49
Nesse sentido, em relação à problemática de pesquisa, consta a mesma formulada da
seguinte maneira. Assume-se de antemão, o que é uma unanimidade nas Ciências Sociais
brasileira, que o período em questão abrigou uma grande crise político-institucional. Assim,
diante de um quadro de intensa instabilidade e de crise política, coloca-se da seguinte
maneira o problema de pesquisa desta tese: como as principais lideranças políticas
nacionais, bem como os parlamentares no Congresso Nacional, além dos membros da
corporação militar e de movimentos sociais e políticos, elaboraram seus “diagnósticos de
desordem”? Além dos “diagnósticos de desordem”, quais foram os discursos de “soluções
de ordem” desses vários sujeitos?
As formulações tanto dos “diagnósticos de desordem” como das “soluções de ordem”
estão pautadas a partir da análise estrita dos dois momentos de maior crise política do
período, conforme seguem: 1) a crise da renúncia de Jânio Quadros seguida da tentativa de
impedimento da posse de João Goulart por parte dos ministros militares e a solução
parlamentarista decorrente do impasse (entre 25 de agosto e 7 de setembro de 1961) e; 2) os
momentos finais do governo de João Goulart a partir do Comício na Central do Brasil até a
sua deposição (entre 13 de março e 1º de abril de 1964).
Para auxiliar na solução desta problemática de pesquisa, foi formulada a seguinte
hipótese central: afirma-se que o período compreendido entre 1961 e 1964 representou um
momento em que a democracia não se constituiu num discurso hegemônico para os
principais sujeitos da disputa política em razão da crescente radicalização político-
ideológica do período. Pelo contrário, a democracia, entendida aqui de forma minimalista,
50
ou seja, simplesmente como um método de escolha de elites políticas, tornou-se um
discurso em crise concorrendo com outros discursos de cunho autoritário. Isso quer dizer
que os sujeitos políticos envolvidos nas disputas estavam menos interessados na
manutenção do regime democrático competitivo e mais interessados em tomar o poder
político do Estado brasileiro a qualquer custo. Para a sustentação analítica desta hipótese de
pesquisa, necessitamos fundamentá-la tendo por base a teoria do discurso de Ernesto
Laclau e Chantal Mouffe (1985), sobretudo levando em consideração a noção de
hegemonia empregada por estes autores. Em uma palavra: a crise do período Goulart foi
uma crise de hegemonia, como será nesta tese demonstrada.
Além da fundamentação teórica da hipótese central de pesquisa, a teoria do discurso
servirá também de modelo às análises empíricas que serão realizadas nos capítulos
subseqüentes. Desta forma, torna-se importante apresentar neste capítulo sua origem e
principais noções constitutivas.
Assim, para a consecução dos objetivos deste capítulo, esta análise iniciará
contextualizando o surgimento da teoria de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, sendo
enfocadas, de forma geral, suas origens e influências teóricas. Após, serão apresentadas as
categorias analíticas da teoria do discurso que serão apropriadas nesta pesquisa. Ao final
deste capítulo, será dado enfoque especial à noção de hegemonia, a qual, como já
mencionado, é central à constituição da hipótese central da pesquisa.
51
2.1 A noção de sobredeterminação
A título introdutório à teoria do discurso, é interessante notar que tal démarche
intellectuelle pode ter seu início delimitado a partir do lançamento, por Laclau e Mouffe, da
obra “Hegemony and socialist strategy: towards a radical democratic politics” em 1985.
Afirma-se que a delimitação da proposta teórica de Laclau e Mouffe se dá com a
publicação de “Hegemony and socialist strategy”, uma vez que é neste momento que os
autores apresentam uma ruptura com a tradição marxista, a qual ainda estavam filiados até
o final da década de 1970.
Desta maneira, a partir de “Hegemony and socialist strategy”, Laclau inscreve-se
numa perspectiva teórica diferente daquela assumida em seu primeiro livro. Em “Política e
ideologia na teoria marxista”, apesar de já estarem estabelecidas críticas ao que Laclau
chamou de “situação insatisfatória para a teoria marxista” (Laclau, 1979, p. 14) – que se
resumia basicamente à análise simplista do “reducionismo de classe” – o autor seguia ainda
seus escritos sob a influência declarada do pensamento marxista recente, de Della Volpe a
Althusser:
A prática teórica foi em grande medida prejudicada pelos dois obstáculos
mencionados: a articulação conotativa dos conceitos ao nível do discurso do
senso comum, e sua articulação racionalista em paradigmas essenciais. Os
ensaios que integram este livro foram escritos na convicção de que esses
obstáculos se combinaram para gerar uma situação insatisfatória para a teoria
marxista. Foram escritos também, na certeza de que o pensamento marxista mais
recente, de Della Volpe a Althusser, começou a criar as condições para uma
52
interpretação científica do marxismo que nos permitirá superar essa situação
crítica (LACLAU, 1979, p. 14).
Cumpria, dessa maneira, ao projeto teórico de Ernesto Laclau, a partir da influência
de um pensamento marxista acadêmico, principalmente althusseriano, criar condições para
uma interpretação científica do marxismo, isenta do mero reducionismo essencialista de
classes que apresentava-se sobejamente em diversas análises desta tradição.
Dessa forma, para escapar do determinismo econômico oriundo de um marxismo
simplista, a noção althusseriana de sobredeterminação é, conforme Laclau e Mouffe (1985),
um instrumento teórico importante a ser empregado em análises sociológicas ou políticas.
Tal noção traz a idéia de que não há nada social que não esteja sobredeterminado, ou seja, o
social se constitui numa ordem simbólica. A constituição dessa ordem simbólica dá-se a
partir da ideologia, que segundo Althusser é “uma ‘representação’ da relação imaginária
dos indivíduos com suas condições reais de existência” (ALTHUSSER, 1985, p. 85). A
sobredeterminação pressupõe, ainda, relações sociais desprendidas de qualquer lei imanente
ou essencial, tendo em vista essas serem sempre contingentes e precárias. Tal noção
althusseriana, conforme Laclau e Mouffe (1985), abriu a possibilidade para a teoria
marxista romper definitivamente com o determinismo e o essencialismo classista, uma vez
que torna possível a elaboração de um conceito de articulação
13
que tenha por pressuposto o
caráter sobredeterminado das relações sociais.
13
A categoria de articulação, ou prática articulatória, é central na proposta teórica de Ernesto Laclau e
Chantal Mouffe como se verá a seguir.
53
Ocorre que, segundo os autores, a análise althusseriana não conseguiu romper
definitivamente com a determinação ecomica em última instância do marxismo. Apesar
de a noção de sobredeterminação possibilitar a análise de um social muito mais complexo
do que aquele simplificado pelo marxismo clássico, Althusser, conforme Laclau e Mouffe
(1985), ainda manteve em sua estrutura teórica o reducionismo econômico.
Althusser escorrega no mesmo defeito que critica: há um objeto universal
abstrato, a ‘economia’, o qual produz efeitos concretos (determinação em última
instância aqui e agora); há outro objeto igualmente abstrato (condições de
existência), cujas formas variam historicamente, mas que estão unificadas por
um pré-estabelecido papel essencial de assegurar a reprodução da economia;
finalmente, como a economia e a sua centralidade são invariáveis em qualquer
arranjo social possível, abre-se a possibilidade de se estabelecer uma definição
da sociedade. Aqui a análise completa um círculo. Se a economia é um objeto
que pode determinar qualquer tipo de sociedade em última instância, isso
significa que, ao menos com referência a esta instância, nós estamos frente a
uma simples determinação e não a uma sobredeterminação
14
(LACLAU e
MOUFFE, 1985, p. 99).
Desta forma, se a economia é, em última instância, conforme Althusser, capaz de
determinar a constituição e o funcionamento de qualquer sociedade a priori, não há o
porquê de se falar em sobredeterminação, pois se está, na verdade, diante de uma redução
do social a uma simples determinação de caráter econômico. Esta simplificação faz com
que o pensamento marxista – mesmo na sua versão althusseriana com a introdução no
domínio das Ciências Sociais da noção freudiana de sobredeterminação – não tenha
capacidade efetiva de ser um projeto teórico que consiga dar conta de explicar a
complexidade dos fenômenos políticos e sociais, uma vez que a sociedade se encontra
14
Todas as traduções de citações de textos publicados em língua estrangeira (inglês, francês e espanhol) são
de responsabilidade do autor e para uso exclusivo nesta tese.
54
dividida de forma reducionista entre duas classes sociais e, além disso, tomadas sempre de
um ponto de vista essencialista.
Desta forma, “Hegemony and socialist strategy” rompe definitivamente com a
tentativa anterior de Laclau de “criar condições para uma interpretação científica do
marxismo”. Laclau e Mouffe adotaram, a partir dessa obra, uma linha crítica à teoria
marxista que eles mesmos denominam de pós-marxismo: “reler a teoria marxista à luz dos
problemas contemporâneos necessariamente envolve desconstruir as categorias centrais
dessa teoria. Isto é o que nós chamamos de pós-marxismo” (LACLAU e MOUFFE, 2001,
p. ix).
É importante ressaltar, contudo, que o “pós-marxismo” de Laclau e Mouffe não
significa necessariamente o abandono de todas categorias da tradição marxista. Noções
como as de sobredeterminação, de Althusser, guerra de posições, bloco histórico, vontade
coletiva, hegemonia, liderança moral e intelectual, de Gramsci, conforme os autores,
representam o ponto de partida de suas reflexões em “Hegemony and socialist strategy”. No
entanto, a teoria do discurso recebe ainda aporte de outras correntes teóricas como do
desconstrucionismo de Derrida e da psicanálise de Lacan.
O pós-estruturalismo é o terreno no qual nós encontramos a fonte principal de
nossa reflexão teórica e, juntamente deste, a desconstrução e a teoria lacaniana
têm sido de importância decisiva na formulação da nossa abordagem sobre
hegemonia (LACLAU e MOUFFE, 2001, p. xi).
55
Em relação à teoria de Derrida, a teoria do discurso apropria-se da noção de
supplément, a qual é central na elaboração da categoria de representação política. Já em
relação a Lacan, noções como as de ponto nodal e cadeia articulatória são importantes
para estabelecer o funcionamento da prática articulatória e de seu resultado, o discurso,
como será visto a seguir.
2.2 Elementos para o entendimento da lógica discursiva
Nesta seção, será apresentada a lógica de funcionamento de uma formação discursiva
conforme Laclau e Mouffe. O entendimento desta lógica é fundamental, uma vez que toda
relação hegemônica deve ser entendida, segundo os autores em questão, a partir da
constituição discursiva.
Nesse sentido, inicialmente será discutido o sentido de identidade tomado por esta
perspectiva teórica. Após, serão apresentados a materialidade e o funcionamento de uma
formação discursiva. Por fim, serão enfocadas as noções de ponto nodal, antagonismo e
agonismo.
56
2.2.1 O sentido de identidade
A primeira questão que se deve levar em consideração para compreender a identidade
política, conforme a teoria do discurso, diz respeito ao sentido da constituição de uma
formação discursiva. Assim, um discurso representa o momento em que identidades se
articulam entre si. A razão de tal articulação reside no fato de que este discurso se constitui
como aquilo capaz de representar tais identidades. Antes de propriamente tratar do
funcionamento discursivo, é necessário, nesta seção, precisar o que se está chamando de
“identidade”.
Identidade infere a idéia de igualdade. Segundo Aristóteles, “em sentido essencial, as
coisas são idênticas quando é uma só sua matéria (em espécie ou em número) ou quando
sua substância é una” (ABBAGNANO, 2000, p. 528). Portanto, quando se fala em
identidade, está-se referindo às coisas que possuem uma mesma essência e que estão
dispostas no mundo em número maior do que um. Está-se, assim, referindo a dois ou mais
iguais. É fato trivial ainda admitir que quando se fala em identidade, menciona-se a
necessária existência da diferença, ou seja, de uma totalidade (ou essência) distinta. Assim,
A é A, pois não é B e B o é, pois se diferencia de A e ambos o são, pois, além de se
diferenciarem entre si, diferenciam-se também dos demais elementos.
Partindo do mesmo paradigma da filosofia clássica, o marxismo – ao mesmo tempo
em que estabeleceu uma importante diferença entre burgueses e proletários a partir da
57
análise do modo de produção capitalista – constituiu as identidades burguesa e proletária
como categorias sociológicas essencialistas. Isso quer dizer que, para esta tradição,
principalmente na sua vertente clássica, um indivíduo proletário possui unicamente essa
identidade (de vendedor da sua força de trabalho, tornando-se aí mais uma mercadoria no
contexto capitalista), o que acaba por anular todas as demais dimensões possíveis de sua
vida na sua ocupação de trabalhador de uma indústria. Assim, por exemplo, o pai de família
negro, ou a mulher, mãe e não branca, do ponto de vista desta corrente teórico-filosófica
foram concebidos, de forma simplificada, simplesmente como dois operários (sem sexo,
sem etnia, sem família, etc). Neste particular, está-se diante da construção teórica de um
sujeito, tendo em vista exclusivamente sua relação de trabalho. Suas outras dimensões ou
relações sociais são desconsideradas, pois não se constituem em identidades, segundo o
marxismo. Neste ponto, a crítica de Laclau parece pertinente:
É preciso recordar que as relações capitalistas de produção são relações entre
categorias econômicas e que os atores sociais são simplesmente Träger
(sustentadores) destas. O operário não conta como pessoa concreta, de carne e
osso, mas como um vendedor da força de trabalho (1993, p. 25).
Entender esta crítica à identidade operária construída pelo marxismo é decisivo para
avançar em direção a uma concepção mais contemporânea de identidade. Neste sentido,
Laclau, na passagem acima, não está negando a possibilidade da existência de conflitos
entre a burguesia e o proletariado (isto seria negar o que empiricamente pode ser
comprovado ao longo da história do capitalismo a partir do final do século XVIII). O que
este autor, inspirado na perspectiva de Michel Foucault, está afirmando é que não se pode
simplificar todas as dimensões humanas, como fez o marxismo, exclusivamente na sua
58
relação laboral. Pelo contrário, o trabalhador, no momento do trabalho, está assumindo
somente uma “posição de sujeito”, a de trabalhador. A noção de “posição de sujeito” infere
a idéia de que existem várias posições possíveis de serem assumidas pelos indivíduos.
Relações capitalistas, como bem admite Laclau, são categorias econômicas: os
trabalhadores representam um dos pólos numa relação deste tipo. Contudo, nem as
categorias econômicas restringem-se aos seus sustentadores (burguês e proletário), nem
ambos podem ser reduzidos a elas. Desta forma, é preciso ampliar a noção de identidade
marxista, uma vez que a própria luta política é muito mais complexa e exige outras bases
teóricas para a sua análise.
Esta simplificação “sócio-cultural” ditada pelo determinismo classista marxista teve
evidentemente sérias conseqüências políticas, não só no século XIX, mas também em
grande parte do século XX. Para militantes marxistas, questões de gênero, questões étnicas
representavam lutas meramente acessórias, quando não raras vezes eram até mesmo
consideradas como contraditórias aos avanços da classe operária. A luta empreendida por
qualquer identidade, que não fosse a proletária, era então passível de condenação por parte
dos partidos comunistas, uma vez que eram consideradas por esses como lutas
desagregadoras dos oprimidos. Dessa forma, segundo a visão deste campo da esquerda,
“questões acessórias”, como de gênero e de etnia, deveriam dar espaço a uma “luta maior e
definitiva” que era a empreendida na esfera econômica. O resultado: por muitas vezes, os
“novos movimentos sociais” sofreram represálias não só de seus opositores diretos (racistas
e machistas), mas também daqueles que pretensamente deveriam defender os oprimidos e
acabavam ficando muitas vezes avessos às suas lutas. Wieviorka (2001) ilustra com
59
precisão que tal oposição os “novos movimentos sociais” da primeira onda contestatória
(feministas, homossexuais, ecologistas, étnicos) sofreram do esquerdismo radical e do
marxismo nas décadas de 1960 e 1970.
Em alguns países, esta primeira onda [contestatória] desenvolveu-se sem
encontrar obstáculos de resistência política ou ideológica maiores. Em outros, ao
contrário, ela chocou-se com correntes antagônicas, particularmente marxistas,
com grupos esquerdistas ou com um partido comunista ainda poderoso que não
cessaram de se oporem a ela ou de buscarem anexarem-se a ela (WIEVIORKA,
2001, p. 32).
Contudo, o que o esquerdismo radical não pôde evitar, a partir da segunda metade do
século XX, foi o crescimento generalizado destes “novos movimentos sociais” que
acabaram sendo fatores importantes para o enfraquecimento da própria ação marxista no
Ocidente, uma vez que esta tradição teórica e política não teve a capacidade de se constituir
como um ponto condensador destas demandas, que não são de ordem econômica, mas
notadamente de natureza cultural. No campo político, portanto, as lutas sociais se tornaram
mais complexas. Novas identidades e novos antagonismos, para além do tradicional
antagonismo capital versus trabalho, emergiram com justificativas e pautas completamente
diversas daquelas sustentadas pelos movimentos sociais centrados no antagonismo
econômico classista, os quais eram tidos como centrais do ponto de vista da abordagem
marxista.
Dessa forma, a complexidade das lutas sociais obrigou com que a teoria política
passasse a considerar que um mesmo indivíduo pudesse ser, ao mesmo tempo, sujeito de
várias disputas, portador de várias posições. Essas disputas, muitas vezes alheias ao campo
60
econômico, são dadas a partir de duas perspectivas concorrentes: por um lado tratam-se de
demandas de afirmação cultural, como apontado acima, as quais não possuem qualquer
origem econômica (apesar de que algumas diferenças podem ter reflexos em desigualdades
econômicas, como é o caso de questões étnicas ou sexistas que relegam negros e mulheres a
condições de trabalho inferiores e salários menores no mercado laboral); por outro lado,
tratam-se de demandas em que a afirmação cultural é requisito indispensável à justiça
social buscada por estas identidades. Neste sentido, ainda observa Wieviorka:
Observa-se, freqüentemente, no seio destes movimentos [sociais], uma
preocupação de inversão do estigma, processo no fim do qual, uma identidade
até aí escondida, sufocada, mais ou menos desonrosa, ou reduzida à imagem de
uma natureza, transforma-se em afirmação cultural visível e assumida (2001, p.
31).
Desta forma, a luta identitária é uma luta por reconhecimento e não por mera
tolerância (PINTO, 2000). Reconhecimento, nestes termos, refere-se à idéia,
paradoxalmente complementar, da busca da identidade, mas também da afirmação da
diferença. A identidade, no sentido clássico da igualdade aristotélica, como visto acima,
infere que os “desiguais oprimidos”, por exemplo, no caso das mulheres e do movimento
feminista, desejam, por um lado, tornarem-se sujeitos de direitos da mesma forma que seus
opressores (os homens) possuem. Em outras palavras, as lutas por direitos iguais aos
homens, na segunda metade do século passado, foram as lutas para que as mulheres fossem
inseridas socialmente no mesmo patamar jurídico dos indivíduos do sexo masculino. Já a
segunda dimensão do paradoxo igualdade/diferença, por outro lado, representa a luta pela
afirmação orgulhosa da diferença do feminino em relação ao masculino. Dessa maneira, a
61
mulher, quando luta por igualdade de direitos, não está demandando igualdade sexual, mas
justamente o reconhecimento de sua diferença amparada pela lei e pela sociedade como um
todo. Assim, o particular, para se constituir como sujeito reconhecido e não meramente
tolerado, tem de buscar a universalidade de sua demanda, ou seja, interpelar outras
diferenças em relação à importância da sua afirmação, neste caso, afirmação de gênero.
É a partir de tais elementos que a discussão mais contemporânea acerca das
identidades ultrapassa em muito o essencialismo marxista referido. Nesse sentido, não se
pode mais falar, com todo o rigor teórico, simplesmente em identidade operária, feminina,
homossexual etc como essências de indivíduos. É absolutamente possível e desejável se
falar em “mulher – negra – operária – homossexual” como identidades constantes em um
mesmo indivíduo. Diante deste complexo quadro identitário, como se pode referir a esta
“mulher – negra – operária – homossexual”? Ela pode ser definida mais como mulher,
negra, operária ou homossexual?
Nesse ponto, duas questões estão relacionadas. Primeiramente, parece totalmente
inoportuno definir esta individualidade em questão preferencialmente a partir de uma das
suas posições de sujeito, uma vez que cada uma delas coloca este indivíduo em um tipo
diferente de relação social. A outra questão diz respeito a que cada uma destas posições
ocupadas representa um tipo diferente de luta política que este indivíduo enfrenta. Desta
forma, esta “mulher – negra – operária – homossexual” porta-se no mundo e relaciona-se
com as demais identidades a partir de todas essas dimensões as quais ela é portadora, sem
62
mencionar, ainda, outras tantas que ela pode assumir, ou já assume, ao longo de sua
trajetória de vida.
Essa concepção não essencialista e complexa de tratar as identidades conduz à
conclusão de que cada indivíduo, portador em potencial de várias identidades ao mesmo
tempo, nunca será pleno, ou seja, nunca estará completamente constituído. Durante a sua
vida, ele buscará incessantemente a sua completa constituição, tarefa permanentemente
inconclusa. Isso se deve ao fato de que as identidades que ele encarna, as quais ele é
“interpelado como sujeito”, para usar aqui uma expressão althusseriana, são também
eternamente inconclusas. Porém, se as constituições de um mesmo indivíduo e as
identidades que ele encarna são inconclusas, o que pode explicar esta incompletude? Para
responder a esta questão, central ao debate que se trava, é necessário recorrer à noção de
discurso.
2.2.2 A materialidade e o funcionamento de uma formação discursiva
Antes propriamente de apresentar o funcionamento da lógica de uma totalidade
discursiva, é preciso fazer referência ao que Laclau e Mouffe chamam de o caráter
“material”, e não “mental”, de um discurso. Nesse sentido, conforme Laclau, a noção de
discurso deve ser ampliada e entendida como aquilo que articula “todo o tipo de ligação
entre palavras e ações, formando assim totalidades significativas” (LACLAU, 2000a, p.
63
10). Isto quer dizer que Laclau não faz qualquer distinção entre discurso e prática, tendo em
vista que todas as práticas, individuais ou sociais, já são consideradas como atos
discursivos tomados pelos agentes ou pelos grupos sociais a partir de suas próprias leituras
sobredeterminadas (ideológicas) da realidade que os cerca.
(...) afirmamos o caráter material de toda a estrutura discursiva. Argumentar o
oposto é aceitar a dicotomia clássica entre um campo objetivo constituído fora
de qualquer intervenção discursiva e um discurso que consiste na pura expressão
do pensamento. Esta é precisamente a dicotomia que muitas correntes do
pensamento contemporâneo têm tentado quebrar. (...). Os jogos de linguagem
em Wittgenstein incluem, numa totalidade indissociável, ambas, a linguagem e
as ações conectadas a esta (...). Os elementos lingüísticos e não lingüísticos não
estão meramente justapostos, mas constituem-se num sistema de posições
diferencial e estruturado – que é o discurso (LACLAU e MOUFFE, 1985, p.
118).
Esta materialidade do discurso é de fundamental compreensão, pois rechaça outra
idéia corrente de discurso, ou seja, a que estabelece a distinção entre o que é dito e o que é
feito, entre o que é, portanto, ideal e distinto do que é real. Assim, a diferenciação entre
ideal e real é impossível segundo os autores em questão, tendo em vista que não há nada no
social que não esteja sobredeterminado, ou seja, todos os objetos, tudo aquilo que se dá
nome, se concebe e se conhece, constitui-se numa ordem simbólica.
Nossa análise rejeita a distinção entre práticas discursivas e não discursivas.
Afirma-se que: a) todo objeto está constituído como um objeto de discurso, na
medida em que este não é dado fora da emergência da constituição discursiva; e
b) que qualquer distinção entre o que são usualmente chamados de aspectos
lingüísticos e comportamentais de uma prática social, ou é uma distinção
incorreta, ou tem lugar como uma diferenciação com a produção social de
sentido, a qual está estruturada sob a forma de totalidades discursivas (LACLAU
e MOUFFE, 1985, p. 107).
64
Acerca da impossibilidade de distinção entre o “ideal” e o “real”, continuam os
autores:
O fato de que todo objeto está constituído como um objeto de discurso não tem
nada a ver com a questão de que existe um mundo exterior ao pensamento ou
uma oposição entre realismo e idealismo. Um terremoto ou a queda de uma
pedra são eventos que certamente acontecem no sentido de que ocorrem aqui e
agora, independentes da minha vontade. Mas se suas especificidades são
construídas em termos de ‘fenômenos naturais’ ou expressão da ‘ira de deus’,
estas dependem da estruturação de um campo discursivo. O que é negado não
são as existências, externas ao pensamento, destes objetos, mas a afirmação de
que estes podem ser constituídos fora de qualquer condição de emergência
discursiva (1985, p. 108).
Visto o caráter material do discurso, será apresentado, a partir de agora, o seu
funcionamento. Nas palavras dos autores:
No contexto dessa discussão, chamaremos articulação qualquer prática que
estabeleça uma relação entre elementos tal que suas identidades sejam
modificadas como um resultado da prática articulatória. A totalidade estruturada
resultante da prática articulatória chamaremos de discurso. As posições
diferenciais, na medida em que estas apareçam articuladas num discurso,
chamaremos de momentos. Por contraste, denominamos elemento qualquer
diferença que não esteja discursivamente articulada. (LACLAU e MOUFFE,
1985, p. 105).
De acordo com a passagem acima, articulação é uma prática que se estabelece entre
elementos que, num primeiro momento, não estão articulados entre si. Assim, a prática
articulatória agrega esses elementos transformando-os em momentos. Portanto, um
elemento quando ingressa na articulação, e em relação a esta, deixa seu status de elemento
e assume a condição de momento diferencial. A articulação entre esses momentos
diferenciais resulta necessariamente na modificação de suas características, ou melhor,
65
numa alteração semântica de seus conteúdos particulares anteriores ao ingresso na prática
articulatória. O resultado da prática articulatória é o discurso
15
.
A conseqüência fundamental da prática articulatória é a possibilidade de a partir desta
especificar separadamente a identidade de cada elemento/momento discursivamente
articulado. A compreensão desse ponto é decisiva para o entendimento da riqueza e da
complexidade da categoria da articulação. Afirmar que se pode discernir
elementos/momentos numa articulação é supor primeiramente que a prática articulatória
não é um complexo dado e necessário. Esta não é também a simples soma de elementos
que, articulados entre si, tornam-se momentos. Se admitir que a prática articulatória é um
complexo dado e necessário e o resultado de uma simples soma dos seus
elementos/momentos constituintes, ela simplesmente torna-se impossível, uma vez que se
está retirando desta a sua característica de constantemente construir novos sentidos.
Para tornar mais claro esse ponto, será tomada a afirmação categórica dos autores:
numa prática articulatória “a transformação de elementos em momentos nunca é completa”
(LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 121). Se a transformação de elementos em momentos
nunca se completa, quer dizer logicamente que a articulação também nunca preenche um
sentido último. Se a articulação entre os momentos diferenciais não alcança uma
literalidade última, a estrutura discursiva fixa somente sentidos parciais, o que possibilita a
15
Quando se afirma que o resultado da prática articulatória é o discurso não se está de forma alguma
afirmando que esse resultado seja permanente, tendo em vista principalmente as categorias filosóficas de
contingência e de precariedade, adotadas por Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Tais categorias fazem com
66
flutuação de diferenças. As identidades, quando assumem a condição de momentos
diferenciais na relação articulatória, anulam completamente seus sentidos particulares em
relação ao discurso que as une. Entretanto, isso não quer dizer absolutamente que as
identidades deixam de existir como elementos diferentes entre si e diferentes também da
própria articulação. Dizer que um elemento não se transforma completamente em momento
presume a conclusão de que a prática articulatória se dá a partir de diferenças que, num
determinado momento, se unem a um ponto nodal que expressa um sentido comum.
Contudo, se esses elementos não forem diferentes, não haveria uma articulação, mas tão
somente uma simples igualdade.
Acima foi visto que a estrutura discursiva é o resultado de uma prática articulatória
que organiza elementos diferentes. É necessário ainda avançar no argumento de Laclau e
Mouffe (1985) e especificar o que motiva essa articulação de elementos diferenciais. Dessa
forma, a seguir, serão apresentadas as noções de pontos nodais antagonismo e agonismo.
2.2.3 Pontos nodais, antagonismo e agonismo
Os pontos nodais e o antagonismo são categorias responsáveis pela “motivação
discursiva”. É preciso, contudo, fazer uma observação preliminar para evitar qualquer mal
que sentidos de um discurso sejam sempre parciais e, portanto, tendentes a se alterarem em meio à prática
67
entendido nesse ponto. Categoricamente: não é possível conceber uma teleologia stricto
sensu aos discursos. Os pontos nodais, que estabelecem a união entre os momentos
diferenciais e os limites do sistema discursivo, que estabelecem a fronteira entre o que es
e o que não está discursivamente articulado (o exterior constitutivo de Derrida), são
categorias inerentes ao sistema discursivo e, portanto, não presumem nenhuma relação
finalística a priori.
Dessa forma, a noção de discurso é incompatível também com qualquer teleologia ou
escatologia, tendo em vista seu caráter sempre precário e contingente. O discurso, frise-se,
é uma prática articulatória que não possui um plano de constituição a priori como se pode
perceber nesta passagem:
Poderia argumentar-se que, nesse caso, a unidade discursiva é a unidade
teleológica de um projeto, mas isto não é assim. O mundo objetivo está
estruturado em seqüências relacionais as quais não necessariamente possuem um
sentido finalístico e que, em muitos casos, na realidade, não requerem qualquer
sentido. É suficiente que certas regularidades estabeleçam posições diferenciais
para estarmos aptos a falar numa formação discursiva (LACLAU e MOUFFE,
1985, p. 109).
Se não se pode inferir qualquer teleologia discursiva stricto sensu, pode-se, no
entanto, ainda questionar por que um se discurso constitui como um discurso? Para
responder a esta questão, que introduzirá as noções de pontos nodais e de limites de um
sistema discursivo, é necessário introduzir a noção de campo discursivo.
articulatória incessante na ordem discursiva.
68
O campo discursivo é um espaço no qual um conjunto de formações discursivas está
em relação de concorrência. O campo discursivo “não é uma estrutura estratégica, mas um
jogo de equilíbrios instáveis entre diversas forças (...). Um campo não é homogêneo: há
sempre dominantes e dominados, posicionamentos centrais e periféricos”
(MAINGUENEAU, 2000, p. 19). Na relação do discurso com o campo discursivo, o
primeiro tenta constantemente impor significações na busca de adeptos a essas
significações. Um discurso, portanto, constitui-se com a intenção de dominar o campo da
discursividade, para reter o fluxo de diferenças, para constituir o “centro” (LACLAU e
MOUFFE, 1985). A constituição desse “centro” nos remete imediatamente à idéia de
pontos nodais:
Chamaremos os pontos discursivos privilegiados desta fixação parcial de pontos
nodais. (Lacan insiste nestas fixações parciais através de seu conceito de points
de capiton, ou seja, significantes privilegiados que fixam o sentido de uma
cadeia significativa. Esta limitação da produtividade da cadeia significativa
estabelece as posições que fazem a predicação possível – um discurso incapaz de
gerar qualquer fixação de sentido é o discurso do psicótico) (LACLAU e
MOUFFE, 1985, p. 112).
Os pontos nodais
16
são fundamentais à prática articulatória, pois, por serem pontos
discursivos privilegiados, eles possuem a capacidade de fixar, ainda que de forma parcial e
precária, o sentido da própria articulação (LACLAU e MOUFFE, 1985).
16
A noção de ponto nodal é oriunda da psicanálise lacaniana, a partir do conceito de “points de capiton”,
traduzido para o português como “pontos-de-estofo”. Joël Dor, explicando essa noção afirma que, “para
Lacan, o ponto-de-estofo é, antes de qualquer coisa, a operação pela qual o ‘significante detém o
deslizamento, de outra forma indeterminado e infinito, da significação’. Em outras palavras, é aquilo por meio
do qual o significante se associa ao significado na cadeia discursiva” (DOR, 1989, p. 39).
69
Vejamos o seguinte exemplo de Laclau (2000b), retirado de um episódio da história
do Brasil, para esclarecer a noção de ponto nodal no contexto de uma prática articulatória.
Ver-se-á, a partir da citação abaixo, que o discurso profético-religioso de Antônio
Conselheiro se tornou um ponto nodal articulador das demandas de membros de uma
comunidade rural insatisfeitos com o recolhimento de impostos logo após a instituição da
República. Laclau, neste ponto, afirma que, contingencialmente, um discurso pode ter a
capacidade de reunir em torno de si demandas que em nenhum momento teriam qualquer
relação direta com este. Nas palavras do autor:
Antônio Conselheiro, um pregador milenarista, vagou por décadas pelo sertão
brasileiro no final do século XIX sem conseguir recrutar muitos seguidores.
Tudo mudou com a transição do Império para a República (...). Um dia
Conselheiro chegou num vilarejo – onde várias pessoas estavam revoltadas
contra o recolhimento de impostos – e pronunciou as palavras que se tornaram a
chave equivalencial do seu discurso profético: ‘a República é o Anticristo’.
Daquele ponto em diante, seu discurso sustentou uma superfície de inscrição
para todas as formas de descontentamento rural e se tornou o ponto de partida de
uma rebelião de massas a qual demorou muitos anos para o governo abater.
Vemos aqui a articulação entre as duas dimensões acima mencionadas: 1) a
transformação dos significantes Deus e Diabo na oposição Império/República é
alguma coisa que não estava predeterminada por nada inerente aos dois pares de
categorias – foi uma equivalência contingente e, neste sentido, uma decisão
radical. As pessoas aceitaram isso, porque esse era o único discurso que se
compromissava com elas (...) (LACLAU, 2000b, p. 82-83).
Além dos pontos nodais, é conditio sine qua non à constituição discursiva o
estabelecimento de seus limites. Sobre este ponto, Laclau e Mouffe argumentam que se não
existissem limites a articulação seria impossível (e o discurso conseqüentemente), já que
todo elemento seria ex definitione momento, uma vez que não haveria nada que delimitasse
um discurso em relação aos outros e em relação também aos demais elementos no campo
da discursividade, porque “a lógica relacional do discurso é levada até suas últimas
70
conseqüências sem a limitação por nenhum exterior” (LACLAU e MOUFFE, 1985, p.
110). Isso quer dizer logicamente que todas as relações articulatórias são internas ao
próprio discurso, inclusive as suas suturas
17
provenientes da relação com outros discursos.
Mencionar os limites de um discurso é mencionar a existência do antagonismo. No
desenvolvimento da teoria do discurso, a noção de antagonismo desempenha um papel
central.
Em linhas gerais, o antagonismo representa a impossibilidade da constituição de um
sentido objetivo, ou positivo, de uma formação discursiva. Sabe-se, a partir dos
pressupostos da teoria do discurso, que a produção de sentidos por um sistema discursivo é
sempre precária, contingente e limitada pelo seu corte antagônico. Justifica-se o seu caráter
precário, pois os sentidos constituídos por um determinado sistema discursivo estão sempre
tendentes a serem alterados na relação com os demais discursos dispostos no campo da
discursividade, que é o espaço no qual os discursos disputam sentidos hegemônicos. Além
de precária, a prática discursiva é também contingente, uma vez que não há
necessariamente previsibilidade para produção de determinados sentidos no espaço social.
Entretanto, tanto a precariedade como a contingencialidade discursivas estão limitadas por
17
Sutura é outra categoria extraída por Laclau e Mouffe da psicanálise lacaniana, a qual Barrett designa como
sendo “a junção das duas bordas de um ferimento”. Isso quer dizer que uma pele cortada, quando costurada,
altera a sua identidade, uma vez que a ferida que sara estabelece a existência de uma diferença que
anteriormente ao corte não estava dada. O sistema discursivo é suturado quando altera suas características a
partir de sua relação com outros discursos no campo da discursividade. Barrett continua: “Laclau e Mouffe
nos apresentam um corpo político cuja pele está permanentemente dilacerada, exigindo um plantão
interminável na sala de emergência por parte dos cirurgiões da hegemonia, cuja sina é tentar fechar os cortes,
temporariamente e com dificuldade. (Esse paciente nunca chega à sala de recuperação)” (BARRETT, 1996, p.
249).
71
aquilo que está além dos limites do próprio discurso e que representa a sua negação: o seu
corte antagônico. Nas palavras de Laclau: “o exterior é, portanto, um exterior radical sem
medida comum com o interior” (1993, p. 35). O antagonismo, tomado em seu sentido mais
estrito, resulta na própria impossibilidade da constituição objetiva e necessária de uma
totalidade discursiva, em razão da presença de um discurso antagônico que impede essa
constituição plena. Enfatiza-se, portanto, que o ponto fundamental para a compreensão da
relação antagônica é que esta ocorre a partir de um “exterior constitutivo” que ameaça a
existência de um “interior”. Em outras palavras: uma formação discursiva tem bloqueada a
sua expansão de sentidos pela presença de seu corte antagônico.
Além desse bloqueio da expansão de sentidos de um discurso em relação ao discurso
que o antagoniza (condição de impossibilidade), a teoria do discurso enfatiza que o
antagonismo é também a condição de possibilidade da constituição discursiva.
Paradoxalmente, segundo Laclau (1996), ao mesmo tempo em que o exterior constitutivo
(discurso antagônico) ameaça a constituição do interior (discurso antagonizado), ele
também representa a própria condição da existência do interior, na medida em que este
último se constituiu sob a ameaça da presença do primeiro.
Enfatiza-se, portanto, que a relação interior/exterior é antagônica uma vez que a
presença sempre constante de um impede a constituição completa do outro. Tratam-se,
assim, de constituições identitárias sempre incompletas e ameaçadas: “a presença do outro
me impede de ser totalmente eu mesmo. A relação não surge de identidades plenas, mas da
impossibilidade da constituição das mesmas” (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 125). Isso
72
quer dizer que a produção de sentidos pelo interior discursivo está limitada pelo exterior
antagônico, supondo-se assim, que o primeiro nunca poderá articular elementos do
segundo sem que isso altere radicalmente suas estruturas. Articular o que se nega,
significa, no limite, negar o que se é, e isso representa a completa desestruturação do
interior. Assim, numa relação antagônica, uma diferença constitui-se na medida idêntica de
ser radicalmente exterior a outra sendo, ao mesmo tempo e de forma paradoxal, o
antagonismo a condição de possibilidade e de impossibilidade de uma formação discursiva.
Nas palavras do autor:
No caso do antagonismo o que ocorre é algo inteiramente distinto: o que nele se
expressa não é minha identidade, senão a impossibilidade de constituí-la; a força
que me antagoniza nega minha identidade no sentido mais estrito do termo
(LACLAU, 1993, p. 34).
Sendo o antagonismo o limite de toda a objetividade, quer dizer que a força
antagônica impede a constituição completa de sentidos de um sistema discursivo que se
constitui para dominar o campo da discursividade. Na verdade, um discurso constitui-se
tendendo a preencher todos os sentidos que permitam a sua completa universalização.
Contudo, essa total, eterna e requerida universalização discursiva é uma situação
impossível, seja pela precariedade e contingencialidade discursivas já referidas, seja pelo
corte antagônico, que limita a expansão de seus conteúdos. Tome-se um exemplo de Laclau
e Mouffe para explicitar melhor o ponto.
Com todo rigor, a oposição povo/antigo regime foi o último momento no qual os
limites antagônicos entre duas formas de sociedade apresentaram-se eles mesmos
– com notada qualificação – na forma de claras e empiricamente dadas linhas de
73
demarcação. Delas se demarca a linha entre o interno e o externo, a linha
divisória na qual o antagonismo foi constituído na forma de dois sistemas de
equivalências opostos (...) (LACLAU e MOUFFE, 1985, p. 151).
No exemplo acima, tem-se a noção de antagonismo empregada para demarcar duas
formas de sociedades absolutamente distintas: a “sociedade do antigo regime” em oposição
à “sociedade do povo”, sendo que um mundo impede a completa constituição do outro. A
noção de antagonismo está afirmada neste exemplo na medida em que não existem
correspondências possíveis de serem estabelecidas entre as duas sociedades: somente a
busca da aniquilação daquela a qual se antagoniza.
Além da noção de antagonismo – que será de extrema importância nesta tese para a
caracterização de discursos entre grupos políticos “inimigos” – Chantal Mouffe (2000)
introduziu, no âmbito da teoria do discurso, a noção de agonismo
18
, a qual é utilizada para
caracterizar os discursos políticos entre “adversários”. Estas caracterizações “antagonismo
= inimigo” e “agonismo = adversário” foram elaboradas pela própria autora para melhor
distinguir estas categorias no contexto da teoria. Veja-se mais cuidadosamente seu
desenvolvimento.
Para caracterizar o agonismo, Mouffe (2000) parte do princípio de que as relações de
poder são constituidoras do social e que, portanto, estão sempre presentes nas disputas
18
Em relação à noção de agonismo, é importante tomar sobretudo a análise acerca da polis grega empreendida
por Hannah Arendt. Segundo Arendt (1999), o espaço agonístico foi somente possibilitado, pois existia
homogeneidade moral e igualdade política entre os membros da polis. Nesse sentido, o reino do público
representava um espaço de aparição e disputa no qual grandeza moral e política, heroísmo e preeminência
eram requeridos, exibidos e divididos entre os membros da comunidade política. Era um espaço competitivo,
político, no qual se buscava reconhecimento e diferenciação da futilidade da esfera privada.
74
discursivas. Dessa forma, conforme a autora, todo consenso, no sentido proposto por
teóricos deliberacionistas como Rawls e Habermas, não passa de um resultado hegemônico
sempre provisório. Mouffe ainda afirma que a idéia de que o poder possa ser dissolvido
através de um debate racional é uma ilusão, uma vez que se está diante de uma corrente
teórica que, além de tomar as relações de poder como constituidoras do social, tais relações,
e possíveis consensos, estão sempre dominados pela precariedade e pela contingência.
Duas diferenciações importantes devem ser realizadas entre antagonismo e agonismo.
No primeiro, não há medida comum entre interior e exterior e discursos antagônicos
promovem a luta entre inimigos. Já, no caso do agonismo, apesar da disputa entre
diferentes formações discursivas, existe uma medida comum entre elas, um universal
mínimo, que é o reconhecimento da legitimidade da existência do discurso concorrente
19
.
Além disso, em termos políticos, na relação agônica, a categoria de inimigo é substituída
pela de adversário, uma vez que o espaço comum entre adversários reside justamente na
aceitação da disputa política num espaço discursivo democrático pluralista.
Aliás, esse é o projeto político defendido por Chantal Mouffe (2000): a transformação
de relações antagônicas em agônicas e a superação da relação entre inimigos (antagonismo)
para uma relação entre adversários (agonismo), já que as relações de poder são inerentes e
constituidoras da política. Nas palavras de Mouffe:
19
Chantal Mouffe enfatiza a necessidade de se entender que a relação agônica representa a disputa entre
adversários, na qual, ao contrário do antagonismo, não se discute a pertinência da existência dos mesmos: “O
que caracteriza a democracia pluralista (...) é a instauração da distinção entre as categorias de ‘inimigo’ e de
‘adversário’. Isso significa que no interior da comunidade política não se verá no oponente um inimigo a
75
Introduzir a categoria de ‘adversário’ requer complexificar a noção de
antagonismo e distinguir duas diferentes formas as quais ele pode emergir:
antagonismo propriamente dito e agonismo. Antagonismo é a luta entre
inimigos, enquanto que o agonismo é a luta entre adversários. Podemos,
portanto, reformular nosso problema, pensando a partir de uma perspectiva de
‘pluralismo agonístico’, que o objetivo das políticas democráticas é transformar
antagonismo em agonismo (MOUFFE, 2000, p. 102-103).
Em relação aos discursos a serem analisados nesta tese, tendo em vista tanto o
momento de crise como o próprio discurso considerado, poder-se-á estar diante, ou de
discursos antagônicos, ou de discursos agônicos. Assim, é preciso ter clara esta distinção,
uma vez que nem sempre os discursos terão entre si relações eminentemente antagônicas ou
agônicas. Daí a necessidade do emprego de ambas as categorias referentes à disputa
política.
2.3 Hegemonia e ordem
Segundo Laclau e Mouffe (1985), estabelecer uma relação hegemônica significa
construir uma relação de ordem. Um discurso hegemônico é essencialmente um discurso
sistematizador, aglutinador. É, enfim, um discurso de unidade: unidade de diferenças.
abater, mas um adversário de legítima existência ao qual se deve tolerar. Combatem com vigor suas idéias,
contudo jamais se questionará o direito de defendê-las” (MOUFFE, 2002, p. 01).
76
A noção de hegemonia, para além de somente caracterizar relações de ordem, pode
também servir como uma peça fundamental para análises políticas de períodos aos quais as
próprias noções de ordem política, de ordem institucional, ou até mesmo de ordem
democrática, não estão claramente dadas, ou devidamente hegemonizadas, pelos sujeitos
políticos em disputa. Utilizar, nestes casos, a noção de hegemonia como ferramenta de
análise, sugere uma importante inversão. Assim, não se utiliza tal noção para descrever ou
enquadrar um determinado momento político hegemônico. Pelo contrário: a análise pode
ser realizada para demonstrar quão ausente é a ordem do momento em questão: o quanto os
sujeitos políticos desrespeitam os fracos liames institucionais de determinados regimes
políticos desacreditados por eles. Nas palavras de Laclau: “numa sociedade que passa por
uma profunda desorganização social, a ‘ordem’ pode ser vista como a inversão positiva de
uma situação de anomia generalizada” (LACLAU, 2002, p. 122). Contudo, pode-se
perguntar: o que significa ordem hegemônica? Como ela é produzida?
A hegemonia é uma relação em que uma determinada identidade, num determinado
contexto histórico, de forma precária e contingente, passa a representar, a partir de uma
relação equivalencial, múltiplos elementos. A idéia de hegemonia existe justamente em
contraposição à idéia de falta constitutiva presente na teoria de Laclau. A noção de falta
constitutiva induz a idéia de que todas as identidades se constituem sempre de forma
incompleta, seja em função da sua própria articulação incompleta de sentidos, seja a partir
de sua relação com outras identidades, seja, ainda, por sua própria negação a partir de seu
corte antagônico. No sentido de Laclau, portanto, toda identidade vive numa constante
busca à completude, sendo tal busca, contudo, sempre ineficaz. Em contrario sensu à noção
77
de falta constitutiva ou de incompletude identitária, a hegemonia visa a preencher essa
ausência de plenitude identitária. Conforme Laclau: “entendo por ‘hegemonia’ uma relação
em que um conteúdo particular assume, num certo contexto, a função de encarnar uma
plenitude ausente” (LACLAU, 2002, p. 122). Daí a idéia de “ordem” hegemônica.
É importante ainda levar em consideração que o processo de constituição de uma
ordem hegemônica parte sempre de um discurso particular que consegue suplementar (no
sentido de supplément de Derrida), ou seja, representar discursos ou identidades dispersas.
Esta organização ocorre a partir desse discurso centralizador, de um ponto nodal que
consegue fixar sua significação e, a partir dela, articular elementos que não estavam
articulados entre si. Tal fixação de sentidos, como se sabe, é sempre parcial, precária e
contingente, ou seja, nada pode garantir que determinado discurso ou grupo social consiga
a priori articular outros discursos ou grupos sociais, como atribuía o marxismo clássico ao
proletariado na sua luta política. A hegemonia discursiva para Laclau não é, dessa forma,
uma necessidade, mas um lugar vazio, ou seja, foco de incessantes disputas entre os
múltiplos discursos dispersos no campo da discursividade. Nas palavras de Laclau:
Hegemonizar um conteúdo equivale, por conseguinte, fixar sua significação em
torno de um ponto nodal. O campo do social pode ser visto assim como uma
guerra de trincheiras em que diferentes projetos políticos pretendem articular em
torno de si um maior número de significantes sociais (...). A necessidade e a
‘objetividade’ do social depende do estabelecimento de uma hegemonia estável e
os períodos de ‘crise orgânica’ são aqueles em que se debilitam as articulações
hegemônicas básicas (...) (LACLAU, 1993, p. 45).
78
Em trabalho anterior
20
, identificou-se a formação de um discurso hegemônico em
torno da campanha política, de forte apelo popular, que representou as “diretas já” no
contexto histórico-político do final do regime militar no Brasil em 1984. Esta campanha,
que tinha como ponto nodal o discurso de “votar para presidente da República” após 20
anos de autoritarismo, teve o sucesso de articular múltiplos discursos e movimentos sociais
que, sob a bandeira das “diretas”, viram também espaço de enunciação de seus anseios
particulares como reforma agrária, luta pela ampliação dos direitos das mulheres, reformas
no ensino universitário, luta contra a pobreza etc. A campanha das “diretas já” constituiu-se
num discurso privilegiado capaz de condensar múltiplas demandas dispersas entre si, num
movimento que elegeu como corte antagônico um inimigo comum a todos os momentos
articulados naquela vasta cadeia de equivalências: o regime político autoritário. Assim, se
por um lado, a campanha das “diretas já” foi capaz de se constituir como um discurso
hegemônico constituidor de uma ordem social entre todos seus elementos articulados, por
outro lado, tornou-se também, em relação ao seu corte antagônico, um momento de
profunda desestabilização de um regime político que, naquela época, perdurava já há vinte
anos.
A partir do exemplo acima, pode-se aduzir, pelo menos, três elementos da lógica
hegemônica. O primeiro deles diz respeito à capacidade de um discurso hegemônico
articular outros discursos que sem este ponto nodal não teriam, em princípio, capacidade de
20
Está-se aqui mencionando a dissertação de mestrado que teve por objetivo principal analisar, a partir dos
pressupostos da Teoria do Discurso, os últimos momentos da transição brasileira do autoritarismo para a
democracia, principalmente nos episódios das “diretas já”, da eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral
em 1985, bem como a agonia social provocada por sua doença e morte (MENDONÇA, 2001).
79
se articularem entre si. A segunda característica da lógica articulatória hegemônica induz a
idéia de que o discurso que hegemoniza é aquele que capitaneia e simplifica em torno de si
mesmo os múltiplos sentidos dos elementos articulados, na lógica da equivalência em
contraposição à lógica da diferença. O terceiro elemento conclusivo, a partir do exemplo
acima proposto, conduz à percepção de que qualquer discurso, por mais amplo e
hegemônico que seja, possui limites de enunciação.
2.3.1 As quatro dimensões da lógica hegemônica
Em “Contingengy, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left”
(2000b), trabalho publicado em conjunto com Judith Butler e Slavoj Zizek, Ernesto Laclau
desenvolve sistematicamente a noção de hegemonia, a partir da análise do que ele chamou
de “as quatro dimensões da hegemonia”. Neste texto, o autor parte do pressuposto de que
hegemonia não é tão-somente uma categoria ou uma ferramenta analítica útil. Para além
disso, Laclau defende a idéia de que a relação hegemônica define a própria relação política.
Esta afirmação inicial é extremamente importante tendo em vista que o campo de análise
em questão não é um campo de acontecimentos extraordinários ou extemporâneos. Pelo
contrário: a relação hegemônica – e seu necessário estabelecimento de ordem – têm efeitos
políticos cotidianos. O status quo democrático, a necessidade da observância das leis, as
relações culturais, se levados em consideração por esta perspectiva teórica, são exemplos de
ordens hegemônicas.
80
Dessa forma, são estas as quatro dimensões (ou condições) de hegemonia tratadas por
Ernesto Laclau (2000b): 1) a desigualdade de poder está constituída; 2) há hegemonia
apenas se a dicotomia universalidade/particularidade é suprimida; 3) hegemonia requer
tendencialmente a produção de significantes vazios; e 4) o terreno no qual a hegemonia se
expande é o de uma generalização das relações de representação como condição de
constituição de ordem social.
2.3.1.1 A desigualdade de poder está constituída
Hegemonia, tomada nesta primeira dimensão, é a própria condição da relação política,
baseada na disputa por recursos escassos tendo por pressuposto a desigualdade de poder.
Nesse ponto, Laclau apresenta como exemplo de uma relação não hegemônica, nem
tampouco política, a instituição do Estado Político no modelo filosófico de Thomas
Hobbes
21
.
O modelo contratualista hobbesiano parte da idéia básica que os homens no estado de
natureza enfrentam sérios problemas em relação à preservação ou conservação de suas
vidas, uma vez que esta etapa é marcada pela completa inexistência de limites, códigos ou
regras morais sobre qualquer aspecto. O desejo humano no estado de natureza não possui
21
Para maiores detalhes acerca das considerações que Ernesto Laclau realiza em relação à filosofia de
Thomas Hobbes, ver Laclau e Zac (1994) e Laclau (2000b).
81
freios. O homem é o lobo do próprio homem, uma vez que naturalmente ele não impõe
quaisquer limites em relação às suas paixões ou desejos, visto que o conceito de liberdade
para Hobbes resulta simplesmente na ausência de qualquer oposição. O estado político, ou
seja, a inauguração do mundo político ordenado, a partir de um contrato social
artificialmente constituído (artificial, pois natural é viver em estado de natureza, num
estado de guerra de todos contra todos) é a única condição considerada por Hobbes como
garantidora da conservação da vida humana. Contudo, a instituição do Estado Político
hobbesiano é a própria extinção da política, uma vez que se toda a fonte de poder possui um
locus, o Leviathan, não há poder a se disputar, não existe possibilidade de dissenso em
relação ao poder absoluto constituído. Em outras palavras, não há possibilidade de
ocorrência de disputas hegemônicas, uma vez que é vedada, desde o princípio, a
possibilidade de emergência de discursos contra-hegemônicos.
Dessa forma, tomar hegemonia como categoria analítica significa, ao mesmo tempo,
pressupor uma incessante disputa política entre diferentes discursos. O resultado
hegemônico é sempre precário, contingente e ameaçado por discursos contra-hegemônicos.
Assim, Laclau (2000b) afirma que o Leviatã é a própria morte da política, uma vez que o
poder total não é poder. Se, do contrário, ocorrer a distribuição desigual de poder, a
instituição de qualquer ordem social só pode se apresentar como o resultado da própria
desigualdade deste que contingencialmente estará nas mãos de um grupo específico e não
de forma completa nas mãos de um soberano. Contudo, continua Laclau, no caso do poder
desigualmente distribuído, a instituição de determinado poder nas mãos de qualquer grupo
depende da habilidade que este grupo deverá possuir para apresentar seus objetivos,
82
inicialmente particulares, como compatíveis e representativos com os anseios de outros
grupos sociais.
2.3.1.2 A hegemonia suprime a dicotomia universal/particular
Esta dimensão tem como característica principal a idéia de que qualquer discurso para
se constituir como hegemônico deve necessariamente deixar sua mera condição inicial
particularizada para se tornar o locus de efeitos universalizantes. Isso não quer dizer,
contudo, que o discurso que se pretenda hegemônico tenha de negar seus conteúdos
particulares. Por exemplo, um discurso feminista que hegemonizasse seus sentidos não
poderia esvaziar seu conteúdo feminista, pois isso significaria um abandono completo de
seus objetivos particulares iniciais, o que representaria uma subversão tão grande de seus
sentidos, a ponto de ele próprio desaparecer como um discurso diferente dos demais. Para
este hipotético discurso feminista tornar-se hegemônico ele precisa ser visto como sendo
“atraente” pelos outros discursos dispersos no campo da discursividade. Para ele se tornar
atraente em relação aos outros discursos ele precisa necessariamente “encarnar” demandas
reconhecidas como demandas de outros grupos sociais. Em termos mais sistemáticos,
segundo Laclau, isso significa:
Há hegemonia apenas se a dicotomia universalidade/particularidade está
suspensa; universalidade existe apenas encarnando e subvertendo algum objetivo
particular, mas, de forma recíproca, nenhuma particularidade pode constituir-se
83
como política sem se tornar o locus de efeitos universalizantes (LACLAU,
2000b, p. 56).
A relação política é vista aqui como uma relação de representação. A pura
particularidade não estabelece relação com nenhuma outra; não se insere, portanto, numa
lógica relacional. O não relacional representa a impossibilidade da política, a
impossibilidade da representação. A particularidade que universalizar seus conteúdos,
condição necessária da hegemonia, precisa representar alguma coisa a mais do que a sua
pura particularidade. Este algo a mais do que a sua mera particularidade só pode ser
percebido no momento em que esta consegue representar os conteúdos particulares de
outras identidades. Esta representação requer a ampliação de seus sentidos particulares de
modo que estes consigam abarcar sentidos outros que não estavam contemplados
originalmente em sua identidade. Quando a identidade consegue chegar a este nível de
representação de outros discursos significa que esta não é mais a sua simples
particularidade original, nem a identidade de quem ela consegue representar, mas um
terceiro elemento, um ponto nodal, capaz de representar a si e aos outros. Essa
possibilidade de se auto-representar, bem como representar outros discursos está na base da
relação hegemônica. É a própria relação de suplementariedade.
A noção de ponto nodal, incorporada da tradição lacaniana por Laclau e Mouffe
(1985), é, em termos mais sistemáticos da teoria do discurso, a idéia mais acabada da
supressão da universalidade/particularidade. O ponto nodal representa um discurso
privilegiado que consegue articular em torno de si outros discursos. Tal articulação forma
84
uma cadeia de equivalências, que significa que em torno deste discurso central gravitam
outros discursos que se sentem representados por este ponto discursivo privilegiado.
2.3.1.3 Hegemonia requer tendencialmente a produção de significantes vazios
Para introduzir a noção de significante vazio, é importante tomar as próprias palavras
de Laclau: “um significante vazio é um significante sem significado” (LACLAU, 1996, p.
69). O significante vazio ocorre quando um discurso tem universalizado em demasia seus
conteúdos, quando esse passa a fazer sentido a uma multiplicidade de identidades, a ponto
de ele se tornar incapaz de ser significado de forma exata. Isso ocorre, segundo Laclau
(1996), quando, numa prática articulatória, a cadeia de equivalências expande em muito a
agregação de elementos. Veja-se um exemplo proposto por Céli Pinto de uma cadeia de
equivalências que se expande a ponto de perder sua possibilidade de significação precisa,
como é o caso do discurso democrático no século XX.
A democracia liberal se constitui em uma cadeia de equivalência com: liberdade
de expressão; igualdade perante a lei; eleições dos governantes e representantes,
na qual a democracia liberal é o termo que permite equivalência. Ora, a partir das
lutas da década de 60, este termo vai ganhando cada vez mais equivalências e
perdendo cada vez mais conteúdos particulares. Compõem esta cadeia de direitos
impensáveis antes da II Guerra, tais como: voto universal
(homens/mulheres/analfabetos), direito das minorias, experiência de democracia
participativa, direitos sociais, etc. A democracia paulatinamente se torna um
significante vazio (PINTO, 1999, p. 85).
85
Na situação apresentada por Pinto, tem-se, num primeiro momento, a “democracia
liberal” como um termo que permite equivalências entre “liberdade de expressão”,
“igualdade perante a lei” e “eleições dos governantes e representantes”. Nesta situação 1,
portanto, a “democracia liberal” é um significante com um significado bem delimitado e
definido. Entretanto, o exemplo avança e apresenta a situação 2. A partir da década de
1960, a “democracia liberal” passa a incorporar mais termos em sua cadeia de
equivalências a tal ponto de ela não poder mais ser significada com um mínimo de
exatidão. Isso ocorre porque o termo “democracia liberal” passa a não possuir mais
conteúdos específicos delimitáveis; ela se torna, assim, um significante vazio, um universal,
um lugar vazio
22
.
Apesar de um significante vazio ser um significante sem significado em função de
uma polissemia de sentidos que faz com que este esvazie seus conteúdos específicos, é
possível, como já assinalado anteriormente, perceber a existência de seus limites. Os limites
de um discurso buscam constantemente subverter seus significados, sendo, portanto,
negativos à constituição desses.
Por outro lado, aquilo que está além da fronteira de exclusão que delimita o
espaço comunitário – o poder repressivo – contará menos como instrumento de
repressões particulares diferenciais e expressará mais a pura anticomunidade a
pura negatividade e o mal. A comunidade criada por essa expansão equivalencial
será, pois, a pura idéia de uma plenitude comunitária que está ausente como
resultado da ausência do poder repressivo (LACLAU, 1996, p. 79-80).
22
A expressão “lugar vazio” é utilizada por Laclau (1996), para caracterizar as noções de universal e de
significante vazio.
86
Ao mesmo tempo em que os limites de um significante vazio impedem a sua
expansão significativa e ameaçam sua existência, esses servem também para afirmar a
própria constituição dessa cadeia discursiva, unindo ainda mais as diferenças por ela
agregadas, tendo em vista que o limite antagônico é idêntico a todas as identidades
constituidoras do significante vazio, gerando, pois, a união dessas diferenças em torno de
uma luta comum: contra algo que, de uma forma ou de outra, impede a constituição dos
elementos dessa cadeia de equivalências. Nesse sentido, Pinto, tomando a democracia como
um significante vazio, exemplifica os limites desse regime político:
A noção de democracia como um processo sempre em construção, que, por sua
natureza, tem potencialidades muito alargadas de incorporação e inclusão,
apenas com um limite fundamental e constituidor: (...) a democracia, para não
perder a razão de existir, não pode incorporar a sua negação, isto é, discursos que
pretendam legitimar a exclusão (PINTO, 1999, p. 97).
Laclau, num artigo intitulado “A morte e a ressurreição da teoria da ideologia”
reafirma os limites de um significante vazio:
Uma cadeia de equivalências pode, em princípio, expandir-se indefinidamente,
mas, uma vez que um conjunto de relações centrais está estabelecido, essa
expansão é limitada. Certas novas relações seriam simplesmente incompatíveis
com as particularidades integrantes da cadeia (LACLAU, 2000a, p. 140-141).
Além dos limites de um significante vazio, duas outras conseqüências devem ser
destacadas. A primeira diz respeito à função dos significantes vazios; esses renunciam suas
identidades diferenciais (evidentemente que não de forma completa) para serem pontos
nodais para os quais convergem diversas identidades que anteriormente não estavam
articuladas entre si. Outra conseqüência diz respeito à conclusão lógica de que quanto mais
87
estendida for a cadeia de equivalências de um determinado significante vazio, menor será a
capacidade de cada luta concreta permanecer fechada em sua demanda particular.
2.3.1.4 O terreno no qual a hegemonia se expande é o de uma generalização das
relações de representação como condão de constituição de ordem social
Um ponto nodal quando articula em torno de si uma série de momentos diferenciais
está exercendo uma função de representação. Já foi visto acima o funcionamento de uma
prática articulatória e seu resultado discursivo. Neste momento, será dado o sentido da
representação, bem como as suas condições de exercício numa ordem hegemônica. Tome-
se inicialmente as palavras de Laclau:
A representação é o processo no qual o outro – o representante – “substitui” e ao
mesmo tempo “encarna” o representado. As condições de uma perfeita
representação parecem estar dadas quando a representação é um processo direto
de transmissão da vontade do representado quando o ato de representação é
totalmente transparente em relação a esta vontade. Isto pressupõe que a vontade
esteja plenamente constituída e que o papel do representante se esgote nesta
função de intermediação. Desta forma, a opacidade inerente a toda substituição e
encarnação deve ser reduzida a um mínimo: o corpo que a encarnação tem lugar
deve ser quase invisível. Neste ponto, contudo, é que começam as dificuldades.
Nem do lado representante, nem do lado do representado se dão as condições de
uma perfeita representação (LACLAU, 1996, p. 172).
Dessa forma, as condições para uma “perfeita representação” não são evidentemente
satisfeitas na lógica política, uma vez que, por exemplo, o próprio ato de representar de um
parlamentar não está restrito ao grupo representado, pois ele, na medida do possível, é
88
representante da população em geral. A representação política é, portanto, sempre falha,
pois a vontade do representado nunca é satisfeita integralmente, uma vez que o universo da
representação é sempre complexo e resultante de disputas políticas de múltiplos interesses
para recursos, como se sabe, sempre escassos. Contudo, a representação é, ao mesmo tempo
em que é falha, necessária.
A representação direta de uma totalidade é inatingível; sendo necessária, ela terá
de ser, contudo, alguma coisa presente no nível da representação. Ela será
necessariamente uma representação distorcida, pela razão de não corresponder a
qualquer objeto possível. Os sentidos da representação são aqueles produzidos
pelas diferenças particulares. O processo de representação pode somente se
constituir quando uma destas diferenças se divide entre o seu caráter diferencial
e um novo papel ao qual ela assume: a representação de uma totalidade
impossível. Esta relação, quando uma certa particularidade assume a
representação de uma totalidade inteiramente incomensurável, na teoria do
discurso, é chamada de relação hegemônica (LACLAU, 2003, p. 4-5).
É importante, contudo, enfatizar que não se trata de negar os conteúdos dos demais
elementos da cadeia equivalencial, pois esses também estão presentes, uma vez que, como
já se fez referência, é possível estabelecer, no universo discursivo, a diferença entre o que é
efetivamente uma estrutura discursiva e o que são individualmente seus elementos
articulados. Se isso não for possível, não se está diante de uma cadeia de equivalências, ou
seja, de diferenças articuladas em torno de um projeto discursivo comum (ainda que
precário e contingencial), mas tão-somente diante de uma igualdade, ou seja, diante de um
só elemento.
Para explicar a possibilidade da hegemonia a partir do processo de representação
política no âmbito teórico discursivo, é preciso entender que a representação, do ponto de
89
vista do representante, é ao mesmo tempo o momento em que este “substitui” e “encarna” o
representado. “Encarnação” é uma categoria que Laclau não utiliza com fins meramente
retóricos, uma vez que seu sentido é bem específico. Tal expressão tem notadamente
origem religiosa, sendo um de seus mais caros exemplos, o dogma que afirma que Cristo
encarna em si a natureza de Deus. No momento em que Cristo encarna a Deus, torna-se seu
filho e seu mais perfeito representante perante os homens.
Evidentemente que pelo menos um ponto referente a esta origem religiosa de
encarnação deve ser relevado. Para a cristandade, Cristo será sempre a encarnação de Deus
e, portanto, seu representante. Contudo, em termos políticos, a representação, e sua
conseqüente encarnação, tem sempre a companhia da contingência e da precariedade. Isso
quer dizer que inicialmente não há qualquer previsibilidade de que um determinado
discurso seja necessariamente capaz de assumir a representação de outros discursos. A
relação de representação se dá no momento em que um discurso consegue universalizar
seus conteúdos – deixando, portanto de expressar sua mera particularidade – passando a
representar e a encarnar outras particularidades. No momento em que a generalização das
relações representação ocorre tem-se, conforme Laclau, o momento da relação hegemônica,
ou seja, a expressão de um sentido de ordem política, social, econômica, religiosa etc.
90
2.4 Considerações finais
Neste capítulo, foram apresentados os elementos teóricos norteadores da análise que
começará a ser realizada a partir do próximo capítulo. As noções de discurso, antagonismo
e hegemonia serão centrais para o entendimento da disputa política do período. Assim, o
esforço a partir de agora nesta tese consistirá em explicitar a luta discursiva travada entre
posições políticas antagônicas alinhadas à esquerda e à direita que redundará na construção
de uma nova hegemonia.
Desta forma, nos dois principais momentos da análise que se seguirá, será enfocada a
crise de hegemonia que passou a enfrentar o sistema político brasileiro após a renúncia de
Jânio Quadros. Com a real possibilidade que se desenhava para João Goulart assumir
efetivamente a Presidência da República e com ele uma série de sujeitos políticos
vinculados inclusive a matizes de uma esquerda radical, a direita sentiu-se ameaçada. O
“comunismo” rondava o país e os ministros militares de Jânio Quadros foram os primeiros
sujeitos a tomar uma atitude para evitar tal “perigo”. Com o retorno do presidencialismo,
após o plebiscito de janeiro de 1963, o “espectro do comunismo” passou novamente a
rondar o país, e uma reedição da conspiração de 1961 teve lugar, inviabilizando no futuro
próximo qualquer projeto reformista de Jango.
Goulart inicia e termina seu turbulento mandato buscando administrar a terrível
instabilidade política de seu período. As posições de direita e de esquerda se antagonizam
91
ao longo de toda aquela quadra da década de 1960, numa clara disputa de hegemonia que,
como se sabe, finalmente redunda numa nova ordem política a partir de abril de 1964.
92
Parte 2
A crise da renúncia de Quadros e o golpe parlamentarista
93
Estamos quites, irmão vingador.
Desceu a espada.
e cortou o braço.
Cá está ele, molhado em rubro.
Dói o ombro, mas sobre o ombro
tua justiça resplandece.
(...)
Mutilado, mas quanto movimento
em mim procura ordem.
O que perdi se multiplica
e uma pobreza feita de pérolas
salva o tempo, resgata a noite.
Irmão, saber que és irmão,
na carne como nos domingos.
Rolaremos juntos pelo mar...
Agasalhado em tua vingança,
puro e imparcial como um cadáver que o ar
[embalsamasse,
serei carga jogada às ondas,
mas as ondas, também elas, secam,
e o sol brilha sempre.
Sobre minha mesa, sobre minha cova,
[como brilha o sol!
Obrigado, irmão, pelo sol que me deste,
na aparência roubando-o.
Já não posso classificar os bens preciosos.
Tudo é precioso...
E tranqüilo
como olhos guardados nas pálpebras.
Carlos Drummond de Andrade.
94
3 OS DIAGNÓSTICOS DE DESORDEM E AS SOLUÇÕES DE
ORDEM DOS MINISTROS MILITARES DE JÂNIO QUADROS
Neste capítulo, serão analisados os diferentes “diagnósticos de desordem” e as
“soluções de ordem” constantes no discurso dos ministros militares de Jânio Quadros logo
após a sua renúncia em 25 de agosto de 1961. O discurso que será aqui denominado de
“solução militar” teve origem no veto emitido, em relação à posse de João Goulart, pelos
ministros marechal Odílio Denys, da Guerra, brigadeiro-do-ar Gabriel Grum Moss, da
Aeronáutica, e vice-almirante Sílvio Heck, da Marinha. Este capítulo demonstrará que o
discurso “solução militar” recebeu ainda o apoio, por vezes velado, por vezes ostensivo, de
políticos como o presidente da Câmara Federal, então no exercício da Presidência da
República, o deputado Ranieri Mazzilli.
95
3.1 As manifestações do discurso “solução militar” anteriores ao manifesto dos
ministros militares
Nesta seção, serão analisados os seguintes documentos produzidos pelos
sustentadores do discurso “solução militar”: a troca de mensagens pelo rádio entre o
general Machado Lopes, do III Exército, e o ministro da Guerra, marechal Odílio Denys
(27 de agosto); as mensagens trocadas entre o gabinete do ministro da Guerra e o comando
do III Exército (27 de agosto) e ; as mensagens do General Orlando Geisel, do gabinete do
ministro da Guerra, ao comandante do III Exército (28 de agosto).
Desta forma, pela ordem, inicialmente será apresentada a troca de mensagens por
rádio entre o general Machado Lopes, comandante do III Exército, sediado em Porto
Alegre, e o ministro da Guerra, marechal Odílio Denys. Exaradas em 27 de agosto, as
referidas mensagens versam sobre dois pontos principais. O primeiro deles refere-se à
disposição de Leonel Brizola de resistir contra qualquer ação impeditiva à posse de Goulart.
O segundo ponto tem a ver com a intenção de oficiais lotados no III Exército de apoiar a
ação do então governador do Estado do Rio Grande do Sul. Veja-se, portanto, o início da
referida troca de mensagens:
Machado Lopes – Governador Brizola declarou-me resistirá contra ação impeça
posse de João Goulart. Coordena ação BL nesse sentido. Tenho percebido
grande número de oficiais idéia ser mantido princípio constitucional, inclusive
96
Comandante 3ª DI e 1ª DC. Todas unidades cumprindo ordens manutenção
ordem pública. Situação tensa, porém calma todo III Exército
23
.
A primeira observação a se fazer, tendo por base esse primeiro excerto, diz respeito à
posição de Machado Lopes em relação à sucessão de Quadros. Ele afirma que tanto Brizola
como o Comandante da 3ª DI e da 1ª DC entendiam que deveria ser mantido o “princípio
constitucional” que significava necessariamente a posse de Goulart. Quando Machado
Lopes faz essa afirmação, é possível aduzir, ao mesmo tempo, dois elementos. O primeiro
deles reside no fato de que quem estiver contra o princípio constitucional estaria contra a
lei, no caso específico referindo-se a Odílio Denys, seu interlocutor da troca de mensagens,
o qual mostra-se contrário à posse de Goulart. O segundo elemento possível de ser aduzido
nesse primeiro momento de trocas de mensagens está subentendido: ele, Machado Lopes, é
também defensor da manutenção do referido “princípio constitucional”, o que restará claro
ao final da análise deste documento e, mais claro ainda, quando o comandante do III
Exército se constituir na maior liderança da insurreição militar contra a decisão dos
ministros militares de impedir a posse de Goulart. A última frase desse excerto faz
referência à disciplina militar: o marechal Lopes informa ao ministro da Guerra, ou seja, ao
seu superior imediato, que a ordem e a segurança pública estavam mantidas na jurisdição
do III Exército. Na seqüência do documento:
Odílio Denys – Elementos comunistas Congresso estão perturbando encontro
solução legal crise decorrente renúncia presidente. Marechal Lott envolvido por
tais agitadores, lançou manifesto subversivo forçando ministro Guerra
determinar sua prisão. Ministro pretende defender instituições e manter a lei e
ordem em todo país, mesmo que para isso tenha que impedir posse Jango.
23
Todas as citações referentes ao corpus discursivo desta tese são feitas a partir da grafia encontrada nos
documentos originais. Será, portanto, comum encontrar nos excertos erros ortográficos ou de outra natureza.
97
Conveniente chamar e reter qualquer pretexto Comandante 3ª DI e 1ª DC Porto
Alegre.
A mensagem de Denys contém uma série de informações que merecem análise. A
primeira delas refere-se aos “elementos comunistas” infiltrados no Congresso. A principal
argumentação, que será sobejamente analisada quando da publicação do “Manifesto dos
ministros militares”, é que a inconveniência da posse de Jango se justifica porque em seu
futuro governo estariam presentes elementos comunistas e agitadores em geral que
perturbariam a ordem no país. Além disso, a mensagem traz ainda a informação de que o
marechal Lott teria sido envolvido por tais elementos comunistas quando lançou o seu
manifesto de cunho “subversivo”
24
. Subversivo aqui deve ser entendido como contrário à
ordem, à lei. A conclusão lógica que teve Denys, argumentando a Lopes, foi a de que ele,
como ministro da Guerra, foi “forçado” a mandar prender Lott, uma vez que todo ato
subversivo é, por conseqüência, um ato ilegal e, portanto, Denys, na condição de ministro
da Guerra e defensor da lei e da ordem, foi “forçado”, impelido a prender Lott.
A passagem mais curiosa é, no entanto, a que segue: “ministro pretende defender
instituições e manter a lei e ordem em todo país, mesmo que, para isso, tenha que impedir
posse Jango”. Esse trecho indica que o “ministro pretende defender instituições e manter a
lei e ordem em todo país, mesmo que para isso (...)” tenha de descumprir a própria lei. Na
verdade, o que Denys está inferindo é que ele próprio impediria a posse de Jango – o que é
um ato ilegal – pois com esse ato ele estaria mantendo a lei e a ordem do país, já que com a
24
Trata-se do “Manifesto à Nação”, do marechal Henrique Teixeira Lott, que será analisado no próximo
capítulo.
98
posse de Jango, segundo sua análise, essas estariam ameaças por causa de elementos
comunistas que se infiltrariam em seu governo. Finalizou sua mensagem aconselhando
Machado Lopes a reter qualquer pretexto do Comandante da 3ª DI e da 1ª DC de Porto
Alegre. O pretexto do referido Comandante era o de, segundo Lopes, manter-se pela
solução legal à sucessão de Quadros. A troca de mensagens é finalizada por Machado
Lopes:
Machado Lopes – Entendido. Vou providenciar. Situação Porto Alegre muito
tensa. Governador Brizola organizou defesa palácio e parece ter distribuído
armamentos civis seus adeptos. Estou vigilante manutenção ordem. Seria todo
conveniente encontrar solução legal.
Nessa mensagem, Lopes informa, agora mais detalhadamente, sobre as pretensões
reais de Brizola de resistir em nome da posse de Jango. Além disso, o que parece mais
importante nesse último excerto é a explicitação do que antes havia ficado apenas
subentendido por Lopes no início da troca de mensagens. Nesse sentido, a afirmação “seria
todo conveniente encontrar solução legal”, quer dizer que Machado Lopes entende que a
melhor solução para o impasse é mesmo a defendida por Brizola e pelo Comandante da 3ª
DI e da 1ª DC de Porto Alegre, ou seja, a posse de Goulart, chamada por Lopes, no início
das trocas de mensagens, de “princípio constitucional”. Nesse sentido, Lopes está
reafirmando que Denys está contra a lei, portanto, contra o princípio constitucional, o qual
Brizola, o Comandante da 3ª DI e da 1ª DC de Porto Alegre e ele próprio, Machado Lopes,
estavam de acordo.
99
Os dois próximos documentos a serem tratados não visam mais a argumentar sobre o
mérito da posse de Goulart, como foi o caso da primeira mensagem analisada. Pelo
contrário, para o Ministério da Guerra, a “solução militar” precisava ser imediatamente
implementada e o foco principal da ação é a resistência liderada pelo governador do Rio
Grande do Sul. Nesse sentido, os dois próximos documentos, direcionados ao III Exército
com base no RS, servem justamente para compelir a ação de Brizola.
Nesse sentido, será analisada primeiramente uma nova troca de mensagens entre o
gabinete do ministro da Guerra e o Comando do III Exército. O teor geral das mensagens é
a movimentação da resistência liderada por Brizola e a necessidade de o III Exército
impedir, segundo o Ministério da Guerra, o crescimento do que será chamado de “inimigo
em potencial”. Inicia-se, portanto, por um longo trecho da mensagem oriunda do III
Exército:
III Exército – Comunico III Exército interceptou mensagem do governador
endereçada ao Dr. Jango, oferecendo tropas do Rio Grande para serem enviadas
via aérea para Brasília, a fim de garantir sua posse. Governador está armando o
povo e provocando agitações no interior do Estado. Alguns elementos Brigada
demonstram desejos cooperar com o Exército.
III Exército – Devido forte tensão, é possível menor incidente desencadeie
guerra civil com graves conseqüências. Comando Exército tem acompanhado
apenas essas ações. Operações repressão em condições de serem desencadeadas
momento oportuno.
III Exército – Palácio cercado barricadas à distância. Povo está sendo ativado
contra Forças Armadas. Área palácio ocupada cerca mil homens intensamente
armados e muita munição.
III Exército – General Oromar Osório chamado Porto Alegre volta amanhã.
General Pery Bevilacqua retorna Santa Maria após cordial entendimento.
III Exército – Tropas 6ª e 5ª DI firmes a assim como 2ª e 3ª DC. 3ª DI duvidosa.
Tropa Porto Alegre nada. Quadros sargentos sim. Generais Pery e Oromar
quando julgar conveniente seguirão Rio.
100
Nesta mensagem, está nítida a preocupação do Comando do III Exército de que a
situação no Rio Grande do Sul inspirava cuidados extremos, visto que, segundo o
documento em questão, havia a iminente ameaça de eclosão de uma guerra civil. O
Comando do III Exército não se demonstra ainda diretamente contrário às ordens do
ministro da Guerra e afirma estar monitorando o movimento de resistência armado liderado
por Brizola. A mensagem faz ainda uma breve análise do comportamento de suas tropas
tendo em vista à crise desencadeada e demonstra preocupação com a possibilidade de que
parte do contingente do III Exército se insurja contra a determinação de impedimento de
João Goulart. Evidentemente que aqui está estampado que a disciplina militar estaria
mantida pelo Comando do III Exército para com o órgão máximo da hierarquia militar, o
Ministério da Guerra. Na seqüência do documento, seguem as últimas trocas de mensagens
entre o Ministério da Guerra e o III Exército:
Ministério da Guerra (presente na recepção o general Machado Lopes) – É
necessário firmeza e energia do III Exército a fim de não permitir cresça força
do adversário potencial que tem todo o interesse em manter a ordem e de que o
Sr. João Goulart assuma a presidência. Reitera a ordem a fim de que sejam
suspensas as irradiações. Trata-se estratagema que favorecerá inimigo em
potencial.
Ministério da Guerra – Sr. Ministro acaba determinar sejam imediatamente
suspensas irradiações Rádio Guaíba e Rádio Farroupilha.
III Exército – General Machado Lopes deseja Ministério Viação providências
diretamente governador sentido devolução imediata Rádio Guaíba.
Machado Lopes recebe a ordem de não permitir o crescimento da força do “adversário
potencial”. O “adversário potencial”, neste particular, é Leonel Brizola e sua recém iniciada
“Cadeia da Legalidade”, a qual, a partir de emissões radiofônicas, relatava os
acontecimentos que se sucediam no Rio Grande do Sul naquele conturbado momento,
101
servindo de veículo para a propagação da posição legalista para todo o Brasil. Aqui fica
claro também que o Ministério da Guerra está preocupado em vencer a “guerra ideológica”
que se trava no momento. Silenciar qualquer tipo de emissão radiofônica oriunda de Brizola
traduz-se numa questão militar importante. Daí a ordem do Ministério para a suspensão das
irradiações das rádios Guaíba e Farroupilha que estavam sendo usadas para a difusão dos
propósitos legalistas. Em resposta, o III Exército curiosamente afirma que solicitará ao
Ministério da Viação que tome as providências no sentido da devolução imediata da Rádio
Guaíba e, portanto, não responde afirmativamente à ordem exarada pelo Ministério da
Guerra, ou seja, que é para o próprio III Exército suspender as irradiações legalistas.
O último documento que será analisado antes do “Manifesto dos ministros militares”
está na mesma linha da do anterior, ou seja, trata de ordem emanada pelo Ministério da
Guerra ao III Exército para que este execute ações impeditivas a qualquer esforço favorável
à posse de Goulart. Reafirma-se, portanto, que se trata de uma ordem e não de uma
tentativa de convencimento sobre o mérito do discurso “solução militar”. Assim, o
documento emitido pelo general Orlando Geisel, do gabinete do ministro da Guerra, ao
comandante do III Exército, é uma clara ordem de ataque a Leonel Brizola, contendo,
inclusive, a possibilidade do bombardeio do Palácio Piratini, sede do governo do Estado do
Rio Grande do Sul, local onde ocorriam as manifestações populares legalistas. O
documento, datado de 28 de agosto, inicia assim:
1) O general Orlando Geisel transmite ao general Machado Lopes, Comandante
do III Exército, a seguinte ordem do ministro da Guerra:
102
O III Exército deve compelir imediatamente o Sr. Leonel Brizola a pôr termo à
ação subversiva que vem desenvolvendo e que se traduz pelo deslocamento e
concentração de tropas e outras medidas que competem exclusivamente às
Forças Armadas.
O governador colocou-se, assim, fora da legalidade. O comandante do III
Exército atue com a máxima energia e presteza.
A mensagem emanada pelo ministro da Guerra tem por objetivo “compelir
imediatamente” a “ação subversiva” de Leonel Brizola. Tal “ação subversiva” é
identificada na mensagem como atitude coordenada pelo governador “de deslocamento e
concentração de tropas e outras medidas que competem exclusivamente às Forças
Armadas”. Tomando esse ato, o ministro da Guerra entende que Brizola “colocou-se fora
da legalidade”. Conseqüentemente, manda o III Exército “compelir imediatamente” tal ação
ilegal e contrária também à ordem pública.
O que se demonstra interessante nesta ordem é que ela, em nenhum momento,
discorre acerca das razões que levaram Brizola a se colocar “fora da legalidade”. Na
verdade, por se tratar de uma ordem militar, qualquer argumentação sobre os méritos da
mesma é dispensável: para a hierarquia militar, uma ordem superior existe simplesmente
para ser cumprida pelos escalões inferiores. Contudo, mesmo nessa ordem existe uma
preocupação argumentativa, no sentido de que se está buscando convencer o interlocutor
dos méritos da mesma. Do contrário, por que argumentar? Como parte da argumentação,
Brizola não poderia ter qualquer tipo de razão acerca do ocorrido, uma vez que, entre prós e
contras, poderia ser que o interlocutor, o general Machado Lopes, não fosse devidamente
convencido, eximindo-se, portanto, de cumpri-la. Dessa forma, o ministro da Guerra
resolve simplesmente ignorar o grave episódio político que ocorria – o qual fornecia os
103
elementos reais que sustentavam a atitude de Brizola – para tomar a ação do governador do
Rio Grande do Sul como um ato descontextualizado e ilegal. A estratégia discursiva da
“solução militar”, nesse particular, é a seguinte: negar totalmente as razões do inimigo,
construindo argumentos que tergiversam em relação as suas próprias falhas e fraquezas
discursivas.
Nesse sentido, o Ministério da Guerra ordena o ataque a Brizola, desconsiderando
completamente o porquê das ações políticas e militares tomadas pelo governador e
justificando que ele está, ao arrepio da lei, praticando ações militares que competem
somente às Forças Armadas. Foi, portanto, ordenada ao general Lopes a repressão a
Brizola, não porque ele estaria cometendo atos ilegais do ponto de vista de impedir a posse
de Goulart, ato que, na verdade, fazia o ministro da Guerra. É ordenado o ataque porque o
governador está defendendo stricto sensu a Constituição com as armas que ele próprio
dispõe.
Na mensagem, fica subentendido que o próprio ministro da Guerra é quem na verdade
estaria cometendo um ato ilegal, pois não se discutia mais o mérito da legalidade na
sucessão de Jânio Quadros. O gabinete da Guerra criava artifícios de ilegalidade às ações
de Brizola que, mesmo se vistos sob a lógica positiva da frieza jurídica, mostravam-se
irreais, uma vez que as tropas movimentadas pelo governador eram, na verdade, formadas
pelos próprios soldados da Brigada Militar, a polícia militar do Rio Grande do Sul, que
constitucionalmente recebe ordens diretas do governador do Estado. Além disso, do ponto
de vista militar, essa “movimentação de tropas” representa efetivamente o único meio que
104
o governador do Rio Grande do Sul dispõe no momento para resistir à ação ilegal do
ministro da Guerra de impedir a posse de um presidente da República legitimamente eleito
pelo povo. Na seqüência da ordem:
2) Faça convergir sobre Porto Alegre toda tropa do Rio Grande do Sul que julgar
conveniente, inclusive a 5ª DI, se necessário.
3) Empregue a Aeronáutica, realizando inclusive o bombardeio, se necessário.
4) Está a caminho do Rio Grande do Sul uma força-tarefa da Marinha.
5) Qual o reforço de tropa de que necessita?
6) Há aqui um boato de que o general Muricy viria ao Rio. O ministro da Guerra
não quer acreditar nessa notícia e julga que o momento não é mais para
parlamentar, mas requer ação firme e imediata.
7) O ministro da Guerra confia em que a tropa do III Exército cumprirá seu
dever.
O teor dessa segunda e última parte da ordem do Ministério da Guerra representa, na
acepção mais stricto sensu da teoria do discurso, a noção de antagonismo. Retomando em
linhas gerais esta noção, tem-se que discursos antagônicos são discursos que se negam
reciprocamente. Na concepção de Mouffe (2000), discursos antagônicos são discursos
inimigos, ou seja, a presença completa de um significa necessariamente a destruição
completa do outro. Conforme Laclau, em se tratando de antagonismo “o que nele se
expressa não é minha identidade, senão a impossibilidade de constituí-la; a força que me
antagoniza nega minha identidade no sentido mais estrito do termo” (LACLAU, 1993, p.
34). Cotejando elementos dispostos no excerto acima com a noção de antagonismo, pode-
se verificar como o discurso legalista de Brizola, para o ministro da Guerra, representa uma
ameaça inimiga, um legítimo antagonismo, o que ficou claro quando o ministro ordenou ao
Comando do IIII Exército, inclusive, o bombardeio do Palácio Piratini, “se necessário”
fosse. Nesse sentido, a ordem está claramente expressa: é necessário, para que o discurso
105
“solução militar” sobreviva nesse momento de luta antagônica que o discurso “legalista”
seja completamente destruído. A radicalidade da ordem era tanta que se chegou ao extremo
de preparar um possível ataque aéreo ao Palácio – que só não se efetivou em função de
uma rebelião ocorrida na base aérea de Canoas – ignorando a presença maciça dos
populares que faziam vigília em frente à sede do governo gaúcho durante todo o episódio
da crise sucessória de Jânio Quadros. Na próxima seção, serão analisados os argumentos
produzidos pelos ministros militares, justificando a “inconveniência” da posse de João
Goulart, a partir do “Manifesto dos Ministros Militares”.
3.2 O manifesto dos ministros militares: o discurso oficial da “solução militar”
O Manifesto dos ministros militares, lançado em 30 de agosto, ou seja, após 5 dias da
renúncia de Jânio Quadros da respectiva crise política que se sucedeu, representou a
posição oficial dos ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica, respectivamente, o
marechal Odílio Denys, o vice-almirante Sílvio Heck e o brigadeiro-do-ar Gabriel Grum
Moss. Nesse sentido, como era de se esperar, a partir da leitura prévia das trocas de
mensagens já analisadas, a posição dos ministros foi plenamente contrária à posse de
Goulart, constituindo seu corte antagônico o discurso legalista de Brizola e Lott.
O conteúdo do Manifesto visa a justificar a “inconveniência” de Jango assumir a
Presidência da República, a partir da construção de um argumento, tido por seus
106
enunciadores, como de cunho legal e constitucional. Dessa forma, inicia-se a análise
tomando o primeiro parágrafo do referido Manifesto
25
:
No cumprimento de seu dever constitucional de responsáveis pela manutenção
da ordem, da lei e das próprias instituições democráticas, as Forças Armadas do
Brasil, através da palavra autorizada dos seus ministros, manifestam à Sua
Excelência, o sr. presidente da República, como já foi amplamente divulgado, a
absoluta inconveniência, na atual situação, do regresso ao país do vice-
presidente, sr. João Goulart.
A primeira questão que merece relevo na introdução do “Manifesto dos ministros
militares” é que a “inconveniência, na atual situação, do regresso ao país do vice-
presidente, sr. João Goulart” é manifestada, segundo os ministros, a partir do cumprimento
“constitucional”, “da ordem, da lei e das próprias instituições democráticas”. Por outras
palavras, conforme os signatários, eles se encontram respaldos pela legislação que lhes
obriga a manter a ordem interna. A lei à qual os ministros buscam amparo é a própria Carta
Constitucional de 1946
26
, que, no seu artigo 177 estatui: “destinam-se as Forças Armadas a
defender a Pátria e garantir os poderes constitucionais, a lei e a ordem”.
Note-se que o artigo 177 da Constituição Federal está em “consonância” com o
disposto no primeiro parágrafo do Manifesto em análise. Nesse sentido, os ministros,
prevendo que o retorno ao Brasil e a conseqüente posse do vice-presidente representaria
uma ameaça ao cumprimento da lei e da ordem no país, querem assim impedi-la para que
25
O texto do Manifesto dos Ministros Militares foi extraído da obra “1961: a crise da renúncia e a solução
parlamentarista” (LABAKI, 1986, p. 148-150).
26
Os artigos da Carta Constitucional de 1946 foram extraídos da obra, versão CD-ROM, “Textos Políticos da
História do Brasil” (BONAVIDES e AMARAL, 2002).
107
justamente a lei e a ordem sejam efetivamente mantidas e não ameaçadas. No parágrafo
seguinte manifestam:
Numa inequívoca demonstração de pleno acatamento dos poderes
constitucionais, aguardaram elas [as Forças Armadas], ante toda uma trama de
acusações falsas e distorções propositadas, sempre em silêncio, o
pronunciamento solicitado ao Congresso Nacional. Decorridos vários dias, e
como sintam o desejo de maiores esclarecimentos por parte da opinião pública, a
que inimigos do regime e da ordem buscam desorientar, vêm-se constrangidas
agora, com a aquiescência do sr. Presidente da República, a vir ressaltar, de
pública, algumas das muitas razões em que fundamentaram aquele juízo.
No parágrafo acima, os ministros militares reafirmam o pleno “acatamento dos
poderes constitucionais” diante da atitude que naquele momento tomavam. Assim, eles
esperaram um pronunciamento oficial do Congresso Nacional para que aquele Poder
manifestasse a inconveniência do retorno de Goulart, pronunciamento que, aliás, não
ocorreu
27
. É de se notar que tal espera de uma atitude do Congresso sustentava-se no fato
de que a suspensão do chefe do executivo federal é ato constitucional de competência do
Congresso Nacional. O artigo 59, inciso I, da Constituição Federal de 1946 estatui que
compete privativamente à Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria absoluta de seus
membros declarar a procedência ou não das acusações contra o Presidente da República.
27
Os artigos 59, 62, 88 e 89 da Constituição Federal de 1946 estabelecem o rito para a suspensão dos poderes
do presidente: “Art. 59. Compete privativamente à Câmara dos Deputados: I – a declaração, pelo voto da
maioria absoluta de seus membros, da procedência ou improcedência da acusação contra a Presidente da
República, nos termos do art. 88, e contra os ministros de Estado, nos crimes conexos com os do Presidente
da República”; “Art. 62. Compete privativamente ao Senado Federal: I – julgar o Presidente da República nos
crimes nos crimes de responsabilidade e os ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com
os daquele”; “Art. 88. O Presidente da República, depois que a Câmara dos Deputados, pelo voto da maioria
absoluta de seus membros, declarar procedente a acusação, será submetido a julgamento perante o Supremo
Tribunal Federal nos crimes comuns, ou perante o Senado Federal nos crimes de responsabilidade. Parágrafo
único. Declarada a procedência da acusação, ficará o Presidente da República suspenso das suas funções”;
Art. 89. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentarem contra a
Constituição Federal e, especialmente, contra: (...) IV – a segurança interna do País” (BONAVIDES e
AMARAL, 2002).
108
Declarada a procedência, passa ser de competência também privativa, desta vez do Senado
Federal, nos termos do artigo 62, inciso I, o julgamento do Presidente da República em
relação aos crimes de responsabilidade cometidos por este. Os crimes de responsabilidade
estão arrolados no artigo 89 da Carta Magna. Dá-se, nesse sentido, especial destaque ao
parágrafo IV deste artigo, o qual estabelece como crime de responsabilidade do Presidente
da República aquele que atentasse contra “a segurança interna do País”, o que está, segundo
o documento, em “consonância” com a preocupação dos ministros militares em relação à
ordem interna mencionada no primeiro parágrafo do Manifesto. Já o artigo 88, parágrafo
único, CF, estatui que, uma vez declarada a procedência da acusação, fica o Presidente da
República suspenso de suas funções.
Outro argumento exarado pelos ministros militares neste trecho em relação à
legalidade do veto a Goulart, é que o mesmo tinha “a aquiescência do sr. presidente da
República”. No momento, interinamente, exercia a Presidência da República o presidente
da Câmara dos Deputados, o deputado Ranieri Mazzilli. Segundo o Manifesto, os ministros
agiam legalmente nos termos do art. 176 da Carta Constitucional conforme segue:
Art. 176. As Forças Armadas, constituídas essencialmente pelo Exército,
Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas com
base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da
República e dentro dos limites da lei.
Quando os ministros mencionam que agem com a aquiescência do presidente da
República, eles buscam demonstrar que estão sob sua “autoridade suprema”. Além disso,
“aquiescência” – que significa assentimento ou anuência – infere o sentido de delegação, de
109
concordância com o ato (o veto a Goulart) que estava sendo tomado naquele momento por
parte do chefe do Executivo a partir da ação dos ministros militares. Nesse sentido, aduz o
documento que os ministros estavam duplamente amparados pela lei: por um lado,
esperaram, em vão, um posicionamento prévio do Congresso Nacional no sentido da
suspensão dos poderes presidenciais de João Goulart; por outro lado, não agiram de forma
isolada, mas com a “aquiescência” do presidente da República em exercício, o deputado
Ranieri Mazzilli.
O Manifesto tinha como argumento principal sempre a manutenção da ordem interna
e o risco de que essa estaria correndo no caso da efetivação da posse de João Goulart. Para
tanto, construíram nos terceiro e quarto parágrafos um breve histórico da trajetória política
de Goulart, visando a demonstrar o perigo que o então vice-presidente apresentava à ordem
interna. Iniciam esta trajetória histórica de “agitador” na época em que Goulart exerceu o
cargo de ministro do Trabalho no governo constitucional de Getúlio Vargas:
Já ao tempo em que exercera o cargo de ministro do Trabalho, o sr. João Goulart
demonstrara, bem às claras, suas tendências ideológicas incentivando e mesmo
promovendo agitações sucessivas e freqüentes nos meios sindicais, com
objetivos evidentemente políticos e em prejuízo mesmo dos reais interesses de
nossas classes trabalhadoras. E não menos verdadeira foi a ampla infiltração que,
por essa época, se processou no organismo daquele Ministério, até em pontos-
chaves de sua administração, bem como nas organizações sindicais, de ativos e
conhecidos agentes do comunismo internacional, além de incontáveis elementos
esquerdistas.
110
No trecho acima, os ministros mencionaram a passagem de Goulart no Ministério do
Trabalho de Vargas e das pressões que o então presidente sofreu para a sua destituição
28
.
Para os militares, Goulart, “bem às claras”, se demonstrava, já em 1954, um “agitador”.
Para além disso, eles atribuíram que suas tendências ideológicas comunistas persistiram
ainda no período como vice-presidente da República de Quadros:
No cargo de vice-presidente, sabido é que usou sempre sua influência em animar
e apoiar, mesmo ostensivamente, movimentações grevistas promovidas por
conhecidos agitadores. E ainda há pouco, como representante oficial, em viagem
à URSS e à China comunista, tornou clara e patente sua incontida admiração ao
regime desses países exaltando o êxito das comunas populares (LABAKI, 1986,
p. 149).
Neste parágrafo, os ministros de Quadros deixam claro que Goulart representa uma
ameaça à ordem em função de suas ligações com o “comunismo internacional”. A posse do
vice-presidente representaria um período inquietador de agitações no país, razão pela qual,
as Forças Armadas, representadas por seus ministros, na condição de cumpridora “de seu
dever constitucional de responsáveis pela manutenção da ordem, da lei e das próprias
instituições democráticas”, não poderiam permitir que a posse se procedesse, uma vez que,
segundo seus “diagnósticos de desordem”, Goulart era o elemento central para instalação
da desordem no país. Nas palavras dos ministros:
28
Em relação à destituição de Goulart, Labaki faz referência nesta passagem: “Com o retorno de Getúlio à
Presidência (1951), era natural que este tivesse em seu afilhado político um fiel colaborador. Assim, em 1953,
Jango foi convidado a assumir o Ministério do Trabalho. Para Getúlio parecia ser the right man in the right
place. Mas a direita, em sua maioria antigetulista, via em Jango um perigoso ‘demagogo sindicalista’,
‘admirador do justicialismo peronista’, e chiou. Vargas e Goulart compraram a briga. Enfrentaram uma
campanha diária de boicote e acusações. A situação tornou-se insustentável em fevereiro de 54, quando Jango
defendeu um aumento de 100% no salário mínimo. Um ‘Memorial de Coronéis’ foi enviado a Getúlio via seu
ministro da Guerra, general Ciro Cardoso. Nele, redigido pelo então tenente-coronel Golbery do Couto e
Silva, 81 oficiais esbravejavam contra a ‘crise de autoridade’, a corrupção desenfreada e o ‘comunismo
111
Estão as Forças Armadas profundamente convictas de que, a ser assim, teremos
desencadeado no país um período inquietador de agitações sobre agitações, de
tumultos e mesmo choques sangrentos nas cidades e nos campos, de subversão
armada, enfim, através da qual acabarão ruindo as próprias instituições
democráticas e, com elas, a justiça, a liberdade, a paz social, todos os mais altos
padrões, de nossa cultura cristã.
Na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade de poder
pessoal ao Chefe da Nação, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida, no
mais evidente incentivo a todos aqueles que desejam ver o país mergulhado no
caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas, infiltradas e
domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em
simples milícias comunistas.
Frise-se que o discurso dos ministros militares, conforme a concepção teórica de
Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (1985), é antagônico em relação à posse de João Goulart.
O antagonismo é a relação que constitui, não adversários, mas inimigos. É o discurso que
propugna a completa negação do outro, que impossibilita, no limite, a ação política, uma
vez que a transforma numa relação de guerra, em que qualquer tipo de entendimento torna-
se impossível. No final do Manifesto, os ministros buscam sujeitos ao seu discurso de
ideologia anticomunista que, em termos práticos visava a impedir a posse de Goulart, seja
pela via legal, já tida como ineficaz, seja pelas armas, a partir de um golpe de Estado. Dessa
forma, segue o Manifesto:
Arrostamos, pois, o vendaval, já esperado, das intrigas e das acusações mais
despudoradas, para dizer a verdade tal como ela é, ao Congresso dos
representantes do povo e, agora, ao próprio povo brasileiro.
Todo discurso é enunciador de ideologia, o qual não se apresenta de maneira
transparente, uma vez que é uma leitura sobredeterminada da realidade. O discurso dos
solerte’. Getúlio entendeu a mensagem. Destituía Jango e o general Ciro Cardoso antes que o destituíssem”
112
ministros visando a impedir a posse de Goulart tinha como enunciação ideológica o fato de
que Jango – uma vez “ligado” ao comunismo internacional, ideologia política tida pelos
ministros militares como promovedora da desordem e da falta de liberdade – deveria ser
impedido de tomar posse em função desta sua comprometedora inclinação que resultaria
“inevitavelmente” num estado de guerra e desordem absolutas. “Dizer a verdade”, tal como
enunciado no excerto acima, impõe a busca de adeptos a essa verdade, uma vez que, ao que
transparece, existe uma mentira a ser denunciada: a de que a posse de Goulart representaria
a continuidade da paz social e constitucional até então vigente no país. Tal busca da
verdade, de “abrir os olhos” do país, tinha imediatamente dois endereços de persuasão: o
Congresso Nacional e a população.
Fica também claro que a intenção primeira dos ministros militares foi a de “alertar” o
Congresso Nacional para o perigo da “desordem”. Nesse particular, sabe-se que o
Congresso não aceitou diretamente a “solução militar”. Não tendo o Congresso apoiado a
“solução militar” desde o início da crise, eis que os ministros de Jânio Quadros, como
resposta, lançaram o presente Manifesto, visando a ampliar os sentidos e a abrangência do
seu discurso para uma entidade abstrata a qual eles denominam “o povo brasileiro”. Isso
representa a constante tentativa do discurso de incorporar mais sujeitos, buscando uma
posição hegemônica no campo da discursividade. No caso específico dos ministros, eles
precisavam da “legitimação popular” para que a “verdade” por eles defendida, ou seja, a
afirmação de que Goulart no poder representaria um período de graves perturbações à
ordem pública, fosse mantida. Se não existir condições para que a “verdade” seja aprendida
(LABAKI, 1986, p. 55-56).
113
pelo maior número possível de sujeitos, não haverá legitimidade para a execução dessa
“verdade”, ou seja, para a execução da “solução militar”. Os ministros militares finalizam
seu Manifesto da seguinte forma:
As Forças Armadas estão certas da compreensão do povo cristão, ordeiro e
patriota do Brasil. E permanecem, serenas e decididas, na manutenção da ordem
pública.
Os ministros estavam decididos a manter a “ordem pública”. Para tanto, tomariam as
medidas preventivas para esse fim. Note-se, no entanto, que a manutenção da ordem
implicaria necessariamente que medidas preventivas fossem tomadas. Medidas as quais os
ministros sofreram acusação por parte de seus oponentes de que, na verdade, eles próprios
estariam promovendo a desordem. Eles, invocando as Forças Armadas como se essas
falassem num uníssono, eram, como o povo brasileiro, “cristãos”, “ordeiros” e “patriotas”.
E, de forma “serena” e “decidida”, em nome da cristandade, da ordem e da pátria
manteriam a ordem pública contra os “não cristãos”, os “desordeiros” e os “não patriotas”.
3.3 Documentos militares após o manifesto dos ministros militares
Nesta seção, serão analisados dois documentos constantes no discurso “solução
militar”, expedidos após o Manifesto dos ministros militares a saber: a) radiograma do
general Cordeiro de Farias ao III Exército (3 de setembro) e; b) telegrama de Cordeiro de
114
Farias ao general Machado Lopes (4 de setembro). Ambos os documentos foram expedidos
também após a promulgação da Emenda Constitucional n° 4 que instituiu o Sistema
Parlamentar de Governo, na Sessão Solene do Congresso Nacional de 2 de setembro de
1961.
Como já dito, ambos os documentos foram expedidos por Cordeiro de Farias ao
general Machado Lopes, os quais acusam Lopes de estar liderando movimento de tropas
gaúchas no litoral catarinense em direção estado do Paraná. É interessante que esse
movimento de tropas estaria ocorrendo mesmo depois da aprovação da emenda
parlamentarista no dia anterior pelo Congresso Nacional. Antes de propriamente ser
apresentado o teor de cada um dos documentos, é importante enfatizar o fato de que o
general Cordeiro de Farias estava, pelo menos formalmente, no comando do III Exército,
tendo em vista a destituição de Machado Lopes do cargo e da nomeação de Farias em 30 de
agosto. É evidente que a maior parte das tropas manteve-se fiel a Lopes, daí a
movimentação de contingente militar comandado por Machado Lopes
29
. Inicia-se, portanto,
com a análise do Radiograma do novo comando do III Exército a Machado Lopes
30
:
29
Após o final da crise político-militar da sucessão de Quadros, Cordeiro de Farias apresentou ao ministro da
Guerra que sucedeu Odílio Denys, Segadas Viana, seu relatório sobre as atividades do III Exército sob seu
comando: “no cumprimento de um dever funcional que me foi imposto pela ordem do Exmo. Senhor
presidente da República em exercício, transmitida verbalmente no dia 28 de agosto de 1961 pelo sr. ministro
da Guerra,e, posteriormente, confirmada pelo Diário Oficial de 30 de agosto de 1961, a qual me investiu no
comando do III Exército, tenho a honra de levar ao conhecimento de V Exa. as atividades desempenhadas por
mim e pelos elementos postos à minha disposição. Em conseqüência da citada nomeação, assumi o comando
do III Exército, e passei, desde logo, a constituir meus EM e QG com os elementos do EMFA e com os que,
gradativamente, me foram postos à disposição pelo Exmo. Sr. Ministro da Guerra, pretendendo, num menor
prazo de tempo, seguir para o território da GU, no que fui obstado pelo estado de sublevação em que se
encontrava seu antigo comandante, exonerado por ato de 29 de agosto de 1961, publicado no Diário Oficial
de 30 de agosto de 1961, e que passou a ameaçar a segurança interna do País” (BONAVIDES e AMARAL,
2002, p. 286.8).
30
Ambos os documentos a serem analisados foram recolhidos de Bonavides e Amaral (2002, p. 286.4-286.5).
115
S/N de 3-9-61 – Acabo de receber informação tropas Rio Grande marcham
litoral catarinense para o norte pt Nessa região há tropas legalistas que têm
ordem de defender-se posição ocupam pt Se houver choques armados general
Machado Lopes será responsável vg perante Forças Armadas vg como iniciador
luta fratricida pt gen. O. Cordeiro de Farias.
O que é importante de destacar nesse radiograma é que Cordeiro de Farias, na
condição de comandante do III Exército, coloca seu oponente, o general Machado Lopes,
na condição de insurgente do ponto de vista militar. Denomina serem as tropas por ele
mesmo comandadas de “tropas legalistas”, em razão de que, tendo sido Lopes exonerado
do comando do III Exército, não teria mais autoridade para movimentar tropas, visto que
essa era atribuição própria de Cordeiro de Farias. Cordeiro de Farias tinha ainda como
argumento contra a insurgência de Lopes, apesar de não aparecer explicitamente no
radiograma, o fato de que a emenda parlamentarista havia sido aprovada pelo Congresso
Nacional na noite anterior, ou seja, não haveria mais razão para haver movimentações
militares, tendo em vista a questão no âmbito político já estar definida. Toda essa
argumentação tinha como intuito a responsabilização de Machado Lopes se por ventura
ocorressem “choques armados”: Machado Lopes seria responsabilizado “perante as Forças
Armadas, como iniciador [de uma] luta fratricida”. Esse radiograma ensejou, no dia
seguinte, a expedição do telegrama que segue abaixo, cujo teor fazia nova referência à
movimentação de tropas, mas que ainda acrescia outros elementos:
Minha força obediente governo dentro de um sistema legal em transição virtude
resolução soberana Congresso. Nessas condições estranho deslocamento suas
tropas porquanto não há se Vossa Excelência está dentro legalidade razões
cobertura defensiva, visando ações contra forças que obedientes seus respectivos
ministros estão agindo rigidamente dentro preceitos constitucionais. Permita-me
116
Vossa Excelência que estranhe ainda que não tenha sido por sua parte cumprida
ordem emanada senhor presidente da República de recolher Rio Grande tropa
que por instruções suas se deslocou para Santa Catarina. Permita-me finalmente
que lhe diga que enquanto eu dentro da cadeia normal de comando estou
obedecendo ordens dos meus superiores acionado pelo meu ministro com
conhecimento e autorização do senhor presidente da República Vossa
Excelência que afirma estar dentro da legalidade desconhece as autoridades
legalmente constituídas do Brasil, a começar pelo ministro da Guerra.
Dentro dessas condições se por insistência de ordens de Vossa Excelência for
desencadeada guerra civil a responsabilidade será exclusivamente sua.
Neste telegrama, a decisão pela instituição do sistema parlamentarista aparece como
argumento para dissuadir a movimentação de tropas realizada por Machado Lopes : “minha
força obediente governo dentro de um sistema legal em transição virtude resolução
soberana Congresso”, significa que Cordeiro de Farias estava, ele próprio, concordando
com a decisão política tomada de forma “soberana” pelo Congresso, o que, segundo o teor
do documento em análise, parecia que Machado Lopes não estava concordando, portanto,
incorrendo em ato ilegal de movimentação de tropas. Outro questionamento que Cordeiro
de Farias faz a Machado Lopes é que se o segundo se achava dentro da legalidade, por que
estava Lopes ainda movimentando tropas? Isso quer dizer, no contexto argumentativo de
Farias, que Lopes estava na ilegalidade por não ter se curvado à decisão soberana do
Congresso Nacional. Finalizou o telegrama dizendo que ele, Cordeiro de Farias, estava sob
as ordens do ministro Guerra e do presidente da República e que Machado Lopes, em
completa insurgência, não acatava os mandamentos expedidos pelo próprio ministro da
Guerra, seu superior hierárquico que o exonerou do comando do III Exército em 29 de
agosto passado. Por fim, Cordeiro de Farias, retomando o que já havia sido dito no
radiograma anterior, afirmou que se ocorresse uma guerra civil, atribuiria a
responsabilidade a Machado Lopes.
117
3.4 A posição de Ranieri Mazzilli, presidente da república em exercício
Nesta seção, será analisada a posição tomada por Ranieri Mazzilli (PSD/SP), que, por
mandamento constitucional, assumiu o exercício da Presidência da República no ínterim
entre a renúncia de Jânio Quadros até a solução da crise político-militar e a efetiva posse de
João Goulart. Será analisado o discurso assumido pelo deputado, a partir de dois
documentos, a saber: a) a comunicação do presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, no
exercício provisório da Presidência da República, sobre a manifestação dos ministros
militares da inconveniência do regresso ao país do vice-presidente João Goulart e; b) a
mensagem de Ranieri Mazzilli à nação postulando seu nome à sucessão de Jânio Quadros
31
.
Ambas as manifestações datam de 28 de agosto. A primeira delas, curta e em tom
direto, trata-se de uma comunicação endereçada ao presidente do Congresso Nacional, a
qual versa sobre a inconveniência, expressa pelos ministros militares, do retorno de Goulart
ao Brasil na condição de presidente da República. A segunda manifestação, em referência à
primeira, trata-se da postulação de seu próprio nome como sucessor de Jânio Quadros até a
eleição do novo chefe de Estado. Veja-se, com mais detalhes, o teor de ambas mensagens
como abaixo segue:
Exmo. Sr. Presidente do Congresso Nacional:
Tenho a honra de comunicar a V. Exa. que, na apreciação da atual situação
política criada pela renúncia do presidente Jânio Quadros, os ministros militares,
31
Ambos os documentos foram extraídos de Bonavides e Amaral (2002, p. 285.6-285.7).
118
na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem interna,
me manifestaram a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional,
do regresso ao país do vice-presidente João Goulart.
Brasília, 28 de agosto de 1961.
Ranieri Mazzilli.
Inicialmente, a mensagem de Mazzilli, notadamente em tom formal, aponta sua
posição, idêntica à dos ministros militares, da inconveniência do regresso de João Goulart
ao país pelas razões que serão expostas a seguir. É importante também destacar que a
mensagem em tela é anterior à edição do “Manifesto dos ministros militares”, que tem data
de 30 de agosto. Feitas essas considerações iniciais, passa-se propriamente à análise da
comunicação.
Trata-se, portanto, de comunicação oficial originada do chefe do Poder Executivo e
endereçada ao chefe do Poder Legislativo. Tem por objetivo principal expor a posição dos
ministros militares, chefes das Forças Armadas, mas subalternos ao presidente da
República, nos termos do art. 176 da Constituição Federal de 1946
32
. O mandamento
constitucional, contudo, que estatuía aos ministros militares a condição de serem
subalternos ao presidente da República, nesse momento, parecia sem efeito.
Em momento de normalidade político-institucional, o chefe do Poder Executivo não
encaminharia comunicação oficial ao chefe do Poder Legislativo, informando-lhe a posição
de seus subalternos. Não fossem as verdadeiras intenções de Mazzilli, que ficarão explícitas
32
Transcreve-se, mais uma vez, o artigo da CF/1946: “Art. 176. As Forças Armadas, constituídas
essencialmente pelo Exército, Marinha e Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes, organizadas
com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República e dentro dos
limites da lei”.
119
a partir da análise do próximo documento, pareceria que o então presidente em exercício
era um mero “refém” dos ministros militares, frise-se, seus subalternos constitucionais. Em
momento algum, um superior hierárquico, no exercício pleno de suas funções
administrativas, encaminharia documento desse teor.
A comunicação expressa que, “na apreciação da atual situação política criada pela
renúncia do presidente Jânio Quadros”, os ministros militares, segundo Mazzilli,
afirmavam que “na qualidade de chefes das Forças Armadas, responsáveis pela ordem
interna”, expressaram a ele próprio – relegado à mera condição de quem comunica
oficialmente a posição dos ministros militares – a “inconveniência” do retorno de Goulart
“por motivos de segurança nacional”.
O gravíssimo teor do comunicado não poderia ser dado, dessa forma, por um
presidente da República, mesmo em exercício, não fosse esse, ou refém dos ministros
militares, ou, pelo contrário, coligado com suas intenções, querendo somente eximir-se da
posição ilegal que naquele momento estava assumindo, quando flagrantemente violava o
mandamento constitucional que garantia as prerrogativas de João Goulart de assumir a
Presidência da República. Nesse sentido, Mazzilli, das duas alternativas acima dispostas,
estava mesmo enquadrado na segunda, ou seja, com o mesmo objetivo dos ministros
militares, ou seja, o de impedir o regresso de Goulart ao Brasil.
120
Viu-se que as razões da inconveniência do retorno de Goulart ao Brasil para os
militares se davam por questões de “segurança nacional”. Há fortes indícios que Mazzilli
concordava com a posição dos ministros. Nesse sentido, na mesma data do comunicado dos
ministros militares, é expedida por Mazzilli uma “Mensagem à nação”, com o seguinte
teor:
Acabo de assinar mensagem comunicando ao Congresso Nacional que, no
exame da atual situação política criada pela renúncia do presidente Jânio
Quadros, os ministros militares, na qualidade de chefes das Forças Armadas,
responsáveis pela segurança interna, me manifestaram a absoluta
inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao país do vice-
presidente João Belchior Marques Goulart.
Desejo informar à nação que, se nas duas Casas do Congresso houverem por
bem reconhecer os motivos invocados na mensagem, me considero
incompatibilizado para candidatar-me, em substituição ao Sr. Jânio Quadros, ao
exercício efetivo da presidência da República.
O primeiro parágrafo trata das intenções golpistas dos ministros militares. Neste
particular, ilumine-se um ponto importante, ou seja, a primeira parte do segundo parágrafo
do documento em análise: “desejo informar à nação que, se nas duas Casas do Congresso
houverem por bem reconhecer os motivos invocados na mensagem (...)”. O que Mazzilli
estaria afirmando nesse ponto?
O que ele estava querendo dizer nesse excerto da mensagem era que, se a Câmara dos
Deputados e o Senado Federal reconhecessem a petição dos ministros militares, ou seja, a
da “inconveniência” do retorno de Goulart ao país, ambas as Casas estariam declarando o
impedimento do vice-presidente por razões de “segurança nacional”. A questão
fundamental era questionar, na seqüência, quais seriam os elementos que os ministros
121
militares tinham que pudessem, com contundência, provar que o retorno ao país de João
Goulart ameaçaria à “segurança nacional”? Como convencer os membros do Congresso
sobre o mérito do que defendia esse grupo? Que documentos apresentar?
Na verdade nenhum documento comprobatório foi efetivamente apresentado pelos
militares, a não ser a vontade dos próprios ministros de não verem João Goulart assumir o
poder político do Estado brasileiro. A questão que se coloca daí é a seguinte: por que então
Mazzilli foi tão passivo a essas pretensões militares? Por que ele não denegou as pretensões
desses ministros como presidente da República em efetivo exercício? Entende-se que a
única explicação para tais questionamentos era também a intenção de Mazzilli de não
aceitar o direito constitucional de Goulart de assumir a Presidência.
Na seqüência do parágrafo continua Mazzilli: “(...) me considero incompatibilizado
para candidatar-me, em substituição ao Sr. Jânio Quadros, ao exercício efetivo da
presidência da República”. Este excerto infere que, se declarado o impedimento de Goulart,
ele, Ranieri Mazzilli, no exercício da Presidência da República, considera-se
incompatibilizado à sucessão de Quadros. Neste ponto, é preciso recorrer mais uma vez à
Constituição Federal de 1946:
Art. 79. Substitui o Presidente, em caso de impedimento, e sucede-lhe, no de
vaga, o Vice-Presidente da República.
§ 1° Em caso de impedimento ou vaga do Presidente e do Vice-Presidente da
República, serão sucessivamente chamados ao exercício da presidência o
Presidente da Câmara dos Deputados, o Vice-Presidente do Senado Federal e o
Presidente do Supremo Tribunal Federal.
§ 2° Vagando os cargos de Presidente e Vice-Presidente da República, far-se-á
eleição sessenta dias depois de aberta a última vaga. Se as vagas ocorrerem na
122
segunda metade do período presidencial, a eleição para ambos os cargos será
feita, trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma
estabelecida em lei. Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o
período dos seus antecessores.
Entende-se que Mazzilli desejava uma solução, que impedisse efetivamente a posse
de Goulart, mas que essa não transparecesse como sendo inconstitucional. A chamada de
eleição em sessenta dias, como constava no mandamento constitucional, daria ao
impedimento de Goulart um ar de legalidade. Mazzilli se disporia a permanecer no cargo
durante esse período e, para demonstrar seu “desprendimento e espírito público”, não se
candidataria à Presidência da República.
Assim, o movimento do golpe, com o requerido apoio do parlamento, o qual
efetivamente não ocorreu como se esperava, estava arquitetado a partir das ações que
seguem. Inicialmente, a pressão militar sobre o Congresso Nacional para que esse
encontrasse razões legais que justificassem o impedimento de João Goulart. As razões
deveriam versar sobre a idéia de que a investidura do então vice-presidente representaria
uma ameaça à ordem e à segurança nacional. Após, a permanência de Mazzilli como
presidente da República até a realização de nova eleição para a escolha do sucessor de
Jânio Quadros, nos termos do art. 79, § 2° da Constituição Federal de 1946
33
. Por fim,
33
Essa referência é feita no verbete “MAZZILLI, Ranieri”, do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro:
“nessas circunstâncias, em 28 de agosto o presidente interino Ranieri Mazzilli enviou uma breve mensagem
ao Congresso informando que ‘os ministros militares, na qualidade de chefes das forças armadas responsáveis
pela ordem interna, manifestam a absoluta inconveniência, por motivos de segurança nacional, do regresso ao
país do vice-presidente da República João Belchior marques Goulart’. Com isto, os ministros militares
esperavam forçar o Congresso a votar o impedimento de Goulart, continuando a presidência interina com
Mazzilli até as eleições que teriam lugar dentro de 60 dias”.
123
eleito o novo presidente, a investidura dele no cargo, conforme previa a referida Carta
Constitucional.
A questão que se coloca é a seguinte: e se o vitorioso fosse também um candidato,
segundo os ministros militares, que ameaçasse a ordem e a segurança nacional como, por
exemplo, Leonel Brizola ou o marechal Henrique Teixeira Lott? A “Mensagem à nação” de
Mazzilli termina da seguinte forma:
Estou certo que a nação há de reconhecer que a atual conjuntura exigirá de mim
o mais nobre e alto desinteresse pelas investiduras pessoais, ao lado do sagrado
dever de defender as instituições democráticas.
Neste instante, renovo minha fé nas vigorosas virtudes cívicas do nosso povo,
que, coerente com a sua gloriosa História, saberá, mais uma vez, manter suas
tradições de devotamento à ordem a ao regime.
Brasília, 28 de agosto de 1961.
Ranieri Mazzilli.
No final da mensagem, Mazzilli afirma “o mais nobre e alto desinteresse pelas
investiduras pessoais” do presidente em exercício e uma solicitação ao “povo brasileiro” de
que mantivesse a decisão de seus representantes, ou seja, não se insurgisse contra a
manobra política e militar que se desenvolvia e que Mazzilli era um de seus partícipes. A
posição golpista assumida por Mazzilli ensejou uma representação impetrada junto à
Câmara dos Deputados, em 28 de agosto, pelo então deputado da UDN Adauto Lúcio
Cardoso. Tal representação foi dirigida nominalmente contra os três ministros militares e o
presidente interino Ranieri Mazzilli, sob a acusação principal de que eles estariam tentando
mudar, por meio da violência, os preceitos constitucionais, visando a impedir a posse de
João Goulart, além de estarem atentando contra segurança interna e contra a liberdade.
124
3.5 Considerações finais: o “diagnóstico de desordem” e a “solução de ordem” do
discurso “solução militar
O discurso “solução militar” tinha como “solução de ordem” simplesmente a tentativa
de impedimento de João Goulart para assumir a Presidência da República. Foi visto neste
capítulo, que, inicialmente, os ministros militares buscaram o referido impedimento como
uma atitude oriunda do Congresso Nacional, tentativa que resultou fracassada. Tendo sido
fracassada tal tentativa, em conseqüência, anunciaram o uso da força das armas para
alcançarem seu objetivo.
O diagnóstico de desordem dos ministros militares residia no fato de que, uma vez no
poder, Goulart seria a causa principal de um período de instabilidade política que seria
instada tendo em vista a sua ligação com elementos do “comunismo internacional”. É
interessante, neste particular, que a tentativa golpista liderada pelo ministro da Guerra,
marechal Odílio Denys, era tão-somente visando ao impedimento do vice-presidente, não
tendo, portanto, qualquer plano de tomada do poder político no país por uma junta militar
como ocorreria em 1964, por razões que, como serão vistas, diversas e mais importantes
das elencadas pelos então ministros militares de Quadros.
Não queriam, portanto, Denys, Heck e Moss que Jango assumisse, tendo em vista um
plano previamente arquitetado, simplesmente porque este não existia. Os ministros não
desejam tão-somente que um “comunista” assumisse o poder político, tendo em vista que
125
esse fato representaria “invariavelmente” num período de crise política no país, que poderia
redundar, inclusive, numa tomada completa do poder político do Estado brasileiro pelos
comunistas. Portanto, a tentativa golpista dos ministros tinha uma intenção eminentemente
“reativa”, cautelar. Ter clara tal intenção ajudará sobremaneira a compreender, ao final da
segunda parte desta tese, que a solução parlamentarista foi efetivamente um golpe branco
civil-militar.
126
4 O DIAGNÓSTICO DE DESORDEM E A SOLUÇÃO DE ORDEM DO
DISCURSO SOLUÇÃO LEGALISTA
Neste capítulo, serão apresentados os “diagnósticos de desordem” e as “soluções de
ordem”, correspondentes ao discurso “solução legalista”. Este discurso teve origem com a
constituição da “Cadeia da Legalidade”, liderada pelo então governador do Rio Grande do
Sul, Leonel Brizola. Apesar de sua origem civil, a “solução legalista” contou com o apoio
efetivo de importantes setores das Forças Armadas, mormente a imprescindível adesão do
comandante do III Exército, general Machado Lopes, bem como do marechal Henrique
Teixeira Lott, prestigioso militar da reserva, que havia sido o candidato do PSD derrotado
por Quadros nas eleições de 3 de outubro de 1960. Recebeu ainda forte adesão de parte do
Congresso Nacional. É digno de registro que, além dos grupos políticos e militares
destacados, a “solução legalista” recebeu adesão de inúmeras associações, sindicatos,
127
partidos políticos, ou seja, elementos organizados sociedade civil também chancelavam
uma solução pela via legal à crise da renúncia de Quadros, que só poderia significar stricto
sensu a posse constitucional do vice-presidente da República.
Nesse sentido, o presente capítulo analisará os documentos legalistas produzidos pelo
marechal Lott, seguido do telegrama emitido por Machado Lopes ao ministro Guerra.
Após, serão analisados a nota do comando militar da 5ª região em apoio à solução legalista,
seguida do manifesto emitido pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, o
principal líder político e civil da campanha nacional da Legalidade.
4.1 O manifesto de Lott: a primeira voz militar pela legalidade
O Manifesto do marechal Henrique Teixeira Lott
34
, lançado em 26 de agosto de 1961,
ou seja, um dia após a renúncia de Jânio Quadros, foi o primeiro importante manifesto
lançado em defesa da manutenção do mandamento constitucional que assegurava a posse
do vice-presidente João Goulart. A importância do Manifesto se deu tendo em vista esse ter
sido lançado por um militar de alta patente do Exército que, mesmo na reserva naquele
momento, gozava de um grande respeito frente à corporação militar. O Manifesto de Lott é
curto e apresentado em tom contundente, iniciando-se da seguinte forma:
128
Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do sr. ministro da Guerra, marechal
Odílio Denys, manifestada ao governador do Rio Grande do Sul, através do
deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o
atual presidente da República, dr. João Goulart, entre no exercício de suas
funções e, ainda, de detê-lo no momento em que pise o território nacional.
A primeira questão importante no trecho destacado refere-se a contra quem se está
escrevendo o presente Manifesto. Tal questão é fundamental, pois aqui Lott está
constituindo seu pólo antagônico para, num momento seguinte do documento, enunciar seu
discurso acerca do momento político. Em outras palavras, o marechal está enunciando seu
“diagnóstico de desordem”. Outra remarca importante de se fazer é a que, desde o início da
crise da legalidade da posse de Goulart, Lott posiciona-se de forma clara, tanto acerca de
quem está combatendo, nomeando seus adversários diretamente, como em relação ao que
ele próprio propugnava.
O posicionamento de Lott claramente favorável à posse de Goulart é muito
importante e corajoso naquele momento, uma vez que nos discursos dos deputados nas
sessões da Câmara Federal, pelo menos nos dois primeiros dias após a renúncia de
Quadros, ou seja, entre 26 e 27 de agosto, em nenhum momento, os ministros militares
foram nominalmente referidos
35
. Lott, por outro lado, sem tergiversar, apontou que o
34
O Manifesto aqui reproduzido e analisado foi extraído de Labaki (1986, p. 147).
35
Será visto, neste particular, que os discursos dos deputados nesses dois primeiros dias de análise deixam
sempre a entender que os ministros militares estão contra a posse de Goulart, mas a referência nominal a eles
é descartada. A posição dos parlamentares em relação à desconfiança de um golpe sendo arquitetado por
setores militares era mascarada por pronunciamentos que exaltavam o caráter sempre legalista e o altíssimo
relevo moral da corporação militar brasileira. Tome-se o exemplo do pronunciamento do deputado Anísio
Rocha (PSD), para melhor esclarecer o ponto: “Sr. Presidente, graças a Deus êste momento é de tranqüilidade
para o Brasil. Ontem foi empossado pelo Congresso Nacional o Presidente da Câmara dos Deputados, Dr.
Ranieri Mazzilli, e as Fôrças
garantiram, como sempre o fizeram, a democracia e as instituições livre
brasileiras. Faço aqui um apêlo e – por que não dizer? – presto aqui uma homenagem a êsses três Ministros
129
ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, não permitiria o exercício de Goulart de suas
funções presidenciais e ameaçava ainda, prendê-lo, caso Jango retornasse ao território
nacional.
A segunda questão expressa neste primeiro excerto do Manifesto de Lott refere-se à
posição então ocupada naquele momento por João Goulart. Nesse particular, mais uma
posição firme deve ser notada. Para Lott, o fato de Goulart não ter tomado posse como
presidente da República era visto meramente como um ato formal, uma vez que, para o
marechal, Jango já era o presidente da República, tendo em vista haver Jânio Quadros
renunciado. Vista a questão por esse ângulo, o ato de Odílio Denys, para Lott, é tido como
criminoso, uma vez que o ministro estaria tentando impedir que um presidente da
República exercesse suas funções constitucionais e, além disso, Denys estava sendo
acusado de ameaçar prender o presidente em caso de regresso ao país. Na seqüência do
Manifesto:
Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática
de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades
militares, mantenho compromisso de honra com minha classe, com a minha
pátria e com as instituições democráticas e constitucionais.
O marechal Lott, conforme o excerto acima, afirmou que, em sabendo da iminente
não permissão do presidente da República em exercer suas funções governativas e, além
disso, na iminência de ele também ser preso por ordem do ministro da Guerra, tentou
demover Odílio Denys de ato considerado por Lott como violento, mesmo estando afastado
Militares que souberam agir com firmeza e, antes de tudo, com patriotismo” (155ª sessão da Câmara dos
130
das atividades militares, ou seja, na condição de civil. Tal tentativa de demover o colega de
Arma estava alicerçada em três compromissos, a saber: compromisso de honra com a classe
militar, com a pátria e com as instituições democráticas e constitucionais. Compromissos
que, como subentendido no Manifesto, faltam a Odílio Denys, quando ele tomou o ato
violento de não permitir que Goulart assumisse suas funções presidenciais e, ainda,
ameaçou-o com a prisão. Na seqüência do documento:
E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à
solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação.
Neste pequeno trecho, Lott novamente desaprova a ameaça de Denys, desta vez de
forma ainda mais veemente. Atribui à solução do ministro da Guerra os adjetivos
“anormalidade” e “arbitrariedade”, não agora somente a Goulart, mas também a toda a
Nação brasileira. Nesse sentido, imbuído de seu patriotismo, senso de corporação militar e
atitude legalista de respeito à Constituição, Lott sentia-se no indeclinável, no irrecusável
dever de manifestar seu repúdio diante do fato em questão. E continua afirmando:
Dentro desta orientação, conclamo todas as forças vivas da Nação, as forças da
produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, operários e povo em
geral, para tomar posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e
preservação integral do regime democrático brasileiro, certo, ainda, de que os
meus nobres camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das
tradições legalistas que marcam a sua história nos destinos da Pátria.
A intenção de Lott neste último trecho é a de buscar adeptos ao seu discurso, ou seja,
constituir um conjunto de forças em torno da legalidade constitucional que consistia na
Deputados, de 26 de agosto de 1961).
131
posse imediata, e sem qualquer tipo de tergiversações, de João Goulart, como substituto
legal de Jânio Quadros diante de sua renúncia. Assim, Lott busca o apoio do que nomeou
de “forças vivas da Nação”. Nação esta, conforme o manifesto, a qual estava sendo imposta
uma solução anormal pelo ministro da Guerra, e que Lott queria dessa a tomada de uma
“posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e preservação integral do regime
democrático brasileiro”. A expressão “forças vivas da Nação”, na verdade, representava
todo o povo brasileiro, na intenção de se constituir uma cadeia de equivalências a partir de
seu discurso legalista que abrangesse a todos os brasileiros contra o ato violento e anormal
de um só brasileiro, o ministro da Guerra, Odílio Denys. Nesse sentido, representavam as
“forças vivas da Nação”: “as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e
intelectuais, operários e povo em geral”. Afirmou ainda o marechal que acreditava que os
seus camaradas das Forças Armadas saberiam se portar de acordo com as “tradições
legalistas” que marcaram a história da Pátria, juntando-se a Lott nesta luta pela legalidade e
contra a posição firmada pelo ministro da Guerra.
4.2 Os documentos “legalistas” do III exército
Nesta seção, serão analisados o telegrama de Machado Lopes ao ministro da Guerra,
emitido em 29 de agosto, e a nota do comando da 5ª Região Militar, produzida em 31 de
132
agosto
36
. No primeiro documento, Machado Lopes adere formalmente às forças legalistas,
num ato de insurgência contra as ordens do ministro da Guerra, considerado pelo
comandante do III Exército como fora da legalidade. No segundo documento, será
analisada a adesão do comando da 5ª Região Militar a Lopes. Nesse sentido, passe-se
imediatamente à análise do primeiro documento emitido pelo general Machado Lopes:
Terceiro Exército perfeitamente coeso, não mais acatará ordens V. Exa. e agirá
por conta própria dentro da idéia de manter o Regime Liberal Democrata
Cristão, assegurando integral execução da Constituição vigente, sem qualquer
modificação que nela seja porventura introduzida.
Como se observa, no ponto de partida, a posição do III Exército era de respeito
irrestrito às normas constitucionais vigentes, não contemplando sequer a
possibilidade do “golpe branco” com a degola dos poderes presidenciais de João
Goulart.
Inicialmente, é digno de nota o teor desafiador do telegrama de Lopes. Do ponto de
vista militar, inicialmente, trata-se de um gravíssimo ato de quebra de hierarquia, visto que
esse inicia comunicando que o III Exército, de forma coesa, não mais acataria ordens do
ministro da Guerra, Odílio Denys, superior hierárquico de Lopes. Pelo contrário, continua o
comandante, o III Exército agiria “por conta própria”, ou seja, contra as determinações
superiores para “manter o Regime Liberal Democrata Cristão, assegurando integral
execução da Constituição vigente”. Manter o “Regime Liberal Democrata Cristão” era o
principal motivo da insurgência de Machado Lopes, visto que, segundo o comandante, o
ministro da Guerra estava atentando, com a intenção de impedir a posse de Goulart, contra
o liberalismo, a democracia e a cristandade, valores que Machado Lopes estava disposto a
defender.
36
Os documentos em apreço foram extraídos de Bonavides e Amaral (2002, p. 285.13-285.15).
133
No parágrafo seguinte, o autor afirma que o III Exército “no ponto de partida”, ou
seja, desde o início do impasse gerado pela renúncia de Quadros foi pelo “respeito irrestrito
das normas constitucionais”. Tal afirmação pode ser cotejada com os documentos
anteriormente analisados. Na troca de mensagens pelo rádio entre Machado Lopes e Odílio
Denys em 27 de agosto, por exemplo, Lopes fazia menção à posição legalista de Brizola, na
adesão à posição do governador do Rio Grande do Sul de alguns comandantes do III
Exército e no clima tenso pelo qual passava Porto Alegre naquele instante. Ao final da troca
de mensagens radiofônicas, Lopes afirmou, como visto que estava vigilante à manutenção
da ordem, mas que “seria de todo conveniente encontrar solução legal” (BONAVIDES e
AMARAL, 2002, p. 285.4).
Outro elemento de fundamental compreensão diz respeito à posição contrária de
Lopes em relação a quaisquer mudanças constitucionais em razão da crise sucessória.
Nesse sentido, serão analisados, em conjunto, os excertos de cada um dos parágrafos
conforme seguem: a) assegurar integral execão da Constituição vigente, sem qualquer
modificação que nela seja porventura introduzida; b) respeito irrestrito às normas
constitucionais vigentes, não contemplando sequer a possibilidade do “golpe branco” com a
degola dos poderes presidenciais de João Goulart. Evidentemente que ambos os excertos
estão correlacionados. De forma simples: assegurar o respeito à Carta Constitucional de
1946 então vigente significava inevitavelmente assegurar a posse de Goulart na Presidência
da República.
134
Se esses excertos forem analisados de forma ainda mais acurada, pode-se perceber a
não aceitação, por parte de Machado Lopes, de qualquer modificação no texto
constitucional. A ocorrência de alteração, nesse momento, seria, na visão do comandante do
III Exército, um “golpe branco”, uma “degola dos poderes presidenciais de João Goulart”.
Entretanto, tal preocupação legalista, se analisada por outro ângulo, poderia ser
paradoxalmente encarada como ilegal. Nesse sentido, Machado Lopes afirmou
taxativamente que era contrário a qualquer alteração à norma constitucional vigente. A
questão que deveria ser colocada, nesse particular, é a seguinte: está na alçada do
comandante do III Exército ser contra ou a favor a alterações constitucionais? O ministro da
Guerra foi acusado por Lopes de estar desrespeitando a Constituição, querendo impedir a
posse de Goulart. Machado Lopes não pode, por outro lado, ser também legitimamente
acusado de estar desrespeitando a Constituição se esse estiver efetivamente obstando a sua
alteração?
Essas questões são colocadas, pois efetivamente a Carta Constitucional de 1946 foi de
fato modificada para garantir a posse de Goulart num sistema político parlamentarista.
Evidentemente que tal decisão foi tomada de forma casuística. Contudo, a maioria dos
sujeitos políticos em confronto no episódio firmou compromisso com essa solução e o
parlamentarismo passou a ter efetiva vigência ao mesmo tempo em que foi garantida a
posse do vice-presidente. Os ministros militares concordaram com a “solução de
continuidade”, Goulart, o PTB, o PSD, a UDN, os demais partidos do Congresso Nacional,
135
assinaram a mudança
37
. É fundamental ainda que seja dito que a referida mudança de
sistema político ocorreu no interior das Casas Legislativas, por proposição delas próprias. O
Poder Legislativo foi, de fato, o grande promotor da solução da crise. Foi a solução que o
Legislativo melhor encontrou no momento para que se evitasse a guerra civil que se
avizinhava a partir da disputa antagônica entre os discursos “solução militar” versus
“solução legalista”.
Casuístico. “Solução de continuidade”. Evidente que sim. Contudo, a solução também
podia ser vista, de certa maneira, como sendo constitucional, uma vez que se deu sob os
parâmetros da Constituição de 1946. Nesse sentido, Machado Lopes, em não querendo
qualquer alteração constitucional, poderia ser legitimamente acusado de estar também
agindo contra os preceitos constitucionais, uma vez que não é prerrogativa sua intervir
sobre mudanças desta natureza
38
. Uma coisa é buscar a garantia do cumprimento da Lei
Magna, ou seja, a posse de Goulart. Outra coisa é buscar impedir qualquer alteração na
Constituição, visto que essa é uma atribuição dos parlamentares eleitos pelo povo e não de
um general que, em nome da legalidade, estaria pretendendo, passar por cima das
competências de outros mandatários do poder público
39
.
37
Será visto, na próxima seção, contudo, que muitos parlamentares ligados aos partidos mais à esquerda no
Congresso Nacional, mormente o PTB e o PSB, posicionaram-se francamente contrários à solução
parlamentarista.
38
Sabe-se, contudo, que, com o passar dos dias, Machado Lopes também anuiu à decisão do Congresso
Nacional, o que deixou Brizola e outros políticos da esquerda totalmente isolados e sem condições de fazer
frente à solução parlamentarista, tida por eles como um golpe branco, tendo em vista a participação do
parlamento nacional.
39
É interessante, nesse ponto, lembrar que no “Manifesto dos ministros militares” eles diziam que manteriam
a lei e a ordem no país, pois era seu dever constitucional, nem que para isso, tivessem de impedir a posse de
João Goulart. Assim, pode-se concluir que, segundo a lógica desses ministros, descumprindo pontualmente
uma lei, estariam eles garantindo a própria manutenção das leis brasileiras, do regime democrático brasileiro
contra a ameaça de elementos “comunistas” e, sobretudo, estariam mantendo a ordem no país. Se tomada a
136
Disse-se que Machado Lopes poderia ser acusado, a partir dos argumentos acima
produzidos, de estar também desrespeitando a legalidade. De fato, ele foi acusado por isso,
por duas vezes, pelo seu substituto no comando do III Exército, general Cordeiro de Farias:
a primeira vez, quando da expedição de Farias do radiograma a Machado Lopes em 3 de
setembro, ou seja, um dia após a promulgação da emenda parlamentarista; a segunda vez,
no dia seguinte, quando Cordeiro de Farias expediu telegrama a Machado Lopes. Em
ambas as oportunidades, Farias questionava Lopes do porquê de ele estar movimentando
tropas em Santa Catarina em direção ao Paraná, se a solução parlamentarista já havia sido
aprovada pelo Congresso Nacional.
Por outro lado, essa posição de duvidosa legalidade assumida por Machado Lopes
pode também ser minimizada, tendo em vista que a posição dos ministros militares
favorável à posse de João Goulart só foi expedida oficialmente em 5 de setembro, ou seja,
ainda em 3 e 4 de setembro, o general destituído do III Exército tinha ainda razões para
duvidar da efetiva investidura de João Goulart na Presidência da República
40
.
posição de Machado Lopes, ele estava disposto, por razões exatamente contrárias, agindo também de forma
ilegal.
40
Trata-se do manifesto dos ministros militares, lançado dias após a aprovação da emenda parlamentarista,
em 5 de setembro de 1961, cujo teor segue: “O ministro da Guerra, mar. Odílio Denys, declarando-se
credenciado pelos ministros Grün Moss e Sílvio Heck, assegurou o seguinte: 1) as Forças Armadas apóiam e
prestigiam integralmente o Presidente Ranieri Mazzilli; 2) as Forças Armadas dão apoio ao Congresso
Nacional; 3) as Forças Armadas acatam a deliberação do Congresso Nacional, com a promulgação da emenda
constitucional que institui o sistema parlamentar de governo; 4) as Forças Armadas, em conseqüência,
asseguram as garantias necessárias ao desembarque nesta Capital, nesta data, do presidente João Goulart, a
sua permanência em Brasília e sua investidura na presidência da República. Os ministros da Aeronáutica e da
Marinha, falando sucessivamente, confirmaram as declarações do ministro da Guerra” (BONAVIDES e
AMARAL, 2002, p. 286.6).
137
Ao final do telegrama de Machado Lopes acerca da insurgência do III Exército frente
às pretensões do ministro da Guerra, tidas por ele como golpistas, ele faz menção à
frustrada operação de bombardeio do Palácio Piratini, tendo em vista rebelião de sargentos
da Base Aérea de Canoas:
Amplia-se a cada instante o leque da resistência militar ao golpe de Estado. A
base aérea da V Zona Aérea, em Canoas, rebelou-se. Os sargentos, diante da
ordem de bombardear o Palácio Piratini, impediram que a operação fosse
tentada: prenderam os oficiais e imobilizaram a Base. E o Comando da 5ª
Região Militar, que abrange forças do Paraná e Santa Catarina (...), perfila-se ao
lado dos legalistas.
Neste último trecho, deve ser ressaltado o fato de que o declarado desrespeito
hierárquico de Machado Lopes em relação ao comando do ministro da Guerra não era ato
isolado. Segundo Lopes, ao seu lado estava o contingente militar do sul do país, visto que o
Comando da 5ª Região Militar, que abrange efetivos dos estados de Santa Catarina e do
Paraná, estava de acordo com o discurso defendido por Lopes. O general refere-se também
à rebelião dos sargentos na Base Aérea de Canoas
41
, a qual efetivamente impediu o ataque
41
Acerca da rebelião dos sargentos na Base Aérea de Canoas, é interessante fazer referência a um
depoimento, de 29 de agosto, de autoria desconhecida, de um dos militares que impediram o vôo dos aviões
bombardeios: “dezesseis aviões foram armados para a operação. Pelos meus cálculos, a gente ia pulverizar o
Palácio do Governo! O armamento que a gente tinha em mãos era para pulverizar o palácio. Um ataque para
acabar com tudo o que estivesse lá. Não ia haver dúvida. Os aviões foram armados. Nós nos preparamos.
Colocamos as bombas e os foguetes nos aviões. Ficamos somente esperando chegar a hora, quando o dia
amanhecesse. Mas criaram-se aí vários impasses, vários problemas sérios. Durante o tempo em que ficamos
esperando, nós todos sabíamos que iríamos matar muita gente. Num ataque como aquele ao palácio, bombas e
foguetes cairiam na periferia. Muitas pessoas iriam ser atingidas. Além de tudo, Brizola estava com a família
no palácio, cercado de gente. Havia gente armada lá, mas não ia adiantar nada, diante do ataque que iríamos
deflagrar com nosso tipo de avião. Podia ser que um ou outro avião caísse, o que não impediria de maneira
nenhuma o ataque e a destruição do palácio. E aí começou o questionamento. O militarismo tem dois alicerces
básicos: a disciplina e a hierarquia. Você não pode mexer nesses dois alicerces. Toda a carreira, todos os
valores, todo o futuro do militar é garantido em cima desses dois suportes. Você, quando é militar, sabe
exatamente o que vai acontecer com você daqui a 10, 20 anos, baseado nessa hierarquia e nessa disciplina.
Isso dá uma segurança e um ‘espírito de corpo’ bem desenvolvido. Mas, diante de nós, os tenentes que íamos
fazer o ataque, e não estávamos incluídos na alta cúpula, apresentou-se uma incoerência: se o Presidente da
República, chefe supremo das Forças Armadas, renunciou, automaticamente quem deve assumir é o vice-
138
aéreo ao Palácio Piratini. Tais declarações de Lopes serviam para medir forças com o
ministro da Guerra. Sabia Odílio Denys, nesse particular, que o contingente comandado por
Machado Lopes era extremamente importante e numeroso, capaz de resistir efetivamente a
qualquer investida originada de Brasília.
A adesão oficial do Comando da 5ª Região Militar, que congregava contingentes
lotados nos estados de Santa Catarina e Paraná, à posição legalista de Machado Lopes
ocorreu a partir de nota expedida em 31 de agosto, que defendia o que segue:
1) Perfeita e inabalável obediência à Constituição.
2) Completa identidade com os pensamentos populares da ordem de puro
anseio de restauração da tranqüilidade e da paz dentro das normas jurídicas.
3) Firme posição de obediência e lealdade ao Comandante do III Exército com
jurisdição sobre os territórios dos três Estados do Sul: Paraná, Santa
Catarina e Rio Grande do Sul.
A posição legalista do Comando da 5ª Região Militar representava mais um desafio à
disciplina militar, tendo em vista que a insurgência às ordens do Ministério da Guerra
abrangia agora praticamente todos os destacamentos militares do sul do país. Além da
declaração de que a norma constitucional deveria ser seguida e, portanto, Goulart deveria
ser efetivamente empossado, o Comando perfilava-se em plena identidade com “os
pensamentos populares da ordem de puro anseio de restauração da tranqüilidade e da paz
dentro das normas jurídicas”. Além disso, o Comando afirmava lealdade ao general
Machado Lopes, mesmo considerando o fato de o ex-comandante do III Exército ter sido,
presidente. Nós nos perguntávamos ali: por que o Estado-Maior – que não fica acima do Presidente da
República – pode determinar que um vice-presidente não pode assumir?” (BONAVIDES e AMARAL, 2002,
p. 285.12)
139
em 29 de agosto, ou seja, dois dias antes da nota expedida, exonerado de suas funções pelo
então presidente da República em exercício, o deputado Ranieri Mazzilli. A adesão militar
do Comando da 5ª Região Militar iniciou uma série de movimentações de tropas para a
efetiva defesa da legalidade, conforme outro excerto da nota:
Coerente com a posição mantida desde os primeiros momentos da crise, sentiu-
se o Comando da 5ª Região Militar e 5ª Divisão de Infantaria no dever de
movimentar tropas para, única e exclusivamente, proteger nosso laborioso povo.
As unidades que já se deslocaram e as que irão deslocar-se, destinam-se a
impedir, portanto, que qualquer elemento militar armado, vindo do Norte,
chegasse a provocar luta armada dentro do território paranaense.
Este comando não acredita que tropas do Exército brasileiro venham a
concretizar tais ameaças. São os nossos irmãos de farda e são povo como todos
somos.
Eles sabem que nossa posição decorre não só da legitimidade dos princípios
legais e jurídicos que estamos protegendo, como, ainda, porque a tropa da 5ª
divisão de Infantaria, conta com o irrestrito apoio popular.
Para efetivamente defender a posição política assumida, o Comando passou a
movimentar tropas em direção ao norte do Paraná para impedir luta armada no território
paranaense. Argumentou que a movimentação de tropas deu-se a partir de uma ação
defensiva em razão da referida ameaça de ataque. Nesse particular, existe aqui nova disputa
entre os discursos “solução legalista” e “solução militar”. Ambas afirmavam que
iniciariam o ataque se provocadas. Basta lembrar os argumentos produzidos por Cordeiro
de Farias ao general Machado Lopes, já analisados, dizendo que se a guerra civil iniciasse
no país, a culpa seria exclusivamente de Lopes, visto que ele estava comandando uma
ofensiva militar e, por outro lado, Cordeiro de Farias, estaria somente arregimentando
tropas para a defesa de ataque rebelde. Por outro lado, nesta nota, o argumento produzido
pelo Comando da 5ª Região Militar é também defensivo: existe movimentação de tropas
para a defesa de ameaças de ataques advindos das forças leais à Denys. A nota finda com
140
um apelo aos militares brasileiros de que não iniciem os ataques, visto que a posição
assumida pelo Comando é legal e popular. Nesse ponto, buscam a desmobilização dos
efetivos militares liderados pelo ministro da Guerra, a partir do argumento de que as ações
do ministro Odílio Denys são, além de ilegais, impopulares.
4.3 A posição civil “legalista”: Brizola e o discurso constituidor da rede da
legalidade
O Manifesto de Leonel Brizola, na condição de governador do Rio Grande do Sul,
representou o início de um movimento efetivo de resistência à “solução militar” e pelo
respeito estrito à Constituição Federal de 1946. O Manifesto data de 26 de agosto de 1961,
ou seja, foi lançado no dia seguinte ao da renúncia de Jânio Quadros, no mesmo dia do
Manifesto do marechal Lott. Contudo, o Manifesto de Brizola, apesar de não tergiversar em
qualquer momento em torno da defesa da legalidade da posse de João Goulart, menciona de
forma muito genérica a “solução militar” que se anunciava naquele instante histórico. Ele
se deteve com mais cuidado no conteúdo do “Manifesto à Nação”, exarado por Jânio
Quadros no momento de sua renúncia. Inicia-se, portanto, a análise a partir da primeira
parte do documento
42
.
141
Ao Rio Grande e ao Brasil.
O Governo do Estado do Rio Grande cumpre o dever que lhe cabe nesta hora
grave da vida do país.
Cumpre-nos reafirmar nossa inalterável posição ao lado da Legalidade
Constitucional. Não pactuamos com golpes ou violências contra a ordem
constitucional e contra a liberdade pública. Se a atual Constituição não satisfaz,
em muitos dos seus aspectos, desejamos o seu aprimoramento e não sua
supressão, o que representaria uma regressão ao obscurantismo.
Brizola inicia seu Manifesto evocando o Rio Grande do Sul, seu estado natal e que
naquela oportunidade governava, e o Brasil, tendo em vista fazer com que sua mensagem
percorresse todo o território nacional, uma vez que seu teor interessava a todos os
brasileiros. Sua primeira afirmação foi a de que o seu governo cumpria seu dever no grave
momento que passava o país. Na frase subseqüente, Brizola enunciou o dever ao qual
estava cumprindo: a reafirmação da “inalterável posição ao lado da Legalidade
Constitucional”, ou seja, pela posse do vice-presidente da República, João Goulart, tendo
em vista a renúncia de Jânio Quadros.
No sentido de reafirmar a defesa da legalidade, Brizola afirmou que não pactuava, não
defendia “golpes”, “violências” contra a “ordem constitucional” e contra a “liberdade
pública”. Continuou afirmando que, se a Constituição não era adequada que fosse então
alterada, mas nunca suprimida, uma vez que tal ato “representaria uma regressão ao
obscurantismo”.
Evidentemente que, neste último parágrafo, Brizola estava deixando subentendido que
alguém estaria tentando ferir a ordem constitucional, do contrário seu discurso não faria
42
O conteúdo do “Manifesto de Leonel Brizola – 26.8.1961” foi extraído de Labaki (1986, p.151-152).
142
qualquer sentido, visto que a solução constitucional – portanto meramente legal, nem
política, nem militar – para a renúncia de Quadros, seria a simples investidura de Goulart
no cargo presidencial vacante. O fato que fica claro neste início do Manifesto, contudo,
desmente esta mera expectativa legal, pois que estava evidente a Brizola que a ordem legal
estaria sob ameaça. Continuando o documento:
A renúncia de S. Excia., o presidente Jânio Quadros, veio a surpreender a todos
nós. A mensagem
43
que S. Excia. Dirigiu ao povo brasileiro contém graves
denúncias sobre pressões de grupos, inclusive do exterior, que
indispensavelmente precisam ser esclarecidas. Uma Nação que preza a sua
soberania não pode se conformar pacificamente com a renúncia do seu mais alto
magistrado sem uma completa elucidação desses fatos.
Nesse excerto, Brizola faz referência direta à mensagem da renúncia de Quadros.
Nesta parte, o governador do Rio Grande do Sul deixa mais clara ainda sua suspeita em
relação à ameaça à ordem legal manifestada no parágrafo anterior. Inicia o parágrafo
afirmando que tomou como surpresa a renúncia de Jânio. Contudo, afirma a existência de
“graves denúncias sobre pressões de grupos, inclusive do exterior” e defende que as
mesmas “precisam ser esclarecidas”, uma vez que a soberania do país depende disso. Neste
ponto, Brizola chama a atenção de que o pretenso golpe que se armava poderia ter, dentre
os seus articuladores inclusive estrangeiros, o que, do ponto de vista político e mesmo
jurídico, representa grave ofensa à soberania do país, visto que somente aos nacionais
cabem os destinos políticos do país. Na seqüência do documento:
43
A mensagem à qual Brizola se reporta é o “Manifesto à nação”, lançado por Jânio Quadros na data de sua
renúncia em 25 de agosto de 1961.
143
A comunicação do sr. ministro apenas notifica o governo do Estado da renúncia
do sr. presidente da República. Por motivo dos acontecimentos, como se
impunha, o governo deste Estado dirigiu-se à S. Excia., o sr. vice-presidente da
República, dr. João Goulart, pedindo o regresso urgente ao país, o que deverá
ocorrer nas próximas horas.
Este ponto do Manifesto é particularmente interessante, uma vez que traz implícita a
mudança do chefe de Estado. Note-se que anteriormente Brizola fez referência a Quadros a
partir do pronome de tratamento “Sua Excelência” (S. Excia.), pois estava dirigindo-se
ainda ao presidente. Contudo, nesse trecho em questão, quando trata diretamente da
renúncia do presidente, Quadros passa a ser tratado simplesmente por “Senhor” (sr.), uma
vez que renunciou ao cargo e deixou de ser presidente. Igualmente é tratado apenas por
“sr.” o ministro Pedroso Horta, que notificou o governo do Estado a renúncia de Quadros.
Note-se ainda mais um dado curioso. O governo do Estado do Rio Grande do Sul foi
somente “notificado” do ato da renúncia, ou seja, em nenhum momento, conforme ressaltou
Brizola, ele teve qualquer possibilidade, por exemplo, de tentar demover Quadros de sua
renúncia que foi tida também como sendo surpreendente ao governador. Esta breve
“notificação”, informação, mero ato de se fazer tomar conhecimento do ato ex-presidente
Quadros, “impôs” a Brizola o inabalável dever, “por motivo dos acontecimentos”, de
dirigir-se a “S. Excia., o sr. vice-presidente da República, dr. João Goulart”, solicitando-lhe
“o regresso urgente ao país”. Note-se como é dado o tratamento ao vice-presidente com os
pronomes “S. Excia” e “dr”, visto que Goulart era o vice-presidente legalmente investido
no cargo e que, sua chamada a regressar ao país devia-se justamente para que ele
assumisse, com urgência, o cargo de presidente da República. Continuando no documento:
144
O ambiente no Estado é de ordem. O governo do Estado, atento a essa grave
urgência, vem tomando todas as medidas de sua responsabilidade, mantendo-se
inclusive em contato e entendimento com as autoridades militares e federais.
Apesar do clima de ameaça de desrespeito à ordem institucional que sugere o
Manifesto, Brizola afirma que, no Rio Grande do Sul, a ordem está mantida. Isso quer
dizer, a legalidade está mantida no Estado. Para assegurá-la, o governador mantinha
contatos com autoridades militares e federais. Encerra o documento da seguinte forma:
O povo gaúcho tem imorredouras tradições de amor à Pátria comum e de defesa
dos direitos humanos. E seu governo, instituído pelo voto popular – confiem os
rio-grandenses e os nossos irmãos de todo o Brasil – não desmentirá estas
tradições e saberá cumprir o seu dever.
Leonel Brizola
Governador do Estado.
Neste trecho final, o governador enuncia as tradições do povo gaúcho em defesa da
Pátria e dos direitos humanos. Além disso, afirma que seu governo – “instituído pelo voto
popular”, e daí a sua legitimidade – cumprirá o seu dever, anunciado no início do
Manifesto, de defender a “Legalidade Constitucional” que, em última análise, significa
garantir a posse, na Presidência, de João Goulart, também eleito pelo voto popular e,
portanto, legítimo de assumir o cargo em questão.
145
4.4 Considerações finais: o “diagnóstico de desordem” e a “solução de ordem” do
discurso “solução legalista”
O discurso “solução legalista” foi imediatamente formado como uma resposta efetiva
ao veto dos ministros militares de Quadros em relação à iminência da posse de João
Goulart, vice-presidente constitucionalmente eleito. Apesar de ter sido um discurso
articulado a partir da bandeira da legalidade, este só foi realmente efetivo tendo em vista o
importante apoio militar recebido. Foi certamente uma reação civil, militar e popular que
impediu a vontade dos militares liderados por Denys de depor de Goulart.
O movimento liderado por Brizola obrigou as forças políticas a buscarem uma outra
solução ao impasse gerado pela constituição de dois pólos antagônicos. Assim, o
“diagnóstico de desordem” do discurso “solução legalista” era simplesmente o veto da
posse de Goulart. Já a “solução de ordem” era também de direta compreensão: a assunção
constitucional de João Goulart à Presidência da República como o legítimo presidente
eleito pelo povo brasileiro.
No próximo capítulo, ver-se-á que o impasse gerado será tratado e resolvido pelo
Congresso Nacional. Nem uma “solução militar”, nem uma “solução legalista”. Nem
tampouco uma solução legal, mas “legalizada”. A solução parlamentarista garantiu, ao
mesmo tempo, a posse de Goulart e o golpe as suas prerrogativas presidenciais.
146
5 A CÂMARA DOS DEPUTADOS DIANTE DA CRISE SUCESSÓRIA
DE JÂNIO QUADROS: A SOLUÇÃO PARLAMENTARISTA
Neste capítulo será analisado o comportamento da Câmara dos Deputados em razão
da crise da renúncia de Jânio Quadros. A análise dos pronunciamentos dos deputados é
fundamental à melhor compreensão do período, tendo em vista que a solução do impasse
sucessório surgiu no âmbito do legislativo federal e foi por suas Casas negociada
juntamente aos defensores das formações discursivas “solução militar” e “solução
legalista”.
Antes de propriamente iniciar a análise dos pronunciamentos da Câmara dos
Deputados, um primeiro dado é importante de ser apresentado. Trata-se de uma posição
praticamente unânime dos parlamentares pela posse do vice-presidente João Goulart. Em
147
raríssimos pronunciamentos, a posse de Goulart foi contestada. Pelo menos em relação aos
deputados que se pronunciaram para enunciar suas posições acerca da crise, era
praticamente uma unanimidade a investidura de Goulart. O que era discutido entre os
membros da Câmara era como resolver o impasse criado pelos ministros militares para que
Goulart efetivamente pudesse assumir. Tais discussões sobre a melhor forma de a
Constituição Federal ser respeitada dividiam-se em duas grandes posições.
A primeira delas coadunava-se justamente aos anseios do discurso “solução legalista”,
ou seja, Goulart deveria ser simplesmente investido no cargo de presidente da República,
tendo em vista a Constituição Federal de 1946 estabelecer taxativamente isso. Não havendo
cometido qualquer crime de responsabilidade, não haveria razão do vice-presidente não
assomar ao posto deixado vago por Quadros.
A segunda posição, que ao final resultou como sendo a vencedora diante das
circunstâncias, foi a do parlamento federal buscar um “consenso”, um ponto de
convergência entre os interesses particulares dos discursos “militar” e “legalista”. Nesse
sentido, o resultado foi a aquiescência militar à posse de Goulart com a condição de que a
plenitude dos poderes presidenciais lhe seria retirada em função da instituição casuística do
sistema parlamentarista de governo. Tal posição, que se tornou vitoriosa, será chamada de
“solução de continuidade” ou “solução parlamentarista”.
Acerca da expressão “solução de continuidade”, uma explicação se faz fundamental.
A expressão era de uso corrente da elite política na época, como sinônimo de “golpe
148
branco”, ou seja, uma medida tomada pelo Congresso Nacional, considerada legal do ponto
de vista jurídico, mas casuística, estranha à moral e ao regime democrático. Será visto que,
no início das discussões dos deputados acerca da crise sucessória, muitos parlamentares
enunciaram seus discursos na defesa da investidura de Goulart à Presidência da República
nos estritos termos estabelecidos pela Constituição Federal, sendo que qualquer outra
solução seria tida como sendo de “continuidade”, ou seja, diferente daquela que legalmente
estava prevista. Portanto, tomando-se de empréstimo a expressão da época, o discurso pela
“solução de continuidade” representará as lideranças que defenderam a posse de João
Goulart, a partir da instituição do regime parlamentarista de governo como forma de
resolver a crise política da renúncia de Jânio Quadros.
5.1 A ameaça e a apreensão do golpe e a defesa da “solução legalista”
À exceção da posição assumida pelo deputado Tristão da Cunha
44
, formou-se nos dois
primeiros dias de pronunciamentos, 26 e 27 de agosto, um grande consenso entre os
44
O deputado Tristão da Cunha (PR/MG), na 157ª Sessão (Extraordinária noturna), em 26 de agosto, em
debate com o deputado Aurélio Vianna (PSB/AL), apresentou o seguinte posicionamento, totalmente isolado
em relação ao contexto de pronunciamentos legalistas: “Meu nobre colega, desde a proclamação da
República, não houve democracia no Brasil. Durante quarenta anos vivemos num regime de oligarquia em
que não houve eleições. Os grandes resolviam o problema político do Brasil. De 1930 para cá, é uma sucessão
de hiatos constitucionais constantes. Isso prova que o regime não pode funcionar. E isso nós, parlamentaristas,
vimos dizendo sempre. Não recrimino as intervenções militares porque elas é que nos têm salvo da anarquia.
Essas intervenções vêm, a contragosto do Exército, nos momentos oportunos, para livrar o País da desordem.
Isso não é regime. Temos de mudar as instituições, se não teremos de cair não sei onde, porque vamos, de
queda em queda, há 70 anos, sem saber o destino que nos aguarda. (...) Se houvesse regime democrático no
Brasil, mas não há. E não darei um passo para defender esse regime , que deixa o povo na miséria e está
condenado na opinião pública. (...) É uma farsa democrática aquela em que vivemos”. (p. 6248 – 6249).
149
deputados de que a posse do vice-presidente João Goulart deveria ser garantida
simplesmente por uma questão de respeito constitucional, não sendo admitida qualquer
“solução de continuidade”.
Apesar do consenso dos parlamentares, estava muito presente nos deputados a
iminência do golpe militar para impedir a posse de João Goulart. Acerca desse ponto, duas
questões serão enfocadas. A primeira diz respeito que a trama de um possível golpe militar
era tratada de forma eufêmica, ou seja, sem se fazer menção diretamente aos golpistas.
Existia uma entidade, “Forças Armadas”, a quem se apelava veementemente o
cumprimento de suas tradições democráticas e a exortação de alguns de seus líderes como o
marechal Lott, defensor da posse de Goulart. A segunda questão era a vontade manifesta
dos deputados pela defesa da Constituição custasse o que custasse. Esta segunda questão
estava intimamente ligada ao fato de que existia no ar um clima de profunda dúvida em
relação à saúde da democracia no Brasil: verdadeiramente os deputados duvidavam que o
regime democrático fosse sobreviver ao final desse episódio.
Nesse sentido, a seguir, será realizada a análise dos pronunciamentos dos deputados
ao longo das sessões legislativas
45
realizadas entre 26 e 27 de agosto. Nesse sentido, serão
tratados os seguintes temas que estavam presentes nos discursos parlamentares desses dias:
a) o medo de golpe militar e ; b) a posição dos parlamentares pela posse de João Goulart e a
decidida posição contrária ao golpe branco (alteração de regime político e tramitação no
45
Tratam-se das sessões legislativas 155ª (Extraordinária matutina), 156ª (Extraordinária vespertina) e 157ª
(Extraordinária noturna), realizadas em 26 de agosto e da 158ª sessão, realizada em 27 de agosto.
150
Senado de proposta de emenda constitucional prevendo a eleição indireta do presidente e
do vice-presidente), também conhecido como “solução de continuidade”.
5.1.1 O medo do golpe militar e o eufemismo
Na quase unanimidade dos pronunciamentos dos deputados federais que defendiam a
posse constitucional de João Goulart estava a preocupação de que a crise gerada pela
renúncia de Jânio Quadros provocasse o que eles chamavam de “solução de continuidade”,
ou seja, qualquer encaminhamento, em relação à posse do novo presidente, que não levasse
em consideração o mandamento constitucional.
A possibilidade de um golpe militar era tratada pelos deputados da seguinte forma; 1)
a partir de pronunciamentos que, mesmo acreditando na possibilidade efetiva de golpe,
exortavam a imagem democrática e legalista das Forças Armadas em momentos de crise
política e; 2) a partir de intervenções de deputados que consideravam que um golpe militar
já estava em andamento naquele momento.
Na primeira espécie de manifestações dos parlamentares, estava estampada a
preocupação dos deputados com uma possível ameaça à ordem institucional, a partir de um
golpe militar. Contudo, tal preocupação era demonstrada de forma velada, a partir de um
151
discurso de confiança na tradição “legalista” das Forças Armadas. Veja-se, nesse sentido, o
pronunciamento do deputado Bezerra Leite (PTB) na 155ª sessão:
As Forças Armadas deverão cumprir fielmente os seus deveres constitucionais,
assegurando a ordem pública, garantindo as instituições e preservando, em toda
a sua pureza, em toda a sua essência, o regime democrático.
As reiteradas declarações dos chefes militares de que serão os fiadores da
legalidade e da ordem, tranqüilizam a Nação Brasileira.
Nesta hora de transição que vive o País, precisamos de calma, ponderação e
sobretudo de moderação em novos pronunciamentos e em nossas atitudes.
O destino da nacionalidade e a defesa própria do regime democrático estão a
exigir de cada cidadão a exata compreensão do momento que estamos vivendo.
Podemos confiar tranqüilamente em João Goulart. Em sua longa atuação
político-partidária, ele sempre soube se conduzir como um trabalhista consciente
e idealista, pugnando pela justiça social, pela melhor distribuição das riquezas e
das oportunidades, pela maior assistência aos trabalhadores, pela contínua e
progressiva humanização do sistema capitalista, pela melhoria das condições de
vida do nosso povo, sem recorrer às soluções extremadas, sem o recurso de
processos revolucionários (p. 6219).
Pode-se dividir este pronunciamento em duas partes que, em comum, apresentam
“dois suspeitos”: as Forças Armadas e João Goulart. A suspeita em relação às Forças
Armadas é a do próprio deputado. Já a suspeita em relação a Goulart é oriunda das Forças
Armadas, a qual Leite tenta desmistificar. Retome-se o início do excerto:
As Forças Armadas deverão cumprir fielmente os seus deveres constitucionais,
assegurando a ordem pública, garantindo as instituições e preservando, em tôda
a sua pureza, em toda a sua essência, o regime democrático.
As reiteradas declarações dos chefes militares de que serão os fiadores da
legalidade e da ordem, tranqüilizam a Nação Brasileira.
Nos dois parágrafos acima, está contida uma profunda preocupação com um possível
golpe militar. O deputado menciona que as Forças Armadas “deverão cumprir fielmente os
seus deveres constitucionais” e que essas deverão assegurar “em toda a sua essência, o
regime democrático”. Como se sabe, a posse de Goulart estava amparada pela Constituição
152
de 1946 e se tratava de um ato político que, em nenhum dispositivo constitucional, previa a
intervenção das Forças Armadas. Contudo, no pronunciamento de Leite, o elemento
“Forças Armadas” aparece com claro relevo como o elemento garantidor da continuidade
do regime democrático. Poderia-se argumentar que esta garantia de que tratava o deputado
tivesse a ver com possíveis agitações internas, oriundas de grupos extremistas, ou
revolucionários, e que as Forças Armadas deveriam intervir no sentido de manter a ordem
institucional. Contudo, não é em relação a qualquer grupo extremista que a manifestação do
deputado denota suspeita em torno da saúde da democracia, mas em relação às próprias
Forças Armadas. Note-se a expressão, as Forças Armadas “deverão cumprir fielmente os
seus deveres constitucionais” e que deverão assegurar “em toda a sua essência, o regime
democrático”. O dever das Forças Armadas de cumprir a Constituição demonstra uma
apreensão do parlamentar de que esse dever estava na iminência de ser, pelo contrário,
descumprido. É por esta razão que Leite, logo após afirma que o “destino da nacionalidade
e a defesa própria do regime democrático estão a exigir de cada cidadão a exata
compreensão do momento que estamos vivendo”. De cada cidadão, civil e militar, todos
devem manter o regime democrático. Para tanto, deveria ser assegurada a posse de João
Goulart.
É interessante notar que em outra parte do excerto, Leite argumenta sobre a
“tranqüilidade” que pairava sobre a “Nação Brasileira”, a partir das declarações dos chefes
militares de que eles seriam os “fiadores da legalidade e da ordem”. A suspeita de golpe
militar no discurso do deputado fica clara se perguntar: e já não estão nas atribuições dos
153
chefes militares tais preceitos, ou seja, os de manter a legalidade e a ordem? Por que esses
chefes deveriam se pronunciar acerca dessas obrigações constitucionais?
Tal suspeita fica ainda mais clara quando o deputado, na segunda parte do excerto,
defende João Goulart, anunciando seu espírito democrático e não revolucionário, o qual era
notória outra suspeita, a dos ministros militares de Jânio Quadros que tentavam o golpe
naquele momento
46
:
Podemos confiar tranqüilamente em João Goulart. Em sua longa atuação
político-partidária, ele sempre soube se conduzir como um trabalhista consciente
e idealista, pugnando pela justiça social, pela melhor distribuição das riquezas e
das oportunidades, pela maior assistência aos trabalhadores, pela contínua e
progressiva humanização do sistema capitalista, pela melhoria das condições de
vida do nosso povo, sem recorrer às soluções extremadas, sem o recurso de
processos revolucionários.
A insistência com que Leite aponta as qualidades de Goulart, na verdade, serviu para
compor o seu argumento, direcionado aos possíveis golpistas militares, aos quais ele tinha a
suspeita da existência, de que Goulart não representava nenhuma ameaça à ordem política
vigente. As expressões “contínua e progressiva humanização do capitalismo”, “sem
recorrer às soluções extremadas” e “sem o recurso de processos revolucionários” foram
argumentos lançados para demonstrar que, na visão do deputado, Goulart tinha
preocupações sociais, mas que, em nenhum momento, ele transigiria em relação à
manutenção do sistema capitalista (em troca do “comunismo” ao qual ele era acusado) e da
46
No manifesto dos ministros militares Sílvio Heck, Odílio Denys e Gabriel Grum Moss, assim era vista a
posse de João Goulart: “na Presidência da República, em regime que atribui ampla autoridade de poder
pessoal ao Chefe da Nação, o sr. João Goulart constituir-se-á, sem dúvida, no mais evidente incentivo a todos
aqueles que desejam ver o país mergulhado no caos, na anarquia, na luta civil. As próprias Forças Armadas,
154
ordem política democrática. Tome-se agora excerto da manifestação do deputado Anísio
Rocha (PSD), também ocorrida na 155ª Sessão:
Sr. Presidente, graças a Deus este momento é de tranqüilidade para o Brasil.
Ontem foi empossado pelo Congresso Nacional o Presidente da Câmara dos
Deputados, Dr. Ranieri Mazzilli, e as Forças garantiram, como sempre o
fizeram, a democracia e as instituições livre brasileiras.
Faço aqui um apelo e – por que não dizer? – presto aqui uma homenagem a
esses três Ministros Militares que souberam agir com firmeza e, antes de tudo,
com patriotismo (p. 6219).
A manifestação do deputado Anísio Rocha levanta dois pontos importantes. O
primeiro ponto, exposto no primeiro parágrafo, diz respeito à garantia que as “Forças”, ou
seja, as Forças Armadas deram à posse do presidente da Câmara dos Deputados na cadeira
presidencial em virtude de o vice-presidente estar naquele momento ausente do país. Note-
se que se o regime democrático estivesse devidamente consolidado naquele momento, não
haveria qualquer razão para que as “Forças” garantissem a “posse” do presidente da
Câmara do Deputados e assegurassem um “momento de tranqüilidade”. Na verdade, a
afirmação do deputado Rocha demonstra um temor em relação à situação do momento, pois
as Forças Armadas só poderiam ter garantido a “ordem” frente à iminência de uma suposta
“desordem” provocada, ou por setores alheios, ou por membros das próprias Forças
Armadas.
O segundo ponto importante da manifestação diz respeito à homenagem prestada pelo
deputado aos três ministros militares que souberam “agir com firmeza e, antes de tudo, com
infiltradas e domesticadas, transformar-se-iam, como tem acontecido noutros países, em simples milícias
comunistas” (LABAKI, 1986, p. 150).
155
patriotismo”. Ora, já se tinha a informação de que justamente os ministros militares haviam
manifestado seu desconforto com a posse de Goulart. O deputado presta a homenagem aos
ministros, elevando a “firmeza” e o “patriotismo” de suas ações, mas não menciona, em
nenhum momento do pronunciamento, quais são essas ações e se os referidos ministros
agiram nos termos da legalidade constitucional. Na verdade, o deputado não homenageia as
“ações” e sim a “omissão” de até então os ministros não terem, de fato, deflagrado alguma
“solução de continuidade”, ferindo os preceitos legais então vigentes.
A partir de agora serão apresentadas as apreensões de deputados no sentido de já
entenderem estar em curso um golpe militar naquele momento. Inicia-se pelo
pronunciamento do deputado Aurélio Vianna (PSB/AL) na 155ª sessão:
Dizíamos certa vez que não precisávamos ser profetas nem filhos de profetas
para proclamar a fragilidade do regime que vige no País. Estamos à espera do Sr.
João Goulart que já saiu, segundo as emissoras, de Singapura e se dirige para o
País, a fim de exercer o mandato presidencial até o fim. Ontem à noite e hoje de
madrugada as estradas para os aeroportos estavam sob piquete, ocupadas por
fôrças militares. No aeroporto de Brasília, também tanques à frente. No interior,
fôrças embaladas da aeronáutica. Aviões desciam e os passageiros ficavam à
espera das fôrças da Aeronáutica que os corriam à procura do Vice-Presidente da
República.
(...)
Isto não é boato. É verdade. Mas os pronunciamentos correm o Brasil e já se
ouviu hoje o último, de S. Ema. O Cardeal do Estado da Guanabara, D. Jaime
Câmara, a favor do cumprimento dos postulados constitucionais, na conjuntura
difícil que vive a pátria brasileira. E, pela Constituição, sucede ao Presidente da
República, nos seus impedimentos, ou por vacância, o Vice. Não havendo
eleições para preenchimento da primeira vaga, só haveria eleições, se
renunciasse o Presidente e o Vice-Presidente da República (p. 6225).
O tom no início do discurso do deputado Aurélio Vianna é categórico. Segundo ele, o
regime vigente no país na época, o regime democrático, era extremamente frágil. Ao longo
156
do excerto, dois elementos merecem especial destaque: a declarada apreensão em razão da
eminência de um golpe militar e a necessária defesa dos preceitos constitucionais em
relação à posse do vice-presidente em caso de vacância do cargo pelo titular. Acerca do
primeiro elemento, a referida fragilidade do regime democrático deve ser aliada ao fato,
narrado pelo deputado, de que membros das Forças Armadas estavam realizando piquetes
nas estradas e nos aeroportos à procura do vice-presidente João Goulart. O segundo
elemento é a defesa da legalidade constitucional. Nesse sentido, Vianna refere-se a
“pronunciamentos” que “correm o Brasil” em defesa de uma solução legal ao impasse
político. Exemplifica estes “pronunciamentos” com o do Cardeal D. Jaime Câmara. Por
fim, ressalta mais uma vez a necessidade do respeito à Carta Constitucional, no momento
em que dá a explicação legal que justifica a posse de Goulart.
Em aparte ao pronunciamento de Vianna, o deputado Celso Brant (PR/MG) manifesta
também sua apreensão sobre a possibilidade de um golpe militar em curso.
Deveríamos solicitar ao atual Presidente da República informações sobre que
tropas são essas que andam vigiando os aviões, se têm ordens para isso, de quem
são essas ordens, se S. Exa. Está de acôrdo com as mesmas e se tomou
providências para acabar com essa situação (p. 6225).
Defende Brant, a partir do pronunciamento de Vianna, que a Câmara dos Deputados
deveria solicitar informações ao presidente em exercício, deputado Ranieri Mazzilli, sobre
a existência de tropas vigiando aviões à procura de Goulart. Brant quer saber de Mazzilli se
ele já tomou as providências necessárias para acabar com tal situação que, para o deputado,
é, no mínimo, irregular. Ele quer saber ainda que tropas são essas, que ordens possuem,
157
quem as erigiu e se o presidente em exercício está de acordo com elas, ou seja, se o
presidente em exercício está a favor ou contra a um suposto golpe em andamento.
Corroborando com a apreensão de um golpe militar em curso, pronunciou-se o deputado
Eloy Dutra (PTB/DF), na 158ª sessão, de 27 de agosto:
Sr. Presidente, já não é mais segredo nem seria o momento de detê-lo, se fosse,
que o Sr. Marechal Odílio Denys, tem a intenção, já agora ratificada por um
homem da responsabilidade do Marechal Lott, de prender o Dr. João Goulart,
tão logo pise o território nacional. É do conhecimento desta Casa que um oficial
do Exército, acompanhado de outros, vistoriou um avião de carreira à procura do
Sr. João Goulart, na sua posição de que S. Exa. nele estivesse.
Sr. Presidente, não seria mais o momento de qualquer reserva em torno dos fatos
que passam. A verdade é que um golpe pré-fabricado, conforme várias vezes
comentei da tribuna, já há muito estava preparado e a primeira fase desse golpe
seria exatamente forçar o Sr. Jânio Quadros a se enquadrar dentro dos princípios
da política internacional que a extrema direita prega e que desejava fosse o
caminho seguido pelo Presidente da República. A segunda parte do golpe foi
anunciada pelo próprio Almirante Penna Boto, ontem publicada no “O Globo”,
quando S. Exa. diz que a primeira parte foi vencida e agora resta a segunda, isto
é, a prisão do Dr. João Goulart. Não declarou textualmente, mas deixou clara
essa intenção (p. 6266).
Na passagem acima, Dutra demonstra nitidamente que um golpe militar estava em
operação. Golpe arquitetado em duas etapas: uma renúncia forçada de Quadros e o
impedimento de posse e ameaça de prisão de Goulart. O golpe, segundo o deputado, fora
denunciado por Lott, em referência ao seu manifesto lançado no dia anterior, e tinha como
artífice, Odílio Denys. Como apoio ao golpe, as forças econômicas internacionais e a
extrema direita brasileira.
158
5.1.2 A defesa da “solução legalista” no impasse da crise da renúncia de Jânio
Quadros e a peremptória negativa à “solução de continuidade”
É incontestável afirmar que, a partir da leitura dos discursos proferidos pelos
deputados no período, era praticamente unânime a posição legalista na Câmara Federal.
Dito por outras palavras: mesmo após o início das discussões acerca da instituição do
sistema parlamentarista de governo, estava claro aos deputados federais que João Goulart
deveria, por dever constitucional, assumir a Presidência da República no lugar de Jânio
Quadros.
Contudo, será visto que, de acordo com o desenrolar dos episódios da crise da
renúncia de Quadros, apesar de ser mantida a idéia da posse de Goulart, de acordo com os
preceitos constitucionais, uma parte dos parlamentares passou ser mais flexível em relação
às condições que assegurariam essa posse. O resultado prático dessa flexibilidade foi o
conhecido arranjo constitucional parlamentarista que garantiu a ascensão do vice-
presidente, mas, ao mesmo tempo, dele retirou importantes poderes.
É de notar que nos dias 26 e 27 de agosto a majoritária opinião dos deputados era
mesmo pela posse do vice-presidente dentro dos estritos preceitos estabelecidos pela
Constituição Federal, ou seja, no sistema presidencialista de governo. O argumento base era
o de simplesmente empossar Goulart, numa troca institucional dos poderes presidenciais
159
nos termos do art. 79, da Carta de 1946. Nesse sentido, veja-se a posição do deputado
mineiro pessedista Último de Carvalho na 158ª sessão, de 27 de agosto:
(...) Teremos que decidir sobre uma situação de fato. Eu votarei pela
Constituição. Irei ao sacrifício, não pela posse do Sr. João Goulart, porque S.
Exa. não tem que tomar posse, sua investidura na Presidência da República foi
automática. (Palmas).
Nunca poderíamos negar a posse ao Sr. João Goulart, mas, sim, cassar-lhe o
mandato de Presidente da República, depô-lo. E eu, como representante do povo,
a qualquer momento, irei ao sacrifício para garantir o exercício da mais alta
magistratura do País ao Sr. João Goulart (p. 6268).
O pronunciamento de Último de Carvalho
47
revelou três elementos importantes. O
primeiro elemento era a sua apreensão em relação a um até então possível golpe militar. Os
outros dois, de cunho constitucional: ou a simples investidura de Goulart como presidente
da República ou o seu impedimento por cassação de mandato. A apreensão em relação a
um possível golpe militar ficou clara em dois momentos de seu pronunciamento, quando o
deputado revelou que iria “sacrificar-se” pela manutenção da ordem constitucional. A
simples investidura como presidente foi argumentada de forma peremptória, ou seja, disse o
deputado que não se sacrificaria pela posse de Goulart, mas pela Constituição, tendo em
vista que a posse do vice-presidente já havia ocorrido de forma “automática” com a
renúncia de Quadros. Nesse ponto, Último de Carvalho estava afirmando que não haveria o
que se discutir sobre a investidura, somente sob duas hipóteses: ou um golpe militar, que
era a sua apreensão, conforme já referido, ou a sua cassação nos termos da Constituição
47
No dia anterior, o deputado fez similar pronunciamento: “sobre a posse do eminente presidente João
Goulart não devemos fazer apreciações. É da essência do regime a sucessão, é natural a posse de S. Exa. Acho
que devemos simplesmente fazer votos para que o eminente Presidente João Goulart, ao assumir o governo
em nacional, com um ministério de coalizão, de forma que todas as forças vivas da Nação sejam convocadas e
participem do novo governo. Acho que nossa preocupação deve ser no sentido destes votos ao Presidente João
160
Federal, a qual aparece como o segundo elemento de cunho constitucional, mas que
Carvalho apenas fez menção em seu pronunciamento, não cogitando sequer essa
possibilidade. Interessante que o argumento dos militares articuladores do discurso
“solução militar” era justamente o da cassação do mandato de Goulart via argumentos
constitucionais. No mesmo sentido do argumento de Carvalho, argumenta o petebista Eloy
Dutra:
A renúncia do Sr. Jânio Quadros deve ser encarada como ato de rotina dentro do
regime democrático. E assim entendeu o Congresso Nacional, dando posse
imediata ao ilustre Presidente desta Câmara, Deputado Ranieri Mazzilli, que, por
sua vez, passará a faixa presidencial ao legítimo Presidente da República, Dr.
João Goulart (p. 6221).
Está claramente estampada, na manifestação acima, a posição de que a posse de
Goulart se tratava de um mero ato administrativo, tendo em vista o estipulado na
Constituição Federal. Ato administrativo, em si, representa um regramento jurídico, ou seja,
não haveria qualquer coisa a se discutir naquele instante. Bastaria a investidura de Goulart
quando de sua volta do exterior e ele passaria normalmente ao exercício do governo,
conforme a lei.
Goulart, não quanto a sua posse , que implicaria a sobrevivência do regime democrático” (155ª sessão, p.
6221).
161
5.2 A iminência do golpe militar: o “diagnóstico de desordem” da Câmara dos
Deputados
A apreensão da ameaça de um golpe militar, que foi o principal foco nos
pronunciamentos dos deputados nos dias 26 e 27 de agosto, se transformou na certeza de
que, de fato, o golpe estava sendo naquele momento executado. Nesse sentido, reafirma-se
o desejo dos deputados federais pela manutenção da posse de João Goulart, mesmo que isso
pudesse representar o fechamento do Congresso Nacional como represália por parte dos
militares defensores da “solução militar”. Evidentemente que essa apreensão gerou, como
se sabe, a proposta do sistema parlamentarista de governo, a qual será analisada na seção
seguinte. Por ora será apontado o “diagnóstico de desordem” na visão dos parlamentares da
Câmara Federal para a crise em tela, a partir dos pronunciados entre os dias 28 e 31 de
agosto
48
. Nesse sentido, o “diagnóstico de desordem” nos pronunciamentos dos
parlamentares residia justamente na posição dos ministros militares, Odílio Denys, Sílvio
Heck e Grum Moss de impedir a posse do presidente João Goulart. Inicia-se pela
manifestação do deputado Jonas Bahiense (PTB/RJ):
Sr. Presidente, tenho a impressão de que esta Casa vive hoje seus últimos
momentos, e não quero, de forma alguma, que seus Anais não contenham meu
protesto em nome do povo fluminense.
Julgo de meu dever denunciar à Nação o crime que se pretende praticar,
impondo-se ao Congresso Nacional, através de um ultimatum, a obrigação de
impedir a posse do Presidente João Goulart.
48
Tratam-se das seguintes sessões legislativas: 159ª (28 de agosto), 160ª (29 de agosto), 161ª (Extraordinária
noturna, 29 de agosto), 162ª (30 de agosto), 163ª (Extraordinária matutina, 31 de agosto)
162
Não querem, Sr. Presidente, esses poucos militares que assim decidiram sequer
assumir, perante o mundo e perante o País, essa responsabilidade.
A essas declarações, feitas à imprensa nacional e internacional pelo Marechal
Odílio Denys, de que as Forças Armadas estão no firme propósito de preservar a
legalidade, desejo opor a verdade, para afirmar que, desde os primeiros instantes
da posse do atual Presidente da República, Deputado Ranieri Mazzilli, foi dito
pelo Marechal Denys aos representantes da bancada do PTB que de maneira
alguma se daria posse ao Presidente João Goulart. Fórmula alguma seria aceita
pelo Ministro da Guerra, hoje na verdade quem dirige este País, quem impõe à
Nação brasileira a mais terrível das ditaduras – a ditadura militar, sem apoio na
consciência democrática do nosso povo (p. 6281).
O pronunciamento acima é extremamente representativo em relação ao sentimento
dos demais parlamentares nas sessões da Câmara. Inicialmente, é importante mencionar a
certeza que muitos deputados tinham em relação aos “últimos momentos” do parlamento
brasileiro referidos por Bahiense. Chegou-se a acreditar que o golpe militar intentado seria
plenamente vitorioso. Entretanto, pelo menos em relação aos deputados que se expuseram
manifestando suas posições, duas questões eram praticamente unânimes: a defesa da posse
de Goulart e a necessidade do parlamento resistir até o momento de seu fechamento.
O segundo elemento importante a ser ressaltado a partir do pronunciamento em
tela foi a denúncia do deputado, também presente em outras manifestações parlamentares,
de que os ministros militares, para dar ares de legalidade ao golpe, forçavam do parlamento
a declaração de impedimento de João Goulart. Nesse ponto, Bahiense completou a
denúncia afirmando que “esses poucos militares que assim decidiram sequer assumir,
perante o mundo e perante o País, essa responsabilidade”. “Esses poucos militares”, em
referência aos três ministros militares, era expressão também comum nos pronunciamentos
dos deputados, tendo em vista que havia uma posição na Câmara Federal de que o golpe era
163
de responsabilidade dos três ministros e não da corporação militar como um todo, visto que
se sabia que as Forças Armadas, mormente o III Exército, não apoiavam a ação golpista.
Insiste-se no ponto de que no âmbito parlamentar era patente a posição das mais
diferentes correntes partidárias pela posse de João Goulart: dos partidos tidos como mais à
direita, como o PRP de Plínio Salgado
49
, às alas mais à esquerda do PTB e do PSB. O
argumento utilizado pelos ministros militares para impedir a posse de Goulart, ou seja, uma
possível conexão entre o vice-presidente e o movimento comunista nacional e
internacional, era francamente refutada pelos deputados, como se pode perceber a partir de
pronunciamentos como o do deputado Benjamim Farah (PSP/GB) em 29 de agosto:
(...) o grande receio dos guardiões da democracia brasileira é de que o
comunismo tome conta do Brasil com a posse do novo Presidente da República.
Já ontem, aqui, o eminente colega Deputado Plínio Salgado, que tem trinta anos
de luta contra o comunismo, passou um atestado de ideologia ao Sr. João
Goulart, atestado que merece toda consideração, pois todo mundo sabe que o Sr.
Plínio Salgado não tem nenhum compromisso com o comunismo, mas, ao
contrário, é visceralmente contra o comunismo (Sessão 161ª, Suplemento, p. 13).
Uma das manifestações mais elucidativas do “diagnóstico de desordem” foi a
Representação impetrada pelo deputado udenista, Adauto Lúcio Cardoso (UDN/GB),
perante a Presidência da Câmara dos Deputados, contra o então presidente em exercício,
49
Em pronunciamento proferido na 157ª sessão, de 26 de agosto, foi desta forma que Plínio Salgado defendeu
João Goulart: “O Dr. João Goulart nas eleições para Vice-Presidente da República teve o apoio de meu
Partido. S. Exa ganhou por cerca de 150 mil votos. Meu partido deu-lhe, seguramente, de 500 a 600 mil votos.
Encontramos cercas dificuldades em relação ao ilustre e digno Marechal Teixeira Lott, pela campanha
comunista que se fazia em seu favor. Mas não houve dificuldades em relação ao Sr. João Goulart. (...) quero
dizer que entendemos que o nosso Partido foi o responsável direto pela vitória do Sr. João Goulart para a
Vice-Presidência da República” (p. 6251).
164
Ranieri Mazzilli, e os três ministros militares, Odílio Denys, Grum Moss e Sílvio Heck
50
. A
Representação teve como sustentação jurídica os seguintes textos legais: 1) art. 13, da Lei
n° 1079, de 10 de abril de 1950, que atribuía os crimes de responsabilidade dos ministros
de Estados contra segurança interna a partir dos seguintes atos (Lei de Responsabilidade) e;
2) arts. 5°, 6° e 8°, da Lei n° 1802, de 5 de janeiro de 1953 (Lei de Segurança do Estado).
Primeiramente a Lei n° 1079/50, art. 13:
Art. 13. São crimes de responsabilidade dos Ministros de Estado:
1 - os atos definidos nesta lei, quando por êles praticados ou ordenados;
2 - os atos previstos nesta lei que os Ministros assinarem com o Presidente da
República ou por ordem dêste praticarem;
3 - A falta de comparecimento sem justificação, perante a Câmara dos
Deputados ou o Senado Federal, ou qualquer das suas comissões, quando uma
ou outra casa do Congresso os convocar para pessoalmente, prestarem
informações acêrca de assunto prèviamente determinado;
4 - Não prestarem dentro em trinta dias e sem motivo justo, a qualquer das
Câmaras do Congresso Nacional, as informações que ela lhes solicitar por
escrito ou prestarem-nas com falsidade.
Já os termos da Lei n° 1802/53, arts. 5°, 6° e 8° seguem abaixo:
Art. 5°. Tentar diretamente, ou por fato, mudar, por meios violentos, a
Constituição, no todo ou em parte, ou a forma de governo por ela estabelecida.
Art. 6°. Atentar contra a vida, a incolumidade e a liberdade:
a) do Presidente da República, de quem eventualmente o substituir ou, no
território nacional, de chefe de Estado estrangeiro.
(...)
Art. 8°. Opor-se, diretamente e por fato, à reunião ou livre funcionamento de
qualquer dos poderes políticos da União.
50
A referida Representação foi publicada duas vezes no Diário da Câmara dos Deputados, nos anais
referentes às 159ª e 160ª sessões legislativas.
165
Além da Representação impetrada por Adauto Lúcio Cardoso, vários deputados
manifestaram-se solicitando do então presidente Ranieri Mazzilli, ou a prisão, ou mesmo a
exoneração dos ministros militares. Como um dos vários exemplos de manifestações nesse
estilo, vejam-se as palavras de Ary Pitombo (PTB/AL) em 31 de agosto:
O Sr. Ranieri Mazzilli deve nomear novos Ministros militares para que o país
saia do caos, da desordem em que se encontra e volte à normalidade.
Sr. Deputado Benjamim Farah, pode estar certo de que o Congresso cumpriu o
seu dever. Já ontem deu o primeiro passo para isto, reconhecendo no Sr. João
Goulart o Presidente da República. Esperamos, agora, que o Sr. Ranieri Mazzilli,
como Presidente interino da República, demita imediatamente esses Ministros
militares e dê ao Brasil a paz que todo o povo deseja (p. 6359).
É interessante nesse pronunciamento a existência concomitante do “diagnóstico de
desordem” e da “solução de ordem”. O primeiro revela-se na manutenção dos ministros
militares golpistas no exercício de suas funções. Já a “solução de ordem”, reside
simplesmente na demissão dos mesmos e na posse de novos “para que o país saia do caos,
da desordem em que se encontra e volte à normalidade”.
5.3 O “diagnóstico de desordem” e a “solução de ordem” no discurso “solução de
continuidade”
O discurso pela “solução de continuidade” teve sua origem e seu desenvolvimento
articulados no interior do Congresso Nacional. Na seção anterior, já foi visto que a intenção
166
dos congressistas brasileiros, a partir dos pronunciamentos dos deputados federais, era
efetivamente a de garantir a posse de João Goulart. É, portanto, lícito afirmar que o
Congresso Nacional efetivamente foi mais um dos grupos políticos que sustentaram a
ascensão de Jango para o cargo de presidente.
É fato, entretanto, que a investidura de João Goulart na Presidência da República
resultou no pagamento de um alto preço: a troca de sistema político, o que efetivamente
retirou a maioria dos poderes presidenciais até então garantidos constitucionalmente. Dito
de outra forma: uma reforma política foi realizada diretamente na “espinha dorsal” da
estrutura da organização dos poderes e, portanto, de suas prerrogativas. O parlamentarismo
foi a fórmula encontrada pelo parlamento brasileiro para a solução do impasse gerado pela
disputa entre os discursos “solução militar” e “solução legalista”.
Sabe-se que o resultado foi construído no sentido de buscar contemplar posições que
eram, entre si, antagônicas, ou seja, Goulart foi empossado como presidente, mas perdeu
praticamente todos os seus poderes com a troca casuística do sistema político de governo.
Basicamente para os deputados federais era preciso resolver a questão no nível político,
pois, dado o grau de antagonismo entre os discursos em disputa, não seria nada estranho o
início de uma guerra civil no Brasil.
Assim, será analisado como surgiu e como se desenvolveu a “solução de
continuidade” que representou a combinação do parlamentarismo com a posse de João
Goulart, a parir de dois momentos. No primeiro momento, será visto como foi recepcionada
167
pelos deputados, logo no início da crise, a proposta da instituição do parlamentarismo.
Após, será tratada a discussão no âmbito da Câmara dos Deputados que redundou na
aprovação da emenda e a garantia da posse de Goulart.
5.3.1 Os primeiros rumores do parlamentarismo e a peremptória negativa
A idéia da implantação do sistema parlamentarista foi debatida logo no primeiro dia
após a renúncia de Quadros. Nesse sentido, os deputados presentes na 155ª sessão, em 26
de agosto, em alguns momentos, alternavam a discussão sobre a legalidade da posse de
Goulart com a instituição do sistema parlamentarista, pois, para alguns parlamentares, a
crise política que se iniciava ocorria justamente por ser o próprio presidencialismo um
sistema instável.
Entretanto, em nenhum momento, os deputados que naquele dia se pronunciaram a
favor do parlamentarismo apontaram esse sistema político como sendo a alternativa mais
adequada para a solução da situação política naquela conjuntura. Pelo contrário, a idéia
tanto dos que defendiam o sistema como a dos seus contrários era a de que, somente após o
término do governo de Goulart poder-se-ia experimentar o parlamentarismo sem que sua
instituição fosse tida como casuística. Do contrário, sua implantação era tida como um tipo
de “solução de continuidade”. Pode-se ter a clara percepção disso no debate travado pelos
168
deputados Eloy Dutra e Paulo Freire
51
, quando o primeiro sugere o sistema e o segundo
contradita-o como solução ao impasse da renúncia de Jânio Quadros como abaixo segue:
O SR ELOY DUTRA:
(...) Acredito que a razão de toda esta crise decorre do regime presidencialista.
Acredito que esta Casa deva trabalhar com afinco para que, no próximo
qüinqüênio a emenda parlamentarista seja adotada e possamos, então, viver num
regime livre de impactos e emoções causadas pelas renúncias ou pelo poder
excessivo conferido ao Presidente da República.
(...)
O Sr. Paulo Freire – (...) nobre colega, há uma idéia por aí, a qual V. Exa já fez
uma referência, creio, de se instituir o regime parlamentarista.
O SR ELOY DUTRA – a partir do próximo qüinqüênio.
O Sr. Paulo Freire – Ah bem! Porque me pareceu ouvir que devia ser instituído
imediatamente. O Congresso iria dar um golpe nas instituições, na Constituição
se aceitasse essa idéia infeliz de se adotar a tese parlamentarista a toque de caixa,
para que o Sr. João Goulart não tomasse posse (...) (p. 6221).
A questão em torno do parlamentarismo, dessa forma, era apenas acessória em
relação a uma discussão mais ampla: a posse de Goulart. Tal posse só seria admitida, nos
momentos iniciais da crise, sob um clima de normalidade constitucional. A instituição do
parlamentarismo naquele momento, mesmo para os seus próprios defensores, era vista
como um tipo de golpe com o apoio do próprio Congresso Nacional, que servia como uma
espécie de “avalista legal” para dar legitimidade à quebra da ordem político-legal
pretendida pelos ministros militares. Nesse sentido, apesar de os deputados parlamentaristas
pronunciarem-se em defesa do sistema, não defendiam a sua instituição num instante de
crise (ou pelo menos não tinham coragem de defender o sistema parlamentar de forma
enfática naquele momento).
51
Em votação da emenda parlamentarista, em segundo turno na Câmara Federal, o deputado do PSP/MG,
Paulo Freire, votou favoravelmente pela instituição do sistema parlamentar de governo.
169
Por outro lado, a questão fundamental que perpassava pela quase unanimidade dos
discursos dos parlamentares era de que João Goulart deveria tomar posse com suas
prerrogativas políticas asseguradas. Seja o parlamentarismo, ou outra proposta que
circulava no Senado Federal de chamamento de novas eleições, desta vez indiretas para
eleição de novo presidente
52
, eram medidas não admitidas pelos deputados. Nesse sentido,
muito significativo foi o pronunciamento de Almino Afonso (PTB/AM)
53
em 26 de agosto:
Afirma-se, por igual, que outros setores, no receio de um choque com estas áreas
militares, buscariam uma acomodação em termos em termos de fazer tramitar
por esta Casa soluções jurídicas imaginosas dentro das quais se mantivesse a
aparência de legalidade, mas que, ao invés, ferisse a fundo a própria instituição
democrática (p. 6250).
Dessa forma, nos primeiros dias da crise política, a partir dos pronunciamentos dos
deputados, parecia que o Congresso Nacional efetivamente iria defender a posse de João
Goulart sob a mais estrita égide legal. Contudo, a radicalização dos acontecimentos, apesar
de não ter comprometido a idéia inicial de garantir a posse do vice-presidente, ajudou o
parlamento brasileiro a ser mais sensível a uma solução que buscasse acomodar as
diferenças: uma solução, não de compromisso, mas de continuidade.
52
Em vários pronunciamentos, os deputados admitiam que circulavam muitos boatos acerca do momento. Um
desses boatos, trazidos ao plenário pelo deputado Aurélio Vianna (PSB/AL) na 155ª sessão, de 26 de agosto,
dizia respeito a uma provável emenda em tramitação no Senado Federal de eleição indireta de um novo
presidente da República: “(...) democracia racionada não é democracia, não vale como democracia (...). De
que nos serviria uma democracia totalmente mutilada se porventura for verdadeira a notícia de que o Senado
manipula uma emenda à Constituição para que a eleição do Presidente da República se processe pelo voto dos
Senadores e dos Deputados Federais, dos Congressistas (...)” (p. 6223).
53
O deputado Almino Afonso votou contra a aprovação em segundo turno da emenda parlamentarista.
170
5.3.2 A “solução de continuidade” parlamentarista: um duplo golpe contra
Goulart
Nesta seção, será analisada a discussão dos deputados em torno da proposta da
emenda parlamentarista
54
, tendo em vista as duas posições tomadas ao longo das sessões:
os deputados que apresentaram argumentos em favor da emenda e os outros parlamentares
que se pronunciaram contrários ao parlamentarismo. Dessa forma, será apresentado o
panorama das discussões no plenário da Câmara dos Deputados, apontando os argumentos
produzidos a favor e os contrários ao sistema parlamentarista de governo.
Inicialmente é importante a familiarização com os aspectos formais da emenda.
Assim, Em 29 de agosto, a Comissão Especial integrada pelos deputados Afonso Celso
(PSD), Djalma Marinho (UDN), Oswaldo Lima Filho (PTB) e Chagas Freitas (PSP)
produziu parecer à Emenda Constitucional n° 16, apresentada em 6 de julho de 1961, pelo
deputado Raul Pilla (PL) e mais 235 deputados subscritores
55
.
54
O foco principal das discussões sobre a emenda se deu em torno da indiscutível perda de poder que João
Goulart sofreria, a partir da adoção do sistema parlamentarista, o que, por si só, seria natural em se tratando de
um tipo de sistema de governo que, segundo seus críticos, entre os juristas constitucionalistas, atribui poderes
extremos ao poder legislativo, praticamente esvaziando as prerrogativas do Chefe de Estado que passa a ter
grosso modo atribuições meramente de representação externa. Na direção dessa crítica, veja-se a posição de
Dalmo Dallari: “O Chefe de Governo, por sua vez, é a figura política central do parlamentarismo, pois é ele
que exerce o poder executivo. Como já foi assinalado, ele é apontado pelo Chefe de Estado para compor o
governo e só se torna Primeiro Ministro depois de obter a aprovação do Parlamento. Por esse motivo é que
muitos consideram o Chefe de Governo, no parlamentarismo, um delegado do parlamento, pois ele só pode
assumir a chefia do governo e permanecer nela (...) com a aprovação da maioria parlamentar. Como assinalou
Loewenstein, não há como sustentar que no parlamentarismo se preserva a separação dos poderes”
(DALLARI, 1983, p. 207).
55
No parecer aparece expressamente a referência de que a emenda foi proposta por mais de dois terços dos
membros da Câmara dos Deputados, uma vez que a Casa era composta por 314 parlamentares. Como o
171
A referida Comissão proferiu parecer favorável ao projeto, justificando-o a partir dos
seguintes argumentos:
A instituição do sistema parlamentar que a Constituição de 1946 não adotou vem
sendo tentada, desde então, por sucessivas emendas constitucionais, como é do
conhecimento de toda a Nação. A República baniu o parlamentarismo dos
quadros constitucionais. Há setenta anos vive o Brasil as incertezas que
caracterizam, nos países de incipiente formação democrática, a experiência
presidencialista. Não vale recordar os erros e equívocos que sua prática tem
determinado, tais e tantos que estão, ao menos os mais recentes na memória de
toda a Nação (...). A emenda constitucional do eminente Sr. Raul Pilla, subscrita
por mais de dois terços da Câmara dos Deputados, (...) restaura em seu
esplendor, o sistema que deu ao Império o realce e o brilho dos maiores homens
públicos do Brasil em todos os tempos (Suplemento ao n° 151, 166ª sessão de 1°
de setembro de 1961, p. 02).
É interessante destacar que as justificativas produzidas pela Comissão Especial
desvinculam a discussão da Emenda do contexto da crise política pela qual o Brasil
atravessava. Tal desvinculação era propositada, uma vez que buscava dar um ar de total
imparcialidade para a tomada de decisão da Câmara dos Deputados frente ao golpe que no
momento se tramava no país. Nesse sentido, segundo esse raciocínio, tomar uma decisão
em prol ou contra o parlamentarismo significaria a tomada de uma decisão política
soberana e racional por parte dos representantes do povo, sem vinculação com qualquer
ameaça à ordem instituída. Para robustecer o argumento da imparcialidade e da decisão
soberana do Congresso, ao mesmo tempo em que era apresentada pela Comissão a emenda
parlamentar, estava junto no “pacote” a pronta defesa da posse de João Goulart. Nesse
sentido, é interessante o pronunciamento do deputado Euzébio Rocha (PDC/SP):
parecer da Comissão à proposta de emenda parlamentarista foi favorável, a referência da assinatura de mais
de dois terços dos parlamentares em favor da emenda serviu como mais um meio de legitimá-la e de
172
Sr. Presidente, o Parlamento brasileiro esteve perfeitamente à altura deste
instante histórico. Tomando conhecimento, em condições de absoluta
serenidade, da paixão do momento e da violência com que se erguiam contra ele,
postas à serviço da fraude, nos pronunciamos de forma categórica em
documento que escreve uma das mais belas páginas da vida parlamentar
brasileira em que se afirmou respeito à Constituição Federal que, no caso,
implica no cumprimento do seu Artigo 79, com a investidura do Sr. João
Belchior Marques Goulart na Presidência da República, com os poderes que o
povo lhe conferiu.
Sr. Presidente, um parlamento que assim decide tem toda autoridade para votar
neste instante a emenda parlamentar (...).
Sr. Presidente, agora está provado que o momento político exige solução de
equilíbrio, porque a coragem não é violência. A coragem é a capacidade de
resolver os problemas da Pátria com a serenidade devida (Suplemento ao n° 151,
p. 09).
Entretanto, o fato é que tal decisão política de extrema gravidade estava sendo tomada
tendo em vista justamente às pressões externas, o que é óbvio em se tratando de uma Casa
política que tem por característica ser sensível às pressões sociais, principalmente num
momento de radicalidade política como o que o país estava passando. A prova mais clara da
pressão com que o parlamento votava a emenda estava na própria alteração regimental que,
às pressas, também foi produzida para se discutir a matéria
56
.
Lido o projeto
57
, os deputados passaram à discussão da matéria e logo ficou clara a
constituição de dois discursos concorrentes: um em favor da emenda e o outro contrário a
convencer os deputados contrários à instituição do sistema.
56
Previamente à discussão da emenda propriamente dita, discutiu-se e votou-se, em regime de urgência, em
31 de agosto, nas 163ª e 164ª sessões, o texto que ficou conhecido com “Normas de emergência” para a
tramitação da emenda constitucional parlamentarista. Segundo tais normas, durante a discussão não seria
possível apresentar subemendas. A própria discussão sobre os méritos do projeto teve também restringidas as
orações dos deputados a dois representantes por partido em cada um dos dois turnos de discussão e votação,
conforme segue: “na discussão da emenda só poderão falar dois representantes de cada partido, por quinze
minutos improrrogáveis, não sendo permitida a apresentação de reposição acessória sugerindo modificá-la”
(p. 6367).
57
A apresentação do projeto de emenda constitucional n° 16/61, referente à instituição do sistema
parlamentarista de governo, bem como a sua discussão no plenário da Câmara dos Deputados, se deu nas
sessões n° 166 e 167, de 1° de setembro e nas 168ª e 169ª sessões legislativas de 2 de setembro. Tais sessões
173
mesma. Em relação ao discurso favorável à aprovação da emenda n° 16/61, os deputados
produziram os seguintes argumentos: a) A defesa do parlamentarismo estava presente nos
princípios e estatutos de alguns partidos; b) o Sistema Presidencialista de Governo
carregava muitas incertezas e fragilidades, além de ser um sistema personalista; c) a
instituição do parlamentarismo, naquele momento, evitaria uma “revolução”, cujo resultado
seria imprevisível e; d) o parlamentarismo servia para livrar o país da ameaça das forças do
materialismo dialético.
Já em relação aos parlamentares que se opuseram à emenda, foram produzidos os
seguintes argumentos: a) a instituição do sistema parlamentarista representava um claro
desrespeito à Constituição Federal para satisfazer os interesses dos ministros militares; b) a
aprovação do parlamentarismo representaria a falta de dignidade do parlamento brasileiro,
em razão do medo do fechamento do Congresso Nacional a partir de um golpe militar; c) o
parlamentarismo representava uma medida política casuística visando à limitação dos
poderes de João Goulart, vice-presidente eleito pelo povo brasileiro ; d) golpe branco nas
instituições e deposição de um presidente eleito; e) emenda parlamentarista seria aprovada
às pressas, sem que tivesse havido uma séria discussão acerca de um assunto de tamanha
importância e; f) o parlamentarismo representava o retorno ao poder dos partidos políticos
que haviam perdido as últimas eleições.
estão publicadas na edição de sábado, 2 de setembro de 1961, do Diário do Congresso Nacional, no
suplemento ao Diário n° 151.
174
Como é possível perceber, os argumentos produzidos em favor da emenda são de
duas ordens. Os argumentos A e B referem-se às próprias qualidades do sistema
parlamentarista. Já os argumentos C e D, correspondem ao fato de o sistema servir como
uma solução à crise política instaurada a partir da renúncia de Jânio Quadros.
Assim, os argumentos A e B favoráveis ao parlamentarismo foram justificados da
seguinte forma. O argumento A foi produzido por parlamentares de partidos como o PL e o
PSP, os quais afirmaram que esse sistema de governo estava presente nos seus estatutos
58
.
Já o argumento B visava a estabelecer as vantagens desse sistema em detrimento do
presidencialismo. Nesse particular, a Comissão Especial que deu parecer favorável à
emenda parlamentarista, defendeu-a apresentando as “fragilidades” do regime
presidencialista:
A República baniu o parlamentarismo dos quadros constitucionais. Há setenta
anos vive o Brasil as incertezas que caracterizam, nos países de incipiente
formação democrática, a experiência presidencialista. Não vale recordar os erros
e equívocos que sua prática tem determinado, tais e tantos que estão, ao menos
os mais recentes na memória de toda a Nação (p. 02).
Os argumentos B e C favoráveis ao parlamentarismo caracterizam a implantação do
sistema como um elemento de uma engenharia política destinada a sanar a crise da sucessão
de Quadros. O argumento B, “a instituição do parlamentarismo evitaria uma revolução,
cujo resultado seria imprevisível”, foi certamente o mais utilizado pelos parlamentares de
58
O deputado Paulo Lauro (PSP/SP) invocou o princípio parlamentarista de seu partido na 166ª sessão:
“Ainda agora, ao invocarmos na conjuntura atual, as normas, os princípios que marcaram as lutas do nosso
Partido político, vamos encontrar, logo no pórtico de seu programa, aquela inscrição que determina a adoção
175
todos os partidos, daí a caracterização de que se tratou de um elemento de uma complexa
engenharia política visando conformar, ao mesmo tempo, os discursos “solução militar” e
“solução legalista”. Note-se o caráter casuístico da medida na defesa do sistema pelo
deputado Ulisses Guimarães (PSD/SP): “uma razão fundamental, substancial e decisiva
arrasta minha decisão e meu voto: é a razão política, porque somente através deste sistema
podemos fazer com que a paz ingresse no seio da família brasileira” (Suplemento ao n°
151, de 2 de setembro de 1961, p. 12). Em tom ainda mais dramático argumenta Euzébio
Rocha (PDC/SP):
Quero, ao aparte do nobre colega, responder conclusivamente. É hoje o
Parlamento quem proclama o direito de empossar-se o Senhor João Goulart na
Presidência da República. Este não é um parlamento covarde capaz de decidir
sob a força das baionetas. (Palmas). Estamos decidindo, porque a conjuntura
política está a demonstrar que a violência, a morte, o derramamento de sangue
não convêm ao Brasil, e que o presidencialismo fracassou (Muito bem). Diante
dessa prova, não podemos deixar de votar o sistema parlamentarista. A nossa
coragem cívica está a ditar a solução de paz para todos os brasileiros
(Suplemento ao n° 151, de 2 de setembro de 1961, p. 10).
Por fim, a posição D em favor da aprovação da emenda tinha como argumento o fato
de que a instituição do novo sistema impediria a presença de elementos marxistas no
governo. Este argumento notadamente tinha um caráter que se coadunava com a vontade
dos ministros militares, pois que estava baseado na mesma apreensão: a de que a investida
de Goulart na Presidência da República, sob a égide do sistema presidencialista,
representaria a emergência de elementos do comunismo internacional e que transformaria o
do parlamentarismo, atendidas sempre as peculiaridades brasileiras, precedidas de consulta prévia ao
eleitorado” (Suplemento ao n° 151, de 2 de setembro de 1961, p. 10).
176
Brasil numa república sindicalista, sem paz nem ordem interna. Em defesa da proposição
D, veja-se a manifestação do deputado Rubem Nogueira (PSD/BA):
Sr. Presidente, Srs. Deputados, vamos votar a emenda parlamentarista para
reintroduzir a nossa Pátria na legalidade constitucional, restabelecer a
tranqüilidade dos espíritos, repor o nosso País no álveo do progresso e da
civilização cristã, nesta hora ameaçada pelas obscuras forças do materialismo
dialético e histórico (Muito bem; muito bem. Palmas) (Suplemento ao n° 151, de
2 de setembro de 1961, p. 11).
Já a posição política dos parlamentares que se pronunciaram contrariamente ao
sistema foi dividida basicamente em três linhas argumentativas. A primeira delas,
representadas pelas assertivas A, B, C e D, justificava que a instituição do sistema
representaria grosso modo um golpe nas instituições políticas e legais vigentes. A assertiva
E representa a reclamação de parlamentares sobre o fato de que o sistema parlamentarista
seria aprovado sem a necessária discussão a uma medida de tão drástica alteração no
funcionamento político-institucional brasileiro. A assertiva F denunciava que o
parlamentarismo representaria o retorno ao poder da elite política que governou o país até
antes da eleição de Quadros.
Dessa forma, as assertivas A, B C e D foram as mais comuns entre os críticos da
implantação sistema. As idéias que essas assertivas trazem basicamente são as de “golpe”,
“desrespeito à Constituição”, “impedimento do presidente constitucionalmente eleito”.
Nesse sentido, é interessante retomar o texto da assertiva A: “a instituição do sistema
parlamentarista representava um claro desrespeito à Constituição Federal para satisfazer os
interesses dos ministros militares”. Esta assertiva foi insistentemente pronunciada pelos
177
parlamentares contrários ao parlamentarismo, como, por exemplo, o deputado Giordano
Alves (PTB/RS):
A opinião pública, que está ao lado da legalidade, já não admite – desejo trazer,
para orientação de meus pares esta manifestação espontânea e generalizada da
população brasileira – qualquer arranhão, qualquer alteração no sistema
institucional do País, na Constituição atual para, sob pressão, sob coação, nos
submetermos a um imperativo ditado por alguns que hoje procuram subverter a
ordem do País e impor aqui o regime extralegal (Suplemento ao n° 151, de 2 de
setembro de 1961, p. 03).
As assertivas B, C e D representam justamente a conseqüência da adoção do
parlamentarismo para satisfazer a vontade dos ministros militares. Neste particular, é
interessante mencionar que a assertiva B
59
, ou seja, a “aprovação do parlamentarismo
representaria a falta de dignidade do parlamento brasileiro por medo desse ser fechado”,
significaria a conivência do Congresso com a ação golpista, pois a aprovação da Emenda
pelo Legislativo daria uma aparência de legalidade ao que, na verdade, conforme a
assertiva D
60
, seria um verdadeiro golpe branco nas instituições políticas e institucionais
brasileiras, uma vez que, de acordo com a assertiva C
61
, o parlamentarismo representava,
59
Em relação ao enunciado B, tome-se como exemplo novamente as palavras do deputado Giordano Alves
(PTB/RS): “Sr. Presidente, não podemos, por um preço qualquer, procurar manter aberto este Congresso. O
que precisamos é, a qualquer preço, isto sim – defender a dignidade do Parlamento brasileiro. Incorreríamos
no erro de incompatibilizarmos o Congresso Nacional com a opinião pública, com a consciência generalizada
do povo livre do Brasil, transigindo em nosso direito constitucional” extralegal (Suplemento ao n° 151, de 2
de setembro de 1961, p. 03).
60
Para exemplificar o enunciado D, será tomado um excerto do pronunciamento do deputado Aurélio Vianna
(PSB/AL) na declaração partidária indicando o voto contrário à emenda: “só uma coisa se explica: foi deposto
pelo Parlamento, se isto for aprovado, um Presidente da República. Isto é o que fica. Houve um golpe branco
nas instituições” (Suplemento ao n° 151, de 2 de setembro de 1961, p. 12).
61
Em relação ao enunciado C, veja-se a manifestação do deputado Floriceno Paixão (PTB/RS): “reiterando,
pois, meus pontos de vista aqui expendidos no início da semana, quero dizer que jamais receberá meu voto
qualquer proposição que tenha sido ou vier a ser apresentada nesta Casa, com o objetivo de limitar as do
Presidente da República, Dr. João Goulart, sob a égide do regime presidencialista” (Suplemento ao n° 151, de
2 de setembro de 1961, p. 05).
178
naquele momento, uma medida política casuística visando à limitação dos poderes de João
Goulart.
Outro argumento contrário à aprovação da Emenda parlamentarista está expresso no
enunciado E, refletindo o fato de que a aprovação da mesma seria feita às pressas, sem que
houvesse uma discussão mais aprofundada da matéria. Nesse sentido, independentemente
de qualquer uma das duas posições assumidas pelos parlamentares, já foi mencionada a
alteração no Regimento da Câmara dos Deputados que permitiu a discussão, em caráter de
urgência, da emenda. É interessante lembrar, como estava disposto na referida alteração,
que as discussões sobre a matéria, em primeiro e em segundo turno, deveriam ser feitas por
somente dois parlamentares de cada partido por apenas quinze minutos e sem direito a
apartes
62
.
Além disso, a emenda em si não foi debatida pelos parlamentares, tendo em vista que
ela propriamente não foi o palco principal das discussões dos mesmos. O instituto do
parlamentarismo representava naquele contexto, tanto para os contrários como
principalmente para os seus defensores, uma medida para solucionar o impasse político
decorrente da renúncia de Jânio Quadros. Na leitura dos Anais das discussões em plenário,
raríssimas vezes foram mencionados ou discutidos pontos da proposta, artigos ou incisos
específicos, tendo em vista que ela própria não era o mais importante no debate. Ficou claro
62
A oposição à emenda reclamou muito do novo regimento de discussão da matéria aprovado. Nas palavras
do deputado federal Aurélio Vianna (PSB/AL): “Dois Deputados por partido podem usar a palavra por quinze
minutos para discutir emenda ao diploma maior do País. Que o povo anote isto. Em 15 minutos ninguém pode
ler esta emenda, votada às pressas, velozmente, porque para alguns o tempo urge, o tempo corre, a Nação está
179
também que muitos parlamentares nem conheciam o texto da proposta com a profundidade
que uma discussão nesse nível mereceria. Nas palavras do deputado Aurélio Vianna
(PSB/AL), buscando discutir dispositivos específicos do projeto e sendo apartado pelo
deputado Bagueira Leal (UDN/ES):
O SR. AURÉLIO VIANNA:
(...)
[lê parte do projeto da emenda parlamentarista]
“A Câmara dos Deputados, na primeira sessão e pela maioria dos presentes,
exprimirá sua confiança no Conselho de Ministros. A recusa da confiança
importa a formação de um novo Conselho de Ministros” [fim da leitura].
Mas se estes não tiverem o apoio da Câmara, não forem por ela considerados
dignos de dirigir a Nação isso por três vezes e se merecer o Conselho de
Ministros já organizado um voto de desconfiança do Parlamento, que
acontecerá? Completando três votos de desconfiança, então a Câmara será
dissolvida.
O Sr. Bagueira Leal – Não ...
O Sr. Aurélio Vianna – É verdade, V. Exa. não leu. Vou ler. É o art 13. Ninguém
está lendo coisa nenhuma num assunto dessa natureza. Afirmei porque li. Ouça o
nobre deputado:
[novamente lê parte do projeto da emenda parlamentarista]
“Verificada a impossibilidade de constituir-se o Conselho de Ministros por falta
de apoio parlamentar, comprovada em consecutivas moções de desconfiança
opostas a três Conselhos, o Presidente da República poderá dissolver a Câmara
dos Deputados, convocando novas eleições que se realizarão no prazo máximo
de noventa dias” [fim da leitura] (Suplemento ao n° 151, de 2 de setembro de
1961, p. 11).
A questão, portanto, era solucionar o impasse gerado entre os partidários dos
discursos “solução militar” e “solução legalista”. O parlamentarismo foi a solução
encontrada por aqueles sujeitos que formaram uma posição denominada “solução de
continuidade”.
em perigo e a emenda poderá salvá-la, ou prendê-la, quem sabe?” (Suplemento ao n° 151, de 2 de setembro
de 1961, p. 05).
180
Como último argumento contrário à emenda parlamentarista, tem-se o enunciado F:
“o parlamentarismo representava o retorno ao poder dos partidos políticos que haviam
perdido as últimas eleições”. Significativo a esse enunciado foi o pronunciamento do
deputado Barbosa Lima Sobrinho (PSB/PE):
Mas quero dizer à Câmara com toda a franqueza que eu preferiria (...) uma
atitude de resistência. Todos esses que andam por aí a exaltar a coragem da
Câmara amanhã terão de admitir que a Câmara para resolver a situação – como
se diz aqui – reconhece o direito do Sr. João Goulart a quê? A outro mandato. O
Sr. João Goulart teria direito ao mandato que resultou das urnas, ao mandato que
resultou da Carta de 46, mas o que Câmara lhe quer entregar é um mandato
diverso, que venha a permitir a outros partidos a chegada ao poder influindo
mais nos destinos da República.
Subverte-se, assim, o resultado das urnas, porque os partidos que nelas
triunfaram vão ser pouco a pouco afastados, pouco a pouco colocados em
segundo ou terceiro plano, para prevalecerem aqueles que, tendo de certo maior
capacidade política nas manobras de bastidores ou de pronunciamentos nas
Câmaras Legislativas, conseguirão chegar de novo ao poder, através de outros
processos que não apenas os das urnas livres, afastando aqueles outros que não
tenham a mesma habilidade, a mesma capacidade política e a mesma expressão
nas manifestações partidárias.
Eis aí, Sr. Presidente, o outro aspecto pitoresco desse momento que estamos
vivendo. É uma subversão do resultado das urnas. É a negação do pleito de 3 de
outubro. Porque, na verdade, os partidos triunfantes passam aqui, se não a
partidos perdedores, pelo menos a partidos secundários para que os partidos
derrotados se tornem, na verdade, os partidos vencedores (Suplemento ao n°
151, de 2 de setembro de 1961, p. 13).
Esse argumento é particularmente importante, pois infere a intenção de partidos,
como principalmente o PSD, de retornar ao poder do Estado, após a derrota de Lott para
Quadros nas eleições presidenciais. Esse retorno seria francamente possibilitado pela
alteração do sistema político, tendo em vista que é muito comum no sistema
parlamentarista que o gabinete do primeiro-ministro busque a maioria parlamentar no
181
Congresso para que seu governo obtenha o indispensável apoio para efetivamente
governar
63
.
5.4 Considerações finais: os três discursos em perspectiva e a “solução de
continuidade” como a confirmação do golpe contra Goulart
Ao longo da segunda parte desta tese foram apresentados, tendo em vista o impasse
gerado com a abrupta renúncia do presidente Jânio Quadros e o posterior veto dos ministros
militares à posse de João Goulart, os principais discursos políticos em torno da crise
sucessória. Nesta seção, serão sistematizadas as conclusões acerca do episódio. Para isso,
inicialmente é importante retomar os elementos essenciais dos três discursos do período –
“solução militar”, “solução legalista” e “solução de continuidade” – caracterizados a partir
dos seus “diagnósticos de desordem” e de suas “soluções de ordem”.
A formação discursiva “solução militar” foi originalmente articulada pelos três
ministros militares e obteve apoio de algumas lideranças civis, como do governador da
Guanabara, Carlos Lacerda
64
, do presidente da República em exercício, o deputado federal
63
O gabinete do primeiro primeiro-ministro, Tancredo Neves (PSD/MG) não fugiu à tradição do gabinete ser
formado pela maioria parlamentar do partido majoritário. A composição das forças partidárias ficou assim
disposta: PSD, primeiro-ministro e 5 ministérios; PTB, 2 ministérios; UDN e PDC, um ministério cada
(LABAKI, 1986, p. 131).
64
Não foi analisado nenhum documento produzido por Carlos Lacerda. Contudo, é notório o seu
envolvimento e sua defesa de uma “solução militar” ao impasse gerado pela renúncia de Quadros.
Diariamente, os deputados federais defensores da “solução legalista” denunciavam na tribuna da Câmara
182
Ranieri Mazzilli e de alguns poucos membros do parlamento nacional. Tal discurso
significava como “diagnóstico de desordem” a posse do vice-presidente eleito João Goulart
como substituto de Quadros. Argumentavam seus próceres, para tanto, que o Brasil num
governo de Jango necessariamente ficaria marcado por um período de extrema instabilidade
política. Além disso, havia ainda a ameaça da instituição de uma república sindical ou
comunista. Como “solução de ordem” seus líderes viam como necessário, por um lado, que
o Congresso Nacional declarasse o impedimento de Goulart por motivos de segurança
nacional, e, por outro lado, que fossem realizadas novas eleições presidenciais.
O discurso “solução legalista” foi deflagrado e liderado pelo então governador do Rio
Grande do Sul, Leonel Brizola, e teve como fundamentais aliados, num primeiro momento,
o comandante do III Exército, general Machado Lopes e a maioria dos membros do
Congresso Nacional. Contou ainda com o apoio maciço de setores da sociedade civil,
sindicatos, igrejas, movimentos sociais. Significava “diagnóstico de desordem” o veto
militar à investidura de João Goulart na Presidência. Como “solução de ordem” defendia a
simples posse de Goulart como presidente da República, tendo em vista estar
expressamente estatuído na Constituição Federal de 1946 que o vice-presidente deveria
assumir a Presidência no caso da vacância do cargo pelo seu titular.
Federal atos autoritários e repressores da polícia da Guanabara ordenados por Lacerda. A esse respeito,
Argelina Figueiredo escreve: “O Estado da Guanabara testemunhou a mais dura repressão em razão do apoio
de seu governador aos ministros militares. Contrariando a disposição geral da nação, o governador da
Guanabara, Carlos Lacerda, era a única liderança política expressiva a sustentar, e mesmo a incitar, a
intervenção militar. Afinado com o padrão de raciocínio relativo à democracia alimentado pela ‘Banda de
Música’ da UDN, Lacerda divulgou uma nota criticando o ‘formalismo’ dos defensores da Constituição (...)”
(FIGUEIREDO, 1993, p. 42-43).
183
O último discurso constituído foi o da “solução de continuidade”. Foi constituído
inicialmente no Congresso Nacional como uma tentativa de se buscar uma solução à crise
político-militar instaurada (“diagnóstico de desordem”). A instituição do sistema
parlamentarista de governo é a “solução de ordem”, proposta que efetivamente triunfou ao
final do episódio. Resgatados os três principais discursos concorrentes no período, segue-se
as conclusões acerca da crise e de sua solução.
Como visto no início desta segunda parte da tese, existe uma unanimidade entre os
cientistas sociais de que efetivamente um golpe militar em 1961 resultou fracassado.
Notadamente, existe um pensamento hegemônico de que uma “solução de compromisso”,
promovida pelas forças conservadoras que dominavam o Congresso Nacional, impediu o
golpe e Goulart, enfim, pôde assumir a Presidência num regime parlamentarista. Em
contrario sensu, será agora apresentada uma outra interpretação acerca do episódio.
Neste sentido, inicialmente, afirma-se que um golpe civil-militar obteve pleno sucesso
em 1961. Tal afirmação está baseada no tipo de solução dada à crise sucessória, a qual, se
não pode ser taxada de ilegal, pode inequivocamente ser vista como casuística e, portanto,
estranha ao status quo ante, estipulado pela Constituição Federal de 1946.
É comum a afirmação de que a simples posse de Goulart foi suficiente e necessária
para se ter evitado o golpe militar. Essa afirmação parte do princípio de que os ministros
militares que buscaram vetar a posse Goulart, ao final do episódio, efetivamente não
184
conseguiram tal intuito, uma vez que Jango foi efetivamente empossado. Contudo, a
questão a se colocar é a seguinte: Goulart assumiu a Presidência da República a que preço?
Parece que o preço pago por Goulart não é tido como relevante para os analistas.
Contudo, ele é fundamental, pois o golpe que foi intentado e que obteve sucesso não foi
somente contra João Goulart, mas também contra uma posição política de esquerda que
dava lhe suporte naquele momento e que tanto os militares como a maioria conservadora do
Congresso Nacional não a desejavam no poder político do Estado brasileiro.
Não há o menor indício de que originalmente os ministros militares desejavam eles
próprios assumir o controle do Estado. O que eles não queriam era simplesmente Goulart
no poder, pois, segundo eles, seu governo representaria um momento de caos político e de
infiltração de lideranças comunistas. E esse objetivo, se analisado o resultado da crise, foi
plenamente alcançado com a instituição do sistema parlamentarista.
Para tentar satisfazer as pretensões de Goulart e de seus sustentadores – o que de fato
não foi possível com o arranjo político resultante – foi entregue a Jango um cargo de
presidente num sistema parlamentarista, o qual lhe reservava infinitamente menos
prerrogativas das que lhe eram antes asseguradas no sistema presidencialista com a sua
vitória eleitoral em 3 de outubro de 1960. Para os ministros militares, portanto, apesar do
desgaste sofrido com a crise, o intento foi alcançado: foi retirado o poder de Goulart e da
esquerda brasileira: estava, assim, o Brasil livre da ameaça comunista.
185
O argumento que mais comumente justifica a instituição do parlamentarismo é o da
tentativa de uma “solução de consenso”, ou de “compromisso”, que acabou por evitar uma
guerra civil que efetivamente poderia ter ocorrido. Para isso, o Congresso Nacional jogou
um papel preponderante na proposição e na aprovação da emenda parlamentar. Contudo,
para além dessa “atitude patriótica”, uma maioria parlamentar, mormente pessedista, tinha
muito interesse na situação provocada pelos ministros militares, pois que, com a eleição de
Jânio Quadros, havia sido retirada do poder e via no parlamentarismo a possibilidade de
encurtar o tempo de seu retorno.
O trabalho dessa maioria foi simplesmente o de convencer os ministros militares de
que Goulart no poder com um sistema parlamentarista era o mesmo do que Goulart
deposto, com a vantagem de não haver qualquer desgaste com uma acusação de golpismo.
Além disso, formar-se-ia, como efetivamente ocorreu, um governo de coalizão entre as
forças mais conservadoras do Congresso que barraria, acrescida já de uma maioria
parlamentar que daria sustentação ao chefe de Governo, qualquer avanço das esquerdas no
país. E assim se fez. Sob o comando do PSD, Tancredo Neves assumiu como primeiro-
ministro.
Nesse sentido, introduziu-se nesta tese a noção de “solução de continuidade”, ao
contrário de interpretações que privilegiam argumentos em direção de um pretenso
consenso ou mesmo de um compromisso estipulado entre as partes. Não houve qualquer
compromisso entre nenhuma das partes que efetivamente deveriam selar algum tipo de
compromisso. O que ocorreu, na verdade, foi uma aliança conjuntural entre os ministros
186
militares e o Congresso Nacional de maioria conservadora. Goulart e a esquerda ficaram
totalmente isolados, inclusive do ponto de vista militar, pois quando a solução
parlamentarista foi aprovada, inclusive Machado Lopes, comandante do III Exército
rebelde, retirou seu apoio às pretensões de Brizola de manter o sistema presidencialista
mesmo à força.
Assim, pode-se afirmar que a democracia não era efetivamente um discurso
valorizado entre os sujeitos políticos em disputa, pois as regras do jogo foram mudadas
casuisticamente. Se, por um lado, as pretensões iniciais dos ministros militares não foram
satisfeitas, tendo em vista uma flagrante falta de apoio político, por outro lado, a
normalidade democrática, que só se justificaria com a posse de Goulart num regime
presidencialista, também não obteve o indispensável apoio das forças políticas mais
conservadoras do Congresso Nacional, que conseguiram convencer e se coligarem com os
ministros militares numa clara trama que redundou num golpe civil-militar.
Certamente as palavras de Barbosa Lima Sobrinho (PSB/PE) na tribuna da Câmara
dos Deputados estavam prenhes de razão e de visão realística do que naquele momento
ocorria no país. Um recado dado diretamente ao PSD, o grande vitorioso naquele
conflituoso episódio:
Subverte-se, assim, o resultado das urnas, porque os partidos que nelas
triunfaram vão ser pouco a pouco afastados, pouco a pouco colocados em
segundo ou terceiro plano, para prevalecerem aqueles que, tendo de certo maior
capacidade política nas manobras de bastidores ou de pronunciamentos nas
Câmaras Legislativas, conseguirão chegar de novo ao poder, através de outros
processos que não apenas os das urnas livres, afastando aqueles outros que não
187
tenham a mesma habilidade, a mesma capacidade política e a mesma expressão
nas manifestações partidárias.
Sete de setembro de 1961 foi a data da posse de João Goulart como presidente da
República, mas também a data de um golpe civil-militar contra as instituições democráticas
brasileiras. Isolado, como um rei sem súditos, o líder trabalhista assumiu a Presidência da
República num regime parlamentarista. Levou quinze meses para deslindar o golpe branco,
a “solução de continuidade”. O contra-golpe do plebiscito do sistema de governo iria lhe
devolver suas justas prerrogativas constitucionais em mais uma manobra casuística da
política brasileira, quando novamente de forma extemporânea volta à cena política o
sistema presidencialista de governo.
188
Parte 3
O golpe final no regime democrático
189
Aprenda, então: de nada adiantou!
Se tivesse ficado a ver as nuvens,
deitado no gramado,
a nossa causa não estaria pior!
É claro que você fez muitas coisas,
mas não deteve o inimigo!
Bertolt Brecht
190
INTRODUÇÃO
O parlamentarismo, que nasceu de forma casuística e golpista, teve uma vida curta na
história política republicana. Instaurado na data que marca a independência do Brasil em
1961, foi rechaçado
65
pelo povo brasileiro, a partir de um plebiscito antecipado, realizado
em 6 de janeiro de 1963. O sistema teve três primeiros-ministros, Tancredo Neves,
Brochado da Rocha e Hermes Lima.
Várias são as razões que justificam o fim do parlamentarismo
66
. Inicialmente era
notório o enorme desconforto que “presidenciáveis” às eleições de 1965 – como o ex-
presidente Juscelino Kubitschek – viam num sistema em que a figura do chefe de Estado
65
O resultado do plebiscito registrou uma imensa vantagem do presidencialismo (9.457.488 votos) sobre o
parlamentarismo (2.073.582 votos).
191
detinha poucas prerrogativas governativas. Outro elemento de instabilidade vinha das ruas.
Após a queda do gabinete de Tancredo Neves, organizações sindicais decretam uma greve
geral contra a indicação de Auro Moura Andrade (PSD) para primeiro-ministro. As
manifestações populares surtem efeito e quem assume a vaga é Brochado da Rocha, aliado
de Goulart. Em setembro de 1962, o Comando Geral dos Trabalhadores deflagra outra
greve geral visando à antecipação do plebiscito. Este é, neste mesmo mês, antecipado para
6 de janeiro de 1963.
Contudo, parece que quem mais fez força para a volta do presidencialismo foi João
Goulart, que não aceitava a perda de suas prerrogativas políticas. Pode-se afirmar que
Jango trabalhou incessantemente para reconquistar os seus direitos golpeados em 1961.
Movimentou as forças populares para protestarem, criou impasses nas indicações dos
primeiros-ministros, ou seja, foi o principal artífice do retorno do presidencialismo.
Reconduzido aos poderes conferidos a um presidente num sistema presidencial, João
Goulart buscou implementar sua política de reformas de base. Contudo, seu período de
governo foi um dos mais conturbados da história republicana brasileira. Tão conturbado
que seu mandato lhe foi definitivamente golpeado em 1964. Goulart sofreu uma série de
resistências ao longo de seu curto período após o retorno do presidencialismo. Greves,
contínuas mudanças no seu ministério, revoltas militares, paralisia nas decisões seja no
Congresso Nacional seja no Poder Executivo, aumento da inflação, queda no crescimento
66
Argelina Figueiredo (1993) dedica o capítulo 2 de “Democracia ou reformas?” à discussão da experiência
parlamentarista. Nesta oportunidade, a autora traça, como riqueza de detalhes, os tortuosos caminhos desse
192
econômico, impasse político entre os principais partidos foram elementos que acabaram
minando e, ao final, solapando seu mandato e a própria democracia brasileira.
Desta forma, na terceira parte desta tese, serão analisados os “diagnósticos de
desordem” e as “soluções de ordem” dos principais grupos políticos atuantes no período.
No capítulo 6, serão analisadas as manifestações dos movimentos sindicais, populares e
estudantis que lutavam pela implementação das reformas de base e viam em João Goulart a
possibilidade de implementação das mesmas. No capítulo 7, serão analisados os
pronunciamentos que baseiam a posição assumida por João Goulart. No capítulo 8, serão
tratadas as manifestações dos militares que participaram diretamente das articulações que
redundaram no golpe de 1964. Por fim, a luta política no período será analisada sob a ótica
dos deputados federais no capítulo 9.
sistema até a sua derrocada em janeiro de 1963.
193
6 OS DISCURSOS PRÓ-REFORMAS EM MARÇO DE 1964
O mês de março de 1964 serviu de palco para a eclosão de uma série de protestos
sociais em torno da questão que polarizou as posições políticas do período: as reformas de
base anunciadas pelo presidente João Goulart no Comício da Central do Brasil em 13 de
março. Organizado por entidades sindicais, partidos e grupos políticos de esquerda, legais e
clandestinos, o evento teve uma estrondosa repercussão nos meios civis e militares, gerando
um clima de intensa instabilidade política.
Dessa forma, neste capítulo, serão analisados os discursos pró-reformas enunciados
entre 13 e 31 de março de 1964. Esses discursos são referentes aos grupos de esquerda que
desejavam ver implementadas as reformas de base, seja pela via constitucional, seja pela
via armada.
194
Note-se que, para tais grupos, o presidente João Goulart adquire relevante importância
naquele conturbado contexto, uma vez que as medidas concretas em direção às reformas de
base têm origem em decretos presidenciais
67
emanados nos dias 13 e 14 de março. Desta
feita, o teor dos documentos que serão analisados, além de defender a realização das
reformas, denunciam uma conspiração civil-militar para derrubar Jango, o instrumento da
implementação das referidas medidas populares.
6.1 O panfleto dos organizadores do comício da central do Brasil
No início de 1964, ante a impossibilidade dos principais partidos políticos (PSD, PTB
e UDN), via processo legislativo, chegarem a acordos substantivos sobre a instituição das
reformas de base propostas pelo Executivo federal, mormente a reforma agrária, João
Goulart apostou na estratégia de imposição ao Congresso Nacional da “pressão popular”,
ou seja, a promoção do embate entre o Congresso Nacional – na maioria formado pelo PSD
e pela UDN e contrários às políticas de Goulart – e as organizações político-sindicais para
forçar a aprovação das reformas. Nas palavras de Silva:
Em janeiro, o Presidente João Goulart havia decretado a revisão dos novos
níveis do salário mínimo. Após a assinatura do documento, Jango reuniu-se, no
Palácio das Laranjeiras, com as lideranças sindicais. Nasceu, nesse encontro, a
idéia da convocação de um ato público para que o Presidente fizesse a
“prestação de contas” ao povo e ao mesmo tempo buscasse o apoio popular
para o seu programa de reformas de base. Essa manifestação serviria para
67
O teor dos decretos presidenciais será analisado no próximo capítulo.
195
pressionar o Congresso na votação dos respectivos projetos (SILVA, 1975, p.
320) (grifos do autor).
Idêntica é a análise de Menandro acerca das razões do Comício da Central do Brasil:
A orientação nacionalista-reformista adotada por Goulart desde o início do seu
governo já havia desencadeado a oposição dos setores dominantes do país e de
largos segmentos das classes médias e da oficialidade. A estabilidade do
governo tornara-se precária, em meio a uma crise econômica e uma inflação
vertiginosa. Nos primeiros meses de 1964, Goulart procurou estrategicamente
mobilizar as massas para a implementação das reformas de base que vinham
sendo bloqueadas pelo Congresso. Com esse intuito, determinou a elaboração da
mensagem a ser enviada ao Congresso por ocasião da abertura da sessão
legislativa de 1964 e, com o apoio dos sindicatos, convocou um comício para o
dia 13 de março no Rio de Janeiro, três dias antes da abertura dos trabalhos
legislativos. Outros comícios, também apoiados pelos sindicatos e presididos por
Goulart, foram programados para Porto Alegre, Recife, Belo Horizonte e São
Paulo. A campanha pelas reformas de base deveria culminar na capital paulista
com uma concentração de um milhão de trabalhadores no dia 1° de maio
(MENANDRO/DHBB, 2001, p. 1459).
Assim, em 19 de fevereiro de 1964, foi convocada a “Concentração popular dia 13 de
março na central do Brasil: aos trabalhadores e ao povo em geral
68
. É digno de nota que a
organização do Comício consistiu numa vasta articulação de entidades sindicais de
inúmeras categorias urbanas e rurais, estudantes universitários e secundários, parlamentares
pró-reformas, dentre outros
69
. O documento inicia da seguinte forma:
68
O documento “Concentração popular dia 13 de março na central do Brasil: aos trabalhadores e ao povo em
geral” foi extraído do Arquivo da FGV/CPDOC (ref. AAP 64.02.19).
69
O panfleto convocatório do Comício da Central do Brasil foi assinado pelas seguintes entidades: Comando
Geral dos Trabalhadores, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Estabelecimentos de Crédito, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, Confederação
Nacional dos Trabalhadores no Comércio, Confederação Nacional dos Trabalhadores em Transportes
Terrestres, Confederação dos Servidores Públicos do Brasil, Federação Nacional dos Jornalistas, Federação
Nacional dos Trabalhadores em Empresas Telegráficas, Radiotelegráficas e Radiotelefônicas, Federação
Nacional dos Ferroviários, Comando dos Trabalhadores Intelectuais, União dos Portuários do Brasil, União
Nacional dos Estudantes, União dos Previdenciários do Brasil, Pacto de Unidade e Ação, Comissão
Permanente das Organizações Sindicais, União Brasileira dos Estudantes Secundários, Frente Parlamentar
Nacionalista, Liga Feminina da Guanabara e União Brasileira dos Servidores Postais e Telegráficos.
196
As entidades sindicais e organizações que subscrevem esta convocação, na
qualidade de autênticas e legítimas representantes de tôdas as categorias
profissionais de trabalhadores da cidade e do campo, dos servidores públicos
civis e militares, dos estudantes e das demais camadas e setores populares,
juntamente com a Frente Parlamentar Nacionalista, convocam os trabalhadores e
o povo em geral para participarem da CONCENTRAÇÃO POPULAR que será
realizada no próximo dia 13 de março (sexta-feira), com início às 17,30 horas,
na Praça da República (lado da Central do Brasil) e para a qual está convidado, e
comparecerá, o senhor Presidente da República.
Neste trecho inicial, o panfleto dirige uma “convocação”, ou seja, uma ordem, uma
obrigação de cumprimento para que “os trabalhadores e o povo em geral”, uma vez que
convocados por “entidades sindicais e organizações” que são “autênticas e legítimas
representantes de tôdas as categorias profissionais de trabalhadores da cidade e do campo”,
participem da “CONCENTRAÇÃO POPULAR que será realizada no próximo dia 13 de
março (sexta-feira), com início às 17,30 horas, na Praça da República (lado da Central do
Brasil)”. Neste trecho, é mencionada ainda a participação do presidente da República, que
havia sido convidado e estava com a sua presença confirmada.
O tom de “convocação” é destinado a todos os brasileiros, tendo em vista a expressão
“trabalhadores e povo em geral”. A chamada da concentração popular visa a atingir a
atenção de todos os leitores, tendo em vista que os seus destinatários são os “trabalhadores”
e o “povo em geral”, ou seja, todos os brasileiros, acrescida ainda do anúncio da presença
do presidente da República, que é presidente de todos os “trabalhadores e do povo em
geral” e que, se irá a uma manifestação dessas, por conseqüência, tratará de assunto do
interesse de todos. Na seqüência do documento:
197
Os trabalhadores e o povo em geral demonstrarão, nessa oportunidade, que estão
decididos a participar, ativamente, das soluções para os problemas nacionais e
manifestarão sua inabalável disposição a favor das reformas de base, entre as
quais a agrária, a bancária, a administrativa, a universitária e a eleitoral, que
querem ver concretizadas neste ano de 1964.
De igual forma, manifestando em praça pública a defesa das liberdades
democráticas e sindicais, exigiremos também a extensão do direito de voto aos
analfabetos, soldados marinheiros e cabos, e elegibilidade para todos os
eleitores, bem como a necessidade de imediata anistia a todos os civis e militares
indiciados e processados por crimes políticos e pelo exercício de atividades
sindicais.
Feita a convocação no primeiro trecho, o panfleto, neste momento, enuncia as
reivindicações dos “trabalhadores e do povo em geral”, o que justifica o tom
“convocatório” do seu início, a saber: 1) “reformas de base, entre as quais a agrária, a
bancária, a administrativa, a universitária e a eleitoral, que querem ver concretizadas neste
ano de 1964”; 2) “extensão do direito de voto aos analfabetos, soldados marinheiros e
cabos, e elegibilidade para todos os eleitores” e; 3) “anistia a todos os civis e militares
indiciados e processados por crimes políticos e pelo exercício de atividades sindicais”.
Nestes três conjuntos de reivindicações, é importante lembrar que o primeiro conjunto
diz respeito ao que se pode chamar de a “cota do presidente”, ou seja, as reformas de base,
as quais já faziam parte da agenda política do Executivo federal desde o início do governo
Goulart, mas sem se ter alcançado resultados positivos nas discussões dos parlamentares no
Congresso Nacional. O presidente, como já apontado, apostava que as “pressões populares”
pudessem forçar as “reformas” e, evidentemente que as mesmas tinham pleno apoio das
entidades organizadoras do Comício, tendo em vista serem também reivindicações de seus
interesses. Os dois outros conjuntos de reivindicações já podem ser alocadas na “cota das
entidades organizadoras do Comício”. A “extensão do direito de voto aos analfabetos,
198
soldados marinheiros e cabos, e elegibilidade para todos os eleitores” refere-se
principalmente à “Revolta dos Sargentos”
70
, ocorrida em função da vigente inelegibilidade
dos sargentos, tendo em vista decisão do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Sul,
que cassou o mandato do deputado estadual eleito pelo PTB/RS, o sargento do Exército,
Aimoré Zoch Cavalheiro, que após foi confirmada pelo Supremo Tribunal Federal. Já, a
“anistia a todos os civis e militares indiciados e processados por crimes políticos e pelo
exercício de atividades sindicais”, também da “cota das entidades organizadoras do
Comício”, refere-se às prisões de líderes de movimentos sociais, como foi o caso dos
sublevados da “Revolta dos Sargentos”. O documento conclui da seguinte forma:
Conclamamos os trabalhadores e o povo em geral para essa demonstração cívica
de unidade e patriotismo, na defesa das soluções populares e nacionalistas para
os problemas brasileiros, certos de que ao povo compete, legitimamente, traçar
os rumos definitivos dos destinos nacionais e de que, de sua mobilização,
depende o êxito de qualquer programa que vise ao atendimento das necessidades
sociais e dos supremos interesses da Nação, como a reformulação da política
econômico-financeira e de medidas outras que conduzam ao fortalecimento do
monopólio estatal do petróleo e a ampliação da Petrobrás, à efetivação da
Reforma Agrária, como a declaração de utilidade pública ou de interêsse social
para efeito de desapropriação e entrega aos camponeses sem terra, das áreas
inaproveitáveis situadas às margens dos açudes, ferrovias e rodovias, cujo
Decreto deverá o Presidente da República assinar na oportunidade daquele ato
público.
TUDO PELA UNIDADE DO POVO E AMPLIAÇÃO DA DEMOCRACIA
BRASILEIRA!
TUDO PELA CONCRETIZAÇÃO DAS REFORMAS DE BASE!
TUDO PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS E SINDICAIS!
TODOS À CONCENTRAÇÃO POPULAR DO DIA 13 DE MARÇO, ÀS 17,30
HORAS, NA PRAÇA DA REPÚBLICA!
Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 1964.
70
A “Revolta dos Sargentos”, segundo Sérgio Lamarão, consistiu na “rebelião ocorrida por cabos, sargentos e
suboficiais da Aeronáutica e da Marinha em 12 de setembro de 1963, em Brasília. Foi motivada pela decisão
do Supremo Tribunal Federal (STF) de reafirmar a inelegibilidade dos sargentos para os órgãos do Poder
Legislativo, conforme previa a Constituição de 1946. Consistiu na ocupação de importantes prédios públicos
na capital federal e na prisão de algumas autoridades por poucas horas. Foi debelada no mesmo dia por
contingentes do Exército” (LAMARÃO/DHBB, 2001, p. 4992).
199
O documento finaliza com uma nova chamada aos “trabalhadores” e ao “povo em
geral”, ou seja, uma “conclamação” geral diante do importante papel que o povo e os
trabalhadores brasileiros teriam a cumprir naquele momento. O papel a ser cumprido é
claro: “ao povo compete, legitimamente, traçar os rumos definitivos dos destinos nacionais
e de que, de sua mobilização, depende o êxito de qualquer programa que vise ao
atendimento das necessidades sociais e dos supremos interesses da Nação”. Dito por outras
palavras: o povo precisa ser partícipe das mudanças relativas aos “interesses da Nação”.
Para tanto, a concentração popular que está sendo chamada é justamente para dar provas de
que o povo será efetivamente partícipe dessas mudanças.
Na seqüência do excerto, o documento acrescenta mais uma reivindicação, ou seja,
demanda “medidas outras que conduzam ao fortalecimento do monopólio estatal do
petróleo e a ampliação da Petrobrás”, o que até então não fazia menção explícita. Tal
reivindicação fazia também parte da agenda de ações do Executivo federal na direção das
reformas de base, visto que, em 13 de março, data do Comício ao qual o documento
conclama o povo, é assinado o Decreto n° 53.701/64 que “declara de utilidade pública, para
fins de desapropriação em favor da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobrás), em caráter de
urgência, as ações das companhias permissionárias de refino de petróleo”. Essa medida de
Goulart, por um lado, fortalece o monopólio estatal, uma vez que termina definitivamente
com as permissionárias então vigentes e, por outro lado, amplia o poder da Petrobrás, tendo
em vista que a desapropriação tem como resultado o aumento do patrimônio da companhia
petrolífera estatal. Ao final, o documento renova a reivindicação de reforma agrária,
200
acrescentando o fato de que o presidente assinará no Comício, o decreto de declaração de
utilidade pública para tal fim.
6.2 A revolta na marinha e o discurso do cabo Anselmo
Uma das questões que mais incomodava a alta oficialidade era a insurgência e a
indisciplina nos próprios quadros das Forças Armadas. Em setembro de 1963, a
Aeronáutica e a Marinha já haviam experimentado ações consideradas perigosas em relação
à disciplina e à hierarquia, a partir da revolta dos sargentos, tendo em vista a declaração de
inelegibilidade dos sargentos pela Justiça Eleitoral, como já mencionado. Em março de
1964, seguiu-se outro protesto oriundo dos baixos escalões das Forças Armadas, cujas
reivindicações seguem abaixo, a partir das próprias palavras do cabo Anselmo, o líder do
movimento, em manifestação proferida em 25 de março, que assim inicia:
Aceite, senhor presidente, a saudação dos marinheiros e fuzileiros navais do
Brasil, que são filhos e irmãos dos operários, dos camponeses, das donas de
casa, dos intelectuais e dos oficiais progressistas das nossas Forças Armadas;
aceite, senhor presidente, a saudação daqueles que juraram defender a pátria, e a
defenderão se preciso for com o próprio sangue dos inimigos do povo: o
latifúndio e imperialismo; aceite, senhor presidente, a saudação do povo fardado
que, com ansiedade, espera a realização efetiva das reformas de base, que
libertarão da miséria os explorados do campo e da cidade, dos navios e dos
quartéis. Brasileiros civis e militares! Meus companheiros! A Associação dos
Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil completa, neste mês de março, o seu
segundo aniversário. E foram as condições históricas, a fome, as discriminações,
os anseios de liberdade, as perseguições e as injustiças sociais, que
determinaram a criação de uma sociedade civil, realmente independente, com a
finalidade de unir, através da educação, da cultura e da recreação, os marinheiros
e fuzileiros navais do Brasil.
201
Este primeiro trecho inicia com uma forte preocupação de equiparar os marinheiros e
os fuzileiros navais principalmente com o que o enunciador busca dar a entender no
discurso com o que há de mais popular. Assim, os “marinheiros e fuzileiros navais do
Brasil” são “filhos” e “irmãos” “dos camponeses, das donas de casa, dos intelectuais e dos
oficiais progressistas das nossas Forças Armadas”. Se são filhos e irmãos desses de
brasileiros, é a eles que os marinheiros e fuzileiros devem as suas ações. É interessante
notar que o discurso do cabo Anselmo é dirigido ao presidente da República e que o uso de
“artifícios populares”, como os utilizados neste primeiro excerto, servem para buscar a
aceitação do presidente ao que será a ele demandado. Nesse sentido, se o presidente atender
ao que é solicitado pelos marinheiros e fuzileiros navais estará atendendo,
conseqüentemente, as “classes populares”, pois que são esses militares seus filhos e irmãos.
Ainda como forma de identificação desses militares, o enunciador evoca a posição
política de esquerda desse grupo: contra o latifúndio, contra o imperialismo e a favor das
reformas de base, ou seja, plenamente alinhada com grupos políticos na linha do Comando
Geral dos Trabalhadores, União Nacional dos Estudantes, Pacto de Unidade e Ação e
Frente Parlamentar Nacionalista. Destaque especial deve ser dado à “ansiedade” pela
efetivação das “reformas de base”, pois essas “libertarão da miséria os explorados do
campo e da cidade, dos navios e dos quartéis”. Nesse particular, havia uma “esperança” dos
grupos políticos de esquerda em geral de que as reformas de base trariam maior eqüidade
econômico-social para os brasileiros mais pobres. A novidade, contudo, deve ser dada em
relação ao que o cabo Anselmo está chamando de “miseráveis” e “explorados” dos “navios
e quartéis”. Desta feita, as reformas de base, pelas quais esse grupo de militares também
202
lutava, devia-se também pela condição de miserabilidade e de exploração em que os
marinheiros e fuzileiros navais passavam nos navios e nos quartéis.
É também no sentido de lutar contra essa situação de miserabilidade e de exploração
que afirma o cabo Anselmo que foi criada a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais do Brasil e que, naquela ocasião, completava dois anos de existência: “foram as
condições históricas, a fome, as discriminações, os anseios de liberdade, as perseguições e
as injustiças sociais, que determinaram a criação de uma sociedade civil, realmente
independente, com a finalidade de unir (...) os marinheiros e fuzileiros navais do Brasil”.
Na seqüência do pronunciamento:
Autoridades reacionárias, aliadas ao antipovo, escudadas nos regulamentos
arcaicos e em decretos inconstitucionais, a qualificam de entidade subversiva.
Será subversivo manter cursos para marinheiros e fuzileiros? Será subversivo dar
assistência médica e jurídica? Será subversivo visitar a Petrobrás? Será
subversivo convidar o Presidente da República para dialogar com o povo
fardado?
Quem tenta subverter a ordem não são os marinheiros, os soldados, os fuzileiros,
os sargentos e os oficiais nacionalistas, como também não são os operários, os
camponeses e os estudantes.
A verdade deve ser dita.
Neste ponto, o enunciador menciona que a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais do Brasil é considerada “entidade subversiva” por “autoridades reacionárias, aliadas
ao antipovo”. A razão para a Associação ser assim considerada se dá pelo fato de que,
sendo as Forças Armadas instituições hierárquicas, essas não podem consentir com a
existência de uma Associação de caráter político formada pelos baixos escalões militares,
pois isso pode resultar na quebra dessa hierarquia, que é a espinha dorsal de instituições
203
dessa natureza. Apesar da qualificação de “entidade subversiva”, o cabo Anselmo, ao negá-
la, promete desvendar quem são os verdadeiros subversivos. “A verdade deve ser dita”, é a
expressão que introduz a denúncia do enunciador. Com essa expressão, o locutor espera
que o leitor preste atenção, pois o cabo Anselmo é dono da completa verdade que doravante
será enunciada.
Quem, neste país, tenta subverter a ordem são os aliados das forças ocultas, que
levaram um presidente ao suicídio, outro à renúncia, e tentaram impedir a posse
de Jango e agora impedem a realização das reformas de base; quem tenta
subverter são aqueles que expulsaram da gloriosa Marinha o nosso diretor, em
Ladário, por ter colocado na sala de reuniões um cartaz defendendo o monopólio
integral do petróleo; quem tenta subverter a ordem são aqueles que proibiram os
marujos do Brasil, nos navios, de ouvir a transmissão radiofônica do comício das
reformas.
No início do excerto, o cabo Anselmo faz menção genérica aos grupos políticos que
“realmente” subvertem a ordem no país: “quem, neste país, tenta subverter a ordem são os
aliados das forças ocultas, que levaram um presidente ao suicídio, outro à renúncia, e
tentaram impedir a posse de Jango e agora impedem a realização das reformas de base”. É
interessante, neste particular, sugerir que, para o enunciador, o golpe que estava em curso
estava sendo articulado pelos mesmos grupos políticos que “provocaram” o suicídio de
Vargas, que levaram Jânio Quadros à renúncia e que buscaram impedir a posse de João
Goulart. No momento do discurso, segundo o cabo Anselmo, o mesmo grupo visava a
impedir as reformas de base.
Além disso, fica claro que, nesse ponto, o enunciador alinha-se plenamente com o
discurso do CGT e de outros grupos pró-reformas, constituindo-se, portanto, num discurso
204
de esquerda no seio do militarismo brasileiro. Esse discurso estava em total desacordo com
o dos oficiais militares. Além do desacordo, era um discurso que ameaçava o próprio
discurso da alta oficialidade, quando menciona a expulsão, dos quadros da Marinha, do
diretor da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil e quando menciona,
ainda, a proibição da escuta do comício das reformas de base nos navios da Marinha. Na
seqüência do documento:
Somos homens fardados. Não somos políticos. Não temos compromissos com
líderes ou facções partidárias. Entretanto, neste momento histórico, afirmamos o
nosso entusiástico apoio ao decreto da Supra, ao da encampação de Capuava e
demais refinarias particulares, e ao do tabelamento dos aluguéis. Aguardamos,
aliados ao povo, que o Governo Federal continue a tomar posições em defesa da
bolsa dos trabalhadores e da emancipação econômica do Brasil. Na data de hoje
comemoramos o nosso segundo aniversário, isto é, o aniversário da Associação
dos Marinheiros e dos Fuzileiros Navais do Brasil.
Afirma no princípio do excerto: “não somos políticos. Não temos compromissos com
líderes ou facções partidárias”. Contudo, parece claro que o próprio o discurso está
plenamente de acordo com a concepção política da esquerda brasileira do período. Para
corroborar com esta filiação política de esquerda, o enunciador menciona como positivo os
decretos da reforma agrária, da encampação das refinarias de petróleo particulares e o do
tabelamento dos aluguéis. Os aliados dos marinheiros e dos fuzileiros, em geral, militares
das baixas patentes das três Armas e os operários, ficam ainda mais evidentes na parte
seguinte:
Ao nosso lado estão os irmãos das outras armas: sargentos do Exército e da
Aeronáutica, soldados, cabos e sargentos da Polícia Militar e do Corpo de
Bombeiros. Estão, também, companheiros da mesma luta, os sargentos da nossa
querida Marinha de Guerra do Brasil. Aqui, sob o teto libertário do Palácio do
205
Metalúrgico, sede do glorioso e combativo Sindicato dos Trabalhadores
Metalúrgicos do Estado da Guanabara, que é como o porto em que vem ancorar
o encouraçado de nossa Associação, selamos a unidade dos marinheiros,
fuzileiros, cabos e sargentos da Marinha com os nossos irmãos militares do
Exército e da Aeronáutica, da Polícia Militar e do Corpo de Bombeiros, e com
os nossos irmãos operários. Esta unidade entre militares e operários completa-se
com a participação dos oficiais nacionalistas e progressistas das três armas na
comemoração da data aniversária de nossa Associação.
Nós, marinheiros e fuzileiros, que almejamos a libertação de nosso povo,
assinalamos que não estamos sozinhos. Ao nosso lado, lutam, também,
operários, camponeses, estudantes, mulheres, funcionários públicos e a
burguesia progressista; enfim, todo o povo brasileiro.
Após enunciar os aliados dos marinheiros e dos fuzileiros navais no trecho acima, o
cabo Anselmo, a seguir, enfatiza seu empenho pelas reformas de base, em pleno
entrosamento com as demandas sociais dos grupos políticos liderados pelo Comando Geral
dos Trabalhadores:
Nosso empenho é para que sejam efetivadas as reformas de base, Reformas que
abrirão largos caminhos na redenção do povo brasileiro. Eis por que, do alto
desta tribuna do Palácio do Metalúrgico, afirmamos à nação que apoiamos a luta
do presidente da República em favor das reformas de base. Aplaudimos com
veemência a mensagem presidencial enviada ao Congresso de nossa pátria.
Neste excerto, o enunciador, ao reafirmar o desejo da realização das reformas de base,
atribui o caráter “redentor” que as mesmas teriam em relação ao povo brasileiro.
“Redenção” sugere a idéia de salvação permanente de todos os males, o que parece um
certo exagero em se tratando de projetos políticos de um governo. Contudo, independente
do exagero concentrado na expectativa das reformas, para o cabo Anselmo, parece que as
reformas de base representariam mesmo a “redenção do povo brasileiro” e, para tanto,
deveriam ser “veementemente” defendidas. A isso segue o seguinte raciocínio: se as
reformas de base representam a redenção do povo brasileiro, ninguém tem o direito de opô-
206
las; quem, portanto, apresentar oposição deverá ser veementemente combatido. Daí a
constituição de um discurso antagônico contra todos os grupos contrários às reformas de
base. Para o enunciador, existe um forte aliado, o presidente da República, que segundo o
cabo Anselmo, luta pela efetivação das reformas. Na seqüência do discurso:
Clamamos aos deputados e senadores que ouçam o clamor do povo, exigindo as
reformas de base. Ainda esperamos que o Congresso Nacional não fique alheio
aos anseios populares. E com urgência reforme a Constituição de 1946,
ultrapassada no tempo, a fim de que, extinguindo o § 16 do art. 141, possa
realmente, no Brasil, se fazer uma reforma agrária. Dizemos que somos
contrários à indenização prévia em dinheiro para desapropriações. O bem-estar
social não pode estar condicionado aos interesses do Clube dos Contemplados. É
necessário que se reforme a Constituição para estender o direito de voto aos
soldados, cabos, marinheiros e aos analfabetos. Todos os alistáveis deverão ser
elegíveis, para que novamente não ocorra a injustiça como a cometida contra o
sargento Aimoré Zoch Cavalheiro.
Neste ponto, o discurso se dirige aos membros do Congresso Nacional, no sentido da
acolhida da reforma constitucional que preveria a reforma agrária sem indenização prévia
em dinheiro, bem como em relação ao direito de voto extensivo aos militares, dando o
exemplo do deputado gaúcho cassado, o sargento Aimoré Zoch Cavalheiro. Ao demandar
todas essas medidas, o enunciador “clama” para que os parlamentares “ouçam o clamor do
povo, exigindo as reformas de base”. Aqui é interessante questionar: qual clamor do povo?
Onde o enunciador encontra esses clamores e essas exigências populares? No comício de
13 de março, que reuniu em torno de cento em cinqüenta mil manifestantes? E a Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, uma resposta da direita ao Comício da Central do Brasil,
que reuniu em torno de meio milhão de manifestantes pedindo a deposição de Goulart e
francamente contrários às reformas de base, não pode ser classificado também como
manifestação popular? Segue a sua manifestação:
207
Em nossos corações de jovens marujos palpita o mesmo sangue que corre nas
veias do bravo marinheiro João Cândido, o grande Almirante Negro, e seus
companheiros de luta que extinguiram a chibata na Marinha. Nós extinguiremos
a chibata moral, que é a negação do nosso direito de voto e de nossos direitos
democráticos. Queremos ver assegurado o livre direito de organização, de
manifestar o pensamento, de ir e vir. Defendemos intransigentemente os direitos
democráticos e lutamos pelo direito de viver como seres humanos. Queremos, na
prática, a aplicação do princípio constitucional: “Todos são iguais perante a lei”.
Nós, marinheiros e fuzileiros navais, reivindicamos a Reforma do Regulamento
Disciplinar da Marinha, regulamento anacrônico que impede até o casamento;
não interferência do Conselho do Almirantado nos negócios internos da
Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil; reconhecimento pelas
autoridades navais da AMFNB; anulação das faltas disciplinares que visam
apenas a intimidar os associados e dirigentes da AMFNB/ estabilidade para os
cabos, marinheiros e fuzileiros; ampla e irrestrita anistia aos implicados no
movimento de protesto de Brasília.
Neste trecho, o enunciador dedica suas reivindicações estritamente em relação aos
marinheiros e fuzileiros navais. Lembrando de João Cândido, líder da histórica Revolta da
Chibata, faz menção à “chibata moral”, “que é a negação do nosso direito de voto e de
nossos direitos democráticos”. Tal “chibata moral” refere-se especialmente à Revolta dos
Sargentos, ocorrida em setembro de 1963, que justamente reivindicava a elegibilidade de
sargentos, cabos e soldados para cargos públicos. É possível ainda perceber, no último
período do excerto, a retomada dessa reivindicação no momento em que o cabo Anselmo
demanda a “ampla e irrestrita anistia aos implicados no movimento de protesto de Brasília”.
Outra passagem que merece especial destaque é a que segue: “queremos ver
assegurado o livre direito de organização, de manifestar o pensamento, de ir e vir.
Defendemos intransigentemente os direitos democráticos e lutamos pelo direito de viver
como seres humanos”. Nesse ponto, é possível conjeturar que o cabo Anselmo demanda,
em nome da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, o direito dessa
associação ser reconhecia pela alta oficialidade da Marinha como legítima, tendo por base o
208
princípio constitucional do “livre direito de organização”. Isso pressupõe que os
marinheiros desejam que as Forças Armadas sejam instituições mais democráticas e menos
hierárquicas, o que é plenamente negado pelos oficiais. Aliás, para esses últimos, a
possibilidade de existência de uma Associação como esta representaria a própria causa da
sua desestruturação. As duas posições, a dos oficiais da Marinha e a da Associação,
representavam duas visões antagônicas de considerar a organização das Forças Armadas.
Para o enunciador do discurso em análise, esse direito de associação dos marinheiros e
fuzileiros navais iguala-se ao próprio direito de eles serem considerados como seres
humanos: “lutamos pelo direito de viver como seres humanos”. Esse ponto de vista da
Associação reflete-se no que o cabo Anselmo ainda demanda no final do excerto em
análise: a reforma no Regulamento Disciplinar da Marinha, segundo ele anacrônico, “que
impede até o casamento”, para que as autoridades da Marinha reconheçam a Associação e
que cessem os efeitos das faltas disciplinares que estariam intimidando seus associados e
dirigentes. Finaliza seu discurso da seguinte forma:
Iniciamos esta luta sem ilusões. Sabemos que muitos tombarão para que cada
camponês tenha direito ao seu pedaço de terra, para que se construam escolas,
onde os nossos filhos possam aprender com orgulho a História de uma pátria
nova que começamos a construir, para que se construam fábricas e estradas por
onde possam transitar nossas riquezas. Para que o nosso povo encontre trabalho
digno, tendo fim a horda de famintos que morrem dia a dia sem ter onde
trabalhar nem o que comer. E sobretudo para que a nossa Bandeira verde e
amarela possa cobrir uma terra livre onde impere a paz, a igualdade e a justiça
social.
Neste final, o cabo Anselmo finaliza enfocando novamente a construção de posições
antagônicas que seguiu ao longo de todo o seu pronunciamento. É interessante notar que a
idéia da “luta de classes”, construída pelos grupos da esquerda brasileira, permeia todos os
209
setores da vida social. Neste caso em especial, a luta de classes está alojada também no seio
da corporação militar. Contudo, trata-se de uma luta integrada, uma vez que os marinheiros
e fuzileiros navais do Brasil são enunciados como “filhos e irmãos dos operários, dos
camponeses, das donas de casa, dos intelectuais e dos oficiais progressistas das nossas
Forças Armadas”, como aludido no início do seu pronunciamento. Por essa razão, é
necessário que a luta dos marinheiros e dos fuzileiros navais esteja ligada com outras lutas
sociais que busquem maiores níveis de emprego, contra a fome e a carestia, pois essas são
as verdadeiras lutas do povo brasileiro na visão de Anselmo.
6.3 Nota do comando geral dos trabalhadores
Em 26 de março, o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) emitiu nota de apoio
ao presidente João Goulart denunciando as “forças reacionárias” contrárias à democracia. O
tema central foi o reflexo político gerado pelas medidas tomadas por Jango desde o comício
da Central do Brasil de 13 de março. Dessa forma, assim inicia o documento:
As forças reacionárias, inconformadas com o avanço democrático do nosso povo
e com os recentes decretos patrióticos do presidente da República – o da Supra,
dos aluguéis e gêneros alimentícios e encampação das refinarias de petróleo –,
articulam-se, pública e notoriamente, visando à deposição do presidente da
República, para anular aquelas conquistas e impor ao nosso povo restrições às
liberdades democráticas e sindicais.
210
Claramente a nota inicia com um tom de denúncia, acrescido ainda ao fato de a
mesma eleger dois discursos com objetivos antagônicos. De um lado, o “povo”, o
“presidente da República” e o próprio “CGT”, articulados a partir de valores como
“democracia” e “decretos patrióticos”. Do outro lado, o CGT elege os seus inimigos: as
“forças reacionárias”, cujo objetivo é o de “anular aquelas conquistas”, notadamente “os
decretos patrióticos” e a deposição do “presidente da República”. Na seqüência da nota:
A crise da Marinha, que se deve, única e exclusivamente, às articulações de
oficiais golpistas, foi derrotada nos seus objetivos, com a serena solução
encontrada pelo presidente da República, que é o chefe Supremo das Forças
Armadas, nos termos constitucionais. Todavia, desmascarando os seus
propósitos golpistas, insistem, os mesmos oficiais que a promoveram, através
agora de pronunciamentos desrespeitosos e atitudes insubordinadas, em solapar
a autoridade do presidente da República, tentando sensibilizar outras áreas
militares, com o objetivo de depor o Sr. João Goulart.
Note-se que no primeiro parágrafo da nota, o CGT não havia nominalmente
enunciado quem fazia parte das “forças reacionárias”. Começa a fazê-lo neste parágrafo,
quando, a partir do exemplo da recente “crise da Marinha”, denuncia os seus “oficiais
golpistas” como os primeiros a fazer parte da cadeia de equivalências da articulação
golpista. A mencionada “derrota dos objetivos dos oficiais golpistas” em relação à crise
naquela Arma, segundo a nota, foi “serenamente” solucionada pelo presidente. De fato, o
que ocorreu foi a decretação da libertação dos militares envolvidos no episódio que fora
ordenada por João Goulart. Entretanto, segundo o documento em análise, os “oficiais
golpistas” da Marinha continuam tentando “solapar a autoridade do presidente da
República”, buscando adeptos “golpistas” em outras “áreas militares”. Continua a nota:
211
O esquema do golpe está sendo articulado politicamente pelos governadores
Carlos Lacerda, da Guanabara, Ademar de Barros, de São Paulo, Magalhães
Pinto, de Minas Gerais, e Ildo Meneghetti, do Rio Grande do Sul. Esse esquema,
que conta, inclusive, com apoio de oficiais golpistas do II e III Exércitos e da
Força Pública de Minas Gerais, articula-se com as lideranças ibadianas do
Congresso Nacional, que estão convocando os parlamentares para discutir a
seguinte ordem do dia: projeto do deputado Aniz Badra (que é uma falsa reforma
agrária), para aprová-lo; instalação de uma base naval do Estados Unidos da
América do Norte em território brasileiro; anistia dos sargentos, para recusá-la,
com o objetivo de lançar sargentos contra marinheiros.
Neste trecho, o documento enuncia outros elementos que compõem as “forças
reacionárias”, além dos oficiais da Marinha: os “governadores Carlos Lacerda, da
Guanabara, Ademar de Barros, de São Paulo, Magalhães Pinto, de Minas Gerais, e Ildo
Meneghetti, do Rio Grande do Sul”, “oficiais golpistas do II e III Exércitos e da Força
Pública de Minas Gerais”, “IBAD” e membros do Congresso Nacional. Note-se a
constituição de um poderoso grupo denominado de “forças reacionárias”, pois que é
composto por elementos significativos da política e das Forças Armadas.
Além de constituir os grupos do campo golpista, a nota anuncia importantes medidas
que estariam para ser tomadas no âmbito do Congresso Nacional. Inicialmente em relação à
ordem do dia na Câmara dos Deputados a qual previa que um projeto de uma “falsa
reforma agrária” seria aprovado. Além disso, a nota afirma que uma base militar norte-
americana seria instalada no Brasil, podendo-se inferir que os Estados Unidos também
teriam parte nas articulações golpistas. Enfim, seria ainda votada a “anistia aos sargentos” e
que a mesma seria recusada para “lançar sargentos contra marinheiros”, segundo o
documento, tendo em vista que os marinheiros haviam sido recentemente anistiados por
212
Goulart, numa tentativa de desarticular as forças políticas tidas pelo CGT como as forças
populares. Seguindo a nota:
Na impossibilidade de combater, frontalmente, as reformas de base, sugeridas na
mensagem presidencial de 15 de março, os golpistas procuram explorar os
sentimentos religiosos de nosso povo, sob o falso pretexto do anticomunismo.
Nesse sentido a marcha para o dia dois de abril na Guanabara constitui
importante peça na articulação do golpe, cujo esquema já aponta o ministro
Ribeiro Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal, ou o Marechal Eurico
Gaspar Dutra como substituto do presidente da República.
Neste trecho é interessante notar que, segundo o CGT, as “forças reacionárias” não
poderiam combater “frontalmente” as “reformas de base”, anunciadas na mensagem
presidencial de 15 março (e anteriormente no Comício da Central do Brasil), tendo em vista
de as mesmas já estarem na agenda política havia, pelo menos, dois anos, ou seja, ainda no
período parlamentarista. Não poder combater “frontalmente” as reformas de base significa
que o “combate” deveria ser marginal, ou seja, atacar-se-ia o problema não no seu princípio
(quem na opinião pública seria contra as reformas?), mas no instrumento da concretização
das mesmas, que era o presidente João Goulart. Isso significa, na visão do CGT, que
motivo principal das “forças reacionárias” estarem armando um golpe contra Goulart era o
de que esse presidente estava propondo políticas contrárias aos interesses dos reacionários,
e que as mesmas não poderiam ser atacadas “frontalmente”, principalmente pelos políticos,
tendo em vista que a legitimação dos mesmos é medida pelo número de votos dos eleitores
que sendo o povo, segundo o CGT, não estariam contrários às reformas. Uma campanha de
denúncia de organizações da esquerda contra políticos “frontalmente” contrários as
reformas poderia significar a não reeleição dos mesmos. Contudo, o problema ainda
213
persistia às “forças reacionárias”, ou seja, como acabar com as reformas sem que isso
acarretasse um prejuízo aos seus artífices? Derrubando o presidente, no cálculo do CGT.
O artifício usado para a derrubada do presidente João Goulart era o de “explorar os
sentimentos religiosos de nosso povo, sob o falso pretexto do anticomunismo”, a partir de
uma “marcha para o dia dois de abril na Guanabara”. Tal marcha, congênere à “Marcha da
Família com Deus pela Liberdade”, na ocasião, recentemente ocorrida em São Paulo, teria
como objetivo associar a figura do presidente da República com a dos movimentos
“comunistas”, argumentando-se que ambos eram anticristãos e ateus. Tal marcha, conforme
a nota, serviu para “explorar os sentimentos religiosos” do povo brasileiro, no sentido de
confundi-lo em relação aos propósitos positivos dos “decretos patrióticos” do presidente
Goulart. Para não conseguir os avanços sociais perseguidos por organizações como o CGT,
as “forças reacionárias” pretendiam desqualificar as ações presidenciais a partir da
acusação de o mesmo ser “comunista” e, portanto, anti-religioso. O golpe, nesse sentido,
seria dado para depor o instrumento das reformas, o presidente da República, no sentido de
alcançar o objetivo principal, ou seja, barrar as mesmas. O “esquema golpista”, conforme o
documento, já estava de forma avançada preparado, pois inclusive já previa dois substitutos
de Goulart: “o ministro Ribeiro Costa, presidente do Supremo Tribunal Federal, ou o
Marechal Eurico Gaspar Dutra”. Na seqüência da nota:
O CGT e todas as forças populares responderão, por todos os meios, a qualquer
tentativa de golpe que vise a enfraquecer a autoridade do presidente João
Goulart para atingir o seu mandato. Aos golpistas, civis e militares, advertimos
que a classe trabalhadora brasileira não permitirá nenhum entrave no caminho
que já iniciamos pelas conquistas das reformas sugeridas na mensagem
presidencial e pela imediata constituição de um governo nacionalista e
214
democrático. Nesta luta, contamos com a maioria do povo brasileiro, integrada
de civis e militares patriotas.
O documento, no excerto acima, enuncia as forças que resistirão ao golpe mencionado
anteriormente, partindo das “forças populares”, da “classe trabalhadora brasileira”, da
“maioria do povo brasileiro, integrada de civis e militares patriotas”. É interessante que,
para dar realidade à categoria “maioria do povo brasileiro”, a nota estabelece os avanços já
alcançados por essa pretensa maioria: “conquistas das reformas sugeridas na mensagem
presidencial e pela imediata constituição de um governo nacionalista e democrático”. As
conquistas da mensagem presidencial, na verdade, dizem respeito a um conjunto de
medidas propostas pelo presidente Goulart como o decreto do congelamento dos aluguéis, o
decreto da Supra da reforma agrária, a encampação das refinarias de petróleo privadas,
medidas tomadas pelo Executivo federal entre 13 e 15 de março. A nota deixa vago, no
entanto, o fato de que o excerto “pela imediata constituição de um governo nacionalista e
democrático”, pode sugerir que o próprio governo de Jango venha a ser este governo, ou,
pelo contrário, que ele representava uma etapa que o CGT entendia necessária para um
efetivo “governo nacionalista e democrático” no futuro. Na seqüência da nota:
O Comando Geral dos Trabalhadores, neste momento que pode ser decisivo para
os destinos da pátria, consciente da importância da posição da classe
trabalhadora nesta emergência, concita os sindicatos, a todos os trabalhadores da
cidade e do campo, a manterem-se preparados para desfechar a greve geral em
todo o território nacional na defesa das liberdades democráticas e sindicais,
determinando que o golpeamento do mandato e autoridade do presidente João
Goulart seja imediatamente respondido com a total paralisação do trabalho.
Preparados e unidos, trabalhadores barrarão o golpe e exigirão as reformas de
base. Em todos os setores de trabalho ou nas ruas, combatendo a reação e o
golpe, usando as forças de luta que o momento comportar, além da greve geral,
nossa primeira iniciativa.
215
Neste último excerto, é enunciada estratégia de ação do CGT: a convocação de uma
greve geral para resistir ao golpe. No sentido de buscar a unidade das “forças populares”, o
Comando Geral dos Trabalhadores “concita os sindicatos, a todos os trabalhadores da
cidade e do campo”, ou seja, novamente é enunciado o “povo” como elemento capaz de
resistir ao eminente golpe.
6.4 A posição da união nacional dos estudantes
Nesta seção, serão analisados dois documentos de autoria de lideranças da União
Nacional dos Estudantes. Primeiramente, será analisado um panfleto produzido pela
entidade às vésperas do golpe militar. Na seqüência, será apresentada uma nota da UNE
datada de 30 de março.
O panfleto, inicialmente, possui os seguintes título e subtítulo: “Da une ao povo
brasileiro: o golpe reacionário está em marcha. É preciso que o povo se organize para o
contra-golpe
71
”. Fazendo uma “radiografia” do documento, percebe-se nitidamente a sua
subdivisão, o seu “movimento”. Em outras palavras, o panfleto apresenta uma interessante
didática, que explica “quem quer o golpe”, “como se articula o golpe” e a maneira como se
deve “organizar o contra-golpe”. Essa forma de organizar a explicação denota que para a
UNE estavam dados e claros todos os passos do golpe e que ela, na condição de
216
organização estudantil e política contrária ao mesmo, tinha a tarefa, não somente de
denunciá-lo, mas de “desmascará-lo” ante os olhos do povo brasileiro no intuito de ajudá-lo
na organização e na execução do contra-golpe. Analisando mais demoradamente o
documento, parte a parte, seu primeiro excerto assim se apresenta:
QUEM QUER O GOLPE?
1) os grupos estrangeiros ligados ao petróleo, às emprêsas de publicidade, à
indústria farmacêutica.
2) os gorilas militares e civis.
3) os latifundiários ameaçados pelo decreto da SUPRA.
4) os comerciantes inescrupulosos ameaçados pela SUNAB.
5) os grandes proprietários de imóveis que não mais poderão especular com a
habitação das classes populares.
Neste primeiro excerto, o documento elege diretamente os golpistas, tendo em vista
os acontecimentos conjunturais daquele março de 1964. Isso se comprova, por exemplo, se
for considerado o Decreto n° 53.701, de 13 março de 1964, que trata da desapropriação, em
favor da Petrobrás, das companhias permissionárias do refino de petróleo
72
. O referido
Decreto, conforme o documento em análise, provavelmente tenha sido a principal razão da
constituição do pólo antagônico formado pelos “grupos estrangeiros ligados ao petróleo”.
Outro elemento que constitui o grupo golpista é comporto pelos “latifundiários ameaçados
pelo decreto da SUPRA”, justamente em função da publicação do Decreto n° 53.700,
também de 13 de março de 1964, que declara de utilidade pública para fins de
desapropriação para promover a reforma agrária áreas inexploradas ou exploradas
71
Documento extraído do Arquivo do CPDOC (Arquivo JC 1964.02.19).
72
O Decreto n° 53.701, de 13 março de 1964, estatui no art. 1° as companhias petrolíferas a serem
desapropriadas: “Art. 1°. Ficam declaradas de utilidade pública, para fins de desapropriação em favor da
Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobrás), as ações de propriedade de todos e quaisquer acionistas das companhias
permissionárias do refino de petróleo: Refinaria e Exploração de Petróleo ‘União’ S.A., Refinaria de Petróleo
217
contrariamente à função social da propriedade. Os “grandes proprietários de imóveis que
não mais poderão especular com a habitação das classes populares” também fazem parte,
segundo a UNE, do grupo de golpistas, tendo em vista a publicação pelo presidente João
Goulart do Decreto n° 53.702, de 14 de março de 1964, que tabela o preço dos aluguéis de
imóveis em todo o território brasileiro.
Esses exemplos inferem a idéia de que para a União Nacional dos Estudantes grande
parte das razões do golpe estava sendo dada naquele março de 1964. Constam também no
rol de golpistas elementos constituídos antes daquele período como, por exemplo, “os
gorilas militares e civis”. O termo “gorilas” era empregado pela “esquerda” da época para
designar os membros da “direita golpista”. Tendo em vista a existência de golpistas já
considerados “tradicionais” pela UNE e da constituição conjuntural de novos, pelos
decretos presidenciais publicados em março de 1964, pode-se afirmar, com relativa
segurança, que, para a UNE, o golpe já era uma ameaça anterior a março de 1964, mas que
teve especial impulso naquela conjuntura em que Goulart lançou medidas políticas
consideradas populares. Na seqüência do documento:
COMO SE ARTICULA O GOLPE?
1) pela exploração dos sentimentos religiosos para fins políticos.
2) pela exploração de setores militares menos esclarecidos, principalmente em
virtude da recente crise da Marinha.
3) pela articulação de governadores (Lacerda, Adhemar, Meneghetti, Ney
Braga, Magalhães Pinto) da maioria do Congresso (UDN, PSD), para o
“impeachment” do Presidente da República.
de Manguinhos S.A., Companhia de Petróleo da Amazônia S.A., Indústrias Matarazzo de Energia S.A.,
Refinaria de Petróleo Ypiranga S.A. e Destilaria Rio-Grandense de Petróleo S.A.”.
218
Se, no trecho anterior, o documento apontava os grupos interessados no golpe, nesta
parte, é enunciado como o movimento golpista se articularia. Três são os elementos
apontados.
O primeiro elemento, a “exploração dos sentimentos religiosos para fins políticos”,
apresenta fortes indícios de que o documento denuncia que os “golpistas” propalavam que
os movimentos de esquerda, inspirados na tradição política marxista, eram anti-religiosos,
anticristãos. Segundo a UNE, essa estratégia discursiva golpista buscava confundir a
população com o argumento de que não seria possível um movimento político querer o
melhor para o povo sendo esse anti-religioso ou anticristão. A prova mais presente, naquele
contexto, foi a “Marcha da família com deus pela liberdade”, organizada em resposta ao
“Comício das reformas”, ocorrida inicialmente em São Paulo, em 19 de março, que
consistiu numa “manifestação cívico-religiosa, de que participariam elementos de todos os
credos” (SILVA, 1975, p. 337). A “Marcha” teve imediata repercussão em outras capitais
brasileiras, como Porto Alegre, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Com a efetivação do
golpe, o movimento alterou sua denominação para as “Marchas da Vitória”. O conteúdo
discursivo da “Marcha da Família”, conforme Silva, consistia numa “reafirmação dos ideais
de liberdade do povo brasileiro e de seus propósitos de impedir a qualquer custo a
comunização do Brasil” (1975, p. 337).
O segundo elemento, ou seja, a “exploração de setores militares menos esclarecidos”,
diz respeito diretamente à crise na Marinha, comandada pelo cabo Anselmo, já tratada neste
219
capítulo. A exploração dos “setores militares menos esclarecidos”, segundo o documento,
pode ser atribuída aos almirantes da Marinha, uma vez que esses oficiais atribuíam que o
ocorrido feria a hierarquia daquela Arma e, portanto, a própria existência da organização
militar, argumento amplamente contestado pelos revoltosos, como já apresentado.
O terceiro elemento menciona a “articulação” dos governadores Carlos Lacerda,
Adhemar de Barros, Ildo Meneghetti, Ney Braga e Magalhães Pinto, além da maioria do
Congresso Nacional, representado pela UDN e pelo PSD, em torno de um possível
“impeachment” do presidente da República. De fato, ocorriam no âmbito do Congresso
Nacional, manifestações de políticos ligados ao PSD e à UDN nesse sentido,
principalmente tendo em vista manifestações de parlamentares de esquerda, como Leonel
Brizola, que pregavam inclusive o fechamento do Congresso Nacional e a convocação de
uma nova Assembléia Nacional Constituinte para reformular a Constituição Federal de
1946. João Goulart, no sentido de ver efetivadas as “reformas de base”, via também a
necessidade de reformas na Constituição, o que inclusive afirmou em seu discurso no
Comício de 13 de março. Ocorre que a composição política classificada como de direita
acusava o presidente de, juntamente com organizações políticas consideradas de extrema
esquerda, como o CGT, preparar um golpe de estado visando promover a “comunização”
do país. Daí o panfleto da UNE acusar a direita (os governadores e os partidos
supracitados) de estarem planejando o impedimento do presidente sob alegação de que o
mesmo estaria conspirando contra o regime democrático do país. O documento conclui nos
seguintes termos:
220
ORGANIZAR O CONTRA-GOLPE É:
1) unirem-se os operários em seus sindicatos, esperando palavra de ordem do
CGT;
2) organizarem-se tôdas as camadas populares para a resistência contra as
articulações da minoria golpista;
3) aguardarem os estudantes a palavra de ordem da UNE.
PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS
PELO PROSSEGUIMENTO DAS MEDIDAS PROGRESSISTAS E
POPULARES
O GOLPE É A SENHA DO LEVANTE POPULAR PELAS REFORMAS
GOLPE É SENHA DE GREVE GERAL.
Apresentados nas duas primeiras partes “quem quer” e “como se articula” o golpe,
neste último excerto, a União Nacional dos Estudantes conclama a organização para a
resistência. Três formas são listadas.
A primeira delas, em relação aos “operários”, para que esses esperassem a “palavra de
ordem do CGT”. Nesse ponto, é interessante fazer menção ao fato de que há evidências
bem claras de que o CGT exercia, na época, papel de liderança do movimento de esquerda.
No panfleto em análise, tal liderança é percebida na última frase do documento, qual seja,
“golpe é senha de greve geral”, uma vez que a greve geral foi a palavra de ordem chamada
pelo CGT para conter o golpe civil-militar de 31 de março.
A segunda forma de conclamação, de caráter mais geral, diz respeito às “camadas
populares” se organizarem “para a resistência contra as articulações da minoria golpista”.
Já a última forma, “aguardarem os estudantes a palavra de ordem da UNE”, diz respeito à
busca da entidade de articular em torno de si, a exemplo do CGT com os movimentos
laborais, os estudantes brasileiros.
221
Enfim, o documento proclama quatro palavras de ordem. Merece especial destaque a
penúltima. “O golpe é a senha do levante popular pelas reformas” induz a idéia de que,
quando a “direita” iniciar o golpe, isso representaria a “senha” de um “levante popular” em
direção às reformas. Apesar de ter sido usado o termo “reformas”, fica claro, pelo contexto
discursivo apresentado no documento, que a UNE desejava, na verdade, um processo
revolucionário mais profundo, para além das reformas de Goulart. No momento de um
“levante popular”, caso fosse vitorioso, provavelmente as “reformas de base” requeridas
por Jango e pela esquerda democrática teriam avanços tímidos. Nesse sentido, há
possibilidade de se ler a conclamação em apreço da seguinte forma: “o golpe é a senha do
levante popular pela revolução”.
Às vésperas do golpe, ou seja, em 30 de março de 1964, a União Nacional dos
Estudantes, se antecipando a outras organizações sociais, lançou a seguinte nota assinada
pelo seu então presidente nacional, José Serra, que assim inicia:
Ao Povo
:
A União Nacional dos Estudantes, ante a gravidade de situação política nacional,
vem
:
1. Reafirmar seu inteiro apoio às ultimas medidas progressistas do governo
federal, inclusive à solução correta e firme e ao mesmo tempo equilibrada e
serena com que pôs termo à recente crise da Marinha;
2. Alertar os estudantes e o povo brasileiro para a pregação espúria dos que,
falsamente, a pretexto de restabelecer a legalidade e a disciplina, na realidade o
que pretendem é impedir o crescimento das forças populares e a efetivação das
reformas de base;
3. Denunciar com veemência a trama golpista, já em execução, com que se
procura, derrubando o presidente, instituir um regime de força, que esmague os
movimentos populares, suprima suas recentes conquistas e trave o processo da
democratização do país; (...).
222
Neste primeiro excerto, a nota faz menção a três pontos. O primeiro deles, o
“inteiro apoio” às decisões políticas tomadas pelo presidente da República como as
medidas tendo em vista às reformas de base, dando especial destaque à solução encontrada
pelo chefe de Estado à crise da Marinha, anistiando os militares revoltosos. O segundo
ponto diz respeito à denúncia direcionada aos grupos alinhados à “direita”, como os oficiais
da Marinha e do Exército, que criticavam a indisciplina nas Forças Armadas, aos líderes
políticos principalmente filiados à UDN e ao PSD, que cada vez mais isolavam Goulart no
seio do poder e se juntavam aos “conspiradores”. Nesse sentido, o que a nota está
chamando de “pregação espúria” é que, em nome do “pretexto de restabelecer a legalidade
e a disciplina, na realidade, o que pretendiam era impedir o crescimento das forças
populares e a efetivação das reformas de base”. O terceiro ponto diz respeito à “trama
golpista” sendo executada pelos mesmos sujeitos que pregam o restabelecimento da
“legalidade” e da “disciplina”, já mencionados no ponto anterior. Segundo a União
Nacional dos Estudantes, o objetivo desses golpistas é o de esmagar os “movimentos
populares”, suprimir as recentes conquistas (anúncio e primeiras medidas das reformas de
base) e “travar” o “processo de democratização e de reestruturação do país”. A nota finaliza
conclamando os estudantes universitários brasileiros
4. Conclama a todas as Uniões Estaduais, Diretórios Centrais de Estudantes e
Diretórios e Centros Acadêmicos e a todos universitários, enfim, para que se
mobilizem por todos os meios, em assembléias, atos públicos, passeatas, e
permaneçam em estado de alerta, prontos a qualquer momento a resistir
intransigentemente, fiéis à heróica tradição de resistência democrática do
movimento estudantil brasileiro, a qualquer tentativa de deposição do presidente
constitucionalmente eleito, ou de violência às liberdades democráticas.
José Serra
Presidente da UNE.
223
A conclamação dos estudantes universitários brasileiros foi a tentativa da UNE de, a
exemplo do CGT em relação aos trabalhadores, ser o ponto de articulação central dos
estudantes. A entidade esperava dos seus liderados uma atitude “heróica” contra os canhões
reais e a força bruta dos golpistas militares e civis.
6.5 O CGT e a última tentativa de articulação das esquerdas
Em 31 de março, o CGT lançou uma nota oficial denunciando o princípio do que seria
o efetivo golpe civil-militar de 1964. Este documento gerou quase imediatamente o
lançamento de mais quatro. Dessa forma, acompanhando a “Nota do Comando Geral dos
Trabalhadores”, o Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), a Confederação
Nacional dos Trabalhadores na Indústria (CNTI), a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) e o Pacto de Unidade e Ação (PUA)
solidarizaram-se com a estratégia do CGT para conter o golpe em curso. Nesta seção, serão
analisados em conjunto estes documentos, tomando-se como documento principal o
produzido pelo CGT. A razão para considerar a proeminência da nota do CGT sobre as
demais se revela no fato de que foi a partir desta que as outras surgiram. Por outras
palavras, o discurso do CGT constituiu-se no ponto nodal da articulação discursiva que
envolveu, além de ele próprio o CTI, a CNTI, a CONTAG e o PUA.
224
O principal objetivo desse discurso sindical constituído era o de impedir o golpe e a
conseqüente deposição de João Goulart. A estratégia principal para a sua contenção era
relativamente simples: a deflagração de uma greve geral em todo o país. Nesse sentido,
essas são as duas marcas presentes em todos os documentos produzidos por essas entidades
naquele 31 de março de 1964. No tocante ao CGT, sua nota assim inicia:
Ao Povo:
O Comando Geral dos Trabalhadores, diante dos últimos acontecimentos, que
confirmam a denúncia da articulação reacionária para golpear as liberdades
democráticas e sindicais e depor o Presidente da República, determina a
imediata Greve Geral em todo o Território Nacional.
O golpe, que se inicia com a sublevação armada do Estado de Minas Gerais, sob
o comando de Magalhães Pinto e seus cúmplices Carlos Lacerda, Ademar de
Barros e Ildo Menegheti, objetiva impedir que se concretizem as reformas
sugeridas na Mensagem Presidencial de 15 de março, para manter os odiosos
privilégios contra o povo brasileiro.
O início da nota do CGT denuncia a “articulação reacionária” golpista para depor o
presidente Goulart, a partir de sublevação armada iniciada em Minas Gerais. É interessante
notar que, segundo o documento, tal movimento tem como comandante o governador de
Minas Gerais, Magalhães Pinto, acompanhado por seus cúmplices “Carlos Lacerda,
Ademar de Barros e Ildo Menegheti”, também governadores, respectivamente do Rio de
Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, o que se pode denotar, conforme a leitura
conjuntural do CGT, que o golpe teve origem civil e não militar, ou, pelo menos, o papel
dos militares naquele momento seria somente o de dar suporte armado às intenções
políticas dos governadores supra citados. O objetivo do golpe, já inclusive mencionado pelo
CGT em manifesto anteriormente analisado, era o de impedir as “as reformas sugeridas na
225
Mensagem Presidencial de 15 de março, para manter os odiosos privilégios contra o povo
brasileiro”.
O CGT, diante da situação, “determina a imediata Greve Geral em todo o Território
Nacional”. Merece grifo especial a expressão “determina”, tendo em vista que a entidade se
sentia no direito de tomar uma decisão unilateral e fazer com que essa decisão fosse
prontamente atendida pelos “trabalhadores”. Isso denota um sentimento de legitimidade por
parte do CGT
73
. Segue a nota:
Em vários estados as liberdades democráticas e sindicais já não vigoram e os
trabalhadores estão sendo encarcerados e ameaçados de morte.
A primeira questão relevante a ser destacada no excerto acima diz respeito às
“liberdades democráticas e sindicais” não estarem mais vigorando em vários estados.
Ressalte-se a necessidade que a entidade teve de destacar, por um lado, “liberdades
democráticas” e, por outro lado, “liberdades sindicais”. Em termos formais, a noção de
democracia já pressupõe a de liberdade sindical, no ponto em que são tratadas as liberdades
de expressão e de associação. Contudo, parece que o CGT entendia que a idéia de
“liberdade sindical” merecesse prerrogativas especiais, daí a necessidade de singularizá-la
em relação à democracia.
73
Legitimidade questionada por dois motivos principais. Primeiro, tendo em vista que a entidade não tinha
legitimidade jurídica de funcionamento. A segunda razão, certamente mais importante do que a primeira, pelo
fato de que o resultado da “determinada” greve geral foi pífio como estratégia de contenção do golpe civil-
militar vitorioso.
226
Outra questão importante de ser revelada neste trecho diz respeito à idéia de que os
“trabalhadores estão sendo encarcerados e ameaçados de morte”. Esse ponto é de crucial
importância, tendo em vista que com ele se busca uma adesão dos “trabalhadores em
geral”, induzindo os mesmos a que, se a situação de golpe iminente não for revertida,
outros trabalhadores comuns, não envolvidos com movimentos políticos, também poderão
ser “encarcerados e ameaçados de morte”, pois os golpistas, segundo o trecho, são contra a
“classe trabalhadora” em geral.
Na verdade, não são os trabalhadores comuns que estão sofrendo com o golpe, mas os
dirigentes sindicais que, na visão do CGT, antes de exercerem papel político na entidade,
são trabalhadores como quaisquer outros. Entretanto, é importante lembrar que os que
estavam sendo presos não o eram por serem trabalhadores em si, como sugere o excerto,
mas porque exerciam cargos sindicais, ou seja, as prisões eram de natureza política. Esse
efeito de sentido produzido pelo CGT é muito importante de ser levado em consideração,
tendo em vista que um discurso visa à articulação do maior número possível de elementos e
de grupos políticos. Os trabalhadores ordinários, indiferentes aos acontecimentos políticos,
estavam sendo buscados pelo CGT para assumirem a condição de momentos diferenciais
na articulação discursiva antigolpista. A nota assim termina:
Companheiros trabalhadores da cidade e do campo, em greve, mantenhamo-nos
unidos com os soldados, marinheiros, fuzileiros, cabos, sargentos, suboficiais e
oficiais nacionalistas e democratas, com as mulheres e os estudantes, na defesa
das liberdades democráticas e sindicais, na defesa do mandato e da autoridade do
Presidente João Goulart e pela aprovação das reformas de base, para que a nossa
Pátria se liberte da miséria e do analfabetismo, dos privilégios e da exploração
estrangeira que infelicitam o nosso povo.
227
Mantenhamo-nos concentrados em nossas organizações sindicais, nas praças
públicas, mobilizados dia e noite, para derrotar os golpistas, traidores da Pátria.
Viva o Brasil!
Rio de Janeiro 31 de março de 1964.
Na passagem acima, são chamados novamente os “trabalhadores da cidade e do
campo” para que esses se unam com outros grupos, entendidos pelo CGT não como
trabalhadores, pelo menos no sentido tradicional. Esses grupos são divididos em três tipos:
os militares, as mulheres e os estudantes. É relevante focar a atenção ao tipo “militar”,
tendo em vista que a nota se refere aos militares de baixas patentes, ou seja, “soldados,
marinheiros, fuzileiros, cabos, sargentos, suboficiais”. Quando é feita a alusão aos oficiais
militares, são incluídos os adjetivos “nacionalistas e democratas”. Duas questões devem ser
consideradas neste ponto. Primeiramente, segundo o documento, todos os militares de baixa
patente estão pretensamente do lado do CGT. Segundo, os oficiais das Forças Armadas
estão divididos em duas categorias: de um lado, os “nacionalistas e democratas”, que estão
do lado da entidade e, por conseqüência, dos “trabalhadores” e, de outro lado, os
“antinacionalistas e antidemocratas”, que estão no pólo dos golpistas “da miséria e do
analfabetismo, dos privilégios e da exploração estrangeira que infelicitam o nosso povo”.
A nota do CGT, como já afirmado, gerou uma seqüência de notas de solidariedade e
de compromisso por parte de outras entidades trabalhadoras. Serão enfocados, a partir de
agora, estas manifestações, visando à caracterização da ocorrência de um discurso
unificador, tendo como pólo articulador privilegiado, construído pelo CGT, a defesa do
Brasil contra o golpe e pelas reformas de base e, como estratégia de ação, a greve geral
228
proposta. Inicia-se pela nota produzida pelo Comando dos Trabalhadores Intelectuais
(CTI):
O Secretariado Executivo do CGT
O Comando dos Trabalhadores Intelectuais
O Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), componente de larga frente
democrática que a passos cada vez mais decididos e vigorosos está conduzindo o
país à concretização das reformas de base indispensáveis à sua total
independência em face do atentado às liberdades ocorrido no Estado de Minas
Gerais;
- solidariza-se seus companheiros trabalhadores do CGT, vítimas de inominável
atentado fascista do Governo Carlos Lacerda.
- conclama o povo brasileiro a manter-se unido em sua vigorosa repulsa à
insurreição direitista, que é um episódio a mais na conspiração largamente
financiada pelo imperialismo e seus locais internos.
- apóia o presidente João Goulart nesta hora em que as forças reacionárias
tentam impedir-lhe o cumprimento das medidas encaminhadas em seu discurso
de 13 de março e na mensagem enviada ao Congresso Nacional, início da
libertação do povo brasileiro.
Rio, 31 de março de 1964.
Pelo Secretariado Executivo:
Alex Viany – Álvaro Vieira Pinto – Álvaro Lins – Antônio Teixeira Filho – Dias
Gomes – Domar Campos – Ênio Silveira – Geir Campos – M. Cavalcanti
Proença – Moacir Felix e Nelson Werneck Sodré.
Se comparada a presente nota com a mensagem do CGT anteriormente analisada,
denota-se claramente e adesão do Comando dos Trabalhadores Intelectuais ao discurso do
CGT, uma vez que o documento do CTI parte também do pressuposto, no seu primeiro
parágrafo, que estão sendo intentadas, a partir de Minas Gerais, as “liberdades” e a
“concretização das reformas de base indispensáveis”. Importante ressaltar que há nítida
coerência sobre as razões do golpe em ambos os documentos, ou seja, a necessidade
“direitista” de barrar as reformas do governo de João Goulart. Não aponta a nota para a
adesão à greve geral. Contudo, todos os pontos destacados, ou seja, a solidariedade aos
membros do CGT presos no Rio de Janeiro, a conclamação do povo brasileiro à luta contra
a “insurreição direitista”, financiada pelo “imperialismo e seus locais internos” e o apoio ao
229
presidente João Goulart em torno das reformas de base anunciadas no dia 13 de março na
Central do Brasil sugerem a solidariedade e o apoio do CTI ao CGT.
Assim como a posição assumida pelo CTI, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Indústria, também aderiu ao discurso do CGT, conforme segue:
Ao povo
e aos Trabalhadores
A C.N.T.I., em consonância com a determinação de imediata deflagração de
Greve Geral, em todo o território nacional, emitida pelo Comando Geral dos
Trabalhadores, conclama o povo brasileiro, e em particular os trabalhadores
industriários, a cerrarem fileiras em torno das forças vivas da Nação, na luta pela
legalidade democrática, pelas liberdades sindicais e pela preservação do
mandato do presidente João Goulart, contra os articuladores da trama golpista
desencadeada no país.
Para tanto, concita os trabalhadores a se mobilizarem em suas entidades
sindicais, iniciando a reação contra o golpe, através da imediata deflagração de
Greve Geral, já decretada pelo CGT.
Nesta mensagem, a CNTI, de forma mais enfática do que a expressa pelo CTI, adere
ao discurso construído pelo CGT. Todos os elementos discursivos estão presentes:
iminência do golpe contra o mandato do presidente João Goulart, incitação dos
trabalhadores, “em particular os trabalhadores industriários”, para barrar o golpe e a
estratégia para evitá-lo, a greve geral “já decretada pelo CGT”. Na seqüência do
documento:
Fique certo o presidente da República que os industriários brasileiros, assim
como souberam levar a S. Excia. os brados de suas sentidas reivindicações,
também saberão no presente e no futuro defender, intransigentemente o seu
mandato, porque assim procedendo estarão conseqüentemente salvaguardando o
seu programa de Reformas de Base e os interesses legítimos da Nação Brasileira.
Pela Vitória da Legalidade eis a palavra de ordem do CNTI.
Pela Diretoria – Clodsmidt Riani – Dante Pellacani – Benedito Cerqueira –
Francisco Plácido das Chagas – Júlio Marques da Silva.
230
O trecho final da nota demonstra nitidamente que a defesa do mandato do presidente
da República significa a realização das reformas de base por ele anunciadas. Novamente
aqui existe um consenso entre os momentos constituintes da prática articulatória cujo ponto
nodal é a manutenção do mandato do presidente para a promoção das reformas. As
reformas de base representam a grande bandeira de luta e de resistência ao golpe então
iniciado em Minas Gerais. Isso fica ainda mais claro quando a nota apresenta o trecho:
Os industriários brasileiros, assim como souberam levar a S. Excia. os brados de
suas sentidas reivindicações, também saberão no presente e no futuro defender,
intransigentemente o seu mandato, porque assim procedendo estarão
conseqüentemente salvaguardando o seu programa de Reformas de Base e os
interesses legítimos da Nação Brasileira.
O excerto acima infere à idéia de que o presidente, na ótica do CNTI, nem sempre
conduziu sua política de Estado de acordo com os interesses representados pela
Confederação. Entretanto, desde o Comício da Central do Brasil, com o anúncio das
reformas de base, a CNTI assumiu a posição de defesa do mandato de Goulart, tendo em
vista isso significar diretamente a efetivação do programa reformista. Além das
manifestações do CTI e da CNTI, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG) também se juntou ao discurso do CGT conforme a seguinte nota,
datada de 31 de março:
Aos Camponeses
Aos Trabalhadores
A CONTAG, tendo em vista as atitudes de franca provocação e dos fatos
consumados que as forças da reação acabam de adotar contra as liberdades dos
231
trabalhadores e do povo, vem de público declarar sua integral solidariedade ao
CGT que acaba de declarar Greve Geral em todo o país.
O início do manifesto presume a imediata adesão da CONTAG na articulação
promovida pelo Comando Geral dos Trabalhadores, no momento em que a entidade dos
trabalhadores na agricultura se solidariza com a greve geral nacional declarada pelo CGT,
em função das “atitudes de franca provocação e dos fatos consumados que as forças da
reação acabam de adotar contra as liberdades dos trabalhadores e do povo”. Na seqüência
da nota:
As razões que nos levaram a essa atitude prendem-se ao fato de que as forças da
reação, que desde algum tempo vinham adotando a cada instante medidas mais
criminosas, que iam desde o maltrato até o assassinato de camponeses e suas
famílias, nesta data resolveram iniciar o processo do golpe para se apoderarem
definitivamente do poder central. Nesse sentido, então, os Governadores da
Guanabara, Minas Gerais, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul entrosados
num esquema, vêm de invadir os Sindicatos, prender e espancar líderes sindicais
e estudantis, ao mesmo tempo que lançavam atrevidos manifestos e declarações
contra o presidente da República, contra as forças legislativas e progressistas,
conclamando, enfim, as suas polícias a se sublevarem contra os poderes
constituídos.
O excerto acima denota que as razões da adesão da CONTAG à greve geral
convocada pelo CGT não são somente momentâneas. Há “algum tempo” as “forças da
reação” vêm tomando “medidas criminosas”, que consistiam no maltrato e, inclusive, no
assassinato de camponeses e de suas famílias. Contudo, fica também evidente que a
CONTAG aderiu à proposta do CGT, tendo em vista que claramente a entidade camponesa
vislumbrava, naquele 31 de março o princípio do golpe militar: “as forças da reação (...)
nesta data resolveram iniciar o processo do golpe para se apoderarem definitivamente do
poder central”.
232
O trecho informa ainda como estaria ocorrendo o referido golpe, num esquema em
que os governadores Carlos Lacerda, Magalhães Pinto, Adhemar de Barros, Ney Braga e
Ildo Meneghetti (conforme a ordem dos estados disposta no excerto em análise) estariam
envolvidos e que resultava no espancamento e na prisão de líderes sindicais e estudantis,
“ao mesmo tempo que lançavam atrevidos manifestos e declarações contra o presidente da
República, contra as forças legislativas e progressistas, conclamando, enfim, as suas
polícias a se sublevarem contra os poderes constituídos”. Destaque especial deve ser dado à
denúncia da CONTAG sobre o uso das polícias estaduais na sublevação contra os “poderes
constituídos”. Com esta última afirmação, é possível fazer a inferência de que os
governadores supra referidos estavam flagrantemente agindo contra a lei, sendo, portanto, o
golpe uma atitude ilegal. Isto é, aliás, óbvio de se afirmar. Entretanto, parece interessante
ter em vista que a CONTAG, juntamente com o CGT e as demais entidades que faziam
parte do movimento pela greve geral, estava, a partir desta nota, defendendo a manutenção
da legalidade e a greve geral seria uma forma de lutar pela manutenção do Estado
Democrático de Direito que estava sendo quebrado pelo “esquema” do qual faziam parte os
governadores de cinco importantes estados brasileiros. Na seqüência do documento:
Não querem que os camponeses tenham terra; que sejam livres; que seus filhos
sejam alimentados e alfabetizados. Não desejam, enfim, que o povo, os
trabalhadores e a Nação tenham melhores dias.
Parece possível afirmar, tendo em vista o trecho acima, que os governadores citados e
os demais membros do “esquema” golpista eram inimigos dos “camponeses”, dos “filhos”
233
dos camponeses, do “povo”, dos “trabalhadores” e da “Nação”. Isso porque, segundo a
CONTAG, os golpistas não desejam que os “camponeses tenham terra”, “que sejam livres”,
ou seja, os golpistas queriam, conforme a nota, que os camponeses fossem “sem terra” e
“não livres”, o que denota a afirmar que os golpistas queriam que os camponeses fossem
“escravos”. Além disso, os golpistas não desejavam que os filhos dos camponeses fossem
“alimentados” e “alfabetizados”. Como se não bastasse, os golpistas não desejavam ainda
que o “povo”, os “trabalhadores” e a “Nação” tivessem melhores dias, ou seja, os
governadores e os demais membros do “esquema” do golpe, segundo a nota, queriam, no
limite, o fim do povo brasileiro. Na seqüência da nota:
Diante disso, nós camponeses, como parte integrante do CGT, absolutamente,
não podemos ficar de braços cruzados e deixar que as forças do mal ajam
livremente contra o povo e suas conquistas sociais. Sobretudo não podemos
permitir que essas forças impeçam a realização das Reformas preconizadas pelo
Presidente João Goulart, na Mensagem enviada ao Congresso.
Nessas condições, apoiamos totalmente a Greve Geral deflagrada pelo CGT e
recomendamos que todos os camponeses do país desenvolvam os seus esforços
no sentido de que a posição adotada pelos trabalhadores brasileiros seja
plenamente executada também no campo, até a vitória final.
Camponês, a luta do soldado, do marinheiro, do cabo, do sargento e dos oficiais
progressistas é a nossa luta.
Camponês, a luta do operário urbano e do estudante esclarecido é a nossa luta.
Camponês, a luta por um Governo democrático e nacionalista é a nossa luta.
Unidos derrotaremos o golpe, o latifúndio e a exploração estrangeira.
Rio de Janeiro, 31 de março de 1964.
Lindolfo Silva – Presidente – Sebastião L. de Lima – Secretário Geral – José R.
dos Santos – 1º Secretário.
Diante do manifesto desejo dos golpistas em não querer que os camponeses tenham
terra, liberdade, alimentação e alfabetização, que o povo, os trabalhadores e a Nação não
tenham melhores dias, é necessário que a CONTAG não fique de “braços cruzados”
deixando que as “forças do mal ajam livremente contra o povo e suas conquistas sociais”. O
234
emprego da expressão “forças do mal” aparece, nesse momento, como o corolário
qualificador dos golpistas. Nesse particular, portanto, parece razoável afirmar que os
golpistas acima mencionados representavam sujeitos oriundos das “trevas”, da “escuridão”,
uma vez que “forças do mal” pode sugerir uma analogia com “forças demoníacas”,
“diabólicas”. Sendo assim, a luta contra os golpistas é uma luta antagônica, em que a vitória
completa sobre o oponente representa a sua total dissolução e a condição mesma de
emancipação da força vitoriosa. Tudo o que é negado pelos golpistas, segundo a CONTAG,
só será efetivamente conseguido pelos trabalhadores rurais e pelo povo brasileiro se esse
pólo antagônico for completamente derrotado.
Segundo o excerto, é razoável afirmar que o primeiro passo para a derrota das “forças
do mal” é lutar pela garantia das reformas de base anunciadas por João Goulart na
Mensagem por ele enviada ao Congresso Nacional, em 15 de março, por ocasião da
abertura dos trabalhos legislativos de 1964: “não podemos permitir que essas forças
impeçam a realização das Reformas preconizadas pelo Presidente João Goulart, na
Mensagem enviada ao Congresso”. A estratégia para conter o golpe é seguir a palavra de
ordem da greve geral decretada pelo CGT, numa clara união entre os “trabalhadores do
campo e da cidade”: “apoiamos totalmente a Greve Geral deflagrada pelo CGT e
recomendamos que todos os camponeses do país desenvolvam os seus esforços no sentido
de que a posição adotada pelos trabalhadores brasileiros seja plenamente executada também
no campo, até a vitória final”.
235
No final da nota, a CONTAG elenca os grupos políticos “anti-golpe”.
Inicialmente, o “camponês”, uma vez que a nota é primordialmente a ele dirigida.
Juntamente ao “camponês”, ao “soldado”, ao “marinheiro”, ao “cabo”, ao “sargento” e aos
“oficiais progressistas”. Além dos militares, formavam ainda o grupo os “operários
urbanos” e os “estudantes esclarecidos”, no sentido da já referida união entre
“trabalhadores do campo e da cidade”, acrescida ainda dos “estudantes esclarecidos”,
liderados pela União Nacional dos Estudantes. Já os objetivos da luta “anti-golpe” eram por
um “governo democrático e nacionalista”, contra o “golpe”, o “latifúndio” e a “exploração
estrangeira”.
Além dos documentos emitidos pelo CGT, CTI, CNTI, CONTAG, o Pacto de
Unidade e Ação (PUA) emitiu a seguinte nota num tom que pode ser considerado mais
radical do que as anteriores, conforme segue:
Aos Trabalhadores e ao Povo!
O Pacto de Unidade e Ação, integrado pelos trabalhadores das categorias de
estivadores, ferroviários, arrumadores, marítimos e portuários de todo o país, em
face da sublevação armada para depor o presidente da República, liquidar com
as lutas populares pelas Reformas de Base e liberdades democráticas e sindicais,
determina a imediata paralização dos serviços dos arrumadores, estivadores,
ferroviários, marítimos e portuários em todo o Território Nacional.
Neste primeiro excerto, o PUA, dirigindo-se aos trabalhadores e ao povo, se
apresenta como sendo a entidade representativa dos “estivadores, ferroviários, arrumadores,
marítimos e portuários de todo o país” e, a exemplo das demais organizações analisadas
neste capítulo, “determina a imediata paralisação” desses profissionais em todo o país,
tendo em vista a “sublevação armada para depor o presidente da República, liquidar com as
236
lutas populares pelas Reformas de Base e liberdades democráticas e sindicais. A utilização
da expressão “determina a imediata paralisação”, induz a idéia de que o PUA detém o pleno
controle das categorias profissionais por ele representadas, o que passa, portanto, a idéia de
que a paralisação dos mesmos teria amplo êxito. Continuando o manifesto:
Confirmando nossas denúncias, grupos de “gorilas” e antipovo, sob o comando
de Magalhães Pinto e a criminosa cumplicidade de seus parceiros Carlos
Lacerda, Ademar de Barros e Ildo Menegheti, agridem em choques armados o
Exército fiel ao Governo federal e ao povo, na desesperada e inútil tentativa de
golpear a autoridade do presidente da República e sufocar as manifestações
populares e progressistas dos patriotas civis e militares. Querem chacinar o povo
para poderem manter seus odiosos privilégios, os interesses antinacionais
internos e externos e a perpetuidade do latifúndio.
O golpe é denunciado no trecho acima e, inclusive, seu comandante é anunciado:
Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais, estado onde, de fato, foi iniciado o
movimento armado que pôs termo ao governo de Goulart. É interessante, como consta na
nota, que o líder do golpe é um civil e não um militar, como se os militares estivessem a
serviço do governador de Minas Gerais e de seus “criminosos cúmplices”, os outros
governadores. Segundo o enunciado, parece ser lícito afirmar que, nestes primeiros
momentos do golpe, este estava sendo dado por civis com o apoio de militares.
Os golpistas “agridem em choques armados o Exército fiel ao Governo federal e
ao povo”, ou seja, existia um Exército fiel ao governo Goulart e ambos eram fiéis, por
conseqüência, ao povo. Assim, o governo Goulart era percebido pelo PUA como um
governo que imprimia suas políticas no interesse do povo. A expressão “querem chacinar o
povo”, ou seja, “assassinar brutalmente” o povo brasileiro, representava, conforme a nota, o
237
desejo dos que se insurgiam naquele momento. Isso para manter “seus odiosos privilégios,
os interesses antinacionais internos e externos e a perpetuidade do latifúndio”. Na
seqüência, o manifesto enuncia mais claramente as ações dos golpistas:
Na Guanabara, a polícia fascista de Carlos Lacerda invade a sede do PUA e tenta
assassinar seus dirigentes, inclusive o nosso presidente. Mantém mais de uma
dúzia de líderes sindicais presos e apesar de todos os nossos esforços não se
sabe, até agora, o que foi feito dos bravos companheiros entregues à sanha dessa
malta de bandidos e facínoras. Como em bando de assaltantes, tomados de
pânico e desespero, continuam invadindo outras organizações, metralharam a
sede, da UNE, ferindo dois jovens estudantes, atirando contra os fuzileiros ali
postados e metralham a seguir as tropas da Aeronáutica postadas nas imediações
do Ministério da Aeronáutica e Sindicato dos Aeronautas.
O Governos da Guanabara, Minas, Rio Grande do Sul e São Paulo caíram na
ilegalidade, enveredando na senda da traição aos interesses desses Estados, da
Nação e povo brasileiros.
As ações dos golpistas estão descritas no trecho acima, dando-se especial destaque
àquelas promovidas pelo governador da Guanabara, Carlos Lacerda. No trecho anterior, a
nota fazia referência genérica a uma “chacina do povo”. Neste excerto, essa “chacina” é
novamente referida, mas tomando-se o caso concreto das lideranças sindicais perseguidas:
“na Guanabara, a polícia fascista de Carlos Lacerda invade a sede do PUA e tenta
assassinar seus dirigentes, inclusive o nosso presidente”. Entende-se possível interpretar
que a tentativa de assassinato dos dirigentes do PUA é uma prova concreta de que é
verdade que os golpistas estão “chacinando o povo”, se levar em consideração que os
líderes sindicais do PUA, especialmente seu presidente, são, não somente representantes
das categorias incorporadas pelo Pacto de Unidade e Ação, mas como representantes
sindicais, são representantes do próprio povo. O que a nota parece induzir é que um
possível assassinato de um líder sindical do PUA, assim como de qualquer outro
sindicalista, é um assassinato do próprio povo, pois que a representação dos interesses do
238
povo é tão legítima e transparente, que os líderes sindicais parecem incorporar os mais
sinceros desejos da população brasileira, numa interpretação literal, digna do mais fiel
representante: conforme a nota, líder sindical em nada se diferencia do povo, ele é o próprio
povo. Por outro lado, os golpistas diferenciam-se do povo, sendo, portanto, segundo o
PUA, contrários aos seus interesses.
Além disso, os golpistas são classificados da forma criminosa mais cruel: “malta de
bandidos e facínoras”, “bando de assaltantes, tomados de pânico e desespero”. Tais
adjetivos negam totalmente a existência, na época, de uma disputa política entre “direita” e
“esquerda”, entre “reformistas” e “conservadores”. Não foram sujeitos da “direita” que
deram um golpe de Estado, mas bandidos e facínoras que “assaltaram” o poder político.
Dessa forma, a motivação golpista não era política, segundo o PUA, mas simplesmente
criminosa, conduzida por um “bando de assaltantes, tomados de pânico e desespero”, o que
pode sugerir também a idéia de uma horda “bandida” e “assassina”. Ao final, a nota
enuncia a estratégia de resistência e o desejo dos seus subscritores:
Arrumadores, Estivadores, Ferroviários, Marítimos e Portuários de todo o
Brasil!
Greve Geral e Ações de massa nas ruas e nas praças contra o golpe Reacionário
e Criminoso dos Trabalhadores da Pátria é a Decisão do Pacto de Unidade e
Ação.
Pela garantia e ampliação das liberdades democráticas e sindicais!
Em Defesa do Mandato do Presidente João Goulart!
Em defesa de nossos direitos e conquistas!
Pelas Reformas de Base, contra o Latifúndio e o Imperialismo!
Unidos, Mobilizados e Coesos com todos os Patriotas, Civis e Militares,
marchemos decididamente para a vitória, pela felicidade dos trabalhadores de
cidade e do campo, pelo bem-estar de nosso povo e a completa emancipação de
nossa Pátria.
Em 31de março de 1964.
Federação Nacional dos Arrumadores
239
Federação Nacional dos Estivadores
Federação Nacional dos Ferroviários
Federação Nacional dos Trabalhadores do Transporte Marítimo
Federação Nacional Trab. Grupo de Máq. Marinha Merc.
Federação Nacional dos Portuários
União dos Portuários do Brasil.
Nesse trecho final, o PUA alinha-se na articulação promovida pelo CGT, tanto no
que tange à estratégia de contenção do golpe, a greve geral, como em relação aos objetivos
desses movimentos laborais, principalmente a manutenção das reformas de base anunciadas
e já postas em marcha pelo presidente João Goulart. É interessante notar a existência de
uma forte unidade discursiva na articulação em questão. Todas as notas e os manifestos
descritos demonstram uma nitidez de objetivos (reformas de base) e também uma nitidez de
reação ao golpe (greve geral). No entanto, a força real desses grupos de esquerda para a
contenção do golpe era infinitamente menor do que a dos golpistas. Além de uma clara
desvantagem militar, a esquerda não pareceria deter também, naquele contexto, uma
hegemonia política capaz de atrair o “povo”, esse ente abstrato que para esses movimentos
parecia tão real e por eles efetivamente representado, para o sucesso de uma greve geral que
fizesse retroagir os desígnios dos próceres do movimento de 31 de março de 1964.
240
6.6 Considerações finais: os “diagnósticos de desordem” e as “soluções de
ordem” dos movimentos de esquerda
Não seria nenhum exagero considerar o mês de março de 1964 como uma das
páginas mais conturbadas da vida republicana brasileira. Não somente pelo desfecho
autoritário, que rendeu conseqüências terríveis à saúde da democracia no Brasil, mas pelo
fato mesmo de que os grupos políticos que disputavam naquele contexto histórico pareciam
estar além, e aquém, de qualquer solução democrática, tendo em vista os fortes impasses
políticos gerados em torno das reformas de base.
Neste capítulo foi realizada uma radiografia das posições políticas assumidas pelos
movimentos populares, mormente os de cunho sindical, que esperavam de João Goulart
posições e ações governamentais mais agressivas em torno das mudanças sociais
prometidas pelas reformas de base. No sombrio mês de março de 1964, o “diagnóstico de
desordem” desses grupos esquerdistas radicais estava claramente definido: a iminência de
um golpe conservador e direitista contra João Goulart, o que representava o impedimento
do avanço do processo de reformas. A “solução de ordem”, plenamente reativa ao seu
“diagnóstico”, era simplesmente luta pela manutenção do presidente no cargo.
Contudo, a estratégia política desses movimentos era a da simples radicalização do
processo político já instável no período. Assim, o Comando Geral dos Trabalhadores e as
demais entidades políticas por ele articuladas exigiam de Goulart a implementação das
241
reformas de base, importando-se muito pouco com o custo político que tais medidas
representavam. Esses grupos não esperavam outra coisa senão uma clara atitude nesse
sentido. Expediram notas e manifestos em que tal exigência era uma unanimidade. Além
das reformas, desejavam claramente também que o governo federal combatesse grupos
políticos e militares de direita extremamente influentes no período. Assim, queriam de
Goulart uma posição autenticamente reformista, que poderia ser considerada na época
como sendo radical e que permitia pouca margem de negociação política com os
adversários.
A posição assumida pelas esquerdas sindicalistas, que antagonizava com grupos
políticos extremamente poderosos, era, no entanto, muito frágil de ser sustentada na luta
real que se avizinhava. Ao seu lado, perfilavam insignificantes grupos das Forças Armadas,
formados primordialmente por militares de baixa patente e, portanto, com pouca influência
política. No contexto da arena política, uma posição política radical pró-reformas era
também muito frágil entre os parlamentares no Congresso Nacional. Assim, no embate
antagônico, muito pouco podia ser feito. O radicalismo das posições da esquerda acabava
em suas próprias palavras. O insucesso da greve geral chamada pelo CGT, em 31 de março,
demonstrou o quão frágil era a possibilidade de resistência por parte da esquerda.
242
7 A POSIÇÃO POLÍTICA ASSUMIDA POR JOÃO GOULART
No capítulo anterior, foram apresentadas as principais razões políticas que levaram as
esquerdas, lideradas primordialmente pelo CGT, a radicalizarem seus discursos e a exigir
de João Goulart medidas drásticas, alheias muitas delas a qualquer tipo de solução de
caráter democrático, para a concretização do plano de reformas originalmente preconizado
pelo Executivo federal. Os protestos, ameaças de greve geral, manifestações públicas –
como o Comício da Central do Brasil – além de uma série de documentos lançados por
entidades sindicais e estudantis auxiliaram sobremaneira a aumentar ainda mais a
instabilidade do frágil regime democrático brasileiro do período.
Em momentos de crise política – mas principalmente de crise institucional, pois, no
limite, o debate que se travava entre esquerda e direita era se a democracia poderia
243
sobreviver ao final de tal episódio – qualquer medida impensada, qualquer palavra mais
radical poderia comprometer todo o jogo. Ambas as partes, talvez cônscias de que a regra
democrática, afinal de contas, tornara-se um expediente moroso, e quiçá impeditivo a
consecução de seus auspícios, corriam contra o tempo arregimentando aliados para, enfim,
longe de qualquer possibilidade de disputa agônica, ou seja, dentro de regras e preceitos
anteriormente definidos à contenda, preferiram optar pelo embate antagônico, o qual, ao
final da luta, só um lado sagra-se vencedor aniquilando a posição contrária. Neste capítulo,
desta feita, será analisado o discurso político de João Goulart em dois momentos
específicos: o seu pronunciamento no Comício de 13 de março
74
e a sua manifestação no
Automóvel Clube do Brasil
75
em 30 de março de 1964.
7.1 O discurso de João Goulart no comício da central do Brasil
No capítulo anterior, já foi feita a devida referência ao Comício do dia 13 de março, o
que torna desnecessário, neste momento, retomar o ponto. Assim, será imediatamente
analisado o discurso que o presidente João Goulart pronunciou, que inicia da seguinte
forma:
74
O pronunciamento de Goulart proferido na Central do Brasil, em 13 de março de 1964, foi extraído de Silva
(1975), apud Bonavides e Amaral (2002, 840-850).
75
A manifestação de Goulart no Automóvel Clube do Brasil, em 30 de março de 1964, foi extraída de Morel
(1965), apud Bonavides e Amaral (2002, 882-886).
244
Devo agradecer às organizações sindicais, promotoras desta grande
manifestação, devo agradecer ao povo brasileiro por esta demonstração
extraordinária a que assistimos emocionados, aqui nesta cidade do Rio de
Janeiro. Quero agradecer, também, aos sindicatos que, de todos os estados,
mobilizaram os seus associados, dirigindo minha saudação a todos os brasileiros,
e não apenas aos que conseguiram adquirir instrução nas escolas. Dirijo-me
também aos milhões de irmãos nossos que dão ao Brasil mais do que recebem e
que pagam em sofrimento, pagam em miséria, pagam em privações, o direito de
serem brasileiros e o de trabalhar de sol a sol pela grandeza deste país.
Presidente de oitenta milhões de brasileiros, quero que minhas palavras sejam
bem entendidas por todos os nossos patrícios. Vou falar em linguagem franca,
que pode ser rude, mas é sincera e sem subterfúgios. É também a linguagem da
esperança, de quem quer inspirar confiança no futuro, mas de quem tem a
coragem de enfrentar sem fraquezas a dura realidade que vivemos. Aqui estão os
meus amigos trabalhadores, pensando na campanha de terror ideológico e de
sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a realização
deste memorável encontro entre o povo e seu presidente, na presença das
lideranças populares mais representativas deste país, que se encontram também
conosco, nesta festa cívica.
Neste trecho inicial, reservado às saudações do presidente, Goulart saúda inicialmente
as organizações sindicais promotoras do evento. Esta saudação pode ser compreendida
como um aceno positivo do presidente no sentido de anunciar publicamente sua aliança
com tais organizações, mormente com o Comando Geral dos Trabalhadores, entidade
sindical de maior relevo e comandante da organização do Comício.
Secundariamente, o presidente agradece “ao povo brasileiro por esta demonstração
extraordinária a que assistimos emocionados”. Nesta parte, Goulart afirmou que o Comício
que estava ocorrendo era um evento verdadeiramente popular, uma vez que as pessoas
concentradas eram efetivamente o povo. Um número maciço de manifestantes dá, aos olhos
do senso comum, a nítida impressão de que, naquele dia 13 de março de 1964, presente no
Comício estava o “povo brasileiro” apoiando o presidente que lá manifestava a sua posição
política. Quando Goulart está agradecendo “ao povo brasileiro por esta demonstração
extraordinária a que assistimos emocionados”, o que pode ficar subentendido, é que o
245
presidente está agradecendo ao “povo” pelo apoio e mostrando a todos, principalmente aos
seus adversários políticos, que ele, o presidente da República, tem efetivamente apoio
popular para conduzir a sua política de governo, naquele momento assentada nas reformas
de base.
Outra questão que merece ser enfocada neste excerto está expressa na seguinte
passagem: “aqui estão os meus amigos trabalhadores, pensando na campanha de terror
ideológico e de sabotagem, cuidadosamente organizada para impedir ou perturbar a
realização deste memorável encontro entre o povo e seu presidente”. Neste ponto, Goulart
está afirmando que o “encontro entre o povo e seu presidente” corria perigo, pois uma
“campanha de terror ideológico e de sabotagem, cuidadosamente organizada” por aqueles
que eram contrários ao próprio “povo”, pois se pode inferir que impedir tal encontro
representava impedir com que o povo, ou melhor, um a um dos presentes naquele ato,
pudessem exprimir suas necessidades e demandas justamente ao presidente da República,
aquele capaz de resolver os problemas desse povo. Goulart articulou seu enunciado como
se num Comício o presidente pudesse ter um encontro “íntimo” com o povo, no sentido de
que aquele seria o momento adequado para o povo exprimir, e por conseqüência o
presidente ouvir, todas as suas necessidades e angústias. Feitas as saudações, o presidente
passou a discorrer acerca do primeiro tema: a democracia:
DEMOCRACIA
Chegou-se a proclamar, trabalhadores brasileiros, que esta concentração seria
um ato atentatório ao regime democrático, como se no Brasil a reação ainda
fosse dona da democracia, ou proprietária das praças e das ruas. Desgraçada a
democracia a que tiver de ser defendida por esses democratas. Democracia para
eles não é o regime da liberdade de reunião para o povo. O que eles querem é
246
uma democracia de um povo emudecido, de um povo abafado nos seus anseios,
de um povo abafado nas suas reivindicações. A democracia que eles desejam
impingir-nos é a democracia do antipovo, a democracia da anti-reforma, a
democracia do anti-sindicato, ou seja, aquela que melhor atenda aos seus
interesses ou aos dos grupos que eles representam. A democracia que eles
pretendem é a democracia dos privilégios, a democracia da intolerância e do
ódio. A democracia que eles querem, trabalhadores, é para liquidar a Petrobrás, é
a democracia dos monopólios, nacionais e internacionais, a democracia que
pudesse lutar contra o povo, a democracia que levou o presidente Vargas ao
extremo sacrifício. Ainda ontem, eu afirmava no Arsenal de Marinha, envolvido
pelo calor dos trabalhadores de lá, que a democracia jamais poderia ser
ameaçada pelo povo, quando o povo livremente vem para as praças – as praças
que são do povo. Para as ruas – que são do povo.
Neste excerto, Goulart tem a intenção de caracterizar os “objetivos” de seus
adversários políticos, os quais ele está denominando ironicamente de “democratas”. A
partir da leitura do trecho, percebe-se que, em verdade, seus adversários, segundo sua
análise, não são efetivamente democratas, uma vez que o regime político que eles estariam
pregando seria não um regime democrático, mas um regime com traços de autoritarismo.
Desta forma, o presidente inicia o período afirmando que o Comício teria sido proclamado
pela “reação” – expressão comumente utilizada na época pelos esquerdistas para
caracterizar os partidários da direita – como um “ato atentatório ao regime democrático”,
uma vez que a vontade da “reação” era a de não ver o povo manifestando seus desejos:
“desgraçada a democracia a que tiver de ser defendida por estes democratas”, estatui o
presidente. Após, Goulart enuncia algumas características da democracia da “reação”.
Conforme Jango, democracia, para os reacionários, “não é o regime da liberdade de reunião
para o povo”, é o regime “de um povo emudecido, de um povo abafado nos seus anseios, de
um povo abafado nas suas reivindicações”.
247
Logo após, apresentando mais características da “democracia” da reação, Goulart se
coloca ao lado do povo, como um de seus elementos, quando afirma: “a democracia que
eles desejam impingir-nos é a democracia do antipovo, a democracia da anti-reforma, a
democracia do anti-sindicato, ou seja, aquela que melhor atenda aos seus interesses ou aos
dos grupos que eles representam”. O emprego de “impingir-nos”, verbo conjugado na
primeira pessoa do plural, visa a colocar Goulart no mesmo patamar do “povo”, ou seja, os
reacionários estão, ao mesmo tempo, contra o povo e contra Goulart. Conseqüentemente,
existe uma clara aliança, a partir do discurso de Goulart, entre ele, o presidente da
República, e o “povo brasileiro”, contra a “reação”, que se coloca contra ambos.
Outro elemento importante de ser considerado neste excerto tem relação com outras
características que Jango infere à “democracia da reação”: esta é o regime da “anti-
reforma” e do “anti-sindicato”. A primeira, ou seja, a “anti-reforma”, tendo em vista a
grande discussão política do momento que girava em torno das reformas de base, aliás, o
principal objetivo da realização do Comício em questão. As “reformas” estavam sendo
apresentadas como políticas prioritárias de governo de Goulart. Ser contra as reformas, não
representava se colocar simplesmente contra um projeto político do governo Goulart, mas,
conforme o discurso, assumir determinada atitude representava ser contra o povo brasileiro,
pois ele, Goulart, como presidente da República e legítimo aliado do povo e, portanto, seu
intérprete, apresentava as reformas como uma forma de vencer as dificuldades do povo e
não simplesmente como uma plataforma política de governo. Já a segunda característica da
democracia da reação era o “anti-sindicato”, que tinha a ver com o leque de alianças
248
políticas contingentes que Goulart estava naquele momento celebrando, principalmente
com o CGT, que liderava a organização do Comício.
Na seqüência do excerto, o enunciador infere mais características da democracia dos
reacionários, justamente para caracterizar que o regime que eles preconizam não é um
regime popular, mas anti-popular, um regime defensor dos ricos e dos monopólios,
portanto, democracia da reação não é verdadeiramente uma democracia, conforme as
características que seguem: “democracia dos privilégios, a democracia da intolerância e do
ódio”. O regime dos reacionários é o regime em que o povo não pode se manifestar, pois a
reação entende, segundo Goulart, que o povo pode ameaçar a democracia: “a democracia
jamais poderia ser ameaçada pelo povo, quando o povo livremente vem para as praças – as
praças que são do povo. Para as ruas – que são do povo”. O discurso do presidente continua
apresentando o seu conceito de democracia, conforme segue:
Democracia, trabalhadores, é o que o meu governo vem procurando realizar,
como é do meu dever. Não só para interpretar os anseios populares, mas também
para conquistá-los, pelo caminho do entendimento e da paz. Não há ameaça mais
séria para a democracia do que a democracia que desconhece os direitos do
povo. Não há ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do
povo, dos seus legítimos líderes populares, fazendo calar as suas reivindicações.
No excerto acima, último parágrafo do seu pronunciamento destinado à temática
“Democracia”, Goulart, ao mesmo tempo em que se coloca em posição antagônica à
posição dos “reacionários” tratada anteriormente, apresenta a sua idéia de democracia,
basicamente como o regime em que o “povo” é ouvido por seus líderes e tem suas
reivindicações acolhidas pelos mesmos. Interessante ressaltar, neste particular, que naquele
249
comício, Goulart, na condição de líder, estava, como ele próprio afirmou no início de seu
pronunciamento, realizando um “memorável encontro entre o povo e seu presidente”.
Assim, democracia, para o presidente, reside justamente neste encontro: o presidente diante
de seu povo ouvindo seus anseios.
É evidente que esta posição assumida é completamente contrária à posição enunciada
anteriormente, denominada como a posição da “democracia da reação”. Neste ponto, Jango
está buscando articular as suas políticas governamentais reformistas como sendo os anseios
mais genuínos dos movimentos sociais, dos trabalhadores ali presentes e da abstrata
entidade “povo”, tendo como pólo antagônico desta articulação os “reacionários”.
“Democracia”, nesse sentido, é “interpretar” e “conquistar” os anseios populares. Ser um
líder, para o enunciador, significa ter a capacidade de “interpretar”. “Interpretar”, neste
ponto, deve ser entendido em seu sentido mais literal: ler o que o outro (o povo) quer,
anseia; ser meramente um interpretador. O representante meramente existe, nesse sentido,
como sendo aquele meio capaz de tomar medidas e decisões oriundas diretamente do
representado, nunca dele próprio, no sentido da representação delegada de Bobbio
76
. Sem
qualquer opacidade, ele “interpreta” e “conquista” os mais puros e límpidos desejos do seu
povo.
Ao final do excerto, Goulart retoma um ponto já tratado no início do tema
“Democracia”; aquele em que o enunciador afirmou no excerto anterior: “chegou-se a
250
proclamar, trabalhadores, que esta concentração seria um ato atentatório ao regime
democrático (...)”. Essa idéia é retomada no ponto em que Goulart afirma que “não há
ameaça mais séria à democracia do que tentar estrangular a voz do povo, dos seus legítimos
líderes populares, fazendo calar as suas reivindicações”. Evitar aquela concentração popular
seria ir contra a democracia, o regime que deve propiciar a reunião entre o povo e o seu
presidente. Na seqüência do discurso, Jango passa a tratar do tema “Reformas”, um dos
pontos altos de sua manifestação, tendo em vista que o objetivo primordial da mesma
residia justamente nas então proclamadas reformas de base:
REFORMAS
Estaríamos, assim, brasileiros, ameaçando o regime se nos mostrássemos surdos
aos reclamos da nação, desta nação, e desses reclamos que, de Norte a Sul, de
Leste a Oeste, levantam o seu grande clamor pelas reformas de base e de
estrutura, sobretudo pela reforma agrária, que será o complemento da abolição
do cativeiro de dezenas de milhões de brasileiros, que vegetam no interior, em
revoltantes condições de miséria.
Neste excerto, Goulart, reafirmando a idéia da necessidade do poder político ouvir os
“reclamos da nação”, inicia tratando do tema “reformas de base”, justamente como
conseqüência deste clamor. Enfatiza, dentre essas, a reforma agrária, justificando a sua
premente necessidade, fazendo menção à abolição do trabalho escravo, como que se tivesse
novamente de instituir ou, melhor, de complementar os termos da Lei Áurea de 1888: a
reforma agrária “que será complemento da abolição do cativeiro de dezenas de milhões de
brasileiros, que vegetam no interior, em revoltantes condições de miséria”. Seguindo o seu
76
Na representação delegada, conforme Bobbio (1996), o representante é um mero porta-voz da vontade de
seus representados, ou seja, sua função fica adstrita à obediência stricto sensu dos mandamentos a ele
incumbidos, sob pena de ser substituído ad nutum.
251
argumento, no próximo excerto, Jango continua justificando a necessidade da reforma
agrária, utilizando-se, desta feita, de argumentos de cunho religioso, como a seguir:
Ameaça à democracia, enfim, não é vir com o povo confraternizar com o povo
na rua. Ameaça à democracia é empulhar o povo brasileiro, é explorar os seus
sentimentos cristãos, na mistificação de uma indústria do anticomunismo,
insurgindo o povo até contra os grandes e iluminados ensinamentos dos grandes
e santos papas que informam notáveis pronunciamentos, das mais expressivas
figuras do episcopado nacional. O inolvidável papa João XXIII é que nos ensina,
o povo brasileiros, que a dignidade da pessoa humana exige, normalmente como
fundamento natural para vida, o direito e o uso dos bens da terra, ao qual
corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade para todos.
É dentro desta autêntica doutrina que o governo brasileiro vem procurando situar
sua política social, particularmente no que diz respeito à nossa realidade agrária.
O cristianismo nunca foi o escudo para os privilégios condenados para o santo
padre, nem também, brasileiros, os rosários podem ser levantados contra a
vontade do povo e as suas aspirações mais legítimas. Não podem ser levantados
os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na
dignidade das suas esperanças. Os rosários não podem ser erguidos contra
aqueles que reclamam a discriminação da propriedade da terra, hoje ainda em
mãos de tão poucos, de tão pequena minoria.
No início do trecho, Goulart acusa a reação de explorar os sentimentos cristãos do
povo com a “mistificação de uma indústria do anticomunismo”. Assim, tal assertiva servia
como crítica aos “reacionários” que faziam campanhas públicas condenando a ideologia
política “comunista”, ou qualquer outra posição política tida como de esquerda, “anticristã”
e, portanto, contrária à religião mais popular dos brasileiros.
Assim, em resposta à campanha direitista do “anticomunismo”, Jango utiliza-se do
próprio discurso cristão, para justificar a sua posição política como uma posição também
cristã. Nesse sentido, justifica a reforma agrária como um dever da cristandade e não um
simples reclamo dos comunistas e esquerdistas brasileiros na passagem a seguir: “o
inolvidável papa João XXIII é que nos ensina, o povo brasileiro, que a dignidade da pessoa
252
humana exige, normalmente como fundamento natural para vida, o direito e o uso dos bens
da terra, ao qual corresponde a obrigação fundamental de conceder uma propriedade para
todos”. Goulart, neste ponto, busca retirar a questão da reforma agrária do terreno
contingente da disputa política, utilizando-se do pensamento do então papa João XXIII,
para afirmar que a propriedade privada é, em verdade, um direito natural, ou seja, inerente
ao ser humano, como o direito à vida. Desta forma, ocorre aqui uma importante
transformação e inversão no ponto: a reforma agrária não é uma questão contingente, por
ser uma demanda de uma esquerda anticristã. Pelo contrário: a reforma agrária, que
garantiria o acesso a terra para aqueles que ainda não a possuem, é uma necessidade da
cristandade, uma ordem de Deus, um direito natural. Ser contra, portanto, à reforma agrária
é ser, na verdade, um anticristão. Goulart completa seu argumento, afirmando que o seu
governo é um governo preocupado com os valores cristãos, dentre eles o da reforma
agrária: “é dentro desta autêntica doutrina que o governo brasileiro vem procurando situar
sua política social, particularmente no que diz respeito à nossa realidade agrária”. O
próximo ponto abordado por Goulart diz respeito a uma possível “ação repressiva” de seu
governo, conforme segue:
AÇÃO REPRESSIVA
Àqueles que reclamam do Presidente da República uma palavra tranqüila para a
nação, àqueles que em todo o Brasil nos ouvem nesta oportunidade, o que eu
posso dizer é que só conquistaremos a paz social através da justiça social.
Perdem seu tempo aqueles que imaginam que o governo seria capaz de sufocar a
voz do povo ou de abafar as suas reivindicações. Perdem seu tempo, também, os
que temem que o governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de
interesses políticos ou pessoais, como também perdem seu tempo os que
esperam deste governo uma ação repressiva dirigida contra o povo, contra os
seus direitos ou contra as suas reivindicações.
253
Neste ponto, o discurso do presidente aborda dois aspectos principais. O primeiro
deles, recorrente ao longo de todo o seu pronunciamento, diz respeito à posição assumida
por Goulart, identificando-se com as forças políticas de esquerda como sindicatos,
movimentos sociais, de trabalhadores urbanos e rurais. Para tal identificação, o presidente
atribuía uma aliança com o povo e contrário às forças da reação. Isso fica evidente quando
Jango afirma que “perdem seu tempo aqueles que imaginam que o governo seria capaz de
sufocar a voz do povo ou de abafar as suas reivindicações”, ou seja, perdem seu tempo
aqueles que imaginam que o presidente deixaria de estar do lado do povo.
O segundo aspecto a ser considerado diz respeito aos limites que o presidente se
impõe para celebrar a sua aliança com o povo. No excerto acima, os limites estão claros e
dados: Goulart é aliado do povo, busca “justiça social”, mas afirma ser incapaz de cometer
atos contra a legalidade institucional: “perdem seu tempo, também, os que temem que o
governo passe a empreender uma ação subversiva na defesa de interesses políticos ou
pessoais”. A negativa de Jango para “empreender uma ação subversiva” servia como um
recado presidencial de que em seu governo, em hipótese alguma, a normalidade
democrática seria “subvertida”. Tal recado estava sendo dado igualmente à direita (reação),
mas também aos setores da extrema esquerda que entendiam que aquele momento poderia
servir como propício ao início de uma “revolução”. Neste ponto, Goulart, afasta-se dos
extremos políticos, buscando focar seu discurso numa linha progressista “pró-povo”, mas
dentro das regras políticas e jurídicas estabelecidas. Seguindo no tema “ação repressiva”,
Goulart continua:
254
Ação repressiva, trabalhadores, é a que o governo está praticando e vai ampliar
cada vez mais e mais implacavelmente, aqui na Guanabara e em outros estados,
contra aqueles que especulam contra as dificuldades do povo, contra os que
exploram o povo, que sonegam gêneros alimentícios ou que jogam com seus
preços. Ainda ontem, dentro de associações de cúpula de classes conservadoras,
ibadianos de ontem levantavam a voz contra o presidente pelo crime de defender
o povo contra os que o exploram na rua e em seus lares, através da exploração e
da ganância.
No excerto acima, Jango elenca contra quem o seu governo promoverá sua “ação
repressiva”. Tal ação seria promovida “contra aqueles que especulam contra as dificuldades
do povo, contra os que exploram o povo, que sonegam gêneros alimentícios ou que jogam
com seus preços”. Neste ponto, o presidente se coloca em favor do povo, contra os seus
exploradores. É interessante fazer a menção de que nesse Comício Goulart editou o Decreto
n° 53.700, que ficou conhecido como o da “Reforma Agrária da Supra” e o Decreto n°
53.701, que tratava da encampação das refinarias de petróleo particulares. No dia posterior
ao do Comício, Goulart assinou o Decreto n° 53.702, que dispunha sobre o congelamento
dos aluguéis. Todas as medidas acima tinham o objetivo de dar claros sinais de que a
política de “reformas” vinha sendo efetivamente implementada pelo Executivo federal.
Entretanto, para uma ação reformista mais efetiva, Goulart precisava reformar antes a
Constituição Federal, próximo tema de seu pronunciamento a seguir disposto:
REVISÃO DA CONSTITUIÇÃO
Mas não tiram o sono as manifestações de protestos dos gananciosos,
mascaradas de frases patrióticas, mas que, na realidade, traduzem suas
esperanças e seus propósitos de restabelecer impunidade para suas atividades
antipopulares e anti-sociais. Por outro lado, não receio ser chamado de
subversivo pelo fato de proclamar – e tenho proclamado e continuarei
proclamando nos recantos da pátria – a necessidade da revisão da Constituição.
Há necessidade, trabalhadores, da revisão da Constituição da nossa República,
que não atende mais aos anseios do povo e aos anseios do desenvolvimento
desta nação. A Constituição atual, trabalhadores, é uma Constituição antiquada,
porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já superada; uma estrutura
injusta e desumana. O povo quer que se amplie a democracia, quer que se ponha
255
fim aos privilégios de uma minoria; que a propriedade da terra seja acessível a
todos, que a todos seja facilitado participar da vida política do país, através do
voto, podendo votar e podendo ser votado; que se impeça a intervenção do poder
econômico nos pleitos eleitorais e que seja assegurada a representação de todas
as correntes políticas, sem quaisquer discriminações, ideológicas ou religiosas.
Neste trecho, o presidente enfoca o tema da “revisão da Constituição”. Tal revisão
denotava-se imprescindível para os objetivos políticos de Goulart, mormente em relação à
consecução efetiva das reformas de base. Contudo, o debate acerca da revisão
constitucional, naquele momento, mostrava-se assaz radicalizado. Será demonstrado, por
exemplo, no capítulo seguinte, que os deputados federais alinhados à posição política de
direita afirmavam que Goulart desejava, em verdade, “fechar o Congresso Nacional” e
reformar a Constituição brasileira a partir de um golpe de Estado esquerdista. Outra
posição, essa defendida por sindicalistas e políticos de esquerda como, por exemplo, Leonel
Brizola, era a que realmente deveriam ser promovidas as reformas de base, não estando
descartado, inclusive, o fechamento do Congresso Nacional, mediante a convocação de
uma Assembléia Nacional Constituinte. Goulart, nesta disputa antagônica, desejava
implementar as reformas, contudo dentro dos parâmetros legais então estabelecidos. Nesse
sentido, é que o presidente enuncia o que segue: “não receio ser chamado de subversivo
pelo fato de proclamar – e tenho proclamado e continuarei proclamando nos recantos da
pátria – a necessidade da revisão da Constituição”. O “não receio” deve ser atribuído
justamente às acusações de “golpista” que o presidente vinha sofrendo por parte das forças
de direita. Era a favor da revisão constitucional, uma vez que considerava a então
Constituição de 1946 “antiquada, porque legaliza uma estrutura sócio-econômica já
superada; uma estrutura injusta e desumana”. Nas palavras do presidente, “não defender a
256
revisão constitucional significaria defender uma estrutura sócio-econômica superada,
injusta e desumana”.
Além disso, três pontos devem ser levados em consideração em relação à revisão
constitucional. O primeiro deles é a insistência do presidente no tema “reforma agrária”,
quando ele manifesta “que a propriedade da terra seja acessível a todos”. O segundo ponto,
diz respeito à ampliação do direito do voto, tanto aos analfabetos como aos militares,
quando Jango afirma “que a todos seja facilitado participar da vida política do país, através
do voto, podendo votar e podendo ser votado”. É digna de nota a lembrança da revolta dos
sargentos, ocorrida em setembro de 1963, justamente após a declaração da inelegibilidade
dos sargentos e da cassação dos mandatos dos eleitos na ocasião. Em relação ao terceiro
ponto, no final do excerto, Goulart defende a irrestrita possibilidade de manifestação e de
organização político-partidário-ideológica, denotando-se, portanto, o desejo do presidente
em relação à legalização do PCB, organização política clandestina que lhe dava apoio
naquele momento: “que se impeça a intervenção do poder econômico nos pleitos eleitorais
e que seja assegurada a representação de todas as correntes políticas, sem quaisquer
discriminações, ideológicas ou religiosas”. Na seqüência, Goulart, tratou do tema
“liberdade de opinião”, conforme segue:
LIBERDADE DE OPINIÃO
Todos, todos os brasileiros, todos têm o direito à liberdade de opinião, de
manifestar também sem temor seu pensamento. É um princípio fundamental dos
direitos do homem, contido na própria Carta das Nações Unidas, e que temos o
dever de assegurar a todos os brasileiros. Está nisso, trabalhadores, está nisso,
povo brasileiro, o sentido profundo desta grande e incalculável multidão que
presta, neste instante, sua manifestação mas também de suas atitudes e de suas
convicções nas lutas que vem enfrentando, luta contra as forças poderosas, mas
257
confiando sempre na unidade do povo e das classes trabalhadoras, unidade que
há de encurtar o caminho da nossa emancipação. É apenas de se lamentar que
parcelas ainda ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem
insensíveis, de olhos e ouvidos fechados à realidade nacional. São, certamente,
trabalhadores, os piores surdos e os piores cegos, porque poderão, com tanta
surdez e com tanta cegueira, ser, amanhã, responsáveis, perante a história, pelo
sangue brasileiros que possa ser derramado, ao pretenderem levantar obstáculos
à caminhada do Brasil e à emancipação do povo brasileiro.
O tema “liberdade de opinião” é abordado por Goulart para justificar a ocorrência
daquela e de outras manifestações populares. Amparado na idéia de que a “liberdade de
opinião” é um princípio inclusive consignado na Carta das Nações Unidas, é dever do
Brasil assegurá-lo a todos os brasileiros. Nesse sentido, o presidente dá um recado aos seus
adversários de que o Comício é tão-somente um evento que marca a expressão da
“liberdade de opinião” e, de forma alguma, representa um desafio à ordem institucional
estabelecida. O Comício é manifestação do povo “nas lutas que vem enfrentando, luta
contra as forças poderosas, mas confiando sempre na unidade do povo e das classes
trabalhadoras, unidade que há de encurtar o caminho da nossa emancipação”. A “liberdade
de opinião” do povo é um direito que deve ser assegurado, respeitado e não compreendido
como um desafio à ordem vigente. O presidente lamenta, contudo, “que parcelas ainda
ponderáveis que tiveram acesso à instrução superior continuem insensíveis, de olhos e
ouvidos fechados à realidade nacional”. São justamente essas parcelas instruídas que não
aceitam tal manifestação, que se colocam ao lado da “reação”, contra o povo e seu
presidente, como foi apontado anteriormente. São os “piores surdos”, os “piores cegos”,
pois serão os responsáveis, perante a história, pelo “sangue derramado”, caso as
reivindicações populares não forem atendidas e, por isso, o processo político acabe por se
radicalizar “ao pretenderem levantar obstáculos à caminhada do Brasil e à emancipação do
258
povo brasileiro”. Dito por outras palavras: esses surdos, esses cegos, que obstaculizam a
caminhada do Brasil e a emancipação do seu povo são inimigos e, por isso, devem ser
contidos para evitar que sangue possa ser derramado numa eventual revolta ou, mesmo,
guerra civil. Apesar do anúncio de uma possível radicalização política, Goulart, manifesta a
necessidade de se estabelecer um “processo pacífico” na seqüência de seu pronunciamento:
PROCESSO PACÍFICO
De minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo continuarei fazendo para que
o processo democrático siga o caminho pacífico, para que sejam derrubadas as
barreiras que impedem a conquista de novas etapas e do progresso. E podeis
estar certos, trabalhadores, de que juntos, governo e povo, operários,
camponeses, militares, estudantes, intelectuais patrões brasileiros que colocam
os interesses da pátria acima de seus interesses, haveremos de prosseguir de
cabeça erguida, a caminhada da emancipação econômica e de emancipação
social do país. O nosso lema, o nosso lema, trabalhadores do Brasil, é progresso
com justiça, e desenvolvimento com igualdade. A maioria dos brasileiros já não
se conforma com a ordem social imperfeita, injusta e desumana. Os milhões que
nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em receber
os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído
também com o esforço dos trabalhadores e o sacrifício dos humildes. Vamos
continuar lutando pela construção de novas usinas, pela abertura de novas
estradas, pela implantação de mais fábricas, de novas escolas, de hospitais para o
povo sofredor; mas sabemos, trabalhadores, que nada disso terá sentido
profundo se ao homem não for assegurado o sagrado direito ao trabalho e a uma
mais justa participação no desenvolvimento nacional.
Se Goulart no excerto anteriormente analisado mencionava sobre a possibilidade de
“derramamento de sangue” devido à radicalização do processo político, neste trecho, ele
deixa evidente que a dita radicalização não seria obra sua, tampouco por ele seria
incentivada. Propõe que os avanços sociais para incluir os brasileiros mais pobres sejam
realizados pela via democrática: “de minha parte, à frente do Poder Executivo, tudo
continuarei fazendo para que o processo democrático siga o caminho pacífico, para que
sejam derrubadas as barreiras que impedem a conquista de novas etapas e do progresso”.
Neste ponto, fica claro que Jango propõe que a “emancipação” dos trabalhadores, dos
259
pobres, dos brasileiros seja o resultado de um “processo democrático” trilhado por um
“caminho pacífico”. Os termos “processo” e “etapas” deixam claros que a intenção do
presidente não é a de radicalizar o momento político. Pelo contrário, o seu discurso denota
uma condenação às ações radicais tanto por parte da direita como aquelas promovidas pela
esquerda. Entretanto, fica evidente que o discurso do presidente toma um caminho sem
volta: ele não admite tergiversar em alguns momentos, do ponto de vista legal, na direção
de uma política voltada para o “progresso com justiça”, como ele mesmo afirma. Contudo,
fica muito claro que as possíveis voltas, passos para frente e para trás, idas e vindas
atinentes à negociação democrática devido aos vários interesses políticos em jogo, não
serão capazes de fazer com que Goulart deixe de cumprir com o que estava sendo
prometido naquele Comício de forma extremamente ampla e imprecisa, ou seja, “progresso
com justiça” para milhões de brasileiros que anseiam por mudanças e inclusão social: “os
milhões que nada têm impacientam-se com a demora, já agora quase insuportável, em
receber os dividendos de um progresso tão duramente construído, mas construído também
com o esforço dos trabalhadores e o sacrifício dos humildes”. É em nome desse progresso
com justiça social, que Goulart passa a abordar em seu pronunciamento o tema “hora da
reforma”:
HORA DA REFORMA
Não trabalhadores; não, brasileiros. Sabemos muito bem de que nada vale
ordenar a miséria neste país. Nada adianta dar-lhe aquela aparência bem
comportada com que alguns pretendem iludir e enganar o povo brasileiro. Meus
patrícios, a hora é a hora da reforma, brasileiros, reforma de estrutura, reforma
de métodos, reforma de estilo de trabalho e reforma de objetivo para o povo
brasileiro. Já sabemos que não é mais possível produzir sem reformar, que não é
mais possível admitir que esta estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da
salvação nacional, para milhões e milhões de brasileiros, da portentosa
civilização industrial, porque dela conhecem apenas a vida cara, as desilusões, o
260
sofrimento e as ilusões passadas. O caminho das reformas é o caminho do
progresso e da paz social. Reformar, trabalhadores, é solucionar pacificamente
as contradições de uma ordem econômica e jurídica superada pela realidade dos
momentos em que vivemos.
No excerto, fica evidente o tom “salvacionista” das reformas de base dado pelo
presidente: “já sabemos que não é mais possível produzir sem reformar, que não é mais
possível admitir que esta estrutura ultrapassada possa realizar o milagre da salvação
nacional”, afirma Goulart. Jango menciona que as reformas podem produzir a “salvação
nacional”. Se as reformas têm o poder de produzir tamanho resultado, e se as mesmas são
partes fundamentais da política de governo de Goulart, é digno de nota que o presidente
tinha intenção declarada de ser um salvador nacional. Neste ponto, é interessante perceber a
lógica do discurso do presidente até então. Inicialmente, ele aponta o seu conceito de
democracia, dizendo que o mesmo representa a possibilidade que o povo tem de apresentar
suas reivindicações ao presidente e este, por sua vez, para ser democrata, deve estar atento
aos reclamos populares. Afirma que as reformas são indispensáveis para o desenvolvimento
do país, mas que as mesmas só poderão ocorrer dentro da normalidade democrática. Por
último, afirma que as reformas promoverão a “salvação nacional” e essa é, por conseguinte,
a salvação popular. Se as reformas representam a salvação popular, Goulart, promotor das
reformas, por óbvio, é aquele que quer salvar os brasileiros. Após anunciar o caminho da
“salvação”, Goulart, aponta o “primeiro passo”:
PRIMEIRO PASSO
Trabalhadores, acabei de assinar o decreto da SUPRA. Assinei-o, meus
patrícios, com o pensamento voltado para a tragédia do irmão brasileiro que
sofre no interior de nossa pátria. Ainda não é aquela reforma agrária pela qual
lutamos.
Ainda não é a reformulação do nosso panorama rural empobrecido.
261
Ainda não é a carta de alforria do camponês abandonado.
Mas é o primeiro passo: uma porta que se abre à solução definitiva do problema
agrário brasileiro.
O que se pretende com o decreto que considera de interesse social, para efeito de
desapropriação, as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias,
açudes públicos federais, e terras beneficiadas por obras de saneamento da
União, é tornar produtivas áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas
a um comércio especulativo, odioso e intolerável.
Não é justo que o benefício de uma estrada, de um açude, ou de uma obra de
saneamento vá servir aos interesses dos especuladores de terra, que se apoderam
das margens das estradas e dos açudes. A Rio-Bahia, por exemplo, que custou
setenta bilhões de dinheiro do povo, não deve beneficiar os latifundiários, pela
multiplicação do valor de suas propriedades, mas sim o povo.
O excerto acima aponta a reforma agrária como o “primeiro passo” das reformas de
base propostas por João Goulart. O presidente salienta, ainda, que o decreto da SUPRA
representa somente o início de um processo que, ao seu final, será “a carta de alforria do
camponês abandonado”. Jango informa que as áreas que serão desapropriadas para fins de
reforma agrária são “as terras que ladeiam eixos rodoviários, leitos de ferrovias, açudes
públicos federais, e terras beneficiadas por obras de saneamento da União” e que, conforme
o presidente, estão inexploradas. O que Goulart pretende, com este ato, “é tornar produtivas
áreas inexploradas ou subutilizadas, ainda submetidas a um comércio especulativo, odioso
e intolerável”. O Decreto n° 53.700/64, ao qual o presidente vem discorrendo em seu
discurso, prevê mais especificamente as áreas a serem desapropriadas em seu art. 1°,
conforme segue:
Art. 1° Ficam declaradas de interesse social, para efeito de desapropriação, nos
termos e para os fins previstos no art. 147 da Constituição Federal e na Lei n°
4.132, de 10 de setembro de 1962, as áreas rurais compreendidas em um raio de
10 (dez) quilômetros dos eixos das rodovias e ferrovias federais, e as terras
beneficiadas ou recuperadas por investimentos exclusivos da União em obras de
irrigação, drenagem e açudagem.
Parágrafo único. Consideram-se rodovias e ferrovias federais, para os fins deste
decreto, as que, respectivamente, integram o Plano Rodoviário Nacional ou
262
estejam incorporadas ao patrimônio da Rede Ferroviária Federal Sociedade
Anônima (RFFSA) ou de empresas dela subsidiárias.
Para o fiel cumprimento do interesse social da propriedade e para acabar efetivamente
com o “comércio especulativo, odioso e intolerável”, as áreas desapropriadas e, a partir do
processo de reforma agrária, colonizadas por famílias camponesas, deveriam ter seu uso
observando-se o disposto no art. 3°, alíneas de “a” a “e” do referido Decreto:
Art. 3° A Superintendência de Política Agrária (Supra) fica autorizada a
promover, gradativamente, para execução de seus planos e projetos, as
desapropriações nas áreas situadas nas faixas caracterizadas neste decreto, tendo
por fim realizar a justa distribuição da propriedade condicionando seu uso ao
bem-estar social, e visando especialmente:
a) o aproveitamento dos terrenos rurais improdutivos ou explorados
antieconomicamente;
b) a fixação dos trabalhadores rurais nas áreas adequadas à exploração de
atividades agropastoris;
c) a instalação ou a intensificação das culturas nas áreas em cuja exploração não
seja obedecido plano de zoneamento agropecuário que vier a ser fixado pela
Supra;
d) estabelecimento e a manutenção de colônias, núcleos ou cooperativas
agropecuárias e de povoamento;
e) a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água ou de
reservas florestais.
O processo de desapropriação para fins de reforma agrária teria início a partir do
primeiro passo: o decreto da Supra, como mesmo afirmou o presidente. Contudo, para
Goulart estava claro que urgia uma reforma na Constituição Federal de 1946, para alterar o
dispositivo que previa que a indenização deveria ser “mediante prévia e justa indenização
em dinheiro” (art. 141, § 16, CF/1946)
77
. Tal necessidade o presidente aponta no excerto a
seguir de seu pronunciamento:
77
O texto do art. 141, § 16, da Constituição Federal de 1946 é o seguinte: Art. 141. A Constituição assegura
aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à
liberdade, à segurança individual e a propriedade, nos têrmos seguintes: (...) § 16. É garantido o direito de
263
Não o podemos fazer, por enquanto, trabalhadores, como é de prática corrente
em todos os países do mundo civilizado: pagar a desapropriação de terras
abandonadas em títulos da dívida pública e a longo prazo.
Reforma agrária com pagamento prévio do latifúndio improdutivo, à vista e em
dinheiro não é reforma agrária, como consagrado na Constituição, com
pagamento prévio e a dinheiro é negócio agrário, que interessa apenas ao
latifundiário, radicalmente oposto aos interesses do povo brasileiro. Por isso o
decreto da SUPRA não é a reforma agrária.
Sem reforma constitucional, trabalhadores, não há reforma agrária autêntica.
Sem emendar a Constituição, que tem acima dela o povo, poderemos ter leis
agrárias honestas e bem intencionadas, mas nenhuma delas capaz de
modificações estruturais profundas.
Este excerto representa um momento importante no pronunciamento de Goulart.
Aqui, o presidente propugna a necessidade de uma revisão constitucional para que seja
realmente promovida uma verdadeira reforma agrária. O decreto da SUPRA, como mesmo
afirma Jango, não pode ser considerado como parte integrante de um processo de reforma
agrária, pois que a limitação constitucional para a desapropriação impede com que o Estado
brasileiro consiga declarar como sendo de utilidade pública um número maior de
propriedades, visto que a forma de pagamento estatuída na Constituição ora em vigor,
“mediante prévia e justa indenização em dinheiro”, na visão de Goulart, promove não uma
reforma agrária, mas um “negócio agrário”, cujo único interessado é o especulador, o dono
do latifúndio improdutivo. A proposta de Goulart para um efetivo processo de reforma na
estrutura agrária brasileira passa por uma alteração substancial no art. 141, § 16, da
Constituição de 1946: ao invés da indenização à vista em dinheiro, Goulart propõe “pagar a
desapropriação de terras abandonadas em títulos da dívida pública e a longo prazo”. Note-
se que Goulart afirma “pagar a desapropriação de terras abandonadas”, ou seja, terras que
propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilizada pública, ou por interêsse social,
mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção
intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público,
todavia, assegurado o direito de indenização ulterior.
264
não estão cumprindo a função social da propriedade, conforme ordena a mesma Carta
Magna em seu art. 147
78
. Anunciado o decreto da SUPRA, o governo propõe que as
primeiras ações com vias à reforma agrária iniciem “dentro de 60 dias”:
DENTRO DE 60 DIAS
Graças à colaboração patriótica e técnica de nossas gloriosas Forças Armadas,
em convênios realizados com a SUPRA, graças a essa colaboração, meus
patrícios, espero que dentro de menos de sessenta dias já comecem a ser
divididos os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios ao lado das
ferrovias e dos açudes construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de
saneamento realizadas com o sacrifício da nação. E, feito isso, os trabalhadores
do campo já poderão, então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais
sentida e justa reivindicação, aquela que lhes dará um pedaço de terra para
cultivar. Aí, então, o trabalhador e sua família irão trabalhar para si próprios,
porque até aqui eles trabalham para o dono da terra, a quem entregam, como
aluguel, metade de sua produção. E não se diga, trabalhadores, que há meio de
se fazer a reforma sem mexer a fundo na Constituição. Em todos os países
civilizados do mundo já foi suprimido do texto constitucional aquela parte que
obriga a desapropriação por interesse social, a pagamento prévio, a pagamento
em dinheiro.
Neste trecho, Goulart anuncia o início da reforma agrária brasileira: “dentro de menos
de sessenta dias” os latifúndios nas beiras de estradas, ferrovias e dos açudes construídos
com verba da União começarão a ser divididos para assentarem os trabalhadores do campo
e suas famílias. É interessante que Goulart enfoca o tema dando a entender que essas terras,
beneficiadas com investimentos públicos e que outrora serviram ao interesse do capital
especulativo e improdutivo, serão, a partir de sessenta dias, entregues a quem de direito, ao
povo brasileiro: “espero que dentro de menos de sessenta dias já comecem a ser divididos
os latifúndios das beiras das estradas, os latifúndios ao lado das ferrovias e dos açudes
construídos com o dinheiro do povo, ao lado das obras de saneamento realizadas com o
78
O texto do artigo 147 da Constituição de 1946 é o seguinte: “Art. 147. O uso da propriedade será
condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a
justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”.
265
sacrifício da nação”. Conforme o trecho destacado, não há o porquê de essas terras não
servirem diretamente ao “povo”, uma vez que as obras de beneficiamento lá realizadas
foram financiadas pelo “dinheiro do povo”, “com o sacrifício da nação”. Trata-se de uma
“reconciliação” do Estado brasileiro com o seu povo, como se antes o Estado estivesse do
outro lado (dos latifundiários) e, a partir de agora, este tomasse ações visando a se
reconciliar com o povo brasileiro: “e, feito isso, os trabalhadores do campo já poderão,
então, ver concretizada, embora em parte, a sua mais sentida e justa reivindicação, aquela
que lhes dará um pedaço de terra para cultivar”. No final do excerto, o presidente renova a
sua intenção de modificar a forma de indenização aos proprietários de terras improdutivas
para fins de reforma agrária. Contudo, seu argumento, neste momento, busca seguir a
experiência de “todos os países civilizados do mundo”, no sentido de dar exemplo de países
liberais e democráticos, com a clara intenção de fugir da comum acusação que sofre de
“comunista”, conforme segue no seu pronunciamento:
No Japão de pós-guerra, há quase vinte anos, ainda ocupado pelas forças aliadas
vitoriosas, sob o patrocínio do comando vencedor, foram distribuídos dois
milhões e meio de hectares das melhores terras do país, com indenizações pagas
em bônus com vinte e quatro anos de prazo, juros de 3,65% ao ano. E quem é
que se lembrou de chamar o gen. MacArthur de subversivo ou extremista?
Na Itália, ocidental e democrática, foram distribuídos um milhão de hectares, em
números redondos, na primeira fase de uma reforma agrária cristã e pacífica
iniciada há quinze anos. Cento em cinqüenta mil famílias foram beneficiadas.
No México, durante os anos de 1932 a 1945, foram distribuídos trinta milhões de
hectares, com pagamento das indenizações em títulos da dívida pública, vinte
anos de prazo, 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios com base no valor
fiscal.
Na Índia foram promulgadas leis que determinam a abolição da grande
propriedade mal aproveitada, transferindo as terras para os camponeses. Essas
leis abrangem cerca de sessenta e oito milhões de hectares, ou seja, a metade da
área cultivada da Índia.
Portanto, não existe argumento capaz de poder afirmar que no Brasil, uma nação
jovem que se projeta para o futuro, não se possa também fazer a reforma da
Constituição para a reforma agrária autêntica e verdadeira.
266
Assim, neste longo trecho, Goulart toma o exemplo de quatro países “civilizados”,
frise-se, não ligados à União Soviética, localizados em quatro continentes diferentes, para
demonstrar que a forma de indenização que ele busca com a alteração constitucional não é
algo novo, muito menos copiado de países “comunistas”. Países “civilizados” e “liberais”,
ligados aos Estados Unidos a partir do pós-guerra, realizaram seus processos de reforma
agrária, indenizando o latifúndio improdutivo com muitos anos de prazo para pagamento e
a juros baixos. Dessa forma, o Japão, conforme o presidente, sob o patrocínio do comando
vencedor no pós-guerra, leia-se, os Estados Unidos, promoveu a sua reforma agrária “com
indenizações pagas em bônus com vinte e quatro anos de prazo, juros de 3,65% ao ano”. E
ainda ressalta Goulart em relação à medida tomada pelo general norte-americano
MacArthur: “e quem é que se lembrou de chamar o gen. MacArthur de subversivo ou
extemista?”. Logo após, menciona o exemplo da Itália, frisando um caso de reforma agrária
ocorrido no “ocidente”, que durou quinze anos e que teve cento e cinqüenta mil famílias
beneficiadas. O caso seguinte, saindo dos exemplos do oriente ocupado no pós-guerra e do
ocidente rico europeu, foi o do México, país latino-americano e subdesenvolvido como o
Brasil: “foram distribuídos trinta milhões de hectares, com pagamento das indenizações em
títulos da dívida pública, vinte anos de prazo, 5% ao ano, e desapropriação dos latifúndios
com base no valor fiscal”. Por fim, menciona o caso indiano, afirmando que, inclusive na
Ásia, a experiência da reforma agrária foi bem sucedida: “na Índia foram promulgadas leis
que determinam a abolição da grande propriedade mal aproveitada, transferindo as terras
para os camponeses”, o que, conforme Goulart, ocorreu na metade da área cultivada
daquele país. Tais exemplos servem para dar suporte ao argumento do presidente de que a
reforma agrária no Brasil só não sairia por má vontade política, tendo em vista que não se
267
tratava de uma posição ou meta política extremista, mas, pelo contrário, outros processos
semelhantes já ocorreram, em quatro continentes, justamente em países tidos como
“civilizados”, “liberais”, “capitalistas” e “democráticos”. Para tanto, arremata o presidente
que é indispensável a reforma na Constituição Federal de 1946, nos moldes anteriormente
propostos no seu pronunciamento. Além disso, na visão de Goulart, a reforma agrária
deveria ser também encarada como uma “imposição progressista”, conforme segue:
IMPOSIÇÃO PROGRESSISTA
A reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido. É
produto da necessidade inadiável de todos os povos do mundo. Aqui, no Brasil,
constitui a legenda mais viva da esperança do nosso povo, sobretudo daqueles
que labutam no campo.
A reforma agrária é também uma imposição progressista do mercado interno,
que necessita aumentar a sua produção para sobreviver.
Os tecidos e os calçados sobram nas prateleiras das lojas e as nossas fábricas
estão produzindo muito abaixo de sua capacidade. Ao mesmo tempo em que isso
acontece, as nossas populações mais pobres vestem farrapos e andam descalças,
porque não têm dinheiro para comprar.
Assim, a reforma agrária é indispensável, não só para aumentar o nível de vida
do homem do campo, mas, também, para dar mais trabalho às indústrias, e
melhor remuneração ao trabalhador urbano.
Se no último excerto analisado, Goulart tinha a intenção de demonstrar que a reforma
agrária já havia sido realizada em países do mundo “civilizado”, neste ponto, buscando
agregar mais um argumento em seu favor, aduz que a mesma é uma “imposição
progressista”. Dessa forma, o presidente faz uma análise dos reflexos econômicos positivos
que ela poderia proporcionar. Menciona que não se tratam somente de reflexos no campo,
mas que também a reforma agrária pode resultar em progresso também nas cidades. Assim,
“a reforma agrária não é capricho de um governo ou programa de um partido”. Goulart
deseja, com isso, esvaziar qualquer sentido ideológico de esquerda, buscando demonstrar
que não se trata de um programa político do seu governo ou do seu partido, mas que “é
268
produto da necessidade inadiável de todos os povos do mundo” em direção do
desenvolvimento social e econômico. Ao longo do excerto destacado, Jango faz relação
entre o que é produzido nas cidades e que, se houvesse um processo de reforma agrária,
poderia movimentar ainda mais a economia, sendo tais produtos vendidos e,
conseqüentemente, haveria maior desenvolvimento do mercado interno: “a reforma agrária
é também uma imposição progressista do mercado interno, que necessita aumentar a sua
produção para sobreviver”. Dessa forma, conclui que a reforma agrária não dará só
melhores condições de vida para o camponês e sua família, mas também para o trabalhador
urbano. No trecho a seguir, o presidente continua seu pronunciamento neste mesmo tema:
Interessa, por isso, a todos os industriais e aos comerciantes. A reforma agrária é
necessária, enfim, à nossa vida social e econômica, para que o país possa
progredir, em sua indústria e no bem estar do seu povo.
Como garantir o direito de propriedade autêntica quando, dos quinze milhões de
brasileiros que trabalham na terra, no Brasil, apenas dois milhões e meio são
proprietários?
O que estamos pretendendo fazer no Brasil, pelo caminho da reforma agrária,
não é diferente, pois, do que se fez em todos os países desenvolvidos do mundo.
É uma etapa de progresso que precisamos conquistar e haveremos de conquistar.
Conforme já mencionado por Goulart, a reforma agrária interessa, ou deveria
interessar, a todos os setores econômicos e classes sociais brasileiras. Ela é condição de
“progresso”; ela é condição para o desenvolvimento do próprio capitalismo. Esse é um
argumento forte utilizado pelo presidente, pois ele justamente está buscando inverter que a
reforma agrária, ao invés de fortalecer posições esquerdistas, irá beneficiar justamente o
desenvolvimento do capitalismo. Com esse processo, progredirá o homem do campo, o
trabalhador da cidade, o industrial, o comerciante. Em outras palavras: a reforma agrária
deve ser vista como uma política pública de interesse geral do país. Ademais, enfatiza, no
269
final do excerto, que a reforma agrária proposta não é diferente daquelas promovidas em
“todos os países desenvolvidos do mundo”: “é uma etapa de progresso que precisamos
conquistar e haveremos de conquistar”. O presidente continua seu pronunciamento
reforçando ainda mais seus argumentos referentes à reforma agrária:
Esta manifestação deslumbrante que presenciamos é um testemunho vivo de que
a reforma agrária será conquistada para o povo brasileiro. O próprio custo da
produção, trabalhadores, o próprio custo dos gêneros alimentícios está
diretamente relacionado às relações entre o homem e a terra. Num país em que
se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50% da produção obtida daquela
terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver tranqüilidade social. No
meu estado, por exemplo, o estado do dep. Leonel Brizola, 65% da produção de
arroz é obtida em terras alugadas e o arrendamento ascende a mais de 55% do
valor da produção. O que ocorre no Rio Grande é que um arrendatário de terras
para o plantio de arroz paga, em cada ano, o valor total da terra que ele
trabalhou, para o proprietário. Esse inquilinato rural desumano e medieval é o
grande responsável pela produção insuficiente e cara que torna insuportável o
custo de vida para as classes populares em nosso país.
Se nos dois trechos anteriormente analisados Goulart menciona aspectos
macroeconômicos de desenvolvimento do capitalismo no país, neste excerto, o presidente
foca a sua atenção nos elementos microeconômicos, como os preços dos gêneros
alimentícios, demonstrando, também, nesta quadra, a imposição da reforma agrária: “o
próprio custo dos gêneros alimentícios está diretamente relacionado às relações entre o
homem e a terra”. Goulart menciona que o arrendamento da terra encarece a produção dos
alimentos: “num país em que se paga aluguéis da terra que sobem a mais de 50% da
produção obtida daquela terra, não pode haver gêneros baratos, não pode haver
tranqüilidade social”. No Rio Grande do Sul, enfatiza Goulart, o arrendamento da terra é
tão oneroso ao arrendatário que, por ano, este paga o preço total da própria terra que ele
arrenda. Jango acusa o arrendamento de um “inquilinato rural desumano e medieval”.
270
“Desumano” e “medieval”, pois obriga o trabalhador a trabalhar sob uma forma “pré-
capitalista”, como se de fato fosse um “servo” ligado à gleba, o qual deve entregar metade
da sua produção ao “senhor feudal”. Isso gera um reflexo negativo para a produção:
encarece o produto, diminui a sua procura e o capitalismo não tem também como se
desenvolver com mais força nessas condições. A saída de Goulart é transformar esse
arrendatário em proprietário rural, de modo que a sua produção aumente e que seu preço,
por esse motivo, diminua no mercado interno. Na seqüência do seu pronunciamento:
A reforma agrária só prejudica a uma minoria de insensíveis, que deseja manter
o povo escravo e a nação submetida a um miserável padrão de vida.
E é claro, trabalhadores, que só se pode iniciar uma reforma agrária em terras
economicamente aproveitáveis. É claro que não poderíamos começar a reforma
agrária, para atender aos anseios do povo, nos estados do Amazonas ou do Pará.
A reforma agrária deve ser iniciada nas terras mais valorizadas e ao lado dos
grandes centros de consumo, com transporte fácil para o seu escoamento.
Governo nenhum, trabalhadores, povo nenhum, por maior que seja o seu
esforço, e até mesmo, o seu sacrifício, poderá enfrentar o monstro inflacionário
que devora os salários, que inquieta o povo assalariado, se não forem efetuadas
as reformas de estrutura e de base exigidas pelo povo e reclamada pela nação.
Neste excerto, Goulart aborda dois pontos principais. No primeiro ponto, menciona a
quem não interessa a reforma agrária: “a reforma agrária só prejudica a uma minoria de
insensíveis, que deseja manter o povo escravo e a nação submetida a um miserável padrão
de vida”. Essa referência é importante de ser levada em consideração, tendo em vista que,
em trechos anteriores, o presidente fez menção a que a reforma agrária, longe de ser um
projeto isolado de um governo, partido ou facção política ideológica, representava um
projeto estratégico de desenvolvimento econômico e social do país. Portanto, a reforma
agrária era, conforme Goulart, do interesse dos trabalhadores, do campo e da cidade, dos
empresários da indústria e do comércio, além de efetivamente ser do interesse do governo
271
que busca o desenvolvimento econômico e social do Brasil. Neste trecho destacado, Jango
enfatiza que a reforma em questão não interessa somente a uma “minoria de insensíveis,
que deseja manter o povo escravo e a nação submetida a um miserável padrão de vida”.
Com isso, Goulart procura induzir que todos aqueles que se colocarem contra a reforma
agrária, ou que obstaculizarem seu processo fazem parte desta “minoria insensível”, uma
vez que o presidente já demonstrou, a partir dos vários argumentos anteriormente
elencados, que a reforma agrária é uma necessidade nacional incontestável.
Já, no segundo ponto, o presidente justifica a necessidade de desapropriação de
“terras mais valorizadas e ao lado dos grandes centros de consumo”. Tal justificativa
assenta-se, sobretudo, na facilidade de transporte e de escoamento da produção dos
assentados. Menciona a impossibilidade da reforma agrária ter início em estados como o
Amazonas e o Pará, justamente pelo isolamento geográfico e pelas dificuldades de
transporte que a região norte do país naquela época apresentava. Mesmo mencionando, e
muitas vezes de forma enfática, a necessidade da reforma agrária, Goulart não retira
também do horizonte das reformas a legitimidade constitucional, como forma de
proporcionar uma “solução pacífica” ao impasse político que vinha sendo gerado naquele
conturbado março de 1964:
SOLUÇÃO HARMÔNICA
Tenho autoridade para lutar pela reforma da atual Constituição, porque esta
reforma é indispensável e porque o seu objetivo único e exclusivo é abrir o
caminho para a solução harmônica dos problemas que afligem ao nosso povo.
Não me animam, trabalhadores, – e é bom que a nação me ouça – quaisquer
propósitos de ordem pessoal. Os grandes benefícios das reformas serão, acima
de todos, o povo brasileiro e os governos que me sucederem. A eles,
trabalhadores, desejo entregar uma nação engrandecida, emancipada e cada vez
272
mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido mais uma vez, e pacificamente, os
graves problemas que a história nos legou.
Após enfatizar a real necessidade da realização da reforma agrária, Goulart passa,
neste ponto, a tratar das reformas de base em sentido mais geral. Inicia o trecho afirmando a
sua autoridade para propor o processo de reformas. A referida autoridade assenta-se
basicamente em dois pontos. O primeiro deles infere a idéia de que o processo de reformas,
dentro da normalidade democrática, abrirá o “caminho para a solução harmônica dos
problemas que afligem ao nosso povo”, buscando, com esse argumento, excluir qualquer
interesse pessoal e buscando enfocar, única e exclusivamente, um absoluto interesse
público. No segundo ponto, seu argumento de governar movido pelo interesse público
ganha ainda mais relevo, tendo em vista que as reformas propostas não são medidas
políticas que beneficiarão o seu governo, mas o “povo brasileiro” e os “governos que lhe
sucederem”: “a eles [os governos que o sucederem], trabalhadores, desejo entregar uma
nação engrandecida, emancipada e cada vez mais orgulhosa de si mesma, por ter resolvido
mais uma vez, e pacificamente, os graves problemas que a história nos legou”. Nesse
sentido, o presidente passa a elencar suas primeiras medidas em direção das reformas de
base:
Dentro de 48 horas vou entregar à consideração do Congresso Nacional a
mensagem presidencial deste ano.
Nela, estão claramente expressas as intenções e os objetivos deste governo.
Espero que os senhores congressistas, em seu patriotismo, compreendam o
sentido social da ação governamental, que tem por finalidade acelerar o
progresso deste país e assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e de
trabalho, pelo caminho da paz e do entendimento, isto é, pelo caminho
reformista, pacífico e democrático.
Mas estaria faltando ao meu dever se não transmitisse, também, em nome do
povo brasileiro, em nome destas cento e cinqüenta ou duzentas mil pessoas que
aqui estão, caloroso apelo ao Congresso Nacional, para que venha ao encontro
273
das reivindicações populares, para que, em seu patriotismo, sinta os anseios da
nação, que quer abrir caminho, pacífica e democraticamente, para melhores dias.
Mas também, trabalhadores, quero referir-me a um outro ato que acabo de
assinar, interpretando os sentimentos nacionalistas deste país. Acabei de assinar,
antes de dirigir-me para esta grande festa cívica, o decreto de encampação de
todas as refinarias particulares.
O excerto acima trata primordialmente da mensagem presidencial do ano de 1964 que
Goulart entregou no dia da abertura dos trabalhos legislativos em 16 de março. Nesta
mensagem, Goulart apontava quais seriam seus principais projetos e ações para aquele ano.
Evidentemente que o tema central era o das reformas de base. Conforme o trecho, o
governo tem duas intenções com o referido documento: “acelerar o progresso deste país e
assegurar aos brasileiros melhores condições de vida e de trabalho”. Os meios para alcançar
tais objetivos também estavam dados: “pelo caminho da paz e do entendimento, isto é, pelo
caminho reformista, pacífico e democrático”. É digno de nota que não há governo
democrático que anunciaria alguma política diferente desta, ou seja, que não prometesse a
promoção do progresso e de melhores condições de vida para o seu povo, a partir de um
caminho de paz e entendimento.
O que faz a diferença no que foi acima dito por Goulart é a expressão “caminho
reformista”. Tal expressão, como se pode perceber ao longo de todo o discurso, é a peça
chave de uma política governamental que, em sendo uma política governamental, de um
partido ou de um conjunto de partidos, gera, por óbvio, uma ampla discussão e reação por
parte dos partidos da oposição. A estratégia discursiva de Goulart em torno das reformas
visa a retirar das mesmas a condição de “políticas de governo”, buscando, para isso,
significá-las como um anseio eminentemente popular que está sendo interpretado pelo
274
presidente e, daí, a concretização de uma política governamental reformista. Evidentemente
que esta estratégia, no jogo democrático tem alvo direto: o “povo”, ou a construção de uma
“opinião pública” reformista. Daí a necessidade de um comício tal qual o que está em
análise. A construção desta “opinião pública” serve justamente para forçar com que a
oposição adira à política do governo de Goulart, uma vez que, do contrário, a adesão seria
algo improvável, tendo em vista o grau de radicalidade da ação política dos dois grupos
(governo versus oposição).
Assim, ao mesmo tempo em que Jango anuncia a necessidade de reformas, ele apela
ao “patriotismo” dos congressistas para que as mesmas sejam aprovadas após uma
necessária e prévia reforma constitucional: “espero que os senhores congressistas, em seu
patriotismo, compreendam o sentido social da ação governamental”, ou seja, o presidente
não tem outra intenção que o bem estar do povo brasileiro e daí a necessidade dos
congressistas, na maioria oposicionistas, agirem com “patriotismo”. Goulart busca ainda,
em outra parte do excerto, forçar o Congresso a aprovar as reformas: Goulart faz um
“caloroso apelo ao Congresso Nacional, para que venha ao encontro das reivindicações
populares, para que, em seu patriotismo, sinta aos anseios da nação, que quer abrir
caminho, pacífica e democraticamente, para melhores dias”. “Apelar” ao Congresso
Nacional para que esse, com o seu patriotismo, vá ao encontro das “reivindicações
populares”, induz a idéia de que, até então, é possível que o Congresso, cujos
representantes são tão eleitos pelo povo quanto o presidente, esteja indo justamente no
sentido contrário ao dos anseios populares. Se estiver indo neste caminho contrário, Goulart
apela que o rumo seja alterado em nome do povo.
275
Goulart, neste ponto, se coloca como um intérprete dos anseios populares, como se
ele, mais do que o Congresso Nacional, soubesse exatamente o que o “povo” brasileiro
desejava naquele momento. A prova disso era o Comício, aquelas “cento e cinqüenta ou
duzentas mil pessoas” para as quais Goulart estava discursando naquele momento: o
presidente, segundo ele próprio, estava diante do povo, ouvindo suas reivindicações e sendo
o intérprete mais fiel das mesmas. Para dar ainda mais provas de que ele era o fiel intérprete
do “povo” brasileiro, Goulart anuncia ainda a assinatura de um outro decreto, o de
encampação das refinarias particulares, que era, conforme ele próprio afirma, reivindicação
do próprio povo: “quero referir-me a um outro ato que acabo de assinar, interpretando os
sentimentos nacionalistas deste país. Acabei de assinar, antes de dirigir-me para esta grande
festa cívica, o decreto de encampação de todas as refinarias particulares
79
”. No trecho
seguinte, Goulart continua tratando da encampação das refinarias particulares, conforme
segue:
A partir de hoje, trabalhadores brasileiros, a partir deste instante, as refinarias de
Capuava, Ipiranga, Manguinhos, Amazonas e Destilaria Rio-Grandense passam
a pertencer ao povo, passam a pertencer ao patrimônio nacional.
Procurei, trabalhadores, depois de estudos cuidadosos elaborados por órgãos
técnicos, depois de estudos profundos, procurei ser fiel ao espírito da Lei n°
2004, lei que fora inspirada nos ideais patrióticos e imortais de um brasileiro que
também continua imortal em nossa alma e nosso espírito.
Ao anunciar, à frente do povo reunido em praça pública, o decreto de
encampação de todas as refinarias de petróleo particulares, desejo prestar
homenagem de respeito àquele que sempre esteve presente nos sentimentos do
nosso povo, o grande e imortal presidente Getúlio Vargas.
O imortal e grande patriota tombou, mas o povo continua a caminhada, guiado
pelos seus ideais. E eu, particularmente, vivo hoje momento de profunda emoção
ao poder dizer que, com este ato, soube interpretar o sentimento do povo
brasileiro.
79
Trata-se do Decreto n° 53.701/64, já mencionado anteriormente, que “declara de utilidade pública, para fins
de desapropriação em favor da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobrás), em caráter de urgência, as ações das
companhias permissionárias de refino de petróleo”.
276
Alegra-me ver, também, o povo reunido para prestigiar medidas como esta, da
maior significação para o desenvolvimento do país e que habilita o Brasil a
aproveitar melhor as suas riquezas minerais, especialmente as riquezas criadas
pelo monopólio do petróleo. O povo está sempre presente nas ruas e nas praças
públicas, para prestigiar um governo que pratica atos como estes, e também para
mostrar às forças reacionárias que há de continuar a sua caminhada, no rumo da
emancipação nacional.
Neste trecho, Goulart apresenta três argumentos que justificam a encampação das
refinarias particulares de petróleo. O primeiro deles é o estudo técnico, o argumento
científico: “estudos cuidadosos elaborados por órgãos técnicos”. A seguir, Goulart
menciona a figura de Getúlio Vargas, seu padrinho político, e idealizador da Petrobrás.
Afirma que Vargas foi sempre um patriota, argumento que neste pronunciamento de
Goulart, como foi anteriormente apresentado, significa aquele que é capaz de interpretar os
anseios do povo. Vargas assim o foi e, por isso, mesmo depois de tombar, “o povo continua
a caminhada, guiado pelos seus ideais”. Goulart, sendo afiliado político de Vargas e
também um patriota, coloca-se como também capaz de interpretar os anseios do povo:
“vivo hoje momento de profunda emoção ao poder dizer que, com este ato, soube
interpretar o sentimento do povo brasileiro”. O ato de encampação das refinarias tem como
significado que tais refinarias “passam a pertencer ao povo”, como se o povo, todos os
brasileiros, diretamente, passariam a desfrutar dos benefícios de tais companhias. Neste
ponto, vê-se a busca do presidente para produzir um discurso que o ligasse plenamente ao
povo, como se ele fosse um representante de uma representação popular ideal, ou seja,
aquela que simplesmente faz do representante um intérprete, como se o povo estive
efetivamente, e sem qualquer interferência, no comando do Estado brasileiro. Continua seu
pronunciamento:
277
Na mensagem que enviei à consideração do Congresso Nacional estão
igualmente consignadas duas outras reformas que o povo brasileiro reclama,
porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia. Refiro-me
à reforma eleitoral, à reforma ampla que permita a todos os brasileiros maiores
de 18 anos ajudar a decidir dos seus destinos, que permita a todos os brasileiros
que lutam pelo engrandecimento do país a influir nos destinos gloriosos do
Brasil. Nesta reforma, pugnamos pelo princípio democrático, princípio
democrático fundamental, de que todo o alistável deve ser também elegível.
Neste ponto, Goulart passa a fazer referência a um novo tema: a reforma eleitoral.
Apesar de ser um tema novo no contexto do Comício, há muito que tal reforma se
apresentava controvertida, principalmente tendo em vista o episódio da declaração, pelo
Supremo Tribunal Federal, da inelegibilidade dos sargentos para cargos legislativos, de
acordo com a Constituição Federal de 1946, o que resultou no impedimento de sargentos
eleitos em alguns estados brasileiros. Tal reforma, conforme Goulart, “o povo brasileiro
reclama, porque é exigência do nosso desenvolvimento e da nossa democracia”. Em
realidade, os sargentos, aliados de Goulart, exigiam uma atitude do presidente nesse
sentido, o que Jango, naquele instante, pretendia tomar. No seu discurso, o presidente não
faz qualquer menção à conhecida “Revolta dos Sargentos”, que gerou um grande mal estar
político em setembro de 1963, momento de sua ocorrência. Goulart simplesmente defendeu
um “princípio democrático fundamental, de que todo o alistável deve ser também elegível”.
Na seqüência de sua manifestação, o presidente trata de mais um tema novo, dessa vez de
interesse dos universitários brasileiros, liderados pela União Nacional dos Estudantes,
entidade que, naquele momento, dava suporte político ao presidente. O tema, portanto, a ser
tratado é o da “reforma universitária”, conforme segue:
278
REFORMA UNIVERSITÁRIA
Também está consignada na mensagem ao Congresso a reforma universitária,
reclamada pelos estudantes brasileiros, pelos universitários, classe que sempre
tem estado corajosamente na vanguarda de todos os movimentos populares e
nacionalistas.
Ao lado dessas medidas e desses decretos, o governo continua examinando
outras providências de fundamental importância para a defesa do povo,
especialmente das classes populares.
Dentro de poucas horas, outro decreto será dado ao conhecimento da nação. É o
que vai regulamentar o preço extorsivo dos apartamentos e residências
desocupados, preços que chegam a afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até
mediante o pagamento em dólares. Apartamento, no Brasil, só pode e só deve
ser alugado em cruzeiros, que é dinheiro do povo e a moeda deste país. Estejam
tranqüilos que dentro em breve esse decreto será uma realidade.
Neste trecho, o presidente trata inicialmente da reforma universitária, ponto também
pertencente ao projeto governamental das reformas de base. Tal política era apoiada pela
União Nacional dos Estudantes, entidade que defendia o governo de Jango e que naquele
março de 1964 vinha denunciando uma conspiração civil-militar para depô-lo.
Na segunda parte do excerto, Goulart anuncia especificamente a regulamentação do
“preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupados, preços que chegam a
afrontar o povo e o Brasil, oferecidos até mediante o pagamento em dólares”. Tal
regulamentação teve materialidade a partir do Decreto n° 53.702, de 14 de março de 1964,
cuja ementa “tabela os aluguéis de imóveis, no território nacional, e dá outras
providências”. Na seqüência do pronunciamento:
E realidade há de ser também a rigorosa e implacável fiscalização para que seja
cumprido. O governo, apesar dos ataques que tem sofrido, apesar dos insultos,
não recuará um centímetro sequer na fiscalização que vem exercendo contra a
exploração do povo. E faço um apelo ao povo para que ajude o governo na
fiscalização dos exploradores do povo, que são também exploradores do Brasil.
Aqueles que desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho
de sua fortuna, nem de seu poder, esteja ele em Olaria ou na rua do Acre – hão
de responder perante a lei pelo seu crime.
279
Aos servidores públicos da nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço
público, que também não me têm faltado com o seu apoio e o calor de sua
solidariedade, posso afirmar que suas reivindicações justas estão sendo objeto de
estudo final e que em breve serão atendidas. Atendidas porque o governo deseja
cumprir com o seu dever com aqueles que permanentemente cumprem o seu
para com o país.
Goulart, neste ponto, busca novamente se colocar ao lado do “povo” e contra aqueles
que ele genericamente chama de “exploradores do povo”. Afirma que seu governo vem
sofrendo “ataques” e “insultos”, justamente por estar implementando políticas em defesa do
“povo”, promovendo a fiscalização contra aqueles que exploram o “povo”. Apela ainda
para que o próprio “povo” auxilie o governo nesta fiscalização, pois “aqueles que
desrespeitarem a lei, explorando o povo – não interessa o tamanho de sua fortuna, nem de
seu poder, esteja ele em Olaria ou na rua do Acre – hão de responder perante a lei pelo seu
crime”. Ao final do excerto, promete medidas positivas às reivindicações dos “servidores
públicos da nação, aos médicos, aos engenheiros do serviço público”. Encaminha o final do
seu pronunciamento “reconfortado e retemperado”:
RECONFORTADO E RETEMPERADO
Ao encerrar, trabalhadores, quero dizer que me sinto reconfortado e retemperado
para enfrentar a luta que tanto maior será contra nós quanto mais perto
estivermos do cumprimento do nosso dever. À medida que esta luta apertar, sei
que o povo também apertará sua vontade contra aqueles que não reconhecem os
direitos populares, contra aqueles que exploram o povo e a nação.
Sei das reações que nos esperam, mas estou tranqüilo, acima de tudo porque sei
que o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da
sua unidade, e não faltará com o seu apoio às medidas de sentido popular e
nacionalista.
Assim, nos momentos finais do seu pronunciamento, Goulart anuncia as dificuldades
que estariam por vir. A sua luta, ao lado do povo e contra os exploradores e os reacionários,
“tanto maior será contra nós quanto mais perto estivermos do cumprimento do nosso
280
dever”. O presidente, apesar dessa dificuldade, sabe que o povo estará ao seu lado, porque
“o povo brasileiro já está amadurecido, já tem consciência da sua força e da sua unidade, e
não faltará com o seu apoio às medidas de sentido popular e nacionalista”. Goulart conclui
o seu pronunciamento agradecendo à manifestação popular e aos seus líderes, conforme
segue:
Quero agradecer, mais uma vez, esta extraordinária manifestação, em que os
nossos mais significativos líderes populares vieram dialogar com o povo
brasileiro, especialmente com o bravo povo carioca, a respeito dos problemas
que preocupam a nação e afligem todos os nossos patrícios.
Nenhuma força será capaz de impedir que o governo continue a assegurar
absoluta liberdade ao povo brasileiro. E, para isto, podemos declarar, com
orgulho, que contamos com a compreensão e o patriotismo das bravas e
gloriosas Forças Armadas da nação.
Hoje, com o alto testemunho da nação e com a solidariedade do povo, reunido
na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que
também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar
com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela
reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo
voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida
democrática, pela emancipação econômica, pela justiça e pelo progresso do
Brasil.
Neste último momento da sua manifestação, Goulart saúda o “diálogo” com o povo e
com os “mais significativos líderes populares”. Agradece também às “Forças Armadas”, ali
representadas pelos ministros militares, numa clara tentativa de busca de apoio de parte do
contingente militar brasileiro, sobretudo dos militares de altas patentes. Enfoca, por fim, as
principais reformas propugnadas pelo seu governo: “não apenas pela reforma agrária, mas
pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela
elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação
econômica, pela justiça e pelo progresso do Brasil”. Assim, nesta manifestação, proferida
numa reunião de forças de esquerdas, o presidente assumiu uma determinada posição
281
política pelas reformas e, com isso, elegeu também claramente seus inimigos e que, num
futuro muito breve, seriam também os seus algozes.
7.2 O discurso de João Goulart no automóvel clube do Brasil
Às vésperas da ação militar golpista, João Goulart participou da cerimônia de
comemoração do aniversário da Associação dos sub-tenentes e sargentos da Polícia Militar
que teve lugar no Automóvel Clube do Brasil. Conforme Maurício Dias, “desaconselhado
por uns, aconselhado por outros, Goulart decidiu, à última hora, comparecer à solenidade
realizada na noite do dia 30 de março de 1964” (DIAS/DHBB, 2001, p. 5021).
Os oficiais de direita das Forças Armadas não esperavam do presidente da República
uma postura de apoio à Associação, tampouco em relação às reivindicações dos militares de
baixa patente, tendo em vista que, na visão de tais oficiais, isso representaria uma ofensa à
integridade hierárquica das Forças Armadas do Brasil. Contudo, conforme ainda expressa
Dias “Jango, no entanto, solidarizou-se com as reivindicações e o movimento dos policiais.
O discurso presidencial rompeu o fio da legalidade que continha a reação da maioria da
oficialidade” (DIAS/DHBB, 2001, p. 5022). Nesta seção, será analisado o pronunciamento
de Goulart nesta cerimônia, que assim começa:
282
A crise que se manifesta no país foi provocada pela minoria de privilegiados que
vive de olhos voltados para o passado e teme enfrentar o luminoso futuro que se
abrirá à democracia pela integração de milhões de patrícios nossos na vida
econômica, social e política da nação, libertando-os da penúria e da ignorância.
O momento que estamos vivendo exige de cada brasileiro o máximo de calma e
determinação, para fazer face ao clima de intrigas e envenenamento, que grupos
poderosos estão procurando criar contra o governo, contra os mais altos
interesses da pátria e contra a unidade de nossas Forças Armadas.
O presidente inicia sua manifestação admitindo a existência de uma “crise” provocada
por duas posições antagônicas. A primeira posição, causadora da crise em questão, é
ocupada por uma minoria “que vive de olhos voltados para o passado e teme enfrentar o
luminoso futuro que se abrirá à democracia pela integração de milhões de patrícios nossos
na vida econômica, social e política da nação, libertando-os da penúria e da ignorância”.
Essa minoria é composta pelos “privilegiados” que, na análise de Goulart, desejam a
permanência do status quo e não querem o desenvolvimento econômico, político e social da
nação, pois vivem com os olhos voltados para o passado: um passado que divide o Brasil
em privilegiados, uma minoria, e não privilegiados, ou seja, a maioria do povo brasileiro. A
segunda posição, antagônica à primeira, é formada pelo presidente e pelo próprio “povo
brasileiro”. Segundo Goulart, é a posição da democracia, que tem significado aqui de
inclusão social e não somente de regras políticas para eleição de lideranças políticas para
cargos públicos. Democracia significa os desenvolvimentos econômico, social e político da
nação. Significa, ainda, a libertação do povo da penúria e da ignorância.
No parágrafo seguinte, Goulart afirma ainda que esta minoria está criando um “clima
de intrigas e envenenamento” e que age em três frentes: contra o governo, contra os mais
altos interesses da pátria e contra a unidade de nossas Forças Armadas”. Neste particular, é
283
muito interessante a acusação que Goulart faz em relação ao envenenamento da unidade
das Forças Armadas, buscando construir o sentido de que os oficiais que queriam derrubá-
lo eram uma pequena parcela da oficialidade e não um sentimento geral entre os oficiais
militares brasileiros. Seguindo a sua manifestação:
Para compreender o esquema de atuação desses grupos que tentam impedir o
progresso do país e barrar a ampliação das conquistas populares, basta observar
que são comandados pelos eternos inimigos da democracia, pelos defensores dos
golpes de estado e dos regimes de emergência e de exceção.
Na crise de 1961, os mesmos fariseus que hoje exibem um falso zelo pela
Constituição queriam rasgá-la e enterrá-la sob a campa fria da ditadura fascista.
Tudo isto é história recente, que não precisa ser repetida, porque está
indelevelmente gravada na memória do povo brasileiro.
Neste trecho, Goulart acusa os “comandantes” desses grupos “que tentam impedir o
progresso do país e barrar a ampliação das conquistas populares” de golpistas e de “eternos
inimigos da democracia”. Dá o exemplo da crise de 1961, momento em que os ministros
militares vetaram a sua ascensão na Presidência da República: “os mesmos fariseus que
hoje exibem um falso zelo pela Constituição queriam rasgá-la e enterrá-la sob a campa fria
da ditadura fascista”. Neste ponto, Goulart fala que os personagens que então buscam
“zelar” pela Constituição Federal naquela conjuntura de 1964, por, na verdade, serem
contrários às “reformas de base”, foram os mesmos que buscaram em 1961 “rasgá-la e
enterrá-la”. Goulart não aponta diretamente quem seriam em 1964 os mesmos golpistas de
1961, mas os três ministros militares podem ser tidos como as figuras centrais de tal
acusação. Na seqüência do seu pronunciamento:
Vimos, de repente, os políticos que mais pregaram o ódio neste país estenderem
a mão para os políticos mais corruptos da história brasileira e juntos terem o
284
cinismo de falarem em nome dos sentimentos católicos do povo. Passaram a
acusar de anticatólicos, não apenas ao presidente da República, mas ao próprio
Cardeal de São Paulo. Na hora em que ainda ressoam as encíclicas sociais de
João XXIII, é demasiada audácia desses aventureiros se atreverem a falar em
nome da igreja. Não me cabe, porém, combater essa usurpação, pois a Ação
Católica de Minas e de São Paulo já tomou essa iniciativa. E a maior resposta a
esses fariseus foi dada por aquele prelado brasileiro que, em 2 de fevereiro de
1963, afirmava que os ricos da América Latina falam muito em reformas de
base, mas chamam de comunistas aqueles que se decidem a levá-las à prática.
Ele explicava: “É fácil de entender: os ricos da América Latina continuam a
deter o parlamento e têm o grande idealismo da fé no futuro (...)”. Dizia por fim:
O egoísmo de muitos ricos, sua cegueira, é um problema muito mais grave e
urgente do que o próprio comunismo”.
Esse sacerdote, D. Hélder Câmara, acaba de ser designado pelo papa para
arcebispo do Recife, uma das cidades que mais refletem a crise social do nosso
país.
Na passagem acima, Goulart visa a – a exemplo do que afirmou no Comício da
Central do Brasil – livrar-se, mais uma vez, da acusação freqüente que sofria de seus
inimigos políticos de que ele era um comunista ateu, um anticristão. Tal defesa justifica-se,
pois a direita tinha como estratégia fazer uma ligação estreita entre “reformas de base” e
“comunismo”, como se o projeto de “reformas” fosse uma bandeira política eminentemente
comunista, o que era um completo despropósito na época, tendo em vista as “reformas”
representarem um projeto na época defendido inclusive por muitos democratas.
Evidentemente que tal projeto era ardorosamente defendido por grupos comunistas e
de extrema esquerda, inclusive por alguns revolucionários que dispensariam uma necessária
revisão constitucional. Era justamente na radicalidade desses grupos, os quais, em verdade,
tinham pouco apelo eleitoral e menos ainda base no Congresso Nacional, que a direita
alimentava seu argumento de que as reformas de base era um projeto comunista e
anticristão e que, portanto, se Goulart era um dos seus defensores, deveria ser classificado
como um ateu extremista de esquerda. É a partir dessa simplificação produzida por seus
285
inimigos políticos, que Goulart se defende, dizendo, entre outras coisas, que a própria igreja
católica, nas figuras de suas lideranças mais incontestáveis, como os citados no trecho, o
papa João XXII e o cardeal de São Paulo, eram defensores de uma igreja católica mais
voltada para o “social”. Destaque especial às palavras textuais, conforme Goulart, de Dom
Hélder Câmara, arcebispo de Recife, que afirmava que os ricos da América Latina
defendem em pronunciamentos as reformas de base, mas nunca as transformam em
discurso, em prática social. Isso, segundo o arcebispo, é “egoísmo”, “cegueira”, que “é um
problema muito mais grave e urgente do que o próprio comunismo”. Seguindo sua
manifestação:
Reconheço que há muitos iludidos de boa fé. Venho adverti-los de que estão
sendo manipulados em seus generosos sentimentos por grupos de pressão que
hoje controlam facções políticas, agências de publicidade e órgãos de cúpula das
classes empresariais.
Aconselho, portanto, a todo o povo brasileiro que hoje esteja envolvido, por
motivos religiosos, em comícios políticos que medite um pouco se está
realmente defendendo a doutrina daquele que pela salvação da humanidade
morreu na cruz, ou apenas os interesses de alguns grupos financeiros ou
eleitorais. Recorde-se da palavra de Pio XI, que, tomando consciência de que a
igreja se estava transformando em escudo de privilégios injustificáveis,
reconheceu que “o grande escândalo do nosso tempo foi a Igreja ter perdido
contato com a classe operária”.
Nesse momento da manifestação, Goulart apela para o sentimento religioso dos
brasileiros, inferindo a idéia de que o povo envolvido “por motivos religiosos em comícios
políticos” estava sendo manipulado por grupos políticos e financeiros de cúpula. Isso
porque, fazendo uma ligação com excerto anteriormente analisado, as lideranças políticas e
financeiras utilizam argumentos religiosos para buscar a adesão do povo brasileiro aos seus
interesses completamente alheios a qualquer causa religiosa. Nesse sentido, os “muitos
iludidos de boa fé” foram os participantes da “Marcha da família com deus pela liberdade”,
286
ocorrida em 19 de março em São Paulo, organizada pelo deputado Antônio Silva da Cunha
Bueno (PSD) e apoiada pelo governador Ademar de Barros, representado por sua mulher
Leonor de Barros.
É interessante, neste ponto, de se pensar sobre o bombardeio ideológico do qual o
“povo brasileiro” estava sendo atingido. Pelo lado dos críticos das reformas, a exploração
do sentimento religioso dos populares, no sentido da afirmação recorrente de que o
comunismo é inimigo do cristianismo e que as políticas atinentes às reformas de base são
eminentemente comunistas, portanto, contrárias ao sentimento cristão e, assim, contrárias
ao próprio povo brasileiro, na sua grande maioria constituído de cristãos. Pelo lado de
Goulart e dos grupos políticos reformistas, a religião também servia como justificativa das
reformas, uma vez que religiosos do status de João XXIII e Pio XI afirmavam que a Igreja
Católica precisava estar perto do povo. Tal justificativa enseja a posição reformista de
Goulart, dizendo que o seu governo era cristão justamente porque estava indo cada vez
mais em direção dos anseios do povo cristão, e que as reformas de base, que estariam
abençoadas por esses religiosos da alta cúpula da Igreja Católica, representavam a prova
material do cristianismo de Goulart e de seu governo. Seguindo o seu pronunciamento:
Continuemos, ao lado das nossas mães, mulheres e filhos, a acompanhar as suas
orações e a prestigiar e respeitar a sua fé e os seus sentimentos, que também são
os nossos. Mas não nos iludamos diante da torpe exploração que procura
envolver os sentimentos mais puros, como se a religião e a fé fossem servir de
escudo a interesses contrários ao nosso povo e ao nosso país e muito menos
podemos admitir que o dinheiro do Ibad venha a macular a pureza das nossas
instituições cristãs e do sentimento religioso dos nossos filhos.
287
Neste excerto, Goulart continua tratando da religiosidade do povo usada para fins
políticos. Na primeira frase, o presidente argumenta que todos os brasileiros, inclusive ele
próprio, são religiosos e que possuem fé quando afirma “continuemos, ao lado das nossas
mães, mulheres e filhos, a acompanhar as suas orações e a prestigiar e respeitar a sua fé e os
seus sentimentos, que também são os nossos”. Contudo, insiste no fato de que esta mesma
religiosidade está sendo usada para fins políticos justamente “contrários ao nosso povo e ao
nosso país”. Acusa diretamente o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) de estar
financiando movimentos políticos, evidentemente contrários à política reformista de
Goulart, utilizando-se, para isso, da fé e da religiosidade do povo brasileiro como forma de
justificar seus interesses políticos que, segundo Goulart, são “contrários ao nosso povo e ao
nosso país”. Na seqüência da manifestação:
Não podemos permitir que esse dinheiro espúrio venha macular os sentimentos
puros das nossas famílias, os sentimentos puros do povo brasileiro. Mas, srs.
sargentos, que constituem um dos alicerces da nossa estrutura militar, a minha
palavra, o meu apelo é para que os sargentos brasileiros continuem cada vez
mais unidos, cada vez mais disciplinados naquela disciplina consciente, fundada
no respeito recíproco entre comandantes e comandados. Que respeitem a
hierarquia legal, que se mantenham cada vez mais coesos dentro das suas
unidades e fiéis aos princípios básicos da disciplina. Que continuem prestigiando
as nossas instituições, porque, em nome dessas instituições, em nome dessa
disciplina, os sargentos jamais permitirão que se pise nos sentimentos do povo
brasileiro. Ao lado de comandantes, e em nome da disciplina, tenho certeza de
que os sargentos jamais aceitarão sectarismo, partam de onde partirem, porque o
caminho que lhes está traçado é o caminho que me foi traçado também.
Neste ponto, Goulart aborda primordialmente as relações hierárquicas constantes em
todas as instituições militares. Tal abordagem mostrava-se necessária, tendo em vista uma
série de protestos que militares de baixas patentes vinham fazendo desde 1963, a partir da
revolta dos sargentos. Dias antes do pronunciamento da manifestação em apreço, como se
288
sabe, havia ocorrido o protesto dos marinheiros. Decididamente havia um importante
confronto entre militares de alta e de baixa patente, o que, segundo os primeiros, gerava
uma situação de indisciplina insuportável numa organização militar.
Tomando a abordagem de Goulart propriamente, pode-se notar que o presidente, neste
momento do seu pronunciamento, não toma claro partido em nome dos militares de baixa
patente. Fala da necessidade de haver “respeito” entre as patentes, contudo não defende, em
momento algum, a quebra de hierarquia: “que os sargentos brasileiros continuem cada vez
mais unidos, cada vez mais disciplinados naquela disciplina consciente, fundada no respeito
recíproco entre comandantes e comandados”. Além disso, defende a necessidade de que
seja mantida a “hierarquia legal”: “que [os sargentos] respeitem a hierarquia legal, que se
mantenham cada vez mais coesos dentro das suas unidades e fiéis aos princípios básicos da
disciplina”. O máximo que se pode atribuir de efetivo apoio de Goulart aos sargentos, neste
momento da manifestação, é a questão de que a hierarquia militar não deve passar dos
limites do “recíproco entre comandantes e comandados”.
Tal posição tomada por Goulart no sentido de não abalar a hierarquia no seio das
Forças Armadas se deve muito pelo fato de que o resultado do protesto dos marinheiros
resultou na anistia que Goulart deu aos revoltosos, o que gerou uma série de protestos
advindos da alta oficialidade daquela instituição. Criar um novo episódio de confronto do
presidente com esses oficiais seria a tomada de mais uma posição política de hostilidade.
Seguindo seu pronunciamento:
289
As reformas que nós pedimos, srs. suboficiais, srs. sargentos, as pedimos
rigorosamente dentro da Constituição. As atitudes que vêm caracterizando a
ação do governo, as suas providências, as leis e os decretos que vem assinando o
governo em benefício do povo são também efetuados rigorosamente dentro da
lei e dentro da Constituição.
Neste trecho, fica evidente a intenção do presidente de afirmar que todos os atos de
seu governo são tomados dentro da legalidade constitucional vigente. Tal afirmação visa a
responder uma crítica constante que Goulart vinha sofrendo da oposição de que o seu
projeto de reformas era fundado na ilegalidade. O nível das críticas oposicionistas contra o
governo residia justamente na afirmação que Goulart era um “comunista”, um
“revolucionário”, um anticristão e que todo o seu projeto de reformas de base se firmava
nessas ideologias “estranhas à brasilidade”. É, neste sentido, que Goulart afirma que “as
atitudes que vêm caracterizando a ação do governo, as suas providências, as leis e os
decretos que vem assinando o governo em benefício do povo são também efetuados
rigorosamente dentro da lei e dentro da Constituição”. Na seqüência de sua fala:
O Ibad, os interesses econômicos, os grandes grupos nacionais e internacionais
não têm competência para julgar os atos do presidente da República. Existem
poderes constituídos como a Suprema Corte de Justiça do nosso país, como
outros poderes constitucionais, que podem aquilatar e julgar os atos do
presidente da República. Os constituintes em 1946 estabeleceram no art. 217 da
nossa Constituição o princípio de que ela poderia ser modificada.
Compreenderam os legisladores que as Constituições não devem servir apenas
para resguardar as instituições do presente, mas as Constituições devem, acima
de tudo, resguardar as instituições do futuro.
O trecho inicia com o presidente apontando alguns de seus inimigos políticos
referidos como sendo o “Ibad, os interesses econômicos, os grandes grupos nacionais e
internacionais”. Fora o IBAD, que inclusive foi considerada uma organização ilegal em
290
1963
80
, outros grupos são genericamente apontados. Tão somente se denota que se tratam
de grupos compostos pela “elite financeira” nacional e internacional. São exatamente esses
grupos, segundo o presidente, que andavam “julgando” as ações do seu governo, os quais,
conforme Goulart, não tinham qualquer legitimidade para tanto, remetendo tal competência
às instâncias constitucionais do Poder Judiciário brasileiro: “existem poderes constituídos
como a Suprema Corte de Justiça do nosso país, como outros poderes constitucionais, que
podem aquilatar e julgar os atos do presidente da República”.
Outro elemento importante que o presidente menciona neste trecho diz respeito à
possibilidade legal de se alterar os dispositivos constitucionais. Possibilidade que Goulart
demonstra estar consagrada na forma do lacônico caput do art. 217 da Constituição de
1946: “Art. 217. A Constituição poderá ser emendada”. A legitimidade para a aprovação da
emenda proposta está disposta no seu § 2°: “dar-se-á por aceita a emenda que for aprovada
em duas discussões pela maioria absoluta da Câmara dos Deputados e do Senado Federal,
em duas sessões legislativas ordinárias e consecutivas”. Na seqüência do seu
pronunciamento, o presidente continua mencionando sobre a necessidade de emendar a
Constituição brasileira:
Triste do país que tivesse uma Constituição intocável. As Constituições têm que
evoluir à medida que evoluem os povos e as nações. Mas outra crítica que
constantemente se levantava contra o presidente da República, diariamente
transcrita e bem paga na imprensa brasileira, era a de que o Presidente não
80
Conforme Sérgio Lamarão, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e sua subsidiária, a Ação
Democrática Popular (ADEP) tiveram seus respectivos processos de fechamento iniciados em agosto de 1963
quando o presidente da República suspendeu seus funcionamentos, acusando as entidades de atividade
política eleitoral. Neste mesmo ano, “finalmente, em 20 de dezembro, o ABAD e a Adep foram dissolvidos
por determinação do Poder Judiciário (...)” (LAMARÃO/DHBB, 2001, p. 2782).
291
revelava quais as reformas que desejava o povo brasileiro. Esse argumento agora
não prevalece mais, porque o presidente da República acaba de mandar
mensagem ao Congresso Nacional propondo claramente, e com todas as letras,
como o povo brasileiro deseja as reformas. Reformas que não podem mais ser
adiadas, reformas que não podem mais ser transferidas, porque essas reformas
constituem, acima de tudo, reivindicações legítimas e sentidas do povo brasileiro
e são indispensáveis ao desenvolvimento do nosso país.
Dois elementos importantes do argumento central de Goulart são levantados neste
ponto. O primeiro diz respeito à necessidade de reformas, justificadas, neste particular, a
partir do argumento de que as Constituições devem seguir a evolução dos povos, ou seja, o
povo brasileiro, suas aspirações e a realidade política do país, conforme Goulart, não são os
mesmos quando da elaboração da Constituição de 1946. O país muda e a Constituição deve
acompanhar tal mudança, alterando seus dispositivos e se modernizando.
O segundo elemento diz respeito nitidamente a que tais mudanças não são
propriamente criações de Goulart, mas percepções que o presidente recolheu dos anseios do
próprio povo, como se Goulart fosse capaz de identificar plenamente as vontades populares.
Jango encaminhou ao Congresso Nacional a mensagem presidencial da abertura anual dos
trabalhos legislativos, “propondo claramente, e com todas as letras, como o povo brasileiro
deseja as reformas”, ou seja, busca Goulart, neste ponto, se mostrar como um intérprete dos
anseios mais verdadeiros do povo brasileiro, como se tais anseios existissem ou fossem
plenamente identificáveis. Assim, as reformas são “reivindicações legítimas e sentidas do
povo brasileiro e são indispensáveis ao desenvolvimento do nosso país”. Seguindo a
manifestação:
292
Com fé em Deus e confiança no povo, quero afirmar, claramente nesta noite, na
hora que, em nome da disciplina, se estão praticando as maiores indisciplinas,
que não admitirei que a desordem seja promovida em nome da ordem; não
admitirei que o conflito entre irmãos seja pregado e que, em nome de um anti-
reformismo impatriótico, se chegue a conclamar as forças da reação para se
armarem contra o povo e contra os trabalhadores; não permitirei que a religião
de meus pais, a minha religião e a dos meus filhos, seja usada como instrumento
político de ocasião, por aqueles que ignoram o seu sentido verdadeiro e
pisoteiam o segundo mandamento da lei de Deus.
Neste excerto, Goulart busca demonstrar a incoerência que ele vê no discurso da
oposição, por ele denominada “reação”. Assim, conforme o presidente, a reação – que
naquele momento acusa Goulart e a esquerda de promoverem desordens política e social,
como o Comício da Central do Brasil – é quem está verdadeiramente provocando a
instabilidade no regime: “em nome da disciplina, se estão praticando as maiores
indisciplinas, que não admitirei que a desordem seja promovida em nome da ordem”.
Acusa os membros da reação de “anti-reformistas”, “impatrióticos”, que se armam “contra
o povo e os trabalhadores”. Além disso, retoma mais uma vez o uso político que a direita
vem fazendo da religião, acusando o presidente de ser comunista anti-religioso: “não
permitirei que a religião de meus pais, a minha religião e a dos meus filhos, seja usada
como instrumento político de ocasião”. Continuando seu pronunciamento:
O meu mandato, conferido pelo povo e reafirmado pelo povo numa segunda vez,
será exercido em toda a sua plenitude, em nome do povo e na defesa dos
interesses populares. Enganam-se redondamente aqueles que imaginam que as
forças da reação serão capazes de destruir o mandato que não é meu, o mandato
que é do povo brasileiro.
Neste ponto, Goulart busca afirmar a legitimidade de seu cargo. Na verdade,
menciona uma “dupla prova de legitimidade”. A primeira prova da “legitimidade” deu-se
no momento em que Jango assumiu a Presidência da República após o conturbado episódio
293
decorrente da renúncia de Jânio Quadros. A segunda prova de legitimidade de seu mandato
ocorreu com o resultado do plebiscito realizado em janeiro de 1963, momento em que foi
escolhido o presidencialismo e, portanto, lhe foram instituídas todas as prerrogativas
atinentes ao chefe do Poder Executivo decorrentes deste sistema de governo. Esta “dupla
prova de legitimidade” faz com que Goulart afirme que se ele está na condição de
presidente da República isto se deve ao fato de que foi conduzido a este posto por duas
vezes e que, portanto, o mandato não é seu, mas “do povo brasileiro”. Em sendo seu
mandato do “povo brasileiro” não tem a “reação” o direito de destituir-lhe, pois que estaria
contrariando uma vontade popular expressa duplamente desde 1961. Na seqüência do
pronunciamento:
Ainda agora, procura-se, em nome da disciplina militar, criar uma crise para
dividir as Forças Armadas do país. Quem fala em disciplina? Quem está
alardeando disciplina nesta hora? Quem está procurando intrigar o presidente da
República em nome da disciplina? São aqueles mesmos que, em 1961, em nome
de uma falsa disciplina, em nome de pretensa ordem e de pretensa legalidade
que defendiam, prenderam dezenas de oficiais e sargentos brasileiros. Em nome
dessa disciplina prendeu-se um dos mais ilustres e eminentes comandantes do
Exército brasileiro; prendeu-se numa fortaleza, aqui no Rio de Janeiro, um
marechal, pelo crime de defender a Constituição que ele tinha jurado. Esse
grande militar, de uma tradição ilibada nas fileiras de nosso Exército, símbolo de
disciplina e de bravura das nossas Forças Armadas, o grande marechal Henrique
Teixeira Lott, foi punido, com o recolhimento a uma fortaleza.
Goulart menciona, mais uma vez, no excerto acima, a questão da “disciplina militar”,
ameaçada segundo militares de alta patente. Afirma o presidente que os que falam em
disciplina militar são os mesmos que, em 1961, provocaram a crise sucessória logo após a
renúncia de Jânio Quadros, ou seja, os ministros militares de Quadros. É interessante levar
em consideração os manuscritos e os demais documentos produzidos pelo general Odílio
Denys, que serão apresentados e analisados no próximo capítulo, tendo em vista que este
294
oficial conspirou até a queda de Goulart. Não era despropositada, portanto, esta reclamação
do presidente. Em nome da disciplina militar, os ministros das Forças Armadas, ordenaram
a prisão, conforme faz menção Goulart, de dezenas de outros militares, inclusive o cárcere
de Henrique Teixeira Lott que, em 1961, opôs veementemente ao golpe intentado pelos três
ministros militares de Quadros. Continua seu pronunciamento, rememorando os
acontecimentos de 1961, buscando fazer ligação com a crise que ocorria em março de
1964:
Fiel à minha formação cristã, não guardo qualquer mágoa daqueles
acontecimentos. Jamais remanesceu no meu espírito qualquer ressentimento com
relação àqueles que, num determinado instante, não souberam defender a
Constituição da República, não souberam interpretar as leis do país.
E o mesmo espírito que me guiou em 1961 foi o espírito que me guiou agora na
crise da Marinha, que está servindo de tantos pretextos para intrigas nas Forças
Armadas.
Neste trecho, Goulart afirma que não guarda qualquer ressentimento em relação aos
golpistas de 1961, no sentido de demonstrar sua postura conciliatória. Contudo, deixa muito
claro que tal atitude foi ilegal, inconstitucional. Os golpistas de 1961 “não souberam
defender a Constituição da República, não souberam interpretar as leis do país”. Goulart,
como presidente, demonstra no seu discurso que ele sim sabe ser legalista, sabe viver sob a
égide da Constituição Federal. Além de intérprete correto das leis do Brasil, Goulart é
também intérprete da vontade popular e que por isso, por duas vezes, o povo havia lhe
conferido a legitimidade para exercer o seu mandato presidencial. Se ele é intérprete das
leis e da vontade popular, não há porque reclamar de sua postura política um desrespeito à
hierarquia e à ordem militar. A partir de tais pressupostos, passa Goulart a um novo
295
assunto, referente à recente “Revolta dos marinheiros”, afirmando que o “mesmo espírito
que me guiou em 1961 foi o espírito que me guiou agora na crise da Marinha”:
Estava no sul quando soube da crise que irrompia na Marinha de Guerra.
Desloquei-me imediatamente para o Rio de Janeiro. E aqui a minha primeira
recomendação compreendida e sentida pelo Exército e pela Aeronáutica foi a de
que eu não permitiria jamais que se praticasse qualquer violência contra aqueles
brasileiros que se encontravam desarmados na sede de um sindicato. Eu estaria
faltando a mim mesmo, estaria faltando a vocês, sargentos, às suas esposas e às
suas mães, se naquela hora eu desse uma ordem de massacre contra aqueles
homens que também são brasileiros. Mas, a partir daquele instante,
rigorosamente dentro da lei e das minhas atribuições, confiei o problema, na sua
plenitude, ao atual ministro da Marinha, que se encontra aqui conosco. Não tive
mais nenhuma interferência, a não ser de dar autoridade ao novo ministro, que
assumia naquela hora o comando da nossa Marinha de Guerra.
Nesta passagem, Goulart defende a posição que tomou diante da crise que envolveu a
“Revolta dos marinheiros”. Busca principalmente descaracterizar a condição de “militares”
que gozavam os manifestantes amotinados no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro
para caracterizá-los, doravante, como “brasileiros”. Dessa forma, busca inferir que o
protesto fora provocado por brasileiros e ele, na condição de presidente da República,
estaria faltando aos sargentos, as suas esposas e as suas mães se ele “desse uma ordem de
massacre contra aqueles homens que também são brasileiros”. A posição de Goulart no
episódio foi a de anistiar os marinheiros envolvidos sob o argumento de que se tratavam de
brasileiros e não somente de militares.
Nesse sentido, Goulart é taxativo na afirmação de que a única atitude que ele tomou
referente àquele episódio foi a de não permitir “que se praticasse qualquer violência contra
aqueles brasileiros que se encontravam desarmados na sede de um sindicato”. Todas as
demais medidas, segundo o excerto acima, foram tomadas pelo ministro da Marinha, o
296
almirante da reserva Mário Cunha Rodrigues, que tomou posse naquele momento em
substituição a Sílvio Mota, que pediu demissão no momento em que Goulart proibiu a
invasão da sede do sindicato: “a partir daquele instante, rigorosamente dentro da lei e das
minhas atribuições, confiei o problema, na sua plenitude, ao atual ministro da Marinha”. Na
seqüência de sua manifestação:
Ninguém mais do que eu, neste país, deseja o fortalecimento e a coesão das
nossas Forças Armadas. Ninguém mais do que eu deseja a glória da nossa
Marinha de Guerra. Ninguém mais do que eu deseja que ela viva
permanentemente num clima de compreensão, de entendimento, de respeito e de
disciplina. Mas a disciplina não se constrói sob o ódio e a exaltação. A disciplina
se constrói sob o respeito mútuo entre os que comandam e os que são
comandados.
Continuando a discorrer sobre os acontecimentos na Marinha brasileira, agora
buscando generalizar seu discurso para as demais Armas, afirma o presidente que ele
próprio é o maior interessado no “fortalecimento” e na “coesão” das Forças Armadas do
Brasil. Contudo, afirma que a coesão e o fortalecimento não hão de existir, tampouco a
necessária hierarquia, se o clima entre comandantes e comandados for de “ódio e
exaltação”. Nesse particular, parece estar Goulart inferindo que não existia, naquele
momento histórico, “respeito mútuo” entre altas e baixas patentes nas Forças Armadas, ou
seja, isto pode ser entendido como se os oficiais de alta patente não estivessem conseguindo
angariar o respeito de seus liderados, pois numa instituição militar o exemplo do respeito e
de sua conseqüente disciplina, deve partir do líder, do oficial: “a disciplina se constrói sob o
respeito mútuo entre os que comandam e os que são comandados”. Seguindo seu
pronunciamento:
297
Mas, também faltaria com o meu dever se não alertasse o alicerce básico das
nossas Forças Armadas os sargentos contra a terrível campanha que neste
instante se move em todo o país, por todos os meios e através de todos os
processos, contra o presidente da República e mais especificamente contra o
pensamento representado pelo presidente. Se os sargentos me perguntassem
estas são as minhas últimas palavras donde surgem tantos recursos para
campanha tão poderosa, para mobilização tão violenta contra o governo, eu diria
simplesmente, sargentos brasileiros, que tudo isso vem do dinheiro dos
profissionais da remessa ilícita de lucros, que recentemente regulamentei através
de uma lei. É do dinheiro maculado pelo interesse enorme do petróleo
internacional e de companhias nacionais contra a lei, também que assinei, do
monopólio da importação de petróleo pela Petrobrás. É do dinheiro que se
levantou contra outro ato que também praticou o presidente da República, que
foi a encampação de todas as companhias particulares de refino, mais atos que
pratiquei rigorosamente dentro da lei e no espírito da lei 2.004, criada pelo
grande e imortal presidente Getúlio Vargas.
Neste penúltimo excerto de seu pronunciamento, Goulart denuncia a “terrível
campanha (...) contra o presidente da República e mais especificamente contra o
pensamento representado pelo presidente”. Além de tal denúncia, que não representa
nenhuma novidade naquele conturbado contexto político, Jango faz menção aos grupos que
estariam patrocinando essa “terrível campanha”. Neste excerto, está muito clara a relação,
estabelecida no seu discurso, entre as políticas empreendidas pelo governo Goulart e os
grandes grupos empresariais que estariam sendo por elas prejudicados e que, portanto, em
represália, estariam promovendo uma campanha difamatória contra o seu governo.
Contudo, Goulart deixa claro neste excerto que suas medidas, além de legais, são em nome
dos brasileiros, visto que elas prejudicariam apenas os grandes grupos econômicos e estes
nunca efetivamente se preocuparam com o povo. Por essas razões são, portanto, os
patrocinadores da “terrível campanha” os grandes grupos responsáveis pelas remessas de
lucros para o exterior, aqueles contrários ao monopólio de importação de petróleo pela
Petrobrás e das refinarias particulares, naquele momento recentemente encampadas pela
298
Petrobrás a partir do Decreto n° 53.701/64. No próximo excerto, Goulart denuncia outros
patrocinadores da “terrível campanha” contra o seu governo:
Esse é o dinheiro graúdo. Se os sargentos me perguntarem sobre o dinheiro mais
miúdo, mas também muito poderoso, eu diria que é o dinheiro dos proprietários
profissionais de apartamentos em todo o Brasil, de apartamentos que estavam
sendo negados aos brasileiros, de apartamentos que não se alugavam mais em
cruzeiros, de apartamentos, cujo aluguel já se exigia pagamento em dólar, como
se Copacabana fosse um país estrangeiro, como se os brasileiros vivessem
subordinados a outros interesses. É dinheiro, por outro lado, srs. sargentos, de
comerciantes desonestos, que estavam explorando e roubando o povo brasileiro,
e que o governo, no direito legítimo que lhe confere a lei, defendeu e deu ordem
ao ministro Jurema para que não mais permitisse a exploração e que defendesse
o povo em toda a sua integridade. Enfim, trabalhadores, enfim, militares, enfim
brasileiros, é o dinheiro dos grandes laboratórios que terão que cumprir a lei ou
terão que ser subordinados à lei, porque o presidente da República não vacilará
instante sequer na execução de todas as leis e de todos os decretos.
Neste último trecho, Goulart menciona outros inimigos de seu governo, também
forjados a partir de suas medidas no exercício da Presidência. Inicialmente menciona os
proprietários de imóveis que alugavam seus apartamentos, inclusive em dólar, e que
tiveram de se adequar ao Decreto n° 53.702/64, que determinava o congelamento do preço
dos aluguéis. Menciona que os comerciantes desonestos também tornaram seus inimigos,
tendo em vista “que o governo, no direito legítimo que lhe confere a lei, defendeu e deu
ordem ao ministro Jurema para que não mais permitisse a exploração e que defendesse o
povo em toda a sua integridade”. Tal menção ao ministro da Justiça, Abelardo Jurema, diz
respeito à criação do Comissariado de Defesa da Economia Popular (CODEP), “órgão
fiscalizador dos preços dos gêneros alimentícios e o congelamento do preço dos aluguéis,
que provocou o descontentamento dos empresários ligados à indústria da construção civil”
(DHBB, 2001, p. 2898). Portanto, por um lado, a fiscalização do CODEP gerou a
insatisfação dos proprietários que alugavam seus apartamentos, inclusive em dólar, e dos
299
empresários ligados à construção civil, tendo em vista o tabelamento dos preços dos
aluguéis. Por outro lado, desagradou aos comerciantes desonestos em relação aos preços
praticados com a venda de produtos alimentícios.
7.3 Considerações finais: os diagnósticos de desordem e as soluções de ordem de
Goulart e a sua dúbia posição política
Os dois pronunciamentos de Goulart acima analisados nitidamente apontam para uma
clara tomada de posição do presidente. Goulart claramente optou pelo caminho das
reformas. Contudo, buscava este caminho dentro dos preceitos da legalidade. O presidente
da República tentava exercer o papel de “mediador democrático” diante dos exageros tanto
da direita como da esquerda. Entretanto, perante a direita, por um lado, Jango era visto
como apenas mais um esquerdista: um reformista que deveria ser derrotado. Por outro lado,
para os setores mais radicais da esquerda, a posição legalista de João Goulart era também
vista com desconfiança e, conseqüentemente, como um entrave às radicais medidas
políticas por esses grupos defendidas.
Assim, dois são os principais diagnósticos de desordem conforme a posição política
assumida por Goulart. O primeiro deles, e certamente o mais presente naquele momento,
eram os entraves sociais que impediam o crescimento brasileiro. Entraves que Goulart
apontava os seus culpados. Nesse sentido, o desenvolvimento agrário brasileiro dependia de
300
uma política clara de reforma agrária que o seu governo buscava implementar para
desapropriar os especuladores das terras que ladeavam as rodovias e as ferrovias brasileiras
que surpreendentemente foram construídas para esses latifundiários com o dinheiro do
próprio povo, como foi possível perceber no seu pronunciamento na Central do Brasil.
Já o desenvolvimento urbano requeria do governo federal medidas importantes no
sentido de conter a subida, diante da crescente inflação do período, dos preços da cesta
básica, dos medicamentos e dos aluguéis. Daí medidas como o decreto do congelamento
dos preços dos aluguéis e a criação do Comissariado de Defesa da Economia Popular
(CODEP) pelo ministro da Justiça Abelardo Jurema. Já a encampação das refinarias
particulares de petróleo pela Petrobrás, sinalizava a vontade de Goulart de realmente
proteger o petróleo brasileiro, restringindo o refino e a importação do mesmo por uma
empresa estatal, visto o produto inequivocamente ser estratégico para o desenvolvimento do
país.
O segundo diagnóstico de desordem presente nos pronunciamentos de Goulart
analisados neste capítulo refere-se à desordem política e institucional vigente no país. Era
muito claro para Jango que nenhuma reforma de base poderia ser efetivamente iniciada se,
antes disso, a Constituição Federal não fosse reformada. O presidente afirmava que não
aceitaria qualquer reforma que não fosse nos marcos da legalidade. Entretanto, Goulart
estava em meio a um vendaval político, no qual nem direita nem esquerda estavam
efetivamente preocupadas com soluções legais aos impasses políticos.
301
Diante dos diagnósticos de desordem apresentados, as soluções de ordem
demonstravam-se óbvias. A principal solução de ordem eram as “reformas de base”, o que
envolveria uma ampla atuação do governo federal e um envolvimento dos outros poderes,
instituições e da sociedade como um todo, no sentido de promover amplas reformas no
país, tendo como a principal delas a reforma agrária. A segunda solução de ordem era a
reforma constitucional, pois, sem a mesma, as reformas de base não seriam efetivadas.
Contudo, sem uma pacificação política entre governo e oposição, que se mostrou
impossível na prática, seria impossível implementar as reformas pretendidas.
Apesar de Goulart insistir no fato de que qualquer reforma estrutural deveria
necessariamente ocorrer nos marcos da legalidade erigida pela Constituição Federal de
1946, o presidente, sem sombra de dúvidas, aos olhos da oposição, mantinha uma posição
política extremamente dúbia naquela quadra. Esta dubiedade fornecia elementos
consistentes aos seus oposicionistas desconfiarem de suas reais intenções democráticas.
Esta desconfiança ficará ainda mais explicitada quando forem analisados os discursos dos
militares e dos parlamentares conservadores nos capítulos que se seguem.
302
8 O DISCURSO MILITAR DO GOLPE 2: A COERÊNCIA COM
AGOSTO DE 1961
Neste capítulo, serão analisados documentos produzidos por militares que
participaram direta ou indiretamente da conspiração. Neles estarão as razões aludidas para a
eclosão do golpe de 1964 que podem ter sido, em contrario sensu às análises anteriores
construídas acerca do tema, mais simples e menos estruturadas. Assim, nesse momento,
serão analisados os “discursos conspiratórios” de março de 1964, a partir de seus
“diagnósticos de desordem” e de suas respectivas “soluções de ordem”. Inicia-se, portanto,
pela posição assumida pelo general Odílio Denys.
303
8.1 A posição de Odílio Denys
Os documentos que serão analisados, manuscritos ou datilografados, de autoria do
marechal Odílio Denys
81
, são escritos destinados a servir como discursos do marechal em
ocasiões em que ele era convidado a falar ou a receber homenagens. Não são, muitas vezes,
datados, sendo que alguns deles, inclusive, foram produzidos pós 1964.
Mesmo sabendo que alguns documentos de Denys tenham sido produzidos após 1964,
dois motivos impulsionam a análise dos mesmos. O primeiro deles diz respeito à
importância que o marechal teve na preparação da conspiração civil-militar que depôs
Goulart. O segundo motivo, ainda mais importante, refere-se às razões elencadas por Denys
para a deposição de Jango.
A análise da documentação produzida por Denys será realizada em conjunto, tendo
em vista que os documentos não possuem títulos ou outros caracteres que possibilitem um
tratamento individualizado
82
. A intenção, portanto, é analisá-los, como já dito, em conjunto,
também devido à impressionante coerência que os mesmos reúnem, tendo em vista três
pontos principais: a participação de Denys no golpe, seus “diagnósticos de desordem” e
suas “soluções de ordem”. Dessa forma, inicia-se pela seguinte passagem de um texto
datilografado:
81
Os documentos em tela foram extraídos do arquivo do CPDOC/FGV.
304
Pela sua importância, nesse cenário magnífico da Guanabara se desenrolaram
acontecimentos de interesse geral que traçaram os destinos definitivos da Nação
Brasileira. Entre eles destaca-se o último, de 31 de março de 1964, que resultou
dos anseios da geração atual, preocupada com os rumos ideológicos do mundo e
sua repercussão no Brasil.
Tem ele a sua base em 1961, no Manifesto dos 3 Ministros Militares, Almirante
Heck, da Marinha, Brigadeiro Moss da Aeronáutica e eu da Guerra, em que
alertamos a Nação, quanto ao perigo da política marxista.
Denys inicia o documento afirmando que os “acontecimentos de 31 de março de
1964” tiveram início na Guanabara, tendo em vista a importância política deste Estado em
relação ao cenário nacional. Afirma ainda que a conspiração
83
militar que depôs João
Goulart “resultou dos anseios da geração atual, preocupada com os rumos ideológicos do
mundo e sua repercussão no Brasil”. Evidentemente que, nesta última passagem, o
marechal Denys estava buscando solidificar seu posicionamento político e ideológico,
afirmando que esse se tratava de uma preocupação de uma “geração”, no sentido de
totalidade. Contudo, de fato, sabe-se que os posicionamentos políticos e ideológicos no
Brasil e no mundo estavam muito bem divididos entre “comunismo” e “capitalismo”,
“esquerda” e “direita”, “pró União Soviética” e “pró Estados Unidos”, ou outras
designações possíveis. Na busca de deslegitimar o discurso ao qual se antagonizava, Denys
afirma que “os acontecimentos de 31 de março de 1964” representaram fielmente os
desejos de toda uma geração.
82
A única referência constante em todos os documentos que serão analisados, dada pelo CPDOC/FGV, é o
código geral da pasta do Arquivo Odílio Denys (OD/pi 1930/85. 00.00).
83
Está sendo utilizando o termo “conspiração” para designar o golpe de Estado de 31 de março de 1964,
tendo em vista esse termo ter sido de uso corriqueiro dos próprios militares ditos, por eles próprios, como
conspiradores. Os militares utilizam, ainda, o termo “revolução”, tendo em vista também se intitularem como
revolucionários.
305
Mais importante dos que os próprios acontecimentos de março de 1964, neste
momento, parece ser relevante revelar, a partir da análise do segundo parágrafo do
fragmento, a origem de tais “acontecimentos”. Denys revela que a origem dos mesmos
remonta a agosto de 1961
84
, ou seja, no “Manifesto dos 3 Ministros Militares”. Naquele
momento, o marechal enuncia que os ministros já alertavam à Nação “quanto ao perigo da
política marxista”, ou seja, retomando o primeiro parágrafo do fragmento destacado, os
ministros da época, entre eles Denys, já se preocupavam com “os rumos ideológicos do
mundo e sua repercussão no Brasil”. A conclusão que se deve chegar acerca disso é que os
“acontecimentos de 31 de março de 1964” tiveram exatamente as mesmas causas dos
acontecimentos de 1961. Continuando a leitura do documento:
Tendo sido instituído o regime parlamentar como solução da crise política
resultante daquele manifesto foi logo depois atrofiado pelas forças políticas
então dominantes, ficando como letra morta, até ser anulado pelo plebiscito
antecipado.
Tendo falhado a trava política instituída para evitar a progressão do marxismo
entre nós, era preciso lançar mão da força para contê-la.
Analisando o afirmado no primeiro parágrafo do trecho em destaque, pode-se aduzir
que o “regime parlamentar” foi tido pelos três ministros militares como uma solução
satisfatória à “crise política” de 1961, tendo em vista o segundo período do mesmo
parágrafo apresentar um descontentamento de Denys, pelo “regime parlamentar” ter sido
“atrofiado pelas forças políticas então dominantes”. Nunca é demais lembrar que a “solução
84
Em manuscrito denominado “Caráter impessoal da revolução de 1964”, Odílio Denys apresenta a mesma
origem do movimento de 1964: “o movimento político-militar revolucionario, irrompido a 31 de Março de
1964, em Minas Gerais, começou na realidade a ser coordenado e incentivado pelo Manifesto dos 3 Ministros
Militares, 1961, por ocasião da crise rezultante da renuncia do Presidente Janio Quadros. Nesse Manifesto os
3 Ministros Militares alertavam a Nação para o perigo do marxismo que fatalmente subiria ao poder no
306
parlamentarista” foi uma fórmula institucional casuística que previa o enfraquecimento dos
poderes presidenciais de João Goulart. Tal solução, para os ministros militares, foi tida
como satisfatória, uma vez que os mesmos, como se sabe, já haviam vetado antes a
ascensão de Jango à Presidência da República, sob o argumento de que o vice-presidente
representava a possibilidade das forças marxistas assumirem o comando da política
nacional. Com o parlamentarismo, e a conseqüente retirada de muitas prerrogativas
presidenciais, esse medo militar fora minimizado.
Se o parlamentarismo foi tido como uma solução aceitável por parte dos ministros
militares, segundo Denys, as forças políticas dominantes “atrofiaram-na”, transformaram-
na numa “letra morta”, anulando-a pelo “plebiscito antecipado”. Isso, por conseqüência, na
ótica do enunciador, fez voltar o medo do marxismo.
No parágrafo seguinte, o parlamentarismo é classificado por Denys como uma “trava
política instituída para evitar a progressão do marxismo entre nós”. Ou seja, sua instituição
tinha como intenção travar o avanço do marxismo pela via eminentemente política, o que,
num primeiro momento, pareceu a ele, e aos demais ministros militares, como uma atitude
salutar. Contudo, com a antecipação do plebiscito e o conseqüente retorno do
presidencialismo e, com isso, o retorno imediato das prerrogativas presidenciais de João
Goulart, viu-se que, a partir simplesmente da política, não daria para deter a progressão do
governo do Dr. João Goulart, dadas as suas tendencias politicas e apoios que tinha nas correntes esquerdistas
do Paiz”.
307
marxismo
85
. Nesse momento, Denys apresenta, então, como solução real a tal progressão, a
necessidade de “lançar mão da força para contê-la”. Daí a necessidade da articulação da
conspiração visando à deposição de Jango. Na seqüência do documento:
Fiz as articulações militares necessárias e na ocasião que me pareceu oportuna
tomei a iniciativa de fazer começar o movimento, de acordo com um plano que
tinha preestabelecido.
O plano estabelecia que o movimento devia começar num grande Estado; o meu
apelo, nesse sentido, foi patrioticamente atendido pelo Governador de Minas
Gerais, Dr Magalhães Pinto e pelo Comandante da IV Região Militar, Gen Div
Olimpio Mourão Filho, que bem compreenderam a situação difícil que
atravessava o País e que a mesma não devia continuar.
Esse apelo foi feito em reunião realizada no dia 28 de março de 1964, em Juiz de
Fora, com a presença do Ministro Dr Antonio Neder, secretários de Estado e
muitos oficiais. Seria o estopim da resistência. Desde esse dia 28 permaneci em
Juiz de Fora, acompanhando os preparativos que se fazia; no dia 31, às 6 horas
da manhã rompeu o movimento e no começo da noite, consegui, pessoalmente, a
solidarização de todo o Destacamento que fora mandado nos combater e isso por
intermédio do então Cel Raymundo Ferreira de Souza, que estava no Comando
da Vanguarda do mesmo.
Entendendo, portanto, a necessidade de usar a força para conter o avanço do
marxismo, Denys, no trecho acima, descreve as ações militares que foram tomadas entre 28
e 31 de março de 1964, no sentido da deposição de João Goulart. É interessante notar a
passagem constante no primeiro parágrafo do excerto, na qual Odílio Denys afirma que ele
próprio tomou a “iniciativa de fazer começar o movimento”, no sentido de que era preciso
que ele mesmo, em 1964, tomasse a frente com o mesmo intuito que o levou a liderar a
ação de 1961 e que, com a “anulação do parlamentarismo”, fazia sentido novamente
desencadeá-la. No restante do trecho, o marechal narra os acontecimentos históricos
85
É interessante, nesse ponto, lembrar que o plebiscito que aprovou o retorno do presidencialismo, realizado
em 6 de janeiro de 1963, foi uma decisão popular e não da classe política, o que parece não ter muita
importância para o discurso de Denys.
308
desencadeadores do golpe militar de 1964, o quais se coadunam com a literatura histórica
especializada sobre o período
86
.
É importante ainda destacar, no restante do trecho, dois elementos. O primeiro deles,
o apelo “patrioticamente atendido” pelo governador de Minas Gerais, Magalhães Pinto, e
pelo comandante da IV Divisão Militar, Mourão Filho, “que bem compreenderam a
situação difícil que atravessava o País e que a mesma não devia continuar”. Patriotismo
aqui deve ser entendido como a defesa do Brasil em relação aos perigos do marxismo. O
segundo elemento importante de ser levado em consideração está contido no último
parágrafo do trecho selecionado, o qual menciona que a reunião de 28 de março
representou o “estopim da resistência”. Nesse ponto, o autor está inferindo que o
movimento de 31 de março de 1964 não foi um “golpe” ou uma “ação”, mas, pelo
contrário, um “contragolpe”, uma “reação”, nas suas próprias palavras, o “estopim da
resistência”. Resistência a algum ataque. No caso em tela, contra o ataque das forças do
marxismo instaladas no governo de João Goulart. Sendo ainda mais enfático, resistência
pode também significar uma força que visa a anular os efeitos de uma ação destruidora,
nesse particular, o comunismo em marcha, segundo Denys. Continuando o documento:
Naquela hora já tinham chegado comunicações de toda parte do País
solidarizando-se com o movimento. Foi ele assim vitorioso em poucas horas,
graças ao patriotismo dos brasileiros. Foi um verdadeiro plebiscito a favor da
Revolução.
Estamos agora vivendo uma época de tranquilidade e segurança, assegurada pela
Revolução de 31 de Março de 1964, em que o Brasil, repelindo influências
86
As informações prestadas no documento em análise do marechal Odílio Denys coadunam-se perfeitamente
com as informações constantes nos capítulos 46 a 50 de “1964: golpe ou contragolpe?” (SILVA, 1975, 367-
393).
309
ideológicas estranhas e indesejáveis, reconstituiu a fisionomia tradicional da
Nação, continuando dentro da ordem, da justiça e da fraternização cristã.
O movimento foi vitorioso em poucas horas “graças ao patriotismo dos brasileiros”.
Veja-se que o argumento de que o golpe representava os “anseios de uma geração” aparece
novamente no discurso de Denys, o que denota a busca de legitimidade para a ação
empreendida em 31 de março de 1964. Ele conclui esta idéia afirmando taxativamente que
o movimento “foi um verdadeiro plebiscito a favor da Revolução”.
Nesse ponto, duas palavras devem ser especialmente consideradas: “plebiscito” e
“Revolução”. A primeira, tendo em vista que a ação militar representou verdadeiramente a
vontade do povo brasileiro, ou seja, o resultado de um “plebiscito”. É interessante que em
outro momento já analisado, Odílio Denys simplesmente desconsidera a vontade popular
em relação ao retorno do presidencialismo por ocasião do plebiscito de 6 de janeiro de
1963. Já o termo “revolução” adquire extrema força nesse contexto discursivo, tendo em
vista que representa uma alteração brusca, um novo status quo, a uma situação considerada
indesejável aos revolucionários. Uma “revolução” pela ordem, contra a desordem, contra o
marxismo.
Por fim, com a vitória do movimento de março de 1964, o marechal Denys enfatiza,
no último parágrafo, que iniciou no Brasil um momento de “tranqüilidade” e de
“segurança”, tendo em vista que “influências ideológicas estranhas e indesejáveis”, leia-se,
o marxismo, foram afastadas da vida política do país. Isso, por si só, reconstituiu a
“fisionomia tradicional da Nação”, mantendo a “ordem”, a “justiça” e a “fraternização
310
cristã”, valores que, segundo o discurso de Denys, além de serem tradicionais aos
brasileiros, estavam ameaçados pelos grupos marxistas “alojados” no governo de João
Goulart. Denys conclui seu documento saudando novamente o sucesso da “revolução” e
prevendo o harmônico desenvolvimento do Brasil, conforme segue:
Organizando um plano que levava em conta os ensinamentos do nosso passado
de agitações, em menos de 18 horas conquistamos a bandeira da legalidade, que
se achava com os esquerdistas e a trouxemos para o nosso campo, onde se acha
os Governos instituídos pela Revolução, que vão dando tranquilidade, segurança
e desenvolvimento ao nosso Brasil, de forma a causar admiração ao Mundo e
inveja a alguns países que não puderam se livrar de regimes de demagogia
esquerdisante. Está assim o povo com o governo que desejava ter, ficando livre
dos textos copiados de países diferentes do nosso e que muitos males
ocasionaram durante tanto tempo.
Em outro documento, dessa vez manuscrito, Odílio Denys revela outros detalhes de
sua linha discursiva, notadamente acerca de como era por ele lida a ideologia política de
João Goulart e o perigo que ele representava para o Brasil e para as Forças Armadas:
Impedir que o Dr. João Goulart resvalasse para o comunismo era uma esperança
vã, pois era já muito conhecida sua idéia de implantação do sindicalismo a 1° de
Maio; depois da Republica sindical viria o resto. A recusa dele, em 31 de Março,
ao apelo que lhe foi feito para dispensar o apoio dos extremistas da esquerda é
sintomático. Suas intenções eram firmes e estava agindo para anular a
capacidade de resistencia das Forças Armadas aos seus designios. (...) Não era
possível continuar contemporisando em face das provocações dos comicios, do
chamado Cabo Anselmo e do banquete do Automovel Club. Minas Gerais
romperia a crosta da indecisão.
O início do trecho acima representa uma certeza para Denys: inútil seria qualquer
esforço no sentido de livrar João Goulart do “comunismo”, tendo em vista ele já estar
totalmente comprometido com tal ideologia política. O restante do excerto apresenta cinco
provas dessa afirmação: a) “era já muito conhecida sua idéia de implantação do
311
sindicalismo a 1° de Maio”; b) em 31 de março, foi feito pelo chefe do Estado-Maior das
Forças Armadas, o general Pery Constant Bevilaqua, um último apelo para ele “dispensar”
o apoio dos “extremistas de esquerda”; c) comícios (em referência ao da Central do Brasil);
d) insubordinação nas Forças Armadas com a sublevação na Marinha encabeçada pelo cabo
Anselmo; e) banquete no Automóvel Clube, por ocasião da festa dos sargentos da Polícia
Militar em 30 de março.
É importante deter a análise num ponto específico do trecho, ou seja, em relação ao
apelo feito ao presidente na data do início do levante militar. O apelo foi do general
Bevilaqua, na condição de chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. Nesse particular, é
interessante aqui é analisar como Denys faz menção ao “apelo” do general.
Assim, a palavra “apelo” representa “pedir”, “solicitar” e, num sentido mais urgente,
“rogar”. Apelar a alguém, portanto, não possui qualquer acepção de ameaça. A pergunta
possível de ser feita sobre isso é a seguinte: foi realmente feito um “último apelo” ao
presidente Goulart para que ele abandonasse o apoio da “extrema esquerda” ou, na verdade,
foi feita uma derradeira ameaça? Note-se como no discurso de Denys o sentido de ameaça é
mais forte do que o de apelo. Está claro que todo o excerto tem um tom inquisidor em
relação ao “comunismo” de Goulart. São elencados cinco razões que justificam a ideologia
política do presidente no entendimento de Denys. Ninguém verdadeiramente apela para
depois dar um golpe; pelo contrário, ameaça-se e, no caso da ameaça não surtir o efeito
desejado, cumpre-se a mesma. Goulart foi “ameaçado” a deixar de aceitar o apoio das
forças políticas as quais Denys chamava de forças de “extrema esquerda”. É de se
312
perguntar onde está a legitimidade política das Forças Armadas, num contexto de
normalidade institucional, para “apelar a”, ou mesmo “ameaçar”, um presidente da
República, constitucionalmente instituído na condição de chefe supremo das Forças
Armadas, a deixar de selar as alianças políticas entendidas como necessárias. Nesse
sentido, é particularmente interessante transformar o “apelo”, no contexto utilizado por
Denys, por “ameaça”. Tal ameaça foi consumada em ato, pois, segundo Denys, “não era
possível continuar contemporizando em face das provocações (...)”. Termina o trecho
enunciando o princípio do movimento militar: “Minas Gerais romperia a crosta da
indecisão”.
Em outro documento manuscrito, denominado “Caráter impessoal da revolução de
1964”, o marechal Odílio Denys enfatiza o “comunismo” de Goulart, revelando que essa
ideologia não tinha qualquer origem no “getulismo”:
Nesse manifesto consta as prevenções que já existiam contra ele, desde que fora
Ministro do Trabalho; essas prevenções eram muito vivas nos meios civis e
militares que tinham sido contrarios ao getulismo. Mas não bastavam esses
elementos para impedir o marxismo. Era necessario arrastar a Nação inteira e lhe
mostrar que o marxismo não era herança politica do Dr. Getúlio e sim uma
modificação que estava sendo encaminhada pelo Dr. João Goulart.
É amplamente divulgado na bibliografia histórico-política que a ascensão de João
Goulart na Presidência da República representava a reedição do já conhecido embate entre
“getulismo” e “anti-getulismo”.
87
Contudo, segundo Denys, Goulart introduziu um novo
87
Skidmore bem ilustra a reedição dessa disputa: “ele [Goulart] era o herdeiro político de Getúlio Vargas e,
portanto, inescapavelmente tomaria a dicotomia getulismo/anti-getulismo, a qual havia sido suspensa por
313
elemento a essa dicotomia: o marxismo. O marechal via-se na tarefa de alertar a “Nação”
em relação a essa modificação no “getulismo”. Ele, e, por conseqüência, as Forças
Armadas deveriam alertar o povo, já que o sistema partidário não tomava uma atitude
afirmativa nesse sentido, devido ao seu imobilismo, como releva Denys no manuscrito
intitulado “1964”:
A ascenção dos militares em 1964 resultou desse imobilismo dos partidos
democratas, que não perceberam ou não souberam agir para evitar o avanço
rapido que o marxismo estava tendo em nosso Paiz.
Não havia portanto a menor possibilidade de ser o Presidente da Republica, Dr.
João Goulart, “impedido” pelo Congresso por ter ele lá o apoio da maioria; só
restava o recurso da “deposição” para evitar que ele realizasse seu intento
esquerdista, de implantar o regime sindicalista no Brasil.
Visando ter uma idéia geral do “diagnóstico de desordem” e da “solução de ordem
no discurso de Odílio Denys, recorta-se o excerto abaixo, o qual representa uma idéia geral
da ideologia e da estratégia de ação pensada pelo marechal:
Muito antes do que se esperava veio a crise da renúncia do Presidente Janio
Quadros; com o manifesto dos 3 Ministros militares as Forças Armadas se
apresentaram unidas e puderam resistir por quinze dias até conseguir uma
solução política que diminuía os poderes do Presidente da República; foi o
primeiro golpe dado ao marxismo, que não conseguiu lançar o paiz na guerra
civil, como era seu desejo e interesse, dividindo-o como aconteceu na Hespanha.
Subindo ao poder com a complacencia da politica partidaria, no Congresso,
fizeram o plebiscito antes da epoca marcada e trataram de acelerar a implantação
de sua ideologia; esse manejo tornou-se visivel e passou a ser combatido por
elementos politicos esclarecidos, no Congresso, na imprensa e nas ruas, com as
marchas da família.
A nação, pela sua maioria estava convencida nessa altura que era preciso
repudiar a legalidade existente e estabelecer no paiz outra legalidade, que
repudiasse a coexistencia com partidos marxistas.
Kubitschek e por Quadros. De repente, o Brasil havia retornado para as divisões de 1954” (SKIDMORE,
1967, p. 214).
314
No excerto acima, Denys sumariza o início da crise política (diagnóstico da
desordem) e a necessidade de resolvê-la (solução de ordem). Em linhas gerais, o início de
tal crise se deu a partir da renúncia de Jânio Quadros, o que, conseqüentemente, faria com
que o vice-presidente, João Goulart, assumisse o posto. Ocorre que, segundo o discurso de
Denys, com Jango ascenderiam ao poder elementos marxistas, os quais eram tidos como
indesejáveis pelo marechal. Nesse sentido, dois movimentos foram realizados, visando
conter o avanço do marxismo. O primeiro deles, em 1961, foi o conhecido “Manifesto dos
ministros militares”. O seu resultado, conforme Denys, foi o parlamentarismo, o que
satisfez os ministros num primeiro momento. Ocorre que, com a antecipação do plebiscito e
a conseqüente vitória do presidencialismo, Jango reassume seus plenos poderes
presidenciais e isso, conforme Denys, faz com que o marxismo assuma o poder político do
Estado brasileiro. Assim, novamente está instaurada a “desordem” política. Era preciso,
portanto, conter essa “desordem” já que, na visão do marechal, era essa a vontade da
“Nação”. Veja-se, com mais detalhes, outras questões apontadas neste trecho.
Assim, no primeiro parágrafo do excerto, quatro elementos devem ser destacados. O
primeiro deles dizia respeito à inesperada renúncia do presidente Jânio Quadros. O segundo
foi a negativa da posse de Goulart, a partir do “Manifesto dos ministros militares”. O
terceiro representou a razão para tal negativa: a solução política encontrada, o
parlamentarismo, foi o primeiro golpe no marxismo, tendo em vista ter “diminuído” o
poder do presidente. O quarto elemento foi a acusação de que o marxismo queria levar o
país a uma guerra civil, a exemplo da Guerra Civil Espanhola de 1936. Nesse parágrafo,
ficam esclarecidos tanto o “diagnóstico de desordem” como a “solução de ordem”,
315
respectivamente, a posse de Goulart (e a ascensão do marxismo) e a solução
parlamentarista.
É importante deter a atenção no ponto central representado pela seguinte passagem:
“com o manifesto dos 3 Ministros militares as Forças Armadas se apresentaram unidas e
puderam resistir por quinze dias até conseguir uma solução política que diminuía os
poderes do Presidente da República; foi o primeiro golpe dado ao marxismo”. A “solução
parlamentarista” foi, segundo o marechal, o “primeiro golpe dado ao marxismo”. Afirmar
isso significa que o regime parlamentar foi visto por Denys como uma solução satisfatória à
crise política instaurada, tendo em vista que esse evitaria o poder aos marxistas.
É interessante fazer referência destacada à expressão “golpe ao marxismo”, uma vez
que ela representa a idéia de que o parlamentarismo não representou qualquer tipo de
“solução de consenso” ou de “compromisso”, uma vez que a mesma não foi pactuada entre
as partes que realmente estavam em disputa política naquele momento (solução militar X
solução legalista). Pelo contrário, a solução parlamentarista deve ser entendida como uma
“solução de continuidade”, um golpe civil-militar, tendo em vista que os grupos políticos
representados pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, e mesmo pelo então
vice-presidente João Goulart, foram totalmente alijados ao final do processo. Isso fica ainda
mais claro se tomadas as próprias palavras de Denys, ou seja, o parlamentarismo foi o
“primeiro golpe dado ao marxismo”. Foi um pacto entre os militares e o Congresso
Nacional para evitar a ascensão com plenos poderes, do presidente Goulart, frise-se, uma
“solução de continuidade”, um “golpe branco”.
316
Ocorre que, como afirmado no segundo parágrafo do excerto, o “marxismo”, com a
“complacência da “política partidária no Congresso”, consegue antecipar o plebiscito e
tomar o poder do Estado com a vitória do sistema presidencialista de governo. Com isso, os
“marxistas” começam a “acelerar a implantação da sua ideologia”, o que gera
inconformidade de “elementos politicos esclarecidos, no Congresso, na imprensa e nas
ruas, com as marchas da família”. Na lógica do discurso de Denys, está novamente
diagnosticada a desordem política no país. Nesse sentido, “a nação, pela sua maioria estava
convencida nessa altura que era preciso repudiar a legalidade existente e estabelecer no paiz
outra legalidade, que repudiasse a coexistencia com partidos marxistas”. Ou seja, como a
solução política não fora eficaz, era necessário, tendo em vista a “vontade da Nação”, tomar
uma atitude mais drástica, devendo-se, portanto, repudiar a “legalidade existente”,
representada pelo “marxismo” e por seus partidos. Repudiar a “legalidade existente
significa, em outras palavras, promover as ações necessárias para o golpe de março de
1964, missão a qual o marechal Odílio Denys dedicou todos os seus esforços até o triunfo
final do movimento militar que, enfim, depôs João Goulart.
317
8.2 Documento Leex (Lealdade ao Exército)
88
O documento a ser analisado, intitulado “Leex – Lealdade ao Exército”, não datado,
nem assinado, de natureza sigilosa, destinado a ser distribuído, como ele próprio
recomenda, a um oficial de cada Grupo de Tropa “da mais absoluta confiança”, manifesta a
posição política dos militares que tomaram o poder do Estado brasileiro em 31 de março de
1964, assim como a leitura da oficialidade sobre os momentos imediatamente pretéritos ao
movimento golpista
89
. O documento em questão inicia da seguinte forma:
Êste documento deverá ser entregue, em cada um dos Grupos de Tropa, a um só
oficial, da mais absoluta confiança.
Documento LEEX
(Lealdade ao Exército)
Prezado camarada,
I – Grande número de oficiais das Fôrças Armadas, constituido de militares de
formação e convicções rigorosamente democráticas, isentos de quaisquer
vinculações político-partidárias, equidistantes de extremismos de direita ou de
esquerda, inteiramente dedicados aos afazeres profissionais e de comprovada
experiência, alguns dos quais em elevados postos da hierarquia, diante da
situação grave em que se debate o Pais, tomaram a resolução de coordenar os
anseios e esforços que vêm sendo observados em vastas áreas das Fôrças
Armadas.
88
O documento é dividido em duas partes. A primeira parte é destinada ao que será chamado de “doutrinação
militar”, ou seja, a busca de adeptos, entre os oficiais, ao movimento golpista. A segunda parte resume-se a
um questionário que o leitor deveria responder, caso aceitasse os termos expostos na primeira. Neste capítulo,
será analisada somente a primeira parte, tendo em vista que esta é suficiente para expressar o “diagnóstico de
desordem” e a “solução de ordem” aos autores do Documento LEEX.
89
Este material pode ser encontrado, na sua forma original, no arquivo do CPDOC/FGV (Código CFa 63. 05.
02). Reproduções podem ser consultadas em Silva (1975) e Bonavides de Amaral (2002). A presente análise
foi realizada a partir do original.
318
O documento – secreto e direcionado a pessoas indicadas “da mais absoluta
confiança” – tem inicialmente o objetivo de qualificar seus autores
90
, tendo em vista a
impossibilidade de os mesmos o assinarem, visto que o seu conteúdo notadamente
apresenta, como a seguir ficará evidente, tom conspiratório em relação ao governo do
presidente João Goulart. Nesse sentido, o LEEX foi elaborado por “oficiais das Fôrças
Armadas”, de “orientação democrática” e “sem qualquer vinculação partidária” ou
“ideologias” de extrema direita ou de extrema esquerda. É ressaltado ainda o fato de que
alguns desses militares ocupavam “elevados postos da hierarquia” militar. Toda essa
qualificação para, primeiramente, dar segurança ao leitor de quem são os responsáveis pelo
escrito e, por segundo, para já iniciar legitimamente manifestando a posição desses oficiais
no sentido que, “diante da situação grave em que se debate o Pais, tomaram a resolução de
coordenar os anseios e esforços que vêm sendo observados em vastas áreas das Fôrças
Armadas”.
Assim, esses militares de alto escalão resolveram, diante da grave situação brasileira,
que será ao longo do documento descrita, “coordenar os anseios e os esforços” das Forças
Armadas. Dessa forma, mais do que simplesmente manifestarem sua inconformidade, os
autores de LEEX visam a representar toda a corporação militar, tendo em vista que, nesse
documento, eles pretendem expressar as motivações desses “anseios” dos militares
brasileiros. Na seqüência do escrito:
90
Segundo René Dreifuss, o documento LEEX é de autoria dos seguintes militares: “É interessante observar
que o autor desse documento foi o General Ulhoa Cintra, e que o General Cordeiro de Farias conferiu seu
rascunho (...). O General Castello Branco também conferiu o esboço básico e introduziu algumas
modificações” (DREIFUSS, 1981, p. 401).
319
Esse grande número de militares, com propósito de salvaguardar as instituições
democráticas, defender as tradições cristãas do nosso Povo e fazer respeitar os
postulados fundamentais da Constituição livremente debatida, estruturada e
promulgada em 1946 pelos legítimos representantes do Povo Brasileiro, decidiu
agir para que possam ser evitadas ações e manifestações parciais e isoladas, que
só viriam a favorecer a minoria ativa e atrevida que procura agitar a Nação em
busca de uma oportunidade para a implantação de um regime político de feição
nitidamente comunista.
Assim, neste trecho, são expressos três “propósitos” do “grande número de militares”
responsáveis pelo documento, a saber: 1) “salvaguardar as instituições democráticas”; 2)
“defender as tradições cristãas do nosso Povo” e; 3) “fazer respeitar os postulados
fundamentais da Constituição livremente debatida, estruturada e promulgada em 1946 pelos
legítimos representantes do Povo Brasileiro”. Princípios, segundo esses militares,
ameaçados por grupos que buscam “a implantação de um regime político de feição
nitidamente comunista”. Os militares afirmam ainda que decidiram agir, de forma coesa e
coordenada, para evitar com que outros militares bem intencionados, em relação aos três
propósitos acima, tomem atitudes “parciais” e “isoladas”, o que só viria a favorecer os
agitadores, chamados pelos autores de “minoria ativa e atrevida (...) de feição nitidamente
comunista”. Continuando o manifesto:
O falso “nacionalismo” apregoado pelos agitadores não chega a encobrir a base
marxista-leninista em que se apoiam suas convicções, impregnadas do bafio que
de longe denuncia o materialismo dialético.
Lembremo-nos que só depois de consumada a traição em Cuba e de
miseravelmente abatidos os que se deixaram iludir, só depois de virtualmente
extintas quaisquer possibilidades de reação, proclamou o ditador cubano o
sentido-marxista-leninista da revolução que encabeçara.
A dissimulação e a traição são as armas preferidas pelos cripto-comunistas.
Neste excerto, são elencadas mais características dos grupos aos quais os militares
constituem como sendo antagônicos ao seu discurso. São chamados genericamente de
320
“agitadores” dotados de um discurso de “falso ‘nacionalismo’”, pois que encobertos por
convicções “marxista-leninistas”.
Nesse particular, é importante caracterizar as razões que sustentam o argumento
militar do “falso ‘nacionalismo’”. Os chamados grupos de esquerda, tidos pelos militares
como “comunistas”, “marxista-leninistas”, defendiam propostas políticas as quais eles
próprios denominavam nacionalistas. Vários grupos políticos podem ser elencados nesse
rol: a Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), a União Nacional dos Estudantes (UNE), a
União Brasileira dos Estudantes Secundários (UBES), o Comando Geral dos Trabalhadores
(CGT), as Ligas Camponesas e o Pacto de Unidade e Ação (PUA), para citar os mais
conhecidos. Destaque especial pode-se atribuir à Frente de Mobilização Popular (FMP)
91
,
liderada por Leonel Brizola, que teve participação ativa nas manifestações das chamadas
“pró-reformas de base” em março de 1964, mormente no Comício da Central do Brasil, no
Rio de Janeiro. Elencados os principais grupos antagônicos e ditos pelos militares como
sendo “falsos nacionalistas”, a questão que resta responder é a seguinte: por que esses
grupos eram assim nomeados?
91
Algumas informações adicionais são importantes de serem destacadas acerca da Frente de Mobilização
Popular (FMP), conforme verbete do Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro: “movimento nacionalista
surgido em 1962 com o objetivo de pressionar em favor da implementação das chamadas reformas de base
(agrária, urbana, tributária, bancária e constitucional). Liderada pelo governador do Rio Grande do Sul Leonel
Brizola, congregou representantes de organizações como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), o Pacto
de Unidade e Ação (PUA), a União Nacional dos Estudantes (UNE) e a União Brasileira dos Estudantes
Secundários (UBES), além de elementos da Frente Parlamentar Nacionalista (FPN) e de entidades
camponesas e feministas como a Frente Nacionalista Feminina. (...) Alguns de seus integrantes eram também
ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB)” (DHBB, 2001, p. 2394).
321
Aqui é interessante enfocar que existe, na verdade, uma disputa discursiva acerca do
que naquele contexto seria realmente ser “nacionalista”. Para os grupos de esquerda, ser
nacionalista significava lutar pelas chamadas reformas de base (agrária, urbana, tributária,
bancária e constitucional), uma vez que, segundo seu discurso, seriam reformas
direcionadas ao povo brasileiro mais necessitado. Já, para os oficiais militares que
escreveram o documento em análise, ser nacionalista representava necessariamente pensar
o Brasil a partir das características políticas historicamente praticadas, portanto, ser
“anticomunista”, “antimarxista-leninista”. A razão desse outro sentido “nacionalista” é o
fato de que doutrinas políticas marxista-leninistas representavam programas políticos
estrangeiros, de realidades estranhas à do Brasil. Na acepção dos militares, nesse sentido, é
que eles caracterizam os movimentos acima destacados como “falsos nacionalistas”. A
questão da “falsidade” é destacada no texto em apreço duplamente na passagem “o falso
‘nacionalismo’ apregoado pelos agitadores”, ou seja, não basta somente o vocábulo “falso”,
mas a própria palavra “nacionalismo” encontra-se entre aspas, denotando-se a importância
de deixar bem caracterizada a “falsidade” do discurso antagonizado. É interessante também
caracterizar a ojeriza que os militares têm domaterialismo dialético”, quando utilizam a
palavra “bafio” para caracterizá-lo, ou seja, conforme o Dicionário Houaiss, “bafio”
significa “cheiro peculiar ao que é ou está úmido ou privado de renovação do ar; bolor,
mofo”, ou seja, conforme o documento, as convicções dos “falsos nacionalistas” estão
“impregnadas” do “bolor”, do “mofo” do “materialismo dialético”.
Além disso, segundo os militares, outra característica peculiar dos “comunistas” é a
“traição”. Para ilustrar tal afirmação, eles se valem da experiência da revolução cubana, na
322
qual o regime “marxista-leninista” só foi implantado no país pelo ditador quando todas as
possibilidades de reação contrárias haviam sido extintas, ou seja, denota-se aqui que o povo
cubano foi “traído” pelos comunistas de seu país, que só assim se revelaram quando nada
mais havia para ser feito para depô-los. Finalizam o trecho com a seguinte afirmação,
ressaltando o caráter “cripto”, ou seja, “oculto” da ação dos traidores comunistas: “a
dissimulação e a traição são as armas preferidas pelos cripto-comunistas”. Segue o
documento:
2 – Antes de mais nada é essencial deixar bem claro que não é nosso intuito
tramar a destituição do atual govêrno, nem substituí-lo por um regime de fôrça
extra-constitucional. O desejo que nos anima é o do mais absoluto respeito à
Ordem, à Constituição e às Liberdades nela consubstanciadas. Desejamos que os
atuais dirigentes cheguem ao têrmo do mandato sem conspurcação do regime
democrático-representativo, sem a amputação das linhas mestras que
caracterizam a forma de govêrno profundamente enraizada na índole e nas
tradições do Brasil.
Propugnamos, como é de nosso Dever, pelo respeito ao livre exercício dos
Poderes Constitucionais que compõem a estrutura do regime, sem quebra das
atribuições, devêres e prerrogativas que lhe são inerentes.
Somos uma Fôrça ao serviço da Pátria e temos bem presente as imposições
contidas na letra e no espírito dos artigos 176 e 177 da Constituição Federal, que
fixam a obediência das Fôrças Armadas ao Presidente da República, dentro,
porém, dos limites da Lei, que expressamente determina: “Destinam-se as
Fôrças Armadas a defender a Pátria [apagado] Poderes Constitucionais, a Lei e a
Ordem”. (Art. 177 da Constituição da República).
E os Poderes Constitucionais, além do Executivo, compreendem também o
Legislativo e o Judiciário.
Não somos, pois, uma fôrça inconsciente a serviço de minorias políticas
esquerdistas que transitòriamente e por sucessos imprevistos se tenham infiltrado
em um dos Poderes e, acobertadas por ardis e facilidades que lhes proporcionam
um falso e elástico exercício dêsse Poder, pretendam subverter o regime social
livremente escolhido e adotado pelo Povo Brasileiro, para substituí-lo por um
outro de feição comunista, sindicalista, síndico-comunista, castrista ou
“naciocomunista”.
Neste longo trecho destacado, os militares iniciam afirmando que sua intenção não é a
de “destituir” o atual governo, sendo o desejo que os anima é o de “o do mais absoluto
respeito à Ordem, à Constituição e às Liberdades nela consubstanciadas”. Alegam ainda
323
que são obedientes ao presidente da República nos termos da Constituição Federal então
vigente. Contudo, utilizam o mesmo diploma legal para afirmar que a sua obediência ao
presidente está limitada ao cumprimento da lei por esse, ou seja, entre o presidente e a lei,
os militares optam pela segunda, o que é uma opção natural num regime democrático, diga-
se de passagem. Afirmam ainda que são defensores dos “Poderes Constitucionais”,
lembrando que além do Executivo, estão presentes o Legislativo e o Poder Judiciário. Isso
quer dizer que os militares estarão do lado da lei e dos Poderes que assim a ela se
colocarem e contra aqueles que a ela se opuserem, o que também parece razoável do ponto
de vista de um estado democrático de direito.
É claro que aqui também se está diante de uma outra batalha discursiva, ou seja, a que
estabelece quem está realmente de acordo com a lei, sejam os “esquerdistas infiltrados” no
Poder Executivo, sejam os militares elaboradores deste documento. Nesse ponto, é
fundamental reafirmar que a disputa pelo que é legal e pelo que é legítimo é uma disputa
constante ao longo de todo o período do governo Goulart. O golpe dos militares de 31 de
março não foi dado sem que os mesmos encontrassem os meios entendidos por eles
próprios como os legítimos. Pelo contrário: o movimento teve como fator “legitimador” o
fato de que, no governo Goulart, elementos “comunistas” estavam levando o país a uma
situação “caótica”, “anárquica”, “inconstitucional”, “imoral”, “contra a fé cristã do povo
brasileiro”. Eles, na condição de defensores da nação brasileira, nos termos da Constituição
Federal, tinham o dever de barrar o avanço dessas “forças desordeiras”. Deveriam, assim,
se necessário, inclusive que depor o presidente da República, eleito pelo próprio povo ao
qual os militares diziam estar defendendo, ou seja, os militares de 1964 estavam fazendo
324
uma “viagem redonda” a 1961, uma vez que o argumento da legalidade militar permanecia
rigorosamente o mesmo. Na seqüência do LEEX:
O papel das Fôrças Armadas é o de assegurar os Poderes Constituidos dentro dos
limites da Lei, e o pleno funcionamento das regras constitucionais que, no jôgo
de pesos e contrapesos, regulam a independência e a harmonia entre os Poderes.
É indispensável que a estrutura política da Nação funcione em tôda a plenitude,
maxime nos momentos de crise em que se faz mister assegurar as liberdades
democráticas e as tradições cristãs de nosso Povo. E o próprio texto da
Constituição consubstancia as medidas que em tais circunstâncias devem ser
postas em prática.
Todos desejamos que o atual govêrno cumpra o seu mandato com o maior
respeito às Leis, às Liberdades democráticas e à autonomia dos Estados. Todos
desejamos que as eleições se processem livremente nos prazos estipulados e que
os novos mandatários de cargos eletivos sejam empossados na mais rigorosa
forma da Lei.
3 – O que há, porém, na consciência de todos os militares de formação
democrática é o justificado recêio de que certos setores governamentais, através
de fraudulento e austucioso exercício de prerrogativas, venham por fim destruir
a ordem social e a democracia representativa, de profundas raizes na vida
brasileira.
Na passagem acima, os autores do documento reafirmam o desejo de que a ordem
político-institucional permaneça no país, que o mandato do atual presidente siga até o fim e
que o próximo governo eleito seja empossado nos ditames democráticos. Contudo, afirmam
que determinados setores infiltrados no Poder Executivo estão a promover “fraudulento e
austucioso exercício de prerrogativas”, tendentes, portanto a “destruir a ordem social e a
democracia representativa, de profundas raizes na vida brasileira”. Na seqüência, elencam
as razões relacionadas aos contextos econômico, político e institucional que justificam o
“receio militar”:
E não se diga que se trata de receios infundados.
As manobras que vêm sido postas em prática, sem quaisquer escrúpulos deixam
a Nação atônita, estarrecida e angustiada.
325
A agitação dirigida das massas operárias dos centros urbanos e meios rurais com
o propósito de arregimentá-las, aliciá-las, excitá-las e conduzi-las a seu bel
prazer; as ameaças aos Poderes Legislativo e Judiciário, com o fim de torná-los
dóceis aos seus designios; a pregação aberta de soluções revolucionárias, através
da imprensa, do rádio e da televisão, por políticos de notórias vinculações
extremistas, que chegam mesmo a prescrever minúcias de organização de fôrças
sediciosas e recomendar as formas de luta a empreender; a omissão sistemática
das autoridades responsaveis pela preservação da ordem social e do regime; a
constante ameaça de intervenção em alguns Estados, cujos Executivos
constituem entraves ao processo de bolchevização do País; a tentativa de
denegrir e empenhar a fôrça militar na execução de missões ilegais e criminosas;
o estímulo à baderna e à rebelião de inferiores e o ulterior procedimento de
certas autoridades visando a tolher a ação do Poder Legislativo; o prêmio
imediato aos que tiveram a franqueza de vencer as últimas resistências morais e
perpretar os atos que lhes foram propostos ou insinuados; a subverção dos
valores profissionais e morais, que mais se evidencia por ocasião das promoções
e classificações; o ambiente de terror e de pânico que se procura semear no País
com o desencadeamento de ilegais e generalizadas greves políticas, associadas à
sonegação de alimentos e paralização de serviços públicos essenciais; todos
êsses fatos estão bem vivos na consciência da Nação e dispensam digressões
elucidativas.
O que há na consciência de todos é a repulsa à política de empreguismo e
corrupção, aos demandos administrativos e à malversação dos fundos públicos
que, só nas negociatas de café, ampla e recentemente divulgadas, atingem cifras
astronômicas.
O que há no íntimo de todos é o repúdio à entrega da gigantesca emprêsa estatal
de petróleo aos comunistas, que a transformaram num monstruoso reduto de
pregação revolucionária e cujos escândalos, de proporções inauditas, deixam o
País estarrecido, numa antevisão da capacidade destruidora e da falta de
escrúpulos dos que pretendem assaltar o Poder.
Aliadas às razões relacionadas aos contextos econômico, político e institucional que
justificam o “receio militar”, o documento elenca ainda as de cunho propriamente militar,
conforme trecho abaixo transcrito:
O que as Fôrças Armadas sentem é o sorrateiro processo de desmoralização em
que vêm sendo mergulhadas, já por efeito da afrontosa organização síndico-
comunista – que até por autoridades de responsabilidade é cognominada de V
Exército – já em virtude de demagógica anarquia salarial que, com o sacrifício
de muitos, elege novas e privilegiadas classes sociais, já pelas duras condições
de vida que decorrem da galopante inflação e dos insuficientes reajustamentos
de soldo, que acabaram por impor aos militares toda a sorte de privações e
vexames.
O que as Fôrças Armadas repelem é o processo de decomposição a que vêm
sendo submetidas com a conivência de maus brasileiros, que se sobrepõem aos
interêsses da Nação e das instituições a que pertencem em troca da satisfação de
interêsses exclusivamente pessoais.
326
O que as Fôrças Armadas não aceitam é o jogo que se tente pôr em prática para
lançar a cizânia entre os seus componentes, solapar-lhes a disciplina, destruir-
lhes a eficiência, aniquilá-las e, por fim, substituí-las por um arremedo de
exército vermelho ou de milícia cubana.
Nos dois excertos acima, os autores do LEEX afirmam categoricamente todas as suas
razões para que uma vigilância ou mesmo uma ação militar seja empreendida para reprimir
os causadores desse “ambiente de terror e de pânico que se procura semear no País”. Os
motivos, como se buscou dividi-los em dois blocos, são claramente de duas naturezas. A
primeira, de caráter mais geral, vai desde as agitações esquerdistas nos centros urbanos até
a Petrobrás transformada em reduto de pregação revolucionária comunista. A segunda,
mais intimamente ligada às Forças Armadas como organização, vai desde os baixos salários
até a própria aniquilação das mesmas como forças regulares nos padrões até então
conhecidos pelos militares que escrevem o documento em análise. Assim, nesses dois
parágrafos, ficam configurados claramente os “diagnósticos de desordem” sob dois
aspectos: um de ordem político-institucional-social e o outro concernente à crise nas Forças
Armadas como instituição. Após elencar os elementos que constituem os “diagnósticos de
desordem”, os militares passam a expressar a “solução de ordem”, conforme trecho a seguir
transcrito:
4 – Soldados verdadeiramente democratas, estamos vivamente empenhados
numa vigorosa ação de vigilância e determinados a reprimir, com o sacrifício da
própria vida, quaisquer tentativas de implantação de um regime de fôrça no País:
comunista, sindicalista, síndico-comunista, castrista, “naciomunista” ou
fascistóide.
Com essa finalidade e para que possa haver uma ação conjunta e eficiente que
nos assegure unidade de vistas e comunhão de esforços, procuramos agora
ultimar criterioso levantamento dos meios com que poderemos contar na hora
decisiva, se a tanto nos conduzirem as ambições de alguns, a concupiscência de
outros, a insensatez e a irresponsabilidade de muitos.
327
A prezado camarada, cujas convicções democráticas são bem conhecidas, assim
como os ideais e traços de ilibado caráter, a par da certeza de suas atitudes
criteriosas, discretas e viris, pedimos a preciosa colaboração no sentido de nos
auxiliar nessa reunião e articulação dos meios de que dispomos para enfrentar o
processo revolucionário com que nos ameaçam.
Na discrição, na habilidade e no senso de responsabilidade do prezado camarada
repousa uma parcela do êxito de nosso empreendimento.
Agora, mais do que nunca, a Nação tem necessidade de um corpo de Oficiais do
mais alto padrão moral, de espírito forte e decidido, cônscios das
responsabilidades que o atual momento lhes faz pesar sôbre os ombros. Da
compreensão do perigo que se avizinha e da ação viril de seus oficiais dependerá
o futuro dos nossos filhos, os destinos da nossa Pátria.
A Nação angustiada tem certeza de que o EXÉRCITO CUMPRIRÁ
HONRADAMENTE O SEU DEVER.
As ações possíveis e específicas tendentes a uma “solução de ordem” são
genericamente expressas no LEEX. Entretanto, pelo seu contexto, é plausível afirmar que
um movimento militar para a deposição de João Goulart, mesmo sendo uma atitude
extrema do ponto de vista institucional, era perfeitamente aceitável pelos autores do
presente documento. A “solução de ordem” é a supressão política dos elementos
comunistas tanto no governo federal como nos movimentos acima mencionados para que a
ordem político-institucional seja restabelecida. Não há, com base neste documento,
possibilidade de denotar a existência de um plano estratégico de ação política dos militares.
O que há é a necessidade de repelir os “comunistas” e “quaisquer tentativas de implantação
de um regime de fôrça no País”: “comunista”, “sindicalista”, “síndico-comunista”,
“castrista”, “naciomunista” ou “fascistóide”. E, se Goulart se opuser a tal intento, será
também repelido. De fato o foi em 31 de março.
328
8.3 A fundamental tomada de posição do General Humberto de Alencar Castello
Branco em nome do movimento de março
Humberto Castello Branco, chefe do Estado-Maior do Exército, era visto pelos
militares conspiradores como uma figura política indispensável para o sucesso do golpe,
tendo em vista a posição de destaque e de respeito que gozava no seio das Forças Armadas.
Silva (1975), fazendo referência ao documento que será analisado nesta seção, ilustra bem a
importância do general Castello naquele contexto pré 31 de março:
A posição do Gen. Humberto Castelo Branco era da maior importância. Chefe
do Estado-Maior do Exército e, conseqüentemente, a segunda autoridade na
hierarquia militar, ele era ainda, nesse momento, depositário da confiança do
Presidente da República e do Ministro da Guerra. Por isso, nos meios oficiais,
seu pronunciamento causou forte impressão mas foi admitido, apesar da dureza
de seus conceitos, como um toque de reunir e um sinal de alerta. Nos círculos da
conspiração, todavia, já o Chefe do Estado-Maior era tido como o pólo do
movimento e o agente catalizador dos vários movimentos preparatórios. Assim,
sua fala foi tida como o sinal de que a revolução ia ser deflagrada (SILVA, 1975,
p. 344).
Assim, neste momento, será analisado o ofício, datado de 20 de março de 1964,
expedido pelo general Castello Branco aos generais e demais militares do Estado-Maior do
Exército e das organizações subordinadas, que inicia desta forma
92
:
MINISTÉRIO DA GUERRA
ESTADO MAIOR DO EXÉRCITO
RIO, 20 DE MARÇO DE 1964
92
Será analisado o teor do documento a partir do original depositado no CPDOC/FGV. É possível encontrar o
referido documento ainda em Silva (1975, p. 342-344) e em Bonavides e Amaral (2002, Vol. VII, doc. 307.6).
329
Do Gen Ex HUMBERTO DE ALENCAR CASTELLO BRANCO, Chefe do
ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO
Aos Exmos Srs Generais e demais militares do ESTADO-MAIOR DO
EXÉRCITO e das ORGANIZAÇÕES SUBORDINADAS.
Compreendo a intranqüilidade e as indagações de meus subordinados nos dias
subseqüentes ao comício de 13 do corrente mês. Sei que não se expressam
sòmente no Estado-Maior do Exército e nos setores que lhe são dependentes,
mas também na tropa, nas demais Organizações e nas duas outras corporações
militares. Delas participo e elas já foram motivo de uma conferência minha com
o Excelentíssimo Senhor Ministro da Guerra.
O primeiro elemento importante a se fazer menção diz respeito a quem foi endereçado
o ofício em análise. O mesmo teve como destinatários somente militares. Esse dado é
importante, tendo em vista de que se tratava de um documento elaborado pelo Chefe do
Estado-Maior do Exército exclusivamente aos seus subordinados acerca de um assunto que,
nos termos no trecho em análise, interessava a todos os membros não somente do Exército,
mas das Forças Armadas como um todo.
O assunto do documento é exato. O mesmo aborda a “intranqüilidade e as indagações
de meus subordinados nos dias subseqüentes ao comício de 13 do corrente mês” (Comício
da Central do Brasil). Afirma que tal “intranqüilidade” e tais “indagações” estão presentes
entre os membros das Forças Armadas no seu conjunto. Após isso, o general inclui-se entre
os seus intranqüilos colegas de farda: “delas participo e elas já foram motivo de uma
conferência minha com o Excelentíssimo Senhor Ministro da Guerra”, o que denota um
sentido de que realmente a “intranqüilidade” e as “indagações” decorrentes do referido
comício realmente afetavam inclusive a cúpula do Exército brasileiro. Continua o
documento:
330
São evidentes duas ameaças: o advento de uma Constituinte como caminho para
a consecução das reformas de base e o desencadeamento em maior escala de
agitações generalizadas do ilegal poder do CGT. As Fôrças Armadas são
invocadas em apoio a tais propósitos.
Dois pontos serão especialmente destacados no ofício de Castello Branco a fim de
melhor exemplificar os sentimentos militares: a) o advento de uma constituinte para as
reformas de base e; b) o “desencadeamento em maior escala de agitações generalizadas do
ilegal poder do CGT”.
Em relação ao primeiro ponto, ou seja, a convocação de uma assembléia nacional
constituinte para reformar a Constituição de 1946, no sentido de implementar as reformas
de base, tal era a proposta dos grupos “nacionalistas de esquerda”, uma vez que esses não
acreditavam que mudanças políticas estruturais como, por exemplo, a reforma agrária,
fossem possíveis com a então composição do Congresso Nacional, tida por eles como
“conservadora”. O comício, nesse sentido, serviu como forma de pressionar politicamente
nesse sentido.
Intimamente ligado ao primeiro ponto, o segundo dizia respeito ao “desencadeamento
em maior escala de agitações generalizadas do ilegal poder do CGT”. O Comando Geral
dos Trabalhadores (CGT) era um dos órgãos políticos da “esquerda nacionalista” que
pressionava pelas reformas de base. O próprio Comício da Central do Brasil teve o CGT
com um dos seus principais articuladores. O que o general Castello Branco questionava
nesse ponto eram as “agitações generalizadas” que estavam sendo promovidas por esse
órgão que atuava com o status jurídico considerado ilegal. Assim, mesmo na ilegalidade, o
331
Comando Geral dos Trabalhadores atuava livremente naquele contexto político. O que
preocupava o general Castello era o fato de que, mesmo sendo a organização intersindical
ilegal, ela continuava em plena atividade, inclusive, como já foi mencionado, promovendo
o Comício da Central do Brasil e mais: tal ação, contou com a presença e com o discurso,
inclusive, do presidente da República. Nesse sentido, mesmo na ilegalidade, a ação do CGT
era não somente tolerada pelo chefe do Poder Executivo, como também apoiada, tendo em
vista a participação de João Goulart e de seus ministros, inclusive os militares, no referido
Comício. Na seqüência do ofício:
Para o entendimento do assunto, há necessidade de algumas considerações
preliminares.
Os meios militares nacionais e permanentes não são pròriamente para defender
programas de Govêrno, muito menos a sua propaganda, mas para garantir os
poderes constitucionais, o seu funcionamento e a aplicação da lei.
Não estão institutos para declararem solidariedade a êste ou àquele poder. Se
lhes fosse permitida a faculdade de solidarizar-se com programas, movimentos
políticos ou detentores de altos cargos, haveria, necessàriamente, o direito de
também se oporem a uns e a outros.
Relativamente à doutrina que admite o seu emprêgo como fôrça de pressão
contra um dos poderes, é lógico que também seria admissível voltá-la contra
qualquer um deles.
Não sendo milícia, as Fôrças Armadas não são armas para empreendimentos
antidemocráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e a sua
coexistência.
Nesse trecho, o general busca definir as atribuições constitucionais das Forças
Armadas. Nesse sentido, elas servem para “garantir os poderes constitucionais, o seu
funcionamento e a aplicação da lei”, ou seja, as Forças Armadas devem garantir o pleno
funcionamento desses poderes no âmbito do estado democrático de direito, uma vez que a
norma jurídica assim prescreve. Continua o general, afirmando que as Forças Armadas,
nesse sentido, não podem servir como “fôrça de pressão contra um dos poderes”. Sendo
332
assim, é “lógico que também seria admissível voltá-la contra qualquer um deles”. Nesse
ponto, Castello Branco afirma claramente que as Forças Armadas, constitucionalmente, não
podem ser empregadas por qualquer Poder contra os outros, numa hipotética alusão ao
emprego dessas pelo Executivo para fechar o Legislativo e promover uma assembléia
nacional constituinte para implementar à força as reformas de base.
Nesse sentido, a passagem “é lógico que também seria admissível voltá-la contra
qualquer um deles”, significa que se as Forças Armadas fossem uma “milícia” ou um
exército particular a serviço de um partido, elas poderiam, inclusive, voltar-se contra o
próprio Poder Executivo, tendo em vista que está claro que a inclinação ideológica de
muitos de seus generais é francamente contrária ao entendimento dos grupos da esquerda
nacionalista, que apóiam e mantêm quadros no interior do governo Goulart. Castello
Branco, nesse ponto, nitidamente está “ameaçando” o governo federal. O argumento é
simples: se as Forças Armadas forem solicitadas na condição de milícias em nome de
ideologias de qualquer partido, organização ou poder, elas se voltarão contra os que assim
pensam: “não sendo milícia, as Fôrças Armadas não são armas para empreendimentos
antidemocráticos. Destinam-se a garantir os poderes constitucionais e a sua coexistência”.
Seguindo o documento:
A ambicionada Constituinte é um objetivo revolucionário pela violência com o
fechamento do atual Congresso e a instituição de uma ditadura.
A insurreição é um recurso legítimo de um povo. Pode-se perguntar: o povo
brasileiro está pedindo ditadura militar ou civil e Constituinte? Parece que ainda
não.
Entrarem as Fôrças Armadas numa revolução para entregar o Brasil a um grupo
que quer dominá-lo para mandar e desmandar e mesmo para gozar o poder? Para
garantir a plenitude do grupamento pseudo-sindical, cuja cúpula vive na agitação
333
subversiva cada vez mais onerosa aos cofres públicos? Para talvez submeter a
Nação ao comunismo de Moscou? Isto, sim, é que seria antipátria, antinação e
antipovo.
Não. As Fôrças Armadas não podem atraiçoar o Brasil. Defender privilégios de
classes ricas está na mesma linha anitdemocrática de servir a ditaduras fascistas
ou síndico-comunistas.
O excerto começa fazendo nova referência ao fato de que um possível fechamento do
Congresso Nacional, tendo em vista que a convocação de uma constituinte, é um processo
“revolucionário” e, portanto, inconstitucional, por frontalmente subverter a ordem
institucional vigente. Afirma ainda que a insurreição popular é um ato legítimo, mas que
não vê as condições de emergência de algo nesse sentido. Defende, também, que nem uma
assembléia constituinte estava sendo, naquele momento, requerida pelo povo brasileiro. É
interessante ainda indicar que o general atribuía a capacidade dele próprio saber o que o
povo brasileiro pensava, no seu conjunto, naquele instante.
Contudo, o ponto que parece mais importante no trecho em análise diz respeito à já
referida disputa discursiva acerca do “nacionalismo”. Castello Branco renova esse debate,
opondo as duas posições em disputa. A primeira delas, a qual ele se antagoniza, afirma que
ser nacionalista é ser sensível às demandas populares e que a ideologia comunista é a mais
adequada para tornar realidade tal preocupação. A segunda delas, ou seja, a posição
ideológica assumida pelo general, defende que ser nacionalista é agir politicamente de
acordo com os padrões políticos estritamente brasileiros, quando afirma que “submeter à
Nação ao comunismo de Moscou” é “antipátria, antinação e antipovo”. Conclui o excerto
dizendo que as Forças Armadas não podem “atraiçoar o Brasil”, no sentido de que qualquer
ação fora dos trâmites legais seria uma forma de traição, tendo em vista que o general
334
atribuía que o povo brasileiro não queria naquele momento qualquer tipo de insurreição
contra o status quo. Continua o documento:
O CGT anuncia que vai promover a paralisação do país, no quadro do esquema
revolucionário. Estará configurada provàvelmente uma calamidade pública. E há
quem deseje que as Fôrças Armadas fiquem omissas ou caudatárias do comando
da subversão.
Parece que nem uma cousa nem outra. E, sim, garantir a aplicação da lei, que
não permite, por ilegal, movimento de tamanha gravidade para a vida da nação.
Neste ponto, fica clara a posição política tomada por Castello Branco. Se o CGT,
também por ele chamado de “comando da subversão”, “promover a paralisação do país, no
quadro do esquema revolucionário”, as Forças Armadas reagirão contrariamente, tendo em
vista que a elas cabe a manutenção da lei e da ordem no país e um ato como esse, de
“tamanha gravidade”, configuraria um desrespeito à normalidade institucional no Brasil.
Finalizando o manifesto:
Tratei da situação política sòmente para caracterizar a nossa conduta militar.
Os quadros das Fôrças Armadas têm tido um comportamento, além de legal, de
elevada compreensão face a dificuldades e desvios próprios do estágio atual da
evolução do Brasil. E mantidos, como é de seu dever, fiel à vida profissional, à
sua destinação e com continuado respeito a seus Chefes e à autoridade do
Presidente da República.
É preciso aí perseverar, sempre “dentro dos limites da lei”. Estar pronto para a
defesa da legalidade, a saber, pelo funcionamento integral dos três poderes
constitucionais e pela aplicação das leis, inclusive as que asseguram o processo
eleitoral, e contra a revolução para a ditadura e a Constituinte, contra a
calamidade pública a ser promovida pelo CGT e contra o desvirtuamento do
papel histórico das Fôrças Armadas.
O Excelentíssimo Senhor Ministro da Guerra tem declarado que assegurará o
respeito ao Congresso, as eleições e a posse do candidato eleito. E já declarou
também que não haverá documentos dos Ministros Militares de pressão sôbre o
Congresso Nacional.
É o que eu tenho a dizer em consideração à intranqüilidade e indagações
oriundas da atual situação política e a respeito da decorrente conduta militar.
ASSINA
GENERAL DE EXÉRCITO HUMBERTO DE ALENCAR CASTELLO
BRANCO
335
CHEFE DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO.
Neste trecho final, o general Castello Branco afirma que será mantido pelas Forças
Armadas o respeito à autoridade do presidente da República, ressaltando-se, contudo, que
sempre “dentro dos limites da lei” e “pelo funcionamento integral dos três poderes
constitucionais”. Isso quer dizer, notadamente, que, caso o presidente se opuser, de alguma
forma, ao que Castello Branco está chamando genericamente de cumprimento da lei e do
funcionamento dos três poderes constitucionais, as Forças Armadas não hesitarão em conter
uma investida nesse sentido. Em outras palavras, mesmo considerando a legalidade de tal
ato, o general está ameaçando o presidente da República, seu superior, num ato que pode
ser chamado de insubordinação, justamente o que os militares de alta patente das Forças
Armadas estavam reclamando do presidente da República em relação à “rebelião dos
sargentos” de 1963. Afirma ainda, exemplificando a idéia de manutenção da legalidade
constitucional, sua posição contrária à “revolução para a ditadura e a Constituinte”, assim
como ao CGT, posições defendidas por membros da esquerda nacionalista que apoiavam
João Goulart.
É interessante também iluminar a seguinte passagem do documento: “o
Excelentíssimo Senhor Ministro da Guerra tem declarado que assegurará o respeito ao
Congresso, as eleições e a posse do candidato eleito. E já declarou também que não haverá
documentos dos Ministros Militares de pressão sôbre o Congresso Nacional”. Neste excerto
está claro que o ministro da Guerra assegurará “o respeito ao Congresso, as eleições e a
posse do candidato eleito”. A pergunta que se faz necessária nesse instante é a seguinte: por
336
que, tendo em vista um pretenso discurso legalista, um ministro da Guerra deve preocupar-
se com assuntos que são de exclusiva competência da esfera política? Não se pode também
nesse ponto inferir outro tipo de ameaça sobre o presidente da República? Onde está o
respeito aos limites da lei, enunciado nesse mesmo trecho? Castello Branco informa ainda
que o mesmo ministro afirma “que não haverá documentos dos Ministros Militares de
pressão sôbre o Congresso Nacional”, numa alusão ao “Manifesto dos Ministros Militares”
de agosto de 1961. Assim, o documento finaliza com uma clara ameaça ao presidente da
República de que se ele não se livrar dos grupos esquerdistas que o apoiavam, seu poder
seria colocado em xeque pelas Forças Armadas.
8.4 O manifesto dos almirantes acerca do motim dos marinheiros
Neste momento, será tratada a repercussão, nos meios da oficialidade, do episódio que
ficou conhecido como a “Revolta dos marinheiros”. Essa revolta foi vista como o segundo
grande exemplo de insubordinação militar
93
. As reivindicações dos marinheiros, que se
amotinaram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro, em 25 de março de
1964, sob o comando de José Anselmo dos Santos, conhecido como cabo Anselmo, eram: o
93
O primeiro, conhecido como a “Revolta dos Sargentos”, ocorreu em 3 de setembro de 1963 no âmbito do
Exército. Conforme Silva, “no dia 3 de setembro de 1963 houvera um levante em Brasília quando seiscentas
praças da guarnição militar do Distrito Federal insurgiram-se contra a cassação dos mandatos eletivos dos
sargentos pelo Supremo Tribunal Federal. O movimento foi prontamente sufocados e os sargentos e os
soldados que os acompanharam foram presos (...)” (1975, p. 355). Um projeto, junto à Mesa da Câmara dos
Deputados, foi apresentado pelo deputado Adão Pereira Nunes para anistiar os revoltosos. Contudo, segundo
337
reconhecimento da Associação dos Marinheiros e dos Fuzileiros Navais, a melhoria da
alimentação nos navios e quartéis e a reformulação do regulamento disciplinar da Marinha
(DHBB, 2001). A revolta terminou no dia seguinte, sendo os marinheiros presos e, logo
após, anistiados por João Goulart. “Essa anistia foi criticada por sucessivos manifestos da
alta oficialidade, agravando ainda mais a crise na área militar” (DHBB, 2001, p. 4992).
Nesse sentido, o Manifesto dos Almirantes será analisado nesta seção
94
. Na sua primeira
parte:
À nação, ao Congresso Nacional, às assembléias, aos governadores, aos chefes
militares e a todos os cidadãos:
Alertamos o povo nós, almirantes, comandantes e oficiais da Marinha para o
golpe aplicado contra a disciplina na Marinha, ao admitir-se que minoria
insignificante de subalternos imponha a demissão de ministros e autoridades
navais e se atreva a indicar substitutos. Em lugar de promover-se a devida
punição disciplinar, licenciam-se marinheiros amotinados que não representam
absolutamente os dignos suboficiais, sargentos, marinheiros, fuzileiros, que em
compacta maioria continuaram e continuam fiéis ao seu juramento de disciplina
e de dedicação à Marinha. O que este golpe representa de ameaça a todas as
instituições do país está patente, na forma e na essência, e só nos resta alertar a
nação para que se defenda, enquanto estão de pé as instituições e os cidadãos
dignos da liberdade e da pátria. Continuamos unidos e dispostos a resistir por
todos os meios ao nosso alcance às tentativas de comunização do país.
Neste excerto, os dois principais motivos para a deflagração do golpe militar estão
presentes e intimamente relacionados. O primeiro deles, e mais insistentemente tratado no
trecho, a indisciplina, toca direto na espinha dorsal de qualquer organização militar, a qual
não está constituída tendo por base preceitos democráticos, mas que erige suas bases na
hierarquia e no respeito ao membro mais graduado. Independentemente dos excessos que
ocorrem nesse tipo de organização em nome da hierarquia, esse princípio é basilar e retirá-
Silva (1975), este não teve andamento, sendo por isso também a anistia dos sargentos de 1963 uma das
reivindicações do Comício da Central do Brasil.
338
lo significa o mesmo que acabar com a organização militar na forma como se conhece.
Nesse sentido, qualquer ato de insubordinação é entendido pelos oficiais como um ato a ser
reprimido, de acordo com o código de ética militar. Os marinheiros, como é demonstrado
no trecho acima, não foram devidamente punidos, na visão dos oficiais, tendo em vista eles
terem sido anistiados pelo presidente da República: “em lugar de promover-se a devida
punição disciplinar, licenciam-se marinheiros amotinados que não representam
absolutamente os dignos suboficiais, sargentos, marinheiros, fuzileiros, que em compacta
maioria continuaram e continuam fiéis ao seu juramento de disciplina e de dedicação à
Marinha”.
O segundo motivo, intimamente ligado ao primeiro, diz respeito “às tentativas de
comunização do país”. Tais tentativas, ligadas às reivindicações sindicais, camponesas, dos
grupos de esquerda em geral, segundo os militares, estavam minando também as bases da
hierarquia militar. Em outras palavras, a hierarquia militar estava sendo abalada, tendo em
vista que elementos comunistas estavam infiltrados nos quartéis instando soldados, cabos,
sargentos a se revoltarem com o intuito de desarticular as Forças Armadas. O comunismo,
nesse sentido, não era uma realidade sentida pelos altos escalões militares como existente
somente nas manifestações de rua e nos meios políticos convencionais; era uma realidade
vista também como militar, cujos reflexos representavam a quebra da ordem e da disciplina
no âmbito das Forças Armadas. Na última parte do manifesto:
94
O documento foi extraído da obra “Textos políticos da história do Brasil” (BONAVIDES e AMARAL,
2002).
339
Os amotinados que se abrigaram na sede do Sindicato dos Metalúrgicos
infringiram rudemente o Código Penal Militar, cometendo, portanto, crimes, e
não apenas transgressões disciplinares. Três crimes estão explicitamente
capitulados nos seguintes artigos do Código citado: 130, motim e revolta, Títulos
1 e 2; 133 e 134, aliciação e incitamento; e 141, insubordinação. Tendo
cometido crimes, os amotinados não poderiam ser postos em liberdade,
anistiados ou que seja pelo Presidente da República. Teriam de ser submetidos
ao Conselho de Justiça, que os condenaria ou absolveria. Pelo que o ato do
Presidente da República foi inequivocamente abusivo e ilegal.
Neste trecho, os almirantes explicitam o nível de insubordinação dos marinheiros
amotinados. Afirmam que os atos praticados não constituem somente “transgressões
disciplinares, mas crimes, tipificados no Código Penal Militar: motim, revolta, aliciação,
incitamento e insubordinação. Contudo, e certamente o mais grave, é a denúncia acerca do
desfecho do movimento. Entendendo que os marinheiros cometeram os crimes acima
elencados, os almirantes defendiam que “os amotinados não poderiam ser postos em
liberdade, anistiados ou que seja pelo Presidente da República”.
Dessa forma, duas questões importantes devem ser levadas em consideração sob a
ótica militar. A primeira delas diz respeito ao ato de insubordinação praticado,
independente do mérito e do direito daqueles que o praticaram. A segunda, e mais grave
questão, em relação ao desfecho do mesmo, diz respeito à anistia dada pelo presidente da
República aos revoltosos, o que abalou, segundo os almirantes, a estrutura da hierarquia
militar. Aliado a essa última questão, a ação do presidente da República foi acusada, no
documento em tela, de ser também criminosa, tendo em vista que ele não respeitou o
devido processo legal militar aludido no excerto, numa atitude, tida pelos autores do
manifesto, como um tipo de acobertamento de criminosos. A solução legal correta,
conforme o Código Penal Militar, conforme os almirantes era a seguinte em relação aos
340
revoltosos: “teriam de ser submetidos ao Conselho de Justiça, que os condenaria ou
absolveria. Pelo que o ato do Presidente da República foi inequivocamente abusivo e
ilegal”. Em outras palavras, Goulart, como os marinheiros, pratica atos “abusivos” e
“ilegais”, portanto, criminosos.
8.5 Considerações finais: março de 1964 e a coerência com agosto de 1961
O golpe militar de 1964 ensejou uma série de análises que se tornaram célebres na
História e nas Ciências Sociais brasileiras. O evento foi explicado de múltiplas formas, a
partir de uma série de sujeitos e foram desvendados, muitas vezes, grandes planos
conspiratórios, arquitetados com muita acuidade pelos seus executores.
Contudo, quando se dá a palavra aos próprios militares que vivenciaram aqueles
conturbados momentos da vida nacional, tem-se a impressão de que aqueles eventos não
tiveram a batuta de um maestro que comandava uma orquestra completa e afinada. Pelo
contrário, muitos militares importantes atribuem ao movimento de 1964 um arranjo
executado até de maneira muito desafinada. A impressão que dá ao ler a série de
documentos produzidos é que todos sabiam o início da música, mas não tinham a menor
idéia de como ela acabaria. Dito em outras palavras: eles sabiam muito bem o que não
queriam – Goulart no governo – o seu “diagnóstico de desordem”, mas muito pouco se
podia dizer ou prever, naquele tempo, do que se esperar do seu substituto.
341
Dessas duas músicas desencontradas – a primeira tocada por intelectuais como René
Dreifuss ou Alfred Stepan e a segunda executada pelos próprios militares quando lhes
concedem a palavra – qual delas soa melhor? Se optar-se pela versão dos militares, que
atribuem como causas suficientes do movimento o receio do comunismo e a quebra da
hierarquia e da disciplina nos quartéis, então o golpe de 1964 tem uma explicação
extremamente simplória. Inflação, paralisia decisória, multinacionais, influência norte-
americana etc, razões sobejamente usadas pelos intelectuais brasileiros e estrangeiros ao
longo de décadas parecem, diante dos simples argumentos produzidos pelos militares, uma
série de explicações que, de essenciais no passado, passam à categoria de meras conjecturas
refutadas por aqueles que realmente ocuparam os ambientes do poder. Dessa forma, se
forem considerados os argumentos dos pronunciamentos militares, tem-se uma explicação
realmente mais simples para o desencadeamento do movimento.
Inicialmente, os ministros militares de Jânio Quadros não aceitaram, desde o
momento da renúncia, a sua substituição por João Goulart, sob o argumento, simples, de
que o então vice-presidente tinha estreitas relações com elementos comunistas, como já
tinha ficado evidente quando ele havia exercido o cargo de ministro do Trabalho de Getúlio
Vargas. Os três ministros, como ficou claro nos documentos do general Odílio Denys
analisados neste capítulo, concordaram com a ascensão de Goulart na Presidência da
República somente quando sistema parlamentarista de governo foi aprovado, às pressas e
de forma casuística, pelo Congresso Nacional. Neste momento, portanto, ficou configurado,
apesar de a literatura especializada de Ciências Sociais estranhamente silenciar-se neste
ponto, um golpe branco, uma solução de continuidade. Não houve consenso entre legalistas
342
e golpistas naquele agosto de 1961. Houve, sim, a imposição de um sistema de governo
para possibilitar que Goulart assumisse sem praticamente deter qualquer poder. Estava
dado, naquele instante, o primeiro golpe, de natureza civil-militar, pois que foi arranjado
pelo Congresso Nacional com a aquiescência dos ministros militares.
Não contavam os militares conservadores, como também afirma Denys, que a
consulta popular sobre o sistema de governo de 1965 fosse antecipada para 1963 e, com
isso, o retorno das prerrogativas presidenciais a João Goulart. Naquele momento de contra-
golpe popular, os militares insatisfeitos voltaram novamente a tramar uma segunda
conspiração. E o mais interessante: “recolheram as provas” sobre as suas suspeitas de 1961.
Primeiramente sobre o receio do comunismo. Goulart, principalmente no final do seu
governo, busca com eficácia o apoio de setores de esquerda, inclusive os radicais que viam
no presidente um importante aliado para a consecução das reformas de base. Frente
Parlamentar Nacionalista, Ligas Camponesas, PCB, CGT, PUA, UNE, UBES, dentre
outros movimentos, dão sustentação às políticas populistas de Goulart, ao mesmo tempo
em que dão “provas inequívocas” de que Jango havia mesmo se “aliado” ao “comunismo
internacional”, doutrina “estranha” às “tradições” e aos “costumes cristãos” do povo
brasileiro.
O outro argumento sobejamente importante para os próceres do golpe de 1964 era o
de que o comunismo havia também se infiltrado nas Forças Armadas e estaria provocando a
quebra das sagradas hierarquia e disciplina militares. Mais uma vez, “provas inequívocas”
343
foram colhidas com a “Revolta dos sargentos” de 1963 e com a “Revolta dos marinheiros”
de 1964.
Março de 1964 foi um mês repleto de “razões” para o golpe, segundo a visão dos
militares. O Comício da Central do Brasil, com a participação com direito a
pronunciamento de Goulart, a revolta dos marinheiros e o desfecho negativo para os
almirantes da Marinha, a ameaça de greve geral pelo ilegal Comando Geral dos
Trabalhadores, a participação do presidente nas comemorações do aniversário da
Associação de Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar no Automóvel Clube do Brasil,
foram todos eventos que deixaram os militares extremamente preocupados com a
estabilidade política nacional e entenderam que deveriam agir para evitar o avanço do
“comunismo”. Já, a “Marcha da família com deus pela liberdade” e a tomada de posição de
Castello Branco indicavam apoio popular e militar para desencadear o golpe. “Viram que
era bom e fizeram o golpe”.
344
9 A BATALHA DISCURSIVA DOS DEPUTADOS FEDERAIS EM
MARÇO DE 1964
Estamos vivendo numa época em que, infelizmente, a
discussão pura de idéias pouco interessa. Todos já
tomaram sua posição e de forma inabalável. Estamos
diante da luta dos democratas contra os socialistas. Os
primeiros, mercê de Deus, estão muito firmes e não se
rendem a vãs argumentações. Os segundos não aceitam
argumentação de espécie alguma: colocam-se mais
numa luta de slogans, de emoções, de coisas passionais,
do que mesmo no terreno das idéias. Então é preciso
que cada um de nós tome lugar na sua trincheira: que
cada um de nós dê seu testemunho
95
.
Nos capítulos anteriores, foram apresentadas as posições políticas assumidas por
militares, lideranças políticas civis, movimentos sociais e sindicais e pelo presidente João
Goulart. Em geral, essas diferentes manifestações tiveram lugar entre 13 de março e 1° de
abril de 1964.
95
Excerto do pronunciamento do deputado federal Geraldo Freire (UDN/MG), publicado no Diário do
Congresso Nacional (Seção I), em 25 de março de 1964, na página 1816.
345
Neste capítulo, dedicado à batalha discursiva dos deputados federais neste idêntico
período, será verificada a dimensão reativa com que o Poder Legislativo, pelo menos no
que tange à Câmara Federal, se comportou diante das situações políticas contingentes do
período. Nesse sentido, a principal pauta dos discursos dos parlamentares era a da
instabilidade política do momento. As ações dos mesmos eram, na verdade, reações: reação
ao Comício da Central do Brasil, reação em razão da “Marcha da família com deus pela
liberdade”, reação ao protesto dos marinheiros, reação aos acontecimentos promovidos
pelas centrais sindicais, reação em torno dos decretos presidenciais como o do
congelamento dos aluguéis e o da reforma agrária da SUPRA, todos temas oriundos de fora
do âmbito do parlamento.
A primeira grande reação parlamentar teve origem no Comício da Central do Brasil,
organizado pelas principais centrais sindicais brasileiras em 13 de março, que contou com a
participação de João Goulart. Assim, na primeira seção deste capítulo, serão apresentados
os principais argumentos favoráveis e contrários ao referido ato que movimentou a Câmara
Federal ao longo de todo o período final do regime democrático brasileiro. Nas seções
seguintes, serão analisados, respectivamente, os pronunciamentos dos parlamentares com
relação à Marcha da Família com Deus pela Liberdade e em relação ao Protesto dos
marinheiros no Rio de Janeiro e a posição política tomada por Goulart naquele episódio.
346
9.1 Direita e esquerda diante da manifestação de Goulart na central do Brasil
O pronunciamento pró-reformas de João Goulart no Comício da Central do Brasil
gerou forte impacto na Câmara Federal, que se transformou em palco de uma verdadeira
batalha discursiva em torno de temas como “comunismo”, “reformas”, “democracia”,
“golpe”, “direita”, “esquerda”, dentre outros. Ao longo desta seção, portanto, serão
abordados tais temas diluídos nos pronunciamentos dos parlamentares.
9.1.1 A reação da direita diante da manifestação de Goulart na central do Brasil
A estratégia discursiva do bloco majoritário da Câmara Federal, formado pelos
parlamentares filiados, sobretudo, ao PSD e à UDN, era identificar o presidente João
Goulart com os grupos extremistas de esquerda. Apesar de ter sido demonstrado no capítulo
anterior que tanto Goulart como os grupos de esquerda desejavam a implementação das
reformas de base (mesmo considerando que por motivos e estratégias próprias e
diferenciadas), a começar pela reforma agrária, a estratégia do presidente da República
assentava-se nos marcos de um projeto de reformas via reforma constitucional prévia, ou
seja, de acordo com os parâmetros legais vigentes, apesar de que, em alguns momentos,
como também foi demonstrado naquela ocasião, sua posição política parecia titubear entre
democracia e reformas num marco estritamente constitucional.
347
Apesar de muito enfatizada no discurso de Goulart a necessidade de reformas de base,
mediante prévia reforma constitucional, evidentemente que a estratégia política da maioria
da Câmara dos Deputados, formada por parlamentares alinhados à direita do espectro
político, buscava associar o presidente com os grupos políticos mais radicais, os quais, se
assim pudessem, dispensariam a reforma constitucional para iniciar as reformas de base. A
identificação mais presente do presidente com os grupos de esquerda era a de qualificá-lo
como um “comunista”. Tal identificação trazia outros valores negativos a ela associados,
uma vez que tal ideologia política era vista como contrária à “tradição” e aos “valores” do
“povo brasileiro”, pois que associada ao ateísmo, dentre outras adjetivações que serão, em
breve, melhor evidenciadas. Para iniciar a caracterização do sentido do “comunismo” para
os setores direitistas no Parlamento do Brasil, serão tomados excertos do pronunciamento
do deputado federal Padre Vidigal (PSD/MG)
96
:
O SR. PADRE VIDIGAL
(lê a seguinte comunicação)
Sr. Presidente! Srs. Deputados!
No dia 9 de fevereiro dêste ano, o Exmo. Sr. Dom Oscar de Oliveira, dd.
Arcebispo de Mariana, dirigiu uma Carta Pastoral sôbre o Comunismo, Religião
e Pátria ao Revmo. Clero Diocesano, às Religiosas, a Ação Católica, às
Associações Religiosas e aos fiéis em geral.
Esta carta fez com que as palavras do Primaz da Igreja em Minas Gerais
repercutissem agradavelmente, no Brasil inteiro, como se fôsse uma clarinada
que despertasse o povo para a luta sem tréguas, contra os maiores inimigos da
democracia que é de essência evangélica, contra os mais perigosos inimigos de
nossa Pátria, pois desejam cubanizá-la, contra os mais rancorosos inimigos de
Deus os quais procuram expulsar o Santo Nome d’Êle, das páginas da História,
criando o Instituto de Ateísmo Científico e até cursos por correspondência para
divulgar o ateísmo.
96
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 17 de
março de 1964, páginas 1553 a 1558.
348
Na saudação de sua comunicação, o deputado anuncia que o seu pronunciamento tem
como base a Carta de Dom Oscar de Oliveira, que faz uma análise do perigo da ideologia
comunista para o Brasil. É interessante observar a utilização que é feita da carta do
arcebispo de Mariana: como uma mensagem especial ao “povo”. A palavra do religioso
repercutiu “agradavelmente, no Brasil inteiro, como se fôsse uma clarinada que despertasse
o povo para a luta sem tréguas” contra o comunismo. A carta, neste sentido, vem como uma
“clarinada”, ou seja, como uma bela música, um belo som para os ouvidos do povo
brasileiro. Adicionalmente, o deputado defende a “essência evangélica” da democracia,
para justificar ainda mais a clarinada do religioso. Assim, conforme o parlamentar
pessedista, é perfeitamente legítimo que um arcebispo fale em nome de Deus, do povo e da
democracia contra um mal comum que é o comunismo.
Os comunistas são “os mais perigosos inimigos de nossa Pátria, pois desejam
cubanizá-la”; são os “mais rancorosos inimigos de Deus os quais procuram expulsar o
Santo Nome d’Êle, das páginas da História, criando o Instituto de Ateísmo Científico e até
cursos por correspondência para divulgar o ateísmo”. São males que, na concepção de
Vidigal, devem ser eliminados do Brasil. São as razões, portanto, para a luta contra o
comunismo: a inimizade que os seus adeptos têm com Deus e o ateísmo declarado com
intenções ainda de expulsar Deus das páginas da História. Mais elementos são elencados
pelo deputado para a essa nova “cruzada cristã” contra o comunismo, conforme segue:
349
Dom Oscar despertou a lembrança do clero e dos bons católicos para o seguinte:
Jamais poderá a Igreja de Cristo transigir com o comunismo que despoja do
homem o sentimento religioso, roubando-lhe a liberdade, negando-lhe a
dignidade de pessoa.
O Estado Moscovita exige a abolição completa do Estado Religioso em seus
partidários, proclamando haver absoluta incompatibilidade entre a crença de
Deus e a aceitação dos princípios comunistas (Apud Georges Goyau, in Dieu
chez les Soviets).
O comunismo é a “mais completa negação de Deus” e representa uma “guerra
contra tudo o que é divino” (Pio XI, in Divini Redemptoris).
“A Igreja de Cristo não cogita abandonar sem luta o terreno a seu inimigo
declarado, o comunismo ateu. Êste combate será continuado até o fim” (Pio
XII).
No excerto acima, o deputado utiliza basicamente passagens de autores eclesiásticos
que afirmam a total incompatibilidade entre o cristianismo e o comunismo. Inicia pelo
arcebispo de Mariana, dizendo que “jamais poderá a Igreja de Cristo transigir com o
comunismo”, tendo em vista que o segundo “rouba” do homem a “liberdade” e lhe “nega” a
“dignidade de pessoa”. Dessa forma, segundo o deputado, o comunismo representa para os
seres humanos a “prisão”, a “escravidão”, por um lado, e a condição “não humana”, “não
digna” por outro lado. Em conseqüência disso, a Igreja de Cristo tem a missão de defender
os homens deste mal. Os demais autores citados denotam a total incompatibilidade entre a
religião e o comunismo e que, entre ambas as ideologias, somente a guerra é possível, tendo
em vista tratarem de visões de mundo antagônicas. Na seqüência, o deputado apresenta
uma justificativa para a preocupação política dos religiosos brasileiros:
Amando a sua Pátria como realmente amam, os Exmos. e Revmos. Srs.
Arcebispos e Bispos do Brasil naturalmente se preocupam com os problemas
políticos no atual momento conscientes de que a política é uma coisa honesta e
grave, conforme a expressão de Leão XIII e é aquela ciência civil, como a
definiu Santo Tomaz, a qual tem por objetivo procurar o bem comum dos
cidadãos o qual é o máximo bem que procuram os homens constituídos em
sociedade. Além disso, a política pode tocar em Deus e nos seus altares, pôr suas
mãos atrevidas e sacrilegas na Igreja e em seus Ministros e em seus bens,
assestar golpes mortais na família, pode escravizar a um povo com leis
350
inhumanas e antihumanas e lançá-lo em nome da liberdade e da democracia, por
caminhos da dissolução e morte.
Em seu mais profundo sentido, a política não pode separar-se da Religião. A
razão é óbvia: o fim próximo do Estado é a perfeição exterior da sociedade,
porém, uma perfeição de tal natureza que possa ajudar a sociedade a lograr o
Bem Supremo.
Os Exmos. e Revmos Srs. Arcebispos e Bispos do Brasil nunca perguntaram uns
aos outros o que é mesmo que o Brasil pode fazer por êles. Vivem perguntando,
sempre, uns aos outros: o que é que êles podem e poderão fazer pelo Brasil.
Os religiosos brasileiros, segundo o deputado, preocupam-se com a política do Brasil,
tendo em vista que o seu objetivo primordial [da política e deles próprios] é “procurar o
bem comum dos cidadãos o qual é o máximo bem que procuram os homens constituídos
em sociedade”. Se os mais “honestos” e “graves” objetivos da política e da Igreja são os
mesmos, política é um assunto que deve ser seriamente tratado também pelos religiosos
brasileiros.
Outro argumento utilizado como justificativa para a preocupação política dos
religiosos é o fato de que a mesma pode ser utilizada para fins “maléficos”. Assim, ela pode
ser usada para desferir “golpes mortais na família, pode escravizar a um povo com leis
inhumanas e antihumanas e lançá-lo em nome da liberdade e da democracia, por caminhos
da dissolução e morte”. Essas possibilidades, evidentemente, fogem por completo do “bem
comum” da política e daí mais uma razão para a intervenção religiosa nesses assuntos na
acepção de Vidigal. Esse argumento subsiste como se os religiosos fossem, de fato,
“fiscais” das ações dos políticos para o povo brasileiro, como se cada vez que os políticos
tomassem ações contrárias ao “bem comum”, estariam lá os religiosos para denunciar tais
artimanhas.
351
Esses argumentos são coroados com uma categórica afirmação do deputado: “Em seu
mais profundo sentido, a política não pode separar-se da Religião”. Dizer isso, significa
considerar o fato de que a “política” é tão-somente uma dimensão da “Religião”, ou seja, a
“Religião” compreende a “política” como um de seus elementos. Concluir isso significa,
por conseqüência, considerar que os bispos e arcebispos brasileiros têm muito mais
autoridade moral, porque são religiosos, de falar corretamente sobre a política e,
conseqüentemente, do “bem comum” como seu fim máximo, do que propriamente os
deputados federais, o presidente da República, os políticos em geral. Com isso, o deputado
quer “despaganizar” os políticos – mormente os comunistas – e, ao mesmo tempo,
“sacralizar” a política, uma vez que os fins do Estado, conforme seu pronunciamento, são
os mesmos da Religião: “o fim próximo do Estado é a perfeição exterior da sociedade,
porém, uma perfeição de tal natureza que possa ajudar a sociedade a lograr o Bem
Supremo”. E finaliza parafraseando o ex-presidente norte-americano John Kennedy
dizendo que os religiosos brasileiros, vivem se perguntando o que eles podem fazer pelo
Brasil. Tendo em vista a sacralização da atividade política, continua o deputado
denunciando as atividades “pagãs” do governo Goulart:
Mas, os comunistas encastelados no Govêrno querem transformar o Brasil em
outro belo paraíso da humanidade por meio de uma Reforma Agrária anti-cristã,
semelhante àquela que foi um fracasso em Cuba, na China e na Rússia.
Por meio de uma Reforma Agrária que não promoverá o aumento da produção,
mas sim, o crescimento da miséria e o desenvolvimento da fome, por meio de
uma Reforma Agrária violenta que constitui um atentado contra o sétimo e o
décimo mandamento da Lei de Deus, os quais formam o fundamento da
propriedade privada, êsses comunistas querem é mesmo desgraçar o Brasil. E,
entretanto, cinicamente, declaram que pretendem transformá-lo num belo
paraíso da humanidade.
352
Se no excerto anterior, o deputado padre Vidigal mencionava a justificativa para que
os religiosos legitimamente se interessassem pelos assuntos políticos, neste trecho em tela –
na mesma direção daquele argumento anterior de que a “boa política” não passa de um
ramo da religião – ele condena o projeto “comunista” de reforma agrária. Inicialmente, o
parlamentar caracteriza o governo como um local onde os comunistas estão “encastelados”
e que, portanto, todas as ações do governo Goulart, seriam ações implementadas a partir da
ideologia comunista, que é anticristã e, nesse sentido, responsável por promover uma “má
política”. O deputado constrói o argumento de que a reforma agrária pretendida pelo
governo federal é uma medida política “anticristã” sem, no entanto, mencionar as razões
específicas de tal afirmação. Simplesmente diz que a reforma agrária pretendida não
aumentaria a produção agrícola, mas tão-somente a miséria e a fome. Além disso, defende
que a referida pretensão do governo contraria os sétimo e décimo mandamentos da “Lei de
Deus”, os quais, respectivamente obrigam aos católicos (e não ao governo e os comunistas
lá encastelados) “não furtar” e “não cobiçar as coisas alheias”. Isso quer dizer que as ações
dos governos são ações contra a “vontade de deus”, promovidas pelo pecado da “avareza”,
quando retirar as terras dos seus proprietários para fins de reforma agrária é ato precedido
de “cobiça das coisas alheias” e que, quando consumado, torna-se furto aos “olhos de
deus”. Na concepção dos bispos e arcebispos, conforme o deputado, a reforma agrária é o
primeiro passo para “desgraçar o Brasil”. Os seguintes são mencionados no excerto a
seguir:
As preocupações dos Exmos. Revmos. Srs. Arcebispos, Bispos do Brasil, são de
tôdas as horas.
353
Êles percebem que virá primeiro uma Reforma Agrária, conforme o figurino
russo.
Depois virá a Reforma Urbana.
Depois a eliminação completa da iniciativa privada.
E, por fim, a Reforma ou a estatização da família, quando, então, os filhos
passarão a pertencer ao Estado e ficarão à disposição do Govêrno que se servirá
dêles como de parafusos na engrenagem comunista e fará com que êles se
levantem contra seus pais quando êstes não concordarem com o Govêrno ou
com o Regime.
Foi o que aconteceu na Rússia com aquêle menino que foi constituído herói e
erguido à condição de exemplar a ser seguido, visto que denunciou seu pai como
um ladrão, somente porque havia levado para casa um pouco de alimento para
matar a fome de seus filhos famintos, um pouco mais do que o Govêrno lhe
permitia levar.
E o pai foi prêso. E, depois, fuzilado. E o menino mereceu uma estátua e ficou,
na história, como modêlo digno de ser seguido pelos outros meninos russos.
Que belo paraíso da humanidade!.
Conforme o excerto acima, os bispos e arcebispos brasileiros já sabem exatamente os
passos que serão tomados pelos comunistas em direção da revolução. Quatro serão as ações
na seguinte ordem: reforma agrária, reforma urbana, eliminação completa da iniciativa
privada e estatização da família. É interessante que a “chave de ouro” revolucionária
consiste na estatização da família. Nesse ponto, o deputado menciona o exemplo de um
garoto que teria denunciado o pai ao Estado soviético como um criminoso e que, por isso,
teria se transformado em modelo a ser seguido pelos demais garotos. Se o projeto
“comunista” de reforma agrária de Goulart tiver êxito, esse então será o primeiro passo para
uma revolução equivalente à russa, a qual teve, como grave conseqüência anticristã, a
estatização da família. Exarados os argumentos religiosos do deputado oposicionista ao
governo Goulart, serão analisados, a seguir, trechos do pronunciamento do deputado
Antônio Carlos Magalhães (UDN/BA)
97
:
97
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 17 de
março de 1964, na página 1561.
354
O SR. ANTONIO CARLOS MAGALHÃES:
(Para uma comunicação – Sem revisão do orador) – Sr. Presidente, Srs.
Deputados, quero lançar meu veemente protesto, em nome da parcela do povo
brasileiro que tenho a honra de representar, contra o comício realizado pelo
Partido Comunista Brasileiro no Estado da Guanabara e que teve como orador
oficial S. Exa. o Sr. Presidente da República. Mas, Sr. Presidente, a própria
personalidade do Presidente da República estava ali ferida como a Nação
brasileira, porque o Sr. Osvaldo Pacheco, fazendo questão de demonstrar que o
Presidente era o seu teleguiado, a todo instante lhe ditava normas e até mesmo
frases. O Sr. Presidente da República neste estado em que se encontra, de falta
de autoridade, seguia o pelego comunista.
Neste trecho inicial do pronunciamento de Antônio Carlos Magalhães, o deputado
protesta contra a ocorrência do Comício da Central do Brasil, em sua análise, organizado
pelo Partido Comunista Brasileiro, sobretudo, em razão de o presidente da República,
conforme o parlamentar, figurar como o seu “orador oficial”. Note-se que o deputado está
colocando a questão da seguinte forma: se o comício era organizado pelo PCB, por que o
presidente Goulart teria sido o seu orador oficial? Era o presidente membro do PCB? Era
comunista o presidente? São inferências que no discurso de Magalhães indicam que Goulart
estava a serviço dos comunistas brasileiros. Além disso, o trecho avança e o parlamentar
aponta que o presidente da República não tinha sequer autonomia para o uso da palavra,
tendo em vista que “Sr. Osvaldo Pacheco, fazendo questão de demonstrar que o Presidente
era o seu teleguiado, a todo instante lhe ditava normas e até mesmo frases”. Um presidente
da República que era teleguiado por um cidadão de nome Osvaldo Pacheco
98
, segundo
Magalhães, denotava um chefe de Estado sem personalidade para conduzir um país. O
deputado continua suas denúncias:
98
Osvaldo Pacheco era o primeiro-secretário do Comando Geral dos Trabalhadores e um dos responsáveis
pela organização do Comício de 13 de março de 1964.
355
Sr. Presidente, naquele comício, o que mais se fêz foi afrontar esta Casa de
representantes do povo e a mim causa profunda estranheza que ainda aqui se
levantem vozes hoje para defender êste Govêrno, principalmente o Presidente da
República, porque o normal seria que êstes representantes aqui não mais
comparecessem, pois o cunhado do Presidente e o próprio Presidente naquele dia
não fizeram outra coisa senão pregar a subversão e o fechamento do Congresso
Brasileiro.
Se no primeiro trecho do seu pronunciamento, o deputado denunciava a realização de
um comício organizado pelo PCB tendo como orador oficial o presidente da República e
além disso, afirmava que a própria palavra de Goulart era ditada por outra pessoa, o que
denotava falta de personalidade do chefe de Estado, neste segundo trecho, o tom da
denúncia é muito mais grave. No excerto em questão, o deputado acusa diretamente o
presidente Goulart e o deputado Leonel Brizola de defenderem em praça pública o
fechamento do Congresso Nacional. Claramente Jango é taxado de golpista, portanto. É
evidente que a postura política a ser adotada por um presidente da República, no contexto
democrático, deve ser no âmbito dos marcos da legalidade. Buscar o fechamento do
Congresso Nacional representa um ato de extrema gravidade, visto que ilegal, o que
poderia, inclusive, ensejar processos de impedimento do presidente Goulart e do deputado
Leonel Brizola, nos termos da Constituição Federal de 1946. Contudo, em relação a
Goulart, a acusação de Antônio Carlos Magalhães deve ser minimizada, pois, como já foi
visto no capítulo anterior, em momento algum, o presidente mencionou diretamente uma
possível intenção sua de fechamento do Congresso Nacional. Na seqüência, serão
analisados trechos do pronunciamento do deputado federal Laerte Vieira (UDN/SC)
99
:
99
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 17 de
março de 1964, nas páginas 1563 a 1565.
356
O SR. LAERTE VIEIRA:
(Sem revisão do orador) – Senhor Presidente, nobres Srs. Deputados, na última
sexta-feira, dia 13, em data verdadeiramente azarada, sob as apreensões de todo
o País, promoveu-se um comício na Guanabara, onde S. Exa., o Sr. Presidente da
República, desempenhando as suas altas funções de Primeiro Magistrado da
Nação, se vinculava a uma pregação de caráter ideológico que, segundo o nosso
entendimento, é pregação subversiva e contrária ao regime.
Verificamos, Sr. Presidente, a maneira pela qual se procura envolver as Fôrças
Armadas em pronunciamentos dessa espécie, encarregando-as de manter no
local do comício a ordem e, sob êste pretexto, fazendo-as assistir, com muito
vexame para alguns dos seus integrantes, a uma reunião em que se apresentavam
inúmeros cartazes de gorilas, cartazes de foice e martelo, pedidos de legalização
do Partido Comunista do Brasil etc.
O deputado udenista inicia seu pronunciamento já denunciando a participação do
presidente no Comício da Central do Brasil, uma “pregação de caráter ideológico”, o que na
acepção do parlamentar, mesmo sem caracterizar o que para ele significa “ideológico”,
denota-se, no contexto discursivo, notadamente o caráter negativo da utilização do termo.
Tão negativa é a participação do chefe do Executivo no ato em questão que este foi
caracterizado pelo deputado como sendo uma “pregação subversiva e contrária ao regime”.
Como o parlamentar catarinense não explicita o porquê de ser uma “pregação subversiva e
contrária ao regime”, não dá para saber ao certo se ele está denunciando um “crime de
responsabilidade” do presidente da República ou meramente utilizando-se de artifícios
retóricos na introdução de sua fala.
É interessante, no entanto, a forma como o deputado coloca, na segunda parte do
excerto, uma possível tentativa, por parte dos organizadores do Comício, de envolvimento
das Forças Armadas no ato em tela. Com isso, o deputado está buscando afirmar que os
“subversivos” queriam “dar o recado” que as Forças Armadas estariam “envolvidas” com o
ato público, o que, pelo contexto do pronunciamento do parlamentar, isso não passa de uma
357
ação meramente performática do governo. Nesse ponto, o deputado tem absoluta razão:
havia uma forte pressão contrária de militares de alta patente de todas as Armas contra as
ações que Goulart naquele momento buscava intensificar com setores de esquerda e de
extrema esquerda. O Comício da Central do Brasil foi um desses atos duramente criticados
pelos altos escalões militares como já demonstrado em capítulo anterior nesta tese. Na
seqüência do seu pronunciamento:
Não nos surpreendeu a pregação do Sr. Deputado Leonel Brizola, pois que tem
sido uma constante na atuação dêste político – já não digo parlamentar porque o
que menos S. Exa. tem sido é um parlamentar – a pregação revolucionária, a
pregação contra o regime. De modo, Sr. Presidente, que se ouviu nessa reunião o
Deputado Leonel Brizola dizer, com todas as letras, que o atual Congresso não
dará mais nada aos brasileiros, que “se os podêres da República não tomam
decisões, as decisões devem ser tomadas pelo povo”, que “ao povo se deve
entregar os destinos desta Pátria, pela convocação de uma Constituinte”, pela
organização de um congresso que se denomine popular, pela realização de um
plebiscito , pela derrogação do atual Congresso Nacional.
Neste ponto, Laerte Vieira acusa seu colega parlamentar Leonel Brizola de deixar de
exercer suas funções como deputado para exercer a “pregação revolucionária, a pregação
contra o regime”. Para justificar a sua crítica, Vieira enuncia frases que teriam sido
pronunciadas por Brizola por ocasião do Comício. Em tais frases, o deputado busca chamar
a atenção para o quanto Brizola tem recorrentemente sido um agitador político de esquerda.
Contudo, parece interessante de se notar o perfil autoritário do próprio acusador, pois
o mesmo pinça frases que teriam sido pronunciadas pelo deputado gaúcho como se as
mesmas fossem eminentemente perigosas, mas que podem ser lidas justamente sob uma
ótica democrática. Veja-se a primeira delas: “se os podêres da República não tomam
358
decisões, as decisões devem ser tomadas pelo povo”, pode ter a interpretação nada forçada
de que a classe política poderia estar inerte à crise política do momento, por exemplo. Tal
frase, combinada com a próxima pode sugerir ainda mais um tom democrático por parte de
Brizola: “se os podêres da República não tomam decisões, as decisões devem ser tomadas
pelo povo”, [pois] “ao povo se deve entregar os destinos desta Pátria, pela convocação de
uma Constituinte”. Entregar os destinos da Pátria ao povo é uma das acepções mais senso
comum da democracia, o “poder do povo”, ainda mais em se tratando de convocar uma
Assembléia Nacional Constituinte para reformar a Constituição de 1946, um expediente
amplamente amparado em preceitos e em práticas democráticas. O tom conservador de
Vieira condena seu discurso, altamente impopular. Na seqüência do pronunciamento:
Do comício Srs. Deputados, V. Exas. Naturalmente observaram o destaque que
deram à palavra do representante do CGT. Falou em último lugar, não teve seu
tempo limitado, dispôs de maior espaço do que parlamentares ou chefes de
Executivos estaduais que lá compareceram, pregou as reformas a seu modo,
impôs ao Presidente da República o registro de todos os partidos, vale dizer, a
legalização do Partido Comunista, e disse também, como uma situação que vem
incomodando muito as esquerdas dêste País que o Presidente da República
precisava definir-se – ou o Presidente continua com a política de conciliação, ou
o Presidente realiza as chamadas reformas de base.
Neste excerto, o deputado fala, de forma mais direta, sobre a primazia da participação
do Comando Geral dos Trabalhadores. Inicia reclamando que no Comício o seu
representante falou por último e por mais tempo do que os parlamentares ali presentes, o
que, na visão de Laerte Vieira, isso soava “errado”, tendo em vista que os deputados eram
personalidades mais importantes do que o representante do CGT, como fica subliminar em
sua fala. É de se lembrar, entretanto, que o Comício em tela foi organizado pelo próprio
CGT e que os deputados lá presentes que fizeram uso da palavra eram convidados para
359
tanto. Dessa forma, parece um exagero do deputado condenar a forma como o CGT
organizou as falas dos oradores no evento.
Por outro lado, parece interessante ressaltar a forma como o deputado se referiu à
presença do presidente da República no ato. Ela é similar à forma de como o deputado
Antônio Carlos Magalhães fez referência a Goulart no trecho de seu pronunciamento
analisado acima. Ambos têm a impressão de que o presidente da República era uma
personalidade fraca, sem personalidade. No caso de Vieira, pode ser introduzido ainda mais
um elemento: o presidente era passivo de ameaça por parte do CGT. Isso fica claramente
estampado no momento do seu discurso em que o deputado afirma que o representante do
CGT “impôs ao Presidente da República o registro de todos os partidos, vale dizer, a
legalização do Partido Comunista”. Fica ainda evidente o tom ameaçador que o CGT
referiu-se a Goulart, segundo o deputado, quando o mesmo afirmou que teria o
representante do CGT afirmado que Goulart deveria optar ou “pela política de conciliação”
ou pelas “reformas de base”, como se ambas propostas fossem necessariamente
antagônicas, uma vez que o presidente da República em seu discurso, naquele evento,
propôs basicamente as reformas de base precedidas de uma reforma constitucional, o que
pode ser visto como uma política de conciliação, visto que isso requereria necessariamente
passar pelo âmbito do poder legislativo federal. Na seqüência, será analisado trecho do
pronunciamento do deputado Maurício Goulart (PTN/SP)
100
:
100
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 18 de
março de 1964, nas páginas 1598 a 1600.
360
Ora, Sr. Presidente, Srs. Deputados, o que estamos a ver de certo modo a essa
parte, e cada dia com intensidade, é a reiteração de movimentos que, com o
objetivo de solapar as instituições, procuram desmoralizar o Parlamento perante
a opinião pública. E o que aflige, espanta e estarrece é que êsses movimentos,
cujas raízes, ultrapassando as fronteiras pátrias vão buscar orientação (...) em
concepções de vidas estranhas a nossa índole, são liderados por homens e órgãos
inseridos na órbita do Poder Executivo.
Já agora, aliás, Sr. Presidente e Srs. Deputados, como se tornou patente pelo
comício do dia 13, é o próprio Chefe do Govêrno que assume o ostensivo
comando e acoroçoa a campanha de achincalhe às instituições, investindo ou
permitindo que invistam, em praça pública, em sua presença, contra a dignidade
do Congresso Nacional.
A Constituição que jurou obedecer e à obediência de cujos preceitos deve o
exercício do mandato presidencial (...) consentindo, com complacente sorriso,
que a televisão levou e está levando para as populações de todo o País, que
auditório convocado de todo o território nacional para ouví-lo, reclama-se, em
brados repetidos e bem ensaiados, o fechamento do Congresso.
Neste longo trecho, Maurício Goulart denuncia uma “estratégia” de desmoralização
com o objetivo de posterior fechamento do Congresso Nacional. Trata-se, segundo o
deputado, de uma estratégia conduzida por “movimentos”, que, mesmo sem serem por ele
nomeados, podem ser identificados, pois são os mesmos que participaram do Comício da
Central do Brasil. Os objetivos desses movimentos são claros: “solapar as instituições, (...)
desmoralizar o Parlamento perante a opinião pública”.
A denúncia toma contornos mais graves quando o parlamentar alia a figura de João
Goulart com tais movimentos. Diz que o presidente acoroçoa, ou seja, encoraja a ação
desses setores, ao mesmo tempo em que se torna parceiro dos mesmos. Assim, a estratégia
de desmoralizar para após fechar o Congresso Nacional é também uma tarefa do presidente
da República. Além de ser uma denúncia, que se fosse constatada a sua veracidade, estaria
Goulart, do ponto de vista penal, incorrendo em crime de responsabilidade e, portanto,
passível de impedimento de suas funções públicas e posterior responsabilização criminal.
361
Já, do ponto de vista político, isso representa claramente a formação de dois grupos
antagônicos a saber: de um lado, os movimentos defensores do fechamento do Congresso
Nacional e, de outro lado, os grupos interessados em manter as casas legislativas em pleno
funcionamento. O que o deputado busca é identificar Goulart como pertencente ao grupo
favorável ao fechamento do Congresso. O tom antagônico é ainda mais agravado no
discurso do deputado na seguinte passagem:
Não, Sr. Presidente: não Senhores Deputados: a radicalização explosiva, que aí
está, já agora ameaçando interromper o processo democrático no Brasil, essa
radicalização não fomos nós que a criamos, apesar dos acres entusiasmados com
que defendemos nossos pontos de vista, nossas preferências ideológicas.
Tampouco criaram essa radicalização, com o caráter de que ela hoje se reveste,
os estudantes brasileiros, com seus excessos juvenis; tampouco, a criaram os
trabalhadores das cidades e dos campos, reunindo-se em assembléias e saindo
para as ruas, na defesa de melhores condições de vida. Criou-a, acaba de
institucionalizá-la, o Sr. Presidente da República, abrindo um fôsso, já agora
quase impossível de transpor entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo.
Neste excerto, o deputado afirma que a situação política naquele instante era de uma
“radicalização explosiva” que ameaçava “interromper o processo democrático no Brasil”.
Assim, conforme a sua leitura do momento, o processo de formação de dois discursos
antagônicos estava dado e parecia ser esse um caminho sem volta, uma radical exclusão
entre dois projetos inimigos, de modo que a guerra, portanto, já ocorria naquele instante.
No excerto anterior, o deputado afirmava que Goulart fazia parte – juntamente dos
movimentos que lideraram o Comício da Central do Brasil – de um grupo que tinha como
estratégia desmoralizar para posteriormente fechar o Congresso Nacional. Ocorre que, no
presente trecho do pronunciamento de Maurício Goulart, o presidente não é tido
362
simplesmente como um partícipe, ou mesmo aquele que passivamente permitia os excessos
dos movimentos da esquerda radical. Neste ponto, Jango passa a ser o protagonista de um
momento radicalmente antagônico, o “criador” e “institucionalizador” de uma crise “agora
quase impossível de transpor entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo”. É interessante
perceber que tanto os níveis atingidos pela acusação do deputado alteram como os artífices
da mesma. Antes foram nomeados os “movimentos” e Goulart era tão-somente um
membro. Agora, a crise não tem mais origem exterior às instituições políticas, mas que é
interna às mesmas, uma guerra antagônica entre dois inimigos no interior do próprio
Estado: os poderes Executivo e Legislativo.
9.1.2 A defesa de Goulart diante da sua manifestação na central do Brasil
Apresentados os principais argumentos produzidos por deputados alinhados à direita
do espectro político e, portanto, contrários a Goulart e ao seu projeto de reformas de base,
neste momento, serão apresentados os argumentos produzidos pelos deputados defensores
da política reformista de Jango. Assim, serão analisadas passagens significativas dos seus
pronunciamentos nas mesmas seções legislativas em que os deputados de direita acusaram
Goulart de promover a instabilidade do parlamento com o intuito de fechá-lo. O primeiro
pronunciamento a ser analisado é do deputado João Veiga (PTB/AM)
101
:
101
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 17 de
março de 1964, na página 1553.
363
O SR. JOÃO VEIGA
(Para uma comunicação – Sem revisão do orador) – Sr. Presidente, embora em
Brasília na sexta-feira passada, ouvi a fala do Presidente da República. Houve,
como é claro e natural, muita pessoa aborrecida; notamos mesmo que esperneou
a Oposição nesta Casa. Sei ler e escrever – é o que parece – e, analisando
detidamente o que o Presidente da República disse na praça na Guanabara, não
vislumbrei, não lobriguei sequer heresia ou atentado direto à democracia em
nossa Pátria.
O início do pronunciamento do deputado do Amazonas serve para afirmar que,
segundo sua análise, o presidente da República não cometeu qualquer “heresia ou atentado
direito à democracia em nossa Pátria”, como é uníssono no discurso da oposição. Tal
constatação é fruto, como ressalta o petebista, de uma detida análise do teor do
pronunciamento de Jango. Afirma que o pronunciamento em questão aborreceu muita gente
e, em seguida, elencou as razões de tais aborrecimentos no seguinte trecho:
Disse bem o Sr. João Goulart: “é a época das reformas”, e de maneira urgente
para que se saia de estruturas obsoletas e arcaicas. É muito fácil, como dizia
Nietszche, atirar-se uma pedra em um poço. Quando se atira uma pedra em um
poço é muito difícil retirá-la, atingindo ela o fundo do poço. É muito melhor
salvar o Brasil agora que esperar caia em abismo profundo, insondável, porque
sua salvação, sua retirada será dificílima. Parabéns Senhor Presidente João
Goulart. Agindo V. Exa. como está agindo, dando razão e dando atenção aos
reclamos do povo, estará agindo muito bem.
O excerto apresenta o tema das reformas de base como central. Inicia com uma frase
atribuída a Goulart: “é a época das reformas”. Aborda tais reformas sob dois aspectos:
primeiramente como necessárias para evitar que o Brasil caia no “fundo do poço” e, por
segundo, as mesmas como fruto legítimo dos “reclamos do povo”.
Assim, por um lado, o primeiro aspecto diz respeito à centralidade das reformas nos
cenários político e econômico. Reformar os vários níveis aos quais se propõem as reformas
364
de base, como por exemplo, as reformas agrária, urbana, universitária, dentre outros
projetos, não se trata de mero expediente político de “atualização” de “estruturas obsoletas
e arcaicas”. A questão que é colocada pelo deputado é que tais estruturas obsoletas e
arcaicas, num momento futuro, serão responsáveis por jogarem o Brasil num abismo
“profundo” e “insondável”, ou seja, de que não se pode encontrar o fundo ou o limite.
Assim, o caráter das reformas não é meramente uma adequação social de um país com
estruturas obsoletas: trata-se antes de uma ação política que tem um caráter salvacionista.
Nesse sentido, em se tratando de reformas nesse nível e tendo o presidente como seu maior
defensor, é de se denotar pelo contexto discursivo que se o presidente da República
conseguir o seu intento de promover as reformas prometidas, ele será reconhecido como um
salvador nacional, aquele que evitará a queda insondável do Brasil para o fundo do poço.
Por outro lado, as reformas fazem parte dos “reclamos do povo”. Nesse ponto, é
interessante perceber que o presidente da República não está tomando uma atitude baseada
em sua convicção pessoal apenas, ou forjada por um único partido ou ideologia política. O
presidente é visto aqui como aquele que é capaz de ouvir e perceber os reclamos do povo,
ou seja, ele se coloca ao lado do povo como um de seus integrantes. Aqui a formação do
“povo” é assaz interessante, tendo em vista que o deputado deposita em Goulart a condição
de seu intérprete, como o responsável pela articulação das demandas populares. Nesse
sentido, deputados, líderes políticos e militares, contrários às reformas de base, são
relegados à condição de adversários ou mesmo de inimigos políticos, pois que constituem
um grupo que deve ser combatido, sob pena de as reformas não se realizarem. Na
365
seqüência, será analisado um trecho do pronunciamento do deputado Ortiz Borges
(PTB/RS)
102
em aparte ao discurso do deputado Laerte Vieira, já aqui tratado:
O Sr. Ortiz Borges – O meu aparte é apenas para dizer, eminente Deputado
Laerte Vieira, que me custa crer tenha V. Exª a coragem de vir à tribuna para
dizer, por exemplo, que o comício de sexta-feira foi anti-democrático, que o
comício foi contra o regime democrático neste País. E isto porque, eminente
colega, nunca se viu tanta gente reunida em praça pública em tôda a Nação, para
tratar de assuntos de alto interesse popular. Todos os oradores que se fizeram
ouvir naquela ocasião disseram aquilo que precisava ser dito, interpretando a
vontade popular. O Presidente da República, no seu pronunciamento, pregou a
reforma de nossa Constituição, pregou a reforma eleitoral, pregou a reforma
universitária (...) e sobretudo, eminente Deputado, interpretou a vontade popular.
Mas com o que V. Exªs não se conformam é com o regime do povo para o povo
e pelo interêsse do povo. V. Exªs pregam o regime do privilégio. V. Exªs.
desejam que se pregue uma democracia antipovo, uma democracia anti-reforma,
uma democracia contra os sindicatos.
Nota-se, na passagem acima, que o deputado Ortiz Borges, a exemplo do
pronunciamento do deputado João Veiga, constituiu duas posições políticas antagônicas, as
quais podem ser chamadas, tomando-se o contexto de sua fala, uma de “popular” e a outra
de “antipopular”. Assim, a posição política “popular” está formada pelos movimentos
organizadores do Comício da Central do Brasil, articulados ainda com políticos de esquerda
e com o próprio presidente da República. O discurso em questão tem o mérito, segundo o
deputado, de reunir o povo em praça pública. Suas lideranças são tidas como aquelas que
efetivamente sabem interpretar os anseios populares: “todos os oradores que se fizeram
ouvir naquela ocasião disseram aquilo que precisava ser dito, interpretando a vontade
popular”. Os grupos articulados pelo discurso “popular” são, ainda, defensores das
reformas de base e têm o presidente da República conjunturalmente como o seu principal
102
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 17 de
março de 1964, na página 1564.
366
prócer: “o Presidente da República, no seu pronunciamento, pregou a reforma de nossa
Constituição, pregou a reforma eleitoral, pregou a reforma universitária (...) e sobretudo,
(...) interpretou a vontade popular”.
Já, o segundo grupo, chamado de “antipopular” é construído como sendo antagônico
ao “popular”, segundo o pronunciamento do deputado gaúcho. Representa setores que não
querem ouvir o povo, que defendem o regime do privilégio: “uma democracia antipovo,
uma democracia anti-reforma, uma democracia contra os sindicatos”. Na seqüência, será
analisado mais um trecho de pronunciamento do deputado Ortiz Borges (PTB/RS)
103
,
conforme segue:
Foram duzentas mil pessoas, de tôdas as camadas – operários, estudantes,
intelectuais, donas de casa, homens, mulheres e crianças – que, sintonizando
com as aspirações gerais do povo brasileiro compareceram ao comício no dia 13
do mês corrente.
Disseram os democratas da direita, hoje representados na tribuna pelo Deputado
Laerte Vieira, que o comício da Guanabara foi um ato atentatório ao regime
democrático, que o que se quis foi apenas ferir a Constituição e denegrir o
regime.
(...) Ora conspirar contra o regime seria, isso sim, não poder conversar
francamente nas grandes praças públicas. Como disse um dia o poeta, “a praça é
do povo como o céu é do condor”. Ferir a Constituição seria, isso sim, a
conspiração surda, macia, das antesalas dos gabinetes; seria, isso sim, Sr.
Presidente, os conchavos que muitas vêzes se fazem como se diria na linguagem
do Rio Grande, por baixo do poncho; seria, isso sim, Sr. Presidente, aquilo que
se proclamou ontem, por exemplo e que chegou a andar de bôca em bôca nesta
Casa: o atentado que se pretende perpetrar contra o Presidente da República,
querendo impedi-lo de governar. Isto, sim, seria ato atentatório às liberdades
democráticas; isto sim, seria ferir a Constituição, seria denegrir a democracia.
O presente excerto é constituído basicamente por três momentos principais. O
primeiro diz respeito aos sentimentos populares que estariam sendo captados, na sua
367
plenitude, pelos movimentos e sujeitos políticos que participaram o Comício da Central do
Brasil. O segundo momento diz respeito à contestação que o deputado Ortiz Borges faz em
relação à acusação de seu colega Laerte Vieira de que a referida reunião pública havia sido
um ato atentatório à democracia. O terceiro momento principal do excerto, que é na
verdade um desdobramento do segundo, diz respeito à denúncia que o deputado faz na
tribuna de que é a direita que realmente busca golpear os poderes políticos de Goulart e não
o contrário como argumentava o deputado Vieira. Assim, faz-se necessário o
desdobramento dos segundo e terceiro momentos do trecho selecionado.
Assim, o segundo momento refere-se à defesa de Ortiz Borges em relação à
legitimidade da reunião pública de 13 de março em contradita ao seu colega Laerte Vieira.
É evidente que uma reunião popular pacífica, como aquela, se constitui num expediente
democrático, calcado sobremaneira nos princípios de liberdade de opinião e de reunião.
Dessa forma, visa o deputado gaúcho desqualificar o argumento de Vieira a partir desses
preceitos democráticos consignados na seguinte passagem do seu pronunciamento:
“conspirar contra o regime seria, isso sim, não poder conversar francamente nas grandes
praças públicas”. Ocorre que o argumento de Laerte Vieira condenando de antidemocrático
o ato público não está baseado na condenação dos princípios democráticos de opinião e de
reunião. Vieira argumenta que a suposta ilegalidade do Comício estaria assentada no teor
dos pronunciamentos dos seus oradores, como visto anteriormente na análise de trechos de
seu discurso, pronunciamentos, segundo o deputado oposicionista, esses sim, que estariam
103
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 17 de
março de 1964, nas páginas 1567 e 1568.
368
atentando contra a democracia, basicamente por condenarem a ação e proporem, por
conseqüência, o fechamento do Congresso Nacional.
O terceiro momento do excerto em tela diz respeito a uma denúncia do parlamentar
gaúcho, não assentada em elementos comprobatórios, que, na verdade, quem estaria
buscando golpear o poder político no Brasil era a direita e não Goulart. Busca o deputado
gaúcho qualificar a ação dos supostos golpistas de “antipopular”, tendo em vista estar sendo
tramada “surda, macia, das antesalas dos gabinetes”. Segundo Borges, a ameaça de golpe
estaria passando de “boca em boca” no parlamento brasileiro naquela ocasião. E conclui em
resposta a Vieira: “isto, sim, seria ato atentatório às liberdades democráticas; isto sim, seria
ferir a Constituição, seria denegrir a democracia”. O argumento esquerdista em relação ao
golpe que estaria sendo intentado pela direita ganha ainda mais força nas palavras do
deputado Mário Maia (PTB/AC)
104
, o qual estabelece o “perfil” dos golpistas:
Sexta-feira última, 13 do mês em curso, o Brasil inteiro ouviu com atenção e
patriotismo a fala de seu presidente. Como não poderia deixar de ser, houve os
que gostaram e houve os que não se conformaram. Felizmente, para nossa
tranqüilidade, o número dos que se desencantaram compreende a estreita faixa
dos agitadores moralistas, dos desordeiros de gabinete, dos manipuladores de
intrigas, dos forjadores de boatos, dos maquinadores de golpes frustrados, enfim,
desse pequeno enxame de arapuás que zunzunzeiam em volta da velha colméia
dos privilégios, na perene festa da intolerância e da ociosidade supérflua.
Neste excerto, o deputado petebista estabeleceu o perfil dos políticos e das lideranças
que foram contrários à manifestação da Central do Brasil. Partindo do uníssono
pressuposto, entre os defensores do ato do dia 13, de que o evento retratou um momento de
369
encontro de Goulart com o povo brasileiro – “o Brasil inteiro ouviu com atenção e
patriotismo a fala de seu presidente” – o parlamentar defendeu que os contrários à
manifestação eram, na verdade, contrários ao povo brasileiro, contrários ao encontro dos
políticos com a população. Assim, os golpistas se incomodavam com a popularidade do
presidente da República e, para manterem seus “privilégios” e ociosidade supérfluas,
conspiravam contra as instituições democráticas.
9.2 A resposta da direita: a marcha da família com deus pela liberdade
Nesta seção, serão analisados os pronunciamentos dos deputados federais referentes
ao evento ocorrido em São Paulo, em 19 de março de 1964, que ficou conhecido como a
“Marcha da família com deus pela liberdade”. Em relação ao Comício da Central do Brasil
– promovido pelo CGT e por outros movimentos populares e de esquerda brasileiros, além
de apoio de lideranças políticas, sobretudo vinculadas ao PTB e ao clandestino PCB –
pode-se afirmar que a “Marcha da família”, representou um contraponto de peso da
“direita” brasileira, uma vez que existem registros, como os do Jornal “O Estado de São
Paulo” da presença de 300 mil manifestantes, ou seja, o dobro do que foi contabilizado de
participantes do Comício da Central do Brasil
105
. A “Marcha” contou com a presença do
104
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 18 de
março de 1964, na página 1596.
105
O Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro registra a “Marcha do Rio” com público ainda maior na
seguinte passagem: “a iniciativa da Marcha da Família repetiu-se em outras capitais, mas já após a tomada do
370
presidente do Senado Federal, Auro de Moura Andrade, e do governador da Guanabara,
Carlos Lacerda.
Contrariamente ao debate ideológico acirrado que o Comício da Central do Brasil
provocou no âmbito da Câmara dos Deputados, a “Marcha da família com deus pela
liberdade” não foi contestada enfaticamente pelos parlamentares da “esquerda”.
Estranhamente também, o episódio não teve a grande repercussão que se poderia esperar
nos pronunciamentos dos deputados da oposição, no sentido de eles afirmarem que o povo
não estaria ao lado de João Goulart, como afirmaram anteriormente os deputados de
situação após o Comício de 13 de março.
A primeira manifestação parlamentar em defesa da “Marcha da família” que consta
nos anais do Diário do Congresso Nacional é a do deputado Antônio Sílvio da Cunha
Bueno (PSD/SP)
106
, o principal articulador do evento:
O SR. CUNHA BUENO:
(Para uma comunicação – Sem revisão do orador) – Senhor Presidente,
continua ecoando em todos os quadrantes do País a extraordinária demonstração
de civismo oferecida na semana passada por 500 mil brasileiros que vieram à
praça pública trazer a mensagem de repúdio do povo paulista às tentativas de
comunização de nossa Pátria, tentativas que, infelizmente, ao invés de serem
energicamente repelidas pelo poder público, têm contado com a colaboração e o
prestígio de inúmeros setores governamentais. A “Marcha da Família com Deus
pela Liberdade”, convocada pelas entidades que congregam as mulheres de São
Paulo foi sem dúvida uma demonstração inequívoca de fé.
poder pelos militares, o que as tornou conhecidas como “marchas da vitória”. A marcha do Rio de Janeiro,
articulada pela Camde [Campanha da Mulher pela Democracia], levou às ruas cerca de um milhão de pessoas
no dia 2 de abril de 1964.
371
No início de seu pronunciamento, o deputado paulista enuncia o “extraordinário
civismo” de “500 mil brasileiros” que participaram da manifestação. Cita ainda a
motivação principal da “Marcha”, ou seja, um “repúdio do povo paulista às tentativas de
comunização de nossa Pátria”. Tais tentativas de “comunização” têm sido alimentadas,
inclusive pelo governo federal na ótica do parlamentar.
No entanto, o que parece mais relevante do ponto de vista da análise política, neste
trecho, é exatamente o que o deputado meramente mencionou sem dar maior destaque.
Trata-se das entidades promotoras do evento: entidades como a CAMDE (Campanha da
Mulher pela Democracia). A “Marcha da família” deu, de imediato, dois trunfos
importantes para a direita brasileira. O primeiro deles, a inegável multidão que compareceu
ao ato, maior, como já foi referido, do que a do Comício da Central do Brasil. O segundo e
mais importante: a multidão era formada, sobretudo, por mulheres, não filiadas
oficialmente a quaisquer partidos políticos ou movimentos sociais, portanto, sem uma
declarada definição ideológica, como a dos movimentos que participaram da concentração
de 13 de março. Para todos os efeitos políticos, eram simplesmente “mães de família” que
protestavam contra o governo João Goulart e esse fato, por si só, teve um peso político
devastador, pois que encorajou os golpistas de 31 de março. “Mães de família” pedindo
“paz”, “democracia”, contrárias à “comunização do país” representavam,
independentemente dos políticos direitistas que patrocinaram o evento, como Carlos
Lacerda, Ademar de Barros e Auro de Moura Andrade, um duro golpe na credibilidade e na
106
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 24 de
março de 1964, nas páginas 1756 a 1757.
372
popularidade do governo Goulart. Somente um filho rebelde contestaria a autoridade de
uma mãe de família, porque somente uma mãe sabe o que é bom para os seus filhos. Como
lidar com isso politicamente para uma esquerda que tinha um discurso absolutamente
político? Afinal de contas, mãe é mãe. Segue o deputado:
O meio milhão de almas que saiu às ruas, espontaneamente, para acompanhar,
disciplinadamente, aquela festa cívica não tinha em mente qualquer preocupação
de ofender os poderes constituídos. Muito pelo contrário, Senhor Presidente. A
“Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, constitui, na realidade, um
movimento de paz, um apêlo para que os homens mais responsáveis pelos
destinos do País aproveitem êste episódio, esta oportunidade que talvez seja a
última antes que o País se desgrace com a deflagração de uma guerra civil.
Neste excerto, o deputado paulista visa a enfocar, inicialmente, que a “Marcha” foi
um movimento popular “espontâneo”, “disciplinado” em nome da “paz e que representou
um “apelo” para o entendimento entre os homens públicos do país. O parlamentar dá a
entender que o evento, em sendo “espontâneo”, portanto, representava uma sincera
preocupação do povo em relação aos destinos políticos do Brasil. Note-se – evidentemente
que retirando o espontaneísmo popular, um claro excesso discursivo do pessedista – que a
situação política no país era diretamente enfocada como sendo gravíssima, tendo em vista
que a “Marcha” estaria sendo a última oportunidade de reconciliação “antes que o País se
desgrace com a deflagração de uma guerra civil”. Na seqüência do pronunciamento, o
deputado paulista compara a “Marcha” com o “Comício da Central do Brasil”:
Acreditamos, Sr. Presidente, que a Presidência da República deve estar
profundamente chocada com essa manifestação de fé nos destinos do Brasil.
Fazendo aqui um paralelo com a concentração do dia 13, realizada no Rio de
Janeiro, com a presença do Chefe da Nação e o apoio dos Ministérios Militares,
com as facilidades de transporte abundante oferecido pelos cofres públicos e
com a extraordinária publicidade, além de uma poderosa cadeia de televisão,
373
aquêles que prepararam com tanto cuidado o comício do dia 13 devem estar
surpresos com as brasileiras de São Paulo que, ao invés de usar tanques de
guerra preferiram arrimar seu movimento de afirmação democrática na fôrça
moral dos rosários. Sabe V. Exª., Senhor Presidente, que esse movimento cívico
em cadeia está explodindo em tôdas as capitais e nas principais cidades do
interior do Brasil. Mesmo aqui em Brasília, Capital da República, as mulheres já
se reúnem para promover, no próximo dia 10, no período da tarde, a Marcha da
Liberdade, que se destina principalmente a prestigiar todos os membros do
Congresso Nacional. No próximo dia 2, na cidade do Rio de Janeiro, na
Esplanada do Castelo, também as brasileiras daquela cidade do Brasil vão dar
demonstração de sua decisão inabalável de fazer todo o possível para que
realmente o País encontre seus verdadeiros destinos.
A comparação realizada pelo deputado, a qual realmente dava motivos para a
Presidência da República ficar “profundamente chocada”, refere-se ao preço pago por cada
um dos movimentos para alcançar o sucesso de público em suas concentrações. Em relação
ao Comício da Central do Brasil, este contou com a “presença do Chefe da Nação e o apoio
dos Ministérios Militares, com as facilidades de transporte abundante oferecido pelos cofres
públicos e com a extraordinária publicidade, além de uma poderosa cadeia de televisão”, ou
seja, aduz o deputado que o seu sucesso se deveu sobremaneira ao forte apoio institucional
recebido. Neste particular, o deputado é ainda irônico, quando faz referência ao “transporte
abundante oferecido pelos cofres públicos”, o que inclusive poderia configurar o emprego
ilegal da máquina estatal para fins político-partidários. Mesmo assim, na análise do
deputado do PSD, o Comício do dia 13 reuniu somente a metade dos membros da
“Marcha”, ou seja, 150 mil manifestantes.
Já a “Marcha da família com deus pela liberdade”, um movimento “espontâneo”,
como mencionado pelo parlamentar no excerto anterior, não teve o apoio institucional da
Presidência da República e dispensou os “tanques de guerra”, referindo-se à presença de
membros das Forças Armadas no Comício da Central do Brasil. Em troca, “preferiram
374
arrimar seu movimento de afirmação democrática na fôrça moral dos rosários”. Rosários ao
invés de tanques, religião ao invés de política. As mulheres foram rezar pelo Brasil, pela
paz e pela democracia: uma imagem que é muito difícil de apagar, pois que muito
marcante, num cenário político radicalizado como aquele. Além disso, a “Marcha da
família”, como segue no excerto, já tinha datas para ocorrer em outras capitais brasileiras,
como no Rio de Janeiro e em Brasília. Nesse contexto, merece destaque especial a
concentração que estava sendo programada para Brasília. A “Marcha da liberdade” teria
como objetivo principal “prestigiar todos os membros do Congresso Nacional”, numa clara
declaração de guerra aos auspícios de uma parcela radical da esquerda brasileira que
defendia, inclusive, o fechamento do Congresso Nacional para a constituição de um novo
que fizesse aprovar as reformas de base.
Dessa forma, pode-se afirmar que o deputado tinha plena convicção de que a”
Marcha” havia rendido muito mais frutos do que o Comício organizado pelo CGT e demais
movimentos de esquerda. A propalada popularidade de João Goulart já não era tão
convincente assim: os seus contrários eram também numerosos. Esse dado representa um
indicativo muito forte de que um possível golpe poderia não ser tão traumático à população
como um todo.
Os sentidos políticos produzidos pela “Marcha da família com deus pela liberdade”
eram fortes demais para serem livremente combatidos como foram aqueles produzidos pelo
Comício da Central do Brasil. Os significados articulados na “Marcha”, a princípio, não
políticos, como “mães de família”, “paz”, “ordem”, “religião”, eram caros ao imaginário
375
popular dos brasileiros e, portanto, muito difíceis de serem contestados do ponto de vista
discursivo. Disputar sentidos contra esses seria disputar com o “sagrado” e, portanto,
tornar-se “profano”. Assim, o deputado federal Benedito Cerqueira (PTB/GB)
107
,
contraditou o discurso de Cunha Bueno de forma muito moderada:
O SR. BENEDITO CERQUEIRA:
(Para uma comunicação) (Sem revisão do orador) – Sr. Presidente, Senhores
Deputados, temos ouvidos, nestes últimos dias, ainda, os comentários pró e
contra as concentrações que se fazem em nosso País.
Sr. Presidente, para a satisfação dos homens – se pudéssemos assim chamar –
considerados de esquerda nesta Casa, não vimos nenhum dêles vir ao microfone
para condenar a grande concentração que se realizou em São Paulo, em defesa
da lei da Constituição e da ordem.
Isto para nós é motivo de alegria, porque demonstra que, de nossa parte, não há
nenhuma intolerância. Também, Sr. Presidente, em São Paulo, durante os
preparativos para aquela concentração, nenhum dirigente sindical, nenhum
dirigente político, quer do P.T.B., quer do Partido Socialista ou de outros
partidos coligados, ameaçou ou tomou qualquer atitude a fim de impedir fôsse a
mesma realizada. Assim desejamos que ocorra da outra parte.
Neste excerto, o deputado da Guanabara, aliado de Goulart, se vê obrigado a
concordar que, em São Paulo, havia ocorrido uma “grande concentração” “em defesa da lei,
da Constituição e da ordem”. Admite a força popular reunida naquele protesto contra o
governo federal, com certo constrangimento, uma vez que para um político de esquerda –
que normalmente se vale de um discurso tido como popular para balizar a sua atuação
política – aquela multidão, nas ruas da capital paulista, era um fato político, produzido
pelos seus adversários, a se respeitar. Tendo por base esse argumento, Cerqueira afirma que
a “Marcha da família” ocorreu sem maiores problemas, tendo em vista o caráter
democrático que possui a esquerda brasileira: “nenhum dirigente sindical, nenhum dirigente
107
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 24 de
março de 1964, na página 1758.
376
político, quer do P.T.B., quer do Partido Socialista ou de outros partidos coligados,
ameaçou ou tomou qualquer atitude a fim de impedir fôsse a mesma realizada”. Tal
referência foi feita pelo deputado, tendo em vista os boatos das tentativas de impedimento
da realização do Comício da Central do Brasil por membros de grupos direitistas, além de
incidentes violentos ocorridos, naquele mesmo período, na Faculdade de Direito de São
Paulo e em Minas Gerais. Mesmo considerando a “Marcha da família” um acontecimento
político relevante, o deputado petebista apresenta uma única crítica ao evento como segue:
Não é bom mobilizar senhoras da sociedade para virem com os sagrados rosários
impedir que o povo vá à praça pública ou recintos fechados pregar suas idéias.
Não é bom mobilizar estudantes e jovens trabalhadores, também ligados a cultos
religiosos, para tentar impedir essas manifestações populares. O povo deve
manifestar-se em praça pública como desejar. Os que não quiserem ouvir, que lá
não compareçam. Quanto aos outros, se for do seu agrado, que compareçam.
Assim estaremos praticando realmente a democracia.
O deputado, neste trecho, utiliza o argumento de que a “Marcha da família com deus
pela liberdade foi uma estratégia da direita conservadora brasileira visando a inibir a
esquerda e o governo federal promoverem manifestações em favor das reformas de base. É
interessante, neste particular, verificar a imagem que o parlamentar cria acerca do fato. Ele
afirma que “senhoras da sociedade (...) com sagrados rosários” e “jovens trabalhadores (...)
ligados a cultos religiosos” são “mobilizados”, ou melhor, são “usados” como “massa de
manobra” para impedir com que “o povo” saia às ruas “pregar suas idéias”. Contudo, tal
acusação, invertendo aí o pólo dos manifestantes, não poderia ser feita exatamente pela
direita? Por que, necessariamente, a esquerda mobiliza os brasileiros “conscientes” e a
direita os “não conscientes”?
377
Na seqüência, serão apresentados mais argumentos da direita parlamentar brasileira, a
partir do pronunciamento do deputado federal Herbert Levy (UDN/SP)
108
:
Porque o que é preciso dizer ao povo, nesta altura, é uma verdade simples: a
onda demagógica calculadamente lançada pelo Presidente da República constitui
mera cortina de fumaça para encobrir a única coisa que o preocupa
permanentemente, a êle e ao seu cunhado: a permanência no poder.
Já agora a opinião pública não encara as denúncias que há dois anos vimos
insistentemente formulando quanto aos propósitos verdadeiros que animam o
Sr. João Goulart como simples tomada de posição oposicionista. Porque, desde o
comício subversivo de 13 de março, desafivelaram-se as máscaras e o Presidente
da República e seu cunhado já se julgam em condições de descobrir os seus
verdadeiros propósitos.
O excerto inicia com uma constatação que o deputado paulista quer que o leitor do
seu tempo faça. Toda a onda de radicalismo político e de demagogia que o presidente da
República estava fazendo naquele momento já estava sendo denunciada há, pelo menos,
dois anos pela oposição. Tais denúncias, conforme o parlamentar udenista, não eram
percebidas, na sua integralidade, uma vez que passavam como sendo meras tomadas de
posição oposicionista. Dessa forma, o que deputado busca que seja concluído é que os
verdadeiros propósitos do presidente da República e de seu cunhado, Leonel Brizola, é a
“permanência no poder”. Tal permanência no poder, apesar de não ter sido dito por Levy
textualmente neste excerto, implicitamente somente poderia ser conseguida se fosse
impetrado um golpe por parte de Jango e Brizola. Nesse sentido, o Comício da Central do
Brasil ou, nas palavras do deputado, “o comício subversivo de 13 de março”, revelou a
intenção de Jango de permanência no poder, qualquer que fosse a forma de conquista deste
108
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 25 de
março de 1964, nas páginas 1818 a 1820.
378
intento. Continua o parlamentar, esmiuçando mais ainda os objetivos de Goulart e o
Comício como um elemento de sua estratégia:
Nos mínimos detalhes essa manifestação foi reveladora: na ousadia com que se
desafiou o Congresso a pedra no caminho para a ditadura que é preciso remover
a qualquer custo; nos recursos escandalosamente mobilizados, inclusive os
ônibus gigantes das emprêsas de economia mista, desde a Fábrica Nacional de
Motores à Cia. Siderúrgica Nacional, à Petrobrás e até mesmo os da
Universidade Rural; na desenvoltura com que a partir das 16 horas tornaram-se
gratuitos os transportes da Rêde Ferroviária Federal, transformando os dirigentes
a propriedade da União em coisa sua, na escolha do local proibido tudo isso
aliado aos pronunciamentos abertamente subversivos dos oradores,
caracterizando a mobilização do estilo autoritário, que deveria marcar de modo
claro, a marcha para a ditadura. Assim, pôs-se à mostra a ousadia sem limites da
insignificante minoria de caudilhos e comunistas que, unidos em seu propósito
liberticida, querem dominar a imensa maioria democrática, usando dos poderes e
recursos que essa mesma maioria lhes outorgou, dessa forma traindo a sua
confiança.
Se no excerto anterior, o deputado udenista não mencionava diretamente os
“propósitos ditatoriais” de João Goulart, deixando os mesmos num plano subliminar, neste
momento, todavia, os mesmos aparecem como sendo objetivos claramente identificáveis. O
Comício da Central do Brasil, nesse sentido, é visto como um estágio de agitação popular
em direção da ditadura. Dessa forma, o ato em questão foi, “nos mínimos detalhes”,
revelador dessa intenção. Além disso, segundo o parlamentar, a realização do Comício
estava eivada de irregularidades e ilegalidades que poderiam, inclusive, suscitar, crime de
responsabilidade pelo uso da máquina pública para fins político-eleitorais ou ideológicos,
denúncia já abordada em outro pronunciamento direitista neste capítulo: “ousadia (...) nos
recursos escandalosamente mobilizados, inclusive os ônibus gigantes das emprêsas de
economia mista, desde a Fábrica Nacional de Motores à Cia. Siderúrgica Nacional, à
Petrobrás e até mesmo os da Universidade Rural”.
379
Afirma o deputado que Goulart desafiou o Congresso Nacional, pois este se
configurava naquele contexto como sendo “a pedra no caminho para a ditadura que é
preciso remover a qualquer custo”. Neste ponto, Levy vale-se de um argumento muito
explorado pelas forças direitistas: o presidente, para se manter no poder e conseguir o seu
plano de reformas de base em direção do “comunismo”, estaria de acordo com as ações
golpistas propostas pelos setores mais radicais de esquerda, o que parece ser um grande
exagero afirmar isso de forma tão peremptória, como foi visto em capítulo anterior, tendo
em vista que, em vários momentos, Goulart demonstra compromisso com a
constitucionalidade das reformas. Entretanto, o possível golpe das esquerdas era
francamente explorado pelas forças direitistas e a identificação de Goulart com esse
discurso era facilmente construída. Basta levar-se em conta que no “Comício das
Reformas”, o qual contou com a participação do presidente da República, os oradores que o
antecederam, como Brizola, falavam abertamente no entrave que o Congresso Nacional
representava para o intento reformista da esquerda. Daí para envolver João Goulart num
mesmo “bolo esquerdista radical”, era tarefa fácil para a oposição. A resposta para esse
“golpe esquerdista” “desejado” por Goulart está na “Marcha da família com deus pela
liberdade”, na seqüência de seu pronunciamento:
A demonstração do povo de São Paulo gigantesca e sem precedentes na história
de meu Estado e mesmo na do País pelas suas proporções, é clara e inequívoca.
As setecentas mil ou talvez mesmo um milhão de pessoas que foram para as
sacadas, para as ruas e para a praça pública repudiar o totalitarismo e afirmar a
sua determinação de viver em liberdade sob a inspiração de Deus, não pode
deixar de ser ouvida e não deixará de sê-lo por todos quantos têm parcela de
responsabilidade na defesa das instituições.
As vaias ensurdecedoras endereçadas ao Presidente e ao seu cunhado, pela
multidão na praça da Sé, em São Paulo, constituem um pronunciamento
inequívoco e vale por uma mensagem ao Presidente da República: respeita a
380
Constituição ou vá-se embora. A Nação prefere, claramente, uma Constituição
sem Presidente do que um Presidente sem Constituição.
É peremptória a classificação das ações pretendidas pelo presidente Goulart na lógica
do deputado udenista: tais devem ser vistas como atitudes totalitárias. O povo que saiu às
ruas de São Paulo na “Marcha da família” foi repudiar o “totalitarismo” e “afirmar a sua
determinação de viver em liberdade sob a inspiração de Deus”. Note-se que o deputado está
afirmando que Goulart, além de querer subtrair do povo a democracia e trocá-la pelo
totalitarismo soviético, castrista ou mesmo maoísta, ele quer ainda retirar a liberdade das
pessoas e, mais, quer retirar do povo a “inspiração de Deus”. Daí as senhoras terem
empunhado os rosários na Marcha, buscando a proteção divina e, além disso, demonstrando
ao presidente e aos comunistas ateus a força que Deus tem na vida dos brasileiros. No
parágrafo final, uma ameaça a Goulart: ou respeita a Constituição ou vá embora. Nesse
particular, duas alternativas parecem relevantes. A primeira delas: em não respeitando a
Constituição, o presidente deverá sofrer um processo de impedimento. A segunda
alternativa: em não se respeitando a Constituição, o presidente sofrerá um golpe. Já se
conhece a história do resultado desta ameaça e suas conseqüências para o Brasil.
381
9.3 As reações dos parlamentares à posição tomada por Goulart em relação ao
protesto dos marinheiros no Rio de Janeiro
Nesta última seção, serão analisados os pronunciamentos dos deputados federais em
relação à posição política tomada por João Goulart em relação ao protesto dos marinheiros,
ocorrido em 25 de março de 1964 e que teve lugar no Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de
Janeiro. Os detalhes da manifestação já foram suficientemente tratados em capítulo
anterior, sendo que, desta forma, serão, neste momento, tratados diretamente os
pronunciamentos dos deputados federais de direita e de esquerda. A primeira manifestação
sobre o tema, exposta na seção do pequeno expediente na Câmara Federal foi a do deputado
Benedito Vaz (PSD/GO)
109
:
Desta vez Senhor Presidente o objetivo visado foi a nossa gloriosa Marinha de
Guerra. E, nesta tarde, Senhor Presidente, aqui em Brasília, que não sei se será
uma das últimas tardes em que aqui nos reunimos, quero dirigir a minha
homenagem à Marinha de Tamandaré e de Barroso, àquela brava fôrça que no
decorrer da nossa história foi um dos baluartes da independência do Brasil,
àquela Marinha de Riachuelo que no auge da luta proclamou: o Brasil espera que
cada um cumpra o seu dever.
O deputado inicia o trecho afirmando que a Marinha do Brasil havia sido o mais
recente alvo de ataque do presidente da República, evidentemente referindo-se ao
conturbado contexto político desde o Comício da Central do Brasil. Afirma estar temerário
sobre a instabilidade política do Brasil, quando afirma que não sabe se aquele não será um
109
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 31 de
março de 1964, na página 1893.
382
dos seus últimos pronunciamentos, tendo em vista à iminência de um golpe, capitaneado
por João Goulart, que teria como objetivo o fechamento do Congresso Nacional. No final
do excerto, o parlamentar goiano proclama a exortação da Marinha de Guerra do Brasil no
sentido de que aquela força defende o Brasil e sabe cumprir o seu dever.
Neste excerto, é particularmente interessante a preocupação com a iminência de um
golpe nas instituições democráticas do país. Mesmo sem mencionar de que lado será
desferido o mesmo, pelo contexto, pode-se inferir que o medo seria mesmo do golpe ser
provocado pelo governo. Sabe-se hoje que o mesmo foi, na verdade, provocado pela
oposição. Contudo, é importante registrar o clima de insegurança que tanto a direita como e
esquerda alimentavam no momento. Fica muito evidente, e não somente pela manifestação
em apreço, mas pelo contexto das manifestações dos parlamentares e lideranças políticas de
direita, que havia sim uma possibilidade, pelo menos uma hipótese, ainda que se sabe hoje
muito remota, de um golpe de esquerda no Brasil. Isso porque os sujeitos políticos
envolvidos no centro da crise não tinham como antever de onde viria o golpe civil-militar, a
menos aqueles diretamente envolvidos na trama. Na seqüência do pronunciamento, o
parlamentar faz uma consideração negativa sobre as reformas de base pretendidas por
Goulart:
No qüinqüênio passado o Brasil progredia demonstrava que estava progredindo
com um índice que era dos mais elevados do mundo. Não tinha havido reformas
de base. Nada disso que hoje é preconizado tinha havido. Entretanto o Brasil se
desenvolvia, o Brasil progredia. Neste qüinqüênio entretanto, o desenvolvimento
parou, está todo estagnado.
383
O deputado apresenta abertamente sua posição contrária às reformas de base, o que
representava uma posição política que comumente não era explicitada com tamanha
“sinceridade” pela maioria dos opositores de Jango. O comum nesse tipo de
posicionamento dos deputados de direita era afirmar que as reformas de base faziam parte
de um projeto de “comunização” do país e que isso seria realizado após o fechamento do
Congresso Nacional. Não havia, por parte da oposição, uma discussão substantiva acerca
das reformas, somente acusações ao governo nesse nível, o que desqualificava o processo
das mesmas, uma vez que, do outro lado, os deputados da situação acusavam os
oposicionistas de “reacionários”, “contrários aos interesses do povo brasileiro” etc. Assim,
o debate sobre as reformas foi, no âmbito do governo Goulart, uma conversa entre surdos.
A rigor, poucos eram “contrários” às reformas. Contudo, as mesmas não ocorreram, porque
não havia acordo em torno delas diante de um debate radicalizado entre as partes
110
.
Dessa forma, a posição assumida por Bendito Vaz era dificilmente enunciada. Mesmo
assim, parece que a razão de o deputado ser contrário às reformas era muito clara: o Brasil
não tinha necessidade das mesmas. A justificativa também se transparece: no governo do
presidente Juscelino Kubitschek o Brasil cresceu num dos maiores índices do mundo sem a
necessidade de quaisquer reformas, sejam constitucionais, sejam de base. Está implícito na
fala do parlamentar pessedista que o problema do Brasil não está na sua estrutura
institucional ou legal, mas na forma como João Goulart estava conduzindo a sua política de
110
Acerca da radicalização dos debates sobre as reformas de base no contexto do Congresso Nacional, são
muito ilustrativas e precisas as análises de Figueiredo (1993) e Santos (2003).
384
governo. O Brasil progredia com Juscelino e “neste qüinqüênio entretanto, o
desenvolvimento parou, está todo estagnado”. Segue em seu pronunciamento:
Entregou os pontos mais importantes da administração pública aos agentes de
Moscou, inclusive a Petrobrás. E agora entregou os comandos navais todos nas
mãos dos comunistas. Fez mais, Senhor Presidente, atentou contra o artigo da
Constituição que estabelece que as Fôrças Armadas são fundadas na hierarquia e
na disciplina. A hierarquia e a disciplina militares estão destruídas, porque agora
quem manda é a subversão que vem de baixo. A desordem provocada pelos
marinheiros e pelos cabos impôs um Ministro da Marinha indicado pelo CGT.
Até onde chegamos! A que degradação moral, a ponto de um Ministro da
Marinha, um Ministro das fôrças militares ser indicado pelo CGT!
Neste ponto, o deputado do PSD retoma o assunto principal do seu pronunciamento.
Retoma o mesmo, afirmando, inicialmente, que os “pontos mais importantes da
administração pública” estão sendo chefiados por “agentes de Moscou”. Cita como o
exemplo em destaque a Petrobrás, numa referência implícita ao decreto presidencial de
encampação das refinarias particulares, assinado por Goulart no Comício da Central do
Brasil. Contudo, segundo o deputado, se já não bastasse a presença dos comunistas nos
postos mais altos do governo, após a “Revolta dos marinheiros”, Goulart entregou o
Ministério da Marinha nas mãos dos comunistas. Essa referência é feita tendo em vista que,
com a crise provocada pela referida revolta, o Almirante Sílvio Mota pediu exoneração do
seu cargo de ministro e foi substituído pelo Almirante Paulo Mário Rodrigues, indicado
pelos próprios marinheiros
111
e também pelo CGT, conforme o deputado. Acusa o
presidente neste excerto ainda de atentar contra a Constituição Federal no que concerne à
hierarquia e disciplina nas Forças Armadas, “porque agora quem manda é a subversão que
111
A fonte que afirma ter sido o almirante Paulo Mário Rodrigues indicado para ministro da Marinha está
contida no Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro (DHBB, 2001, p. 5112-5113). Tal afirmação, cotejada
385
vem de baixo”, numa clara referência à anistia concedida por Goulart aos marinheiros
revoltosos.
Na seqüência, será analisado o pronunciamento do deputado Marco Antônio
(PST/GB)
112
, em defesa da manifestação dos marinheiros e do governo de João Goulart.
Denuncia ainda o deputado da Guanabara, que está sendo arquitetado um golpe de direita
no país:
O SR. MARCO ANTÔNIO:
(Lê a seguinte comunicação) – Senhor Presidente, nas últimas horas, está a
Nação Brasileira intranqüilizada pela propaganda golpista, já agora abertamente
realizada, e que visa a criar um clima para a repetição do 24 de agôsto. Aí estão
os editoriais dos jornais de ontem, notadamente do “Jornal do Brasil” a pregarem
cinicamente a derrubada do Senhor Presidente da República. Que ironia da sorte,
Senhor Presidente, encontramos nestes acontecimentos atuais. Os que acusavam
o primeiro magistrado de articular golpes de Estado são agora obrigados a
desafivelar a máscara de legalistas e forçados a uma nítida ação golpista.
Neste primeiro momento da manifestação, o deputado da Guanabara, em defesa do
governo de João Goulart, acusa a oposição de estar tramando “a derrubada do Senhor
Presidente da República”. Note-se, neste ponto, a inconstância do momento político em que
os pronunciamentos, tanto de direita, como foi visto antes, como de esquerda, tratam da
saúde do regime democrático, ameaçada por discursos francamente antagônicos. Neste
ponto, é um parlamentar alinhado a Goulart que denuncia abertamente um golpe. É
interessante que o deputado faz menção a uma “reedição” do “24 de agôsto” de 1961, ou
seja, a primeira crise que enfrentou Goulart por ocasião da renúncia de Jânio Quadros. Na
seqüência da sua manifestação:
com o pronunciamento em análise, faz pleno sentido, pois para os parlamentares de direita, os marinheiros
favoráveis às reformas de base de Goulart, eram considerados também “comunistas”.
386
E o que levou, Senhor Presidente, os golpistas a caírem no desêspero e na
ilegalidade? Tão somente uma justa e vitoriosa luta dos marinheiros e fuzileiros
navais, movimento que recebeu caloroso apoio da opinião pública e
particularmente dos trabalhadores de nossa terra. Os marinheiros e fuzileiros
conquistaram a simpatia e a solidariedade dos milhões de brasileiros para sua
causa porque ergueram um patético brado contra um regulamento desumano,
arcaico e violador da própria dignidade humana. Reivindicam eles o direito de
casar, o direito de reunião em sociedade civil legalmente registrada, sociedade
que tem como propósito o desenvolvimento cultural e dar assistência a seus
associados. Reclamam também os marinheiros e fuzileiros contra o reacionário
dispositivo da Constituição que lhes veda o acesso aos pleitos quando são
brasileiros dignos e patriotas.
Nesse excerto, o deputado esquerdista faz referência ao conjunto de propostas dos
marinheiros revoltosos. Chama a atenção à menção a tais pontos, pois quando das
acusações direitistas à manifestação, em nenhum momento, foi abordada a justiça ou não
das reivindicações em específico. O deputado afirma que a “opinião pública” apoiou o ato,
o que é muito provável, uma vez que o que era demandado pelos marinheiros não era uma
mudança radical nas estruturas políticas do país, mas “o direito de casar, o direito de
reunião em sociedade civil legalmente registrada, sociedade que tem como propósito o
desenvolvimento cultural e dar assistência a seus associados”, ou ainda, o direito de serem
eleitos para cargos públicos. Como ser contrário a demandas como essas? Os deputados de
oposição ao governo não trataram esses pontos em suas manifestações, uma vez que não
existiam evidentemente condições de emergência para um discurso contrário nesse nível.
Ou alguém será contra o casamento num país católico como o Brasil? Como ser contrário
ao direito de reunião, se esse é um direito que os próprios parlamentares exerciam
diuturnamente? Como serem contrários à eleição de militares e correrem o risco de
perderem possíveis votos dos seus eleitores defendendo uma medida tão impopular?
112
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 31 de
março de 1964, na página 1894.
387
A direita não atacou os pontos demandados pelos marinheiros, pois esses eram
inatacáveis, visto que considerados justos naquele contexto discursivo. Os ataques
restringiram-se à desobediência, à insurgência dos marinheiros para com as ordens,
exaradas pelo então ministro da Marinha Sílvio Mota, para que os revoltosos cessassem a
manifestação e, após o segundo ato de insurgências, daqueles que deveriam debelar a
mesma e juntaram-se aos manifestantes na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de
Janeiro. A rebelião dos marinheiros foi mais uma desculpa oposicionista para mais um
duelo com o presidente João Goulart e com os deputados da base governista, como pode ser
denotado a partir de trecho da manifestação do deputado Amaral Neto (UDN/GB)
113
:
Dentro desta Casa assomam à tribuna Deputados que não têm condição moral
para fazê-lo [a defesa dos marinheiros revoltosos], porque lá fora se alinham em
campanha para dissolução desta Casa. Naquele comício do dia 13 na Guanabara
– em que ao lado do Presidente da República se encontrava a figura do Sr.
Osvaldo Pacheco, sussurrando ao Presidente aquilo que ele esquecia de dizer e
gritando muito bem àquilo que ele dizia e que era do seu agrado – naquele
Comício um deputado desta Casa pregava o fechamento do Congresso em
palavras claras e pedia ao povo que dissesse do seu acôrdo levantando os braços
para o alto tal como Mussolini, tal como Hitler, tal como Kruchev, tal como
Franco, tal como Salazar, tal como Strossener, tal como todos os ditadores do
mundo.
O contexto da manifestação, cujo trecho acima foi extraído, era justamente o da
Rebelião dos Marinheiros. Contudo, o presente contexto, como foi acima afirmado, estava
servindo de pretexto para um novo enfrentamento com o governo federal em relação à
participação de João Goulart no Comício da Central do Brasil. Afirma o parlamentar
udenista que os deputados que participaram da referida manifestação não têm a “condição
moral” para defender os marinheiros revoltosos, porque são justamente aqueles
113
O presente pronunciamento encontra-se publicado no Diário do Congresso Nacional (Seção I), de 31 de
388
parlamentares que desejam fechar o Parlamento brasileiro. A questão é a seguinte: qual é a
relação existente entre um assunto e outro que não somente mais uma oportunidade de
atacar o governo? Claramente o deputado faz menção a Leonel Brizola, grande alvo dos
seus colegas parlamentares da direita, dizendo que o mesmo estava pregando o fechamento
do Congresso Nacional e fazendo poses que rememoravam líderes totalitários como
Mussolini, Hitler, Kruschev, Franco, Salazar e Strossener.
A questão que parecia estar presente era que efetivamente não existia mais
possibilidade de um debate político em direção a um acordo para manter minimamente a
governabilidade no período. Tanto os parlamentares de direita como os de esquerda tinham
a clareza de que estavam falando somente para os seus próprios pares partidários ou
ideológicos.
O barco estava à deriva, numa tempestade em meio ao turbulento oceano. Mares mais
calmos haveriam de aparecer no horizonte e reconduzir a nau novamente para a calmaria,
mesmo que momentânea, de uma nova hegemonia.
março de 1964, na página 1895.
389
9.4 Considerações finais: “diagnósticos de desordem” e “soluções de ordem” na
câmara dos deputados e uma sumarização dos discursos antagônicos do período
Uma questão que pode ser considerada extremamente controversa nesses momentos
finais do governo de João Goulart, se enfrentada do ponto de vista da análise do discurso,
diz respeito aos sentido que ancoraram os dois discursos antagônicos analisados nos quatro
capítulos finais desta tese. Assim, foram enfocadas as posições discursivas tomadas pelos
movimentos sindicais e populares, pelos militares de altas patentes, pelo presidente da
República e pelos deputados federais.
Em toda essa miríade discursiva – genericamente aqui dividida entre, de um lado,
“discursos de esquerda” e, de outro lado, “discursos de direita” – um ponto parece
importante de ser enfrentado: a questão da democracia. A razão para encarar esse problema
diz respeito ao fato de que, em nenhum momento qualquer grupo ou sujeito, que teve seu
discurso analisado nestes últimos capítulos, se afirmou como sendo antidemocrático ou não
democrático, mesmo considerando o fato de que o próprio termo “democracia” não
encontra aqui um esteio comum de significação. Neste particular, dois sentidos presentes de
“democracia”, dentre outros possíveis e identificáveis, podem ser facilmente pinçados
nestes discursos.
Primeiramente, o discurso “democrático” dos movimentos populares e sindicais. Para
aqueles movimentos, democracia era sinônimo de “justiça social”, “reformas de base”,
390
“direito de voto para os sargentos e para os analfabetos”, dentre outros sentidos já
enunciados na ocasião. Nesse contexto, portanto, a “democracia” poderia prescindir de
sentidos como “constitucionalidade”, “regras políticas”, “legalidade”, termos vinculados
comumente a um sentido formal de democracia. O que contava para os movimentos
populares no período era se as reformas “reais” iriam de fato ocorrer, não importando os
meios para que as mesmas fossem alcançadas. Daí o poder de assujeitamento que este
discurso tinha em relação a grupos revolucionários, vinculados à esquerda mais radical.
Outro discurso “democrático” perfeitamente identificável nessa Caixa de Pandora
política era justamente o que enunciava as formalidades do regime democrático,
confundindo-o sobremaneira com o formalismo jurídico. Esse era o discurso dos deputados
de direita, dos militares de altas patentes e de políticos da estirpe de Carlos Lacerda. Na
verdade, pode-se identificar a utilização do formalismo jurídico-democrático justamente
como um tipo de contra-remédio para o avanço de políticas sociais como as reformas de
base propostas por João Goulart.
Note-se, mesmo a partir da presente sumarização, que o termo “democracia” não
possui um significado comum, um acordo mínimo que balize a luta disputa política entre as
partes. No discurso sindical-popular, a democracia tem o sentido de “avanços sociais”. Já
para os grupos direitistas compostos de militares, parlamentares e políticos conservadores,
a democracia apresenta um sentido formal-jurídico. Isto porque, a “democracia”, além de
não ter um sentido comum para ambas as partes, apresenta-se inequivocamente como um
391
“significante flutuante”
114
, ou seja, está presente, flutuando entre os dois discursos
antagônicos
As inferências acerca do sentido flutuante de democracia esclarecem um possível
problema que poderia ser gerado na presente análise: quem, em verdade, possui um
discurso democrático? Entende-se, contudo, que a pergunta deveria ser outra: é a
democracia considerada um sentido importante a ser preservado entre os discursos
antagônicos do período? A resposta é certamente negativa, uma vez que os discursos
antagônicos apresentam outros sentidos privilegiados, conforme segue.
Assim, o primeiro discurso a ser enfocado será aquele que genericamente tem sido
aqui chamado de o discurso da “direita”. Antes uma palavra sobre o termo. O termo
“direita” está sendo aqui empregado para designar os opositores do governo Goulart e seu
emprego deve-se simplesmente pelo fato de que os defensores do governo assim
qualificavam a oposição. O discurso de “direita” possuía basicamente três sentidos
privilegiados ou centrais. Assim, a “direita” era 1) “anti-Goulart”; 2) “anticomunista” e; 3)
alimentava “profundas suspeitas com relação ao plano de reformas de base de Jango”. No
entanto, como foi visto acima, não se pode caracterizar homogeneamente todos os
momentos discursivos. A “direita” assujeitava grupos políticos dispostos mais ou menos a
114
Nas palavras de Ernesto Laclau: “a questão já não radica em que particularismo da demanda se apresenta
auto-suficiente e independente de qualquer articulação equivalencial, pois que seu sentido permanece indeciso
entre fronteiras equivalenciais alternativas. Os significantes cujos sentidos estão “suspensos” desta forma
denominaremos significantes flutuantes (2005, p. 165). Para Laclau, ainda, a dimensão flutuante, mostra-se
mais evidente em momentos de crise, como o de período em análise: “portanto, a dimensão ‘flutuante’ se
apresenta mais visível em períodos de crise orgânica, quando o sistema simbólico requer ser reformado de
uma forma radical” (2005, p. 166)
392
radicalizar a situação política a ponto de derrubar o presidente do poder. Num ponto mais
radical, os militares que articularam e operaram o golpe formavam o grupo disposto a
medidas mais drásticas como as que foram efetivamente tomadas. Já, numa posição menos
radical, podem ser incluídos os deputados contrários ao governo, mas que não estavam
diretamente ligados à armação que redundou na derrubada de Jango.
Tome-se novamente os três sentidos privilegiados no discurso da direita e veja-se a
leitura que os militares golpistas faziam dos mesmos. Assim, todos esses sentidos podem
ser classificados como de adesão máxima dos militares golpistas, ou seja, eles nunca
quiseram Jango no poder (anti-Goulart); foram sempre radicalmente anticomunistas
(anticomunismo) e tinham a clareza de que as “reformas de base” representavam parte de
um projeto do governo Goulart elaborado por comunistas (profundas suspeitas com relação
ao plano de reformas de base de Jango). O grau de antagonismo em relação à situação
política para esse grupo era radical e não é por outra razão que foram eles próprios que
articularam o golpe. Se os militares não tivessem esse nível de antagonismo seria muito
provável que o golpe não tivesse efetivamente ocorrido.
De outra maneira comportaram-se os deputados da “direita” em relação aos mesmos
pontos nodais, pois é muito complicado denotar que os mesmos compusessem
homogeneamente um grupo de oposição “golpista” na Câmara Federal. Pode-se, portanto,
afirmar que entre esses parlamentares existiam graus diversos de oposição ao governo
federal. Contudo, independentemente do grau de oposição, é um traço comum a todos eles
os três pontos nodais antagônicos em relação ao discurso da “esquerda”.
393
Assim, em relação ao primeiro, não necessariamente todos deputados direitistas
possuíam o mesmo grau de resistência ao governo de João Goulart apresentado pelos
militares golpistas. A questão apresentava-se de forma mais nebulosa: Goulart não era visto
por todos os deputados de “direita” como um alvo a ser abatido; o que era comum a todos
eles era o fato de o presidente ser, no mínimo, um adversário e, no máximo, um inimigo,
estabelecendo-se aí uma dupla possibilidade dos parlamentares de direita encararem o
presidente: seja como adversário, que então se estabelece uma relação agônica, seja como
inimigo, momento em que se estabelece uma relação antagônica. Havia, neste particular,
parlamentares que não tinham a intenção de derrubar Goulart; tão-somente não queriam que
ele comandasse um golpe esquerdista no Brasil, como era também voz corrente naquele
período.
Já em relação ao “anticomunismo”, parece que existia maior homogeneidade no
discurso da direita. Ambos, militares e políticos de direita reprovavam profundamente a
idéia do comunismo. Os militares – seja no momento da crise da renúncia de Jânio
Quadros, seja com o apoio formal recebido pelo presidente do CGT, PCB e outras
entidades esquerdistas às vésperas do golpe – acusavam diretamente Goulart de ser um
comunista. Os políticos de direita criticavam abertamente os apoios que os setores de
esquerda, dentre os quais os comunistas, fartamente ofereciam a Goulart. O comunismo era
um “horror” comum à direita brasileira. Existia um medo corrente, várias vezes levantado
pelos parlamentares, de que o Brasil corria o risco de se transformar numa Cuba de Fidel
Castro.
394
Já em relação às suspeitas que guardavam os deputados de direita em relação às
reformas de base apresentadas por Goulart, também não se pode afirmar categoricamente
que todos os parlamentares de oposição eram contrários às mesmas. Inicialmente é
importante, neste ponto, afirmar que a questão das reformas exerceu papel central no
governo Goulart. Vários projetos de reforma agrária oriundos de tanto de partidos de
oposição como dos de situação foram apresentados e não obtiveram aprovação no
Congresso Nacional, uma vez que se tratava de uma matéria constitucional e que exigia
dois terços de votos para sua aprovação e que, nem o governo, nem a oposição detinham
naquele contexto político
115
. Tal situação era percebida claramente pelos deputados
federais, que tinham consciência de que emendas constitucionais não tinham condições de
serem aprovadas num momento antagônico como aquele
116
. Dessa forma, não se pode
categoricamente afirmar que a oposição monoliticamente era contrária a todas as reformas
propostas. O medo constante entre os membros da oposição nos momentos finais do
governo Jango, era o da associação que se fazia entre João Goulart, reformas e comunismo,
ou seja, se o projeto de reformas do presidente estava recebendo apoio de setores radicais
da esquerda, era provável, pelo menos se mostrava um cálculo possível de ser realizado
pelos direitistas, que o mesmo tivesse contornos mais radicalizados também.
115
Neste ponto, é importante ter presente a análise que Wanderley Guilherme dos Santos faz do período,
quando atribui que existia, na verdade uma “paralisia decisória”, constatadas a partir de três condições a
saber: “fragmentação política, polarização ideológica, e instabilidade de coalizões” (2003, p. 265).
116
O deputado Amaral Neto (UDN/GB) exemplifica com exatidão a impossibilidade de aprovação de
qualquer matéria que necessite maioria absoluta dos votos na Câmara Federal: “os traidores nesta Casa, que
aqui têm assento, não podem ter seu mandato cassado, porque aqui não há dois terços para nada. E a Nação
precisa saber que não há dois terços nem para emendar a Constituição, como não há para cassar mandatos,
como não há para votar impeachment. Estamos colocados diante de fato consumado que nos tira todos os
remédios legais para as providências legais que deveríamos tomar” (Diário do Congresso Nacional, Seção I,
31 de março de 1964, p. 1895).
395
Caracterizados os elementos norteadores do discurso da direita, passa-se, neste
momento, a caracterizar o seu corte antagônico, ou seja, a posição política de “esquerda” no
final do período Goulart. A utilização do “termo” esquerda para a caracterização deste
discurso é dada, tendo em vista que os próprios sujeitos deste discurso assim se
autodenominavam, por exclusão aos seus inimigos ou adversários de “direita”. Feita esta
observação, a cadeia de equivalências de “esquerda” no final do período Goulart, composta
por uma heterogeneidade de demandas e de identidades, estava articulada a partir dos
seguintes sentidos privilegiados (pontos nodais), antagônicos aos da cadeia de “direita”,
conforme segue: 1) “pró-governo Goulart” e; 2) “reformista ou revolucionária”.
O primeiro ponto discursivo privilegiado que constituía o discurso de esquerda,
infinitamente mais heterogêneo do que o da direita, era a defesa do governo João Goulart.
Nos momentos finais do seu período, o presidente conseguiu angariar o apoio de amplos
setores das esquerdas, inclusive de suas vertentes mais revolucionárias. O que foi mais
crucial para tal apoio se deveu ao fato de o presidente ter apresentado um conjunto de
propostas políticas reformistas que iam ao encontro de demandas históricas de vários
setores de esquerda. Os sargentos e outros militares de baixas patentes, por exemplo,
apoiavam o governo de Jango, pois, abertamente, o presidente defendeu a universalização
do voto no Brasil, o que incluía os analfabetos e todos os militares, independentemente de
patente. A CONTAG contava com o presidente da República para a promoção da reforma
agrária, uma vez que o Decreto nº 53.700/64, que declarava de utilidade pública para fins
de desapropriação áreas que ladeavam eixos rodoviários federais, ferrovias e terras
beneficiadas pela União, assinado no Comício da Central do Brasil, dava indícios claros de
396
tais intenções pelo presidente. O CGT apoiava formalmente o presidente da República,
visto que, mesmo tendo sido declarada uma entidade ilegal, Goulart continuava mantendo
relações com a mesma e contando com o apoio desta para o seu plano de reformas. Os
comunistas, pois viam no governo Goulart uma possibilidade de legalização do PCB. Já os
parlamentares de esquerda viam em Goulart a possibilidade real de implementação de
reformas de base e entendiam que aquele momento era importante para a consecução das
mesmas, desde que com apoio popular, o que a esquerda detinha, pelo menos em parte.
O segundo ponto discursivo privilegiado de esquerda consistia na tensão existente
entre “revolução” e “reformas”. Para muitos movimentos de esquerda, o governo Goulart
não representava um fim para os seus desígnios, mas um aliado estratégico, pois que, com o
apoio do presidente, tais movimentos poderiam avançar em direção de projetos mais
ambiciosos. Esses grupos revolucionários não tinham qualquer apreço à democracia, se
considerada simplesmente como um método de escolha de lideranças políticas pelo voto
direto dos cidadãos. Democracia, nestes termos meramente formalistas, para eles era
“democracia burguesa” e, neste âmbito de guerra fria no contexto internacional, plenamente
presente na história do Brasil daquele momento, esta deveria ser extirpada, assim como a
burguesia como um todo. O projeto desses setores de esquerda era, portanto,
verdadeiramente revolucionário, comunista, como eram acusados pelas forças direitistas. O
próprio presidente, numa etapa mais avançada desse projeto revolucionário poderia não ser
mais necessário e, inclusive, se constituiria num estorvo para o mesmo.
397
Por este mesmo discurso político de esquerda, além de grupos declaradamente
revolucionários, eram também assujeitados grupos democráticos e reformistas. Neste setor,
sobejamente formado por parlamentares de esquerda, as reformas de base representavam
propostas identificáveis com um projeto político de esquerda e, portanto, isso gerava
também a articulação desses parlamentares. É evidente que serem favoráveis às reformas
não significava serem revolucionários ou golpistas. Na realidade, o cenário político estava
absolutamente radicalizado e posições políticas reformistas poderiam ser facilmente
identificadas com posições revolucionárias ou mesmo golpistas. E em que posição está
João Goulart nesta cadeia de equivalências?
Inicialmente, João Goulart possuía um lugar de destaque no discurso de esquerda,
uma vez que era o pólo articulador do mesmo. Evidentemente que o presidente estava
muito mais alinhado aos grupos reformistas do que com os revolucionários. Contudo, no
contexto político, a posição de Jango foi constantemente muito incômoda, desde o início de
seu governo. O presidente sempre sofreu forte oposição da UDN e mais para o final do seu
período, o importante apoio que recebia do PSD também foi perdido. Com isso, Goulart
encontrava-se extremamente enfraquecido do ponto de vista institucional e seu governo,
portanto, tinha poucos recursos disponíveis para a implementação de seu projeto de
reformas políticas.
Naquele março de 1964, o presidente resolveu apostar na estratégia de defender
abertamente as insatisfações de setores populares e sindicais de esquerda como meio de
pressionar o Congresso Nacional a aprovar seu projeto de reformas. Usava de meios
398
extraparlamentares como recurso para conseguir governar, num contexto político
politicamente radicalizado e economicamente recessivo. Goulart foi ao Comício da Central
do Brasil com esse intuito, mesmo contabilizando o preço negativo que poderia pagar,
estando no palanque ao lado de lideranças populares nada preocupadas com a manutenção
da ordem democrática e dispostas, inclusive, a propor medidas de caráter revolucionário.
Goulart certamente não defendia o fechamento do Congresso Nacional uma vez que em
muitos momentos enfatizou que seus planos reformistas estavam sempre adstritos aos
marcos institucionais. Contudo, numa situação de radicalização política crescente era
praticamente impossível o presidente não ser classificado da mesma forma que os grupos
radicais que lhe davam sustentação nas ruas.
Goulart fez uma aposta desesperada para conseguir governar num cenário de
crescente instabilidade. Contava com a possibilidade de sua derrubada, mas não tinha mais
forças para contê-la, pois quando o discurso democrático não é um universal mínimo entre
os contendores não há como se pensar, muito menos procurar executar, reformas de base,
medidas tão ousadas para conservadores tão conservadores como os do Brasil daquela
quadra.
399
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Todo tempo dá-se uma imagem de si mesmo, um certo horizonte – tão borrado e
impreciso como se queira – que unifica em certa medida o conjunto de sua experiência”.
Visando a uma interpretação, certamente não a única, acerca desta sentença introdutória de
um dos mais densos textos de Ernesto Laclau (1993, p. 19), pode-se dizer que os momentos
históricos, apesar de não se apresentarem ou não serem passíveis de serem conhecidos de
forma transparente indicam, de alguma forma, a existência de uma certa unidade, uma
identificação que fica marcada mesmo após o seu final.
O período do governo João Goulart (1961-1964) certamente tem essa marca, algo que
o singulariza, pois representou, ao mesmo tempo, o fim de uma experiência, a democrática,
e o princípio de uma outra, a do regime autoritário. Contudo, sua singularidade é marcada
400
não por um dos dois tipos narrativos, democracia ou autoritarismo, mas sobretudo por ser
um momento em que nem um dos dois discursos constituía uma idéia de ordem, de ordem
hegemônica. Entre agosto de 1961 e abril de 1964, o que estava em jogo era um futuro
impreciso, borrado, nebuloso. O seu resultado não foi uma inevitabilidade, mas
seguramente foi uma das possibilidades que estavam disponíveis, um dos vários discursos
que buscava suas condições de emergência. O que ali aconteceu na História do Brasil foi
um capítulo de uma de suas transições.
Nesta tese, foram analisados os dois momentos mais representativos do período. Para
cada um deles buscou-se construir não uma coerência entre os mais diversos discursos
articulados, uma vez que a mesma é impossível, mas justamente visou-se a refletir acerca
dos vários projetos políticos apresentados tanto pela esquerda como pela direita. Note-se
que, mesmo sendo tais projetos articulados em torno de grandes temas como a “posse ou
não de Goulart”, no primeiro momento analisado, ou divididos entre “democracia, reformas
ou medo mútuo de golpe”, os grandes assuntos do segundo período, não há como se esperar
uma coerência entre os grupos que se perfilavam entre uma ou outra posição em cada um
dos momentos de crise. Pelo contrário, o cenário político brasileiro estava tomado por
várias possibilidades discursivas.
Foucault afirma com razão que “não se pode falar de qualquer coisa em qualquer
época; não é fácil dizer alguma coisa nova” (1997, p. 51). Contudo, quando o cenário
político se demonstra tomado pela instabilidade própria de um momento de transição, não
hegemônico, quando a estrutura está fortemente abalada, novos projetos, novos discursos
401
são possíveis de ser enunciados visando à construção de uma nova ordem, ou seja, há mais
liberdade de se falar, de se defender uma série de posições do que em períodos de
normalidade político-institucional. Assim, a crise hegemônica é um momento criativo, no
sentido da produção de novas alternativas. Mas é também um momento marcado pela
indecidibilidade, pois o seu resultado, ou seja, uma nova ordem política, é absolutamente
contingente. Dessa forma, observou-se a inconstância de muitos grupos e sujeitos políticos,
o que é próprio de um momento de crise.
Feitas essas considerações preliminares, passa-se à produção da sistematização dos
resultados obtidos nesta pesquisa, começando pela comprovação da hipótese central
apresentada na introdução. Rememorando-a, ela assim está posta: no período em análise, o
regime democrático – entendido no seu sentido formal como um método de escolha de
lideranças políticas a partir de regras institucionais pré-estabelecidas entre os adversários
não se constituiu num discurso hegemônico, uma vez que o governo Goulart representou
justamente um momento em que o discurso democrático disputou espaço com outras
alternativas políticas não democráticas, tendo em vista a radicalização dos projetos
antagônicos da esquerda reformista e da direita conservadora.
Confirma-se a hipótese central apresentada, tendo em vista que, ao longo do trabalho,
ficou evidente que a crise do período Goulart foi também uma crise em relação às
possibilidades reais que detinha a democracia para satisfazer aos anseios dos mais diversos
grupos políticos envolvidos nestes períodos de crise. Fica muito claro que a democracia era
402
tida, muitas vezes, como um expediente moroso e, quiçá, impeditivo à satisfação dos
auspícios de diversas facções políticas.
Neste particular, por exemplo, é interessante notar o que a democracia representava
aos militares conspiradores. No caso da sucessão de Quadros, era uma condição
inequivocamente legal a sua substituição por João Goulart. O argumento dos ministros
militares, no entanto, francamente contrários à posse de Goulart, era o de que a sua posse
representaria uma ameaça à “segurança nacional”, uma vez que “inequivocamente” o país
seria mergulhado num caos, podendo, inclusive, ser entregue ao “comunismo
internacional”. Dessa forma, o veto ao vice-presidente, um ato plenamente ilegal e
antidemocrático, justificava-se em nome da “ordem”. Assim, a democracia para esses
militares não poderia ser tida como um regime político capaz de manter sempre a ordem e a
paz.
As regras do jogo democrático foram igualmente ignoradas com a chamada “solução
parlamentarista”. A instituição do parlamentarismo foi casuística e não representou um
compromisso efetivo entre as partes que realmente deveriam acertar algum tipo de
compromisso. Como se viu, o que houve de fato foi um golpe branco, uma solução de
continuidade proposta no âmbito do Congresso Nacional e com a aquiescência dos
ministros militares de Quadros. Para Goulart, ou assumia a Presidência nestas condições
excepcionais, ou a crise se estenderia por mais tempo ainda. Para os militares golpistas foi
uma ótima solução, tendo em vista que o objetivo primeiro, ou seja, retirar os poderes de
Jango, foi plenamente alcançado. Para a maioria do parlamento nacional, a solução também
403
foi satisfatória, principalmente ao PSD que, pela via do golpe branco, logo após uma
derrota nas últimas eleições presidenciais, ganharia “de presente” o Executivo federal.
Gritaram sozinhos os legalistas, sob o comando de Leonel Brizola, uma vez que foram
totalmente alijados do processo de solução do impasse.
Veja-se agora a questão do pequeno valor que detinha a democracia em relação ao
segundo período de crise analisado. Nesse sentido, tome-se a posição assumida pelos vários
grupos políticos de esquerda. No capítulo em que foram analisados os documentos dos
movimentos sociais, sindicais e estudantis favoráveis às reformas de base, teve-se
absolutamente claro o sentido que esses grupos davam à democracia. Democracia não era
tida do ponto de vista formal, como regras de um jogo político. Esse sentido era plenamente
negado, pois que dava lugar para um outro sentido de democracia produzido. O sentido
produzido era o de que a democracia representava “justiça social”. Contudo, para se chegar
a essa hipotética “justiça social”, através das reformas de base, meios golpistas e
revolucionários não eram desprezados ou esquecidos. Para os grupos mais radicais estava
muito claro que a democracia era um regime muito lento para se avançar em direção das
reformas sociais e estruturais necessárias para o Brasil naquele período. Defendia-se a
manutenção de Goulart no poder tão-somente porque Jango representava uma possibilidade
de se avançar no processo das reformas, mormente a agrária. Jango sabia disso e por essa
razão insistentemente requeria o apoio desses movimentos e os usava com uma forma de
“pressão popular” para avançar no seu próprio projeto reformista.
404
Veja-se, agora, a questão da democracia para os militares golpistas neste segundo
momento de crise analisado. Neste particular, a democracia, que elegeu João Goulart e lhe
confirmou como presidente após o plebiscito de janeiro de 1963, representava um regime
absolutamente temerário em relação à manutenção da ordem política e institucional.
Primeiramente, a democracia era vista como uma possibilidade do “espectro” do
“comunismo internacional” finalmente tomar o país de assalto. Nesse sentido, as
desconfianças que tinham os ministros militares lá na crise da sucessão de Quadros, de que
o país mergulharia no caos, pareciam “confirmadas” com Goulart no poder após o
plebiscito. Realmente uma série de episódios poderia “atestar” o receio militar em torno da
instabilidade política do período. Aliado a esse medo, os militares ainda alimentaram um
outro, imprevisível em 1961 e ainda mais importante para os oficiais das Forças Armadas
do Brasil: uma rebelião no interior da própria caserna. Assim, a Revolta dos Sargentos, em
setembro de 1963, e a Rebelião dos Marinheiros e Fuzileiros Navais, em março de 1964,
acenaram claramente para o perigo da democracia. Especial destaque deve ser dado à
Rebelião dos Marinheiros, tendo em vista à anistia concedida pelo próprio presidente da
República aos revoltosos. Na visão dos militares, era a própria democracia dando um golpe
de morte no que é mais caro às Forças Armadas: a manutenção da hierarquia e da disciplina
nos quartéis. Confirmada a hipótese central da pesquisa, passa-se de imediato às
considerações acerca da sua problemática.
Retomando a problemática de pesquisa, esta é formulada da seguinte maneira: tendo
como períodos de análise, primeiramente, aquele compreendido entre a renúncia de Jânio
Quadros, em 25 de agosto de 1961, e a “solução parlamentarista”, em 7 de setembro e após
405
o diz respeito aos momentos finais do governo João Goulart, entre a realização do Comício
da Central do Brasil, em 13 de março de 1964, e a deposição de Jango, em 1º de abril,
pergunta-se: como lideranças políticas nacionais, deputados federais, movimentos sociais e
militares significaram cada um dos dois momentos de crise? Esta problemática geral de
pesquisa será desmembrada a partir de outros dois questionamentos, conforme seguem:
como esses sujeitos políticos elaboraram seus respectivos “diagnósticos de desordem” e
suas “soluções de ordem” para ambos os momentos supra citados?
A construção das categorias “diagnósticos de desordem” e “soluções de ordem
serviram para direcionar a análise para as duas grandes questões que norteavam as crises
dos dois períodos em destaque. Assim, no primeiro deles, buscou-se saber quais foram
efetivamente as causas que levaram os ministros militares de Quadros a buscar vetar o
nome de Goulart para assumir a Presidência (diagnóstico de desordem 1). Quais as causas
que levaram a construção da resistência ao veto a partir do movimento legalista
(diagnóstico de desordem 2). Por fim quais as causas que levaram a discussão da crise no
âmbito parlamentar (diagnóstico de desordem 3).
Sumariamente, as causas para o veto dos ministros militares foram claramente por
eles definidas no manifesto lançado na época. Basicamente Denys, Heck e Grum Moss
buscaram vetar o nome de Goulart para substituir Quadros tendo em vista a apreensão que
eles tinham acerca da possibilidade do Brasil mergulhar num verdadeiro caos político. Tal
apreensão justificava-se na lógica desses militares tendo em vista o passado de Goulart que,
segundo eles, era caracteristicamente ligado aos elementos do comunismo internacional.
406
Para tal diagnóstico de desordem, os ministros buscaram impor a sua respectiva solução de
ordem, ou seja, a proposição do veto.
O discurso legalista, capitaneado pelo governador do Rio Grande do Sul, Leonel
Brizola – que recebeu importantes apoios de setores populares, mas principalmente de
militares da estatura moral de Lott e do poderio militar de Machado Lopes – formou-se de
forma antagônica ao discurso dos ministros militares, numa imediata reação à ameaça
golpista dos mesmos: este era, portanto, o diagnóstico de desordem. Como solução de
ordem, exigia-se a posse de Goulart, uma vez ter sido ele eleito diretamente pelo voto
popular e a sua ascensão à Presidência se daria nos marcos mais estritos da
constitucionalidade.
Por fim, o discurso construído no interior do Congresso Nacional que teve como
diagnóstico de desordem a crise política que teve origem fora do âmbito legislativo
propriamente dito. Como solução de ordem, buscou-se, de certa maneira, “conciliar” as
duas posições antagônicas, ou seja, investir Goulart no cargo de presidente da República,
contudo sem as prerrogativas que o sistema presidencialista lhe ofereceria. Dessa forma, de
forma casuística, atabalhoada, rompendo-se todos os formalismos do processo de discussão
e votação legislativo, foi aprovado o parlamentarismo como sistema de governo. Viu-se que
esta solução é tida para muitos cientistas sociais como sendo uma “solução de
compromisso”, inferindo-se a idéia de que um “acordo substantivo” havia realmente sido
alcançado entre as posições antagônicas. Na verdade, o que de fato ocorreu foi um golpe
branco, uma solução de continuidade, gestada pelo Congresso Nacional, acordada com os
407
ministros militares, que não restou alternativa a Goulart a não ser a de assumir naquelas
condições. Brizola ficou isolado, inclusive tendo em vista a retirada do apoio militar do
Comando do III Exército após a solução apresentada.
Uma vez instituído o parlamentarismo, sua vida foi, além de conturbada,
extremamente curta. Vários são os motivos que podem ser aludidos. Primeiramente, por se
tratar de uma medida meramente casuística que tinha como único objetivo alijar Goulart do
efetivo mando do Estado brasileiro. Assim, lideranças políticas importantes que desejavam
se candidatar à Presidência em 1965, começaram a criticar a existência do sistema.
Movimentos populares, sindicais, estudantis etc favoráveis às reformas de base e,
conseqüentemente também a Goulart, principalmente após a queda do gabinete de
Tancredo Neves, buscavam minar todas as indicações de primeiros-ministros quando os
candidatos eram identificados como pertencentes ao campo da centro-direita. Ainda
Goulart, plenamente insatisfeito como presidente num sistema parlamentarista, visou a
forçar a antecipação do plebiscito originalmente marcado para 1965. Conseguiu, em
setembro de 1962, a partir de votação no Congresso Nacional, com o apoio dos principais
partidos políticos no Legislativo, antecipar a realização do plebiscito em janeiro de 1963.
Nesta data, o parlamentarismo foi francamente rejeitado pelo povo brasileiro, o que pode
ser caracterizado como uma resposta negativa do eleitorado ao golpe branco ocorrido em
1961.
Derrotado o parlamentarismo, Goulart imediatamente retoma seus poderes
presidenciais e busca implementar o seu plano de reformas de base. Contudo, com a volta
408
do sistema presidencialista de governo, aumentou ainda mais o grau de radicalismo político
por parte dos diversos grupos que atuavam no período. Os militares reeditaram suas
apreensões de 1961. Além disso, as revoltas que ocorreram dentro dos quartéis “atestavam”
que seus receios não eram “sem sentido” e que o caos e a desordem começavam também a
minar a hierarquia e disciplina militares. Já os movimentos sociais, sindicais e estudantis
viam em Goulart a possibilidade de avançar no processo de reformas sociais e estruturais
no país, daí que apostaram numa estratégia política buscando forçar cada vez mais o
governo a tomar medidas políticas consideradas na época como extremamente radicais. Na
verdade, os grupos mais radicais viam o governo Goulart como um aliado tático em direção
dos seus objetivos políticos revolucionários.
Enfim, março de 1964. Em todo o período presidencialista de João Goulart, apesar de
sempre muito conturbado, não houve momento em que o debate e as ações políticas mais se
radicalizaram. Foi um mês em que uma série de eventos sucessivos agravou ainda mais o já
frágil regime democrático brasileiro. O Comício da Central do Brasil, a Marcha da Família
com Deus pela Liberdade, a Rebelião dos Marinheiros e dos Fuzileiros Navais e o Ato no
Automóvel Clube do Brasil foram todos eventos fatais para a democracia.
Um fato interessante de ser apontado, que denota a percepção pelos sujeitos e grupos
diretamente envolvidos do tamanho clima de instabilidade naquele mês, eram as constantes
acusações de parte a parte em relação a possíveis planos golpistas. Viu-se em vários
panfletos e documentos dos movimentos popular, sindical e estudantil acusações de que
militares de extrema direita e os governadores dos estados mais influentes do Brasil como
409
os do Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Rio de Janeiro planejavam um
golpe para depor João Goulart. A razão apontada por esses movimentos era o fato de que
Goulart era o principal articulador político das reformas de base. Assim, o diagnóstico de
desordem desses grupos sociais mais radicais era a ameaça de golpe civil-militar para depor
Goulart e frear o então processo de reformas em curso. A solução de ordem desses grupos
era a manutenção da pressão popular, incluindo um plano de greve geral arquitetado e
liderado pelo Comando Geral dos Trabalhadores como meio de impedir o iminente golpe.
Já para os próceres militares do golpe iniciado em 31 de março, a volta do
presidencialismo representou o efetivo início de um estado de caos, desordem e ameaça
revolucionária. A efervescência popular crescente no período presidencial de Goulart
fornecia “provas inequívocas” de suas apreensões manifestadas originalmente pelos
ministros militares de Jânio Quadros. A conspiração militar adquiriu realmente força, então,
a partir da vitória do presidencialismo na consulta popular de janeiro de 1963. Os
documentos analisados de autoria de Odílio Denys atestam essa apreensão e sua decorrente
articulação golpista. Contudo, o que foi fundamental para os golpistas militares
conseguirem mais força no âmbito das Forças Armadas foram os acontecimentos de março.
O mais importante foi, sem dúvida, o Comício da Central do Brasil em que o próprio
presidente da República discursou para uma multidão constituída, inclusive, de membros de
partidos políticos ilegais, movimentos clandestinos e revolucionários. A participação de
Goulart neste evento, desta feita, foi decisiva à adesão de Humberto Castello Branco à
causa dos golpistas. Outro fator importantíssimo para o fortalecimento dos ainda indecisos
oficiais militares acerca de uma possível derrubada de Jango foi o desfecho negativo para o
410
almirantado em relação à Rebelião dos Marinheiros e dos Fuzileiros Navais, momento em
que Goulart anistiou os revoltosos. Dessa forma, duas foram as principais causas militares
para o golpe impetrado contra Goulart e contra a democracia: o “receio confirmado” do
caos e da instabilidade política no plano nacional e a “quebra” das sagradas hierarquia e
disciplina militares. A causa de todos esses males: Goulart e o seu governo “subversivo”,
ambos tolerados pelo regime democrático.
Do ponto de vista de João Goulart, registra-se uma posição titubeante naquele março
de 1964. O presidente afirmava constantemente seu projeto de reformas. Contudo, em todas
as ocasiões analisadas, em momento algum, Jango defendeu que as mesmas ocorressem
fora do âmbito da legalidade. Queria, inclusive, antes da própria ocorrência das reformas,
uma necessária reforma constitucional, mormente em relação aos artigos que tratavam do
capítulo da reforma agrária. Seu discurso, contudo, era titubeante tendo em vista que,
mesmo o presidente afirmando a necessidade da ocorrência das reformas nos mais estritos
marcos constitucionais, sua principal base de apoio era justamente constituída por
movimentos que prontamente dispensariam qualquer meio constitucional para o avanço das
reformas. O que agravou ainda mais a situação de Goulart foi o fato de que o próprio
presidente ainda alimentava os desejos de tais grupos, participando de eventos como o
Comício da Central do Brasil e do Ato no Automóvel Clube. As forças reacionárias de
extrema direita acreditavam que Goulart figurava ao lado desses grupos no intento da
consecução de um projeto revolucionário para o Brasil.
411
Já o Congresso Nacional estava profundamente dividido. Os pronunciamentos dos
parlamentares eram tomados pelos sucessivos eventos que agravavam ainda mais a crise.
Planos golpistas eram denunciados de parte a parte. O ar de indecidibilidade estava
plenamente presente. A situação do país era a grave. Ninguém sabia quem poderia deflagrar
primeiro o golpe. Mas ele foi deflagrado, inaugurando um período de vinte e um anos de
ditadura.
412
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WIEVIORKA, Michel. La différence. Paris: Éditions Balland, 2001.
Documentos analisados
:
Capítulo 3
1. Troca de mensagens pelo rádio entre o general Machado Lopes, do III Exército, e o
ministro da Guerra, Odílio Denys (27/08/1961).
2. Mensagens trocadas entre o gabinete do ministro da Guerra e o comando do III Exército
(27/08/1961).
3. Mensagem do General Orlando Geisel, do gabinete do ministro da Guerra, ao
comandante do III Exército (28/08/1961).
4. Manifesto dos ministros militares (30/08/1961).
417
5. Radiograma do general Cordeiro de Farias ao III Exército (03/09/1961).
6. Telegrama de Cordeiro de Farias ao general Machado Lopes (04/09/1961).
7. Comunicação do presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli, no exercício provisório da
Presidência da República, sobre a manifestação dos ministros militares da inconveniência
do regresso ao país do vice-presidente João Goulart (28/08/1961).
8. Mensagem de Ranieri Mazzilli à nação postulando seu nome à sucessão de Jânio
Quadros (28/08/1961).
Capítulo 4
1. Manifesto do Marechal Henrique Teixeira Lott (26/08/1961).
2. Telegrama do general Machado Lopes ao ministro da Guerra (29/08/1961).
3. Nota do comando da 5ª Região Militar (31/08/1961).
4. Manifesto do governador do Rio Grande do Sul (26/08/1961).
Capítulo 5
Diários do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados – Seção I) – edições de 26 de
agosto a 12 de setembro de 1961.
418
Capítulo 6
1. Panfleto dos Organizadores do Comício da Central do Brasil (19 de fevereiro).
2. Discurso do cabo Anselmo (25 de março).
3. Nota do Comando Geral dos Trabalhadores – CGT (26 de março).
4. Panfleto da União Nacional dos Estudantes de denúncia do golpe (março de 1964).
5. Nota Oficial da União Nacional dos Estudantes – UNE (30 de março).
6. Nota do Comando Geral dos Trabalhadores (31 de março).
7. Nota do Comando dos Trabalhadores Intelectuais (31 de março).
8. Nota da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria (31 de março).
9. Nota da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (31 de março).
10. Nota do Pacto de Unidade e Ação (31 de março).
Capítulo 7
1. Discurso de João Goulart no Comício da Central do Brasil (13/03/1964).
2. Discurso de João Goulart no Automóvel Clube do Brasil (30/13/1964).
419
Capítulo 8
1. Manuscritos e textos datilografados de autoria do marechal Odílio Denys (várias datas).
2. Documento LEEX (Lealdade ao Exército) (março de 1964).
3. Documento produzido pelo general Humberto de Alencar Castelo Branco na condição de
Chefe do Estado Maior do Exército (20/13/1964).
4. Manifesto dos Almirantes contra o desfecho do Motim dos Marinheiros (março de 1964).
Capítulo 9
Diários do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados – Seção I) – edições de 17 de
março a 31 de março de 1964.
420
ANEXO
421
FLUXOGRAMA DO DESENVOLVIMENTO DISCURSIVO DAS POSIÇÕES DE
ESQUERDA E DE DIREITA NO PERÍODO DO GOVERNO JOÃO GOULART
(1961-1964)
Crise de Agosto de 1961
Posições de Esquerda Posições de Direita
Renúncia de Jânio Quadros
(25/08/1961)
Solução Legalista X Solução de Continuidade
Solução de Continuidade: Golpe de 1961
(07/12/1961)
Posição Presidencialista X Posição Parlamentarista
Contragolpe Presidencialista: Plebiscito
(06/01/1963)
Movimentos de Esquerda X Movimentos de Direita
Crise de Março de 1964
(13/01/1964)
Posição Radicalizada de Esquerda X Posição Radicalizada de Direita
Golpe de 1964
(31/03/1964)
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