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condições elementares de sobrevivência, tanto quanto a substituição dos prazeres
proibidos por formas autorizadas de satisfação, passou a corroborar a ilusão de que
a liberdade se esgota na dimensão subjetiva. Em conseqüência, a liberdade sexual
não mais precisa ser reprimida em nome da sobrevivência, mas, tal como o trabalho
livre, que para uma minoria de privilegiados foi transformado na liberdade de poder
escolher o explorador menos aversivo, a liberdade sexual ora permitida também
conserva os limites da sociedade burguesa: transformou-se na liberdade de escolher
a forma mais eficiente de contentamento subjetivo.
A liberdade sexual administrada é mais uma das contradições da liberdade
burguesa. Representa um dos principais entraves a real libertação da humanidade.
Ao concentrar toda a tradição de falsas necessidades em um moderno amálgama, a
um só tempo permissivo e repressivo, o qual, inclusive, compreende conteúdos que
outrora foram reprimidos de forma veemente, ela configura uma possibilidade
ímpar de se desvendar o enigma da servidão voluntária. A sua escolha como objeto
de pesquisa suscita a autoreflexão tão necessária e urgente ao esclarecimento, assim
como o desafio de enfrentar a contradição entre ciência e moral.
O gozo incessantemente procurado na liberdade sexual, bem como a beleza
a ela atribuída, de modo similar ao canto das sereias
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, do qual, segundo a alusão de
Homero (1979
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) aos desafios que marcaram os primórdios da humanidade, se
precaveu Ulisses em sua saga de retorno à Ítaca, confunde-se com o risco da
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A sedução do canto inviabiliza a continuidade da vida regrada. Ao alertar Ulisses sobre os riscos que
enfrentará, Circe menciona a família desfalcada, mulher e filhos, como conseqüência da entrega ao canto
harmonioso: “Chegarás, primeiro, à região das Sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se
aproximam. Se alguém, sem dar por isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus
filhos pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará cativo do canto harmonioso das Sereias”
(Homero, 1979, p. 113). A morte parece se consumar como uma decorrência da entrega ao deleite e não
como sua condição.
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Talvez não seja exagero lembrar que a importância cultural das epopéias gregas vai muito além da autoria
que a elas foi atribuída. No período pré-filosófico, por volta dos séculos XI a IX antes de Cristo, consistia
numa forma de transmissão oral de uma “verdade” que era efetivamente partilhada e que dispensava a
autoria privada; Homero, que a partir do século IX foi reconhecido como seu principal autor, parece ter
sido apenas o porta-voz reconhecido de algumas dessas verdades.