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Pedro Fernando da Silva
A liberdade sexual administrada
Doutorado em Psicologia Social
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo
2007
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Pedro Fernando da Silva
A liberdade sexual administrada
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Psicologia Social, sob orientação do
Professor Doutor José Leon Crochík.
Doutorado em Psicologia Social
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
São Paulo – 2007
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2
Banca Examinadora
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
__________________________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou
parcial desta tese por processos de fotocopiadoras ou eletrônicos.
Assinatura:______________________Local e Data:_______________
3
Agradecimentos
O período que compreendeu o desenvolvimento deste trabalho foi uma fase
ímpar de minha vida, na qual pude experimentar desde as emoções tônicas até os
sentimentos mais brandos; na qual me empolguei com a perspicácia de meus
próprios pensamentos, mas também me decepcionei com as limitações de seu
alcance; na qual me entreguei à voluptuosidade da paixão, mas também gozei a
intensidade do amor maduro. Neste período, a esfera da experiência certamente
nutriu e alicerçou a minha capacidade de reflexão, forneceu-me o conteúdo e as
motivações para o desenvolvimento desta pesquisa. O produto intelectual que
agora ganha vida nesta tese, derivou da própria vida para a qual a pensei. Entre a
sutil contemplação dos prazeres mais efêmeros, conjuntamente com suas
possibilidades de tornar a vida mais doce, e a desesperadora consciência de que é
preciso desvencilhar-se de toda ilusão para que, de fato, o verdadeiro encantamento
possa se desenvolver, há uma imensidão de sentimentos e experiências
indescritíveis que a palavra vida ainda compreende. Não faria sentido pensar sobre
as limitações que recaem sobre ela senão para torná-la mais digna e melhor de ser
vivida. Com pena de cometer a mais extrema injustiça, eu não poderia deixar de
confessar que, mesmo com todos os infortúnios que ameaçam nossos desejos e
sufocam nossas esperanças, eu pude gozar momentos da mais bela felicidade. Por
isso, quero registrar meus sinceros agradecimentos a todos que participaram desse
processo, principalmente, àqueles que me ajudaram a acreditar que a vida sempre
vale a pena, mesmo quando suas condições devem ser duramente negadas:
Ao Professor Doutor José Leon Crochík, pela dedicada orientação que
tornou possível transformar meu projeto em uma reflexão madura. A cada dia pude
perceber que minha opção por sua orientação foi um grande acerto, do qual muito
me orgulho; e ao Professor Doutor Odair Sass, por ter me propiciado usufruir o
resultado de seu compromisso com o conhecimento; sua co-orientação foi
essencial para o desenvolvimento deste trabalho.
4
À Professora Doutora Iray Carone e à Professora Doutora Maria do Carmo
Guedes por suas valiosas contribuições no Exame de Qualificação do projeto desta
pesquisa. Além de suas contribuições a respeito de aspectos teóricos específicos e
da estruturação final do método, ambas ajudaram-me a perceber que a pesquisa que
ora iniciei sobre a sexualidade administrada é um processo intenso frente ao qual
esta Tese é o primeiro de muitos outros passos que poderão ser dados para o
completo desenvolvimento de seu potencial, constituindo importante motivação
para sua continuidade em pesquisas posteriores.
Às agências de fomento à pesquisa que durante todo o período de realização
de meu Doutorado viabilizaram minha dedicação: Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq; e Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES.
Aos amigos e colegas que contribuíram para a realização do trabalho: na
viabilização de acesso a sujeitos, na colaboração teórica, na reflexão conjunta e nos
agradáveis momentos de convivência. Como não poderia agradecer particularmente
a todos, mencionarei apenas aqueles que participaram mais ativamente deste
processo: Gil, Ricardo, Jaquelina, Ednilton, Kety, Juliana, Alberto, Adalberto...
Aos companheiros da Abrapso: Cecília, Omar, Mauro, Vanessa, Lúcia,
Bruna, Júlio, Silvana...
Às pessoas da minha família, que amo e que cotidianamente me ajudaram a
não me esquecer da beleza da vida: Rosemeire, meu grande amor, que contribuiu
intelectual, afetiva e operacionalmente para a realização da Tese; Maria Madalena,
minha Mãe, que nunca deixou faltar amor e proteção e a quem sempre amarei; aos
meus irmãos Maria, Sebastião, Milton e Clarice, que formam uma base sem a qual
certamente seria quase impossível suporta os obstáculos que encontramos pelo
caminho; enfim, à toda minha grande e querida família.
5
Dedicatória
Ao Heitor,
meu filho, que acabou de chegar a este mundo ameaçador e merece a
oportunidade de se encantar com a vida e de lutar para que ela seja digna de ser
vivida, e (In memoriam) ao José, meu pai, a quem o destino não permitiu viver
o suficiente para dividir comigo este momento feliz.
6
Sumário
Resumo________________________________________________________10
Abstract _______________________________________________________11
Introdução _____________________________________________________13
Capítulo I: Repressão e mecanismos sociais de integração da sexualidade ______26
Capítulo II: Permissividade sexual repressiva____________________________51
CapítuloIII: Mediações da liberdade sexual administrada ___________________83
Parte 1 - Conformismo, determinação e mundo administrado _________83
Parte 2 - Reprodução da violência geral no prazer particular alienado ____90
Parte 3 – A função da indústria cultural na produção e no consumo de falsas
necessidades_____________________________________________107
Parte 4 – A satisfação narcisista como forma substitutiva de prazer_____115
Parte 5 – O sadomasoquismo como forma da “consciência feliz”______128
Objetivos e hipóteses_____________________________________________143
Método _______________________________________________________145
Sujeitos __________________________________________________152
Técnicas de coleta de dados___________________________________155
Procedimentos_____________________________________________156
Elaboração dos instrumentos de mensuração da liberdade sexual administrada _159
Coerência interna e fidedignidade das escalas___________________________170
Análise e discussão dos dados ______________________________________173
Análise e discussão dos itens da Escala de Conformismo_____________174
Análise e discussão dos itens da Escala de Liberalização Sexual________206
7
Análise e discussão dos itens da Escala de Dessexualização___________237
Considerações a respeito das propostas de modificação das escalas para
futuras aplicações ________________________________________267
Considerações Finais _____________________________________________271
Referências bibliográficas__________________________________________280
Anexo I: Enunciado inicial e questionário de dados pessoais dos formulários de
pesquisa______________________________________________________286
Anexos II: Escala de conformismo __________________________________288
Anexo III: Escala de Liberalização Sexual _____________________________291
Anexo IV: Escala de Dessexualização ________________________________294
Anexo V: Versão reformulada das Escalas para futuras aplicações___________297
8
Índice de tabelas
Tabela 1: Amostras-base dos sujeitos para análise dos dados ______________153
Tabela 2: Médias e desvios padrão correspondentes à escala C _____________163
Tabela 3: Médias e desvios padrão correspondentes à escala LS ____________163
Tabela 4: Médias e desvios padrão correspondentes à escala D _____________164
Tabela 5: Análise de variância multivariada_____________________________165
Tabela 6: Análise de variância ______________________________________166
Tabela 7: Coeficientes de correlação bivariada de Pearson _________________168
Tabela 8: Coeficientes de correlação obtidos por meio da correlação parcial de
Pearson com controle da variável sexo_______________________________170
Tabela 9: Coeficientes de correlação obtidos por meio da correlação parcial de
Pearson com controle da variável curso______________________________170
Tabela 10: Coeficientes Alpha de Cronbach das escalas ___________________172
Tabela 11: Tendências centrais dos itens relacionados ao hiper-realismo ______176
Tabela 12: Tendências centrais dos itens relacionados à naturalização ________182
Tabela 13: Tendências centrais dos itens relacionados ao cinismo __________189
Tabela 14: Tendências centrais dos itens relacionados a submissão à autoridade 196
Tabela 15: Tendências centrais dos itens relacionados à apatia______________201
Tabela 16: Tendências centrais dos itens relacionados à perversão-polimofa ___208
Tabela 17: Tendências centrais dos itens relacionados à diversidade sexual ____215
Tabela 18: Tendências centrais dos itens relacionados à normatização das novas
tendências da sexualidade ________________________________________221
Tabela 19: Tendências centrais dos itens relacionados à expressão da pulsão sexual
_____________________________________________________________ 228
9
Tabela 20: Tendências centrais dos itens relacionados à expressão da pulsão sexual
inibida em sua finalidade __________________________________________234
Tabela 21: Tendências centrais dos itens relacionados à reificação da
sexualidade_____________________________________________________241
Tabela 22: Tendências centrais dos itens relacionados aos tabus sexuais ______247
Tabela 23: Tendências centrais dos itens relacionados à mediação da sexualidade
pela tendência à dominação ________________________________________253
Tabela 24: Tendências centrais dos itens relacionados à padronização do
comportamento sexual____________________________________________259
Tabela 25: Tendências centrais dos itens relacionados à normalização da
sexualidade_____________________________________________________262
Tabela 26: Correlações entre as escalas C, D reduzida e LS reduzida _________269
10
Resumo
Esta pesquisa teve como objetivos averiguar se havia correlações entre as
atitudes concernentes à liberalização sexual, à dessexualização e ao conformismo, e
elucidar algumas contradições da estrutura psicossocial da liberdade sexual
administrada. Além da hipótese geral, que em síntese supunha ser este fenômeno
regressivo uma expressão contraditória do anseio por liberdade produzido sob as
determinações do mundo não-livre, formulou-se hipóteses operacionais acerca das
correlações entre as atitudes estudadas. A incidência da liberdade sexual
administrada, bem como as correlações entre as atitudes implicadas em sua
estruturação, foi examinada por meio de técnicas de investigação empírica e da
especulação teórica. Para atingir este propósito, foram elaboradas três escalas de
atitude tipo Likert – escala de conformismo (C), escala de liberalização sexual (LS) e
escala de dessexualização (D) –, posteriormente aplicadas a 135 estudantes de
Universidades da Grande São Paulo, constituindo uma amostra final de 77 sujeitos.
Os dados a eles correspondentes foram submetidos a testes estatísticos que
permitiram verificar a precisão das escalas e obter as correlações entre as atitudes
mensuradas. A precisão dos instrumentos foi constatada por meio do Alpha de
Cronbach, que nos três casos mostrou-se satisfatório, com coeficientes de 0,89 para
a escala C, 0,77 para a escala LS e 0,76 para a escala D. Os resultados encontrados
confirmaram as hipóteses, permitindo demonstrar que há correlação significativa,
de 0,75, entre as atitudes caracterizadas pela dessexualização e a inclinação ao
conformismo; e que, apesar de as atitudes favoráveis à liberalização sexual, tanto
quanto as que são caracterizadas pela dessexualização, referirem-se às formas e aos
padrões contemporâneos do comportamento sexual, ainda assim, não há correlação
significativa entre elas; assim como também não há correlação significativa entre as
atitudes conformistas e a adesão à liberalização sexual. Dentre as mediações da
liberdade sexual administrada estudadas nesta pesquisa, a dessexualização revelou-
se como a forma de regressão da liberdade sexual mais diretamente implicada no
ajustamento dos indivíduos às condições de existência atualmente impostas.
Palavras-chave: Teoria Crítica, psicologia social, liberdade sexual, sociedade
administrada, conformismo
.
11
Abstract
This objectives research are to investigate the correlations between attitudes
concerning to the sexual liberation, the desexualization and the conformism; and to
elucidate some contradictions of the psychosocial structure of the administrated
sexual liberty. The general hypothesis supposes that this regressive phenomenon is
a contradictory expression of the freedom desire made under the not-free world
determinations. The administrated sexual liberty incidence, such as the correlations
between the implicated attitudes in her structure, was examined by empirical
investigation and theoretical speculation. For to realize this purpose, three scales
type Likert was elaborated: conformism scale (C), sexual liberation scale (LS), and
desexualization scale (D). These scales were applied in 135 university students from
Great São Paulo, and the final sample has 77 individuals. The correspondent dates
were submitted to statistical tests, permitting to verify the scales precision and to
obtain correlations between the measured attitudes. The instruments precision was
verified by Alpha of the Cronbach, who was satisfactory in the three cases, with the
following coefficients: 0,89 in the scale C, 0,77 in the scale LS, and 0,76 in the scale
D. The found results confirm the hypothesis, and permit to demonstrate that there
is a significant correlation between the characterized attitudes to the desexualization
and the inclination to the conformism. Although the favorable attitudes to the
liberation sexual, as much as the attitudes characterized to the desexualization, were
related with contemporary forms and patterns of the sexual behavior, the results do
not indicate significant correlation between them. Also there not is significant
correlation between the conformist attitudes and the adhesion to the sexual
liberation. Among the mediation of the administrated sexual liberty studied in this
research, the desexualization is the form of the sexual liberty regression more
directly implicated in the adjustment of the individuals to the conditions of the
existence imposed to them nowadays.
Keywords: Critical Theory, Social psychology, sexual liberty, administrated society,
conformism.
12
Unicamente conhece o ser humano aquele que o ama sem esperança
Walter Benjamin (1928/2000)
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões,
não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a
flor viva brote
Karl Marx (1844/2005)
13
Introdução
A liberdade é um dos principais paradoxos da sociedade administrada. Está
entre os anseios mais prementes do homem contemporâneo. Apesar de toda a
sedução que sua imagem idealizada exerce sofre os indivíduos debilitados,
sobretudo por submeter a autopercepção ao campo dos desejos incondicionados,
neste mundo governado pela burocracia esclarecida, em que efetivamente é
formulada como objeto da mais intensa aspiração, essa idéia também constitui,
paradoxalmente, a justificativa mais eficaz do poder ilimitado que recai sobre os
indivíduos. Apesar de comumente ser afirmada pela consciência geral como
condição sine qua non da democracia, essa imagem idealizada, idéia não-realizada,
mas ao mesmo tempo dissimulada por realizações particulares de menor valor
espiritual, converteu-se em expressão principal da individualidade burguesa
decadente. Quanto maior é a adesão à sedução exercida por sua manifestação
puramente subjetiva, mais os avanços que efetivamente compreende convertem-se
em mentira: sua afirmação pragmática alimenta a produção de ilusões sem as quais
seria muito mais difícil suportar a árdua condição de existência a que os indivíduos
estão compelidos. Os sacrifícios exigidos para a autoconservação confundem-se
com as pequenas doses de contentamento que a afirmação pragmática da liberdade
e da felicidade propiciadas pela sociedade proporcionam. As mentiras que os
homens repetem compulsivamente para si mesmos não visam ao auto-engano, mas
respondem à necessidade de extrair prazer de sua condição de opressão. A
resignação decorre primeiramente da ameaça objetiva, mas converte-se em
conformismo quando passa a ser justificada pelo contentamento ante a vida
indigna.
O desconhecimento a respeito das conquistas históricas compreendidas em
sua forma hodierna parece caracterizar ao juízo comum um ato de negligência
inaceitável, desmentido apenas pela constatação de que é precisamente na
afirmação cega dessas conquistas que germinam as expressões mais contraditórias
14
das formas modernas de cativeiro. O embuste é consumado por meio da
manipulação das ilusões constituídas em torno do que socialmente se
convencionou chamar de liberdade. A falsa liberdade tornou-se uma ilusão
socialmente necessária, sem a qual a ameaça subjacente à resignação é insuportável.
A disparidade entre a consciência da opressão e a debilidade objetiva para modificá-
la gera um mal-estar molesto; ainda é a ilusão que ameniza a dor e realça os
pequenos prazeres que, com isso, tem seu valor real hipostasiado e, por isso
mesmo, projetado a uma função irreal. Há todo um aparato social destinado à sua
sustentação ideológica no qual se destaca a força centrífuga adquirida pela indústria
cultural. Seus inúmeros artifícios, mas principalmente a estimulação e o respectivo
controle das necessidades psíquicas insatisfeitas, deformam a percepção que os
homens têm do mundo e de si mesmos. A realidade circundante e a auto-imagem,
assim percebidas, ficam recobertas pelo glamour que a indústria cultural lhes
imprime. Essa deformação da percepção decorre tanto de aspectos cognitivos,
relacionados à forma assumida pela racionalidade predominante quanto de aspectos
emocionais, relacionados à dimensão intrapsíquica, como o narcisismo insuflado
nas massas pelos mecanismos totalitários que convivem harmoniosamente com a
democracia formal, e é fatalmente reproduzido pelo indivíduo como forma de
sustentar, ao menos no plano da aparência, algum equilíbrio psíquico a seu Eu
objetivamente ameaçado. A imagem idealizada da liberdade impregna intensamente
as situações reais do cotidiano, de modo que até mesmo os efeitos mais óbvios da
determinação social passam a ser percebidos pelos sujeitos como decorrências
lógicas de suas decisões pessoais; a partir da apreensão distorcida da realidade. No
momento presente, dificilmente há quem não associe à sua condição determinada a
re-significação narcisista segundo a qual participam ativamente da definição dessa
condição, e com base na qual podem afirmar-se relativamente livres. A
compreensão da irracionalidade que este processo encerra não aplaca a necessidade
de erigir forças, mesmo que ilusórias e meramente subjetivas, que façam a vida
cotidiana parecer desejável. Enquanto a realização dessa liberdade é almejada
15
apenas em relação à dimensão da vida particular, seus efeitos alienantes tendem a
supostamente dignificar, de acordo com a ótica burguesa, o princípio da
individuação; entretanto, a universalidade necessária à realização da liberdade
objetiva permanece negada em seu principal fundamento: a vontade
autoconsciente. Neste caso, já internamente deteriorada, a afirmação da vontade de
liberdade, que deveria estar voltada para a conquista da autonomia, essencial à
autodeterminação do espírito, passa a contribuir para que as condições que
reproduzem a escravidão geral sejam perpetuadas. Absorvida pelo valor que
adquiriu na esfera da individualidade alienada, a liberdade subjetiva é aceita pela
consciência social como expressão autêntica da liberdade efetivamente possível.
Essa consciência geral, empobrecida devido à reificação a que os homens estão
submetidos, ignora e oculta o cárcere em que os indivíduos formados sob as
determinações da sociedade administrada se encontram, e consolida a ilusão de que,
fechados monadológicamente em si mesmos, os homens podem gozar de mais
liberdade do que jamais foi possível ao longo da história. Apesar de serem
absolutamente incapazes de se constituírem como sujeitos autônomos, os
indivíduos buscam, ainda assim, sentirem-se livres e encontrar o mínimo de
satisfação em certas dimensões de suas vidas privadas, constrangidas pelas atuais
condições de existência. O esforço por suportar as mazelas decorrentes da
experiência social, representado pelas precárias ações que desenvolvem com este
objetivo, comporta a contradição entre a necessidade de sentir-se livre e a
consciência da não-liberdade. Os homens sabem que não devem questionar o todo
incoerente, porque, com isso, desestruturariam as ínfimas formas de satisfação que
amenizam o mal-estar. Sabem que não são livres, mas desejam sê-lo. A busca de
refúgio na dimensão subjetiva não é racional nem tampouco representa um
processo lógico à consciência, mas responde a necessidades insatisfeitas.
A disparidade entre a representação de si e a capacidade de suportar a
percepção clara e distinta da realidade aumentou incomensuravelmente com os
progressos da racionalidade tecnológica e com as comodidades do consumo por ela
16
favorecidas. Essa racionalidade socialmente produzida com o intuito de aumentar o
poder dos mecanismos produtivos foi introjetada pelos indivíduos e associada aos
mecanismos subjetivos destinados à sustentação da sobrevivência psíquica, como o
narcisismo e o sadomasoquismo. Do interior da consciência geral na qual está
instalada, intermedeia a experiência cotidiana cerceada pelo trabalho e pelo lazer
estipulado pela indústria cultural. Como se fosse uma decorrência natural dos
processos de pensamento e representação, essa racionalidade instrumental passa a
mediar a percepção da realidade segundo esquemas lógicos bem integrados à
manutenção do sistema social que os produziu.
A experiência da liberdade está reduzida atualmente à possibilidade de
adquirir as mercadorias que mais vigorosamente se deseja, mesmo que o interesse,
aparentemente autodeterminado, provenha do ajustamento da necessidade ao
consumo, promovido por meio de sofisticadas estratégias de marketing. A tensão
decorrente da cisão entre as dimensões subjetiva e objetiva da liberdade, presente
na formação burguesa desde os primórdios de sua vocação pela acumulação
financeira, foi integralmente substituída pela afirmação irracional de um amálgama
composto por ilusão e resignação, produzido pelo impulso irrefletido rumo à
liberdade subjetiva. O fator que melhor impulsiona à adaptação e ao sacrifício não é
o engano puro e simples, mas sim essa mescla de resignação e contentamento.
Suplantado o mal-estar proveniente da percepção das contradições existentes
entre as esferas subjetiva e objetiva da liberdade, o que realmente perdura para os
indivíduos como coisa real é a interpretação eufemística que fazem da vida. Com
isso, conseguem suportá-la sem grandes conflitos e cumprir sem maiores
dificuldades as exigências de adaptação que lhes são incutidas. Na medida em que
se entregam ao prazer meramente subjetivo, em geral, reduzido a devaneios muito
bem planejados pela indústria cultural, abdicam da liberdade objetiva que estava na
raiz de suas motivações. Em conseqüência do desenvolvimento dessa atitude geral
frente à vida, até mesmo as tradicionais manifestações da liberdade burguesa, que
17
sempre se mantiveram explicitamente contraditórias quanto a esta relação entre as
dimensões subjetiva e objetiva, distanciam-se dos critérios de objetividade,
caracterizando uma imensa forma de renúncia às conquistas históricas. Dirigidos
exclusivamente para essa dimensão subjetiva, e acomodados à empobrecida forma
de gratificação que dela emana, os homens alienam-se das condições concretas da
existência, dispensando a percepção dos limites efetivamente estendidos ao
conjunto da humanidade. Sem oporem resistência às condições que lhes impele ao
recolhimento em sua própria subjetividade, sua forma de satisfação permanece
inextrincavelmente vinculada às condições de existência estabelecidas pelo modo de
organização da sociedade, predominantemente caracterizado pelo interesse na
acumulação de capital.
Assim como os mecanismos sociais concernentes à infra-estrutura material
são estabelecidos em consonância com o modo de organização das relações de
produção, o nível de consciência geral concedido às massas também é determinado
pelas condições objetivas; a sociedade burguesa está impregnada no espírito dos
homens que se constituem sob sua influência. Os diferentes intentos de realização
objetiva dessa liberdade, esboçados por meio das manifestações do espírito auto-
consciente, constituído no confronto entre as classes sociais – sobretudo travados
ao longo do século XIX –, foram possibilitados e, ao mesmo tempo, coibidos por
uma sociedade que tem na dominação sua principal garantia de continuidade
histórica. Trazendo elementos que permitem perceber as limitações da liberdade
constituída sob o predomínio do capitalismo e considerando o confronto entre a
concepção de liberdade apregoada pelo idealismo alemão e a crítica materialista,
Marcuse (1969/1981) argumentou, com base na crítica de Marx e Engels em A
ideologia Alemã, que a liberdade burguesa está internamente subordinada à
determinação do modo de produção capitalista:
A liberdade pessoal, que a sociedade burguesa desenvolveu na prática em contraposição
à servidão pessoal do feudalismo, é a expressão da concorrência livre entre os
produtores de mercadorias. Liberdade de trabalho, liberdade de residência, liberdade de
18
profissão, liberdade de lucro – em todos esses tipos de liberdade burguesa se expressa a
“causalidade das condições de vida que o processo capitalista de produção criou na
concorrência geral e na luta geral dos indivíduos entre si”. (Marcuse, 1969/1981, p. 144.)
Apesar de somente ter se configurado como uma propriedade do indivíduo e
um valor cultural irrevogáveis durante a ascensão da burguesia nos séculos XVII e
XVIII, desde os primórdios dessa sociedade, as manifestações concretas da
liberdade, diferentemente constituídas em cada período histórico do capitalismo,
sempre estiveram subordinadas às mesmas regras que regem as relações materiais
de produção; sua manifestação pressupõe contradições similares às que concernem
ao trabalho livre. Em sua gênese, a racionalidade produtiva, decorrente do
ajustamento da razão formal aos interesses da acumulação financeira, pôde
sustentar-se na força cultural da moralidade puritana, mediante a qual, os prazeres,
em particular os prazeres do sexo, mantiveram-se sob rígido controle repressivo.
Somente após a conquista de tecnologias que dispensaram parte substancial da
força de trabalho humano, a exigência de contenção moral deixou de ser um dos
pilares da sustentação da liberdade burguesa: a liberdade de trocar a força de
trabalho pelas condições básicas de sobrevivência deixou de estar intrinsecamente
vinculada à retidão moral. Com o desenvolvimento de tecnologias que
possibilitaram a automação da força produtiva e o surgimento de outras formas de
acumulação centradas na especulação da propriedade do capital, o gerenciamento
da produção, que por muito tempo articulou a coerção direta à exigência de que os
trabalhadores internalizassem princípios morais que garantissem a continência
necessária para o trabalho, desenvolveu outras estratégias de controle, em geral,
vinculadas a contradições do próprio processo de trabalho, como a constante
ameaça de substituibilidade da força de trabalho humana; com isso, a repressão
direta dos impulsos sexuais deixou de ser tão importante ao funcionamento do
sistema, podendo ter alguns de seus aspectos aversivos abrandados. As mudanças
transcorridas no campo da produção material tiveram conseqüências importantes
na esfera da cultura; dentre as quais se destaca a integração dos impulsos libidiais.
Esse processo gerou uma situação na qual a troca da força de trabalho por
19
condições elementares de sobrevivência, tanto quanto a substituição dos prazeres
proibidos por formas autorizadas de satisfação, passou a corroborar a ilusão de que
a liberdade se esgota na dimensão subjetiva. Em conseqüência, a liberdade sexual
não mais precisa ser reprimida em nome da sobrevivência, mas, tal como o trabalho
livre, que para uma minoria de privilegiados foi transformado na liberdade de poder
escolher o explorador menos aversivo, a liberdade sexual ora permitida também
conserva os limites da sociedade burguesa: transformou-se na liberdade de escolher
a forma mais eficiente de contentamento subjetivo.
A liberdade sexual administrada é mais uma das contradições da liberdade
burguesa. Representa um dos principais entraves a real libertação da humanidade.
Ao concentrar toda a tradição de falsas necessidades em um moderno amálgama, a
um só tempo permissivo e repressivo, o qual, inclusive, compreende conteúdos que
outrora foram reprimidos de forma veemente, ela configura uma possibilidade
ímpar de se desvendar o enigma da servidão voluntária. A sua escolha como objeto
de pesquisa suscita a autoreflexão tão necessária e urgente ao esclarecimento, assim
como o desafio de enfrentar a contradição entre ciência e moral.
O gozo incessantemente procurado na liberdade sexual, bem como a beleza
a ela atribuída, de modo similar ao canto das sereias
1
, do qual, segundo a alusão de
Homero (1979
2
) aos desafios que marcaram os primórdios da humanidade, se
precaveu Ulisses em sua saga de retorno à Ítaca, confunde-se com o risco da
1
A sedução do canto inviabiliza a continuidade da vida regrada. Ao alertar Ulisses sobre os riscos que
enfrentará, Circe menciona a família desfalcada, mulher e filhos, como conseqüência da entrega ao canto
harmonioso: “Chegarás, primeiro, à região das Sereias, cuja voz encanta todos os homens que delas se
aproximam. Se alguém, sem dar por isso, delas se avizinha e as escuta, nunca mais sua mulher nem seus
filhos pequeninos se reunirão em torno dele, pois que ficará cativo do canto harmonioso das Sereias”
(Homero, 1979, p. 113). A morte parece se consumar como uma decorrência da entrega ao deleite e não
como sua condição.
2
Talvez não seja exagero lembrar que a importância cultural das epopéias gregas vai muito além da autoria
que a elas foi atribuída. No período pré-filosófico, por volta dos séculos XI a IX antes de Cristo, consistia
numa forma de transmissão oral de uma “verdade” que era efetivamente partilhada e que dispensava a
autoria privada; Homero, que a partir do século IX foi reconhecido como seu principal autor, parece ter
sido apenas o porta-voz reconhecido de algumas dessas verdades.
20
autodestruição. Dessa esfera obtusa emana um poder que seduz o espírito e
anestesia o juízo, que encanta a racionalidade debilitada e aniquila o sujeito entregue
a si mesmo, à sua subjetividade danificada. Não há uma delimitação precisa da
fronteira entre a beleza real do objeto e a sedução que em seu nome serve à
dominação. O canto das sereias não pode ser julgado menos belo porque Ulisses
somente pôde contemplá-lo amarrado ao mastro de sua embarcação, nem
tampouco porque os desavisados, ou menos astuciosos do que ele, não puderam
suportar seu encanto, lançando-se ao mar de encontro à morte iminente. Inspirados
por esta lição, talvez devêssemos procurar pelas razões da destruição na relação
entre o esclarecimento e a dominação que ele propiciou, e que depois lhe serviu de
cárcere, e não na beleza de um objeto que nos esforçamos por compreender com
todas as limitações que este processo implica por meio de nosso aparelho
intelectivo. Se a liberdade sexual também se converteu em um canto cuja beleza
seduz para a autodestruição, é este o paradoxo que deve ser desvendado; é esta a
intenção que congrega a declaração explícita de que a liberdade não é livre. O
desejo que a ela se dirige deve poder transcender as imposições da realidade
totalitária e contemplar, na imagem negada, o ideal não-realizado. Analisar a
liberdade sexual consiste em deparar-se com a frustração ante o descomunal
mecanismo que transforma os homens em escravos de seu próprio desejo. O
movimento histórico recente deste objeto compreende tanto a moral quanto a
ciência e a racionalidade instrumental, portanto não é possível outro percurso para
a sua análise senão aquele percorrido pelo próprio objeto. A liberdade que ora se
atribui à sexualidade foi o último grande movimento de uma trajetória que parece
encaminhar para a autodestruição, contudo, sabendo-se que nem as técnicas de
manipulação implicadas nesta funesta facticidade nem as possibilidades de
resistência a ela estão completamente esclarecidas, pretende-se elucidar algumas
contradições de sua estrutura psicossocial e averiguar se há correlações entre as
atitudes que lhe servem de mediação.
21
Frente a essa confluência de fatores, a negligência cometida por grande
parte dos indivíduos em relação ao condicionamento implicado na permissividade
sexual e, consequentemente, sua adaptação às condições sociais contrárias à
realização racional da liberdade e da felicidade historicamente possíveis, destaca-se
como parte do problema de pesquisa que se pretende responder. Ao contrário da
conquista do prazer universal, os indivíduos resignam-se à satisfação parcial e
monitorada das necessidades e desejos falsos, cooptados e reproduzidos pelos
mecanismos ideológicos de dominação. Encantados com a projeção fantástica que
suas necessidades insatisfeitas adquirem no universo da indústria cultural,
conformam-se ao pré-prazer e aos inúmeros substitutos da sexualidade que ela
oferece, tornando-se, com isso, mais suscetíveis à acomodação frente às condições
gerais de existência que lhe são impostas. A satisfação obtida em relação à
sexualidade reverbera em outras dimensões da vida social, exaltando a impressão
subjetiva acerca da liberdade. Quanto mais desenvolvem atitudes favoráveis à
permissividade sexual, sobretudo caracterizada pela dessexualização, mais
conformados tendem a ficar frente às condições sociais e políticas que regem a
sociedade administrada.
Considerando que a averiguação da hipótese geral desta pesquisa
compreende o confronto entre o material empírico coletado e a reflexão teórica
sobre os muitos aspectos aos quais está relacionado, o problema de pesquisa foi
desdobrado em hipóteses estatísticas que permitissem delimitar e averiguar
aspectos específicos do fenômeno e, por meio da análise e da interpretação
subseqüentes dos dados, articular os resultados com as considerações teóricas
provenientes da bibliografia consultada. Foram desenvolvidas e aplicadas a um total
de 135 sujeitos, três escalas de atitude baseadas no modelo Likert, as quais foram
destinadas à mensuração das atitudes relacionadas à liberalização sexual, ao
conformismo e à dessexualização. Com base nesses instrumentos de coleta de
dados, procedeu-se à verificação das hipóteses estatísticas relacionadas aos tipos de
atitudes mencionados e às correlações entre elas. Com exceção da escala de
22
Liberalização Sexual (LS), que tem como principal intuito constatar o movimento
histórico do objeto, criando condições experimentais para que se possa verificar a
incidência de novos padrões de comportamento e atitudes relativos à liberalização
do sexo, ou seja, captar as mudanças decorrentes das transformações históricas da
moral sexual, as escalas de Conformismo (C) e de Dessexualização (D), além de
cumprirem função similar quanto à descrição do fenômeno, também permitiram
estipular critérios operacionais adequados à avaliação do sentido e das implicações
políticas e sociais do processo de liberação sexual em voga. Os resultados
encontrados sugeriram haver correlação significativa entre dois dos três tipos de
atitudes investigados, as atitudes relacionadas ao conformismo e as atitudes
correspondentes à dessexualização, confirmando as hipóteses formuladas e
caracterizando um rico material para interpretar a disseminação e a consolidação
empírica do fenômeno.
Os dois primeiros capítulos deste trabalho compreendem a delimitação do
objeto de investigação, análise de sua forma e explicitação de algumas de suas
contradições. O Capítulo I – Repressão e mecanismos sociais de integração da sexualidade
traz uma análise das artimanhas da repressão sexual, cuja continuidade histórica
desmente a aparência suscitada pela forma que a moral sexual atualmente assumiu
em decorrência das mudanças históricas transcorridas no âmbito dos costumes
sexuais e valores morais em geral. O capítulo II – A permissividade sexual repressiva
constitui o cerne da análise teórica, pois traz a análise do conceito de liberdade
sexual administrada a partir das limitações imanentes do próprio objeto,
possibilitando destacar os avanços concretos conquistados ante a repressão e
demarcar as contradições e limites que absorvem sua potencialidade, ajustando-a a
totalidade coercitiva. No Capítulo III – Mediações da liberdade sexual administrada – são
discutidos, sob a forma de fragmentos, alguns aspectos teóricos da liberdade sexual
administrada, suas mediações e o impacto que exerce sobre a postura dos
indivíduos ante a sociedade contemporânea. Constitui interpretações de caráter
especulativo a respeito de alguns dos elementos que exercem mediação sobre a
23
sexualidade. Está dividido em cinco partes complementares que, em conjunto, são
essenciais para a compreensão da dimensão psicossocial do fenômeno da liberdade
sexual administrada. Na primeira parte – Conformismo, determinação e mundo
administrado – é analisado o papel central da ameaça de aniquilação objetiva para o
desenvolvimento do conformismo e do ajustamento psicológico às determinações
sociais. Na segunda parte – A reprodução da violência geral no prazer particular alienado –
é discutida a contradição elementar entre o prazer particular, expressado em sua
forma espontânea, e o sofrimento universal sustentado pelas pequenas
acomodações e privilégios decorrentes do modo de organização social. Na parte 3
A função da industrial cultural na produção e no consumo de falsas necessidades – é analisada
a forma por meio da qual a indústria cultural emprega as necessidades individuais
insatisfeitas, como matéria prima, na produção do pseudoprazer. Na parte 4 – A
satisfação narcisista como forma substitutiva de prazer – é analisada a mediação exercida
pelo narcisismo sobre as modificações das instâncias psíquicas decorrentes da
regressão do indivíduo; por caracterizar uma forma substitutiva de prazer, o
narcisismo é discutido como um dos importantes sustentáculos da adaptação à
sociedade totalitária. Por fim, na parte 5 – O sadomasoquismo como forma da “consciência
feliz” – são discutidas a associação das pulsões destrutivas à racionalidade técnica
predominante na sociedade industrial avançada e a subseqüente formalização da
dominação e da crueldade como traços de personalidade convenientes à
manutenção da estrutura social vigente.
Os objetivos e hipóteses da pesquisa foram apresentados de forma
operacional em uma seção especifica, com isso, pretendeu-se torná-los facilmente
localizáveis, permitindo ao leitor articulá-los com o restante do trabalho. Em uma
outra seção, destinada à descrição e apreciação do método utilizado, foi exposta a
caracterização dos sujeitos; apresentados o percurso e as decisões que definiram o
método escolhido; e explicitadas as técnicas e os procedimentos de coleta e
interpretação dos dados. Na seqüência, foi discutida a elaboração dos instrumentos
de mensuração da liberdade sexual administrada; analisadas as condições técnicas e
24
os índices de coerência e precisão dos instrumentos de coleta de dados. Esta seção
dá continuidade à exposição do método, pois traz a discussão a respeito das escalas
elaboradas e sua respectiva validação, mas também se aproxima da seção
subseqüente, destinada à análise dos itens das escalas, pois apresenta os testes de
precisão e a análise da coerência e fidedignidade dos instrumentos. Na seção
destinada à análise e discussão dos itens das escalas – Análise e discussão dos dados –,
foi realizada a análise de todas as proposições utilizadas nas três escalas e verificas
suas respectivas correlações com os fatores que as constituem.
Concomitantemente, a análise do conteúdo dos itens e dos fatores propiciou a
verificação de aspectos menos evidentes dos temas tratados em cada sentença,
permitindo aprimorar a análise da relação que mantêm com os fatores e com as
demais escalas. Não há dúvidas de que, apesar da extensão que compreende, a
análise desses itens configura uma parte fundamental da pesquisa, fornecendo
subsídios importantes para a discussão dos aspectos teóricos. Por fim, as
Considerações finais apresentam os resultados pesquisa, estabelecem sua relação com
os objetivos e hipóteses e indicam o papel desta pesquisa como negação crítica do
processo de integração da sexualidade.
Por uma opção teórica, esta pesquisa não se exime ao confronto com os
mecanismos de dominação social, afirma-se como uma forma de repúdio à
interiorização resignada dos princípios que regem a sociedade capitalista. O
julgamento que oferece da liberdade sexual atualmente permitida visa demonstrar a
necessidade de se formar uma negação mais precisa, que atinja o núcleo do
processo de integração. Se os homens são cooptados por meio da manipulação de
suas necessidades, é delas que devem se libertar, sobretudo porque em grande parte
são necessidades forjadas exatamente para aprisioná-los: a necessidade que ora
conclama à crítica é a necessidade elementar de poder ter necessidades reais, de
poder percebê-las tal como efetivamente são, para além das máscaras e engodos
que a pseudocultura cria para tornar mais brando o sacrifício desnecessário que é
exigido dos homens. Um amálgama de resignação e ilusão, é assim que a liberdade
25
sexual administrada se apresenta, é assim que ela deve ser percebida. Frente à
imobilização generalizada que este contentamento entorpecente produz, esta
pesquisa pretende ser resistência, alçando a ciência à condição de crítica; mas
também pretende ser negação determinada, estabelecendo os limites para poder
superá-los: o prazer que regrediu aos interesses privados do indivíduo decadente e
se afiliou aos grilhões que aprisionam os homens é falso prazer, mas, ainda assim, é
prazer; o prazer que efetivamente puder resistir à tentação de contentar-se com sua
forma degrada, resistindo a integrar-se ao imediato determinado pelas condições de
opressão, e, com isso, elevar-se à crítica do existente, ainda será prazer, mas
também será negação. Para que a liberdade sexual possa se tornar negação é preciso
que primeiro se reconheça como parte do processo que a restringe à mera máscara
da liberdade hoje consentida.
26
Capítulo I: Repressão e mecanismos sociais de integração
da sexualidade
Se comparado com o excessivo rigor puritano e intolerância repressiva da
moral vitoriana, o padrão da liberdade sexual atualmente consentido sugere uma
ampliação significativa da autonomia dos indivíduos frente às determinações sociais
do comportamento e da atitude relativos ao sexo e às instituições que o circundam.
Segundo o entendimento comum, a liberdade de dispor do próprio corpo segundo
as possibilidades de prazer que ele comporta se tornou condição primordial da
existência. Uma paráfrase da autonomia; que, em termos kantianos, constitui a
possibilidade de agir segundo o próprio entendimento sem a direção de outrem
(Kant, 1783/1974). A disseminação dessa tendência contribui para a fusão entre o
misterioso sentido da vida e a busca obstinada pelo prazer individual, irrestrito e
inadiável. Além dos arroubos moralistas, restantes em inúmeros conventículos que
interpretam a liberação sexual como degenerescência da natureza romântica do
sexo, e da empolgação juvenil, que faz do desejo libertino sua forma de protesto
pessoal contra a infelicidade generalizada, não se atenta pormenorizadamente para
o que está subjacente a essa configuração permissiva. O consentimento social a
uma maior variedade de modos de expressão e formas de vinculação interpessoal
relativas à sexualidade demarca limites precisos aos anseios e possibilidades de
satisfação do desejo, das pulsões e dos dispositivos fisiológicos atinentes ao sexo.
Aceitos sem maiores considerações ou apenas meramente despercebidos, os
mecanismos de controle dirigem-se livremente às necessidades psíquicas excitadas
pela indústria cultural. Assim estimuladas, tornam-se ainda mais vulneráveis aos
processos ilusórios que as seduz. Essas necessidades são encantadas pela promessa
de que podem ser satisfeitas independente dos limites objetivos frente aos quais se
constituem; ajustam-se aos padrões estipulados pelo sistema compensatório que as
controla, tornando-se alheias às possibilidades objetivas. Reprodução fiel da
realidade, as necessidades revelam-se, em geral, contrárias à universalização do
27
prazer e à fruição integral que aspiravam. O impacto dessa hipóstase provoca
marcas indeléveis na subjetividade, pois deteriora a percepção objetiva dos
determinantes sociais e condiciona as possibilidades de variação já existentes aos
modelos e padrões pré-estabelecidos. Em conseqüência, esse processo passa a
abranger os mecanismos culturais destinados à manipulação do prazer e ao
condicionamento da conduta política, assim como o ajustamento automático da
esfera subjetiva, sobretudo das pulsões sexuais e destrutivas, aos padrões
demarcados pela sociedade. Mediante a promessa de uma felicidade subjetiva,
dissociada das limitações concretas que as restringe a serem como são, as pessoas
renunciam a consciência acerca da subordinação à qual estão constrangidas e se
entregam de forma desesperada à satisfação pragmática. A alienação decorrente
desse ajustamento deteriora a percepção de que o a integração das forças que
representam oposição ou resistência ao sistema político e à configuração cultural
estabelecidos se tornou um dos mais importantes aspectos da sociedade
administrada.
A história recente evidenciou mudanças relevantes nas formas de controle
adotadas pela sociedade industrial avançada, sobretudo naquelas que eram
caracterizadas pela adoção da violência explícita e agora, ao contrário, assumiram
uma forma mais branda, mais facilmente aceitável pelas pessoas que por elas são
submetidas. Contudo, é preciso salientar que o caráter asséptico adquirido pelas
novas tecnologias de manipulação das condutas individuais não abranda o potencial
destrutivo da dominação assim processada, nem tampouco oculta o evidente
progresso da barbárie. Sob o signo da eficiência produtiva, as modernas e
sofisticadas estratégias de dominação subjacentes à ordenação burocrática da vida
social, favorecem a utilização dos recursos tecnológicos e científicos para forçar o
ajustamento das configurações psíquicas à ordem estabelecida, com isso,
neutralizam os principais intentos subversivos em relação aos padrões de conduta
fixados. A mescla de progresso e barbárie, avanço técnico e regressão espiritual,
ensejada por esse processo, condiciona os comportamentos e atitudes dos
28
indivíduos aos interesses políticos e econômicos engendrados pelo princípio da
acumulação de capital e manutenção da propriedade privada dos meios de
produção material e cultural.
A interpretação estereotipada da realidade tornou-se inerente à produção
cultural específica do capitalismo contemporâneo, passando a apresentar, como
traços naturais, os comportamentos e atitudes dos indivíduos em sua forma já
cristalizada. Constituída como síntese das metamorfoses pelas quais passou a
cultura e a moral reguladora da conduta cotidiana dos indivíduos ao longo da
história, a sociedade administrada adquire uma aparência mítico-natural; sua
estrutura estagnada, além de fidedigna expressão da dominação técnica da natureza,
também comporta a problemática relação entre sujeito e objeto processada em seu
interior. Nas atuais condições de existência, a mera percepção do estado real da
vida danificada já implica uma ação quase irrealizável para o sujeito que se lança
sobre o objeto fugidio; acentua o risco de descontrole da projeção intrínseca ao
processo perceptivo. O fetiche da mercadoria deteriorou a tal ponto a capacidade
de discriminação entre homens e coisas, que as pessoas não somente são
percebidas a partir das mercadorias que possuem, mas sua própria existência se
assemelha à forma das coisas. Os estereótipos que estimulam o consumo são
aceitos como indicadores positivos da condição real das pessoas. Ao produzir
necessidade de consumo e, com isso, determinar o sentido da produção, o
marketing, hoje hegemônico, também cria um envoltório falso que recobre a
experiência danificada com slogans ufanistas. A suplantação da consciência, por
meio do êxtase narcisista estimulado pela indústria cultural, fomenta a identidade
entre o indivíduo fragilizado e o ideal de força insuflado nas imagens arrebatadoras
do prazer incondicional e do poder despótico decorrente do consumo de
mercadorias. Consequentemente, também a dimensão mais aparente da liberdade
permitida sob as condições de dominação produzidas pelo capitalismo tardio
sucumbe à mercantilização de seu significado, pois abstraída das condições políticas
e sociais concretas, é facilmente absorvida pelo processo de produção e consumo
29
de mercadorias. Em geral, a liberdade é compreendida como algo semelhante à
imagem que dela é forjada por associação às mercadorias, tornando-se incompatível
com as condições materiais disponíveis para seu exercício. Reduzida à aparência
destituída de materialidade, ela sucumbe a processos inteiramente subjetivos como
à percepção deteriorada da realidade, por meio da qual, os absurdos
experimentados na vida concreta adquirem sentido para os indivíduos; mas
também sucumbe a uma outra dimensão, que é ainda mais subjetiva e passível de
equívocos: à esfera do prazer sensível, comumente experimentado independente da
objetividade.
Absortas em seus devaneios subjetivos, constituídos em reposta às
necessidades psíquicas insatisfeitas, as pessoas tornam-se presas fáceis de ilusões
estrategicamente produzidas para substituir as possibilidades reais de satisfação,
incompatíveis com o modo de organização material da sociedade. O
contentamento atingido por meio da introjeção dessa ilusão equivale ao
desenvolvimento de atitudes conformistas ante a realidade. As necessidades reais
são malogradas devido o aceite concedido a respostas explicitamente ilusórias.
Mediante o sentimento de segurança proveniente do conformismo, a esfera da
intimidade ainda restante na vida social do indivíduo fica sujeita à demarcação
impressa pela forma da satisfação substitutiva externamente dirigida pelos
manipuladores autorizados, formando disposições comportamentais intensamente
submetidas às exigências da socialização totalitária. Esse processo de integração
caracteriza a forma como as determinações sociais circunscrevem, de acordo com
os interesses da dominação, a dimensão que outrora pôde representar
independência em relação à sociedade. A eficiência técnica com que os mecanismos
de socialização se apropriam e empobrecem a subjetividade resulta da legitimação
da racionalidade inerente ao processo produtivo. Os homens devem sentir-se
suficientemente satisfeitos para não se rebelarem contra a esfera do trabalho. Cada
vez mais, a vida privada se encontra reduzida à reprodução automática dos ditames
sociais, de modo que os indivíduos, encerrados em sua vida particular, perdem,
30
com isso, a capacidade de mediar a determinação social a que estão sujeitos. Em
conseqüência, os aspectos subjetivos mais estritamente vinculados à possibilidade
de contentamento com a cultura, como é o caso da sexualidade ajustada aos
padrões da permissividade condicionada, passam a caracterizar um material de
interesse prioritário não somente para os pesquisadores dos modos modernos de
manipulação da subjetividade, mas para os administradores da cultura. Com o
enfraquecimento da capacidade dos indivíduos oporem-se ao controle que a eles é
dirigido, intensifica-se a produção de um clima cultural condizente com a média das
demandas sociais por livre fruição de certos aspectos da sexualidade relacionadas a
uma idéia de felicidade subjetiva. Isso contribui para a constituição de um estado
geral de contentamento, quer com os meios de expressão da sexualidade quer com
a organização social que os propicia. O fato de tais demandas já serem o efeito de
uma padronização cultural das necessidades psíquicas é freqüentemente
negligenciado e, oculta, ao estilo da velha ideologia liberal, a camada de conteúdos
que permanecem sob o controle minucioso da sociedade. Somente os aspectos da
sexualidade convenientes à manutenção da ordem são liberados, enquanto todo o
restante, que poderia apresentar a desagregação dos valores estabelecidos ou a
transgressão do âmbito de normalidade historicamente condicionada, permanece
alvo de repressões, recalques e tabus. A expressão permissiva do sexo contribui
para o ajustamento da sexualidade às normas estabelecidas pelo status quo, gerando a
ilusão de liberdade à medida que permite a livre expressão daqueles conteúdos que
não lhe são de modo algum nocivos; mas, precisamente devido à plasticidade de
seus métodos, guarda, ao mesmo tempo, como uma contradição interna não-
expurgável, formações psicossociais de base inconsciente. Diques que se interpõem
automaticamente a certos modos de expressão da sexualidade. Esses tabus em
relação ao sexo servem para conservação das fronteiras entre o que é culturalmente
permitido e a dimensão da sexualidade que deve permanecer interditada. Revelam
sua intenção repressiva e também o ponto de clivagem por meio do qual a crítica
pode atingi-la. O poder de determinação adquirido por esses tabus, por vezes, se
31
fixa entre os mais proeminentes, podendo, inclusive, comportar mais força objetiva
do que os tabus políticos:
De ahí que éste, en extrema contradicción con lo que se da superficialmente, aparezca
como el nervio sensible de la sociedad: los tabús sexuales son actualmente más fuertes
que todos los otros, inclusive los políticos, aun cuando no son inculcados enfáticamente.
(Adorno, 1963/1969, p. 99.)
O paradoxo representado pela persistência aparentemente anacrônica
desses tabus sexuais contraria a imagem abstrata da liberdade sexual produzida e
explorada pela indústria cultural. Sua alta incidência, amenizada por dissimulações
na esfera da vida privada, constitui fortes restrições, que são em parte
inconscientes, em parte calcadas em estereótipos socialmente fixados quanto a
temas e comportamentos de natureza sexual. Essa delimitação, que os localiza
aparentemente fora das disputas políticas, torna-os condizentes com a nova moral
sexual; ao mesmo tempo, apresentam-se dissociados da base material que os
constitui e da função política que objetivamente exercem. Os tabus corroboram a
transformação de preconceitos, calcados numa relação problemática com os
conteúdos evitados, em máximas morais facilmente verificáveis. Ao contrário da
moralidade vitoriana, que foi marcada pela contradição explícita entre as
necessidades sexuais elementares dos indivíduos e as exigências morais excessivas
da civilização repressiva, o papel da nova moral sexual na sociedade hodierna
implica novas formas de repressão instauradas ao longo do século XX. Pode-se
destacar que, no período vitoriano, o sexo ganhou força subversiva como dimensão
negada da vida psíquica e social, configurando-se como objeto de repressão
deliberada e recalcamento inconsciente. Ele constituiu uma dimensão subjetiva
negativa, voltada à contestação dos princípios morais em vigência durante o
período de prevalência dos princípios da ética cristã ocidental. Subjacentes ao
processo de ascensão do capitalismo e infiltrados na formação burguesa dele
decorrente, esses princípios, confrontados pela sexualidade pulsante, contribuíram
para a idealização do amor espiritual em detrimento dos prazeres corporais. O
rechaço ao sexo e aos prazeres mundanos, impulsionado pelo ascetismo
32
protestante, por considerá-los nocivos ao meticuloso desempenho moral da
burguesia ascendente, contribuiu para a conservação dessa partícula destrutiva, o
sexo, ameaçadora à unidade do sistema moral no interior de sua própria estrutura.
Devido à repressão sexual impingida pelos códigos morais aceitos, os quais
concebiam o sexo como fator incompatível com os propósitos da adaptação social
e com o necessário ajustamento ao modelo de conduta requerido pelo sistema de
produção do capitalismo concorrencial, o sexo converteu-se numa força
efetivamente subversiva em relação aos interesses da dominação. A repressão
deliberada dessa dimensão da experiência humana tão avessa aos interesses da
acumulação de capital legitimou o conjunto das estratégias de oposição cultural
ulteriormente representada pela insígnia da “revolução sexual”.
Em termos pouco explícitos quanto às disputas políticas, mas culturalmente
significativos, os conceitos psicanalíticos encetaram um turbilhão de
questionamentos culturais a respeito da legitimidade psíquica da moral repressiva.
A partir desses questionamentos, o âmbito velado da sexualidade pôde emergir
como objeto de reflexão e crítica da sociedade repressiva, mas não tardou a
sucumbir novamente às novas estratégias da repressão: uma opressão que libera
para melhor poder controlar; que oprime sob a forma de liberdade. Objeto de
formas tradicionais de repressão, o conteúdo sexual das pulsões
1
, por vezes,
consolidou-se como oposição a aspectos da cultura devotados à ordenação
1
Considerando as contribuições de Laplanche e Pontalis (1982/2001) para o refinamento do léxico
freudiano, pode-se esclarecer que o conceito de pulsão (Trieb) compreende uma das mais importantes
distinções estabelecidas pelo pensamento freudiano; delimita a diferença entre a dimensão biológica do
comportamento, ou seja, a dimensão instintiva, representada em espécies animais por rígidos esquemas de
comportamento herdados e tendentes a finalidades fixas e, por outro lado, o processo dinâmico, que
ocorre exclusivamente no ser humano e é constituído a partir da transformação do instinto (Instinkt), por
meio da mediação da cultura, em pulsão, formando um impulso (força ou pressão) que transcende a
satisfação da necessidade biológica, sua base somática, e constitui processos especificamente psíquicos. Ao
contrário da tradução brasileira das obras de Freud, que seguindo a tradução inglesa não diferenciou
instinto e pulsão, com isso adotando genericamente o termo instinto para designar os termos alemães
Instinkt e Trieb, Freud utilizou-se desses termos distintamente, conservando a palavra Instinkt
exclusivamente para se referir aos padrões rígidos do comportamento e Trieb para se referir à força
energética que motiva o ser humano para objetivos especificamente humanos.
33
coercitiva. Até mesmo quando submetido a vicissitudes que o desviam de sua
finalidade ou suprimem-no da vida anímica consciente, o impulso sexual conserva-
se determinante das configurações da personalidade. Nos termos da análise
empreendida por Freud (1915/2004) a respeito da eficiência do recalque,
compreende-se que o mecanismo encarregado de cumprir essa função fracassa
sempre que não consegue impedir que prevaleçam sensações de desprazer e medo.
Nestes casos, o conteúdo recalcado, de algum modo relacionado à sexualidade,
permanece ativo na determinação da dinâmica psíquica correspondente à formação
reativa de sintomas, tendendo a retornar a ela. Apesar do impacto da crítica
possibilitada pela formulação da teoria psicanalítica, os modos de apropriação do
objeto por ela tratado, contiveram os conceitos sob os limites da realidade
contraditória a que a sexualidade estava submetida. A teoria freudiana foi
intensamente esclarecedora ao desvelar a contradição inconciliável entre os
interesses do indivíduo, calcados na realização das pulsões, sobretudo das pulsões
sexuais, e os interesses da civilização, mas, alguns importantes conceitos
formulados para esse propósito conservaram-se como antinomias, permitindo dar
prosseguimento às indagações iniciadas por Freud; o que, de fato, não deve servir
de pressuposto para a conclusão equivocada de que tais antinomias podem ser mais
facilmente superadas por se recorrer a um referencial teórico que considera a
importância da interiorização das determinações sociais na dinâmica psicológica.
Freud foi suficientemente perspicaz ao formular seus conceitos de acordo com as
contradições do objeto que estava analisando; se a realidade, hoje, permanece tão
contraditória quanto em sua época e a liberdade atualmente dissimulada é tão
repressiva como a que ele pôde analisar, então, não se deve obstar a consciência das
limitações da realidade, sua intenção transcendente depende sobremaneira da
percepção dos limites objetivos do objeto analisado.
Se no final do século XIX e início do século XX, período de elaboração da
psicanálise, a sexualidade estava ajustada ao modelo da família burguesa – restrita
aos interesses do patriarcalismo –, o período posterior a primeira grande guerra,
34
contudo, propiciou outras configurações das relações familiares e,
conseqüentemente, novas possibilidades de expressão da sexualidade. A revisão
cultural dos hábitos e instituições relacionadas à determinação do comportamento
sexual, denominada “revolução sexual”, pode não ter configurado transformações
objetivas na qualidade intrínseca dos conteúdos que até então eram mais
diretamente alvos da repressão, mas certamente contribuiu para consolidação de
modos distintos de configuração, expressão e controle das sexualidades. A
desagregação dos valores tradicionais acompanhou o percurso traçado pela
modernização, a vida nas cidades, sobretudo nas grandes capitais dos novos
tempos, requereu o desenvolvimento de novos hábitos cotidianos. Em meados do
século, após importantes mudanças no perfil da mão de obra assalariada, a vida
privada adquiriu novas feições, a família tradicionalmente estruturada em torno da
figura do provedor masculino foi compelida à dissolução. Apesar de bastante
tardia, a organização da família e a distribuição dos papéis sexuais no Brasil sofreu
os impactos do avanço técnico já consumado na Europa, a exemplo da
desagregação do modelo da família nuclear burguesa na República de Weimar
(Horkheimer,1968/1990). Para uma mulher emancipada da família originária,
dedicada ao trabalho e sujeita às pressões que ele acarreta – além da extrema
competitividade que o fundamenta e da qual não é possível simplesmente esquivar
–, as restrições tradicionais ao livre arbítrio quanto à sua sexualidade não mais
faziam sentido. Segundo a análise realizada por Matos (1989), que retoma os
estudos sobre autoridade e família empreendidos pelos frankfurtianos na década de
1930, a respeito da mudança na condição social da mulher entre a época burguesa,
na qual esteve explicitamente excluída de uma igualdade efetiva com os homens, e
o período posterior engendrado pelo capitalismo monopolista, no qual, devido à
crise da família tradicional burguesa, passou a exercer um papel similar ao do
homem no mundo do trabalho: “as mulheres pagaram caro sua admissão limitada
ao mundo do trabalho masculino, com a aceitação de valores e esquemas de
comportamento inteiramente reificados” (p.176). Posteriormente aos movimentos
35
contraculturais e de contestação dos padrões da moralidade burguesa nas décadas
de 1960 e 1970 houve uma nova configuração da repressão e da forma de controle
das instâncias repressoras que se ajustaram às demandas por maior liberdade sexual.
Os impactos culturais da nova moralidade, representada pelos movimentos sociais
configurados em idos de 1968, caracterizou um processo de amplas transformações
no âmbito dos comportamentos sexuais. Como indicado por Hobsbawm
(1994/2000), foram ampliadas as possibilidades de experimentação: “(...) o recém-
ampliado campo de comportamento publicamente aceitável, incluindo o sexual, na
certa aumentou a experimentação e a freqüência de comportamento até então
considerado inaceitável ou desviante, e sem dúvida aumentou sua visibilidade”
(Hobsbawm, 1994/2000, p. 327).
Em decorrência das mobilizações políticas e culturais atinentes à revolução
sexual, de seus impactos na dinâmica da família e em resposta às demandas
formadas em torno do direito às variadas formas de prazer, desenvolveu-se um
clima geral favorável à liberalização sexual. Contudo, esse clima cultural não foi
suficiente para suprimir a nova moralidade, que, apesar das mudanças em sua
forma aparente, permaneceu ajustada ao mecanismo da dessexualização;
permitindo a liberação do sexo somente em troca de sua submissão a propósitos
que lhe são exteriores, como o comércio de mercadorias e a integração cultural. É
por meio desta interface com a reificação e com os tabus sexuais, dentre outras
características, que a nova moral sexual participa da inclinação ao conformismo
frente às condições sociais e políticas impostas pela sociedade industrial avançada.
Em outros termos, este processo histórico equivaleu à integração das demandas
anteriormente contrapostas às exigências morais e produtivas da sociedade
capitalista ascendente: se seu objetivo era a liberdade, pode-se dizer que a revolução
sexual fracassou.
O ajustamento da nova sexualidade ao equivalente geral do capital, à
mercadoria, assim como a manutenção de tabus ocultados por sua aparente
36
flexibilização, caracteriza contradições internas que detém sua transformação
qualitativa. A dessexualização do conteúdo especificamente sexual, sobretudo da
transgressão erótica (Adorno, 1963/1969), impõe-se como condição para a
liberação impulsionada pela cultura permissiva; nesta, todos os comportamentos
são liberados desde que estejam perfeitamente ajustados à forma reificada. As
variações da sexualidade liberada, distintas apenas na aparência individualizada que
recobre o padrão estipulado, vinculam-se à repetição estereotipada do
pseudoprazer obtido por meio do consumo desenfreado. Correspondente ao
fetichismo da mercadoria, o sexo reificado, recoberto pela liberdade aparente
produzida nas mais sofisticas forjas da indústria cultural, é transformado em uma
mercadoria cuja capacidade de satisfação das necessidades a ela atreladas consiste
mais no feitiço que exerce sobre o consumidor do que propriamente no valor e
significado reais que possa ter na vida social do indivíduo. A crítica de Marx
(1864/1989) ao processo social por meio do qual a relação de produção entre os
homens subsome nas relações entre as mercadorias por eles produzidas é também
adequada ao entendimento do processo de autonomização desse outro tipo de
mercadoria, expressão da decadência das relações humanas reificadas. A liberdade
sexual administrada é produzida e consumida sob condições similares ao processo
de produção e consumo de mercadorias materiais, este se apropria do produto do
trabalho assim como aquela se apropria das necessidades humanas, mas em ambos
os processos, devido igualmente ao fetichismo da mercadoria, as forças criativas
sucumbem ante o feitiço exercido pela forma mercadoria; por fim, tanto o trabalho
quanto a sexualidade são percebidos como se fossem apenas variação do valor de
troca, naturalmente convenientes ao livre fluxo do mercado das relações afetivas e
sexuais assim como à troca de mercadorias.
A identidade atualmente estabelecida entre as formas obsoletas de
resistência e os sofisticados recursos de integração do sexo remete o entendimento
acerca da falência a que incorreu a proposta de revolução sexual à continuidade
histórica da contradição geral da liberdade burguesa; à disparidade concreta entre o
37
ideal de liberdade afirmado e as condições reais de sua realização. Apesar das
variações nos modos de controle moral, ainda é o princípio da dominação
capitalista que determina a forma e os termos da ordem social a ser mantida. A
continuidade daquele paradoxo é garantida por meio da apropriação de novas
tecnologias de controle. Ao contrário das perceptíveis estratégias de repressão
sexual estabelecidas pela moral tradicional, as quais devido à visibilidade incômoda
de suas técnicas tornaram-se facilmente questionáveis, o prazer hoje permitido é
sutilmente administrado por meio de técnicas não-aversivas de controle do
comportamento (Skinner, 1971/1983); converteu-se no próprio recurso que é
utilizado para o aprisionamento dos conteúdos que antes possuíam força
libertadora. De reação política à repressão direta, as estratégias de liberalização
erigidas em nome do prazer passaram a instrumentos da própria repressão que se
difunde por meios indiretos. As manifestações da sexualidade, que durante o século
XIX e nas primeiras décadas do século XX, englobavam conteúdos refratários ao
ajustamento impingido pela moral sexual repressiva, ajustaram-se aos novos
mecanismos de integração da subjetividade. Foram incorporadas à lógica da
dominação que rege a totalidade social. Assim domesticada, a sexualidade passou a
fazer parte da produção de necessidades falsas. Sua apropriação social para fins de
controle foi desmascarada por Marcuse (1964/1967) na análise da ideologia da
sociedade industrial. Segundo ele, a satisfação de necessidades falsas, obtida por
meio da miséria daqueles que garantem aos mais abastados o descanso, a distração,
o consumo e a manifestação de sentimentos como o amor e o ódio em
consonância com os padrões propagados pela indústria da propaganda e da cultura
de massas é desmentida pela descompensação das “únicas necessidades que têm
direito indiscutível à satisfação” que “são as necessidades vitais – de alimento,
roupa, teto ao nível alcançável pela cultura” (p. 27):
Podemos distinguir tanto as necessidades verídicas como as falsas necessidades. “Falsas”
são aquelas superimpostas aos indivíduos por intêresses sociais particulares ao reprimi-
lo: as necessidades que perpetuam a labuta, a agressividade, a miséria e a injustiça. Sua
satisfação pode ser assaz agradável ao indivíduo, mas a felicidade dêste não é uma
38
condição que tem de ser mantida e protegida caso sirva para coibir o desenvolvimento
da aptidão (dêle e de outros) para reconhecer a moléstia do todo e aproveitar as
oportunidades de cura. Então o resultado é a euforia na infelicidade. (Marcuse,
1964/1967, p. 26.)
A integração cultural da sexualidade pressupõe o ajustamento do prazer às
possibilidades de satisfação socialmente consentidas; os desvios não devem diferir
nem em tipos nem em número à extensão do campo de possibilidades delimitado
pelos modelos oferecidos. As variações no conteúdo podem ser aceitas desde que
reproduzam a forma estipulada pelo padrão, em cuja estrutura prevalecem as falsas
necessidades. Nesse sentido, é importante avaliar se as práticas sexuais condenadas
por sua inadequação conseguem romper com a lógica predominante ou também
permanecem presas na órbita dos padrões estipulados? Além do afrouxamento
notório dos rigores morais que agora dispensam condenações veementes de
manifestações menos convencionais da sexualidade, a sociedade administrada cria
sub-culturas especializadas na absorção das camadas desviantes, impulsionando o
seu ajustamento parcial. O êxito comercial do mercado de produtos destinados aos
consumidores homossexuais e a reprodução caricatural das perversões sexuais pela
indústria pornográfica atestam o alcance dos mecanismos de integração; mesmo os
elementos desviantes podem ser efetivamente integrados se deixarem-se submeter à
forma padrão. As falsas necessidades podem funcionar como campos de atração
magnética. Não precisam ser aceitas como imposições ou recursos substitutivos aos
anseios frustrados, podem, pelo contrário, absorver as tendências insurretas e
remodelá-las de acordo com a forma tolerável.
Não obstante o fato de a moral sexual hodierna diferenciar-se da moral
repressiva tradicional em muitos aspectos, ela também se afirma por meio da força
homogeneizadora dos padrões. Todavia, o padrão de comportamento sexual hoje
predominante não mais corresponde unicamente ao estabelecimento de uma forma
rígida de manifestação dos desejos e execução dos prazeres, mas se caracteriza pela
predominância de um tipo específico de vinculação afetiva, mediada pela
dessexualização. Apesar de algumas restrições frequentemente veladas, são
39
possíveis muitos novos usos do corpo e variações na forma de obtenção do prazer
sexual, mas o que efetivamente se repete como um padrão quase inevitável é a
resistência à formação de vínculos afetivos intensos e duradouros. A crescente
superfluidade das relações afetivas e sexuais denota um processo mais profundo de
dissociação entre o corpo e o espírito. Os prazeres sexuais reduzidos ao desafogo
fisiológico são incompatíveis com a manutenção de vínculos afetivos duradouros,
nos quais o objeto do desejo não sirva apenas ao alívio mecânico do instinto sexual,
mas conserve a exigência de refinamento cultural do instinto; que represente a
preservação do objeto. Pode-se dizer que as variações das práticas sexuais não
somente estão deixando de ser tomados como alvos exclusivos dos tabus, mas sua
integração acaba por subtrair-lhes a força negativa que possuíam quando eram os
objetos principais da repressão. Longe de configurar uma aceitação real da
demanda por diferenciação, este processo destina-se ao condicionamento da forma
como são introduzidas nas relações humanas. O padrão de comportamento sexual
ainda prescreve os limites das variações dos prazeres sexuais, contudo, concede-
lhes espaços condicionados de expressão e submete-os à dissociação entre o afeto e
o prazer fisiológico, que também é estendida a todos. O padrão dirige-se não
somente às variações das demandas e dos modos de satisfação dos prazeres, mas
principalmente à qualidade dos vínculos afetivos.
Quando dado em conjunto com a liberalização do contato sexual, o
enfraquecimento dos vínculos afetivos torna-se uma paródia das contradições
históricas da instituição social do matrimônio. Dentre as formas mais comuns de
experimentação sexual em voga, o encontro casual sem pretensão de
comprometimento ou continuidade tem se destacado por sua aparente flexibilidade.
Paradoxalmente, a liberdade sexual parece se confundir com a intenção de libertar-
se do âmbito da sexualidade. Marcadas por exigências éticas e morais e por
possibilidades contratuais distintas daquelas apregoadas pela moral sexual vitoriana,
as novas formas de vinculação possibilitam modos de envolvimento sexual e
arranjos maritais entre os parceiros essencialmente novos quanto à racionalidade
40
contratual que medeia as relações e quanto às expectativas investidas no outro. O
prazer ganhou tamanha notoriedade que qualquer defesa da liberdade sexual deve
levar em conta a qualidade do prazer a que ela se relaciona. Em conseqüência, o
frágil limiar entre as falsas necessidades e o direito universal ao prazer é um dos
fatores que mais contribui para turvar a percepção do que distingue a liberação
repressiva e a verdadeira liberdade sexual.
As demandas de grupos politicamente organizados e as manifestações
espontâneas de outras variações do erotismo pelo direito à autodeterminação sexual
apresentam questões importantes a respeito da relação entre o controle da
sexualidade liberada e a legitimidade das formas de erotismo culturalmente
interditadas. Movimentos políticos organizados pelo reconhecimento das
sexualidades homossexuais, bissexuais e transexuais; o questionamento intelectual e
artístico do movimento Queer
2
, organizado em torno da multiplicidade das
identidades sexuais e variações do erotismo (Barbero, 2005); e a libertinagem dos
casais liberais cujas práticas do sexo livre e variações do erotismo “perverso” estão
circunscritas no universo bem administrado do swing, representam variações
complexas da liberdade sexual que não podem ser desconsideradas.
Quer seja por sua presença impactante, ou pela curiosidade geral que
desperta, a sexualidade expressada por determinados círculos de pessoas não
somente ganha o título e os investimentos financeiros de mercado consumir
específico, mas também, ao mesmo tempo, apresenta um questionamento factual
da normalidade estabelecida. Tanto a visibilidade adquirida por mobilizações
políticas como a Parada do orgulho gay, que responde à demanda por participação
social e reconhecimento de milhões de homossexuais, bissexuais, transexuais e
2
Barbero destacou a importante contribuição dos Gay &Lesbian Studies e do movimento Queer para uma
redefinição do entendimento psicanalítico conservador a respeito da homossexualidade e da perversão
sexual. Como a autora argumenta “o movimento queer, como seu nome indica (queer significa torto,
estranho) propõe-se sempre contra. É um movimento de resistência às normas e determinações sociais que
pretendem disciplinar o erotismo com regras rígidas e preestabelecidas” (Barbero, 2005, p. 44).
41
transgêneros, como o aumento do número de clubes e de produtos da indústria
cultural voltados para públicos cuja sexualidade apresenta peculiaridades outrora
inadmissíveis, denotam a plasticidade da tolerância social em relação a essas
expressões da sexualidade classificadas pelas nosografias psiquiátrica e psicanalítica
como perversas. Ao reivindicarem para si o estatuto da liberdade sexual, algumas
sem assumirem o ônus político por sua perspectiva nem tampouco estabelecerem
estratégias de confrontação suficientes frente às determinações sociais, seu modo
de liberdade fica reduzido à dimensão privada, a qual deve ser analisada quanto à
reprodução das contradições do todo que a cerceia. O tratamento político-social
organizado de temas de cunho jurídico como o casamento e a adoção de filhos por
casais homossexuais, bem como a discriminação e o preconceito em relação à
diversidade sexual são questões que abrangem tanto o movimento GLBT quanto
os grupos manifestamente conservadores, organizados em prol da preservação dos
bons costumes morais e da tradição. A contraposição explícita entre esses dois
diferentes grupos, ambos com participação política efetiva, representa um
indicativo importante da contradição contida nas representações da liberdade
sexual e nas atitudes formadas em relação a ela e a temas políticos e econômicos.
No caso dos casais liberais, a adesão a práticas de sexo não-convencional,
como a troca de parceiros e o sexo em grupo, demarca limites e possibilidades de
experimentação sexual que são muito distintas da liberalização do sexo genital
convencional; ao mesmo tempo em que redefinem os limites dos prazeres
tradicionalmente remetidos às exigências do amor romântico, seu comportamento
libertino garante a manutenção do contrato matrimonial que, neste caso, fica
mantido formalmente inalterado. Neste modo de vinculação, é permitido romper
um conjunto de restrições relativas à posse sexual e ao controle afetivo do parceiro,
mas o contrato de propriedade e o direito à herança permanecem preservados.
Além da troca de parceiros, da inclusão de terceiros e do sexo grupal, a prática dos
casais liberais está permeada por elementos menos redutíveis a formas facilmente
classificáveis de prazer. Há freqüente recorrência a experiências de bissexualidade e
42
comportamentos sexuais ligados ao pré-prazer que se confundem com o
exibicionismo e o voyerismo. Como essas variadas manifestações da sexualidade são
expressas a partir do interior do casamento heterossexual, possivelmente não
representam variações psíquicas profundas quanto à organização genital.
Demarcam um conjunto de práticas e gostos sexuais que caracterizam importantes
lacunas no entendimento da sexualidade humana. Portanto, compreende-se que a
redução desses modos de envolvimento sexual e vinculação afetiva à categoria
psicanalítica perversão não seria suficientemente explicativa do conjunto de
elementos psíquicos e sociais que estão congregados em sua constituição. É
primeiramente necessário analisar o conjunto dessas formas desviantes em relação
aos padrões de conduta sexuais considerados normais ou sadios e remetê-los à
esfera da universalidade política na qual se constituem, para que, então, sejam
discutidos não apenas em termos de normalidade ou adaptação, mas em termos de
autonomia individual e coletiva. Restringir à priori, sem uma minuciosa análise do
potencial humano implicado, esses variados modos de expressão da sexualidade
desviante a uma categoria clínica como a perversão configuraria um modo de
resignação frente à imposição de modelos de conduta forjados a partir de uma
perspectiva repressiva. Para além da possibilidade de conterem conflitos psíquicos,
conteúdos inconscientes causadores de sofrimento ou falhas na formação do
caráter, esses modos de expressão da sexualidade constituem um questionamento
efetivo às possibilidades instituídas de liberdade sexual do indivíduo. Remetê-los à
dimensão política corresponde a confrontá-los com a função objetiva que assumem
na sociedade atual: quer como elementos de contestação da ordem estabelecida ou
como arranjos psicossexuais favoráveis à dominação social. Considerando que são
alvos de investidas técnico-terapêuticas bastante reacionárias, dirigidas à adaptação
aos estereótipos já convencionados, pode-se argumentar que não reduzi-los à
psicopatologia equivale a fortalecer o questionamento a respeito do sentido
ideológico da psicologia conformista. Como esboçado acima, a crítica deve ir além
da redução conceitual ou técnica e pensar o fenômeno em termos de suas
43
implicações sociais e políticas. A psicologia conformista, ora genericamente
criticada, configura-se pela adoção de um esquematismo conceitual que impede a
análise da especificidade do objeto. Essa psicologia dispensa a análise das
implicações políticas da normalidade e da adaptação, tão fortemente impregnadas
no posicionamento geral da sociedade frente ao âmbito da sexualidade. É neste
contexto histórico-social, cujas forças opressivas adquiriram intenso poder de
integração, proliferando inclusive por meio das práticas científicas, que essas
variações do sexo não-convencional ganharam notoriedade, em especial, devido à
sua complexa articulação de integração e resistência.
Considerando os inúmeros mecanismos que, apesar da liberalização,
infligem à sexualidade modelos de ajustamento e de desvio, pode-se supor que a
circunscrição das manifestações polimorfas do sexo à categoria perversão sexual não
apenas restringe a relevância política e social desse conjunto de fenômenos
psíquicos como também deixa incólume o significado depreciativo adquirido pelo
termo a partir de sua apropriação médica (Lanteri-Laura, 1979/1994). A perversão
deve ser analisada, não somente em relação a possíveis fixações em alguma fase do
desenvolvimento psicossexual ou ao papel de fantasias inconscientes na
organização subjetiva do desejo, mas, principalmente, como indicador dos critérios
e definições culturais dos modos de satisfação sexuais aceitos como normais;
portanto, demarcados como pertencentes ao âmbito do que é permitido. A
nomenclatura das perversões sexuais, parafilias ou distúrbios do sexo, estabelecida
pela psicopatologia sexual, estabelece limites precisos para o exercício do prazer.
Mesmo a racionalidade que discrimina o caráter destrutivo de certas dinâmicas
caracterizadas pela compulsão corrobora o processo formal de normalização das
manifestações sexuais. O aparente paradoxo entre a normalização do sexo, de
início, promovida pelas definições psiquiátricas do final do século XIX, e,
posteriormente, pelas conceituações psicanalíticas e sexológicas, e a liberação
condicionada que sucedeu os movimentos contraculturais das décadas de 1960 e
1970, esconde a identidade entre a repressão explícita da época vitoriana e a
44
opressão sob a forma de liberdade produzida pela liberação concedida pelo
capitalismo tardio. É possível observar em ambos os processos a continuidade da
repressão e a consolidação dos modernos mecanismos de integração da
sexualidade. Já no início do século XX, Freud (1908/1976) revelou o papel
contraditório exercido pela moral sexual repressiva na constituição das
psiconeuroses, mas, segundo Lanteri-Laura (1979/1994), nem por isso deixou de
sugerir o encarceramento da sexualidade desviante na categoria do sexo perverso.
Em uma fase posterior do desenvolvimento das estratégias de controle da
sexualidade, Marcuse (1955/1981) destacou que até mesmo as manifestações
sexuais que irromperam da categorização repressiva, estavam sujeitas à integração.
Conforme indicou, o mecanismo da dessublimação repressiva assegura a livre
expressão dos comportamentos sexuais que não mais precisa sufocar para garantir a
ordem produtiva. A repressão acompanha as transformações culturais, visando
estabelecer o equilíbrio entre os costumes privados e as instituições sociais.
Por meio da análise do processo de liberação controlada de certos aspectos
da sexualidade, tornados inofensivos à ordem social, Marcuse (1951/1981)
contribuiu para o estabelecimento das bases da crítica aos mecanismos de
integração cultural dos indivíduos. Contudo, também esteve atento à dinâmica
histórica e ao potencial emancipatório implicados na sexualidade, argumentou que
“sob condições não repressivas, a sexualidade tende a ‘tornar-se’ Eros...” (p. 193);
com isso, indicou que sob um princípio de realidade não-repressivo a gratificação
das pulsões sexuais tenderia a se intensificar, gerando outras formas de satisfação
coerentes com a manutenção da vida. Essa formulação se baseia na distinção
radical entre o que, nas condições atuais, se propõe como liberação sexual e o que,
de fato, seria possível em um mundo livre. Segundo ele, ao constituir a base
material da sociedade, o modo atual de organização das relações de produção
impregna inclusive a organização subjetiva da sexualidade. Por isso, o prazer sexual
pode ser permitido independente da transformação material da sociedade, desde
que permaneça submetido aos fins produtivos em função dos quais anteriormente
45
foi reprimido. Em linhas gerais, sua análise é similar a que Adorno (1963/1969)
desenvolveu a respeito da dessexualização; ambos criticaram a subordinação da
esfera erótica a interesses externos à sua própria substância. Contudo, distintamente
do pensamento negativo de Adorno, Marcuse empenhou-se na formulação de uma
utopia sexual. Delineou a fisionomia geral de uma sexualidade livre, que somente
proviria de uma organização social não-repressiva, em cuja estrutura organizativa,
os conflitos entre as classes sociais e a dominação imemorial da natureza estivessem
superada.
Frente à constatação de que o sexo e o poder são dois campos
intrinsecamente vinculados e de que o controle da sexualidade reproduz a lógica da
dominação presente nas relações sociais de produção, é interessante ponderar o
quanto essa dependência também pode indicar possibilidades de transformação de
cada um desses campos a partir de transformações produzidos no interior do outro.
A crítica de Marcuse (1955/1981) à liberação sexual repressiva possibilita extrair
das condições de opressão reinantes um vislumbre de um outro modo inteiramente
distinto de organização da sexualidade; ele percebeu na falsa libertação o conteúdo
libertador efetivamente negado, desvendando, com isso, o papel formativo que
poderia cumprir numa outra ordem social desvencilhada da dominação. De acordo
com sua análise, as condições necessárias para que esse salto qualitativo seja
possível são indissociáveis do processo político, pois é precisamente por meio do
avanço qualitativo nas esferas política e econômica que se torna possível a
revolução do modo de organização material da sociedade e a ruptura radical com a
cultura da dominação a ela atrelada. Por essa razão, compreende-se que as bases
para uma nova sexualidade, inteiramente purificada do princípio da dominação ora
predominante, sejam indissociáveis do surgimento de novas motivações pulsionais
tanto quanto da efetivação das possibilidades concretas de transformação social.
Nas condições atuais, não há indícios da liberdade exterior, que somente a
transformação do sistema poderia propiciar, nem tampouco uma disposição
espiritual para conquistá-la, uma liberdade interior que fosse não apenas subjetiva,
46
mas dirigida para o mundo material, como potencial não-realizado. Essa motivação
já está corroída pela reificação do pensamento e da vontade, associados às falsas
necessidades. A proposição marcuseana de uma utopia erótica, cujas possibilidades
estariam firmadas nas condições históricas concretas, preserva a consciência de que
mais do que a primazia das dimensões política e cultural na transformação da
sexualidade, o que importa destacar é a indissolubilidade entre cultura, sociedade e
natureza: para que possa haver a mobilização de forças capazes de opor resistência
e impulsionar a transformação da totalidade opressiva, é necessário que os
indivíduos possam desenvolver, ao menos minimamente, sua capacidade
emancipatória; que ao vislumbrarem uma nova ordem social, possam, em sua
interioridade, estarem motivados pelo espírito da liberdade.
Considerando que mesmo quando não realizada, a liberdade pode
apresentar-se como potencial negativo, é imprescindível averiguar dentre as
manifestações sexuais que apresentam variação polimorfa, em comparação com a
sexualidade integralmente padronizada, se além da submissão aos mecanismos de
integração do sexo, por meio do qual contribuem para desenvolvimento de atitudes
conformistas, também conservam a possibilidade de resistência a essa tendência.
Como a noção de liberdade almejada pelos indivíduos alienados pode ser
meramente subjetiva, adquirindo contornos carregados de investimento libidinal
difíceis de serem distinguidos pela percepção, sobretudo no que se refere à
sexualidade – dimensão à qual remontam declarações apaixonadas de felicidade
incondicional ou desespero absoluto –, é de extrema importância considerar esse
conjunto de fenômenos a partir da significação objetiva que adquirem na vida dos
indivíduos, a partir do efeito que exerce em suas vidas concretas. Tais efeitos
podem resultar no ajustamento ao padrão de permissividade repressiva, na
reificação do conteúdo erótico, na mediação do prazer pela dominação imemorial,
na manutenção de tabus fortemente arraigados a respeito de minorias sexuais ou
variações da sexualidade contrapostas aos estereótipos aceitos, além da
normalização de aspectos destoantes do campo abrangido pela permissividade. Os
47
critérios indicados por Marcuse (1964/1967) para compreensão da falsa
necessidade são igualmente adequados para a avaliação das variações polimórficas:
se estas servirem para perpetuar a labuta, a miséria e a injustiça, também serão
falsas.
Nos mesmos termos da crítica desenvolvida por Marcuse, porém munido
da negação obstinada de qualquer imagem ideal de homem, Adorno (1963/1969)
asseverou a impossibilidade de haver liberdade sexual em uma sociedade não-livre.
Sua análise revelou o poder coercitivo do conteúdo psicológico por detrás da
eficiência das estratégias de dominação. Devido às significativas mudanças no
modo de determinação da vida social e da subjetividade, tornou-se imprescindível à
crítica aprimorar a acuidade interpretativa, passando a atentar não apenas para a
falsidade lógica da elaboração ideológica, mas para a sustentação psíquica dessa
falsidade: a liberdade concedida constitui um engodo que obsta a percepção dos
limites inerentes às expressões do particular; até mesmo o singelo prazer, quando
emerge do âmago da sociedade totalitária, traz a mácula opressiva da dominação.
Ao remeter os modos particulares de expressão da sexualidade à totalidade
preponderante, a crítica de Adorno desvelou a primazia da sociedade sobre o
indivíduo. Se a liberdade individual deveria estar submetida à universalidade para
que não se convertesse em despotismo, o ajustamento ao padrão de conduta
generalizado suprime a singularidade e submete o universal aos interesses dos
dominadores, apresentados como interesses dominantes. A falsa universalidade
substitui as idiossincrasias individuais pela diversidade pré-condicionada pelo
padrão. Manifesta ou não, a mentira ideológica ainda é passível da arcaica
generalização homogeneizadora que preenche o todo desfigurado com a parte
distorcida que melhor convém à dominação. A aparente independência do sexo na
sociedade administrada tende à reprodução compulsiva do comportamento
reificado:
Es imposible pensar, en una sociedad no libre, en la libertad sexual, así como en ninguna
otra libertad. El sexo, como sex, se convierte en una variación del deporte, privada de
48
ponzoña, lo que aún allí es diferente, permanece siendo un punto alérgico. (Adorno,
1963/1969, p. 94.)
Apesar de sua redução à condição de mercadoria destinada ao
entretenimento das massas fatigadas pela frieza técnica da maquinaria, a sexualidade
ainda resguarda, recolhida em sua substância transgressora, a possibilidade de
expressão do que há de mais específico no ser humano: a particularidade de seus
desejos; um veneno afável, mas ainda alérgico. Mas, precisamente por recordar a
diferença negada, as variações do sexo não-ajustadas automaticamente ao
mecanismo da integração cultural tornam-se ainda mais ambicionadas; sujeitas a
apropriações que as reduzem a categorias estáticas. As resistências que opõem à
integração são fracas e também condizentes com a lógica permissiva, por isso,
acabam neutralizadas. Por esta razão, apesar de estar intrinsecamente ligada à
dimensão empírica por meio da qual se materializa, a liberdade sexual não pode
prescindir dos afetos. Não desenvolverá seu potencial para a liberdade enquanto se
mantiver como uma dimensão à parte de sua expressão espiritual mais pura: o
amor; essa particularidade erótica e afetiva somente constituída a partir da mediação
da cultura. O amor representa o particular universalizável, por meio do qual é
possível cotejar o prazer factual, comum ao indivíduo entregue a si mesmo em sua
experiência privada, com a universalidade do prazer possível a todos; constitui a
possibilidade histórica de refinamento do prazer.
O prazer é um objeto movediço, se ajusta facilmente às determinações
culturais. Desvinculá-lo da vida concreta é impedi-lo de que tome consciência de si
mesmo. A história nos reservou muitos exemplos dessa dissociação. O gozo dos
prazeres sexuais, inclusive dos mais peculiares, sempre esteve disponibilizado de
acordo com o arbítrio dos poderosos; sempre esteve mais facilmente acessível a
uma determinada classe ou estirpe de pessoas privilegiadas por sua condição social.
Historicamente, o direito e o acesso ao gozo coincidiram com o intenso controle da
sexualidade da massa de oprimidos. A hipocrisia da nobreza e do clero durante o
absolutismo monárquico, conforme pode ser inferido dos sofisticados excessos
49
imortalizados por Sade (1795/2000), bem como as estratégias de administração dos
impulsos sexuais da juventude hitlerista pelo nacional-socialismo, são passagens
históricas que indicam os termos com que se desenvolveu a dialética do prazer. As
condições de senhor e de escravo permearam a história do gozo. Analisando a
suplantação de tabus sexuais, fortemente arraigados na cultura alemã, pela política
nacional-socialista, Marcuse (1999) denunciou que a manipulação dos desejos
sexuais, simulando a libertação instintivamente desejada, contribuiu para melhor
submetê-los aos interesses do sistema: “o terceiro Reich aboliu a discriminação
contra mães e filhos ilegítimos, encorajou relações extramatrimoniais entre os
sexos, introduziu um novo culto da nudez na arte e entretenimento e dissolveu as
funções protetoras e educacionais da família” (Marcuse, 1999, p. 126-7).
Como moeda de uma troca maquiavélica, a sexualidade foi convertida em
mercadoria. O valor que medeia todas as relações no interior do capitalismo
também imprime ao prazer sexual sua marca mercantil. Não é preciso que os
prazeres sejam literalmente submetidos a alguma variação do valor de troca como
ocorre nas várias formas de prostituição, antes, a forma que está subjacente à lógica
que rege o universo de circulação desses valores também já impregnou o âmbito
mais íntimo da relação entre as pessoas. Reduzidos à condição de coisas dentre
coisas, como a muito já fora desvelado por Marx (1844/2004), os seres humanos
reificados não conseguem perceber nem o outro nem a si mesmo senão como um
instrumento de seu bel prazer. A liberdade constituída no âmbito do individualismo
burguês e os prazeres ansiados sob a determinação do capital, que a ela
correspondem, se pautam pela violação da verdadeira liberdade, que já poderia ser
universalmente compartida, e pela satisfação das falsas necessidades produzidas em
situação de cativeiro existencial. A precisão do conceito de liberdade sexual talvez
possa ser obtida por meio da negação determinada do fenômeno regressivo que ora
é delimitado como objeto dessa pesquisa, mas, se subtraídas as determinações, o
que resta são apenas expectativas ideais quanto a uma substância não-realizada, não
50
há razão em se descrever sua forma, pois também essa é apenas um vir a ser não
menos enigmático do que aquele que se dirige à descrição do mundo livre.
51
Capítulo II: Permissividade sexual repressiva
Tendo em vista o poder de determinação exercido pela sociedade totalitária
sobre a esfera da liberdade sexual privada, sobretudo a eficácia operativa da
dessexualização decorrente da integração do prazer aos mecanismos de produção e
troca inerentes ao capitalismo avançado – o que levou Adorno (1963/1969) a
considerar que “es imposible pensar, en una sociedad no libre, en la libertad sexual, así como en
niguna otra libertad” (p. 94) –, cabe questionar se a permissividade formal subjacente
ao padrão da nova moralidade, calcada na justaposição da ciência e da indústria
cultural, não seria, ao contrário do que parece, um processo essencialmente
repressivo. Se os preceitos morais que sustenta, bem como o conjunto das
disposições subjetivas que cultiva, não se constituiriam desde o início em
consonância com as exigências de controle social dos indivíduos. É notório o fato
de que a permissividade sexual, hoje predominante nos diferentes estratos da
população, aceita, como condição naturalizada da conduta moral, uma série de
expressões da sexualidade outrora julgadas inadmissíveis; entretanto, ao conceder
sua livre expressão, também as restringe à healthy sex life denunciada por Adorno
como efeito do amálgama de necessidades especialmente produzidas e destinadas à
moldagem do corpo e dos gostos. Processo que compreende desde a indústria de
cosméticos até o comércio das psicoterapias, formando uma aparência de liberdade
sutilmente comprometida com a subordinação dessas expressões à forma-padrão
prescrita pela norma social. Em termos relativamente ufanistas, parece haver um
Zeit Geist voltado à livre expressão das diferenças individuais, uma sexualidade
liberada do pejo moralista e assegurada por um declínio do discurso que as
encarcera no campo das perversões, ensejando, segundo Giddens (1993), “uma
batalha parcialmente bem-sucedida sobre os direitos da auto-expressão no contexto
do Estado democrático liberal” (p. 44). Envolta por uma aparência ambígua,
intrinsecamente condizente com a normatização, como comumente pretendem as
técnicas de marketing intencionalmente interessadas em turvar a percepção, essa
52
nova moralidade revela-se condizente com o relaxamento histórico das exigências
de autocontrole dos indivíduos, não mais necessárias ao sistema de produção
automatizado cuja estrutura melhor combina com a busca desenfreada pelo prazer
individual, de acordo com o projeto implícito de implantação de um hedonismo
conspícuo destinado ao aumento da necessidade de um consumo que satisfaça as
massas sedentas por prazer.
O tipo de liberação sexual concedida pela sociedade administrada
compreende a expressão de manifestações da sexualidade outrora proscritas e a
criação de novos canais culturais destinados à circulação dessas manifestações; com
isso, circunscreve sua circulação e modo de expressão aos espaços e à forma
demarcados pelos mesmos mecanismos psicológicos utilizados para produzir o
clima cultural de satisfação e contentamento subjetivos. Ao conduzir as pessoas ao
tipo de satisfação supostamente mais adequada à preservação de sua saúde sexual e
à manutenção da aparente harmonia social, esses mecanismos produzem uma
espécie de assepsia dos prazeres, por meio da qual são favorecidas as formas de
satisfação mais convenientes à preservação da ordem social. Esses mecanismos
configuram uma tecnologia de manipulação de estímulos especialmente destinada a
condicionar o comportamento e os impulsos sexuais, incorporando estratégias
decorrentes da racionalidade técnica. Em conseqüência da adoção dos princípios
dessa racionalidade – que é socialmente produzida, mas incide sobre o âmbito da
vida privada e é aplicada à administração pública dos canais de satisfação individual
– e da apropriação de seu poder de legitimação, a eficiência repressiva da liberação
sexual repressiva atinge graus de controle surpreendentes; cria um clima cultural
favorável à acomodação, atingindo a dimensão mais intima da vida privada dos
indivíduos. Com isso, interfere decisivamente nas suas respectivas dinâmicas
psíquica, que por esse meio são internamente impulsionadas a se ajustarem às
exigências da sociedade. Mesmo os vícios e desvios secularmente rechaçados, na
medida em que favorecem a manutenção da ordem estabelecida ou o progresso da
dominação, convertem-se em virtudes públicas. Esse processo, a um só tempo,
53
assegura a eficácia estratégica da repressão e promove a interiorizarão consentida
do controle pulsional, passando a operar exteriormente conteúdos mobilizados nos
próprios indivíduos, na dinâmica de sua vida mental. As configurações subjetivas
decorrentes desse estado de integração conservam um aparente dinamismo e
simulam certa ousadia que, apesar de falsa, torna-as mais aceitáveis.
Essa liberalização sexual, concedida sob intensa vigilância, fundamenta-se
na subordinação da moral e dos conteúdos que neste contexto são julgados imorais
aos interesses políticos e econômicos das classes dirigentes; neste caso,
consolidados como interesses dominantes. Com isso, as formas de conduta aceitas
ou interditadas alienam-se do campo da ética, assumindo novo valor à medida que
oferecem às massas uma atmosfera irrealista de liberdade e felicidade, na qual se
destaca um apoteótico sentimento de expansão individual; uma auto-afirmação
narcisista que distorce a percepção da realidade e acentua a alienação entre
indivíduo e sociedade. Tudo leva a crer que não há mais repressão e que os
responsáveis por essa suposta conquista são os próprios indivíduos entregues aos
seus desejos. Mobilizados por esse sentimento, e encantados pelo suposto império
dos sentidos, os indivíduos passam a considerar que não mais são necessários
grandes esforços para que se possa conquistar a liberdade ou erigir oposição às
velhas limitações impostas ao prazer. Com a inflação narcisista do ego debilitado,
devido à estimulação promovida pelos mecanismos ideológicos que produzem um
equilíbrio artificial entre a debilidade objetiva e a imagem ilusória que fazem de si
mesmos, o estado de tensão entre as pulsões individuais e as exigências da
sociedade é relaxado, promovendo uma espécie de ganho secundário ou prazer
substituto. Contudo, ao contrário do que aparentam, esses dispositivos culturais
implicados na produção da permissividade conservam-se a serviço da acumulação
de capital e da continuidade da forma de organização social que a propicia.
Simulam a superação dos conflitos milenares entre os interesses dos indivíduos e os
interesses da civilização opressiva, cuja camuflagem garante a continuidade da
contradição específica do capitalismo: como uma luta tácita entre as classes sociais.
54
Prolongadas indefinidamente em conseqüência desse processo, as contradições
políticas e econômicas inerentes à forma de organização da sociedade adquirem
contornos menos perceptíveis às frágeis consciências danificadas, passando a
funcionar de acordo com a lógica da satisfação privada. É precisamente essa lógica
da satisfação privada que se torna a força motriz responsável por impulsionar e
reger o processo de dominação cultural experimentado como condição natural e
intransponível, promovendo a integração de conteúdos que antes, quando sua
proibição moral ainda pleiteava a racionalidade do conceito, ao menos conseguia
explicitar a contradição com os interesses da produção.
Analisando o processo por meio do qual a sociedade industrial avançada
absorve os elementos contrários à ordem estabelecida, Marcuse (1964/1967)
indicou que a dessublimação repressiva, ao contrário da sublimação estética
originariamente ligada à produção artística alienada da burguesia liberal, caracteriza
a consolidação de novas estratégias de repressão do conteúdo erótico até então
sublimado na arte clássica ou diretamente reprimido por outras instâncias da vida; a
dessublimação repressiva corresponde à eficiência da sociedade repressiva em
controlar os efeitos inconvenientes da repressão. Dentre os elementos que
constituíam o subproduto da repressão advinda da estrutura daquela sociedade
manifestamente contraditória em relação à arte que produzia, assim como em
relação às motivações que subjazem a ela, a sublimação forçada de conteúdos
eróticos incompatíveis com os interesses sociais predominantes, conservava, sob a
forma de alienação artística, importantes expressões de protesto contra a
organização opressiva da sociedade e contra a interiorização do princípio de
realidade que lhe era correspondente:
Alienação artística é sublimação. Cria as imagens de condições que são irreconciliáveis
com o Princípio de Realidade, mas que, como imagens culturais, tornam-se toleráveis,
até mesmo edificantes e úteis. Agora essas imagens mentais estão invalidadas. Sua
incorporação à cozinha, ao escritório, à loja; sua liberação para os negócios e a distração
é, sob certo aspecto, dessublimação – substituindo satisfação mediada por satisfação
imediata. (Marcuse, 1964/1967, p. 82.)
55
Mediante a constatação do declínio da função crítica exercida pela arte nos
primórdios da cultura burguesa, Marcuse denunciou a regressão dos conteúdos
eróticos outrora sublimados à forma empobrecida que atualmente é estimulada pela
sociedade unidimensional, na qual sobressai a predileção pela expressão imediata do
conteúdo sexual. Segundo ele, a intensificação da energia sexual liberada dispensa a
necessidade de sublimação, pois pode manifestar-se diretamente; todavia, ao
mesmo tempo, promove a integração do conteúdo sexual manifestado a uma série
de utilizações sociais que o submetem a interesses alheios às necessidades originais
dos indivíduos:
(...) é dessublimação praticada de uma “posição de vigor” por parte da sociedade, que
está capacitada a conceder mais do que antes pelo fato de os seus interêsses se terem
tornado os impulsos mais fortes de seus cidadãos e porque os prazeres que ela concede
promovem a coesão e o contentamento sociais. (Marcuse, 1964/1967, p. 82.)
As condições de acesso aos prazeres relacionados à sexualidade e o direito
de dispor do próprio corpo como meio de satisfação integral, instaurados por esse
processo, encerra um estágio diferenciado da liberdade sexual. De modo geral, é
incontestável o aumento dessa liberdade em relação a épocas anteriores; isto
implica no necessário cuidado em não se substituir o potencial interno e o valor
histórico da liberdade do indivíduo pelas condições socialmente determinadas, por
meio das quais, em geral, esse potencial é assimilado à cultura e seu valor
submetido à lógica da troca. Apesar de estabelecer uma dura crítica à harmonia
forjada entre a liberdade sexual e o conformismo lucrativo, já na década de 1950,
Marcuse (1955/1981) argumentou que “comparada com a dos períodos puritano e
vitoriano, a liberdade sexual aumentou indiscutivelmente” (p. 95). Nessa dimensão
moral da sexualidade, de fato, houve mudanças efetivas, sobretudo nas limitações
outrora impostas ao prazer genital, contudo esse tipo de liberalização produz o
risco de suplantar a consciência acerca dos limites impostos a essa forma de
liberdade implicitamente condicionada. A importância de seu avanço em relação à
barbárie explícita de épocas passadas não pode restringir-se ao conformismo ante a
negação da verdadeira liberdade sexual, somente possível em uma sociedade que
56
não esteja contraposta aos indivíduos. Na configuração política atual, a aparente
liberdade individual obtida à custa do prazer alienado é um indicador da
subserviência ao status quo. Em decorrência da assimilação do princípio do prazer
pelas variadas formas de utilidade social do sexo, encampadas pela esfera da
produção e pelo princípio de realidade opressivo que as rege, até mesmo a
dimensão considerada por Marcuse (1955/1981) como a mais importante
potencialidade transformadora da sexualidade, Eros, converte-se em um risco de
destruição e autodestruição. Segundo ele, sua força de desarticulação das instâncias
repressivas dificilmente preservaria intactas as estruturas sociais e a constituição
psíquica derivadas desse princípio de realidade, com isso, conseqüentemente
acarretaria danos funestos também àqueles que assim pretendiam se libertar: “Num
mundo de alienação, a libertação de Eros atuaria, necessariamente, como força
destruidora e fatal” (Marcuse, 1955/1981, p. 95). Mesmo o potencial transformador
de Eros é submetido à lógica da dominação quando liberado em condições
alienadas, em contraposição a esse risco para o indivíduo e para a sociedade, a
sociedade administrada adianta-se em relação aos impulsos e libera-os sob tutela,
relativizando o limiar da transgressão por meio do afrouxamento das regras da
moral sexual: “Em contraste com a destrutividade do Eros libertado, o relaxamento
da moralidade sexual, dentro do sistema firmemente consolidado e controles
monopolísticos, serve ao sistema” (Marcuse, 1955/1981, p. 95).
Se a contradição entre Eros e Logos, atualmente materializada pelo uso da
razão técnica para o controle não-aversivo da sensualidade, tornou-se insuperável,
isso se deve, sobretudo, à cisão historicamente produzida entre o âmbito da
racionalidade e o da dimensão estética. A análise de Horkheimer e Adorno
(1944/1985) a respeito dos percalços decorrentes do movimento dialético do
esclarecimento destacou, dentre inúmeros prejuízos resultantes do distanciamento
excessivo entre o sujeito cognoscente e o objeto empírico, a separação entre a arte
e a razão, que processada no interior da própria linguagem, configura a ruptura
entre o signo e a imagem. Em sua análise, destacaram que: “Enquanto signo, a
57
linguagem deve resignar-se ao cálculo; para conhecer a natureza, deve renunciar à
pretensão de ser semelhante a ela. Enquanto imagem, deve resignar-se à cópia; para
ser totalmente natureza, deve renunciar à pretensão de conhecê-la” (p. 31).
Segundo indicaram, essa cisão se converteu em um abismo, cuja manifestação se
verifica na separação entre a intuição e o conceito. Em seu uso instrumental da
razão, mais francamente subordinado ao método experimental, a ciência positivista
moderna levou essa cisão ao extremo; tratando Eros e Logos como dimensões
incompatíveis. Abominou a arte, expulsando-a do campo do saber legítimo tal
como Platão também a baniu ao expulsar os poetas de sua República ideal,
consumando um processo de regressão presente no esclarecimento, sob a forma de
germe, desde sua origem remota. Intuição e conceito foram dissociados de tal
modo que a superação dessa condição tornou-se um dos mais difíceis desafios
impostos à filosofia, somente enfrentado por alguns poucos pensadores, dentre os
quais Horkheimer e Adorno (1944/1985) destacaram Schelling, aprovando sua
ousadia em afirmar como propriedade da arte a capacidade de “entrar em ação
quando o saber desampara os homens” (p. 32). De modo similar, Marcuse
(1955/1981) também refletiu a respeito da contradição historicamente constituída e
da articulação possível entre essas duas dimensões. Não somente sugeriu que a
dimensão estética pode ser tomada como alternativa à racionalidade técnica, mas
recorreu efetivamente à teoria estética de Schiller, indicando-a como baluarte da
possibilidade de enfrentar o problema político por meio da experiência estética. Sua
análise da educação estética proposta por Schiller caracterizou, não somente o
reconhecimento, mas também a adoção de parte das idéias por ele formuladas,
resultando na indicação de um caminho possível para superação da cisão entre Eros
e Logos. A reconciliação schilleriana entre a sensualidade e a razão pressupõe a
superação da tirania da razão e corresponde à “abolição dos controles repressivos
que a civilização impôs à sensualidade” (p. 169):
A des-sublimação da razão é justamente um processo tão essencial, na emergência de
uma cultura livre, quanto a auto-sublimação da sensualidade. No sistema estabelecido de
58
dominação, a estrutura repressiva da razão e a organização repressiva das faculdades
sensuais suplementam-se e apóiam-se mutuamente. Nos termos de Freud: a moralidade
civilizada é a moralidade dos instintos reprimidos; a libertação destes implica um
“rebaixamento” daquela. Mas esse rebaixamento dos valores superiores poderá devolvê-
los à estrutura orgânica da existência humana, da qual foram separados, e a reunião é
suscetível de transformar seu caráter remoto, seu isolamento e hostilidade às faculdades
inferiores, estas poderão tornar-se livremente acessíveis à cultura. (Marcuse, 1955/1981,
p. 173.)
Como se pode depreender das análises acima indicadas, o diagnóstico da
contradição entre Eros e Logos aponta para fases bastante remotas do processo de
constituição do esclarecimento, revelando um fenômeno fortemente arraigado à
cultura. Este parece ser um dos casos em que melhor se aplica o conceito de
segunda natureza, pois é quase impossível pensar a cultura sem essa mediação. A
subordinação de Eros ao domínio de Logos sugere uma condição quase natural da
existência, de modo que sua ruptura implicaria, tal como os autores fankfurtianos
não se furtaram a indicar, numa ruptura radical com as condições materiais de
existência calcadas na dominação; portanto, seria necessário, não somente a
superação do capitalismo – forma contemporânea da dominação imemorial –, mas
a superação da própria dominação. Nesse sentido, cabe reconhecer o potencial
negativo contido na sugestão de Marcuse de que se deve almejar, concomitante à
revolução material, também a reconciliação entre a sensualidade e a razão,
propiciando a emergência de uma razão sensual contraposta à racionalidade técnica.
Depois dessa breve digressão, realizada para que se pudesse discutir com
mais detalhes as implicações da subordinação da sensualidade à racionalidade do
sistema produtivo, pode-se retomar a análise da mudança na forma de controle da
sexualidade: as novas formas de dominação exercidas sobre a esfera erótica
correspondem às novas formas de regressão do esclarecimento, mas reproduzem
ipisis litteris a sujeição já de longa data infligida à sensualidade pelo esclarecimento.
Frente à deterioração da consciência, produzida pelas novas formas
psicológicas de cativeiro, e à eficiência devastadora das estratégias de cooptação dos
elementos eróticos, que no período da moralidade repressiva ainda eram dotados
59
de peçonha, a intervenção direta exercida pela velha repressão vitoriana, infundida
como um limite imposto externamente aos indivíduos – agora, contudo, já
parcialmente desacreditada – parece mais honesta do que as armadilhas sustentadas
pela sedução do prazer incondicional. O esclarecimento acerca do engodo
representado pela permissividade repressiva possibilita perceber as formas de
repressão puritana e vitoriana como mecanismos menos nocivos à consciência do
que a atual interiorização do falso prazer. Mais do que o desenvolvimento de novas
formas de repressão, a dessublimação repressiva consiste na regressão da
consciência-de-si. O Eu que se autoproclama livre entremeio às grades da prisão já
interiorizou todas as inibições que historicamente foram necessárias para conter os
impulsos ante a proibição, desenvolvendo aquele tipo de renúncia à esperança que
segundo Adorno (1951/1993) caracteriza o desprezível “curvar-se de maneira
humilhante diante da dominação”. Certamente a repressão direta era mais honesta
com suas vítimas tal como elas também eram mais renitentes ante seus algozes.
Contudo, a precisão conceitual com que Marcuse (1964/1967) delimitou a
integração da sexualidade, da qual se pode depreender a regressão das resistências
que outrora já puderam ser apresentadas pelos indivíduos, não corresponde à
exaltação da sublimação, à sua transformação em condição ontológica, nem
tampouco ao aceite da repressão que a impulsionou como uma pré-condição
necessária à crítica da falta de liberdade sexual ou à formação de resistência.
Resguardado o papel da autoridade racional no processo de constituição psíquica
dos indivíduos, a repressão comumente é nociva à formação da autonomia mesmo
quando sua pressão explícita provoca reações de resistência; pois se já à época em
que foi confrontada por espíritos minimamente dotados de liberdade interna, a
negação que era contraposta a ela não foi suficientemente negativa a ponto de
desencadear a transformação das condições objetivas que criavam tal estado de
tensão, com freqüência, principalmente quando a carga repressiva associada à
autoridade paterna não era superada no interior da família (Horkheimer e Adorno,
1956/1978), acabava contribuindo para o desenvolvimento da submissão, de início
60
no interior da família, depois nas relações sociais de produção. A regulação moral
da sexualidade e as restrições do acesso aos prazeres improdutivos estabelecidos
pela burguesia liberal, como expressão da ética analisada por Weber (1905/2001),
corresponderam sobretudo à moralidade do trabalho, e seu principal indicador foi a
obediência voluntária ao sistema político e à organização social essencialmente
injustos:
De fato, o summum bonum desta “ética”, a obtenção de mais e mais dinheiro, combinada
com o restrito afastamento de todo gozo espontâneo da vida é, acima de tudo,
completamente destituída de qualquer caráter eudemonista ou mesmo hedonista, pois é
pensado tão puramente como finalidade em si, que chega a parecer algo de superior à
“felicidade” ou “utilidade” do indivíduo, de qualquer forma algo de totalmente
transcendental e simplesmente irracional. (Weber, 2001, p. 42.)
Na medida em que a racionalidade formal subjacente à dominação política
exercida pela burguesia ascendente se associou à eficácia operativa da moral
puritana, o sistema produtivo capitalista ficou permeado por sua forma já
culturalmente legitimada, com isso, passou ao rechaço das impulsões desmedidas
que estivessem dirigidas para os prazeres mundanos, dentre eles, os prazeres do
sexo. Em prol da execução dos princípios da ascese e, conseqüentemente, da
acumulação financeira, esses prazeres somente deveriam ser consumados no
interior do casamento vitalício, fundamentado na perenidade do amor romântico.
Todavia, depois de completamente instalado o aparato produtivo e de terem sido
deflagradas inúmeras formas de revolta contra os excessos morais presentes no
funcionamento deste sistema, a sustentação moral da família nuclear burguesa,
centrada no autocontrole dos impulsos eróticos como forma de adaptação às
exigências disciplinares das relações de trabalho, se tornou dispensável. A
consolidação do modo de organização capitalista pela burguesia nascente, bem
como seu desenvolvimento ulterior na fase do capitalismo monopolista, atingiu
principalmente o âmbito da superestrutura política e ideológica. A forma capitalista
de dominação, cujo espírito, em parte, se constituiu a partir dos preceitos morais da
ética puritana e atingiu seu auge com a interiorização e reprodução automatizada do
61
princípio de desempenho, objetivou-se gradativamente na política econômica da
burguesia dominante até converter-se no clima cultural que hoje é experimentado
pelos indivíduos como condição natural da existência:
(...) a autoridade social é absorvida na “consciência” e no inconsciente do indivíduo,
operando como seu próprio desejo, sua moralidade e satisfação. No desenvolvimento
“normal”, o indivíduo vive sua repressão “livremente” como sua própria vida: deseja o
que se supõe que ele deve desejar; suas gratificações são lucrativas para ele e para os
outros; é razoavelmente e, muitas vezes, exuberantemente feliz. (Marcuse, 1955/1981, p.
59.)
Com a interiorização da autoridade social e a subseqüente acomodação das
pulsões a um modo de expressão externamente produzido pela racionalidade que
serve à dominação política e favorece a exploração econômica das classes
subalternas, a repressão se oculta por entre as disposições psíquicas aparentemente
espontâneas do próprio indivíduo, como se fossem expressão de seu próprio desejo
e, por vezes, de fato uma síntese de tudo o que medianamente se deseja. A mera
sobrevivência dos indivíduos submersos na dinâmica cotidiana, na medida em que
exclui a possibilidade de auto-reflexão, reproduz os princípios da organização social
na dimensão subjetiva, permeando a formação do desejo e dos limites morais que a
ele internamente se opõem, assim como também interfere na própria satisfação
obtida a despeito do condicionamento. A felicidade assim produzida revela-se
alienada desde sua concepção, pois está implicada na adaptação às condições sociais
que não somente determinam os critérios da felicidade permitida, mas impedem a
formulação de um outro conceito de felicidade mais condizente com as reais
possibilidades históricas. Sentir-se feliz nesta sociedade totalmente administrada
tornou-se sinônimo do bom ajustamento. Uma condição que corrompe a idéia da
verdadeira felicidade e prepara o espírito paro o que Adorno (193) denominou a
saúde para a morte:
Os atos libidinosos que se exigem do indivíduo que tem um comportamento físico e
psíquico sadio são tais que somente podem ser efetuados ao preço da mais profunda
mutilação, de uma interiorização da castração nos extroverts, em face da qual a velha
tarefa da identificação com o pai é a brincadeira infantil na qual aquela era ensaiada. O
regular guy, a popular girl têm que reprimir não só desejos e conhecimentos, mas também
62
todos os sintomas que na época burguesa decorrem da repressão. (Adorno, 1951/1993,
p. 50.)
Se, de fato, como Adorno vaticinou é a morte que está na base da saúde
reinante, a agregação de conteúdos libidinais na formação da sociabilidade exigida
não se diferencia da manipulação da energia erótica pelo sistema produtivo. O
controle exercido sobre as pulsões por meio da imposição da forma do prazer
corresponde à continuidade da repressão direta, fundamentada na negação do
mesmo prazer. Nesse sentido, o prazer é reduzido à função ignóbil de detalhe da
dominação, mediante o qual se torna mais fácil conformar-se a ela. Apesar de
atualmente causar desconforto imediato e, com isso, atiçar a crítica à inócua
intenção de superar a nova repressão por meio de velhas estratégias, a moral sexual
repressiva, produzida pelo capitalismo concorrencial na fase em que precisava da
mão-de-obra de homens mais motivados pela possibilidade de acumulação
financeira apesar da contenção dos prazeres, preparou as condições para sua
própria inexistência: o trabalho da interiorização da vida administrada já ficou
pronto há muito tempo, o que agora se apresenta como tarefa da nova repressão,
da permissividade repressiva, é o controle dos efeitos aversivos da repressão, do
substrato negativo que se tivesse consciência-de-si ainda representaria ameaça à
harmonização.
De acordo com Freud (1908/1976), a moral sexual civilizada típica de sua
época, no início do século XX, caracterizava a obrigação de que os indivíduos se
submetessem às exigências da cultura, renunciando aos apelos pulsionais que, do
interior da dimensão psíquica, reproduziam, sob a forma de conflitos mentais, a
contradição com as exigências da civilização. Sobretudo quando submetidos às
regras da família monogâmica, os indivíduos ficavam obrigados a renúncias
pulsionais. Durante muito tempo, a instituição social da família encarregou-se de
circunscrever o alvo da pulsão sexual, além de também conter a agressividade
pulsional dentro de um nível adequado à continuidade do grupo familiar e à
adaptação à comunidade. Segundo Freud, mais importante do que as condições
63
desordenadas do mundo moderno, a repressão da sexualidade se apresenta como
elemento desencadeador de quadros psicopatológicos: “todos os fatores que
prejudicam a vida sexual, suprimem sua atividade ou distorcem seus fins devem
também ser vistos como fatores patogênicos das psiconeuroses” (Freud,
1908/1976, p. 192). Como o modelo de vinculação afetiva necessário à manutenção
da família é essencialmente rígido quanto às variações polimorfas da sexualidade, a
moral que lhe serve de sustentação não permite a expressão dos impulsos
considerados imorais; com isso, eles são banidos para o inconsciente, constituindo
os conflitos psíquicos geradores de intenso mal-estar. A proposição formulada por
Freud (1905/1989) nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de que a neurose seria
o negativo da perversão – sobretudo por representar a inevitável condição do
neurótico de somente conseguir realizar no sintoma o que os perversos realizam na
prática –, demarca uma importante dimensão do entrelaçamento entre os modos de
configuração psíquica e a determinação política do comportamento sexual. Apesar
de não ser esta a sua preocupação em 1905, quando elaborou a referida obra, pode-
se reconhecer esta tensão no conjunto de sua obra posterior. Segundo a
compreensão exposta em 1905, a formação de sintomas neuróticos estaria
inversamente associada aos conteúdos livremente expressos nas perversões: “no
inconsciente dos psiconeuróticos é possível demonstrar, como formadoras do
sintoma, todas as tendências à transgressão anatômica” (Freud, 1905/1989, p. 156).
Em sua análise posterior a respeito da moral sexual civilizada (1908/1976), o papel
da repressão da sexualidade considerada normal foi discutido em relação às
exigências morais da civilização. Freud sugeriu que elas recaiam, sobretudo sobre as
mulheres, que devido ao tabu da virgindade, eram mais coagidas do que os homens,
frequentemente assegurados pela dupla moral sexual. Em conseqüência, elas
acabavam por deparem-se com a frustrante experiência do casamento, que não
consistia numa condição suficiente à expressão de sua sexualidade, principalmente
após a continuada renúncia ao sexo que lhes foi exigida durante suas vidas de
solteiras em cumprimento às normas morais. A gratificação propiciada à mulher
64
pela experiência do casamento não correspondia, suficientemente, às expectativas
formadas durante o período de abstinência, gerando muita frustração.
Considerando a argumentação acima, pode-se supor que a análise elaborada
por Freud (1908/1976) estabelece um importante questionamento a respeito das
possibilidades de superação da sobrecarga repressiva reservada aos indivíduos em
suas relações afetivas mais estáveis. Frente a esse contexto, uma das alternativas que
primeiramente se apresenta e que atualmente tem feito parte do repertório das
relações amorosas é a supressão do casamento monogâmico. Os indivíduos
voltados para formas de vinculação afetiva transitórias supostamente obtêm um
grau maior de satisfação sexual. Experimentam as emoções tônicas da paixão,
típicas da fase mais intensa da relação e, depois, frente ao desgaste cotidiano e ao
enfraquecimento do encanto, desvinculam-se, criando, com isso, outras
possibilidades afetivas. Apesar da crítica de Freud à moral sexual repressiva
fundamentar importantes questionamentos ao modo de organização da família
tradicional e apontar os limites impostos à gratificação dos prazeres sexuais em seu
âmbito, não seria correto afirmar que ele tenha indicado essa alternativa, tão em
voga atualmente, como sendo a mais apropriada. Todavia, a despeito de sua
oscilação entre a crítica e o ajustamento, pode-se dizer que, certamente, não
apresentou muitas saídas para esse impasse, exceto a possibilidade de uma reforma
sexual; que posteriormente foi radicalizada por Reich, possivelmente o autor que
mais se aproximou dessa possibilidade:
A moral do casamento é o expoente ideológico mais extremo desses interesses
econômicos na superestrutura ideológica da sociedade e como tal permeia o
pensamento e a ação de todo pesquisador e reformador sexual na medida em que torna
a reforma sexual impossível. (Reich, 1936/1979, p. 66.)
Contudo, a liberalidade pressuposta por Reich como condição necessária
para a reforma sexual, segundo ele, obstada pela moral repressiva do casamento,
deve ser cotejada com sua avaliação moralista a respeito das perversões sexuais,
comum a muitos teóricos ligados à psicanálise e à psicologia. Mesmo Freud
65
(1908/1976), que apesar de haver, em 1905, reconhecido a relação de continuidade
entre a “normalidade” genital e a perversão sexual – de modo que a sexualidade
adulta genital guardaria em sua gênese a passagem pela perversão polimorfa infantil
–, posicionou-se de modo veementemente moralista quanto à avaliação dos
perversos como portadores de um modo de obtenção de prazer infantilizado. A
respeito deste aspecto, Lanteri-Laura (1979/1994) argumentou que a teoria
freudiana das perversões teria cumprido a função ideológica de ajustar a
conceituação da sexualidade a uma norma sexual tida como natural; inicialmente
solicitada pela sociedade repressiva ao discurso positivista da sexologia psiquiátrica
do século XIX, que, segundo ele, paradoxalmente, não a cumpriu adequadamente
naquele momento histórico. Em sua crítica da moral sexual repressiva constituída a
partir das condições materiais do capitalismo, Reich (1936/1979) considerou que a
perversão sexual não deveria ser julgada com medo ou desprezo, pois a exemplo da
homossexualidade, que além de ser inofensiva também poderia ser numericamente
reduzida se fossem realizadas “todas as condições necessárias para uma vida
amorosa natural das massas”, a revolução deveria estabelecer a livre expressão da
sexualidade genital desenvolvida “naturalmente”. Ao considerar a genitalidade
como forma natural da sexualidade humana, Reich acabou por contribuir para a
elaboração de uma ideologia do sexo normal, o qual, segundo sua análise das
relações entre o sexo e a política, dependeria de importantes transformações na
estrutura da sociedade, de modo que, efetivamente, se tornasse possível a livre
expressão do amor natural. Apesar das considerações de Reich atingirem com
coragem e inovação teórica o núcleo do processo de constituição dos indivíduos,
desvelando o papel da determinação social na formação da sexualidade e do caráter,
ainda assim, Lanteri-Laura criticou sua teoria do amor natural. Segundo ele, Reich
teria condenado as perversões sexuais à deplorável condição de distorções do
desenvolvimento natural da genitalidade. Segundo a proposta reichiana, a perversão
sexual resultaria das inibições provocadas pela repressão, objetivamente fundada na
experiência social. Para Reich não haveria mais perversos após a revolução, sua
66
existência estaria reativamente atrelada à repressão. A respeito da etiologia das
perversões desenvolvida por Reich, Lanteri-Laura argumentou que ela própria
revela esta limitação de seu pensamento; ao sugerir que as perversões sejam
contrárias à natureza, a crítica permanece subordinada à regulação moral do
comportamento:
(...) existem perversos porque as massas ainda não têm, em decorrência da opressão,
condições naturais de vida amorosa; por conseguinte, as perversões são contrárias à
natureza, mesmo que os perversos sejam vítimas de condições sociais que lhes proíbem
essa vida amorosa natural. (Lanteri-Laura, 1979/1994, p. 135.)
Por razões obviamente diferentes, mas igualmente comprometidas com a
naturalização do sexo genital, em ambas as teorias, de Freud e de Reich, as
perversões sexuais correspondiam a algum tipo de fixação da libido em fases pré-
genitais, portanto, em fases infantis da sexualidade. Nesse caso, a crítica que
realizaram da repressão presente no casamento monogâmico não ultrapassou os
limites da genitalidade como modelo apropriado de constituição sexual. A despeito
de suas contribuições para a crítica dos processos repressivos e de sua implacável
denúncia das contradições que permeiam a relação entre os indivíduos e a
sociedade, com relação às práticas sexuais consideradas pervertidas, Freud manteve
um posicionamento moral condizente com o desprezo burguês pelas pulsões.
Argumentou que as perversões “são condenáveis do ponto de vista ético, pois
degradam as relações amorosas de dois seres humanos, rebaixando-as de uma
questão fundamental a um jogo cômodo, livre de riscos e sem participação
espiritual” (Freud, 1908/1976, p. 205).
Independente das contradições presentes na critica psicanalítica à repressão,
pode-se verificar sem muitos esforços que a irracionalidade inerente à repressão
dos desejos, que por ela foi denunciada com precisão, tornou-se notória e
indefensável. Depois de estabelecidos os novos parâmetros de funcionamento da
sociedade capitalista moderna, já em meados do século XX, fundamentados na
liberdade de consumo, não mais foi possível a obtenção de resultados satisfatórios
67
– em termos de controle pulsional – por meio da moral explicitamente repressiva.
De modo muito mais sofisticado e menos abrupto, adotou-se a pseudoliberação da
pulsão sexual; com isso, passou a haver a circulação parcial de impulsos até então
inteiramente reprimidos e a garantia do ajustamento da sexualidade aos padrões de
conduta convenientes à sustentação da ordem estabelecida. Com o aprimoramento
das técnicas de mobilização psíquica, desenvolvidas pelos mecanismos da indústria
cultural – a intelligentsia técnica instalada nos bastidores da produção garante o
espetáculo –, as inúmeras formas de associação de conteúdos psíquicos
originariamente relacionados com as pulsões sexuais menos adaptadas aos padrões
da civilização e aos variados mecanismos de sustentação das relações sociais de
produção tornaram-se bastante comuns. Além da sexualidade genital, algumas
outras formas mais exóticas de expressão do erotismo passaram a ser manipuladas
por esses mecanismos que promovem a excitação generalizada da energia libidinal
para, com isso, integrá-la aos padrões do comportamento sexual que melhor
convirem aos fins mercadológicos e a um maior acúmulo de capital. Mediante a
opressão por meio da qual a autoconservação é exaltada como aquilo a que se deve
dedicar integralmente, contrariando a emancipação da esfera dessas necessidades
como já, de longa data, seria possível, o ajustamento continua a ser exigido. Não
obstante, as renúncias ao prazer negado passam a ser de responsabilidade exclusiva
dos indivíduos que, quando insatisfeitos, devem arcar com o ônus por terem
falhado na aquisição dos meios disponibilizados pela sociedade. O resultado
absurdo desse processo é que a exaltação das possibilidades oferecidas suplanta a
consciência de que não mais seriam necessários sacrifícios para a realização desse
objetivo; o prazer concedido contribui para a obliteração da consciência do
desprazer generalizado. O astucioso planejamento empreendido pelos
administradores da indústria cultural quanto à produção e venda de mercadorias
culturais também compreende a apropriação da sensualidade e a produção de
formas de satisfação substitutivas dos prazeres estimulados pela própria forma
mercadoria, que, nesse processo, são concedidos como ornamentos de outros
68
produtos, tornando-se também, eles mesmos, mercadorias carregadas de ilusão e
fascínio. As avançadas técnicas de marketing, as pesquisas de opinião
metodologicamente impecáveis e a preponderância da lógica capitalista que
arregimenta tudo isso em prol do lucro, constantemente, se valem da alusão a
necessidades sexuais prementes. Tornados inócuos, os conteúdos eróticos
contribuem para a manipulação, pois são utilizados como matéria-prima da
propaganda destinada à circulação do lixo cultural; convertem-se também em parte
do amálgama que molda o espírito, operacionaliza o pensamento e dirige a vontade.
Ao se apropriar das satisfações assim consentidas, a forma cunhada por essa
indústria amolda os estímulos excitados; mesmo sem que haja uma intencionalidade
maquiavélica que delineie a regressão sexual, o próprio fetiche inerente à forma
mercadoria contribui para uma modelagem behaviorista do comportamento. O agir
reflexo e mecanizado dos sujeitos sem subjetividade (Adorno, 1955/1986) condiz
com o estágio das forças materiais de produção no capitalismo industrial avançado.
Por meio da exploração produtiva da sexualidade e seu nivelamento à média das
demandas advindas das massas, a indústria cultural contribuiu decisivamente para a
instituição de formas substitutivas de gratificação das necessidades geradas pelas
condições objetivas da existência social. Com isso, também contribui para que se
mantenha uma esfera de gratificação planejada minuciosamente, criando formas
mais eficazes de integração dos conteúdos originariamente contrários à manutenção
da ordem social opressiva. Quando integradas por esses mecanismos culturais
coercitivos, essas formas de gratificação subsidiam a administração das pulsões e o
controle moral dos indivíduos. Como a administração de conteúdos psíquicos se
ajusta ao padrão da administração das relações produtivas, a dominação exercida
sobre os indivíduos implicados nesse processo reproduz a mesma racionalidade que
foi desenvolvida para o aumento da capacidade de produção e maior acúmulo de
capital. A crítica de Marx (1844/2004) de que “o trabalho não produz somente
mercadorias; [mas] ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e
isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral” (p.80) denuncia o
69
estreitamento da identidade entre as pessoas e as coisas que elas produzem, além do
que também revela que o processo por meio do qual os homens tornam-se
mercadorias, o processo de reificação, promove a regressão da condição humana:
A produção produz o homem não somente como uma mercadoria, a mercadoria humana, o
homem na determinação da mercadoria; ela o produz, nesta determinação respectiva
precisamente como um ser desumanizado (entmenschtes Wesen) tanto espiritual quanto
corporalmente – imoralidade, deformação, embrutecimento de trabalhadores e
capitalistas. (Marx, 1844/2004, p. 92-3.)
Não apenas os aspectos cognitivos e as renúncias racionais implícitas na
adaptação ao aparato produtivo, mas também a dimensão afetiva, exterior ao
campo da produção, encontra-se mediada pela racionalidade alienada que converte
finalidades humanas em meios de manutenção de interesses repressivos. A mesma
tecnologia que insinua a extensão do poder humano às sofisticadas aparelhagens
que gerenciam a produção admite que haja dominação sobre os resquícios da
natureza originária que ainda há nos homens. Apesar de ser um produto do
intelecto, a racionalidade tecnológica é re-incorporada pelos indivíduos como
modelo geral de entendimento da realidade. Introjetada como um mediador interno
de suas relações, interfere decisivamente nas formas de contenção e de satisfação
pulsionais, configurando um meio formal de administração dos impulsos sexuais
mais peculiares. Como esteio ideológico da ordenação social repressiva, essa
racionalidade integra os modos existentes de vinculação afetiva aos mecanismos de
controle social e monitoramento dos espaços de circulação da sexualidade que
representem respostas a necessidades individuais sem, contudo, interromper a
lógica de funcionamento do todo. Cerceada por esse processo, a satisfação
permitida no campo específico das relações afetivas traz em seu âmago a
transformação dos indivíduos em coisas regidas pela mesma lógica que determina
as condições do mercado que, desse modo, absorve, além da energia física e
psíquica empregada nas relações de produção, também a energia sexual gerada em
abundância devido à alta estimulação promovida pelos aparelhos da indústria
cultural. A sociedade industrial cria e destrói instituições de acordo com os
70
interesses que movem sua economia. Ela sabe muito bem como administrar os
efeitos dessa devastação por meio de seus mecanismos ideológicos; inclusive por
meio da manipulação do psiquismo massificado dos indivíduos aos quais dirige
seus apelos. Com isso, gera uma espécie de relativismo cultural monitorado, um
operador técnico que regula o comportamento a partir de modelos abstratos.
Se como Engels (1884/1984) apontou em seu estudo sobre a origem da
família, da propriedade privada e do Estado, a família monogâmica, a despeito de
ter favorecido o desenvolvimento do amor sexual, representou a instituição do
contrato matrimonial de propriedade; seu declínio, agora professado pela mesma
burguesia, corresponde à legitimação daquela moção erótica anteriormente
relacionada com o adultério e que, mediante a eficiência dos métodos
anticoncepcionais e do afrouxamento moral, permitem a circulação de parceiros
sexuais sem a inconveniente ameaça ao direito de herança decorrente de uma
gravidez indesejada, ou a ameaça de ter a estabilidade dos bens da família divididos
com algum parceiro eventual. Apesar de, por meio de sua crítica ao papel da família
burguesa, desvelar os interesses do Capital por detrás da moralidade reguladora da
condição da mulher, Engels ainda defendeu o entendimento de que essa
configuração da família, sobretudo em sua vertente proletária, resguardava a
possibilidade de impulsionar o florescimento do amor sexual e da igualdade entre
os sexos. Todavia, a constatação de que depois de mais de um século de suposta
emancipação feminina, a condição da mulher apenas se restringiu à sua equiparação
nas relações sociais de trabalho injustas, até então exclusivas dos homens, revela
que ainda é o contrato de propriedade que medeia o ajustamento social da família
às novas formas de repressão. Com a deterioração dos preceitos que legitimavam a
indissolubilidade do casamento e a restrição do prazer a formas aceitas
culturalmente, bem como, com a naturalidade com que as pessoas submetem-se à
exploração sistemática do sexo – mercadoria acessível a todos os extratos da
população – a variação nos limites estabelecidos e a flexibilização das regras que
regem a vida privada assinalam a transformação das formas de controle dos efeitos
71
aversivos da repressão. Hoje, mesmo as antigas instituições do controle moral
podem ser mais flexíveis, pois foram criadas outras formas de produção, circulação
e preservação do capital que dispensam justificações morais. Ao mesmo tempo em
que foram superadas condições retrógradas como a submissão da mulher a
experiências caracterizadas por renúncias, vividas de forma desprazerosa ao lado do
marido déspota, pode-se também observar a superficialização das experiências de
vinculação afetiva; o divórcio não somente possibilitou a ruptura com os padrões
irracionais do matrimônio burguês, como também contribuiu para a adaptação das
relações afetivas à lógica do consumo. Atualmente, os parceiros sexuais tornaram-
se tão facilmente substituíveis quanto qualquer outro artefato destinado à
promoção ou aumento do prazer sensual. Um dos elementos que mais foi
prejudicado com essa nova forma de administração dos desejos é a possibilidade de
diferenciação do objeto de desejo nas investidas eróticas. O empobrecimento da
capacidade de amar foi analisado por Crochík (1997) como um dos aspectos
subjacentes ao fato de que a liberdade sexual proposta sob as condições de
fragmentação da individualidade re-afirma a ilusão de que há liberdade e felicidade
efetivas enquanto o que se reproduz, na verdade, é o enrijecimento e o controle do
objeto, impedindo a experiência real necessária à relação com o outro:
No amor, a identidade se perde momentaneamente no parceiro, mas só pode se
submeter a esta perda quem a tem desenvolvida; quando ela é frágil, o seu enrijecimento
é uma defesa que impede a relação, defesa que se alia ao controle do objeto, tentando
assim evitar o diferente. Se a existência de indivíduos, de sua liberdade (sexual) e
felicidade são tão enfatizadas atualmente, é porque elas são quase inexistentes em nosso
tempo. (Crochík, 1997, p. 22.)
A alta freqüência da troca de parceiros, mais do que destacar a acentuação
da promiscuidade, o que remeteria a uma restrição moral, sublinha o avanço
descomunal da indiferenciação dos objetos com os quais se trava relação. Por si só,
essa contabilidade não representa nenhuma regressão do estatuto das relações
humanas, mesmo porque a possessão comumente revestida de amor, que por vezes
sustentava a continuidade de relações estéreis e pesarosas, tornou-se mais
72
vulnerável à crítica, e as normas culturais que a asseguravam tornaram-se mais
flexíveis. A falta de particularização dos objetos de amor talvez se torne mais
significativa quando confrontada com a noção de experiência. No sentido definido
por Benjamin (1933/1994), pode-se questionar se essas experiências sexuais, que
aparentam demasiada semelhança entre si, tornaram-se indignas de serem
comunicadas ou meramente expressão do cansaço rotineiro que se esgota em si
mesmo como pobreza. Benjamin reconheceu na atitude desencantada das pessoas
em relação às situações novas que aspiram para si, no predomínio do
empobrecimento da experiência que caracteriza o enfraquecimento dessa
potencialidade, uma forte resignação frente à condição que lhes é oferecida como
possibilidade única. Conforme protestou ante essa tendência, nesses casos não há
real aspiração por novas experiências, mas sim a entrega resignada à própria
pobreza:
(...) não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências. Não, eles
aspiram libertar-se de toda experiência, aspiram a um mundo em que possam ostentar
tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa
resultar disso. (Benjamin, 1933/1994, p. 118.)
Na medida em que as formas de contato sexual, hoje incentivadas como
expressão de liberdade, dispensam a vinculação afetiva, não apenas a possibilidade
da experiência, mas o próprio sentido da palavra relação se tornou obsoleto. Não
mais se obtém experiências porque comumente não se busca estabelecer relações
com um outro, de fato, diferenciado. Tratados como coisas, os objetos do
investimento libidinal adquirem a mesma autonomia de que gozam as demais
mercadorias no modo de produção capitalista: desvinculam-se do que é
especificamente humano, sobrepondo-se acima dele como fetiches. Com isso, a
reificação é introjetada e reproduzida no âmago da dimensão que deveria ser
especificamente humana: a experiência; o campo da experiência é inundado por
versões estereotipadas das pessoas. Ao invés da experiência entre indivíduos, o que
prospera é a troca operacional de informações, serviços e ações reduzidas ao valor
mercantil.
73
Uma máxima destacada por Ottilie, personagem de Goethe (1810/1992),
que na trágica obra sobre o desgoverno do amor – Afinidades eletivas –, redigiu-a em
seu diário devido à sua peculiaridade e significação, descreve um tipo de
formalização das relações entre as pessoas em que predomina a frieza burguesa,
talvez a mesma frieza que leva muitos homens a aspirarem apenas pelo
empobrecimento da experiência. Como um lamento pelo que seria possível, mas
permanece negado devido à formalização ou à frieza que medeia as relações
burguesas, Ottilie escreve em seu diário o que não poderia comunicar de outra
forma:
Por vezes conversamos com uma pessoa presente como se ela fosse um retrato. Ela não
precisa falar, olhar-nos, nem ocupar-se conosco; nós a vemos, relacionamo-nos com ela,
e esse relacionamento pode até aumentar, sem que ela nada faça para isso, sem que
perceba que não passa de um retrato para nós. (Goethe, 1810/1992, p. 147.)
Ao evitar as experiências que poderiam desencadear processos de mudança
e, consequentemente, resultados impactantes que não se pretende admitir, como o
encantamento ou a desilusão profundos, muitas pessoas evitam a experiência,
lançando-se, ao contrário, na pobreza denunciada por Benjamin. A redução do
contato com um outro, com o qual se trava relação casual ou atividade cotidiana, à
mera formalidade, parece guardar, em gênese, as motivações que hoje, com
freqüência, levam um grande número de pessoas à opção pelo contato físico
desprovido de alma. Não se trata apenas da eventualidade, do sexo ocasional ou das
relações fungíveis, mas principalmente do fato de, nesses casos, imperar o temor
pela profundeza humana; o medo ante os mistérios do encontro com um outro
diferente, com o qual se pode compartilhar ou simplesmente desencadear um
processo de transformação, em geral, provocado apenas pela verdadeira
experiência. A frieza e o temor ante a experiência parecem ser fortes motivos para a
busca de relações completamente superficiais; com as quais nada se apreende e das
quais nada se pode perder. É a substância regressiva da relação sexual que se dá
como mero desafogo fisiológico, na qual o outro é sempre objeto de troca, pouco
significando em termos da possibilidade de agregar conteúdos que efetivamente
74
modifiquem convicções ou provoquem experiências significativas. A referida obra
de Goethe, parece investida do espírito negativo presente na sublimação artística
analisada por Marcuse (1964/1967), pois desvela o poder desarticulador da
experiência pela qual não se pode passar imune e não se pode sair do mesmo
modo como se entrou. A trágica conclusão de que não é possível resistir à
influência singular despertada pelo encontro profundo estimula a indagação sobre o
empobrecimento do contato sexual em voga.
Parte das condições objetivas subjacentes a esse processo foram analisadas
por Adorno (1963/1969) em sua crítica da liberdade sexual aparente, produzida em
massa e para as massas pela cultura moderna; ele desvelou a neutralização do
potencial de crítica à estrutura social até então presente nas manifestações eróticas
que agora estão integradas, mas que já foram potencialmente subversivas:
El sexo, deformado y modificado, gravado con impuestos y explotado de mil maneras
por la industria material y cultural, es digerido, institucionalizado, administrado por la
sociedad, de conformidad con su manipulación. Sólo en cuanto está sometido es
permitido. (Adorno, 1963/1969, p. 93.)
Os indícios da reificação do sexo podem ser visivelmente encontrados nas
mercadorias culturais investidas de energia erótica. Com a circulação aparentemente
liberada do sexo, a censura passa a ser imposta, de forma mais estratégica,
diretamente ao núcleo do potencial emancipatório, ou seja, passa a ser dirigida à
possibilidade de expressão dos afetos destinados à realização de prazeres alheios
aos interesses do capital. Enquanto o sexo, mesmo em suas variações obscenas,
tem sido integrado aos mecanismos culturais, o amor, que diferencia o objeto e
nega a coisificação, tem sido alvo da repressão presente em tabus ainda
determinantes dos padrões morais de nossa cultura. A administração técnica do
prazer não permite que a felicidade humana se associe ao amor do mesmo modo
como está associada à autonomia sobre o corpo, pois dessa forma a técnica deveria
se resignar à condição de meio, o que contrariaria o papel a que as necessidades
psíquicas estão relegadas: como sustentáculo da irracionalidade do sistema social
75
objetivo. Marcuse (1955/1981) argumentou que dentre as conseqüências da
determinação material das condições de fruição da sexualidade, a liberação da esfera
erótica não redutível à fisiologia sexual está em contradição com as condições de
existência geridas pelo princípio de realidade opressivo; sua liberação acarretaria um
confronto destruidor com a ordem estabelecida. Nesse sentido, é interessante frisar
que, já há muito tempo, Sade (1795/2000) paradoxalmente revelou que a destruição
da estrutura social repressiva, muitas vezes pretendida pela sexualidade
transgressora, não resiste ao governo exercido pela razão formal, que propicia e
regula suas estratégias. A racionalidade que permeia as estratégias da transgressão,
por vezes, também coopta o próprio conteúdo expresso por este meio. As
transgressões sexuais que imortalizou em sua obra profana, inclusive as atrocidades
cruéis, que passaram a ser designadas por meio da referência a ele, sucumbiram à
ordenação racional. A verossimilhança que assim se estabelece, entre a sexualidade
atualmente liberada e as transgressões libertinas, deve-se menos ao papel do gozo
sexual nessas variações do que à função em ambas exercida pela administração
técnica do prazer por meio de uma racionalidade que libera para melhor controlar.
As contradições da liberdade sexual no mundo administrado, bem como o
conjunto das disposições culturais que caracterizam a pseudocultura, guardam
importantes relações de continuidade com a racionalidade subjacente aos excessos
libertinos. O controle das possibilidades de prazer por meio de uma racionalidade
técnica excessivamente fria e calculadora demarca os limites do prazer libertino. A
regra máxima da conduta libertina, a apatia, tende a se sobrepor a qualquer
possibilidade de prazer, até mesmo àquelas que se dão em nome da crueldade,
tornando evidente que a filosofia na alcova, hipostasiada por Sade (1975/2000),
converte-se em uma restrição internamente imposta à própria alcova e ao prazer a
ela atrelado, uma alegoria do sexo reduzido aos modos e espaços nos quais sua
expressão é previamente autorizada. Sua finalidade é a dominação técnica; nela, o
esquematismo da razão se converte em fetiche e é alçado à condição de fim último.
A dissociação entre a entrega espontânea à paixão e o refinamento derivado da
76
acumulação racional dos bens da cultura é reproduzida e redefinida por Sade como
distinção entre estupidez e refinamento. Mesmo desconsiderando o processo de
naturalização da cultura que ele acaba por revelar, a natureza por ele aludida ainda é
mediada pela delicadeza, expressão do refinamento cultural e do trabalho da razão
formal. O modo como Sade define os prazeres da crueldade por meio da
argumentação exposta por Dolmancé, seu personagem libertino, sublinha esta
distinção fundamental:
Distinguimos em geral duas espécies de crueldade: uma que nasce da estupidez, que
jamais pensada ou analisada, assimila o indivíduo assim nascido ao animal feroz; essa
não proporciona nenhum prazer porque quem se predispõe a ela não é suscetível de
nenhuma busca; as brutalidades de tal ser raramente são perigosas e é sempre fácil
preveni-las. A outra espécie de crueldade, fruto da extrema sensibilidade dos órgãos, só
é conhecida em seres muitíssimo delicados, e os excessos a que chegam são apenas
refinamentos de sua delicadeza; é essa delicadeza, mui prontamente embotada graças à
sua excessiva finura, que, para ser desperta, põe em uso todos os recursos da crueldade.
(Sade, 1795/2000, p. 82.)
A natureza social e, particularmente, tardia do prazer pode ser esclarecida
pela paradoxal constatação de Sade de que os prazeres concernentes a mais extrema
barbárie são derivações do refinamento espiritual e da delicadeza culturalmente
constituídas. Da formalidade pura de sua derivação pode-se depreender que, tal
como foi analisado por Adorno, “o prazer é uma aquisição tardia, apenas um
pouco mais antiga que a consciência” (1951/1993, p. 78). Sendo o prazer um
resultado da cultura acumulada e, por essa razão, uma transformação das
necessidades instintivas primitivas, compreende-se que também suas formas
dependem dessas pré-condições; quer a normalidade convencionalmente aceita,
quer as transgressões por diferentes motivos constantemente rechaçadas, ambas
são susceptíveis da variação histórica e da determinação definitiva do modo de
organização material da sociedade. A relação que sustentam com conteúdos de
cunho político e significação ideológica, a delimitação de elementos característicos
77
da base de ideologias
1
como a ideologia liberal e a ideologia da racionalidade
tecnológica, presentes na formação ou na expressão de cada um desses modos da
sexualidade, constitui um dos mais importantes elementos na constelação que
compreende a liberdade sexual. É nesses termos que se pode dizer que o
desenvolvimento de formas estandardizadas de pseudoprazer favorece a
manipulação dos aspectos contraditórios da sexualidade. A estimulação intensiva de
fantasias eróticas correspondentes a conteúdos reprimidos ou meramente
negligenciados ativa um campo de excitação poderoso. Quando continuamente
tencionado devido ao montante de estímulos que o instiga, esse campo cede ao
controle da excitação, mantendo os desejos especialmente excitados sempre
insatisfeitos e, por isso mesmo, bastante vulneráveis ao governo externo; com isso,
é garantido o sucesso implacável da indústria cultural na moldagem de padrões de
conduta convenientes à manutenção do status quo e à acomodação das pessoas
ultra-excitadas ao empobrecido limiar do pseudoprazer. Dentre as formas de falso
prazer exacerbadas, a satisfação que se dá por meio do pré-prazer, tecnicamente
manipulado como parte da engrenagem oficial da repressão, provoca a redução do
gozo sexual às preliminares incitadas, previamente planejadas para mantê-lo sempre
excitado, porém nunca satisfeito. Como Adorno (1963/1969) sugeriu, o pré-prazer
tem sido conveniente à substituição do prazer verdadeiro, convertendo-se em um
suporte para a carga libidinal estimulada artificialmente pelos recursos técnicos
dessa indústria. A ênfase dedicada a elementos sexuais anteriormente considerados
imorais traz consigo os moldes de uma nova moralidade, menos comprometida
com a consciência e mais com o poder de controle que sempre coube a essa esfera
da vida social, que forja os padrões do que é permitido ou permanece rechaçado.
1
A referência ao termo ideologia no plural designa o entendimento de que mesmo sendo a ideologia um
modo específico de sustentação da dominação social, sua forma está sujeita a oscilações quanto a aspectos
relativos às estratégias e conteúdos priorizados no processo de justificação das condições sociais
estabelecidas, sobretudo no que se refere às relações sociais de dominação. Nesse sentido, é coerente que
distintas configurações ideológicas sejam denominadas pelas respectivas peculiaridades que possuem em
relação às demais, a outros contextos socioculturais e a outros períodos históricos.
78
Ao analisarem o poder da indústria cultural em ludibriar as massas, Horkheimer e
Adorno (1944/1985) indicaram que a “reprodução em série do objeto sexual
produz automaticamente o seu recalcamento”. A repressão é consentida sem que
nem mesmo seja percebida a sua força. Ao revestir com ornamentos glamourosos os
aspectos monótonos da vida cotidiana e reproduzi-la repetidamente como
novidade atraente, essa indústria domestica os gostos e manipula o desejo. A falsa
realização suplanta ao mesmo tempo o potencial mobilizador para a busca do
prazer verdadeiro:
Ao desejo, excitado por nomes e imagens cheias de brilho, o que enfim se serve é o
simples encômio do quotidiano cinzento ao qual ele queria escapar. (...) A indústria
cultural não sublima, mas reprime. Expondo repetidamente o objeto do desejo, o busto
no suéter e o torso nu do herói esportivo, ela apenas excita o prazer preliminar não
sublimado que o hábito da renúncia há muito mutilou e reduziu ao masoquismo.
(Horkheimer e Adorno, 1944/1985, p.131.)
O prazer preliminar, nunca efetivamente satisfeito, assim como o prazer
reduzido ao masoquismo, obtido por meio do sofrimento, caracteriza a decadência
do próprio prazer: um falso prazer que, apesar de absurdo, satisfaz uma série de
necessidades produzidas especialmente para esse fim. Como Marcuse (1938/1997)
pôde derivar de sua crítica do hedonismo, a felicidade concedida aos indivíduos em
determinadas condições históricas pode ser questionada por meio da pergunta pela
realização das possibilidades objetivas e subjetivas acumuladas pela sociedade,
possibilidades reais e disponíveis, mas não viabilizadas devido a interesses políticos
devotados a manter a dominação sobre os homens. Uma sociedade calcada na
produção e no consumo do supérfluo produz para sua justificação um grau tão
extremo de irracionalidade que sua aceitação passiva parece requerer mais do que a
deterioração da capacidade perceptiva das contradições da sociedade. A forma
explícita por meio da qual a dominação se reproduz na cultura e no psiquismo dos
indivíduos não se sustentaria se não houvesse o desenvolvimento de uma felicidade
subjetiva que complementasse a incapacidade perceptiva. É difícil pensar que as
pessoas não percebam a crueldade manifestada nas relações humanas. O prazer
79
convocado pela cultura administrada como sentido oficial da vida por ela
estimulada parece se associar a formas de crueldade que direta ou indiretamente
revestem a apática monotonia do mundo regido pelos princípios da razão formal
com o glamour da indústria cultural. A associação entre o prazer sexual e as pulsões
destrutivas parece compor o trajeto da falsa consciência rumo à aniquilação da
verdadeira felicidade. As necessidades individuais, inclusive fortes moções
pulsionais, ajustam-se à dinâmica da cultura que soube se apropriar perfeitamente
das tecnologias de controle do comportamento. No mundo administrado, o desejo
e a necessidade não mais são gradações que representam o desprendimento
humano em relação à natureza animal, antes representam a animalização do
conteúdo humano segundo os princípios de uma natureza que a história da
sociedade antagônica tornou aceitável e verdadeira:
O prazer na humilhação dos outros e na própria humilhação sob uma vontade mais
forte, o prazer nos numerosos substitutos da sexualidade, no sacrifício sem sentido, no
heroísmo de guerra é, por conseguinte, um falso prazer, porque os impulsos e
necessidades que com ele se satisfazem tornam os homens menos livres, mais cegos e
mesquinhos do que precisam ser. São impulsos e necessidades dos indivíduos formados
numa sociedade antagônica. (Marcuse, 1938/1997, p. 188.)
Ao transfigurar o que é essencialmente intolerável e indigno do ser humano
em condição existencial, o pseudoprazer descrito por Marcuse adquire poder de
mediação das relações que efetivamente impedem a verdadeira experiência do
prazer e a verdadeira felicidade; converte-se em mediação do conformismo. Por
essa razão, é um importante indicativo da condição objetiva da liberdade sexual;
por um lado, daquela que é sustentada pela indústria cultural como conduta padrão
dos indivíduos, naturalizada sob a forma dos standards que veicula; por outro,
efetivada na vida cotidiana dos indivíduos que a vivem como manifestação de sua
existência concreta, neste caso, como decorrência do desenvolvimento da cultura,
da contraposição entre seus próprios interesses e os interesses da civilização
repressiva. Não se poderia desconsiderar que houve mudanças importantes no
campo da sexualidade, mas é preciso destacar que, do modo como se estabeleceu, a
80
liberdade sexual efetivamente conquistada se ajustou à aparência produzida pela
indústria cultural, que passou a ser seu espírito. Os dados da realidade são
absorvidos pela aparência, tornando-se uma de suas partes constitutivas, de modo
que a própria aparência passa a ocupar o lugar da efetividade. Os indivíduos
sentem-se sexualmente mais livres: em parte porque não percebem os entraves reais
às experiências que almejam, em parte porque somente desejam o que já está
previamente condicionado; ou ainda, porque desenvolvem a capacidade de obter
prazer de situações que considerariam indignas se as confrontasse com as
possibilidades históricas irrealizadas. Atualmente, a liberdade sexual formal,
fomentada pelo padrão de desempenho estabelecido pela sociedade industrial
avançada, aceita como forma natural da conduta expressões idiossincráticas e
formas de comportamento outrora considerados inadmissíveis. Envolta por uma
ambigüidade que ofusca a sua percepção, essa liberdade submetida aos interesses da
produção capitalista insinua diversificadas possibilidades de relação entre os modos
de expressão da sexualidade permitidas e os sistemas de controle destinados à sua
regulação. Esses sistemas se apresentam como controle objetivo: que compreende
o conjunto dos recursos estratégicos utilizados para condicionar o comportamento
dos indivíduos, constituindo uma tecnologia de manipulação do comportamento; e,
controle subjetivo: constituído por meio da introjeção da racionalidade técnica e
reproduzido pelo ajustamento da dinâmica psíquica às exigências de adaptação. A
eficácia desses sistemas de controle corresponde ao decorrente empobrecimento da
subjetividade. Intensamente adaptados às condições de existência que impedem o
desenvolvimento da autonomia, os indivíduos rendem-se à sedução da sociedade; o
aparato por ela desenvolvido para manter as pessoas suficientemente felizes torna-
se tanto mais eficiente quanto mais satisfeitos e, por isso mesmo, controlados,
estiverem os indivíduos. A regressão é visível. Os homens tornam-se similares às
cobaias que serviram ao desenvolvimento do behaviorismo radical, passam a agir
sob condicionamento; tal como Adorno (1955/1986) indicou ao descrever o objeto
da psicologia social analiticamente orientada, desenvolvem uma conduta reflexa
81
própria de sujeitos sem subjetividade. Em sua argumentação de que a liberdade é
apenas um mito, Skinner (1971/1983) indicou que, ao contrário das formas de
condicionamento aversivo, a tecnologia de controle do comportamento pode
recorrer ao condicionamento não aversivo. Rechaçando a ingenuidade das teorias
que enveredam pela defesa da liberdade humana, mas ao mesmo tempo
reafirmando sua compreensão de que o controle é uma dimensão efetivamente
intransponível, ele acabou por contribuir para compreensão dos novos mecanismos
de controle utilizados pela sociedade administrada: a melhor forma de controle é
aquela que não parece controle, que conserva a ilusão de que se é livre:
A aparente liberdade respeitada pelas medidas eficazes nada mais é do que o controle
imperceptível. Quando parece que estamos transferindo o controle para a própria
pessoa, simplesmente passamos de uma forma de controle para outra. (...) O melhor
governo é o que menos governa, ou seja, quando tem à disposição outras formas de
controle. (Skinner, 1971/1983, p. 75.)
Como pode ser depreendido dessa análise, a melhor forma de controle é
aquela que gera a ilusão de que não se está sendo controlado, de que, de fato,
houve uma escolha autônoma. Neste caso, a situação de escravidão em relação ao
controle é ofuscada e sua percepção distorcida. Em uma de suas melhores
formulações, Skinner (1971/1983) argumentou que “é melhor ser um escravo
consciente do que um escravo feliz”, com isso, desvelou o segredo da
dessublimação repressiva criticada por Marcuse (1964/1967): a conquista da
consciência infeliz. Portanto, mediante o desvelamento de que a permissividade
sexual hodierna não somente é uma resultante direta do aprimoramento da
repressão, mas a permissividade que apresenta não é liberação senão de aspectos
específicos da sexualidade já expurgada de sua força transgressora, pode-se destacar
que a esfera da liberdade sexual planejadamente produzida corresponde ao meio
mais eficaz de controle não-aversivo dos indivíduos, pois permite articular o
sentimento de liberdade, potencial de contraposição ao controle social, ao
simulacro da felicidade decorrente da entrega ao pseudoprazer. A dessublimação
repressiva sustenta-se na deterioração da capacidade perceptiva:
82
Assim como essa sociedade tende a reduzir e até absorver a oposição (a diferença
qualitativa!) no âmbito da política e da cultura superior, também tende a fazê-lo na
esfera instintiva. O Resultado é a atrofia dos órgãos mentais, impedindo-os de perceber
as contradições e alternativas e, na única dimensão restante da racionalidade tecnológica,
prevalece a Consciência Feliz. (Marcuse, 1964/197, p. 88.)
Adotar, contudo, a conclusão de que não há possibilidade alguma de
felicidade quando se pretende perceber objetivamente as limitações impostas pelo
existente equivaleria ao equívoco cometido por Huxley em sua utopia negativa do
mundo novo. Imbuído do espírito negativo da crítica de que “a mera renúncia à
falsa felicidade tem hoje em dia um efeito subversivo” (1969/1998, p. 107), Adorno
denúncia a conclusão reacionária da utopia huxleyana que, resignadamente,
contrapõe a felicidade subjetiva ao sentido objetivo da cultura. Argumenta que
“Huxley não faz nenhuma distinção ente liberação e degradação sexual” e, com
isso, “a sua indignação com a falsa felicidade sacrifica também a idéia da verdadeira
felicidade” (p. 99). Considerando que nem toda liberação sexual é degradação e que
a verdadeira felicidade não deve ser sacrificada devido à crítica da falsa felicidade, a
crítica deve dirigir-se especificamente à falsa liberdade, de modo que se possa
visualizar a verdadeira liberdade sexual, pois, afinal, como disse Adorno em Dialética
Negativa, “sólo hay una forma de compreender la liberdad: en negaciones concretas, a partir de la
figura concreta de lo que se opone” (1966/1990, p. 230).
83
Capítulo III: Mediações da liberdade sexual administrada
Parte 1 – Conformismo, determinação e mundo administrado:
O conformismo é um dos mais expressivos paradoxos do mundo
contemporâneo. Sua estrutura enigmática conserva intacta a contradição entre o
campo da vontade individual que, nas relações sociais atuais, tem se afirmado como
uma dimensão aparentemente soberana, sobretudo quando avaliada em relação à
supervalorização do consumo, e os discretos mecanismos sociais de determinação
dos padrões culturais cuja eficiência dispensa a coerção explícita. A aparência sob a
qual se reproduz a multiplicidade de mercadorias padronizadas suscita um grau de
singularidade irrealista, incompatível tanto com os interesses da produção e com o
gerenciamento do consumo quanto com as condições de recepção dos
consumidores, em geral, ávidos por gozarem os efeitos psíquicos propiciados de
forma tóxica, em especial o de identificação com o coletivo. A liberdade de escolha
é enfatizada como um bem supremo do capitalismo, mas sua aceitação rumorosa,
tema da auto-afirmação individualista, oculta a estrutura padronizada e
incessantemente repetida em cada uma das opções oferecidas. Não há escolha real:
sob sua ostentação idealista o que efetivamente se encontra é a ilusão quanto às
limitações reais da autonomia efetivamente exercida. A ilusão generalizada,
manipulada pela indústria cultural e oferecida às massas como panacéia para o
descontentamento cultural, produz subterfúgios psíquicos por meio dos quais os
indivíduos ameaçados em sua sobrevivência psíquica e social buscam amenizar a
dura percepção de que a consciência dos limites dados à diferenciação não basta
para que possam, devido a este único gesto de autoconsciência, afirmarem-se como
exemplares da diferença efetiva. O processo de individuação exige antes de tudo o
desenvolvimento da consciência crítica, sem à qual não é possível vislumbrar as
possibilidades negadas pelas condições materiais nem tampouco opor resistência às
estruturas sociais contrapostas à formação da autonomia, entretanto esta percepção
é apenas o primeiro ato necessário à transformação objetiva; a autonomia real
84
depende de alterações concretas e radicais nas esferas das relações materiais de
produção. Nesse contexto, o reconhecimento das determinações sociais exige
esforço intelectual equivalente ao que é empenhado na aceitação da frágil aparência
que, em uníssono com a indústria material, o aparato da indústria cultural concede
à cultura reificada. Como Marcuse (1955/1981) indicou no prefácio político de Eros
e civilização, em 1966, realmente não faz sentido falar em libertação a pessoas que se
sentem livres. Ante o grau de certeza de que se vive no melhor dos mundos
possíveis, o questionamento acerca da falta de liberdade é imediatamente tomado
como anacronismo. A liberdade de escolher entre diferentes marcas de televisores
ou entre as variações técnicas dos clichês que eles exibem é aceita como se
realmente fosse expressão da liberdade real. Em uma espécie de aceitação tácita da
barbárie orquestrada pela indústria cultural, a aparência mais absurda sugere que os
indivíduos, abandonados à participação virtual no universo midiático, e absorvidos
pelo vácuo existente entre as comunidades virtuais da internet e a participação à
distância no desfecho dos reality shows, conseguem, com isso, conceder outro
sentido à afirmação cega da medíocre caricatura de liberdade que lhes foi relegada
pela sociedade administrada. Em sua análise do ajustamento do gosto musical aos
standards da música popular, Adorno e Simpson (1941/1986) concluíram que
também a crença disseminada de que as massas reagem com absurda passividade tal
como insetos cujos centros reflexos foram condicionados com perfeição é tão
somente a aparência do fenômeno real transcorrido no âmbito da cultura. Segundo
indicaram, a espontaneidade presente no consumo da música padronizada é mera
aparência, pois a espontaneidade real foi absorvida pelo processo de adaptação; a
aparente naturalidade que expressa resulta do esforço que cada indivíduo
desempenha para se ajustar às condições que lhe são impostas. Em consonância
com esse processo, a situação geral da liberdade de decisão configura regressão
similar, por isso é tão difícil desvelar a quase explícita conformidade com as
imposições:
85
(...) a espontaneidade é consumida pelo tremendo esforço que cada indivíduo tem de
fazer para aceitar o que lhe é imposto – um esforço que se desenvolveu exatamente
porque o véu que recobre os mecanismos de controle se tornou tão tênue. (...) Para se
transformar em um inseto, o homem precisa daquela energia que eventualmente poderia
efetuar sua transformação em homem. (Adorno e Simpson, 1941/1986, p. 146.)
Vulgarmente considerada como um bem supremo, a liberdade de decisão
adquiriu ao longo da história do mundo ocidental nuanças puramente subjetivas. O
valor objetivo que a vontade individual representou em determinadas civilizações
nas quais, apesar de tudo, a própria individualidade ainda mal diferia da tendência
geral da sociedade foi paulatinamente sendo substituído pela apreciação subjetiva,
de certo modo decorrente do próprio processo de diferenciação do indivíduo na
sociedade moderna. Alinhada às condições necessárias à emergência da
individualidade e à formação da dimensão da experiência privada essencial para que
houvesse o desenvolvimento da liberdade objetiva, a cultura burguesa exacerbou o
principio da individualidade, porém de modo ajustado ao modelo do
individualismo econômico, no qual alguns poucos privilegiados por sua condição
de classe são favorecidos por um tipo de liberdade material contraposta à liberdade
universal. A liberdade reservada às massas foi desde a origem do capitalismo a
liberdade de trocar a força de trabalho pelas condições básicas de sobrevivência. A
escolha possível sob o modo de produção capitalista, portanto, traz a marca
indelével do algoz. Constitui-se como escolha dentre os agentes de sua própria
opressão.
Com o desenvolvimento de formas de gerência supostamente mais
humanizadas, a contradição entre os interesses da classe dominante e as
necessidades de sobrevivência do operariado industrial moderno se tornou mais
amena. Não raro, o discurso político outrora encarregado da oposição tende à
busca da conciliação entre os interesses do capital e a esfera do trabalho. A opção
pelo mal menor substituiu a opção pela crítica radical, contribuindo, em última
instância, para deterioração do potencial negativo da esquerda política.
86
A relação entre o conformismo e a determinação política não é tão simples
quanto sugere a imagem distorcida que aparece à consciência domesticada das
massas. Não se reduz à abdicação da liberdade ou ao condicionamento psíquico
direto. A democracia formal moderna conserva um estágio intermediário entre a
alienação política clássica e a consciência pré-formada pelo hiper-realismo. A
intervenção política, participação organizada na máquina administrativa, não
somente é tolerada como também incentivada pelos dirigentes políticos. Não há
necessidade de grandes mobilizações para que certas idéias, inclusive a defesa de
condições pautadas na oposição aos bem aventurados pelo sistema, possam ser
expressas em foros específicos para esta finalidade. A administração totalitária
permite certo grau de participação. Portanto, não há como se acusar a democracia
moderna de autoritarismo, pois sua principal premissa é a participação organizada.
O problema é que nem o conformismo ao qual esse tipo de participação estaria
supostamente contraposto é mera passividade, nem a liberdade de participação ora
permitida, equivale, de fato, à participação efetiva nas decisões que determinam as
condições de existência; em geral, não ultrapassam o limite estabelecido,
restringem-se ao alcance da participação monitorada. Além da consistente base
material que define suas variações, o conformismo também se sustenta na
deterioração da capacidade perceptiva. Ajustado à forma operacional da
racionalidade técnica, o pensamento político conformista adere às possibilidades
dentre as quais consegue vislumbrar. Não se trata exclusivamente de abdicar-se da
liberdade de participação, mas de participar de um modo determinado. Não se trata
de mera indolência ante as forças opressivas, mas da incapacidade de perceber
alternativas às formas determinadas impostas à percepção e à consciência mais
arraigadas na realidade totalitária. No cerne da conformidade ao sistema, estão as
ameaças sutilmente reproduzidas pela cultura e introjetadas pelos homens desde
fases muito remotas do desenvolvimento da personalidade.
Em O fim da utopia (1967/1969), Marcuse analisou o potencial de formação
de novas necessidades, de uma nova vontade contraposta às falsas necessidades
87
geradas pelo capitalismo tardio, que poderiam estar presentes em manifestações
culturais da época, como os movimentos contraculturais engendrados a partir da
recusa aos benefícios da sociedade opulenta. Ele citou os Beatniks e os Hippies como
movimentos sociais que guardariam indícios dessa possibilidade. Ciente de que
todas as necessidades humanas são historicamente determinadas e passíveis de
transformação, ele sugeriu que o trabalho da crítica devesse se ater à análise
minuciosa das falsas necessidades determinadas pelo capital; erigir-se como sua
negação. Apesar da história não ter confirmado a sua suposição de que os grupos
outsiders da época realmente guardavam o potencial para o desenvolvimento de uma
nova sensibilidade, ainda é essa formação de necessidades não-mediadas pelo
equivalente geral, um processo de ruptura tanto subjetiva quanto objetiva com a
determinação internalizada, que pode significar a transformação da sociedade. Suas
considerações a respeito da cultura americana nos anos de 1960 conservam grande
atualidade para que se possa pensar o contexto político atual:
A necessidade de liberdade não é absolutamente um luxo que só as metrópoles se
possam permitir. No mundo capitalista, presentemente, está sufocada a necessidade de
liberdade que surge espontaneamente, na revolução social, como necessidade velha.
Numa sociedade como a nossa, na qual foi alcançado um certo grau de pacificação,
pensar na revolução poderia parecer, pelo menos à primeira vista, uma loucura. Mas o
problema é o de modificar a própria vontade, de modo a evitar que as pessoas
continuem a querer o que querem agora. Desse ponto de vista, portanto, os problemas
que se colocam nas metrópoles são bastante diversos dos do Vietnã, mas podem e
devem ser associados a estes. (Marcuse, 1967/1969, p. 38.)
O fato de apontar para a esfera da vontade, comumente prefigurada pelas
determinações sociais, como um dos aspectos que revelam a extensão das
contradições das metrópoles para as periferias, do primeiro para o terceiro mundo,
também indica que parte das possibilidades de recusa, sobretudo daquelas
fundamentadas na subjetividade, estariam presentes em ambos os contextos
culturais. Pode-se depreender dessas considerações que, além da base material, as
disposições culturais de base subjetiva também estão desigualmente distribuídas
entres os paises da metrópole financeira e as periferias do capital, em especial,
devido a sua subordinação à distribuição política da riqueza. Com isso, mesmo que
88
por razões distintas, o descontentamento abrange as diferentes culturas e os
diferentes extratos populacionais dentro de uma mesma cultura. Dado seu valor de
integração ou de negação, essas forças constituídas como recusa subjetiva à ordem
da opressão miserável ou da integração opulenta, apesar das variações culturais,
representam igualmente um potencial de insatisfação política, portanto, também
são importantes para transformação da sociedade. Se não houver meios de
expressão e desenvolvimento das necessidades negadas pela racionalidade
predominante, bem como pelas subseqüentes formas de organização social que a
fundamentam, não haverá razão para que se discutam novas formas de organização
da sociedade. Nesse sentido, pode-se dizer que a eficiência da sociedade
administrada fundamenta-se no controle das necessidades individuais e que o
conformismo revela-se como uma dos principais agentes de determinação. O fato
de que em sua base não está a passividade ideologicamente atribuída às massas, mas
sim a ameaça à própria sobrevivência daqueles que não se adaptarem, indica que as
novas formas de controle apenas insinuam o cinismo generalizado de que as
pessoas fazem o pior por escolhas egoísticas. A mobilização de conteúdos
psíquicos relacionados aos mecanismos de defesa, como é o caso do narcisismo,
não significa que a busca desenfreada pela autoconservação tenha como base o
cinismo esclarecido, mas sim que a ameaça tornou-se sua segunda natureza e que
diferenciar-se disso requer um esforço descomunal muito diferente do que é
necessário para se perceber a contradição geralmente experimentada como mal-
estar generalizado. O conformismo tornou-se a forma mais eficaz de determinação
política, pois os indivíduos são remetidos a sua própria capacidade de pensar e agir,
sem que seus limitados intentos representem nenhum risco de ruptura para o
sistema.
Partindo da constatação de que o controle das necessidades se afirmou
historicamente como um dos principais meios de manutenção da ordem
estabelecida, cabe à análise crítica interpretar a relação entre a dimensão mais
subjetiva, a personalidade, e o campo das formulações ideológicas. Para efetivação
89
de tal propósito, é mister a recorrência à célebre pesquisa La personalidad autoritária
(1950/1965) desenvolvida por Adorno e colaboradores logo após a segunda guerra
mundial. Desenvolvida para averiguar se haveria na população americana um
significativo potencial de adesão ao nazi-fascismo e, caso fosse constatado sua
existência, em que grau deveria preocupar àqueles que pretendiam se opor ao
florescimento desse tipo de barbárie, a pesquisa sobre a personalidade autoritária
representou um grande avanço no campo da psicologia social. Ao articular técnicas
quantitativas de investigação empírica com a analise do conteúdo de entrevistas,
testes projetivos e material produzido para fins de propaganda fascista, os
pesquisadores puderam demonstrar o alcance da crítica e a pertinência da
articulação da psicanálise e da teoria materialista da sociedade. Uma das principais
contribuições dessa pesquisa foi o entendimento acerca do processo de formação
da personalidade autoritária, a qual, em consonância com o conformismo ora
analisado, fixa suas raízes em dimensões muito profundas do psiquismo.
Dentre os instrumentos de investigação desenvolvidos pelos pesquisadores
do Instituto de Investigações Sociais de Bekerley para a análise dos indícios das
tendências autoritárias, antidemocráticas, anti-semitas, etnocêntricas e
conservadoras, as escalas de atitude baseados no modelo Likert possibilitaram o
acesso a conteúdos de personalidade profundamente arraigados, permitindo o
confronto desses conteúdos já cristalizados com a esfera das motivações
psicossociais, inclusive com as motivações arregimentadas por ideologias políticas
consoantes ao estágio avançado da dominação técnica.
Para os propósitos perseguidos pelo presente estudo, duas das referidas
escalas de atitude – Escala de conservadorismo Político-econômico e Escala de
Fascismo – desenvolvidas na pesquisa sobre a personalidade autoritária
representam especial importância para a análise dos mecanismos psicossociais de
sustentação do conformismo, pois conservam: a primeira, a delimitação precisa e
direta da esfera das contradições políticas e das determinações econômicas
90
fundamentadas no modo de produção capitalista, bem como sua contraposição
baseada na tradição marxista da crítica da economia política; e, a segunda, a
abrangência da dimensão implícita das atitudes antidemocráticas. Na referida
pesquisa de Adorno e colaboradores (1950/1965), a articulação entre as esferas da
personalidade e as ideologias políticas pôde ser investigada a partir da camada mais
superficial e efêmera da personalidade: as atitudes. Mas na medida em que foram
circunscritos aspectos subjetivos fundamentais ao processo de adesão à apreensão
ideológica da realidade, sobretudo às explicações derivadas da racionalidade técnica
e os valores produzidos pelas condições da vida danificada, produzida pela
sociedade industrial e interiorizados pelos indivíduos como natureza cristalizada,
tanto essa camada superficial quanto as motivações mais recônditas do psiquismo
puderam ser desveladas.
Parte 2 – Reprodução da violência geral no prazer particular alienado:
Como muitas outras manifestações ideológicas que preenchem a consciência
geral do homem contemporâneo, a liberdade sexual administrada também se
constitui como uma aparência socialmente necessária. Constitui um engano acerca
da condição a que os indivíduos estão sujeitos, sobretudo quanto às possibilidades
efetivas de decidirem a respeito de suas vidas práticas e de escolherem
corretamente as formas de gratificação que melhor lhes permita usufruir o
potencial de prazer e felicidade que seus corpos e relações podem propiciar sem,
com isso, perderem a autonomia e a dignidade universais, historicamente possíveis.
Todavia, essa importante e contraditória manifestação da necessidade de
gratificação sexual, objetivada em comportamentos, atitudes e idéias acerca dos
horizontes do prazer, difere das formas clássicas de ilusão ideológica,
predominantemente cognitivas e passiveis de superação mediante o exercício da
reflexão teórica. Sua forma de sustentação principal tem nas incorreções do
entendimento, apenas uma parte bastante reduzida da matéria-prima que compõe
91
sua estrutura psicossocial; sustenta-se essencialmente na dimensão psicológica, em
necessidades insatisfeitas e em processos mentais apenas indiretamente penetráveis
pelas luzes da razão. De modo geral, sua estrutura irracional remete a disposições
mentais muito primitivas e se organiza de modo similar às demais manifestações
ideológicas produzidas pelo mundo totalitário. Essa forma de liberdade sexual é
intrinsecamente ideológica; constitui uma contradição objetiva da relação entre
indivíduo e sociedade. Devido a sua ambivalência, é comumente experimentada
pelas pessoas submersas na dinâmica cotidiana, em geral também espoliadas da
condição de produtoras de sua própria subjetividade, como um consolo privado
para as mazelas decorrentes da dominação social. Nestes termos, é uma contradição
objetiva na medida em que expressa a agonia dos homens ante o desafio de terem
que atribuir sentido a suas vidas esmagadas pela maquinaria social; na medida em
que expressa o modo como representam para si mesmos uma condição de
existência que os permita acreditar que podem ser felizes com a vida que
concretamente possuem.
Por estar organizada de acordo com princípios erigidos sobre o falso
equilíbrio entre os interesses dos indivíduos e um conjunto de estratégias
socioculturais que visam mantê-los relativamente satisfeitos, a sociedade
administrada busca garantir sua reprodução material e espiritual, precisamente, por
meio da imposição totalitária de padrões culturais que os impulsionem para o
ajustamento cego e resignado às condições de existência que lhes são estipuladas
pelos detentores do poder político e econômico. Esses padrões recaem
opressivamente sobre a totalidade dos homens como um destino fatídico do qual
não podem se desvencilhar e que, com freqüência, são despercebidamente
incorporados e reproduzidos nas situações cotidianas mais corriqueiras. Tais
padrões tornaram-se importantes mediadores de tudo o que é produzido a partir
desta base psicossocial que se formou paulatinamente em conjunto com a
solidificação da estrutura política e econômica do capitalismo tardio. Cerceados
desde a infância em suas mais diversas experiências cotidianas por uma imensidão
92
de estímulos constituídos em consonância com as exigências materiais da
sociedade, os indivíduos sofrem a influência da determinação cultural nos
conteúdos mais recônditos de sua vida psíquica.
Em sua análise da degradação da formação cultural, Adorno (1962/1966)
forneceu importantes elementos para que se pudesse analisar com mais consistência
a impregnação da esfera subjetiva pela forma proveniente da pseudocultura.
Segundo pode-se depreender de sua análise, este processo ocorre, sobretudo,
devido à ação esmagadora da superestrutura ideológica sobre as consciências
individuais debilitadas. Ele indicou que as condições para que a cultura e seus mais
preciosos bens regridam à forma-mercadoria estipulada pela indústria cultural estão
ligadas à aniquilação do próprio indivíduo – de sua existência como um ente
autônomo – e que, por este motivo, decorrem da impossibilidade de que haja
contraposição ao movimento totalitário da sociedade. Os bens culturais, outrora
demasiadamente espiritualizados pela filosofia idealista burguesa, foram
convertidos em mercadorias; sucumbiram à reificação. Em variados graus de
aplicação passaram a responder de modo imediato às angústias desencadeadas pelas
necessidades dos indivíduos submergidos no desespero cotidiano que não lhes
deixa muitas expectativas de futuro ou condições suficientes para que possam
elaborar as mazelas do passado.
Tomados pela regressão frente às suas próprias potencialidades históricas, as
pessoas acabam absorvidas unicamente pelo propósito de garantir sua
autoconservação, desprezando a importância que a autonomia poderia cumprir na
realização deste intento. A postura pragmática que assim se desenvolve se associa a
esquemas narcisistas por meio dos quais o eu regredido a seu limiar mínimo busca
se defender das ameaças reais e imaginárias, constituindo uma percepção e um
entendimento da realidade desde o princípio mediados pela escolha do ego como
principal objeto de investimento libidinal. Tais condições contribuem para
solidificar uma base cultural coerente com a estrutura política e econômica da
93
sociedade; as regressões que exige dos indivíduos, os sacrifícios que amoldam suas
reações psicopatológicas predominantes, afirmam-se como estruturas culturais
rígidas. Este fato sócio-histórico revela o engodo implicado em se caracterizar os
sofrimentos dos indivíduos regredidos como expressões psicopatológicas
particulares; as grandes doenças mentais de nossa época são compartilhadas pelo
conjunto das pessoas que vivem sob as mesmas condições objetivas. As mais
singelas expressões da felicidade particular guardam, ao menos em germe, uma
dose do sofrimento universal. É sem dúvida bastante improvável que o
pseudoculto de nossa época possa se contrapor às condições gerais de incultura que
ainda marcam parte importante dos costumes nacionais. Antes, pode-se perceber
sem muito esforço que o processo de incorporação da incultura campesina pela
pseudocultura propalada pela indústria cultural, sobretudo na América do Norte,
também atingiu as terras tupiniquins com a mesma intensidade. A crítica que
Adorno teceu em relação à cultura americana dos anos quarenta e cinqüenta teve
sua precisão e atualidade preservada na medida em que as condições que naquela
época assolaram os países mais desenvolvidos economicamente não tardaram a ser
reproduzidos pelas demais culturas que adotaram o mesmo percurso econômico e
cultural em momentos posteriores.
As estratégias de rápido crescimento econômico adotadas pela política
desenvolvimentista e pela industrialização tardia no Brasil contribuíram para a
descomunal expansão da pseudocultura. Os efeitos concretos do alinhamento da
economia-política nacional às condições do mercado financeiro e comercial
internacional para a vida cotidiana dos indivíduos foram tão extremos que a relação
entre a base material destas transformações e os processos de mudança
desencadeados na esfera dos costumes tornou-se evidente. Todavia, é preciso
considerar que seus efeitos mais significativos somente atingiram tão amplamente a
dimensão subjetiva porque primeiro demonstraram sua eficácia material. A
reprodução de certos aspectos do capitalismo emergente demandou o
desenvolvimento do individualismo competitivo e da resignação ante a ordenação
94
hierárquica das relações sociais. Em conseqüência, atingiu, em níveis variados, a
organização mental dos indivíduos que sempre tiveram que se ajustar às condições
de trabalho e de produção que tal processo implicou, caracterizando distinções
importantes na forma e no grau de integração cultural a que as pessoas estão
submetidas. A abrangência da integração cultural compreende também a esfera da
sexualidade, de modo que a subordinação de conteúdos de timbre sexual a
finalidades espúrias é uma de suas variações mais importantes. Segundo Adorno
(1962/1966), ao voltarem-se maniacamente para si mesmos em um ato desesperado
de autoconservação, os indivíduos vêem-se privados de condições fundamentais
para estruturação de sua própria individualidade:
El seudoculto se dedica a la conservación de si en si mismo; no puede permitirse ya
aquello en que, según toda teoria burguesa, se consumaba la subjetividad – la experiencia
y el concepto –; con lo que se socava subjetivamente la possibilidad de la formación
cultural tanto como objetivamente está todo contra ella. La experiencia, la continuidad de
la conciencia en que perdura lo no presente y en que el ejercicio ya la asociación fundan
una tradición en él individuo singular del caso, queda sustituida por un estado
informativo puntual, deslavazado, intercambiable y efímero, al que hay que anotar que
quedará borrado en él próximo instante por otras informaciones (...). (Adorno,
1962/1966, p. 194.)
Na esfera da experiência danificada e tão amplamente substituída pelos
abundantes estímulos ofertados pela indústria cultural também podem ser
localizadas as demandas eróticas e as possibilidades de gratificação direta ou
indiretamente sexuais. É preciso considerar que, no caso do indivíduo
pseudoformado, até mesmo sua possibilidade de estabelecer vinculação afetiva com
um outro diferenciado representa grande ameaça a sua frágil constituição egóica,
pois devido à sua vulnerabilidade aos inúmeros estímulos que definem sua
identidade externamente dirigida, o tipo de identificação necessária para o
estabelecimento de vínculos afetivos mais intensos ameaça provocar rupturas na
identidade do eu. Tão efêmeras quanto as informações que expressam seu
entendimento da realidade, modificado a cada novo dia por meio do consumo de
conteúdos veiculados superficialmente pelos noticiários cotidianos, também sua
identidade parece metamorfosear-se de acordo com os muitos modelos oferecidos
95
pela mesma indústria, restando-lhe apenas a certeza da ameaça de dissolução. A
recorrência a mecanismos de defesa mediados pelo narcisismo e pelo
distanciamento da realidade objetiva torna-se cada vez mais freqüente e pode
provocar diferentes formas de comprometimento, especialmente, na definição dos
modos de contentamento e satisfação desejados.
Em uma esfera bastante geral da regressão coletiva produzida pela
pseudocultura, porém ainda distante de quaisquer traços psicopatológicos ou da
adoção de atitudes ajustadas à propagação da barbárie, há um tipo de conduta
frente à realidade que se caracteriza especificamente pela alienação generalizada em
relação ao sofrimento universal. Trata-se do mesquinho contentamento com as
condições gerais de subsistência; o qual, no passado, abrangeu os ganhos
secundários obtidos com a integração do proletariado, principalmente quando
ainda era possível falar em afluência e em bem-estar social e, atualmente, se
manifesta na ingênua satisfação obtida por meio dos prazeres concedidos pela nova
moralidade, independente de quaisquer ganhos materiais. Ao questionar se ainda
faria sentido falar em alienação – nesta época em que os indivíduos realmente se
reconhecem em suas mercadorias –, Marcuse (1965/1999) mostrou que no
processo de integração das necessidades pelos produtos que o capitalismo
deliberadamente oferece aos homens, sem que com isso coloque em risco a sua
própria manutenção, está presente a incerteza quanto às motivações históricas para
uma revolução, pois a integração pela esfera do consumo suprimiu a necessidade
vital de transformações radicais:
Será que ainda faz sentido falar em alienação quando os indivíduos nesta sociedade
realmente se encontram a si mesmos em seus automóveis, aparelhos de televisão, gadgets,
jornais e políticos? Esse é um mundo de identificação – não mais são objetos mortos que
se opõem ao indivíduo como se fossem estranhos. (Marcuse, 1965/1999, p. 49.)
Pode-se ponderar que a formulação de Marcuse é precisa principalmente se
pensada em relação à identificação que as pessoas estabelecem com padrões
forjados pela pseudocultura. A identificação com os ideais e tipos padronizados
oferecidos cotidianamente pela indústria cultural sustenta-se na apropriação de
96
mecanismos subjetivos fundamentais ao funcionamento mental, como o narcisismo
e a identidade do eu já mencionados, mas também compreende a necessidade
básica de sobrevivência, impossível sem que haja o mínimo de contentamento.
Certamente, não será por meio da censura aos pequenos prazeres aos quais as
pessoas tem acesso controlado pelas novas estratégias de controle que poderemos
desmistificar o poder da integração econômica e cultural, mas sim por revelar a
dependência que a identidade do eu mantém em relação a esses inúmeros objetos
de consumo e ideais de realização pessoal a eles associados. A especulação de
Marcuse (1965/1999) quanto ao fato de talvez não mais fazer sentido recorrermos
ao conceito de alienação para compreender esta situação parece não considerar o
estranhamento dos homens em relação a si mesmos; eles somente se reconhecem
nos inúmeros supérfluos que consomem porque não se constituíram como
indivíduos suficientemente diferenciados. Em sua própria estrutura de
personalidade já está interiorizada a determinação da pseudocultura, segundo a qual
estão alienados de si mesmos, governados externamente por meio da manipulação
de suas necessidades internas mais prementes. Impossibilitados de desenvolver uma
subjetividade diferenciada do todo, os indivíduos enfraquecidos não tem alternativa
senão identificarem-se com este todo no qual não se reconhecem como homens,
mas sim como mercadorias. Possuem parte dos objetos de seu trabalho, mas não
possuem a si mesmos, nem tampouco a consciência de que seu gozo privado ainda
se dá às custa da miséria geral. A abundância produzida pelo Estado de bem-estar
social, que fez de alguns países exemplo de capitalismo bem sucedido, ainda ressoa
nas misérias que a cada dia fazem florescer novas revoltas no terceiro mundo.
Talvez, repensando a afirmação de Marcuse, não faça mais sentido falar em
alienação individual e sim em uma ampla e bem consolida alienação coletiva por
meio da qual a felicidade particular, verdadeira para o individuo alienado de si e
entregue à necessidade de autoconservar-se é generalizada para o todo, criando a
ilusão de que é realmente possível atingir algum grau de contentamento sem má-
consciência.
97
2.1 – As condições sociais predominantes na sociedade administrada não
configuram uma base suficientemente favorável à constituição de indivíduos
minimamente diferenciados e dotados de autonomia. Em geral, por viverem
espoliados da consciência de si mesmos e não conseguirem compreender sua
condição existencial ou intervir na realidade que os cerca, os indivíduos tornam-se
intensamente vulneráveis à estimulação e ao controle externos. O
comprometimento das funções de percepção da realidade e de mediação dos
conflitos que há entre ela e as motivações pulsionais, que segundo Freud deveriam
ser exercidas pela instância egóica – agora deteriorada ou nem mesmo desenvolvida
–, tem implicações importantes para o processo de adaptação à realidade
circundante. Sem o auxilio dessas estruturas mentais, as pessoas aderem mais
facilmente aos estilos de vida que lhes são impostos pela cultura. Sem a
possibilidade de refletirem sobre seus significados e amedrontados pelo terror
presente nos conflitos internos que não conseguem solucionar, aceitam, sem
resistência, os padrões de comportamento, as idéias e os valores dominantes; sua
subjetividade torna-se cada vez mais empobrecida. Com isso, o único sentido de
suas vidas passa a ser o ajustamento à sociedade. Compartilham sem
questionamentos as alegrias e os sofrimentos que a vida lhes propicia como se
fossem absolutamente naturais. A visão de mundo que a cultura lhes imprime, a
qual, hoje de maneira bastante paradoxal, compreende a entrega irrestrita a certas
formas de prazer já pasteurizadas pelos agentes de controle social, cerceia todo o
campo de suas experiências, criando a ilusão de que estes são o prazer e a felicidade
verdadeiros.
Como o tipo de prazer que mais facilmente as pessoas obtêm na vida
cotidiana comumente conserva as determinações sociais, sobretudo àquelas
derivadas da esfera do consumo por meio da qual alcançam algum reconhecimento
de que são alguém de valor e podem ter realizações gratificantes, os inúmeros
processos utilizados para a reprodução desta esfera assumem um importante papel
também na organização dos modos de satisfação que dele decorrem. Neste
98
processo, destaca-se a produção e a manipulação técnicas das necessidades
individuais, abrangendo, inclusive, àquelas relacionadas ao prazer sexual. As
estratégias de marketing frequentemente utilizadas são dirigidas para as necessidades
insatisfeitas na vida cotidiana, criando alguns conteúdos substitutivos e outros
parcialmente ligados ao objeto desejado; excitam e dirigem estas necessidades e
desejos, com isso, também associando-os aos produtos materiais e culturais que
devem circular no mercado, aumentando o lucro dos mercadores de ilusões.
O julgamento de que o prazer a que grande parcela da população tem acesso
e com o qual frequentemente se contentam em sua vida privada, esquecendo as
mazelas sociais que os ameaçam, é um risco que a crítica precisar correr para poder
revelar as possibilidades históricas negadas por esta situação intermediaria. Ao
desmobilizar as fileiras dos descontentes, provocando a estagnação frente aos
limites demarcados pela realidade, o prazer alienado contribui para o impedimento
de que tantas outras pessoas em condição similar ou inferior na hierarquia social
gozem de satisfação igual. Não se pretende com isso assumir uma posição moralista
similar a da velha moral vitoriana e negar aos indivíduos o direito de se entregarem
aos prazeres que seu corpo e sua condição de existência possam propiciar-lhes, mas
sim de poder desmascarar a pretensão que freqüentemente acompanha este tipo de
apreciação desinteressada do valor e da importância da energia libidinal. É preciso
concordar com Marcuse (1938/1997) que frente às violências cometidas em toda a
história da repressão, até mesmo o prazer alienado pode, em certas circunstâncias,
representar progresso humano. Todavia, a não-percepção de seus limites pode
convertê-lo em uma forma de anestesia ante ao sofrimento geral. Marcuse
(1938/1997) percebeu com minuciosa atenção a impossibilidade de os indivíduos,
constituídos sob as condições gerais de determinação da sociedade antagônica,
assumirem o papel de juízes de sua própria felicidade, com isso, forneceu-nos os
elementos teóricos necessários para a análise do potencial e dos limites da crítica à
dissociação entre o prazer particular e a esfera da universalidade:
99
Só hoje, no último estágio do desenvolvimento do existente, quando amadureceram as
forças objetivas que impulsionaram para uma ordem superior da humanidade, e só em
conexão com a teoria e a práxis históricas vinculadas a essa transformação, pode a
felicidade, junto com a totalidade do existente, tornar-se também objeto de crítica.
(Marcuse, 1938/1997, p. 190.)
A triste consciência de que os homens agem de modo contrário a seus
interesses mais razoáveis, exacerbada por situações nas quais extraem intensa
satisfação dessas ações, permite distinguir entre expressões verdadeiras e falsas do
prazer e denunciar a submissão do âmbito específico do prazer sexual a
mecanismos psicossociais nos quais a própria substancia sexual é anulada,
substituída ou ludibriada por meio de técnicas de manipulação conscientemente
elaboradas para fins mercadológicos. Se tal como Marcuse indicou, é somente ante
o amadurecimento das forças que podem impulsionar para uma forma superior de
humanidade que se tornou lícito criticar a felicidade factual e apontar sua cisão em
expressões falsas e potencialmente verdadeiras, é também em nome dessas mesmas
forças que se pode distinguir entre os diferentes tipos de falsidade a que a felicidade
e o prazer estão submetidos. Se, de um lado, é possível argumentar que o direito ao
prazer e à felicidade privados, que não violam o direito alheio e pautam-se tão
somente pelas possibilidades que o acaso forneceu ao indivíduo, são inalienáveis e
que a alienação a ele atinente depende do fato de corresponderem a necessidades
pré-fabricas pela indústria material e cultural; de outro, pode-se dizer que existem
variações na forma de falsidade dessas satisfações. Essas variações referem-se não
apenas ao fato de corresponderem a objetos falsos ou a seu caráter tolhido pela
história da repressão, que não permite aos homens desejar mais do que o
delimitado pela conveniência social, mas abrange também diferentes formas de
mitigação dos impulsos sexuais: o pré-prazer é umas dessas importantes formas que
a sociedade permissiva encontrou para amansar os impulsos sexuais ao mesmo
tempo em que pode manipulá-los para finalidades não-sexuais, como a impulsão
para o consumo. A energia extraída da pulsão sexual por meio da excitação
constante pode favorecer tanto a produção quanto o consumo. Não são poucos os
técnicos em controle do comportamento que, apesar de leigos a respeito da
100
fundamentação teórica da moderna psicologia comportamental, souberam bem
aplicar a descoberta de Skinner (1971/1983) a respeito do modo como o controle
não-aversivo é muito mais eficiente à modelagem do comportamento, pois evita
que os indivíduos desenvolvam resistências que dificultem sua manipulação. Por
constituírem um conjunto de métodos e técnicas dispostos de acordo com o
espírito positivista, os procedimentos de manipulação do comportamento podem
ser utilizados por quaisquer especialistas em gestão comercial e planejamento de
necessidades. A sociedade administrada não é administrada apenas devido ao
campo da produção, mas principalmente devido à expansão dessa lógica para as
demais esferas da vida social como a educação e, sobretudo, o lazer: o fato de ter
atingido com tamanha força o campo da sexualidade é apenas uma decorrência
lógica deste processo.
A excessiva retidão moral subjacente ao taylorismo tornou-se obsoleta. Seus
preceitos não mais são compatíveis com a nova mentalidade organizacional. O tipo
de controle repressivo exercido de maneira direta pela sistematização rigorosa do
processo produtivo, sua minuciosa circunscrição dos movimentos do corpo e do
espírito, constantemente tolhidos pela vigilância enfadonha, não pôde garantir por
muito tempo a continuidade dos níveis de produtividade pretendidos pelos grandes
investidores. O desconforto despertado nas pessoas, que além de estarem
objetivamente reduzidas a peças da maquinaria social também eram tratadas como
tal, tornou-se um obstáculo ao sucesso dessa indústria, pois ainda provocava nos
trabalhadores – em um nível excessivo ao desejado pelas instâncias de controle – a
percepção de que sua liberdade de trabalho reduzia-se apenas à escolha do
explorador menos aversivo. Em conseqüência, os especialistas na intelligentia
administrativa logo substituíram essas formas arcaicas de dominação, tão
contrárias à aparência liberal que a sociedade pretende sustentar, pelas modernas
técnicas de engenharia do trabalho calcadas no modelo da reestruturação produtiva
toyotista, que atualmente fazem com que o trabalhador se sinta mais criativo,
participativo e com direito a expressar suas variações emocionais. Até mesmo a
101
presença reconhecida da sexualidade em ambientes de trabalho, sempre ocultada
pela moralidade que no início do processo de industrialização no Brasil negava sua
existência e ao mesmo tempo julgava de menor respeito as mulheres que nele
tinham que garantir sua sobrevivência, hoje é tratada de modo distinto; com
freqüência, a pré-seleção de candidatos a uma vaga de emprego em muitas áreas
passa pela indicação de outro trabalhador, que pode sem receios indicar um amigo
ou mesmo alguém com quem tenha vinculação afetiva mais intensa. Se o contato
afetivo ou sexual entre os trabalhadores favorece a produtividade não há mais
porque proibi-los! Ao contrário, eles até mesmo podem ser incentivados, pois
enquanto os trabalhadores se sentirem atraídos pela excitação propiciada pelas
condições de trabalho, o prazer que decorreria do próprio trabalho e que
permanece negado, é substituído por pequenas e bem planejadas doses de
gratificação. Em geral, as pequenas satisfações preparam o espírito para as grandes
mazelas.
No que diz respeito à esfera do consumo, sobretudo considerando a
mediação que hoje sofre da indústria cultural, o pré-prazer ajuda a cumprir com
exatidão a dialética entre produção e consumo desvendada por Marx (1857/1996);
segundo a qual, a despeito do consumo implicado em todos os momentos da
produção, é a produção que produz o consumo. Além de fornecer-lhe o material e
determinar sua forma, a produção também gera no consumidor a necessidade dos
produtos; segundo Marx: “o impulso do consumo”. Este aspecto da determinação
social mantém estreita relação com a manipulação do pré-prazer, pois é ele que
com grande freqüência é efetivamente obtido por meio do consumo de
mercadorias, em geral, supérfluas, mas envoltas por um intenso poder de sedução.
Não é possível, sem uma averiguação empírica detalhada, afirmar o caráter
determinante dos setores de planejamento e de criação de estratégias de marketing,
nem tampouco razoável reduzir os indivíduos que sofrem sua influência a uma
condição passiva ante a estimulação exclusivamente externa, entretanto, há que se
102
considerar que esta dimensão da produção, especificamente empenhada na
produção do próprio consumidor, cumpre um importante papel no
reconhecimento, estimulação e manipulação de prementes necessidades psíquicas,
em geral, decorrentes da própria tensão entre a autoconservação, a realização de
desejos e as inúmeras frustrações derivadas da impossibilidade do livre acesso aos
objetos do desejo tanto quanto de sua insuficiência para responder aos níveis mais
profundos da angústia existencial implicada neste processo. O pré-prazer,
diretamente sexual ou apenas superficialmente atrelado a ele, cumpre um
importante papel na conversão de mercadorias desprezíveis, sem nenhum valor
objetivo, em utensílios imprescindíveis à contenção da angústia. Do consumo
compulsivo de produtos culturais padronizados, que estimulam o espectador com
imagens e textos repletos de referência ao desejo, ao consumo de produtos
materiais cuja posse produz sentimentos de grandeza, de pertença e de satisfação, o
pré-prazer é abertamente manipulado como um dos principais combustíveis. Na
análise da música popular, o Jazz standartizado produzido pela emergente indústria
cultural americana do início dos anos quarenta, Adorno e Simpson (1941/1986)
indicaram que o ajustamento psicológico produzido pelo consumo massificado
dessa música não apenas produzia efeitos ambivalentes – como a precária
gratificação aparentemente não-problemática, mas facilmente desmistificada pela
reflexão –, mas era ele próprio um processo ambivalente na medida em que os
sujeitos manipulados por aquelas técnicas abdicavam do mais elementar uso da
razão em troca do frágil ajustamento que obtinham. Segundo argumentaram, era
preciso um esforço do sujeito para se deixar enganar; o que somente é
compreensível à luz da interpretação do peso que a realidade representava para
estes indivíduos; quiçá menor do que hoje é suportado pela massa ainda mais
regredida em seu consumo de mercadorias culturais intensamente padronizadas:
como os programas de humor que levam o espectador a rir de sua própria desgraça
e a música empobrecida que embala os corpos totalmente reificados para mais uma
noite de mecânica sedução e prazer descartável.
103
Frente ao atual estágio da regressão do consumo de mercadorias culturais de
baixo nível intelectual e moral, como o funk carioca, misógino em sua repetição
fetichista de que os atributos femininos que mais encantam podem prescindir do
próprio ser que os possui, cabe ponderar se a submissão da vontade a prazeres
notoriamente fajutos não modificou tão substancialmente os homens que a
consciência das contradições, que antes, à época da crítica de Adorno a esta
indústria, ainda era encoberta por um fino véu, não dispensa por completo
qualquer encobrimento, convertendo-se na pura expressão hiper-realista da
realidade degradada.
Adorno e Simpson (1941/1986) forneceram elementos importantes para a
análise desta conversão da vontade em compulsão, para obstrução de sua expressão
autônoma e para o subseqüente ajustamento às formas de satisfação que são
disponibilizadas pela sociedade, mas a história recente parece querer ultrapassá-los,
paralisando ainda mais a dialética presente na cooptação da vontade. Quanto maior
é o contentamento com o pré-prazer ou com o prazer alienado, mais o prazer
possível torna-se estranho à constituição dos indivíduos. A mediação exercida pelos
novos padrões antropológicos é muito intensa e precoce, restando poucas
possibilidades ao longo da história do indivíduo, formado sob as atuais condições,
de erigir alguma negação ao que está efetivamente estabelecido, inclusive nas
camadas mais recônditas de seu psiquismo, como prazer real. A continuidade deste
processo por décadas seguidas pode levar a profundas modificações na constituição
psíquica das pessoas, produzindo uma cristalização das condições antropológicas
que, com isso, tornam-se muito mais difíceis de serem modificadas. Como o
esforço implicado na automutilação da consciência é percebido como uma forma
de alívio ante a tensão produzida pelas motivações que impulsionam a esta
violência contra si mesmo, cometida para evitar os insuportáveis conflitos
decorrentes da percepção da impotência frente ao sofrimento geral, o esforço para
ajustar-se deixa de ser compreendido como esforço. Na medida em que provoca
alívio frente ao desprazer, é confundido com o próprio prazer. Com isso, a
104
distância entre a contradição que ele encerra e a consciência desta contradição será
significativamente reduzida; este processo é um dos principais sustentáculos da
aceitação resignada da vida degradada. Para garantir a autoconservação e suportar o
mal-estar que isto implica, tornou-se necessário desenvolver o contentamento com
o mero alívio do desprazer. Em função do fato de a falsa consciência socialmente
necessária não mais ser suficiente para anestesiar o corpo que sofre a exigência de
ajustamento, os indivíduos buscam contentar-se, mesmo que forçosamente, com o
alívio do desprazer; é este o prazer a que têm direito.
Apesar de se assemelhar a outras formas de prazer degradadas, com as quais
se relaciona e das quais também é parte substancial, o pré-prazer se caracteriza
especificamente por ser uma forma de contentamento que permanece sempre
incompleta, um exercício de excitação preliminar que se converte em fim. Sua
função como meio de manipulação decorre de sua natureza similar a da técnica que
por meio do fetiche passa a ocupar o lugar de fim. Com o pré-prazer ocorre algo
muito parecido. As inúmeras situações em que a excitação sexual é provocada
artificialmente para, com isso, se obter algum incremento da mercadoria à qual
serve de adorno, repetem a mesma fórmula básica: a exposição exaustiva do objeto
de desejo. Na análise que realizaram a respeito do uso instrumental do
esclarecimento como forma de mistificação das massas, Horkheimer e Adorno
(1944/1985) asseveraram que “Ao desejo, excitado por nomes e imagens cheios de
brilho, o que enfim se serve é o simples encômio do quotidiano cinzento ao qual
ele queria escapar” (p. 131). A indústria cultural desenvolveu como técnica a
manipulação minuciosa do pré-prazer. A produção deste estado de excitação e a
subseqüente resignação às suas dimensões implica na transformação da própria
substância do prazer; que desta forma, reduzido ao mecanismo da excitação
produzida por imagens e textos repletos de conteúdo sexual, se torna ele mesmo
uma dimensão imanente da mercadoria.
105
2.2 – A apropriação de conteúdos de timbre sexual por estrategistas em marketing
que os utilizam para fins explicitamente comerciais ou sua sujeição à aparente
atenuação do processo produtivo, tão comuns na moderna sociedade industrial,
sugere haver ocorrido uma ampla absorção e ampliação da forma de exploração
própria da prostituição. A identidade entre o modo de sobrevivência baseado no
comércio da prática sexual e a exploração decorrente da venda da força de trabalho
a que todos os trabalhadores estão submetidos sob o capitalismo tornou-se ainda
mais intensa com os novos padrões morais socialmente aceitos. Não somente o
sexo pode ser ajustado a finalidades venais, mas também a ampla dimensão da
sexualidade pode ser absorvida pela caftinagem capitalista. A propagação da forma
de exploração própria da prostituição para outras formas de apropriação da
sexualidade é um tema complexo, pois compreende não apenas uma radiografia da
exploração material do trabalho, a denuncia de que o trabalho alienado em geral
assemelha-se à prostituição, mas também a atualização da função espiritual exercida
pela prostituição ao longo da historia da sexualidade e da moral; a degradação do eu
e a subordinação do corpo ou das imagens corporais às dimensões da produção e
do comércio revelam a sofisticação e a atenuação da violência exercida pela
sociedade sobre o indivíduo. No que diz respeito ao primeiro aspecto, é
interessante retomar a análise da prostituição do trabalhador em geral, empreendida
por Marx (1844/2004) nos Manuscritos econômicos-filosóficos, na qual demonstrou que
sob as condições impostas pela política econômica capitalista o trabalhador
assalariado e a prostituta são equiparados em condições de exploração semelhantes:
A prostituição é somente uma expressão particular da prostituição universal do trabalhador
e, posto que a prostituição é uma relação na qual entra não só o prostituído, mas também
o prostituidor – cuja infâmia é ainda maior –, assim cai também o capitalista etc., nessa
categoria. (Marx, 1844/2004, p. 107.)
As condições de trabalho atuais não somente atestam a continuidade daquela
velha identidade já há muito desvendada por Marx, mas revela sua completa
legitimação moral. Com isso, o segundo aspecto destacado, o da função espiritual
historicamente exercida pela prostituição, revela-se como a aparência encobridora
106
da reprodução material do sistema. A liberalização dos costumes sexuais permite ao
capitalista explorar muitas outras variações da sexualidade no comércio, desde a
imagem corporal, que seduz por meio da beleza física que contém, até o simples
timbre da voz que por sugerir alguma sensualidade pode garantir a sobrevivência de
uma massa de trabalhadores empregados nos inconvenientes serviços de
telemarketing. Não raro, é possível deparar com ambientes destinados a algum tipo
de comércio nos quais a beleza das garçonetes confunde-se com as mercadorias
que são oferecidas aos clientes. Há inúmeras empresas do comércio que se
escondendo sob a aparência de liberdade que tanto agrada ao espírito da época
estabelece “a boa aparência” como padrão de bom atendimento. Com freqüência,
não somente admitem, mas também incentivam o uso de roupas que sublinham a
sensualidade, sobretudo no caso das mulheres: as mini-saias e os decotes tornam a
atendente, já dotada de traços que remetem à beleza-padrão, mais apropriada ao
exercício da função de servir; assim como faz parecer mais útil o produto supérfluo
ou saboroso o alimento indigesto. A sensualidade humana implicada na produção e
no comércio de mercadoria cria uma nova forma de apropriação da sexualidade.
Além dos glamourosos produtos da indústria do fast food, os quais contribuem para
fixar a ilusão de que o prazer de degustar decorre mais da boa imagem social do
produto do que propriamente da qualidade de seu sabor, em geral insípido e
facilmente substituível, o que é servido ao cliente é a simulação de situações
instigantes: o ambiente propicio ao flerte e o fetiche da marca, que por vezes
também medeiam a disposição e a disponibilidade das pessoas. Motivado pela
intenção de distanciar-se do moralismo reacionário, o bom filho da pseudocultura
corre o risco de trazer, embutida em sua intenção, a alienação entre sua condição
como indivíduo e os interesses da sociedade que lhe oprime. O encantamento com
a possibilidade de expressar o desejo sexual sem nenhum constrangimento não
permite perceber que aquilo mesmo que é desejado já é produzido precisamente
para esta finalidade e que o elemento humano aí implicado não está isento da velha
identidade entre a prostituição das mulheres deserdadas pela moralidade hipócrita –
107
que até meados do século XX, no Brasil, permaneceram como imagem negativa,
contraposta a das dignas senhoras da sociedade e a das moças reservadas aos
“bons” casamentos –, e o trabalhador em geral, cuja sexualidade tornou-se um bom
atributo de sua força de trabalho.
Parte 3 – A função da industrial cultural na produção e no consumo de falsas
necessidades:
Por ser dotada de intenso poder de enfeitiçar as massas, a indústria cultural
goza da mesma autonomia aparente de que gozam os demais produtos do
capitalismo: aparece à consciência geral como entidade independente das relações
materiais de produção que a engendraram, contribuindo para a ocultação de sua
origem fabricada. O fetichismo da mercadoria, que Marx (1864/1989) delimitou
como o processo por meio do qual as mercadorias em geral, no capitalismo, se
apresentam misteriosamente dissociadas do trabalho que as produziu, parece
caracterizar sua alma, pois não somente os produtos que agrega em sua estrutura,
mas sua própria existência encarnam e naturalizam as propriedades sociais
produzidas pelo trabalho como se fossem propriedade inerentes.
É importante destacar que apesar da generalização da forma inerente ao
modelo de produção criado pela sociedade industrial, introjetado, inclusive, como
forma de racionalidade predominante – a racionalidade tecnológica –, a sociedade
atual é uma extensão clara do capitalismo correspondente à fase de ascensão da
burguesia européia, pois ainda mantém as mesmas relações de produção que no
passado caracterizaram este sistema político-econômico. A este respeito, Adorno
(1968/1986) argumentou em Capitalismo tardio ou sociedade industrial? que mesmo com
as alterações introduzidas pela modelo industrial, a sociedade ainda é capitalista em
suas relações de produção e isto implica na continuidade da redução dos homens à
sua força de trabalho:
108
Por toda parte e para além de todas as fronteiras dos sistemas políticos, o trabalho
industrial tornou-se o modelo de sociedade. (...) Por outro lado a sociedade é capitalismo
em suas relações de produção. Os homens seguem sendo o que, segundo a análise de
Marx, eles eram por volta da metade do século XIX: apêndices da maquinaria, e não mais
apenas literalmente trabalhadores que têm que se conformar às características das
máquinas a que servem, mas, além deles, muitos mais, metaforicamente: obrigados até
mesmo em suas mais íntimas emoções a se submeterem ao mecanismo social como
portadores de papéis, tendo de se modelar sem reservas de acordo com ele. (Adorno,
1968/1986, p. 68.)
O ajustamento dos indivíduos à racionalidade derivada do mecanismo
produtivo e a adaptação de suas emoções ao modo de funcionamento desse sistema
são fortes indicativos do poder de corrupção do capital. Na medida em que
desvelou a submissão forçada dos indivíduos ao modelo produtivo, a crítica de
Adorno também atingiu o processo por meio do qual as pessoas são forçadas a
ajustar suas mais intimas emoções aos papéis sociais de que são incumbidas pelo
sistema. Dessa análise, pode-se extrair como conseqüência a propagação dos
procedimentos industriais para outras esferas das relações sociais, como a cultura.
O fato de os trabalhadores terem de se conformar às características das máquinas,
com isso, deixando-se modelar ou modelando-se a si mesmos de acordo com o
mecanismo social, traz implicações importantes para a esfera subjetiva e para o
papel que a psicologia desempenha nesse processo; tanto o fenômeno psicológico
quanto o arsenal de técnicas e ardis utilizados pela imensidão de pequenos
produtores, administradores e executores da indústria cultural remetem ao controle
psicológico das massas.
As relações de produção inerentes à indústria cultural, por vezes, subsumidas
no fetichismo dos produtos que são oferecidos às massas como propaganda de
outras mercadorias e, elas próprias, também como mercadorias culturais,
compreendem o trabalho de produção e a posse dos meios destinados a essa
finalidade; assim como os recursos necessários e a força de trabalho implicada para
a circulação, distribuição e troca dos produtos. Se, com isso, se pode reconhecer
que há relação de produção, então é também necessário reconhecer que,
consequentemente, também há emprego de força produtiva e a subseqüente
109
administração dessa força, assim como o gerenciamento das estratégias de
circulação e distribuição dos produtos; há ainda, por fim, que se reconhecer que a
indústria cultural apenas parece uma entidade independente e acéfala, mas na
verdade compreende a materialização da administração de um complexo processo
de produção no qual o conhecimento acerca da dimensão e da ciência psicológica
não é pouco importante.
A indústria cultural reduz a cultura à mera mercadoria e converte a
mercadoria cultural em propaganda de outras tantas mercadorias que precisam ser
efetivamente consumidas para que o princípio da sociedade capitalista se
concretize. A acumulação de capital somente é possível na medida em que a
produção se complementa com a exploração do trabalho, com a apropriação da
mais-valia e com consumo das mercadorias produzidas. Nesse sentido, é
importante frisar que Marx, já há muito, descreveu os modos como a produção
produz o consumo; o que a industria cultural faz é somente reproduzir essa
produção de necessidades de modo mais sofisticado. Em Introdução à crítica da
economia política, Marx apresentou uma síntese dos modos como a produção produz
o consumo:
A produção engendra, portanto, o consumo: 1 – fornecendo-lhe o material; 2 –
determinando o modo de consumo; 3 – gerando no consumidor a necessidade dos
produtos, que, de início, foram postos por ela como objeto. Produz, pois, o objeto do
consumo. De igual modo, o consumo engendra a disposição do produtor, solicitando-lhe
a finalidade da produção sob a forma de uma determinante. (Marx, 1857/1996, p. 33.)
Essa síntese da relação entre produção e consumo parece não deixar dúvidas
quanto ao fato de ainda vivermos em uma sociedade essencialmente produtiva, na
qual tanto o objeto quanta a necessidade do consumo são produzidas pelo mesmo
processo cuja finalidade última é a acumulação de capital. A despeito do papel
fundamental que o consumo assumiu na economia material e psíquica atualmente é,
ainda, sempre como condição determinada pela produção que ele se estrutura.
Agora, considerando apenas o terceiro ponto indicado por Marx – que a produção
engendra o consumo, gerando no consumidor a necessidade dos produtos – já
110
temos um elemento essencial para compreensão da indústria cultural e dos
mecanismos que ela utiliza, sobretudo dos recursos psicológicos, para produzir nas
massas às quais se dirige a necessidade das mercadorias que pretende fazer circular;
seja como propaganda, seja como meio de reprodução ou ainda como distribuição.
Essa idéia corresponde ao processo que foi observado por Adorno no pequeno
texto Indústria cultural, de 1962:
Na medida em que nesse processo a indústria cultural inegavelmente especula sobre o
estado de consciência e inconsciência de milhões de pessoas às quais se dirige, as massas
não são, então, o fator primeiro, mas um elemento secundário, um elemento de cálculo;
acessório da maquinaria. O consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de
fazer crer, ele não é o sujeito dessa indústria, mas seu objeto. (Adorno, 1962/1986, p. 93.)
Como se pode depreender da análise de Adorno, o principal produto da
indústria cultural é o próprio consumidor, ou em outros termos: as necessidades
que transformam os indivíduos em ávidos consumidores. Nesse sentido, os
departamentos de propaganda e marketing representam o coração dessa maquinaria
e todo conhecimento que possuem e utilizam a respeito da consciência e do
inconsciente das pessoas não pode ser entendido como expressão casual, mas sim
como procedimentos técnicos. O fato de nem sempre serem sofisticados, mas
muitas vezes limitados à especulação intuitiva não minimiza seu poder de
operacionalização e controle das necessidades reais das pessoas.
A massa não é um ente coletivo; são os indivíduos que efetivamente a
compõem e, estando nela submergidos, regridem a níveis psíquicos absolutamente
irracionais. Além disso, são também os indivíduos que, fragilizados pelas condições
objetivas, tornam-se vulneráveis à sedução exercida por ideologias manifestamente
falsas, como ocorreu no nazismo. O mais importante a considerar é que a adesão
dos indivíduos às massas, sobretudo às massas de pessoas isoladas em sua vida
privada; dispersas, mas coletivamente administradas por dispositivos de amplo
alcance como a indústria cultural, não é um processo fortuito, pelo contrário,
depende essencialmente da capacidade dessa indústria de oferecer dispositivos que
respondam em algum nível, em geral inconsciente e irracional, às necessidades reais
111
frustradas no processo da vida cotidiana. A captura das subjetividades
despedaçadas pela vida social é favorecida pelo conhecimento prévio que os
gestores da indústria cultural possuem acerca das necessidades reprimidas. Tanto as
necessidades vitais insatisfeitas quantos as necessidades eróticas reprimidas
constituem parte substancial da matéria-prima com a qual são forjados os recursos
utilizados por esta indústria. Com isso, a noção de falsa necessidade revela-se como
uma importante dimensão da crítica, permitindo desvelar a função e as
contradições do processo produtivo por detrás da aparente autonomia das
mercadorias produzidas pela indústria cultural. É também o fetichismo da
mercadoria que leva à percepção distorcida do consumidor, frequentemente aceita
como se fosse uma verdade em si mesma. As necessidades insufladas nas massas
com o intuito de responder aos interesses particulares de pessoas e grupos
específicos, em geral, relacionadas à acumulação financeira e ao aumento do poder
político e econômico dentro do sistema produtivo são apresentadas como
expressão natural das necessidades humanas. O desvelamento de sua falsidade deve
ser buscado por meio do confronto com o montante de necessidades objetivas
negadas por esse processo, e com o confronto com as possibilidades concretas de
supri-las ao conjunto da população.
Como Marcuse bem explicitou, um dos fatores que denunciam a falsidade
das necessidades apregoadas pela sociedade atual é o fato de se sobreporem às
necessidades vitais, mantidas aquém de suas possibilidades históricas concretas. Sua
falsidade decorre do fato de que são super-impostas por interesses externos aos
indivíduos que as acatam e reproduzem como expressão natural; apesar de
caracterizarem processos agradáveis aos indivíduos isolados, impedem o
reconhecimento da moléstia geral, causando uma sensação de euforia individualista
em meio à infelicidade generalizada; sua subordinação aos interesses produtivos
contribui para perpetuação da labuta e da miséria das massas operárias, nesse caso,
transformadas em consumidoras e alçadas à condição ilusória de sujeitos do
processo.
112
Tais necessidades falsas são mantidas por modos de satisfação também
falsos; decorrentes de estratégias de manipulação que produzem o pseudoprazer,
exploram o pré-prazer e enganam os consumidores com formas substitutivas de
satisfação. Marcuse argumentou que a maioria das necessidades comuns, as quais se
pode dizer que geralmente são inculcadas nas pessoas por meio da repetição
incessante das propagandas, responde a esse tipo de engodo, cujo resultado é a
euforia na infelicidade. Esta análise está claramente explicitada neste trecho de
Ideologia da Sociedade industrial:
A maioria das necessidades comuns de descansar, distrair-se, comportar-se e consumir de
acordo com os anúncios, amar e odiar o que os outros amam e odeiam, pertence a essa
categoria de falsas necessidades. (Marcuse, 1964/1967, p. 26.)
Oferecidas às massas por meio dos mecanismos próprios da Indústria
cultural, as situações mencionadas por Marcuse tanto servem para a produção de
outras tantas necessidades derivadas dessas, e também falsas, quanto como
consumo de certas formas de prazer que servem para alienar ainda mais o
consumidor e perpetuar a situação de escravidão em que se encontra.
A associação freqüente e abusiva do prazer à humilhação do outro, que
desperta o riso sádico e prepara o espírito para se submeter à ordem social, é uma
dessas formas essencialmente falsas de satisfação. O sadomasoquismo é
amplamente explorado pela indústria cultural nos programas de humor. A
humilhação infligida aos personagens fictícios dos programas dominicais, e das
comédias que cotidianamente repetem de forma caricatural o sofrimento das
pessoas, ameniza o impacto que o sofrimento real poderia causar, gerando ainda
um contentamento sórdido com aquelas formas de humilhação do outro e de si
mesmo. Em resposta às necessidades legítimas, que segundo Marcuse
compreendem as necessidades de alimentos, roupas e teto ao nível alcançável pela
cultura, o falso prazer impõe um poder que absorve todas essas necessidades para
as quais muitos produtos teriam valor de uso inestimável, transformando-as em
necessidades determinadas pelos interesses econômicos e políticos do capitalismo.
113
Se todos poderiam comer, vestir e se abrigar, além de possuírem condições
relativamente suficientes de proteção ante as enfermidades do corpo e as
catástrofes naturais, por outro lado, o ônus que isso implicaria em termos de
redução de conforto para uma minoria que goza das benesses decorrentes da
exploração geral, parece amplamente compartilhado pelo conjunto da população
para quem: comer, vestir e morar são ações que precisam ser respondidas por meio
das mercadorias determinadas pelo interesse do capital, e não simplesmente
satisfeitas de modo universal.
De modo geral, pode-se dizer que o consumo congrega uma base de
necessidades reais que foram modificadas devido às mediações que sofreram ao
serem incorporadas pelos mecanismos produtivos. Parte da satisfação que propicia
é, de fato, real, pois a base das necessidades que integra compreende elementos
reais, assim como, no nível particular e alienado em que se concentra, produz
efeitos que levam ao prazer individual, alienado, mas ainda assim real. Esta situação
gera um nível de problema distinto do que concerne à produção ilusória de
satisfação, pois seu julgamento somente pode advir do grau de universalização e do
desenvolvimento das potencialidades históricas; é falso na medida em que não se
estende ao conjunto da humanidade e favorece a acomodação conformista ao
sofrimento geral. Diferentemente, o prazer ilusório é falso em si mesmo na medida
em que substitui o objeto das demandas por objetos produzidos especificamente
para esse fim ou mantém o estado de excitação em um nível tal que o desejo
permaneça apenas parcial e estrategicamente satisfeito por meio do pré-prazer: a
abundante manipulação do voyerismo pela televisão, revistas, e internet atesta o poder
de integração exercido pela indústria cultural sobre esses aspectos.
No capítulo dedicado à análise da indústria cultural na Dialética do
Esclarecimento, Horkheimer e Adorno(1944/1985) desvendaram o mecanismo por
meio do qual o pré-prazer se converte em meio de manipulação do consumidor,
provocando a excitação extrema e prorrogando-a indefinidamente até que se
114
converta em masoquismo. Além de todo cuidado para com os aspectos cognitivos
da produção e consumo de mercadorias culturais, essa indústria também cuida
minuciosamente dos conteúdos libidinais. Há um controle burocrático dos
conteúdos de cunho sexual, pois em conjunto com a obstrução do pensamento –
não somente do pensamento crítico, mas de todo o pensamento que se distancie
minimamente da coisa consumida –, eles potencializam o poder do estímulo e
favorecem as trapaças impostas ao consumidor. Se nos filmes e programas de
televisão, o planejamento das peças cuida para que a percepção fique totalmente
absorvida pela seqüência repetitiva de imagens e frases estereotipadas, sem que haja
qualquer possibilidade de o consumidor se distanciar minimamente e refletir sobe o
que está consumindo, pode-se ponderar que parte do sucesso desse mecanismo se
deve à exposição de imagens carregadas de sentido sexual. O sexo é
constantemente explorado como recurso para atribuir glamour às mercadorias
padronizadas. O tamanho do biquíni das modelos ou a largura de seus quadris,
cuidadosamente exibidos do ângulo mais propício à excitação sexual,
compreendem recursos eficientes ao controle da atenção e da desatenção planejada
dos consumidores. Com isso, a padronização dos gostos acompanha a
padronização das mercadorias. A tipificação produzida pela indústria cultural
corresponde principalmente à tipificação das necessidades de consumo. Sua análise
por meio da psicologia caracteriza um momento fundamental da crítica à
massificação. Tanto por revelar que a tipificação pode ser entendida como
expressão da massificação, quanto por propiciar um giro para o indivíduo,
desvelando a impossibilidade atualmente imposta à individuação.
A propaganda fascista materializou a mudança na forma e na função da
ideologia; a propaganda conformista veiculada pelos mecanismos de comunicação
em massa e pela indústria cultural leva, igualmente, à degradação da individualidade
e favorece a adesão das massas às mentiras manifestas apregoadas pela ideologia. A
diversão e a distração tornaram-se as palavras de ordem dessa indústria. É por meio
desses recursos e do prazer alienado que conseguem fazer com que os homens
115
aceitem com mais facilidade a situação de opressão geral em que vivem. Reduzidos
à condição de principal produto da indústria cultural, à condição de consumidores,
os indivíduos já castigados pela vida social, em muitos casos privados da satisfação
adequada de suas necessidades básicas, além de sofrerem com a frustração
decorrente da impossibilidade de satisfazerem parte substantiva de seus impulsos
eróticos, tornam-se também presas fáceis da sedução exercida por quem controla
essa facção do mercado do prazer. A regressão psicológica contribui para a
produção de um consumidor, que se encontra quase sempre insatisfeito, apesar de
manter-se extremamente conformado com sua condição.
Parte 4 – A satisfação narcisista como forma substitutiva de prazer:
Excetuando-se o pressuposto tácito do qual Freud (1929/1974) partiu
inúmeras vezes, sem se ater propriamente ao que significaria tal rigidez, para a
análise do psiquismo individual e de suas implicações sociais, segundo o qual a
natureza humana possui uma estrutura a-histórica, pode-se supor que as bases
pulsionais dessa natureza, sobretudo em seus aspectos destrutivos, foram
magistralmente desvendadas por ele em sua análise do mal-estar na civilização. A
pulsão de morte, esta segunda natureza derivada diretamente das condições
histórico-sociais predominantes na história da dominação e reproduzida pelos
indivíduos por meio do processo de subjetivação da cultura à qual estão inseridos,
foi para Freud uma das mais ameaçadoras expressões universais da estrutura da
mente. Todavia, apesar da necessidade ainda urgente de aprimorar a delimitação
histórica dessa dimensão profunda do psiquismo humano, cabe reconhecer que sua
análise propiciou o mais profundo entendimento até então produzido acerca da
continuidade histórica de certos aspectos da personalidade, inclusive de
determinados traços de caráter em nada motivados pelas disposições racionais, e
também propiciou o entendimento acerca do alcance da determinação cultural
exercida pelas pulsões destrutivas sobre as experiências humanas. Pode-se
116
depreender de suas observações, o entendimento de que esta dimensão tão radical e
determinante do comportamento dos indivíduos acrescenta ao desprazer derivado
da repressão da libido sexual uma destinação fatídica cujo conhecimento e análise
são essenciais à compreensão do estado geral de descontentamento da civilização
moderna.
No que diz respeito à constituição psíquica possível ante as exigências
culturais, sobretudo em resposta às formas de ajustamento a que os indivíduos são
impelidos, pode-se considerar que a neurose – caracterizada pelos sofrimentos
mentais constituídos como formação reativa aos mecanismos de repressão das
pulsões sexuais e ao movimento genericamente repressivo produzido pelo
progresso técnico da dominação social – sempre foi mais branda ao ser humano do
que as demais alternativas a ele disponíveis: a ruptura com a realidade característica
da psicose, o estigma de anti-natureza atribuído às perversões sexuais e a saúde
mortífera subjacente à boa adaptação. Dente estas alternativas funestas, que
diferenciam, mas não superam o sofrimento mental, a perversão destaca-se por sua
aparente isenção. Para além de todas as contradições do próprio fenômeno e das
disputas interpretativas que a ele estiveram historicamente atreladas – a análise e a
intervenção psicológicas –, a insinuação de que em suas variações polimorfas
estaria encerrada uma disposição contrária ao destino natural da pulsão sexual
sempre contribuiu para tornar ainda mais escasso e impreciso o diagnóstico de
perversão sexual. Os que foram amaldiçoados com este rótulo devem se haver com
o mal-estar excedente produzido pela sociedade repressiva: o julgamento moral e o
rechaço muitas vezes preconceituoso em relação a suas disposições psíquicas. Quer
seja concebida como o negativo da neurose, como Freud (1905/1989) indicou em
Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, quer seja aceita como a negação da castração
da mulher (mãe), idéia apresentada por ele no ensaio sobre o fetichismo
(1927/1974), a perversão caracteriza a negação do mal-estar decorrente da
repressão, portanto caracteriza uma possibilidade de prazer alienado da ordem
objetiva, quer esta ordem seja compreendida como expressão da natureza ou como
117
condição social. Na análise dos percursos da pulsão sexual na neurose,
desenvolvida nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud indicou com precisão
o modo como diferenciava uma e outra psicopatologia a partir do mecanismo da
repressão:
(...) a psicanálise ensina ainda mais. Ela mostra que de modo algum os sintomas surgem à
custa da chamada pulsão sexual normal (pelo menos não de maneira exclusiva ou
predominante), mas que representam a expressão convertida de pulsões que sejam
designadas de perversas (no sentido mais lato) se pudessem expressar-se diretamente, sem
desvio pela consciência, em propósitos da fantasia e em ações. Portanto, os sintomas se
formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo
da perversão. (Freud, 1905/1989, p. 155.)
De modo semelhante quanto ao fato de neurose e perversão ocuparem pólos
opostos em relação à repressão, a análise do fetichismo indica que o fetiche seria
um substituto do “falo” da mãe, caracterizando, dessa forma, uma negação de sua
castração. Ora, por meio deste raciocínio ilusório do fetichista, a ameaça de
castração e toda a angústia que a acompanha estariam afastadas da consciência e o
mal-estar, que persegue o neurótico como sua sombra, estaria controlado pela
configuração perversa da sexualidade. A felicidade e o prazer seriam possíveis
somente aos perversos, mas não como expressão de sua liberdade e sim como
condição opressiva de suas disposições psíquicas.
Em nossa cultura, o gozo dos prazeres sexuais propiciados ao indivíduo
isolado sempre se manteve dissociado da percepção dos limites dados pela
realidade opressiva ao conjunto da sociedade. Dos senhores das casas-grandes dos
séculos XVIII e XIX, protegidos pelos códigos morais do patriarcalismo herdado
do colonialismo português, à figura despojada do Bon Vivant das modernas hordas
do consumo material e cultural, o acesso ao prazer manteve-se vinculado à posição
ocupada na hierarquia social. O poder político e econômico sempre foram os
verdadeiros baluartes da idéia de liberdade burguesa. Essa condição caracterizada
pelo acesso facilitado ao gozo de prazeres negados à massa subalterna, quando
considerada em relação a uma minoria de indivíduos cuja “sorte” decorreu de
situação financeira herdada ou se consumou como expressão de seus próprios
118
esforços de ajustamento à ordem estabelecida, não equivale simplesmente aos
excessos que por séculos foram cometidos contra os dominados – as populações
negra e mestiça escravizadas e as mulheres em geral subordinadas pelo direito
patriarcal, como outrora se consolidou na cultura das casas-grandes (Freire, 2005) -,
mas sim à elementar possibilidade de usufruir os variados prazeres que sua
condição lhes propicia. O Bon Vivant não precisaria praticar os excessos sadianos
para participar da injustiça geral. Se a justiça empreendida pelo mal-estar não lhe
acomete com a mesma freqüência com que desestrutura a vida mental do neurótico
tradicional, não se poderia por isso amaldiçoá-lo com o rótulo de perverso, mas sim
buscar na fraqueza de sua percepção da miséria espiritual geral a contradição de sua
espécie de prazer. Não é apenas por meio da associação entre o prazer – sexual,
sensual ou moral – e a crueldade propriamente dita que a violência social se exerce
sobre a massa de oprimidos, mas já está presente na espontânea entrega ao prazer
possível, sobretudo àquele que conserva a mediação da divisão de classes. Nesta, já
se pode perceber, mesmo que nenhum ato violento seja cometido, a expressão pura
da frieza burguesa. Talvez a mesma frieza que Adorno (2000) acusou estar presente
em nossa possibilidade de dormir serenamente enquanto a barbárie progride sob
nosso olhar resignado. Auschwitz também se repete cotidianamente na disposição
para o prazer e para a felicidade que é propagada aos quatro cantos do mundo
como um sacro mandamento. O Bon Vivant é apenas mais uma síntese dessas
contradições entre o direito particular ao prazer e o sofrimento geral; é a expressão
do desejo geral de partilhar das benesses do capitalismo e subsequentemente dos
prazeres que ele propicia; mas também é, ao mesmo tempo, um depositário
concreto do ódio decorrente da frustração a que as pessoas em geral estão
submetidas há séculos; é o culpado que todos precisam para mitigar a culpa geral da
civilização. Agora que a repressão não mais impede a expressão do desejo sexual e a
livre prática do sexo genital, essa ilusão de vida bem vivida por meio da entrega aos
prazeres mundanos não poderá mais estar livre do verdadeiro mal-estar,
silenciosamente pressentido como desconforto e insatisfação.
119
Este amálgama entre o desprendimento moral e o mal-estar inexplicável que
acomete cada vez mais pessoas corrobora as suposições de que parte importante
dos novos quadros psicopatológicos surgidos recentemente caracterizam estágios
fronteiriços entre a subsunção nos processos alucinatórios e delirantes, próprios
das patologias psicóticas, e a rigidez mental própria das neuroses. Esses casos
intermediários, classificados como borderlines, estão diretamente relacionados à forte
interferência do narcisismo, em geral considerado patológico, e às formas de
expressões mais direta das pulsões, especialmente das pulsões de destruição.
Entretanto, como não consta dentre os objetivos desta pesquisa discutir conceitos
derivados do âmbito da psicologia clínica, mas, ao contrário, sublinhar a relação de
determinação existente entre estas formas de regressão individual e os padrões de
exigência social que pesam sobre os indivíduos, forçando-os a aceitarem certas
condições de sobrevivência física e psíquica, vale destacar que estas evidências
clínicas fortalecem a argumentação de que as transformações ocorridas na esfera da
subjetividade deram ao narcisismo e às pulsões destrutivas mais espaço de atuação
do que à consciência. Tal como Adorno (1955/1986) argumentou a respeito da
articulação que propôs entre a psicanálise e a teoria crítica, a configuração subjetiva
predominante nas sociedades totalitárias e administradas não permite o
desenvolvimento adequado da individualidade e da subjetividade que lhes dariam
sustentação, com isso, os sujeitos têm, paradoxalmente, sua subjetividade destruída,
ficando sem condições de reagir independentemente das determinações sociais.
Segundo ele, por estarem assim constituídos, os indivíduos regredidos não
conseguem nem mesmo mediar suas ações mais simples e passam a agir de forma
reflexa. Do mesmo modo, a compulsão que tão frequentemente orienta suas ações
não é propriamente inconsciente, pois já sofreu a mediação da sociedade e
apresenta-se ajustada aos padrões por ela estipulados. Nesse sentido, pode-se
destacar que a vitória do id sobre o ego equivale à vitória da sociedade sobre o
indivíduo.
120
Ao analisar a independência relativa do ego em relação ao id e às forças
inconscientes, Adorno (1955/1986) destacou que nos processos regressivos nos
quais o ego consciente perde sua capacidade de mediação dos conflitos
estabelecidos entre as pulsões e as exigências sociais de ajustamento, ocorre uma
retirada dessa instância psíquica para o inconsciente, onde assume uma forma não-
diferenciada. Segundo ele, apesar da perda da autonomia do ego, este processo
conserva “algumas das qualidades que adquiriu como agente social”, porém sua
conservação depende do fato de permanecerem submetidas ao primado do
inconsciente. Contudo, mesmo absorvidas por esta dinâmica, ainda permanecem
carregadas de conteúdos remanescentes da formação social da qual provieram,
sobretudo no que se refere à forma que desenvolveram para se adaptarem às
exigências sociais; as funções egóicas assim regredidas adicionam à dimensão
inconsciente elementos externos à sua lógica, modificando-a substancialmente:
Con la trasposición del yo al inconsciente se transforma, además, la calidad de la pulsión,
la cual por su parte es desviada hacia objetivos yoicos propriamente dichos que
contradicen aquello hacia lo que se dirige la libido primaria. (Adorno, 1955/1986, p. 64.)
De acordo com esta argumentação, a regressão do indivíduo provoca danos
diretos e explícitos à dimensão da consciência, pois os indivíduos se vêem
impossibilitados de enfrentar as imposições que lhes são feitas pela sociedade. Com
isso, algumas funções egóicas como a percepção da realidade e a mediação de
conflitos ficam comprometidas: ora ficam sujeitas a distorções, como ocorre com a
subordinação do processo perceptivo à direção externa exercida pela racionalidade
técnica, ora ficam totalmente debilitadas, como ocorre com a deterioração da
capacidade de mediar racionalmente os impulsos e as exigências sociais, o que a
aproxima da estrutura do delírio paranóico, impossibilitando uma ação autônoma
frente às exigências de adaptação social. Mas, além dos danos impingidos à esfera
da consciência e à instância psíquica que seria responsável por sustentá-la como
expressão da autonomia do sujeito, o impacto da fusão entre o ego e o id,
desencadeado pela ação de forças sociais objetivas que impedem a sólida
constituição do eu e impossibilitam os indivíduos de poderem viver sem medo,
121
atinge as camadas mais recônditas do psiquismo, modificando substancialmente a
qualidade das pulsões. Consequentemente, a liberação das pulsões, tão propalada
pela moderna moralidade permissiva, fica subordinada à pré-delimitação que define
a forma que devem ter para que possam, efetivamente, ser liberadas. Não são
quaisquer pulsões que serão aceitas na dinâmica social, nem tampouco sob as
condições que o sujeito definir. O ajustamento do indivíduo à sociedade permissiva
implica no ajustamento das pulsões à forma de regressão requerida pela sociedade;
por isso, as formações reativas também se modificaram substancialmente no último
século e estão sofrendo novas modificações com a solidificação das novas
condições antropológicas. A cristalização dessa nova superestrutura está atingindo
um grau bastante avançado de cooptação das forças de resistência, pois com a
subordinação das pulsões aos princípios e forças que governam o mundo, a
herança humanista que ainda permite chamar de humanas às pessoas que se
formam sob estas condições tenderá rapidamente a desaparecer. A mediação
exercida pela sociedade sobre a constituição do psiquismo individual estabelece as
configurações pulsionais que melhor respondem a suas necessidades de
reprodução, enfraquecendo a própria disposição para a diferença qualitativa em
relação ao todo hegemônico. Neste contexto, o narcisismo se destaca como um dos
principais mediadores dos novos padrões libidinais. Sua função no psiquismo
constituído sob a ameaça de dissolução favorece a expressão das pulsões
internamente modificadas, expandindo retroativamente sua força e importância
para a autoconservação:
La figura de la energia pulsional, que apuntala el yo – según el tipo anáclitico freudiano –
quando procede al más alto sacrificio, el de la conciencia, es el narcismo. (Adorno,
1955/1986, p. 64.)
A busca compulsiva por prazer, que frequentemente se associa à não-
diferenciação de seu objeto, responde mais claramente às necessidades do próprio
sujeito em reafirmar sua existência do que à sua disposição por obter experiências
gratificantes. O sexo dessexualizado não se dirige a objetos diferenciados, mas sim
a instrumentos que permitam ao sujeito responder a suas necessidades psicológicas
122
insatisfeitas. A mediação social representada pela experiência objetiva do sacrifício
eleva o narcisismo à condição de formação reativa; não propriamente
psicopatológica, pois sua exacerbação favorece o ajustamento aos padrões de
normalidade estabelecidos pela pseudocultura, mas certamente destrutivo, pois
impede a própria experiência. O sacrifício da consciência decorre dos muitos
sacrifícios que historicamente foram exigidos do indivíduo para garantir sua
autoconservação e que, após a conquista das condições materiais para isso,
permaneceram sendo requeridos como condição de existência. Sua função, a de
amenizar o sofrimento incomensurável presente na realidade objetiva, partilhado
pelos indivíduos que, mesmo a contragosto, o percebem, é complementada pelos
mecanismos psíquicos que os levam a se sentirem mais fortes do que efetivamente
são.
Dentre os mecanismos que acionam o narcisismo, o estabelecimento de
vinculações regressivas no interior das massas é apontado por Adorno (1951/2006)
como uma contrapartida à aniquilação do indivíduo:
O “empobrecimento” psicológico do sujeito que “se entregou ao seu objeto”, o qual
“substituiu seu componente mais importante”, isto é, o supereu, antecipa quase com
clarividência os desindividualizados átomos sociais pós-psicológicos que formam as
coletividades fascistas. Nesses átomos sociais, as dinâmicas psicológicas da formação do
grupo foram para além de si mesmas e não são mais uma realidade. (Adorno, 1951/2006,
p. 188.)
Ao verificar a correlação entre a ideologia da racionalidade tecnológica e a
personalidade narcisista, dimensões social e individual da deterioração da
autonomia e expressões do declínio da própria esfera da individualidade, Crochík
(1999) enfatizou que “o sofrimento acarretado pelo mundo externo colabora com a
volta ao narcisismo” (p.98). Segundo sua análise, não é na busca por gratificação
imediata, tão comum ao indivíduo narcisista, que devemos procurar compreender a
gênese deste fenômeno tão disseminado atualmente, mas principalmente nas
condições objetivas sob as quais os indivíduos se constituem. A complementação
ex officio entre as ameaças cotidianas que objetivamente compelem os indivíduos à
defesa desesperada de sua sobrevivência e a falta de possibilidades concretas de
123
participarem com o mínimo de autonomia das esferas de decisão que governam
suas vidas práticas caracteriza um limiar novo, no qual o ego e o id encontram-se
indiferenciados e, consequentemente, também incapacitados de expressarem suas
demandas de forma espontânea. Como a sociedade não oferece aos indivíduos a
possibilidade de viverem sem medo, os mecanismos de defesa tornam-se
preponderantes na configuração geral da personalidade; dentre eles, o narcisismo
destaca-se como o processo que melhor articula a racionalidade do sistema social,
interiorizada como forma natural do pensar, e os elementos pulsionais acionados
como parte do processo de retorno da libido para o próprio ego, ou melhor, para o
novo órgão mental constituído pela fusão e regressão múltipla do ego e do id.
Empenhado em desfazer a aparente contradição entre o hedonismo
preponderante na sociedade contemporânea e a conceituação do narcisismo como
processo defensivo, Costa (1984/2003) desenvolveu ponderações importantes a
respeito do modo como o prazer socialmente consentido e, por vezes, também
estimulado, se relaciona com o sofrimento e com a ameaça de morte:
O narcisismo moderno, dissemos, é um narcisismo defensivo, voltado para o
investimento do corpo, que se tornou foco de sofrimento e ameaça de morte pela ação da
violência. Essa hipótese choca-se aparentemente com as teses sobre o hedonismo da
sociedade contemporânea. Porém, a nosso ver, esta faceta vendável da ideologia do bem-
estar é divulgada para dissimular o medo do sofrimento e da morte, que apavoram o
indivíduo moderno. (Costa, 1984/2003, p. 235.)
Segundo pode-se depreender de sua análise, a intensa estimulação da idéia de
que o corpo é uma fonte infindável de prazer é parte de uma ideologia do bem-
estar diretamente relacionada à ocultação do medo, do sofrimento e da morte que
apavoram o indivíduo. O mal-estar na civilização denunciado por Freud
(1929/1974), expressão genérica da incompatibilidade entre os interesses do
indivíduo e os interesses da civilização inevitavelmente repressiva, não se diferencia
da mais-repressão denunciada por Marcuse (1955/1981), formando uma condição
que é insuportável para os indivíduos senão por meio da alienação e da subsunção
em formas de prazer ajustadas aos mecanismos de opressão. O prazer obtido às
expensas da mutilação da própria consciência e alçado à função de síntese entre a
124
necessidade de uma sobrevivência a todo custo e a experiência objetiva da
impossibilidade de uma existência digna é matéria-prima da sexualidade
dessualizada; é um dos meios pelos quais os indivíduos sucumbem ao conformismo
generalizado. Se considerarmos a indicação de Crochík (1999) de que “é a
diminuição do sofrimento que permitiria ao indivíduo voltar a se relacionar com o
mundo” e de que para efetivação deste processo “a satisfação das pulsões sexuais,
sublimadas ou não, seria prioritária” (p. 100), teremos mais elementos para
compreender o papel essencial que o narcisismo exerce tanto na economia psíquica
do indivíduo quanto na sustentação de certas formas coletivas de ilusão,
intrinsecamente associadas aos mecanismos de dominação social. Crochík conclui
esta análise da base objetiva do narcisismo e dos elementos que deveriam ser
superados para que também se pudesse ultrapassá-lo, indicando que, sem a
mediação do sofrimento, a satisfação das pulsões sexuais não remeteria
necessariamente à autoconservação, de modo que poderia, com isso, representar
outras possibilidades de prazer compatíveis com a consciência.
Na medida em que cumpre uma função integradora e estabelece conexões
internas entre as necessidades subjetivas insatisfeitas e as formas falsas de
gratificação que a pseudocultura oferece, o narcisismo contribui para a mobilização
dos mecanismos de defesa, acionados como reação ao estado geral de tensão, e
fornece parte substancial da base psíquica das formulações ideológicas que
transfiguram o individualismo em expressão de liberdade e de realização pessoal.
Em inúmeras circunstâncias, ele próprio se configura como um mecanismo de
defesa. Bloqueia a relação entre o indivíduo narcisista e os outros com os quais
entra em contato em situações cotidianas e impede a formação de vínculos afetivos
duradouros, tornando comum a redução do outro à condição de objeto, como
comumente ocorre no caso da dessexualização. De modo geral, pode-se dizer que o
narcisismo, por suas próprias propriedades, mas também devido à conexão que
estabelece com os conteúdos sadomasoquistas, cumpre uma função central nas
principais categorias que constituem a dessexualização e favorecem o
125
conformismo, estabelecendo uma intensa forma de interação com as pulsões
destrutivas e com a racionalidade tecnológica que arregimenta e administra estas
diferentes formas de regressão em um todo social aparentemente harmônico e
supostamente satisfatório.
4.1 – A imagem da modelo anoréxica que invade o cotidiano das massas,
provocando fascínio e repulsa, por meio do aparato midiático da indústria cultural,
da qual, em parte, também é produto, é uma dessas expressões limítrofes da
regressão egóica. Situa-se entre o narcisismo e outras configurações
psicopatológicas formadas pelo mesmo processo de deterioração da identidade do
Eu, com a subseqüente fusão das esferas da percepção, consciência e decisão,
outrora privativas do ego, e os mecanismos compulsivos que remetem às pulsões.
Todavia, tal fusão ocorre por meio do empobrecimento de uma e de outra esfera,
de modo que, em consonância com a crítica de Adorno (1955/1986), pode-se dizer
que os indivíduos nestas condições de regressão não são nem autoconscientes,
dignos de um eu efetivamente constituído e minimamente autônomo, nem
tampouco inconscientes – como se poderia esperar de uma autonomização do id –,
mas sim formações reflexas erigidas ante as determinações objetivas que ameaçam
o tênue equilíbrio psíquico que ainda conseguem manter para efetivar sua
adaptação.
O fascínio pela beleza atribuída aos contornos e detalhes do corpo bem
delineado acompanha a humanidade desde fases muito remotas de seu
desenvolvimento cultural. O ideal de belo natural é frequentemente identificado a
certos estereotípicos que em épocas específicas se tornam hegemônicos. Com
freqüência, o primor dos detalhes físicos, socialmente estabelecidos como os mais
importantes atributos da beleza, encanta o apreciador de gosto apurado segundo os
critérios da determinação cultural. Transformado pelo delírio nazista em critério
eugênico de pureza étnica, o ideal de beleza assim cristalizado guarda semelhança,
ao menos superficial, com os ideais de beleza da cultura grego-romana. O mito de
126
Narciso pode ajudar-nos a perceber essa proximidade. Em nossa atualidade
caracterizada pelo elogio da diversidade estética, a violência exercida contra os que
possuem diferença demasiadamente notória não mais se associa de forma tão
explícita a argumentos pretensamente estéticos. Entretanto, os estereótipos de
fealdade e beleza ocupam papel importante na delimitação dos padrões de beleza
almejados por grande parte da população que encontra nos artistas da indústria
cultural modelos de comportamento e ideais de beleza aos quais deliberadamente
imitam. A relevância dessa dimensão é indicada pelo poder de determinação que
essas imagens veiculadas pela mídia possuem na formação dos jovens, adquirindo
importância ainda maior quando aceitos como mediadores essenciais da
sexualidade. Tornou-se comum as pessoas preocuparem-se mais com a semelhança
da própria imagem, ou do outro com a qual se relacionam, com alguns dos
estereótipos exaustivamente apresentados pela televisão do que com a pessoa
propriamente dita, com a peculiaridade de suas formas e detalhes particulares de
sua aparência. O culto narcisista do corpo está sempre remetido a algum modelo
inspirador, não por acaso transformado em herói da telenovela de sucesso. A
beleza atlética pode dispensar o cuidado com a saúde do corpo, e mesmo os
procedimentos que a classificariam como tal, mas de modo algum pode prescindir
da semelhança artificial com os ideais midiáticos. Talvez não haja tantas
semelhanças entre a síndrome narcisista descrita por Freud e o lúgubre fascínio pela
beleza no Mito de Narciso, mas é também a morte em nome da beleza idealizada
que a síndrome narcisista da modernidade ajuda a produzir. Segundo o Mito
narrado por Ovídio (Hamilton, 1999), o jovem Narciso, cuja beleza encantava a
todos que o observavam e, mais ainda, à ninfa Eco que por ele se apaixonou sem
que tivesse conseguido alcançar qualquer reciprocidade, também se entregou à
busca mais intrépida daquela beleza que leva à morte:
A mim cobiço e tenho: pobre e rico de mim. Quero evadir meu corpo, desejo estranho
num amante! Separar-se daquilo mesmo que ama. Agora a dor me vence. Exaurido de
amor, expiro em minha aurora. A morte não me pesa, alivia-me as penas. Quisera
127
perdurar naquele a quem adoro: ambos, num só concordes, morreremos juntos. (Ovídio,
1994)
Narciso não pôde suportar o encarceramento em si mesmo, no objeto de seu
desejo, e entregou-se à morte como meio de apropriação da imagem pela qual se
apaixonou. Morrer junto à imagem de si, ardentemente desejada, mas inatingível,
parece ser um dos símbolos emblemáticos do moderno culto da beleza. As águas
límpidas que refletiam a imagem de Narciso em nada se parecem com as turvas
parafernálias que projetam as imagens idealizadas da beleza que as pessoas buscam
desenvolver em si mesmas. Os narcisistas do mundo administrado limitam-se
simplesmente a refletir a imagem que lhes é mostrada como seu ideal. O ideal é
externamente apresentado e não precisa ser introjetado pelo sujeito que, despojado
de subjetividade suficiente para tal operação mental, somente o reflete. O intenso
condicionamento do corpo, que hoje produz a figura assombrosa da modelo
anoréxica, é apenas a camada mais superficial do condicionamento do psiquismo.
O encontro com a morte em conseqüência da busca desenfreada de inúmeras
jovens que pretendem reproduzir em si mesmas a imagem ideal explorada pela
indústria cultural parece indicar algo mais a respeito da semelhança entre a eugenia
nazista, a morte de Narciso e a síndrome narcisista revelada pela psicanálise
freudiana. O investimento da libido no próprio ego, comum ao indivíduo narcisista,
é um fenômeno subjetivo que certamente é produzido em razão de condições
objetivas, como a ameaça à autoconservação; contudo, nos atuais fenômenos de
identificação com os ideais de beleza física propalados pela mídia, em cuja estrutura
a autopreservação parece ser colocada em segundo plano, parece faltar um ego que
receba a libido investida e, em seu lugar, encontra-se um empobrecido ideal social,
padronizado segundo os interesses mercantis, que absorve toda a energia erótica do
indivíduo, impulsionando-o à morte; não apenas à morte consumada pela falência
das funções orgânicas vitais, mas à morte culturalmente legitimada do corpo: do
corpo morto (Horkheimer e Adorno, 1944/1985), que não mais abriga um espírito,
128
uma subjetividade capaz de legislar sobre si mesma, milimetricamente planejado de
acordo com as medidas do caixão.
Parte 5 – O sadomasoquismo como forma da “consciência feliz”
Os fenômenos de massa relacionados à busca desenfreada pela gratificação
dos interesses egoísticos, hoje predominantes em âmbito global, contribuem para
que as configurações subjetivas que lhes são subjacentes, em geral constituídas por
meio do processo de subjetivação da cultura hierarquizada, se tornem manifestas.
De modo bem mais ameno do que seus predecessores imediatos – os fenômenos
psicossocias regressivos produzidos pelos regimes políticos totalitários –, os
padrões de personalidade hoje em ebulição contribuem decisivamente para a
continuidade daqueles traços de caráter que imperaram na sociedade que produziu
Auschiwitz. Frente a estas modernas variações da barbárie, as considerações de
Adorno, Horkheimer e Marcuse a respeito da frieza inerente à racionalidade técnica
ainda permitem compreender a transposição das reações emocionais, formadas em
resposta às exigências sociais objetivas, para as camadas mais profundas da
personalidade. Não obstante o fato de estas camadas conservarem regras de
funcionamento interno relativamente independentes da lógica que rege as relações
objetivas, ainda assim são modificadas em sua estrutura e em sua forma; não apenas
por absorverem os conteúdos socialmente mediados, que interferem
substancialmente em suas disposições gerais, mas também por terem sua forma
determinada pelos fatores históricos e culturais que regulam as esferas da moral e
da autoconservação. No mundo administrado, a frieza assumiu proporções tão
imensas que até mesmo o prazer mais insignificante já a traz incrustada em sua
forma. A frieza burguesa, que outrora estava principalmente presente na esfera das
relações de trabalho e de produção, expandiu incomensuravelmente para a
dimensão subjetiva dos indivíduos. Instalada em seu interior, passou a contribuir
para a constituição de um novo limiar de prazer; ínfimo em seus propósitos
129
egoístas, os quais frequentemente são obtidos por meio da indiferença ou da
própria crueldade. O tipo de prazer constituído sob a influência intensiva da
dominação social, difundida nas mais variadas formações culturais da sociedade
administrada, libera proporções cada vez mais elevadas das pulsões destrutivas.
Nesse sentido, para análise desse processo regressivo, destaca-se a análise que
Marcuse (1955/1981) realizou, em Eros e civilização, a respeito do papel das
pulsões destrutivas na organização da sociedade; apesar de suscitar somente a
desordem subjacente à destruição, que, remete à produção de guerras e mortes, a
pulsão de destruição assim liberada também produz reações subjetivas de
contentamento, favorecendo uma maior aceitação dos resultados de seu domínio
sobre parte dos indivíduos que, outrossim, são suas vítimas:
A destrutividade socialmente canalizada revela assiduamente a sua origem num impulso
que desafia toda a utilidade. Por baixo dos múltiplos motivos racionais e racionalizados
para a guerra contra os inimigos nacionais e grupais, para a conquista do tempo, do
espaço e do homem, o parceiro mortal de Eros torna-se manifesto na persistente
aprovação e participação. (Marcuse, 1955/1981, p. 64.)
A relação entre o contentamento derivado da canalização social da
destrutividade e a irracionalidade que compromete a própria continuidade desta
forma de contentamento constitui um campo complexo. Engloba diferentes graus
de associação e complementação entre a pulsão de destruição e o prazer que, por
vezes, é extraído dessa articulação. Atento em relação aos elementos da natureza e
da cultura substancialmente distintos dos padrões exigidos pela sociedade
unidimensional, inclusive aos aspectos da sexualidade que possam representar
diferença qualitativa quanto aos princípios de realidade e de desempenho cunhados
pela organização repressiva da sexualidade, Marcuse (1955/1981) reconheceu a
natureza perverso-polimorfa da pulsão sexual, acusando a presença de elementos
contrários ao princípio da dominação. Assinalou que, contrariamente à organização
social repressiva da pulsão, as perversões sexuais desafiam o princípio de
desempenho imposto por essa sociedade e defendem o prazer pelo prazer; a
sexualidade como um fim em si mesmo. Contudo, supondo que na sociedade atual
a liberação das perversões poria em risco não apenas a utilização da energia sexual
130
para a organização da produção, mas a própria civilização, isto devido ao fato de
estas pulsões terem se tornado incompatíveis com o modo de organização da
sociedade, ele argumentou que, neste contexto, também “as perversões sugerem a
identidade básica de Eros e instinto de morte, ou a submissão de Eros ao princípio
de morte” (1955/1981, p. 62.).
Considerando que esta contradição denunciada por Marcuse, de fato,
provém da realidade e que, nas atuais circunstâncias históricas, é preciso reconhecer
a preponderância do princípio da morte sobre os processos de liberação da
sexualidade que porventura transcorram sob o princípio repressivo de organização
da sociedade e, em especial, sua extensão ao âmbito das perversões sexuais – desse
modo, neutralizadas quanto à sua capacidade de desestruturação do princípio de
desempenho –, pode-se argumentar que a subjugação da sexualidade às pulsões
destrutivas solidificou-se como condição geral do processo de dessublimação
engendrado pela sociedade tecnológica. Nesses termos, cabe ponderar até que
ponto o problema da submissão de Eros ao princípio da morte é um fenômeno
específico das perversões sexuais ou, ao contrário, é um processo geral relacionado
ao conjunto das expressões “normais” da sexualidade e também extensivo ao
campo das perversões sexuais. Se adotarmos a segunda opção, como é intenção
desta análise sugerir, devemos subsequentemente reconhecer que o
sadomasoquismo, comumente considerado um tipo especial de perversão sexual,
pode ser compreendido como um modo de expressão da sexualidade que vai além
do âmbito das perversões, configurando-se como uma das formas-padrão de
associação da sexualidade dessublimada sob a orientação da sociedade repressiva
com a organização técnica da cultura.
Os jogos e fantasias sexuais comumente denominados sadomasoquistas,
variações da prática sexual que remetem ao tênue limiar entre o prazer e o
sofrimento, são apenas alegorias do prazer bem adaptado às condições gerais de
sofrimento; em sua versão inteiramente reificada, como valor de troca exótico, esse
131
modo de satisfação sucumbe às imagens comerciais fixadas pelos filmes
pornográficos e ao fascínio dos bizarros artefatos que decoram os sex shoppings,
antes de tudo, contribuindo para avolumar os lucros da indústria do sexo. A
difusão cultural da imagem da mulher sensual, com traços delicados e corpo
exuberante, trajando ousados “trajes” em couro, botas, maquiagem pesada e de
aparência hostil e o chicote com que submete o másculo escravo freqüentemente
também fustigado por objetos pontiagudos, apenas indica a falta de seriedade dessa
representação sexual da dominação. A crueldade e submissão realmente existentes
dispensam a palmada consentida e a esperada mordida nos mamilos, meros clichês
cunhados pela industrial cultural. Pode obviamente manipulá-los, mas, hoje, no
mundo que produz homens-bomba e assassinos seriais, o sadomasoquismo não é
redutível aos clubes privativos da sub-cultura S/M ou às fantasias sexuais
administradas pela indústria pornográfica; está presente em cada minúsculo gesto
de indiferença por meio do qual o prazer ínfimo se afirma. Da mesma indiferença
que se transformou na base antropológica que consentiu com a existência
Auschwitz.
Na análise dos tipos que obtiveram alto escore na escala F, Adorno e
colaboradores (1950/1965) desenvolveram uma tipologia que indicou diferentes
síndromes em relação ao autoritarismo e ao fascismo. Apesar de ter encontrado
maior incidência de tipos como o convencional e o autoritário, foi o tipo
manipulador, encontrado em menor incidência, o que considerou potencialmente o
mais perigoso, principalmente porque apresenta, além do acentuado narcisismo
regredido à fase anal, estereotipia extrema e cisão afetiva. Segundo ele, esse tipo
tende a conciliar certa eficiência técnico-administrativa com a ausência de emoções
e exagerado realismo. Neste caso, a relação entre a neutralidade da técnica e a
destrutividade de sua utilização parece mediada principalmente pela indiferença
frente à crueldade e ao sofrimento. Traços de sadismo estão presentes na aceitação
dessa suposta neutralidade técnica. A descrição que Adorno e colaboradores
apresentaram do caráter manipulador pode ajudar a compreender a relação que o
132
sadomasoquismo mantém com a racionalidade tecnológica e, consequentemente,
com a cultura que a utiliza abusivamente:
Los aspectos técnicos de la vida ya las cosas qua “instrumentos” están cargados de libido.
Lo importante es “hacer algo”, con profunda indiferencia en cuanto al contenido de
aquello que se hará. Esta pauta se observa en numerosos hombres de negocios y también
en número creciente de miembros de la ascendente clase tecnológica y administrativa
que, en el proceso de la producción, cumplen una función intermedia entre el
proprietario e antaño ya la aristocracia obrera. (Adorno et al., 1950/1965, p. 715.)
Considerando a infiltração da visão tecnicista da realidade na própria
configuração psíquica do caráter manipulador, como indicado por Adorno e
colaboradores (1950/1965), assim como a relação desse elemento com o
desenvolvimento de traços sadomasoquistas de personalidade dos indivíduos em
geral, torna-se interessante recorrer à análise que Marcuse (1964/1967) elaborou a
respeito da vinculação da racionalidade técnica com as pulsões destrutivas. Em sua
análise da constituição da “consciência feliz”, ele ressaltou a centralidade da
indiferença em relação ao sofrimento alheio. Subsumida nos padrões de eficiência e
de produtividade, a indiferença mantém-se, segundo ele, subjacente à suposta
neutralidade da técnica. Dada a importância que essa dimensão adquiriu no
cotidiano do homem moderno, pode-se concluir que a pulsão de destruição,
analisada por Marcuse como o substrato que propicia a dominação técnica, tende a
se tornar hegemônica, convertendo-se na principal mediação das relações
cotidianas associadas à utilização da racionalidade técnica. Marcuse argumentou que
“um homem pode dar o sinal que liquida centenas de milhares de criaturas, depois
se declarar livre de qualquer dor na consciência e viver feliz daí por diante”
(Marcuse, 1964/1967, p. 88). A ausência de má-consciência ante a barbárie se
sustenta na liberação simultânea da sexualidade e da agressividade reprimidas ou
sublimadas. Neste ponto, cabe o questionamento a respeito da relação ou, talvez,
sobreposição de suas variáveis: a frieza derivada da apatia de indivíduos para os
quais o destino do objeto (vítima) é indiferente, e a frieza relacionada ao prazer
sádico ou masoquista propiciado por meio da acomodação à hierarquia social que
guarda certa ambigüidade em relação ao poder; conserva a possibilidade
133
complementar de ser sádico e masoquista no desempenho de uma mesma posição
na hierarquia.
Com a operacionalização do pensamento e o controle da afetividade a ela
atrelada, o mecanismo de integração das forças de oposição ao sistema estabelecido
também se estende ao campo da sexualidade. A dessublimação repressiva se
converte no principal meio de sustentação subjetiva do progresso da dominação
tecnológica. A manipulação pulsional se estende tanto à agressividade sádica,
dirigida para o exterior, quanto para a autodestruição masoquista, voltada para o
interior do próprio indivíduo. A introjeção da racionalidade técnica deteriora a
capacidade perceptiva da realidade, favorecendo a agregação de modos de
satisfação que associam a sexualidade e a crueldade. Se, como indicado por Marcuse
(1964/1967), as pulsões destrutivas realmente compõem grande parte “da energia
que alimenta a conquista técnica do homem e da natureza” (p. 88), é, sem dúvida,
essencial analisar o papel assumido por essas pulsões em uma cultura cujo processo
de dessublimação está atrelado ao progresso tecnológico. É possível supor que os
produtos desse progresso, bem como as conquistas culturais atreladas à
dessublimação, tragam as marcas desses impulsos destrutivos: primeiro, porque as
condições materiais que os determinam são resultantes da dominação técnica –
nesse caso, também das pulsões a ela atreladas –, segundo, porque a integração da
esfera cultural – outrora suficientemente distanciada das condições de existência,
portanto formada como uma alienação da alienação – foi realizada por meio da
dessublimação controlada; e o que deste modo é liberado já é pré-formado pela
racionalidade do sistema opressivo. A totalidade da vida humana fica submetida à
mesma racionalidade que garante o funcionamento, a eficiência e a produtividade
do sistema social, constituindo um espírito objetivo destrutivo.
Apesar de progredir a partir da manipulação das condições subjetivas
historicamente cristalizadas, do homem aprisionado em relações sociais reificadas, a
cultura materialmente determinada adquire poder de determinação. A violência que
134
a cultura sorveu dos indivíduos e canalizou para a esfera da produção material e
espiritual converte-se em um poder totalitário que volta para eles como
universalidade, acentuando ainda mais a força da agressividade que continham em
si mesmos como herança das culturas passadas. Como Marcuse (1964/1967) bem
indicou, a tecnologia interfere na produção de padrões de pensamento e de
comportamento que permanecem intrinsecamente atrelados ao propósito da
dominação social:
A dinâmica incessante do progresso técnico se tornou permeada de conteúdo político e
o Logos da técnica foi transformado em Logos da servidão contínua. A força libertadora
da tecnologia – a instrumentalização das coisas – se torna o grilhão da libertação; a
instrumentalização do homem. (Marcuse, 1964/1967, p. 155.)
Em decorrência da instrumentalização dos homens, processada
inicialmente no interior das relações produtivas, também a esfera subjetiva sofreu o
impacto e a modelagem provenientes da determinação social. Tanto a dimensão
cultural quanto a constituição dos próprios indivíduos, no âmago de sua
singularidade, passam a ser mediadas pelo Logos da técnica que pré-forma e
deteriora os órgãos mentais. Os inúmeros mecanismos culturais que hoje medeiam
e determinam a formação dos indivíduos trazem incrustados em sua configuração
os determinantes políticos e econômicos. A exigência de que as pessoas se adaptem
às condições de funcionamento da sociedade está presente em todas as etapas do
desenvolvimento humano, inclusive em suas relações afetivas mais precoces. Pode-
se dizer que a frieza atinente à razão formal tornou-se incomensuravelmente mais
decisiva para a constituição psíquica dos indivíduos que vivem e se desenvolvem na
sociedade industrial avançada. Se no período de expansão do capitalismo liberal já
havia a supressão do pensamento crítico pelo esquematismo da razão, na sociedade
administrada, os efeitos da regressão da razão podem ser percebidos explicitamente
no comportamento de indivíduos que desenvolvem formas de conduta, não apenas
irracionais e contrárias a seus interesses de autoconservação, mas constituídas a
partir de determinações culturais que tornam a presença da crueldade nas relações
humanas uma condição natural. Na medida em que os mecanismos culturais são
135
desenvolvidos de acordo com a forma de racionalidade própria do sistema
produtivo, a formação predominante torna-se, principalmente, formação para a
barbárie.
Configurados a partir da determinação objetiva, proveniente das esferas do
trabalho e das atividades que visam assegurar a sobrevivência física e psíquica, os
conteúdos psicológicos mobilizados permanecem submetidos à dinâmica psíquica
privada, distintamente do que seria uma relação direta do tipo estímulo-resposta.
Com a debilidade do ego e o empobrecimento do inconsciente, a socialização das
pulsões leva os indivíduos a agirem de modo reflexo em relação à totalidade a que
estão submetidos; isto, contudo, não é o mesmo que uma modelagem behaviorista
do comportamento, pois pressupõe a apropriação de necessidades psíquicas
susceptíveis ao controle externo que favorece a adaptação e deteriora a
subjetividade. A autoconservação voltada para a competição profissional e ajustada
à lei do mais forte, assim como prazer somente permitido nessas condições,
incorpora estes conteúdos sociais em suas respectivas dinâmicas, constituindo uma
base operacional que absorve a contradição entre os interesses individuais, desde a
interioridade psíquica determinados, e os interesses da sociedade opressiva; ambos
reproduzem a irracionalidade do todo.
Caracterizando uma “consciência feliz”, correspondente ao espírito
destrutivo, a capacidade de extrair prazer de condições de existência deploráveis se
ajusta à forma da racionalidade tecnológica introjetada; associa a indiferença
burguesa presente na neutralidade formal da técnica ao prazer individual,
dissociado da universalidade. Além de garantir a sobrevivência psíquica também
estabelece um modo de satisfação que não cessa ante a repetição ubíqua das
inúmeras formas de subordinação e controle. A obscenidade explícita com que o
prazer sexual é repetidamente afirmado na atual configuração da cultura denuncia a
condição subserviente a que foram reduzidas as temerárias manifestações sexuais.
O gozo, previamente concedido, comumente dispensa a conservação do objeto do
136
desejo, aferrando-se a algum dos substitutos estrategicamente fixados por meio dos
recursos da indústria cultural. O prazer que não mais precisa de objetos específicos
também dispensa a possibilidade de se vincular a dimensões do psiquismo
comprometidas com a preservação e expansão da vida como poderia ser esperado
da vinculação com a ternura. Imbuídas de uma racionalidade formalizada, que
rejeita o movimento do pensamento e enaltece a técnica como finalidade última do
entendimento, as novas tecnologias de controle da sexualidade produzem modos
de satisfação sob-medida, não apenas equivalentes às necessidades postuladas pela
natureza implacável, como insinuam as declarações de contentamento daqueles que
se conformam com a ruína do próprio desejo, mas essencialmente complementares,
como a imagem implacável de natureza que lhes foi estrategicamente atribuída
deixa entrever quando confrontada com a padronização extrema das necessidades
predominantes.
Indiferentes quanto às catástrofes sociais objetivamente evitáveis, que
cotidianamente atualizam a ameaça de aniquilação generalizada, as pessoas bem
ajustadas às exigências da sociedade conservam intactas sua capacidade de extrair
prazer de condições de vida em que a própria experiência da vida é negada. A falta
de percepção da universalidade constitui-se nesses casos como condição
indispensável para que o prazer seja possibilitado. A frieza sádica do prazer obtido
mediante a dor infligida a outrem parece decorrer da incapacidade de se
autoperceber como parte da universalidade submetida à tortura. Essa condição
parece subjugar o mecanismo da apatia à ameaça objetiva de aniquilação física.
Séculos de experiência de pavor podem ser reavivados com isso. A conseqüência
lamentável desse processo foi indicada por Horkheimer e Adorno (1944/1985) em
uma passagem memorável da Dialética do esclarecimento:
Em vez de se aliar à ternura, o prazer se alia à crueldade, e o amor sexual torna-se aquilo
que ele sempre foi, segundo Nietzsche: “em seus meios, a guerra; em seu fundo, o ódio
mortal dos sexos”. “No macho e na fêmea”, ensina a zoologia, “o ‘amor’ ou a atração
sexual é originalmente e sobretudo ‘sádico’; sem dúvida, é próprio do amor infligir dor;
ele é tão cruel como a fome”. Assim a civilização nos traz de volta à natureza terrível
como se este fosse seu último resultado. (Horkheimer e Adorno, 1944/1985, p. 107.)
137
Cabe ponderar que o retorno à natureza terrível, insinuado pelas repetições
de reações primitivas, traz a mediação da civilização esclarecida, portanto não
equivale a suas predecessoras formas arcaicas; nas palavras de Horkheimer e
Adorno “já não são mais primitivas, mas bestiais” (1944/1985, p. 93). A manifesta
irracionalidade da equação lógica que faz convergir o progresso técnico e a
violência desmedida não se sustentaria se não obtivesse correspondência na
dimensão subjetiva. Processos psicológicos relacionados à dinâmica das pulsões são
mobilizados em torno das determinações sociais, ajustados ao seu modo de
funcionamento e submetidos aos interesses de propagação do capital. Os aspectos
cognitivos implicados na racionalidade introjetada e subministrados em situações
comuns do cotidiano associam-se aos conteúdos psíquicos mais recônditos,
constituindo-se como um canal de expressão de parte desses conteúdos. As
necessidades psíquicas são submetidas à ordenação irracional da racionalidade que
rege o sistema. Tanto a percepção, em si mesma deteriorada, quanto as
necessidades a que ela responde, voltam-se para o ajustamento à vida social,
materialmente determinada.
Considerando que a “consciência feliz” se constitui como uma espécie de
formação reativa à ameaça de aniquilação concreta do indivíduo e que, sob sua fina
camada alegórica, subjazem o temor, a decepção e o desgosto, indicadores da
infelicidade obstinada, é importante destacar, como assinalou Marcuse
(1964/1967), a cooptação dessa infelicidade por propósitos políticos que a
manipulam em seu rústico estado de expressão não-consciente, constituindo, em
conseqüência, um “reservatório instintivo para um novo estilo fascista de vida e de
morte” (p. 86). A predisposição dada de antemão pela cultura é incorporada e
reproduzida pelos indivíduos. A regressão explícita é ao mesmo tempo um triste
esboço da dialética entre a natureza e a sociedade: a agressão inerente ao processo
de dominação social; o horror paranóico desencadeado em decorrência da ameaça
objetiva de aniquilação; e, a adaptação obrigatória às condições irracionais
impostas, conduzem à introjeção do princípio da destruição. A violência dirigida à
138
própria natureza em nome do ajustamento à hierarquia resulta na acomodação da
dinâmica pulsional ao princípio objetivo da morte. O espírito objetivo, constituído
em conseqüência da dominação, produz como sua expressão equivalente o caráter
sadomasoquista.
Considerar a mediação histórica das pulsões como uma dimensão essencial
da natureza humana permite questionar o caráter primário atribuído por Freud à
pulsão de morte: primeiramente ao sadismo, que sob a forma de agressividade é
dirigida para o exterior, representando a hostilidade, a violência ou poder dirigido
ao outro, opondo-se ao princípio da civilização; posteriormente, a partir de sua
última formulação da teoria das pulsões, o masoquismo, que representa a volta da
agressividade contra o próprio eu, considerado por Freud (1920/1976), a partir de
seu ensaio Além do princípio do prazer, como sendo uma decorrência da pulsão de
morte.
De todo modo, o reconhecimento de que há um processo de mediação
social das pulsões permite ponderar que, mesmo não compondo uma natureza
primária, originariamente trans-histórica, as pulsões destrutivas qualificam a
condição dos processos subjetivos formados por meio da experiência histórica do
ser humano como segunda natureza, pois transformadas a partir da experiência
social acumulada, estas disposições psíquicas interferem no encaminhamento da
vida social: indicam a forma de mediação psíquica predominante em conseqüência
do enfraquecimento da capacidade de mediação egóica. Nesse sentido, vale pensar
sua relação com fenômenos sociais de grande importância como as guerras,
atualmente propagadas como grandes espetáculos tecnológicos. A reposta dada por
Freud em 1932 ao questionamento que lhe fora feito por Einstein a respeito do
porquê da guerra, representa de modo bastante realista a importância da dinâmica
das pulsões na determinação dos destinos da civilização. Freud foi enfático ao
indicar o papel da pulsão de morte em sua concordância com a suspeita de Einstein
de que a facilidade de se “inflamar nos homens o entusiasmo pela guerra”
139
(1932/1976, p. 251) possa estar associada a alguma coisa como um impulso de
ódio ou de destruição; uma alusão tácita ao teor sádico da violação sexual.
Na forma mais elaborada como aparece em O Mal-estar na civilização, a
pulsão de morte, de agressão ou de destruição, como Freud (1929/1974) as
intercambiou, é tratada como principal entrave ao desenvolvimento da
humanidade. A manipulação dessas moções pulsionais, por meio de tecnologias de
comunicação de massa e de inúmeros outros processos ideológicos infiltrados nos
mecanismos que moldam as mentalidades individuais de acordo com os interesses
de manutenção do status quo, incute, no âmago dos indivíduos, os princípios da
concorrência e da força, associados ao ajustamento à hierarquia e à cisão para com
a sensibilidade: o cultivo da virilidade. As tecnologias que interferem na formação
dos indivíduos, especialmente sobrepondo-se aos antigos laços familiares
enfraquecidos, na medida em que apregoam o ajustamento às condições existentes,
impulsionam para a barbárie. Não é possível desconsiderar que seus efeitos
englobem desde o masoquismo subjacente à aparente ingenuidade da gargalhada
sarcástica, desencadeada em decorrência das cenas de humilhação, tratadas de
forma cômica pela indústria cultural, até o sadismo presente na contemplação
cotidiana da eficiência das tecnologias de destruição. Dos mísseis “inteligentes”,
com alta capacidade de precisão na destruição de alvos traçados por comando
humano, aos novos soldados-robôs americanos, que aniquilam com a mais
sofisticada tecnologia, e cujo monitoramento humano resguarda o algoz de
qualquer sentimento de culpa, a frieza e a crueldade têm se tornado cada vez mais
naturais. A indústria cultural, com suas miraculosas ficções destrutivas, contribuiu
para que a imagem da morte se tornasse mais real do que a própria morte quando
vista por meio dos modernos monitores que a tratam como um espetáculo
hollywoodiano ou como o game over dos animados jogos de computador.
Como a manipulação das necessidades oferece formas substitutivas de
satisfação de parte significativa das necessidades reivindicadas, inclusive de prazeres
140
outrora reprimidos, o mal-estar generalizado subjacente à felicidade alienada não é
percebido como expressão de sofrimento. A gratificação dos impulsos destrutivos é
também uma forma de controle: são permitidos quaisquer prazeres desde que
estejam devidamente ajustados ao padrão – e, hoje, o padrão implica algum grau de
vinculação com o sadomasoquismo.
A indústria cultural se encarrega de adestrar a percepção, naturalizar a frieza
frente à realidade chocante e proporcionar o prazer substitutivo. Como
Horkheimer e Adorno (1944/1985) indicaram, a indústria cultural utiliza-se dos
mais sofisticados recursos técnicos para produzir a “arte sem sonhos”, destinada ao
engodo das massas. Os consumidores têm seus desejos mais íntimos desvendados
e, por isso mesmo, administrados por essa indústria. O esquematismo típico da
razão formal é transportado para o universo das ilusões planejadas, com isso, a
problemática função do esquematismo, ainda atribuída ao sujeito por Kant, passa a
ser o primeiro serviço prestado por esta indústria aos ávidos consumidores que
somente percebem o que já passou pelo expurgo de seus departamentos de
comunicação e marketing. Desejo e objeto de satisfação adquirem feições mediadas
pelos mecanismos que de antemão estabelecem as categorias do que pode ser
representado pelos sistemas de entretenimento, informação e lazer e, percebido
pelos clientes que assim constituem seus juízos morais, estéticos e políticos. Como
indicaram esses autores:
Os sentidos já estão condicionados pelo aparelho conceitual antes que a percepção
ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria com a qual ele o produz para si
próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou conscientemente:
as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os
padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas. (Horkheimer e
Adorno, 1944/1985, p. 83.)
A percepção hipostasiada de uma determinada configuração social
promove a aceitação de modos de dominação indignos como se fossem expressões
de avanço histórico. O prazer experimentado de modo alienado do contexto social
se associa à apatia frente a situações insuportáveis de sofrimento geral. Com isso, a
relação entre a capacidade de obtenção de prazer e o desenvolvimento de atitudes
141
conformistas torna-se parte fundamental da política do terror. Nesse sentido, o
controle da sexualidade e da agressividade passa a equivaler ao controle de
motivações políticas centrais para a manutenção do sistema econômico. A
possibilidade de confrontar a insatisfação, a que os indivíduos historicamente
estiveram relegados, com as condições materiais objetivas, suficientes à garantia de
uma existência digna a todos, tornou-se nula frente ao estado de contentamento
subjetivo que acomete à massa de pessoas monadologicamente encerradas em sua
própria individualidade danificada. O prazer produzido em série e sob a medida
exata das necessidades geradas pela sociedade corrói até mesmo o último rincão da
percepção da realidade. A racionalidade técnica introjetada adquiriu força quase
biológica na determinação do conjunto de necessidades que caracterizam a
experiência humana. Seu efeito constitutivo resvala apenas no tênue limite que
distingue os homens das máquinas; o esquematismo mecânico que sustenta a
eficiência técnica e produz a ataraxia generalizada torna a vida excessivamente
monótona. A forma explícita com que a dominação se reproduz na cultura e no
psiquismo dos indivíduos não se sustentaria se não houvesse o desenvolvimento de
uma felicidade subjetiva que complementasse a incapacidade perceptiva. A
associação entre o prazer sexual e as pulsões destrutivas parece indicar a chave para
a compreensão da “consciência feliz”. No mundo administrado, o desejo e a
necessidade não mais são gradações que representam o desprendimento humano da
natureza animal, antes representam a animalização do ser humano segundo os
princípios de uma natureza que a história da sociedade antagônica tornou aceitável.
Se considerarmos que o prazer ora dessublimado é precisamente o falso
prazer descrito por Marcuse, então não seria exagero sugerir que, não apenas por
ser administrada a sua liberação ou falsa a felicidade que produz, mas,
principalmente, por estar submetido à forma do sadomasoquismo, que é a
expressão particular da dominação, é que este prazer se torna uma prisão quase
intransponível. A “consciência feliz” não se afirma como a pior forma de
conformismo apenas por deformar a capacidade perceptiva acerca da deplorável
142
condição universal dos homens, mas porque é a prova histórica de que extrair
prazer do ato de aceitar para si ou infligir a outrem dor e sofrimento não são
condições redutíveis a perversões do desejo sexual, uma mera patologia do sujeito,
mas sim parte do espírito objetivo de uma época que produz as regressões que
melhor lhe convém.
143
Objetivos e hipóteses
Objetivos:
1. Averiguar se há correlações entre as atitudes concernentes à liberalização
sexual, à dessexualização e ao conformismo, em que grau ocorrem e se suas
variações sugerem organizações psicodinâmicas específicas.
2. Elucidar algumas contradições da estrutura psicossocial da liberdade sexual
administra.
Hipótese geral:
1. A liberdade sexual administrada é a expressão contraditória do anseio por
liberdade produzido sob as determinações do mundo não-livre; o prazer
sexual que compreende obsta a percepção dos limites e contradições dessa
pseudo-liberdade, por vezes, colocada no lugar da verdadeira liberdade
sexual, que, assim, permanece negada. Ela, de fato, fundamenta-se nas
importantes mudanças transcorridas no âmbito da regulação moral das
formas de prazer – as quais, inclusive, caracterizaram a superação parcial da
moral sexual francamente repressiva –, mas também produz a ilusão de que
a única liberdade sexual possível é, efetivamente, a que se afirma idêntica à
liberdade e à felicidade meramente subjetivas, decorrentes da satisfação
monitorada de falsas necessidades e da acomodação do prazer à forma
estipulada pelas condições objetivas. Consiste na adaptação das pulsões à
permissividade sexual repressiva, por meio da qual se tornam alienadas de
sua substância transgressora, convertendo-se em expressão do conformismo.
Sua afirmação idealista justapõe, em aparente harmonia, a liberalização
sexual e a dessexualização, subordinando os avanços culturais realmente
alcançados à produção da felicidade subjetiva; com isso, a dessexualização
passa a ocupar integralmente a dimensão social da produção e do consumo
144
do prazer, contribuindo para a difusão do conformismo e para a manutenção
da heteronomia predominante na sociedade administrada.
Hipóteses empíricas:
2. Há correlação positiva entre as atitudes características da dessexualização e a
inclinação ao conformismo.
3. Apesar de ambas se referirem às formas e aos padrões contemporâneos do
comportamento sexual e a suas implicações psicossociais, as atitudes
favoráveis à liberalização sexual e as atitudes caracterizadas pelas
dessexualização não apresentam correlação significativa.
4. De modo semelhante às atitudes conformistas, as atitudes favoráveis à
liberalização sexual possuem fatores constitutivos condizentes com a
integração cultural, mas, ainda assim, não se correlacionam
significativamente.
145
Método
A escolha da liberdade sexual administrada como objeto de estudo desta
pesquisa favoreceu a delimitação de um campo de investigação bastante amplo e
fecundo – o qual poderá ter alguns de seus aspectos particulares aprofundados em
pesquisas subseqüentes –, todavia, além dessa interessante abertura para novos
estudos empíricos, que dêem continuidade aos avanços ora atingidos, também
configurou questões específicas quanto ao método de investigação mais adequado
aos desafios desta investigação.
A definição do método da pesquisa configurou um processo de decisão a
respeito do qual é importante destacar alguns momentos centrais. A riqueza
presente no campo inaugurado pela delimitação do objeto apontava algumas
interessantes possibilidades de investigação empírica, como a investigação
qualitativa de determinadas variações da prática sexual aparentemente contrapostas
ao padrão socialmente estabelecido; a investigação dos estímulos empregados por
determinados mecanismos socioculturais que, transformados em recursos técnico-
instrumentais, contribuem para a manipulação do comportamento sexual; e a
análise detalhada de cada uma das variações da liberdade sexual administrada, como
as formas substitutivas de prazer e os processos psicossocias de produção e
consumo do pré-prazer. Mas conjuntamente à efervescência de idéias quanto a
estes desdobramentos, havia também o risco de deturpar o objeto. Cada nova
possibilidade de investigação empírica parecia ao mesmo tempo redefinir a
delimitação do objeto, remetendo a pesquisa para aspectos específicos a ele
relacionados, mas dotados de certa independência conceitual. A escolha de
determinados grupos sociais como os gays e lésbicas ou os casais liberais, como
representantes empíricos do fenômeno, circunscreveria a análise a um novo campo
de investigação que, inevitavelmente, configuraria um objeto distinto daquele que
havia sido delimitado. Frente a este risco de dissolução dos propósitos originais, os
146
esforços em seguida empregados tenderam à preservação da dimensão abrangente
em que a liberdade sexual se expressa.
Considerou-se que essa dimensão da sexualidade, concretamente perpassada
por sua interação com aspectos sociais e políticos, era comum a qualquer indivíduo
independente de suas predileções, opção sexual ou práticas e gostos heterodoxos
que eventualmente apresente. O problema da liberdade sexual e, mais
especificamente, de sua contradição, diz respeito tanto às pessoas conscientemente
pudicas quanto às prostitutas, tanto aos membros de movimentos conservadores
como a TFP – Tradição, família e propriedade – quanto aos freqüentadores dos
clubes de orgias entre casais. Portanto, o método para investigá-lo deviria,
prioritariamente, preservar esta característica geral e permitir ao mesmo tempo uma
avaliação mais precisa de sua estruturação imanente, essencialmente contraditória.
Como a liberdade sexual ora propagada não é absolutamente livre, mas sim uma
forma administrada de prazer, que não se reduz à simples não-liberdade, mas,
exatamente por esta condição, adquire características singulares, decidiu-se que o
método deveria abranger estas contradições e flagrar o movimento por meio do
qual se expressam nos padrões de atitude dos indivíduos. Em decorrência dessa
exigência do próprio objeto e da necessidade de unir, em um mesmo processo, a
apreensão do geral e a análise minuciosa de elementos internos, imanentes ao
próprio fenômeno, optou-se por elaborar e aplicar escalas de atitude. Com isso, o
tratamento estatístico dos dados assim coletados permitiria remeter os resultados
obtidos à universalidade característica do fenômeno e o conteúdo empregado para
a elaboração do instrumento abrangeria tanto as contradições internas quanto
alguns elementos particulares que, se investigados de outro modo, poderiam
modificar a delimitação do objeto.
Com isso, foi possível estabelecer procedimentos de investigação empírica
adequados às características singulares do objeto. A relação entre o geral,
representado pelo problema da liberdade sexual em sentido amplo, e o particular,
147
impresso nos múltiplos fenômenos cotidianos por meio dos quais ela se expressa,
pôde ser preservada na própria forma constitutiva do método. Como referência
para a elaboração das escalas, foi consultado o método da pesquisa sobre a
personalidade autoritária, de Adorno e colaboradores (1950/1965), que não deixou
dúvidas quanto à sua postura dialética. De acordo com os autores de La personalidad
autoritária, a investigação de fenômenos psicossociais por meio de técnicas e da
análise estatísticas é adequada à condição em que os homens atualmente se
encontram: com o pensamento e as atitudes padronizados. A padronização das
técnicas de investigação corresponde à reificação dos homens; sua crítica deve, tal
como a crítica à reificação, decorrer da análise teórica. A atenção para com
eventuais limitações do método permite extrair resultados mais precisos,
principalmente na medida em que não se desconsidera os limites das próprias
técnicas, por vezes muito adequadas à captação de fenômenos abrangentes.
Quanto ao método de elaboração das escalas utilizadas nesta pesquisa –
escala de Conformismo, escala de Liberalização Sexual e escala de Dessexualização
–, considerou-se que, distintamente do fenômeno investigado em La personalidad
autoritária, o qual possuía uma dimensão implícita, inacessível de forma direta – os
pesquisadores recorreram a entrevistas clínicas e a testes psicológicos projetivos –,
o acesso à dimensão psicológica de determinados fenômenos psicossociais, como
os que hoje se relacionam à sexualidade, depende, principalmente, de sua facilidade
de expressão. Apesar de serem essencialmente contraditórios, estão manifestos à
consciência dos indivíduos e explicitados à cultura. A atitude favorável ao fascismo
não era, de modo algum, bem quista nos Estados Unidos após a Segunda Guerra
Mundial quando a pesquisa foi realizada, portanto, os seguidores deste ideário
tendiam sempre a ocultá-lo. Em conseqüência, os conteúdos psíquicos relacionados
à atitude fascista mantinham-se sempre em estado latente. Todavia, apesar do
acerto dessa estratégia de investigação em utilizar técnicas correspondentes ao
estado mental do fenômeno, cabe considerar que não foi casual o fato de haver
estreita correspondência entre as indicações encontradas pelos pesquisadores por
148
meio das entrevistas clínicas e outras encontradas por eles explicitadas em panfletos
dos agitadores nazistas do momento anterior à queda do Terceiro Reich. Os
conteúdos que eram ocultados na América democrática podiam ser livremente
expressados na Alemanha Nazista do período anterior. Esta interessante
modificação do estado mental de certos conteúdos em decorrências dos
mecanismos sociais de repressão tem ainda por base um fato certamente muito
notável, que foi definitivo para a escolha do método de elaboração das escalas desta
pesquisa: a transformação das relações entre as instâncias psíquicas clássicas,
delimitadas por Freud, produziu novas formas de circunscrição dos conteúdos
conscientes e inconscientes na cultura contemporânea. Apenas em alguns raros
casos, os conteúdos específicos da dimensão inconsciente – herança arcaica,
conteúdos pulsionais e desejos recalcados – se mantém recolhidos no interior do
indivíduo em forma latente. Hoje, grande parte dos conteúdos que Freud julgou
serem próprios do inconsciente, são facilmente expressados sem nenhuma censura
e, frequentemente, habitam a consciência geral dos indivíduos, posicionando-se
lado a lado com os produtos de sua vida mental consciente. A redução da distância
entre a consciência e o inconsciente, observadas por Adorno e Simpson
(1941/1986) em relação ao comportamento dos fãs fanáticos de jazz, também pode
ser observada em relação à manifestação dos conteúdos eróticos, inclusive daqueles
que correspondem à dessexualização. Mesmo havendo aspectos da sexualidade que
ainda permanecem implícitos, como os tabus sexuais e as motivações
sadomasoquistas, pode-se considerar que, de modo geral, a permissividade sexual
contemporânea garante a expressão de parte considerável dos conteúdos eróticos
que outrora escandalizariam a opinião pública.
A escala LS, diferentemente das escalas C e D, está destinada à mensuração
direta da liberalização sexual, por isso, não possui as mesmas características que as
duas outras quanto ao caráter psicológico do conteúdo que está medindo. Visa
obter, principalmente, a confirmação do processo de mudança cultural da moral
sexual, que mudou de uma moralidade francamente repressiva para um estado de
149
permissividade geral. As Escalas de conformismo e de dessexualização, ao
contrário, são mais psicológicas e, sobretudo, a de dessexualização possui uma série
de itens que se dirigem a conteúdos implícitos. Contudo, ainda assim, todas foram
elaboradas por meio do mesmo processo: a observação de situações cotidianas em
que a sexualidade ou os demais aspectos concernentes ao conformismo eram
manifestados. Foram observadas revistas femininas que tratam de temas como a
sexualidade, como é o caso das revistas Cláudia e Mary Claire, programas de TV
dos canais abertos que exploram a sexualidade em múltiplas situações e observadas
as conversas espontâneas entre as pessoas em geral. Como procedimentos
adicionais, foram realizadas observações não-sistemáticas em ambientes
movimentados por jovens e adultos empenhados no propósito do flerte; em boates
voltadas para o público homossexual; e, em clubes noturnos freqüentados pelos
casais liberais. A observação destas situações cotidianas permitiu identificar a
maior parte dos conteúdos utilizados para a elaboração das sentenças que
compuseram as escalas. O confronto com o material teórico e com as escalas
elaboradas por outros pesquisadores (Adorno et. al. 1950/1965; Crochík, 1999)
completou o processo. Com isso, foi possível abranger conteúdos referentes às
dimensões particulares da sexualidade tanto quanto outros conteúdos relacionados
ao tema geral da pesquisa, preservando, em diferentes configurações, as
contradições internas do fenômeno.
As escalas revelaram-se essenciais à análise do objeto delimitado, pois além
de seu caráter descritivo, que permitiu averiguar a incidência de certos padrões de
atitude, também possibilitaram analisar a correlação entre as diferentes disposições
individuas em relação à sexualidade e aos correspondentes sociais dessas
disposições.
O poder de mensuração desses instrumentos não equivale à precisão das
generalizações que podem ser feitas de seus resultados; estas se tornam importantes
quando já se tem uma delimitação conceitual e empírica muito precisa de todas as
150
dimensões do fenômeno, inclusive, de suas contradições internas e dos principais
elementos com os quais se relaciona. Entretanto, como esta precisão ainda não foi
adequadamente alcançada – ainda não há uma tradição de pesquisa neste campo
para que fosse, efetivamente, possível atingir este nível de técnica – esta pesquisa
deve contribuir apenas parcialmente para se avançar neste sentido, seria
imprudência pretender atingir, em primeira-instância, este tipo de generalização. Ao
contrário, as únicas generalizações importantes que poderão ser realizadas serão as
referentes às tendências reveladas pelas correlações entre as atitudes mensuradas.
Tendências que não precisam ser extremas para indicar pontos relevantes da
dinâmica psicossocial, nem tampouco compartilhadas por toda a população de
referência para que possam revelar certas estruturas culturais relacionadas aos
interesses predominantes na sociedade administrada. Quando o objeto determina o
método a ser utilizado no processo da pesquisa, os resultados tendem a ser o
espelho mais fidedigno do objeto, mesmo quando reflete apenas alguns traços de
sua fisionomia geral.
Todavia, apesar de, nesta pesquisa, a definição do método estar subordinada
às propriedades do objeto, é preciso esclarecer que o desenvolvimento pretendido
também sofreu influências de outros aspectos externos à relação método-objeto,
como o tempo e as condições disponíveis para a realização do trabalho. A certa
altura deste processo, depois de elaboradas as escalas, supôs-se que seria
importante realizar entrevistas com alguns sujeitos que responderam os
questionários das escalas, principalmente, com os sujeitos que se destacaram na
análise estatística dos dados por apresentarem escores discrepantes em relação às
médias. Com isso, delineou-se a intenção de confrontar os resultados da análise
estatística com um novo momento de investigação qualitativa em que, por meio de
entrevistas semi-estruturas, poder-se-ia aprofundar o entendimento de aspectos que
supostamente seriam importantes para a interpretação dos escores extremos e,
conseqüentemente, de outras dimensões do fenômeno, aparentemente mais
singulares. Além da possibilidade de realizar entrevistas, também foi cogitada a
151
possibilidade de se recorrer a uma nova aplicação das escalas. Naquele momento,
ponderou-se que apesar de a primeira aplicação das escalas já ter fornecido dados
relevantes quanto às correlações entre as atitudes investigadas, o fato de ainda
haverem algumas limitações em certas formulações dos itens, caracterizaria razão
para se extrair da análise, propostas de novas redações para estes itens, que
poderiam ser novamente aplicados a outros sujeitos para confirmação dos
resultados já obtidos. Contudo, tais intenções não chegaram a ser efetivadas, pois
mediante a análise, conclui-se que o material coletado já era suficiente para a análise
do fenômeno da liberdade sexual administrada. Foram formuladas sugestões de
modificação em alguns dos itens das escalas, visualizando-se a possibilidade de
aplicações ulteriores. Considerou-se que o próprio processo de análise e de
autocrítica a respeito do método foram suficientes para equalizar parte das
limitações encontradas em alguns itens, assim como para explorar mais
detalhadamente suas conseqüências por meio da interpretação. As eventuais
limitações puderam ser apontadas e analisadas em conjunto com os demais
aspectos e os resultados quantitativos ganharam, com este procedimento, um valor
qualitativo muito maior do que o usual. Frente a isso e, em conseqüência, das
possíveis implicações de se proceder a uma nova aplicação das escalas, bem como à
realização de entrevistas com os sujeitos de pontuações extremas, julgou-se mais
prudente aprofundar a análise teórica e deixar estas outras etapas para pesquisas
futuras. Decidiu-se, por fim, estruturar toda a análise e interpretação dos aspectos
pesquisados a partir dos dados obtidos por meio da primeira aplicação. Se há riscos
nesta decisão, não seria a realização de uma nova aplicação que os minimizaria, pois
os riscos não são, tal como a tradição positivista faz crer, redutíveis à pretensão de
uma descrição perfeita dos dados – a qual seria equivalente a um novo culto aos
fatos –, mas, ao contrário, configuram o perigo de se interpretá-los apenas
superficialmente, desperdiçando-se a possibilidade de produzir uma crítica teórica
consistente das condições sociais objetivas que os produziu.
152
Sujeitos:
Considerando-se o princípio geral que orienta esta pesquisa, de que a
liberdade sexual administrada se caracteriza como um processo universal, comum a
diferentes grupos sociais e, em alguns casos, com poder de realização independente
das variações do modo de organização dos desejos, da qualidade dos vínculos
eróticos e das variadas formas de prática sexual, os sujeitos dessa investigação
empírica poderiam ser quaisquer pessoas que vivem sob as condições gerais da
sociedade administrada. Não há razões suficientes para se especificar ou excluir
determinadas pessoas ou grupos sociais; potencialmente, todos estão sujeitos a
desenvolver esse tipo de relação ilusória com a própria sexualidade, interpretando-a
como livre mesmo quando, na verdade, ainda está sujeita a novas formas de
controle excessivamente limitantes.
A composição das amostras baseou-se em critérios de escolha não-aleatórios
(Maroco, 2003), de acordo com a viabilidade do acesso aos sujeitos e a adequação
ao propósito da pesquisa. Atentando-se para essa facilidade de acesso, recorreu-se à
colaboração de pesquisadores que lecionam em Universidades particulares da
Grande São Paulo e que se dispuseram a contribuir com o processo de coleta de
dados, cedendo espaço em suas respectivas aulas para a aplicação das escalas. Por
meio deste procedimento, foram tomados como sujeitos alunos de cursos
universitários cujo acesso tenha sido facilitado por professores destas instituições.
Considerou-se que apenas os aspectos essenciais para garantir a homogeneidade
das amostras deveriam ser incluídos dentre os critérios utilizados para sua
composição. Em conseqüência, elas foram constituídas respeitando-se dois
critérios: a facilidade do acesso a sujeitos que aceitassem colaborar com o
desenvolvimento da pesquisa, em geral, devido à indicação de outros pesquisadores
que os vincularam a este processo de coleta de dados; e devido ao fato de não
haver nenhuma contra-indicação em relação aos objetivos ou à fidedignidade dos
153
dados. A indicação não deveria em nenhuma circunstância se sobrepor às demais
exigências metodológicas, nem tampouco éticas.
De 135 questionários coletados, 58 foram descartados por apresentar
disparidade em uma das questões intencionalmente repetida para fins de controle
da atenção ou por apresentar excesso de questões deixadas sem resposta. Esta
estratégia foi utilizada para conceder maior homogeneidade à amostra e excluir
respostas casuais, que poderiam afetar a fidedignidade dos escores obtidos. Foram
aproveitados 50 questionários de alunos do terceiro ano de um curso de pedagogia
de uma Universidade particular de São Paulo, 20 questionários, também do terceiro
ano, de um curso de matemática de uma outra universidade particular do ABC
Paulista e, por fim, sete alunos também do curso de pedagogia, do primeiro ano, de
uma outra universidade particular de São Paulo. Dentre os sujeitos correspondentes
aos 77 questionários válidos, 66 são do sexo feminino e 11 são do sexo masculino.
A faixa etária total abrangida pela pesquisa foi ampla, de 19 a 50 anos, mas houve
concentração significativa de 40% dos sujeitos na faixa etária de 21 a 25 anos; e
21% na faixa etária de 26 a 30 anos. A estratificação por curso e a subseqüente
divisão por sexo podem ser observadas na tabela 1.
Tabela 1: Amostras-base dos sujeitos para análise dos dados
Estratos Ano Sujeitos Sexo
p Masculino Feminino
Pedagogia A 7 0,09 __ 7
Pedagogia B 50 0,65
_
_ 50
Matemática 20 0,26 11 9
Total 77 1,00 11 66
154
É interessante destacar que a proporção de sujeitos do sexo masculino e
feminino é bastante diferente em ambos os cursos, mantendo-se equivalente entre
as duas sub-amostras dos cursos de pedagogia. Houve uma predominância na
amostra geral, de sujeitos do sexo feminino e de estudantes de pedagogia. Tal
distinção indicou que poderiam ser encontradas diferenças importantes quanto a
aspetos gerais das atitudes mensuradas. Tendo em vista estas especificidades, é
importante destacar que quaisquer generalizações estabelecidas devem ser
corrigidas pela observação dessas limitações.
Por estarem voltados para o campo da educação, os sujeitos provenientes
dos cursos de pedagogia, por exemplo, podem apresentar maior proximidade com
o campo de reflexão a respeito das tendências éticas e políticas; distintamente do
que supostamente seriam inclinações dos sujeitos provenientes dos cursos
dedicados às ciências exatas e tecnológicas. Contudo, estas suposições gerais estão
sendo mencionadas apenas para ilustrar a importância das diferenças e as limitações
de seu alcance frente ao movimento homogenenizador da cultura. Neste mesmo
sentido, pode-se dizer que quanto ao nível cultural e de escolaridade, é possível que
haja na população de referência perfis sociais bastante distintos, mas, ainda assim,
similares em muitos aspectos estruturais aos que hoje representam a padronização
da cultura. Apesar de representarem apenas uma minoria da população brasileira,
com escolaridade superior ao nível de escolaridade médio da população de
referência, os grupos de sujeitos pesquisados conservam, sob a forma de bagagem
cultural, além de seus muitos aspectos específicos, a forma geral do modelo de
formação cultural predominante em nossa cultura. Estão conservadas neles, as
marcas de cada uma das etapas da formação escolar pela qual passam grande parte
da população brasileira. As distinções existentes entre o perfil da amostra e a
população de referência quanto às dimensões mais interiorizadas da cultura, tal
como as que se pretende mensurar nesta pesquisa, possivelmente não são
radicalmente opostas nos diferentes estratos da população dividida por
escolaridade. A influência da indústria cultural, com seu aparato onipresente no
155
cotidiano de todas as faixas etárias e grupos sociais, tende a produzir atitudes e
valores comuns a esses muitos grupos, independentemente do grau de escolaridade
que possuam. Parte significativa da estereotipia do pensamento e padronização dos
preceitos morais decorre dessa dimensão, a pseudocultura, que é cada vez mais a
principal responsável pela definição dos aspectos fundamentais da mentalidade
predominante. Do mesmo modo, pode-se ponderar que, apesar da nivelação
cultural promovida pelo predomínio da pseudocultura, se houver diferenças quanto
ao refinamento, a capacidade de autonomia e o desenvolvimento de atitudes
realmente liberais, é provável que estas diferenças favoreçam a população de maior
escolaridade ou de formação profissional voltada especificamente para os assuntos
relacionados ao desenvolvimento humano, como a educação. Se estas suposições
não forem de todo absurdas será necessário reconhecer que, também nesse caso, os
indicadores esperados da população em geral seriam mais preocupantes do que os
encontrados na amostra, ou no mínimo similares a elas.
Técnicas de coleta de dados – Escalas de atitude tipo
Likert
:
Para averiguar as atitudes concernentes à liberalização sexual, à
dessexualização e ao conformismo foram utilizadas escalas de atitude baseados no
modelo Likert, desenvolvidas especificamente para essa finalidade: escala de
conformismo – Escala C (anexo II); escala de liberalização sexual – escala LS (anexo III); e
Escala de dessexualização – Escala D (anexo IV). Com os itens dispostos em ordem
aleatória, os formulários apresentados aos sujeitos solicitavam a eles que
manifestassem o grau de sua concordância ou discordância, de acordo com as
seguintes possibilidades: 1 – discordância plena; 2 – discordância moderada; 3 –
discordância leve; 5 – concordância leve; 6 – concordância moderada; 7 –
concordância plena. Cada uma destas três escalas contém 25 proposições
afirmativas, com conteúdos diretamente relacionados à definição operacional das
156
atitudes mencionadas. Além da alusão direta a determinadas categorias, estas
proposições também possuem sentidos implícitos relacionados às hipóteses.
A despeito das preocupações suscitada pelas críticas apressadas à utilização
de escalas de atitude e da estatística, que reduzem este tipo de instrumento à forma
de utilização desenvolvida pelas pesquisas de orientação positivista, as escalas
elaboradas mostraram-se importantes instrumentos de investigação tanto das
atitudes superficiais quanto de traços de personalidade mais arraigados dos sujeitos.
Devido à sua estrutura aparentemente desinteressada, com frases curtas e
afirmações diretas, as escalas são instrumentos que agregam um conteúdo
extremamente amplo e rigoroso, permitindo em pouco tempo de aplicação obter
informações essenciais sobre os sujeitos, muitas vezes, sem que eles mesmos
percebam que estão explicitando tanto de si mesmos.
Procedimentos:
1 – Coleta de dados - Aplicação das escalas.
Por meio da colaboração de outros pesquisadores e de professores
universitários, foram convidados a participar da pesquisa alguns grupos de
estudantes de universidades paulistas. Em geral, esta colaboração consistiu na
viabilização do acesso a algumas classes dos cursos referidos. As quais
concordaram em participaram do desenvolvimento da pesquisa, respondendo a um
questionário a respeito de questões relacionadas a vários temas, dentre eles, a
sexualidade contemporânea. Mediante a aceitação dos sujeitos em colaborar com a
pesquisa, o pesquisador dirigiu-se às instituições selecionadas e aplicou-lhes as
escalas. Os formulários com as questões foram distribuídos para os sujeitos que,
sentados em fila e em silêncio, mantiveram-nos com a face voltada para baixo e
intocados até o início da leitura da instrução. Depois de cumprida essa etapa, que
exigiu cuidados para que não houvesse dispersão posterior, os sujeitos puderam
consultar o material e respondê-lo segundo sua preferência, evitando conversas
157
com os demais a respeito das questões apresentadas, bem como a respeito de
quaisquer outros assuntos que, porventura, pudessem dispersar o grupo ou
interferir nos resultados. Essas precauções foram necessárias porque o conteúdo
das proposições poderia despertar euforia no grupo, tornando-se motivo de
comentários e, eventualmente, interferência na espontaneidade das respostas e na
fidedignidade dos resultados.
Na folha de rosto dos formulários havia a seguinte instrução, que foi lida
pausadamente pelo aplicador:
Este questionário é parte de uma pesquisa que pretende verificar opiniões e atitudes de
estudantes universitários sobre uma série de temas, dentre eles a sexualidade
contemporânea. Como pode ser observado, o material está dividido em duas partes. Na
primeira há um breve questionário sobre dados pessoais, incluindo algumas questões
sobre hábitos e comportamentos sexuais. Na segunda parte há afirmações sobre
diversos temas sobre os quais gostaria de saber o grau de sua concordância ou
discordância. Não há respostas corretas ou incorretas para essas afirmações, portanto
responda segundo sua opinião.
Será garantido o anonimato de suas respostas.
Peço que, por favor:
a) leia atentamente cada afirmação e responda conforme a sua primeira impressão;
b) responda a todas as questões;
c) não comente as suas respostas com os seus colegas até o final da aplicação.
Obrigado !
Conforme os sujeitos concluíram suas respostas e foram entregando os
formulários preenchidos, o aplicador recolheu-os, mantendo-os resguardados até
que pudesse verificá-los em particular, a fim de evitar interrupções ou comentários
que eventualmente pudessem interferir na aplicação do teste ou nas respostas dos
sujeitos que ainda estavam em avaliação. Ao final foi proferido um agradecimento
coletivo e foi encerrada a aplicação.
2 – Análise dos resultados da aplicação das escalas:
Os dados obtidos por meio da aplicação das escalas foram primeiramente
submetidos a testes que permitiram estimar a sua coerência interna e a
confiabilidade dos resultados por eles produzidos. Foi extraído o coeficiente Alpha
158
de Cronbach de cada uma das escalas, que também tiveram a precisão de seus itens
constitutivos avaliada teoricamente e por meio de inferências formuladas a partir
dos escores encontrados e das correlações correspondentes. Como não houve
necessidade operacional de redução de itens para a melhora da coerência interna
das escalas, este procedimento foi utilizado, de acordo com critérios teóricos, para a
comparação de alguns aspectos interpretativos. Em geral, os testes estatísticos
utilizados para extração do Alpha de Cronbach já fornecem indicações precisas de
quais exclusões de itens poderiam melhorar o desempenho do teste. Confrontados
com as correlações de Pearson entre os itens, os fatores delimitados a priori e as
escalas, esses dados constituem indicadores suficientemente adequados para
decisão sobre a validade das mesmas. Todavia, ainda assim, a validade estatística foi
avaliada por meio da análise de conteúdo dos itens, que será exposta na seção
correspondente a este objetivo.
Como proporcionaram coeficientes de coerência interna satisfatórios, os
dados coletados por meio da aplicação das escalas foram, em seguida, organizados
segundo os critérios de distribuição de estatísticas descritivas para que se
obtivessem tabelas com freqüências e proporções – por idade, sexo e curso – que
ajudaram a visualizar o teor do material e permitiram decidir sobre os demais testes
que deveriam ser realizados. Em seguida, foram extraídas as médias e os desvios
padrão das respostas dadas pelos sujeitos ao conjunto de itens de cada uma das
escalas e pelos subgrupos de sujeitos ao conjunto dos itens. Uma das análises
utilizadas foi a análise de variância, empregada para verificação da homogeneidade
da amostra e de diferenças significativas. Depois de terem sido identificadas
algumas diferenças significativas e de ter sido delineado um percurso de análise
unificada para os dados que apresentaram homogeneidade e de análises parciais
para os dados que apresentaram especificidades, procedeu-se à correlação de
Pearson entre as escalas (Guilford, 1965), para, com isso, finalmente se obter os
coeficientes de correlações entre os três tipos de atitude investigados.
159
Elaboração dos instrumentos de mensuração da liberdade
sexual administrada
Nos capítulos precedentes foram elaboradas análises e interpretações a
respeito da liberdade sexual administrada, de algumas de suas mediações e dos
conceitos que fundamentam sua crítica: a dessexualização do sexo e a
dessublimação repressiva; respectivamente elaborados por Adorno (1963/1969) e
por Marcuse (1964/1967). Apesar dos objetivos desses capítulos se diferenciarem e,
em certo sentido, transcenderem os que orientam esta seção de tratamento dos
dados, pode-se dizer que constituíram uma análise a priori de seus significados e
implicações. Pretende-se agora, mediante o exame das configurações empíricas do
objeto investigado, aprimorar o entendimento a respeito das categorias
apresentadas e avaliar as conseqüências lógicas de suas disposições empíricas.
Abstraída de suas conexões sociais e históricas, a liberdade sexual ora permitida
pelo atual estágio da civilização suscita questões inteiramente diversas daquelas que
podem ser derivadas de suas manifestações materiais, por isso, a delimitação da
dimensão empírica do fenômeno é condição para que se possa apreendê-la para
além de sua aparência social. As transformações ocorridas no âmbito da moral
sexual, sobretudo no decorrer do último século, caracterizam condições
absolutamente novas quanto às políticas de controle do corpo e do prazer. Não se
poderia negligenciar as transformações que, efetivamente, transcorreram no
modelo de família e na forma de regulação dos prazeres sexuais; nos tipos de
vinculação afetiva e nos modos de expressão da sexualidade; nas formas de
satisfação sexual e nas variações da consciência moral. Entretanto, com risco ainda
maior de corroborar a ideologia sob a qual se afirma a aparente harmonia social, o
reconhecimento de tais mudanças não deve implicar em desatenção para com a
continuidade histórica dos processos mentais e dos mecanismos de ajustamento
cultural associados à repressão dos impulsos e ao controle das paixões
160
incompatíveis com o progresso alcançado pela racionalidade técnica. Em linhas
gerais, os esforços empreendidos concentraram-se no intuito de confrontar a
impressão intuitiva – que motivou a escolha do objeto de pesquisa e dos principais
termos de sua delimitação –, os dados coletados por meio de técnicas de pesquisa
empírica e a crítica teórica. Ao contrário do que se poderia depreender de
apreciações advindas do pensamento positivista, comumente aferrado à descrição
dos fatos e à sua subseqüente afirmação cega, o potencial especulativo inerente à
crítica materialista permite confrontar a forçosa identidade entre fato e conceito,
sobretudo quando essa identidade consiste no ajustamento do conceito aos fatos
determinados pela realidade tolhida em suas próprias possibilidades imanentes.
Como próxima etapa da exposição do desenvolvimento da pesquisa, cabe
agora analisar a precisão empírica dos argumentos que até aqui estiverem
vinculados à especulação teórica. Serão averiguadas: a precisão das técnicas de
investigação empírica utilizadas, a consistência do conteúdo circunscrito pelos itens
das escalas e os significados e implicações dos dados obtidos. É importante
destacar que a coerência interna dos instrumentos, sua precisão e consistência, são
fatores essenciais para que se possa analisar corretamente os dados. É verdade que
somente mediante a interpretação subseqüente dos resultados será possível atingir
os objetivos previstos e responder às questões de pesquisa, comprovando ou
refutando as hipóteses formuladas, mas essa tarefa seria inútil se não houvesse a
garantia prévia de que os dados empíricos utilizados para tais análises e
interpretações foram obtidos por meio de instrumentos confiáveis. Nesse sentido,
estar de posse de instrumentos de investigação que sejam o mais coerente possível,
é condição para que o trabalho da crítica possa cotejar o objeto, flagrado em sua
existência empírica, com o acúmulo conceitual formado a partir da reflexão teórica.
Uma vez reconhecida a relevância da formulação teórica da qual se partiu
para a proposição do projeto desta pesquisa, de que a liberdade sexual em voga foi
expurgada da transgressão libertadora que outrora hospedou, restou à pesquisa
161
empírica a tarefa de descrever as potencialidades, contradições e limites da
liberdade sexual, bem como a possibilidade de captar, dentre os dados obtidos,
indícios que permitam refutar ou comprovar a hipótese geral de que a liberdade
sexual administrada é a expressão contraditória do anseio por liberdade produzido
sob as determinações do mundo não-livre e as hipóteses empíricas referentes às
correlações entre as atitudes que provavelmente são mobilizadas por este
fenômeno ou nele interferem. A suposição de que há uma tendência implícita nas
manifestações da sexualidade atualmente permitidas de ajustar-se aos novos
mecanismos repressivos, pôde então ser submetida a rigoroso processo de
verificação empírica, permitindo considerar as relações existentes entre as atitudes
relacionadas diretamente ao comportamento sexual e as que se definem pela
postura de crítica ou resignação ante as condições sociais e políticas predominantes.
Frente a esta conjunção de fatores, objetivos e hipóteses, os instrumentos de
investigação empírica que ora serão analisados foram elaborados a partir do
propósito central de averiguar se há correlações entre as atitudes concernentes à
liberalização sexual, ao conformismo e à dessexualização, em que grau ocorrem e
quais organizações psicodinâmicas sugerem. A correlação estatística entre as escalas
foi adotada como procedimento básico para todas as demais análises: as diferentes
correlações entre os pares de atitudes, possivelmente implicadas na base da
liberdade sexual administrada, e o estudo de aspectos dessas atitudes que podem ser
abrangidos pelo fenômeno e, ainda assim, se conservarem independentes de sua
estrutura elementar.
A suposição de que o modo de liberação sexual permitido e
significativamente estimulado pelos mais diversos setores da cultura, sobretudo pela
indústria que estipula sua forma imanente, também é determinado de acordo com
os interesses políticos e econômicos da sociedade, motivou o desenvolvimento de
instrumentos que permitissem averiguar as potencialidades, limites e contradições
das atitudes em relação à liberdade sexual, em especial, a três aspectos que se
162
relacionam com ela: a liberalização dos costumes e do comportamento sexual; a
exacerbação do conformismo, expressado por meio de atitudes relacionadas às
opiniões políticas, ao ajustamento às condições sociais e à aceitação sem
questionamento dos padrões culturais determinados pelos interesses da dominação;
e a predominância de uma forma de manifestação da sexualidade caracterizada pela
dessexualizado, modificada em sua substância essencialmente transgressora.
Depois de coletados e organizados segundo suas respectivas freqüências e
proporcionalidades, os dados foram submetidos à análise de variância multivariada
para averiguação de possíveis diferenças entre as amostras discriminadas por sexo e
carreira dos sujeitos, considerando-se ainda a possibilidade de que houvesse
interação entre as variáveis isoladas. As escalas de atitude desenvolvidas foram
avaliadas quanto a sua coerência interna e precisão por meio da extração do
coeficiente Alpha de Cronbach, o qual indica a compatibilidade entre os itens de
um determinado conjunto, permitindo constatar se há coerência entre as respostas
dadas pelos sujeitos a cada uma das afirmações apresentadas e o conjunto que
formam. Por fim, a média dos escores obtidos pelos sujeitos em cada uma das três
escalas foi utilizada para o cálculo da Correlação de Pearson, da qual se obteve o
coeficiente de correlação entre as escalas e se tornou possível inferir conclusões
importantes a respeito do conteúdo, forma e circunstâncias da liberdade sexual.
Para a obtenção destes coeficientes de correlação foram aplicadas a correlação
bivariada e a correlação parcial de Pearson, de modo a tornar possível verificar e
controlar o impacto das diferenças relativas às variáveis sexo e curso.
As médias e desvios padrão indicados nas tabelas 2, 3 e 4 permitem
observar que, quanto às variáveis investigadas, é necessário destacar que há
diferenças importantes entre as respostas dadas por homens e por mulheres e entre
os grupos definidos por curso. Os escores médios obtidos nas três escalas são
maiores para os homens do que para as mulheres e os desvios padrão apresentados
163
tendem a ser menores no caso dos sujeitos masculinos, indicando haver menor
variação nas respostas destes sujeitos.
Tabela 2: Médias e desvios padrão correspondente à escala C
Amostra geral Pedagogia A Pedagogia B Matemática
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Masculino 4,62 0,60 __ __ __ __ 4,62 0,60
Feminino 4,09 1,16 4,55 0,93 3,91 1,19 4,70 0,80
Obs: __ valores não calculados por não haver homens na amostra
Tabela 3: Médias e desvios padrão correpondentes à escala LS
Amostra geral Pedagogia A Pedagogia B Matemática
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Masculino 5,05 0,80 __ __ __ __ 5,05 0,80
Feminino 4,71 0,78 4,53 1,18 4,72 0,70 4,83 0,86
Obs: __ valores não calculados por não haver homens na amostra
164
Tabela 4: Médias e desvios padrão correspondentes à escala D
Amostra geral Pedagogia A Pedagogia B Matemática
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Média Desvio
Padrão
Masculino 4,33 0,64 __ __ __ __ 4,33 0,64
Feminino 3,32 0,71 3,67 0,39 3,20 0,74 3,72 0,51
Obs: __ valores não calculados por não haver homens na amostra
Para verificar se as diferenças encontradas nas amostras eram, de fato,
significativas, os dados coletados foram submetidos a uma análise de variância
multivariada. Os escores médios obtidos em cada uma das três escalas foram
tratados como fatores e as variáveis sexo e curso foram tomadas como variáveis
dependentes, podendo exercer influência isolada ou mútua sobre os fatores
destacados. As condições de aplicabilidade da análise de variância multivariada
foram verificadas por meio do Teste M de Box, que define como hipótese nula
(Ho) a suposição de que não haja diferença entre as matrizes de variância das
variáveis dependentes em todas as combinações dos níveis dos fatores e, estabelece
como H1, a probabilidade de que “as matrizes de covariâncias das variáveis
dependentes não são iguais em todas as combinações dos níveis dos fatores”
(Maroco, 2003, p. 162). Como o nível de significância obtido por meio deste teste
foi de 0,12, portanto superior a 0,05, a hipótese de homogeneidade das covariâncias
não foi rejeitada. Com isso, ficaram estabelecidas as condições para se proceder à
análise de variância multivariada e explorar com segurança seus resultados, os quais
estão apresentados na tabela 5.
165
Tabela 5: Análise de Variância Multivariada
Variáveis Estatística F Nível de Sig. Poder observado
Sexo Raiz de Roy 3,59 0,02* 0,77
Curso Raiz de Roy 2,34 0,08 0,56
Interação entre
sexo e curso
Raiz de Roy 0,00 1,00 0,05
Obs: * resultado significativo para p < 0,05
Segundo pode ser depreendido dos dados apresentados na tabela 5, apenas
a variável sexo apresentou diferença significativa, que, somada ao alto poder de
mensuração do teste utilizado (0,77), permite afirmar que, quanto ao sexo dos
sujeitos, há diferença significativa nas amostras investigadas. Apesar de não
apresentar diferença significativa ao nível de 0,05, a variável curso também sugere
possível diferença entre os grupos, portanto ambas as variáveis foram submetidas a
duas análises de variância independentes, cujos resultados permitiram aprofundar o
entendimento acerca dessas diferenças encontradas.
166
Tabela 6: Análise de variância
Variáveis Fatores Graus de
liverdade
f Nível de Sig. Poder
Obervado
Sexo Conformismo 1 0,30 0,86 0,53
Liberalização
sexual
1 0,37 0,54 0,92
Dessexualização 1 3,99 0,05* 0,50
Curso Conformismo 2 2,79 0,68 0,53
Liberalização
sexual
2 0,29 0,76 0,09
Dessexualização 2 3,24 0,04* 0,60
Obs: * resultado significativo para p < 0,05
Considerando-se os resultados da análise de variância apresentados na
tabela acima, pode-se observar que tanto a variável sexo, cuja diferença já havia
sido constatada pela análise de variância multivariada, quanto a variável curso, que
não apresentou diferença estatística, apresentaram agora índices significativos
quanto ao fator dessexualização. Apesar do poder de mensuração do teste não ser
alto em nenhuma das variáveis avaliadas, 0,50 e 0,60 respectivamente, ainda assim
são aceitáveis. Com estes resultados, pode-se concluir que, de fato, quanto ao fator
dessexualização, há diferença significativa entre as amostras divididas por sexo e
por curso.
No caso das diferenças relativas ao curso, pôde-se ainda recorrer à
comparação múltipla de médias para verificar entre quais cursos havia diferenças;
para tanto, como é recomendado, recorreu-se à aplicação do teste de Tukey, cujos
resultados indicaram somente haver diferença significativa entre as amostra do
167
curso de matemática e de pedagogia B. Essas diferenças atingiram o grau de
significância de 0,03 para o fator Conformismo e de 0,00 para o fator
Dessexualização.
Considerando a amostra unificada, pôde-se verificar que a média dos
escores da escala de liberalização sexual foi a mais alta obtida (4,76), indicando
concordância de leve para moderada em relação aos itens que representam adesão
ao processo de liberalização dos costumes sexuais. Correspondendo a valores mais
modestos, as demais médias obtidas nas duas outras escalas, que medem o
conformismo e a dessexualização respectivamente, também se revelaram
importantes. Na apuração dos dados da escala C foi obtida uma média de 4,17 e na
da escala D uma média de 3,46. Em realidade, ambas permaneceram próximas ao
ponto médio, indicando concordância e discordância leves em relação às atitudes
investigadas. Todavia, como os itens formulados em ambas as escalas trazem
proposições diretamente favoráveis às atitudes, a discordância leve no caso da
escala D, e a leve concordância no caso da escala C, indicam, ainda assim, haver
certa adesão implícita ao processo de dessexualização e adesão importante ao
conformismo, pois a não-recusa a seus princípios explícitos, pode indicar a
existência de predisposição a aceitá-los passivamente.
Conforme pode ser observado na tabela 7, os coeficientes de correlação de
Pearson encontrados indicaram haver correlação significativa apenas entre as
Escalas de Conformismo e de Dessexualização:
168
Tabela 7: Coeficientes de correlação bivariada de Pearson entre as escalas
Escalas C LS D
C 1,00 0,20 0,75*
LS 0,20 1,00 0,14
D 0,75* 0,14 1,00
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Foi encontrada uma correlação significativa bastante expressiva entre as
atitudes conformistas e as atitudes caracterizadas pela dessexualização. A correlação
de 0,75, significativa ao nível de 0,01, entre as escalas C e D, em contraposição à
correlação de 0,20 entre as escalas C e LS, indica que são precisamente os aspectos
da sexualidade delimitados como expressão dos limites da sexualidade atualmente
propagada, a dessexualização, os elementos que melhor caracterizam a relação hoje
existente entre as esferas do sexo e do ajustamento social. A correlação, também
baixa e não-significativa entre as escalas D e LS (0,14), corroboram esta conclusão
ao sugerir que os conteúdos apresentados pelas duas escalas, mesmo não sendo
antagônicos, pois compreendem o mesmo campo objetivo, possuem sentidos
independentes. Tanto os itens da escala LS quanto os da escala D abrangem
aspectos da liberdade sexual ora em voga, porém afirmam tendências distintas
desse fenômeno; a primeira por meio da ênfase na diversidade, no polimorfismo
dos desejos e modos de satisfação, liberalização da moral sexual e livre fruição da
pulsão sexual; o segundo, por meio de elementos que restringem a forma de
liberação consentida e os tipos de manifestação das pulsões que supostamente
seriam adequados. Ambas as correlações fornecem indicativos preciosos de que,
como suposto pela hipótese geral desta pesquisa, a liberdade sexual atual comporta
contradições imanentes que favorecem o mecanismo psicossocial da
169
dessexualização e a formação de atitudes conformistas frentes às condições sociais
e políticas determinadas pela sociedade. Reduzida à forma que a sociedade
administrada lhe concede, a sexualidade tende a se ajustar aos padrões fixados pela
cultura. Devido à ênfase atribuída a certos aspectos da liberdade sexual, por vezes,
mais convenientes à manutenção do status quo, a liberalização sexual convive
passivamente com sua própria negação, representada pelo controle de sua forma. A
invasão da esfera subjetiva e das relações afetivas pelo mecanismo da reificação; a
redução da multiplicidade de gostos e prazeres a padrões socialmente estabelecidos;
a conservação de tabus em relação a variações do sexo não-convencional, aos
homossexuais e às prostitutas; a tendência à normalização; e a forte presença de
elementos de dominação tornam a liberdade sexual ora propalada uma expressão
cativa da permissividade repressiva. A dessexualização acusa seu limite e é por meio
de suas categorias constitutivas que a relação com o conformismo pode ser
averiguada. Quanto maior for a dessexualização maior também será o conformismo
e vice-versa.
As tabelas 8 e 9 apresentam os coeficientes de correlação obtidos por meio
da correlação parcial de Pearson, com controle das variáveis sexo e curso
respectivamente. No caso dos coeficientes obtidos na correção parcial com
controle da variável sexo, pode-se notar que, apesar de ter havido pequenas
variação dos índices da correlação entre as escalas C e LS e entre as escalas LS e D,
não houve variação no escore da correlação que se revelou a mais importante, ou
seja, entre as escalas C e D; neste caso, permaneceu a correlação de 0,75,
significativa ao nível de 0,01. A correlação entre essas mesmas escalas foi pouco
menor no caso da correlação parcial com controle da variável curso, 0,72,
significativa ao nível de 0,01. Com base nestes resultados, que indicam não haver
diferença significativa entre as correlações bivariada e parcial que foram
encontradas, decidiu-se proceder à análise e discussão qualitativa dos itens
170
componentes das escalas referindo-se unicamente à amostra conjunta dos dados
coletados.
Tabela 8: Coeficientes de correlação obtidos por meio da correlação parcial de Pearson com
controle da variável sexo
Escalas C LS D
C 1,00 018 0,75*
LS 0,18 1,00 0,11
D 0,75* 0,11 1,00
Obs: *p < 0,01
Tabela 9: Coeficientes de correlação obtidos por meio da correlação parcial de Pearson com
controle da variável curso
Escalas C LS D
C 1,00 0,20 0,72*
LS 0,20 1,00 0,14
D 0,72* 0,14 1,00
Obs: *p < 0,01
Coerência interna e fidedignidade das escalas
O uso de técnicas de investigação empírica em geral, e de técnicas estatística
em particular, para a investigação de fenômenos psicossociais requer que se tenha
sempre em mente as limitações intrínsecas aos instrumentos de coleta de dados.
Neste sentido, é prudente que a análise dos resultados inicie pela avaliação dos
171
próprios instrumentos de pesquisa; de sua coerência interna e de sua validade. No
caso das escalas aqui utilizadas, as quais se baseiam no modelo Likert, porém com
modificações substanciais, o fato de se assemelharem aos testes psicológicos
tradicionalmente utilizados em psicometria favorece o processo de validação a que
devem ser submetidos, pois parte considerável das observações a respeito da
precisão dos demais instrumentos psicométricos também se aplicam a elas. Dentre
os tipos principais de precisão de testes psicológicos apresentados por Anastasi
(1961/1973), três deles puderam ser considerados nesta pesquisa: a amostragem do
item, que se procurou assegurar mantendo-se clareza na formulação das
proposições e vinculação com grupos de categorias supostamente relacionadas à
variável que estava sendo investigada e que, de todo modo, será discutida a seguir
por meio da análise qualitativa dos fatores, dos itens que os compõe e das escalas
utilizadas; a homogeneidade dos itens, que deve assegurar a consistência entre os
itens escolhidos e o objeto que se está investigando, caracterizando a capacidade do
teste de abranger de forma homogênea o conjunto de aspectos importantes de um
determinado fenômeno, de modo a que se garanta a coerência na relação entre os
itens, de item para item, e entre o conjunto de itens e a variável que se pretende
mensurar; e a precisão do examinador e do avaliador, que, neste caso, devido à
aplicação das escalas se tratar de um procedimento bastante simplificado, foi fácil
assegurar.
Para a análise da precisão das escalas, foram verificados os coeficientes
Alpha de Cronbach. Baseado na correlação de item para item, este teste garante um
indicativo estatístico bastante preciso da coerência interna da escala. É certo que a
utilização isolada deste procedimento não garante a precisão do instrumento em
relação às especificidades do objeto investigado, mas ao apresentar índices
suficientes de coerência interna, possibilita identificar incongruências estruturais e
rever a formulação dos itens. Os escores apresentados na tabela 10 permitem
verificar que os coeficientes obtidos foram altos e que não são necessárias
172
modificações na formulação dos itens. A possibilidade de melhorá-los ficará a cargo
de reformulações qualitativas identificadas na análise de seu conteúdo e
amostragem.
Tabela 10: Coeficientes Alpha de Cronbach das escalas
Escalas Alpha de Cronbach
C 0,89
LS 0,77
D 0,76
173
Análise e discussão dos dados
Até certa altura do desenvolvimento desta pesquisa foi mantida a intenção de
dar continuidade à coleta de dados, acrescentando mais material empírico ao que
foi efetivamente analisado. Seria realizada uma nova aplicação das escalas e os
resultados obtidos seriam confrontados com os que foram coletados na primeira
aplicação. Com vistas à realização deste propósito, esta seção de análise de dados
teria uma dupla função: de validação das escalas e de análise dos resultados obtidos.
Quanto à validação, a análise implicaria na avaliação da amostragem dos itens, na
coerência lógica dos enunciados em relação aos fatores mensurados e às escalas que
compõem, e na coerência estatística entre estas mesmas dimensões. Quanto à
análise de conteúdo, o objetivo seria propor interpretações para os resultados
obtidos – médias, desvios padrão e correlações –, bem como propiciar a análise dos
elementos que contribuíram para produção dos referidos resultados, tanto no
sentido de favorecê-los quanto no sentido de garantir melhores performances das
proposições, devido a detalhes de ordem teórica ou retórica. Por meio da análise da
dimensão retórica da exposição, redação das sentenças e coerência lógica de cada
um dos itens, a análise dos dados permitiria superar a mera descrição dos resultados
obtidos, assinalando as possibilidades de aprimorá-los e as eventuais interferências
que sofreram em decorrência dessa dimensão. Com isso, teve-se em mente a
intenção de propor alterações que corrigissem suas limitações constitutivas,
propiciando a reformulação de alguns de seus aspectos para que pudessem garantir
maior precisão nas próximas aplicações.
Como, porém, decidiu-se concentrar o trabalho de interpretação nos dados
provenientes da primeira aplicação e, portanto, não reaplicar as escalas, foi
necessário decidir entre descartar a análise da dimensão retórica do conteúdo
presente nos itens das escalas, a qual permitiria uma autocrítica referente ao
método, ou conservá-la, mesmo não sendo possível explorar plenamente suas
174
conseqüências, o que dependeria de uma nova aplicação. Como a segunda opção
preserva o caráter dinâmico do método e permite elaborar uma interpretação mais
rica dos resultados, preferiu-se mantê-la como parte do processo de análise. Com
isso, a reformulação dos itens para uma nova versão das escalas também pode ser
considerada como parte dos resultados do trabalho de análise. Os avanços que
potencialmente conservam em relação à versão utilizada nesta pesquisa, somente
configuram-se como tais na medida em que a primeira aplicação, efetivamente
analisada, pôde ser suficiente ao entendimento do fenômeno. Com base nesta
decisão epistemológica, optou-se por apresentar as sugestões de reformulação das
sentenças, considerando-se que, em geral, decorreram da análise do potencial
retórico de certas proposições que supostamente obteriam resultados mais precisos
se sofressem pequenas alterações em sua forma.
Análise dos fatores da escala de Conformismo:
Hiper-realismo:
Considerando que o principal objetivo da elaboração da escala C, destinada à
mensuração do conformismo, foi encontrar indicadores confiáveis do modo como
os sujeitos pesquisados posicionam-se diante de estímulos socioculturais e políticos
específicos, a escolha do hiper-realismo como um dos temas que compõem estes
estímulos se deveu à importância que este processo psíquico e cognitivo representa
para efetivação da ideologia totalitária. Se o culto aos fatos, apregoado pela ciência
positivista, pode ser considerado ideológico porque obsta a percepção das
possibilidades de transformação negadas pelo existente, pode-se dizer que a
mentalidade hiper-realista sustenta um modo de apreciação das condições sociais e
políticas que também é essencialmente positivista em sua aceitação da ordem dada
dos fenômenos, porém constituída de menor refinamento e elaboração. Como é,
principalmente, uma estratégia de percepção e entendimento da realidade
175
circundante, em geral, processada a partir da experiência pessoal submersa nas
exigências cotidianas, revela-se aquém do rigor estabelecido pela ciência positivista,
portanto é apenas a sua cópia degradada; assume os fatos não em decorrência de
métodos que permitem a apreensão clara e distinta da realidade a que se curva, mas
tão somente em conseqüência da crença de que não poderiam ser diferentes; de
que, por ter se convertido em um conjunto de fatos, a realidade deve ter se
cristalizado a tal ponto que não mais pode ser transformada. As atitudes hiper-
realistas recaem na resignação frente a situações sociais objetivamente ameaçadoras,
mas desconsidera que seriam passíveis de transformação histórica. Tais situações,
caracterizadas, sobretudo pela repetição cotidiana de situações de violência bárbara,
caos político-econômico e experiências de indignidade humana decorrentes da
política econômica mundial são corretamente percebidas como indícios da vida
degradada, mas, ainda assim, são aceitas como condição inevitável da vida em
sociedade. As proposições formuladas para apreensão deste aspecto do
conformismo consistiram em sentenças afirmativas em relação às quais os sujeitos
manifestaram o grau de sua concordância ou discordância. Como se verá a seguir,
os resultados obtidos foram bastante significativos; o fator hiper-realismo atingiu
uma correlação de 0,79, significativa ao nível de 0,01, com a escala à qual pertence.
176
Tabela 11: Tendências centrais dos itens relacionados ao hiper-realismo
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
12 3,87 2,29 0,62* 0,49*
13 2,95 2,04 0,67* 0,50*
20 3,68 2,32 0,69* 0,63*
24 2,29 1,90 0,59* 0,46*
26 5,17 1,75 0,46* 0,27*
Obs.: * correlação significativa para p<0,01
Como pode ser observado na tabela 11, os itens relacionados ao hiper-
realismo apresentaram desvios padrão distribuídos entre 1,75 e 2,32, indicando
haver um grau suficiente de variabilidade nas respostas. A variação encontrada se
mostrou adequada ao propósito perseguido pela escala; as respostas foram bem
distribuídas sem gerar dispersão excessiva. Em geral, as médias obtidas com este
fator não foram superiores ao ponto central de distribuição da escala. Com exceção
do item 26, cuja média atingiu a pontuação de 5,17, os demais itens tenderam a
baixos graus de discordância, o que não deve levar ao entendimento equivocado de
que os sujeitos não estariam predispostos a aderir ao hiper-realismo. Como todas as
questões desse fator são afirmações explícitas de aspectos relacionados à
mentalidade hiper-realista, a proximidade ao ponto central da escala ou a leve
discordância constituem também indícios importantes de que, uma vez que não é
suficientemente refutada, esta mentalidade pode ser aceita em menores proporções.
Foram encontradas correlações significativas ao nível de 0,01 entre todos os itens
do fator e entre cada um deles e a totalidade dos itens da escala.
177
No item 12 – estar preparado para sobreviver é como estar preparado para a guerra; o
inimigo deve ser derrotado –, o princípio da concorrência inerente às relações de
produção capitalistas foi exacerbado como condição sine qua non da existência.
Nesta formulação, a associação entre a necessidade de sobrevivência e a aceitação
da situação de guerra como condição natural, supõe a sobreposição da
irracionalidade destrutiva da guerra à racionalidade instrumental inerente aos
princípios da economia burguesa relacionados à garantia da sobrevivência dos
indivíduos. O conteúdo pulsional estimulado, delimitado a partir de sua dimensão
essencialmente destrutiva, visa produzir no sujeito uma reação que é bastante
comum nas relações cotidianas: a defesa frente a um estímulo ameaçador, neste
caso, paranoicamente convertida em hostilidade para com o suposto inimigo,
generalizado na figura do concorrente anônimo, que deve ser derrotado. A
concordância com esse item revela a aceitação das condições deploráveis a que as
relações entre as pessoas chegaram; um exagero do que há de pior. Todavia, algo
que ocorreu com relação a este item, mas também se repetiu em muitos outros
casos, deve ser observado: por estar demasiado próxima ao ponto médio da escala,
a média das respostas obtidas com esta formulação (3,87) não chegou a configurar
discordância leve, tendeu ao ponto neutro. Tal neutralidade, contudo, poderia ser
interpretada tanto como falta de clareza em relação ao modo como se posicionar
frente ao enunciado, quanto como falta de firmeza na defesa de uma perspectiva
em relação ao estímulo. Suspeitando que esta tendência a repostas menos explícitas,
também presente em alguns outros itens, possa indicar uma inclinação latente, é
possível que mesmo a opção por baixos graus de rejeição ainda contenham uma
tendência à aceitação tácita da perspectiva afirmada pela sentença. Em geral, as
proposições apresentadas são afirmações explicitamente ideológicas. Portanto, sua
não rejeição, em si mesma, já contém implícita a possibilidade da aceitação tácita do
sentido que afirma. Em decorrência disso, pode-se questionar se a formulação
apresentada não teria se referido muito explicitamente à pulsão de morte, neste
178
caso, tratada como conteúdo manifesto. Como forma de minimizar as defesas dos
sujeitos e aumentar a eficácia desse item, poder-se-ia modificar sutilmente sua
redação, de modo a torná-la menos aversiva, propiciando a identificação dos
sujeitos com a destrutividade inerente ao principio da concorrência, sem, contudo,
sublinhar a presença da pulsão de morte, que neste caso permaneceria latente: a
habilidade necessária para a sobrevivência é semelhante ao preparo que é exigido para a guerra; se
há inimigos, devemos enfrentá-los.
O item 13 – basta observarmos as inúmeras limitações que a vida nos impõe
diariamente para termos certeza de que a pretensão de lutar por um mundo melhor é mera
ingenuidade de idealistas – obteve uma média relativamente baixa (2,95). Mediante tal
resultado, parece conveniente analisar alguns aspectos da formulação que,
independente do conteúdo expressado, possam ter impulsionado os sujeitos à
discordância leve. O destaque que foi concedido ao elemento de realidade
implicado na constatação das limitações impostas à existência aparece subordinado
à conclusão resignada de que a intenção de superar as condições dadas seria apenas
expressão da ingenuidade própria de idealistas. O elemento que, a princípio,
poderia sugerir rejeição foi associado à importância que o verbo lutar representa na
formulação; pois se comumente se aceita o princípio da concorrência, acima
mencionado como expressão de luta pela sobrevivência, o conformismo derivado
da aceitação das condições de existência, que aqui se pretende revelar, é
minimizado pelo impacto adquirido pela ação de lutar, por vezes, também remetida
à mesma destrutividade indicada no item anterior, porém com mais sutileza. Para
futuras aplicações, o item poderá apresentar uma redação mais breve, centrada na
negação das possibilidades de transcendência da realidade material: basta observarmos
as limitações impostas à nossa vida cotidiana, para percebermos que não há muito que possamos
fazer para termos um mundo melhor.
Formulada de modo a sugerir a responsabilização dos indivíduos por seu
enfraquecimento objetivo, o item 20 – nossa sociedade não está mais desenvolvida e melhor
179
organizada porque muitas pessoas incompetentes não sabem aproveitar as oportunidades que o
mercado de trabalho oferece – atribui a contenção do progresso técnico a pessoas
incompetentes que não sabem aproveitar as oportunidades oferecidas pelo mercado
de trabalho. A responsabilidade pela desorganização e pelo subdesenvolvimento é
deslocada do âmbito das relações de produção determinadas pelo capital, atual
sujeito histórico, para dificuldades de ajustamento do trabalhador debilitado. Sugere
que sejam mantidas atitudes essencialmente conformistas: ante os mecanismos de
exploração do trabalho, frente à lógica bárbara do mercado voltado exclusivamente
para o lucro e em relação à cisão entre o progresso técnico e as finalidades humanas
negligenciadas pela produção. Apesar de o conteúdo delimitar de forma precisa
uma dimensão importante da vida social, a média de 3,68 parece não condizer com
a observação do cotidiano, atualmente muito marcado por ideologias que apregoam
o empreendedorismo e a empregabilidade. Como o item traz o problema do
desemprego como expressão da suposta incompetência em se aproveitar às
oportunidades oferecidas pela sociedade, a substituição da expressão mercado de
trabalho por outra mais genérica pode conservar o teor conformista que se
pretende mensurar sem, com isso, sobrelevar um dos principais problemas sociais
da atualidade: nossa sociedade ainda não está mais desenvolvida e melhor organizada porque
muitas pessoas, por incompetência, não sabem aproveitar as oportunidades que lhes são oferecidas.
Mais explícito do que os itens anteriores no que diz respeito à aceitação de
que haja certa propensão ao narcisismo como um dos principais reguladores das
relações sociais e políticas, o item 24 – as eleições não podem mudar a situação de nosso
país, por isso não acredito na política e voto nos candidatos que mais favorecem meus interesses
pessoais – opõe o interesse público aos interesses privados, subordinando o primeiro
a estes últimos. Além da aceitação tácita de que o projeto de transformação das
condições sociais por meio da democracia formal estaria fadado ao fracasso, essa
proposição desvela, de maneira visivelmente explícita, o campo de determinação
subjacente a certos interesses políticos puramente egoísticos. O egoísmo e o
180
ressentimento intrínsecos aos protestos políticos da massa, denunciados por
Nietzsche em Genealogia da moral (1887/2003), são empobrecidos e exagerados
como alegorias do cidadão autocentrado em seus próprios interesses, por essa
razão, não menos presentes em inúmeras manifestações políticas. A média (2,29)
moderadamente baixa indica que o grau de cinismo pressuposto com relação ao
reconhecimento das motivações egoísticas não condiz completamente com a
realidade. Possivelmente, a alusão a esses elementos poderia ser mais indireta para
que não se provocasse a mobilização de defesas morais à autopercepção dessas
motivações vis: não acredito que os políticos façam algo importante para mudar a situação de
nosso país, por isso voto nos candidatos que mais se dispuserem a me ajudar.
Completando as formulações que compõem o fator hiper-realismo, o item
26 – a violência extrema nos leva a temer qualquer estranho que encontremos na rua em situação
suspeita; pois todos são suspeitos até que se prove o contrário – revelou-se paradigmático em
relação ao conteúdo que se pretendeu captar nas respostas dos sujeitos aos itens
desse grupo. A exacerbação paranóica do terror real experimentado no cotidiano
das grandes cidades conserva sua relação imanente com a realidade ameaçadora,
portanto, revela-se condizente com a dimensão objetiva da paranóia concretamente
propagada, mas, ainda assim, indica a possibilidade de haver, associada a esta
dimensão objetiva, um processo de generalização delirante por meio do qual
entram em ação forças muito poderosas que impulsionam os mecanismos de defesa
a não diferenciarem os objetos dos quais se defende; além de também estender a
ameaça exagerada para a totalidade das pessoas desconhecidas que podem ser
deparadas na rua. Elemento que comumente favorece a implantação de políticas de
controle policial e técnico, o temor paranóico é expressão clara do hiper-realismo.
Apesar das modestas correlações encontradas entre esse item e o fator (0,46), e
entre o item e a escala C (0,27), ambas significativas ao nível de 0,01, sua clareza e
precisão refletem adequadamente o objeto investigado.
181
Naturalização:
Próxima ao hiper-realismo no que se refere à justificação das condições
sociais determinadas, porém menos fundamentada no horror coercitivo de fatos
sociais específicos, a naturalização caracteriza um tipo de atitude frente à história e
à cultura que lhes retira o movimento dinâmico, afirmando-os como constantes
estáticas derivadas da natureza humana. Sua relação com a ideologia totalitária
consiste na transformação da história em mito. As sentenças formuladas para
compor esse fator da escala de conformismo caracterizaram formas ideológicas de
justificação das condições sociais e políticas historicamente cristalizadas, bem como
a atribuição dessas condições à natureza dos indivíduos por elas formados, como se
fossem expressão de uma natureza humana originária. A atitude naturalizadora é
conformista porque, negligenciando o movimento dialético da história, assume a
segunda natureza como se fosse uma dimensão da vida completamente invariável.
A correlação encontrada entre esse fator e a escala C (0,89, significativa ao nível de
0,01) foi a mais alta dentre as correlações desse tipo. Se considerada em conjunto
com as correlações que mantém com cada um de seus itens constitutivos, todos
superiores a 0,61 e significativos ao nível de 0,01, e desses com a escala a qual
pertencem, torna-se possível extrair a suposição de que o fator naturalização
congrega elementos bem articulados, constituindo, em conjunto, um dos principais
aspectos do conformismo.
182
Tabela 12: Tendências centrais dos itens relacionados à naturalização
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e o
Escala
1 4,26 1,95 0,61* 0,49*
7 4,95 2,31 0,71* 0,63*
61 4,40 2,01 0,73* 0,70*
64 3,91 1,99 0,66* 0,62*
65 3,61 2,30 0,68* 0,58*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Os dados apresentados na tabela 12 correspondem aos itens destinados a
captar e a medir aspectos da naturalização de processos sociais e históricos
cristalizados em virtude da continuidade de certos modos de organização social,
sobretudo daqueles relacionados à reprodução das relações de produção
capitalistas. Percebidas pelas pessoas, que em geral já se encontram absorvidas pelas
demandas cotidianas, como se fossem fatos inerentes à própria existência, as
condições sociais cristalizadas são deformadas pelo aparelho perceptivo; são
abstraídas de sua gênese e incorporadas ao entendimento alheio à estrutura social
que as constitui. O sucesso desse mecanismo decorre do fato de ele já estar
suficientemente legitimado pela racionalidade tecnológica. Seu funcionamento
compreende uma base cultural constituída por estereótipos arraigados nas relações
sociais e uma base psíquica derivada de necessidades psicológicas insatisfeitas.
Conforme o planejamento teórico das escalas, esses itens propiciariam uma
indicação quantitativa da consonância dos sujeitos indagados com tal mecanismo
de acomodação da realidade histórica ao plano estático da consciência reificada, à
natureza morta. Partindo da suposição de que o conteúdo apresentado conserva em
183
seu âmago uma série de referências objetivas a aspectos da vida social, efetivamente
estagnados, os itens trazem ainda a idéia de que esses produtos da história natural
seriam de natureza a-histórica, relacionados com alguma dimensão da existência em
si mesma imutável. Constituindo sentenças afirmativas, alçadas à condição de
explicações da realidade, os itens em questão reproduzem a regressão do
esclarecimento ao mito; são expressões da ideologia na razão inversa a que se dá em
qualquer tentativa de ocultação do real, aceitam-no tal e qual se apresenta como
natureza imutável.
O item 1 – não haveria vida em sociedade se não houvesse a divisão do trabalho e a
contribuição de competentes administradores que organizam a produção e garantem o comércio de
mercadorias essenciais à sobrevivência – sugere que haja uma ontologia da sociedade
capitalista sustentada nos princípios que ela própria produziu. Provocando a
inversão desses mecanismos de regulação administrativa – a divisão do trabalho e a
administração da produção e da troca de mercadorias –, a própria vida social,
atualmente tão ameaçada pela preponderância da versão globalizada desses
processos políticos e econômicos, é subordinada aos princípios do modo de
produção burguês. A atribuição de competência à burocracia e a exaltação da
importância das mercadorias para a garantia da sobrevivência confrontam tão
claramente a objetividade das contradições sociais que a concordância com a
proposição, em qualquer grau, já é altamente conformista. Apesar da média de 4,26
não alcançar o nível da concordância leve, seguindo os argumentos já
desenvolvidos anteriormente, pode-se considerar que, ainda assim, este resultado é
representativo. Principalmente por se tratar de uma afirmação tão radical e direta
dos princípios da moderna burocracia, da hierarquia administrativa e da divisão
técnica do trabalho, o escore encontrado revela-se interessante. É provável que
uma redação menos direta em relação à disposição conformista possa vir a obter
maior aprovação dos sujeitos, que possivelmente não gostariam de se deparar com
a expressão manifesta de sua própria resignação: uma sociedade bem desenvolvida depende
184
da divisão do trabalho e da contribuição de competentes administradores que organizem a produção
e garantam o comércio de mercadorias essenciais à nossa sobrevivência.
Com o escore mais alto dentre os itens que compõem este fator, o item 7
(4,95) – a violência é um traço natural do ser humano, por isso as autoridades devem ser
rigorosas na repressão dos comportamentos inadequados à conservação da ordem social – também
apresentou aos sujeitos, de modo bastante explícito, uma forma de concordância
com a naturalização do comportamento social regredido, sugerindo ainda que
houvesse empenho na repressão às condutas inadequadas. Segundo a lógica interna
a essa formulação, a ordem social deve ser aceita independente de sua organização
regressiva, como se fosse uma decorrência regular da natureza humana; na mesma
formulação há ainda a indicação de que esta mesma ordenação social, a despeito de
sua face notoriamente cruel, seja mais uma vez afirmada. Dirigidas à repressão dos
comportamentos que não estão inteiramente ajustados ao establishment, as
autoridades são imbuídas do heroísmo coercitivo; que, poder-se-ia argumentar,
estão distantes do horror produzido pelo holocausto europeu, mas demasiado
próximas da ditadura militar (1964-1985) e da violência policial brasileiras,
diariamente referendada em inúmeros veículos de comunicação. Com média de
4,95, indicando concordância moderada, o item condiz com a consciência
domesticada acerca das contradições entre autoridade e violência.
O item 61 – se o ser humano realmente fosse capaz de viver em liberdade, com
igualdade e respeito mútuo, isto já teria acontecido ao longo da história da civilização – supõe
que a indigna imagem do ser humano degradado pelas condições sociais inumanas
deva ser aceita como destino. A formulação repete a lógica naturalizadora utilizada
nos demais itens deste tema, mas recorre à história para justificar a impossibilidade
de superação das condições que atualmente mantém os homens presos a esta
imagem regressiva. Indica a conversão da história da dominação em destino. O
escore médio obtido (4,40), na medida em que assinala a suspensão de valores
como a igualdade, a liberdade e o respeito mútuo, permite inferir a existência de um
185
grau extremo de acomodação às condições sociais estabelecidas. Ao que tudo
indica, esses valores, que sempre foram mantidos como ideais cuja realização não
interessava à sociedade alcançar, agora entraram em contradição mais direta com a
percepção que homens têm da cultura e de si mesmos. São mantidos como
elementos da cultura, mas não como princípios necessários à preservação da vida;
constam dentre os valores não-realizados como uma espécie de propaganda do que
não deve ser objeto de preocupação para os indivíduos empenhados em se adaptar
às condições sociais estabelecidas. Enquanto se poderia esperar de pessoas
realmente esclarecidas que tivessem uma clara oposição aos conteúdos presentes
nesta formulação francamente ideológica, a média atingida revela, ao contrário, que
nem mesmo uma depreciação tão extrema dos valores vitais, ensejada pelo sentido
da sentença, é capaz de abalar a crença na imutalibidade do todo.
Localizada próxima ao ponto neutro, a média (3,91) do item 64 – as
pesquisas no campo da genética não tardarão a descobrir as razões pelas quais as pessoas são tão
gananciosas e individualistas – indica que mesmo sugerindo um exagero tão evidente
como o que foi explicitado pela sentença, esta formulação também não foi
suficientemente rejeitada pelos sujeitos como poderia ser esperado de indivíduos
autoconscientes. De todo modo, independente de não ter havido concordância
explícita com o enunciado, a racionalidade técnica, que na proposição foi
convocada a legitimar a origem biológica de traços de caráter claramente vinculados
com as condições de existência social desenvolvidas sob a determinação do
capitalismo, parece ter desempenhado papel fundamental na definição do escore
obtido com esta questão. Ela suscita que indiretamente se concorde com o
potencial evolutivo da ciência. Por isso, tal como formulada, a questão associa o
problema da natureza genética dos referidos traços de caráter com a confiança na
capacidade preditiva da ciência. É possível que esta associação possa ter ocasionado
uma interpretação dúbia da formulação. Com isso, é também possível que se fosse
melhor delimitada a referência a padrões maturacionais biológicos, o item pudesse
186
captar o aspecto investigado com maior precisão; para tanto seria conveniente que
enfatizasse a naturalidade de certos traços de caráter associados à sociedade
mercantilista, preservando, ao mesmo tempo, o sentido ambíguo que estes traços
conservam nas freqüentes racionalizações do comportamento ajustado às
exigências econômicas e sociais: talvez algum dia os cientistas descubram os genes que
provocam a falta daquele tipo de ambição e competitividade que são tão necessárias ao sucesso.
Com a média mais baixa dos itens que compõem este tema, a proposição
65 – não se pode contrariar a natureza, homens e mulheres são seres essencialmente diferentes,
principalmente quanto ao papel que cada um deve desempenhar na sociedade – sugeriu que as
distinções relativas ao papeis sociais correspondente aos homens e às mulheres
estaria fundamentada na natureza. O escore médio de 3,61, situado entre o ponto
neutro e a discordância leve, indica que, apesar de ter sido pequena a oposição ao
conteúdo da sentença, não houve aceitação de que, por razões naturais, homens e
mulheres devam desempenhar papeis essencialmente diferentes na sociedade.
Frente a este resultado, é importante considerar que devido às conquistas do
movimento feminista e à adoção, entre as mulheres, de atitudes e comportamentos
profissionais similares aos que foram historicamente reproduzidos pelos homens,
as distinções quanto ao desempenho profissional foram duramente questionadas,
caracterizando uma situação especial. Parte dos princípios do feminismo, em
especial os que se referem à igualdade nas relações de trabalho, foram incorporados
à consciência geral. Com isso, é possível supor que os escores obtidos estejam, de
fato, revelando adequadamente uma situação social particularmente nova, na qual
tais distinções adquiriram outra função na ordenação social. Todavia, se a igualdade
social adquirida pelas mulheres corresponde à participação na dominação,
anteriormente exclusiva dos homens, esta constatação deve acarretar conseqüências
relevantes também para a interpretação deste item. Se a motivação para que
houvesse rejeição dessa proposição foi o ajustamento da mulher ao papel social
masculino, à virilidade intrínseca ao princípio da concorrência, com isso, este
187
mesmo ajustamento pode estar caracterizando uma tendência conformista. Para
investigações futuras, a formulação desta sentença poderia receber uma nova
redação com o intuito de abranger essas transformações sociais recentes, que
possivelmente apagam a consciência histórica, sugerindo, de outro prisma, a
naturalização do novo fenômeno: apesar de serem biologicamente diferentes, se quiserem
conquistar a igualdade social, as mulheres devem ter autoridade; ser tão duras e competitivas
quanto os homens.
Cinismo:
Os itens cujos dados estão apresentados na tabela 13 correspondem a mais
um dos temas que compõem a escala de conformismo, o cinismo. Vinculado à
aceitação resignada de princípios manifestamente irracionais, o cinismo
compreende uma das mais importantes e mal-compreendidas dimensões da
ideologia totalitária. Caracteriza um dos elementos psicossociais que são
responsáveis pela sustentação cognitiva dessa ideologia, assegurando sua eficácia
em afirmar-se perante o entendimento, apesar de sua irracionalidade explícita. Com
relação a este assunto, é interessante recorrer à análise que Horkheimer e Adorno
(1956/1978) fizeram do substrato psicológico da ideologia totalitária. Desvelaram o
mecanismo por meio do qual ela afigura-se como “a própria imagem ameaçadora
do mundo” (p. 203), sem que, para isso, tenha que se empenhar na ocultação das
contradições do sistema ou na distorção do entendimento. Mesmo reconhecidos
em sua falsidade lógica, os conteúdos ideológicos são aceitos pelas pessoas como
ilusão socialmente necessária. Nesse sentido, pode-se dizer que o cinismo funciona
como um dos mediadores dessa ilusão, a qual, apesar de ter base na vida material,
utiliza-se de todos os ardis possíveis para a sua sustentação, quer sejam psicológicos
ou cognitivos. Neste contexto, o cinismo configura-se como um subterfúgio para o
indivíduo que depende das ilusões para suportar a vida, mas não a compreende
188
nem tem força para superá-la, adere a ele por causa das vantagens secundárias que
propicia. Tragado por suas próprias racionalizações, em geral, contraditórias em
relação à dimensão lógica e cognitiva do entendimento, ele permanece preso à
própria realidade; com sua percepção bloqueada por meio de uma sombra que não
oculta o fato de suas necessidades reais permanecerem insatisfeitas, mas as colore
de tal modo que se tornam mais suportáveis para ele.
A correlação entre este fator e a escala C (0,72, significativa ao nível de
0,01) não deixa dúvidas quanto à sua influência sobre o desenvolvimento de
atitudes conformistas. Por constituir parte importante da base psíquica sobre a qual
se consolidam a distorção cognitiva das idéias incorporadas pelos indivíduos, apesar
de sua irracionalidade manifesta, e dos valores culturais condizentes com o
princípio do individualismo reinante, o cinismo forma uma estrutura complexa de
adesão às ideologias totalitárias. As correlações com os demais fatores que
compõem a escala C também foram satisfatórias, de modo que se pôde obter um
bom índice de confiança em sua coerência técnica. Com exceção da correlação
encontrada entre ele e o fator submissão à autoridade, que foi de 0,46, significativa ao
nível de 0,01, as correlações com os demais fatores foram todas superiores a 0,51,
significativas ao nível de 0,01.
189
Tabela 13: Tendências centrais dos itens relacionados ao cinismo
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
5 3,83 2,10 0,40* 0,26*
9 4,75 2,05 0,49* 0,41*
29 5,12 2,19 0,58* 0,32*
66 4,49 2,34 0,70* 0,56*
67 3,08 2,18 0,56* 0,39*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Em conjunto, os itens da escala C, orientados para a mensuração do
cinismo, indicaram um escore médio sutilmente favorável ao conformismo – média
do fator: 4,25. Como já foi apontado anteriormente em relação a situações
similares, apesar da proximidade entre o escore e o ponto neutro da escala, ainda
assim, este dado apresenta relevância para os objetivos desta pesquisa, pois revela
uma tendência central para a compreensão do conformismo. Todavia, como o grau
de aprovação de alguns dos itens que compõem este fator correspondeu a médias
relativamente baixas em relação às médias que foram encontradas em outros, é
conveniente analisar se houve elementos específicos no conteúdo delimitado que
possam ter influído particularmente para que se obtivessem esses resultados. Os
itens 5 e 9 obtiveram correlações baixas com o fator, respectivamente 0,40 e 0,49
significativas a 0,01. No caso do item 5, houve ainda baixa correlação com a escala
(0,26 com p<0,01) e média também baixa (3,38). Já o item 29, que atingiu a média
mais elevada do grupo (5,12) e boa correlação com o fator (0,58 com p<0,01),
também manteve baixa correlação com a escala (0,32 com p<0,01). Esses dados
sugerem, no primeiro caso, que pequenas reformulações de certos aspectos da
190
redação, em muitos casos aversivos devido a seu conteúdo manifesto, poderiam
preservar e até aprimorar a qualidade dos itens, garantindo uma maior correlação
com o fator; no segundo caso, deve-se considerar que, naturalmente, possa haver
independência entre os fatores, portanto correlações mais modestas entre eles e a
escala.
Voltada para a experiência cotidiana, a proposição apresentada no item 5 –
mesmo sabendo que as novelas e filmes distorcem a realidade, gosto de assisti-los porque me
distraem, tornando o dia-a-dia mais aceitável – visou destacar certa forma de aceitação
dos produtos da indústria cultural, referendando o papel que cumprem na
amenização do impacto causado pelos infortúnios cotidianos. A partir da afirmação
de que esses produtos distorcem a realidade, a formulação pressupõe que haja
percepção consciente de algumas das implicações do consumo desses produtos
para a acomodação subjetiva, relacionando-as com os efeitos subjetivos que
produzem no tele-espectador. A partícula final da afirmação apresentada realça o
efeito anestésico que os referidos produtos podem ocasionar. Com isso, a
contradição entre a dimensão cognitiva e o significado subjetivo aceito é levada ao
extremo, tornando-se absolutamente explícita. Tendo em vista estes aspectos, cabe
considerar que, apesar de cumprir o propósito almejado por meio deste grupo de
questões, o item apresentou algumas limitações que devem ser apontadas:
subestimou a resistência dos sujeitos frente à contradição explicitada na sentença;
pressupôs que o sujeito gosta de consumir os referidos produtos oferecidos pela
indústria cultural. Frente a estas limitações é recomendável que, em futuras
aplicações, o item receba nova redação, preservando a problemática que
circunscreve, mas, ao mesmo tempo, amenizando o impacto desencadeado pela
alusão direta à consciência da contradição; além de retirar a pressuposição de que
todos os interpelados possam se satisfazer por meio do consumo de tais produtos:
alguns filmes, novelas e programas humorísticos distorcem a realidade, mas acho que ainda assim
são importantes porque tornam mais fácil aceitar as dificuldades do dia-a-dia.
191
O item 9 – não acredito no que dizem os políticos, mas precisamos de líderes que
saibam conduzir o povo – obteve uma média de 4,75. Apesar das correlações modestas
com o fator e com a escala, respectivamente 0,49 e 0,41 (significativa para p<0,01),
o escore obtido indica que houve concordância moderada com o enunciado. Dado
a clareza na apresentação do conteúdo e o fato de os resultados obtidos revelarem-
se condizentes com as hipóteses que impulsionaram à sua formulação, não há
razões para se questioná-lo. Composto por duas sentenças simples e diretas, a
formulação sugere a concordância com uma derivação logicamente incorreta e
explicitamente perigosa. A compreensão de que os discursos políticos não são
confiáveis é convocada a legitimar a existência de líderes astutos na condução das
massas. Em conseqüência da compreensão generalizadora, que não-diferencia entre
as tendências políticas em voga, a heteronomia é fortalecida. Alçada à condição de
matriz lógica da manipulação política, o entendimento a respeito da falsidade dos
discursos políticos é paradoxalmente reincorporado às motivações da atitude
conformista; a entrega a um poder formalizado é justificada pela descrença na
verdade deste poder.
O item 29 prefiro fingir concordância a ter que discutir sobre certos temas ligados à
política – remete a um tipo de apaziguamento essencialmente falso, em geral
caracterizado por referência à aparente cordialidade com que se evitam discussões
conceituais; as quais sempre são prováveis razões para se retirar o verniz
civilizatório que freqüentemente recobre as intenções mais individualistas e as
situações mais desumanas com a singela cordialidade dos indivíduos bem
adaptados. A opção deliberada pela simulação, a concordância estratégica com fins
a se evitar contendas políticas, contribui para depreciação da esfera política.
Segundo sugere esta proposição, que obteve média expressiva (5,12), referente à
concordância moderada, o campo específico das relações políticas deve ser
esvaziado de sua principal substância para que se produza o consenso aparente: a
possibilidade da argumentação racional. A crítica elaborada por Adorno
192
(1969/1995) à falência da comunicação interpessoal descreve com precisão o teor
psíquico expressado pelo escore médio desse item:
A própria sociabilidade é participação na injustiça, na medida em que finge ser este
mundo morto um mundo no qual ainda podemos conversar uns com os outros, e a
palavra solta, sociável, contribui para perpetuar o silêncio, na medida em que as
concessões feitas ao interlocutor o humilham de novo na pessoa que fala. (Adorno,
1969/1995, p. 19.)
A proposição 66 – mesmo não acreditando totalmente no que defendem, acho melhor
que as pessoas sigam alguma religião ao invés de nenhuma, pois assim conseguem suportar melhor
os infortúnios da vida – obteve adesão média de 4,49, caracterizando uma tendência à
concordância leve. Este não é um escore elevado, mas, ainda assim, pode-se
considerar que é expressivo, principalmente se pensado em relação ao teor bastante
direto do conteúdo, que corresponde à afirmação do ajustamento social por meio
da religião. Os coeficientes obtidos por meio da correlação com o fator e com a
escala, já mencionados acima, sobretudo a correlação com o fator (0,58,
significativa para p<0,01), reforçam a pertinência do item para a mensuração deste
aspecto do conformismo. Voltada para a contraposição entre a confiança nos
princípios gerais das religiões e o reconhecimento do papel que desempenham na
adaptação dos indivíduos, a proposição destaca o mecanismo de subordinação dos
valores culturais tradicionais a finalidades estranhas ao âmbito essencial desses
valores. Contudo, ainda apresenta uma limitação que deve ser observada: a
pressuposição de que os sujeitos não acreditam totalmente no que as religiões,
indiretamente aludidas, potencialmente defendem. Tal pressuposição pode desviar
a atenção dos sujeitos do ponto que mais importa enfatizar, ou seja, pode sobrepor
a problemática metafísica da crença ao fato principal de que as religiões propiciam
condições subjetivas favoráveis ao desenvolvimento de maior tolerância em relação
aos infortúnios da vida. Frente a este risco, que no momento pode apenas ser
apontado para que a interpretação seja a mais lúcida possível, é interessante já
ensaiar uma redefinição da forma de escrita da sentença para que, com isso,
193
futuramente possa ser obtida maior precisão de conteúdo. Pretende-se que a versão
reformulada deste item possa preservar a ênfase dada à dimensão adaptativa, porém
de modo a se considerar a possibilidade de que haja, por parte dos sujeitos, alguma
consciência das limitações da própria crença nos referidos princípios e não a
pressuposição de total descrédito que a ela foi atribuído na versão atual: mesmo que a
religião seja apenas um fator dentre outros na determinação da vida social, prefiro que as pessoas
sigam alguma ao invés de nenhuma, pois assim suportarão pacientemente os infortúnios da vida.
A média de 3,08 obtida por meio da aplicação do item 67 – jamais colocaria
meu emprego em risco, mesmo que nele tivesse que abrir mão de alguns ideais e fazer coisas com as
quais não esteja realmente de acordo – sugere que, para os sujeitos indagados, a
autoconservação, possivelmente, não possa ser afirmada cegamente em
contraposição aos princípios éticos. O leve grau de rejeição encontrado indica que a
hipostasia da autoconservação sugerida pela proposição não é compartilhado pela
totalidade dos sujeitos, ao menos, não no mesmo nível insinuado pela proposição.
Contudo, cabe considerar que o grau de rejeição da sentença não ultrapassou o
nível da discordância leve e que, portanto, se considerado o desvio padrão de 2,18,
houve sujeitos significativamente favoráveis ao conteúdo do item. Contrariando a
expectativa de que a premente situação de desemprego e a tendência a interpretar a
autoconservação por meio do individualismo, representado nesta sentença por
alusão à postura de não colocar o emprego em risco mesmo mediante situações em
relações às quais há discordância, o escore médio deste item revela um aspecto
importante do atual modo de aceitação da ideologia totalitária: as motivações que
impulsionam a aceitação de conteúdos ideológicos manifestamente irracionais estão
mais diretamente sustentadas em subprodutos psíquicos de necessidades objetivas
do que em uma consciência cínica desvinculada da ameaça real. Mesmo estando na
base dos principais mecanismos de integração, a autoconservação, ou ao menos o
que na consciência comum se mantém como tal, não é utilizada para justificar tudo;
pelo menos não neste nível de explicitação das contradições que a sentença sugere.
194
Com a reformulação deste item, pretende-se manter a contradição já explorada,
mas delimitar um pouco melhor seus termos; enfatizando não apenas a
autoconservação, mas principalmente o papel crescente dos interesses egoísticos: eu
não perderia uma boa promoção ou oportunidades de ter sucesso por causa de divergências políticas.
Submissão à autoridade:
A delimitação dos processos psicossociais de submissão à autoridade como
um dos fatores que compreendem o fenômeno do conformismo visou captar as
atitudes que reproduzem a dinâmica das relações sociais sob a forma de um
ajustamento às estruturas sociais e políticas hierárquicas, promovendo a hipostasia
das normas estabelecidas independente dos prejuízos humanos delas decorrentes.
Quer seja por medo de ameaças reais ou ilusórias, quer seja por observância
heteronômica às normas sociais impostas, acatadas devido à ignorância ou à
resignação, a submissão à autoridade representa um dos principais aspectos da
dinâmica psíquica subjacente aos regimes totalitários. Em Educação após Auschwitz,
Adorno (1967) argumentou que seria necessário investir todo potencial do
esclarecimento para que se pudesse impedir que continuassem a se formar pessoas
submissas à autoridade dos líderes fascistas, os quais ao contrário dos assassinos de
gabinete – em geral, profundamente deformados na estrutura do caráter –, podem
ter suas atitudes modificadas por meio da educação. Refletindo acerca de uma
pergunta que lhe fora feita por Benjamin a respeito de ainda haver, naquele
momento histórico, algozes em número suficiente para executar as ordens dos
nazistas, Adorno concluiu que a pergunta de Benjamin guardava um entendimento
fundamental acerca dos limites e alcances da educação:
Benjamin percebeu que, ao contrário dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as
pessoas que executam as tarefas agem em contradição com os próprios interesses
imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros.
(Adorno, 1967, p. 137.)
195
Considerando esses aspectos dinâmicos, é interessante destacar que a
submissão à autoridade constitui uma das principais bases do moderno
conformismo, pois modifica substancialmente a qualidade da relação que as pessoas
enfraquecidas em sua capacidade de autodeterminação mantêm com as diversas
esferas de autoridade, sobretudo com aquelas experimentadas dogmaticamente
como se fossem verdades inquestionáveis. Sob o efeito entorpecente da coerção
exercida por determinadas instâncias de poder, muitos indivíduos já predispostos
ao autoritarismo se ajustam à hierarquia, passando à aceitação imediata dos valores
e da racionalidade que a condição à qual se ajustam comporta. Nesse nível de
análise mais geral é difícil distinguir entre a incapacidade para resistir à pressão
externa exercida por alguém ou por alguma instituição investida de um suposto
poder, ou mesmo daquele tipo de saber dogmático que se afirma de modo similar
ao poder coercitivo, e a subserviência mais extrema encontrada dentre os algozes
nazistas. Todavia, é fato que ambos os modos guardam em comum a debilidade do
indivíduo e a conveniência para o sistema de que ele adapte-se ao funcionamento
da máquina social; que tanto em um caso quanto em outro, não desenvolva
autodeterminação suficiente para opor resistência à ordenação bárbara.
O coeficiente de correlação encontrado entre este fator e a escala C foi de
0,85, significativo ao nível de 0,01. Este resultado permite afirmar que, de fato, sua
delimitação como um dos elementos da escala apresenta coerência com a análise do
conformismo. Em relação aos demais fatores foram encontradas correlações
significativas ao nível de 0,01. As correlações que mais se destacaram foram aquelas
estabelecidas com os fatores naturalização (0,78) e apatia (0,66), permitindo supor
que a falta de expectativas e de identificação com o semelhante podem estar mais
particularmente relacionadas com a submissão à autoridade. A percepção da
ordenação hierárquica como condição natural à qual se deve ajustar para sobreviver
e a incapacidade de estabelecer relações empáticas com as vítimas esquecidas pelo
196
progresso técnico parecem manter importante relação com a aceitação de ordens
muitas vezes contrárias aos interesses racionais dos indivíduos.
Tabela 14: Tendências centrais dos itens relacionados à submissão à autoridade
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
15 5,55 2,04 0,76* 0,61*
32 5,12 2,17 0,74* 0,65*
56 4,83 2,09 0,75* 0,61*
68 5,99 1,74 0,63* 0,54*
69 5,36 2,13 0,70* 0,63*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Em geral, os itens constitutivos desse fator obtiveram médias elevadas e
correlações muito expressivas tanto com o fator quanto com a escala C. Frente a
esse resultado, pode-se inferir que o nível de correlação entre os itens (vide tabela
14) revela a abrangência dos aspectos por meio dos quais a submissão à autoridade
está arraigada na cultura e, conseqüentemente, também o alcance da análise de seus
termos.
Em consonância com o conteúdo sadomasoquista mensurado pela Escala F,
de Adorno et. alii (1950/1965), o item 15 – se tivéssemos leis mais severas os criminosos
ficariam mais inibidos – sugere que o aumento da severidade das leis traria a
possibilidade de coibir o crime. Em sua estrutura breve e direta, a proposição
estabelece uma relação causal entre o exercício do poder coercitivo e o ajustamento
às normas sociais. Desconsiderando tanto as limitações do sistema policial e
197
jurídico quanto as contradições sociais e econômicas que contribuem para
degradação da dignidade humana – que, no caso do criminoso, fica reduzida ao
nível do adoecimento –, a atitude representada por este item sugere a aceitação
naturalizadora da ordem social e sua reprodução bestial no mecanismo autofágico
que produz para conter àqueles que são excessivamente fiéis na imitação do poder.
Se analisada isoladamente, a média de 5,55, indicativa de concordância moderada,
parece suspeita de fácil aceitação. Contudo, como o desvio-padrão (2,04)
apresentou variabilidade suficiente e o conteúdo nela contido parece discriminar
adequadamente uma atitude de submissão à autoridade por medo da violência que
a realidade produz, pode-se inferir que o resultado obtido é representativo. O
aumento da severidade das leis condiz tanto com a extensão da vigilância descrita
por Foucault (1975/1995) em sua análise da sociedade disciplinar quanto com a
imagem do homem burguês, adaptado ao extremo no interior da penitenciaria,
criticado Horkheimer e Adorno (1944/1985) em sua análise da moléstia que a
sociedade quer impingir aos criminosos para que se ajustem ao pólo submisso do
poder que tentam imitar.
Com escores similares aos da proposição anterior, o item 32 – hoje em dia,
muitas pessoas, inclusive juízes, políticos e policiais desrespeitam as leis e a ordem; somente uma
educação rígida, que desde cedo promova a obediência às leis, poderá garantir a harmonia social
atingiu uma média (5,12) correspondente à concordância leve. Este é um resultado
importante, pois mesmo tratando-se de uma formulação tão claramente vinculada à
apreciação formalista das leis e ao entusiasmo ante a austeridade aceita como
princípio educativo, o grau de aceitação obtido revela que face ao caos social e
ético, hoje evidentes, o modelo de formação desejável não se baseia no
esclarecimento, mas sim na educação pela rigidez e pela submissão ao poder do
suposto educador. Os resultados da aplicação sugerem ainda que o apego às leis e a
exigência de que se as respeite, mesmo que às custas de uma educação rígida,
convive harmoniosamente com a percepção de que aqueles que a representam
198
também não a cumprem; portanto de que as próprias leis seriam elaboradas por
pessoas cujas motivações e interesses não seriam isentos das mesmas limitações que
se observa naqueles que descumprem-nas sem pudor.
Mesmo com a média mais baixa desse conjunto de itens, a proposição 56 – o
desemprego é motivo suficiente para cumprimos mais fielmente as exigências do trabalho – atingiu
o escore de 4,86, indicando concordância leve com a afirmação a respeito das
exigências do trabalho. O conteúdo dessa sentença explora a percepção comum de
que a ameaça de desagregação social (Adorno,1955/1986), implícita na alta
incidência do desemprego, depende do não cumprimento fiel das exigências do
trabalho. Todavia, a densidade com que estas situações se impõem na vida
cotidiana deixa poucas possibilidades de oposição ou resistência às exigências feitas
em nome do trabalho. Sujeição forçada em nome da sobrevivência ou renúncia à
percepção de que, de qualquer modo, o risco é extremo e sua supressão depende
menos da obediência do que da confrontação com regras que sustentam o sistema.
A autoridade dos poucos indivíduos que dispõem de poder e do saber sobre a
dimensão do risco é equivalente à impotência social dos que acabam por sujeitar-se.
Uma nova redação, menos aferrada às imposições concretas das quais pouco se
pode esquivar, poderá captar uma dimensão mais próxima, senão do âmbito das
decisões, neste caso também dificultadas, ao menos das justificativas e avaliações
que ainda podem ser ou críticas ou meramente resignadas: com o aumento do
desemprego não resta alternativa senão aceitar as condições de trabalho sem reclamar.
Com média relativamente alta (5,99), correspondente à concordância
moderada, o item 68 – não tenho dúvidas de que falta mais determinação e pulso forte para os
governantes deste país – surpreendeu por ter obtido resultados tão expressivos apesar
de ser bastante explícito em sua afirmação da tendência autoritária. O grau de
certeza apresentado em relação à necessidade de que haja mais pulso forte e
determinação para os governantes, não somente apaga da memória o passado
recente da política brasileira, mas também deforma a percepção de que há
199
assimetria de poder na relação entre governantes e governados e que as
contradições que produz, sobretudo quando mediadas pelo autoritarismo insinuado
na proposição, não são percebidas em termos de sofrimento humano.
A formulação apresentada no item 69 – os direitos dos mais pobres só existem no
papel, na prática é inútil enfrentar os poderosos – parte da menção a uma constatação a
respeito da realidade objetiva e, em seguida, afirma-se condizente com uma postura
claramente resignada. O questionamento a respeito do casuísmo a que estão
relegados os direitos dos mais pobres e a alusão às distinções de poder,
estabelecidos pela hierarquia social, são deslocados do âmbito da crítica social para
a conclusão conformista de que é inútil contrapor-se aos poderosos. A média de
5,36 permite inferir que é constante a ação da ideologia totalitária na deformação da
capacidade perceptiva dos indivíduos sujeitos à coerção onipresente da realidade. A
co-dependência entre a submissão à autoridade e a obstrução da percepção das
possibilidades de resistência fica desvelada por meio de proposições como esta, que
vincula a constatação hiper-realista do cerceamento social objetivo à ação de
entregar-se de maneira inerme às exigências do opressor.
Apatia:
Identificada por Horkheimer e Adorno (1944/1985) como uma das
conseqüências mais funestas do desenvolvimento do indivíduo burguês,
contraditoriamente livre de toda tutela, e como condição essencial à reprodução da
razão formal, a apatia caracteriza a indiferença em relação aos objetos específicos
aos quais se dirigem as equações lógicas utilizadas para afirmação do sujeito
supostamente autônomo, porém submerso no mundo da heteronomia. Marcada
pela cisão entre o afeto e a racionalidade, a apatia possibilita ao sujeito realizar-se
sem tutela, mas também sem os limites que remetem sua vontade particular à
universalidade ética; portanto, permite-lhe realizar-se contrariamente às condições
200
necessárias para sua própria conservação. Os limites representados pela
universalidade da preservação da vida e da felicidade humanas implicam na
realização da liberdade e autonomia de todos os indivíduos e não somente daqueles
que se valem da autodeterminação ao preço do sofrimento geral. A atitude apática
revela-se cruel ao suplantar as potencialidades humanas em nome da realização dos
próprios interesses por meio da razão formal. Contudo, distinta da crueldade que
almeja a aniquilação alheia, diretamente vinculada às pulsões destrutivas, o devaneio
de poder incondicional propiciado pela racionalidade tecnológica legitima a frieza
frente às condições de sofrimento explícito e à miséria material e cultural da
sociedade em que se vive.
Apresentando correlações significativas com todos os demais fatores da
escala C, em geral com escores superiores a 0,52 e significativos ao nível de 0,01, o
fator apatia relaciona-se de modo mais importante com os fatores submissão à
autoridade (0,66) e naturalização (0,72). Em relação ao conjunto da escala C, esse fator
obteve um dos escores mais expressivo: 0,86. Com exceção do item 47, que neste
caso destoou do conjunto dos itens componentes do fator devido a sua média mais
elevada (5,57), todas as demais correlações entre os itens e entre eles e a escala C
foram significativas e superiores a 0,55. Como as médias tenderam a escores mais
baixos, principalmente se comparadas com outros fatores dessa escala, apesar dos
desvios padrão encontrados terem sido adequados, mostrando haver boa variação
nas respostas, ficou a cargo da análise do conteúdo a verificação de aspectos que
poderiam ter ocasionado médias baixas.
201
Tabela 15: Tendências centrais dos itens relacionados à apatia
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
19 3,03 1,91 0,60* 0,55*
47 5,57 1,85 0,41* 0,32*
58 3,12 2,06 0,73* 0,59*
70 3,73 2,57 0,68* 0,55*
71 3,84 2,33 0,71* 0,67*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Com média geral de 3,86, o conjunto de itens destinados à mensuração da
apatia foi determinante da média geral da escala C (4,17), obtida por meio do
cálculo dos dados da amostra unificada. Considerando que a apatia constitui parte
da substância subjetiva da racionalidade tecnológica, pode-se ponderar que sua
relação com o conformismo abrange tanto a aceitação formalista de princípios
pseudo-racionais, comumente contrários à autonomia, quanto o isolamento
monadológico de indivíduos que, por estarem voltados para seus interesses
particulares, não apenas atestam, mas ratificam o estado de enfraquecimento em
que se encontram. Sua indiferença ante o sofrimento universal é também expressão
do medo de serem acometidos pelo mesmo destino; reação de repulsa à consciência
de que também estão sujeitos à fatalidade universal. É somente em estado de
absoluta alienação que é possível bloquear a percepção da identidade entre os que
já foram dizimados pela barbárie e os que estão sob o risco da aniquilação iminente,
mesmo que sob formas mais brandas.
Apesar de apresentar um dos aspectos mais importantes da frieza atinente
às relações sociais burguesas, o item 19 – se fossemos lamentar os infortúnios de todos os
202
miseráveis e vítimas da violência não teríamos a menor chance de sermos felizes, por isso tem
muitas coisas sobre as quais é melhor nada saber – obteve média (3,03) próxima à
discordância leve. Esse resultado, comum também a outros itens desse fator, sugere
a indagação acerca da precisão e do modo de exposição do conteúdo. Ainda que
expressivo por não caracterizar forte rejeição, o escore obtido parece não condizer
perfeitamente com a observação cotidiana. Por essa razão, decidiu-se avaliar mais
detalhadamente a possibilidade de que a formulação do conteúdo, devido ao modo
de exposição de certos elementos mais repulsivos à consciência, esteja demarcando
com ênfase excessiva a contraposição entre a felicidade individual e o sofrimento
coletivo. Nesse sentido, a proposição espelharia a disposição psíquica dos
indivíduos para obtenção do prazer pessoal a despeito da miséria e da barbárie
coletivas, além de acrescentar o desinteresse a respeito do que está ocorrendo ao
redor, com isso, remetendo o sujeito aqui indagado a uma posição extrema e
explicitamente condescendente com o sofrimento geral, o que, por fim, poderia
despertar um tipo de reconhecimento para o qual talvez as pessoas não estejam
preparadas. A proposta de reformulação desse item para aplicações futuras
pretende manter a demarcação do papel que a indiferença ao sofrimento alheio
representa na economia psíquica, mas ao mesmo tempo, evitar o contato direto
com a idéia de que possa ser precisamente este distanciamento uma das principais
condições para a produção da felicidade ou do prazer alienados. Com isso, supõe-
se que se tornará possível evitar o contato abrupto com o sentimento culpa que,
apesar de amenizado nas relações sociais atuais e de possuir uma função
homeostática ajustada à própria frieza, ainda guarda suas raízes na compaixão cristã:
se me preocupasse com os infortúnios de todos os miseráveis e sofredores do mundo não teria
condições de conquistar minha própria felicidade.
O conteúdo do item 47 – sempre aconteceu, mas agora que está tornando-se mais
freqüente, o assassinato de delinqüentes infantis e de moradores de rua levá-me a temer pela
segurança das pessoas que amo e que me são próximas – sugere haver relação entre o temor
203
comumente sentido pela vida de pessoas queridas, em geral desencadeado em
resposta ao aumento da violência, e a indiferença quanto à desagregação e os riscos
vividos por aqueles estranhos com os quais aqui se compara o cuidado exclusivo
despendido com os que são próximos e queridos. Esse item apresentou média alta
(5,57), porém o fato de ter destoado do grupo de questões do qual faz parte e de
apresentar menor variabilidade, com desvio padrão de 1,85, além de baixas
correlações com o fator (0,41, sig. p/p<0,01) e com a escala C (0,32, sig.
p/p<0,01), permite questionar se esses resultados não estariam associados mais ao
franco temor pela segurança daqueles que o sujeito interpelado quer bem, portanto
a uma certa extensão do círculo narcísico, do que, como se pretendia indicar, com a
indiferença para com os desconhecidos, exteriores ao suposto circulo de
abrangência do narcisismo. Frente a esta questão, supõe-se que uma revisão dessa
sentença deve enfatizar a oposição entre o endogrupo, narcisicamente investido, e
o exogrupo, por vezes, tratado com indiferença; mas tal alteração deve cuidar para
que a contraposição não se sobreponha ao teor psicológico da contradição: a miséria
traz muitos riscos, mas como não dá para resolver os problemas dos outros, se conseguirmos cuidar
de nossa família e amigos já estaremos fazendo muito para que tenhamos um mundo melhor.
Com média também baixa (3,12), mas com correlações altas e significativas
com o fator (0,73, sig. p/p<0,01) e com a escala C (0,59, sig. p/p,0,01), o item 58 –
o Brasil não deveria se pronunciar a respeito dos conflitos entre os Estados Unidos e os países do
Oriente Médio; devemos evitar riscos, não nos envolvendo em assuntos que são alheios aos nossos
interesses – apresentou como conteúdo a insinuação de que, visando evitar riscos
supostamente desnecessários, devemos ser indiferentes a um dos mais importantes
conflitos internacionais da atualidade. O resultado obtido, contudo, revelou haver
discordância leve em relação a essa sentença, tornando difícil afirmar que, apesar do
medo insuflado pela referência aos riscos contidos na intromissão em conflitos
alheios, haja indiferença em relação à barbárie em voga, envolvendo os países
mencionados. O único aspecto dessa questão que aparentemente pode ter influído
204
em seu resultado é a alusão aos interesses pessoais na última frase da sentença. Tal
alusão pode ter desvelado uma motivação especificamente utilitarista para o não-
envolvimento, tornando manifesto um conteúdo que estaria latente, e isto, caso
realmente tenha ocorrido, pode ter provocado defesas ante a afirmação, pois seu
sentido assim explicitado esbarra em valores morais fortemente arraigados na
cultura ocidental cristã. É certo que as pessoas podem ser essencialmente
utilitaristas, mas, ainda assim, não reconhecerem esta motivação, principalmente,
porque preferem manter a consciência tranqüila. A nova redação proposta pretende
tornar mais evidente a importância que o sofrimento alheio pode ter para o sujeito,
e garantir, ao mesmo tempo, a possibilidade de que ele possa se colocar em
conjunto com o coletivo, sem que tenha que assumir sozinho o ônus por sua
posição política: o Brasil não deveria se pronunciar a respeito dos conflitos entre os Estados
Unidos e os países do Oriente Médio, pois devemos evitar riscos desnecessários.
O item 70 – enquanto a violência estava localizada nas favelas era algo tolerável, mas
agora que esta ameaçando nossas famílias já está passando dos limites – obteve média de
3,73, aproximando-se do ponto neutro da escala. Porém, como o desvio padrão
obtido (2,56) correspondeu à maior variabilidade do fator, sugerindo haver grande
oscilação nas respostas, e as correlações encontradas com o fator (0,68, sig
p/p<0,01) e com a escala C (0,55, sig. p/p<0,01) foram significativas, pode-se
inferir que a delimitação proposta é pertinente ao tema investigado. De fato, a
violência parece se tornar menos tolerável quanto mais próxima se encontra do
cotidiano imediato; se apenas atinge os bolsões de pobreza, já previsivelmente
condenados a essas situações deploráveis, não incomoda tanto e pode ser tolerada
sem grandes protestos. Em sentido estrito, pode-se dizer que a afirmação contida
no conteúdo, de que é tolerável a violência antes concentrada apenas nas favelas,
mas não a que ameaça o pequeno círculo familiar, não foi aceita. Mesmo assim, o
fato de também não ter havido rejeição suficiente indica que o conteúdo pode
revelar dados mais expressivos, quer de rejeição quer de aprovação, dependendo de
205
pequenas alterações na redação que abranjam mais claramente o núcleo do
problema: enquanto a violência só atingia favelas e áreas condenadas, ainda podíamos suportá-
la, mas agora que ameaça a todos, já passou dos limites.
Com média também próxima ao ponto neutro (3,84) e desvio padrão
elevado (2,33), é possível que a proposição 71 – a existência de trabalho escravo no Brasil
demonstra a ignorância e a incapacidade dessas pessoas em defenderem seus próprios interesses, eu
não cairia numa cilada dessas – produzisse escores mais expressivos se a exposição do
conteúdo fosse mais precisa, de modo que aumentasse seu poder discriminatório.
Por circunscrever uma situação social relevante, mas comumente desprezada por
parte expressiva da população, a formulação atual desse item manteve certo
obscurantismo, suscitando aos sujeitos muitos elementos distintos: o trabalho
escravo, a defesa dos próprios interesses, a astúcia dos respondentes, etc. Com a
nova versão reformulada, também destinada a aplicações futuras, pretende-se
delimitar melhor o problema da indiferença em relação ao sofrimento alheio,
remetendo-o à importância que representa para os sujeitos e não à capacidade dos
sujeitos de escaparem das ciladas que as vítimas desse tipo de engodo caíram: se
ainda existe escravidão no mundo é porque ainda existem pessoas que se submetem a isso. A
nova versão desse item deve propiciar o deslocamento da relação entre a ignorância
da vítima, portanto de sua fraqueza intelectual, para a passividade da vítima, para
sua fraqueza espiritual, da qual, apesar das condições objetivas que contribuem para
isso, as vítimas seriam, como uma caricatura do esclarecimento kantiano (1974), as
principais culpadas. A conclusão lógica que se pode derivar dessa proposição é a
seguinte: se julgo que o escravo é o principal culpado por sua escravidão, nessa
avaliação, desconsidero a própria história da escravidão e os determinantes sociais
que impossibilitam a autonomia, portanto me revelo indiferente ao assunto em
questão, bem como àqueles que nele sucumbiram.
206
Análise dos itens da Escala de Liberalização Sexual
Os temas abrangidos pela escala de liberalização sexual foram escolhidos em
decorrência da suposição teórica de que nem todos os aspectos da liberação sexual
seriam igualmente mediados pela permissividade sexual repressiva, nem tampouco
se relacionariam de modo semelhante com as atitudes conformistas. As
transformações culturais recentes na esfera dos comportamentos sexuais e da
moralidade que a regulamentava não poderiam ser nivelados a outros elementos
internos ao processo de liberação, claramente relacionados com o padrão da nova
repressão sexual. A atitude favorável à liberalização do sexo e contraposta à moral
sexual repressiva se distingue da atitude ajustada à dessexualização. Ambas
coincidem quanto à liberação de importantes aspectos da sexualidade outrora
reprimidos, mas enquanto a atitude meramente liberal aceita as transformações
culturais sem impor-lhes condicionantes que modifiquem substancialmente seu
conteúdo, a dessexualização caracteriza um processo de mutação da substância
erótica. Esta distinção não significa que a liberação mais pura da sexualidade não se
relacione com o conformismo, pois ao configurar uma felicidade essencialmente
subjetiva, dissociada das condições materiais para a felicidade compartilhada, as
atitudes favoráveis à liberação sexual também podem adquirir força repressiva e ser
absorvida pelo princípio da dominação. Todavia, esse processo é distinto daquele
outro que demarca a mutação interna do conteúdo erótico, sua dessexualização.
Por essa razão, as categorias da escala de liberalização sexual visam à mensuração
de atitudes favoráveis ao processo histórico de mudanças na esfera da sexualidade e
da moral sexual e não à mensuração das tensões internas, sobretudo daquelas que
se apresentam vinculadas às novas formas de repressão da sexualidade, que esse
processo possa comportar. Tais tensões poderão ser observadas na descrição do
próprio processo, mas não são objeto de avaliação do instrumento. Dentre as três
escalas desenvolvidas, esta é a mais descritiva e menos analítica.
207
Perversão-polimorfa:
A liberação da sexualidade perverso-polimorfa foi indicada por Marcuse
(1955/1981) como um dos efeitos possíveis e, desejáveis, da transformação do
princípio de realidade opressivo, que rege a civilização ocidental desde a
antiguidade até as mais recentes facetas da sociedade industrial avançada, em um
outro princípio de realidade condizente com o atual estágio de desenvolvimento
técnico e das possibilidades efetivas de gratificação das necessidades humanas,
materiais e espirituais, sem que haja mais a mediação da dominação. Essa revolução
do modo de organização política e econômica da sociedade e dos princípios que
alicerçam a cultura burguesa caracterizaria a transformação da sexualidade em Eros
e, conseqüentemente, uma profunda ruptura com a repressão imemorial imposta às
pulsões parciais e às demais zonas erógenas do corpo que não aquelas delimitadas
pela sexualidade normalizada e pelos costumes sexuais ajustados à lógica produtiva.
Considerando as possibilidades concretas de superação e de redefinição da
estrutura pulsional constituída sob a determinação do Capital, a análise crítica
empreendida por Marcuse (1955/1981) desvelou a relação ainda hoje existente
entre a dessublimação repressiva e os mais sutis modos de absorção da sexualidade
pelo sistema produtivo. Segundo essa análise, enquanto estiver subordinada ao
princípio de desempenho, a sexualidade eventualmente liberada não promoverá à
libertação integral da humanidade, mas sim a sua distração alienada. Meio século
após a análise marcuseana, os mecanismos de integração do sexo parecem ter se
aprimorado ainda mais, pois com a ascensão maciça da indústria do entretenimento
e a completa transformação dos modos de prazer em técnica de reforçamento
positivo, a dessublimação repressiva prossegue em paralelo à dominação política e à
liberação dos costumes sexuais, inclusive de variações eróticas nitidamente
polimórficas. Os itens da escala LS destinados à mensuração da atitude liberal
quanto ao sexo fornecem importantes elementos para que se possa analisar o
crédito da fundamentação materialista da previsão de Marcuse: sem que ocorram as
208
mudanças necessárias na esfera objetiva das relações materiais de produção, que
sustentam o princípio de realidade opressivo, as demais transformações culturais
são inócuas.
Tabela 16: Tendências centrais dos itens relacionados à perversão-polimofa
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
10 4,08 2,79 0,65* 0,44*
36 4,92 2,13 0,77* 0,54*
39 6,01 1,34 0,45* 0,30*
40 6,34 1,26 0,51* 0,44*
76 4,31 2,27 0,67* 0,60*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
O fator Perversão Polimorfa obteve uma correlação de 0,76 (sig. p/p>0,01)
com a escala LS e todos os seus itens obtiveram correlações significativas com o
fator e com a escala. Com exceção do item 39, que obteve a mais baixa correlação
com o fator (0,45, sig. p/p<0,01), todas as demais correlações entre os itens e o
fator foram superiores a 0,50. No caso da correlação entre o fator e a escala, o
escore obtido reforça a importância desse aspecto para compreensão do
mecanismo da liberação sexual. Dentre as correlações com os demais fatores da
escala LS, destacaram-se como mais importantes as correlações com os fatores
diversidade sexual (0,51, sig. p/p<0,01) e com a pulsão sexual inibida em sua finalidade
(0,05). No primeiro caso, porque revela uma tendência geral dos novos padrões de
comportamento sexual em aceitarem variações nos modos de satisfação e na
escolha dos objetos de desejo; no segundo, porque representa as piores correlações
209
encontradas. Como se discutirá mais adiante o fator expressão da pulsão sexual inibida
em sua finalidade não correspondeu adequadamente aos objetivos da escala, não se
relacionando com os demais fatores ou se relacionando, apenas em nível muito
baixo, com a escala LS (0,37, sig. p/p<0,01).
O item 10 – as pessoas que tiveram experiências bissexuais devem ter algo interessante a
dizer sobre essa dimensão da sexualidade humana que, apesar de ser bastante comum, ainda é
muito reprimida – foi formulado com o intuito de testar se haveria aceitação ou, pelo
contrário, se haveria resistência frente à afirmação de que as experiências bissexuais
seriam, não somente comuns, mas também interessantes, apesar do fato de ainda
serem muito reprimidas. Há uma série de questões implícitas nesta formulação que,
certamente, pode fornecer indicativos valiosos quanto à atitude geral dos sujeitos
respondentes a respeito desse tema. Contrapondo-se explicitamente à tendência
atribuída às questões destinadas à mensuração da dessexualização, esta proposição
consiste em um silogismo simples, calcado na afirmação de que, sendo as
experiências sexuais em geral interessantes e dignas de serem comunicadas, a
experiência bissexual também o seria. Com isso, de modo implícito, estabelece uma
relação de concordância com dois outros pontos relevantes da atitude frente à
liberdade sexual, que não estão tão manifestos na redação: primeiro, por serem
muito comuns, tais experiências constituem-se como dimensão natural das
manifestações da sexualidade; segundo, o fato de ainda serem muito reprimidas
significa que talvez sejam mais reprimidas do que deveriam ser. A tendência à
concordância apresentada é pouco expressiva (4,08), pois o escore obtido tende ao
ponto neutro da escala, mas, ainda assim, revela que mesmo um aspecto bastante
polêmico como este, não somente não provocou reações de resistência declarada,
como também teve o alcance de sua sutil tendência à aceitação ampliado pela alta
variabilidade das respostas, representada pelo desvio padrão mais elevado do fator
(2,79).
210
Indicando leve concordância, o item 36 – o sexo oral, o sexo anal e outras formas
de carícias sexuais ousadas são tão importantes para obtenção do prazer sexual quanto a cópula
genital – expressa a tendência da moral sexual atual em admitir outras possibilidades
de obtenção de prazer por meio do corpo, distintas daquelas submetidas à
exclusividade genital. A relação de equivalência sugerida remete essas outras
possibilidades de contato sexual a um patamar de naturalidade e freqüência outrora
inadmissíveis pela moral sexual vitoriana. O grau de aceitação (média = 4,92) das
manifestações da sexualidade delimitadas por essa proposição, em particular, por
representarem variações polimorfas, sugere a possibilidade de que seus termos já
tenham sido incorporados pela cultura. Contudo, o quanto a incorporação cultural
desse aspecto da sexualidade representa expansão erótica ou integração é algo que
deve ser analisado à luz das correlações com as demais escalas. Por ora, pode-se
constatar que as correlações encontradas entre esse item e o fator (0,77, sig.
p/p<0,01) e entre ele e a escala (0,54, sig. p/p<0,01) indicam a pertinência desse
aspecto para a análise da presença da perversão polimorfa dentre os
comportamentos sexuais aceitos pela cultura e pela moral, bem como a
consolidação de um processo de liberalização dos costumes e valores relativos ao
sexo e à sexualidade que incorpora, dentre outras coisas, a possibilidade de
apropriação do próprio corpo para obtenção do prazer.
Com média bastante expressiva (6,02), correspondente à concordância
moderada, o item 39 – se não fôssemos tão limitados ao prazer alcançado por meio de nossos
órgãos genitais perceberíamos que nosso corpo todo é uma fonte infinita de prazer – permite
complementar os resultados da proposição anteriormente analisada. Enquanto
aquela sugeria procedimentos sexuais específicos, como o sexo oral, anal, etc., esta
generaliza a expansão erótica à totalidade do corpo. Os limites culturalmente
estabelecidos são mencionados com a finalidade de frisar seu caráter repressivo e a
genitalidade é mais uma vez apontada como restrição das possibilidades de prazer.
211
Os dados obtidos permitem inferir que definitivamente há uma tendência na moral
sexual atual à aceitação de que o corpo todo posso ser objeto e fonte prazer.
Com a média mais elevada (6,34) do fator, o item 40 – além do tato, os demais
sentidos - o olfato, a visão, o paladar e a audição - também são fundamentais para a obtenção do
prazer sexual, não há motivos para desprezá-los – fornece dados importantes sobre a
incorporação da perversão polimorfa pela cultura. Partindo da delimitação dos
sentidos – olfato, visão, paladar, audição – como dimensões complementares à
obtenção do prazer, a sentença criou condições para que se pudesse especular a
respeito do isolamento repressivo que ao longo da historia da sexualidade foi
impingido a esses sentidos, por vezes, associados às perversões sexuais. Todavia, a
baixa variabilidade obtida (desvio-padrão = 1,26), a menor dentre os itens que
compõem este fator, permite indagar se, de fato, a articulação pretendida foi
apresentada de forma precisa. A obtenção de uma média tão elevada, mas com
baixa variabilidade, pode estar associada à forte tendência dos sujeitos a aceitarem a
proposição, mas também pode dever-se a uma exposição inadequada do conteúdo.
Nesse caso, a exposição demasiado branda da relação entre os sentidos
mencionados e as perversões sexuais, parece ter remetido esse aspecto para uma
função secundária. A afirmação de que tais sentidos também são fundamentais para
a obtenção do prazer sexual e que, por essa razão, não devem ser desprezados, não
implica na correta apreciação do papel que comumente assumem nas manifestações
sexuais consideradas perversas. Da análise destes aspectos, pode-se derivar uma
proposta de reformulação do item, preservando o objetivo já indicado: é natural que
as pessoas sintam prazer sexual das formas mais variadas; para alguns, o olfato, a visão, o
paladar e a audição são tão ou mais importantes que as carícias e a coito genital.
O item 76 – não há nada de errado em sentir prazer por meio do olhar, seja no jogo
erótico com o(a) parceiro(a) com o(a) qual se esta relacionando, ou por meio da observação da
relação sexual de outras pessoas que consentiram em ser observadas – explora mais
minuciosamente a reação dos sujeitos frente à afirmação de que o prazer obtido
212
por meio da observação, seja a observação da própria experiência sexual ou da
relação sexual de outros, possa constar dentre o rol das práticas sexuais
consideradas normais. É certo que mesmo os comportamentos sexuais
considerados perversos, relacionados ao prazer de olhar a relação ou os atributos
sexuais alheios, adquiriram outra conotação com a ascensão da indústria
pornográfica. A transgressão que havia no voyerismo parece ter sido domesticada
pela produção em massa de filmes e revistas pornográficas, e pela ampla divulgação
desse material pela internet. Com a integração do voyerismo pela indústria cultural,
restaram poucas restrições ao prazer de olhar, não havendo mais o risco e o pejo
moral que sempre recobriram o comportamento do voyer; pelo contrário, a
exploração desse tipo de prazer é um dos fatores que ajuda a movimentar a
milionária indústria do sexo. A média dos escores obtidos com o teste deste item
(4,31) indica que, mesmo com o detalhamento proposto na sentença – de que
também não haveria nada de errado em se observar a relação sexual de outras
pessoas que consentiram em ser observadas –, há uma tendência da moral sexual
atual a aceitar outras dimensões do prazer outrora rigidamente reprimidas. Se
analisada em conjunto com as demais proposições desse fator, com o qual se
relaciona significativamente (0,67, sig. p/p<0,01), essa sentença revela-se um bom
indicativo de que a liberalização sexual atingiu dimensões mais complexas da
sexualidade, modificando substancialmente seu mecanismo de regulação. Se
confrontada com o conteúdo dos outros itens relativos à expansão do erotismo
para outras zonas do corpo e inclusão de outros sentidos na produção do prazer,
pode-se destacar que o elemento que mais contou nessa proposição foi, de fato, a
alusão direta ao voyerismo como possibilidade normal de prazer, e que sua
aceitação, realmente, indica modificações substanciais na estrutura da moral sexual.
Inclusive, pode-se supor que não haja diferenças fundamentais entre o voyerismo
consentido e administrado pela indústria cultural, ou o que é satisfeito por outras
vias como os clubes privativos, e o que era praticado pelos antigos perversos
213
enquadrados na psychopathia sexualis de Krafft-Ebing (1893/2001), o que mudou
foram as estratégias e objetos da moral sexual.
Diversidade Sexual:
Dentre os temas relacionados à liberdade sexual, a diversidade representa um
dos aspectos que se tornaram mais populares; frequentemente discutida em todas
as instâncias sociais. Alguns movimentos populares favoráveis à diversidade sexual
e à superação do preconceito dirigido às minorias sexuais, como o movimento
GLBT, agregam um grande contingente de militantes, constituindo um expressivo
potencial político e cultural. Facetas mais impactantes como as paradas do orgulho gay,
mobilizações de massa freqüentes nas principais cidades brasileiras, norte-americas
e européias, têm contribuído para a sedimentação de novos valores morais e para a
formação de uma mentalidade mais tolerante a respeito das orientações sexuais. No
mesmo sentido, porém com estratégias menos abrangentes e mais específicas,
também se pode considerar as intervenções produzidos pelo movimento Queer e
pelos Gay & Lesbian Studies nas artes e na literatura, provocando reflexões sobre os
limites e possibilidades da sexualidade julgada normal e também contribuindo para
constituição de uma nova mentalidade acerca do prazer e do sexo. Alvos históricos
de formas de repressão muitas vezes brutais, como os tratamentos psiquiátricos
praticados no Brasil até meados da primeira metade do século XX, os
homossexuais são um dos emblemas da diversidade sexual, por isso, questões
relativas à sua incorporação, como possibilidade cultural efetiva, foram incluídas no
fator. Entretanto, procurou-se estender a abrangência do fator a outras minorias
sexuais cuja problemática ainda é pouco absorvida pela mídia ou ainda causa mais
desconfortos do que mobilizações apaixonadas. Foram delimitadas questões
referentes à sexualidade frequentemente julgada promíscua, como a que é exercida
pelas prostitutas e pelos casais liberais, além dos comportamentos sexuais
214
desvinculados de outros propósitos que não a pura gratificação sexual. A inclusão
dessas proposições referentes a variações da diversidade sexual teve como objetivo
avaliar a incorporação de modalidades sexuais historicamente rechaçadas pela
cultura oficial às novas configurações morais. As variações quanto ao objeto da
pulsão sexual ou quanto à forma por meio da qual ela se realiza foram apresentadas
em sentenças afirmativas que visavam estimular os sujeitos a se posicionarem a
respeito de aspectos da sexualidade fundamentais tanto à mobilização política de
minorias sexuais, como o movimento GLBT, quanto à aceitação, isenta de
preconceitos, de demandas espontâneas por maior flexibilização das normas que
demarcam a sexualidade considerada normal; sua vinculação com um ideal de amor
romântico e proscrição daqueles que praticam o sexo apenas pelo prazer que
proporciona. A concordância com os itens deste fator são um indicativo de que o
sujeito é favorável à liberação de outros aspectos da sexualidade localizados além
do erotismo genital, inclusive, de aspectos comumente julgados como perversos. A
correlação de 0,73, significativa ao nível de 0,01, entre este fator e a escala LS é um
indicativo preciso de que a diversidade sexual constitui parte importante do
processo de liberalização dos comportamentos e da mentalidade relativa ao sexo,
marcando, inclusive, a superação de preconceitos profundamente arraigados na
cultura ocidental desde a era medieval. Com isso, pode-se dizer que, apesar de ter
sido formulada para ser um instrumento descritivo, a escala LS pode fornecer
dados relevantes para a analise do potencial libertador contido nas atitudes
vulgarmente liberais.
215
Tabela 17: Tendências centrais dos itens relacionados à diversidade sexual
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
3 4,88 2,21 0,73* 0,53*
41 5,09 2,24 0,67* 0,48*
42 3,25 1,99 0,52* 0,33*
44 3,21 2,09 0,77* 0,54*
63 3,56 2,05 0,72* 0,58*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Os resultados da aplicação do item 3 – os gays, as lésbicas e os transexuais estão
ganhando maior espaço social porque merecem os mesmos direitos que qualquer outro cidadão; seu
modo de satisfação sexual é apenas mais um dentre outros – atingiram uma média de 4,88 e
um desvio-padrão de 2,21, com isso, revelaram que, apesar das resistências ainda
existentes em grande parcela da população mais conservadora, o discurso da
diversidade sexual tem produzido resultados importantes, sobretudo no que diz
respeito à formação de atitudes mais condescendentes com a diferença sexual. Sob
a égide dos direitos humanos aludidos, a sentença apresentada sugere ainda que o
modo de satisfação sexual dos homossexuais é apenas mais um dentre os outros
modos existentes, portanto insinua que se concorde que não há diferença relevante
entre um ou outro tipo de orientação sexual, pois todas estariam incluídas no rol
das possibilidades previsíveis. Próxima à concordância leve, a média obtida permite
pensar que, havendo ou não um padrão de diversidade sexual já consolidado, na
qual esteja inclusa a homossexualidade, é possível identificar uma tendência nesse
sentido. As correlações encontradas entre este item e o fator (0,73), bem como,
entre ele e a escala (0,53), foram significativas (p/p<0,01), permitindo inferir,
216
principalmente no primeiro caso, que tanto no que diz respeito ao direito quanto ao
que concerne à naturalidade desse modo de satisfação sexual e vinculação afetiva, a
homossexualidade caracteriza um importante elemento da diversidade e do
processo de liberalização sexuais.
Apesar de ter atingido o desvio padrão mais elevado do fator (2,29), o que
pode ser um indício de forte oscilação nas respostas, o item 41 – desde que os limites
do outro sejam respeitados, cada um que busque se satisfazer sexualmente como quiser, seja por
via homossexual ou por meio de práticas liberais de qualquer tipo – forneceu importantes
elementos para se avaliar a transformação histórica dos princípios e valores
concernentes à regulação da sexualidade. Com média de 5,09, essa sentença acerca
da autodeterminação indicou que os sujeitos pesquisados concordam, ao menos
levemente, com o entendimento de que as pessoas possam se satisfazer
sexualmente como quiserem, mesmo que por via homossexual ou por meio de
outras práticas sexuais consideradas liberais. É interessante notar que, de modo
geral, a concordância com essa formulação está em franca contradição com muitas
das formulações que compuseram a escala de dessexualização, carregadas de
preconceitos contra grupos sociais caracterizados por identidades sexuais
minoritárias. A título de exemplo, pode-se citar os escores da sub-escala destinada à
mensuração dos tabus sexuais, sobretudo os itens 11 e 62 da Escala D. Por ora, é
importante apenas reconhecer que o discurso favorável à liberdade sexual é aceito
sem muitas considerações, em geral, representando um simples ajustamento às
condições culturais predominantes. É possível que alguns sujeitos se posicionem de
maneira mais liberal quanto a questões sexuais de ordem geral, mas, na medida em
que alguns aspectos particularmente relacionados com expressões específicas dessas
experiências são vinculados a essa suposta liberdade, apresentem maior resistência
frente a essa tendência. Nesse sentido, ainda que se confirmasse que a liberdade
sexual limita-se apenas à aparência das reais condições às quais estão relegados o
sexo e a sexualidade, um puro engodo, ainda assim, restaria como questão a se
217
analisar, o fato de que a rejeição a expressões específicas da sexualidade,
expressadas pelos tabus, pelo processo de reificação e a pela mediação da
dominação não caracterizam um grau tão extremo a ponto de suplantar nem os
reais avanços obtidos rumo à superação da antiga moral repressiva, nem a falsa
consciência de que, mesmo sem efetivamente estar de acordo com seus princípios,
é politicamente correto posicionar-se favoravelmente ao discurso libertário. Prova
dessa sutileza foram as limitações técnicas da escala D; quanto mais explícitas
foram as suas proposições menor foi a adesão a seu conteúdo.
O item 42 – ao contrário do sexo por dinheiro, que é condenável devido às injustiças
sociais que levam muitas pessoas a terem que se prostituir para sobreviver, o sexo livre pode ser
aceito, pois traz a possibilidade de se ter tantos parceiros quanto se desejar – apresentou uma
formulação acerca do alcance da liberdade sexual, abrangendo aspectos mais
complexos, como a possibilidade de se ter tantos parceiros quanto se desejar. A
comparação com a atividade do sexo profissional, imbuída de uma lógica social que
não permite às pessoas que se prostituem serem livres em sua atividade mediada
pela necessidade de sobrevivência, visou enfatizar a livre determinação daqueles
que praticam sexo apenas por prazer, podendo, inclusive, terem o número desejado
de parceiros. Essa confrontação entre a libertinagem dos que se entregam a tantos
parceiros sexuais quanto desejam e a prostituição, onde os parceiros são tantos
quanto necessário para um rendimento suficiente, sugere uma crítica à falta de
liberdade que a prostituição comporta. Todavia, esse aspecto parece ter
representado pouca importância para os sujeitos. A média de 3,25, indicou não
haver, dentre a maioria dos sujeitos pesquisados, concordância com a proposição.
Apesar de não caracterizar forte rejeição, revelou um limite claro quanto ao grau de
liberação consentido. Tal resultado, acrescido do fato de que este item obteve a
menor variação do fator, com um desvio padrão de 1,99, permite supor que a
tendência à discordância leve pode ter decorrido especificamente da rejeição da
idéia de sexo livre. As correlações com o fator (0,52, sig. p/p<0,01) e com a escala
218
(0,33, sig. p/p<0,01) também corroboram essa possibilidade, pois foram as mais
baixas desse grupo.
Com a média mais baixa do fator (3,21), o item 44 – práticas sexuais como o
swing (troca de casais, orgias e similares) e o ménage à trois (trios sexuais envolvendo situações de
bi-sexualidade feminina ou masculina) são formas criativas de expressão de desejos sexuais menos
convencionais, mas não menos respeitáveis – apresenta modalidades radicais e
relativamente recentes de comportamento sexuais não-convencionais. É certo que
seu caráter hodierno decorre mais da visibilidade que ganhou na atualidade do que
propriamente de sua existência como uma modalidade das práticas sexuais.
Expandidas principalmente após a revolução sexual dos anos 60 e 70, as práticas
sexuais mencionadas tiveram importante expansão nos grandes centros urbanos,
movimentando o mercado de casas noturnas e clubes privativos, mas também
compõem parte do repertório das fantasias sexuais que povoam o imaginário
popular de uma parcela da população que sequer sabe da existência desse universo
paralelo. De todo modo, o problema da liberdade sexual abrange essas novas
manifestações da sexualidade. Quer sejam julgadas como perversões, formas de
libertinagem ou meras fantasias sexuais, essas práticas demarcam o alcance do que
hoje é oficialmente abrangido pela sexualidade e o que a moral sexual moderna,
supostamente liberal, delimita como aceitável. Mesmo assim, a leve discordância
apresentada não caracteriza grande rejeição à proposição de que o swing e ménage à
trois sejam formas criativas e respeitáveis de expressão de desejos sexuais menos
convencionais. As correlações com o fator (0,77, sig. p/p<0,01) e com a escala
(0,54, sig. p/p<0,01) foram altas e significativas, reforçando a possibilidade de que
os sujeitos mais favoráveis à diversidade sexual e à liberalização sejam,
precisamente, aqueles que tenham manifestado maior acordo com essa proposição.
O item 63 – a cirurgia para mudança de sexo demonstra que a ciência poderia estar em
melhor acordo com as necessidades do desejo humano, afinal se o prazer depende da mudança de
sexo não há porque não realizá-la – refere-se a um tema bastante recente e polêmico.
219
Além de abranger o problema da identidade sexual e da contradição que, neste
caso, estabelece com a moralidade, o modo de apresentação do conteúdo propõe
que a ciência poderia estar em maior acordo com as necessidades do desejo
humano. A formulação invoca concordância com dois planos distintos, ambos
associados à questão delimitada: a finalidade da ciência ou possibilidade de articulá-
la com necessidades humanas pouco convencionais; e a aceitação das cirurgias de
mudança de sexo ou modificações plásticas em geral destinadas ao ajuste do corpo
à identidade sexual. Ambas as discussões são polêmicas e comportam argumentos
sólidos de lado a lado. A neutralidade científica predominante em nossa cultura
intelectual, em cuja perspectiva, a referência a quaisquer valores, atrelados aos
prazeres humanos ou ao desenvolvimento das potencialidades dos indivíduos, é
freqüentemente rechaçada como depreciação da ratio técnica, não aceita finalidades
que não a própria técnica ou argumentos sociais e econômicos por ela envoltos. A
dimensão ética geralmente fica reduzida ao modo de processamento de
determinadas metodologias que poderiam agredir a preservação da vida e da
dignidade humana, mas não abrange o questionamento acerca da utilização
socialmente destrutiva das tecnologias produzidas para reprodução do capital.
Também as implicações éticas e técnicas dos avanços na área da manipulação de
características humanas, seja a cirurgia de mudança de sexo, as modificações
plásticas, ou as modernas investigações acerca da manipulação de características
genéticas, remete aos complexos processos de constituição da identidade, dos
mecanismos de identificação e da formação do indivíduo. A sentença testada, cuja
média obtida foi 3,56, parece refletir com fidedignidade a indefinição a respeito dos
assuntos que estão subjacentes à aprovação do desejo do outro. De um lado, a
concordância implica uma atitude liberal quanto ao direito de cada pessoa buscar
sua satisfação sexual do modo que mais lhe aprouver, de outro, é mantido o
questionamento acerca da universalização possível ao desenvolvimento imanente
dessa tendência: as idiossincrasias que este grau de consentimento às diferentes
220
formas de afirmação do desejo e da identidade sexual deveria comportar em seu
desdobramento, segundo as determinações do princípio do prazer, de fato,
conservariam o respeito à universalidade? O grau de concordância dos sujeitos
(3,56) com essa formulação parece não ser tão expressivo quanto as correlações
estabelecidas com o fator (0,72, sig. p/p<0,01) e com a escala (0,58, sig. p/p<0,01).
Similarmente ao item anterior foram correlações expressivas e indicam uma
tendência importante no âmago da liberalização; os indivíduos mais favoráveis à
liberalização tendem a ser mais simpáticos a possibilidades como esta.
Normatização das novas tendências da Sexualidade:
Partindo da suspeita de que as condutas sexuais que ganharam notoriedade e
reconhecimento na atualidade também tendem a ser absorvidas pelos mecanismos
de regulação do comportamento dos indivíduos, as proposições desta sub-escala
apresentaram algumas das novas tendências do comportamento sexual formuladas
em versões normativas. Com o uso desse recurso, pretendeu-se ir além da simples
descrição, adentrando na análise de uma das limitações internas do processo de
liberação. Em relação aos demais fatores, a normalização das novas tendências da
sexualidade obteve correlações pouco expressivas, porém, ainda assim,
significativas. Com exceção da correlação obtida com a escala LS (0,73, sig.
p/p<0,01), todas as demais correlações com os fatores que a constituem foram
inferiores a 0,50. As duas correlações principais ocorreram com os fatores
Perversão Polimorfa (0,49, sig. p/p<0,01) e Expressão da Pulsão Sexual (0,47, sig.
p/p<0,01). Esses resultados, sobretudo as baixas correlações com os fatores,
levantaram dúvidas a respeito da viabilidade da estratégia utilizada neste caso. Se o
objetivo principal da escala LS é descrever a tendência atualmente assumida pela
moral sexual, a proposta sustentada por este fator, ao extrapolar esse intuito, pode
ter se distanciado de sua finalidade. Portanto, para futuras aplicações, seria
221
interessante explorar uma modificação mais substancial deste fator. Todavia, como
forma de conservar os aspectos que se revelaram eficientes e adequados ao
propósito geral da escala, essas modificações não deveriam alterar os conteúdos
circunscritos. Limitar-se-iam apenas a retirar a ênfase atribuída à normatização das
novas tendências da sexualidade sem, contudo, descaracterizá-las. Mesmo com a
reformulação, as novas tendências deveriam continuar sendo objeto do fator que,
com isso, poderia assumir um caráter mais descritivo, em consonância com a forma
geral da escala. Tendo em vista o teor desta mudança, caberia também atribuir-lhe
uma nova denominação: Acomodação Cultural das Novas Tendências da Sexualidade.
Tabela 18: Tendências centrais dos itens relacionados à normatização das novas tendências da
sexualidade
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
2 4,75 1,99 0,47* 0,36*
21 4,95 2,08 0,66* 0,63*
43 4,18 2,26 0,44* 0,36*
45 4,17 2,31 0,53* 0,22**
46 4,39 1,91 0,64* 0,44*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
** correlação significativa para p< 0,05
O item 2 – ter uma vida sexual ativa e com um desempenho pessoal que satisfaça as
necessidades do parceiro(a) é uma condição fundamental para que se mantenha a saúde mental
delimita uma dimensão que, apesar de ser significativamente nova dentre as atitudes
referentes ao comportamento sexual, permeia os discursos a respeito da vida sexual
222
saudável. Ainda questionável como padrão integralmente aceito pelos diversos
extratos populacionais e subculturas brasileiras, o reconhecimento da importância
do desempenho sexual e da satisfação das necessidades do parceiro, bem como sua
articulação com a noção de saúde mental, têm se generalizado expressivamente.
Representado pela média de 4,75, o grau de concordância encontrado,
relativamente leve, sugere que algumas mudanças culturais na esfera da conduta
sexual, de fato, tendem se a estabilizar como normas sociais. A aceitação do
princípio de que há um direito ao prazer e de que seria um dever proporcioná-lo
traz ao mesmo tempo a superação da exclusividade da satisfação pessoal, muito
comum entre os homens do período patriarcalista, e a preocupação narcisista com
o próprio desempenho alcançado a partir da satisfação proporcionada ao outro. De
modo geral, essa tendência indica um maior grau de liberalização sexual, mas não
retira a possibilidade de que o tipo de liberalização consentido traga consigo novos
mecanismos de controle ou limitações que contradigam a liberdade pretendida. O
item obteve baixas correlações com o fator (0,47, sig. p/p<0,01) e com a escala
(0,36, sig. p/p<0,01), levantando a suspeita de que a concordância com a
proposição também possa estar relacionada a outras motivações além das que estão
particularmente voltadas para a liberalização. Entretanto, essa possibilidade
somente poderá ser melhor avaliada em futuras aplicações das escalas e sua
subseqüente interpretação.
Denotando concordância leve, o escore médio (4,95) do item 21 – ninguém
mais deveria estranhar que o namoro seja o momento ideal para adquirir experiências e
desenvolver a maturidade sexual – permite inferir que a moral sexual atual, imbuída de
sua tendência à permissividade, tem se revelado expressivamente condescendente
com certos aspectos da sexualidade outrora reprimidos com rigor. O caráter
normalizador da afirmação de que ninguém mais deveria estranhar as mudanças
transcorridas no âmbito da sexualidade juvenil pré-conjugal, não somente afirma a
aceitação dessa mudança, mas indica sua obrigatoriedade. Por estar remetida à
223
esfera do dever ser, portanto investida de caráter normativo, a nova permissividade
sexual tende, paradoxalmente, a exercer o controle sobre a sexualidade mesmo ao
liberar certas formas de conduta. De todo modo, independente de contradições
dessa natureza, nos termos da liberação dos comportamentos sexuais que agora são
aceitos sem grandes conflitos, pode-se dizer que ela, de fato, libera muito mais do
que antes era permitido. Não apenas a média obtida foi a mais expressiva desse
fator, mas as correlações do item com o fator (0,66, sig. p/p<0,01) e com a escala
(0,63, sig. p/p<0,01) foram bastante importes e significativas. Por se tratar de um
assunto que há poucas décadas ainda era considerado um dos principais tabus
relacionados ao sexo, os indicadores obtidos devem ser avaliados como
emblemáticos da nova condição da sexualidade, e a tensão interna, demarcada pelo
mecanismo da normatização, como um dos aspectos que merecem maior atenção
nesse processo. Como sugerem as correlações encontradas, muito provavelmente,
ambos os elementos devem estar presentes nas demais problemáticas delimitadas
para a análise da liberalização do sexo. Uma nova versão deste item deve limitar-se
a amenizar a ênfase atribuída ao fato de não haver razões para se estranhar que
ocorra a prática do sexo durante o namoro: não há razões para se estranhar que o namoro
seja o momento ideal para adquirir experiências e desenvolver a maturidade sexual.
Pautado na afirmação de condições similares às circunscritas pela proposição
anterior, o conteúdo apresentado no item 43 – a exigência de que se deva preservar a
virgindade até o casamento é uma violência que precisa ser combatida – investiu mais
intensamente na ruptura com a moralidade vitoriana, acrescentando, ao mesmo
tempo, uma forte dose de normatização aos novos comportamentos sexuais. A
idéia de que a virgindade assemelha-se a um mal que deve ser combatido, pode
estar fundamentada, dentre outras coisas, na noção de que a ingenuidade sexual em
nada contribui para o relacionamento futuro do casal. Nesse ponto, pode-se supor
que há uma relação bastante direta entre o afrouxamento desses ditames morais e
as intervenções políticas e culturais destinadas à conquista da emancipação
224
feminina. É possível que a repulsa a essa imposição moral guarde intenções
emancipatórias; seja um meio de confrontar o poderio masculino exercido por
séculos de patriarcalismo. As mulheres sempre foram as mais afetadas por aquela
moralidade, deviam se ajustar às rígidas normas morais e ainda submeterem-se à
dupla moral masculina, que permitia aos homens, não somente descumprirem essas
regras, mas controlar a sexualidade das esposas e filhas mesmo quando estivessem
fora do alcance de seu poder imediato. De modo geral, o tema suscitado pelo
conteúdo dessa sentença abrange um dos principais tabus sexuais da era vitoriana,
sobretudo com relação às mulheres que quando não ajustadas sofriam o escárnio
moral de toda a sociedade. Essa proposição acerca da virgindade sugere que, além
da manifestação de acordo para com sua obsolescência, também caberia considerar
que a exigência de sua preservação até o casamento caracteriza uma violência
inaceitável. O sentido da afirmação é explícito quanto à posição que sugere.
Todavia, como a importância das mudanças culturais a respeito de pontos como
esse, nem sempre são percebidas no cotidiano, no qual frequentemente são
reproduzidos sem reflexão, muitas vezes guardam limitações que comprometem
seu potencial emancipatório. A redução à norma pode ser considerada uma das
principais limitações desse tipo. Se, de fato, há uma tendência a que haja maior
aceitação, ou mesmo, como a sentença sugere, um sentimento de obrigatoriedade
de que o tabu da virgindade deva ser superado, então, parte significativa dos
objetivos da crítica de autores como Reich (1936/1979) estariam superados e a
administração social dos prazeres teria se mostrado verdadeiramente flexível a
ponto de substituir seus velhos tabus por novas normas sociais menos aversivas.
Os resultados desse item parecem fornecer uma resposta interessante para essas
questões: a média de 4,18, por exemplo, indica haver sutil concordância com a
formulação, mas não acusa suficiente grau de aprovação, deixando ainda sem
esclarecer a dúvida quanto a saber se os resultados expressam a atitude em relação à
obsolescência do tabu ou em relação à normalização da permissividade. As
225
correlações com o fator (0,44, sig. p/p<0,01) e com a escala (0,36, sig. p/p<0,01)
foram significativas, mas ainda assim baixas. Seria interessante reavaliar esses
resultados por meio da confrontação com novas aplicações das escalas, explorando-
se, inclusive, a versão com os itens reformulados, sobretudo com os itens do fator
expressão da pulsão sexual inibida em sua finalidade. Os itens dessa sub-escala poderão
receber intervenções que modifiquem a ênfase atribuída à normatização, para que
se possa isolar o aspecto com o qual os sujeitos realmente estão de acordo. A
modificação sugerida para ele visa atingir apenas o acentuado grau de rechaço à
exigência de que se preserve a virgindade até o matrimônio; o sentido do conteúdo
anteriormente já delineado deve ser mantido intacto, de modo a que a concordância
com a sentença possa representar a reprovação dessa forma de controle moral, mas
não a obrigatoriedade dessa reprovação: a exigência de que se deva preservar a virgindade
até o casamento é um exagero que pode ser evitado.
Com média de 4,17 e desvio-padrão de 2,31, o item 45 – as pessoas com maior
experiência sexual acumulada têm mais condições de proporcionar satisfação sexual ao parceiro(a)
do que as iniciantes – enfatizou a importância comumente atribuída à experiência
sexual. Segundo a lógica que apresenta, o acúmulo desse tipo de experiência
possibilitaria melhor desempenho sexual. O deslocamento proposto, do âmbito do
desejo para o da técnica, não obteve grau suficiente de concordância, mas mesmo
com média próxima ao ponto neutro da escala, indicou haver aceitação das
vantagens produzidas pela relação entre uma maior experiência sexual e uma maior
satisfação do parceiro. A correlação desse item com a escala LS (0,22, sig.
p/p<0,05) foi a menor dentre as que foram obtidas no fator, por isso, a revisão
proposta pretende abranger algo mais além da simples amenização do caráter
normativo; a valorização da experiência sexual como um bem acumulável e que
pode influir na qualidade da produção do prazer pode ser melhor delimitada.
Portanto, ao contrário do que foi observado em relação aos itens anteriores, neste
caso, sugere-se uma alteração mais substancial: o grau da experiência sexual previamente
226
adquirida é um dos aspectos importantes para que se possa obter e proporcionar mais satisfação
sexual.
O conteúdo do item 46 – o fim de um casamento, bem como de outras formas de
relacionamento duradouras, é sempre uma oportunidade para se conhecer novos(as) parceiros(as) e
para se gozar prazeres mais intensos – sugere haver vantagens importantes na ruptura de
certos relacionamentos duradouros como o casamento. A idéia popularmente
disseminada de que quando um amor acaba, ainda assim, a vida continua, associada
à noção não menos popular de que é à paixão que cabem os prazeres mais intensos,
são convocadas à relativização das vantagens do casamento vitalício e da formação
de vínculos duradouros. O grau de aceitação indicado pela média de 4,39 permite
ponderar que mesmo sujeita a exceções, pode-se identificar uma tendência da
moral sexual atual a relativizar as formas historicamente cristalizadas de
relacionamento afetivo, sobretudo, devido ao grau de importância que atualmente é
atribuído aos prazeres. O bom nível da correlação com o fator (0,64, sig. p/p<0,01)
e a exposição clara do item dispensa a necessidade de modificações substanciais,
portanto, seguindo a intenção geral de produzir uma versão reformulada das
escalas, sugere-se apenas que seja alterada a ênfase ora atribuída à oportunidade
gerada pelo fim do relacionamento duradouro. Ao invés da certeza de que esta
situação propiciaria condições adequadas a novas experiências de gratificação, o
que inevitavelmente contribui para a normatização do papel do divórcio, pode-se
apenas indicar a possibilidade de que tal ocasião possa ser propicia a essa finalidade:
o fim de um casamento, bem como de outras formas de relacionamento duradouras, pode ser uma
boa oportunidade para se conhecer novos(as) parceiros(as) e para se gozar prazeres mais intensos.
Expressão da pulsão sexual:
Dentre os fatores que compõem a escala LS, o fator Expressão da Pulsão
Sexual caracteriza uma das dimensões mais especificamente descritivas,
227
representando mais fielmente o objetivo geral da escala. Os itens propostos
reclamam a legitimidade da satisfação sexual imediata em detrimento das exigências
de ajustamento a padrões morais, vinculação ao amor romântico e inibições
pudicas. Em conjunto, sugerem que a liberalização sexual seja um direito do
indivíduo; o direito de usufruir os prazeres proporcionados por seu próprio corpo e
pelas relações que com ele queira estabelecer, sejam elas formativas ou não. Deve-
se acrescentar que, tal como algumas das proposições formuladas sugerem, a
liberação da pulsão sexual estaria ainda remetida aos limites irrevogáveis
estabelecidos pela universalização. Por exemplo, não foram indicados modos de
satisfação sexual que estivessem associados à autodestruição ou à imposição de
sofrimentos a outrem. Nem a destruição de si ou do outro por meio da humilhação
ou violência, nem a degradação do afeto, por vezes dissociado, foram subordinados
à livre expressão da pulsão; foi mantido como princípio, o entendimento de que ela
somente é livremente expressada quando articulada aos princípios da preservação e
da universalidade. As correlações obtidas com a escala LS (0,74) e com os fatores
que a constituem foram todas significativas ao nível de 0,01, mas as correlações
com os fatores mantiveram-se inferiores 0,50. As duas principais correlações foram
com os fatores Normatização das Novas Tendências da Sexualidade (0,47) e
Diversidade Sexual (0,45).
228
Tabela 19: Tendências centrais dos itens relacionados à expressão da pulsão sexual
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
6 4,06 2,27 0,53* 0,37*
49 4,86 2,01 0,51* 0,46*
51 5,56 1,55 0,55* 0,34*
52 4,95 1,80 0,61* 0,52*
54 4,13 2,10 0,49* 0,31*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Com a média mais baixa (4,06) desse grupo de itens destinados à mensuração
da livre expressão da pulsão sexual, o item 6 – o sexo é uma atividade intensamente
prazerosa, principalmente quando realizado com amor, contudo, mesmo se realizado sem amor
continua sendo uma atividade prazerosa – apresentou como tema a possibilidade de que
o sexo e o amor sejam concebidos separadamente um do outro. A forma direta da
redação do conteúdo permite supor com segurança que a não-rejeição do item já
guarda certa tendência à sua aceitação. Pode-se dizer que, mesmo ficando muito
próximo ao ponto médio da escala, o escore obtido indicou haver uma tendência a
se aceitar que a dissociação entre o sexo e o amor não impossibilita que o sexo
possa ser percebido como uma atividade prazerosa mesmo quando realizado sem
amor. Sem alusão a uma outra dissociação certamente mais problemática, a que se
dá entre o sexo e o afeto, a afirmação da validade dos prazeres do sexo,
independente de sua justificativa espiritual mais comum, compreende o
reconhecimento da legitimidade da propulsão fisiológica para o sexo e a
possibilidade de sua experimentação. Na formulação apresentada, o amor é referido
como um aspecto diferencial que qualifica a relação e intensifica o prazer obtido,
229
mas a conclusão extraída da sentença sugere que o amor não é essencial ao prazer,
que este pode ser obtido mesmo sem que aquele tenha sido alcançado.
Constituindo uma espécie de manifesto contra o amor romântico, a afirmação do
sexo pelo puro prazer ou, para dizer em outros termos, do sexo pelo sexo, é
apontado como possibilidade de livre expressão da pulsão sexual. A correlação
relativamente baixa com a escala (0,37, sig. p/p<0,01) revela que a aceitação do
conteúdo desse item foi muito pequena se comparada com a que ocorreu em
relação a outros itens da escala, voltados para questões não menos polêmicas, mas,
certamente, melhor integradas a discursos e tendências sociais de maior visibilidade.
Com maior grau de aprovação (média de 4,86), aproximando-se do ponto
referente à concordância leve, o item 49 – a preservação da integridade moral do(a)
parceiro(a) não deve impedir que ambos possam expressar seus desejos mais obscenos – demarca
a possibilidade de que a relação sexual ou afetiva constitua um espaço para a
expressão da totalidade dos desejos, inclusive daqueles que o sujeito considera
como sendo os mais obscenos. Marcada por acentuada assimetria de poder, as
relações conjugais tradicionais sempre conservaram uma margem de silêncio a
respeito da relação entre a retidão moral da mulher e a dupla moral sexual
masculina
1
; ao contrário, a possibilidade, ou ao menos a intenção, de que estas
relações possam comportar a expressão dos desejos mais obscenos dos parceiros
parece indicar uma alternativa distinta daquela produzida pelo patriarcalismo
tradicional. O grau de aprovação ao item não deixa dúvidas quanto à importância
dessa abertura e sua incorporação às novas formas de relacionamento.
1
Simone de Beauvoir inicia suas ponderações a respeito da prostituição argumentando que “vimos que o
casamento tem como correlativo imediato a prostituição. ‘o hetairismo, diz Morgan, acompanha a
humanidade até em sua civilização como uma sombra projetada sôbre a família.’ Por prudência o homem
obriga a espôsa à castidade mas não se satisfaz com o regime que lhe impõe” (s/d, p. 323).
230
Com média significativamente expressiva (5,56) e menor variabilidade nas
respostas (desvio-padrão = 1,55), o item 51 – o ideal seria que o sexo e o amor sempre
caminhassem juntos, mas isso não quer dizer que o desejo sexual se esgotará sempre na relação
com a pessoa amada, o desejo parece procurar por novos estímulos – também apresentou
contraposição aos princípios do amor romântico. Atribuindo a ele valor ideal,
destacou-se sua insuficiência imanente para afirmar que o desejo não se esgota em
objetos únicos. Tal proposição sugere que o amor e o desejo sexual possam
percorrer caminhos distintos. Essa compreensão reforça a tendência à liberdade de
expressão da pulsão sexual. O grau de concordância com a esta sentença indica a
formação de uma compreensão expandida a respeito do alcance e da importância
dos desejos que, quando meramente reprimidos, tendem a servir de substância para
as formações reativas. A afirmação de que o desejo parece procurar por outros
caminhos além daquele atrelado à pessoa amada aponta para a presença de certo
questionamento a respeito da exclusividade do objeto de desejo. A concordância
com a proposição testada indica que, se o amor exige objetos exclusivos e
particularizados, o desejo sexual, ao contrário, tende a ser mais expansivo e isto não
é mais motivo de conflitos psíquicos.
O conteúdo apresentado no item 52 – o impulso sexual nem sempre se limita a
nossas escolhas conscientes, às vezes se dirige para pessoas proibidas e situações inusitadas
sugere certa autonomia da pulsão sexual em relação ao controle exercido pela
consciência. Relacionando liberdade sexual com livre fruição da pulsão, a
proposição, intencionalmente, dissocia a esfera pulsional da dimensão da vontade
consciente. A tendência à concordância leve encontrada, com média de 4,95,
reforça a idéia de que parte das ações cometidas em nome das paixões, muitas delas
inconseqüentes, poderiam ser socialmente justificadas por serem expressão do
impulso sexual em si mesmo incontrolável. Embora não promova discriminação
suficiente entre a premência das grandes paixões, frequentemente negligenciadas
pela liberalização sexual hodierna, e a completa ausência de conflitos morais na
231
realização dos impulsos, como freqüentemente é estimulada pelos mecanismos
sociais calcados na deterioração da capacidade egóica e na manipulação da esfera
pulsional, a formulação testada permite afirmar que os sujeitos investigados
concordam com o entendimento de que, por não se restringem ao controle
racional, os impulsos sexuais justificam ações divergentes dos preceitos morais
aceitos. Dentre os que compõem esse grupo, o item 52 atingiu os melhores índices
de correlação com o fator de que faz parte (0,61, sig. p/p<0,01) e razoável
correlação com a escala LS (0,52, sig. p/p<0,1). Considerando que também obteve
uma média expressiva, pode-se dizer que representa adequadamente o modo como
a liberalização sexual é interpretada: parte significativa dos comportamentos e
atitudes aceitos são comumente justificados por meio da referência à força
instintiva. Esse aspecto pode representar uma tendência geral, mas também
delinear uma das principais limitações do processo de liberação em voga; a
consciência é suplantada em nome de uma força que heteronomicamente dirige a
conduta rumo a uma liberdade à qual não se poderia resistir.
A despeito da pequena diferença (+0,13) em relação ao ponto neutro da
escala, ainda assim, pode-se dizer que são muito relevantes os resultados do teste
do item 54 – dentre as possibilidades de prazer não-ajustadas às normas e valores sociais,
aquelas que não ferem, não humilham e não geram sofrimento podem ser experimentadas sem
pudor. Antes de tudo, a sutil aprovação a este item, mesmo que quase inexpressiva,
já caracteriza uma baixa recusa a seus termos. Voltada para as possibilidades de
prazer não-ajustadas às normas e valores sociais, a afirmação sugere ao sujeito
indagado que concorde com a idéia de que todos os prazeres não-destrutivos – que
não firam, humilhem ou gerem sofrimento – possam ser experimentados sem
pudor. O resultado obtido retrata a ousadia contida no significado desta sentença; a
não-recusa a seu conteúdo já é expressão de importantes mudanças na esfera da
regulação moral do que pode ou não se tornar objeto de repulsa. Com isso, a média
de 4,13 permite inferir que haja uma tendência à aceitação de possibilidades de
232
prazer que, apesar de não-ajustadas às normas e valores sociais, estejam remetidas à
preservação de aspectos éticos do contrato sexual entre os parceiros. Não ferir, não
humilhar e não gerar sofrimento são destacados como princípios éticos suficientes
para demarcar os limites do prazer aceitável. Explicitamente contrária aos
argumentos da dominação, mesmo em relação àqueles referenciados de maneira
simbólica pelo sadomasoquismo, a formulação sugere que seja viável uma abertura
moderada à experimentação sexual; apesar de serem menos otimistas do que a
proposição insinua, os resultados obtidos indicam que essas possibilidades não
precisam ser moralmente rechaçadas.
Expressão da pulsão sexual inibida em sua finalidade:
Partiu-se da consideração de que a liberdade sexual efetiva não somente
abrangeria aspectos puramente libidinais, redutíveis às manifestações da pulsão
sexual, mas também comportaria conteúdos decorrentes de sua sublimação. Tendo
em vista a importância dessa dimensão para o entendimento do real estágio da
liberdade sexual, foram formuladas proposições que, ao menos teoricamente,
estariam relacionadas a esta outra esfera da sexualidade. O conjunto destes itens
constituiu a sub-escala expressão da pulsão sexual inibida em sua finalidade, cujo objetivo
principal seria avaliar se haveria ou não uma tendência à conciliação entre a pulsão
sexual diretamente expressada e aquelas expressões que foram substancialmente
modificadas pelo trabalho da sublimação, nas quais o alvo ou o objeto da pulsão
permaneceriam preservados, enquanto a intensidade e a forma do impulso seriam
substituídas por outras mais brandas como o amor, a ternura e a amizade. É
interessante observar que, apesar da expectativa em contrário, a aceitação desse
conjunto de sentenças superou a concordância média em relação à escala completa.
Com isso, pode-se inferir que a concordância moderada em relação a esta sub-
escala revela a importância destes aspectos para que se avaliar um processo de
233
liberação integral da sexualidade. Mas também se pode ponderar que tais resultados
podem não expressar adequadamente o estágio real da liberdade sexual
efetivamente praticada. Ao delimitar o valor dos vínculos afetivos em detrimento
da liberação pura e simples do impulso sexual, os itens revelaram a importância
destes aspectos, mas, ainda assim, os dados não permitem comprovar sua derivação
da experiência. Eles podem estar associados à tendência contrária à
dessexualização, mas também podem estar vinculados à idealização romântica
comumente reproduzida como ideologia. Devido ao fato de gerar tamanha
ambigüidade, considerou-se que seria melhor, tendo em vista a possibilidade de
novas aplicações, indicar sua substituição por outro que apresentasse maior
consonância com o objetivo geral da escala LS; ou seja, mesmo que tenha
cumprido um importante papel para o conjunto de análises realizadas, seria
importante elaborar outros itens que constatassem a modificação cultural dos
comportamentos sexuais e da moral que o regula, deixando a avaliação do sentido
desse processo a cargo da correlação possível com as escalas de dessexualização e
de conformismo. Os resultados das correlações foram fundamentais para decisão
de substituir esse fator por outro que possa estar em maior acordo com os
objetivos da escala. Os dados dessa aplicação somente se correlacionaram
significativamente com a escala LS (0,37, sig. p/p<0,01) em um grau muito baixo e
se relacionaram, em grau ainda inferior, com apenas um dos fatores da escala, que
também deverá receber modificações em seu objetivo, o fator normatização das novas
tendências da sexualidade (0,23, sig. p/p<0,05). Com isso, o propósito inicial da
formulação desse conjunto de itens, ficou parcialmente refutado pelos dados
encontrados. Dificilmente a liberalização da sexualidade ora promovida estaria de
acordo com o conteúdo expresso pelo fator expressão da pulsão sexual inibida em sua
finalidade, pois não houve correlação suficiente entre as atitudes favoráveis aos
aspectos da sexualidade liberados e as atitudes supostamente relacionadas à
liberação da ternura. Além disso, as correlações encontradas com os fatores
234
mostraram-se equivalentes tanto em relação ao fator normatização da escala LS,
quanto com os fatores mediação da sexualidade pela dominação (0,30, sig. p/p<0,01) e
normalização da sexualidade (0,35, sig. p/p<0,01), ambos da escala de
Dessexualização. A análise desses resultados permite inferir que muito
provavelmente os sujeitos que manifestaram acordo com este fator assumiram essa
postura por remeterem-no à idealização do amor romântico e não por associarem-
no à liberalização sexual.
Tabela 20: Tendências centrais dos itens relacionados à expressão da pulsão sexual inibida em
sua finalidade
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
4 5,34 1,99 0,60* 0,21
17 5,60 1,40 0,59* 0,13
55 4,13 1,75 0,44* 0,26**
57 6,10 1,54 0,45* 0,29**
59 4,56 2,38 0,56* 0,13
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
** correlação significativa para p< 0,05
Em conjunto, os itens dessa sub-escala obtiveram média de 5,15,
correspondendo à concordância moderada. Se comparada com a média geral da
escala LS completa (4,76), da qual faz parte, a diferença de +0,39 parece coerente
com a tendência à liberação dos costumes sexuais. Todavia, se pensada em sua
especificidade, traz sentenças que se distinguem do propósito principal, podendo,
com isso, provocar distorção do resultado final. De fato, poder-se-ia dizer que os
235
elementos que abrange são fundamentais à efetivação da liberdade sexual, pois
apontam para aspectos comumente reprimidos ante a liberação da genitalidade e
inconciliáveis com a forma que a liberação assume ao mesclar-se ao processo de
dessexualização. Mas sua manutenção na escala pode ser questionada devido o fato
de pressuporem um grau de discriminação entre a liberação integral ou parcial da
sexualidade que não condiz com o propósito dos demais temas. Em geral, as
proposições integrantes desta escala não visam discriminar entre uma liberalização
sexual que eventualmente se vincule com o conformismo e a dessexualização ou,
por outro lado, se vincule a aspectos que caracterizem a liberação integral da
sexualidade, preservando a possibilidade de universalização dos princípios que
persegue. Por esta razão, os itens dessa sub-escala, apresentados abaixo, não serão
avaliados individualmente e, em conjunto, serão substituídos por outras
proposições potencialmente mais condizentes com os propósitos da escala LS.
Item 4 – o relacionamento afetivo entre aqueles que se amam não deve ser subordinado ao nível
de excitação sexual que há entre eles; o sexo é apenas uma parte do amor.
Item 17 – a sexualidade é uma esfera complexa de nossa vida mental, contudo as dificuldades de
relacionamento que gera podem ser enfrentadas quando realmente se ama.
Item 55 – mais do que o corpo belo, a ternura e a delicadeza fazem daquele a quem amamos o
mais excitante objeto de desejo.
Item 57 uma boa experiência sexual é aquela que, sem impedir o prazer, preserva a
integridade física, psíquica e moral de ambos os parceiros.
Item 59 – o verdadeiro amor não depende do fato de ser ou não correspondido, pois quem ama é
capaz de dar sem pedir nada em troca.
Em substituição ao fator acima analisado, a escala de liberalização sexual
deverá receber um novo conjunto de itens que estejam destinados, com maior
precisão, à constatação das mudanças ocorridas no âmbito da moralidade
236
francamente repressiva quanto à sexualidade genital. Sem se voltar para a análise da
legitimidade dessas mudanças – se caracterizam aumento da liberdade real dos
indivíduos ou novas formas de repressão menos aversivas –, os itens dessa nova
sub-escala permitirão demarcar a intensidade do processo de solidificação dos
valores morais constituídos em oposição aos velhos juízos explicitamente
repressivos. As proposições acerca da valoração dos prazeres genitais ora
permitidos pela cultura e abusivamente estimulados pela indústria cultural
permitirão averiguar as atitudes específicas dos sujeitos em relação à moral sexual
tradicional. Espera-se que, em futuras aplicações da escala, já constituídas pelo
novo fator, se obtenha, em razão das mudanças sugeridas, melhores condições
técnicas para investigar a solidificação da permissividade sexual na consciência dos
sujeitos. Apesar de a moral sexual permissiva estar internamente presente na
maioria das formulações da escala LS, sua delimitação em um fator específico
possibilitará avaliar a camada mais constante da consciência moral. Com isso,
supõe-se que se obterão dados acerca da cristalização dos novos valores morais
referentes à liberalização do sexo genital.
Itens componentes do novo fator proposto: Moral sexual permissiva
Item substitutivo (4) – hoje em dia, qualquer pessoa que pretenda se casar ou “morar junto”
deve ter certeza de sua afinidade sexual com o parceiro(a) escolhido(a); e isto só é possível por meio
da experiência prévia.
Item substitutivo (17) – o sexo serve antes de tudo para que se possa dar e obter prazer; se não
for assim que estiver ocorrendo é porque algo está errado e deve ser corrigido imediatamente.
Item substitutivo (55) – as fantasias sexuais, os produtos eróticos e os filmes pornográficos são
recursos muito valiosos para se evitar a rotina sexual e esquentar a relação.
237
Item substitutivo (57) – ousadia, iniciativa, sensualidade e sedução são qualidades
inestimáveis a qualquer pessoa, e tornam a vida sexual muito mais prazerosa.
Item substitutivo (59) – não deixaria de assistir a um bom filme, acompanhar programas de
televisão de que gosto, ou acessar sites interessantes na internet só porque exibem imagens de
homens e mulheres nus.
Análise dos itens que compõem a escala de dessexualização.
Dentro os instrumentos elaborados nesta pesquisa, a escala de
dessexualização revelou-se o instrumento mais apropriado para a mensuração da
liberdade sexual administrada. Ao contrário do propósito descritivo da escala LS,
destinada à simples constatação do processo histórico das mudanças culturais
transcorridas no âmbito das atitudes e comportamentos relativos à sexualidade, e
do caráter ordinário das situações e conteúdos abrangidos pela escala C, cuja
especificidade delimitada atinge âmbitos variados da vida em sociedade, a escala D
foi elaborada com o intuito de circunscrever as contradições e limites inerentes ao
âmbito próprio da sexualidade. Além da importante correlação com a escala de
conformismo (0,75, sig. p/ p<0,01), o que, por si só, já permitiria a constatação de
que a dimensão da sexualidade abrangida pela dessexualização mantém íntimo
intercâmbio com o ajustamento dos indivíduos às condições sociais em que vivem,
ela também permite, devido ao modo de formulação de seus itens – neste caso,
voltados para a captação das contradições e limites internos ao padrão de
comportamento sexual –, uma análise da forma que a sexualidade atualmente
liberada vem adquirindo. Seus sub-temas foram formulados com a intenção de que
se pudessem delimitar os aspectos mais contraditórios da permissividade sexual
repressiva, portanto, as proposições apresentadas aos sujeitos tiveram como
finalidade revelar atitudes que fossem, a um só tempo, favoráveis ao processo de
liberação, em particular aos aspectos deste processo mais diretamente relacionados
238
ao novo padrão repressivo, e que estivessem vinculadas ao controle desse mesmo
processo. Por enquanto, a suposição de que a sexualidade liberada sofre uma
mutação interna devido à mediação do conformismo e à interiorização da forma
estipulada pela sociedade somente pode se parcialmente respondida pelo atual
estágio em que a escala D se encontra. Sua comprovação completa dependerá dos
avanços obtidos por novas pesquisas que, fundamentadas nas análises e
reformulações propostas, dêem continuidade ao aprimoramento das escalas. É
possível afirmar que o processo de dessexualização compreende aspectos que, além
da oposição à liberalização sexual, também estão em franca contradição com a
consciência de si. Mesmo para os indivíduos que apresentam atitude favorável à
dessexualização, a consciência de que mantêm tabus sexuais, vinculação com a
lógica da troca mercantil ou a mediação de motivações ligadas à dominação, entra
em choque com a falsa consciência de que devem ser integralmente favoráveis à
liberação sexual propalada pela indústria cultural.
Como pode ser observado na tabela 10, já pormenorizadamente discutida na
análise da coerência interna e fidedignidade das escalas, o Alpha de Cronbach dessa
escala aproximou-se de um nível de consistência considerado muito adequado
(0,80). Os demais dados obtidos também se revelaram suficientes à análise das
implicações do conteúdo delimitado e do impacto que podem causar à percepção
dos sujeitos, além de propiciarem inferências bem fundamentadas a respeito desse
importante aspecto da sexualidade. Dentre os resultados dos testes realizados, o
escore da correlação dessa escala com a escala de conformismo foi a mais
importante (0,75, sig. p/p<0,01), principalmente porque marca a vinculação dessa
forma já ajustada da sexualidade moderna com atitudes relacionadas a conteúdos
variados da vida em sociedade, de extração cultural, política e econômica. Dentre as
correlações dos fatores com a escala D completa, duas se destacaram, mas não em
detrimento das demais, pois todas se mantiveram significativamente
correlacionadas com a escala em grau superior a 0,50. A correlação de 0,86 (sig.
239
p/p<0,01) com o fator mediação da sexualidade pela dominação foi a mais expressiva,
sugerindo que, nesse modo de organização e controle da sexualidade, há uma forte
tendência à liberação das pulsões destrutivas. Se tal como foi indicado por Marcuse
(1955/1981) em Eros e civilização, a sexualidade liberada sob o princípio de realidade
repressivo realmente não permite a real liberação da pulsão sexual ou somente a
permite se estiver devidamente vinculada às pulsões destrutivas, pode-se ponderar
que é precisamente esta subordinação da pulsão à forma de ajustamento requerida
pelo princípio de realidade repressivo o elemento que melhor caracteriza o
processo de dessexualização mensurado por essa escala. O outro fator que também
se destacou foi a reificação do sexo, cuja correlação atingiu o escore de 0,76 (sig. p/
p<0,01). Nesse caso, os resultados também corroboram as ponderações de Adorno
(1963/1969) em sua análise dos tabus sexuais, o sexo somente é permitido quando
ajustado às determinações da sociedade capitalista. O mecanismo da reificação, por
meio do qual o sexo se converte em uma mercadoria dotada de valor de troca, se
converte em uma condição da liberalização permitida.
Reificação da sexualidade:
As sentenças formuladas para mensurar o ajustamento do sexo e de
conteúdos de timbre sexual à forma mercadoria remeteram os conteúdos sexuais e
as pessoas que os expressam ou desejam à mediação do valor de troca. Tanto a
utilização da sexualidade para o favorecimento da mercantilização de produtos
materiais e culturais quanto a sua conversão em mercadoria foram explicitamente
sugeridos por proposições carregadas pelo sentido que a coisificação imprime às
relações interpessoais. Indicado por Adorno (1963/1969) como condição para que
o sexo genital possa ser liberado como pretende a indústria cultural, a reificação é o
fator que melhor garante seu ajustamento ao sistema, pois somente quando
coisificado e explorado das mais diversas maneiras, ele pode ser liberado.
240
Esse fator apresentou uma correlação de 0,76 (sig. p/p<0,01) com a escala
D, confirmando a importância que tem para a mensuração da dessexualização.
Contudo, as correlações com os demais fatores foram mais modestas. Com exceção
da correlação estabelecida com o fator mediação da sexualidade pela dominação, que
atingiu um escore de 0,60 (sig. p/p<0,01), todas as demais foram inferiores 0,50;
houve ainda a correlação de 0,46 com o fator padronização do comportamento sexual,
também significativa. Esse resultado pode representar a especificidade do fator em
relação aos demais. De todo modo, independente de quaisquer limitações que
possam haver, as duas correlações mais altas encontradas, a que se deu com a escala
e a que estabeleceu com o fator medição da sexualidade pela dominação, foram bastante
expressivas, contribuindo para o entendimento do modo de operação do
mecanismo da reificação. Atestam a sua importância para o quadro geral da escala,
como um dos aspectos que realmente caracterizam a dessexualização e confirmam
a suposição de que a subordinação da sexualidade a finalidades mercantis implica
na associação das pulsões sexuais às pulsões destrutivas, podendo haver o
favorecimento das últimas em detrimento das primeiras.
241
Tabela 21: Tendências centrais dos itens relacionados à reificação da sexualidade
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
18 1,96 1,73 0,67* 0,42*
22 4,31 2,15 0,64* 0,47*
30 1,38 1,17 0,42* 0,29**
53 4,31 2,12 0,57* 0,56
73 1,94 1,55 0,60* 0,43*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
** correlação significativa para p< 0,05
Sugerindo uma valorização direta da posse de mercadorias comumente
tratadas como objetos de desejo, o item 18 – acredito que devo ter um bom carro e uma
boa casa para garantir maior oportunidade de fazer amigos e encontrar pessoas interessantes para
possíveis relacionamentos amorosos – apregoa a mediação das relações afetivas por meio
do valor de troca das mercadorias. O Fetichismo da mercadoria, segundo o qual,
determinados produtos tornam-se autônomos e passam a determinar as relações
entre os homens, nesta proposição, foi apresentado à consciência imediata como
condição natural da valorização das pessoas. Assim reduzidas às coisas que
possuem, as próprias pessoas tornam-se também coisas possuídas pelo esquema do
valor. O poder de sedução por meio da posse dos bens materiais indicados, a casa,
mas, sobretudo o automóvel, rotineiramente explorados pelos mecanismos de
produção de necessidades, foi explicitamente associado ao aumento da
possibilidade de adquirir novos amigos e amantes. Possivelmente por estar dirigida
à consciência e não às necessidades com as quais é vinculada pela indústria cultural,
a articulação entre a dimensão afetiva e a esfera do valor mercantil revelou-se
242
pouco atraente para os sujeitos que, com média de 1,96 tenderam à discordância
moderada. Esse resultado permite inferir que, ao menos com o nível de explicitação
apresentado pela proposição, não há aceitação desse grau tão extremo de reificação
das relações afetivas. Recorrendo a uma forma menos direta, uma outra
possibilidade de redação deste conteúdo talvez permitisse circunscrever a mediação
do valor de troca em situações também atreladas à posse de mercadorias e
caracterizadas pela invasão da coisificação, porém, sem produzir a exposição tão
explícita dessa relação: o conforto, a comodidade e a elegância que certas coisas proporcionam
são importantes para melhor agradarmos aos amigos e obtermos um clima mais favorável à
conquista de pessoas interessantes.
Com média bem mais elevada (4,31), o item 22 – o sucesso profissional de uma
pessoa é um forte indício de sua estabilidade emocional e de sua habilidade em administrar
conflitos, portanto também da capacidade que possui para estabelecer um bom relacionamento
afetivo – indicou haver leve concordância com o enunciado. Apesar de ainda ter se
mantido próxima ao ponto médio da escala, a média acusou uma tendência à
aceitação do juízo de que a capacidade de estabelecer um bom relacionamento
afetivo estaria relacionada com o sucesso profissional. Também voltado para a
mensuração de atitudes ajustadas ao mecanismo da reificação da sexualidade, este
item preserva os sujeitos que com ele concordaram do embate com a consciência
de que estejam definindo suas escolhas afetivas por meio de critérios utilitaristas ou
por valorização da posse de mercadorias. A imagem do profissional bem sucedido é
articulada com a estabilidade emocional, com a capacidade de administrar conflitos
e, por fim, com a capacidade de manter um bom relacionamento afetivo. Esta
proposição deve ser mantida na íntegra, pois mesmo não agregando escores
elevados, quando analisada em conjunto com outras variáveis, constitui um bom
indicador da tendência à coisificação da sexualidade. Atingiu um desvio padrão
adequado (2,15) e correlações importantes com o fator (0,64, sig. p/p<0,01) e com
a escala (0,47, sig. p/p<0,01).
243
Se considerados os indicadores obtidos, o item 30 – gosto de falar sobre as
minhas conquistas sexuais porque assim sou mais valorizado pelos amigos e aumento meu poder
de sedução – revelou-se o mais problemático desse conjunto de questões. A média de
1,38, a mais baixa de todos os itens dessa escala, se analisada em conjunto com as
correlações estabelecidas com o fator (0,42, sig. p/p<0,01) e com a escala (0,29, sig.
p/p<0,05), também os mais baixos do grupo, e com o desvio padrão de 1,17,
indica que o nível de rejeição desta proposição foi realmente muito expressivo.
Próximos à discordância plena e com forte concentração, os resultados obtidos
pela mensuração deste item permitem afirmar que decididamente os sujeitos não
concordam que seja adequado vangloriar-se por conquistas e feitos a fim de se
tornar mais valorizado frente aos outros. Essa rejeição da sentença pode ter
decorrido do posicionamento dos sujeitos em relação ao aspecto mencionado, mas
também pode expressar o teor da diferença entre os sexos. Essa é uma atitude mais
comum ao universo masculino e as respostas dadas pelos homens a essa questão
atestam essa tendência. A diferença entre a média dos sujeitos do sexo masculino
(2,33) e a média dos sujeitos do sexo feminino (1,14) permite ainda ponderar que,
se essa conduta é menos rejeitada pelos homens, as mulheres não apresentam
dúvidas quanto à sua rejeição total. De todo modo, esses diferentes escores
parecem reforçar a constatação de que, principalmente no que diz respeito à
sexualidade, as diferenças entre os sexos são de grande importância, pois remetem a
padrões culturais distintos. Pelas muitas razões apresentadas, no caso de novas
aplicações da escala, o item deverá ser substituído por outro que, do mesmo modo,
sugira a autovaloriazação como forma de investimento pessoal, voltada à
caracterização de si como mercadoria mais valorizada, mas não recaia em tão
extrema vinculação com condutas específicas de um dos sexos ou de determinados
grupos idiossincráticos: o amor e o sexo funcionam de modo semelhante às negociações
financeiras: quanto mais temos, mais somos valorizados e tanto mais podemos ter.
244
O item 53 – o fato de haver imagens de homens e mulheres em poses sensuais em
propagandas de TV e revistas é prova de que nossa sociedade é liberal quanto ao sexo
circunscreve a liberalidade sexual a partir da apropriação midiática da sensualidade.
A derivação aparentemente lógica de que a sociedade é liberal quanto ao sexo
constitui um falso silogismo, pois sugere que os padrões de liberação veiculados
pelos meios de comunicação de massa expressam fidedignamente o estado real da
liberdade sexual, enquanto o que de fato se observa é a manipulação de
necessidades comumente frustradas na experiência cotidiana. A produção da falsa
consciência a respeito da liberdade sexual baseia-se no ajustamento da percepção
das necessidades reais à forma estipulada pela propagada. A liberalidade encerrada
neste processo permanece restrita aos padrões estipulados pela indústria cultural.
Há maior liberalidade porque a sexualidade manipulada como mercadoria é
utilizada para vender produtos e motivar o consumo de futilidades. Pouco
expressiva, a média de 4,31 revela haver apenas um pequeno grau de concordância
com o enunciado. Tendo em vista a possibilidade de verificar se seria possível
captar um potencial maior de adesão ao seu conteúdo, será proposta uma nova
versão para aplicações futuras, que traz pequenas alterações na redação. Mantendo
a referência direta à relação entre a sensualidade explorada pelos órgãos de
comunicação, propaganda e entretenimento, e a idéia de que há um processo
gradual de liberalização sexual. A versão reformulada deste item visa amenizar o
efeito da afirmação atual, de que a percepção do grau de liberdade sexual está
inteiramente subordinada aos indicadores midiáticos e, por este motivo, apresenta-
se limitada à sua versão já reificada: o destaque, cada vez maior, dado à sensualidade em
programas de televisão, músicas e propagandas se deve ao fato de que as pessoas estão cada vez
mais liberais quanto ao sexo.
Caracterizando discordância moderada, o item 73 – antes de comprar minhas
roupas, sapatos e artigos de beleza olho revistas de moda e artistas da TV para ver o que me
deixaria mais sensual – sugere que os processos de influência por meio da indústria
245
cultural correspondem à legítima escolha de modelos constitutivos da identidade.
Ao supor que o ideal de beleza e sensualidade perseguido pelo sujeito esteja
diretamente associado ao reconhecimento de determinados modelos explorados
pelas revistas de moda e personagens dos programas de televisão, a formulação
exagera a passividade das pessoas em relação aos meios com os quais se relacionam
para averiguar se haveria nesse processo, indicativos consistentes da tendência geral
da sexualidade em servir de suporte subjetivo para circulação de mercadorias.
Todavia, o aspecto que se pretendia medir, a aceitação de padrões de sensualidade
como modelos para identificação, tornou-se secundário devido o impacto que a
atribuição de influência direta e, conseqüentemente, da passividade com que
supostamente se recebe esta influência pode ter provocado nos sujeitos. É difícil
avaliar se tão expressiva rejeição caracteriza uma postura crítica ante a possibilidade
insinuada pela proposição ou se houve certa resistência ao papel excessivamente
passivo explicitamente sugerido pela sentença. Como meio de aprimorar a
capacidade de análise deste item, o conteúdo delimitado poderá ser explorado por
meio de uma versão reformulada, que garanta o espelhamento da dinâmica das
identificações geralmente produzidas pelos referidos meios. Se há um acentuado
enfraquecimento da mediação egóica e a própria introjeção tornou-se debilitada é
também compreensível que as defesas psíquicas trabalhem para evitar o contato
com esta débil imagem de si: a beleza, a sensualidade e a elegância das musas e galãs do
cinema são excelentes motivações para que cuidemos mais da aparência.
Tabus sexuais
Apreender as atitudes motivadas pelos tabus sexuais requer que se possa
lançar mão de recursos indiretos. As proposições muito explícitas a esse respeito
despertam as resistências dos sujeitos que, mesmo sendo preconceituosos em
relação às minorias sexuais indicadas, não pretendem entrar em contato com esses
246
conteúdos e remetê-los à consciência. Freqüentemente mobilizados pela falsa
consciência de que, por um simples ato de linguagem, já são automaticamente
liberais quanto ao sexo, muitas pessoas frequentemente não admitem
questionamentos a respeito de sua atitude supostamente moderna, portanto,
conservam, em uma dimensão recôndita, suas representações mentais de caráter
preconceituoso e fantasias persecutórias em relação às minorias sexuais e às
manifestações da sexualidade distintas do padrão de comportamento sexual vigente.
Em geral, só é possível ter indicadores precisos desses conteúdos por meio de
formulações indiretas, nas quais eles possam ser projetados despercebidamente. A
correlação que esse fator manteve com a escala foi significativa (p/p<0,01), mas
não muito elevada (0,61). Tal como se observará na análise de alguns dos itens que
a compõem, é possível que o cuidado em não tornar excessivamente explícita a má
consciência do preconceito deveria ter sido ainda mais acentuado, pois quanto mais
explícita é a manifestação de conteúdos que remetem à percepção de que ao
concordarem com a sentença, os sujeitos estão se revelando preconceituosos, mais
eles mostraram-se resistentes à questão. É certo que há uma distinção quanto ao
grau em que os tabus sexuais são aceitos, e que em uma parcela dos casos são
objeto de escárnio por parte dos sujeitos, todavia, se houver maior concordância
com manifestações mais sutis do preconceito, ainda assim, isso não significa que ele
seja menos problemático e que deva ser tolerado. Em geral, as correlações obtidas
com os demais fatores foram inferiores a 0,50. As duas principais foram com o
fator mediação da sexualidade pela dominação (0,46, sig. p/p<0,01) e com o fator
normalização do comportamento sexual (0,37, sig. p/p<0,01). Em ambos os fatores há
uma mesma tendência à conciliação da moderna permissividade sexual com formas
obsoletas de repressão e moralismo. O fator voltado à mensuração da normalização
da sexualidade, por exemplo, está centrado no ajustamento dos indivíduos a
determinados critérios de normalidade arbitrariamente legitimados por
preconceitos.
247
Tabela 22: Tendências centrais dos itens relacionados aos tabus sexuais
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
11 5,00 2,31 0,42* 0,24**
16 2,97 2,12 0,62* 0,38*
28 4,26 2,27 0,50* 0,42*
38 3,18 2,15 0,68* 0,33*
62 3,43 2,14 0,60* 0,36*
** correlação significativa para p< 0,05
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
Apesar de ter obtido uma média (5,00) correspondente à concordância leve,
o que certamente já caracteriza um importante dado para a pesquisa, pois remete a
um importante tabu sexual, o item 11 – não condeno o amor entre pessoas do mesmo sexo,
cada um que se relacione sexualmente com quem quiser, mas eu não gostaria de ter um filho gay
apresentou as menores correlações desse grupo de questões. Como pode ser
observada na tabela 20, a correlação com o fator foi de 0,42 (sig. p/p<0,01) e com
a escala (0,24, sig. p/p<0,05). Esses indicadores podem ter decorrido da oscilação
nos escores dos demais itens, em geral mais baixos do que o obtido por ele, mas
também pode representar o isolamento desse aspecto em relação aos objetivos do
fator e da escala. Com relação ao conteúdo, pode-se ponderar que a formulação
apresentada parece não delimitar suficientemente a aversão à homossexualidade,
pois ao articular sentenças contraditórias como a não-condenação do amor entre
pessoas do mesmo sexo e a repulsa à idéia de ter um filho homossexual, o fator
principal que se pretendia medir teve seu efeito minimizado pela primeira
afirmação. Neste caso, como meio de se verificar a possibilidade de aumentar a
248
clareza e o poder discriminatório do item, poder-se-á reformulá-lo parcialmente,
sem modificar seu conteúdo principal, mas evitando-se a obscuridade que pode
haver na versão atual: não há como controlar as opções sexuais dos outros; na prática, cada um
se envolve com quem quiser, mas eu não gostaria de ter um(a) filho(a) gay (lésbica).
Com média (2,97) correspondente à rejeição leve, o item 16 – as prostitutas
são pessoas indecentes e desajustadas, por isso deveriam ser impedidas de ameaçar a integridade de
nossas famílias – enfatizou a condenação das prostitutas ao ostracismo social. Além
de sugerir que as trabalhadoras do sexo promovem a degradação da esfera do
caráter, a sentença levanta uma outra acusação de base visivelmente paranóica de
que as prostitutas também representam uma ameaça à integridade do endogrupo.
Apesar de caracterizar uma tendência à discordância, o escore obtido, ainda assim,
surpreende por conservar, na medida em que sua rejeição não configurou uma
oposição clara e suficiente, certo grau de consentimento implícito ao significado
explicitado pelo conteúdo da proposição. Sugerir que as prostitutas deveriam ser
impedidas de ameaçar a integridade das famílias implica na proposta de que se
produzissem medidas legais para coibir sua atividade. Com isso, apesar da
discordância leve, ainda é possível questionar se uma proposição similar, mas com
um nível menor de rechaço – o qual, neste caso, está dirigido não somente à
atividade da prostituição, mas principalmente a suas praticantes –, não obteria
maior grau de aceitação por parte dos sujeitos. De todo modo, os dados indicam
ser necessário reconhecer que o tão elevado grau de repulsa às prostitutas, sugerido
pela sentença, não é condizente com a realidade e que, mesmo havendo
julgamentos morais que as aviltem, não há concordância quanto ao fato de ser
recomendado impedi-las de realizar seu ofício. A revisão proposta a respeito desse
aspecto, pretende preservar o propósito principal almejado com a formulação do
item, a reprovação moral, sem, contudo, chegar ao extremo, inoportuno até mesmo
às consciências mais pudicas, de reprimir seu meio de sobrevivência e condená-las
ao ostracismo: somente pessoas indecentes e desajustadas se rebaixam a ponto de se prostituir.
249
O item 28 devido ao comportamento sexual promíscuo de tantas pessoas com as quais
temos atividades em comum, tornou-se difícil saber em quem confiar – traz a sugestão de que
se desconfie de pessoas sexualmente promiscuas. Articulando esse tipo
comportamento sexual com a esfera da confiança nas pessoas, a proposição
apresentada suscita a desconfiança generalizada, inclusive em relação a pessoas com
as quais se mantém atividade em comum. Tal mecanismo psíquico revela-se
semelhante à projeção delirante, pois tanto a delimitação do comportamento sexual
promíscuo quanto a dificuldade em estabelecer relações de confiança absorvem as
projeções dos sujeitos. O fator mais claramente definido nessa sentença é o desvio
do comportamento sexual em relação a um padrão normativo referente à
sexualidade não-promiscua. Ainda próxima ao ponto neutro, a média de 4,26,
sutilmente favorável à proposição, permite inferir que, para os sujeitos indagados, a
uma pequena inclinação a considerar os motivos mencionados suficientes para se
levantar desconfianças a respeito das pessoas com as quais são mantidas atividade
em comum. Todavia, ainda seria interessante testar a mesma proposição,
excluindo-se a particularização das pessoas sobre as quais se supôs na versão atual
que caberia desconfiança. Com isso, é possível que haja maior aceitação da relação
investigada: como hoje em dia muitas pessoas mantêm um comportamento sexual promíscuo,
tornou-se difícil saber em quem podemos confiar.
Conforme pode ser observado na tabela 20, o item 38 – as orgias e o sexo em
grupo são aberrações da natureza; as pessoas que os praticam deveriam receber tratamento
psiquiátrico – obteve escore médio de 3,18, correspondente à discordância leve. As
correlações com o fator (0,68, sig. p/p<0,01) e com a escala (0,36, sig. p/p<0,01)
foram significativas. A correlação com o fator, inclusive, foi a mais elevada desse
grupo de questões; sua pertinência para o entendimento do alcance dos tabus
sexuais e de sua relação com a esfera da pseudo-racionalidade pode ser atestada por
meio desse dado, que também indica a importância desse aspecto para a
mensuração do grau de penetração cultural da dessexualização. Os resultados não
250
deixam dúvida de que, assim formulada, a proposição abrange um importante alvo
de tabus. Entretanto, apesar de indicarem tendências importantes para a análise do
fenômeno estudado, os resultados obtidos conservaram algumas limitações como
média pouco expressiva e baixa correlação com a escala. Tais restrições permitem
levantar a hipótese de que a rotulação excessivamente agressiva desses
comportamentos sexuais possa ter favorecido a rejeição da sentença que, de outro
modo menos direto, talvez pudesse ser aceita em grau mais elevado pelos
respondentes. O fato de não ter havido maior aceitação desse item indica que,
mesmo havendo reservas efetivas quanto a esse tipo de comportamento sexual, a
rotulação de que seriam aberrações, assim como, a derivação extraída desse
julgamento, de que as pessoas que os praticam deveriam ser objeto de intervenção
psiquiátrica, não foram aceitos provavelmente por caracterizarem um modo de
condenação muito radical, incongruente com os padrões de moralidade vigentes. O
sexo em grupo e as orgias aqui rotuladas de aberrações da natureza e relacionadas
ao campo dos transtornos mentais parecem remeter para possibilidade de uma vida
desregrada, cujos limites seriam dados exclusivamente pela saciação dos impulsos.
De modo geral, pode-se concluir que a relevância do tema e a permanência de
muitos pontos obscuros, ainda passíveis de serem explicados, sugerem que sejam
realizadas algumas alterações no modo de apresentação do conteúdo, que conserve
seu propósito principal, mas amenize o grau de condenação sugerido: as orgias e o
sexo em grupo ultrapassam os limites da normalidade, por isso as pessoas que os praticam
deveriam fazer tratamento psicológico.
Entre o ponto neutro e a leve rejeição, o item 62 – a homossexualidade é uma
ameaça aos bons costumes e deve ser resolvida antes que se espalhe para todas as famílias
caracteriza-se por ser favorável a uma atitude absolutamente contrária ao propalado
discurso da diversidade sexual. Seu conteúdo não somente sugere a condenação
moral da homossexualidade, como ainda insinua a necessidade de que se
desenvolvam medidas para contê-la antes que se espalhasse para todas as famílias.
251
A atribuição de risco à mera existência da homossexualidade estimula as defesas
persecutórias e justifica a criação de medidas proibitivas. A média de 3,43 permite
avaliar que, apesar da rejeição apresentada ter sido muito pequena, não houve
concordância com o enunciado. Esse resultado pode dever-se ao fato do tema não
ser mais tão distintamente um objeto de tabu ou à delimitação imprecisa sugerida
pela proposição. O forte elemento persecutório e sua conseqüência possível, a
implementação de medidas proibitivas, podem ter assumido o papel de elemento
principal do item, desviando a atenção dos sujeitos da aprovação ou rejeição da
homossexualidade para a afirmação de uma postura autoritária quanto às tendências
das quais discorda. Apesar da relevância desse resultado, que mesmo com média
baixa corrobora a hipótese de que a liberação sexual atualmente consentida está
sujeita a contradições e controles, seria conveniente, em futuras oportunidades,
distinguir entre a investigação de atitudes motivadas por tabus sexuais e a adesão a
tendências autoritárias: a espontaneidade com que algumas pessoas tratam à homossexualidade
como se fosse parte dos comportamentos sexuais normais é uma ameaça aos bons costumes.
Mediação da sexualidade pela dominação
Definidas pela valorização de prazeres relacionados à subordinação e à
submissão, bem como pela associação a formas de crueldade dirigidas para
indivíduos ou grupos sociais específicos, em detrimento de prazeres associados à
ternura e à conservação do objeto de desejo, as proposições desse fator sugerem
que os sujeitos que concordam com seus respectivos conteúdos também
concordam com a mediação exercida pelo princípio da dominação. A correlação
encontrada entre o fator e a escala D (0,86, sig.p/p<0,01) reforça a hipótese de que
a liberação da sexualidade permitida nas últimas décadas não foi gratuita, mas sim
condicionada por sua associação às pulsões destrutivas e à forma estipulada pela
sociedade administrada. Nesse ponto, deve-se manter presente a clara distinção
252
entre a liberalização mensurada pela escala LS e a verificação dos limites da
sexualidade mensurada pela escala D. A primeira verificou várias tendências da
liberação sexual em perspectiva, projetadas em uma ampla extensão de
possibilidades, em geral, relacionadas às mudanças históricas e culturais
transcorridas no âmbito da moral e da mentalidade subjacente ao processo
histórico; esta outra, visa mensurar as atitudes mediadas por elementos que
suprimem sua essência especificamente sexual, por determinantes exteriores,
relacionados aos interesses políticos e econômicos, à adaptação irracional e à
influência dos princípios da dominação. Para a análise deste fator, além da
correlação com a escala, também foram importantes as correlações com os fatores
reificação do sexo (0,60, sig. p/p<0,01) e tabus sexuais (0,46, sig. p/p<0,01), ambos
relacionados a importantes dimensões da vida social. A reificação já traz em sua
própria estrutura constitutiva e condição de ser a mediação da dominação presente
na cultura ocidental desde os primórdios da civilização, portanto não é em nada
surpreendente que se correlacione com este fator. Os tabus sexuais também são em
si mesmos uma forma de controle exercido sobre as possibilidades de prazer; um
modo de dominação da sexualidade de outrem em parte já fundamentado na
dominação da própria sexualidade.
253
Tabela 23: Tendências centrais dos itens relacionados à mediação da sexualidade pela
dominação
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
14 3,38 2,32 0,69* 0,58*
35 3,64 2,07 0,57* 0,57*
37 3,61 2,10 0,67* 0,54*
50 2,96 2,00 0,49* 0,43*
60 3,43 2,14 0,70* 0,58*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
A média dos escores dos itens relacionados à mediação exercida pela dominação
indicou haver discordância leve em relação à tendência sugerida pelos itens
testados. Situado entre o ponto neutro e a discordância leve, o escore médio obtido
(3,40) permite inferir que os resultados desta sub-escala retratam adequadamente a
média geral da escala D (3,46). Tal como vem sendo analisada nos parágrafos
anteriores, essa tendência à discordância leve em relação aos itens dessa escala pode
estar associada à presença de fatores distintos nas respectivas proposições. Um dos
aspectos que mais têm se destacado é a ênfase atribuída ao autoritarismo. A
associação explícita entre os mecanismos de dessexualização e o autoritarismo
parece caracterizar o principal motivo da rejeição aos itens que, de outro modo
menos direto, poderiam representar menor aversão aos respondentes.
Consideração similar foi apresentada por Adorno et. alii (1950/1965) quanto à
elaboração da Escala F. Definida como instrumento de mensuração da tendência
antidemocrática implícita, esta escala consistiu em formulações condizentes com o
fascismo, porém de maneira essencialmente indireta para que, ao expressarem suas
254
atitudes, os sujeitos não tivessem que necessariamente ver espelhada sua imagem
autoritária, com a qual dificilmente entrariam em contato sem defesas e
racionalizações. Analogamente, pode-se dizer que a dessexualização configura a
sombra não-reconhecida da liberalização sexual, seu limite e condição. Esta
condição implica em que se deva utilizar maior sutileza na apresentação das
proposições, para que dirigidas de modo mais indireto às atitudes que se quer
mensurar, possam captar o nível real de concordância sem, com isso, ter que causar
espanto ao respondente; que possivelmente também não quer ver explicitada a
negação de sua crença na liberdade sexual existente.
O item 14 – o prazer obtido ao final da relação sexual compensa os sofrimentos que
tenham sido necessários para se chegar a ele – obteve média de 3,38, aproximando-se da
discordância leve. Se considerado o teor especificamente masoquista da proposição
apresentada, pode-se ponderar que o grau de discordância atingido não foi
suficientemente expressivo. De acordo com as considerações a respeito do modo
de apresentação deste conjunto de itens, a proposta de revisão tem como objetivo
capturar possíveis disposições sadomasoquistas que estejam imbricadas no padrão
da sexualidade sem, com isso, enfatizar a imagem aversiva da mediação do poder: o
sexo não é somente delicadeza; é normal que às vezes o prazer e a dor se misturem.
Com média próxima ao ponto neutro (3,64), o item 35 – se não forem
devidamente dominadas, as grandes paixões terminam sempre em grandes tragédias, pois o prazer
depende de que haja ordem para ser alcançado – propôs ser necessário haver certa
dominação de si mesmo, da natureza interna, sugerindo que se os impulsos
permanecessem liberados, acarretariam grandes tragédias. A decorrência proposta
como inevitável sugere que o desenvolvimento imanente das paixões traria consigo
a destruição, e que não haveria outra maneira para se preservar a vida senão a
repressão dos impulsos e a ordenação lógica do prazer: a entrega às grandes paixões
traz consigo o risco da tragédia, por isso, é necessário o controle dos impulsos para que se possa
atingir o verdadeiro prazer.
255
Com indicadores similares aos do item anterior, (média = 3,61; desvio
padrão = 2,10), o item 37 – eu gostaria de ter mais poder para melhor gozar a vida, pois
certamente é melhor dominar os outros do que ser dominado por eles – apresenta alguns
argumentos que misturam o realismo opressivo, derivado da existência constituída
sob o modelo das relações hierárquicas, e o sórdido acordo com essa ordem social
injusta que, por vezes, engendra àquelas relações. A opção pelo poder como meio
de melhor gozar a vida difere significativamente da conclusão de que é melhor
dominar os outros do que ser por eles dominado, mas em ambas as formulações é
o reconhecimento do poder como mediação principal que está em questão.
Quando dissociado da consciência de que é a dominação que deveria ser superada
(Horkheimer e Adorno, 1944/1985), tanto o incômodo por ser subjugado quanto o
gozo por poder subjugar assemelham-se na opção pelo poder. O baixo grau de
desaprovação ao conteúdo deste item não chega a configurar uma postura crítica
frente ao extremo elogio da dominação que ele suscita, portanto é possível que uma
revisão de sua forma de exposição possa captar a tendência imanente nestes dados,
ou seja, propiciar condições para que possa ser melhor expressada a aprovação
tácita à mediação das relações humanas pelo poder: no sexo, assim como na vida em
geral, quanto mais poder tivermos, tanto maiores serão nossas oportunidades de gozarmos os
prazeres que a vida oferece.
Excessivamente explícito quanto à ênfase atribuída à vinculação entre o
amor e o ódio, o item 50 – faço qualquer sacrifício pela pessoa que amo, mas se for traído,
desejo que recaia sobre a pessoa que me traiu os piores infortúnios, para compensar os meus
sacrifícios – possibilita avaliar a mediação exercida pela dominação nas relações
afetivas. A média de 2,96 indicou haver rejeição leve ao conteúdo proposto pelo
item. É certo que, se pensado em relação ao desvio padrão de 2,00 – o menos
dispersivo desse grupo de questões –, os sujeitos com os escores mais elevados
tenderam à concordância leve, mas, ainda assim, é importante avaliar alguns
aspectos da formulação que possam ter influído decisivamente para o resultado
256
obtido. O mais importante deles parece ter sido a maneira muito explícita com que
os aspectos sadomasoquistas da relação foram destacados. Tais conteúdos
comumente são tratados por meio de racionalizações que os remetem a áreas de
menor conflito. Essas ponderações levam ao questionamento central que vem
sendo desenvolvido ao longo da discussão de cada um dos itens dessa escala: a
média relativamente baixa deveu-se realmente às atitudes dos sujeitos, no caso,
contrários à formulação apresentada, ou poderia ter sido maior se a sentença não
provocasse a percepção tão direta do conteúdo. O escore médio obtido não exclui
a possibilidade de que poderia haver maior aceitação se a proposição não
apresentasse considerações tão extremas a respeito do sacrifício e da vingança,
temas que causam desconforto imediato e são facilmente rechaçados da
consciência. A presença dos impulsos destrutivos na relação com os objetos de
investimento libidinal poderão ser avaliadas recorrendo-se a futuros testes da nova
formulação da sentença: se uma pessoa para qual dediquei o melhor de meu amor
simplesmente me traísse ou desprezasse, eu gostaria de vê-la sofrendo em dobro.
Com média de 3,43, próxima ao ponto neutro da escala, e desvio padrão de
2,14, indicando um raio de variação que, com mais um desvio padrão acima da
média, atinge os escores dos sujeitos de pontuação mais elevada a uma proporção
de 5,57 na escala, ou seja, correspondente à concordância moderada, o item 60 –
imaginar que alguém rasteja a meus pés, implorando para que eu satisfaça seus desejos mais
ardentes, eleva minha alto-estima e aumenta o meu prazer – traz em seu conteúdo
elementos, em parte implícitos em parte manifestos, que relacionam a humilhação
do outro, que deste modo rastejaria pelo objeto de desejo, e a elevação da auto-
estima e do prazer daquele que assim for assediado. O núcleo da tendência que se
pretendia medir é o prazer por meio da humilhação infligida a outrem.
Contrariando um dos princípios mais tradicionais do amor romântico, a formulação
sugere ainda que o outro por meio do qual é possível obter uma satisfação de certo
modo cruel, é principalmente uma coisa; condição que o desqualifica como objeto
257
de amor. O escore médio de 3,43 não acusa nenhum grau de aprovação, mas
também não apresenta oposição suficiente ao conteúdo bastante explícito. Além
disso, os sujeitos situados a um desvio padrão acima da média na escala
apresentaram concordância moderada, o que, dado o teor do conteúdo desse item,
é algo extremamente expressivo. De todo modo, seguindo a tendência geral do
tratamento dado aos itens desse fator, é possível que este item possa, por meio de
uma nova redação, apresentar o conteúdo de modo menos direto, preservando a
aparência com o ideal cultural. Supõe-se que, com isso, ele manteria o núcleo da
hipótese a que corresponde, mas sob uma forma de apresentação menos aversiva
ao olhar breve do respondente que não gostaria de ver o pior si espelhado em uma
frase: há um prazer especial em se sentir desejado(a), e sempre tem aquelas pessoas que
adoraríamos ver implorando por nosso amor para que pudéssemos esnobá-las.
Padronização do comportamento sexual
A inclusão na escala D, de proposições que indicam a adesão a modelos de
comportamento sexual padronizados deveu-se ao entendimento de que a simples
redução a padrões já é contrária à natureza multivariada da substância erótica. O
ajustamento dessa tendência aos parâmetros fornecidos e estimulados pela indústria
cultural indica o fato, ainda mais relevante, de seus elementos constitutivos serem
condizentes com o processo de dessexualização. Contudo, a preponderância da
tendência cultural à formação de padrões, não apenas ligados ao comportamento
sexual, mas ao campo geral das atitudes, representa um questionamento importante
sobre a pertinência ou não destes itens na escala de dessexualização. O processo
geral de liberalização do sexo também se pauta por padrões e, mesmo que os dados
obtidos por aquele processo não sejam indicadores da regressão da sexualidade, o
limite entre a liberação e a dessexualização torna-se tanto mais tênue quanto mais
este fator parece se relacionar com as duas escalas. Considerando-se a utilização
258
desta escala em pesquisas subseqüentes, é importante considerar que ainda seriam
necessárias ponderações mais detalhadas para que se pudesse decidir sobre a
manutenção ou exclusão destes itens na escala D completa; porém, isto somente
será decidido mediante os resultados de novas aplicações da escala. Por enquanto,
visualizando apenas os objetivos específicos desta análise, os resultados
encontrados já são interessantes, pois fornecem indicativos precisos de tendências
centrais do processo de dessexualização. Se há indicação para que este fator receba
tratamento diferenciado, por apresentar a necessidade de sofrer alterações mais
significativas, é preciso não esquecer que as diversas sugestões formuladas para os
itens não retiram a precisão do instrumento e nem amenizam o impacto dos dados;
apenas apontam a possibilidade de haver elementos da realidade que ainda não
foram completamente abrangidos e que talvez possam revelar resultados ainda mais
preocupantes. Como proposta de reformulação imediata dos itens desta escala,
pode-se indicar que os itens com resultados mais ambíguos sejam substituídos por
novas versões igualmente vinculadas aos propósitos da escala, sobretudo quanto ao
fato de deverem se dirigir para conteúdos subjacentes à consciência de si dos
indivíduos que se autoproclamam arautos da liberdade sexual. As correlações
obtidas forneceram bons indicativos para análise desse fator e para a decisão de
modificar muitos de seus itens. Como indicado acima, foram encontradas
correlações importantes também com escala LS, o que reforçou o questionamento
a respeito da manutenção ou não deste fator na escala D. O fator atingiu
correlações significativas ao nível de 0,01 com as escalas D (0,56) e LS (0,36), além
também se correlacionar significativamente com fatores de ambas as escalas.
259
Tabela 24: Tendências centrais dos itens relacionados à padronização do comportamento sexual
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
23 3,27 2,26 0,75* 0,39*
25 4,97 1,88 0,63* 0,34*
27 2,71 2,11 0,60* 0,28**
48 3,62 2,12 0,54* 0,43*
74 3,55 2,09 0,55* 0,29
Obs: * correlação significativa para p< 0,01 / ** correlação significativa para p< 0,05
Com exceção do item 25 – as fantasias sexuais são a melhor forma de esquentar a
relação –, que obteve média de 4,97 pontos na escala, caracterizando concordância
leve, todos os demais foram objeto de discordância dos sujeitos, mesmo que em
proporção muito pequena como é o caso do item 74 que obteve o escore de 3,55.
Estes resultados certamente influíram de maneira decisiva na média geral dessa
escala (3,46). Em conjunto, esses itens obtiveram média de 3,62, e ao contrário do
item 25, parecem retratar de forma mais realista as contradições referentes ao modo
de apresentação dos itens dessa escala conforme já foram analisadas acima. O item
25, por exemplo, parece estar melhor relacionado com a escala LS do que com a
escala D, pois apesar de demarcar uma tendência à padronização do
comportamento sexual, sua indicação de que as fantasias sexuais sejam a melhor
forma de esquentar a relação não explicita os limites e contradições internas da
liberalização sexual. Portanto, sugere-se que para futuras aplicações, o conjunto de
itens dessa sub-escala seja reformulado, procurando-se manter os temas já
demarcados por cada um deles e, ao mesmo tempo, buscando-se obter redações
mais precisas. Um dos aspectos que devem ser preservados nesta revisão é a relação
260
de complementaridade entre a tendência geral a ajustar-se a padrões de conduta
sexual pré-estabelecidos e a subordinação de outros aspectos da vida afetiva ao
imperativo do prazer. Reduzir as complexas mediações dos vínculos afetivos às
motivações sexuais é uma das tendências características da dessexualização, pois ao
elevar a satisfação sexual à condição de determinante principal do caráter, a
dessexualização produz a redução do objeto de desejo à condição de coisa:
Item 23: o “ficar” é a melhor forma de relacionamento porque reserva maior
liberdade para os “ficantes”.
Item 23 – proposta de reformulação: o “ficar” é uma boa forma de relacionamento porque,
além de propiciar experiências sexuais interessantes com pessoas com as quais não é preciso firmar
compromisso, ninguém sofre quando a relação termina.
Item 25 – as fantasias sexuais são a melhor forma de esquentar a relação.
Item 25 substitutivo – se devido a crises no relacionamento o desejo sexual diminuir, então as
fantasias sexuais serão a técnica mais indicada para esquentar a relação e garantir a convivência.
Item 27 – É difícil aceitar que existam pessoas que permaneçam presas a relações
afetivas quando a excitação sexual já não é mais a mesma que a do início da relação;
se o tesão diminuiu é hora de trocar o parceiro.
Item 27 substitutivo: é difícil aceitar que existam pessoas que permaneçam envolvidas em
relacionamentos desgastados quando a excitação sexual já não é mais a mesma que a do início da
relação.
Item 48: as pessoas freqüentemente se envolvem em relações extraconjugais
porque os impulsos sexuais são incontroláveis
Item 48 substitutivo: as pessoas freqüentemente se envolvem em relações extraconjugais porque
os impulsos sexuais são incontroláveis.
261
Item 74: procuro me informar sobre as novidades a respeito do sexo e conhecer os
meios mais eficientes de obter prazer para, com isso, ter um bom desempenho
sexual.
Item 74 – proposta de reformulação: alcançar um bom desempenho sexual é um dos
principais motivos de felicidade.
Normalização da sexualidade:
Partindo da suposição de que a liberdade sexual em voga consiste em um
processo de liberação parcial dos modos de satisfação e das variações dos tipos de
envolvimento sexual, a normalização da sexualidade foi escolhida como o tema que
poderia indicar o caráter conservador dessa suposta liberdade. As atitudes por ela
motivadas indicam a tendência dos sujeitos a concordarem com o ajustamento da
conduta sexual a preceitos rígidos de normalidade e desvio, quer se manifeste em
termos de conservadorismo moralista ou por meio de critérios pseudocientíficos de
normalidade. Além das restrições impostas à forma dos vínculos afetivos e dos
comportamentos sexuais liberados, a dessexualização também compreende a
fixação de normas estritas às quais se deve ajustar. Devido sua eficiência derivar da
aversão à moralidade repressiva à qual substituiu, o mecanismo de dessexualização
não é imediatamente percebido como uma forma mais eficaz da mesma repressão.
Contudo, a estrutura moral repressiva à qual se sobrepôs não foi superada nem em
seu propósito regularizador, desde a origem da burguesia européia condizente com
os interesses políticos e econômicos dessa classe social, nem em seus principais
alvos. Também agora, quando a liberalização sexual se revelou mais conveniente
aos interesses do capital e daqueles que o detém do que a repressão direta dos
impulsos e a retidão moral por meio dela obtida, é sob outras formas menos
aversivas que estes impulsos são mantidos dentro dos limites convenientes aos
interesses econômicos e políticos dominantes. Os indivíduos podem buscar os mais
262
diversos modos de satisfação desde que não deixem de produzir e consumir
passivamente. Nesse sentido, a normalização representa a continuidade, na nova
forma de repressão, das velhas estratégias da moralidade puritana. Somente são
aceitos os excessos que não desvirtuam a disposição para o trabalho e para o
consumo. A satisfação não deve impossibilitar o ajustamento às normas sociais;
mesmo os mais sedentos por prazer devem manter seus impulsos dentro da
normalidade psíquica necessária à sua participação no funcionamento da máquina
social.
A correlação entre esse fator e a escala D alcançou o escore de 0,53 (sig.
p/p<0,01); um grau não muito expressivo, mas certamente aceitável. Com relação
aos demais fatores da escala, as principais correlações foram com os fatores tabus
sexuais (0,37, sig. p/p<0,01) e mediação da sexualidade pela dominação (0,35, sig.
p/p<0,01). Apesar de serem baixas, essas correlações não minimizam a
importância da normalização para o entendimento da dessexualização, pois podem
estar indicando a especificidade e independência do fator em relação aos demais
temas.
Tabela 25: Tendências centrais dos itens relacionados à normalização da sexualidade
Item Média Desvio
Padrão
Correlação entre o Item e o
Fator
Correlação entre o Item e a
Escala
8 5,30 1,78 0,38* 0,24**
31 2,68 1,90 0,50* 0,35*
33 4,83 2,39 0,74* 0,42*
34 2,99 1,91 0,26** -0,63
72 3,32 2,00 0,46* 0,29*
Obs: * correlação significativa para p< 0,01
** correlação significativa para p< 0,05
263
O item 8 – as crianças devem receber educação sexual desde cedo para que possam
desenvolver uma vida sexual normal – atingiu a maior média (5,30) do grupo, com maior
concentração de respostas (desvio padrão = 1,78). Apesar de ser mais baixo do que
o dos demais itens deste grupo, o desvio padrão é adequado e tende a reafirmar a
expressiva concordância com o enunciado do item. A concordância moderada
obtida sugere que o controle da sexualidade deve ter início na infância e que, apesar
do discurso liberal, há um padrão de normalidade a ser buscado. Essa proposição
se relaciona com a dessexualização precisamente por aceitar que se demarque
externamente o limite da sexualidade por meio da referência à normalidade. Pode-
se supor que a autonomia dos indivíduos em constituírem sua personalidade e
caráter também deva se dar por meio da referência à normalidade; esta parece ser
uma educação para adaptação. Apesar de significativas, as correlações desse item
com o fator (0,24, sig. p6/p<0,01) e com a escala (0,38, sig. p/p<0,05) foram
baixas, ficando difícil avaliar, principalmente no caso da correlação com o fator, se
esses resultados indicam a necessidade de aprimoramento desse item ou dos
demais. Como o conteúdo está bem delimitado e sua apresentação parece clara,
optou-se por mantê-lo e deixar a avaliação desse aspecto para outro momento,
mediante a análise dos dados obtidos com a aplicação escala reformulada.
Destinada à mensuração da atitude frente à diversidade sexual, a proposição
correspondente ao item 31 – na verdade, muitos homossexuais ainda não conheceram a
pessoa do sexo oposto certa, quando conhecerem, certamente esquecerão esse desvio sexual – sugere
aos sujeitos que concordem com dois aspectos do ajustamento da
homossexualidade; primeiro, é insinuada a possibilidade de que a orientação homo-
erótica poderia ser revista a partir do contato com a pessoa ideal, portando, de que
a homossexualidade seria um mal-entendido derivado da pouca experiência de vida;
segundo, a normalização pretendida é apontada como corretivo para um desvio
sexual, o que define a homossexualidade como desvio em relação à normalidade. A
média de 2,68 e o desvio padrão de 1,90 permitem inferir que os sujeitos
264
discordaram levemente da formulação proposta e que possivelmente tendem a
aceitar a orientação homossexual como uma orientação particular de cada pessoa.
Todavia, dado o resultado negativo dessa proposição, que demarca certa distinção
entre a tendência geral encontrada dentre os sujeitos da amostra pesquisada e os
sujeitos de pontuação alta, os quais, além de apresentarem atitude concernente à
dessexualização, também apresentam correlação com o conformismo, pode-se
ainda experimentar uma nova redação que permita aos sujeitos expressarem de
modo menos comprometido com a pretensão de mudar a orientação sexual alheia
ou julgá-la como desviante, mas, ainda assim, indique o desejo de que haja maior
ajustamento à normalidade: é importante lembrar que muitas pessoas que tiveram
experiências sexuais com alguém do mesmo sexo logo perceberam que poderiam desenvolver uma
sexualidade normal.
Ao contrário do item anterior, que obteve média baixa, possivelmente
devido a sua redação muito direta, o item 33 – pessoas que realmente se amam jamais
desejariam praticar sexo com outros que não seus respectivos parceiros – obteve média
equivalente à concordância leve (4,83), neste caso, possivelmente devido a sua
redação excessivamente indireta. A relação entre a escolha de um objeto de amor
particularizado e o encarceramento do desejo nesta relação exclusiva, não
discrimina adequadamente a diferença entre a fidelidade à pessoa amada e a
repressão do desejo dirigido a outros objetos sexuais. De qualquer forma, o
resultado obtido revela-se muito interessante se confrontado com a intensa
sobrecarga de conteúdos sensuais em propagandas, músicas e filmes que
cotidianamente cerceiam a percepção com os mais variados conteúdos de timbre
sexual. Frente a essa contradição, pode-se supor que: ou a excitação provocada pela
presença maciça da sexualidade nos produtos da indústria cultural se vincula mais
especificamente ao pré-prazer, preservando a idéia de que a satisfação obtida por
meio da relação sexual não seria desejável em relação àqueles estímulos; ou a
condenação cristã do adultério ainda perfaz um importante papel na moldagem da
265
consciência moral, de modo que, apesar do discurso liberal e da dessexualização
que a acompanha, o controle do desejo voltado para objetos alheios ao que é
demarcado pela relação formal se afigure dentre os critérios da normalização. Em
razão da ambigüidade sugerida pela proposição, é possível que também este item
possa receber resultados mais expressivos se receber nova redação que garanta
maior discriminação das contradições ou limites impostos à sexualidade em nome
da normalização: hoje em dia se tornou comum ter vários parceiros sexuais ao longo da vida,
mas é inaceitável que alguém bem casado tenha desejos sexuais por outras pessoas que não seus
respectivos cônjuges.
Marcado por certa imprecisão quanto ao poder de discriminação entre o
preconceito estimulado em primeiro plano e a função da normalização
secundariamente relacionada a ele, como forma de amenizar seu impacto, o item 34
acho que o casamento entre pessoas do mesmo sexo – gays e lésbicas – torna essas pessoas mais
aceitáveis socialmente – obteve média (2,99) correspondente à discordância leve. A
referência ao casamento homossexual foi relacionada à normalização que se pode
esperar do matrimônio. A suposição apresentada aos sujeitos consistia em afirmar
que pessoas não aceitas devido à sua orientação sexual poderiam ser melhor
recebidas pela sociedade se aderissem a uma prática normalizadora como o
matrimônio. Todavia, a redação do item deixou margem a uma dupla interpretação:
por um lado, de que por serem gays e lésbicas, as pessoas mencionadas não
poderiam ser melhor aceitas socialmente do já são; por outro, de que o casamento
entre pessoas do mesmo sexo não seria uma prática normalizadora e sim algo que
acentua ainda mais a rejeição aos homossexuais. Devido a estas dificuldades, o item
pode ser reformulado, passando a uma nova redação, com delimitação mais precisa
de um único aspecto a ser avaliado pelos sujeitos: a preservação do matrimônio e
do modelo de família nuclear unicamente às pessoas cuja sexualidade estão
enquadradas no padrão de normalidade: nos casos de adoção é preciso não esquecer que as
266
crianças terão condições mais apropriadas a seu desenvolvimento moral e afetivo se forem adotadas
por casais heterossexuais.
Com média (3,32) situada entre o ponto neutro e a posição correspondente à
discordância leve, o item 72 – uma pessoa que leve uma vida sexual promíscua não
conseguirá ser feliz – apresentou aos sujeitos a oportunidade de se manifestem a
respeito da possibilidade de que haja relação entre a moderação sexual e a conquista
da felicidade. O papel da normalização demarcado por esta sentença referencia o
entendimento comum de que a felicidade do indivíduo está atrelada à regularidade
de suas relações sexuais e afetivas. A proximidade do escore médio obtido em
relação ao ponto neutro da escala permite supor que a formulação do conteúdo
testado não foi suficientemente clara quanto ao aspecto que pretende medir.
Principalmente por remeter a uma dimensão tão subjetiva como a felicidade, esta
proposição não atingiu a objetividade necessária. Uma nova redação poderá
preservar a idéia de que a promiscuidade deva ser ajustada à norma, mas deverá
melhor relacioná-la com um fator mais objetivamente discriminável: dificilmente
alguém que tenha uma vida sexual promíscua manterá uma relação responsável com a família e o
trabalho.
Devido às alterações previstas para essa escala, bem como outras similares
para as escalas precedentes, parte dos dados apresentados nas tabelas
correspondentes a cada um dos fatores analisados poderão ser confrontados, em
pesquisas ulteriores, com os resultados obtidos por meio da aplicação das escalas
modificadas. Apesar de comumente ser uma etapa da análise destinada à validação
dos instrumentos de coleta de dados, neste caso, a análise detalhada do conteúdo
dos itens e dos resultados isolados obtidos deixa de ser uma etapa estanque do
desenvolvimento dos instrumentos de coleta de dados para se tornar parte essencial
do próprio processo interpretativo. Não há dúvida de que novas aplicações das
escalas, em pesquisas complementares, não eliminará a necessidade de dar
continuidade ao aprimoramento dos instrumentos utilizados, pois este é um
267
processo intrínseco ao método de investigação. Estes instrumentos, bem como
quaisquer outros que pretendam captar a variabilidade das disposições psíquicas
humanas, estarão sempre sujeitos a constantes revisões de sua forma e do alcance
de seu conteúdo, seguindo as transformações históricas do objeto; suas variações
em cada um dos diferentes grupos sociais e mediante a constante interferência de
novos padrões culturais produzidos incessantemente pela sociedade. Com isso,
pode-se dizer que a realização de novas pesquisas sobre a liberdade sexual
administrada e suas variações serão imprescindíveis à elaboração de um
conhecimento mais sólido a respeito dos fatores que sustentam o enigma da
servidão voluntária, mas não se deve sucumbir à ilusão de que a descrição que, num
dado momento, se alcança de alguns desses fatores possa perdurar para além da
transitoriedade das configurações culturais. Bem de acordo com o espírito negativo
que anima a investigação dialética, a opção por utilizar escalas de atitude, em si
mesma, já caracteriza o compromisso em se investigar as manifestações mais
efêmeras de fenômenos que, precisamente por sua habilidade em variar na
aparência e, com isso, produzir formas que iludem o olhar desatento dos indivíduos
carentes de experiências verdadeiramente prazerosas, consegue conservar sua
essência destrutiva como se fosse um contínuo histórico inviolável.
Considerações a respeito das propostas de modificação das escalas
para futuras aplicações:
De modo geral, sempre que possível, a análise qualitativa dos itens que
compõem as três escalas elaboradas para a investigação da liberdade sexual
administrada foi complementada com a apresentação de uma proposta de
reformulação de determinados aspectos das proposições. Na sua maioria, estas
sugestões não reduzem o valor e a precisão dos itens já aplicados, pois, tal como
estão formulados, já indicaram adequadamente as tendências presentes nas atitudes
268
dos sujeitos, sobretudo o fato de haver correlação positiva entre as inclinações
conformistas e a dessexualização. Os sujeitos que tenderam a concordar com as
proposições conformistas, também demonstraram similar inclinação para a
dessexualização. Contudo, considerando-se esses dados essenciais, as propostas de
modificação de aspectos específicos dos itens visou extrair o máximo potencial de
adesão dos sujeitos ao conteúdo das proposições apresentadas, objetivando
aumentar o poder de discriminação das sentenças e obter uma descrição mais
fidedigna das tendências psicossociais analisadas, inclusive de suas disposições
implícitas. Como foi assinalado anteriormente, a decisão por manter estas
sugestões, mesmo considerando-se que a versão reformulada das escalas não seria
aplicada nesta pesquisa, permitiu vislumbrar, ao mesmo tempo, os limites e as
possibilidades do presente estudo.
Como as modificações de alguns aspectos e itens das atuais escalas prevêem
mudanças mais expressivas, principalmente, para as escalas de liberalização e de
dessexualização, julgou-se importante avaliar se tais modificações poderiam
resultar, no caso destas escalas, em conclusões distintas das que foram formuladas.
Considerando que a análise qualitativa desenvolvida apresentou a possibilidade de
que fossem alterados um dos temas da escala LS, expressão da pulsão sexual inibida em
sua finalidade, e alguns dos itens de um dos temas da escala D, padronização do
comportamento sexual, julgou-se importante, para re-afirmar a validade dos resultados
já obtidos, proceder a novos testes estatísticos – Alpha de Cronbach e correlação
de Pearson – com os dados das escalas atuais, reduzindo-se os fatores que poderão
ser modificados. Para esta nova avaliação foram retirados os dois temas
mencionados das escalas D e LS. Considerados apenas os 20 itens restantes em
cada uma delas, os resultados dessa nova avaliação com as escalas D e LS reduzidas
apresentaram dados bastante parecidos com os obtidos com a avaliação das escalas
completas. Com coeficientes Alpha de Cronbach de 0,80 para a Escala LS reduzida
e 0,75 para a escala D reduzida, o que indica ter se mantido a precisão e a coerência
269
interna dos instrumentos, os novos testes revelaram uma correlação ainda mais alta
entre as escalas C e D do que a obtida anteriormente, afastando o risco de que os
dados atuais, calcados nas escalas completas, camuflassem possíveis resultados
contrários aos obtidos:
Tabela 26: Correlações entre as escalas C, D reduzida e LS reduzida
Escalas C LSr Dr
C 1,00 0,13 0,77*
LSr 0,13 1,00 -0,04
Dr 0,77* -0,04 1,00
* p < 0,01
Como indicam os dados da tabela 26, a correlação entre as escalas de
conformismo e de dessexualização tendeu a se manter alta e significativa, mesmo
após a redução de alguns de seus itens constitutivos. Este resultado permite supor
que tais correlações também possam se manter similares nas aplicações
subseqüentes com as escalas já reformuladas. A análise das médias e das medidas de
dispersão das escalas revelou que dentre os sujeitos pesquisados é maior a atitude
favorável à liberação do que as atitudes caracterizadas pela dessexualização e pela
inclinação ao conformismo, contudo também indicaram que é precisamente entre
estas duas últimas que se encontra a correlação mais importante.
Pelo que estes resultados indicam, a escala D pode revelar-se um
instrumento que, mesmo independente da correlação com outras escalas, como a
de conformismo, já é eficiente à mensuração da liberdade sexual administrada.
Permitindo captar as contradições e limites inerentes ao processo de liberalização
sexual em sua interface com a força adaptativa conservada em sua forma. Ela traz
270
consigo, internamente aos elementos sexuais que mensura, indicações precisas da
relação dessa sexualidade com a produção do conformismo. Pode-se indicar que a
liberalização sexual em processo, assim como ocorre quanto à utilização regressiva
da técnica, não pode ser mais democrática do que a sociedade que a produz e que,
portanto, mesmo não sendo em si mesma uma forma de repressão, serve de
máscara ideológica para o padrão de sexualidade que efetivamente é estimulado
pela sociedade totalitária: uma sexualidade dessexualizada, adaptada aos
mecanismos de dominação que só permitem os prazeres que, privados do espírito
realmente transgressor, favorecem o ajustamento do indivíduo às condições de
existência que lhe são impostas pelo mundo administrado.
271
Considerações finais
Os resultados encontrados por meio desta pesquisa podem ser agrupados em
três categorias complementares: resultados teóricos, resultados empíricos e
resultados metodológicos. Por resultados teóricos compreende-se a elucidação de
aspectos centrais da estrutura psicossocial da liberdade sexual administrada, a
análise de suas mediações constitutivas e a crítica aos impactos decorrentes de sua
incidência. A confirmação da hipótese geral da pesquisa depende deste tipo de
resultado. Obviamente, ela abrange aspectos empíricos vinculados às hipóteses
específicas, mas, por requerer a interpretação do conjunto dos resultados e a
subseqüente confrontação com os conteúdos teóricos, a avaliação desta hipótese e
os resultados que deste processo pode ser extraído são distintos dos demais. Os
resultados empíricos referem-se à dimensão mais específica da pesquisa, pois
compreendem o conjunto de inferências extraídas dos dados coletados, sua análise
e interpretação. Nesta categoria se enquadram um dos dois objetivos formulados e
o conjunto das hipóteses empíricas. A apreciação de cada uma delas, bem como o
julgamento acerca do cumprimento ou não do objetivo estipulado acerca dessa
dimensão, constituem um conjunto de resultados essenciais ao entendimento do
objeto investigado. Por fim, os resultados metodológicos podem ser
compreendidos como aqueles produtos que, além de possibilitarem o acesso aos
demais tipos de resultados, constituem instrumentos úteis à continuidade do
processo investigativo. As escalas de atitude elaboradas para a coleta de dados são
os principais resultados deste tipo obtidos nesta pesquisa. Concomitante à definição
do método e à elaboração dos instrumentos, houve a demarcação de um campo de
investigação e de possibilidades de explorá-lo de modos e perspectivas novos,
decorrentes da reflexão metodológica subjacente ao desenvolvimento da pesquisa,
portanto, a apresentação destes resultados é tão importante quanto à dos demais.
Para uma exposição mais detalhada destes diferentes tipos de resultados, será
seguida a ordem de complexidade e o alcance de suas implicações. Portanto,
272
primeiramente serão apresentados os resultados metodológicos, em seguida, os
resultados empíricos e, por fim, serão apresentados os resultados teóricos, os quais
apresentam o maior grau de complexidade e dependem, tanto para sua formulação
quanto para sua compreensão, da apresentação dos demais tipos de resultados,
técnicos e empíricos.
As técnicas de investigação empírica utilizadas representam importantes
resultados desta pesquisa, pois além de compreenderem os recursos derivados da
tradição metodológica, também dependeram da articulação desses recursos com
elementos empíricos e com a reflexão teórica. Este foi o caso das três escalas de
atitude elaboradas para a investigação da liberdade sexual administrada. Cada uma
delas foi elaborada para abranger um conjunto diferente de fatores que poderiam
ou não estar relacionados ao fenômeno que conceitualmente se definiu como
liberdade sexual administrada. Estes conjuntos de fatores, agrupados na estrutura
lógica da escala, caracterizaram aspectos interligados de atitudes específicas, como
as atitudes favoráveis à liberalização do sexo, as atitudes caracterizadas pela
inclinação ao conformismo e as atitudes definidas pela dessexualização. Como foi
descrito na seção destinada à apresentação do método utilizado na pesquisa, a
produção das escalas decorreu de uma série de outros procedimentos de
investigação empírica e da articulação dos dados obtidos por meio deles com os
conteúdos teóricos. A observação de materiais, como revistas femininas e
programas de televisão, e de situações cotidianas caracterizadas pela manifestação
de formas específicas da sexualidade implicadas no processo de liberalização sexual,
propiciaram o acúmulo de indicações importantes para a formulação dos itens de
cada uma das escalas. A sistematização desses dados brutos e sua conversão em
proposições internamente articuladas foi um trabalho também teórico, pois contou
com a orientação da perspectiva teórica do trabalho. Nesse sentido, as escalas
utilizadas para coleta dos dados analisados são, primeiramente, um dos resultados
da pesquisa, pois podem vir a ser utilizadas em pesquisas subseqüentes,
dispensando novo trabalho de elaboração. Por serem instrumentos destinados à
273
mensuração de aspectos variáveis da personalidade, as atitudes, requerem freqüente
acompanhamento e ajustes em sua forma de apresentação. Todavia, a estrutura dos
fatores relacionados e o conjunto dos temas por ela abrangidos tendem a
manterem-se pertinentes por mais tempo. A proposta de reformulação de alguns
dos itens das escalas aplicadas, das quais os dados analisados são provenientes, traz
modificações dessa natureza. Contém reformulações da forma de redação de alguns
itens, em geral, conservando-se o conteúdo já suscitado pela primeira versão
aplicada. De modo geral, quer na versão devidamente aplicada e analisada, quer na
versão proposta a partir da analise dos dados, as escalas de conformismo, de
dessexualização e de liberalização sexual são dentre os resultados da pesquisa
aqueles que permitem sua continuidade em pesquisas posteriores articuladas ao
campo de investigação empírica que ora foi delimitado pela presente investigação.
Dentre os resultados denominados empíricos, é importante destacar os que
foram atingidos em função dos objetivos e hipóteses da pesquisa. Em relação ao
objetivo 1. – averiguar se há correlações entre as atitudes concernentes à liberalização sexual, à
dessexualização e ao conformismo, em que grau ocorrem e se suas variações sugerem organizações
psicodinâmicas específicas –, o teste de correlação de Pearson entre as escalas revelou
haver correlação positiva entre as atitudes favoráveis à liberalização e as que são
caracterizadas pelo conformismo. A correlação encontrada foi de 0,75, significativa
ao nível de 0,01, e as pequenas oscilações neste escore nos casos das correlações
controladas (0,75 e 0,72) e na correlação com as escalas reduzidas (0,77) foram
todas similares e significativas ao nível de 0,01, corroborando os resultados
principais. Em face destes resultados e da constatação de que não houve correlação
significativa entre as demais escalas, é possível afirmar que o objetivo foi
contemplado. Sua verificação completa pode ser averiguada por meio da avaliação
das hipóteses empíricas, que previram níveis de correlação distintos entre os três
grupos de atitudes estudadas.
274
Além de indicar os fatores que medeiam o processo de ajustamento social, os
resultados empíricos obtidos permitiram comprovar as hipóteses formuladas No
caso da hipótese 2 – Há correlação positiva entre as atitudes características da dessexualização
e a inclinação ao conformismo –, a correlação entre as escalas de dessexualização e de
conformismo foram decisivas, pois tal como indicado acima em ralação ao objetivo
1, não deixou dúvidas de que quanto mais os indivíduos apresentam atitudes
caracterizadas pela dessexulização, maiores são suas inclinações para o
conformismo. Se a adesão ao processo histórico de liberalização sexual não
constitui, com exceção de alguns de seus elementos constitutivos, vinculação
interna com a atitude conformista, a dessexualização, ao contrário, é condizente
com a resignação ante as tendências sociais predominantes na sociedade
administrada. Os mecanismos de naturalização, o desenvolvimento do cinismo, os
processo de submissão à autoridade, a formação de um estado de apatia
generalizado e o hiper-realismo são fatores que, além de caracterizarem a mediação
explícita do ajustamento social, estão atrelados ao recrudescimento de uma
sexualidade engendrada a partir de condições sociais desfavoráveis ao livre
exercício do prazer. A associação entre sexo e dominação, a manutenção de tabus
sexuais, a subordinação do campo das relações sexuais e afetivas à forma
mercadoria, o ajustamento a padrões rígidos e supostamente normais são elementos
que deformam o prazer, impossibilitando a realização da verdadeira liberdade
sexual; são manifestações da sexualidade que condizem inteiramente com as
exigências sociais impostas aos indivíduos. A resignação ante as condições sociais,
políticas e culturais requer o desenvolvimento de formas de prazer e felicidade que
estejam de acordo com as condições gerais de existência. Da mesma forma, os
indivíduos que apresentam atitudes caracterizadas pela dessexualização já sofreram
as mediações da cultura em grau tão intenso que suas atitudes em relação a outros
aspectos da vida, como as relações sociais e políticas, também tendem a ser
semelhantes à sua atitude para com as relações privadas.
275
As hipóteses empíricas 3 – apesar de ambas se referirem às formas e aos padrões
contemporâneos do comportamento sexual e suas implicações psicossociais, as atitudes favoráveis à
liberalização sexual e as atitudes caracterizadas pelas dessexualização não apresentam correlação
significativa – e 4 – de modo semelhante às atitudes conformistas, as atitudes favoráveis à
liberalização sexual possuem fatores constitutivos condizentes com a integração cultural, mas,
ainda assim, não se correlacionam significativamente – também foram comprovadas pelos
resultados obtidos. O escore obtido por meio da correlação de Pearson entre as
escalas LS e D, revelou não haver correlação significativa entre estas escalas: 0,14.
Ambos os tipos de atitudes abrangidas por estas escalas compreendem fatores
relacionados à sexualidade, mas somente uma delas, a que delimita a
dessexualização, se relaciona com a forma estabelecida pela sociedade administrada.
A liberalização sexual possui características distintas das que são próprias à
dessexualização. Como já foi indicado acima, este processo também conserva
limitações importantes, mas não se reduz à forma estipulada pela tendência à
dominação social. Resguarda, inclusive, elementos contrapostos às condições
sociais vigentes. Isto pode ser verificado em relação à hipótese empírica 4, que
também foi comprovada pela correlação entre as escalas LS e C. A correlação de
0,20 obtida não foi significativa, de modo que é possível afirmar que, independente
de dois fatores da escala LS terem apresentado correlação positiva com a escala de
conformismo, ainda assim, as atitudes favoráveis à liberalização sexual não são
condizentes com o estado de resignação geral. Segundo estes dados, pode-se
afirmar que os indivíduos cujas atitudes estão de acordo com a tendência à
liberalização sexual não compartilham as mesmas opiniões e não desenvolvem a
mesma postura frente à realidade social, seus aspectos culturais e políticos, que os
indivíduos diretamente conformistas. Se o nível de adesão ao processo de
liberalização sexual que manifestam configura uma forma de integração cultural,
não é por significar conformidade generalizada com o sistema que essa integração
se consolida. A integração da sexualidade interfere na formação de resistência à
integração cultural e no desenvolvimento de formas de satisfação adequadas à
276
manutenção do status quo, contudo esta forma de integração não coaduna com o
conformismo em outros aspectos da vida social. Em suma, é possível afirmar que
os resultados obtidos por meio da pesquisa empírica permitiram alcançar parte dos
objetivos que motivaram a realização desta pesquisa e responder afirmativamente
às hipóteses específicas formuladas.
É importante destacar que a divisão dos resultados relacionados ao método,
à investigação empírica e à reflexão teórica, apresentada no início destas
considerações finais, é conveniente a uma apresentação sistematizada dos
resultados gerais, mas não visa cindir os diferentes níveis de investigação
implicados na pesquisa. A interpretação destes resultados depende diretamente da
articulação destes diferentes níveis de investigação. Os resultados teóricos que
agora serão apresentados são teóricos porque não poderiam ser formulados de
modo operacional, compreendem questões a respeito do objeto e aspectos de sua
estrutura que ultrapassam os resultados empíricos, exigindo um trabalho de
especulação mais intenso. Contudo, estes resultados somente podem ultrapassar os
que foram obtidos especificamente em relação à investigação empírica porque
partem de seu produto direto. Foi a análise e a interpretação dos dados que
permitiram considerar criticamente os aspectos teóricos da pesquisa abrangidos
pelo objetivo 2 e pela hipótese geral.
O objetivo mencionado corresponde à intenção de elucidar algumas contradições
da estrutura psicossocial da liberdade sexual administrada e a hipótese geral previu um
julgamento acerca dessa forma regredida da liberdade sexual, definindo-a como a
expressão contraditória do anseio por liberdade produzido sob as determinações do mundo não-
livre. Este julgamento implica também na avaliação do modo como cada um dos
três tipos de atitude investigadas empiricamente participa deste fenômeno
psicossocial. Distintamente das hipóteses empíricas, que foram formuladas de
modo operacional e puderam ser verificadas por meio de procedimentos técnico-
277
científicos, a hipótese geral não pode ser verificada nestes mesmos termos; depende
do trabalho de interpretação.
Com o desenvolvimento das análises teóricas desenvolvidas nos três
primeiros capítulos deste trabalho, foi possível contemplar o objetivo de elucidar
algumas contradições da estrutura psicossocial da liberdade sexual administrada. A
análise da permissividade sexual repressiva é possivelmente o avanço mais
importante neste sentido, pois permitiu elucidar algumas das contradições internas
da nova moral sexual permissiva e estabelecer as bases para sua crítica imanente. O
clima geral de liberalização, ao qual as atitudes mensuradas pela escala LS
correspondem, forma apenas uma camada mais superficial do fenômeno.
Subjacentes a ela, estão as tendências que garantem a subordinação do sexo
parcialmente liberado aos interesses e à forma estipulados pela sociedade
administrada. A reificação da sexualidade e do prazer, explorada pela indústria
cultural; o desenvolvimento de formas de prazer vinculadas às formas de
dominação social; o recrudescimento dos mecanismos de defesa regressivos, como
o narcisismo e a frieza, são mediações que tornam explícitos os limites desse clima
de liberação tão conveniente aos interesses da produção material. A dessexualização
é um processo complexo por meio do qual o sexo liberado é expurgado de sua
substância transgressora e, exatamente por esta razão, converte-se em mais um dos
instrumentos de manipulação dos indivíduos.
A análise da determinação social implicada no ajustamento social e na adesão
à ideologia hiper-realista permitiu compreender que a ameaça de aniquilação
experimentada pelos indivíduos caracteriza uma dimensão objetiva, vinculada à
exigência de adaptação às condições de existência. Estes elementos permitem
formular como um dos resultados relevantes desse trabalho, a conclusão de que o
desenvolvimento do conformismo, bem como a adoção de ilusões que amenizem o
estado de tensão provocado pela experiência do desespero frente à realidade, é um
278
processo secundário, complementar ao medo decorrente das condições concretas
de sobrevivência.
Consubstanciada por fatores sociais e políticos intimamente vinculados às
condições de existência predominantes na sociedade capitalista globalizada, a
liberdade sexual administra é um fenômeno psicossocial de grandes proporções.
Compreende um processo de liberalização sexual no qual houve a justaposição da
nova permissividade sexual à velha moral sexual repressiva. Dizer que ela é a
expressão contraditória do anseio por liberdade produzido sob as determinações do
mundo não-livre significa afirmar que nem todos os fatores que compreende são
redutíveis ao processo da dessexualização e do conformismo, mas guardam
também a esperança de se tornar oposição qualificada, de se tornar negação. A
redução do impulso sexual ao rol das falsas necessidades neutraliza o impulso à
diferença qualitativa e consuma a vitória da não-liberdade; é somente a partir do
movimento de auto-reflexão por meio do qual a liberdade potencial percebe-se
como não-livre que é possível, de fato, estabelecer as bases para a negação efetiva.
Considerando-se o conjunto dos resultados obtidos, é possível afirmar que a
hipótese geral da pesquisa foi confirmada. Para concluir, é interessante retomá-la
integralmente: a liberdade sexual administrada é a expressão contraditória do anseio por
liberdade produzido sob as determinações do mundo não-livre; o prazer sexual que compreende
obsta a percepção dos limites e contradições dessa pseudo-liberdade, por vezes, colocada no lugar da
verdadeira liberdade sexual, que, assim, permanece negada. Ela, de fato, fundamenta-se nas
importantes mudanças transcorridas no âmbito da regulação moral das formas de prazer – as
quais, inclusive, caracterizaram a superação parcial da moral sexual francamente repressiva –,
mas também produz a ilusão de que a única liberdade sexual possível é, efetivamente, a que se
afirma idêntica à liberdade e à felicidade meramente subjetivas, decorrentes da satisfação
monitorada de falsas necessidades e da acomodação do prazer à forma estipulada pelas condições
objetivas. Consiste na adaptação das pulsões à permissividade sexual repressiva, por meio da qual
se tornam alienadas de sua substancia transgressora, convertendo-se em expressão do conformismo.
279
Sua afirmação idealista justapõe, em aparente harmonia, a liberalização sexual e a
dessexualização, subordinando os avanços culturais realmente alcançados à produção da felicidade
subjetiva; com isso, a dessexualização passa a ocupar integralmente a dimensão social da produção
e do consumo do prazer, contribuindo para a difusão do conformismo e para a manutenção da
heteronomia predominante na sociedade administrada.
280
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286
Anexo I:
Questionário de dados pessoais dos formulários de
pesquisa
Enunciado:
Este questionário é parte de uma pesquisa que pretende verificar opiniões e
atitudes de estudantes universitários sobre uma série de temas, dentre eles a
sexualidade contemporânea. Como pode ser observado, o material está dividido em
duas partes. Na primeira há um breve questionário sobre dados pessoais, incluindo
algumas questões sobre hábitos e comportamentos sexuais. Na segunda parte há
afirmações sobre diversos temas sobre os quais gostaria de saber o grau de sua
concordância ou discordância. Não há respostas corretas ou incorretas para essas
afirmações, portanto responda segundo sua opinião.
Será garantido o anonimato de suas respostas.
Peço que, por favor:
a) leia atentamente cada afirmação e responda conforme a sua primeira
impressão;
b) responda a todas as questões;
c) não comente as suas respostas com os seus colegas até o final da
aplicação.
Obrigado!
Questionário de dados pessoais:
1 – Data de nascimento: ___/___/_____
2 – Curso: ____________________ Ano ou semestre do curso: _______________________________
3 – Sexo: feminino ( ); masculino ( )
4 – Orientação sexual:
heterossexual ( ); homossexual ( ); bissexual ( ) transexual ( ); outra ( ) – qual?
__________________________________________________________________________________
287
5 – Tipo de relacionamento afetivo que mantém no momento:
casamento formal ( ); convivência marital ( ); namoro ( ); ficante ( ); nenhuma ( ); outra ( ) –
qual?______________________________________________________________________________
6 – Há quanto tempo mantém esse relacionamento?______________________________________
7 – Mantém atualmente ou já teve em outro momento algumas dessas experiências sexuais?:
exibicionismo ( ); voyerismo ( ); fetichismo ( ); sexo sadomasoquista ( ); sexo em grupo ( ); swing ( );
ménage à trois ( ); outra ( ) – qual? ________________________________________________________
8 – Religião:
Católica: praticante ( ) ou não-praticante ( ); protestante: tradicional ( ) ou pentecostal ( ); judaica ( );
espírita ( ); oriental ( ); candomblé ( ); umbanda ( ); sem religião ( ); ateu ( ); outra ( ) –
qual?______________________________________________________________________________
288
Anexo II
Escala de conformismo – Escala C
Naturalização:
1 – Não haveria vida em sociedade se não houvesse a divisão do trabalho e a
contribuição de competentes administradores que organizam a produção e
garantem o comércio de mercadorias essenciais à sobrevivência.
7 – A violência é um traço natural do ser humano, por isso as autoridades devem
ser rigorosas na repressão dos comportamentos inadequados à conservação da
ordem social.
61 – Se o ser humano realmente fosse capaz de viver em liberdade, com igualdade e
respeito mútuo, isto já teria acontecido ao longo da história da civilização.
64 – As pesquisas no campo da genética não tardarão a descobrir as razões pelas
quais as pessoas são tão gananciosas e individualistas.
65 – Não se pode contrariar a natureza, homens e mulheres são seres
essencialmente diferentes, principalmente quanto ao papel que cada um deve
desempenhar na sociedade.
Cinismo:
5 – Mesmo sabendo que as novelas e os filmes distorcem a realidade, gosto de
assisti-los porque me distraem, tornando o dia-a-dia mais aceitável.
9 – Não acredito no que dizem os políticos, mas precisamos de líderes que saibam
conduzir o povo
29 – Prefiro fingir concordância a ter que discutir sobre certos temas ligados à
política.
289
66 – Mesmo não acreditando totalmente no que defendem, acho melhor que as
pessoas sigam alguma religião ao invés de nenhuma, pois assim conseguem
suportar melhor os infortúnios da vida.
67 – Jamais colocaria meu emprego em risco, mesmo que nele tivesse que abrir
mão de alguns ideais e fazer coisas com as quais não esteja realmente de acordo.
Submissão à autoridade:
15 – Se tivéssemos leis mais severas, os criminosos ficariam mais inibidos.
32 – Hoje em dia, muitas pessoas, inclusive juízes, políticos e policiais desrespeitam
as leis e a ordem; somente uma educação rígida, que desde cedo promova a
obediência às leis, poderá garantir a harmonia social.
56 – O desemprego é motivo suficiente para cumprimos mais fielmente as
exigências do trabalho.
68 – Não tenho dúvidas de que falta mais determinação e pulso forte para os
governantes deste país.
69 – Os direitos dos mais pobres só existem no papel, na prática é inútil enfrentar
os poderosos.
Apatia:
19 – Se fossemos lamentar os infortúnios de todos os miseráveis e vítimas da
violência não teríamos a menor chance de sermos felizes, por isso tem muitas
coisas sobre as quais é melhor nada saber.
47 – Sempre aconteceu, mas agora que está tornando-se mais freqüente, o
assassinato de delinqüentes infantis e de moradores de rua levá-me a temer pela
segurança das pessoas que amo e que me são próximas.
58 – O Brasil não deveria se pronunciar a respeito dos conflitos entre os Estados
Unidos e os países do Oriente Médio; devemos evitar riscos, não nos envolvendo
em assuntos que são alheios aos nossos interesses.
290
70 – Enquanto a violência estava localizada nas favelas era algo tolerável, mas agora
que esta ameaçando nossas famílias já está passando dos limites.
71 – A existência de trabalho escravo no Brasil demonstra a ignorância e a
incapacidade dessas pessoas em defenderem seus próprios interesses, eu não cairia
numa cilada dessas.
Hiper-realismo:
12 – Estar preparado para sobreviver é como estar preparado para a guerra; o
inimigo deve ser derrotado.
13 – Basta observarmos as inúmeras limitações que a vida nos impõe diariamente
para temos certeza de que a pretensão de lutar por um mundo melhor é mera
ingenuidade de idealistas.
20 – Nossa sociedade não está mais desenvolvida e melhor organizada porque
muitas pessoas incompetentes não sabem aproveitar as oportunidades que o
mercado de trabalho oferece.
24 – As eleições não podem mudar a situação de nosso país, por isso não acredito
na política e voto nos candidatos que mais favorecem meus interesses pessoais.
26 – A violência extrema nos leva a temer qualquer estranho que encontremos na
rua em situação suspeita, pois todos são suspeitos até que se prove o contrário.
291
Anexo III
Escala de liberação sexual – Escala LS
Perversão-polimorfa:
10 – As pessoas que tiveram experiências bissexuais devem ter algo interessante a
dizer sobre essa dimensão da sexualidade humana que, apesar de ser bastante
comum, ainda é muito reprimida.
36 – O sexo oral, o sexo anal e outras formas de carícias sexuais ousadas são tão
importantes para obtenção do prazer sexual quanto a cópula genital.
39 – Se não fôssemos tão limitados ao prazer alcançado por meio de nossos órgãos
genitais perceberíamos que nosso corpo todo é uma fonte infinita de prazer.
40 – Além do tato, os demais sentidos – o olfato, a visão, o paladar e a audição –
também são fundamentais para a obtenção do prazer sexual, não há motivos para
desprezá-los.
76 – Não há nada de errado em sentir prazer por meio do olhar, seja no jogo
erótico com o(a) parceiro(a) com o(a) qual se esta relacionando, ou por meio da
observação da relação sexual de outras pessoas que consentiram em ser observadas.
Diversidade sexual:
3 – Os gays, as lésbicas e os transexuais estão ganhando maior espaço social porque
merecem os mesmos direitos que qualquer outro cidadão; seu modo de satisfação
sexual é apenas mais um dentre outros.
41 – Desde que os limites do outro sejam respeitados, cada um que busque se
satisfazer sexualmente como quiser, seja por via homossexual ou por meio de
práticas liberais de qualquer tipo.
42 – Ao contrário do sexo por dinheiro, que é condenável devido às injustiças
sociais que levam muitas pessoas a terem que se prostituir para sobreviver, o sexo
292
livre pode ser aceito, pois traz a possibilidade de se ter tantos parceiros quanto se
desejar.
44 – Práticas sexuais como o swing (troca de casais, orgias e similares) e o ménage à
trois (trios sexuais envolvendo situações de bi-sexualidade feminina ou masculina)
são formas criativas de expressão de desejos sexuais menos convencionais, mas não
menos respeitáveis
63 – A cirurgia para mudança de sexo demonstra que a ciência poderia estar em
melhor acordo com as necessidades do desejo humano, afinal se o prazer depende
da mudança de sexo não há porque não realizá-la.
Normatização das novas tendências da sexualidade:
2 – Ter uma vida sexual ativa e com um desempenho pessoal que satisfaça as
necessidades do parceiro(a) é uma condição fundamental para que se mantenha a
saúde mental.
21 – Ninguém mais deveria estranhar que o namoro seja o momento ideal para
adquirir experiências e desenvolver a maturidade sexual.
43 – A exigência de que se deva preservar a virgindade até o casamento é uma
violência que precisa ser combatida.
45 – As pessoas com maior experiência sexual acumulada tem mais condições de
proporcionar satisfação sexual ao(à) parceiro(a) do que as iniciantes.
46 – O fim de um casamento, bem como o de outras formas de relacionamento
duradouras, é sempre uma oportunidade para se conhecer novos(as) parceiros(as) e
para se gozar prazeres mais intensos.
Expressão da pulsão sexual:
6 – O sexo é uma atividade intensamente prazerosa, principalmente quando
realizado com amor, contudo, mesmo se realizado sem amor continua sendo uma
atividade prazerosa.
293
49 – A preservação da integridade moral do(a) parceiro(a) não deve impedir que
ambos possam expressar seus desejos mais obscenos.
51 – O ideal seria que o sexo e o amor sempre caminhassem juntos, mas isso não
quer dizer que o desejo sexual se esgotará sempre na relação com a pessoa amada, o
desejo parece procurar por novos estímulos.
52 – O impulso sexual nem sempre se limita a nossas escolhas conscientes, às vezes
se dirige para pessoas proibidas e situações inusitadas.
54 – Dentre as possibilidades de prazer não-ajustadas às normas e valores sociais,
aquelas que não ferem, não humilham e não geram sofrimento podem ser
experimentadas sem pudor.
Expressão da pulsão sexual inibida em sua finalidade:
4 – O relacionamento afetivo entre aqueles que se amam não deve ser subordinado
ao nível de excitação sexual que há entre eles; o sexo é apenas uma parte do amor.
17 – A sexualidade é uma esfera complexa de nossa vida mental, contudo as
dificuldades de relacionamento que gera podem ser enfrentadas quando realmente
se ama.
55 – Mais do que o corpo belo, a ternura e a delicadeza fazem daquele a quem
amamos o mais excitante objeto de desejo.
57 – Uma boa experiência sexual é aquela que, sem impedir o prazer, preserva a
integridade física, psíquica e moral de ambos os parceiros.
59 – O verdadeiro amor não depende do fato de ser ou não correspondido, pois
quem ama é capaz de dar sem pedir nada em troca.
294
Anexo IV
Escala de dessexualização – Escala D
Reificação do sexo:
18 – Acredito que devo ter um bom carro e uma boa casa para garantir maior
oportunidade de fazer amigos e encontrar pessoas interessantes para possíveis
relacionamentos amorosos.
22 – O sucesso profissional de uma pessoa é um forte indício de sua estabilidade
emocional e de sua habilidade em administrar conflitos, portanto também da
capacidade que ela possui para estabelecer um bom relacionamento afetivo.
30 – Gosto de falar sobre as minhas conquistas sexuais porque assim sou mais
valorizado pelos amigos e aumento meu poder de sedução.
53 – O fato de haver imagens de homens e mulheres em poses sensuais em
propagandas de TV e revistas é prova de que nossa sociedade é liberal quanto ao
sexo
73 – Antes de comprar minhas roupas, sapatos e artigos de beleza, olho revistas de
moda e artistas da TV para ver o que me deixaria mais sensual.
Padronização do comportamento sexual:
23 – O “ficar” é uma excelente forma de relacionamento porque reserva maior
liberdade para os “ficantes”.
25 – As fantasias sexuais são a melhor forma de esquentar a relação.
27 – É difícil aceitar que existam pessoas que permaneçam presas a relações
afetivas quando a excitação sexual já não é mais a mesma que a do início da relação;
se o tesão diminuiu é hora de trocar o parceiro.
48 – As pessoas freqüentemente se envolvem em relações extraconjugais porque os
impulsos sexuais são incontroláveis
295
74 – Procuro me informar sobre as novidades a respeito do sexo e conhecer os
meios mais eficientes de obter prazer para, com isso, ter um bom desempenho
sexual.
Tabus sexuais:
11 – Não condeno o amor entre pessoas do mesmo sexo, cada um que se relacione
sexualmente com quem quiser, mas eu não gostaria de ter um filho gay
16 – As prostitutas são pessoas indecentes e desajustadas, por isso deveriam ser
impedidas de ameaçar a integridade de nossas famílias.
28 – Devido ao comportamento sexual promíscuo de tantas pessoas com as quais
temos atividades em comum, tornou-se difícil saber em quem confiar
38 – As orgias e o sexo em grupo são aberrações da natureza; as pessoas que os
praticam deveriam receber tratamento psiquiátrico.
62 – A homossexualidade é uma ameaça aos bons costumes e deve ser resolvida
antes que se espalhe para todas as famílias.
Normalização da sexualidade:
8 – As crianças devem receber educação sexual desde cedo para que possam
desenvolver uma vida sexual normal.
31 – Na verdade, muitos homossexuais ainda não conheceram a pessoa do sexo
oposto certa, quando conhecerem, certamente mudarão esse desvio sexual.
33 – Pessoas que realmente se amam jamais desejariam praticar sexo com outros
que não seus respectivos parceiros.
34 – Acho que o casamento ente pessoas do mesmo sexo – gays e lésbicas – torna
essas pessoas mais aceitáveis socialmente.
72 – Uma pessoa que leve uma vida sexual promíscua não conseguirá ser feliz.
Uma pessoa que leve uma vida sexual promíscua não conseguirá ser feliz.
296
Mediação da sexualidade pela dominação:
14 – O prazer ao final da relação sexual compensa os sofrimentos que tenham sido
necessários para se chegar a ele.
35 – Se não forem devidamente dominadas, as grandes paixões terminam sempre
em grandes tragédias, pois o prazer depende de que haja ordem para que possa ser
alcançado.
37 – Eu gostaria de ter mais poder para melhor gozar a vida, pois certamente é
melhor dominar os outros do que ser dominado por eles.
50 – Faço qualquer sacrifício pela pessoa que amo, mas se for traído, desejo que
recaia sobre a pessoa que me traiu os piores infortúnios, para compensar os meus
sacrifícios.
60 – Imaginar que alguém rasteja a meus pés, implorando para que eu satisfaça seus
desejos mais ardentes, eleva minha auto-estima e aumenta o meu prazer.
297
Anexo IV
Versão reformulada das Escalas para futuras aplicações
Escala C reformulada
Naturalização:
1 – uma sociedade bem desenvolvida depende da divisão do trabalho e da contribuição de
competentes administradores que organizem a produção e garantam o comércio de mercadorias
essenciais à nossa sobrevivência.
7 – A violência é um traço natural do ser humano, por isso as autoridades devem
ser rigorosas na repressão dos comportamentos inadequados à conservação da
ordem social.
61 – Se o ser humano realmente fosse capaz de viver em liberdade, com igualdade e
respeito mútuo, isto já teria acontecido ao longo da história da civilização.
64 – talvez algum dia os cientistas descubram os genes que provocam a falta daquele tipo de
ambição e competitividade que são tão necessárias ao sucesso.
65 – apesar de serem biologicamente diferentes, se quiserem conquistar a igualdade social, as
mulheres devem ter autoridade; ser tão duras e competitivas quanto os homens.
Cinismo:
5 – alguns filmes, novelas e programas humorísticos distorcem a realidade, mas acho que ainda
assim são importantes porque tornam mais fácil aceitar as dificuldades do dia-a-dia.
9 – Não acredito no que dizem os políticos, mas precisamos de líderes que saibam
conduzir o povo
29 – Prefiro fingir concordância a ter que discutir sobre certos temas ligados à
política.
298
66 – mesmo que a religião seja apenas um fator dentre outros na determinação da vida social,
prefiro que as pessoas sigam alguma ao invés de nenhuma, pois assim suportarão pacientemente os
infortúnios da vida.
67 – eu não perderia uma boa promoção ou oportunidades de ter sucesso por causa de divergências
políticas.
Submissão à autoridade:
15 – Se tivéssemos leis mais severas, os criminosos ficariam mais inibidos.
32 – Hoje em dia, muitas pessoas, inclusive juízes, políticos e policiais desrespeitam
as leis e a ordem; somente uma educação rígida, que desde cedo promova a
obediência às leis, poderá garantir a harmonia social.
56 – com o aumento do desemprego não resta alternativa senão aceitar as condições de trabalho
sem reclamar.
68 – Não tenho dúvidas de que falta mais determinação e pulso forte para os
governantes deste país.
69 – Os direitos dos mais pobres só existem no papel, na prática é inútil enfrentar
os poderosos.
Apatia:
19 – se me preocupasse com os infortúnios de todos os miseráveis e sofredores do mundo não teria
condições de conquistar minha própria felicidade.
47 – a miséria traz muitos riscos, mas como não dá para resolver os problemas dos outros, se
conseguirmos cuidar de nossa família e amigos já estaremos fazendo muito para que tenhamos um
mundo melhor.
58 – o Brasil não deveria se pronunciar a respeito dos conflitos entre os Estados Unidos e os
países do Oriente Médio, pois devemos evitar riscos desnecessários.
70 – enquanto a violência só atingia favelas e áreas condenadas, ainda podíamos suportá-la, mas
agora que ameaça a todos, já passou dos limites.
299
71 – se ainda existe escravidão no mundo é porque ainda existem pessoas que se submetem a isso.
Hiper-realismo:
12 – a habilidade necessária para a sobrevivência é semelhante ao preparo que é exigido para a
guerra; se há inimigos, devemos enfrentá-los.
13 – basta observarmos as limitações impostas à nossa vida cotidiana, para percebermos que não
há muito que possamos fazer para termos um mundo melhor.
20 – nossa sociedade ainda não está mais desenvolvida e melhor organizada porque muitas
pessoas, por incompetência, não sabem aproveitar as oportunidades que lhes são oferecidas.
24 – não acredito que os políticos façam algo importante para mudar a situação de nosso país, por
isso voto nos candidatos que mais se dispuserem a me ajudar.
26 – a violência extrema nos leva a temer qualquer estranho que encontremos na
rua em situação suspeita; pois todos são suspeitos até que se prove o contrário.
Escala LS reformulada
Perversão-polimorfa:
10 – As pessoas que tiveram experiências bissexuais devem ter algo interessante a
dizer sobre essa dimensão da sexualidade humana que, apesar de ser bastante
comum, ainda é muito reprimida.
36 – O sexo oral, o sexo anal e outras formas de carícias sexuais ousadas são tão
importantes para obtenção do prazer sexual quanto a cópula genital.
39 – Se não fôssemos tão limitados ao prazer alcançado por meio de nossos órgãos
genitais perceberíamos que nosso corpo todo é uma fonte infinita de prazer.
40 – é natural que as pessoas sintam prazer sexual das formas mais variadas; para alguns, o
olfato, a visão, o paladar e a audição são tão ou mais importantes que as carícias e a coito genital.
300
76 – Não há nada de errado em sentir prazer por meio do olhar, seja no jogo
erótico com o(a) parceiro(a) com o(a) qual se esta relacionando, ou por meio da
observação da relação sexual de outras pessoas que consentiram em ser observadas.
Diversidade sexual:
3 – Os gays, as lésbicas e os transexuais estão ganhando maior espaço social porque
merecem os mesmos direitos que qualquer outro cidadão; seu modo de satisfação
sexual é apenas mais um dentre outros.
41 – Desde que os limites do outro sejam respeitados, cada um que busque se
satisfazer sexualmente como quiser, seja por via homossexual ou por meio de
práticas liberais de qualquer tipo.
42 – Ao contrário do sexo por dinheiro, que é condenável devido às injustiças
sociais que levam muitas pessoas a terem que se prostituir para sobreviver, o sexo
livre pode ser aceito, pois traz a possibilidade de se ter tantos parceiros quanto se
desejar.
44 – Práticas sexuais como o swing (troca de casais, orgias e similares) e o ménage à
trois (trios sexuais envolvendo situações de bi-sexualidade feminina ou masculina)
são formas criativas de expressão de desejos sexuais menos convencionais, mas não
menos respeitáveis
63 – A cirurgia para mudança de sexo demonstra que a ciência poderia estar em
melhor acordo com as necessidades do desejo humano, afinal se o prazer depende
da mudança de sexo não há porque não realizá-la.
Acomodação cultural das novas tendências da sexualidade:
2 – Ter uma vida sexual ativa e com um desempenho pessoal que satisfaça as
necessidades do parceiro(a) é uma condição fundamental para que se mantenha a
saúde mental.
21 – não há razões para se estranhar que o namoro seja o momento ideal para adquirir
experiências e desenvolver a maturidade sexual.
301
43 – a exigência de que se deva preservar a virgindade até o casamento é um exagero que pode ser
evitado.
45 – o grau da experiência sexual previamente adquirida é um dos aspectos importantes para que
se possa obter e proporcionar mais satisfação sexual.
46 – o fim de um casamento, bem como de outras formas de relacionamento duradouras, pode ser
uma boa oportunidade para se conhecer novos(as) parceiros(as) e para se gozar prazeres mais
intensos.
Expressão da pulsão sexual:
6 – O sexo é uma atividade intensamente prazerosa, principalmente quando
realizado com amor, contudo, mesmo se realizado sem amor continua sendo uma
atividade prazerosa.
49 – A preservação da integridade moral do(a) parceiro(a) não deve impedir que
ambos possam expressar seus desejos mais obscenos.
51 – O ideal seria que o sexo e o amor sempre caminhassem juntos, mas isso não
quer dizer que o desejo sexual se esgotará sempre na relação com a pessoa amada, o
desejo parece procurar por novos estímulos.
52 – O impulso sexual nem sempre se limita a nossas escolhas conscientes, às vezes
se dirige para pessoas proibidas e situações inusitadas.
54 – Dentre as possibilidades de prazer não-ajustadas às normas e valores sociais,
aquelas que não ferem, não humilham e não geram sofrimento podem ser
experimentadas sem pudor.
Moral sexual permissiva:
Item 4 – hoje em dia, qualquer pessoa que pretenda se casar ou “morar junto” deve ter certeza de
sua afinidade sexual com o parceiro(a) escolhido(a); e isto só é possível por meio da experiência
prévia.
302
Item 17 – o sexo serve antes de tudo para que se possa dar e obter prazer; se não for assim que
estiver ocorrendo é porque algo está errado e deve ser corrigido imediatamente.
Item 55 – as fantasias sexuais, os produtos eróticos e os filmes pornográficos são recursos muito
valiosos para se evitar a rotina sexual e esquentar a relação.
Item 57 – ousadia, iniciativa, sensualidade e sedução são qualidades inestimáveis a qualquer
pessoa, e tornam a vida sexual muito mais prazerosa.
Item 59 – não deixaria de assistir a um bom filme, acompanhar programas de televisão de que
gosto, ou acessar sites interessantes na internet só porque exibem imagens de homens e mulheres
nus.
Escala D reformulada
Reificação do sexo:
18 – o conforto, a comodidade e a elegância que certas coisas proporcionam são importantes para
melhor agradarmos aos amigos e obtermos um clima mais favorável à conquista de pessoas
interessantes.
22 – O sucesso profissional de uma pessoa é um forte indício de sua estabilidade
emocional e de sua habilidade em administrar conflitos, portanto também da
capacidade que ela possui para estabelecer um bom relacionamento afetivo
30 – o amor e o sexo funcionam de modo semelhante às negociações financeiras: quanto mais
temos, mais somos valorizados e tanto mais podemos ter.
53 – o destaque, cada vez maior, dado à sensualidade em programas de televisão, músicas e
propagandas se deve ao fato de que as pessoas estão cada vez mais liberais quanto ao sexo.
73 – a beleza, a sensualidade e a elegância das musas e galãs do cinema são excelentes motivações
para que cuidemos mais da aparência.
Padronização do comportamento sexual:
303
23 – o “ficar” é uma boa forma de relacionamento porque, além de propiciar experiências sexuais
interessantes com pessoas com as quais não é preciso firmar compromisso, ninguém sofre quando a
relação termina.
25 – se devido a crises no relacionamento o desejo sexual diminuir,então as fantasias sexuais serão
a técnica mais indicada para esquentar a relação e garantir a convivência.
27 – é difícil aceitar que existam pessoas que permaneçam envolvidas em relacionamentos
desgastados quando a excitação sexual já não é mais a mesma que a do início da relação.
48 – as pessoas freqüentemente se envolvem em relações extraconjugais porque os impulsos sexuais
são incontroláveis.
74 – alcançar um bom desempenho sexual é um dos principais motivos de felicidade.
Tabus sexuais:
11 – não há como controlar as opções sexuais dos outros; na prática, cada um se envolve com
quem quiser, mas eu não gostaria de ter um(a) filho(a) gay (lésbica).
16 – somente pessoas indecentes e desajustadas se rebaixam a ponto de se prostituir.
28 – como hoje em dia muitas pessoas mantêm um comportamento sexual promíscuo, tornou-se
difícil saber em quem podemos confiar.
38 – as orgias e o sexo em grupo ultrapassam os limites da normalidade, por isso as pessoas que
os praticam deveriam fazer tratamento psicológico.
62 – a espontaneidade com que algumas pessoas tratam à homossexualidade como se fosse parte
dos comportamentos sexuais normais é uma ameaça aos bons costumes.
Normalização da sexualidade:
8 – As crianças devem receber educação sexual desde cedo para que possam
desenvolver uma vida sexual normal.
31 – é importante lembrar que muitas pessoas que tiveram experiências sexuais com alguém do
mesmo sexo logo perceberam que poderiam desenvolver uma sexualidade normal.
304
33 – hoje em dia se tornou comum ter vários parceiros sexuais ao longo da vida, mas é inaceitável
que alguém bem casado tenha desejos sexuais por outras pessoas que não seus respectivos cônjuges.
34 – nos casos de adoção é preciso não esquecer que as crianças terão condições mais apropriadas a
seu desenvolvimento moral e afetivo se forem adotadas por casais heterossexuais.
72 – dificilmente alguém que tenha uma vida sexual promíscua manterá uma relação responsável
com a família e o trabalho.
Mediação da sexualidade pela dominação:
14 – o sexo não é somente delicadeza; é normal que às vezes o prazer e a dor se misturem.
35 – a entrega às grandes paixões traz consigo o risco da tragédia, por isso, é necessário o controle
dos impulsos para que se possa atingir o verdadeiro prazer.
37 – no sexo, assim como na vida em geral, quanto mais poder tivermos, tanto maiores serão
nossas oportunidades de gozarmos os prazeres que a vida oferece.
50 – se uma pessoa para qual dediquei o melhor de meu amor simplesmente me traísse ou
desprezasse, eu gostaria de vê-la sofrendo em dobro.
60 – há um prazer especial em se sentir desejado(a), e sempre tem aquelas pessoas que
adoraríamos ver implorando por nosso amor para que pudéssemos esnobá-las.
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