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identificatórios começavam a se instalar, a questão do ‘medo de identificação’ saiu
de foco e a visão do rosto assumiu dimensão provocativa e inquietante que
convocou um para além. As circunstâncias restritas de cada um dos personagens se
transformaram na medida da convocação recíproca que a visão do rosto
demandava. A vida pessoal deixou de ser apenas da responsabilidade individual e
começou a se desenrolar o processo de co-responsabilidade. A descoberta literal de
rostos e nomes tecia uma rede afetiva imbricada que envolvia os dois homens que
passaram a se sentir responsáveis pela vida e ou morte do outro. Não é isso que os
acontecimentos demonstraram quando o soldado inglês tombou pelas rajadas da
metralhadora?
Continuando com as minhas proposições, explicito melhor o pensamento de
Lévinas, situando quem foi ele e as circunstâncias de vida que criaram as condições
para desenvolver a sua obra. Ele nos enseja condições para compreender a
constituição da alteridade do homem, porque nos fornece subsídios para melhor
empreender o processo de desconstrução da metafísica. Desconstruir a metafísica
significa, aqui particularmente, desconstruir a compreensão da identidade humana
como impermeável. Penso que Lévinas, ao compreender o homem como
interpelado pelo outro, conseguiu ser mais radical do que Heidegger. Este, apesar
de toda radicalidade do pensamento, permaneceu, pelas contingências, circunscrito
à comunidade alemã, preso ao “logos” grego
12
. Nessa medida, o pensamento
heideggeriano não deixa de corresponder também ao ‘mito de Ulisses’
13
,
personagem da mitologia grega o qual sai da sua ilha e enfrenta os inimigos
estrangeiros e estranhos, mas volta como conquistador para o mesmo lugar de
origem. Lévinas, ao contrário – pela condição de imigrante judeu lituano, imerso na
cultura européia ocidental, particularmente francesa, tendo freqüentado com
12
“O Logos (em grego λόγος, palavra), no grego, significava inicialmente a palavra escrita ou falada — o Verbo. Mas a partir
de filósofos gregos como Heráclito
passou a ter um significado mais amplo. Logos passa a ser um conceito filosófico traduzido
como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico
da Ordem e da Beleza.” In:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Logos
. Contudo, “[...] Traduções e interpretações provenientes de outras perspectivas e interesses
vão mascarar o sentido dos aforismas de Heráclito, do Poema de Parmênides e dos demais pensadores do período inaugural.
Terá sido perdido, então, o prístino sentido das palavras fundamentais com que irrompeu a filosofia grega: physis, logos,
aletheia … Vão nascer as lógicas, as ciências vão desenvolver um tipo de Razão intemporal que mede, calcula, investe e
explora a natureza. O conhecimento vai ser visto como uma força que contrapõe à realidade (Sujeito X Objeto); o intelecto
humano, julgando-se um poder separável, tecerá redes de conceitos para aprisionar o Ser, conhecê-lo e dominá-lo, atingindo
certezas absolutas. E tudo isto parecerá um desejável progresso. Uma grande névoa terá, então, obnublado os sinais de
Heráclito. A clareira aberta com o pensar poetante, criador, dos primeiros pensadores, e logo obscurecida por um auto-
suficiente racionalismo, só será de novo entrevista no século XIX, quando um grande pensador, armado de amplo saber
filosófico, perceber e denunciar as traições sofridas pelos escritos dos primeiros filósofos gregos (que a tradição embrulhou sob
a depreciativa denominação de pré-socráticos). Este famoso filólogo, este grande escritor (só cem anos depois reconhecido
como filósofo), é Nietzsche
.” (GUIMARÃES FERREIRA DE BRITO, Orsely). Heráclito, o pensador do logos. Disponível em:
http://www.culturabrasil.pro.br/orsely.htm
.
13
Vide “Dialética do Esclarecimento” de ADORNO e HORKHEIMER.