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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
A ACUMULAÇÃO DO PODER PUNITIVO NO BRASIL
André Magalhães Barros
Orientadora: Professora Doutora Vera Malaguti Batista
Rio de Janeiro
2006
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
A ACUMULAÇÃO DO PODER PUNITIVO NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Direito,
área de Ciências Penais, como requisito parcial para obtenção
do título de Mestre em Direito sob a orientação
da Professora Doutora Vera Malaguti Batista
Rio de Janeiro
2006
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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
A ACUMULAÇÃO DO PODER PUNITIVO NO BRASIL
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em Direito, submetida à aprovação da Banca
Examinadora composta pelos seguintes membros:
___________________________
Orientadora:Profa. Dra. Vera Malaguti Batista
____________________________
Prof. Dr. Nilo Batista
_____________________________
Prof. Dr. Marildo Menegat
Rio de Janeiro
2006
BARROS, André Magalhães
A Acumulação do Poder Punitivo no Brasil / André Magalhães
Barros. Rio de Janeiro, Universidade Cândido Mendes, Mestrado
em Direito, 2006.
XIII pi, 111 pg.
Orientadora: Vera Malaguti Batista
Dissertação (mestrado) – UCAM, Mestrado em Direito, 2006.
Referências Bibliográficas – fls. 107 – 111
1.Direito Penal Brasileiro 2. Acumulação do Poder Punitivo
3. Escravidão 4. Tortura 5. Prisão 6. Ditadura Militar
7. Neoliberalismo.
Agradecimentos
À Professora Doutora Vera Malaguti Batista, pelo imediato e incentivador apoio à minha proposta;
Ao professor Doutor Nilo Batista, pela liderança de tão maravilhoso mestrado;
Ao professor Marildo Menegat, de companheiro da UNE à banca examinadora desta dissertação;
À Cecília Coimbra, tia de coração, representando o 'Grupo Tortura Nunca Mais';
A todos os professores e alunos do mestrado pela marcante convivência;
À Universidade Cândido Mendes do Centro da Cidade do Rio de Janeiro, pela minha formação
profissional e prática política e pelo mestrado sensacional que me fez retornar ao meu Rio de
Janeiro. Tenho muito orgulho de ser cria da casa.
Ao meu pai, Fernando Barros da Silva, cassado como líder estudantil quando foi presidente do
CACO (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira da Faculdade Nacional de Direito, atual UFRJ),
cassado como jornalista da Rádio Nacional no Ato Institucional 1 e o único, enquanto candidato
a deputado estadual, cassado às vésperas da eleição de 1966, no Rio de Janeiro;
À tia Verinha, marcante personagem da resistência armada à ditadura militar no Brasil;
A José Roberto Spiegner (in memorian), tio de coração que o conheci, assassinado pela ditadura
militar quando tinha apenas vinte e dois anos de idade;
À minha mãe, Ana Lúcia Magalhães Barros, por me levar ao circo e ao teatro no meio do fogo
cruzado da ditadura;
À minha avó Virgínia, que foi presa e amarrada num barco pela ditadura e que tanto se empenhou
na luta pela Anistia Ampla, Geral e Irrestrita;
À tia Beatriz, que criou todas as crianças da família;
À Norma, pela parceria na rebeldia carioca;
À Malena, minha tia-irmã;
Ao Marcelo Barros, tio que me levava ao Maracanã;
Ao Marco Aurélio Barros da Silva, o único representante de toda a minha família gaúcha que ficou
no Rio Grande do Sul;
Ao meu avô Sylla (in memorian) e minha Vó Irma (in memorian) pelas agradáveis tardes no
Leblon;
Ao meu avô Cláudio (in memorian), pelos fins de semana na Cidade Imperial;
À minha sogra, Eliane Lamarca, pelo sempre entusiasmado apoio, com o orgulho de ter uma
parente Lamarca;
Aos meus amados filhos Igor e Juca;
Ao meu maravilhoso enteado Pedro Bento, que me acompanha desde seus quatro anos de idade;
Ao Botafogo de Futebol e Regatas, ao Grêmio Recreativo Escola de Samba Império Serrano e ao
Partido dos Trabalhadores, hordas da minha vida;
Aos Nativos, Negros, Anarquistas, Socialistas, Comunistas e Democratas, exterminados, açoitados,
degredados, torturados, desaparecidos e assassinados.
À MARTA
“A classe dominante brasileira é rica e branca e detesta o povo que é mulato e preto”
Darcy Ribeiro
Resumo
Este trabalho desenvolve a idéia de que, no Brasil, não ocorreu uma substituição das antigas
práticas punitivas do extermínio e do açoite por métodos ditos científicos e racionais, mas sim uma
acumulação que os reúne sob um mesmo sistema de Poder Punitivo que faz parte de uma Política
de Estado. Percorremos a História do Brasil a fim de demonstrar que passado e presente estão
muito próximos. Aqui, a prisão celular moderna veio se somar ao genocídio dos nativos e ao
açoite, galés, degredo e trabalhos forçados da escravidão. O Direito Penal Brasileiro não deve ser
compreendido somente sob o ponto de vista da lei, mas sim dentro de seu contexto histórico,
sociológico e político. Deste modo, apontamos indícios e imanências absolutistas ao longo da
passagem para a república. Contradições que demonstram, por trás das mudanças de regimes
políticos e de uniformes, a permanência dos mesmos agentes de regimes anteriores. A recente
ditadura militar e o atual horror econômico constituem as bases punitivas da atual ditadura
neoliberal de raízes escravocratas e etnocêntricas.
PALAVRAS-CHAVE:
Direito Penal Brasileiro
Acumulação do Poder Punitivo
Escravidão
Tortura
Prisão
Ditadura Militar
Neoliberalismo
Abstract
This dissertation deals with Brazilian Punishment System in addition to BrazilianPenal Law.
Unfortunately, in Brazil, the slavery body punishment, including torture proceedings frequently
come together with the modern prison. After studying Brazilian History we notice that past and
present stand very closed. Therefore, in order to understand Penal Law in Brazil, it is necessary to
study Brazilian History, Sociology and Politics. For instance, although the Brazilian political
system may have been changed, many old reminiscences still remain among the same agents and
uniforms. The Military Dictatorship period and the 'economic horror' are the basis of the Neo-
liberal Brazilian Punishment System nowadays.
KEY-WORDS:
Brasilian Penal Law
Punishment System
Slavery
Torture
Prison
Military Dictatorship
Neo-liberalism
Apresentação
Ao ingressar no Mestrado em Ciências Penais da Universidade Cândido Mendes, pretendia
desenvolver um projeto ligado aos julgamentos sem advogado. Devido à minha experiência
profissional - como advogado criminal e membro das Comissões de Direitos Humanos do Rio de
Janeiro e Distrito Federal, tendo sido conselheiro e presidente da última - tinha a intenção de
enfatizar que a maioria das Unidades da Federação do Brasil não possui Defensoria Pública.
Entretanto, quando o professor Nilo Batista afirmou que a acumulação do poder de punir
representava um elemento central para uma visão crítica do Sistema Penal, decidi enfocar e
desenvolver esta pesquisa a partir da seguinte questão: a acumulação do poder punitivo que
compreende prisão, tortura, execução e extermínio.
Meu interesse pelo assunto é antigo e está relacionado ao que diz Vera Sílvia Magalhães,
minha tia, uma das principais idealizadoras e autoras do seqüestro do embaixador americano
Charles Elbrick, em 1969. Quando instada a denunciar seus torturadores, ela costuma afirmar que a
tortura era uma Política de Estado e não de indivíduos isolados.
Fernando Barros, meu pai, com apenas 23 anos de idade, foi demitido da Rádio Nacional em
razão do “Ato Institucional 1” (A. I. 1, de 09/04/1964) da Ditadura Militar, tendo sido proibido
de exercer a profissão de jornalista que iniciara aos catorze anos de idade. Havia sido delatado, com
outros trinta e cinco funcionários, como Dias Gomes, Mario Lago e Gracindo Júnior, por César de
Alencar, que passou a ser odiado. Meu pai, contudo, diz que não sente qualquer rancor pessoal
contra ele, pois também entendia que aquilo fazia parte da política da Ditadura Militar.
O poeta Ferreira Gular, em entrevista a um programa de televisão
1
, relatando sua experiência
de ter sido preso e torturado, afirmou que aquelas medidas não eram decorrentes da vontade de
alguns “soldados tarados” e sádicos, mas que, até em função da sofisticação dos equipamentos e do
grande espaço dedicado às salas de tortura, certamente os membros do governo estavam a par do
que acontecia, aprovando e ordenando estas práticas.
Partindo destes pressupostos, a fim de verificar a hipótese de que existe uma acumulação
do poder punitivo - de modo que a tortura, assim como o extermínio, o trabalho escravo e a
própria prisão, fazem parte de uma Política de Estado, e buscando compreender o que vem a ser
esta política - são propostas idas e vindas, no passado e no presente. Existe uma orientação
1
Programa “Histórias do Poder”', exibido na TVE em 15/10/2006.
cronológica que, contudo, não é seguida de maneira linear, já que diferentes momentos históricos se
entrelaçam, e os fatos não podem ser dissociados das mentalidades e dos aspectos ideológicos. Por
meio da História, estrada pela qual passaremos para reunir os elementos desta argumentação,
observa-se que, além das mudanças nos sistemas políticos e jurídicos, existem elementos de
continuidade, uma espécie de imanência de épocas anteriores. As permanências, no Brasil, são
evidentes no que diz respeito às formas de punir, as quais foram se acumulando ao longo de
diferentes configurações histórico-sociais.
Todavia, como não sou historiador, e sim advogado criminal, com 19 anos de militância,
não faço do recorte histórico uma finalidade, mas utilizo-o como um dos elementos, dentre outros,
para desenvolver essas idéias. Deste modo, inspirado no que Michel Foucault denominou de
“método genealógico”, ao afirmar que escreveu uma “história de filósofo e não de historiador”,
traço uma História do ponto de vista do Direito. Este, por sua vez, está inserido num contexto mais
amplo que unicamente o da legislação. Além de recordar a historicidade das leis, que sua
elaboração e aplicação acontecem de maneiras diferentes no tempo, não é possível uma ampla
compreensão do Direito sem reconhecer sua íntima relação com a Filosofia, a Sociologia, a
Antropologia e, acima de tudo, com a Política. Em outras palavras, busco demonstrar que a lei é um
dos pontos de vista sob os quais é possível analisar o Estado, o Direito, e a sociedade, mas não o
único. Assim, ao traçar uma visão do Direito Penal demonstro que esta não pode se afastar de sua
realidade, que é Política, nem perder de vista que o Poder Punitivo é exercido a serviço das classes
privilegiadas. Portanto, cabe sempre indagar acerca das condições das classes dominantes e
segregadas e suas relações com o Poder Punitivo.
Sendo assim, este trabalho pretende estabelecer um diálogo entre a História do Brasil e a
realidade atual no que diz respeito ao Sistema Punitivo. Michel Foucault apontou uma substituição
das formas de punir os corpos à medida que se instauravam novos regimes políticos que sucederam
as monarquias absolutistas (FOUCAULT,1986). No caso do Brasil, minha hipótese é de que o
ocorreu uma substituição e sim uma acumulação do Poder Punitivo.
No Código Penal da República, por exemplo, a prisão celular veio se somar às antigas
penas do Império, de prisão com trabalho obrigatório, somente extintas com o Código Penal de
1940! Ao contrário de simplesmente punir o corpo por meio de seu encarceramento, aqui, a tortura
do açoite foi acumulada à tortura “científica” da modernidade. Basta ler os noticiários da atualidade
para saber que, no Brasil, esta substituição o ocorreu, de fato. Diferentes maneiras de punir
convivem e se acumulam com a prisão brasileira, que é um verdadeiro campo de concentração,
que todas fazem parte da biopolítica punitiva do Estado.
A idéia de biopolítica refere-se ao conjunto que abrange as disciplinas do corpo e as
regulações da população, “em torno das quais se desenvolveu a organização do poder sobre a vida”
(FOUCAULT,1993:131). Ela nos remete imediatamente à noção de biopoder, ‘elemento
indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que pode ser garantido à custa da inserção
controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de
população aos processos econômicos’ (op.cit:132). Em suma, tratam-se dos mecanismos pelos quais
o poder se exerce sobre os indivíduos no âmbito de sua existência biológica. Ao nos reduzir à
dimensão biológica, o biopoder contemporâneo nos transforma em meros sobreviventes. O poder
tomou de assalto a vida e, à medida que se estabelece uma nova relação entre poder e vida, vai
penetrando em todas as suas esferas: o controle disciplinar dos corpos e de seus processos
orgânicos, tais como o regime de reprodução, a afetividade, o psiquismo, a alimentação,
movimentação, a relação com as doenças, a pedagogia, a imaginação, a criatividade, de maneira que
tudo se torna violado, colonizado, expropriado pelos poderes. E o que são os poderes? Anônimos,
esparramados, flexíveis, constituem-se da ciência, do capital, do Estado, da mídia...
Embora exercido de maneira objetiva, o Poder Punitivo situa-se no contexto mais amplo do
biopoder. Tanto nos primórdios de nossa História quanto ainda hoje o poder do sistema punitivo é
exercido sobre o corpo dos acusados . Era sobre o corpo que incidiam as formas de punição sobre
os negros, índios e degredados portugueses. O açoite era o castigo da escravidão. A própria lei
criminal de 1830 estabelecia as punições do açoite, trabalhos forçados e galés. Junto às leis, o
sentimento que nutre o racismo é uma marca de nosso passado cujas raízes alcançam nosso
presente. Daí a busca de uma identidade nacional ter muitas vezes se confundido com a utilização
de referências européias. Tanto a pintura quanto a literatura oficiais brasileiras preocuparam-se em
enaltecer os brancos, portugueses e seus descendentes, assim como os índios “pacíficos”, aliados, e
nossa beleza natural, escondendo ou marginalizando os negros e os índios “rebeldes”.
No período colonial, regido pelas Ordenações Filipinas, bem como no Império, regido pelo
Código Criminal de 1830, as punições, na lei, eram aplicadas segundo uma política de tortura,
execução e extermínio. Até porque os índios eram vistos numa perspectiva teleológica, como se
lhes “faltasse” os atributos da civilização e os escravos nada mais eram que “coisas”.
Enfocando o caso brasileiro, o fato que pretendemos demonstrar é que as prisões, assim
como a tortura, a execução e a chacina fazem parte de nossa realidade. Basta ter a sensibilidade
de perceber que uma cadeia como a Polinter, onde 1500 pessoas permaneciam presas num espaço
onde caberiam 250, era um campo de concentração. Felizmente, durante o período em que redigi
este texto, esta prisão foi desativada. No entanto, sabe-se que inúmeras outras em condições
semelhantes ou até piores, de modo que não é possível separar a política de encarceramento daquela
que castiga diretamente o corpo. Thomas H. Holloway corrobora estas observações, percebendo que
aqui não ocorreu uma substituição, ao afirmar: “A sociedade carcerária que Foucault imaginou, na
qual os cidadãos do Estado moderno internalizavam os mecanismos para o seu próprio controle,
tinha pouca sustentação numa sociedade composta de senhores e escravos” (HOLLOWAY,
1997:57).
Além disso, deve-se ressaltar que, a partir da primeira metade do século XX, a pena de
prisão teve sua aplicação estendida, dos criminosos comuns, “marginais” propriamente ditos, aos
chamados subversivos, os comunistas e anarquistas, e posteriormente, aos presos políticos, durante
a Ditadura Militar. Hoje, sob a égide do neoliberalismo, o Brasil é denunciado internacionalmente
pelos alarmantes números de torturas e execuções, em sua maioria, praticadas por agentes policiais,
dentro e fora das repartições públicas.
Todavia, quando são apontadas as injustiças do Sistema Punitivo, as acusações costumam
recair somente contra os membros da polícia, como se juízes, promotores, advogados e a própria
sociedade não participassem de uma política etnocêntrica que ergue um muro entre alguns
privilegiados e uma multidão de pessoas que vive na pobreza e na miséria. A legitimação desta
situação por parte da sociedade é evidenciada em pesquisa recente que aponta, na sociedade
brasileira, que um índice de 32% (trinta e dois por cento) da população concorda com as práticas de
tortura para investigação de crimes
2
. Recorda-se que a pena de morte também é defendida por parte
significativa da população brasileira.
Portanto, a idéia da acumulação do poder de punir pode ser disposta lado a lado com a forma
como o mesmo é exercido, um indício da manutenção deste poder que faz parte de uma política de
Estado a serviço das classes dominantes. É por isso que, ao contrário de serem meros atos isolados,
as torturas e as execuções integram, tanto quanto a prisão, a Política Criminal do Estado,
legitimada pela sociedade.
2
Folha Online, 19/10/2006. Pesquisa de opinião pública conduzida pelo Serviço Mundial da BBC em 25 países apontou
que 59% das pessoas são contra a tortura, mesmo quando usada para se obter informações que possam salvar outras
vidas. No Brasil, 61% dos entrevistados se disseram contra qualquer tipo de tortura, enquanto 32% admitem a
possibilidade em determinados casos. Nos Estados Unidos, os percentuais registrados foram de 58% e 36%
respectivamente.
Somente a título de exemplo, há pouco mais de uma década, o Governo do Estado do Rio de
Janeiro premiava os policiais militares que conseguissem matar um criminoso com recompensas
financeiras e de honra militar. Mais recentemente, em 2004, os jornais do mesmo Estado
publicavam propagandas da Secretaria de Segurança Pública de uma página inteira com diversas
fotos dos traficantes, chamados de “donos dos morros”, onde subscrevia-se os termos preso” ou
“morto”. Portanto, aprofundando a discussão para afirmar que a escravidão, o extermínio, a tortura,
a chacina e a prisão acumulam-se enquanto bases do poder de punir, este trabalho procura
demonstrar que tirar a vida de alguém não é um acidente, mas faz parte da própria política de
Estado.
Para tal, além da pesquisa propriamente bibliográfica, busquei reunir material de imprensa,
entremeado com outras formas de expressão, tais como como a literatura, história oral, filmes e
letras de música. Convém recordar a noção de “paradigma indiciário”(CERQUEIRA FILHO,1993),
que consiste num conjunto de princípios e procedimentos segundo os quais a pesquisa enfoca os
detalhes, os dados marginais, os resíduos aparentemente sem importância, tomados enquanto pistas,
indícios, sinais, vestígios ou sintomas que ajudam a iluminar uma realidade nem sempre
transparente. Como exemplos destes indícios, além dos dados mencionados acima, podemos citar a
permanência dos mesmos agentes por trás da troca de uniformes ao longo da transformação da
monarquia em república, o uso de trajes europeus no calor carioca numa clara referência a uma
mentalidade colonizada, as atitudes racistas freqüentemente veladas, as práticas de tortura do tempo
da escravidão décadas após sua abolição... A observação desses indícios aparentemente
insignificantes auxilia a compreensão dos aspectos subjetivos de nosso objeto de estudo. Em outras
palavras, procuro não me limitar à teoria, mas sim, sob uma perspectiva crítica, dar corpo a
percepções herdadas, desde a infância, de uma família perseguida que resistiu à ditadura militar.
SUMÁRIO
1. Formação Ideológica e Analfabetismo 1
2. Bases da colonização 13
3. Contexto Internacional e Independência do Brasil 23
4. República, Positivismo e Assepsia Social 34
5. Poder Punitivo no Brasil: substituição ou acumulação? 50
6. Ditadura Militar 63
7. Neo-liberalismo 78
Considerações finais 99
Referências Bibliográficas 107
1. Formação Ideológica e Analfabetismo
“Por muito tempo, o sangue constituiu um elemento importante nos mecanismos do poder, em suas
manifestações e rituais. Para uma sociedade onde predominam os sistemas de aliança, a forma política do
soberano, a diferenciação em ordens e castas, o valor das linhagens, para uma sociedade em que a fome,
as epidemias e as violências tornam a morte iminente, o sangue constitui um dos valores essenciais; seu
preço se deve, ao mesmo tempo, a seu papel instrumental (poder derramar o sangue), a seu
funcionamento na ordem dos signos (ter um certo sangue, ser do mesmo sangue, dispor-se a arriscar seu
próprio sangue), a sua precariedade (fácil de derramar, sujeito à extinção, demasiadamente pronto a se
misturar, suscetível de se corromper rapidamente). Sociedade de sangue ia dizer de “sangüinidade”:
honra da guerra e medo das fomes, triunfos da morte, soberano com gládio, verdugo e suplícios, o poder
falar através do sangue; este é uma realidade com função simbólica (...) Ocorreu, a partir da segunda
metade do século XIX, que a temática do sangue foi chamada a vivificar e a sustentar, com toda uma
profundidade histórica, o tipo de poder político que se exerce através dos dispositivos da sexualidade. O
racismo se forma nesse ponto (racismo em sua forma moderna, estatal, biologizante): toda uma política
do povoamento, da família, do casamento, da educação da hierarquização social, da propriedade, e uma
longa série de intervenções permanentes ao nível do corpo, das condutas, da saúde, da vida quotidiana,
receberam então cor e justificação em função da preocupação mítica de proteger a pureza do sangue e
fazer triunfar a raça. Sem dúvida, o nazismo foi a combinação mais ingênua e mais ardilosa ardilosa
porque ingênua – dos fantasmas do sangue com os paroxismos de um poder disciplinar”
(FOUCAULT, 1993: 138-40).
1
Antes de iniciar um relato propriamente histórico, propomos uma reflexão
acerca dos aspectos ideológicos que permeiam a formação cultural brasileira, para
melhor compreendermos o contexto em que se aplicam as respectivas práticas punitivas
de cada época. Procuraremos demonstrar, portanto, que a ideologia e o comportamento
autoritários não surgiram subitamente em algum dos períodos estudados adiante, mas
possuem fortes bases biopolíticas ao longo de toda a História brasileira.
É interessante observar que, em 1789, ano em que ocorreu a Revolução
Francesa, Tiradentes era enforcado por lutar para que o ouro do Brasil não fosse
enviado para a Europa, onde terminava nas mãos da burguesia. De fato, a mesma classe
que havia encabeçado as Revoluções Burguesas era quem financiava a colonização e
enriquecia com a exploração das terras ultramarinas. Não se pode negar a ligação
econômica entre tais fatos históricos.
A seu turno, os ideais republicanos e democráticos que inspiraram as
Revoluções Burguesas e as conquistas delas decorrentes fundamentaram as democracias
ocidentais. Nos capítulos seguintes, demonstraremos de modo detalhado que esses
valores chegaram ao Brasil de um modo bastante peculiar, sem as bases firmes,
construídas ao longo de séculos de lutas e de transformações ideológicas. As influências
daquelas mudanças vieram de muito longe, do palco onde ocorreram de fato as
conquistas. Antes da vinda dos imigrantes, a partir de meados do século XIX, as idéias
de República e Democracia chegavam aqui somente através dos filhos da oligarquia
escravocrata que tinham condições de estudar na Europa. A Independência foi
proclamada pelo filho do rei do mesmo país do qual nos “libertávamos”.
Além disso, o latifúndio, dominante ainda hoje, representa uma forte herança
rural distante do imaginário social construído nas cidades. Sergio Buarque de Hollanda
ou, como gostava de se apresentar em público, “o pai de Chico Buarque”, formando um
pensamento brasileiro, ensinou:
2
“se (...) não foi uma civilização agrícola que os portugueses instauraram no Brasil, foi, sem
dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da
colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não
de fato, simples dependências delas” (HOLANDA,1986:41).
A configuração rural, com profundas raízes monárquicas e autoritárias, fez com
'que as idéias de Democracia, Igualdade e República se instalassem no Brasil de uma
maneira artificial. Muito mais pela busca de adaptação às transformações do mundo do
que por uma incorporação profunda de seus valores, sem que ocorresse uma luta radical
por parte das classes burguesas e populares. Basta comparar o Brasil, onde nenhuma
gota de sangue foi derramada no momento da Proclamação da Independência e da
República, estabelecidas como que por decretos, com países como Inglaterra e França
em que se deram violentos acontecimentos relatados adiante.
Portanto, não é difícil identificar que o autoritarismo que viria a se manifestar de
maneira mais evidente durante a Ditadura Militar possui profundas raízes na formação
cultural brasileira. Convém recordar aquele que foi considerado o ideólogo da junção da
fé cristã com a filosofia de Aristóteles: Tomás de Aquino, canonizado em 1323, 46 anos
após a sua morte. Este santo italiano justificou racionalmente a existência de Deus por
cinco vias. Uma delas é a hierarquia, como prova da existência absoluta de Deus e
paradigma dos graus de virtude existentes na bondade, verdade, na nobreza e em outras
perfeições buscadas pelos filósofos (TOMÁS DE AQUINO,2003:). A visão tomista do
mundo teria servido, portanto, de fundamento ideológico para as monarquias
absolutistas européias.
As idéias de democracia e república, principais bandeiras das Revoluções
Burguesas, vieram romper com os princípios tomistas e monárquicos, e também com os
privilégios do Antigo Regime. Entretanto, os últimos dominaram vigorosamente a
formação da sociedade brasileira.
A vitória do capitalismo e da República na Europa além-Pirineus foi alicerçada e
misturada ao sonho do povo pela igualdade. Contudo, conforme será abordado no
terceiro capítulo, a derrocada da Comuna de Paris demonstraria que a liberdade tinha
3
sido uma desculpa ideológica da burguesia que, na realidade, desejava o poder político,
anteriormente concentrado nas mãos do monarca. O povo lutou pela igualdade, da qual
ficou muito distante, mas a construiu no sonho e no imaginário coletivo. A idéia de
igualdade, embora abandonada pela burguesia revolucionária, está presente no
Manifesto Comunista (1848) e na Primeira Associação Internacional dos Trabalhadores,
que por sua vez ajudaram a construir a noção de consciência e emancipação da classe
trabalhadora. Essa realidade ficou muito distante do Brasil, onde somente se tomou
conhecimento, por exemplo, do comunismo e do anarquismo com a vinda do excedente
de o-de-obra estrangeiro no início do século XX. Sergio Buarque de Holanda
sintetiza estas idéias, ao afirmar que as palavras mágicas “liberdade, igualdade e
fraternidade sofreram a interpretação que pareceu ajustar-se melhor aos nossos velhos
padrões patriarcais e coloniais, e as mudanças que inspiraram foram antes de aparato do
que de substância” (HOLANDA, 1986:134).
Se democracia refere-se à supremacia da vontade popular, à preservação da
liberdade, à igualdade de direitos, percebe-se, enfim, que no Brasil, a formação
ideológica apresentou-se bastante diversa. As relações marcadamente personalistas
estão em íntima ligação com a noção do “homem cordial” elaborada por Sergio
Buarque de Holanda:
“Já disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de
cordialidade – daremos ao mundo o ‘homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade,
virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do
caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos
padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas
virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade’. São antes de tudo expressões legítimas de um
fundo emotivo extremamente rico e transbordante (HOLANDA, 1986:108)”.
Paralelamente, ao contrário da construção do conceito de cidadania, Cerqueira
Filho observa que a base ideológica da formação social, no Brasil, constituiu-se a partir
da noção de “favor”:
“O favor está relacionado com as práticas sociais que historicamente se constituíram a partir das
relações entre senhores de terra (classe senhorial agrária) e foreiros (arrendatários de terra). A outra
relação constitutiva da nossa formação histórica refere-se àquela entre senhores de terra e escravos,
4
fundada na violência. A utilização recorrente do engenho, propriedade dos senhores de terra, pelos
foreiros maximizava a presença do favor, ele também presente na relação senhores ‘versus’ escravos,
apenas para dissimular a violência do trabalho compulsório” (CERQUEIRA FILHO,1993:20).
Cerqueira Filho registrou bem a impossibilidade da separação da razão da
emoção e da teoria da história ao observar que, no contexto da escravidão, “a
combinação do liberalismo, a ideologia do favor e o autoritarismo (...), vai se configurar
na marca da vida ideológica da formação social brasileira. Daí as contradições muito
freqüentes entre o pensar, o sentir e o agir’ (CERQUEIRA FILHO, 1993:20-1).
A ideologia do “favor”, presente nas relações de caráter personalista, juntamente
com a ignorância simbólica da lei (CERQUEIRA FILHO,1993), caminha num sentido
oposto à consciência do cidadão enquanto possuidor de direitos: ora, quando alguém é
beneficiado por um favor” de outrem, sem falar na dívida moral implícita que se
estabelece, configura-se uma situação totalmente diferente de gozar de um direito que
todo cidadão possui. Assim, os tipos de relações aqui surgidos demonstram uma
preponderância da forma em detrimento do conteúdo, o que favorece ainda mais o
exercício do poder-saber. Distante do conteúdo, é mais forte o apego à forma e a
valorização da aparência (e beleza) exterior.
Tudo isto é bem visível quando percebemos a força das notícias, passadas em
forma de anúncio no jornais televisivos que não podem ter seus conteúdos questionados
por serem apresentadas sob um nível tecnológico e qualidade estética maravilhosos.
Verdades absolutas são construídas por meio de suas fachadas. Como um pessoa com
pouquíssimo nível escolar pode questionar a veracidade das informações transmitidas
por aquele homem bem vestido à frente de um belo cenário na televisão? E não
somente aqueles com baixa escolaridade, mas também todos os que foram enlatados
pela Sociedade de Consumo.
O autoritarismo biopolítico é a marca de nossa história, visivelmente presente
em nossa realidade. Todo esta dominação biopolítica tem como um de seus elementos
estruturais o analfabetismo, que afeta principalmente os índios e negros. Apesar de
5
“estuprados” no que diz respeito à voz, impedidos de utilizar sua própria língua pela
imposição do idioma europeu, os povos indígenas que aqui viviam e africanos que
vieram como escravos, em seu acesso extremamente limitado ao ensino, foram
desfavorecidos a aprender a ler e escrever na língua que foram obrigados a falar. Em
outras palavras, ao mesmo tempo em que sua própria língua lhes era retirada, a eles lhe
foi negado o acesso à forma escrita do idioma do colonizador, numa espécie de 'duplo
golpe de mestre'.
No que diz respeito à relação entre analfabetismo e dominação cultural, é
interessante destacar o romance “O leitor”, de Bernhard Schlink. Nesse enredo, o
analfabetismo é o pano de fundo do drama da protagonista, que se passa na Alemanha
nazista. Acusada da morte de muitas pessoas num incêndio, ela confessa ter sido a
principal responsável pelo ocorrido, quando não o era, por vergonha de se declarar
analfabeta. Isso atesta o sentimento de inferioridade causado por sua condição:
“‘Foi a senhora quem escreveu o relatório?’ (...)
‘Não, eu não escrevi. Tem importância quem foi que escreveu?’
Um promotor aconselhou que um perito fizesse a comparação entre a letra escrita no relatório e a
letra da acusada Schmitz.
‘Minha letra? Os senhores querem a minha letra...’ (...)
Então disse: Os senhores não precisam buscar nenhum perito. Eu confesso que escrevi o
relatório’ (...) O fato de se envergonhar por não saber ler nem escrever, de confundir-me para não se
expor, eu podia entender. Eu mesmo compreendia ter a vergonha como motivo para atitudes desviantes,
defensivas, obscuras e dissimuladas, mesmo as que magoavam. Mas poderia a vergonha de Hanna por
não saber ler nem escrever ser um motivo de seu comportamento no processo e no campo de
concentração? Por medo de ser desmascarada como analfabeta, ser desmascarada como criminosa?
Cometer crimes por medo de ser desmascarada como analfabeta?” (SCHLINK,1998:41)
Esta passagem do romance ilustra de maneira contundente a tragédia do
analfabetismo, a ponto da vergonha causada por esta condição ser maior do que a de ter
praticado um crime bárbaro do qual ela era inocente! Transportando este episódio para o
Brasil atual, pode-se evocar a cena corriqueira e constrangedora de uma pessoa que tem
que deixar que sejam colhidas suas impressões digitais por não saber assinar o próprio
nome. Trata-se de uma cena freqüente durante a instrução judicial de jovens acusados
de crimes, que ficam anos em instituições “recuperadoras de menores” e não aprendem
sequer a escrever e, nem mesmo, a assinar seu próprio nome!
6
As imanências absolutistas continuaram imperando na Republica e são visíveis
até hoje nos cargos vitalícios, na prática do nepotismo, no temor reverencial àqueles que
usam determinados trajes que vão do terno à toga. A forma sempre foi o liame
alcançado pelo brasileiro, privado de seu conteúdo, caracterizado principalmente pelo
analfabetismo. É importante atentar para o fato de que, além de não ter acesso ao
conhecimento, o analfabeto é um cassado político na História do Brasil, que somente
lhe foi facultado o direito de votar na Constituição Federal de 1988 e até hoje ainda não
pode se candidatar: CAPÍTULO IV - Dos Direitos Políticos (...) Art. 14. parágrafo 4º.
São inelegíveis os inalistáveis e os analfabetos” (1988).
Por outro lado, é de se registrar que, ironicamente, os Deputados Federais e
Senadores, assim como desembargadores, Ministros e demais cargos políticos, em
regra, lêem discursos e votos elaborados por seus respectivos corpos técnicos, o que
levanta a suposição de que apenas são capazes de “ler”, apesar de serem instituições que
solicitam claramente a capacidade oral, tanto que os primeiros são chamados de
“parlamentares”
1
.
A formação social brasileira, dentro do próprio discurso liberal da concorrência,
foi desigual, à medida que existe um muro separando os que sabem ler e escrever dos
que não o sabem. Desde o início, a estrutura de poder foi escrita, que era regida pelas
Ordenações Manuelinas e Filipinas. Inclusive, considera-se que a primeira não tenha
chegado a ser aplicada no Brasil até porque dela havia pouquíssimos exemplares
escritos. -se, inclusive, aí, não somente o poder da cultura escrita, mas sua própria
limitação, se poucos podiam ter acesso aos raros exemplares. Já as Ordenações Filipinas
são consideradas a primeira lei que vigorou na Colônia, especificamente para o Poder
Punitivo, o seu livro V.
‘A capacidade de registrar, transmitir e agir, considerando a informação através da palavra
escrita, era um dos instrumentos pelos quais a minoria mantinha o poder e o exercia contra a maioria. Os
documentos resultantes revelam que os dois lados dessa guerra social travaram uma luta desigual. E
também deixam entrever o mundo das não-elites que os historiadores conhecem tão pouco e raramente
têm a oportunidade de examinar’ (HOLLOWAY, 1997:21).
1
Este radical, do latim, originou os verbos ‘parler’ (francês) e ‘parlare’ (italiano) que significam ‘falar’
7
De um lado, o analfabetismo constitui um dos fundamentos da tragédia social do
Brasil. De outro, historicamente, a formação da idéia de uma “nação brasileira” buscou
construir consigo uma “identidade nacional”. Entretanto, aqui, ao contrário de abranger
a multiplicidade étnica que formou a sociedade, esta busca confunde-se com a
identidade das elites brasileiras, de “vidas brancas”, que são os brancos,
majoritariamente os “brancos relativamente mestiçados” (NEGRI e COCCO,2005:77).
Observa-se que houve uma preocupação, tanto na pintura quanto na literatura
oficiais, de enaltecer os brancos, portugueses e seus descendentes, assim como índios
“bons”, pacíficos, aliados, e nossa beleza natural, sempre escondendo ou
marginalizando os negros e os índios “rebeldes”.
Vera Malaguti Batista retrata a necessidade de construir uma identidade nacional
e as contradições daí inerentes ao recordar a estada de Debret no Rio de Janeiro, entre
1816 e 1834. Este artista, também cronista de sua época, contou o episódio em que José
Bonifácio o pediu para substituir, numa de suas obras de pintura, as palmeiras naturais
por um motivo arquitetônico regular, a fim de “afastar a idéia de estado selvagem”.
Segundo a autora, “seu depoimento nos conta do embate primordial no cenário da
cidade: esconder o selvagem que tão densamente a habita” (MALAGUTI
BATISTA,2003:216). A autora aborda a construção do medo e a criação de bodes
expiatórios como instrumentos para justificar a punição daqueles apresentados como
estereótipos de “selvagens”, esclarecendo que “a idéia de trabalhar o medo na cidade do
Rio de Janeiro se ancora no papel constitutivo desse sentimento, desse afeto, na
formação social brasileira” (MALAGUTI BATISTA, 2003: 49).
Inicialmente, as elites se identificavam com o branco europeu e, mais
recentemente, com o branco americano. Esta identidade sempre foi usada como
instrumento de dominação, de modo que a forma nacionalista traz consigo aspectos
contraditórios, à medida que, no Brasil, possui a peculiaridade de ter se servido sempre
de um cunho internacionalista, identificada com modelos estrangeiros.
8
As classes dominantes, sempre submissas ao interesse externo e identificadas
com sua origem européia, procuram excluir as pessoas oriundas de outras civilizações.
Basta parar numa banca de jornal e ler as manchetes para perceber o etnocentrismo
europeu e o desprezo por outras etnias. A televisão é clara como seus personagens e
atores, seus donos são de sangue europeu. A América Latina não consegue impor a
lógica de priorizar as vidas de sangue nativo e negro. Simultaneamente, não é por acaso
que o percentual de negros analfabetos e sem acesso ao conhecimento seja mais
elevado, o que se trata de outra forma de punição.
O biopoder que determina quem terá acesso ao conhecimento é tão grande que
basta ligar a televisão, no Brasil, e perceber que todas as preocupações, estilos de vida,
visão jornalística, propagandas, subjetividades apresentadas, têm o foco biopolítico dos
brancos das classes privilegiadas. Até leis foram criadas para que atores negros
aparecessem nos programas e telenovelas, o que evidencia que, se não fosse pela
imposição, eles não seriam contratados. A discriminação do conhecimento é evidente,
pois os programas são escritos pelas vidas que tiveram acesso ao conhecimento. A título
de exemplo, alguns anos, uma telenovela da Rede Globo, que tinha como cenários o
Céu e o Inferno, foi objeto do seguinte comentário de um ator negro: “Nou da Globo
só tem branco. Lugar para (ator) negro só no Inferno” (s.i.c.).
Outro exemplo recente pode ser encontrado em frases corriqueiras de
admiradores do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. É freqüente argumentarem
que o presidente estava “à altura de representar o Brasil” devido à sua aparência
européia, o domínio dos idiomas francês e inglês, além de seu certificado pela
“Universidade de Sorbonne”, na França. Parecia até que a televisão transmitia com
orgulho os discursos proferidos por FHC em ngua estrangeira. À época candidato, o
atual presidente Lula
2
- um torneiro mecânico, retirante do Nordeste, que não chegou a
completar o Ensino Médio - era atacado de forma debochada pelas elites e seus
seguidores. Estes afirmavam que seria uma vergonha para o Brasil tê-lo como
presidente, já que Lula não teria “capacidade”, leia-se “gabarito”.
2
À época da conclusão desta dissertação, o presidente Lula havia acabado de ser reeleito.
9
Ao trazer à tona a questão do sangue, na passagem que abre este capítulo,
Foucault auxilia a descrever esta realidade, de modo que o que é aparentemente
complexo, torna-se muito evidente no Brasil, onde as razões da miscigenação estão
ligadas ao estupro e submissão de índias e negras e à busca de pessoas desta etnia pela
miscigenação como recurso para fugir da escravidão. O Brasil, até hoje, é dividido pela
origem de sangue. Todos misturados, mas dentre as pessoas das classes dominantes,
em quase sua totalidade, de predominância européia, e toda a estrutura do Estado está a
seu serviço.
A segurança é a defesa da vida das classes dominantes, com a presença do
Estado protegendo as pessoas e os locais privilegiados. A vida tem seu valor devido a
origem civilizatória, as de origem africana são as vidas açoitadas de cara pela miséria,
de modo que a distinção entre violência direta e indireta é quase impossível. A punição
das classes subordinadas tem no sangue a marca da atualidade brasileira. A tortura e as
execuções continuam bem presentes em nossa trajetória política, construída no sangue
tirado das civilizações indígenas e africanas.
Os índios que estavam aqui e os negros, conforme será analisado adiante, foram
vítimas do genocídio e da escravidão, e ainda hoje compõem a maior parte dos índices
de miséria e analfabetismo brasileiro. Percebe-se que as relações sociais no Brasil
possuem profundas raízes em práticas como as do açoite e da captura pelos capitães do
mato, caçadores de escravos em troca de recompensa, sem falar no estupro das mulheres
negras e índias. A conseqüência mais evidente do estupro consiste na rejeição desses
filhos por seus pais brancos. Este tema possui forte conotação simbólica e é traduzido,
num nível social, pelo sentimento de “rejeição” de uma “nação sem pai” cujo maior
exemplo histórico pode ser identificado pelo “abandono” do país por Pedro I.
Estabelecendo diversas relações com o tema, Gisálio Cerqueira Filho traz sentimento à
discussão:
‘Queremos sublinhar o quanto o ofício de pai (frágil e paradoxal na sua própria natureza),
constitutivo da subjetividade, é fundamental para toda sociedade pela grande façanha de natureza
político-institucional que inscreve suas gerações sucessivas no futuro da espécie humana. Mais do que
isso, queremos demonstrar que a diluição da figura paterna, sua ausência ou degradação, apontam para o
10
self-service normativo inviabilizando a prática da democracia e reavivando o absolutismo de natureza
tomista’ (CERQUEIRA FILHO, 2002:59).
Thurler confirma esta observação com dados empíricos da atualidade: sua
pesquisa verificou que, no Distrito Federal, 12% das pessoas registradas em 1961, 1970,
1980, 1990 e 2000 não foram reconhecidas pelo pai, que, em sua “Certidão de
Registro Civil”, consta apenas da filiação materna. Isso leva à suposição de que, no
resto do Brasil, a situação não deva ser muito diferente, em relação ao elevado
contingente de registros de nascimento sem a filiação paterna estabelecida (THURLER,
2004).
O reconhecimento da paternidade e o direito à pensão não são os únicos motivos
que levam filhos a acionarem seus pais na Justiça: A novidade é processar o pai por
“falta de afeto”. Está em última instância a ação de danos morais movida por um filho
contra a falta de atenção do pai, terceiro caso do gênero no Brasil. A tese do advogado
da filha era de que depois de abandonada, a criança passou a carregar o estigma da
rejeição.
Deste modo, a combinação entre a “falta de afeto” e o excesso do aspecto
dominador, punitivo, senhorial, dos regimes autoritários, traduz-se numa “nação-sem-
pai”, numa contradição em que, neste sentido, “falta” e “excesso” de pai não são
condições excludentes. Esta figura e os alarmantes índices de analfabetismo consistem
em relevantes elementos na constituição das subjetividades dos indivíduos e na sua
relação com o biopoder. A muralha do analfabetismo é sustentada sem a necessidade de
armas, que podem ser guardadas para outras ocasiões seja o analfabetismo
propriamente dito ou, aprofundado, com a “exclusão digital”, ou seja, a falta de acesso
ao conhecimento, na atual globalização. Quando presa, uma pessoa analfabeta, sem
direito a advogado, como ocorre no Brasil, onde não existe defensor publico nas
delegacias para as pessoas presas, e ainda é torturada, é uma pessoas massacrada. Uma
vida em tais condições de despolitização é mais violável. Recorda-se que a origem do
radical pólis, que quer dizer cidade, quanto mais politizada a vida, no sentido de
11
pertencer à cidade, possuir cidadania, o que está ausente nestes casos. A formação
etnocêntrica brasileira é a marca biopolítica de nossa história. Para levantar este tipo de
sociedade na lógica subdesenvolvimentista internacional, através de muita punição.
Daí serem acumuladas diversas formas de punir para a manutenção e segurança de uma
minoria privilegiadíssima convivendo no meio de uma multidão pobre e miserável. O
extermínio e o açoite são a marca da formação social brasileira. O convívio muito
próximo da pobreza com a riqueza foi construído através de muito açoite, morte e
prisão.
A relação histórica entre o passado e a nossa realidade é evidente. O drama e o
horror econômico são de tal maneira sedimentados que quem não sabe usar um
computador está fora da sociedade formal e é chamado de “excluído digital”. O drama
vai se aprofundando no capitalismo neoliberal das multidões, onde estas pessoas,
jogadas nas lixeiras dos computadores, não estão registradas, mas estão vivas, vivendo
numa “sociedade paralela”.
Todavia, antes de analisarmos as questões de nossa atualidade, iniciamos por
voltar nosso olhar histórico para as bases da colonização do Brasil. Afinal, contar uma
história à nossa maneira significa a possibilidade de se contrapor ao silêncio forçado
pela opressão e pelo analfabetismo.
12
2. Bases da Colonização
‘Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar’, Jorge Ben Jor
Antes que os homens aqui pisassem
nas ricas e férteis terraes brazilis
que eram povoadas e amadas
por milhões de índios
Reais donos felizes
Da terra do pau-brasil
Pois todo dia e toda hora era dia de índio
Mas agora eles só têm
o dia dezenove de abril
Amantes da pureza e da natureza
Eles são de verdade incapazes
De maltratarem as fêmeas
Ou de poluir o rio, o céu e o mar
Protegendo o equilíbrio ecológico
Da terra, fauna e flora pois na sua história
O índio é o exemplo mais puro
Mais perfeito mais belo
Junto da harmonia da fraternidade
E da alegria, da alegria de viver
Da alegria de amar
Mas no entanto agora
O seu canto de guerra
É um choro de uma raça inocente
Que já foi muito contente
Pois antigamente
Todo dia
era dia de índio
13
A fim de construir um quadro com dimensões amplas acerca da realidade do
sistema punitivo brasileiro, remontamo-nos à época da colonização do Brasil. Esta
baseou-se na monocultura exportadora, na mão-de-obra escrava e no latifúndio
3
. A
sociedade brasileira pode ser analisada sob diferentes parâmetros, tais como segundo
sua divisão em relação à condição de liberdade, ou seja, entre homens livres e escravos;
à etnia brancos (europeus e seus descendentes) e negros ou índios; ou ainda em
relação à propriedade de terras ou renda, o que determinaria, sob o sistema de voto
censitário, as condições para votar.
Retomando os primórdios da colonização, recorda-se que navegantes
portugueses e espanhóis começaram a freqüentar as costas da América no final do
século XV, ambos com um objetivo muito claro: descobrir o caminho para as Índias.
Em 1494, o Papa Alexandre VI mediou a celebração do Tratado de Tordesilhas - a leste
desse meridiano imaginário, situado a 370 léguas de Cabo Verde, as terras pertenceriam
a Portugal, a oeste, à Espanha. A divisão do mundo entre portugueses e espanhóis
ocasionou protestos do rei da França, Francisco I, que afirmara desconhecer ‘a cláusula
do testamento de Adão que reservava o mundo unicamente aos ibéricos’. Na bula de
1506, o Papa Julio II confirmou o direito de Portugal sobre as terras brasileiras, tendo
sido ratificada, em 1514, pelo papa Leão X, e em 1551, pelo Papa Júlio III.
Inicialmente, contudo, o território não despertava grande interesse por parte da
Coroa Portuguesa, às voltas com o comércio das especiarias orientais. Américo
Vespúcio (1451-1512), piloto florentino cujo nome foi dado ao continente, que tanto
participou de expedições espanholas quanto portuguesas, afirmou em carta com a
primeira descrição do Novo Mundo: “Pode-se dizer que não encontramos nada de
proveito”. Mais tarde, porém, o pau-brasil, espécie vegetal utilizada como tintura,
semelhante a uma outra conhecida no Oriente, motivou os primeiros contatos com
este território (PRADO JUNIOR, 1977:24-5). A importância das relações econômicas
da fase extrativista é evidenciada à medida que esta matéria-prima, que viria a ser
amplamente exportada, ter dado nome ao país:
3
Sistema este denominado “Plantation”' presente em determinadas colônias chamadas “de exploração”.
14
“O descobrimento do Brasil é apenas um episódio da expansão marítima européia, no momento
da transição do feudalismo para o capitalismo. As práticas mercantilistas e a predominância dos interesses
econômicos sobre os aspectos religiosos e ideológicos se refletem até no nome definitivo que a terra
ganha, provocando protestos do cronista João de Barros (...): ‘por artes diabólicas se mudava o nome de
Santa Cruz, tão pio e devoto, para o de um pau de tingir panos” (ALENCAR, CARPI e RIBEIRO,
1996:11).
A partir de então, a sociedade brasileira formou-se do encontro de povos muito
diferenciados. Embora, de maneira errônea, considerados como um bloco único, os
nativos que aqui viviam constituíam uma grande multiplicidade de povos com
características singulares. Considera-se que haviam chegado mais de 12 mil anos e
viviam da caça, pesca, coleta, que não praticavam a agricultura. Ao invés de buscar
dominá-la, mantinham uma relação de harmonia com a natureza.
Os portugueses, por sua vez, coerentemente com a tradição cristã ocidental,
traziam consigo uma concepção de mundo em que o homem intitulava-se o centro do
universo e considerava-se a própria imagem e semelhança de Deus. Imaginando que
tinham chegado às Índias, os colonizadores denominaram os nativos de “índios”.
Acerca dos últimos, pouco se aprende nas escolas brasileiras, além da homenagem
recebida num único dia do calendário, referida na canção que abre este capítulo: “Todo
dia era dia de índio (...) mas agora ele só tem o dia dezenove de abril”
Enquanto os europeus viviam a transição para a chamada “Idade Moderna”, em
crescente processo de acumulação de capital, os índios foram classificados como
“paleolíticos”. Porém, trata-se de uma visão questionável, por se basear em parâmetros
teleológicos e etnocêntricos
4
. Construída a partir da violência absolutista da dos
Estados-Nação, os primeiros dispunham de uma evidente supremacia bélica traduzida
em armas de fogo contra o arco-e-flecha dos últimos.
Além disso, os índios não foram eliminados somente por meio de guerra, mas
4
Teleologia: refere-se a uma doutrina que considera o mundo como um sistema de relações entre meios
e fins, de modo que o argumento, conhecimento ou explicação relacionam um fato com sua causa
final. Etnocentrismo: tendência para considerar a cultura de seu próprio povo como a medida de todas
as demais (Ferreira, 1986).
15
também pelo mero contato com os europeus. Isso é facilmente demonstrado pelos
exemplos daqueles que morreram ao serem levados a Portugal: “(...) Brandão repara que
os índios do Brasil desembarcados em Portugal ‘morrem apressados’, porque vinham de
‘terra tão sadia’, enquanto os asiáticos ou os africanos oriundos de ‘terra doentia’,
sobreviviam (ALENCASTRO, 2006:39)”.
Alencastro refere-se, ainda, à subseqüente e inédita “unificação microbiana do
mundo”, ou seja, povos nativos passariam a ser afetados por microorganismos com os
quais jamais haviam tido contato. Por análises comparativas dos grupos sangüíneos,
concluiu-se que os índios viviam num certo isolamento em relação às outras
comunidades humanas, de modo que permaneciam ao abrigo das pandemias que
açoitavam o Velho Mundo. Sua reduzida diversidade genética pode ter concorrido para
criar uma menor capacidade de resistência à invasão de novas células patogênicas (op.
it., 2006:127). Sendo assim, tanto por razões de origem epidemiológica quanto bélica, o
fato é que o extermínio sempre fez parte da biopolítica sobre a qual se constituiu a
História do Brasil desde o período colonial. Apesar da controvérsia a respeito dos
números, o trecho abaixo comprova que o genocídio praticado no Brasil pelos
portugueses contra os índios é indiscutível:
‘O cálculo do número de habitantes (nativos) do território no ano de 1500 varia muito: de um
milhão a 8,5 milhões de pessoas. (...) No período de destruição (entre os séculos XVI e XIX), perdeu-se a
dimensão do que estava desaparecendo. Os índios formavam um grande conjunto de nações, algumas
com as dimensões e a população dos países europeus da época e de costumes, língua e bitos tão
variados como estes países. no fim do século XX, quando restam cerca de 300 mil índios
sobreviventes do massacre, esta diversidade começa a ser estudada, demarcada e estabelecida’
(CALDEIRA et al, 1997: 8-9).
Uma primeira aproximação com os índios se deu pela troca de mercadorias
insignificantes, cantada belamente pela banda “Legião Urbana”, na cada de 1980:
“mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente...”. Posteriormente, os mesmos
foram obrigados a trabalhar. A carta régia de 1570 estabeleceu o direito de escravizar os
índios aprisionados em “guerra justa”. Um fato importante a ser mencionado é que,
entre 1625 e 1650, quando houve uma suspensão do tráfico negreiro, os bandeirantes de
São Paulo capturaram 100 mil índios, num movimento que pode ser considerado uma
16
primeira “substituição de importações” (NEGRI e COCCO,2005:79). A escravidão
indígena seria abolida oficialmente somente em meados do século XVIII. Com relação
às práticas punitivas, que se chamar atenção para uma aparente contradição entre
dois tipos de tratamento dispensados aos índios. Zaffaroni e Batista afirmam que a
legislação era essencialmente dividida em leis sobre “índios amigos” e leis contra o
“gentio bravo”:
‘Se para os primeiros poderemos encontrar (...) uma atenuação dos castigos radicada no olhar
medicinal-evangelizador (...) para os segundos, numa linha que estava explicitamente formulada no
Regimento de Tomé de Souza, a mais brutal escravização constitui o primeiro expediente jurídico do
inexorável processo histórico de seu genocídio’ (ZAFFARONI e BATISTA, 2003:416)”.
São apontadas, neste ponto, as raízes históricas das práticas de extermínio, onde
o indígena foi a primeira vítima. Ocorreram muitos conflitos, entre colonos e indígenas,
entre diferentes tribos, aliadas ou não a colonos, e há discussões acerca das dificuldades
encontradas pela escravização dos nativos - tanto pelo seu modo de vida, baseado na
caça e coleta, ineficaz para realizar a tarefa da colonização, quanto pelos interesses
econômicos em torno da escravização dos negros trazidos da África. O fato é que
somente os últimos viriam a resolver efetivamente o problema do trabalho no “Brasil
Colônia”. Deste modo, o genocídio que caracteriza o poder punitivo exercido pelos
primeiros colonizadores portugueses sobre os povos nativos foi somado às práticas dos
senhores de engenho que submetiam a trabalhos forçados, açoitavam e até executavam,
se preciso, os escravos negros.
Durante o período colonial, a imagem do açoite representa uma síntese das
técnicas empregadas pelo Sistema Punitivo, incidindo basicamente sobre o corpo dos
acusados. A coexistência de pessoas de diferentes etnias era marcada por contradições
profundas e por uma relação de poder onde o corpo consistia, essencialmente, no objeto
das punições. O açoite reside na raiz cultural das práticas de tortura ulteriores, à medida
que, ao longo do processo histórico, os poderes punitivos foram se acumulando. Uma
característica relevante das práticas punitivas do período colonial é que as mesmas eram
aplicadas no âmbito privado, conforme relatam Zaffaroni e Batista:
17
“Os usos punitivos do mercantilismo, concentrados no corpo do suspeito ou condenado na
reinvenção mercantil do degredo, nas galés, nos açoites, nas mutilações e na morte encontram-se, na
colônia, praticados principalmente no âmbito privado. (...) Em 1591, um senhor confessa ao visitador do
santo ofício na Bahia ter ordenado que uma negra fosse lançada na fornalha do engenho. Em 1700, o
jesuíta Jorge Benci publicou na Bahia um livro no qual, omitindo ‘outros castigos ainda mais inumanos
que os ciúmes do senhor ou da senhora fazem executar nos escravos’, indagava se seria ‘castigo
racionável queimar ou atazanar com lacre os servos; cortar-lhes as orelhas ou os narizes; marcá-los nos
peitos e ainda na cara; abrasar-lhes os beiços e a boca com tições ardentes (ZAFFARONI e BATISTA,
411-4)”.
Esse tipo de castigo está presente, não somente em fatos históricos, conforme os
relatados acima, mas inspiraram também o folclore popular transmitido por meio da
história oral: “O negrinho do pastoreio”, célebre lenda de origem gaúcha, relata a
tragédia de um menino de 14 anos que era castigado freqüentemente pelo fazendeiro e
por seu filho. A terrível tortura a que foi submetido chegou a ponto de, após ser
violentamente espancado, ser deixado nu sobre um formigueiro, até a morte. Reza a
lenda que o “negrinho”, abençoado pela Virgem Maria, virou uma espécie de santo,
conhecido como protetor dos animais e de pessoas perdidas no campo. Esta lenda
retrata muito bem as crueldades praticadas na escravidão e exemplifica suas práticas,
que, certamente, inspirou-se em fatos reais, demonstrando que o poder punitivo
doméstico era exercido de maneira extremamente violenta.
que se ressaltar que as Ordenações Manuelinas, do início do século XVI, às
quais, oficialmente, a colônia deveria se submeter, não vigoraram aqui “e não passaram
de referência burocrática, casual e distante em face das práticas penais concretas”
(ZAFFARONI e BATISTA, 2003:417). Até porque, na época, seus exemplares eram
manuscritos e dificilmente algum deles chegou ao Brasil. As Ordenações Filipinas
consistiram o eixo da programação criminalizante de nossa etapa colonial tardia, 'sem
embargo da subsistência paralela do direito penal doméstico que o escravismo
necessariamente implica' (idem ibidem:417). Basicamente, “o Direito empregado, no
período das Capitanias Hereditárias, na prática, era quase o arbítrio dos donatários”
(PIERANGELI, 2004:61). Deste modo, o poder punitivo doméstico era exercido pelos
senhores dos escravos, em suas propriedades, numa continuidade público-privado que já
constituía uma tradição ibérica (ZAFFARONI e BATISTA, 2003:412).
18
O poder punitivo doméstico, exercido pelos proprietários dos escravos, contava
com toda uma estrutura para confinar os negros no duro trabalho da agricultura. Além
disso, as práticas punitivas o eram aplicadas somente no interior do latifúndio, mas
também sobre os escravos que buscavam a liberdade e formavam suas comunidades, os
chamados “quilombolas”
5
. Os capitães-do-mato, “caçadores de recompensa”,
integravam o sistema punitivo doméstico-escravocrata desde o século XVII. Recebendo
pagamento dos senhores por escravos capturados, o capitão-do-mato era uma figura
bastante representativa da repressão colonial e foi extinto somente em 1820. Alencastro
nos fornece alguns dados a respeito desta dinâmica do poder punitivo da qual o capitão-
do-mato era uma peça-chave:
“A legislação colonial segue a escalada antiquilombista. Criado na Bahia, em 1625, o posto de
capitão-do-mato, encarregado do rastreamento e da captura de escravos fugidos, é formalizado em 1676.
Ordem Régia de 1699 isenta de punição legal os moradores que matassem algum quilombola. Alvará de 3
de março de 1741 manda que os quilombolas fossem marcados no ombro com ferro quente em forma de
‘F’ quando presos pela primeira vez, e tivessem uma orelha cortada na reincidência. Três dias mais tarde,
uma provisão régia especifica que um reduto de cinco escravos foragidos constituía um quilombo nos
termos da lei” (ALENCASTRO, 2006:345).
Esta passagem demonstra muito bem como era exercido o poder punitivo no
Sistema Colonial, ou seja, por meio de senhores de engenho que pagavam recompensas
aos perseguidores de escravos fugitivos. Porém, não eram somente os fugitivos os
suscetíveis às capturas, pois numa relação de poder em que a Justiça era aplicada
segundo privilégios dos brancos, ocorriam alguns equívocos em torno destas práticas.
Um destes é apresentado na abertura do filme “Quanto vale ou é por quilo?”, de Sérgio
Bianchi, na qual é encenado um fato registrado no Arquivo Nacional. Nela, um escravo
é roubado de sua proprietária, uma negra alforriada, que, aos berros, vai exigir sua
devolução, batendo à porta do senhor de terras que cometeu o crime. A decisão do juiz,
entretanto, pune a negra por “perturbação da ordem” sem punir o roubo do escravo,
exemplificando como arbitrariedades podem ocorrer sobre bases legais quando os
critérios de aplicação da Justiça são desiguais para os desiguais, ainda que ambos
fossem proprietários de escravos, fato que se repete até a atualidade.
5
Escravos refugiados nos quilombos. No século XVII, no interior do Alagoas, o Quilombo dos
Palmares formou uma República de negros fugitivos.
19
Esses exemplos descrevem todo o cerco construído, praticamente
impossibilitando os escravos de conseguirem a liberdade. Mesmo as famílias de negros
alforriados corriam o risco de serem consideradas quilombolas, pois estavam sujeitas à
captura, cativeiro e massacre:
“a criminalização da fuga de escravos negros se transforma numa ameaça mortal a todo núcleo
autônomo de negros livres no território brasileiro. Para tais pessoas, tais famílias, a melhor garantia à
preservação da liberdade consistia em aceita-la como uma liberdade relativa, prestando serviços ao
fazendeiro ou senhor de engenho que reconhecesse e garantisse seu estatuto de não-escravo”
(ALENCASTRO,2006:345-6).
Esclarecendo acerca do que chamou de a invenção do mulato”, Alencastro
aponta que a pecuária favoreceu o surgimento de uma camada social livre e mestiça,
formada por curraleiros, cablocos, mulatos e cafuzos do São Francisco e do Maranhão.
Estes tiveram um papel importante nas guerras contra os índios, no repovoamento dos
sertões e na segurança do território colonial. Por diversas vezes, regimentos constituídos
de mestiços, formados em princípio para lutar contra os invasores holandeses,
combateram o Quilombo dos Palmares. Mesmo após a morte de Zumbi, foi o “terço dos
henriques”
6
, comandado por um mulato, que perseguiu e matou seu irmão:
“A miscigenação, as dimensões do território, o medo da grande quantidade de escravos e a
necessidade de uma mão de obra mais qualificada, levaram à formação militar pelos mestiços na tarefa da
segurança do território colonial. Tanto que, após a morte de Zumbi, seu irmão, Camoanga, é morto em
1700 por uma tropa comandada pelo mulato Domingos Rodrigues Carneiro” (ALENCASTRO,
2006:346).
Diante da violência da escravidão, a miscigenação representava uma saída. Além
de ser uma medida de segurança diante da privação da liberdade, a mestiçagem
favorecia a eliminação de barreiras à ascensão social. Aos brancos, por sua vez,
interessava utilizar essa camada social para vigiar e capturar os negros escravos.
“Compactuada pela sujeição voluntária, a aproximação dos negros livres à comunidade patriarcal
brasílica favorece a mestiçagem biológica, ou seja, a miscigenação entre os dois grupos. Obviamente,
trata-se de relações radicalmente hierarquizadas. O padrão do intercurso inter-racial rola num sentido:
6
O Terço de Henriques abarcava as tropas formadas por mulatos, mestiços e negros livres e libertados,
tendo um uniforme próprio distinto dos outros terços (Souza, 1998)
20
o grupo dominante branco fornece sempre o genitor e mais raramente o marido, enquanto a comunidade
negra, dominada, cede sempre a mãe, e mais raramente a esposa. Desde logo, a miscigenação se combina
com a aculturação para dar lugar ao processo social de mestiçagem” (ALENCASTRO, 2006:345-6).
Pode-se identificar, em grupos mestiços, tais como o do “Terço dos Henriques”,
um dos embriões da polícia, cuja criação institucional ocorreu posteriormente, em 1808,
com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil. Deste modo, em muitos lugares,
havia ajudantes armados autorizados pelo próprio governo, além de destacamentos do
Exército, milícias de moradores, proprietários, ou ordenanças locais que compunham o
sistema punitivo em caso de movimentação social. As milícias e ordenanças não eram
consideradas forças de combate, como o Exército, mas seus membros gozavam de
prestígio, pois eram homens livres, considerados, portanto, de “boa reputação”. Tais
pessoas faziam parte de grupos armados para defenderem suas famílias de pequenos
crimes.
Recorda-se que a estrutura de Estado estabeleceu-se somente em 1548, diante da
necessidade de coordenar as iniciativas de povoamento produtivo. Reside um dos
fatores para a formação de um comportamento personalista, onde o Estado esteve
sempre a serviço dos donos das terras e seus aliados. Cria-se então uma concepção de
comportamento onde a noção de direitos e deveres é de difícil compreensão material e
estrutural, pois que a mesma não foi conquistada e não possui bases políticas e
históricas. Assim, por o fazerem parte de nosso processo histórico, as leis são
obedecidas apenas de maneira formal, sem raízes nas estruturas materiais, tema a que se
refere os capítulos anterior e seguinte, amplamente abordado pelas Ciências Sociais
7
no
Brasil.
Chegando tardiamente, as instituições diretamente ligadas à Coroa Portuguesa
tiveram que se integrar a uma realidade estabelecida, pois aquelas terras tinham
sido divididas em Capitanias Hereditárias cujos donatários exerciam seu Poder Punitivo.
7
Um importante exemplo consiste na obra do antropólogo Roberto Damatta onde estudou temas como
o 'jeitinho brasileiro', dentre outros. 'A casa e a rua' é um de seus livros em que esta temática se faz
presente.
21
Mesmo desde a instauração do Governo Geral, em 1548, as estruturas da metrópole
absolutista penetraram, mas não conseguiram impedir o exercício do poder punitivo
doméstico vigente. Zaffaroni e Batista identificam, nas Capitanias Hereditárias, um
modelo jurisdicional “feudal” que ia na contramão do processo histórico de constituição
dos Estados Nacionais, ao qual corresponde um represamento centralizado de poder
punitivo (ZAFFARONI e BATISTA, 2003:416).
Enfim, no período colonial, as relações punitivas na colonização brasileira eram
regidas, no início, basicamente, pelo Direito Penal Doméstico, cuja raiz situava-se nos
donatários das Capitanias Hereditárias. Ao poder punitivo doméstico, exercido pelos
senhores dos escravos, em suas propriedades, nas ruas, somava-se o papel das
instituições oficiais, que era o da vigilância e punição dos escravos, conforme descrito,
acerca das últimas décadas do período colonial:
“(...) Uma conclusão que se pode tirar dos registros de 1810-21 é que o intendente, sua equipe e
a Guarda Real que patrulhava as ruas em seu nome gastavam a maior parte de seu tempo tentando manter
na linha os escravos. A polícia também prendia ladrões e apartava brigas, mas seu forte era capturar
escravos fugitivos, impedir que grupos de escravos e negros livres se reunissem nas ruas ou agissem de
maneira que a patrulha policial considerasse suspeita, desordeira ou desrespeitosa, e apreender quaisquer
instrumentos que pudessem ser usados como armas por essa mesma categoria de pessoas”
(HOLLOWAY, 1997:54-5).
Num momento seguinte, em 1830, entrando em vigor a primeira legislação penal
brasileira, o Código Criminal do Império, o escravo acumula duas condições, o que
evidencia o artigo 60 do mesmo:
“Art. 60. Se o o fôr escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será
condemnado na de açoutes, e, depois de os soffrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazêl-o
com um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoutes será fixado na sentença; e
o escravo não poderá levar por dia mais de cincoenta” (PIERANGELI, 2004:243).
Este artigo demonstra que, para o poder punitivo doméstico, o escravo era
considerado como uma coisa e para o sistema punitivo público, como réu, ou seja,
gente, de maneira que passaram a se somar as respectivas penas.
22
3. Contexto Internacional e Independência do Brasil
A fim de analisar a transição para a Independência e a esfera das práticas
punitivas, é necessário traçar brevemente o contexto internacional daquela época. Na
Europa e na América do Norte, eclodiram as Revoluções Burguesas Revolução
Industrial, Independência das Treze Colônias e Revolução Francesa. Estruturada como
classe social e possuidora de poder econômico, a partir destas revoluções, a burguesia
alcançou o poder político.
Todavia, embora situado no continente europeu, Portugal não fazia parte do
epicentro dos acontecimentos revolucionários que inauguraram a Idade Contemporânea.
Rever o que acontecia no universo de nossos colonizadores ajuda a compreender, no
esteio da realidade ibérica, a formação histórica e ideológica do Brasil e nossas fortes e
atuais raízes absolutistas. Relacionamos, assim, a posição da Coroa Portuguesa, no
Brasil e na Europa, e o processo de luta contra o Antigo Regime.
As raízes das mudanças políticas que viriam a desencadear as Revoluções
Burguesas podem ser identificadas na “Carta do João Sem Terra”, assinada na
Inglaterra, em 1215, considerada a primeira Constituição da Era Moderna. Foi assim
chamada, porque representou a vitória contra a nobreza e o clero, únicos proprietários
de terras naquele tempo. A Carta consta de muitos Direitos Humanos de Primeira
Geração, como o de ser julgado criminalmente por seus pares e um juízo natural.
Séculos mais tarde, aquele país viveu uma crise política que culminou com a
condenação do rei Carlos I à morte (1649) e, após a Revolução Gloriosa, em 1689, foi
instaurado o regime de Monarquia Parlamentarista. Além disso, a Revolução Industrial,
por volta de 1760, modificaria de maneira brutal os rumos da história mundial.
Em 1776, com a Independência das Treze Colônias e a assinatura da Carta de
Virgínia, os Estados Unidos da América tornam-se a primeira Republica da Era
Moderna. Uma importante peculiaridade daquele país é que a Coroa Inglesa jamais se
23
estabeleceu no Novo Mundo. Por outro lado, recordando que a fundação das Treze
Colônias ocorreu ao longo dos séculos XVII e XVIII, não se pode negar que a herança
da decapitação do Rei Carlos I se fazia presente no imaginário daqueles colonos. Pode-
se identificar, na emblemática imagem do corte da cabeça do rei, a ruptura com a
monarquia e o novo espírito republicano dos norte-americanos.
Os acontecimentos históricos que constituem a derrubada do Antigo Regime, a
Revolução Francesa, o surgimento da nova sociedade civil burguesa, até a Comuna de
Paris, são significativos para a compreensão daquele momento, já que a França tornou-
se uma referência para as outras democracias burguesas surgidas posteriormente. Esse
processo ajuda a esclarecer a realidade daquele período.
Em todo o mundo, ao longo do século XIX, eclodiram movimentos operários.
Em 1848, foi publicado o “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, que exerceu
grande influência no operariado internacional. Neste contexto, foi fundada, em 1864,
em Londres, a primeira Associação Internacional dos Trabalhadores, com a direta
participação dos autores do manifesto.
Um acontecimento importante a ser mencionado é a experiência da Comuna de
Paris, ocorrida em 1871, considerada a primeira revolução operária mundial. Durante
sua vigência, estabeleceu-se uma gestão pública totalmente eleita e mobilizada, que
os mandatos eram imperativos e revogáveis. O sistema era de auto-gestão. Os operários
assumiram as oficinas e a emancipação feminina foi conquistada. O papel dos
estrangeiros foi reconhecido. A Comuna era internacional e denunciava o Estado-Nação
como uma abstração criada para esconder o domínio da burguesia sobre o Estado. O
Manifesto Comunista de 1848 de Marx e Engels, que influenciou as idéias da Comuna,
é assim finalizado: “Operários do mundo, uni-vos.”
Contudo, a Comuna durou somente 72 dias. Àquele tempo, já poderosa, a
burguesia capitalista francesa, entre o povo francês e os estrangeiros, preferiu aliar-se a
Bismarck e à burguesia prussiana. O exército francês havia sido engrossado pelos
24
prisioneiros de guerra libertados por Bismarck e Paris transformou-se em um grande
matadouro. O grau de violência contra os membros e simpatizantes da Comuna foi
impressionante.
A preferência da burguesia pelo inimigo estrangeiro e a mortandade do povo de
Paris deceparam qualquer resquício de laços existentes entre o povo e a burguesia,
aliados de primeira hora na derrubada da monarquia francesa. Durante o período entre o
início da Revolução Francesa, em 1789, até a Comuna de Paris, em 1871, a alta
burguesia havia se aliado ao povo, quando a ela interessava derrotar Monarquia, mas
logo depois usou a nobreza e o exército para acabar com a bandeira da igualdade do
povo. O massacre da Comuna representou a vitória final da burguesia francesa.
A referência à História da França demonstra, por um lado, que Portugal não era
palco dos acontecimentos revolucionários de luta pela igualdade, liberdade e
fraternidade. Por outro, não se pode dizer que esses acontecimentos não afetaram o país,
pois a própria vinda da família real para o Brasil, em 1808, foi diretamente causada por
Napoleão. Após os tempos gloriosos dos descobrimentos, Portugal entrara em franca
decadência, passando a ocupar uma posição periférica no contexto europeu.
Nosso colonizador passou ao largo do processo ocorrido em seu continente e nos
Estados Unidos. Portugal o foi palco das Revoluções Burguesas e passou por um
processo de industrialização tardio. Em 1908, o rei português Carlos I foi assassinado
num atentado e, somente em 1910, Portugal tornou-se uma República. Enquanto o
Brasil respirava absolutismo, a Europa além-Pirineus havia rompido com o antigo
regime e vivido, ao final do século XIX, até uma revolução de inspiração socialista.
Observa-se, portanto, que as influências republicanas e democráticas ficaram bem
distantes do nosso conhecimento.
Apesar de inúmeras rebeliões e contestações com relação à metrópole e à
monarquia, as quais não mencionaremos aqui, o fato é que, no Brasil, a independência
foi proclamada sem violência e, mesmo independente, tornou-se uma Monarquia
25
Constitucional, em que se fazia presente o Poder Moderador, exclusivo do Imperador. O
histórico de um Poder Executivo altamente centralizador deixou seus indícios nas
recentes figuras do Decreto-Lei da Ditadura Militar e da ainda vigente Medida
Provisória. Sérgio Buarque de Holanda identificou no autoritarismo dos governos dos
países ibéricos um sintoma de um certo tipo de mentalidade que lhes é peculiar:
“Porque, na verdade, as doutrinas que apregoam o livre arbítrio e a responsabilidade pessoal são
tudo, menos favorecedoras da associação entre os homens. Nas nações ibéricas, à falta dessa
racionalização da vida, que tão cedo experimentaram algumas terras protestantes, o princípio unificador
foi sempre representado pelos governos. Nelas predominou, incessantemente, o tipo de organização
política artificialmente mantida por uma força exterior, que, nos tempos modernos, encontrou uma das
suas formas características nas ditaduras militares’ (BUARQUE DE HOLANDA,1982:9).
A Coroa Portuguesa fixou-se durante um importante período no Brasil. Quando
embarcou para o Brasil, novembro de 1807, fugindo das tropas de Napoleão que se
aproximavam de Lisboa, a Família Real convivia com elementos ideológicos
contraditórios. havia ocorrido, em Portugal, as Reformas Pombalinas, de conteúdo
liberal. Por outro lado, as permanências monarquistas eram evidentes, que a Corte
Portuguesa não aceitara abrir mão da vida monárquica e preferiu o “exílio”. A figura
política do “despotismo esclarecido”
8
sintetiza esta contradição, acerca da qual Gizlene
Neder afirma:
“No entanto, os aspectos conservadores da modernização de corte pombalino implicaram, do
ponto de vista ideológico, político e social, a manutenção de um padrão de controle social rígido e
hierarquizado, bastante distante da filosofia e do ideário das luzes; excludente e bem distante de regimes
burgueses modernos (que se estabeleceram na França e na Inglaterra, por exemplo) (NEDER, 2000:110).”
Na realidade, a monarquia desejava, do liberalismo, apenas a fachada.
Modificava, por exemplo, a linguagem jurídica, sem perder o conteúdo absolutista. No
Brasil, ficou bem clara a acumulação de uma aparência liberal e de um conteúdo
monárquico e escravocrata. Além disso, a partir do século XVIII, o Brasil passou a
representar um papel importantíssimo para a economia da metrópole. Se o aparente
8
Política Reformista que adotava a fraseologia do Iluminismo para empreender a modernização de
seus Estados; tratava-se de adaptar alguns princípios novos a Estados de condições sócio-econômicas
e políticas atrasadas. Os principais déspotas escarecidos foram José II, da Áustria, Catarina II, da
Rússia, o Marquês de Pombal, em Portugal, Frederico II, da Prússia, e Carlos III, da Espanha (Aquino,
1983:112)
26
liberalismo estava em voga na metrópole, a opressão sobre a colônia aumentou, à
medida que “uma série de reformas inspiradas no despotismo esclarecido tornou o
controle português mais penetrante, eficiente e opressivo para o nativismo brasileiro
emergente”(HOLLOWAY,1997:44).
Juntamente com a Rainha e o Príncipe Regente, vieram todo o Estado
Monárquico português e diversas embarcações particulares permitidas pelo aparelho
administrativo e burocrático. Nas naus navegaram tesouro, repartições, secretarias,
tribunais, arquivos e funcionários. Nobres, Ministros de Estado, conselheiros, oficiais,
médicos, padres e desembargadores integravam uma lista de 536 passageiros. Estima-se
que, ao todo, vieram 15 mil pessoas. Esses portugueses se depararam com uma cidade
cuja maioria da população era formada de escravos, o que muito os assustou:
‘Ao chegarem ao Rio, em 1808, os membros da comitiva real portuguesa, que em sua grande
maioria conheciam a capital da colônia por meio de relatórios administrativos e balancetes, se
depararam com uma população hostil e perigosa e com o espaço público da cidade ocupado por escravos
africanos como nunca tinham visto em sua pátria. Uma das instituições que eles trouxeram de Lisboa foi a
Intendência Geral da Polícia, criada em 1762 como uma das reformas do absolutismo esclarecido. O
gabinete do intendente no Rio de Janeiro, estabelecido em 1808, e complementado no ano seguinte com
um corpo de polícia militarizada, serviu de base às demais instituições policiais da cidade. O governo
respondeu ao desafio de manter sob controle os habitantes do Rio de Janeiro com um aparato repressor
que cresceu na mesma medida que o problema para cuja solução fora criado’ (Idem Ibidem:41).
Além do âmbito da segurança pessoal e coletiva, o intendente também era
responsável pelas obras públicas e pela garantia de abastecimento de água e iluminação
para a cidade. Estas atividades eram relacionadas economicamente, à medida que “o
intendente de polícia, na qualidade de supervisor de obras públicas, tinha nos presos um
fluxo contínuo de mão-de-obra, que ele podia transferir da cela da cadeia ou do
pelourinho para as obras da estrada” (Idem Ibidem:53), em sua mesma esfera de ação
administrativa.
O primeiro intendente da polícia foi Paulo Fernandes Viana, tendo ocupado o
cargo até fevereiro de 1821, quando foi afastado por pressão de um movimento liberal.
Viana implementara a política de confisco de casas particulares que serviram aos
membros do secto real, o que havia trazido grande descontentamento aos habitantes
27
nativos do Rio de Janeiro. Em 1809, foi criada a Guarda Real de Polícia, cujos salários e
uniformes, assim como os da Intendência, eram financiados pelos impostos sobre
serviços e taxas cobrados pelo intendente. A função da Guarda Real era manter a
tranqüilidade da ordem pública e o patrulhamento da cidade. Seu membro mais famoso
foi Miguel Nunes Vidigal, considerado o terror dos chamados vadios e ociosos”, em
sua maioria, escravos que freqüentavam os “batuques” nos arredores da cidade. Sua
principal função relacionava-se à “polícia de costumes”, o que significava reprimir as
festas com cachaça e músicas afro-brasileiras. Os membros da Guarda Real, escolhidos
em função de seu tamanho e truculência, já começavam a substituir a antiga função dos
capitães-do-mato. Ataques a quilombos situados nos morros que rodeavam a cidade
eram uma das principais atividades repressivas. Uma das proezas mais decantadas por
Vidigal foi ter prendido mais de 200 prisioneiros, dentre homens, mulheres e crianças,
num quilombo do Morro de Santa Teresa (Idem Ibidem:46-7).
“Esses ataques brutais tornaram-se conhecidos no folclore da cidade como 'ceias de camarão',
alusão à necessidade de descascar o crustáceo para se chegar à sua carne cor-de-rosa. Em vez do sabre
militar comum, o equipamento normal de Vidigal e seus granadeiros era um chicote de haste longa e
pesada, com tiras de couro crú em uma das extremidades, o qual podia ser usado como cacete ou chibata”
(Idem Ibidem: 49).
Em abril de 1821, antes do retorno de Dom João VI a Portugal, como uma das
exigência de manifestações públicas, Paulo Fernandes Viana saiu da Intendência. O
espírito liberal e anti-português começava a tomar conta do país. Em suma, a polícia
brasileira surgiu, institucionalmente, em 1808, mas foi construída sem qualquer limite,
que uma lei penal propriamente dita somente entrou em vigor em 1830. Esta
instituição foi criada no contexto de um regime absolutista, no episódio da vinda da
família real para o Brasil, então colônia de Portugal.
Mesmo na metrópole, onde vigorava o despotismo esclarecido, onde foi criada a
Intendência que lhe deu origem, existiam limites legais liberais estabelecidos pelas
Reformas Pombalinas, de modo que se podem identificar a presença dos Direitos
Individuais, o que aqui não ocorreu. Pelo contrário, a repercussão das Reformas
Pombalinas na colônia era justamente sua outra face, traduzida num aumento da
28
fiscalização e da repressão. Desde a criação da Intendência Geral da Polícia e da Guarda
Real de Polícia até a partida de Dom João VI em 1821, as leis criminais que vigoravam
no Brasil seriam as do Livro V das Ordenações Filipinas. No entanto, as leis eram
editadas pela polícia e o regime era totalmente absolutista, o que é confirmado por
Holloway:
“Um edital da polícia, de dezembro de 1816, especificava que todo o escravo encontrado com
uma faca ou um canivete, ou qualquer instrumento de ferro ou mesmo um pau pontudo que pudesse ferir
ou matar, mesmo sem ter cometido esses delitos, receberia 300 açoites e seria condenado a três meses de
trabalho em obras públicas” (op cit:47).
Para se ter uma idéia da brutalidade das normas absolutistas no Brasil, é
emblemática a comparação com um relatório do estado de Virgínia, Estados Unidos, em
1825, onde o maior castigo a um escravo consistia em 39 açoites pelo furto de um par
de botas:
“As penas eram brutalmente severas, por menores que fossem as infrações, até mesmo pelo padrão
das décadas seguintes e em comparação com a escravidão urbana em outros lugares. Contrastando com a
norma de aplicar 100 a 300 açoites por pequenos crimes no Rio de Janeiro, o raro seguidos de vários
meses de trabalho forçado em grilhões, vem do sul dos Estados Unidos o seguinte relatório de crimes e
castigos de escravos em Richmond, Virgínia, em 1825: “Furto de três dólares, 20 açoites; três cobertores,
15, quatro dólares, 25; vestido de algodão, 15 açoites; par de botas, 39; leito de pernas 10”. Se a
escravidão no Brasil patrimonial e católico era mais branda do que nos Estados Unidos capitalista e
protestante, tal diferença dificilmente se estenderia aos castigos impostos aos escravos urbanos por
pequenos crimes” (op. cit.:55).
Ou seja, se compararmos com o sul dos Estados Unidos, vamos observar que os
açoites brasileiros chegavam a assumir o risco de matar o escravo. Se levarmos em
consideração o que ocorria antes do Código Criminal do Império, de 1830, pode-se até
dizer que este representou um avanço, porque a prática era a aplicação de 100 a 300
açoites para pequenos crimes, pelo Intendente da Polícia e a Guarda Real.
Para abordarmos o Império, convém recordar que o processo que culminou na
Independência avançou em etapas, e teve na transferência da família Real Portuguesa,
em 1808, um dos primeiros passos, até o importante marco representado pela
Abdicação de Dom Pedro I, em 1831. Além de todas as medidas tomadas por D.João
VI, que traziam um novo status ao Brasil, elevado à condição de Reino Unido, também
29
contribuiu para a independência, o descontentamento daqueles que tiveram que ceder
suas casas ao aparelho burocrático português.
Encerradas as guerras napoleônicas, em 1820, Portugal viveu uma crise em que
foi detonado um movimento liderado por militares, intelectuais e burgueses de Porto,
chamados “Sinédrios”. Em setembro daquele ano, militares de Lisboa aderiram ao
movimento, presos foram libertados e foi convocada a primeira eleição da história de
Portugal. A Junta Provisional revolucionária proclamou a soberania da nação sobre o rei
e o intimou que retornasse a Lisboa. Em 26 de fevereiro de 1821, Dom João VI foi
forçado a jurar uma Constituição que ainda não existia. Logo depois retornou a Portugal
com os fundos do Banco do Brasil e deixou aqui, como regente, seu primeiro filho,
Pedro de Bragança e Bourbon. Este era influenciado pelas idéias liberais e, ao mesmo
tempo, tinha que administrar uma crise entre os partidos brasileiro e português, o
primeiro integrado por liberais, republicanos, e o segundo, em sua maioria, por senhores
de terra e escravos. Todos os fatos relatados tiveram direta influência numa crise
institucional que desembocou no “Grito do Ipiranga”, proclamado por Dom Pedro em 7
de setembro de 1822.
Menos de um mês depois de assumir a regência, Dom Pedro I decretou que
ninguém poderia ser preso senão em flagrante ou por ordem judicial, que as acusações
deveriam ser propostas até 48 horas após a prisão e que ninguém seria encarcerado
senão por decisão do Tribunal, além de proibir o uso de grilhões, correntes e tortura
como punição, com o adendo de que tais direitos não serviriam para os escravos. Em
1824, D. Pedro I outorgava o primeira Constituição do Brasil, contraditoriamente
chamada de liberal e tendo sido outorgada. Em suma, no Império, o Código Criminal de
1830 - claramente escravocrata e absolutista - conviveu com a Constituição de 1824 -
onde estavam insculpidos os Direitos Humanos de Primeira Geração, de modo que estas
duas legislações traziam princípios antagônicos. Da primeira, pode ser citada a
crueldade das penas de galés: “Art. 44. A pena de galés sujeitará os réos a andarem de
calcete no e corrente de ferro, juntos ou separados, e a empregarem nos trabalhos
públicos da província onde tiver sido commettido o delicto, á disposição do governo”.
30
Além disso, o artigo 46 determinava o trabalho forçado dentro das prisões, ao
contrário da pena de galés que era pública. Mas o artigo 60 mostra que os direitos
individuais, como o princípio da reserva legal do primeiro artigo e os diversos incisos
do artigo 179 da Constituição de 1824, eram apenas fachada, aos quais vieram se juntar
antigas formas de punir, sem as substituir, como mencionado no final do capítulo
anterior, no que diz respeito às duas condições do escravo, enquanto coisa e enquanto
réu.
As contradições de nossa história são bem claras ao longo destes anos. Dom
João VI havia sido obrigado a jurar uma Constituição ainda não concluída e, em junho
do mesmo ano, uma tropa do Rio de Janeiro fez uma exigência semelhante ao príncipe
regente. Em março de 1824, Dom Pedro I dissolveu a Assembléia Constituinte para
promulgar a primeira Constituição brasileira, que é a do Império, chamada ainda de
liberal.
Embora as elites brasileiras tivessem apoiado o movimento de Independência de
Portugal, as mesmas não desejavam uma ruptura nos moldes da sociedade colonial.
Estavam, evidentemente, interessadas na manutenção da estabilidade e da paz social. Ao
mesmo tempo em que aceitavam e desejavam a Independência, temiam a ameaça
representada pelo grande contingente populacional de negros, conforme descrito por
Holloway:
“Com quase metade da população escravizada, toda a atividade econômica, afora a lavoura de
subsistência dos camponeses, baseada na mão-de-obra escrava, e a rebelião escrava de São Domingos
9
,
ainda fresca na mente da classe dominante, era importante evitar uma ruptura política no processo de
separação de Portugal. A Independência contribuiu para uma posição política conservadora, envolvendo
mudanças institucionais gradativas, poupando o país da destruição, das animosidades e do caos que uma
guerra civil de grandes proporções teria acarretado” (HOLLOWAY,1997:45)”.
O golpe liberal de fevereiro de 1821 exigiu o afastamento do intendente Viana,
claramente identificado com o absolutismo real. Em abril de 1821, antes do retorno de
Dom Joao VI a Portugal, diante de exigências das manifestações públicas, Paulo
Fernandes Viana saiu da Intendência. O Príncipe Regente Dom Pedro I foi deixado por
9
31
seu pai. O espírito liberal e anti-português começava a tomar conta do país. Observemos
as contradições: ao mesmo tempo em que Viana era afastado, Vidigal, com toda sua
truculência, foi promovido a General no ano seguinte e aposentou-se com honras e a
patente de Marechal de campo, em 1824. Isso demonstra que mesmo os liberais
homenageavam o “chicote” escravocrata. Fica evidente que, apesar de ter sido oriundo
de uma guarda criada para a proteção da família real e de toda a sua corte, os liberais
consideravam necessária a crueldade da Guarda Real, a fim de manter em ordem e sob
seu domínio o grande contingente de população de escravos. No trecho que se segue,
Holloway faz uma síntese dessa situação:
“As polícias civil e militar do Império tiveram como precursoras a Intendência Geral da Polícia,
criada em 1808, e a Guarda Real de Polícia, fundada no ano seguinte, instituições que representaram, de
certa maneira, a formalização de práticas que vinham da era colonial. Houve, portanto, considerável
continuidade no funcionamento das novas estruturas que emergiram do caldeirão de 1831/32”
(HOLLOWAY, 1997:74)”.
A Independência seria apenas relativamente concretizada com a abdicação de
Dom Pedro I em 7 abril de 1831. Tradicionalmente, as elites sempre se aliaram em
defesa de uma suposta 'ordem pública'. O falso discurso em que as elites se colocam
como timas da violência urbana não é novidade. Vários embates dominaram as ruas
da capital neste período, culminando com a criação da Guarda Municipal e Nacional,
em 1831. Tais instituições eram paramilitares e poderiam se alistar a elas quem
tivesse uma renda mínima e não fosse ex-escravo. Esta estrutura surgiu do embate do
movimento nativista contra grupos favoráveis aos portugueses. A Intendência de Polícia
e a Guarda Real perderam a autoridade junto com Dom Pedro I. Os juízes de paz
constituíam uma nova estrutura que surgia sob um pensamento liberal. Estes lideraram
uma multidão que ocupara o Campo de Santana em 6 de abril de 1831, antecipando a
abdicação, em 7 de abril.
Dom Pedro I recusou as exigência de trocar os conselheiros pró-portugueses por
um Ministério formado por brasileiros. A proposta de reduzir o exército de 30 mil
homens para 12 mil também gerou a insatisfação nas ruas. Cabe recordar que, com o
32
fim da figura do capitão-do-mato, seus representantes continuaram ora integrando essas
novas instituições oficiais ora passando a fazer parte de uma estrutura informal de
repressão, sob a figura dos “jagunços” da fazenda e outras formas particulares. Fazendo
um salto até o presente, a acumulação e perpetuação, ao longo das épocas, de uma
estrutura informal, pode ser apontada pela existência de 150 mil seguranças ilegais no
Estado do Rio de Janeiro
10
(Jornal “O Globo”, 04/05/2006).
10
Hoje, no Rio de Janeiro, começam a se formar milícias que fazem 'justiça pelas próprias mãos' matando
jovens, em sua maioria, negros, a chamada 'polícia mineira'. Retornaremos ao tema adiante.
33
4. República, Positivismo e Assepsia Social
'(os casarões) (...) iam sendo rapidamente cobertos por uma densa concentração de barracos de
madeira, erguidos pela população despejada pelo novo projeto urbanístico republicano. (...) dei num
outro mundo. A iluminação desaparecera. Estávamos na roça, no sertão, longe da cidade. O caminho
serpeava descendo era ora estreito, ora longo, mas cheio de depressões e de buracos. De um lado e de
outro, casinhas estreitas, feitas de tábuas de caixão (...). como se criou ali aquela curiosa vila de miséria
indolente? O certo é que hoje há, talvez, mais de quinhentas casas e cerca de mil e quinhentas pessoas
abrigadas lá por cima. (...) todas são feitas sobre o chão'. (João do Rio, citado por Sevcenko, 542)
34
Neste ponto, enfatizamos, ao longo das transformações históricas relatadas, os
aspectos ideológicos que embasam a elaboração das leis. Segundo Michel Foucault,
com a passagem dos regimes monárquicos para os republicanos, o centro das
preocupações do poder punitivo deixou de focalizar na figura do rei e voltou-se para a
proteção do “corpo social”. Buscando a assepsia
11
da sociedade, modificavam-se as
respectivas formas de segregar os excluídos, a partir da adoção de novas medidas de
controle social. Princípios básicos da República, essas receitas terapêuticas” para a
sociedade incluíam a eliminação dos doentes, o controle dos contagiosos, a exclusão
dos delinqüentes (FOUCAULT, 1979:37).
No Brasil, a implantação de medidas deste tipo foi fundamentada pelo
pensamento positivista e sua base supostamente científica. O positivismo chegou ao
Brasil na onda de valores que permearam as grandes mudanças ocorridas no final do
século XIX e que desembocaram na Abolição da Escravatura e na Proclamação da
República. Esta ocorreu no contexto de um movimento de enfraquecimento da
tradicional oligarquia escravocrata somado à aliança entre militares inflados pelos ideais
positivistas e setores economicamente emergentes ainda excluídos de participação
política no Brasil Imperial da segunda metade do século XIX.
Dentre as reações ao novo regime, por razões e aspirações diversas, podem ser
citadas a “Revolução Federalista”(1892), no Rio Grande do Sul, a “Revolta da Armada”
(1893), que lutava contra medidas do governo Floriano Peixoto - ambas sufocadas e
massacradas por tropas legalistas em 1894 - e a “Guerra de Canudos”, em que Antônio
Conselheiro, der religioso local que pregava um sistema de vida comunitária e
independente, considerado um foco de resistência ao governo republicano, foi degolado
em 1897, quando Canudos foi incendiado num sangrento massacre
12
(VERSIANI,
2002).
11
Assepsia: Conjunto das medidas adotadas para evitar a chegada de germes a local que não os
contenha (Ferreira, 1986:184). Limpeza.
12
Após a degola, o crânio de Antônio Conselheiro foi enviado para exames médico-legais e
antropológicos, em Salvador. Estes foram realizados por Nina Rodrigues e de Oliveira que,
influenciados pelo pensamento lombrosiano, nele buscariam os estigmas do 'criminoso nato'
(MOURA, 2004).
35
Iniciado o novo sistema político, a primeira Constituição republicana teve como
modelo a Constituição dos Estados Unidos da América, introduzindo o presidencialismo
e o federalismo, além de consagrar o regime representativo de eleições diretas,
excluindo analfabetos, mulheres, soldados, integrantes de ordens religiosas e menores
de vinte e um anos. A marca do positivismo mantém-se presente até hoje no lema da
bandeira brasileira que trás os dizeres “Ordem e Progresso”.
No campo do Direito Penal, o positivismo possui fortes laços com o pensamento
de Lombroso (1835-1909), criminologista italiano cujas teorias buscavam relacionar
traços físicos das pessoas a seus aspectos mentais e de comportamento. Segundo ele,
características tais como o tamanho da mandíbula forneciam dados à psicopatologia
criminal. Apesar de inconsistentes, as teorias de Lombroso tiveram fortes influências na
Europa e no Brasil, entre criminologistas, juristas e médicos.
13
Ignorando a questão social, o positivismo apresenta diagnósticos e soluções para
casos isolados, culpabilizando o indivíduo e não o sistema, dando origem a uma forma
de pensar sensacionalista que muito agrada às classes privilegiadas. Com um manto
profundamente racional, trata-se de um discurso rasteiro e cil, conforme exposto a
seguir:
“No discurso do novo sistema penal, a inferioridade jurídica do escravismo será substituída por
uma inferioridade biológica; enquanto a primeira, a despeito de fundamentos legitimantes importados do
evolucionismo, podia reconhecer-se como mera decisão de poder, a segunda necessita de uma
demonstração científica. (...) poderíamos afirmar que o racismo tem uma explicável permanência no
discurso penalístico republicano, que se abebera nas fontes do positivismo criminológico italiano e
francês para realizar as duas funções assinaladas por Foucault: permitir um corte na população
administrada, e ressaltar que a neutralização dos inferiores é o que vai deixar a vida em geral mais sadia;
mais sadia e mais pura (ZAFFARONI e BATISTA,2003:443)”.
13
Lombroso inspirou-se em estudos genéticos e evolutivos no final do século XIX, propondo que os
criminosos possuíam evidências físicas de um "atavismo" (reaparição de características que foram
apresentadas somente em ascendentes distantes) de tipo hereditário, reminiscente de estágios mais
primitivos da evolução humana. Estas anomalias poderiam ser expressadas em termos de formas do
crânio e mandíbula, face e outras partes do corpo. Posteriormente, estas associações foram consideradas
altamente inconsistentes ou completamente inexistentes.
36
Deste modo, desde a Proclamação da República (1889) até a Revolução de 1930,
quando teve início a “Era Vargas”, a criminologia, enquanto ramo do saber, chegou ao
Brasil imersa no discurso positivista lombrosiano. Este discurso supostamente científico
sustentava origens etiológicas para o crime, ou seja, a existência de razões biológicas,
atávicas e até climáticas, que o clima quente seria propício para que determinados
tipos de pessoas não respeitassem a ordem. Ao explicar a origem dos revolucionários,
bandidos, alcoólatras, desempregados, mendigos e das prostitutas por meio de
características atávicas, o discurso lombrosiano visava uma assepsia da sociedade que
deveria ser protegida desses “elementos”.
Tendo chegado ao Brasil exatamente após a Abolição da Escravatura (1888), ele
caiu como uma luva no Brasil. Desse modo, abolida a escravidão, o etnocentrismo
deveria ser explicado dentro de um novo contexto, sobre as bases científicas da nova
forma de dominação, mais sutil, porém, também violenta, acumulando o poder punitivo
do período anterior. Se, oficialmente, os castigos aplicados no tempo da escravidão não
mais poderiam ser admitidos, no alvorecer do século XX, cresceu a preocupação com as
leis e sua cientificidade enquanto fundamentos do etnocentrismo.
Além disso, o positivismo chegou ao país num momento em que este se
adaptava, na condição de periferia, ao Sistema Capitalista Industrial que atropelava a
tudo como um trem. Seu discurso liberal e racional veio junto com novas relações de
produção e com a busca de mercado de consumo. Por isso, o discurso não deveria
coexistir com a escravidão, pois escravos não podiam consumir como os trabalhadores
assalariados. Mas a realidade é que as condições escravocratas permaneceram, tanto
que, até mais tarde, no Código Penal de 1940, ainda era necessário criminalizar a
escravidão, lei esta que ainda vigora, o que confirma a existência, até hoje, de milhares
de pessoas vivendo como escravos no Brasil:
“Art. 149 - Reduzir alguém à condição análoga à de escravo, submetendo-o a trabalhos forçados
ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por
qualquer meio, sua locomoção, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:
Pena reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à violência”
(Código Penal Brasileiro).
37
O fato é que a República instaurava outro discurso diante da nova realidade
brasileira, que tinha vergonha de mostrar a sua verdadeira face. Por isso, pode parecer
que a República não admitia conviver com tal “selvageria”, expondo inclusive a idéia de
que a modernidade era incompatível com esta brutalidade. Entretanto, esta realidade não
apenas não se extingüiu totalmente com a República, como ainda é muito atual no
neoliberalismo brasileiro “escravocrata”.
Certamente, foi grande a pressão da Inglaterra, desejosa de conquistar novos
mercados consumidores, cujos tratados com Portugal, em 1810, 1815 e 1817, previam
para breve o fim da escravidão no Brasil. Por decisão unilateral inglesa, em 1845, o
Aberdeen Act permitia que navios ingleses atacassem navios de traficantes até mesmo
em portos brasileiros. Contudo, o que fez com que as elites brasileiras realmente
cedessem às pressões pelo fim da escravidão foi a ameaça da própria sociedade,
evidenciada pelas rebeliões da senzala. O medo da africanização conseqüente à
importação de escravos, segundo visões preconceituosas da época, consistia num risco
para a segurança pública e afastava o Brasil das “rotas da civilização”.
Em 1835, a “Revolta dos Malês”, em Salvador, Bahia, aterrorizou os brancos, ao
descobrirem planos, escritos em árabes, que previam a morte de todos os brancos
imediatamente após a conquista do poder pelos escravos. De fato, o desequilíbrio entre
a população livre e cativa era enorme: no intervalo entre 1500 e 1822, enquanto vieram
cerca de um milhão de portugueses para o Brasil, vieram três milhões de africanos.
Entre 1821 e 1830, anualmente, chegavam cerca de 43 mil africanos para menos de mil
portugueses. Nas décadas seguintes, mesmo tendo aumentado o número de imigrantes
portugueses, este permaneceu inferior às médias anuais de africanos, entre 33 e 37 mil,
registradas até 1850. além disso, um em cada três portugueses, alguns anos após o que
se chamava fazer o Brasil, retornava a Portugal. Apesar da historiografia oficial ter
procurado camuflar a maioria de africanos como “povoadores forçados” do território
brasileiro, o fato é que os líderes e as elites percebiam esse predomínio e alertavam para
o risco constante das rebeliões escravas.
38
O “medo da africanização”, importado da civilizada Europa, somado à
necessidade de trabalhadores para a agricultura, estimulou a vinda dos imigrantes
europeus de modo que a sociedade brasileira o mais necessitasse de seus inimigos
domésticos (DEL PRIORE e VENÂNCIO, 2001:225-9).
Diante desses fatores, aproveitaram a nova realidade para “embranquecer” o
Brasil. O discurso adotado por muitos dos defensores da imigração européia é que a
mesma “aprimoraria” a sociedade brasileira. Se o desejo de liberdade dos ex-escravos
era considerado simplesmente uma “falta de vontade de trabalhar”, os negros, chamados
de vagabundos, por meio da convivência como os estrangeiros europeus aprenderiam o
espírito do homem livre e trabalhador. Como na Europa, no final do século XIX, o
desemprego e as más-condições de vida no campo consistiam em problemas seríssimos,
o governo brasileiro e fazendeiros paulistas aproveitavam para promover uma política
de estímulo à imigração.
Como foi dito, o novo modelo econômico era incompatível com a escravidão,
pois, se não recebiam salário, os escravos não podiam ser consumidores. As medidas
abolicionistas começaram a ser adotadas pelo governo brasileiro por volta de 1850,
quando subia o preço dos escravos de modo que tornava-se menos oneroso importar
mão-de-obra excedente da Europa. Parte do dinheiro dos fazendeiros empregado
anteriormente no tráfico negreiro passou a ser aplicado no pagamento de imigrantes
assalariados.
Recorda-se que, neste período, a Revolução Industrial havia gerado uma nova
massa de operários, desempregados e “sem-terras” na Europa, em especial, na
Inglaterra, Alemanha e Itália, que iniciaram um processo de deslocamento. Tanto para a
América do Norte como ao Brasil vieram milhares de europeus em busca de melhores
condições de vida.
Os avanços do transporte internacional, o “discurso do medo” das revoltas
negras e a carência de mão-de-obra para a lavoura de café foram alguns dos fatores que
39
impulsionaram o grande processo de imigração a partir de meados do século XIX.
Simultaneamente à expansão da lavoura cafeeira, na virada dos séculos XIX para o XX,
intensificaram-se as correntes imigratórias para o Brasil, constituída principalmente de
italianos.
Pode-se argumentar que não havia carência de mão-de-obra, que existiam
milhares de escravos libertados que não tinham trabalho. No entanto, o trauma da
escravidão era tamanho que, assim que libertados, os negros não queriam permanecer
nas mesmas terras. Campos relata que, aliviado da brutalidade que o mantinha sob a
mais dura repressão, o negro queria a liberdade, de modo que abandonava as
fazendas em que labutavam, à procura de terrenos baldios em que pudessem acampar,
livres como nos quilombos, plantando milho e mandioca para comer
(CAMPOS,2005:41-2).
Simultaneamente, buscava-se a construção de uma 'nação homogeneizada',
porém, levando os padrões da cultura européia às últimas conseqüências, de modo que o
negro não fazia parte deste projeto. Os ex-escravos o tinham mais lugar para a nova
realidade, mas estavam vivos e queriam viver. De qualquer forma, nunca existiu
qualquer política humanitária, nem para os imigrantes europeus, muito menos para os
afro-descendentes.
Recorda-se que a política criminal implantada pelo Estado era de extermínio dos
indígenas e, até meados do século XIX, escravidão para os negros. O processo de
‘embranquecimento’ e o início da industrialização, transformações de um país até então
eminentemente rural, trouxeram necessidades diferentes ao novo sistema, que precisava
mascarar a política punitiva com novas formas, contra tais imigrantes, mas carregando
suas raízes escravocratas.
A propaganda que os agentes faziam na Europa acerca das vantagens de vir
trabalhar nos cafezais paulistas não correspondia à realidade (CARNIER
JUNIOR,2000:32). Tanto que ocorreram revoltas, que se intensificaram com as más
40
condições de trabalho com o início da industrialização. Dentre os imigrantes, vieram
anarquistas e comunistas, chamados de “agitadores”. Seus pensamentos trouxeram um
novo problema para a ordem estabelecida. O poder punitivo do Estado foi tão violento
como no Império, mas de outra forma. Os brancos vinham com a esperança de buscar
melhores condições de vida e até promessa de terras. Mas não era isso que encontrava:
“Thomas Davatz, imigrante prussiano e um dos líderes da revolta da Fazenda Ibicaba, conseguiu
retornar ao seu país onde escreveu um livro narrando as condições de vida de um colono nas fazendas de
café. O livro gerou tanta indignação que, na década de 1850, o governo da Prússia (país extinto, hoje
correspondendo a parte do território da Alemanha) proibiu os seus cidadãos de emigrarem para o Brasil.
A Itália, em 1902, editou em decreto proibindo o pagamento de passagem pelo Estado aos italianos que
viessem para o Brasil” (CARNIER JUNIOR, 2000:18).
É importante recordar que os europeus trouxeram um novo sistema criminal,
com base nos Direitos Humanos de Primeira Geração, considerados até hoje uma
conquista, mesmo nos campos de concentração que são as cadeias brasileiras. Tratava-
se de um impasse, pois, embora provenientes de outra cultura, os imigrantes que aqui
chegavam eram submetidos ao Sistema Criminal que imperou legalmente até 1890,
quando foi revogado o Código Criminal do Império. Ao mesmo tempo em que
insculpia, em seu artigo primeiro, o “princípio da reserva legal”, este código previa as
penas de açoite e galés. Os fazendeiros brasileiros, por sua vez, carregavam (e ainda
carregam) em sua bagagem séculos de regime escravocrata, até hoje bem caracterizados
nos assassinatos de sem-terra pelo latifúndio, institucionalizado pela significativa
bancada ruralista do Congresso Nacional.
Os imigrantes não poderiam, por fortes razões culturais, aceitar a aplicação do
açoite, passando a existir uma nova ordem jurídica para os novos brasileiros. O Código
Criminal do Império, de 1830, era incompatível com a nova realidade social. Em 1890,
passou a vigorar o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil que, no artigo 44,
embora tenha acabado com as penas infamantes”, manteve a prisão com trabalho
obrigatório. Uma nova Ordem Jurídica Republicana fazia com que o Sistema Punitivo
passasse a se basear sobre os Direitos Humanos de Primeira Geração. Mas a prisão
como pena teria sido realmente um avanço em relação ao suplício ou seria um suplício
41
mascarado? O que ocorreu de fato no Brasil foi que o suplício da escravidão, ainda que
esta legalmente abolida, teria permanecido e a ele acumulado o novo sistema punitivo
da prisão celular.
A fim de demonstrar como a ideologia etnocêntrica fundamentada no
positivismo foi concretizada, merece destaque o programa criminalizante estabelecido
pelo capítulo VII da “Lei de Contravenções Penais”, o Decreto-Lei 3.688, de 3 de
outubro de 1941, que trata das Contravenções relativas à polícia de costumes. Ainda em
vigor, as contravenções se assemelham bastante às previstas na Parte IV do Código
Criminal do Império, no Livro VII do Código Penal de 1890 e no Livro III da
“Consolidação das Leis Penais” de 1932. Estas criminalizavam as condutas de “jogo de
azar e jogo do bicho, vadiagem, mendicância, embriaguês, perturbação da
tranqüilidade” e até a prática de “capoeira”, como as teses aprovadas pela Conferência
Jurídico-Policial de 1917:
“Jogo de azar
Art. 50. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, mediante o
pagamento de entrada ou sem ele:
Pena prisão simples, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa, estendendo-se os efeitos da condenação à
perda dos móveis e objetos de decoração do local.
Jogo do bicho
Art. 58. Explorar ou realizar a loteria denominada jogo do bicho, ou praticar qualquer ato
relativo à sua realização ou exploração:
Pena – prisão simples, de 4 (quatro) meses a 1 (um) ano, e multa.
Parágrafo único. Incorre na pena de multa aquele que participou da loteria, visando à obtenção de prêmio,
para si ou para terceiro.
Vadiagem
Art. 59. Entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que
lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita:
Pena – prisão simples de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
Parágrafo único. A aquisição superviente de renda, que assegure ao condenado meios bastantes de
subsistência, extingue a pena.
Mendicância
Art. 60. Mendigar, por ociosidade ou cupidez:
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses.
Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um sexto a um terço, se a contravenção é praticada:
α) de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento;
β) mediante simulação de moléstia ou deformidade;
χ) em companhia de alienado ou de menor de 18 anos.
42
Embriaguez
Art. 62. Apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha
em perigo a segurança própria ou alheia:
Pena – prisão simples, de 15 (quinze) dias a 3 (três) meses, ou multa.
Parágrafo único. Se habitual a embriaguez o contraventos é internado em casa de custódia e tratamento.
Pertubação da tranqüilidade
Art. 65. Molestar alguém ou perturbar-lhe a tranqüilidade, por acinte ou por motivo reprovável:
Pena: prisão simples, de 15 (quinze) dias a 2 (dois) meses, ou multa.” (Lei de Contravenções Penais’, o
Decreto-Lei 3.688, de 3 de outubro de 1941)”.
O Código Penal da República, de 1890, criminalizava, ainda, a prática da
capoeira, o que se manteve na “Consolidação das Leis Penais”, de 1932, evidenciando
motivações nitidamente racistas:
“art 402. Fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal, conhecidos pela
denominação de capoeiragem: andar em correrias, com armas ou instrumentos capazes de produzir uma
lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta ou incutindo
termos, ou algum mal:
Pena: de prisão celular de dois a seis meses.'
14
(Código Penal da República, de 1890)
“Capítulo XIII Dos vadios e capoeiras
Art 399. São comprehendidos neste capítulo:
§1º os individuos maiores, de qualquer sexo que, sem meios de subsistencia por fortuna propria ou
profissão, arte, officio, occupação legal e honesta em que ganhe a vida, vagarem pela cidade na
ociosidade. (...)
Art. 402. Os vadios e capoeiras que tiverem mais de dezoito annos e menos de vinte e um serão
recolhidos á Colonia Correccional pelo praso de um a cinco annos'' (Consolidação das Leis Penais',
1932).
Este programa criminalizante apontava suas armas aos pobres. Entretanto, não
somente os presídios, mas o próprio traçado urbanístico das cidades materializaria uma
intensificação de laços neocoloniais que reunia ao prodigioso afluxo de riquezas
correntes uma cruel exclusão social, com bases nitidamente raciais. Um fato que
evidenciou esse grande contraste entre destinos foi a febre reformadora que motivou o
célebre processo urbanístico de Regeneração” do Rio de Janeiro. Tanto no Distrito
Federal (Rio de Janeiro), quanto em outras importantes cidades do Brasil São Paulo,
Manaus, Belém e Fortaleza os projetos de reurbanização da chamada era do bota-
14
Num momento posterior da Era Vargas, a capoeira, além de deixar de ser criminalizada, passa a ser
utilizada como uma arte corporal ligada à identidade nacional brasileira e ensinada inclusive por
professores de Educação Física.
43
abaixo” viriam a derrubar a secular experiência de adaptação da arquitetura portuguesa
aos trópicos no espaço urbano colonial (DEL PRIORE e VENÂNCIO,2002:275-6).
Em 1903, o então prefeito do Rio de Janeiro Pereira Passos iniciou uma série de
obras visando à modernização da cidade e demolindo os antigos casarões, quiosques e
cortiços onde viviam os negros. Os poderes públicos impulsionavam, assim, a abertura
de largas avenidas, a construção de imitações de prédios europeus, ao mesmo tempo em
que milhares de famílias pobres, de negros, em sua maioria, eram expulsas dos
cortiços
15
das áreas centrais para lugares distantes ou para locais de difícil edificação,
aumentando a população das favelas dos morros locais. Ao mesmo tempo em que se
“embelezava”, a cidade inventava” a favela, denominação que surge, não por acaso,
concomitantemente ao termo pivette (Idem Ibidem,2001:275-6). Nesta época, enquanto
alguns subiam na escala social, outros, literalmente, “subiam”, porém, sendo expulsos
para os morros da cidade. Este novo cenário foi brilhantemente descrito por João do Rio
que, na citação no início deste capítulo, em sua moderna atuação como repórter, subiu
num desses morros.
Com sua obsessão pela idéia da comprovação científica do criminoso nato, o
positivismo lombrosiano ergueu um muro que escondeu, nas favelas, a escravidão
supostamente abolida. O massacre, legalmente terminado em 1888, passava a ser
explicado cientificamente e comprovado por pesquisas “empíricas”. Canta um samba-
enredo da Estação Primeira da Mangueira que, após a Abolição da Escravatura, o negro
passou a ser “preso na miséria da favela”
16
:
15
Estes casarões eram tão culturalmente ativos que chamava-se aquela região de 'Pequena África do Rio
de Janeiro'. Sob as bênçãos de Tia Ciata, criou-se um dos berços mais fecundos da cultura brasileira.
Despejada, aproveitando a experiência dos recém-chegados negros baianos, alguns deles provenientes
de Canudos, morro onde predominava o arbusto chamado 'faveleiro', a comunidade negra abriu o
matagal e subiu pelas encostas, onde montou os seus barracos, dando origem ao que veio a se chamar
'favela', onde continuou a 'tocar a vida' (www.afroreggae.com.br).
16
'PERGUNTE AO CRIADOR / QUEM PINTOU ESTA AQUARELA / LIVRE DO AÇOITE DA SENZALA
PRESO NA MISÉRIA DA FAVELA' (letra completa deste samba-enredo no início das 'Considerações
Finais')
44
Vítimas do racismo lombrosiano, os afro-descendentes seriam biologicamente
inferiores e, portanto, criminosos, da mesma maneira que as prostitutas, os vadios, os
loucos, os epiléticos, os mendigos, os bandidos, os comunistas, os anarquistas, os
revolucionários e os subversivos. Questões diversas, inclusive biológicas, serviam para
justificar a superioridade da raça branca. Todas as mentiras foram inventadas em torno
de um aparato racional para apoiar as barbaridades praticadas contra pessoas
classificadas como “desviantes”. Racionalizadas, as atrocidades demonstravam com
nitidez a crueldade desse discurso supostamente científico. A imposição da miséria
pode parecer irracional, mas o pior é que o discurso etnocêntrico racionaliza esta trágica
realidade. As palavras de Pedro Tórtima esclarecem este quadro:
“A eugenia fascista, que descarta da sociedade tipos raciais considerados de baixa extração
étnica como judeus, árabes, ciganos e negros que procedem da mesma forma em relação aos doentes
mentais, homossexuais e militantes de esquerda (e até mesmo de oposição ao regime fascista) teve uma
base ideológica longamente montada e curtida no conservadorismo da qual a prática penal da Escola
Positiva é uma das expressões ideológicas. Sabidamente, o fascismo, não somente enquanto teoria, visava
eliminar os elementos improdutivos da sociedade - desde os considerados inúteis, incapazes e inferiores
até os revolucionários” (TÓRTIMA, 2002:73).
Esta dinâmica representa a referida busca de assepsia da sociedade na
modernidade apontada por Foucault (1986). As práticas punitivas apontavam suas
armas à classe trabalhadora, principalmente os informais, em especial os negros. Devem
ser, portanto, interpretadas em conexão com o poder de seleção das agências do sistema,
onde entra a ideologia positivista etnocêntrica. A cor das vítimas do sistema punitivo
vem confirmar toda esta realidade histórica e seus instrumentos jurídicos. Tanto que,
algumas décadas depois, em 1950, no “Centro de Estudos de Medicina Social”, numa
conferência intitulada “A Criminalidade dos Homens de Côr no Brasil”, com base em
dados demográficos do recenseamento de 1940, acrescidos, da taxa média geométrica
de 2% para o último decênio, Nelson Hungria relatou que:
“O coeficiente de criminalidade dos homens de cor (negros e mulatos, isto é, mestiços de indo-
europeu e negro) é, no Brasil, comparativamente, muito maior que a população branca. No Distrito
Federal e alguns Estados, onde mais elevada é a percentagem demográfica dos homens de cor, embora
representando sensível minoria em relação aos brancos, são eles que contribuem com as cifras
culminantes nos quadros de estatística criminal. Assim, no Distrito Federal, em cuja população de
2.138.200 habitantes se contam 1.506.672 brancos e 631.528 homens de cor (248.845 pretos e 382.683
mulatos), a Penitenciária Central (com a seção para mulheres, de Bangu) e a Colônia Penal Cândido
45
Mendes hospedam atualmente 762 sentenciados brancos (entre os quais 29 mulheres) e 1170 homens de
cor (491 pretos e 679 mulatos, entre os quais 78 mulheres. Verifica-se, portanto, que, proporcionalmente,
os homens de cor praticam crimes com freqüência três e meia vezes maior que os brancos. Representam
30% da população e contribuem com 61% da criminalidade” (HUNGRIA,1959:289/291/302)
Ao constatar o exercício do biopoder pela elites brasileiras contra os índios, os
negros e os brancos pobres, ao longo do processo histórico de acumulação do poder de
punir, não se deve realizar uma disputa de quem foi mais massacrado ou explorado. Os
“subversivos”, anarquistas e comunistas, foram vítimas das raízes escravocratas,
inclusive, tendo sido alguns degredados do Brasil ou punidos pelo sistema punitivo da
República. Os negros, como os índios continuaram a ser açoitados e executados e
também passaram a ser condenados pelo novo sistema Republicano. A acumulação
punitiva se dava por vários modelos.
O positivismo racionalizou a realidade racista construída pelo etnocentrismo.
Por outro lado, as formas de punir se tornaram mais sofisticadas, com julgamentos, que
podem ser interpretados até como sofrimento. O aparelho de repressão do Estado foi se
formando nessas misturas de punições. Dependendo do valor da vida em questão, uma
determinada forma de punir é aplicada. O sistema de privação da liberdade unicamente
ou todos juntos, tortura, prisão e execução. Ainda hoje, quantas pessoas não são
executadas nas cadeias, sem falar fora delas?
No alvorecer do século XX, ao menos oficialmente, um castigo como o açoite
não mais poderia ser admitido. Conforme relatado, cresceu a preocupação com a
cientificidade das leis como fundamentos do etnocentrismo. Em 1917, no Rio de
Janeiro, então Distrito Federal, ocorreu uma Conferência Judiciária-Policial, onde mais
de 20 teses foram aprovadas, com o perfil positivista lombrosiano, contra, por exemplo,
anarquistas, prostitutas, negros, mendigos e embriagados. Esse evento foi um marco
para a construção da política criminal etnocêntrica do início da República. No mesmo
ano, em São Paulo, ocorreu a primeira “Greve Geral” do Brasil.
46
De fato, as relações de trabalho carregariam o trauma histórico da escravidão. A
“Revolta da Chibata” (1910), liderada por João Cândido, o “Almirante Negro”, em que
os marinheiros participantes exigiam, além de aumento de vencimentos e redução da
carga horária de trabalho, o fim dos castigos coporais, evidencia a prática corrente dos
últimos. O governo reagiu reprimindo violentamente o movimento, o que levou a morte
de alguns e à prisão de outros marinheiros, inclusive de seu líder (VERSIANI, 2002).
Até hoje, as condições dos trabalhadores rurais pouco se modificaram, que
milhares de pessoas são mantidas em condições análogas às de escravos. Em geral,
como são obrigados a comprar os bens necessários mais caros que o próprio salário, isso
se justifica como conseqüência da imposição aos trabalhadores da situação de devedores
dos proprietários da terra. A mesma situação era imposta aos imigrantes estrangeiros.
Um forte exemplo é o dos cortadores de cana, trabalhando em condições análogas a de
escravo, sustentando ainda a indústria do açúcar, um dos produtos mais exportados na
atualidade.
Com a implantação das grandes indústrias no Brasil e o início do trabalho
operário, condições desumanas do trabalho do campo foram levadas para também a
cidade e para as fábricas. Operários, dentre eles, inclusive, mulheres e crianças, viviam
sob péssimas condições de trabalho, com uma jornada que chegava a 16 horas diárias,
baixos salários, espancamento de crianças trabalhadoras, assédio sexual às mulheres,
mutilações por máquinas e ameaças de demissões injustificas, na ausência de qualquer
tipo de proteção social. Uma situação muito parecida com a que Marx, um século antes,
havia descrito no Livro I de “O Capital”. A partir da organização dos operários em
associações e ligas, começam a ser empreendidas lutas por direitos trabalhistas. Em
1906, o Primeiro Congresso Operário Brasileiro, no Rio de Janeiro, consagrou a
orientação de se comemorar, em primeiro de maio, o dia do trabalhador (VERSIANI,
2002). Após a primeira Greve Geral do Brasil (1917), era aprovada uma lei que proibia
o trabalho de crianças menores de 12 anos e o trabalho noturno para menores de 18
anos.
47
Sendo assim, todo aparato público do regime imperial era incorporado à
República e se aliava às tradicionais oligarquias açucareira e cafeeira, à maçonaria e,
aos poucos, aos novos setores industriais. Os novos trabalhadores formais brancos
vieram se somar aos antigos escravos, que passavam a integrar o mercado informal. Os
trabalhadores rurais europeus e ex-escravos eram enganados, tornavam-se assalariados,
mas tinham de comprar os produtos do seu patrão, passando a ser eternos devedores.
O discurso etnocêntrico, aparentemente voltado para a defesa da vida, do corpo
da sociedade, gera o extermínio social. O poder de vida e morte do soberano em relação
aos súditos, em defesa do corpo do rei, tinha sua base ideológica no poder dos pais de
tirar a vida do filho e de seus escravos. O exercício indireto do poder sobre as vidas é
claro quando crianças nascem condenadas na miséria e é tão cruel quanto mandar os
súditos para a guerra em defesa do corpo social. A política de extermínio, sob o
argumento da defesa do corpo social, em defesa do país, deve ser questionada, pois a
quem realmente serve esta defesa?
O soberano do passado foi substituído pela classe burguesa. No Brasil, os
membros das classes privilegiadas, brancos de origem européia, principalmente
portuguesa, inicialmente. Qual o corpo social que urge pela paz urbana senão os setores
privilegiados, moradores dos lugares mais bem servidos do Estado, onde os muros
sociais são erguidos contra as favelas e periferias, estas, verdadeiramente “violentadas”?
No Brasil, tal poder é acumulado sob um sistema racista etnocêntrico. Até 1888,
os escravos negros eramcoisas” de seus proprietários que sobre eles detinham o poder
de matá-los. O poder podia ser exercido diretamente, quando a vida de um escravo era
tirada, ou indiretamente, quando ele era mandado para a guerra. O poder de tirar a vida,
que sempre fez parte da biopolítica, cresceu após a abolição, que os ex-escravos
viram-se desamparados, sem ter onde morar e o que comer, sem qualquer possibilidade
de trabalhar. Os negros não poderiam se acostumar, sem uma política social, com as
novas relações de trabalho, pois viviam numa relação escravocrata. A liberdade foi
vingada pelos privilegiados com a pena da miséria e, portanto, da morte. Os imigrantes,
brancos pobres, apesar de, teoricamente, protegidos pela lei e garantias trabalhistas e
48
salariais, tampouco encontraram aqui a realidade que sonhavam em seus países de
origem. Tanto que, no início do século XX, a polícia reprimiu severamente as
manifestações e paralisações dos trabalhadores das fábricas de São Paulo.
49
5. Poder punitivo: substituição ou acumulação?
No capítulo anterior enfatizamos o conservadorismo ideológico em que se
basearam as práticas punitivas, na passagem do Império para a República, no Brasil.
Neste ponto, demonstraremos que estes aspectos conservadores não se limitam às
idéias, ainda que embasadas segundo os conceitos científicos vigentes, mas estão
presentes na permanência dos mesmos indivíduos nos cargos públicos de modo geral,
ainda que após a ocorrência de transformações políticas de grande relevância. Além
disso, analisaremos mais de perto as leis aplicadas ao longo de diferentes períodos,
identificando algumas contradições entre a esfera jurídica e sua aplicação prática.
Recorda-se que, com a entrada da modernidade, as práticas punitivas passavam
por grandes transformações. Mencionamos que Michel Foucault identificou uma
substituição das formas de vigiar e punir” os corpos à medida que se modificavam as
“práticas de assepsia da sociedade”: os regimes políticos monárquicos transformavam-
se nas recém nascidas repúblicas
17
e a preocupação com a proteção do “corpo do rei” foi
dando lugar à busca de proteção do corpo social”. Deste modo, Foucault chamou
atenção para a substituição dos métodos mais cruéis “de poderes punitivos do passado”
por métodos racionais e mais elaborados de punição, em suma, baseados em critérios
“científicos”.
Estas idéias estão evidentes, no âmbito das penas oficiais, no Brasil, pois o
Código Filipino condenava os crimes de Lesa Majestade à morte e ao confisco de bens
para a Coroa do Reino, comparando-os a uma espécie de “doença” ante a qual deveriam
ser aplicadas medidas de assepsia:
“Lesa Majestade quer dizer traição commettida contra a pessoa do Rey, ou seu Real Stado, que
he tão grave e abominável crime, e que os antigos Sabedores tanto estranharão, que o comprovarão á
lepra; porque assi como esta enfermidade enche todo o corpo, sem nunca mais se poder curar, e empece
ainda aos que com elle conversão, pólo que he apartado da communicação da gente: assi o erro da trai-
ção condena o que a commette, e empece e infama os que de sua linha descendem, pos-toque não tenho
culpa” (PIERANGELI,2004:100).
17
Não entraremos em detalhes a este respeito, mas havia também monarquias parlamentaristas, como
no caso da Inglaterra, cujas modificações neste campo podem ser comparáveis às das repúblicas.
50
No Direito brasileiro, uma ilustração desta “substituição” é que o que
anteriormente era denominado, no Título VI do Livro V das Ordenações do Reino do
Código Filipino, como “Do crime de Lesa Majestade” e no Código Criminal do Império
do Brasil de 1830, no Título I da parte II, “Dos Crimes contra a existência política do
Império” passaram a ser chamados de “Dos crimes contra a existência Política da
República”, inserido no Capítulo I, do Título I, do Livro II do Código Penal de 1890
(Idem Ibidem:281).
Em “Punição e Estrutura Social”, George Rusche e Otto Kirchheimer apontaram
as substituições e permanências dos métodos punitivos segundo os interesses das classes
dominantes. Na Europa, no período medieval, como os servos podiam migrar para
outros vilarejos, que existiam terras e outras oportunidades, os senhores feudais
mantinham uma relação mais tradicional com as classes subalternas. A criminalização
era voltada para a defesa da honra, da religião e da vida, pois as violações à propriedade
não tinham grande importância. O crescimento da população marginalizada pode ser
percebido pela gradual mudança do pagamento de fiança:
“A incapacidade dos malfeitores das classes subalternas de pagar fianças em moeda levou à
substituição por castigos corporais. O sistema penal tornou-se, portanto, progressivamente restrito a uma
minoria da população. Este processo pode ser mapeado em todos os países europeus. Um estatuto de
Sion, de 1338, previa uma fiança de vinte libras para os casos de assalto; se o assaltante não podia pagar,
devia receber um castigo corporal, como ser jogado numa prisão e passar a pão e água até que algum
cidadão intercedesse ou o bispo o perdoasse. Este estatuto não somente ilustra o caráter automático da
transformação da fiança em punição corporal, mas mostra também que o aprisionamento era visto como
uma forma de castigo corporal”(RUSCHE e KIRCHHEIMER,1999: 22).
Retornando ao que Foucault descreveu como uma substituição dos métodos
cruéis do passado por todos racionais e científicos de punição, o trecho abaixo
ressalta que essas mudanças históricas não possuíam um caráter propriamente
“humanitário”:
“Os métodos de punição começaram a sofrer uma mudança gradual e profunda em fins do século
XVI. A possibilidade de explorar o trabalho de prisioneiros passou a receber crescentemente mais
atenção. Escravidão nas galés, deportação e servidão penal, através de trabalhos forçados foram
introduzidos, os dois primeiros, por um certo tempo; o terceiro, como precursor hesitante de uma
instituição que tem permanecido até o presente. Algumas vezes, eles apareceram simultaneamente com o
sistema tradicional de fianças e penas capital e corporal; outras tenderam a substituir estes últimos. Estas
51
mudanças não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento econômico
que revelava o valor potencial de uma massa de material humano completamente à disposição das
autoridades” (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 1999:39).
Nesse sentido, já foi relatado que, no Brasil, desde a criação da Intendência, em
1808, a mão-de-obra dos presidiários também era aproveitada nas obras públicas
urbanas. No período imperial, a condição dos presidiários não era diferente, conforme
relata Holloway, acerca da construção da “Estrada Velha da Tijuca”, que leva ao Alto
da Boa Vista, um dos mais belos cartões postais do Rio de Janeiro:
‘Tijuca, que aparece como parte de algumas sentenças, refere-se ao trabalho forçado na estrada
que então se construía naquela região, cruzando os morros que separavam o Centro da Zona Oeste da
cidade do Rio de Janeiro. O intendente de polícia, na qualidade de supervisor de obras públicas, tinha nos
presos um fluxo contínuo de mão-de-obra, que ele podia transferir da cela da cadeia ou do pelourinho
para as obras da estrada tudo dentro da sua esfera de ação administrativa. Nessas escaramuças, como
em milhares de outras semelhantes, o perdedor era obrigado a fornecer mão de obra ao vencedor”
(HOLLOWAY, 1997:53).
Demonstramos semelhanças entre os modelos europeus e o brasileiro, no que diz
respeito à aplicação de “penas com trabalho” que, por sua vez, posteriormente, seriam
substituídas pela prisão celular. No caso brasileiro, o curioso é que as penas de castigos
corporais propriamente ditos não foram simplesmente substituídas pela prisão com
trabalho e celular, mas sim, que todas essas foram somadas passando a fazer parte de
um mesmo conjunto.
Um interessante paradoxo da História brasileira pode ser apontado quando, após
a Proclamação da Independência, enquanto Monarquia Parlamentarista, o regime
constitucional baseava-se na Carta Política de 1824, que havia sido outorgada. Após a
Independência, os brancos, portugueses e descendentes, precisavam da manutenção da
Guarda Nacional, contra os negros. O fato desta ser uma situação recorrente na História
do Brasil demonstra que o caule autoritário deixou marcas profundas.
A fim de discutir aspectos propriamente legais da aplicação de penas, convém
recordar que a Proclamação da Independência ocorreu de um modo sui generis, em
meio à onda da Revolução Francesa, do Código Civil de Napoleão e dos
52
acontecimentos relatados anteriormente. Prova desta influência reside na Constituição
de 1824, onde foram consagrados os Direitos Humanos de Primeira Geração
18
.
Recentemente independente da metrópole, porém, sem perder seus privilégios
monárquicos, o país, sem tampouco se tornar uma República, adquiria, em parte, a face
da modernidade das repúblicas européias. Tanto que se tornou uma Monarquia
Constitucional sem, obviamente, cortar a cabeça do rei. Tal fenômeno, que havia
ocorrido de maneira semelhante em algumas monarquias da Europa, foi inclusive
denominado “despotismo esclarecido”. Em Portugal, foi resultado das mencionadas
“Reformas Pombalinas”
19
.
A primeira legislação brasileira no campo do Direito Penal foi o “Código
Criminal do Império do Brasil”, de 1830. O primeiro artigo deste código trás o
“princípio da reserva legal”, ainda presente também no primeiro artigo Código Penal
atual, consagrado um dos maiores ícones do Estado Democrático:não haverá crime ou
delicto sem uma lei anterior que o qualifique” (PIERANGELI, 2004:237).
Por outro lado, o Código Criminal do Império, de 1830, possuía fortes traços
absolutistas, como a pena de morte pela forca, pena de galés e penas de trabalho
classificadas em graus, aplicadas por número de anos até a prisão perpétua. Este Código
dispunha, lado-a-lado, penas de momentos históricos díspares:
“Art. 38. A pena de morte será dada na forca.
Art. 44. A pena de galés sujeitará os réos a andarem com calceta no e corrente de ferro, juntos ou
separados, e a empregarem nos trabalhos publicos da província onde tiver sido commetido o delicto, á
disposição do governo.
Art. 46 A pena de prisão com trabalho obrigará aos réus a occuparem-se diariamente no trabalho que lhes
fôr destinado dentro do recinto das prisões, na conformidade das sentenças e dos regulamentos policiaes
das mesmas prisões’ (PIERANGELI, 2002:241-2).
(...)
18
A doutrina dos Direitos do Homem surgiu em meio ao pensamento político dos séculos XVII e XVIII.
Bobbio observa que o abstrato sujeito homem encontrara uma primeira especificação no cidadão
(Bobbio,1992:62).
19
Sebastião José de Carvalho, o Marquês de Pombal, Ministro cuja forte personalidade marcou o reinado
de D. José I, período que coincidiu com a decadência da mineração. Seu esforço político para modernizar
o reino, típico dos déspotas esclarecidos, era imposto de cima para baixo. Esta política tinha em vista o
fortalecimento do Estado e a autonomia econômica de Portugal, buscando tirar o país da órbita inglesa.
53
‘Insurreiçao
Art. 113. Julgar-se-há commetido este crime, reunindo-se vinte ou mais escravos para haverem a
liberdade por meio da força.
Penas aos cabeças, de morte no grão maximo, de galés perpetuas no medio, e por quinze anos
no minimo, aos mais açoutes.
Art. 409. Enquanto não entrar em inteira execução o systema penitenciario, a pena de prisao
cellular sera cumprida como a de prisão com trabalho, nos estabelecimentos penitenciarios existentes,
segundo o regimen atual; e nos lugares em que os não houver, será convertida em prisão simples, com
augmento da sexta parte do tempo (PIERANGELI,2002:321)”.
Podemos propor a seguinte reflexão: de um lado, a Constituição de 1824 sequer
mencionava a escravidão, pois o escravo nada mais era que uma propriedade, cuja
punição situava-se no campo privado. No entanto, o Código Criminal de 1830,
acumulava às penas privadas, outras de âmbito oficial. Além disso, nos dois anos que
separam a Abolição da Escravatura (1888) e o Código da República, de 1890, não
deveria mais existir escravidão, mas ainda vigorava o artigo “113”, que mencionava a
tentativa de liberdade através da força quando, teoricamente, seriam livres. Como
poderia haver alguém cumprindo a prisão por tal crime depois da Abolição?
Estes fatos contraditórios foram mencionados por Holloway, Zaffaroni e Batista:
Pedro I decretou uma lista de salvaguardas semelhantes às da Constituição Liberal
Portuguesa onde incluía uma relação detalhada de “direitos civis e políticos dos
cidadãos brasileiros”, garantidos pelo artigo 179 da Constituição de 1824, que declarava
que a “lei será a mesma para todos, quer proteja, quer castigue”: “O documento definia
cidadãos como 'os que no Brasil tiverem nascido, quer seja ingênuos ou libertos. Além
da disposição que excluía os libertos do colégio eleitoral e dos cargos públicos
elevados, esta era a única alusão à existência da escravidão na Constituição do Império”
(HOLLOWAY, 1997:56). Além disso, “a Constituição de 1824 mantivera a escravidão,
sob a fórmula circunloquial de garantir o direito de propriedade em toda a sua plenitude
(artigo 179, inc XXII)'. (ZAFFARONI e BATISTA, 2003:423)
Fica evidente que a prisão celular ao menos podia ser cumprida no mesmo lugar
onde eram cumpridas as prisões com trabalho, sem previsão de tempo para a mudança
da forma de sua execução. Mas o que se percebe e que as prisões brasileiras ainda estão
muito próximas das prisões do Código Criminal do Império. Os locais onde existiam as
54
prisões com trabalho existiram legalmente até a consolidação das leis penais de 1932
que repetiu o mesmo artigo com o mesmo numero em suas disposições gerais. As penas
de prisão celular eram cumpridas nos mesmos estabelecimentos onde vinham sendo
historicamente aplicados o açoite a as penas com trabalho. Batista chama atenção para
as terríveis conseqüências desta situação:
“Quando o direito penal liberal adota elementos do direito penal autoritário, fica totalmente
contaminado e neutraliza sua função limitativa: a isso obedece o fracasso de todas as tentativas de
combinação ensaiadas e, particularmente, a do velho liberalismo penal racionalista (BATISTA, 2003:
112).
Portanto, a prisão no Brasil é a própria demonstração histórica da acumulação do
biopoder punitivo. Nela estão reunidos o extermínio colonial, a tortura absolutista do
açoite e a prisão celular do neoliberalismo. Observa-se que, da mesma forma que a
Coroa chegou respeitando o exercício do poder punitivo dos senhores de terra sobre
seus escravos, os valores republicanos não substituíram os monarquistas existentes mas,
na realidade, ergueram a mesma taça
20
. A Constituição Liberal de 1824 vigorou
juntamente com o Código Criminal escravocrata de 1830, até o fim do século XIX. O
Código Criminal do Império foi revogado pelo Código Penal da República de 1890 e a
Constituição de 1824 foi substituída pela Constituição Republicana de 1891.
Entretanto, não foram somente as formas de governo que deixaram seus
vestígios. Apesar das transformações, podem ser exemplificadas permanências de
pessoas e, obviamente, de suas idéias. Convém recordar a citada figura de Miguel
Nunes Vidigal, destacado membro da Guarda Real. Tendo ingressado na Milícia
Colonial em 1770, em 1809, alcançava a patente de major, e serviu como primeiro
ajudante e depois como segundo comandante da nova força policial que se instaurou a
partir da vinda da Família Real. A equipe de Vidigal tinha como marca o chicote de
haste longa e pesada, com tiras de couro cru usado como cacetete ou chibata. O mesmo
Vidigal, já após a Independência do Brasil, ficou famoso por ter liderado uma força
20
Não se deve deixar de recordar que, no Brasil, ocorreram pontos importantes nesta transição da
monarquia para a república: primeiro, passou da condição de colônia à de Reino-Unido, em 1815, depois,
à de Império, em 1822; entre o Primeiro e Segundo Reinados, houve ainda o Período Regencial e
posteriormente, em 1889, tornou-se uma República.
55
policial e tropas do Exército que entrou na cidade com duzentos prisioneiros seminus
capturados num quilombo em Santa Teresa, em 1823 (HOLLOWAY,1997:48-9). É de
se observar que este integrante da repressão do povo fez parte tanto das forças do Poder
Punitivo da Colônia quanto da Guarda Real, no período do Reino-Unido, quanto da
Guarda Imperial.
Por outro lado, mesmo após a Proclamação da República, as idéias republicanas
da Europa aqui penetraram em sua fachada, pois as estruturas coloniais mantinham-se
fortemente arraigadas. Assim, as repartições da República foram construídas sobre as
bases do privilégio, mordomia, corrupção, nepotismo e autoritarismo do período
anterior. Enquanto em países como a Inglaterra e a França, onde foram criadas as
condições materiais para tal, as cabeças de seus reis foram cortadas, decepando o
Antigo Regime, aquela realidade republicana e os direitos lá conquistados nos chegaram
de forma perfunctória, porque não foram construídos aqui.
Àquela época, além de distante do palco dos acontecimentos, no Brasil, não
havia sido desencadeado um processo de industrialização de monta. Simultaneamente, a
política punitiva vigente não sofreu transformações significativas. Apesar de ter
ocorrido a Abolição, eram imensas as contradições de um país onde teoricamente não
mais deveriam existir escravos. Se observarmos que, até hoje, no Presídio Evaristo de
Morais, pombos defecam nas cabeças dos presidiários, de maneira que as cadeias
brasileiras assemelham-se às masmorras medievais, imagine-se ao final do século XIX!
Percebe-se que a História do Brasil é marcada pela opressão realizada ao longo
da colonização portuguesa. Embora tenha sido o primeiro Estado-Nação burguês,
absolutista e mercantilista - da Europa, Portugal tornou-se República somente em 1910,
ou seja, mais de duas décadas depois da Proclamação da República no Brasil. Os
proprietários da terra, no Brasil, portugueses que haviam sido presenteados pela Coroa e
seus herdeiros, eram, inclusive, chamados de “sinhôzinhos”. relatamos que, para
extrair o máximo desta terra e para executar tal tarefa, a civilização ibérica escravizou
os índios e os negros. A escravização dos índios passou a ser proibida expressamente
56
somente em meados do século XVII, e a Abolição da Escravatura ocorreu um ano antes
do Brasil virar República, em 1889. Assim, é importante registrar que a força de
trabalho dos índios e dos negros acumulou a riqueza das oligarquias brasileiras e,
conseqüentemente, de outros setores da sociedade, em meio às condições miseráveis da
monocultura exportadora de açúcar.
A monarquia, ao longo do Primeiro e Segundo Reinado, estava estabelecida pela
existência do Poder Moderador. A escravidão, por outro lado, não tinha mais sentido
para a nova ordem. Conforme mencionado, em 1845, a Inglaterra aprovara o
Aberdeen Act, lei que proibia o tráfico de escravos. Assim, a frota da marinha
brasileira, que era uma das maiores do mundo, foi praticamente destruída pelos ingleses.
Contudo, os novos direitos eram apenas civis e políticos, mas no plano econômico e
social, pode-se dizer que a situação dos ex-escravos até piorou. Da mesma forma, a
concentração de terra nas mãos das oligarquias permaneceu, assim como a monocultura
exportadora, sem que fosse demonstrada qualquer preocupação com a miséria
instaurada.
Na esfera das agências policiais do Estado, por sua vez, a Guarda Republicana
era composta nada mais nada menos do que pelos antigos integrantes da Guarda
Imperial que apenas haviam trocado o uniforme. Assim, as mesmas pessoas que
protegeram a Monarquia, passavam a ter que proteger a República, sem maiores
conflitos. Uma prova de que ocorreu apenas uma adaptação a uma realidade econômica
instituída é que o Código Penal de 1890, por exemplo, em plena República, foi relatado
pelo mesmo autor do Código Penal da Monarquia: “a coincidência de convidar o
governo republicano o mesmíssimo jurista que o governo imperial convidara para a
reforma do mesmo código, nas mesmas condições, demonstra suficientemente que na
realidade não estava mudando muito” (BATISTA, 2003:445).
A Guarda Imperial precisava ser incorporada à nova ordem, de forte inspiração
positivista. Portanto, trocou de nome, mas permaneceram nela todos os membros e,
obviamente, a cultura e a ideologia autoritárias do período anterior. Recorda-se que a
57
Guarda Imperial foi o grande instrumento de opressão e manutenção da ordem
escravocrata durante o Império, tendo reprimido inúmeras revoltas ao longo do
território brasileiro, especialmente no período Regencial, dentre as quais destacam-se: a
“Cabanagem”, Pará, 1831, a “Setembrada”, Pernambuco, 1832, a “Revolução
Farroupilha”, Rio Grande do Sul, 1835, a “Sabinada”, Bahia, 1837, a “Balaiada”,
Maranhão, 1839, “Praieira”, Pernambuco, 1848, dentre outras (ZAFFARONI e
BATISTA, 2003:423).
A maior prova de que houve um processo de acumulação de poder punitivo, e
não uma transformação radical, é que a República foi proclamada sem um conflito
significativo. As antigas formas de punir permaneciam, pois seus algozes passaram
também a dominar o regime que se instaurou. Entretanto, evidentemente, os novos
opressores traziam novas formas de opressão.
Os movimentos de abolição e o republicano foram contemporâneos, ambos
relacionados ao fim da monarquia e caracterizados pela adaptação do Brasil à nova
realidade nacional e internacional. Ainda hoje, pode-se ler, à entrada do “Clube dos
Democráticos”, na Rua do Riachuelo, Lapa, Rio de Janeiro, uma placa que indica que o
mesmo se orgulha de ter defendido a Abolição da Escravatura e a República. Entretanto,
seria inimaginável pensar num movimento que questionasse as raízes do processo de
dominação.
Esses movimentos lutavam pela democracia política, mas não aprofundavam a
luta pela democracia social e não atinavam para a necessidade de proteção social e
econômica aos libertados. Seria incompatível, na realidade histórica naquele momento,
pensar em igualdade ou comunismo, como aconteceu, por exemplo, durante a
Revolução Francesa e na Comuna de Paris. A luta pela República visava somente
extinguir qualquer poder imperial, mantendo o poder das oligarquias dominantes.
58
A República, as novas leis e a vinda de imigrantes europeus trouxeram uma
nova forma de julgar e punir, mas as antigas permaneceram. O açoite previsto no
Código Criminal de 1830 foi revogado e a abolição foi proclamada, mas o poder e suas
formas punitivas permaneceram no Brasil. Os negros continuam sendo vítimas de
tortura em sua franca maioria nas cadeias e nas ruas. Tendo ou não praticados crimes
sofrem em todos os lugares. A punição econômica não pode ser enxergada apenas por
este ponto de vista. Se é desumano deixar um recém-nascido sem alimentação e uma
criança sem educação escolar necessárias, o que diríamos de milhões, como ocorre no
Brasil? Essas crianças já nascem sendo punidas.
Os negros, por sua vez, são uma das maiores vítimas desta punição social. No
sistema penal a história não poderia ser diferente. O Estado em seu biopoder é
complacente com a tortura e o extermínio das pessoas que vivem na miséria e na
pobreza. É muito mais violento contra os negros, mas é violentíssimo contra o pobre, de
maneira em geral. Existe ainda um problema no que diz respeito à falta de identificação,
o que se evidencia quando pessoas privilegiadas se comovem com a condição de
crianças brancas miseráveis, cuja adoção é muito mais freqüente que a de uma criança
negra. O Estado é muito mais violento contra o negro quando estamos falando da
repressão do sistema penal.
A polícia é quem seleciona os casos que serão levados à Justiça. Em regra, é isso
que acontece. Como vimos, a polícia militar foi formada historicamente como uma
guarda de defesa da classe dominante. A guarda real e imperial, que agregaram em seus
quadros os antigos capitães do mato, formada para vigiar principalmente as populações
africanas, tanto que o código previa as penas de açoite e galés. Esta base permaneceu e
foi agregada às novas formas de punir os novos trabalhadores europeus. Os brancos nas
lavouras de café eram muitas vezes tratados como escravos, levando o governo
prussiano a proibir a emigração para o Brasil e o parlamento italiano a proibir o
pagamento de viagem pelo governo para o Brasil.
59
Evidentemente, a mudança para a República não apagou quase quatro séculos de
mortes e açoite. Os membros da Guarda Imperial apenas trocaram a farda para
Republicana, mas as pessoas eram as mesmas. Por todos esses fatos, não é possível crer
que as antigas oligarquias rurais tenham perdido subitamente o poder com a
Proclamação da República, em 1889. Ao contrário, continuaram situadas numa posição
privilegiada, afinal continuavam a ser os donos da terra. Apesar da existência de
medidas de proteção legais, num momento posterior, os imigrantes brancos encontraram
aqui uma mentalidade escravocrata que dificilmente se transformaria por um simples
decreto. Paralelamente, começava a se configurar uma nova burguesia brasileira desde o
século XVIII, com origens na maçonaria, calçada no comércio e, a partir do final do
século XIX, com base nas nascentes indústrias, oriundas, em parte, da oligarquia
cafeeira.
As novas formas de poder foram se ajeitando, acumulando e convivendo. Os
séculos de açoite não acabaram a partir da assinatura da tão sonhada “Lei Áurea”. O
modelo econômico do subdesenvolvimento que coloca milhões na pobreza foi sendo
construído nesta relação histórica de biopoder e permanece nas amarras da lógica do
capitalismo financeiro internacional. Todos os dias a televisão apresenta os índices de
todas as moedas e bolsas do mundo. A cena de um aglomerado de homens de terno,
com toda aquela gritaria nas bolsas de valores, é apresentada como algo moderno.
Procuramos relacionar as observações de Foucault, acerca das transformações
nos métodos de vigiar e punir os corpos, à realidade brasileira. Conforme demonstram
os fatos relatados acima, no Brasil, não se podem observar estas transformações com a
mesma nitidez que na França, que rios elementos díspares conviveram e as
imanências monárquicas não foram totalmente apagadas. A nossa História é totalmente
distante das conquistas dos Direitos Humanos de Primeira Geração, que são os
chamados Direitos Individuais
21
. Em suma, o que se percebe é que, ao contrário de uma
21
Estes direitos são definidos, segundo a classificação de Bobbio, nasceram quando do aumento do poder
do homem sobre o homem ameaçou a liberdade do indivíduo, de maneira a demandar limitações do poder
por meio de remédios segundo os quais o mesmo poder intervém de modo protetor: correspondem aos
direitos de liberdade, ou um não-agir do Estado (Bobbio,1992:6).
60
substituição das formas de punir os corpos, o que ocorre aqui é uma acumulação das
mesmas.
As prisões, assim como as torturas e as execuções, ainda fazem parte de nossa
realidade atual. Tanto que o Brasil foi denunciado internacionalmente pelos alarmantes
números de torturas e execuções praticadas em grande número por policiais, dentro e
fora das repartições públicas. À tortura do açoite, durante o período da Ditadura Militar,
foi acumulada a tortura “científica” contra os chamados subversivos.
A substituição da forma de punir acompanhou o processo de mudança do poder
punitivo para as mãos da burguesia revolucionária. Nos países que foram palco do
processo revolucionário, os Direitos Humanos de Primeira Geração foram garantidos e
são hoje amplamente conhecidos pela população. Quanto mais integrada na cidade,
mais politizada torna-se a vida humana. Seguindo este raciocínio, quanto menos
politizada, mais facilmente “matável” e torturável é a vida.
No Brasil, as imanências absolutistas continuaram imperando na República e são
visíveis até hoje nos cargos vitalícios, na prática do nepotismo, no temor reverencial
àqueles que usam determinados trajes que vão do terno à toga. A forma sempre foi o
liame alcançado pelo brasileiro, privado de seu conteúdo, em meio aos altos índices de
analfabetismo. Priore e Venâncio observam que transformações conviveram com
permanências de tempos anteriores, sendo que houve quem considerasse o novo sistema
político republicano como um retrocesso, à medida que rompeu com a tendência
centralizadora do Império, dando lugar ao pleno domínio dos fazendeiros no quadro
político nacional, período este chamado de República Velha, ou “Café com Leite”, em
referência ao poder das oligarquias paulista e mineira. O regime criado em 1889 seria
uma reorganização superficial de instituições políticas, sem grandes implicações
econômicas e sociais (DEL PRIORE e VENÂNCIO,2002:304).
61
Procuramos, portanto, demonstrar elementos de permanência, ao longo da
História. É importante atentar para a complexidade de elementos que se mantêm, com
outras roupagens, ao longo de novos períodos históricos. No que diz respeito à
acumulação do Poder Punitivo, essas imanências são ainda mais fortes e vão constituir,
em paralelo às instituições oficiais, toda uma estrutura informal, financiada pelas classes
dominantes do campo e da cidade, possuidoras de armas, com poder de punir, matar e
dar à estrutura social a feição que lhes interessa.
62
6. Ditadura Militar
“Heróis da Liberdade”, Império Serrano, 1969 – de Silas de Oliveira, Mano Décio e Manoel Ferreira
Ô ô ô ô, Liberdade, Senhor,
Passava a noite, vinha dia
O sangue do negro corria
Dia a dia
De lamento em lamento
De agonia em agonia
Ele pedia
O fim da tirania
Lá em Vila Rica
Junto ao Largo da Bica
Local da opressão
A fiel maçonaria
Com sabedoria
Deu sua decisão lá, rá, rá
Com flores e alegria veio a abolição
A Independência laureando o seu brasão
Ao longe soldados e tambores
Alunos e professores
Acompanhados de clarim
Cantavam assim:
Já raiou a liberdade
A liberdade já raiou
Esta brisa que ajuventude afaga
Esta chama que o ódio não apaga pelo Universo
É a evolução em sua legítima razão
Samba, oh samba
Tem a sua primazia
De gozar da felicidade
Samba, meu samba
Presta esta homenagem
Aos "Heróis da Liberdade"
Ô ô ô
63
Passado e presente na realidade estão muito próximos. Compreendendo muito
bem esta relação, no período mais sanguinário da Ditadura Militar, em 1969, o Império
Serrano, escola que nasceu do sindicato da Resistência, dos estivadores do Cais do
Porto, Rio de Janeiro, sob vôos rasantes da Aeronáutica, desfilou com o samba-enredo
acima, considerado o maior de toda a História. Com o enredo Heróis da Liberdade”,
em que relacionou a escravidão à opressão vigente, por meio de uma grande
manifestação de resistência cultural, expressou uma severa crítica ao regime militar.
A política punitiva da recente Ditadura Militar (1964-1980), período que deixou
marcas profundas em nossa sociedade, fortaleceu um Estado extremamente violento,
em que o 'bolo' cresceu para poucos, de maneira que o país ficou em último lugar em
distribuição de renda no mundo, onde 1% (um por cento) da população detém 50%
(cinquüenta por cento) da renda nacional. Verdadeiras fortunas e parte da sociedade de
consumo se exibem diante da pobreza e da miséria. É inegável que a fragorosa minoria
de privilegiados é praticamente toda constituída por brancos. Daí, percebe-se que todas
as atrocidades denunciadas na história fazem parte da atual política de Estado: prisão,
tortura, morte e campo de concentração.
Iniciamos, portanto, expondo uma síntese dos anos que precederam a Ditadura
Militar, assim como estabelecemos algumas relações entre esta e o presente. Foi
relatado que, durante o período colonial e imperial, os índios foram praticamente
dizimados e os negros e afro-descendentes submetidos ao chicote, de maneira que não
houve qualquer política social significativa até a Era Vargas. Conforme já demonstrado,
a punição era em todos os sentidos: política, biopolítica, social, econômica e cultural.
No campo da democracia, entendida como direito à eleição direta, o povo o exerceu
somente em raros momentos da História do Brasil.
Recordamos que as primeiras indústrias brasileiras, ao invés de resultarem de
um processo gradual, nasceram “grandes”, com tecnologia importada da Europa, o que
estabelecia fortes laços de dependência internacional. O mundo agrário tradicional
custeava a importação de máquinas, o que explica o fato de São Paulo ter suplantado o
64
Rio de Janeiro e Minas Gerais, antes pioneiros, e ter se tornado o principal pólo
industrial do Brasil, entre 1880 e 1930. A produção fabril, entretanto, somente viria a
ultrapassar a agrícola enquanto principal atividade econômica por volta de 1945 (DEL
PRIORE e VENÂNCIO,2001:296).
A passagem do modelo agrário-exportador, com suporte na hegemonia cafeeira,
para o incipiente modelo industrial fornece as bases para a “Revolução de 1930”,
quando se inicia a denominada “Era Vargas”. A adaptação para o novo modelo criava as
necessidades para a construção de um Estado intervencionista e previdenciário. Durante
a Era Vargas, assistimos ao surgimento da indústria de base, destinada à produção de
máquinas e ferramentas pesadas, à siderurgia, à metalurgia e à indústria química. A
industrialização acelerada não teve somente efeitos econômicos, mas também políticos
e sociais, concomitantemente a um surto de urbanização: se em 1920, apenas dois em
cada dez brasileiros viviam na cidade, em 1940, este índice passava para quatro.
Seguindo uma política bastante diferente dos presidentes da República Velha,
Vargas valorizava a aliança com grupos urbanos, sensibilizava militantes oriundos de
lutas socialistas e mantinha aproximação com o exército, buscando se contrapor ao
poder oligárquico. Getúlio Vargas foi presidente do Brasil de 1930 até 1954, exceto no
período entre 1945, quando foi deposto por um golpe militar em 1945, até 1950, mas
retornando em 1951, eleito pelo voto popular. Consolidou-se, então, no Brasil um
capitalismo industrial dependente e um Estado previdenciário, além do estabelecimento
de uma programação criminalizante baseada nos modelos da intervenção estatal sobre o
abuso do poder econômico e de um subsistema penal de repressão política.
A segunda Constituição Republicana, promulgada em 16 de julho de 1934, em
seu artigo 113, parágrafo 21, recorda-se que a mesma apresenta um importante avanço
em relação às liberdades individuais e às constituições anteriores:
“Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade competente,
nos casos expressos em lei. A prisão ou detenção de qualquer pessoas será imediatamente comunicada ao
juiz competente, que a relaxará se não for legal, e promoverá, sempre que de direito, a responsabilidade
da autoridade coatora.”
65
A onda nazi-fascista dominava a Europa e seu discurso e perseguição aos
comunistas. A intentona de 1935 também fortalece os anti-comunistas. Em 10 de
novembro de 1937, Getúlio Dorneles Vargas, Presidente do Brasil, outorga nova Carta
Política, revogando a garantia do parágrafo 21 do artigo 113, apresentando os sintomas
dos novos tempos que estavam por vir, o Estado Novo, cujo discurso anti-comunista
estava na justificativa da nova Carta Política:
“Atendendo às legítimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social profundamente
perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios
partidários, que notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação
de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, a resolver-se em termos de
violência, colocando a Nação sob a iminência da guerra civil; Atendendo ao estado de apreensão criado
no país pela infiltração comunista , que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo
remédios de caráter radical e permanente(...)”.
Mas em 1938, o mesmo Estado Novo reprime os comunistas e integralistas,
criando uma aproximação estratégica com os Estados Unidos, para realizar o que havia
sido prometido em 1930, criando, em 7 de abril de1941, a Companhia Siderúrgica
Nacional, com empréstimo de 20 milhões de dólares do banco americano “Eximbank”.
O Brasil participou, então, efetivamente, contra o eixo, na II Guerra Mundial, com
destacada participação dos pracinhas e da Força Aérea Brasileira. O Estado Novo durou
até 1945, quando Getúlio é deposto por um golpe militar, após a vitória dos aliados na
segunda guerra.
Durante seu primeiro governo, Vargas havia diminuído a possibilidade de
existência de sindicatos que não se adequassem ao modelo das federações e
confederações, subordinadas ao Ministério do Trabalho. Ao mesmo tempo em que se
implementavam mudanças na legislação, favoráveis aos trabalhadores, estabelecia-se o
“sindicalismo corporativo”. Convém registrar a “Consolidação das Leis do Trabalho”,
em 1943, passo importante no que diz respeito aos direitos dos trabalhadores.
Em 1951, Getúlio volta à presidência, eleito pelo voto popular, quando nasce a
Petrobrás. Passagem que bem simboliza a complexidade dos governos de Getúlio
Vargas é a posição do grande comunista e brasileiro Luiz Carlos Prestes. Mesmo
ficando anos preso pelo governo de Getúlio, que entregou aos nazistas, a revolucionária,
66
sua amada companheira Olga Benário, Prestes apóia Getúlio para Presidente do Brasil
em 1950. Esta aliança entre comunistas e trabalhistas trouxe algumas melhorias para os
trabalhadores. Prestes e os comunistas buscaram esta aliança, esquecendo feridas que
nunca seriam cicatrizadas. Olga Benário morreu num campo de concentração de
Auchwitz, onde ficou presa durante anos. Sua filha, Anita, é professora universitária
hoje no Brasil e foi entregue à avó, mãe de Prestes, após campanha internacional.
Conforme citado acima, eram claros dois modelos presentes na programação
criminalizante deste período: o de intervenção estatal em relação ao abuso do poder
econômico e um subsistema penal de repressão política. Filinto Müller e sua polícia
foram peças importantes nesse subsistema de repressão, tanto aos comunistas, que
tentaram uma insurreição, em 1935, com a Aliança Nacional Libertadora, quanto aos
integralista, que atacaram o palácio Guanabara em 1938. Todavia, um período tão rico e
complexo mereceria uma dissertação inteira dedicada ao tema. O que interessa no
presente trabalho é que existia um aparelho repressivo político, que no Brasil sempre
acumulou poder punitivo com grande independência e mobilidade, como afirmam
ZAFFARONI e BATISTA:
“O alvo por excelência desse subsistema penal era o Partido Comunista, fundado em 1922, e que
em 1935 procura articular sindicatos, promove mobilizações e eventos, aposta na constituição de uma
frente a efêmera Aliança Nacional Libertadora (criada em março, com 1600 sedes locais em maio,
fechada pelo governo em julho) e chega a uma frustrada insurreição, a partir de alguns quartéis na
cidades de Natal, Recife e Rio, em novembro. Aos comunistas, enquanto alvos deste subsistema penal,
viriam juntar-se membros de uma organização fascista, a Ação Integralista Brasileira, menos por ocasião
de sua dissolução do que após o ataque ao palácio Guanabara em 1938 (ZAFFARONI e
BATISTA,2003:467)”.
Apesar da Consolidação das Leis Penais de 1932 ter vigorado com Getúlio
Vargas, a programação criminalizante marcante do estadista é o Código Penal de 1940 e
a Lei das Contravenções Penais, do mesmo período. Ambas legislações, apesar de
aprovadas durante regime ditatorial, sobrevivem até hoje, tendo sido a parte geral do
Código Penal modificada somente em 1984, enquanto a parte especial ainda está em
vigor. O Código Penal de 1940 é a base de um sistema penal punitivo liberal e
democrático.
67
Getúlio Vargas, que havia sido deposto em 1945 e retornado à presidência, em
1951, foi vítima de tamanha campanha difamatória que acabou cometendo suicídio, em
24 de agosto de 1954. O estopim da campanha contra Getúlio havia sido o aumento do
salário-mínimo em 100%, decretado pelo presidente e pelo então Ministro do Trabalho
João Goulart, que viria a ser também presidente do Brasil e deposto por um golpe
militar, em 1964. O clássico samba-enredo do Império Serrano, entitulado “Legados de
Getúlio Vargas”, de autoria de Silas de Oliveira, nosso maior compositor de todos os
tempos, resume esta fase:
“Em 45 / Getúlio Vargas foi deposto / por um golpe militar / para assumir em 51 o mesmo posto
/ nos braços do povo, eleito pelo voto popular (...) na última etapa de seu governo / Getúlio enfrentou o
inferno / via a incompreensão / sob a fúria assassina / das aves de rapina / que queriam o ouro e o sangue
da nação / ofendido e humilhado / pelo próprio povo abandonado / Getúlio na solidão / coberto de
calúnias e de glórias / meteu uma bala no coração / saiu da vida para entrar na História / E / naquela carta
derradeira / o povo fez sua bandeira / na luta pela emancipação / onde/ ele dizia muito bem / o povo de
quem fui escravo / jamais será escravo de ninguém.”
A Era Vargas foi marcada pelo crescimento da indústria de base, com
predomínio da iniciativa estatal. Já no governo Juscelino Kubitscheck, até 1960, se, por
um lado, a economia tornou-se mais independente em relação às crises do setor agro-
exportador, por outro, inicia-se o progressivo endividamento externo, com instalação de
multinacionais e remessas de lucros para suas matrizes.
Sem entrar em detalhes sobre cada um destes períodos, o fato é que todos os
governos que optaram por políticas visando a redução da miséria no Brasil foram
atacados pelas elites autoritárias. Atualmente, a América Latina vem levando,
democraticamente, às presidências de repúblicas, pessoas de fortes ascendências
nativas. Por total falta de identidade com as mesmas, é evidente a irritação das classes
dominantes.
Em outubro de 2006, uma jovem, que vestia uma camisa com os dizeres “LULA
SIM”, teve uma parte do dedo amputado por uma mordida, no privilegiadíssimo bairro
do Leblon, Rio de Janeiro. Disseram, inclusive, que a mesma tinha ficado parecida com
o Lula, que teve um dos dedos decepado por uma serra num cansativo trabalho noturno.
68
Durante a feitura dessa dissertação, Lula, presidente eleito em 2002 com 52
milhões de votos, sofreu uma devassa em sua vida, bem como todos os seus assessores,
e foi acusado ininterruptamente durante quase dois anos pela mídia punitiva brasileira,
que condenava Lula e seus assessores sem qualquer contraditório, o que lembrava muito
os interrogatórios da ditadura militar, que agora realizado abertamente pela uníssona
mídia brasileira. É importante registrar que os ataques da elite ocorreram mesmo com
todos os índices macroeconômicos, sempre considerados importantes pela própria
classe dominante, estarem nos melhores patamares da história, tais como o risco Brasil,
que se manteve baixíssimo. Fizeram com Lula o que tinham feito com os ex-
presidentes Getúlio Vargas, que cometeu suicídio no Palácio da Presidência, e João
Goulart, que, inclusive, voltou ao Brasil num caixão, após uma mobilização que
exigia o direito de ser enterrado no seu país, depois de uma morte suspeita. O presidente
da Venezuela Hugo Chaves, da Venezuela chegou a ser seqüestrado.
Felizmente, termino esta dissertação após uma vitória massacrante de Lula, que
venceu as eleições em 20 unidades da Federação Republicana Brasiliera composta por
27. Lula teve 58.295.042 milhões de votos contra 37.543.178 milhões do candidato da
direita. O poeta chileno Pablo Neruda denunciou mais de 20 anos: “Vivi na
desordem de nações não construídas”. Infelizmente, o poeta não está vivo para ver a
América Latina se unindo e sendo construída pelas vitórias de governos de esquerda,
como Daniel Ortega na Nicarágua, Evo Morales na Bolívia, Nestor Kirchner na
Argentina, Michelle Bachelet no Chile, Fidel Castro em Cuba, Tabaré Vasquez no
Uruguai, Hugo Chavez na Venezuela e Lula no Brasil.
Retornando ao breve período de governo de João Goulart (Jango), quando foram
iniciadas reformas e colocado em prática o discurso da distribuição de terras, os
militares tomaram o poder, com o apoio das elites, transformarando o país num
verdadeiro quartel: foram cassados os direitos políticos de milhares de cidadãos, dentre
eles, não somente o próprio Jango, Presidente da República, mas também governadores,
deputados, professores, jornalistas, militares e sindicalistas.
Jango pertencia à corrente nacionalista, partidária da implementação de
69
“reformas de base” da sociedade, as quais contrariavam interesses de setores poderosos.
Recorda-se que, a partir de 1945, tornando-se a economia predominantemente
industrial, a aceleração do processo de desenvolvimento passou o ocupar o centro das
discussões. A ênfase na industrialização levou a restrições ao crédito rural e a uma
política desfavorável aos produtores agrícolas. O debate a respeito da alteração de
nossas estruturas agrárias, tradicionalmente ligadas ao latifúndio, longe de ser
meramente técnico, envolvia interesses econômicos e paixões políticas. As péssimas
condições de trabalho no campo brasileiro, em que vigia uma espécie de escravidão
velada pelas trocas de favores e dívidas, levaram à formação das primeiras ligas
camponesas, de 1955 em diante, das quais Francisco Julião foi um importante líder.
Estas, hostis a Jango, buscavam levar justiça ao campo pela reforma agrária, “na lei ou
na marra”.
Pressionado à esquerda e à direita, ora buscando implementar uma política
moderada, ora apelando para a mobilização popular, a fim de forçar a aprovação de
reformas pelo congresso, Jango tem seu projeto de reforma agrária derrotado em 1964
no congresso. A direita, por sua vez, reagiu às manifestações de massa, em que Jango
anunciava medidas nacionalistas, organizando as “marchas da família com Deus pela
liberdade”, condenando o suposto avanço do comunismo no Brasil. O golpe militar de
31/03/1964, que depôs o presidente, vinha sendo discutido anos, no interior das
Forças Armadas e entre lideranças empresariais e previa, inclusive, se necessário, em
caso de resistência, o auxílio do governo norte-americano, por meio da doação de armas
e munições ao exército brasileiro.
Um dos fatores relacionados ao apoio norte-americano traduzido pelo cerco
daquela frota, consiste na aprovação, por Jango, meses antes do golpe, da lei que
impedia a remessa de lucros para o exterior. Ciente da crise iminente, Jango teria
afirmado a Celso Brant, autor da lei, que estaria assinando ali sua própria deposição.
Grupos antinacionalistas, reunidos sob a denominação de militares da “linha
dura”, possuíam um projeto político duradouro de desenvolvimento para o país,
compartilhado pela maioria do empresariado nacional. A intenção era retomar o modelo
70
de desenvolvimento do final dos anos 1950, formado pelo tri entre empresários
nacionais, multinacionais e estatais. A repressão ao movimento sindical e à oposição
política foi meticulosamente organizada a partir do golpe. Em resposta ao
descontentamento de parcela significativa dos brasileiros com o novo governo, foram
impostos os Atos Institucionais 2 e 3, que aboliam os partidos políticos existentes e
as eleições diretas para presidente, governador e prefeito (DEL PRIORE e
VENÂNCIO,2001:351-8).
Coimbra afirma que, durante este período, toda a América Latina foi coberta por
pesadas nuvens das sangrentas e cruéis ditaduras militares instaladas, onde a
“Doutrina de Segurança Nacional” não tolerava antagonismos internos, a fim de manter
a “segurança do regime”. Sendo assim, no Brasil, toda e qualquer oposição que pudesse
abalar a segurança do estado era punida, de modo que esta doutrina prevaleceu sobre
todas as leis, inclusive sobre a Constituição Federal, alcançando diferentes campos da
vida social, política, econômica, trabalhista, criminal e educacional.
Três meses após o golpe, em junho de 1964, foi criado o Serviço Nacional de
Informações, o S.N.I., que se conectava com os governos dos estados, municípios e
empresas privadas. Durante o Governo Médici (1969-1974), as funções e prerrogativas
do S.N.I. aumentaram significativamente e ocorreu sua militarização, tendo se tornado
uma espécie de quarta força armada, embora não uniformizada. Dentro e fora do Brasil,
tornou-se o mais importante órgão da repressão, com agências nos ministérios,
empresas estatais e universidades, tendo alcançado um grau extraordinário de
prerrogativas legalmente sancionadas e autonomia burocrática, sem paralelo nas demais
ditaduras da América Latina(Coimbra, 1995:19-20).
Desde 1964, as prisões representavam uma etapa especial do aparato repressivo,
que se fortaleceu após 1969, utilizando-se de métodos que não respeitavam qualquer
princípio moral, ético ou jurídico. Um delegado da época afirmou que o aparato
repressivo foi iniciado numa situação extra-legal para uma situação oficial, a partir da
transformação da OBAN - Operação Bandeirantes, engenhosa máquina de torturas e
assassinatos que agrupava setores atuantes nos órgãos de repressão, sustentada por
71
empresários paulistas no Destacamento de Operações e Informações / Centro de
Operações de Defesa Interna, o DOI-CODI, que ficava sob a jurisdição do Comando
Regional do Exército
22
.
Ao longo desta institucionalização, estabeleceram-se os esquemas e artifícios
necessários à atuação de um órgão clandestino, como a utilização de codinomes. A
atuação dos DOI-CODIs não se subordinava a qualquer mandamento legal ou limites
jurisdicionais, e eles estavam estruturados em cada região militar do país, aumentando a
integração entre os organismos repressivos existentes, ligados às três Forças
Armadas, à Polícia Federal, às Polícias Estaduais, ao D.O.P.S. (Delegacia de Operações
Político-Sociais), às Polícias Militares, aos Corpos de Bombeiros, a fim de “melhorar a
eficiência da repressão”. Tais são seus poderes e força que chegou-se a afirmar que
havia, no início dos anos 1970, um verdadeiro Estado dentro do Estado
(COIMBRA,1995:21).
Os agentes do regime buscavam, onde quer que fosse, suspeitos, militantes e
ativistas de oposição ao regime, que eram aprisionados, interrogados sob tortura e
assassinados. Em todos esses casos, a tortura ataca diretamente a dignidade humana,
mas é sobre o corpo dos punidos que tortura se localiza de maneira mais direta,
conforme ressalta Guerra Filho: “O corpo sempre foi um lugar privativo na
demonstração e revelação do poder social vigente” (GUERRA FILHO,2000:9).
Decorrentes de ordens do Comando do DOI-CODI, quase todas estas prisões
configuravam-se como seqüestros, pois não eram comunicadas à autoridade judicial.
Embora prescindisse de maiores formalidades legais, estas prisões eram amparadas pelo
artigo 59 do Decreto- Lei 898/69, de 29 de setembro de 1969 (Legislação de Segurança
Nacional). Combinada aos princípios deste Decreto-Lei, que institucionalizava a tortura
no Brasil, a Emenda Constitucional 1 de 17 de outubro de 1969, no artigo 153, § 12,
autorizava a prisão por autoridade não necessariamente judiciária:
22
“Capitão Lisboa”, codinome de Davi dos Santos Araújo, ex-integrante da OBAN e do DOI-CODI.
72
“§ 12 Ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita da autoridade
competente. A lei disporá sobre a prestação de fiança. A prisão ou detenção a qualquer pessoa será
imediatamente comunicada ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal;”
A autoridade competente acima poderia ordenar a prisão do indiciado, por trinta
dias, prorrogáveis uma vez, tendo somente que comunicar a prisão, já efetuada, ao juiz,
conforme o Decreto-Lei 898/69, Artigo 59: “Durante as investigações policiais o
indiciado poderá ser preso, pelo encarregado do inquérito até trinta dias, comunicando-
se a prisão à autoridade judiciária competente. Esse prazo poderá ser prorrogado uma
vez, mediante solicitação fundamenta do encarregado do inquérito à autoridade que o
nomeou”.
O parágrafo 1. deste artigo ia mais longe, ao permitir que os presos ficassem
incomunicáveis por 10 dias : “O encarregado do inquérito poderá manter incomunicável
o indiciado a dez dias, desde que a medida se torne necessária às averiguações
policiais-militares” (BARROS DA SILVA, 2000:42). Mesmo após esses dez dias, por
meses, eles não poderiam se encontrar com seus familiares ou defensores e, em vários
casos, as prisões eram constantemente negadas.
Com o artigo 59, estava institucionalizada a tortura na ditadura militar, que o
encarregado tinha tempo para praticar as maiores covardias contra seres indefesos e,
ainda, recebia a autorização de prorrogá-lo por outra autoridade, não necessariamente
judiciária, o que fica evidente ao analisarmos a primeira Constituição promulgada após
a ditadura militar, em 05/10/1988: ao revogar a incomunicabilidade do preso, até em
casos excepcionais como o Estado de Defesa e de Sítio, ainda mais numa situação
ordinária, esta demonstra que a teratologia jurídica daquele artigo foi traumática. Em
seu artigo 5º, inciso LXI, a Constituição Federal de 1988 reza que: “ninguém será preso
senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária
competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar,
definidos em lei”.
Por outro lado, a proibição da incomunicabilidade insculpida na Constituição de 1988
73
tem um valor que se limita à esfera jurídica, que a tortura está mais disseminada nos porões do
sistema presidiário brasileiro hoje no neoliberalismo do que na época da ditadura.
Enfim, o Decreto-Lei 898, de 29 de setembro de 1969 e a Emenda-Constitucional são a própria
prova de que a tortura era uma política do Estado Ditatorial. Tais legislações consistem na coluna
vertebral do sistema punitivo, ao possibilitarem que muitas atrocidades fossem cometidas como os
inúmeros casos de tortura e desaparecimento de presos políticos (BARROS DA SILVA, 2000:43).
Essas foram estabelecidas no seguinte contexto histórico: em 4 de setembro de 1969, 5 dias após a
junta militar tomar a Presidência do Brasil, no lugar do General Costa e Silva, que deixou a
presidência por razões de saúde, o embaixador americano Charles Elbrick foi sequestrado pelo MR-8
(“Movimento Revolucionário Oito de Outubro”) e a A.L.N. (“Aliança Libertadora Nacional”), dois
grupos que desafiaram a ditadura militar através da guerrilha urbana.
No dia 30 de outubro de 1969, tomava posse da Presidência da República o General
Emílilo Garrastazu Médici, que jorrou de sangue o pior período da ditadura brasileira. O
Decreto-Lei 898 foi o principal instrumento jurídico para acobertar a tortura notoriamente
disseminada nos porões da ditadura militar, onde inclusive se recebia instruções de agentes
da C.I.A.. Nesta época, os presos políticos ficavam junto com os presos “comuns”, quando
ambos participavam de assaltos a bancos ou expropriações, segundo os primeiros. Todos os
presos eram torturados com a mesma brutalidade, porém, a partir de então, estabeleceram-se
técnicas detortura científica”, que se acumularam às tradicionais formas racistas de tortura
oriundas do açoite da senzala. Deste modo, o assalto a banco é um exemplo emblemático da
acumulação do poder punitivo, pois, num primeiro momento, este consistia num crime
comum, de modo que os autores de toda forma de expropriação eram presos juntos. Mas
depois, por exigência das famílias dos presos políticos e por medo das trocas de
conhecimentos por meio deste contato, eles foram separados. Com a luta armada contra a
ditadura militar promovida pela esquerda brasileira, o assalto a banco passou a ser uma ação
importante para sustentar a guerrilha. Assim, desencadeou-se toda uma preocupação por
parte da repressão em separar os criminosos, que autorizou os bancos a se utilizarem de
segurança privada e centralizou sua autorização à esfera federal.
74
O importante, assim, é perceber que a tortura fazia parte da política do Estado
ditatorial, mas era negada em cadeia nacional pelo então presidente Médici. Todavia,
seu período de mandato foi quando ocorreram as piores atrocidades contra a brilhante
geração, em sua maioria estudantes universitários, dos anos sessenta. O assassino
Garrastazu Médici negava a tortura, repetindo a cartilha de Hitler, segundo o qual “a
verdade não era importante, mas, sim, a vitória”. Então, como negar que a tortura era
uma política do Estado Ditatorial?
Seria ingênuo acreditar que a tortura no regime militar no Brasil era uma política
decidida pela “loucura” dos torturadores. Conforme já citado, o poeta Ferreira Gullar
afirma que estas medidas não eram tomadas meramente por soldados “tarados”, até
porque a sofisticação dos equipamentos, muitos deles importados, e o espaço onde
aconteciam, inevitavelmente, implicavam na concordância e ordem por parte dos
governantes daquele tempo, os militares de alto escalão. A tortura era uma política de
Estado da ditadura militar, e era, inclusive, em parte, patrocinada pelas classes
dominantes.
Também não podemos acreditar que as doações ao regime de exceção, como as
efetuadas pela OBAN, se resumissem a uma questão financeira. A tortura era parte
substancial dos métodos de interrogatório - praticada para obtenção de informações,
humilhação, intimidação, atos aterrorizadores, punição ou assassinato - e
evidentemente, era aceita pela Justiça Militar, pois esta recebia como prova
depoimentos assinados durante as sessões de tortura, muitas das quais participavam
promotores e membros de Conselhos de Sentença de Auditorias Militares.
Durante a Ditadura, também ocorreram exemplos de permanências evidentes ao
longo das mudanças de mandato, sendo que um dos mais estarrecedores é a vida política
do ex-presidente da República General João Batista Figueiredo. Figueiredo, como era
conhecido, em 1970, havia sido Chefe do Serviço Nacional de Informações S.N.I.
órgão que comandou diversas torturas. Coimbra recorda que todos os generais
presidentes, antes de assumirem o executivo, estiveram de alguma forma ligados a este
75
Órgão (COIMBRA,1995:20). Contraditoriamente, nove anos depois, enquanto
Presidente da República, foi o mesmo Figueiredo que assinou a 'Lei de Anistia'. Como
este, há inúmeros outros exemplos análogos na História do Brasil.
Deste modo, além do açoite presente nos séculos escravocratas, existem elos
históricos entre as recentes torturas ocorridas durante o regime militar e a atual política
neoliberal brasileira, onde a tortura é uma realidade de nossas carceragens. A chibata
histórica de um biopoder etnocêntrico, assim como o terror da Barão de Mesquita (onde
funcionava o DOPS, Tijuca, Rio de Janeiro), estão presentes nas atuais celas públicas
brasileiras.
Atualmente, observa-se no Brasil, a prática notória de três formas de punir: a
tortura, a cadeia e a morte. Oficialmente, o Estado reconhece apenas a cadeia como
aplicação corporal da pena. A tortura e o homicídio são, inclusive, tipificados
criminalmente, mas, paradoxalmente, fazem parte da mesma política de Estado. A
tortura nas delegacias e presídios é pública e notória, a começar pelos números de
presos e a capacidade das celas. Ambas aconteceram em grande escala nas repartições
públicas, como Polícia e Forças Armadas. Tanto que os arquivos da ditadura ainda estão
fechados no Brasil. Sendo assim, a acumulação das práticas históricas de punir os
pobres com os chamados subversivos na Ditadura Militar é bem fundamentada por Vera
Malaguti Batista:
“na transição da ditadura para a ‘democracia’ (1978-1988), com o deslocamento do inimigo
interno para o criminoso comum, e com o auxílio luxuoso da mídia, permitiu-se que se mantivesse intacta
a estrutura de controle social, com mais e mais investimentos na ‘luta contra o crime’. E, o que é pior,
com as campanhas maciças de pânico social, permitiu-se um avanço sem precedentes na internalização do
autoritarismo. Podemos afirmar, sem medo de errar, que a ideologia do extermínio é muito mais massiva
e introjetada que nos anos imediatamente posteriores ao fim da ditadura” (MALAGUTI
BATISTA,2003:134-5).
A ditadura militar brasileira construiu o discurso de que existia uma guerra, a
fim de justificar a violação dos direitos básicos, sob o argumento da legítima defesa do
corpo social. Com o fim da guerrilha urbana e a transição para a democracia, a herança
repressiva foi acumulada e deixada para os criminosos comuns, porém, desta vez, a
76
guerra deixou de ser contra a 'ameaça do comunismo' e passou a ser contra o tráfico de
drogas, no varejo e no atacado, e contra a violência de modo geral, localizada também
nos crimes contra o patrimônio.
Em termos mundiais, utiliza-se a ideologia de guerra contra o terrorismo e o
tráfico internacional. Não por acaso, foi justamente no período da Ditadura Militar que
se deu a concessão de importantes empresas de televisão, como a “Rede Globo”, e que
surgiram outros meios de comunicação, dentre eles, por exemplo, a revista “Veja”,
ambas importantes arautos do discurso do medo que permeia as representações sociais
acerca da violência urbana entre as classes médias das grandes metrópoles brasileiras.
Com a Abertura, os agentes do período ditatorial não foram punidos, mas
continuaram nos cargos públicos, que na Democracia vigente. Além disso foram
aproveitados em setores altamente lucrativos como o da segurança privada. Nascidos
em razão dos assaltos a banco pelas organizações de esquerda, o setor teve autonomia,
porém com controle e fiscalização de âmbito federal. Aliás, o assalto a banco é bem
emblemático da acumulação do poder de punir. As punições eram aplicadas no mesmo
lugar, porém, sob formas diferenciadas, com a mesma crueldade a pessoas de
descendência africana e européia.
Da mesma maneira, atualmente, a tortura não é permitida. Pelo contrário, é
criminalizada, pois nossa Constituição garante que ninguém será torturado. Mas, na
realidade, nunca, em nossa história, se torturou tanto como agora. Como negar que a
tortura é a própria naturalização da Política Punitiva do Estado Neoliberal?
Naturalização, no sentido de que não causa perplexidade por parte da sociedade, mas
esta a considera uma prática corriqueira e de certo modo, a legitima, tratando-se
praticamente de uma regra nas prisões do Brasil.
77
7. Neoliberalismo
“A violência não pode ser vista como uma anomalia isolada do conjunto das
relações sociais. Ela é um sintoma de mudança da sociedade. Quando nos deparamos com índices e cenas
cotidianas de violência precisamos pensar que isto não foi sempre assim e, principalmente, não deve ser
assim. No caso do Brasil, em que pese que as relações da classe dominante com as classes subalternas
sempre tenham sido violentas, desde o início dos anos 1990 uma mudança de qualidade nestas
relações, e esta mudança é para pior. A razão deste quadro deve ser buscada no encerramento do nosso
modelo de substituição de importações. Com o fim deste ciclo da nossa história, o país precisou encarar a
concorrência aberta no mercado global. Setores inteiros do nosso parque industrial não suportaram . Além
disso, houve uma renovação das bases tecnológicas do processo de produção, que acarretou uma imensa
economia de mão-de-obra. Esta situação tem nos levado ao que alguns economistas têm chamado de as
décadas perdidas’ – 1980 e 90. ora no país campeão mundial da desigualdade social, este estado de coisas
não poderia produzir outra coisa diferente de uma guerra civil do novo tipo. Nos últimos 15 anos,
morreram por causas externas no Brasil 600 mil pessoas, na maioria jovens negros. Morreram nos últimos
cinco anos uma média de 37 mil pessoas por ano! Estes são números de uma sociedade em estado de
barbárie. Você me pergunta como podem ser as relações na universidade em relação a este tema. Agora
eu lhe respondo: deveriam ser lúcidas e o engrossar este caldo repressivo que toma conta do senso
comum manipulado pelos grandes meios de comunicação e sua produção interessada de medos.’
Marildo Menegat
(entrevista concedida ao Jornal da Associação dos Docentes da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, de 14 de novembro de 2005).
78
Foi afirmado, no início deste texto, que a visão do Direito Penal não pode se
afastar de sua realidade, que é política, nem perder de vista que o Poder Punitivo é
exercido a serviço das classes dominantes. Assim, a segregação de classe acontece em
diversos níveis e não somente quanto às práticas punitivas. Neste sentido, as questões da
renda e do território são bastante expressivas. Evidentemente, as metrópoles foram
construídas a partir do interesse dos setores com maior renda. Quanto menor a renda,
mais escassa a existência de bens públicos. Para se identificar o padrão de vida de um
lugar, basta observar a qualidade do asfalto, a quantidade de árvores e de placas de
sinalização. Quanto mais alta a renda, mais servida é a respectiva região de
policiamento, saneamento básico, hospitais públicos, transporte público, praças públicas
e áreas de lazer. Esta é a realidade das metrópoles brasileiras, uma demonstração clara
da divisão de classes na cidade.
Trata-se de uma realidade mundial: acontecimentos como a quebra da Bolsa de
1929, somados ao medo da “classe perigosa”, originaram alternativas ao perigoso
exemplo comunista da revolucionária Rússia de 1917: a Social Democracia européia e o
Estado de Bem Estar Social de Roosevelt e Keynes (Welfare State). Segundo esta
perspectiva, as práticas punitivas adotariam um discurso humanista, mas criavam
instrumentos de criminalização de membros da classe trabalhadora. A cadeia é a forma
de punir o corpo privando-o da liberdade.
Em suma, vivemos num Estado Neoliberal, do qual um importante marco
histórico pode ser identificado com a queda do muro de Berlim, em 1989, evento que
simbolizou o “fracasso do socialismo”. De fato, o muro estava corroído algum
tempo, e bastava soprar para derrubá-lo. O muro caiu na cabeça de todas as pessoas que
lutavam pelo socialismo na época, abrindo espaço para o pretensioso discurso de que se
tratava do “Fim da História”, no qual o capitalismo seria o grande e definitivo vencedor.
Esta era a mensagem passada para todo o mundo.
A queda do muro fez parte de um processo, do qual destacam-se eventos
marcantes tais como a ascensão de Margareth Thatcher, em 1979, na Inglaterra - que
79
deu início a uma política de privatização de Estatais de Reagan à Casa Branca, em
1980, e de Gorbatchov ao Kremlin em 1985. Além disso, todos esses acontecimentos
foram abençoados pelo Papa João Paulo II, que exercia enorme influência política. Com
Thatcher, Reagan, o Papa João Paulo II e Michail Gorbachov, o mundo assistiu à queda
do chamado 'socialismo real'. Através de seus grandes meios de comunicação, as classes
dominantes, puderam propagar a idéia que se chegava ao “Fim da História”, com a
vitória final e incontestável do capitalismo. Wacquant recorda que, quando Reagan
chegou à Casa Branca, os Estados Unidos destinavam 6,9 bilhões de dólares a seus
estabelecimentos de detenção contra 27,4 bilhões à habitação social. Dez anos mais
tarde, vão 19 bilhões a mais para as prisões, totalizando 26,1 bilhões, enquanto foram
retirados 17 bilhões da habitação social, do que conclui o autor:
Desta evolução orçamentária, pode-se concluir indiferentemente que o Estado americano
abandonou seu apoio à moradia dos mais desvalidos em proveito das penitenciárias ou, então, que parece
mais justo, que a construção de prisões tornou-se, de fato, o principal programa de habitação social do
país” (WACQUANT,2003:86).
No que diz respeito à sociedade norte-americana, a partir da década de 1980, o
rótulo de underclass, criado por jornalistas do Chicago Tribune, é útil para se
caracterizar o tipo de inimigo que surge sob a égide deste novo sistema. o
considerados membros da underclass, o em função de sua falta de recursos, de
possibilidades de emprego ou mobilidade sócio-econômica, mas sim por
“comportamentos anti-sociais” que os fazem divergir do mainstream
23
daquela
sociedade. Auletta (1982) justapõe sob esta etiqueta quatro categorias de “perdedores
sociais”, que não têm grande coisa em comum senão o fato de serem:
temidos, desprezados e desprovidos de poder: os 'pobres passivos' que usufruem das ajudas
sociais, os 'criminosos de rua que aterrorizam grande parte das cidades', os trapaceiros e bandidos da
economia informal (mesmo quando enriquecem e o cometem violências criminais) e, enfim, os
'alcoólatras traumatizados, os vagabundos, as pessoas sem domicílio fixo e os doentes mentais'
(WACQUANT,2001:99)”.
23
Mainstream: corrente principal (Webster, 2000).
80
Deste modo, a definição da violência a ser combatida é parte essencial da formulação da
estratégia para combatê-la. De um lado, define-se o inimigo, de outro, fica estabelecida toda uma
orientação de repressão ao crime. Em “As Prisões da Miséria”, Wacquant (1999) examina esta
orientação a partir do crescimento daquilo que se denomina “Estado Penal”, o que ocorre junto à
retirada do Estado da economia e à diminuição dos recursos destinados a programas sociais, com o
discurso do ataque ao Estado-Providência. Segundo este projeto, ao mesmo tempo, são velados os
efeitos de uma política econômico-social que marginaliza uma parcela da população, enquanto
segmentos mais baixos do mercado de trabalho são reeducados para as novas regras do jogo, com
empregos menos seguros e condições mais precárias. Em termos mundiais, a articulação entre a
ampliação do sistema penal, a liberalização econômica e o abandono ou redução das políticas
sociais, característica dos governos Thatcher e Reagan, expande-se para o resto da Europa e
também para a América Latina (WACQUANT, 1999).
Concomitantemente, em 1989, ano da queda do muro de Berlim, na capital do
Estados Unidos da América, o “Consenso de Washington” reuniu funcionários do
governo americano, do FMI (Fundo Monetário Internacional), do B.I.D. (Banco
Interamericano de Desenvolvimento), a fim de discutir os problemas latino-americanos
sob a visão neoliberal. Os funcionários designados por estes órgãos eram considerados
especialistas sobre assuntos da América Latina. A proposta elaborada, mesmo não tendo
caráter deliberativo, foi de importância internacional. O Brasil, como tradicional parte
do “quintal” norte-americano, foi sendo engolido pelo projeto Neoliberal. As mudanças
foram logo percebidas na primeira eleição após a ditadura militar, onde o presidente
eleito, Fernando Collor de Mello, iniciou o projeto de privatização, com a entrega da
“Cobra”, empresa de computadores brasileira, com um legado de anos de pesquisa. O
“assalto” à poupança popular também marcou o início deste projeto, quando as
economias de todos os brasileiros foram confiscadas (BATISTA,1994), o que foi
somado ao endividamento público, transformado numa armadilha, pois passou a ser o
instrumento para a imposição das políticas econômicas do F.M.I..
81
O horror econômico neoliberal foi ainda mais trágico nos países
subdesenvolvidos. No Brasil, que já tinha uma das piores desigualdades sociais do
mundo, foi terrível, consolidando assim tal projeto e naturalizando a política
internacional do genocídio. Este contexto só poderia ocasionar um aumento da violência
urbana e foi o que aconteceu, conforme apontou Menegat, ao afirmar que a morte de
600 mil pessoas por causa externas, negros em sua maioria, atestam uma “sociedade em
estado de barbárie”. Além disso, se os números publicamente conhecidos da violência
do extermínio urbano forem somados aos de morte por doenças originadas pela fome,
esses dados corroboram a afirmação de que se trata de uma política neoliberal genocida.
Por outro lado, em teoria, o discurso científico do Direito Penal apresenta um
regime capitalista mais humano e inteligente na forma de punir. Podemos perceber,
entretanto, que não é esta a realidade. O Estado e suas Políticas Públicas são erguidos,
em regra, na mesma direção das zonas onde estão as classes privilegiadas, na
perspectiva do mercado de compra e venda de bens imóveis.
Wacquant propõe que, primeiramente, busquemos “desnaturalizar” um certo
discurso onde são confundidas causas e resultados da violência, onde são freqüentes os
termos “delinqüência”, “violência urbana”, “incivilidades”, e áreas sensíveis”, bairros
pobres e “degradados”, onde esse “mal das grandes cidades” é supostamente gerado. A
partir desta visão deturpada, as políticas sociais acabam sendo consideradas
“excessivamente generosas”, ao mesmo tempo em que diminui a tolerância aos
pequenos delitos, tidos como a origem da violência (WACQUANT, 1999).
As cidades foram sempre construídas para as classes privilegiadas e as periferias
foram a elas se anexando, em parte, pela expulsão dos pobres dos centros, em parte,
pela migração decorrente do “êxodo rural”, principalmente de naturais da região
nordeste do Brasil, provocado pela falta de água, de comida e de terra, sob a opressão
do latifúndio. Assim, quando grupos de extermínio atuam nas periferias livremente, é
porque, lá, o Estado se encontra pouco presente, ou, “à paisana”, inclusive integrando
esses grupos. Um exemplo trágico foi a recente chacina de 31 pessoas, a 31 de março de
82
2005, em Nova Iguaçu. Portanto, apesar de ser constitucionalmente garantido que não
existe a pena de morte, estes dados comprovam a existência de uma política de
extermínio do Estado neoliberal.
É neste contexto que devemos enxergar o Sistema Punitivo. Quando tantas vidas
são perdidas por causas externas, é possível concluir que, além da falta de ações mais
essenciais relacionadas às necessidades básicas de Saúde, Saneamento, Nutrição, o
Estado o estabelece qualquer política de controle sobre os poderosos grupos de
extermínio, o que reflete um sentimento coletivo de, senão desconhecimento desta
realidade, de insensibilidade à mesma.
também exemplos em que estas práticas não atingem somente indivíduos das
classe desfavorecidas: o assassinato de quatro fiscais do trabalho, em janeiro de 2004,
em Unaí, Minas Gerais, que realizavam a apuração de uma denúncia de trabalho
escravo, onde um dos principais acusados de ser o mandante do crime é o prefeito da
cidade, reeleito e empossado em 2005
24
, mesmo após ser preso e processado, é uma
clara demonstração de uma política de Estado apoiada pela própria comunidade.
Portanto, apesar de ser constitucionalmente garantido que não existe a pena de morte, o
extermínio é uma política do Estado Neoliberal. Por isso, Organizações não-
Governamentais como a “Anistia Internacional denunciam esses extermínios, que
alcançaram notoriedade mundial, acusando o Estado brasileiro de ser responsável e
conivente com os mesmos.
Além do extermínio, a tortura, teoricamente ilegal e incompatível com o
capitalismo, continua existindo. Embora não seja respaldada pela lei, é um fato
recorrente nas repartições policiais do Estado. Portanto, é de se observar que as diversas
formas de poder de punir, embora muitas delas desprovidas de amparo legal, são
exercidas pelo mesmo e fazendo parte de uma política de Estado, inclusive amplamente
apoiadas pelos “incluídos” na sociedade de consumo. Não se pode acreditar que a
tortura seja uma política dos torturadores, enquanto indivíduos, bem como o extermínio
24
Antero Mânica, prefeito de Unaí, Minas Gerais, pelo PSDB.
83
não é uma brincadeira odiosa de matadores. Tudo isso faz parte de uma política
estrutural deste Estado, neoliberal concentrador e excludente.
A chibata histórica de um biopoder etnocêntrico, assim como o terror da Barão
de Mesquita, onde funcionava o DOPS, no Rio de Janeiro, à época da Ditadura, estão
presentes nas atuais celas públicas brasileiras. Nas ruas, a multidão imersa no “horror
econômico” neoliberal (FORRESTER,1997) representa a própria institucionalização da
política do genocídio. As execuções de pessoas estão naturalizadas nesta sociedade de
multidões, onde vidas são descartavelmente matáveis. Quanto mais despidos” de
cidadania, mais matáveis são os sujeitos. Afirmou-se que, no Brasil, uma média anual
de 37 mil pessoas é vítima de disparo de arma de fogo. Quanto mais nuas, mais
matáveis as vidas. O que passamos a viver é a lógica da exceção que se transformou em
regra.
O assassinato de crianças com cerca de 10 anos de idade, muitas vezes realizado
diretamente por agentes do Estado, é freqüentemente compreendido de modo
equivocado, fazendo com que passem de vítimas a réus, segundo a mentalidade vigente.
Estas crianças nascem sem direito à água potável, à escola, à saúde e são apontadas
como a causa da violência. No entanto, ao contrário de um mero “acidente”, a
eliminação de vidas “faz parte” da política punitiva do Estado Neoliberal. Além de
incentivar, quando os supostos bandidos se matam, uns aos outros, os agentes do Estado
também realizam tais assassinatos. Os grupos de extermínio, são, em regra, compostos
por ex-membros e membros de agências policiais.
A rigor, quando uma criança o tem o direito à água potável, ela nasce
recebendo uma punição por parte da política do Estado Neoliberal. Quando uma criança
brinca com porcos nas valas imundas das favelas ela está sendo punida. Esta criança não
tem acesso à escola, nem a condições mínimas de saúde, cresce “pelada”, despida de
cidadania, e ainda, ao final deste processo, acaba sendo considerada a “autora” da
violência, quando na realidade é vítima. Esta também é uma forma de punição
cumulativa, em cima de uma vida nua.
84
O final de milhares destes brasileiros será a cadeia, ou tornar-se desaparecido, ou
mesmo ser enterrado como indigente. Trata-se também de um processo cumulativo do
poder de punir, que reúne desde a falta de condições mínimas de existência, de água, de
escola, até chegar à execução final. Comparemos as cadeias do Brasil com as do
Primeiro Mundo. Não é possível imaginar na França uma cadeia como a “Polinter”,
onde 1600 pessoas estão presas num espaço que cabem 250. Todavia, quando são
apontadas as injustiças do Sistema Punitivo, as acusações costumam se direcionar
somente contra a polícia, como se juízes, promotores, advogados e a própria sociedade
não fizessem parte de uma política etnocêntrica que ergue um muro entre alguns
privilegiados e uma multidão de pessoas que vivem na pobreza e na miséria.
É por isso que, ao contrário de serem meros atos isolados, as torturas e as
execuções integram, tanto quanto a prisão, a Política Criminal do Estado, legitimada
pela sociedade. Mais que situada pontualmente no Sistema Penal, a cadeia e a tortura
encontram-se em continuidade com toda uma punição social, no contexto de uma
política do Estado Neoliberal. O horror econômico passa a ser “naturalizado”, deixando
de causar qualquer perplexidade. O Estado de exceção torna-se a regra.
Nas regiões privilegiadas, onde ocorrem menos homicídios é onde um
número maior de policiais em relação ao número de cidadãos. A lógica desta realidade é
que vivemos numa sociedade dividida em classes, sendo assim, as cidades e o Estado
foram erguidos na direção e na lógica da acumulação de capital. O capital corre para
onde pode acumular mais capital. Os bancos sempre aceitaram todo tipo de dinheiro,
seja ele limpo ou sujo, se é que se pode falar em dinheiro limpo no Sistema Capitalista.
Repetimos: o extermínio é uma política de Estado, que se faz totalmente ausente nestas
regiões. A política neoliberal é de enxugamento do Estado, e é evidente que o FMI não
está preocupado com a segurança nas regiões periféricas do mundo, como, por exemplo,
a Baixada Fluminense. O que importa é saber se o Estado está honrando os serviços de
suas dívidas.
85
O dinheiro criou um novo metabolismo social, sendo explicado pelo encanto de
seu poder que tem de ser trocado por qualquer mercadoria, porque é uma mercadoria
universal. Ao estudar o “caráter fetichista da mercadoria e seu segredo”, Marx
descreveu como o mais ordinário dos bens manufaturados se torna uma figura
prodigiosa no sistema capitalista. Segundo ele, o valor das coisas é “uma relação entre
pessoas, escondida sob o envelope de coisas” e o dinheiro é crucial nesta relação social
(MARX,1946:79). O capital, que é a acumulação de dinheiro, é um instrumento muito
forte, no sentido de influenciar outras acumulações, pois, além dos objetos materiais,
compra o trabalho e a consciência das pessoas, sem falar na mídia, que é o verdadeiro
“microfone da assembléia”.
A relação direta entre a acumulação de capital e a acumulação do poder de punir
foi claramente apresentada pelo maravilhoso brasileiro Darcy Ribeiro, que inclusive
registrava que respeitar Marx não era apenas citá-lo, mas repensá-lo:
“Por meio dessas duas faces complementares a metropolitana e a colonial o sistema passa a
atuar gerando, numa delas, o capital e os capitalistas contrapostos a massas crescentes de assalariados; e
na outra, camadas gerenciais subalternas e massas escravizadas e avassaladas. Estas últimas não
representavam para o sistema mais do que uma espécie de combustível humano explorado localmente ou
importado da África para produzir artigos de exportação, metais preciosos e minérios. Não eram
“propriamente trabalhadores, mas apenas trabalho”, tal como aquele que seria oferecido, amanhã, pelas
fontes inanimadas de energia (K. Marx, 1966:41). Nessa qualidade, propiciavam uma acumulação de
capital muito maior do que a obtida pela exploração de assalariados e ensejavam a reversão para as
economias metropolitanas, amadurecidas como estruturas capitalistas, de recursos cada vez mais
vultosos.” (RIBEIRO,1978:151).
Darcy demonstrou que o projeto de desenvolvimento nacional consiste numa
falácia, que está diretamente vinculado às elites entreguistas e gerenciais, cujo
exercício do poder de punir sempre fez parte de uma lógica internacional em que o
subdesenvolvimento foi um dos grandes combustíveis de acumulação de capital das
elites dos países centrais:
A primeira atualização que experimentamos ocorreu com os índios e os negros que, atingidos
pela expansão européia, não evoluíram da tribalidade à civilização, mas foram tão-somente arrastados à
condição de força de trabalho das colônias escravistas mercantis que as nações ibéricas fundaram no
Novo Mundo, no curso da Revolução Mercantil. A segunda ocorreu com o trânsito que sofremos da
86
condição colonial à neocolonial, no corpo da Revolução Industrial, e que nos confirmou na situação de
povos de segunda classe, enquanto os EUA, por exemplo, se integravam autonomamente, por aceleração
evolutiva, na nova civilização. A terceira é a que as nossas classes dominantes gerenciais, na qualidade de
associados das corporações multinacionais, estão promovendo em nossos dias com a maior eficiência. À
luz dos conceitos de atualização versus aceleração, fica evidenciado que seus esforços de modernização
visam nos atrelar à civilização pós-industrial, outra vez na condição de povos dependentes que
continuarão contribuindo tanto para a prosperidade alheia, que o poderão cuidar de sua própria
prosperidade” ( Idem Ibidem,1978:23).
Deste modo, o biopoder é exercido em esfera internacional, privilegiando,
proporcionalmente, pouquíssimas pessoas, tanto nos países subdesenvolvidos como nos
desenvolvidos, em detrimento de uma massa de miseráveis controladas a ferro e fogo.
Seu domínio é claramente etnocêntrico em países como o Brasil e cidades como o Rio
de Janeiro, onde poucos privilegiados têm acesso aos bens materiais mais sicos,
inclusive os serviços do Estado, enquanto a massa de pessoas na pobreza, que é
exatamente quem mais precisa, não tem acesso algum ou este é muito reduzido.
Os indícios da monocultura exportadora de açúcar implantada no século XVI
permanecem com o latifúndio e a usina de álcool. O poder dos usineiros do nordeste se
faz presente na bancada ruralista do Congresso Nacional, que trabalham principalmente
nas comissões que tratam da terra e do álcool. É tão forte o poder da elite usineira que a
indústria automobilística brasileria criou a tecnologia do carro abastecido pela gasolina
e pelo álcool.
Ao lado do processo de acumulação de capital acontecem outras acumulações,
cada uma com suas características. O aumento populacional e o capitalismo industrial
também são faces do mesmo processo de acumulação. Desta forma, hoje, os regimes de
trabalho formal, informal e escravo, no Brasil, fazem parte da mesma política autoritária
de acumulação.
A classe dominante passou a ser constituída de novos estratos e precisava
incorporar essas novas categorias. Enfim, o positivismo acumulou o massacre dos
negros presente no discurso escravocrata anterior, como o capital industrial acumulou o
capital mercantilista, que havia acumulado capital do tráfico negreiro. São diversas
87
formas de acumulação que se movem na mesma lógica do capital. O processo de
acumulação que ocorre também com o poder de punir. Ao açoite, a tortura, a pena de
mutilação e de morte, veio se somar a pena de prisão. Mas o que acontece é que às
antigas formas de punir são incorporadas novas formas.
Em suma, mais que um acidente, “tirar a vida” faz parte da própria política de
Estado. As vidas possuem valores diversos em relação à política criminal. À época, da
“chacina em Nova Iguaçu”, em 31 de março de 2004, em que morreram 31 pessoas, foi
publicada no Jornal do Brasil uma crônica como se o fato tivesse ocorrido na Zona Sul.
Se tivesse ocorrido numa área privilegiada, as conseqüências desta brutalidade seriam
mais drásticas, talvez até algum governo chegasse a cair. As pessoas possuem valores
diversos para o Estado e para o pensamento hegemônico. Isso demonstra que quanto
menos politizado o corpo da pessoa, mais matável é sua vida.
Daí a importância de observar, não somente os aspectos formais da lei, mas, em
que tipo de Estado a mesma é aplicada e sua classificação, em termos políticos: trata-se
de um Estado Absolutista, Liberal, Democrático, Socialista, Ditatorial, Neoliberal ... ?
Portanto, não basta se referir a uma política de governos. Outrossim, o Poder Punitivo,
na atualidade, deve ser situado numa política mais ampla dos Estados Neoliberais. Isso
remete, inevitavelmente, às idéias de “multidão”. Estas consistem numa situação diversa
daquela vivenciada pela mão-de-obra de reserva do capitalismo. A miséria aumentou a
tais níveis que não se pode quantificá-la e as pessoas tornaram-se decididamente
descartáveis. Hoje, a tortura e as execuções constituem a Política Punitiva do Estado
Neoliberal aplicada à multidão. Nesse contexto, a acumulação do Poder de Punir e as
contradições evidenciadas pelas ações do Estado Neoliberal, no sentido de combater a
violência, são assim apontadas por Malaguti Batista:
“A oposição entre uma ordem pública virtuosa e o caos infracional, a matriz do combate ao
crime feito como uma cruzada, o extermínio como método, a tortura como princípio, o elogio da delação
e a execução como espetáculo são produtos das lutas políticas e das disputas programáticas de meados do
século XIX, que continuam a operar no Rio de hoje. Então como agora, as forças da ordem são
encarregadas da missão de inspirar confiança às elites e infundir terror nos morros” (MALAGUTI
BATISTA,2003:10).
88
Quanto às “forças da ordem”, é notório que as políticas de extermínio e de
tortura sempre fizeram parte da História Biopolítica do Brasil. O extermínio dos índios
que aqui viviam representou uma ação relevante da colonização brasileira. O açoite das
populações trazidas da África era uma forma de tortura. Enfim, temos a acumulação do
poder de punir, por meio das penas privativas de liberdade enquanto política criminal
oficial do Estado, somadas à política de fazer ‘vistas grossas’ ante a tortura e as
execuções sumárias. Sérgio Verani, na brilhante obra “Assassinatos em nome da lei”
(1996), descreveu como as execuções promovidas por agentes da repressão são
acobertadas pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário de maneira a legalizar estes
homicídios. Os muros altos dos presídios escondem o que muitos sabem, apóiam e o
querem ver: o inferno dos presídios brasileiros, que se assemelham às galés e as
masmorras medievais.
Hoje, o Inquérito Policial é uma demonstração clara das permanências
autoritárias do regime absolutista. Apesar de ser tecnicamente apenas uma peça
preparatória da ação penal, que inclusive pode prescindir da mesma, a quase totalidade
das denúncias do Ministério Público são propostas sustentadas nos inquéritos. De um
lado, a própria polícia é encarada como uma função subalterna da Justiça. Além disso,
no discurso teórico, o inquérito é até dispensável, por não ser processo, mas apenas um
procedimento, nele o cabendo o contraditório e a ampla defesa. Interpreta-se que a
Constituição só estabelece tais garantias nos processos e não em procedimentos, e como
o inquérito é um procedimento, tais garantias não existem na fase policial.
Por outro lado, a realidade é totalmente inversa, a fase policial é, na prática, a
mais importante, porque em regra o fato apresentado pela polícia é o adotado na
Sentença. E os casos que são levados ao conhecimento do Ministério Público e da
Justiça são em quase sua totalidade selecionados pela polícia. A garantia de que o preso
será informado de seus direitos e que será garantida a presença de um advogado, no
Brasil, só existe nos filmes americanos.
Pode ser questionado, e a Defensoria Pública? Em primeiro lugar, simplesmente
89
não são todas as Unidades da Federação que dispõem de Defensoria Pública, embora
em todas o Ministério Público esteja presente e seja, inclusive, bem estruturado. Além
disso, onde ela existe, a Defensoria não tem estrutura nem de pessoal para realizar tal
assistência. O que ocorre de fato é que, durante toda a fase policial, não existe
assistência jurídica para os pobres, quando são presos. Toda esta estrutura permite a
prática da tortura, que é uma regra nas masmorras brasileiras. Durante os
interrogatórios, sob tortura, se confessa qualquer coisa, até o crime que não se praticou
ou se entrega um inocente.
O liberalismo não assumiu a escravidão, e assenta-se sobre um discurso dito
humanista, substituindo o açoite pela cadeia. Todavia, no Brasil, as antigas heranças não
morrem, mas sim, acumulam-se. A tortura e a pena de morte ficam mais evidentes no
Estado de Polícia, durante os regimes ditatoriais, com todo seu respectivo aparato legal
descrito acima. Contudo, no Brasil, principalmente em relação aos pobres, que não têm
advogado nem defensor, durante o inquérito policial, o “Estado de Direito” não
extingüiu totalmente o Estado de Polícia: pelo contrário, o absorve, de modo que suas
práticas mútuas afloram de acordo com as circunstâncias histórico-políticas.
Os bancos sempre aceitaram todo tipo de dinheiro, seja ele limpo ou sujo, se é
que se pode falar em “dinheiro limpo” no Sistema Capitalista. O cartão de crédito é o
voto censitário de hoje. A cidadania, principalmente pelos países capitalistas, veio
sendo relacionada ao direito ao voto. Hoje, no neoliberalismo, a cidadania perdeu
importância para a capacidade de consumo, onde o “título de sócio” do mercado é o
cartão de crédito.
Atualmente, observa-se no Brasil, a prática notória de três formas de punir: a
tortura, a cadeia e o assassinato. Oficialmente, o Estado reconhece apenas a cadeia
como aplicação corporal da pena. A tortura e o homicídio são, inclusive, tipificados
criminalmente. Mas, a tortura e a pena de morte fazem parte de uma política de Estado.
Num passado recente, durante o Regime Militar, isso é comprovado pelos arquivos da
ditadura. Hoje, a tortura nas delegacias e presídios é pública e notória a começar pelos
90
números de presos e capacidade conforme citado. Ambas aconteceram em grande escala
nas repartições públicas, como Polícia e Forças Armadas.
A cadeia veio com a política liberal republicana. Fazendo um discurso
preocupado com a ressocialização, vendendo o sonho do “Bem Estar Social” em
contraponto ao firme propósito dos revolucionários socialistas já organizados, inclusive,
na Internacional Comunista. O discurso liberal acredita que todo um sistema baseado na
total racionalidade geraria um Estado e um sistema eficiente e bom para todos.
A política neoliberal não precisa mais maquear o discurso, até porque, ninguém
mais acredita que o atual sistema possa transformar um marginalizado num trabalhador
comportado e com ótimo emprego. O discurso da ressocialização é incompatível e
totalmente ingênuo diante da realidade do sistema penitenciário brasileiro. A política
beligerante comanda o discurso da vingança”, colocando em lados opostos pessoas de
uma mesma classe, ou seja, policiais militares e “bandidos”, ambos pobres. Isso é
alimentado, por exemplo, por jornais sanguinários que divulgam acontecimentos os
quais legitimam a entrada de uma série de leis penais tais como a dos “crimes chamados
hediondos e equiparados”. Não existe mais hipocrisia, pois um pensamento de forte
inserção no imaginário social legitima a prisão e discursa que a violência social deve ser
combatida com violência, pagando, inclusive, prêmio de bravura ao policial que mata
em combate nos morros do Rio de Janeiro. A lei dos crimes hediondos (8072/90) é a
marca da política neoliberal e representa o moderno discurso da higienização da
sociedade.
Finalmente, são fortes as provas de quê, na atual realidade brasileira, a tortura, a
cadeia e as execuções fazem parte da mesma política de Estado, legitimada por setores
incluídos na sociedade de consumo. Esta realidade demonstra que a exceção
transformou-se em regra. As leis são construídas para situações ordinárias, e as
exceções, criadas para casos extremos, consideradas uma espécie de brecha, tornaram-
se a regra, e verdadeiros “buracos negros”.
91
Giorgio Agamben(2004) identifica, no “Estado de Exceção”, uma permanência
do nazismo. O “Estado de Exceção” avançou simultaneamente ao que ficou definido
como uma “guerra civil mundial” e representa um paradigma de governo dominante na
política contemporânea em que medidas provisórias e excepcionais deslocam-se para
uma tecnologia de governo. Esta situação ameaça tranformar radicalmente a estrutura e
o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição, de maneira que
o Estado de Exceção acaba por estabelecer um patamar de indeterminação, por
exemplo, entre a democracia e o absolutismo.
Com a fuga de populações de países pobres para os centrais, ou como ocorre no
Brasil, das áreas rurais para os grandes centros urbanos, vigora esta espécie de
indeterminação. que aqui, o “nazismo” sempre existiu e portanto nunca ocorreu uma
substituição ou um surgimento do Estado de Exceção, conforme na Alemanha nazista.
Aqui, o Estado de Exceção faz parte de nossas raízes históricas das relações sociais
punitivas do subdesenvolvimento internacional.
Refletindo acerca da obra de Agambem, pode-se concluir que, quanto mais nua,
mais matável é uma vida, neste mundo neoliberal. A vida e a morte perderam
significado nas multidões, mas são valorados politicamente. Quanto mais próxima dos
centros urbanos, mais “politizada” a vida - recordando que pólis quer dizer “cidade”, em
grego - e mais acesso terá esta vida aos bens e serviços do Estado e de consumo. “Onde
as palavras ‘vida’ e ‘morte’ haviam perdido seu significado e que, ao menos sob este
aspecto, não é muito dissímil ao espaço de exceção no qual habita a vida nua. (...) Nas
democracias modernas é possível dizer publicamente o que os biopolíticos nazistas não
ousavam dizer” (AGAMBEN,2002:172)
A afirmação do filósofo ajuda a compreender o Acórdão do Tribunal de Justiça
de São Paulo, que anulou, por 20 votos a dois, a condenação de 632 anos do ex-coronel
Ubiratan Guimarães pelo massacre de 111 presos na Casa de Detenção do Carandiru em
1992.
92
Independentemente de críticas ao sistema condenatório, mas seguindo a mesma
lógica daqueles que defendem este sistema, o caso é um claro exercício biopolítico dos
executores e de todo o aparelho jurídico do estado, apoiado pela elite e pela opinião
pública. Aqui está a prova de que a tortura, a prisão e a morte consistem na própria
política punitiva do Estado Neoliberal brasileiro sobre as multidões de vidas
descartáveis. Os poderes e as formas punitivas foram se acumulando na história do
Brasil, mudando as aparências sem substituir suas essências genocida, escravocrata e
disciplinar.
Cento e onze detentos foram mortos e houve cento e cinqüenta e três feridos,
sendo que, destes, cento e três detentos e vinte e três policiais. Nenhum policial ou
guarda penitenciário foi assassinado. Quinhentos e quinze tiros foram disparados,
principalmente na cabeça e no torax. Os disparos foram desferidos por metralhadoras,
fuzis e pistolas automáticas por policiais da Polícia Militar de São Paulo durante
invasão ao presídio do Carandiru, que começou às 16:00 h. e terminou perto de 24:00 h.
Oitenta e quatro policiais foram denunciados por homicídio, mas nem foram a
julgamento. Vinte e nove foram denunciados por lesão corporal, sendo que seus crimes
foram prescritos. O único julgado foi quem comandou a operação e o massacre,
Ubiratam Guimarães, 632 anos pelo Júri, anulado por 20 a 2 pelo tribunal de Justiça de
São Paulo. Guimarães foi eleito deputado estadual, com o número 11190, destacando o
número 111 como marketing pelo candidato, o mesmo número da quantidade de
mortos.
Durante a redação desta dissertação, Ubiratam foi assassinado, possivelmente
por motivos passionais. Independentemente deste surpreendente desfecho, é assustador
que no Tribunal do Estado mais rico do Brasil, 20 desembargadores tenham anulado a
condenação do mandante de um caso de reprecussão internacional. Com filmes e séries
de televisão produzidos sobre o massacre, tendo, inclusive, sido desativado o presídio
em 2002. Nem os nazistas ousaram dizer o que o Tribunal de São Paulo proclamou e
mandou publicar.
93
A decisão vem coroar a hipótese aqui levantada que o atual sistema punitivo no
Brasil na realidade acumulou o poder e a forma de punir de nossa história. Os
assassinados estavam presos no sistema disciplinar neoliberal e foram torturados e
executados no sistema da forma da Monarquia, onde o Carandiru foi palco de um poder
absolutista. A prova de que também a tortura e a execução o parte como a prisão da
política e biopolítica o Estado Neoliberal brasileiro.
Ainda durante a redação deste texto, ocorreram, nos dias 12 e 13 de maio de
2006, o assassinato de 30 policiais pelas ruas de São Paulo. Esta matança teria sido
preparada pelo Primeiro Comando de Capital (P.C.C.), organização criminosa dirigida
dos presídios de São Paulo pelos presidiários. Nestes dias, dezenas de rebeliões foram
deflagradas nos presídios de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Paraná. Entre os dias 12
e 19, a polícia assumiu que 109 pessoas foram mortas nas ruas de São Paulo em
confronto com a polícia, que afirma que todas são criminosas, tendo 70 % vasta ficha
criminal.
Em seguida, a “chacina difusa” começou a ser esclarecida pela mídia alternativa.
no dia 17 de maio de 2006, o rapper e escritor Ferréz, colunista da revista “Caros
Amigos” e autor dos livros “Capão Pecado”, “Manual Prático do Ódio” e “Amanhecer
Esmeralda”, morador de um dos bairros mais violentos da cidade, Capão Redondo,
desmentiu a versão da polícia no seu blog: "Estão fazendo da nossa periferia um estado
pra lá de nazista"; "Já são mais de 100 'suspeitos' assassinados, e nenhum deles é PCC";
"foi decretada a lei marcial para pobres inocentes"; "A policia covarde, treme perante o
olhar do ladrão, mas mata sem dó quem está simplesmente voltando para casa".
Fábio Schivartche, jornalista da Folha de São Paulo, publicou entrevista
realizada com o Comandante-Geral da Polícia Militar de São Paulo, Coronel Elizeu
Eclair Teixeira Borges (18/05/2006), onde afirmou que todos os mortos eram
“culpados”, porque “não provas em contrário”. Sobre as 109 mortes em confronto, o
coronel declarou: “Todas as mortes aconteceram em contra-ataques da polícia. Está
94
claro nas ocorrências”. Mas os registros de ocorrência e os laudos periciais não
poderiam ser apresentados, segundo o comandante, porque ainda estavam em fase de
investigação, nem o nome das vítimas poderia ser informado.
O governador de São Paulo, Cláudio Lembo
25
, em entrevista concedida ao
jornalista Bob Fernandes, publicada na Folha de São Paulo no dia 19 de maio, mesmo
buscando desviar-se da pergunta, confirmou ser o extermínio uma biopolítica punitiva
de Estado, que veio à tona porque os que morreram não eram vidas matáveis. Destaca-
se o seguinte trecho da entrevista:
“Voltando ao cerne: isso que aconteceu, eventualmente acontece todo final de semana na
periferia. Há chacinas de finais de semana em que se matam 20, 30 pessoas e mal se sabe. E
na periferia, infelizmente, a vida segue...
Desta vez foi assim porque não era só deles (da periferia). E os policiais? Os policiais
podem morrer? Não podem morrer, isso que é o dramático. Eu queria tanto ter visto todos
os que falaram no enterro do bombeiro. Isso era uma sociedade que tinha solidariedade, ir
ao enterro do bombeiro, pobre moço, que não porta nem arma, que só preserva a vida. Mas
nos jornais eu não vi nem cartas falando do pobre bombeiro, pobre família de um jovem
que trabalhava para salvar vidas. Não ouvi nada. Isso me dói.”
Matéria do jornalista Mário César Carvalho, publicada na Folha de
São Paulo no dia 19 de maio de 2006, também comprova o extermínio
enquanto política de Estado. Saulo de Castro de Abreu Filho, Secretário de
Segurança Pública do Estado de São Paulo, avocou todos os laudos e
registros de ocorrência de todas as 109 mortes e o informou nem ao
menos o nome dos mortos. A média de mortes em confronto com a polícia
foi de 1,3 no primeiro trimestre de 2006, saltando para 15,28 do dia 12 ao
19.
O jornal “O Globo” de 23 de maio de 2006, estampa em sua primeira
página uma foto de 5 presos sendo levados em fila acorrentados, com a
25
Este foi presidente da Arena/SP e do PP/SP, secretário de Jânio Quadros, um dos fundadores do PFL, e
completa o mandato do candidato derrotado a presidente da República pelo PSDB.
95
manchete: “POLÍCIA TEM 72 HORAS PARA APRESENTAR LISTA DE
MORTOS”. A matéria trata do prazo estabelecido pelo Ministério Público
para a polícia informar o nome dos mortos, registro de ocorrência dos fatos
e laudos, que até então não tiveram acesso, apesar de ser o órgão
responsável pelo controle externo da atividade policial. A foto e a manchete
retratam bem a acumulação do poder e da forma de punir, pois temos a
prisão, a corrente da escravidão e as execuções de morte, todas estampadas
nesta primeira página e pertencendo oficialmente ou implicitamente a
mesma política de Estado.
Ou seja, embora todos saibam que os grupos de extermínio são
integrados por agentes do Estado, isto é disfarçado. Por exemplo, fingem
espanto ao saber que policiais civis de São Paulo são da escuderia Le Coq,
notório grupo de extermínio dos tempos da ditadura militar e que continua
organizado, matando pelas ruas e, no dia 18 de maio, compareceram à
Assembléia Legislativa vestidos com uma camisa preta com enorme escudo
do esquadrão da morte. É notório que, também na Assembléia Legislativa
do Rio de Janeiro, muitos deputados que apóiam abertamente a morte de
“bandidos”, defendendo o lema de Sivuca, um delegado eleito deputado
estadual pelo Rio de Janeiro: “bandido bom é bandido morto”.
A reação de entidades de defesa dos direitos humanos, bem como o
próprio Ministério Público, está exigindo explicações do governo de São
Paulo, que não respeita as requisições, apesar de não declararem de forma
clara que não vão obedecer. O Conselho Regional de Medicina de São Paulo
vai finalizar um relatório sobre a morte violenta de 243 pessoas entre os dias
12 e 19 de maio. Estes fatos, somados aos 111 mortos da penitenciária de
Carandiru e ao elevado número de mortes violentas nas grandes cidades, em
sua fragorosa maioria de jovens, pobres, negros e moradores das periferias
brasileiras, estão provados e não resta dúvida que o extermínio é uma
biopolítica do Estado brasileiro, que nunca substituiu seu biopoder e suas
práticas escravocratas, que permanecem até hoje: açoite, galés e genocídio.
96
Sob o argumento do medo e da necessidade de combate a
criminalidade, o Poder Judiciário expediu mandados de busca e apreensão
coletivos para determinadas favelas, que são bairros com milhares de
moradores. Seria como expedir uma ordem para entrar em qualquer
apartamento de um bairro com 20 mil habitantes.
Em 25 de maio de 2006, o jornalista Flávio Freire informou que o
Conselho Regional de Medicina de São Paulo relatou 132 mortes a tiros,
sem contar com as 87 mortes ocorridas na região metropolitana. A
Secretaria de Segurança Pública informou que 79 mortos são suspeitos de
participar da organização criminosa e 31 sem ligação com a facção.
Morreram 42 policiais. No mesmo periódico, o jornalista Bernardo de La
Peña noticiou que a Comissão de Constituição e Justiça aprovou um projeto
que proíbe o governo de contingenciar verbas orçamentárias destinadas à
segurança pública, incorrendo em crime de responsabilidade o corte dessas
verbas. Aprovou também um PL que garante 10% dos impostos federais na
área da segurança pública.
Sempre que acontece um fato violentíssimo, surgem as mesmas
propostas biopunitivas de aumento de penas, criminalização e mais verbas
para a segurança. É o discurso fácil e eleitoreiro, explorando a indignação e
o sentimento punitivo de vingança. O sistema penal atual está comprovado
que não tem qualquer embasamento científico. O que é evidente é que é um
sistema para prender pobres e negros e que fabricam pessoas mais violentas,
acumulando mais violência, até quem sabe explodir pelas ruas das cidades
diante de tanta indiferença e descaso com a miséria de milhões de seres
humanos. Ninguém nega que a cadeia é um eficiente fábrica de pessoas
matáveis e criminalizáveis, geradora da violência que vai justificar o
aumento de verbas para empresas privadas de segurança. É o inverso da
substituição do capitão-do-mato que foi substituído pelo açoite aplicado
pelo Estado. Mas na realidade as elites têm hoje as seguranças pública e
privada, acumulando direito à segurança. A acumulação do poder punitivo e
97
de suas práticas ficou comprovada nesses dias 12 ao 19 na megalópole
brasileira. Ocorreram assassinatos, torturas e prisões todas políticas
punitivas de Estado acumuladas com suas práticas.
No Rio de Janeiro, a situação é ainda mais apavorante: mesmo com
menos da metade de policiais e com uma população praticamente três vezes
menor que a de São Paulo, o número de mortes provocadas pelos policiais
do Rio é 3,6 vezes maior que as de São Paulo. Ainda neste ano, em que
ocorreu a chacina descrita acima. Segundo estudos publicados no Radar
Social, elaborado pela Diretoria de Estudos Sociais do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), os estados de Pernambuco e do Rio de Janeiro
lideram o ranking de homicídios do Brasil (Disoc-IPEA, 2005).
exatamente uma semana, um rapaz de dezenove anos que corria pelo
morro do Jacarezinho (Rio de Janeiro) a fim de tomar um taxi para buscar socorro para
o pai, que havia infartado, foi assassinado pela Polícia Militar, que o confundiu com um
ladrão e atirou em sua cabeça. Seria possível escrever toda uma tese somente com casos
como estes, mas, por ora, foram mencionados para comprovar nossa argumentação, de
modo que este último dispensa maiores comentários.
98
Considerações finais
‘CEM ANOS DE LIBERDADE, REALIDADE OU ILUSÃO
samba-enredo do Grêmio Recreativo Escola de Samba Mangueira, por Hélio Turco, Jurandir e Alvinho
SERÁ... QUE JÁ RAIOU A LIBERDADE
OU SE FOI TUDO ILUSÃO
SERÁ... QUE A LEI ÁUREA TÃO SONHADA
HÁ TANTO TEMPO ASSINADA
NÃO FOI O FIM DA ESCRAVIDÃO
HOJE DENTRO DA REALIDADE
ONDE ESTÁ A LIBERDADE
ONDE ESTÁ QUE NINGUÉM VIU
MOÇO, NÃO SE ESQUEÇA QUE O NEGRO TAMBÉM CONSTRUIU
AS RIQUEZAS DO NOSSO BRASIL
PERGUNTE AO CRIADOR
QUEM PINTOU ESTA AQUARELA
LIVRE DO AÇOITE DA SENZALA
PRESO NA MISÉRIA DA FAVELA
SONHEI... QUE ZUMBI DOS PALMARES VOLTOU
A TRISTEZA DO NEGRO ACABOU
FOI UMA NOVA REDENÇÃO
SENHOR, AH, SENHOR
NA LUTA DO BEM CONTRA O MAL
QUE TANTO SANGUE DERRAMOU
CONTRA O PRECONCEITO RACIAL
O NEGRO SAMBA O NEGRO JOGA CAPOEIRA
ELE É O REI NA VERDE E ROSA DA MANGUEIRA’.
99
Este samba-enredo da Mangueira demonstra a consciência do processo histórico
de acumulação do poder punitivo presente no imaginário coletivo, ao indagar se “a Lei
Áurea tão sonhada, há tanto tempo assinada não foi o fim da escravidão”.
Durante todo este texto, procuramos demonstrar que, no Brasil, ao contrário de
uma substituição, o que de fato ocorreu foi um somatório de poderes e formas de punir,
de modo que práticas recentes convivem com outras, antigas. O resultado não foi a
eliminação dos métodos tradicionais de punição mas, sim, a acumulação histórica da
prisão celular moderna à tortura e ao extermínio.
Vimos que o exercício do poder de punir aparece, ao longo de determinados
períodos históricos, ora com maior nitidez, ora mais mascarado. Na escravidão, o
discurso punitivo era claro e a prática da tortura pelo açoite era sua marca.
Posteriormente, no âmbito mundial, a política criminal da revolucionária
burguesia adotava o discurso contratualista, segundo o qual o ser humano havia se
unido em sociedade para fugir do constante estado de guerra e da falsa liberdade. Ante o
medo da morte violenta, Thomas Hobbes descreveu a organização da sociedade sob um
Estado, identificado com a imagem do “Leviatã”, que garantiria a paz social.
Supostamente, o ser humano teria optado por trocar parte de sua liberdade por
segurança. Mais tarde, com o advento das repúblicas, teoricamente, a tortura e a pena de
morte teriam se tornado inadequadas para um regime baseado na Razão.
A política criminal sempre foi discutida como instrumento capaz de evitar o
crime. A clemência e o perdão das penas quebrariam o maior instrumento de combate
ao crime que é a infalibilidade do Estado. Contudo, esses argumentos, aparentemente
racionais, são destituídos de qualquer base científica. A política punitiva não passa do
exercício do poder das classes dominantes, que precisam manter as massas perigosas
sob constante vigilância. A racionalidade, contudo, aponta, como destacado no último
parágrafo de discurso de Cesare Beccaria no § II Dos Delitos e das Penas, para o
seguinte: “As penas que excedem a necessidade de conservar o depósito da saúde
100
pública são injustas por natureza; e tanto mais justas são as penas quanto mais sagrada e
inviolável seja a sua segurança e maior a liberdade que o soberano conserva para os
súditos” (BECCARIA,2002).
As palavras de Beccaria caracterizam-se pela busca de uma racionalidade à
medida que preconizavam o equilíbrio entre liberdade e segurança e a abolição das
punições desumanas. Paradoxalmente, vimos que a tortura e as execuções, não somente
são praticadas até hoje, como fazem parte de uma política de Estado. No entanto, pode-
se questionar, como considerá-las políticas punitivas de Estado se as mesmas são
vetadas constitucionalmente? Neste ponto, voltamos à afirmação das primeiras páginas
deste trabalho: a lei não é o único ponto de vista possível sob o qual se deve analisar o
Estado, o Direito e, muito menos, o Poder Punitivo.
Quando, nas periferias das grandes cidades, em que praticamente não existe
qualquer proteção do Estado, pessoas são mortas em tiroteios, as classes privilegiadas,
contaminadas pelo medo, ignoram essa mortandade ou até mesmo a apóiam. O Estado é
definido como a sociedade politicamente organizada, enquanto a sociedade legitima tal
política. Refere-se aqui à chamada sociedade composta pelas “pessoas de bem”. Trata-
se, obviamente, de uma sociedade dividida em classes e de um tratamento
discriminatório para aqueles que, se não são “de bem”, seriam, então, “do mal”? Quanto
a esta questão, convém recordar a indagação de Foucault acerca das razões pelas quais
as prisões, apesar de conterem uma população minoritária, exercem tamanha fascinação
social: segundo ele, as prisões fascinam porque permitem aos que se consideram “bons,
cidadãos irrepreensíveis” e socialmente inocentes”, exercerem o mal sem limites:
“Todas as violências e arbitrariedades são possíveis na prisão, mesmo que a lei diga o
contrário, porque a sociedade não tolera, mas exige que o delinqüente sofra”
(FOUCAULT,1986).
As pessoas que habitam as áreas “nobres” das cidades são brancas e
privilegiadas, o que torna evidente, diante de tanta desigualdade social e regional, a
divisão etnocêntrica do Brasil. Chamar determinada área da cidade de nobre é bem
101
significativo, porque é clara ainda a permanência monárquica e a forma de se auto-
conceder um título nobiliárquico. O olhar dos setores privilegiados é apontado para
si, e como seus membros nem transitam em outras áreas que não as suas, esses não
conseguem ver quem realmente tem medo: da fome, do desemprego, da tortura e da
morte violenta.
A violência é uma grande demonstração da divisão de classes. Quando um
morador dos bairros privilegiados é assassinado, os jornais dão grande destaque, até
porque os mesmos pertencem e são escritos por pessoas que também moram em locais
privilegiados e, portanto, se identificam. Porém, para se dar destaque à violência na
periferia, é preciso que seja uma chacina. As passeatas com a participação de artistas e
com cobertura da mídia ocorrem, em regra, após a morte de uma pessoa moradora da
área “nobre” da cidade. No entanto, onde acontece a grande maioria dos homicídios e,
inclusive, de enorme brutalidade, é exatamente onde está o menor número de policiais
por habitantes. Quando morreram 31 pessoas assassinadas em caçada por um mesmo
grupo, como ocorreu no dia 31 de março de 2005, mesmo dia do golpe militar, ocorreu
cobertura da mídia, até porque é assunto de repercussão internacional, devido à situação
ser análoga à de uma guerra. Porém, se número de pessoas assassinadas fosse o mesmo,
só que em lugares dispersos, isso não causaria tamanha repercussão.
A tortura, assim como o extermínio, faz parte da nossa história e até hoje integra
a política de Estado, legitimada por vários setores da sociedade e por grande parte dos
meios de comunicação. Se é evidente que a tortura ocorre em nossas repartições
policiais, até pela própria situação a que estão submetidos os presos, em prisões que são
verdadeiros calabouços, por que tal fato não causa indignação, como ocorre quando
algum morador de setores privilegiados é assassinado? Que estarrecimento não causaria
se aparecesse uma pessoa morta por fim de semana nas internacionais areias de
Copacabana? Além dos assassinatos que ocorrem dentro das repartições públicas, os
grupos de extermínio são constituídos, em grande parte, por policiais, o que, embora
seja público e notório, não recebe a devida repercussão. O fato desses policiais, na
maior parte das vezes, terem os processos arquivados ou serem processados sem
102
condenação, cria um enorme constrangimento e é apontado em relatórios internacionais.
Além disso, este tratamento é totalmente diverso daquele recebido por acusados civis e
pobres. Os “assassinatos em nome da lei”, segundo Verani (1996), estão incluídos numa
política de Estado, legitimados pelo forte apoio da mídia e grande parte da sociedade.
A história brasileira demonstra que a passagem para o regime republicano foi
construída também por estruturas do Antigo Regime. O açoite é a raiz da tortura e
nasceu da invasão desta terra pelos portugueses, onde índios e negros foram
escravizados. A escravidão dos índios foi abolida antes da dos negros. O negro
brasileiro foi o penúltimo povo escravizado e degredado da África a conquistar a
liberdade no mundo. As penas privadas, aplicadas pelos proprietários dos escravos,
vigoravam concomitantemente ao Direito Público do V livro das Obrigações Filipinas.
O Código Criminal do Império previa penas públicas, de açoite e, na esfera privada, os
proprietários também puniam seus escravos da maneira que lhes convinha. Isto ainda é
muito atual, quando o negro é punido em praça pública, apanhando no meio da rua, e
depois é levado para a cadeia, onde é punido pelo Estado de Direito que encobre o
crime de tortura praticado por seus próprios agentes.
A acumulação do poder de punir faz-se presente nos extermínios, nas execuções
do latifúndio e das balas perdidas, somados às condenações, pelo Estado de Direito, às
masmorras e prisões celulares, o que se assemelha ao somatório de penas dos réus
escravos, considerados tanto como coisas quanto como pessoas para efeito das
punições.
Obviamente, os membros das classes herdeiras da civilização cristã-ocidental
foram sempre privilegiados numa concorrência desleal na formação social brasileira.
Estão nos melhores lugares, têm acesso aos melhores serviços públicos, os filhos estão
nos melhores colégios, os índices de homicídios são os menores em seus locais de
moradia. Dois Brasis convivem com diferentes Índices de Desenvolvimento Humano
(I.D.H.): o I.D.H. do Brasil desenvolvido, é de franca maioria de pessoas brancas,
enquanto o I.D.H. do Brasil subdesenvolvido é o da parcela de grande maioria preta. No
103
Brasil, a riqueza é grande, mas está em pouquíssimas mãos, e essas não parecem
dispostas a repartir o bolo.
Segundo os contratualistas, o Estado - aparelho político do governo cuja
autoridade é apoiada por um sistema legal e pela capacidade de usar a força militar para
implementar suas políticas surgiu quando as pessoas abriram mão de parte da
liberdade e do Estado de Natureza, assumindo deveres, em busca de segurança. A
história é marcada por uma tensão dinâmica entre as forças repressivas dos poderes
punitivos do Estado e as lutas sociais reivindicando seus direitos, tanto à liberdade
quanto a melhores condições de existência. Ao longo das conquistas dos movimentos
civis, políticos e sociais, estabeleceram-se os Direitos Humanos em suas diversas
gerações.
Cabe citar que um morador da favela da Maré, em deo realizado pelo projeto
“CASA” (Companhia de Artistas Autônomos) do grupo “Teatro de Anônimo”, indagou
porque, ao invés do Batalhão da Polícia Militar, localizado à entrada da comunidade
que prende, achaca e atira não se constrói uma universidade. É curioso que a “Cidade
Universitária” esteja bem próxima dali, sem que estes moradores sonhem com o acesso
a ela. As palavras deste rapaz sintetizam toda a orientação neoliberal que preconiza o
enxugamento do Estado, no que diz respeito às políticas sociais, concomitantemente ao
fortalecimento do Estado Penitenciário.
O neoliberalismo vem sugando o Estado, e acabando com todas as suas funções
sociais, apontando para uma situação em que a única função que vai sobrar é a
segurança, mas não para todos, e sim, para os próprios 'assaltantes do Estado'. No
mundo das multidões das metrópoles, isto se traduz na política hegemônica de punir os
pobres e prender os miseráveis.
Quando esta dissertação já estava praticamente concluída, foi divulgado um
estudo da Organização dos Estados Íbero-Americanos para a Educação, Ciência e
Cultura (OEI), denominado “Mapa da Violência 2006os jovens do Brasil”, de autoria
104
do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz. Ele demonstra que, apesar da redução em 5,2%
do número de homicídios em 2004, o Brasil ainda é o primeiro em homicídios de jovens
por arma de fogo num ranking de 65 países. O impressionante número de 102,8
homicídios de jovens de 15 a 24 anos para cada 100 mil habitantes demonstra que aqui
ocorrem mais mortes que em países que estão em guerra. Com a maior população negra
do Brasil, o Rio de Janeiro confirma que o passado das galés e do açoite não está tão
longe assim, pois, se Santa Catarina apresenta o menor índice (18,6 homicídios por
100 mil), no Brasil, 93% das timas são homens e a maioria é negra, fortalecendo a
posição de que eliminar vidas matáveis é a política de um Estado, legitimada por parte
da sociedade, umbilicalmente escravocrata e totalitária. Waiselfisz ressalva que o sub-
registro é estimado em 20%, o que significa que o número real de mortes deve ser bem
maior.
Ao nos aproximarmos da atualidade, passado e presente estão muito próximos.
Combinar o direito penal às legislações passadas e à nossa própria história é a essência
comprobatória da acumulação do poder punitivo. Comparar nosso direito às
legislaçãoes e a histórias alienígenas é importante mas, sem fazer a ligação com as
nossas próprias, não poderemos compreender o nosso direito penal que é brasileiro.
A revogação de uma lei não significa, em nossa história, o corte com o passado,
como o que ocorreu em países que deceparam as cabeças de seus reis. Pelo contrário,
novos poderes e novas formas de punir vieram se somar. Ao açoite da escravidão,
juntou-se a tortura científica da ditadura militar, resultando, por fim, na ditadura do
horror econômico neoliberal de raízes escravocratas.
A regra do “Estado de Exceção” naturalizou a “eliminação de vidas matáveis”'
(AGAMBEN,2002) que, no Brasil, são em quase sua totalidade dos jovens pretos,
moradores das favelas e periferias brasileiras. Prender, torturar, matar e exterminar
pertencem a um núcleo do mesmo tipo que consiste na acumulação do poder de punir
no Brasil.
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Aos donatários, latifundiários, senhores de engenho, somaram-se a Corte
Portuguesa que deixou seus herdeiros, e outros, que se tornaram industriais e
banqueiros, sempre prestando “serviços gerenciais” às suas matrizes, combinando e
reunindo novos poderes e formas punitivas. Aos nativos, juntaram-se os pretos, depois
os imigrantes brancos pobres, anarquistas, comunistas, subversivos, trabalhadores. Esta
acumulação resultou na superlotação e tortura dos presídios, verdadeiras masmorras
medievais dos pobres, nas execuções de 111 presos em Carandiru, nos centros de
“recuperação” de adolescentes, e nos recordes internacionais de homicídios por arma de
fogo de jovens de 15 a 24 anos.
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