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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE CIÊNCIAS E TECNOLOGIA
Campus de Presidente Prudente
ENCONTROS, DESENCONTROS E REENCONTROS NA TRAJETÓRIA
DA COMUNIDADE REMANESCENTE DO QUILOMBO CAÇANDOCA:
IDENTIDADE E TERRITORIALIDADE
Elaine Re
gina Branco
Orientador Prof. Dr. Raul Borges Guimarães
Presidente Prudente
2007
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4
À memória dos quilombolas da comunidade de Caçandoca que
sonharam, lutaram e resistiram para que os seus descendentes
pudessem conclu
ir os seus projetos de uma vida melhor.
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5
AGRADECIMENTOS
A todos os membros das comunidades quilombolas de Ubatuba.
Principalmente os da Caçandoca, que pude acompanhar, trocar experiências e
entender pensamentos. À minha família, principalmente minha mãezinha, por todo
apoio. Aos meus amigos e amigas que sempre me receberam de braços abertos:
Silvinha, Janete, Aninha,
Orlando,
Luizão, Fernando, Tiago, Junior, Fabrício e
Rones. Ao Clóves pelas contribuições na leitura do trabalho. Às eternas amigas Bia,
Pa
ti, Punk e Carol, pela amizade e apoio que sempre me deram, mesmo distantes.
Às vizinhas Pati, Sílvia, Andréa e ao vizinho Sandro que compartilham a mesma
dura trajetória no ensino público no litoral Norte. Ao Ricardo que me ajudou, mesmo
distante nas horas mais dif
íceis
. Às professoras Eda e Neide que contribuíram para
o desenvolvimento do trabalho. Ao José Luís do ITESP pela ajuda no contato com
as comunidades no início da pesquisa. Ao Raul, que orientou este trabalho mesmo
com as dificuldades
impostas pela
distância.
6
Carta de um Contratado
Eu queria
escrever
-
te uma carta amor
uma carta que dissesse
deste anseio
de te ver
deste receio de te perder
deste mais que bem querer que sinto
deste mal indefinido que me persegue
desta saudade a que vivo todo entregue...
Eu queria escrever
-
te uma cara
amor
uma carta de confidências íntimas
uma carta de lembranças de ti
de ti
dos teus lábios vermelhos como tacula
dos teus cabelos negros como dilôa
dos teus olhos doces como macongue
dos teus seios duros como maboque
do teu andar de onça
e dos teus carinhos que maiores não encontrei por aí...
Eu queria escrever
-
te uma carta
amor
que recordasse nossos dias na capôpa
nossas noites perdidas no capim
que recordasse a sombra que nos caía dos jambos
o luar que se coava das palmeiras sem
fim
que recordasse a loucura
da nossa paixão
e a amargura nossa separação...
Eu queria escrever
-
te uma carta amor
que a não lesses sem suspirar
que a escondesses de papai Bombo
que a sonegasses a mamãe Kieza
que a relesses sem a frieza
do es
quecimento
uma carta que em todo Kilombo
outra a ela não tivesse merecimento...
Eu queria escrever
-
te uma carta
amor
uma carta que te levasse o vento que passa
uma carta que os cajus e cafeeiros
que as hienas e palancas
que os jacarés e bagres
pudessem entender
para que se o vento a perdesse no caminho
os bichos e plantas
compadecidos de nosso pungente sofrer
de canto em canto
de lamento em lamento
de farfalhar em farfalhar
te levasse puras e quentes
as palavras ardentes
as palavras magoadas da minha carta
que eu queria escrever
-
te amor...
7
Eu queria escrever
-
te uma carta...
Mas ah meu amor, eu não sei compreender
por que é, por que é, por que é, meu bem
que tu não sabes ler
e eu
-
Oh! Desespero
-
não sei escrever ta
mbém!
(Antônio Jacinto,
Angola,
1952)
8
RESUMO
O objetivo desta pesquisa foi de compreender a Comunidade de Caçandoca,
localizada no litoral norte do Estado de o Paulo. Partindo de uma perspectiva
da
geografia histórica e cultural, nossa análise considerou a memória familiar desde o
per
íodo da escra
vid
ão ao recente processo de expropriação da terra sofrida pela
comunidade.
Baseado nos trabalhos de Robert Slenes, Paul Lovejoy, Sidney Mintz,
Richard Price
e
João José Reis
,
a memória coletiva foi investigada utilizando-se de
metodologias qualitativas, especialmente as entrevistas abertas que estimulam os
sujeitos a fala
re
m a respeito de seus lugares sociais e da identidade comunit
ária.
A
partir do
discurs
o destes sujeitos foi possível identificar diferentes tipos de
representaç
ão social. Para eles, o território do Quilombo Caçandoca é o lugar dos
mortos,
onde os pais e avós foram enterrados; também o lugar da vida, onde os
filhos
foram nascidos e criados; o lugar da solidariedade onde o trabalho era
bastante camarada; o lugar da fertilidade on
de
se plantava e colhia de tudo; o lugar
da festa, onde sempre tinha a função. Enfim o lugar das contradições em que foram
felizes e ao mesmo tempo tristes. Através das falas, não se conhece apenas o
universo subjetivo a respeito do sujeito, mas também universo imaginativo dos
lugares, dos tempos vividos que propiciam a compreensão da conjuntura. As falas
denunciam a estrutura, a ordem dos valores e das crenças da sociedade moderna.
Quando lembraram, os sujeitos lutaram para tornar permanente, algo que foi
destruído. A reconstrução da identidade através da memória torna possível o resgate
do lugar roubado. Torna possíveis as utopias de uma vida melhor.
Palavras
-chave: identidade; representações sociais; lugar; memória, quilombo da
Caçandoca (Ubatuba
SP).
9
Abstract
This research aims to understand the community of Caçandoca, located in the
Northern Coast of São Paulo State (Brazil). Our analysis is concentrated into the
historical and cultural geographical approaches considering to family memory since
th
e period of the slavery until the recent process of land expropriation. Based on
Robert Slenes, Paul Lovejoy, Sidney Mintz, Richard Price and João José Reis
studies, the collective memory was investigated using the qualitative methodologies,
specially open interviews where the subjects were encouraged to talk about their
social place and community identity. From the discourse of these subjects it was
possible to identify different kinds of social representations. For them, the territory of
the Quilombo Caçandoca is the place of deceased, where their parents were
embedded. Another hand, it is the place of life, where the children had been born and
educated. The place of solidarity, where the work was extremely friendly. The place
of fertility, where they planted and harvested everything. The place of festivals and
the same time the place of melancholia. If the discourse of subjects shows us
the
social imaginary of the places and the
lived times, we can
see
also as the people
had
fought in order to
resist
and to build
an
utopia
wh
ich
the community life could be
better.
Key
-
words:
identity, social representati
on, place, memory, Quilombo Caçandoca (Ubatuba
-
SP).
10
LISTA
DE
ILUSTRAÇÕES
QUADRO E MAPA
Quadro 1 - Distribuição das Comunidades Remanescentes de Quilombos pelos
Estados brasileiros.................................................................
................................67
Mapa 1 - Distribuição das Comunidades Remanescentes de Quilombos pelos
Estados brasileiros................................................................................
.................68
LISTA
DE FIGURAS E FOTOS
Fig. 1
Localização da comunidade de Caçandoca............
.....
.
...........................
14
Foto 1
Camburi e Ponta da Cabeçuda......................................
....
......................
17
Foto 2
Fazenda da Caixa.......................................................
.............................19
Foto 3
Ca
çandoca..................................................................
.............................23
Foto 4 e 5
Escola e igreja católica......................................................................25
Foto 6
Missa Afro......................
............................................
..
...
.........................26
Foto 7
Seu Zé Pedro e seu Genésio...................................
................................74
Foto 8
Ruínas Casanga...................................................
..
..
...............................75
Foto 9
Casa da Farinha na Fazenda da Caixa..............
......
...............................76
Foto 10
D. Dica
Azul marinho......................................
...
.
..............................105
Foto 11
-
Pr
aia do Pulso...
.............................
........................
..............................119
Foto 12
Condomínio do Pulso...........................................................................120
Foto 13
Cerimônia dia da desapropriação.....
....................................
...............126
Foto 14
e 15
Destroços do incêndio do salão da igreja..................
.......
..
.........130
11
SUMÁRIO
Resumo...............................................................................
.............................
08
Abstract.............................................................................................................
09
Lista de quadro e mapa..............................................................................
...
10
Lista de figuras e fotos....................................................................................
10
Índice................................................................................................................
12
Apresentação
....................................................................................................
13
1
COMO E POR QUE A CAÇANDOCA........................................................
16
2
TRAJETÓRIAS E RUPTURAS: DA ÁFRICA AO QUILOMBO
CAÇANDOCA.
..................................................................................................
35
3
O
MOVIMENTO NEGRO, IDENTIDADE POLÍTICA E A GARANTIA
DOS TERRITÓRIOS DE QUILOMBOS
............................................................
64
4
REPR
ESENTAÇÕES SOCIAIS, TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE
...
84
5
A CONQUISTA DO TERRITÓRIO DO QUILOMBO CAÇANDOCA E A
CONSTRUÇÃO DA INDENTIDADE.................................................................
126
O VIR A SER: CONSIDERAÇÕES FINAIS..........
............................................
141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................
147
12
ÍNDICE
APRESENTAÇÃO.............
.........
.................................................................
....
..
.....
13
1. COMO E POR
QU
E
A CAÇANDOCA..........................
........
.........
..
...................
16
2. TRAJETÓRIAS E RUPTURAS: DA ÁFRICA AO QUILOMBO CAÇANDOCA
..35
2.1. Nações, etnias e denominações......................
...
......................
......................
38
2.2. Identidade ou “trademarkers”?.............................
.....
.......
...............................41
2.3. O lugar de origem dos ancestrais africanos e identidade......
.......
..................
44
2.4. Quilombos e Kilombos...
....................................................
...
........
..................50
2.5. O cativeiro da terra, ideologia e trajetórias marginais.............
.......
.................
55
3. O MOVIMENTO NEGRO, IDENTIDADE POLÍTICA E A GARANTIA DOS
TERRITÓRIOS
DE QUILOMBOS...................
....................................
...................64
3.1. Quilombos de Ubatuba e a luta pelos seus territórios...............
.......
..............
72
3.1.1.A comunidade do Camburi..........................................
.................
....
.............
72
3.1.2. A comunidade da Casanga...........................................................
...............74
3.1.3. A comunidade da Caçandoca........................................................
..............77
4. REP
RESENTAÇÕES SOCIAIS, TERRITORIALIDADE E IDENTIDADE
..........84
4.1. Representações sociais e lugar................................................
......................85
4.2.
e aqui, passado e presente: representações sociais de uma trajetória e de
rup
tura com o lugar
................................................................................................94
4.2.1. “Fui nascido e criado aqui”: o lugar harmonioso e a territorialidade.
...........95
4.2.2. “
Nóis era muito feliz, mas ao mesmo tempo, t
riste”
.................
..................107
4.2.3.
“Vocês precisam sair daqui”
A ruptura com o lugar........
............
............110
5. A CONQUISTA DO TERRITÓRIO DO QUILOMBO CAÇANDOCA E A
CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE.....................................
..................................126
O VIR A SER:
CONSIDERAÇÕES FINAIS.
.........................
...............................141
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................
.........
..................
146
13
APRESENTAÇÃO
Nas páginas que se seguem, o leitor terá a possibilidade de conhecer um
pouco do universo representativo, imaginário e simbólico da comunidade
remanescente do quilombo Caçandoca.
São memórias
e representações
socia
is
significativas
, principalmente
sobre
a territorialidade e a identidade do grupo
.
L
ocalizada
no município de Ubatuba, litoral Norte do Estado de São Paulo (Figura
1), Caçandoca abriga uma comunidade marcada pelas idas e vindas de uma
trajetória de encontros, desencontros, reencontros e rupturas.
Este t
rabalho
resulta, principalmente,
de
encontros, que possibilitaram,
antes de tudo, trocas. Uma relação entre pesquisadora e sujeitos em que o
aprendizado é recíproco, o que resultou numa grande amizade.
Foram
três anos de investigação, sendo o primeiro
de
dicado ao
levantamento bibliográfico do histórico geral das trajetórias dos
ancestrais
dos
remanescentes
. Os outros dois, dedicados ao trabalho de campo que possibilitou o
compartilhar
de uma experiência de vida, o ouvir sobre histórias de uma trajetória
comum, de uma vida marcada por perdas e vitórias. O p
articipa
r de suas alegrias,
tristezas, problemas, lutas, fazeres, festas e conquistas, propiciaram novas
percepções e indagações
integram
este trabalho
, divido
em cinco capítulos.
A comunidade remanescente do Quilombo da Caçandoca se encontra n
o
s
ul do município de Ubatuba,
na
divisa c
om o município de Caraguatatuba, conforme
figura 1 que se segue:
14
Localizão da Comunidade de Caçandoca na divisa entre Ubatuba e Caraguatatuba,
Caçandoca
O primeiro capítulo é o único que é narrado em primeira pessoa, já qu
e
trata das minhas impressões e percepções
sobre
os primeiros contatos com a
comunidade, das reuniões com o grupo,
até
os acontecimentos que marcaram e que
de certa forma modificaram as minhas atitudes, pensamentos e opiniões. Isso não
significa que o
leit
or não irá encontrar as minhas reflexões nos capítulos seguintes,
porém
, estes foram desenvolvidos com a ajuda de
outras
reflexões que pude
conhecer a partir das leituras de outros autores
,
geógrafos, sociólogos, historiadores,
antropólogos e do
professor
Raul, orientador deste trabalho
.
No segundo capítulo, o leitor irá encontrar
a
reconstituição histórica das
possíveis trajetórias dos ancestrais dos remanescentes do Quilombo da Caçandoca.
Para isso, inserimos, com a contribuição de diversos estudos sobre a diáspora
africana, o traçado das trajetórias gerais da população negra que foi deslocada da
15
África para o Brasil. Nesta parte procuramos estabelecer um paralelo dos lugares
dos ancestrais com o lugar onde se encontra a comunidade hoje.
Reservamos o terceiro capítulo para falarmos sobre os movimentos
negros, sua luta e importância para o reconhecimento e reconstrução das
identidades das comunidades remanescentes de quilombo do Brasil e
especificamente das comunidades remanescentes de quilombo do município de
Ubatuba.
No capítulo
quatro,
o leitor encontrará um pouco do universo das
representações sociais e
dos
seus significados para a compreensão da
territorialidade e da identidade dos sujeitos da comunidade do quilombo Caçandoca.
Ganha voz as representações sociais dos sujeitos sobre suas trajetórias, modo de
vida e ruptura com o lugar. Juntamente às representações estão reunidas as nossas
reflexões de
análise e interpretações.
Resultado do privilégio em que tivemos ao participar da
desapropriação
do
território
para fins de interesse social desta comunidade, o quinto e último
capítulo trata dos
nov
os elementos de representatividade social a respeito da
conquista do território e reconstrução da identidade.
Por fim, o leitor encontrará na capa da disser
tação
um envelope com um
DVD,
contendo os filmes dos depoimentos dos sujeitos utilizados na construção do
trabalho. A idéia da inserção das imagens é a de valorizar também neste trabalho
a
oralidade, que sempre foi muito forte em algumas comunidades
africa
nas. E
também, como não podemos
transcrever
as emoções e os sentimentos das falas, o
leitor fica convidado a vivenciá-los nas pequenas filmagens, que apesar de
amadoras, retratam um pouco desse outro universo que não é o da escrita.
16
1. COMO E P
OR QUE A CAÇANDOCA
A princípio a idéia foi de desenvolver um trabalho sobre as quatro
comunidades remanescentes de Quilombos de Ubatuba conhecidas na época:
Caçandoca, Camburi, Casanga e Fazenda da Caixa. Pouco tempo depois, outra
comunidade, a da Ponta da Cabeçuda, passou a reivindicar o seu reconhecimento e
fazer parte do quadro de comunidades remanescentes de quilombo de Ubatuba. Na
comunidade da praia do Poruba, algumas pessoas que descendem de africanos,
mas
que
não desejam ser reconhecidos como remanescentes.
A comunidade do Camburi, Fazenda da Caixa e Cabeçuda se encontram
mais próximas entre si, localizadas ao Norte de Ubatuba e a Casanga, mais próxima
do Centro. O quilombo do Camburi, faz fronteira com o município de Parati no
Estado do Rio de Janeiro e encontra-se situado inteiramente nos limites do Parque
Estadual da Serra do Mar e, parcialmente, nos limites do Parque Nacional da Serra
da Bocaina. Aproximadamente no quilometro sete da BR 101, avista-se uma grande
cachoeira denominada Cachoeira da Escada. À sua frente temos uma entrada com
uma estrada de terra que acesso ao Jambeiro, lugar onde se encontra a maior
parte dos moradores do Camburi. Mais adiante à direita
chega
-se a Ponta d
a
Cabeçuda
e
no final da estrada, à praia do Camburi. Conforme a podemos verificar
na foto 1 a seguir:
17
Foto 1
Ponta da Cabeçuda
Praia do
Camburi
Jambeiro
F
o
t
o
g
r
a
f
i
a
a
é
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B
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n
c
o
BR 1
01
R
i
o
C
e
d
r
o
Fotografia aérea do território do quilombo do Camburi e da Ponta da Cabeçuda. A maior parte das
pe
ssoas da comunidade do quilombo do Camburi reside no
Jambeiro
direita na foto)
,
localizada no
baixo rio Cedro
(rio localizado à direita na foto cortando todo o território), parte mais plana do território
e próxima da praia, com maior facilidade de habit
ação
. Na parte íngreme, encontramos algumas
residências
em pontos
d
ispersos
.
A localização da comunidade do Camburi e da Ponta da Cabeçuda
na
área de dois Parques sobrepostos tem dificultado a vida econômica dos moradores
do Camburi, visto que é proibido nestas áreas, o desenvolvimento de algumas
atividades econômicas de tradição da comunidade. Segundo os dados do relatório
técnico científico sobre os remanescentes do Quilombo Camburi (ITESP, 2002),
existem
ali
50 famílias, cerca de 230 pessoas. A comuni
dade
, reconhecida como
remanescente de quilombo, aguarda a titulação do seu território. Durante o processo
de identificação da comunidade houve uma divisão do grupo entre os moradores
que se diziam quilombolas e o
utros
que se diziam caiçara. Os que se dizi
am
caiçaras, residem na Ponta da Cabeçuda, que fica na
tran
sição com a Vila
Picinguaba. Ao notarem as conquistas dos vizinhos do Jambeiro quando se
assumem remanescentes de quilombo, o pessoal do Jambeiro percebe os
benefícios que poderiam ser obtidos com fortalecimento da identidade quilombola.
18
Recentemente,
o grupo
re
correu
à
decisão sobre as suas identidades
e
pediram ao
ITESP para fazer o levantamento antropológico para
lutar
em
pelo reconhecimento e
titulação do território
.
Próxima
ao Camburi, a comunidade da Fazenda da Caixa (Foto 2)
enfrenta problema semelhante. Além das dificuldades com a sustentabilidade
econômica, outros problemas são vivenciados por estas populações, como o difícil
acesso e a ausência de energia elétrica. O asfaltamento e a energia elétrica são
desejados muito tempo pelos que vivem ali. Da BR 101 até a casa da Farinha,
são
45 minutos que frequentemente os moradores da Fazenda da Caixa percorrem
a pé. Para se locomoverem até ao centro de Ubatuba ou até a escola aberta mais
próxima, os moradores têm de caminhar por esta estrada que, na maioria das vezes
se encontra úmida e tomada por um lamaceiro, até chegarem na BR 101 e
aguardarem o
ônibus.
uma escola na comunidade, mas se encontra fechada.
S
egundo
os moradores, a prefeitura disse-lhes que a escola não pode ser aberta
devido à ausência
de funcionários e
o
número insuficiente de alunos.
Segue a foto 2:
19
Foto 2
Fazenda da Caixa
Casa da Farinh
a
B
R
1
0
1
E
s
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r
a
d
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d
e
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c
o
m
u
n
i
d
a
d
e
Praia da Fazenda
Vista aérea do quilombo da Fazenda da Caixa. Na BR 101, do lado oposto da praia da Fazenda encontra-
se
a
entrada que acesso ao quilombo e a Casa da Farinha. O rio que corre nas terras da comunidade, faz rodar o
maquinário da Casa da Farinha que se encontra em reforma. Além da hidrografia, a área do quilombo é servid
a
de uma deslumbrante vegetação e algumas trilhas conhecidas pela população local, como a trilha que vai até
Parati Mirim. As casas se encontram umas distantes das outras ao longo do rio e da estrada.
Segundo Seu Pedro,
um
senhor de 67 anos, membro da comunidade
da Fazenda da Caixa, vivem no local 30 famílias, cerca de 180 pessoas.
Reconhecida pelas instituições enquanto
uma
comunidade remanescente de
Quilombo, a comunidade da Fazenda da Caixa também aguarda pela titulação de
seu território.
20
Ainda
ao Norte de Ubatuba,
a
24
quilômetros
do Centro da cidade, na BR
101,
localiza-
se
a
estrada que o acesso ao bairro da comunidade do Poruba. Em
2005
, foram encontrados documentos que comprovam que
a
comunidade se
originou a partir de africanos escravizad
os
.
Devido à mistura desses africanos com
os indígenas e caiçaras, a comunidade não quis ser reconhecida
como
quilombolas
e travaram uma luta formando a “Associação dos Herdeiros de Poruba”, que se
reconhecem enquanto caiçaras.
No sertão da praia de Itama
mbuca
, ao norte de Ubatuba, encon
tramos
a comunidade da Casanga. A entrada que acesso a comunidade também se
localiza na BR 101, à aproximadamente 14 quilômetros distantes do centro da
cidade. No momento do meu encontro com a comunidade, as lideranças e
stavam
reunindo a documentação para o levantamento da genealogia da comunidade
e,
desse modo,
lutar
em
pelo reconhecimento e a titulação de suas terras. Uma das
famílias que deram origem a comunidade da Casanga, foi a família Paula. A fala de
D. Prisciliana retrata um triste episódio da sua bisavó, uma das pessoas que deu
origem à comunidade:
A minha bisavó foi laçada no mato. Depois que laçaram ela,
trouxeram pra cá. Depois casou e teve os filhos. Eram quatro
homens, o Paula, tio Antônio Paula, tio Manoel, Egidio Paula, a
Rita...
(
Prisciliana dos Santos,
73 anos
Casanga, 22 de abril de 2006)
em Casanga um grande terreno vazio, sem qualquer atividade
desenvolvida, cercado
pela empresa “Casanga Administradora”. Essa área, segundo
os moradores, é
da
antiga fazenda de escravos de nome Cassanga. O vice-
presidente da associação, Marinho, me levou até o local para conhecer. Num
determinado lugar, encontramos
as
muralhas
que
remontam ao tempo da antiga
fazenda
, cobertas pela vegetação nativa
.
Quando fui
tira
r uma foto das muralhas, o
caseiro,
que
vigia
a área, nos abordou e tentou nos intimidar com um enorme facão
que carregava em uma das mãos e perguntou-me se eu era de alguma instituição e
para que onde iriam as fotos. Expliquei-lhe que eu era estudante e que as fotos
seriam para um trabalho sobre a memória do lugar. Ele ficou ressentido e advertiu o
vice
-presidente da associação por não ter pedido a ele para estarmos ali. Disse-
nos
21
que se eu fosse de algum órgão público, isso poderia prejudicar-lhe, pois é ele que
toma conta das terras. Tentei acalmá-lo, dizendo que eu não trabalhava para
nenhum órgão público e ele nos deixou ir embora. Era um senhor de meia idade de
aparência severa. Se estivéssemos no século XIX, poderia jurar se tratar de um
capitão
-
do
-
mato
.
Parte da população da Casanga, um dia, residiu na praia de Itamambuca
e foi afastada para o sertão devido à especulação imobiliária. O acesso à
comunidade da Casanga
também
é por uma estrada de terra e, assim como ocorre
em outras comunidades, n
os dias
de chuva o ônibus não entra
ali
, impossibilitando a
ida das crianças à
escola.
também existe uma escola, mas é mais uma que
se
encontra fechada.
A comunidade da Casanga, também sofre com a fiscalização das
instituições ambientais. No imaginário da comunidade, esse problema teria sido
previsto pelo tio avô de D. Prisciliana. Conforme a sua fala a seguir:
O irmão da minha avó, quando ele ia pro mato, ele cortava lenha e
trazia com as folhas e tudo no pacote dele. Então a gente dizia:
- Tio Mane! Tio Mane! Pra que o senhô traz essas folhas de
palmeira?
- Pra pica pra fazer lenha. Ah menina, vai ter um tempo que
vocês não o poder cortar um pau, porque as autoridades não vão
deixar vocês fazer nada disso. a gente caçoava dele e ele vinha
com a vassoura ou o pau de lenha pra bate na gente (risos). E está
acontecendo, agora ninguém pode derrubar o mato, ninguém pode
planta mais nada, nem o serrote dentro de casa não pode mostra o
do meu marido fica ta dentro de casa por causa do IBAMA que vem.
Aí tudo já foi multado.
(
Prisciliana dos Santos,
73 anos
Casanga, 22 de abril de 2006)
A comunidade remanescente de Quilombo Caçandoca (Foto 3) é a única
localizada
na porção s
ul
do município de Ubatuba. Quase
na
fronteira com
Caraguatatuba, o território da comunidade do Quilombo se divide em 8 núcleos
representados pela antiga ocupação do Quilombo: Caçandoca (7 casas), Sertão da
22
Caçandoca (35 casas), Bairro Alto (2 casas), Saco da Raposa (10 casas), Ponta
Grossa (6 casas), São Lourenço (9 casas), Saco das Bananas (4 casas) e Praia do
Simão ou Brava do Frade (9 casas).
Na BR 101, próximo a praia da Maranduba, fica
a
entrada com uma
estrada de terra que acesso ao Quilombo Caçandoca. São aproximadamente 50
minutos de caminhada até a sede da associação do quilombo. No meio do caminho,
no alto, encontra-se um dos cemitérios da comunidade onde foram enterrados os
alguns de seus mortos. Mais a frente encontra-
se
um gigantesco retiro espiritual
invadindo a paisagem Com base nos depoimentos dos quilombolas, pude confirm
ar
que este retiro foi construído sobre a principal trilha de acesso à comunidade.
Essa
trilha cortava boa parte do caminho entre a Rodovia e o centro comunitário e
remonta ao período da
escravidão.
Segundo o relatório técnico-cinetifíco sobre a Caçandoca (ITESP, 2000),
residem no local dezessete famílias que pertencem à comunidade e duas não
pertencentes. Existem três casas de veraneio, uma na Caçandoquinha, outra no
Saco do Morcego e outra no Saco das Bananas. Segue a fotografia aérea da
Caçandoca:
23
Foto 3
Condomínio da
Praia do Pulso
P
r
a
i
a
d
a
C
a
ç
a
n
d
o
c
a
C
a
ç
a
n
d
o
q
u
i
n
h
a
Saco das
Bananas
Saco da
Raposa
Bairro Alto
São Lourenço
Ponta do Tapuá
Ponta do Meio
Ponta
Lisa
Ponta Grossa
S
a
c
o
d
o
M
o
r
c
e
g
o
Sertão da Caçandoca
1
2
3
4
5
6
Saco da
Aguda
Saco da
Cotia
Cavalo
Grande
7
8
9
Praia Brava
Frade
Fotografia aérea cedida pela Secretária do Meio Ambiente
Área selecionada e trabalhada por Elaine Branco.
Legenda
1.
Sede da Associação dos Remanescentes do Quilom
bo Caçandoca.
2.
Local da antiga casa grande e senzala.
3.
Buraco do Negro.
4.
Escola.
(Foto 6)
5.
Igreja Católica.
(Foto 7)
6.
Local de antigo engenho.
7.
Cemitério
8.
Local de antigo engenho.
9.
Escola.
24
O buraco negro ou buraco do negro de que me falaram os quilombolas é
um lugar localizado dentro do território do quilombo, mas exatamente no começo da
trilha que sai da Caçandoca em direção ao condomínio do Pulso. duas versões
sobre o buraco do negro. Alguns dizem que neste buraco eram atirados os corpos
dos negros que morriam na embarcação durante o trajeto da África para o Brasil.
Outros dizem que servia de cemitério dos escravos que morriam na fazenda durante
a escravidão. O tombamento da área enquanto patrimônio histórico foi solicitado
pelo ITESP ao IPHAN. As duas versões são plausíveis de verificação pelo IPHAN,
visto que, no primeiro caso o controle de embarque e desembarque de escravos
nesse período era muito rígido e que mesmo mortos, esses escravos tinham de der
computados. Assim sendo, quando morriam durante a viagem, não podiam ser
atirados ao mar e possivelmente jogados neste buraco. O segundo caso também se
torna possível quando se tem como referencial as condições da escravidão em vida.
Imagina
-
se como era no momento da morte.
Apesar de existirem dois cemitérios na comunidade, parece que no da
estrada da Caçandoca, na época da escravidão, eram enterrados os mortos
vinculados à família do senhor. No outro cemitério, localizado entre o Saco da Aguda
e o Saco da Cotia, foram enterrados os escravos que trabalhavam nos núcleos mais
afastados da Caçandoca. Porém neste cemitério não um cerco, o quanto menos
túmulos aos moldes do outro cemitério. Encontram-se pedaços de madeira em cruz
cravados no chão de terra.
As duas escolas da comunidade de Caçandoca se encontram
aba
ndonadas pelo poder público alguns anos.
Em
2006
, houve uma pressão por
parte do governo federal para que a prefeitura reabrisse uma das
escola
s da
Caçan
doca (Foto 4), o que não aconteceu. Segundo o S. Antonio, presidente da
associação, a escola está sendo passada para a administração do governo federal.
O transporte coletivo vem até a Caçandoca nos dias que não chove, devido às
condições
precárias da estrada do Quilombo, o que dificulta a ida das crianças em
outras escolas de outros bairros
.
A igreja católica (Foto 5) tem um valor simbólico para os membros da
comunidade, mesmo para os evangélicos. S. Antonio e Cesário contam que ela foi
construída coletivamente pela comunidade. Nela, são realizadas as missas com a
presença de elementos afros, como atabaques, berimbau, danças e vestimentas
semelhantes às usadas na África. A missa-afro geralmente acontece no
s
25
casamentos (Foto 6
)
, batizados dos moradores da comunidade ou de seus
familiares e também nos dias comemorativos de grande importância para a
com
unidade, como o dia da consciência negra.
Fotos
4
e
5:
Escola da Caçandoca Igreja Católica
Fotos: Elaine Branco
12/08/2006
Tanto a história da igreja como a da escola, fazem parte da memória e do
imaginário dos remanescentes de quilombo, dos que residem e dos não residem na
Caçandoca. S. Miguel
1
, por exemplo, que atualmente mora no Sertão da Quina
2
, se
recorda do tempo em que estudava e das professoras fundadoras da escola:
A professora
era a Maria ... primeiro que foi pra lá ensina nóis. Maria
...que que ia à cavalo ia prá todo dia ia à cavalo daqui da
Maranduba pra pra ensinar. Antes era um trilhosinho aquele
que a gente passa até hoje, hoje tem estrada, mas antes era
aquele
trilho. A gente ia e ficava na escola esperando. a gente
olhava no meio via aquele cavalinho descendo no morro e sabia
que era a professora. Era tudo alegre porque não tinha escola .
Era tudo alegre. Quem abriu esse negócio de escola lá foi a D.
Regina daqui de Ubatuba. Fez a escola pra nóis. É a D. Regina
era uma diretora daqui de Ubatuba, agora a gente nem conhece
1
S. Miguel da família dos da Mata e sua família foram moradores da Caçandoquinha e, segundo ele, a sua casa e
da sua mãe foram queimadas quando só lhe restou um ranchinho. Foi quando construíram outra casinha na
Caçandoquinha e recentemente foram obrigados por pessoas que se diziam donas do local. Atualmente na
Caçandoquinha enco
ntra
-
se uma grande área cercada e com calçamento na parte da frente.
2
O Sertão da Quina é um bairro onde se encontram alguns ex-moradores do quilombo Caçandoca. Está
localizado no interior do lado oposto à entrada do quilombo na BR 101.
26
mais, tantos anos... Foi ela quem abriu essa escola e foi a Maria
Ibalina (?) que foi ensinar nóis lá. Depois da Maria Ibalina (
?) foi a fia
dela. E depois da filha dela, foi a ... aquela mulher do falecido
Angelo, Adélinha. Depois que saiu essas uma foi a Adélinha pra
ensinar nóis lá.
(Miguel da Mata Amorim, 68 anos - Sertão da Quina 11 de
dezembro de 200
6)
Foto
6:
Missa Afro realizada na frente a Igreja Católica da Caçandoca no dia 12 de
outubro de 2006, casamento da filha de D. Cidinha e S. Altamir
3
que
residem na comunidade.
A história da capela também é conhecida por todos. Segundo Amarildo
Cesário
4
ela é o panteão da
comunidade:
3
Cidinha (Aldacília Rosa Gaspar) e Altamir são casados e residem na comunidade com três filhos e os três netos
filhos da Didi (Claúdia). Os demais filhos que estão casados se encontram morando fora da comunidade em
bairros próximos dali. Foram expulsos da comunidade na década de 1970 quando um pessoal encapuzado,
provavelmente ligado a Urbanizadora Continental, atearam fogo em suas casas. Retornaram à comunidade
aproximadamente um ano após o inndio e tentam reconstruir as suas vidas. A Cidinha trabalha no Condômino
do Pu
lso em duas casas de veraneio para sustentar a família, mas seu sonho é viver do artesanato.
4
Amarildo Cesário é filho de D. Isaltina e do S. Pedro Cesário. Seus pais residiram na comunidade até
aproximadamente os anos de 1970 quando foram morar em Santos (SP) onde tiveram o filho, conhecido apenas
por Cesário. Retornaram à comunidade no final dos anos de 1990, quando os membros da comunidade se
reencontram. D. Isaltina, conhecedora do riquíssimo histórico da comunidade, durante determinado período foi
imp
ortante liderança, mas diante de diversas ameaças sofridas de pessoas que provavelmente estariam ligadas à
Urbanizadora Continental, preferiu que seus depoimentos não fossem registrados neste trabalho. Atualmente,
Cesário não reside na Comunidade devido à militância no Partido dos Trabalhadores e ao trabalho que realiza na
27
Muitas das pessoas que contam essas histórias pra gente, falam
assim, de muitas coisas, com relação ao buraco do negro, e quando
eles falam da capela, primeiro que tem uma relação mística que tem
aquela capela com comunidade. Quando todos foram embora, entre
aspas, o que ficou foi a capela. Ficou a capela. Eu vejo a capela, do
meu ponto de vista, como grande panteão da comunidade, porque
foi o que ficou, porque as outras coisas que tinham, a urbanizadora
tratou de jogar para o chão. A capela, o número reduzido de
pessoas que ficaram, se organizaram e buscaram apoio de outra
igreja. A igreja passou pra mitra e aquilo ficou. Então a relação
mística da..., e o processo também que se deu a sua formação
também. Ela foi construída coletivamente pela comunidade, num
momento, como me chegou informações de várias pessoas, pelo
próprio Antônio, pela minha mãe, pelo S. Benedito Prado, meu tio
que tinha me falado sobre isso, que foi o pai do S. Antonio, num
momento de dificuldade no mar e ele teria pedido ajuda a Nossa
Senhora da Aparecida, como s costumamos dizer, mãe negra
Aparecida, no momento de dificuldade no mar e ele teria sido
contemplado no momento de graça e salvou a vida dele. Dali ele fez
uma promessa que ia construir a capela. E junto, coletivamente, as
mulheres e os homens levantaram aquela capela. Então tem esse,
esse... Por acaso é o pai do S. Antônio, mas independente de
qualquer coisa, se fosse outro, a dimensão que toma a história da
capela é de uma riqueza muito grande. E ela ficou, ta
lá e nós temos
que ter essa referência sempre por aquela capela, independente das
questões assim, que hoje nós temos evangélicos.
Amarildo Cesário do Prado 38 anos (Centro de Ubatuba, 09 de
maio de 2007)
A escola, assim como a capela, representa a inserção do poder público e
religioso, respectivamente. A escola foi introduzida na comunidade sem a
preocupação com o a diferença de sua clientela, ou seja, sem se pensar nas suas
particularidades. A minha inquietação é de que as instituições, que estão
Câmara de Ubatuba com as comunidades negras. Esta sempre visitando os pais e a irmã (Isabel) na comunidade e
se interessa pelos assuntos da comunidade
.
28
re
sponsáveis pela reabertura da escola a faça sem essa preocupação, já que muitos
dos valores da comunidade são desvalorizados pelo modelo escolar convencional.
A capela foi implantada pelos próprios moradores da comunidade e
apesar de ser uma igreja católica, percebe-se a presença e a manifestação de
elementos sincréticos pelas pessoas que freqüentam a igreja. Fazem festas e cultos
aos santos católicos, mas também buscam a benzedeira na hora da cura e
acreditam na presença dos espíritos dos ancestrais. Também, como vimos, na missa
são inseridos instrumentos afros e a mãe preta é a Aparecida.
Também dentre os evangélicos da comunidade, aqueles que chamam
por São Pedro nos dias de tempestade e também aqueles que conversam com os
espíritos. Os cultos evangélicos são realizados frequentemente aos domingos na
casa do casal, Ângelo e Isabel. Estes, apesar de terem essa casa na Caçandoca,
não residem no local devido aos seus empregos fora da comunidade. Há também os
evangélicos que visitam templos em Caraguatauba, principalmente da Universal do
Reino de Deus, cuja influência é manifestada pelo preconceito dos adeptos às
religiões afro
-
brasileiras.
A prática de religiões afro-brasileiras inteiramente identificadas é pouco
comum dentro da comunidade. apenas uma simpatizante, D. Gabriela, que tem
uma irmã que mora em Santos iniciada no Candomblé.
também na comunidade um grupo de crianças e adolescentes que
praticam a capoeira nos finais de semana e eles mesmos confeccionam os seus
atabaques e berimbaus. Essa prática ocorre sob a instrução de um dos filhos da D.
Dica que, segundo ela, faz o trabalho voluntário ensinando a arte da capoeira.
As crianças e adolescentes participam, sempre que é possível, dos cursos
promovidos pela Seppir (Secretária especial para a promoção da igualdade racial).
São os cursos de dança afro, literatura afro, entre outros, realizados fora da
comunidade, geralmente em São Paulo.
Diante das quatro realidades (Camburi, Fazenda da Caixa, Casanga e
Caçandoca,
que as outras comunidades ainda não estavam em evidência), era
grande a vontade de desenvolver a pesquisa contemplando todas. O difícil acesso
às comunidades, a distância, o curto tempo e os poucos recursos dos quais eu
dispunha,
me fizeram refletir e
decidir
a restringir a pesquisa à apenas uma delas. A
nossa principal preocupação era de que o envolvimento com todas as comunidades
num trabalho de representações sociais, poderia resultar na superficialidade.
A
29
minha experiência com o estudo das representações sociais da população d
e
atingidos por barragem
em
Presidente Epitácio (Branco, 2003), cuja expropriação foi
semelhante com a que ocorreu com os remanescentes do Quilombo Caçandoca,
somado aos conflitos que tornavam a luta pelo território com empresa do setor
imobiliário em evid
ência,
levou
-
me a interessar por esta
comunidade
.
A primeira visita ao quilombo foi quando um dos remanescentes, Cesário,
foi visitar a mãe na comunidade. Confesso que havia certo receio de minha parte
quanto a minha aceitação na comunidade. O Cesário
me
contou um pouco da
história da comunidade, principalmente sobre a expropriação que ocorreu na década
de 70
. No capítulo quatro esta expropriação será vista com maiores detalhes com as
representações sobre esse acontecimento
.
A segunda visita à comunidade foi com o José Luiz, técnico do ITESP
(Instituto de Terras do Estado de São Paulo). Fomos à uma reunião na associação.
Isso ocorreu quand
o entrei em contato com o ITESP, cuja sede mais próxima era
em
Taubaté. Nesta conversa, ele me convidou a visitar as comunidades onde realizava
reuniões semanais
.
Anteriormente a visita à Caçandoca,
fomos
até a
comunidade
remanescente do Quilombo do Camburi. conheci o S. Genésio, um simpático
senhor que me contou uma pouco da história da comunidade. No mesmo dia
combi
nei com o técnico do ITESP, José Luiz, uma visita a Caçandoca na próxima
semana.
Nesta visita acompanhei uma reunião em que o José Luiz estava
recolhendo a documentação dos idosos para dar entrada
em
suas aposentadorias.
As aposentadorias garantem o sustento de algumas famílias que foram proibidas de
trabalharem com a terra. Tive a oportunidade de conhecer o S. Antônio, presidente
da associação, sua esposa D. Gabriela e a Maria, conhecida na comunidade como
Maria “dos nove”, referência à quantidade de filh
os que ela tem. Pude acompanhar o
José Luiz do ITESP em outras reuniões no Camburi.
Numa outra oportunidade fui conhecer a comunidade da Casanga. Nessa
época estavam fazendo o levantamento de todos os membros para dar entrada no
processo de reconhecimento da comunidade enquanto remanescente de quilombo.
Fui recebida pela Alessandra e seu esposo, conhecido na comunidade por Marinho,
vice
-
presidente da Associação.
Ao acompanhar o José Luiz nas suas reuniões com as comunidades senti
a necessidade visitá-
las
também nos dias em que não houvesse reunião para que
30
eu pudesse falar sobre o trabalho que gostaria de estar desenvolvendo com as
pessoas da comunidade. Foi quando decidi focalizar o trabalho na comunidade da
Caçandoca. Desse modo passei visitá-la nos
dia
s em que as reuniões não
aconteciam.
Expliquei, assim que foi possível, ao S. Antonio e a D. Gabriela sobre o
trabalho que pretendia desenvolver junto à comunidade, questionando-lhes sobre a
possibilidade e a autorização da Associação. Expliquei-lhes que o trabalho seria
desenvolvido a partir dos depoimentos das pessoas da comunidade a respeito de
suas vidas, as mudanças e sobre o lugar
.
Num outro dia numa reunião, eu havia escutado o S. Antônio falar que as
pessoas se aproveitavam da comunidade para ganhar dinheiro, que publicavam livro
e depois nem apareciam mais na comunidade. Quando tive uma oportunidade, fiz
questão de lhe explicar que a minha intenção não era ganhar dinheiro com a
publicação de um livro sobre a comunidade e me comprometi a repassar
à
comunidade
qualquer benefício financeiro, caso o trabalho viesse a ser publicado.
S. Antônio, sempre muito objetivo em suas falas, perguntou-me sobre o
retorno que eu poderia dar à comunidade, caso ele permitisse a realização do
trabalho. Expliquei-
lhe
com sinceridade que eu não poderia lhe prometer que o
trabalho poderia resultar em contribuições materiais ou imateriais à comunidade,
mas que a princípio poderia estar ajudando nas atividades desenvolvidas na
comunidade se
riam
elas na cozinha ou nos assuntos de ordem burocrática. Desse
modo, poderia realizar a pesquisa e ao mesmo tempo ajudá
-
los nas tarefas do dia
-a-
dia. Neste momento tive a certeza de estar me aproximando de uma pesquisa de
observação participante
5
. Então
o S. Antônio me apresentou à co
munidade e,
desde
então passei a visitá-
la
constantemente em quase todos os finais de semana. Pelo
menos nos que não chovia, pois a estrada de acesso à comunidade nos dias de
chuva se transformava num verdadeiro lamaçal.
Passei a freqüentar as reuniões, ajudando no almoço ou na louça. A
primeira impressão que tive do S. Antonio foi de uma pessoa inflexível e
autoritária.
Conforme o tempo foi passando, fui conhecendo os problemas da comunidade e aos
5
Segundo
Risiska e Oliveira (Brandão,ano, p.27) na pesquisa participante a inserção é o processo pelo qual o
pesquisador procura atenuar a distância que o separa do grupo social com quem pretende trabalhar. Essa
aproximação exige paciência e honestidade, é a condição inicial necessária para que o percurso da pesquisa
possa, de fato, ser realizado de dentro do grupo, com a participação de seus membros enquanto protagonistas e
não simples objetos.
31
poucos fui conhecendo o S. Antonio. Com os seus 60 anos de idade, S. Antonio
nunca desistiu da luta que, segundo ele, foi herdada dos seus ancestrais. Aos
poucos fui percebendo o quão era difícil mobilizar a comunidade que se encontrava
desesperançosa
após as expropriações que haviam ocorrido.
Além de presidente da associação, para garantir o sustento de sua
família,
S. Antonio
6
trabalha fazendo a manutenção do barco e da casa de uma
família
que vem para Ubatuba passar os feriados e as férias
.
Mesmo com esse
trabalho, ele sempre deu um jeito de estar presente na comunidade, participando de
reuniões com a comunidade e com as entidades governamentais, buscando uma
solução para os seus problemas. Fui percebendo a importância do seu papel,
apesar de centralizar muitos assuntos da comunidade em sua pessoa. Porém uma
questão que era difícil de se responder: por que as pessoas não se envolviam,
que os assuntos tratados eram de interesses de todos da comunidade? Tratava-
se
apenas de uma questão de desesperança ou de representatividade? Em alguns
depoimentos é evidente o não reconhecimento da representatividade de S. Antonio.
As pessoas que não o reconhecem, dizem que nas eleições os familiares mais
próximos de S. Antonio, que residem em Santos e Vicente de Carvalho no Guarujá,
vêm participar da votação, como de fato foi verificado numa eleição em que pude
acompanhar, porém a justificativa de S. Antonio é de que todos eles, apesar de
morarem fora, pagam mensalmente a associação e fazem parte da árvore
genealógica da comunidade e por isso têm o direito a voto.
Num determinado dia
,
o S. Antônio me pediu para que eu resgatasse a
história da comunidade, colhendo os depoimentos dos mais antigos e
transcrevendo
-
os
. A idéia era fazer um livro com as histórias da comunidade para
que não se perdessem e também, para que a partir delas, pudessem desenvolver o
turismo cultural. Percebi que esse pedido poderia ser o caminho para retribuir à
comunidade
pelas
contribuições
no compartilhamento dos seus saberes.
Era
2004 quando a comunidade aguardava o reconhecimento de seu
território e da sua identidade enquanto remanescentes de quilombo pelo governo
6
Até o término da pesquisa o S. Antonio e sua família (esposa, uma das filhas, Eloísa e a neta, Isabele) não
residiam na comunidade devido ao seu trabalho. Sua residência ficava no sertão da praia Dura (Ubatuba), mas
nem por isso ele não deixava de vir realizar visitas semanais à comunidade. O seu desejo era de que a
comunidade começasse a se estruturar para que pudesse trabalhar e viver ali. As outras duas filhas de S. Antonio
residem e trabalham no Guarujá, ambas estão grávidas e aguardam uma oportunidade para construírem suas
casas na Caçandoca.
32
federal.
Do contato maior com a comunidade, conhecendo uma pouco mais a sua
realidade,
surgiram novos questionamentos para o desenvolvimento do trabalho.
Qual a relação do grupo com
a
identi
dade
quilombola? Como ocorreu o processo de
identificação e no que ele implicou
?
A aceitação da identidade quilombola significou
apenas a garantia do acesso ao território? Qual o significado do território para a
comunidade?
Tratava-se apenas de uma
identid
ade política
?
As respostas para t
ais
questionamentos
eu pude encontrar adentrando o universo do imaginário dos
sujeitos
da comunidade de Caçandoca.
Fui
ao encontro do material bibliográfico existente sobre o lugar e t
ive
muita
dificuldade em encontrá-lo. Na biblioteca da cidade tive acesso a
algumas
notícias em jornais sobre a comunidade da Caçandoca. Um jornalista da cidade me
sugeriu
procurar pelo vereador Jairo dos Santos ou pelo seu irmão Domingos, que
na época estava concorrendo à vaga de vice-
pref
eito da cidade. Fui à Câmara
municipal de Ubatuba e fui recebida pelo Domingos. Ele me disse que havia feito
um trabalho sobre a Caçandoca e que iria procurar com o irmão uma cópia para
empréstimo, porém não obtive retorno.
Nas páginas que se seguem, o leitor vai notar que durante a pesquisa não
foi possível fazer uma leitura imparcial dos fatos e acontecimentos. Conhecendo um
pouco mais sobre a realidade da comunidade, me senti no dever e direito de
formular julgamentos de valor que denunciam e recusam tudo aquilo que, na ordem
social, nega a liberdade e a autonomia da comunidade. Como, por exemplo, os
abusos dos especuladores imobiliários e dos órgãos governamentais que ocorreram
e ainda ocorrem ali. Fala-se muito sobre a Secretaria do Meio Ambiente do Estado,
representada pelo DPRN, que permitiu a construção de uma residência de alto
padrão no alto do morro causando impacto ambiental, mas não permitiu a instalação
dos postes para passar a fiação para a distribuição da energia elétrica para a
comunidade.
Conforme ia desenvolvendo a pesquisa, fui percebendo a importância de
se resgatar o histórico das trajetórias dos ancestrais e dos sujeitos da comunidade,
que
os encontros, desencontros e reencontros foi o que possibilitou a comunidade
e as pessoas q
ue ali vivem serem o que são.
Nas conversas com as pessoas da comunidade foram surgindo os nomes
dos lugares de seus ancestrais. Procurei saber mais sobre estes lugares de que
falavam e acabei me envolvendo com as suas histórias. Desse envolvimento saiu o
33
capítulo dois sobre as trajetórias dos remanescentes do quilombo Caçandoca. Nele,
não
foi possível traçar a origem particular das famílias que vieram para a
Caçandoca, que o interesse dos antigos historiadores pela genealogia dos
africanos não foi o mesmo que se teve pela genealogia dos europeus. O que
conseguimos fazer foi um levantamento das trajetórias dos pais, avós, bisavós que
foram surgindo durante as conversas.
Pude acompanhar, durante a investigação, o processo de reconhecimento
e de desapropriação das terras pelo INCRA (Instituto Nacional de Crédito e Reforma
Agrária) para o uso social da comunidade, que foi marcado por lutas e conflitos
externos e internos. Sobre os conflitos internos que pude acompanhar são de difícil
compreensão, que todos na comunidade têm um objetivo e um inimigo comum,
que é o de desenvolver o lugar e lutar contra os especuladores que tentam tirar-
lhes
o território. Há certa tensão entre aqueles que deixaram e os que não deixaram o
lugar antes da expropriação que ocorreu na cada de 1970
7
. Os que não deixaram
se acham mais donos do lugar do que os que deixaram e retornaram no final dos
anos de 1990. O que não conseguem compreender é que não teriam conquistado
nada se não fossem uns pelos outros. Cada qual teve a sua importância na
conquista do território, mesmo os que saíram ou os que venderam suas terras sem
saber o quanto ela valia.
Outro fator possível dos conflitos internos que pude presenciar é
desfamiliaridade com a forma de organização política que foi implantada ali para fins
de reconhecimento e negociação com as instituições governamentais. Percebi que
muitos desconhecem como funciona a associação, principalmente no que se refere a
sua forma de organização e na participação de decisões. uma dificuldade das
instituições governamentais, principalmente do INCRA (Instituto Nacional da
Colonização e Reforma Agrária) em não perceber as fragilidades dessa organização.
Foi nos anos noventa, pelo que mostra os depoimentos, que houve uma
voz comum e a união do grupo
, quando
começaram a se mobilizar para retomada do
seu espa
ço e reconstrução da comunidade. Houve aqueles que,
inseguros de serem
expropriados novamente, acabaram não voltando, que não tinham o título de
propriedade de suas terras.
7
A expropriação será tratada mais detalhadamente no capítulo quatro, juntamente com as representações
sociais.
34
Pedi ao S. Altamir
e a sua esposa, D. Cidinha, para que me levassem até
os lugares onde residiam os que não retornaram à comunidade. Nas conversas pude
constatar que os mais velhos e os adoentados que sonham em voltar, não voltam
devido à dificuldade de acesso, à ausência de energia elétrica, de assistência
médica e de conforto necessários principalmente para os mais idosos. Outros não
desejam mais voltar devido às lembranças de momentos difíceis vividos na
comunidade, como a expulsão ocorrida na década de 1970.
No final de 2006, quando a empresa Urbanizadora Continental recebeu o
comunicado de
desapropria
ção
, voltamos a campo para poder compartilhar de um
momento histórico e emocionante para a comunidade. Neste momento percebi que
os desafios não terminariam por ali e que a reconstrução e fortalecimento da
identidade ainda em formação é o elemento primordial para que Caçandoca se torne
uma comunidade, no seu sentido mais amplo
.
A compreensão do
processo
, como foi dito, foi possível integrando-
me
no
esforço coletivo realizado por diversos pesquisadores preocupados com a
elaboração de possíveis leituras do Brasil na perspectiva da população negra e dos
movimentos sociais. Inserindo-me neste esforço coletivo, passo a assumir a fala da
primeira pessoa do plural.
35
2
.
TRAJETÓRIAS E
RUPTURAS: DA ÁFRICA AO QUILOMBO CAÇANDOCA
Ao perguntar aos quilombolas da Caçandoca sobre as suas origens,
ouvimos alguns, como seu Antônio dos Santos, dizer que seus ancestrais vieram do
Gabão. Gabriela Gabriel dos Santos diz que seu pai lhe contou que seus ancestrais
viveram em Moçambique. Dona Anália nos conta que seus bisavós vieram de São
João Marco que, segundo ela, era o
lugar na África onde vendiam os negros
.
Pelos outros depoimentos, parece que o lugar a que D. Anália se refere,
na verdade, é São João Marco, cidade do Estado do Rio de Janeiro que em 1939
virou distrito de Rio Claro
.
No ano seguinte, toda a área pertencente à antiga
cidadezinha e sua rica arquitetura colonial foi demolida devido aos planos da light
(Companhia Energética na época) de se construir ali uma usina hidrelétrica para o
abastecimento de energia elétrica do Estado do Rio de Janeiro. Ao que parece a
cidade nunca foi inundada, só restando os escombros da demolição
8
.
S. Antônio fala que alguns vieram de Carangola, município de Minas
Gerais. Estes dois últimos casos confirmam a migração interna de escravos, por
venda ou por fuga. Não obstante, o município de Carangola não teve o mesmo fim
que São João Marco, e atualmente, apesar de não conseguirmos muitas
informações, há comunidades no local que estão reivindicando os territórios de
quilombos.
Os lugares aos quais os sujeitos da Caçandoca se referem na África,
como Gabão, Angola e Moçambique que conhecemos hoje olhando no mapa do
continente africano, não são os mesmos das n
ões
reconhecidas e denominadas
pelos seus ancestrais
.
Como explica Munanga (2003):
Os territórios geográficos da quase totalidade das etnias nações
africanas foram desfeitos e redistribuídos entre territórios coloniais
durante a conferência de Berlim (188
4-
1885). É por isso que o mapa
geopolítico da África atual difere totalmente do mapa geopolítico pré
-
colonial. Os antigos territórios étnicos, no sentido dos Estados-
Nações hoje são divididos entre diversos países africanos herdados
da colonização. O antigo território da etnia ioruba se encontra
8
As informações sobre São João Marcos estão baseadas nas informações contidas no site
http://www.hcgallery.com.br/genealogia.htm
, consultado no dia 15/12/2006.
36
dividido hoje entre as Repúblicas de Nigéria, Togo, Benin; o antigo
território da etnia Kongo é hoje dividido entre as Repúblicas de
Angola, Congo Kinshasa e Congo Brazaville, etc. para citar apenas
dois exemplos en
tre dezenas.
9
Podemos então dizer que tais denominações as quais se referiram são
produtos da invenção colonial e que as fontes mais seguras são sobre as
localidades e migrações internas.
Neste capítulo, procuramos estabelecer um paralelo entre as falas dos
sujeitos da Caçandoca sobre suas origens, trajetórias e rupturas com os estudos
existentes sobre a população africana no Brasil. Sentando-se ao lado de grandes
personalidades como D. Antônia, D. Marciana, D. Dica (Maria da Conceição), D.
Isaltina, entre outras que sobreviveram às adversidades que a vida lhes trouxe,
conseguimos identificar lugares possíveis da origem das pessoas da comunidade.
Porém, é necessário reafirmar que devido à colonização da África e à sua partilha
realizada pelos europeus, a identificação pontual dos lugares de onde vieram os
africanos não é tão precisa quanto é, por exemplo, a identificação das origens
européias. Por isso, diversos autores preferem falar atualmente das regiões da
África que influenciou cio-culturalmente o Brasil, o que é mais interessante para
que os sujeitos da Caçandoca (re)conheçam as matrizes culturais dos seus
ances
trais, que na comunidade são poucas as manifestações culturais
semelhantes às de origem africana. Alguns se recordam de danças, fazeres que os
pais e os avós contavam, mas que não são
praticados
.
Apesar do passado
silenciado, sua essência sobrevive no imaginário dos quilombolas da Caçandoca.
Cabe ressaltar que nas memórias desses sujeitos
não sobrevivem apenas
as lembranças das brutalidad
es, claro que essas marcaram suas vidas, mas também
as
boas lembranças como as do tempo do mutirão, da união, dos filhos que ali
nasceram e foram criados, enfim, do tempo em que estavam livres da tormenta dos
especuladores e que as famílias viviam seguras em seu lugar, conforme veremos
com mais detalhes no capítulo quatro.
9
Palestra proferida por Munanga no 3º Seminário Nacional Relações Raciais e Educação - PENESB-
RJ,
05/11/03.
37
Com as falas dos sujeitos e com a bibliografia sobre a diáspora africana e
sobre
a
formação da cultura afro-
brasileira
, foi
possível
conhecer a história das
rupturas
dos atuais e antigos moradores da Caçandoca com os lugares, assim como
as transformações que possibilitaram a estes homens e mulheres criarem e
recriarem a sua identidade, de acordo com suas necessidades, chegando ao
presente da forma como chegaram.
Assim, veremos a princ
ípio
a
trajetória d
os
africanos que foram
desterrados de diversos lugares da África até chegarem ao Brasil. Trata-se do
passado dos ancestrais dos remanescentes da comunidade de quilombo da
Caçandoca quase imemorável. As memórias dos sujeitos que pertencem à família
da Caçandoca se referem a um passado mais próximo, de duas gerações aos
tempos mais recentes. Vez ou outra se verifica alguma coisa relacionada a um
passado mais longínquo sobre o que os pais e os avós contavam. Nesse resgate
procuramos evidenciar a ruptura com o lugar, ou seja, como ela foi dada no tempo e
quais as conseqüências desse processo na construção da identidade do grupo.
Logo após essa introdução histórica geral, baseando-nos nos depoimentos dos
sujeitos, trataremos da trajetória pa
rticular
de algumas famílias num passado mais
recente.
Remetemos
-nos aos séculos XVIII e XIX, quando os primeiros ancestrais
das famílias da Caçandoca chegaram ao Brasil. Sabemos que entre 1781 e 1855
era intensa a circulação de navios entre a África e Brasil. Segundo o IBGE (2000),
da África para o Brasil atravessaram milhares de africanos, ou seja, o maior número
de toda América. Estimativas apontam um contingente de 2.113.900 africanos
desembarcado
s no Brasil durante esse período
10
. Nos séculos anteriores, mais
exatamente entre 1531 e 1780, o número de africanos desembarcados no Brasil
chegou a 1.895.500.
E quem eram os africanos trazidos para o Brasil?
Encontramos alguns estudos que fazem referência às designações do
contingente africano que desembarcou no Brasil. Porém, faz-se necessário alguns
esclarecimentos sobre o processo arbitrário durante a identificação dos grupos e
nações africanas.
10
Dados extraídos do IBGE em “Brasil: 500 anos de povoamento”, no quarto capítulo “A presença negra:
encontros e conflitos” de João José Reis. Rio de Janeiro. IBGE, 2000.
38
2. 1. Nações, etnias e denominações
Na busca da identi
ficação
dos africanos que chegaram ao Brasil,
encontram
os alguns estudos que se referem às nações e etnias africanas. Os
estudos mais recentes procuram desmistificar algumas dessas denominações que
pretenderam identificar essa população. A etnologia, primeiramente, estabeleceu um
rol de critérios para enquadrar uma nação étnica. De acordo com Hobsbawm (1992,
p.15)
, as tentativas de definir a nação por critérios objetivos estão
fadadas
ao
fracasso, pois sejam qua
is
forem os critérios (língua, etnia, cultura, história comum,
terri
tório, religião,
etc), estes são
tão flutuantes quanto ao que procuram definir. Para
ele, as exceções sempre existirão: ou porque os candidatos eleitos pela definição
não manifestam aspirações por ela, ou porque “nações” efetivas não correspondem
aos critérios.
Os povos da África que a princípio “não tinham alma
11
” foram sendo
categorizados e denominados conforme a época, o contexto e a vontade de um
grupo que se
julgava
superior.
Desse modo, para compreendermos as
denominações devemos identificar o modo
como
elas
surgiram e em qual conte
xto
.
Em Poutgnat & Streiff-
Fenar
t (1998, p.81), uma referência à Amselle, que afirma
que
as etnias foram criadas em larga medida pelas operações de classificação
impostas pela ordem colonial.
As
tradições foram fixadas como tais pelas profecias
retrospe
ctivas ou autocriadoras dos etnólogos. Ele se baseia em numerosas
pesquisas de campo
que
põem em evidência o papel dos administradores coloniais
e dos próprios etnólogos na criação artificial das tribos ou das etnias.
No Brasil, as denominações identitárias fazem parte da invenção das
instituições que a serviço da nação criam denominações desconexas com as
aspiradas pela população. Nem mesmo uma tentativa de buscá-las nos grupos
para fortalecê-las, muito pelo contrário. Parecem se repetir os mesmos
proc
edimentos
adotados nos séculos anteriores.
11
Lapla
tine (2000, p.37 e 38) explica que do primeiro confronto visual com os habitantes de outros
espaços que não o europeu, surgem as indagações: aqueles que acabaram de serem descobertos
pertencem a humanidade? O selvagem tem alma?
39
Na África, antes do século XVIII, havia cerca de quarenta e cinco reinos
12
,
com diferentes formas de organização territorial, política e social. Os europeus, com
sua “missão civilizadora”, classificaram os diversos povos da África e mais tarde
fragmentaram o território africano segundo os seus interesses coloniais. Anos se
passaram e ainda hoje encontramos ali grande diversidade cultural, social e política
que não condiz com a divisão realizada pelos europeus.
13
As tentativas de generalização no processo de identificação das
diferentes populações nos mostram a arbitrariedade das instituições que a
promoveram e que ainda promovem. Optamos
aqui,
por um referencial que rompe
com a visão generalizadora da África e se desenvolve privilegiando o contexto da
experiência da população negra, da representação de si, de suas organizações e
também que procura esclarecer o processo de construção das denominações
atribuídas aos povos africanos de forma arbitrária. Mas antes de adentrarmos neste
universo, faremos algumas considerações justamente a cerca de tais denominações.
Veremos a princípio, os significados da palavra nação, no sentido de se
entender de que forma as formações étnicas podem ou não compreender a tais
significado
s. Temos como principal referência Matory (1999, p.57) que discute
o
caráter subjetivo da nação territorial. Segundo ele:
“(...) a comunidade baseada em seu território é menos objetiva do que
imaginada
imaginada por uma imprensa vernacular e
monolingüis
tíca, e pela leitura a partir da qual é construída uma
experiência compartilhada, apesar das grandes distâncias geográficas
e sociais que separam os diversos cidadãos”. (MATORY, 1999, p. 57)
Desse modo, a nação territorial é imaginada porque o sentimento de
pertença é construído ideologicamente para legitimar o poder de um Estado.
Trata
-se de uma vontade que se torna “naturalizada”, que é colocada desde o
12
Segundo Anjos (2000, p. 24) os antigos reinos da África devem ser compreendidos como “núcleo de domínios
com limites e fronteiras fluídas, que alcançam maior ou menor extensão no território, segundo o nível de
autoridade e dinamismo dos seus governantes”.
13
Cabe lembrar que nesta diversidade, encontramos uma unidade em algumas culturas, como por exemplo, os
valores religiosos comuns ligados ao conceito de “ventura e desventura” que veremos mais adiante. Porém, isso
não significa que os elementos particulares de cada uma não devem ser considerados, respeitados e
valorizados.
40
instante em que nascem
as pessoas
em
suas certidões de
nascimento. Apesar do
caráter subjetivo, o sentimento de pertença pode ou não estar ligado a uma
ideologia ou Estado. Como
é discutido por
Santos (2001, p.19) quando se refere à
territorialidade:
“o sentido da palavra territorialidade como sinônimo de pertencer
àquilo que nos pertence... esse sentimento de exclusividade e limite
ultrapassa a raça humana e prescinde a existência do Estado”.
(SANTOS, M.,
2001, p. 19).
A existência de um país supõe um território, mas a existência de uma
nação nem sempre é acompanhada da posse de um território. Segundo Santos
(2001, p. 19), “existe territorialidade sem Estado, mas não existe território sem
Estado”. O que diferencia a nação territorial da nação étnica é o papel que a
ideologia desempenha. Na construção do
Estado
-
Nação
ela tem o papel de construir
nov
os símbolos que sobreponham os símbolos dos grupos étnicos ou raciais. Por
isso, de acordo com Poutignat & Streiff-F
enart
(1998, p. 35) baseados em Renan, a
unidade nacional depende muito das condições do esquecimento das condições da
produção dessa unidade: da violência e do arbítrio originais e a multiplicidade das
origens étnicas. Para ele não existem grupos racialmente puros, mas populações
que esqueceram o fato de serem originadas de uma fusão. Em uma nação étnica, a
ideologia nasce no interior do grupo, seja como forma de se proteger ou de
conquistar espaços e visibilidades sociais.
Historicamente, o processo de identificação dos mais variados povos
não se deu de outra forma senão negando a representação individual ou coletiva do
grupo. Exemplo disso, é quando ficamos em dúvida ao responder a um questionário
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) que oferece apenas cinco
alternativas para nos identificar com apenas uma delas e não nos sentimos
enquadrados em nenhuma delas.
Segu
ndo
Matory
(1995, p. 23), a princípio, as nações africanas eram
extremamente políticas, as alianças políticas se davam através de laços de
parentesco não consangüíneos. Os ex-escravos também podiam se unir a estas
famílias. Ainda sobre as nações africanas,
baseado em Costa Lima, Matory (1999, p.
59) argumenta que elas eram originalmente nações políticas africanas, mas foram
41
aos poucos perdendo sua conotação política para se transformar num conceito
quase exclusivamente teológico.
Sobre os africanos desterrados dos diversos lugares de origem e
separados de seus ascendentes, Matory (1999, p.60) relata a formação de nações
transatlânticas que adaptaram as suas culturas, a relação com as suas instituições,
a língua e os saberes a uma nova realidade e que estas coexistiram e coexistem ao
Estado
-
Nação.
O que vimos até aqui foi o como, e o contexto em que as populações
africanas foram sendo denominadas. Veremos a seguir, mais detalhadamente, quais
foram as denominações que pretenderam identificar os africanos.
Re
ferimo
-
nos
às
“nações” identificadas pelos estudos baseados nos registros dos portos de
embarcação de onde saíam os escravos e às denominações conhecidas que
coincidem ou não com as existentes na África.
2.2. Identidade ou “trademarkers”?
Os colonizadores europeus, com base em suas instituições, desenharam
a divisão do mundo, sobrepondo as autodenominações dos mais variados povos do
planeta. Matory (1999, p. 58) afirma que, durante o período colonial, as nações
africanas “eram freqüentemente agrupamentos impostos a diversos povos e a
distintas ordens de categorias políticas, lingüísticas e culturais que foram unificados
primeiramente para os propósitos dos traficantes de escravos”. Matory (1999, p.58),
baseado em Kubik (1979), chamou as denominações impostas de “trademarkers” ou
“marcas registradas”. Para ele, a arbitrariedade na construção de tais marcas, não
exclui a possibilidade de haver afinidades culturais ou potencialmente política em
tais agrupamentos, como veremos mais adiante. Desse modo, muitas das
denominações dos africanos escravizados que conhecemos hoje têm relação com a
estruturação da escravidão. Em contrapartida, houve um trabalho cultural e
institucional dos donos de escravos e da Igreja Católica ajudou os africanos e afro-
americanos ama
lgamarem
-
se em nações.
42
As denominações conhecidas nos estudos de Nina Rodrigues (1976),
entre outros existentes sobre as denominações dos africanos, basearam-se, em
alguns casos, na religião dos africanos. Mesmo em tais denominações
controvérsias, com
o explica Lovejoy (2003, p. 68):
No es suficiente el reconocimiento de la etnicidad y la religión como
principios de auto identificación de los africanos esclavizados; cada
cual debe ser entenido en términos de proceso y cambio. La cuestión
es localizar dónde ocurrieron los procesos comunes de redefinición”.
(LOVEJOY 2003, p. 68).
O processo de
transculturação
, segundo John Thornton
14
, ocorria
desde a África, como por exemplo, alguns congoleses e angolanos cristianizados.
Matory (1999, p. 60), na busca da origem do significado do termo “Jeje”,
traz algumas informações fundamentais para compreensão da arbitrariedade
e
do
seu uso. Os vizinhos dos Jeje, conhecidos por Yorùbá, ou seja, os Ijebù, os Egbá, os
Egbádò, os Ondó, os Ekiti, os Oyó e outros, antes do tráfico de escravos, nunca se
autodenominaram Yorùbá, muito menos compartilharam uma língua padrão ou uma
identidade política única. O argumento de Matory (1999, p. 60) é de que a luta dos
retornados contra o imperialismo britânico foi fundamental para a construção da
nação “Yorùbá”. Para ele, os retornados fizeram dos “Yorùbá” a “nação” mais
prestigiosa do perímetro Atlântico, produzindo a identidade unitária “Yorùbá”.
Sobre a nação “vodun”, Matory (1999, p. 61) faz algumas considerações.
Segundo ele, para o grupo dialetal ewe-
gen
-
aja
-fon, o termo (
vodun
) significa
“divindade” ou “deus”. muitos anos saíram várias dinastias da região do atual
Togo, fundando os reinos de Allada, Daomé e Hogbonou ou Porto-Novo. Estas
dinastias e seus súditos acabaram por falar diversos dialetos.
Os
súditos, por serem
de diversos reinos, não pertenciam a nenhum grupo politicamente unido e achavam-
se muitas vezes em guerra uns com os outros. Viajantes europeus e traficantes de
escravos identificaram vários povos adoradores dos
voduns
e chamaram-
nos
coletivamente de Ardra/ Arder/ Ardres” (do nome do reino de Allada) e “Minas” (do
nome do castelo de São Jorge da Mina). No Brasil e na Louisiana francesa foram
14
Lovejoy (2003, p. 62) apresenta as idéias de Thornton para explicar que o processo de crioulização ocorreu
primeiramente na África.
43
denominad
o
s “Minas”.
Para
Matory (1999, p. 62),
o
mistério está
no aparecimento da
denominação ”Jejes” para os mesmos adoradores de voduns no Brasil, em meados
do século XVIII. O registro desse termo data de 1864. A mais forte hipótese do
surgimento da denominação Jeje é a de que centenas ou milhares de jejes
brasileir
os, no segundo terço do século XIX, retornaram ao Golfo da Guiné como
comerciantes ou donos de escravos. Lá aplicaram o nome “jeje” a todos os africanos
que consideravam seus parentes. Na campanha francesa contra o imperialismo
anglo
-yorùbáno, a identidade “djedji” foi destacada na colônia de Daomé até o início
dos anos de 1930
.
Assim como Matory e Kubik, Russell-Wood (2001, p. 12) afirma a idéia de
“trademarkers” e acrescenta a ela outras arbitrariedades nas designações dos
africanos. Refere-se aos escravos da América portuguesa, não expostos à cultura
européia:
As designações identificadoras de escravos apresentam
-
se como uma
mistura de referências relacionadas ao porto de origem. Também às
referências genéricas ou de termo específicos vinculados às área
s
geográficas de origem, às formas de governo, aos grupos étnicos. As
terminologias criadas pelos traficantes ou pelas pessoas
encarregadas da elaboração dos registros alfandegários, que
provavelmente misturavam dois ou mais grupos étnicos em um
mesmo nome genérico (congo), aplicavam uma designação
geográfica (por exemplo, o porto de Cabinda), ou estendiam a
designação um tanto estreita de nagô ao tratamento de todos os
grupos que falavam yorùbá. (…) Raramente tais designações refletiam
mudanças resultantes de migrações africanas internas, bem com as
suas várias diásporas, ou crises de fome, de mudanças nas alianças
políticas ou nos padrões de fortuna, ou no aparecimento de novas
fontes de oferta de escravos e rotas de comércio. No Brasil, estas
terminologia
s eram usadas pelos vendedores e pelos compradores de
escravos enquanto marcas de comércio ou etiquetas, entendidas
como uma descrição, que dava conta de atributos físicos, de
qualidades morais e de características culturais e comportamentais.
(RUSSELL
-
WOO
D 2001, p. 12)
44
A movimentação das sociedades africanas e européias durante o período
colonial nos leva a crer que precisar sobre as autodenominações desses povos seria
algo impossível, que durante esse trânsito os modos de ser e de fazer estavam
em tr
ansformação.
Alguns estudos da diáspora africana
15
no período colonial
que
consideram
o movimento da cultura e das identidades
,
acompanham a trajetória e as
condições de vida que levaram às transformações dos povos africanos. No estudo
da trajetória evidenc
ia
-se, justamente, o movimento da população e a partir daí,
podemos entender que o contato com outras experiências levaram a transformação
no modo de ser e saber fazer da população que foi escravizada no Brasil e que
deram origem aos quilombos.
O quilombo na África era uma sociedade formada por vários grupos
étnicos desenraizados de suas comunidades. Segundo João Pacheco de Oliveira,
ex
-presidente da ABA (Associação Brasileira de Antropologia), a identidade dos
quilombos de hoje não é mais definida pelo tamanho e número de seus membros,
mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória comum e
da continuidade enquanto grupo. Trata-se, portanto, de uma referência histórica
comum, construída a partir de vivências, sentimentos e valores compartilhados.
(ANDRADE, 1997, p. 47).
2.3. O lugar de origem dos ancestrais africanos e identidade.
A identificação do lugar de origem dos africanos que se destinaram ao
Brasil não define
as
suas identidades. Como podemos ver anteriormente, outros
fatores seriam necessários para identificá-los, mas o mais importante seria a auto-
identificação
que se tornou muitas vezes inviável aos povos africanos. Porém,
alguns autores traçaram alguns elementos no ser e fazer comuns aos grupos
escravizados originár
ios de uma mesma região.
Para Munanga (2004, p. 14), a identidade está sempre em processo e os
constitutivos dela são escolhidos entre os elementos comuns aos membros do
grupo: língua, história, território, cultura, religião, situação social etc. Segundo
ele,
esses elementos não precisam estar concomitantemente reunidos para deflagrar o
15
Os autores que levam em consideração o percurso histórico dos africanos escravizados são Karen Olwig
(1995), Sidney Mintz e Richard Price (2003).
45
processo, pois as culturas em diáspora têm de contar apenas com aqueles que
resistiram, ou que conquistaram em seus novos territórios.
Slenes (1999, p. 143) considera a trajetória dos africanos escravizados
como um
dos
fator
es que influenciou o ser e o saber fazer destes indivíduos. Ele
parte da idéia de que os escravos do Sudeste têm, em sua maioria, origem na África
Central e traça os elementos comuns na identidade de
sta
região do Brasil, herdados
do tronco lingüístico
banto.
Para Slenes, a expansão das línguas banto
16
gerou
semelhanças nos saberes dos povos da África Central e, conseqüentemente, no
Sudeste brasileiro,
região
que recebeu a maior parte da
população
dessa re
gião.
Praticamente
, todas as sociedades de influência
banto
, estruturam-se em torno da
família concebida como linhagem, ou seja, um grupo de parentesco que traça sua
origem a partir de ancestrais comuns. Outro fator comum a estas sociedades (que se
localiz
avam desde a parte do atual norte de Angola e Zâmbia até a República de
Gabão e parte dos Camarões, incluindo a República Democrática do Congo e a
República do Congo) é a diversidade religiosa com um conjunto de valores comuns
a todas elas
17
. Trata-se de valores ligados ao conceito de “ventura-
desventura”
que
é definido por Slenes (1999, p.143) da seguinte forma
:
“A idéia de que o universo é caracterizado em seu estado normal
pela harmonia, o bem-estar e a saúde, e que o desequilíbrio, o
infortúnio e a doença são causados pela ação malévola de espíritos
ou de pessoas, freqüentemente através da feitiçaria”. (SLENES,
1999
, p. 143).
Ainda
em Slenes (199
1/92
, p.
214
), encontramos dados específicos sobre
os escravos do Centro-sul. Ele mostra que em 1851, dos 59% dos escravos da
província do Rio de Janeiro, 45% dos pretos e pardos e 32% da população era de
16
Segundo Anjos (2000, p. 21), “um dos fenômenos mais importantes e fundamentais da historiografia africana é
a expansão das línguas banto, que vai ocorrer nos ambientes da savana e da floresta da África Austral. Os
estudos apontam para o fato de que essa expansão demográfica estaria profundamente ligada a uma melhoria
do nível alimentar, graças a introdução, na África, do inhame e da banana procedentes do sudeste asiático. A
expansão das línguas banto estaria ligada à posse e ao uso da técnica do ferro e a capacidade de organização
social e política. A massa de migrantes sem território delimitada - caracterizada como banto-, apresenta uma
diversidade de tipos físicos, mas os inúmeros
dia
letos que usam apresentam características comuns, que só
podem ser explicadas supondo-se uma origem comum. Segundo os estudiosos de lingüística, o ponto de
dispersão das línguas banto teria ocorrido no início da Era Cristã, na região do planalto de Bauchi,
localizado nas
atuais fronteiras políticas da Nigéria e dos Camarões”.
17
Slenes (1999, 143) de acordo com o argumento de Craemer, Vansina e Fox.
46
origem africana. Em Vassouras (SP) em 1850, 72% dos escravos, 60% do total de
pardos e pretos e 49% da população eram africanos. Em 1829, em 13 localidades
paul
istas de economias variadas 54% dos escravos eram africanos. Isso levou
Slenes (1991
/92
, p.
214
)
a conclusão de que a
escravidão
africana
no Centro-
sul
do
Brasil foi essencialmente sob influência cultural banto
. Ele
nos mostra
que no final do
século XVIII e inicio do XIX, quase a totalidade dos escravos trazidos para essa
região provinha de Angola (dos portos de Luanda e Benguela). Após 1810, cresce o
tráfico da região que vai da desembocadura do rio Congo/Zaire até o Cabo Lopez e
pontos do Norte, no atual Gabão, como também de Ambriz. Depois de 1830, diminui
a exportação de escravos por Luanda e aumentam as saídas de Benguela, Ambriz e
Congo
-norte. Em 1820 o tráfico da África Oriental aumenta. Entre 1820 e 1850,
aproximadamente um quarto dos escravos trazidos para o Rio de Janeiro provinham
dessa região. Mesmo com a mistura mais diversificada de etnias que ocorreu após
1810, manteve
-
se a predominância
cultural
bant
o
. Segundo
Slenes (
1991/92, p.215)
,
os escravos importados diretamente da África Ocidental em ne
nhum momento, entre
1795 e 1852 chegaram a perfazer 2% do total de cativos destinados ao Centro-
sul,
embora, como aponta Slenes, nas décadas de 1830 e 1840 sua presença nessa
região fosse um pouco mais significativa, devido ao tráfico interno de escravos d
o
Nordeste.
Além dos elementos religiosos da cultura
banto
, comuns aos africanos e
seus descendentes, foi identificado por Slenes (1991/92, p. 215) alguns traços
comuns na relação de parentesco tendo como base a trajetória dos indivíduos.
Ele
parte do princípio de que na África, anterior a presença do colonizador, os
agrupamentos consistiam em alianças políticas que formavam laços de parentesco
não consangüíneos. O ex-escravo poderia fazer parte desse tipo de agrupamento.
Para ele, dado a esse tipo de laço
s,
em alguns casos os escravos se acomodam no
novo mundo. Na relação com o senhor, tendo-o como parente fictício, os
escravizados criam uma relação de dependência, porém não deixa
ra
m suas
entidades. Ao mesmo tempo formaram comunidades autônomas devido aos
seus
princípios organizativos. Tinham seus próprios roçados onde podiam negociar a sua
produção e acumular excedente para a compra da alforria, como observou o artista
Rugendas
18
ao colocar duas galinhas em cena com um detalhe na sua prancha
18
SLENES, 1999, p. 186.
47
representando a habitação de negros”. Segundo um fazendeiro anfitrião de
Binzer
19
, no Vale do Paraíba os cativos podiam vender seus ovos. Outra estratégia
de acumulação de que se tem relato é um caso de um escravo que segundo Slenes
(1999, p
.187
) teria se empenhado em aumentar o patrimônio através de furtos, o
que teria lhe possibilitado a compra da liberdade da sua mulher. Estes são apenas
alguns exemplos de que o escravo exercia certa autonomia e tinha seus projetos.
A partir dos estudos da linguagem dos africanos, Rus
sell
-Wood (2001,
p.
13
) apresenta alguns grupos e subgrupos lingüísticos e relaciona-os, cada qual,
com uma determinada região
da África
. Segundo ele, da Costa da Angola, região em
que segue os afluentes do rio Zaire em direção ao Sul, habitavam os africanos de
diferentes línguas, porém todas elas do mesmo grupo lingüístico: o grupo Banto.
Falavam Quicongo e Quimbundu, subgrupo lingüístico do Banto (os africanos que
habitavam o ocidente da costa Angola). No interior, havia os subgrupos lingüísticos
dos Malem
bos, Monxiolos, Angicos e dos Angolas.
A África centro-ocidental e a centro-oriental também forneceram alguns
escravos para a Bahia e o nordeste, no culo XIX. Porém, como vimos,
dessa
região da África, no século XVIII, houve um grande fluxo de escravos para Minas
Gerais e Rio de Janeiro. A África Centro-ocidental incluía as regiões que iam do
atual Gabão até o sul de Angola. Segundo alguns moradores da comunidade de
remanescente do quilombo da Caçandoca, os seus ascendentes vieram desta
região. Aos povos dessa região eram atribuídas também afiliações étnicas: Congo,
Cabinda, Monjolo, Anjico; e Angola, Ambaca, Cambambe, Cabundá, Cassange,
Mixicongo, Gabão, Mbundu, Molembo, Ambris, Rebollo, Luanda, Camundongo,
Quiçama, Songo, Benguela, Ganguela
20
.
Da África oriental, que incluía a atual região que ia da Tanzânia até
Maputo, no Sul de Moçambique, região de onde veio parte dos ascendentes da
família da comunidade de remanescentes do quilombo da Caçandoca,
vieram
os
africanos com as seguintes nações: Moçambique, Quelimane, Inhambane, Mucena
(sena), Lourenço Marques, Macua, Mougão. Estes grupos étnicos também são
19
SLENES, loc. cit. (se refere ao livro de Binzer “Os meus romanos. Alegrias e tristezas de uma educadora
alemã no Brasil”. Tradução de Alice Rossi e luisita da Gama Cerqueira. São Paulo: Paz e Terra, 1980).
20
RUSSERL
-
WOOD, 2001, p. 13.
48
identificados como os Tumbuka, os Yao, os Makua, os Makonde e os Maravi no
norte, os Manyka no centro e os Ronga, os Chopi e os Shangaan, no sul
21
.
Da Alta Guiné, vieram os escravos do grupo lingüístico Mande, falado nas
regiões que seguem os rios Senegal, Gâmbia e Niger, em direção a Serra Leoa.
Havia também um fluxo de escravos sudaneses da Baixa Guiné, que seguiam o
Niger em direção ao delta de Calabar. Estes também tinham influências
mulçumanas, devido à conquista do norte da África pelos árabes
22
.
Da África ocidental (extensão que ia do atual Senegal ao Camarões, às
ilhas do Atlântico, Cabo verde, São Tomé e Príncipe, incluindo a região mais
import
ante de todas, integrada pelo Golfo do Benin e pelos portos do tráfico de
escravos) vieram a maior parte dos escravos com destino à Bahia e ao nordeste do
Brasil, no século XIX. Segundo Russerl-Wood (2001, p. 13), dentre os numerosos
grupos étnicos, o mais pertinente no Brasil colonial foram os yoruba (os nagô da
Bahia e do Rio de Janeiro) e os jeje (do Daomé). Estes escravos faziam parte das
seguintes nações”: Cabo Verde, Ilha do Príncipe, Calabar, Mina, Haussa, Arda,
Ashanti, Tapa (nupe), Mandinga, Camar
ão, Ibo, Jabu, Mandubi, Fulani e Bornu
23
.
Há indícios de que o contato da África ocidental com a África centro
ocidental já havia ocorrido através das redes de comércio do Mediterrâneo que
cortavam o Norte da África, mesmo com os obstáculos físicos constituídos pelo
deserto do Saara no Norte da África e
com a combinação de sistemas de correntes e
de ventos desfavoráveis, passando da África Centro-ocidental para a Ocidental até
chegarem no Atlântico. Inicialmente, esse contato se deu através dos intermediári
os
árabes, nas rotas que atravessavam o Saara e, mais tarde, através dos
comerciantes europeus, pelo mar, sendo os portugueses líderes dessa iniciativa. As
cidades da costa oriental da África estavam posicionadas de frente para o oceano
Índico e o mar árabe, fazendo parte das redes de comércio árabe com o golfo
Pérsico e o Mar Vermelho. Estavam, portanto, expostas às influências externas. Na
África ocidental e no centro ocidental, o contato entre as regiões costeiras e o interior
foi favorecido pelos rios
d
e fácil navegação
.
Nas regiões do Sul do Saara houve o intercâmbio de produtos e a
movimentação de povos, com certo número de características compartilhadas entre
21
Ibid., p. 14.
22
RUSSERL
-
WOOD, loc.
cit.
23
RUSSERL
-
WOOD, loc. cit.
49
si. Russerl-Wood explica que as três regiões que compunham a principal fonte de
fornecimento
de escravos para o Brasil encontravam
-
se situadas no interior da África
subsaariana
,
e que elas dispunham de
elementos culturais semelhantes.
Slenes (1991/92, p. 215) afirma que
a
unidade lingüística entre os
africanos de origem de influencia
banto,
foi
percebida
,
durante a travessia da África
e do Atlântico,
quando
troca
vam
idéias com outras pessoas liminares, ou seja,
em
trânsito de uma sociedade para outra.
Segundo Reis (1995/96, p. 24), tanto quanto no Rio, em Salvador
coexistiam dezenas de “nações” africanas, mas na verdade em ambas as cidades
havia uma considerável concentração étnica entre os africanos, se entendermos
etnicidade como identidade recriada no Brasil, a partir da convergência de grupos
vizinhos
geográfica e lingüisticamente na África. Entre 1830 e 1850, na cidade do
Rio, os vários grupos reunidos sob a denominação de Angola chegaram a
aproximadamente 46% dos africanos e em outras estimativas variavam entre 36 e
57%. Na Bahia predominavam os escravos oriundos da região do Golfo do Benim,
os Jejes, Haussás e, sobretudo Nagôs. Estes últimos eram como os angolas,
compostos por vários subgrupos iorubas. Reis (1995/96, p. 24) baseado no estudo
de
Maria Inês C. de Oliveira, afirma que entre 1816 e 1850, os nagôs eram
56%
,
proporção a que só chegaram realmente, e até ultrapassaram, durante a última
década do tráfico. De qualquer forma, para Reis, os angolas do Rio e os Nagôs em
Salvador representavam, durante a maior parte da primeira metade do século XIX,
as grandes maiorias entre as nações africanas reconstruídas no Brasil, o que no
primeiro caso vem a confirmar a idéia de Slenes de um Sudeste banto.
No trajeto Europa, África e Brasil, os lugares percorridos proporcionaram
o contato que influenciou as transformações no ser e saber fazer das pop
ulações
africanas. Estes lugares eram, principalmente, as regiões por onde percorriam os
rios na África, o Atlântico, por onde percorriam as embarcações rumo ao Brasil, e o
novo continente. Podemos dizer que, em muitos casos, o contato foi favorecido pela
Geografia destes lugares.
Veremos a seguir, as estratégias de
fugas
e de organização da vida social
dos
escravos na África e no Brasil, assim como o incômodo dos senhores e os seus
planos diante
da ameaça dos quilombos.
50
2.4. Quilombos e Kilombos
Segun
do Reis (1995/96,
p.
17), o termo quilombo deriva de kilombo que
na África, t
ratava
-se de uma sociedade iniciática de jovens guerreiros mbundu que
habitavam a região que corresponde hoje ao Sul de Angola. Essa sociedade foi
adotada pelos invasores Java (ou Imbnagala que eram da região hoje
correspondente à divisa do Sudeste de Angola com o Sudoeste da Zâmbia). Eram
formados por vários grupos étnicos desenraizados de suas comunidades. Esta
instituição teria sido reinventada, embora não inteiramente reproduzi
da
pelos
palmarinos,
para enfrentarem um problema semelhante de perda de raiz. Depois de
Palmares, o termo quilombo se consagrou como um reduto de escravo fugido.
Segundo Reis, antes disso se dizia Mocambo, termo mais conhecido e usado na
época.
Os kilombo
s da África são exemplos de que os grupos étnicos se misturavam
desde lá
.
Para Schwartz (2001), o termo quilombo passou a significar no Brasil
qualquer comunidade de escravos fugidos. Seu significado usual e sua origem
estariam na palavra
mondo
, utilizada para designar acampamento de guerra. No
século XVIII, foi de uso geral no Brasil, mas permaneceu secundário ao termo
Mocambo, que em mbundo significa esconderijo.
Todavia, os quilombos do Brasil não foram reproduções dos Kilombos que
existiam na África. Em muitos casos, o traço comum foi a perda de raiz a
condição
que propiciou a origem dessas associações. Mas devemos levar em consideração
que no Brasil outros elementos foram importantes para torná-los diferentes do que
foram na África. A instituição da escravidão do Brasil, o lugar e os indígenas
acrescentaram outras características aos quilombos do
país
. Podemos dizer que no
Brasil eles foram reinventados e recriados para atender as necess
idades
semelhantes as da África.
Durante anos o conceito de quilombo esteve atrelado a
reduto de escravos fugidos. Depois de escrito o artigo 68 do ato das disposições
transitórias da Constituição Federal de 1988, esse conceito passou a ser
questionado e reformulado pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA). A nov
a
conceituação trouxe a um número maior de comunidades negras rurais a
oportunidade da titulação de suas terras.
Atualmente, o termo quilombo é usado com
freqüência para designar as comunidades negras descendentes dos africanos
escravizados.
Passaram
-
se q
u
ase vinte anos após
a
outorga
do ato
que garante aos
51
descendentes de escravos o pleno acesso à terra, e agora, com a ampliação do
conceito de quilombo, é que elas finalmente poderão se beneficiar, de fato, desse
direito
.
Conforme determina o artigo 68 do ato das disposições transitórias da
Constituição federal: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que
estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir-
lhes os títulos respectivos”.
Durante o debate para a definição de quilombo, as discussões foram
acerca da existência de muitas comunidades de descendentes de escravos, porém
nem todas foram formadas a partir da fuga de escravos que se reuniam em lugares
secretos.
O conceito de quilombo associado ao escravo fugido foi dado
primeiramente pelo Conselho Ultramarino. Para os antropólogos da ABA, este
conceito
é
mitificado e carregado de preconceitos por eles enumerados: primeiro, a
fuga (nem sempre as associações eram formadas a partir da fuga);
segundo,
uma
quantidade mínima de fugidos; terceiro, o isolamento geográfico, em locais de difícil
acesso e mais próximo a uma “natureza selvagem” que da chamada civilização;
quarto, a moradia habitual, referida no termo “rancho”;
quinto,
consumo e
capacidade de repro
dução, simbolizados na imagem do pilão de arroz.
24
Os debates acerca do conceito de quilombo resultaram numa
nova
interpretação
, mais condizente com a realidade vivenciada pelos descendentes de
escravos que foram desprovidos dos meios de manutenção da vida
.
Assim
, as
comunidades remanescentes de quilombos ou quilombolas referem-se “a situação
presente dos seguimentos negros em diferentes regiões e contextos e é utilizada
para designar um legado, uma herança cultural e material que lhe confere uma
referência
presencial no sentimento de ser e pertencer a um lugar específico
25
”.
A garantia das terras de quilombo é uma forma de reparar a população
negra pelos abusos cometidos contra ela, que muito tempo vem sendo
expropriada dos seus instrumentos de manutenção da vida. Primeiramente, essa
expropriação ocorreu na África, quando foram retirados de suas terras. Depois nas
fazendas, com a sanção da Lei Áurea e Lei de Terras de 1850, em que o escravo
recém liberto, sem bem algum, não tinha como ter acesso a terra.
Atualmente,
24
ITESP, 2000.
25
GARCIA, José Mil
ton (PPI/SP), apud: SCHIMITT, 2000.
52
sofrem pressões dos especuladores imobiliários para uma terceira
expropriação
.
Mudam
-
se os atores, mas não cessa a opressão.
Outros acontecimentos nos mostram que os quilombolas não se
calaram diante a opressão. Fazendeiros e políticos influentes no culo XIX,
preocupados com a segurança pública, lançaram suas estratégias para conter as
rebeliões dos escravos. Punições bárbaras
,
como
as que
ocorriam em Minas Gerais
e Bahia
26
, formação de tropas indígenas anti-quilombos, incitação de brigas entre os
grupos dentro da fazenda foram algumas das estratégias utilizadas para o controle
dos levantes.
Por todas as regiões ouvia-se falar das rebeliões escravas. Temia-se que
o quilombo se transformasse
em
revolta. registros de uma série de revoltas q
ue
se integraram aos quilombos em todas as regiões brasileiras. Sobre estas revoltas
temos como principal referência João José Reis (1995/96 e 2003). Segundo ele, n
a
B
ahia em 1814
, quilombolas desc
ia
m o morro para se unir aos escravos pescadores
empregados
nas armações pesqueiras vizinhas de Itapoã. Naquele mesmo ano foi
investigada uma conspiração liderada pelos haussás que envolvia uma combinação
entre quilombos suburbanos e cantos de trabalho de Salvador. Em 1826, no
quilombo do Urubu, foi realizada uma concentração para realização de um levante
em Salvador. Reis (1995/96, p. 21) afirma que essa concentração foi sufocada p
or
capitães do mato. Em São Mateus, no Espírito Santo, no ano de 1827 houve um
levante de escravos sufocado pelas autoridades das fazendas. Em Viana no
Maranhão os escravos do quilombo de São Benedito do Céu ocuparam várias
fazendas e sublevaram seus escravos em 1867.
Na Bahia, em 1789, no engenho Santana de Ilhéus
27
, as condições
atrozes da escravidão resultaram numa vingança trágica. Os crioulos pararam o
trabalho, mataram o feitor e adentraram as matas com ferramentas do engenho, até
reaparecerem com uma proposta de paz em que pediam melhores condições de
trabalho, acesso a roças de subsistência, facilidades para comercializarem os
exc
edentes dessas roças, direito de vetar o nome dos feitores escolhidos, licença
26
Segundo Reis (1995/96, p
.
20) durante a primeira metade do século XVIII, autoridade locais e os
próprios governadores, atormentados pela proliferação de mocambos, conceberam punições
bárbaras contra os quilombolas, como cortar-lhes uma das pernas ou o tendão de Aquiles. A
metrópole recomendou aos mineiros a barbaridade menor de imprimir com ferro em brasa a letra “F”
sobre a espádua do fujão e corte de uma orelha em caso de reincidência. A lei também previa o corte
de u
m braço do quilombola que cometesse “delito capital” e a pena de morte se reincidisse.
27
REIS, 1995/96, p.23
.
53
para celebrarem livremente suas festas, entre outras exigências. Fingindo aceitar a
negociar, o senhor prendeu os líderes e debelou o movimento. Trinta anos depois os
escravos o
cuparam o mesmo engenho por três anos.
No Rio de Janeiro os levantes ocorreram isoladamente. Em 1838, havia
cerca de 40 mil escravos, numa população global de 97 mil habitantes. Em 1849, de
uma população de 206 mil, 79 mil (38%) eram escravos. Ao mesmo tempo, 75% em
média dos escravos nesse período eram africanos
28
. Segundo
Reis (
1995/96, p. 24),
os africanos na corte eram muitos, no entanto pertenciam a uma grande variedade
de grupos étnicos, muitas vezes rivais entre si. Ele considera a diversidade étnica
dos escravos cariocas uma das
mais importantes razões para a ausência de revoltas
escravas no Rio. Para
ele
(1996/96, p. 24), a mistura de etnias comprometia o
levante unificado e era um fator que os senhores e autoridades sempre contavam
para evitar o pior. Um fato ocorrido no Rio de Janeiro e as medidas tomadas pelo
conde de Arcos na Bahia, nos mostram a estratégia dos senhores e autoridades de
“dividir para dominar”:
Um governador do Rio, em 1725, atribuiria à “Torre de Babel”
africana a falta de tal levante, e o conde dos Arcos fez do incentivo à
divisão étnica na Bahia, que governou entre 1810 e 1818, um
expediente de controle escravo. Uma das formas de fazer com que
os africanos não esquecessem suas divisões de origem era, pensava
o conde dos Arcos, permitir que eles praticassem seus batuques
livremente. Nestes, que o inteligente conde percebera serem rituais
étnicos, cada grupo africano tentava manter sua integridade cultural,
dificultando a formação de uma frente pan-africana contra os
brancos. Os senhores não entendiam assim, no que foram apoiados
pela Corte. Em carta para Arcos, o marquês de Aguiar ordenava a
proibição dos batuques africanos na Bahia, embora os permitisse no
Rio de Janeiro. Isso porque, explicou o ministro D. João: “além de
não te
r havido (no Rio de Janeiro) até agora desordens, bem sabe V.
Exa.” que uma grande diferença entre os negros Angolas e
Benguelas nesta capital e os negros dessa Cidade, que são muito
resolutos, intrépidos e capazes de qualquer empreza,
particularmente o
s de nação Aussá. (REIS, 1995/96, p. 24)
28
Ibid., p. 24.
54
Como vimos, entre 1816 e 1850, tanto em Salvador como no Rio, os
escravos de origem africana eram a maioria. No entanto os nagôs baianos se
levantaram em várias ocasiões e os angolas cariocas não. Alguns historiadores da
escravidão carioca argumentam que a capital do império era mais policiada e
militarmente protegida, o que não teria escapado à percepção dos escravos
29
.
Os africanos importados pela corte eram meninos e meninas de a14
anos, numa proporção acima de 60% em algumas estimativas. Oriundos de uma
região em que estados militaristas haviam se transformado em regimes mercantis
integrados ao sistema atlântico de comércio, a grande maioria desses cativos não
eram prisioneiros de guerra, mas escravos e dependentes da elite africana que os
usavam para o pagamento de débitos contraídos na aquisição de bens importados.
Ao mesmo tempo em que a divisão dos escravos favorecia a escravidão,
a divisão das classes dominantes favorecia gradualmente a rebelião escrava porque
revelava aos cativos a debilidade política dos senhores, afrouxava a vigilância
individual e coletiva, e diminuía a capacidade de retaliação militar.
De acordo com Reis (1995/96, p. 27) o haitianismo foi outro fator que
influenciou os negros de todo o continente americano. Em 1805 o retrato de
Dessalines
, proclamador da independência haitiana, decorava os medalhões
pendurados nos pescoços de milicianos negros do Rio de Janeiro.
notícias de muitas conspirações e revoltas em São Paulo, algumas
be
m arquitetadas, mas pouco conhecidas na época p
ois
, segundo Reis (1995/96, p.
30), baseado em Maria Helena
Machado
, havia uma espécie de censura à imprensa
com o objetivo de evitar o pânico. Foram comuns os levantes pequenos, envolvendo
algumas dezenas de escravos que assassinavam feitores e senhores
particularmente tirânicos e depois se entregavam pacificamente ao delegado local.
Em Ubatuba, encontramos uma ocorrência de rebelião escrava em
Reis
(1995/96, p. 31) quando apresenta um quadro contendo as rebeliões e levantes
ocorridos em datas festivas. Foi em
18
31, planejada para explodir no Natal, quando
os escravos atacariam a população livre na igreja durante a missa.
Nas histórias contadas pelos remanescentes do quilombo Caçandoca, os
negros se rebelaram
contra os filhos do fazendeiro Antunes de Sá, que mesmo após
29
REIS, 1995/96, p. 24.
55
a abolição tentavam manter os negros em cativeiro. A primeira revoltosa foi uma
escrava de nome Rita, filha de uma escrava com um dos filhos do fazendeiro. Ela se
rebelou contra o pai e o enganava para poder levar alimentos para os negros.
também a história da revolta de um escravo chamado Napoleão que, segundo os
moradores da Caçandoca agrediu um dos filhos do fazendeiro que não queria
libertá
-los. Também, para que pudessem ficar na Caçandoca após a abolição, os
escravos utilizaram a estratégia de fazer diversas culturas de plantio para
sobreviverem ali, já que o café não estava sendo mais exportado.
2.5. O cativeiro da terra, ideologia e trajetórias marginais
A idéia de liberdade foi realmente levada a sério pelos abolicionistas
quando se intensificaram os levantes e as insurreições dos cativos que abalavam a
estrutura da escravidão. O tráfico de escravos foi abolido oficialmente em 1850 sob
pressão britânica e também segundo os interesses dos fazendeiros. Segundo
Martins (1979, p. 28) estes fazendeiros não tinham outra opção senão a abolição,
devido principalmente ao alto custo do cativo. Com o aumento diminuiu o número de
cativos e com isso o trabalho se intensificou. Muito trabalho e maus tratos só
poderiam resultar em revoltas. A cessação oficial do tráfico foi planejada diante das
pressões e do alto custo do cativo, somados a expansão dos créditos e dos cafezais.
Esse plano incluía a promulgação, em 1850, da uma lei que previa o
des
envolvimento de uma política de imigração de colonos estrangeiros, sobretudo
europeus, para gerar uma oferta de trabalhadores livres nas épocas de maior
demanda por parte das fazendas de café.
Outros fatores também favoreceram a cessação do tráfico, como a lei do
ventre livre e do sexagenário que incomodaram os donos de escravos que, diante tal
conjuntura, se sentiram ameaçados com possibilidade da ocupação das terras
devolutas, aumentando assim as suas concorrências.
Segundo Joel Rufino dos Santos (1999, p. 25), as transformações da
economia brasileira haviam atirado o negro à marginalidade muito antes de 1888.
Ele nos mostra que no Centro-Oeste, por exemplo, com o declínio da mineração,
parcela da escravaria foi transferida para o Sudeste, mas o ex-
escr
avo que ficou se
instalou livre em roças de subsistência. No século XX, essa população emigraria
56
para as grandes e médias cidades ou ficariam nas pobres comunidades semi-
rurais.
No Norte e Nordeste e em alguns casos no Sudeste como o caso de Ubatuba, com o
declínio acelerado das lavouras tradicionais de exportação, o escravo se viu
frequentemente transformado em meeiro (nos casos em que o senhor permaneceu
instalado) ou posseiro (nos casos em que o senhor preferiu emigrar). Na maior parte
do Sudeste, enfim, onde deslanchou a economia empresarial, o escravo foi
substituído pelo imigrante europeu livre.
Em algumas regiões, que eram marginais e subdesenvolvidas, a
marginalização da população negra assumiu características de pauperização. Nas
regiões Norte e Nordeste, onde se concentra a maioria dessa população, a
marginalidade é função do baixíssimo nível de renda geral, agravado pelo
preconceito racial.
Munanga (2004, p.9) nos mostra que, de fato, a abolição foi um dos
elementos que favoreceu a transformação do escravo em paria social. Segundo ele,
as duas grandes conquistas da nação, a independência e a abolição, provocaram a
marginalização do negro atribuindo o seu papel na sociedade brasileira, a qual se
pretendia branca, cristã, europeizad
a
30
.
Desse
modo, não podemos deixar de mencionar o papel do projeto do
branqueamento nesse processo. Esse projeto fortaleceu-se com a ajuda dos
“intelectuais” brasileiros empenhados em escrever os primeiros estudos sobre a
população brasileira. Baseados em teorias p
seudocientíficas,
arquitetaram o projeto
de branqueamento da população brasileira através da miscigenação, como o ideal
de Viana, retratado por Munanga (2004, p. 86)
:
Não perigo de que o problema negro venha a surgir no Brasil.
Antes que pudesse surgir logo seria resolvido pelo amor. A
miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica
diluindo
-o na população branca. Aqui o mulato, a começar da
segunda geração, quer ser branco, e o homem branco (com rara
exceção) acolhe-o, estima-o e aceita-o no seu meio. Como nos
asseguram os etnólogos, e como pode ser confirmado à primeira
vista, a mistura de raças é facilitada pela prevalência do “elemento
30
Munanga, 2004, p.9.
57
superior”. Por isso mesmo, mais cedo ou mais tarde, ela vai eliminar
a raça negra daqui. É “óbvio que isso começou a ocorrer. Quando
a imigração, que julgo ser a primeira necessidade do Brasil,
aumentar irá, pela inevitável mistura, acelerar o processo de
seleção”. (VIANA
31
,
Apud
MUNANGA, 2004, p.
86).
Os ecos de discursos como este ressoam nos dias de hoje quando se
tenta explicar através da biologia a situação marginal de grande parte da população
negra. Se
a
imagem do negro foi, e ainda é estereotipada desta forma, imaginemos
a situação do negro nas relações cotidianas da sociedade. Desse modo é que a
s
ideologias se disseminaram nas mentalidades e nas práticas cotidianas.
O ideal do branqueamento foi assumido pela elite intelectual brasileira
que elaborou o pensamento que sustentou esta ideologia. Euclides da Cunha, Sílvio
Romero, Nina Rodrigues e Gilberto Freire, são alguns dos autores que fortaleceram
as teorias pseudocientíficas sobre a mestiçagem. Causaram prejuízos inimagináveis
à população negra e à sua identidade que foi amordaçada pela ideologia do
branqueamento. Tal ideologia reforça as linhas de passagem de que fala Munanga
(2004, p.45). Segundo ele:
Os indivíduos e as linhagens procuram gerir com cuidado seu
capital racial, de modo a aumentar sua parte de branco e a
subir, no sentido inverso do movimento das águas, os diversos
escalões da “linha de passagem”. Mas, a passagem pode ser
efetuada apenas por raros indivíduos, capazes de escapar à
memória coletiva e de ocultar de seus próprios olhos uma
parte se sua ascendência (MUNANGA, 2004, p.45).
Quando nos referimos à inserção da população negra, estamos nos
referindo a sua integração ao sistema capitalista, com os direitos garantidos
conforme os manuais de cidadania. Durante muito tempo essa população sem
qualquer benefício, invisíveis para a sociedade. De acordo com Santos (1999, p. 7)
as idéias de que o desenvolvimento econômico estaria integrando pretos e brancos
e de que a consciência de classe contém e esgota a questão racial são
31
VIANA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4 ed. Rio de Jan
eiro: Livraria José Olympio
Editora, 1956, p. 183
.
58
responsáveis por essa invisibilidade. Somam
-
se a ela, os estereótipos criados contra
o escravo como as mais sólidas barreiras para a inserção do negro no país
moderno
. Mesmo com todos os setores da industrialização que se expandia pelo
Sudeste a sociedade
racista
decidira que faltava alguma coisa à população negra.
Isso se chamou de ideologia de barragem
32
e a partir da distinção das áreas da
região cafeeira do Sudeste podemos compreendê-la. Segundo Santos, é um
eufemismo sociológico para a discriminação racial. Assim, ele se refere a duas sub-
áreas
da região Sudeste
:
Sub
-área de baixa produtividade; sub-
áre
a de alta produtividade. Na
primeira (parte fluminense do Vale do Paraíba) último bastião do
escravismo, a libertação criou o negro que prefere ficar com seu
senhor. São o negro paupérrimo da ro
ça
e o negro mendicante.
na sub
-
área cafeeira de alta produ
tividade (oeste e norte paulistas), a
“ideologia da barragem” criou simplesmente negros desocupados;
desocupados e malditos, pois não tinham a mínima capacidade de
concorrer com trabalhadores brancos nacionais ou imigrantes de que
a lavoura capitalista precisava e preferia.
(Santos, J.R.,
1999, p. 28)
A idéia de que o desenvolvimento econômico traria benefício a toda
população
parece que, por algum motivo, não funcionou com a população negra do
Sudeste. Santos (1999, p.29), apresenta dois fatores que, segundo ele, os analistas
carregados de preconceitos, utilizam para explicar o porquê do negro não ter se
tornado o burguês do século XX: a “desorganização nata” da família negra e a
“cultura de festa”. O primeiro, é explica
do
como fator de desvantagem na so
ciedade
de classes. Enquanto o imigrante se apresentava no mercado de trabalho e, logo,
na
s ri
nh
as da competição social, com uma família nuclear permanente, o preto se
apresentava solitário ou, no outro extremo, carreado de laços frouxos
indisciplinado, predador, gastador, desmotivado
.
Mau empregado, em suma. A
desvantagem face ao imigrante estrangeiro era notável, sobretudo na sub-
área
cafeeira do norte e oeste paulistas, uma vez que a família nuclear constituía ali a
mola propulsora da poupança e, logo, da acumulação. Outro fato da desvantagem
do negro, nas r
inhas
da competição de classe, a “cultura da festa”, a
insólita
32
Santos (1999, p. 28)
.
59
capacidade de rir da própria desgraça ou, mais precisamente, viver em festa uma
vida de privações materiais é reconhecida de forma prec
onceituosa
como peculiar
atributo do negro. Houve muitos negros que dentro de seu universo de valores não
se interessavam pela vida pequeno burguesa idealizada pelos europeus. Mas no
entanto, como nos mostra Slenes, havia muitos negros que formaram as suas
famílias e em alguns casos chegaram aa manter cativos em seu poder depois de
conquistada a alforria. Fica claro, que os adjetivos fixados em torno da imagem do
negro foram para bani
-
lo de vez da elite social que se formava. Assim, Santos (1999,
p. 143)
avalia o resultado desse processo de estigmatização da população negra:
Para começar, nos dois fenômenos (a desorganização da família
negra e a cultura da festa
),
cristalizou-se a antiga e arraigada
convicção ocidental o preto como primitivo do branco, como ser
inconsciente, “sua expressão sincera”. Trata-se da dificuldade
universal de perceber o outro como tal, independente do nosso
referencial e escala de valores. Percebido daquela maneira, o preto
brasileiro passou a se perceber assim, converteu em real o que não
passava de imagem idealizada. O período convencional da história
do Brasil que vai da abolição (1888) à Revolução de Outubro (1930)
é o do acabamento da marginalização do negro, o da sua conversão
em “mau cidadão”, ele que fora tido, nos primeiros séculos da nossa
formação, como “bom escravo”. Gestou-se nessa fase a ideologia
racial brasileira, compartilhada por brancos e negros, uma legítima
cultura do racismo. A partir dos anos trinta aquelas idéias se
escoimaram e sistematizaram no mito hoje, é claro, percebido
como mito
da democracia racial.
(SANTOS, J.R., 1999, p. 143).
De fato, foi impossível eliminar os indivíduos de pele negra. Vemos em
Munanga (2004, p.16)
que, apesar dos esforços em prol do em
branque
ci
mento
físico
terem fracassado, os seus efeitos psicológicos são responsáveis pelas dificuldades
na construção de uma identidade negra. Segundo ele:
Apesar do embranquecimento físico da sociedade ter fracassado,
seu ideal inculcado através de mecanismos psicológicos ficou intacto
no inconsciente coletivo brasileiro. Esse ideal prejudica qualquer
60
busca de identidade baseada na “negritude e na mestiçagem”, que
todos sonham um dia ingressar na identidade branca, por julgarem
superior.
(MUNANGA, 2004, p.16)
A cor da pele negra foi negada durante o processo de formação da
identidade brasileira, mas
,
ao mesmo tempo, outros
elementos
que
compõem a
identidade negra, como o samba, o maracatu, a capoeira, o candomblé, a
umbanda,
os sabores e valores negros eram disseminados
.
A
cultura n
egra
foi assimilada de
forma que foram apagadas as suas origens. Isso fica claro quando vemos as
religiões como o espiritismo, que se baseiam (assim com as religiões
com
influências
bantu) no conceito de ventura e desventura, negarem a origem africana.
Ao
mesmo tempo a imagem das religiões que assumem a sua origem negra é
desclassificada e estereotipada. As representações acerca da palavra “m
acumba”,
por exemplo, estão relacionadas ao mal. Negam-
se
os indivíduos de cor, mas
roubam
-lhes os valores no momento em que os elementos da cultura negra são
assimilados e rotulados e as suas origens apagadas. De fato, isso não ocorreu com
qualquer cultura européia. São prejuízos que o movimento negro carrega na
tentativa de construção de uma identidade coletiva. Segundo Munanga (2004, p.
113):
(...) No Brasil, onde a ênfase (do preconceito) está na marca ou na
cor, combinando miscigenação e a situação sociocultural dos
indivíduos, as possibilidades de formar uma identidade coletiva que
aglutina “negros” e “mestiços”, ambos discriminados e excluídos,
ficam prejudicadas. (MUNANGA, 2004, p. 113).
Os ufanistas, como Darcy Ribeiro, por exemplo, acabaram reforçando a
desagregação da população negra. Interessados em construir o “verdadeiro” perfil
da identidade nacional, quando não dava mais para negar a presença do negro na
sociedade brasileira, passam a resgatar as contribuições dos outros povos na
composição
dela. Daí nasce outro grande problema. Preocupados em construir uma
identidade forte e única para o país, os teóricos da
mestiçagem
esqueceram do
processo
histórico da tentativa de aniquilamento da identidade negra e dos conflitos
gerados por ele. Não perceberam que a mestiçagem se deu, a princípio, com um
61
único propósito:
o
do
branqueamento da população. Então, como fazer forte uma
identidade nacional mestiça sendo que uma das partes que contribuiu nessa
mestiçagem foi e ainda é lesada nesse processo? Podemos falar de uma unidade
nacional diante de tod
os
os conflitos que existem hoje na sociedade brasileira
herdados de
ssa ideologia?
A história nos mostra que a identidade étnica dos grupos dominados, foi
descaracterizada em prol de uma identidade mestiça
,
inferiorizada
justamente
pela
diferença.
No
final dos anos
19
70, com a formação do Movimento Negro Unificado
(MNU),
tenta
-
se resgatar os valores da população negra em torno de uma identidade
comum, a identidade negra. Para o movimento negro essa não foi uma batalha
simples, que o poder da ideologia racista no Brasil foi e ainda é camuflado pelo
mito da democracia ra
cial. Essa ideologia foi bem arquitetada politicamente
.
Para o Movimento Negro, a identidade negra deve ser compreendida
principalmente como uma questão política
.
Através desse movimento, a população
negra luta pelos seus direitos. Desprezada por tanto
tempo
, batalha para que os
seus direitos sejam reconhecidos e inseridos nas leis e praticados no cotidiano.
Fortalece a sua negritude desmascarando as ideologias. Podemos perceber essa
batalha na conquista dos territórios de quilombos, na implementação da lei 10.639
que insere o ensino da história e cultura afro-brasileira nos estabelecimentos de
ensino entre outras conquistas do movimento negro. S. Antonio, da comunidade
remanescente do quilombo Caçandoca, nos conta como foi o processo de
reconhecimento da
sua comunidade:
Esse processo é assim, no momento que a gente foi expulso daqui,
a gente conheceu outras pessoas, como assim, ouvimos falar da
Benedita da Silva que foi muito divulgada, que é uma senadora
negra que elaborou o projeto de lei, e nós conseguimos falar com o
vereador Pedro no Guaru e ele entrou em contato e ela
mandou um fax pra nós dizendo da lei e nós foi que se achemo,
se encontramos nas leis.
(...)
Então daí que nós começamos a fazer
reuniões e foi elaborado o relatório técnico e comecemos a
participar do conhecimento de leis.
(...)
A minha mãe entrou com o
62
processo de reintegração de posse, isso após a invasão aqui. Em
seguida nos fizemos um abaixo assinado,com os moradores, dois
terços que ainda estavam aqui dentro, e em seguida nós formamos
a Associação de bairro né, e daí fomo começamo caminha e aonde
nós se guentamos, conseguimo unir até hoje.
Os outros de fora foi
na hora que vinha as conseqüências da reintegração de posse.
A
gente teve muito apoio e na última tivemos apoio do Brasil inteiro.
Então isso foi divulgado e correu muito o Brasil. As
conseqüências se tornou um movimento pra vitória.(Antonio dos
Santos, 60 anos. Caçandoca, 3 de abril de 2007)
Na fala de S. Antonio, fica clara a inserção do negro na política com a
elaboração da lei e na articulação para o reconhecimento dos territórios de
Quilombos. Uma senadora negra, Benedita da Silva, articulada com o Movimento
Negro e com o Partido dos Trabalhadores elaborou em 1994 o projeto da lei
complementar que garante aos remanescentes de quilombos o acesso à terra. A
comunidade, quando toma o conhecimento da lei, passa a se articular formando a
associação e lutar pelo seu território.
Hoje, a batalha do Movimento Negro, na esfera nacional, trava-
se
principalmente no campo político e ideológico. Na confusão dos debates existentes
para a elaboração do conhecimento, devemos ficar atentos com essa idéia de um
país mestiço. Conforme argumenta
Munanga
(2004, p.16), a proposta de reunir
todos os brasileiros numa identidade mestiça brota de uma nova ideologia criada
para recuperar a idéia da unidade nacional não alcançada pelo branqueamento
físico. Para ele, abraçar uma identidade mestiça significa retirar a solidariedade entre
poucos negros e índios, aos orientais e minorias que têm o direito de se achar
diferente
33
.
Apesar de muito discutida, a questão das
identidade
s ainda está ligada à
idéia de
trademarkers
. Segundo Munanga (2004, p.23), o direito à auto-
identificação
começou a ser negligenciado com a colonização. Em outras sociedades, como na
Grécia Antiga, a mestiçagem étnica não criava problema, pois o importante era
pertencer a uma cultura. Até mesmo na Roma a mestiçagem não gerou tantos
preconceitos como no mundo colonial.
33
MUNANGA, 2004, p.16.
63
Diante desta estrutura ideológica, o Movimento Negro luta para se afirmar
como pessoa negra numa sociedade que discrimina e nega o diferente. Veremos a
seguir, o papel deste movimento na articulação e na conquista de benefícios para a
população negra e principalmente para a conquista dos territórios reman
escentes de
quilombos.
64
3. O MOVIMENTO NEGRO, IDENTIDADE POLÍTICA E A GARANTIA DOS
TERRITÓRIOS DE QUILOMBOS.
No Brasil, final dos anos 70, diante da crise do regime político autoritário,
inúmeros grupos surgiram e organizaram-se a partir de agendas distintas, evocando
um remapeamento das formas de organização e transformando em questões
políticas os mais diversos aspectos da vida cotidiana (Cunha, 2000, p. 335). Entre
eles,
os grupos negros urbanos organizados compostos por estudantes
universitários, jornalistas, artistas, profissionais liberais que passaram a fazer parte
das
variadas formas de discussão acerca do modelo de relações raciais vigente no
Brasil. Tais debates, em muitos casos, tiveram como pano de fundo a crítica à
violência que caracterizava as instituições de repressão policial do Estado. A luta
contra o regime militar ganhava eco nas pressões pela defesa dos direitos humanos
e pela liberdade de expressão, na qual os militantes negros destacavam um espaço
para a crítica do caráter autoritário das instituições de segurança que, em última
análise, penalizavam com maior freqüência indivíduos excluídos duplamente: pela
pobreza e pela cor da pele. Se naquele momento da crítica, a ausência de garantias
individuais postuladas pelos grupos de defesa dos direitos humanos tinha uma
ênfase muito maior na sua dimensão política (Cunha, 2000, p. 335), a primeira
tentativa de unificação de iniciativas dispersas de mobilização contra o racismo o
Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial (MNUDCR
)
nasce
justamente refletindo sobre as formas de violência que mais atingiam a população
negra.
Desde então, o Movimento Negro Unificado travou uma batalha política na
conquista de ampliação dos direitos da população negra. Dentre as conquistas
obtidas,
o artigo 68 dos Atos das disposições transitórias da Constituição Federal de
1988 assegurou a posse definitiva das terras a todas as comunidades
remanescentes de quilombos.
A definição de quilombo veio acompanhada de uma noção eleita pelo
movimento negro como uma metáfora de resistência política. Uma metáfora que fala
de reparação em termos históricos. Tal resistência foi uma estratégia para se manter
vivo e perpetuar seu grupo. Assim o artigo 68 veio para atender aos grupos
remanescentes de quilombos, de senzalas, dos portos de embarque de escravos
65
que resistiram até hoje, ocupando áreas que quase sempre são de uso comum.
Veio
para
livr
ar estas comunidades da ameaça dos agentes
imobiliári
os
.
Apesar de escrito em 1988, o artigo 68
chegou
ao conhecimento das
populações remanescentes de Ubatuba no ano 2000. Até então estas comunidades
permaneceram na invisibilidade, sofrendo abusos de autoridades judiciais, de
especuladores, dos órgãos e instituições governamentais por se tratar de uma
comunidade negra com pouco ou quase nenhum acesso às leis que regem a
sociedade. Tomaram o conhecimento da lei que lhes assegura o território quando
entram em contato com pessoas ligadas ao movimento negro e a paridos políticos.
Com esta e outras conquistas legislativas, o MNU vem garantindo à
população negra o reparo pelos anos de escravidão de seus ancestrais, pela
situação enquanto grupo estigmatizado, racializado e excluído das posições de
comando na sociedade. Enfim, por ter a sua humanidade negada e a cultura
inferio
rizada. A luta do movimento negro promove o resgate da identidade negra que
passa por sua cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e cultural.
Trata
-se de uma
luta
que se trava no campo da ideologia, que esse resgate
depende
principalment
e
da consciência política da população negra subjugada pelos
fundamentos da ideologia racial, vista anteriormente. Segundo Munanga (2004, p.
12):
Essa ideologia, caracterizada entre outros pelo ideário do
branqueamento, roubou dos movimentos negros o dit
ado “a união faz
a força” ao dividir negros e mestiços e ao alienar o processo de
identidade de ambos.
(MUNANGA, 2004, p.12)
Mesmo com a inserção do artigo 68 nas disposições transitórias da
Constituição Federal de 1988, parte das comunidades remanescentes de quilombos
permaneceram sem o devido reconhecimento oficial. A escolha do MNU em lutar
pela reforma da legislação para garantir as aspirações da população negra, teve
grande importância para as conquistas de espaços na sociedade. Na prática, estas
con
quistas custaram a chegar, que a conquista pela via legal envolve todo um
processo burocrático distante da realidade das comunidades remanescentes de
quilombos.
Mesmo com a demora, os resultados estão chegando e é importante
ressaltar o mérito do M
ov
ime
nto N
egro
U
rbanizado
que se utilizou do processo
66
burocrático legalista do branco para conquistar espaços na sociedade para a
população negra.
Segundo S. Antonio dos Santos, presidente da Associação dos
Remanescentes do Quilombo Caçandoca, a iniciativa de procurar os direitos sobre
as terras partiu da comunidade, porém,
a
falta de familiaridade com o universo
burocrático legal foi um empecilho para dar seguimento ao processo
.
A
superação
de tal empecilho se deu com a ajuda de instituições, como o ITESP e o INCRA, e de
colaboradores como a advogada Dra. Juliana, entre outros, conforme narra S.
Antonio:
E fomos atrás do estudo de terras e quem nos encaminhou foi, na
época, foi o Simão Pedro que era assessor do deputado Paulo
Teixeira, mas nós até chegar lá, fomos encaminhado pelo vereador
Pedro, fomo encaminhado pela deputada Maria Lucia Prandi, até
chegar no Paulo Teixeira e o Simão Pedro que era assessor na
época, e nós encaminhamos para o instituto de terras. (...)E o
deixando pra trás a doutora Juliana que nos encontramos na
campanha do presidente Lula e foi a penúltima que ele não ganhou
né, a próxima ele ganhou. E daí ela começou a nós trabalhar junto e
viemos aqui até hoje.
No processo de titulação das comunidades remanescentes de quilombo
compr
eende a duas fases: o reconhecimento e a titulação. A instituição responsável
pelo reconhecimento foi o Instituto de Terras de São Paulo (ITESP). Em 1988,
quanto a Urbanizadora Continental entrou com o processo de reintegração de posse
das terras da Caçand
oca
34
, o ITESP deu início a elaboração do relatório técnico-
científico da comunidade. Neste relatório consta o levantamento da genealogia da
comunidade, relatos e memórias da comunidade. Feito o relatório a comunidade
entrou com o pedido às instituições governamentais de reconhecimento como
comunidade quilombola. Depois do reconhecimento a comunidade deu entrada ao
último processo: a titulação das terras.
A comunidade remanescente do quilombo Caçandoca é apenas uma das
2.228 comunidades que existem no Brasil, segundo os dados do Centro de
34
Processo que estaremos tratando mais detalhadamente no capítulo quatro
.
67
Cartografia Aplicada e Informação Geográfica (Ciga) da Universidade de Brasília de
2005. Elas se encontram distribuídas entre onze Estados, conforme quadro 1 e
mapa
1:
Quadro 1 Distribuição das Comunidades Remanescentes de Quilombos
pelos Estados brasileiros.
Estado
Número de Comunidades Quilombolas
Maranhão
642
Bahia
396
Pará
294
Minas Gerais
135
Pernambuco
91
Rio Grande do Sul
90
Piauí
78
São Paulo
70
Rio
G
rande do Norte
64
Mato Grosso
59
Ceará
54
Fonte: CIGA 2005
68
Mapa
1 Distribuição das comunidades remanescentes de quilombos pelos
Estados brasileiros.
69
Apesar de terem seus direitos assegurados pela Constituição Federal por
leis e decretos complementares, segundo o levantamento do Ciga de 2005, apenas
70 comunidades possuem registro no Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra) e outras 100 estão em processo de regularização. Para conquista do
território, a comunidade tem de assumir a identidade quilombola. Andrade (1997,
p.48) baseado em Zambrotti fala da importância da territorialidade no processo de
reconhecimento:
Na produção acadêmica recente sobre a identidade de negros com
condições de vida rural, em inúmeros autores, as representações
sobre etnia e identidade estão articuladas à questão fundamental da
territorialidade. Esta subsistiria também como uma categoria
cognitiva na cultura, operacionando na prática o processo de
id
entificação do direito dos diversos sujeitos ao território.
(
ANDRADE, 1997, p.48)
Assumir a identidade quilombola foi uma alternativa para que as
comunidades quilombolas assegurassem os seus territórios. Porém, em algumas
comunidades de Ubatuba como no Camburi, houve casos de pessoas que não
assumiram essa identidade. Em muitos casos, percebe-se que essa negação está
ligada aos estereótipos construídos sobre a população negra. Tornar-se quilombola
para
os que negam essa identidade, é pertencer a um grupo que foi escravizado e
que hoje sofre discriminação e preconceito. Obstante, essa indecisão é natural,
que estamos tratando da identidade de um grupo e nesse caso devemos considerar
o seu caráter mutável e a decisão que depende da consciência do indivíduo ou do
grupo.
A opção pela identidade quilombola pelos indivíduos da Caçandoca, que
antes se diziam caiçaras, veio da consciência de que são, de alguma forma,
descendentes de africanos e da necessidade de lutar pelo território que estava
sendo ameaçado. pessoas na comunidade que se consideram descendentes
de
indígenas ou de caiçaras, grupo de que também são herdeiros.
Por
ém, os que
assumem a identidade quilombola estão assumindo, principalmente, a dimensão
política dessa identidade. Trata-se de uma solidariedade que se forma em torno de
uma luta comum. Assumir essa identidade não significa apenas a garantia do
território, mas também travar uma batalha ideológica contra os estereótipos criados
70
para inferiorizar a população negra, que assumir-se enquanto quilombola é
assumir
-
se enquanto negro.
A princípio o reconhecimento da identidade quilombola pelas instituições
governamentais foi uma conquista do movimento negro urbanizado e de populações
negras que habitam áreas rurais. A comunidade remanescente do quilombo
Caçandoca, apesar de não ter participado do processo inicial dessa conquista, hoje
incorpora essa luta para conseguir manter o seu território. Porém, é preciso
esclarecer que antes de assumirem essa identidade, os que resistiram à
especulação
e mesmo aqueles que retornaram após alguns anos depois de terem
saído a procura de empregos em outras cidades, haviam iniciado o processo de
resistência no território fundando a associação de moradores da Caçandoca. Nesse
período em que não haviam tomado contato com a lei que garante o território dos
quilombos, todos se identificavam como caiçaras. Desse modo, muitos se
(re)encontraram na identidade quilombola, mesmo que a princípio ela significou a
garantia do território, trazendo
-
lhes mais vantagens do
que desvantagens.
Numa sociedade onde o racismo é camuflado, em que o menosprezo pela
população negra é tido como natural, a inserção do artigo 69 nas disposições
transitórias da Constituição Federal do país e conseqüente reunião de comunidades,
como a de Caçandoca, foi uma alternativa que a população negra encontrou para
lutar. Mais que isso, esse artigo possibilitou a criação de uma rede de solidariedade
entre as comunidades negras. Hoje são freqüentes os encontros regionais e
nacionais entre as comunidades remanescentes de quilombo. No dia da
desapropriação do território em prol da comunidade de Caçandoca, todas as
comunidades de Ubatuba, comunidades do Estado de São Paulo como a de
Cafundó e o grupo Tainá de cultura afro de Campinas vieram comemorar a
conquista. A comunicação entre as comunidades do país tornou-se freqüente, sendo
comum as lideranças estarem sempre em contado no caso de precisarem de algum
tipo de ajuda, principalmente na divulgação de algum problema ou violência sofrido
por alguma das
comunidades.
Mesmo com todas essas conquistas que são motivos de orgulho da
população negra
, não podemos perder de vista o direito a auto
-
identidade das outras
pessoas que não se afirmam quilombolas. Como o caso da comunidade da praia do
Poruba em Ubatuba que se afirmam caiçaras. São comunidades que lutam contra o
71
processo de expro
priação
semelhante, porém não uma lei que ampara essas
comunidades.
Ainda sobre o direito à auto
-
identidade,
há controvérsias sobre a forma de
reconhecimento e titulação das comunidades. um consenso de que é necessário
reconhecer
-se enquanto quilombola para ter seu direito à terra assegurado. Porém
se faz o reconhecimento e a titulação após o levantamento antropológico da
comunidade e elaboração de um relatório técnico e científico, com o levantamento e
discriminação da área do território.
Em Ubatuba, além da Caçandoca, outras comunidades como Camburi,
Casanga, Fazenda da Caixa e Cabeçuda estão reivindicando os seus territórios.
Todas elas fizeram o contato com o ITESP (Instituto de Terras do Estado de São
Paulo) que fez o relatório técnico e científico das comunidades de Caçandoca e
Camburi e se encontra elaborando os das outras comunidades. Caçandoca e
Camburi, foram reconhecidas, mas apenas Caçandoca conseguiu a
desapropriação do território para interesse da comunidade.
Durante esse processo, a comunidade do quilombo Caçandoca foi
pressionada e enfrentou batalhas judiciais contra os especuladores. Foram cinco
anos de insegurança, instabilidade, disputas judiciais, hora ganhando, hora
perdendo.
Esse sofrimento levou a alguns membros a não voltarem mais às suas
terras, que nesta dura trajetória , alguns de seus entes queridos morreram
desgostosos, outros por
negligê
ncia.
Até a década de 1970, as comunidades remanescentes de quilombos de
Ubatuba permaneceram de certa forma,
invisíveis para a sociedade
. Após a abertura
da BR 101, eles passaram a sofrer com a especulação imobiliária. Ameaças e
violências
ocorreram
na tentativa de expropriação. Isso aconteceu até o momento
em que as comunidades saíram da invisibilidade criando uma rede de solidariedade
de que falamos anteriormente. então passam a ganhar voz e conseguem
permanecer no território dando continuidade aos projetos dos antepassados.
Veremos a seguir um pouco da história das comunidades remanescentes de
quilombos de Ubatuba e da luta pelos seus territórios.
72
3.1. Quilombos de Ubatuba e a luta pelos seus territórios
Os primeiros engenhos de açúcar de Ubatuba datam de 1760. Eram
aproximadamente vinte os engenhos que utilizavam o trabalho escravo. Destes,
poucos prosperaram. Até esse período, a região do litoral Norte de São Paulo
vivenciava uma economia agrícola de auto-subsistência. A partir de 1800, novos
empreendedores portugueses e franceses começam a chegar e investir na compra
de terras, principalmente para o plantio do café destinado à exportação, fator que
contribuiu para o aumento da população cativa, chegando a quase 40% do total em
1839. (
ITESP
, 2000).
Em 1830 Ubatuba servia de porto de desembarque clandestino de
escravos que se destinavam ao trabalho local, mas principalmente ao trabalho no
Vale do Paraíba e Minas Gerais.
A economia cafeeira tomou determinada dimensão que gerou uma
sobrecarga aos cativos que passaram a incomodar os seus senhores. Em 1825
diante as tentativas de levantes e insurreições, algumas medidas foram adotadas
pelas autoridades a fim de conter esses movimentos. Proibiu-se o uso de armas
entre os escravos e foi implantado o toque de recolher.
A decadência da economia cafeeira no litoral norte paulista provocou a
falência dos proprietários, que abandonaram suas fazendas e dirigiram-se ao interior
do estado em busca de novos empreendimentos. A construção das ferrovias para
escoar a produção do interior foi o principal fat
or que favoreceu a esta mudança.
Muitos escravos permaneceram nas terras das fazendas onde
trabalhavam, formando comunidades que perduram até os dias atuais. Cada uma
das cinco comunidades de Ubatuba (Caçandoca, Camburi, Casanga, Fazenda da
Caixa e Cabeçuda) tem uma origem e história diferente. Vejamos um pouco de cada
uma delas.
3.1.1. A comunidade do Camburi
controvérsias sobre a origem da comunidade do Camburi. Segundo
alguns moradores, um grupo de negros, liderados por uma escrava chamada Josefa
,
que vieram fugidos de fazendas da região de Parati, no Rio de Janeiro, teria sido um
73
dos primeiros a ocupar a área. A Toca da Josefa é um marco histórico do lugar onde
ela teria se refugiado. Segundo o levantamento feito pelo ITESP houve nessa área
uma fazenda denominada Cambury, que não fugia ao padrão das outras fazendas
do litoral norte dessa época (séculos XVIII e XIX): grandes propriedades que
tiveram, num primeiro momento, engenhos de açúcar e posteriormente produziram
café para exportação, com mão-
de
-obra escrava. A partir da metade do século XIX,
entraram em decadência, tendo suas terras divididas e doadas, vendidas ou mesmo
abandonadas.
Ao que tudo indica, a Fazenda Cambury foi ocupada, por compra e
doação, por núcleos de escravos que nela trabalhavam. Este núcleo de escravos
agregava
-se a outros núcleos, vindos de outras regiões. O quilombo permaneceu
relativamente isolado até a década de 1970, quando uma série de acontecimentos
ameaçou sua permanência em suas terras e trouxe mudanças para seu modo de
vida.
Por um lado, houve a construção da BR 101, que atraiu para a região
grileiros, especuladores e empresas que usaram todo tipo de violência para expulsar
as comunidades tradicionais da região. A comunidade foi alvo de diversos processos
de grilagem e compras ilegais de posse, derivados da especulação imobiliária. No
início da década de 1970, 80% do território do Camburi estava sob o domínio e
posse de dois grandes compradores” de terra, Francisco Munhoz e José Bento de
Carvalho, que expulsaram os antigos moradores. Estes se deslocaram para áreas
mais íngremes, de mais difícil acesso, ou se mudaram para outras cidades do litoral
paulista.
Por outro lado, ocorreu a criação do Parque Nacional da Serra da
Bocaina, em 1972, e do Parque Estadual da Serra do Mar em 1977 nas terras da
comunidade que trouxeram uma série de restrições para a prática da agricultura e do
extrativismo.
O S. Genésio (Foto 7) é uma da figuras que ajuda a manter viva a
memória do Camburi com suas rodas de conversa com turista
s que visitam o lugar.
74
Foto
7:
À esquerda o S. Pedro da comunidade da Fazenda da Caixa e à direita S. Genésio da comunidade do
Camburi no Encontro dos Remanescentes de Quilombo de Ubatuba, promovido pelo IBAP na Caçandoca, em
09/12/2007.
3.1.2. A comunidade da Casanga
A comunidade da Casanga surgiu de uma antiga fazenda de café
denominada Casanga. Os escravos teriam permanecido no local e formado uma
comunidade que mais tarde recebeu caiçaras que foram expropriados das áreas de
maior ambição dos especuladores. Nela encontramos um antigo muro de pedras
(Foto
8
), que dividia a antiga Fazenda.
75
Foto
8
Ruínas da muralha da Fazenda Casanga
Foto: Elaine Branco
-
22/04/2006
A Fazenda da Caixa é a única em que todos os membros descendem
diretamente de ex-escravos. Ela se localiza na região norte de Ubatuba, quase
divisa com Parati, no Rio de Janeiro. Indo pela BR-101, em direção ao Rio de
Janeiro, de um lado avista-se a Praia da Fazenda. Do outro, uma entrada sutil,
que parece querer conduzir ao interior da Mata Atlântica. Seguindo por essa
estradinha de terra,
chega
-se à comunidade da Fazenda da Caixa.
Algumas
casinhas de pau à pique, outras de bloco, senhoras na janela, crianças brinca
ndo
nos quintais de terra. De repente, o caminho se bifurca e, ao final da estradinha à
esq
uerda, uma construção diferente:
a antiga casa de farinha (Foto
9
).
76
Foto
9:
Casa de Farinha da Fazenda Caixa
Foto:
Elaine Branco
11/05/2006
Ali, ao lado de um rio límpido e raso, ergue-se um grande moinho, uma
roda de engenho, movida pela força da água. Nas paredes do fosso que abrigam a
roda de madeira, uma demonstração da contribuição e do trabalho dos escravos.
Pedras gigantescas encaixadas perfeitamente, pesadas colunas, uma chaminé bem
alta, construída de tijolinhos, uma caldeira de ferro, corroída pelo tempo. No
passado, mais precisamente no século XVIII, essa fazenda tinha o objetivo de
beneficiar a cana, tr
ansformando
-a em álcool, cachaça e açúcar. Embrenhada na
mata está a Trilha do Corisco, que termina em Paraty e era uma das rotas por onde
as mercadorias produzidas na "Fazenda da Caixa" seguiam. O rio, nessa época, era
navegável, permitindo que a produção
também seguisse em embarcações
.
Hoje, os tempos são outros. A Fazenda da Caixa é chamada de "Casa da
Farinha", porque foi adaptada para a produção de farinha de mandioca, na década
de 50. Virou propriedade do Governo do Estado e está situada no Núcleo
Pi
cinguaba, uma área de preservação que impede o plantio de mandioca na
quantidade necessária para realizar a produção de farinha.
A
Casa da Farinha
funciona de vez em quando. Para as pessoas que gostam de ouvir histórias e
77
conversar,
basta procurar por seu Zé Pedro ou pelas pessoas que moram nos
arredores da Fazenda.
Os mais velhos adoram receber visitas e contar seus
"causos".
A cultura
desse povo está se perdendo, mas ainda é possível encontrar pessoas que
conhecem os costumes passados de geração par
a geração.
Indo um pouco além da "Casa da Farinha" fica a
do
"Seu"
Pedro
.
Descendente de escravos, dono de uma grande sabedoria, parece estar preparado
para conversar sobre qualquer assunto, apesar de não ter televisão, nem tampouco
energia elétrica, assim como todos os moradores dali. É um homem politizado, um
líder comunitário que conhece a todos e batalha por seus interesses. Conhece a
história da Fazenda da Caixa, da Casa da Farinha, dos escravos, da política
municipal, das venturas e desventuras do
povo caiçara e muito mais.
Com suas narrativas ficamos sabendo dos tempos em que a BR-101 não
existia e os moradores iam para "a cidade" num pequeno barco, que ia buscando os
moradores em diversas praias pelo caminho.
3.1.3
. A comunidade da Caçandoc
a
A comunidade remanescente do Quilombo da Caçandoca, em foco neste
trabalho, foi uma fazenda de café que mantinha alguns poucos cativos no trabalho
escravo. Os escravos comprados para a fazenda provinham de diversos lugares.
Segundo os moradores da comunidade, da África, vieram escravos de Moçambique,
do Gabão e de Angola. D. Antonia recorda que certa avó do pai veio do Mar Virado,
que pelo que parece, trata-se de
uma
ilha próxima da Caçandoca: a Ilha do Mar
Virado. Conforme D. Antonia:
Meus pais foram nascidos e criados na Caçandoca. Minha avó
Tomázia, do meu pai, eu me lembro. Agora da minha mãe, eu não
me lembro. Meus avós devem ter nascidos ali mesmo, eles o
vieram de parte nenhuma. A que veio foi uma avó dele, a Tomázia.
Diz que veio de um tal de Mar Virado, não sei onde é. Não sei de
onde ela veio. Mas foram tudo nascido ali. (Antonia Miquelina
Jacinta da Conceição, 79 anos
18/11/2006)
78
Segundo D. Anália, irmã de Antônia, os seus familiares vieram
de São
João Marco:
Eles contavam muito do tempo da escravidão. Minha mãe contava
muito do tempo da escravidão. Minha mãe, meus avós trabalhavam
cortando cana pro engenho da Raposa e os escravos junto com a
turma da Caçandoca. Eles trabalhavam muito ali dentro da fazenda,
sabe. que a minha mãe contava muita coisa do tempo da
escravidão. Contava do senhor, da senhora. Os nossos avos eram
dali mesmo. Mas eu sei que quem veio mesmo de (...) João Marco foi
a defunta tia Antonia, a defunta inhá Tomázia, que é a mãe de nosso
pai. Ela veio de São João Marco, lugar onde comprava os negros, na
África. A defunta Zenaidia, a defunta Gardina e a defunta Rosária.
Tudo da parte dos Gabriel, da parte da Cidinha, o Altamir é da minha
parte. Ela é sobrinha do meu marido. Esses um vieram de o João
Marco tudo comprado, diz que vinham tudo em jacá, no navio.
foram botando na Caçandoca e foi aumentando a criação. Foi
casando com um, casando com outro, os filho, foi virando uma
fazenda cheio de negaiada, quase tudo preto mesmo. (
Anália
Miquilino da Conceição
Ta
batinga, 18 de novembro de 2006).
D. Anália se refere à São João Marco como o lugar onde vendiam os
negros na África. Tentamos localizá-lo na África, mas não encontramos. Mas pelo
que parece, segundo o depoimento de Antonio dos Santos, São João Marco é u
m
antigo
município
d
o Estado do Rio de Janeiro:
(...) é uma cidadezinha do interior do Itacuruça já pertence o Rio de
Janeiro, diz que a comunidade de também, nós temos tio, temos
primo, temos tudo lá. E recentemente conhecemos um pessoal de
uma comunidade de Marambaia aqui Rio de Janeiro, ilha de
Marambaia, que com certeza eles são nossos parentes, porque
esse grupo eles saíram, vieram trazido de Portugal, da África de
outros canto aí, de parte do mundo e vieram e desembarcaram
aqui.
(Antônio dos Santos, 60 anos – Caçandoca, 3 de abril de
2007).
79
São João Marco no Rio de Janeiro, nasceu da expansão do café do atual
município do Rio de Janeiro para o Vale do Paraíba. Foi um grande distrito cafeeiro
do período imperial. O rei do café no Brasil o Comendador Joaquim José Bre
ves
chegou a colher 205.000 arrobas de café se suas enormes fazendas em São João
Marcos, Piraí e Resende. (Taunay,
1939).
O Comendador Breves possuía cerca de
6.000 escravos e dominava o porto de Mangaratiba. Com a decadência do café na
região, São João Marcos passa a distrito de Rio Claro em 1939 e é ameaçado pelo
represamento das águas de Ribeirão de Lages, solução encontrada pela Light para
aumentar a geração de energia para o Rio de Janeiro. Deixa de ser monumento
nacional para ser demolida em meados da década de 1940. Grande parte da cidade
jamais foi inundada.
A Ilha de Marambaia, a que se refere S. Antônio, localiza-se numa área
de segurança nacional, próximo ao município de São João Marco, no município de
Mangaratiba, também no Rio de Janeiro. O tal comendador Breves era dono das
terras da Ilha também. Nela existe uma comunidade remanescente de quilombo,
cujo relatório técnico e científico foi elaborado em 2003
35
.
Além de São João Marco e da Ilha de Marambaia no Rio de Janeiro
,
existe um município em Minas Gerais, denominado Carangola, o qual teria
remanescentes ligados à família da Caçandoca. Segundo S. Antonio:
E além dessa comunidade aqui de Caçandoca, nós temos
parentagem em Minas Gerais em Carangola, tem uma comunidade
de
quilombola também deve ser bastante grande, que eu não
conheço lá, mas conheço pela história e foi dito, eles contaram que
a comunidade de lá é daqui, era parente daqui.
(Antônio dos Santos,
60 anos
Caçandoca, 3 de abril de 2007).
Há indícios de que os
ascendentes dos quilombolas que se encontram em
São João Marco, na Ilha de Marambaia e Carangola, desembarcaram no porto da
Caçandoca e migraram para estes outros lugares. Mas também pode ser que tenha
ocorrido de muitos escravos terem desembarcado em out
ros portos e terem passado
por esses lugares e chegado a Caçandoca. São João Marco e a Ilha de Marambaia,
35
Relatório disponível no site
www.koinon
ia.org.br
, 03/04/2007.
80
não ficam muitos distantes da Caçandoca, que Ubatuba é um município limítrofe
com o Rio de Janeiro. Carangola fica mais distante na altura da divisa entre os
estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo, no município de Minas Gerais.
Provavelmente, a migração para este município foi favorecida pela Estrada Real que
na época ia de Parati (RJ) aMariana (MG). Percebe-se que a movimentação de
cativos
pelo Vale do Paraíba e outras regiões era intensa.
Os escravos que chegavam em Ubatuba na virada do século X
VIII
para o
XIX, iam trabalhar nas fazendas exportadoras e principalmente nos sítios familiares
de subsistência. No início do século XIX com uma onda de imigrantes franceses
para a região, aumentou o número de produtos agrícolas destinados a exportação e
conseqüentemente, o número de escravos na região. As terras desbravadas dos
caiçaras pobres foram invadidas pelos europeus para estabelecerem su
as
plantações. registros de queixas destes caiçaras ao Imperador Pedro I que, ao
que parece não tomou nenhuma providência (
ITESP, 2000).
O porto de Ubatuba adquiriu grande importância com a expansão do café
no Vale do Paraíba. A exportação de mercadorias chegou a superar o porto de
Santos. (Oliveira, 1977, p.65). Com o fim do tráfico, Ubatuba passou
a
abrigar portos
clandestinos de escravos destinados a esta região. Estes portos se localizavam na
Fortaleza e Caçandoca no Sul, e Ubatumirim ao Norte (Oliv
eira, 1977, p.65).
No cotidiano, durante a escravidão, os tempos eram difíceis. Além da
escravidão, a Guerra, que pelo referencial de tempo de que fala D. Marciana tudo
indica que seja a do Paraguai,
assombrava os escravos:
“A minha mãe ela foi no tempo da escravidão, da guerra a minha
mãe e outras pessoas qui nem a mãe da Gabriela, da avó da
Gabriela, elas iam levar comida pros homens dentro da toca no pé da
noite e a cavalaria vinha à noite pra roubar, pra ver se tinha homem
dentro de casa pra levar pra guerra, se fosse pra guerra não voltava
mais, então eles dormia na toca de pedra, então, à noite nóis fazia
aquelas tochinha de semente de mamona e íamos levar comida pra
eles dentro das rochas das pedras, durante o dia eles iam pra roça
vestidos de mulher com pano na cabeça, amarrado na cabeça, como
se tivesse mulher roça, se passasse um barco ou um navio, os
cavaleiros passasse via mulher na roça, o via home, então pra
81
eles tava todo mundo na guerra, não tava na guerra não, tava
trabalhando, era assim que eles viviam aqui. Se fossem pra guerra
não voltavam mais”.
(Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
O trabalho escravo muitas vezes não permitia que eles tivessem tempo
para enterrarem seus mortos. Como é de conhecimento da comunidade, existia tal
“buraco do inferno”:
“E também essa água aqui, ela tinha tromba d’água, tinha cinco
represa. A água aqui é represada. Mas nós no tempo da escravidão
a tromba d’água aqui era grande e o nosso negro eles não deixavam
perde tempo pra enterrar ninguém. Eles jogavam na água, porque o
local que tem mais tubarão não é aonde diz pro Norte não. Você
pega aqui de Baleia (?) Grande até Caraú, lá perto de Cananéia.
Então essa região aqui era o lugar que mais tinha tubarão e o
pessoal daqui pescava ali (...) Maranduba, era entre a ilhota e a praia
do Pulso ali que pescavam tubarão (...) que era no meio do mar (?)
também, questão de quinze a vinte dias só. Então os negros já
serviam de comida pros tubarões ali fora né, sai pra fora e assim
por diante. E depois tinha um buraco ali, que esta no levantamento
do ITESP que chamava buraco do inferno. Então eles diziam que o
negro quando acabava de morrer mandava jogar no buraco (...)”.
(Antonio dos Santos Caça
ndoca,
04 novembro de 2006 Reunião
com o IBAP sobre cooperativismo).
Com a construção das ferrovias rumo ao oeste paulista, o proprietário da
Fazenda, JoAntunes de Sá, migra para o interior. Segundo os depoimentos da
comunidade, ele teria adquirido a fazenda em 1858. Tratava-se de uma Fazenda de
café, porém outros tipos de alimentos eram produzidos ali. Com a saída de José
Antunes ficaram na Fazenda seus filhos: Egídio, Sinfrônio e Marcolino Antunes de
Sá. Cada qual teria formado um núcleo administrativo, Caçandoca, Saco da Raposa
e Saco da Banana. Em cada núcleo havia um engenho de cana-
de
-açúcar, cujas
82
ruínas somente são encontradas no Saco do Morcego, já que as outras foram
destruídas com a ocupação da Urbanizadora Continental.
Os filhos de José Antunes se amasiaram com as escravas e tiveram os
seus filhos que passaram a tocar a fazenda. A história da origem das famílias é bem
conhecida pelos membros da comunidade. A partir dos sobrenomes
,
que na maior
parte estão ligados aos nomes das escravas, o S. Antonio traça um pouco da
história da comunidade:
“Tinha essa divisão de propriedade de escravo. Então cada dono de
escravo dava o nome dele ao sobrenome do escravo dele. Então
“Conceição”, geralmente a maioria deles foram escravos. Também
os “Gabriel” também parte de escravo. E “Santos” também parte de
escravo. Mas por quê? Os “Gabriel”, os “Conceição e os dos
“Santos”... e os “da Mata”? Os “da Mata” tem origem de um cidadão
que era dono do pulso, João Antonio da Mata. Se ele casasse com a
filha do Antunes, ele achou que seria proprietário daqueles escravos.
Então saíram um povo dos... “da Mata”. Os Conceição porque a
Maria Silva da Conceição, e ela era proprietária da fazenda que tinha
os escravos, roubou os escravos... dos antigos. Agora por quê os
Gabriel? O Gabriel ele era um tipo de escravo que talvez uma
escolha das pior, ele era o capataz da fazenda. Mas ao mesmo
tempo ele era escravo, porque ele foi escolhido para aquele papel e
ele não tinha escolha. Então os Gabriel faz parte do capataz da
fa
zenda. Dos Santos é porque geralmente, também como os padres
também se apossavam das negras, então tinha um escravo na igreja
e não tinha dono. Então que é o dono daquela criança? falou
assim: Ah esse aqui é filhos dos Santos. Então também vem da
igr
eja, dos padres. “Essas coisas vem geralmente muito tempo,
hoje é que estão revelando estas coisas”.
(Antonio dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006 Reunião
com o IBAP sobre cooperativismo).
Sobre as famílias de que fala S. Antônio, o ITESP traçou a árvore
genealógica. Nela podemos ver que os membros da comunidade descendem das
escravas como a Tomázia e a Maria Jacinta da Conceição, Iderência, Quitéria,
83
Verônica, Antônia, Luiza, Adelaide e dos escravos como Napoleão, José, Manoel,
Crispiano, Feliciano, Tolino e dos filhos do fazendeiro José Antunes de Sá.
Com o fim da escravidão, Izídio, Sinfrônio e Marcolino ainda tentam
manter o regime, mas os escravos não aceitaram. Após a rebelião, os ex-
escravos
vivem momentos de tranqüilidade, até a década de 1970, conforme narra S. Antônio:
E quando teve aqui no falecimento do dono da fazenda, José
Antunes de Sá, em 1881, ficou os três irmãos. Aí tinha o João
Antonio da Mata, que pertencia o Pulso, o pessoal os da Mata e os
Amorim que casou com a filha de José Antunes. E queriam ainda
depois da libertação dos escravos, da L
ei
Áurea escrita, eles queria
manter o pessoal no escravo e o primeiro revoltado foi o Napoleão.
Ele teve que dar uma surra nesse tal João Antonio da Mata,
casou com a Tomázia e começou essa luta. E veio uma liderança
que faz uma harmonia aqui dentro que veio até o ano 60, final do
ano 60. (Antônio dos Santos, 60 anos Caçandoca, 3 de abril de
2007)
.
Desse modo, a permanência da população escravizada da Caçandoca,
livre do trabalho escravo, não ocorreu de forma pacífica. Eles se rebelaram e
permanecerem no lugar que construíram. O período que sucede o fim da escravidão
da comunidade até o final dos anos de 1960 frequentemente é idealizado pelos
sujeitos da Caçandoca, conforme podemos verificar com a fala de S. Antonio. No
capítulo a seguir, retomaremos a história da Caçandoca contada pelos sujeitos a
respeito desse passado idealizado, assim como as representações sobre a ruptura e
o envolvimento com o lugar. Mas antes, para melhor c
ompreendê
-
las, inserimos uma
pequena discussão a respeito da teoria das representações sociais e sua
importância para a compreensão da territorialidade e identidade do grupo presentes
nestas falas.
84
4
– REPRESENTAÇÕES SOCIAIS, TERRITORIALIDADE E IDENTIDAD
E.
Para a compreensão da territorialidade e da identidade dos sujeitos do
quilombo Caçandoca, o estudo das representações sociais foi o caminho
metodológico escolhido. A teoria que sustenta este estudo permite a compreensão
e
análise de
aspectos subjetiv
os
humanos, como no
caso,
o pensamento a respeito de
si, dos outros e do lugar. Desse modo, o estudo das representações sociais vem
ganhando espaço na Geografia e nas demais ciências humanas, uma vez, trata dos
sentidos, significados e sentimentos
atribuíd
os pelos sujeitos sociais que, em muitos
casos, estão relacionados à identidade, ao lugar cotidiano, às experiências vividas
,
aos projetos de vida, entre outros. Nesse capítulo, discutimos, primeiramente, a
relevância da teoria das representações sociais para o estudo da comunidade
remanescente do quilombo da Caçandoca. A seguir, apresentamos uma seleção das
representações sociais da comunidade, juntamente com as nossas reflexões,
análise e interpretações.
Tendo em vista que o processo de construção da identidade quilombola
pode ser compreendido a partir do universo simbólico dos atores sociais, a
s
representações sociais,
que
surgem do contato entre os sujeitos e do contat
o
desses com o lugar onde vivem, nos servem de instrumento para a compreensão
deste processo. Verificamos que as representações foram essenciais para o
processo de construção da territorialidade do grupo e que tal processo se
no
espaço cotidiano ou banal. É neste espaço, banalizado por todos, que se
manifestam as resistências, as relações de poder e as transformações sociais.
Milton Santos (1996,
p. 321)
, nos dá a sua contribuição para esse entendimento:
(...) podemos contribuir para o necessário entendimento (...) dessa
relação entre o espaço e movimentos sociais, enxergando na
material
idade, esse componente imprescindível do espaço
geográfico, que é ao mesmo tempo, uma condição para ação; uma
estrutura de controle, um limite à ação; um convite à ação.
(SANTOS, 1996
, p. 321)
Ao assumirem, aos outros (instituições, imprensa, acadêmicos, visitantes,
enfim, sociedade) a sua territorialidade e lutarem, cotidianamente, para a
85
reconstrução de uma identidade comum, os sujeitos da Caçandoca travaram uma
batalha política e social. O território da comunidade remanescente do Quilombo da
Caçandoca
é o lugar comum aos atores que ali residem ou residiram, antes de
serem expropriados
36
. É o lugar onde vivenciaram momentos de tristezas e alegrias,
permanências e transformações. São aproximadamente duzentos anos de história
no lugar
37
.
A vida comum durante muitos anos é o que faz os sujeitos do quilombo
da Caçandoca se reconhecerem enquanto um grupo. Da interação sujeito e
lugar
,
sujeito e sujeitos, lugar
e
sujeitos,
surgem às representações sociais. É na interação
com o outro e com o lugar que o sujeito cria a representação a cerca de si. Ele
encontra a si quando se identifica com o outro que vive ali no mesmo lugar
compartilhando experiências. Também encontra a si, quando se diferencia do outro
que não vive ali com um universo de valores e experiências di
ferentes do seu.
Tanto
o outro quanto o espaço interferem no pensamento e na ação deste sujeito.
Os
sujeitos da Caçandoca se encontraram e reencontraram para re
cria
re
m a sua
identidade
. Para poderem se representar para esse outro que vive fora da
comunida
de.
Nesse processo, conquistaram o seu território político e social. Daí, a
relação entre representações e lugar.
4.1. Representações sociais e lugar
A teoria das representações sociais teve a sua origem na psic
ologia social
e trouxe à ciência g
eográfi
ca um novo
instrumento que vem auxiliar na
compreensão
do espaço e da sociedade. As representações se encontram vinculadas ao
pensamento e a imaginação dos sujeitos sociais. Não se trata de uma retomada do
idealismo hegeliano, mas de um instrumento para
a
compreensão a respeito da
interação entre pensam
ento e mundo material na construção do processo social.
Na busca de parâmetros diferenciados para tratar do
s aspectos
humano
s
,
da
relação
homem, sociedade e mundo, nos deparamos com a teoria das
36
São dois tipos de expropriação que ocorreram em Caçandoca. A primeira
foi
quando algumas famílias tiveram
de deixar o lugar devido às condições de vida no lugar, com ausência de infra-estrutura e serviços básicos
desejados para a sobrevivência. A outra, quando algumas famílias foram violentamente forçadas pelos agentes
imobiliários
a deixar o lugar. Estaremos, mais adiante, discutindo as representações sobre esses
acontecimentos.
37
Cf. Merlo, 2005, p. 189.
86
representaç
ões sociais que, no processo de investigação social, valoriza os
sentidos, sentimentos e significados coletivos que os sujeitos atribuem ao lugar onde
se manifestam as experiências vividas, opiniões,
ideologias, projetos e sonhos.
N
o
espaço banal as representações sociais são construídas e transformadas. Neste
lugar,
o ator que o transforma é, ao mesmo tempo, o sujeito psicológico, o sujeito
cognoscente e o sujeito coletivo, ou seja, é o sujeito que se territorializa, aprende e
interage.
Sobre essa interação que se da no lugar cotidiano, M. Santos (
1996
)
apresenta a sua reflexão:
No lugar um cotidiano compartido entre as mais diversas pessoas,
firmas e instituições cooperação e conflito são à base da vida em
comum. Porque cada qual exerce uma ação própria, a vida social se
individualiza; e por contigüidade criadora de comunhão, a política se
territorializa, com o confronto entre organização e espontaneidade. O
lugar é o quadro de uma referência pragmática do mundo, do qual
lhe vêm solicitações e ordens precisas de ações condicionadas, mas
é também o teatro insubstituível das paixões humanas, responsáveis,
através da ação comunicativa, pelas mais diversas manifestações da
espontaneidade e da criatividade (S
ANTOS
,
M.
1996, p.
322).
O sentimento de pertença, aqui, é compreendido como a representação
social
do grupo sobre um determinado lugar. A questão da identidade é analisada
a partir da territorialidade que se dá a partir da representação de si,
do grupo
e do
lugar.
N
o contato com o outro e com o lugar
,
o
sujeito
se
encontra. Ou seja, a sua
identidade
existe perante a presença do outro. O outro e o lugar vivenciado
interferem na construção do pensamento e na ação do sujeito. É no lugar
compartilhado, n
este
espaço público, onde circulam as pessoas, é que o sujeito
se faz. De acordo com Jovichelovitch (1995
, p.
70):
A esfera pública, como o espaço que encontra a sua forma de
expressão e dialogo e na ação comunicativa, traz para o centro da
nossa análise a dialética entre um e outro, e sublinha a importânci
a
das relações entre sujeitos-outros e sujeitos e sociedade para dar
conta dos possíveis significados tanto da vida individual como da
87
vida pública. Porque, que sou Eu se não o Eu que os outros
apresentam a mim?
(JOVICHELOVITCH, 1995, p. 70).
Isso fica claro quando comparamos dois momentos vivenciados pelos
negros de Caçandoca: antes e depois de assumirem a identidade quilombola. Antes
de ser
em
visto
s
pela sociedade como quilombola
s
,
as representações que tinham de
si e o modo como a comunidade era representada para a sociedade eram outros. O
que chamamos, neste caso, de representações sociais de si e do outro sobre a
comunidade, é definido por J. R. Santos (1999, p. 114) como lugar social instituído
por diversas coordenadas. De acordo com ele:
Se não é raça nem identidade assumida, o que é o negro brasileiro?
Em nossa definição, negro é um lugar social instituído por diversas
coordenadas: a cor escura da pele, a cultura popular, a
ancestralidade africana, a ascendência escrava (remota ou
próxima), a pobreza, a atribuição da identidade
negro
pelo outro e a
assunção dessa identidade por si. Para certificar-se de que se trata
de um lugar, um topo, basta pensarmos nas dificuldades que temos,
no Brasil, em classificar indivíduos que não preencham um aqueles
re
quisitos. Um preto rico, ou que não saiba sambar, ou que o se
assuma como negro, ou que não seja visto pelos amigos como tal
é menos preto. Essa peculiaridade brasileira o negro como lugar e
não como raça – tem sido um dos óbices à compreensão das
no
ssas relações raciais por estrangeiros, especialmente norte-
americanos. Aqui, a mesma pessoa pode ser negra num estado,
morena em outro, branca num terceiro [...]. Temos, por essa mesma
razão, a “síndrome do embranquecimento” que, para citar um caso
famoso
, acometeu o maior dos nossos escritores: Machado de
Assis, empregado de Paula Brito, é mulato escuro, nos retratos do
fim da vida, presidente da Academia Brasileira de Letras, é branco.
As representações de si, construídas pelo negro brasileiro, e as a
tribuídas
a ele pelos outros a ele, dependem da posição geográfica e social em que o negro
se encontra. Por isso ele é no Brasil, antes de tudo, um lugar social construído pelas
88
representações. Podemos dizer que, com a conquista do território do quilombo
Caçandoca, o lugar social
negro
é substituído pela identidade quilombola, visto que,
mudam
-se as representações do negro sobre si e dos outros sobre ele. A identidade
passa a ser fortalecida e estimada pelas pessoas da comunidade e valorizada pela
sociedade
que, desse modo, passa a respeitá-los e reconhecê-los não mais como
pobres e pretos, mas como atores sociais.
Durante muito tempo as vozes exteriores ao meio acadêmico, o senso
comum, foram descartadas nos estudos científicos, por se tratarem de visões
pré
-
concebidas ou infundadas do ponto de vista acadêmico. Para Chauí (2002, p.248)
no senso comum encontramos saberes cotidianos subjetivos, qualitativos,
heterogêneos, individualizadores e generalizadores, em que se estabelece uma
relação de causa e efeit
o entre as coisas e fatos julgados semelhantes.
Muitas vezes, encontramos no senso comum a representação sobre um
afazer, como por exemplo, o conhecimento sobre como pescar, como utilizar
determinada planta. Nesse caso, trata-se de uma sabedoria popular sobre uma
tarefa prática do cotidiano de um determinado grupo. Esse conhecimento é passado
de geração a geração. Para Martins (2000):
O senso comum é comum não porque seja banal ou mero
conhecimento exterior, mas porque é conhecimento compartilhado
entre
os sujeitos da relação social. Nela o significado a precede, pois
é condição de seu estabelecimento e ocorrência. Sem significado
compartilhado não interação. Além disso, não possibilidades
de que os participantes da interação se imponham significados,
que o significado é reciprocamente experimentado pelos sujeitos.
(M
ARTINS
, 2000
, p. 59).
Para Chauí (1995), o senso comum se apresenta em duas faces, as
subjetivas e as qualitativas. No primeiro caso, o senso comum está
ligad
o aos
v
alores e no segu
ndo,
aos sentidos. Segundo ela:
As subjetivas exprimem sentimentos e opiniões individuais e de
grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para
outro, dependendo das condições em que vivemos. Nas qualitativas
89
as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces
ou azedas, pesadas ou leves, belas ou feias, quentes ou frias, úteis
ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com
sabor, odor, próximas ou distantes, etc (
CHAUÍ,
1995, p.
248).
Além do senso comum, o conhecimento científico também
é representado
socia
lmente
. Isso ocorre quando o conhecimento produzido é universalizado e
amplamente divulgado para os demais segmentos da sociedade. Então, se cria uma
representação social para um determinado assunto de bases científicas como, por
exemplo, quando encontramos nas representações sociais o mesmo processo de
cura de uma determinada doença ou a sua prevenção.
O sujeito, de acordo com Silva (1985), é por excelência psicológico,
cognoscente e coletivo. O sujeito psicológico interage consigo mesmo dentro de seu
pensamento. A sua relação com outro sujeito faz dele um sujeito coletivo. Na sua
relação com o lugar o sujeito é coletivo. Dois ou mais sujeitos psicológicos e
coletivos interados num mesmo lugar terão um pensamento comum. Esse
pensamento comum poderá se tornar uma representação social de uma idéia, do
lugar ou dos próprios sujeitos. A representação social pode estar associada ao
senso comum ou ao conhecimento científico. O senso comum pode estar
relacionado ao conhecimento popular ou a uma ideologia. Tanto o senso comum,
quanto o conhecimento cientí
fico
são capazes de desencadear ações que podem
mudar o lugar ou os sujeitos desse lugar.
Na relação entre o mundo material e o
universo
das idéias, uma idéia ou
pensamento pode conquistar uma representatividade social e desencadear
uma
determinada ação, que poderá gerar mudanças que podem ser materiais,
psicológicas ou de comportamento. Essas mudanças podem ser positivas ou
negativas para o sujeito, grupo social ou para o espaço. As mudanças também
geram novas representações sociais. Idéias ou pensamentos, ações e objetos
acompanham o movimento da sociedade de onde surgem as representações.
No caso em estudo, a comunidade remanescente do quilombo da
Caçandoca, com o fim da escravidão, construiu novas formas de sociabilidade e de
participação no mesmo lugar. Mudam-se as representações: o lugar que antes era o
do trabalho escravo, da vida sacrificada e da privação, torna-se para os sujeitos
o
lugar ideal, da vida feliz em liberdade
.
Neste caso, trata-se de uma idealização do
90
passado contida nas representações. O se fazer liberto, também gerou novas
representações sobre si, diferentes das do tempo de cativeiro.
Com a chegada dos outros, no caso, a Urbanizadora Contine
ntal,
após a
abertura da BR 101, novas representações de si foram
formadas
perante a presença
destes outros. Com a expropriação das famílias de Caçandoca, a terra não é a
única coisa roubada
.
A expropriação provocou uma sensação de incapacidade
e
um
senti
mento de inferioridade perante o outro que se dizia estar baseado nas leis e na
escrita, universo bem distante de todos os desafios que tinham se apresentado até.
O que é mais interessante nas transformações das representações é que
esse mesmo mecanismo, ora utilizado para inferiorizar a comunidade, outrora,
quando ela toma contato com as leis e aciona as instituições necessárias para fazer
valer os seus direitos, muda novamente a representação de si, visto que, ser
quilombola na Caçandoca hoje é motivo de orgulho. Formou-se, em torno dessa
nova representação de si, uma rede de solidariedade entre as comunidades negras
no país inteiro. Desse modo, c
omo podemos ver
ificar com o exemplo da Caçandoca
,
as representações direcionam as ações e, as ações as represe
ntações.
Vemos isso acontecer quando a visão pré-concebida sobre a população
negra implica em práticas discriminatórias ou de violência, como a segregação
espacial. Para compreendermos as representações, o modo como elas são
construídas e como são
materia
liza
das
, devemos contextualizá-las e identificar as
suas ideologias.
As situações citadas acima, que tenha resultados na materialização de
idéias ou na produção de ideologias, se encontram referenciadas no espaço de
interação social no qual nascem as representações sociais. De acordo com
Jovichelovitch (1995):
As representações sociais estão necessariamente radicadas no
espaço público e nos processos através dos quais o ser humano
desenvolve uma identidade, cria símbolos e se abre para a
diversidade de um mundo de Outros. (...) Meu argumento central é
de que a esfera blica, enquanto lugar da alteridade fornece às
representações sociais o terreno sobre o qual elas podem ser
cultivadas e se estabelecer (
JOVICHELOVITCH,
1995
, p.
65).
91
Compreender as representações sociais não significa prever ou
determinar fatos ou acontecimentos. Essa compreensão implica na análise e / ou
superação de um determinado fenômeno, das contradições existentes entre o plano
ideal e o plano material.
Com o estudo das representações sociais podemos apontar e identificar
uma ausência, uma necessidade, um conhecimento popular ou ideologia. Para
transformar os fenômenos em objetos manejáveis pela prática da pesquisa científica,
para torná-los passíveis de análise, é imprescindível identificar os elementos que
compõem as representações sociais. Como aponta Sá (1998):
Pesquisam
-se as relações que a emergência e a difusão das
representações sociais guardam com fatores tais como: valores,
modelos e invariantes culturais; comunicação inter
individual,
institucional e de massa; contexto ideológico e histórico; inserção
social dos sujeitos, em termos de sua posição e filiação grupal;
dinâmica das instituições e dos grupos pertinentes (
SÁ,
1998, p.32).
No estudo das representações sociais, as vozes dos oprimidos ganham
valor e reconhecimento. Kozel (2002) afirma que as representações podem coexistir
com os saberes científicos. Então, como identificar e analisar as representações
sociais? Jovichelovitch (1995) reforça a idéia da perspectiva piagetiana para a
análise das representações. Segundo ela:
(...) Assim, a análise das representações deve concentrar-
se
naqueles processos de comunicação e vida que não somente as
engendram, mas que também lhe conferem uma estrutura pe
culiar
.
Esses processos eu acredito, são processos de mediação social.
Comunicação é mediação social. Comunicação é mediação entre um
mundo de perspectivas diferentes; trabalho é mediação entre
necessidades humanas e o material bruto da natureza; ritos, mitos e
símbolos são mediações entre a alteridade de um mundo
freqüentemente misterioso e o mundo da intersubjetividade humana
(
JOVICHELOVITCH, 1995, p.
81):
92
Nas representações sociais encontramos concepções, elementos
simbólicos, ideológicos que acabam muitas vezes invadindo as mentalidades de
modo despercebido. Nas trocas ocorridas durante a interação social, o pensamento
é construído. No pensamento dos sujeitos transitam os símbolos. Por isso, o mundo
material não responde às questões que vão surgindo ao longo da história. Na
s
representações sociais a interação entre pensamento, sujeito, sociedade, mundo
organizam todo o processo social. O mundo o apresenta a materialidade das
relações sociais desiguais, como também apresenta discursos e imagens que
influem nas trocas dos diversos sujeitos que acabam por reproduzir e aceitar a
ordem vigente.
Para Lefèbvre (1980), as representações podem ser construídas tornando
presente o que está ausente, ou seja, a partir da relação do mundo material com o
mundo simbólico, que ele chama de ausente presentificado por elementos
simbólicos, como por exemplo, a linguagem.
A linguagem que constituí as falas dos remanescentes do quilombo
Caçandoca não
se enquadra nas
normas “cultas” da língua portuguesa
, dos
grandes
livros e best-
sellers.
T
rata
-se de uma linguagem simples, mas não menos rica que a
língua oficial. No universo lingüístico da comunidade remanescente do quilombo
Caçandoca é possível tomar contato com uma diversidade de conhecimentos
importantes não só para a comunidade, mas para toda a sociedade, como por
exemplo, parte da história do país que é denunciada e reclamada em suas falas
.
A
ausência das normas “cultas” nos mostra que o projeto da nação brasileira não se
concretizou inteiramente, já que a princípio, o seu principal obje
tivo era o de produzir
uma linguagem única, eliminando as diferenças de comunicação que pudessem
separar a sociedade. Neste caso, a ordem do dia era: massificar para dominar.
É por isso que na transcrição das falas procuramos manter a linguagem
dos s
ujeit
os, com intuito de mostrá-
los
como realmente falam e como realmente são
e não enquadrar suas falas nas normas cultas de uma linguagem de um país
que
pouco fez por esta essa população. Muito pelo contrário, quando ela não era mais
útil para o país, foi a
tirada às margens, subjugada e oprimida
.
Esta opressão ainda é
vista nos dias de hoje, quando assistimos o mundo dos letrados se impondo sob o
mundo dos memorados.
É por isso que
optamos por deixar no final
da dissertação,
o
CD
-
Rom
com as
pequenas
filmagen
s que, apesar de amadoras, feitas em máquina
fotográfica, tentam trazer ao leitor a oportunidade de vivenciar um pouco desse outro
93
universo que não é o da escrita. Nesse sentido, procuramos valorizar a memória e a
oralidade enquanto fatores fortemente presentes na comunidade e que a partir deles
é possível vivenciar as emoções.
Quando
os sujeitos se lembram, interpretam,
choram, riem, se entristecem, se esbravejam. Sabemos que durante muito tempo
na
África, a memória
foi
mais valorizada que a escrita. Os sistemas de aprendizado e
de valores
eram
outros. Percebemos a memória como instância prioritária e
representativa por grande parte das pessoas d
o quilombo da Caçandoca.
Para as falas, escolhemos os sujeitos mais representativos e os idosos, já
que durante as sondagens, estes se demonstraram mais aptos a recordar do
passado e falar sobre as lutas da comunidade. A princípio, o nosso
desejo
era o
de
contemplar pelo menos boa parte das falas dos remanescentes do quilombo
Caçandoca. Também fomos buscar a fala daqueles que saíram e não voltaram para
dar voz aos seus motivos e as
suas denú
ncias.
Desse modo, a fala dos remanescentes assume também o caráter de
ação e de ato político. Quando o remanescente fala, ele está denunciando o que foi
feito com os seus antep
assados
, o que foi feito de suas vidas quando l
hes roubaram
o território. Denunciam a exploração, a dominação e a imposição.
As representações sociais que compõem este trabalho adquirem um
grande significado, tendo em vista que o que pretendemos investigar são os
sistemas de valores e significados que os sujeitos atribuem a si, aos outros e ao
lugar onde se
estabelece
m relações de poder. Nesse sentido, a perspectiva de
Claval
(2001) na Geografia vai de encontro com os estudos das representações
sociais. Se
gundo ele
, a Geografia Cultural
:
(...) propõe uma visão original da diversidade da Terra, portanto da
abordagem regional, porque esta é a maneira pela qual as pessoas
recortam e vivem a Terra que esta no centro da pesquisa, e não
aquela que os geógrafos elaboram; isto implica que se leve em
consideração o papel do corpo e dos sentidos na experiência
humana, os recortes da realidade física e social pelas pessoas, a
riqueza da imaginação que dá sentido às geografias as mais diversas
a experiência do espaço, e que se explore a maneira pela qual se
constituem as identidades e os territórios. (CLAVAL, 2001, p.43)
94
Nas representações sociais dos remanescentes do quilombo Caçandoca,
as denúncias, os sentimentos, o trabalho, a vida social, as heranças, os projetos e
os sonhos fazem parte de momentos comuns referenciados numa trajetória comum.
Momentos em que o
aqui
era harmônico, o trabalho era bastante camarada
,
de tudo
se plantava
,
sempre tinha festa, enfim, os momentos em que a vida aqui era muito
boa
.
também os momentos em que o
aqui
foi o lugar do sofrimento,
da
escravidão
,
do
esbulho possessório e da perda dos entes queridos. Veremos a
seguir, nas representações sociais dos sujeitos do quilombo Caçandoca, que a
trajetória em
aquis
comuns, foi fundamental para construírem ao longo dos anos,
novas representações a cerca de si e do lugar.
4.2.
e aqui, passado e presente: representações sociais de uma trajetória e
de ruptura com o lugar.
São significativas as representações sociais dos remanescentes d
o
Quilombo Caçandoca ligadas aos seus antepassados e às transformações da vida
que ocorreram na Caçandoca. Em alguns momentos esse lugar é sacralisado,
idealizado
, e em outros é temido e
indesejado.
Durante a nossa investigação, vimos
que os sujeitos se referem com freqüência a este lugar, contrapondo passado e
presente. Percebemos nas falas uma tentativa de idealização do passado. O
passado para estes sujeitos sempre foi melhor com relação ao presente, mesmo
com as dificuldades narradas que, de certa forma, retrata um passado não tão ideal.
Mas de fato é esse lugar, portanto, a territorialidade que os une e sentido à
comunidade, ainda que essa relação com o lugar seja de amor e ódio, conforme
veremos a seguir.
A primeira ruptura com o lugar ocorreu quando os ancestrais
dos
remanescentes do quilombo da Caçandoca foram retirados de diversos lugares da
África, deixando para trás
um
modo de vida e parentescos, para trabalharem como
escravos no Brasil. Algumas pessoas da Caçandoca identificam
Angola,
Moçambiq
ue e Gabão, como os principais lugares de origem dos seus ancestrais.
Mesmo tratando-se de uma construção colonial, achamos necessário incluir as
representações sobre esses locais na África, que o que menos importa aqui é a
denominação do lugar dado pelo colonizador e sim as memórias referentes ao lugar
95
onde viveram os ancestrais. Também, em seus depoimentos, foi possível identificar
alguns lugares no Brasil em que transitaram antes de chegarem à Caçandoca,
como, por exemplo, São João Marco, Carangola, Ilha de Marambaia e Ilha do Mar
Virado.
Os sujeitos nos contam que, com o fim da escravidão, os seus ancestrais
permanece
ram
no local e tenta
ram
reconstruir
as suas vidas, mesmo com todas as
dificuldades. Eles nos contam sobre o momento da ruptura com o lugar, mais
precisamente, a ocasião em que alguns deles foram
expropria
dos entre as décadas
de 1960 e 1970. Tempos de alegrias e de tristezas que
marcaram
as suas vidas
e
que
estão presentes em suas falas como denúncia, como história compartilhada,
como aprendizado de uma vida. A partir
dos
aquis
do presente e
lás
do passado,
tentamos
reconstruir as trajetórias dos sujeitos importantes para compreensão
das
mudanças da representação de si e do
lugar.
4.2.1. “Fui nascido e criado aqui”: o lugar
dos nascimento
s, farturas e festas
Durante muito tempo, o
território
da Caçandoca foi o local de
acontecimentos que marcaram aquela população como, por exemplo, os
nascimentos e a criação dos filhos. Esses momentos, como os das grandes
colheitas e os das festas, foram momentos de felicidades retratados e idealizados
pelos sujeitos e que se encontram em algum lugar do passado. Esse passado
contraposto com o presente é sempre idealizado, o passado,
, é sempre melhor do
que o presente,
aqui
. Mas, conforme veremos a seguir com as falas dos sujeitos, ao
mesmo tempo em que idealizam este passado, demonstram um descontentamento
com as ausências daquele tempo.
Os nascimentos são
marcante
s nas falas das mulheres da comunidade.
É
comum reforçarem a idéia de que aquilo tudo
,
ou seja, que o território da
comunidade será de seus filhos e netos que darão continuidade aos seus projetos.
Esse pensamento de que os herdeiros darão continuidade aos seus projetos no
futuro, nos faz remeter a idéia de Bosi (1994, p. 75) de que:
Os projetos do indivíduo transcendem o intervalo sico da sua
existência: ele nunca morre tendo explicitado todas as suas
96
possibilidades. Antes, morre na véspera: e alguém deve realizar suas
possibilidades que ficam latentes, para que ele complete o desenho
de s
ua vida. (BOSI, 1994, p. 75)
Desse modo, os nascimentos representam a continuidade, o vir a ser dos
sonhos e projetos de vida que sempre lhe foram negados. A territorialidade está
presente nas falas quando estas mulheres se referem à
aqui
, ou seja, à Caç
andoca
como local de nas
cimento dos pais, dos filhos e
delas próprias:
“Nós fomos nascidos e criados na Caçandoca. Os nossos avós eram
os donos da fazenda da Caçandoca. Eram os herdeiros verdadeiros.
Era o Pedro Ferreira e o Napoleão dos Santos. O pai do nosso pai
era o Napoleão dos Santos, e o pai da mãe era Pedro Ferreira. Eles
eram mesmo o verdadeiro pessoal da Caçandoca, junto com o
Ant
ônio (...) e o mesmo anosso é o mesmo avô do Antônio. O
Ant
ônio é diferente um pouquinho porque a mãe dele é difere
nte,
porque a mãe do Antônio é de outra parentagem. Agora o pai do
Ant
ônio é irmão do meu pai. Tudo nascido, criado, casado tudo
dentro da Caçandoca, Os antigos eram tudo de lá dentro”.
(Anália Miquilina da Conceição -Tabatinga, 18 de novembro de
2006)
.
O nascimento e a criação dos
herdeiros
também esta presente na fala de
D. Rosa:
“Eu sou nascida, criada e continuo aqui. Meus pais também. Meus
pais era: Sebastião Gabriel dos Santos e a minha mãe era a Rosa
Donário de Jesus. A minha mãe era filha do Antônio Madalena que
era o dono do... um dos herdeiros das terras do Saco da Banana
e... minha mãe é filha do Antônio Madalena. Ela... Meu pai é filho de
um tal de Gabriel e Dona Rosália que eram nascidos daqui também.
Mas são tudo... quando... qui eu conheci, nasci, eles moravam
aí, porque a gente foi nascido e criado ai. Eu acho que eles nunca
saíram, não tenho certeza. Meu pai trabalhava fora, mas nunca saiu
daqui”.
(Rosa, Caçandoca, 6 de dezembro de 2006).
97
A idéia do “nascido e criado aqui” reforça os laços que os sujeitos têm
com o lugar “aqui”. Este “aqui”
é
o lugar onde
nasceram
os an
cestrais
, onde
passaram grande parte das suas vidas e onde gostariam de ficar pelo resto de suas
vidas. Mesmo com as dificuldades na hora dos nascimentos,
est
e
aqui
está presente
nas falas. D. Sebastiana se recorda dos seus partos:
“Sou nascida e criada aqui. Minha casa era em cima na Raposa,
morava com meus pais. Levei cinco filhos aqui pra lá. Inclusive no
primeiro quase eu fui. Comecei a passar mal eram umas quatro
horas da manhã, na Raposa. Quando eu ganhei ela, eram oito
horas do dia. A parteira era uma tal de ... Foi a Pureza, veio com a
Maria Felix”. (Sebastiana Gabriel dos Santos, 68 anos. Caçandoca 6
de dezembro de 2006).
E mesmo os
que não
residem mais no local, falam com orgulho do lugar onde
nasceram e se recordam com saudades dos nascimentos dos filhos. Assim o faz D.
Ondina:
Meu pai é José Antunes dos Santos e minha mãe Joaquina Cabral
de Oliveira. Minha idade eu não sei, tá ali no docu
mento. Nasci e me
criei
no Pulso, e agora depois de velha é que eu vim pra cá. Tive
os filhos tudo lá: o Ricardo, o Manuel, Jurandi, Anésia, Aparecida.
Moram aqui comigo. As duas o, uma mora em Santos e a outra
em Ubatuba. (Ondina Antunes Sertão da Quina 11 de dezembro
de 200
6).
Nas falas encontramos um passado harmônico, idealizado por estas
mulheres como o lugar
perfeito
para o nascimento e criação dos filhos.
Segundo
elas, eram a
s parteira
s quem traziam os filhos à vida:
“Minha casa era onde mora o Altamir. Fui nascida e criada tudo lá,
criei meus filhinhos tudo lá. (...) Tive tudo os meus filhinhos naquele
cantinho. Tinha a parteira, se chamava comadre Maria Felix, se
chamava Pureza, é tudo de também. A Maria Felix morava ali pra
98
cima do barracão, ali onde mora o Luizinho. A Pureza morava pra
do rio. Me lembro de tudo minha filha. Eram elas que faziam o parto,
nunca fui na mão do médico de jeito nenhum. Nunca meus filhos
pegaram mamadeira, nunca pegaram nada e meus filhos foram tudo
sadio.
O Altamir era gordo que tinha até papa, agora está magro
porque (....), pesou quatro quilos e cinqüenta grama quando ele
nasceu
.
Nunca levei meus filhos no médico, nunca. Ia no posto pra
pegar o leite, mas ele não pegava em mamadeira nenhuma, no
meu peito. Criei tudo no peito. Pegava o leite do posto levava pra
casa, o leite era de latinha.
Mas eles não pegavam mamadeira era só
no peito. Ia pra roça, passava quarenta e uns dias estava na roça,
leva as crianças, passava mês, é banana, sabe aquelas ban
anas
pratas, amassava no prato assim, pegava farinha de mandioca e
botava por cima, criei meus filhos, tudo eles. Graças a Deus, tudo
sadio
(grifo nosso).
(Antonia Miquelina Jacinta da Conceição, 79 anos, Olaria
Caraguatatuba, 18 de novembro de 2006).
Verificamos, com esta fala, que D. Antônia e os filhos tinham uma vida
tranqüila e saudável, os problemas de saúde pareciam ser menores, mesmo com a
ausência de médico. Com certeza, a amamentação dos filhos foi importante para
que isso ocorresse. Mas também a dieta, conforme veremos em outras falas,
baseada em verduras, legumes e carnes de animais criados e caçados ali, foram
importantes para esta vida saudável. Mas, conforme veremos mais adiante, houve
problemas de saúde que, com a ausência de médicos, provocaram a morte de entes
queridos. Era comum o uso de plantas e ervas medicinais na cura de doenças, mas
pelo que parece, os casos mais graves eram difíceis de serem solucionados. Hoje,
diante de outra realidade, grande parte das famílias recebe cestas básicas para se
alimentarem e a ausência de atendimento médico é reclamada pela comunidade.
A solidariedade e a união no trabalho e nas festas caracterizavam este
lugar
idealizado. A ajuda tua e os mutirões na hora do plantio e da colheita,
seguido de comemorações e festas, são representados nas falas de D. Ondina e D.
Antônia. Vejamos, primeiro, o que fala D. Ondina:
99
Nós plantava banana e vendia. Fazia farinha pra comer, às vezes
pra vender, pra comprar feijão. O feijão quando plantava a gente
colhia
, não precisava comprar. Vivia com a lavoura assim, não tinha
trabalho pra gente trabalhar. Um ajudava o outro a trabalhar. Fazia
uma roça o outro ia ajudar e era assim. (Ondina Antunes Sertão
da Quina
,
11 de dezembro de 200
6)
.
O mesmo fala D. Antônia em o
utras palavras:
Mas era uma coisa muito linda, ninguém tinha encrenca, nunca tinha
fofoca, trabalhava
a semana inteira e quando trabalhava, era
bastante
camarada
,
um ajudava o outro, tudo vizinho ali, um ajudava
o outro pra gente manter a vida
.
(grifo no
sso)
(Ant
ônia Miquelina Jacinta da Conceição, 79 anos, Olaria
Caraguatatuba, 18 de novembro de 2006).
O fato de não haver um
trabalho
naquele período não era um problema
para a comunidade, como é nos dias atuais. O trabalho que D. Ondina se refere é o
trabalho assalariado, o qual muitos da comunidade hoje almejam ter, que não é
possível, devido à fiscalização ambiental, desenvolverem ali as mesmas atividades
que desenvolviam em outros tempos. Aquele trabalho desenvolvido conjuntamente
pela comunidade
não é considerado por D. Ondina como um trabalho, mas é ele que
mantinha a comunidade. Isso demonstra que as transformações que ocorreram na
vida em comunidade, geraram outra representação a cerca do trabalho que valoriza
a forma de trabalho com horário estipulado e desconsidera a antiga forma de
organização que respeitava o ritmo da natureza.
O lugar do passado idealizado pelos sujeitos é o do tempo em que todos
eram unidos, o que ainda é muito significativo para o grupo. Ouvimos muito falarem
do retorno a esse tempo da união, percebe-se que isso é muito desejado por todos.
D. Marciana demonstra o seu lamento e saudosismo desse lugar das reuniões, hoje
temido por alguns diante das constantes ameaças de uma nova expropriação:
“E era assim uma união, por exemplo, nóis ia numa roça de
mandioca, aquele dia ia todo mundo, pessoal da Raposa, Saco da
Banana, todo mundo ia ajudar, trabalhava naquela roça lá, vai ver
100
num dia, no outro dia ia pra outra roça fazer outra vez né,
fazia
mutirão de trabalho. Era uma comunidade muito bonita, nóis vivia
muito unido aqui, hoje que a gente vive assim, nessa vida,
assustado.
(grifo nosso).
(Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
Na contraposição do passado com o presente, percebe-se que a união é
muito representativa nas falas dos sujeitos. Porém, hoje, a compreensão tua é
difícil na comunidade, devido aos conflitos internos apresentados e discutidos no
primeiro capítulo, sendo que os mais evidentes se apresentam em torno da
organização e relações de poder.
Ainda sobre o tempo da união, S. Antonio se recorda com emoção, e
refere
-
se a ele como o tempo em que
viviam como se fosse os primeiros cristãos:
E a vida do pessoal aqui era uma vida, como se fosse os primeiro
s
cristãos.
Então acho que aqui ninguém matava um peixe enquanto
tivesse cortando... que não desse pra cortar em posse pra dividir pra
todo mundo.
Enquanto tivesse farinha na roça pra dividir pra todo
mundo, seria feito isso. Uma festa não deixaria ninguém
sem convite.
Se deixasse uma família sem convite, era desfeita pra todos os
outros que ia na festa. Era uma diferença: Cadê o compadre? Cadê a
família do compadre? Então tinha que vir na festa e tinha que ser
convi
da
do de qualquer forma. E quando é assim, quando ia fazer
uma preparação de trabalho, eles preparavam um convite por muitos
e muitos meses (?) Então o compadre ia almoçar na casa do
compadre.
Então era um dia especial que ninguém fazia nada e as
criançada tava tudo preparada para aquele dia, pra aquela comida
(...)
(grifo nosso).
(
Antônio dos Santos
60 anos -
Caçandoca,
04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
Neste lugar do passado, o trabalho representava o atendimento as
necessidades. D. Antonia fala dos tempos de fartura que, com o trabalho do pai, era
possível
comer muito
e também dos tempos da ausência de misturas e do arroz::
101
“Plantava mandioca, milho, feijão, batata, nhame, aquele feijão
grosso, eu lembro que a gente plantava e comia muito na (...). s
plantamo
s de tudo. Tudo, tudo, tudo...Cebola dava aquela cebola
cabeçuda assim, de folha verde. Queimava aquelas folhas de vara e
ali mesmo a gente juntava aquela cinza e plantava cebola. É o que a
gente comia na roça, às vezes não tinha mistura, agente levava uma
baciinha assim, fazia salada com o caldo do feijão pra nós comer na
roça pra trabalhar. E o pai estava pescando, meu pai era pescador
(..) trazia mantimento pra nós. O mantimento era o peixe, ele era
pescador. Quando ele não estava pescando, ele trabalhav
a na roça
.
(...) Meu pai trabalhava na roça, era trabalhador, pescador, caçador.
Agora ninguém pode matar nada lá,
mas nós vivíamos com a caça,
com mato e pesca. Às vezes para ter melhor de comer as coisas, a
gente secava o peixe, botava tudo na canoa de motor, porque não
tinha estrada. Botava tudo na canoa de motor pro mar, vendia o
peixe e comprava carne. Às vezes (...), macarrão, porque ninguém
sabia o que era arroz, nem macarrão, não via nada. Arroz nós tinha
em casa no tempo de Natal, Páscoa. Comprava arroz com casca,
socava no pilão, pra gente poder comer ali naquele dia, também
pronto: não tinha arroz, não tinha nada.
Agora milho, a gente tinha de
quantidade, a gente fazia de madrugada, quando tinha mexido meu
café, levantava, torrava o milho, socava, aquele que a gente
chamava
pixé
(?), aquele arroz amarelinho, socava no pilão, pra
mode a gente tomar café, pra depois ir para a roça.
Fazia aquela
farofa de (...) Ninguém sabia o que era o na nossa vida
.
Comia
mandioca doce, era batata, nhame, isso era todo dia, todo dia nós
colhíamos um bocadinho de milho pra nós tomar com café
"
.
(Ant
ônia Miquelina Jacinta da Conceição, 79 anos, Olaria
Caraguatatuba, 18 de novembro de 2006).
Se no passado existiam ausências de mantimentos, com a fala de D.
Anto
nia, percebemos que algumas delas eram superadas. Não existiam o pão, o
macarrão e o arroz, mas o nhame, o milho, a batata, a mandioca, a caça e a pesca
os substituíam. no presente, como podemos verificar nas falas dos sujeitos, as
ausências são mais difíceis de serem superadas, que sofrem com a fiscalização
das instituições ambientais que não permitem o cultivo naquelas terras.
102
Fica evidente, com as falas dos sujeitos, que ali
não
era
apenas
o lugar
do
trabalho, mas principalmente o lugar das festas. Aconteciam com freqüência e
tinham um grande significado na manutenção dos laços da comunidade. D.
Sebastiana se recorda de algumas dessas festas:
Então nóis aqui, nóis plantava, nóis colhia, nóis dançava, nóis... fazia
tudo e tinha bastante festa. Começava a festa de São João, Santo
Antonio, São Pedro, é.... tinha outra santa também..., São Benedito e
tinha outra santa também. Sei que era um monte de santo que tinha
toda semana, todo mês era festa, a gente marcava aquele monte de
festão pra fazer comida pra todo mundo. E a gente fazia folia de reis,
era muito gostoso aqui.
Sebastiana Gabriel dos Santos, 68 anos. Caçandoca 6 de dezembro
de 2006
As festas em homenagem aos santos católicos, demonstram que no
passado a influência da religião católica era a que predominava na comunidade.
Hoje, a comunidade se encontra dividida entre, principalmente, os que se dizem
católicos e os que se dizem evangélicos, com poucos simpatizantes com o
candomblé. Desse modo, na vida religiosa da comunidade não se encontra
ne
nhuma prática declarada das religiões de matriz africana. Apesar de não existir
referências a estas religiões, é comum encontrarmos nas festas e nas missas
católicas da comunidade, os instrumentos utilizados nestas religiões. Não só os
instrumentos, mas também a espiritualidade e a ginga. Também, conforme vimos no
capitulo um, a recorrência às benzeduras e espíritos dos ancestrais.
Lamenta
-se D. Marciana quando fala de um passado de
auto
-
suficiência
que, no presente,
não existe mais
, tendo em vista que as
instituições ambientais não
permitem que façam os seus roçados. Na sua fala é possível perceber uma relação
de amor e ódio com o lugar. Para ela:
É uma história bonita e triste porque nóis podia... nóis tinha... a
senhora olha pro mato hoje, a senhora um matagal né,
antigamente o, antigamente a senhora via um milharal, mandiocal,
arroz, café nóis tinha de tudo. Então, hoje a gente quer voltar um
pouquinho atrás até a gente se vê, é triste de olhar assim e ver
103
mato hoje, sendo que nós nos alimentamos dessa terra, por isso que
essa briga hoje durou tudo esses anos porque nóis não aceitava não,
não aceitamos mesmo que outras pessoas fizessem uma moradia
rica, bilionária sobre o suor dos nossos pais, nossos avôs, nosso
suor!
(Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
Outrora (p. 84) D. Antonia nos contou que
ali
foi
o lugar das farturas
,
porém com algumas ausências de alguns alimentos que eram substituídos por
outros. Novamente ela fala sobre as ausências que a comida não era a única
coisa necessária à sobrevivência. D. Antônia recorda
-
se da escassez de roupas e do
trabalho para produzir o excedente para a venda e complemento das outras
necessidades:
“A gente tinha pouca roupa, a gente não podia fazer coisa assim. A
gente vivia com roupa tudo remendada, uns pedaços de pano (risos).
A gente fazia farinha pra poder complementar a vida. E de seis anos,
de seis meses em diante a gente ia (
plantar
)
mandioca pra comer
farinha. Depois de mais velho que a gente tinha, infestava mandioca
de um alqueire daquela pessoa ali e fazia até da gente arranja o de
comer e depois a gente fazia e pagava aquela farinha também”.
Quando se referem à alimentação que tinham no passado, falam de
uma
alimentação mais
saudável,
de uma
dieta
que
se baseava em frutas, sendo a
banana
a principal referência; os
legumes
como o chuchu e a batata; as
raízes como
a mandioca, o nhame; o milho e o feijão como a principais referências de grãos; e a
carne
dos animais de criação, como a galinha; a caça e o peixe. O azul-marinho é
um prato muito conhecido na região, é de tradição das famílias quilombolas. Este
prato costuma ser feito quando a comunidade faz alguma festa ou encontro e
quando isso acontece, logo vêm as recordações do passado. É um prato em que a
receita foi passada pelos ancestrais aos herdeiros e a comunidade sente orgulho
quando se fala dele. Dona Maria da Conceição nos ensina a receita deste prato com
entusiasmo (Foto 1
0
):
104
... Coloca o óleo, coloca todos os temperos ? E. tem muita coisa
que você gosta... cheiro verde, porque vai muito verde, é porque
coloca tudo junto... ai coloca a banana, ai quando tiver tudo...a
cebola... amarelinha, ai você pega e coloca a banana, ai a banana
depois que ela ferver, depois que ela tiver molinha como você tá
vendo aqui, ai ce coloca o peixe, depois que o peixe tiver cozido, e a
banana também, dce começa a amassar, amassa ela... ai volta
essa banana amassada àquele caldo que ali, ai ce coloca a
farinha... coloca a farinha e... daí você mexe, faz o pirão daí você
leva pra mesa. Quem quiser comer o pirão, come o pirão com o
arroz, quem não quiser come aquele pirão sozinho. Não tem segredo
nenhum do Azul marinho...
(Receita do Azul Marinho, por Dona Maria
da Conceição “D. Dica”, cozinha da Associação dos
Remanescentes do Quilombo da Caçandoca, 05 de novembro de
2006).
Quando se pergunta sobre o prato, falam com orgulho e domínio da
receita que vem dos seus ancestrais:
(Ricardo): Soube que o Azul Marinho é um prato caríssimo..
.
(Dona Dica) Esse é um prato que foi feito pelos nossos avos,
nossos bisavos né? Que seguiu a gente né...?
e... passou...
(Ricardo) E porque que chama Azul Marinho?
(Dona Dica) Porque... é um prato que veio dos escravos né?... do
quilombo... dos escra
vos né? comia muito isso...
(Eloísa) A química da banana com o peixe também muda a cor ... do
pirão
(Dona Dica) A cor do pirão... tem aquela outra... o marisco... a craca
... não tem a craca do marisco? Antigamente a minha bisavó socava
no pilão com banan
a verde e fazia igual a esse aqui
(Eloísa) A minha mãe falou que ela fazia isso e comia no chão
sentado
(Dona Dica) Comia tudo no chão... botava as panelas no chão,
cada um lá no banquinho de tauba e comia lá mesmo.
105
(Eloísa) Jogava as panelas no chão, cada um ia catando fazia...
minha mãe falou né?...
(grifo nosso)
Foto 1
0
Foto: Elaine Branco
D. Dica preparando o Azul Marinho, “prato que veio dos escravos”, no fogão à lenha da cozinha da Associação,
no dia 06/12/2006, data em que o território da Comunidade é desapropriado para fins de interesse social.
O domínio do conhecimento tradicional, passado dos pais para os filhos,
ajudava muito na hora de plantar, colher, pescar, caçar e de curar, tornando a vida
no lugar, mais fácil, conforme nos conta S. Antônio:
“E quando se fala de médico, as pessoas faleciam aqui de velhice, é
claro que tinha doença, mas era de velhice. Então as parteiras
tratavam do nascimento, já tratavam dos remédios e também os mais
velhos tratavam da previsão do tempo. Eles diziam de janeiro à junho
o que ia acontecer naquele tempo, qual é o mês que iam fazer a
plantação de milho, de feijão, de mandioca, qual é os meses de ir
pescar, qual é os meses bom de criação também porque a criação
tinha que ser posto, colocado num mês que não tivesse trovoadas
senão os filhos morrem tudo na casca. Então eles tinham essa
106
tecnologia na prática que hoje estão fazendo em laboratório, a
gente sabia tudo na prática. Dizer de seis em seis meses o que ia
acontece
r no tempo, o que tinha que fazer, eles tinham assim uma
agenda pra toda essa quantidade (?) comprada. O mês de roçar
banana, o mês de plantar o milho, de plantar o feijão, o mês de
preparar a horta, a terra, o mês de fazer pescaria. Então é nesse
senti
do
que as pessoas viviam aqui depois da escravidão”.
(Ant
ônio dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006 Reunião
com o IBAP sobre cooperativis
mo).
O
aqui
era o lugar onde se aprendia desde cedo a respeitar o ritmo da
natureza.
Segundo
S. Antonio
,
tinha
-se outra lógica:
“Então a cobra as vezes que a gente achava por cima das roças a
gente pegava e jogava pro outro lado pra não mata entendeu? E a
gente convivia com a natureza e com os bichos e essa coisa toda. E
outra lógica que a gente tinha também, isso é bom de ser lembrado.
Hoje a gente tem aqui esse pessoal do meio ambiente querendo
controlar. A caça era feita, o pessoal pegava a caça dois meses
por cada ano. Galinha a gente (...) porque era procriação tava
criando daí por diante. E pegava nas maiores necessidades,
então você entrava na mata e encontrava dez, vinte tipo de animais,
mas nós era proibido pelo nosso pai de matar. A gente tinha arma
também né, o pai da gente proibia. Ele ensinava a gente desde
pequenininho, deste tamanho do Tales (aponta para o Tales)
ensinava a gente atirar. E pegava aquilo ali quando ia com eles e
também determinados: você vão pegar essa caça quando a gente
sair do mato e nenhuma mais. E se nós matasse pássaros nunca
mais nós ia pegar na arma. Então a gente tinha aquela vontade de
pegar na arma e ninguém mata pássaro, porque tinha muita caça e
daí por diante, peixe né”.
(Ant
ô
nio dos Santos
60 an
os
-
Caçandoca,
04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
As representações que foram expostas até aqui, falam a respeito da
relação do sujeito com o lugar do passado que, na maioria das vezes, é idealizado
107
por eles. Um lugar que sobrevive no imaginário da comunidade e que lembram com
saudade ao compararem com o presente. A seguir, selecionamos, para dar
seqüência ao nosso estudo, outras representações em que se verifica as
contradições existentes nas relações entre os sujeitos e o
lugar.
4.2.2. “
Nóis era muito feliz, mas ao mesmo tempo triste”.
Como podemos ver, nem sempre o passado é idealizado pelos sujeitos
.
Vimos alguns relatos das dificuldades da sobrevivência no local, mesmo quando se
referem ao passado com saudosismo. São os sentimentos de apatia e desejo pelo
lugar. Mas essa apatia, na maioria dos casos, não vem acompanhada do desejo de
abandonar o lugar, e sim como denúncia e reivindicação por melhorias. Denunciam
a ausência de serviços e das condições básicas de sobr
evivência.
Os problemas eram comuns, como por exemplo, em que muitas vezes o
ambiente hostil, cercado pela Mata Atlântica, era um problema para fazerem as
hortas no local,
conforme narra dona Anália
:
“A gente passava apertado assim, porque às vezes a gente plantava
e não colhia. A terra não dava, era muita saúva, a saúva comia
muito, cortava a planta da gente. Que nem mandioca, a gente
plantava bastante rama e as formiga cortavam, naquele tempo não
tinha veneno pra mata as formigas, você carregava (...) mato pra
botar (...) da roça. Eu com minha irmã quase que morremos de tanto
carregar mato pra desin (...) as danadas das formigas. Mas assim
mesmo a gente ficava, faltava, farinha vinha pra gente, faltava o
feijão, às vezes faltava o café, que nós tínhamos o cafezal e a
gente
colhia, mas não é todo ano que estava bom. Que quando é cafezal
por aí a fora é adubado e tudo. Lá não”.
(grifo nosso)
(Anália Miquelina da Conceição - Tabatinga, 18 de novembro de
2006).
Para D. Marciana e D. Sebastiana, neste luga
r
no passado, as condições
de vida nem sempre foram fáceis. O acesso era precário, o trabalho precoce, as
108
ausências de escola, do atendimento
à saúde, de funeral, estão presentes na fala de
D. Marciana que denunci
a a falta de infra
-
estrutura:
“Nóis era muito feliz, mas ao mesmo tempo triste... né. Porque
antigamente quando nóis nascemos aqui, nóis vivia aqui num tinha
estrada, era trilha. Essa trilha aí, nóis fazia até Maranduba a pé,
Tabatinga... levava farinha na cabeça pra vender lá na Mococa.
.. não
tin
ha como... o tinha condução. Então, nois com sete anos de
idade, nois já tava na roça, uma enxadinha na mão trabalhando
né. E
a noite fazendo aquela (...) com luz de lamparina. Nosso pai era
analfabeto, más ele cuidava de dar estudo pra gente aqui nessa
escola aqui. Até as quarta série nois estudamo, depois o tinha
mais como estudar porque não tinha mais... completo e... então...
foi um passado assim... eu tou com 63 anos e foi um passado
triste porque nóis via nossos asendo enterrado qui nem i
ndigente
... quando falecia alguém, ficava doente e não tinha como ir buscar
o médico derepente. Ficava doente à noite, como você ia procurar
um médico? Então, amanhecia o dia tava morto mesmo. Aí tinha que
por numa rede de cobertor e levar até a Marandu
ba
, no cemitério,
por dentro da trilha. Fazia uma rede com bambu nas costas ia
levando de quatro em quatro e assim, ia levando os morto lá,
chegava no buraco não tinha caixão, não existia caixão
...”
(grifo
nosso).
(Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAB sobre cooperativismo).
Na fala de D. Sebastiana as ausências de estrada e de atendimento à
saúde também são
reclamadas
:
“Depois que eu ganhei a menina não vi mais nada. Apagou que eu
não vi mais nada. Quando fui voltar era umas duas horas da tarde.
Naquele tempo não tinha estrada, o mar ruim, não tinha como sair,
não tinha como pegar a rede pra pegar a canoa pra ir Maranduba.
Então fiquei ali esperando e todo mundo esperando eu, porque eu
tava morta .
Pra você ver como é o que a gente passou aqui,
109
sacrifício... fiquei esperando, e foi Deus que fez eu voltar. E
depois que eu tinha ganhado a menina, deu muita hemorragia em
mim.
[...]
Eu sai
,
porque minha mãe queria ir pra lá né em Caraguá
,
ela comprou uma casa e levou eu pra ir morar com ela. Ela achou
uma casa que era legal pra ela comprar e ficar lá, meu pai
morava em Santos, nós fizemos a casa e estamos morando
na casa dela. Ela não quis ficar aqui porque ela enjoou né, já tava d
e
idade e muito doente, não tinha médico, não tinha recurso, não tinha
nada
, aí meu pai comprou essa casa em Caraguá, aí ela foi pra lá,
morar lá, e estou com ela até hoje, quarenta anos.
[...]
Antes não, sai
na rede, de casa até na praia, na praia até na canoa, na canoa pega
o carro na Maranduba pra ir pra Caraguá, Ubatuba ia a pé. Até
quando eu casei, cinqüenta anos que eu casei, eu vim de noiva na
Maranduba num caminhão de Ubatuba e fui a pé pro meu casamento
porque não tinha estrada
.(grifo nos
so)
Sebastiana Gabriel dos Santos, 68 anos. Caçandoca 6 de dezembro
de 2006.
Aqui, ao falar sobre as ausências, não estão apenas denunciando-
as,
mas também reivindicando os instrumentos e condições para superá-las e tornar
melhor a vida no local. Ausências de qualidade de vida, de infra-estrutura sanitária,
energética e viária, de transporte, de escola, mostram a outra face do lugar. Durante
muito tempo, a comunidade viveu marginalizada sem os benefícios garantidos pelo
poder público para parte da população brasileira. Foi nesse período, quando ainda
não tinham conhecimento sobre os seus direitos, que, devido à ausência de infra-
estrutura, muitos abandonaram o lugar. Hoje, mais familiarizados com o Estado e
as leis sociais, procuram reivindicar tudo o que lhes é de direito, como podemos
presenciar o ato de negociação entre a comunidade e as instituições
governamentais que estiveram presentes no dia da desapropriação da Urbanizadora
Continental. A pauta de reivindicações e a pressão sobre essas entidades eram
extensas, conforme veremos com mais detalhes no capítulo cinco. O fato é que a
comunidade não deseja mais viver sem energia, estrada, sem rede de água e
esgoto, sem um pedaço de terra para o plantio dos alimentos. Ao mesmo tempo,
estão preocupados com o que estas conquistas podem significar, que muitos
assimilam a abertura da BR 101 com a violência sofrida pela comunidade. O lugar
110
abandonado pelo poder público por tantos anos, aqui é denunciado, e as melhorias
reivindicadas, não para terem mais problemas como o ocorrido vinte anos com a
abertura da BR 101, mas sim para terem um pouco mais de conforto e qualidade de
vida, o que de fato acreditamos que podem conseguir se estiverem organizados,
unidos e conscientes da riqueza de pertencerem a uma comunidade remanescente
de quilombo.
A seguir, veremos as falas que se referem ao momento que marcou suas
vidas: a abertura da BR 101 e a expropriação.
4.2.3. “Vocês
precisam sair daqui”: A ruptura
com o lugar.
A expropriação parecia ter terminado com o fim da escravidão e com a
decadência do café em Ubatuba. A comunidade passou a se organizar para
sobreviver no lugar que, até então, produzia somente o café. Seu Antônio narra o
momento em que a fazenda Caçandoca passou a ser administrada pelos ex-
escrav
os:
“E tem uma coisa importante que a fazenda não foi tombada porque
existiu (...) um, dois, três, tinha quatro engenho, como tem hoje na
Fazenda da Caixa, tinha quatro engenho (...). E isso foi destruído
por motivo da... depois da assinatura da L
ei
Áurea, os fazendeiros
não quis tocar mais nada, mais os negros que tocaram. Mais teve
uma intervenção entre os filhos, os netos do fazendeiro não é, por
que os filhos mesmo trataram de dividir a responsabilidade. Ficou
aqui o Marcolino Luís Antunes, no sertão aqui da Caçandoca ficou o
Egidio Antunes, na Raposa onde mora o pai dele aqui, a mãe dele. E
no Saco da Banana ficou o Sinfrônio. Então eles dividiram
responsabilidade na administração da fazenda. Mas na morte deles,
ficou meu avô que é José Antunes de que é o mesmo
Marcolino (...). Ficou esse João Antonio da Mata e tua família, e ficou
o Antonio Antunes de que chama de Antonio Madalena que é
o pessoal do Dito Madalena. Esses três são três encrenqueiros.
Porque eles não quiseram que os escravos continuassem na
fazenda, porque eles achavam que (...) continuar a escravidão da
111
mesma forma. Então foi uma briga, um desentendimento e aonde os
negros então disseram assim: nós não, vamos tomar a fazenda. Eles
começaram a.... é... fazer uma diversidade de plantação. plantava
o milho, feijão, a mandioca, e deixaram pequenas glebas de café
para manter e aquelas bananas, daí por diante. Então os negros
fizeram uma manobra com ele e trataram de plantar tudo pra
sobrevivência deles e não
foram (...)”.
(Antonio dos Santos
60 anos -
Caçandoca,
04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
As famílias negras que foram formando a comunidade têm origem na
união da escrava Tomásia com um dos filhos do fazendeiro, Isídio Antunes; da
escrava Madalena, com o outro filho, Simphonio; das escravas Iderência, Quitéria e
Verônica com o último filho, Marcolino. Por isso, é comum na comunidade
recorrerem a matrilinearidade, quando atribuem às famílias o nome destas mulheres:
os da
De
rência
,
os da
Tumásia
, os
Madalena
. Segundo o relatório do ITESP (2000),
a relação destes nomes com os dos antigos proprietários da Fazenda Caçandoca,
esclarece que os quilombolas são os verdadeiros herdeiros dela. No relatório
apresentam um trecho do inve
ntário de 1881 em se menciona estes nomes:
[...] Pelo procurador do inventariante foi dito que não tendo os
herdeiros recebido em tempo os dotes nas doações, não há no
presente inventário nada a conferir. Requer [...] na menção do seu
contribuinte se lançasse metade da fazenda, metade das terras da
Cassandoca aos escravos Gabriel, Angélica, Thomázia e Gertrudes
[...] Requer [...] também [...] os filhos do ... Constituinte os escravos
Tolino, Albina e Luiza completando
-
se os seus quinhões.
Desse modo, são dois os documentos que garantem legalmente a posse
do território da Caçandoca: o inventário de 1881 e o artigo 68 do ato das disposições
transitórias da Constituição Federal de 1888. Mas ambos não teriam sentido se não
fossem o resgate documental e, pri
ncipalmente a memória.
Neste resgate é possível verificar que foram os negros que,
coletivamente, assumiram a administração da fazenda. Durante anos viveram uma
vida privada de qualquer benefício social. Por isso, entendemos que, nesse período,
112
viveram às margens da sociedade brasileira. Enquanto o desenvolvimento era
promovido em alguns lugares do país, a Caçandoca, entre outros, não usufruiu
sequer de uma fatia dele. Referimos-nos ao verdadeiro sentido de desenvolvimento:
o da promoção do bem-estar e conforto das pessoas. A ausência dos benefícios
sociais sicos para a sobrevivência e o conforto da comunidade, fez com que
muitos moradores da Caçandoca saíssem à pé em direção aos lugares centrais para
venderem suas bananas, peixes, entre outros produtos. Mas as dificuldades e
precariedade eram tantas que muitos. que viviam sob estas condições, foram
levados a deixar o lugar. Obstante, podemos dizer que, esse foi um caso de
expropriação camuflada de “saída espontânea”. Isso, para muitos, não significou a
melhoria da qualidade de vida, visto que fora, além de marginalizados, foram
também discriminalizados. Mais tarde, ao perceberem que as condições eram ainda
piores, alguns desejaram retornar ao lugar. Os agentes dessa expropriação não
tiveram,sequer o trabalho de mostrar as suas caras. Dessa expropriação originou-
se
o conflito interno, entre os que deixaram e os que não deixaram o lugar.
O
utros
negros permaneceram por ali durante muito tempo, mesmo diante
às dificuldades com a falta de infra-estrutura, atendimento a saúde, entre outra
s.
E
quando a abertura da BR 101, na década de 1970, parec
ia
significar melhorias na
qualidade de vida, chegaram, com ela, os especuladores imobiliários. Os moradores
do
Quilombo Caçandoca passou a sofrer constantes ameaças p
ara deixar
em
o local.
A construção da BR 101 foi promovida pelos militares com a intenção de
assegurar uma saída estratégica das Usinas de Angra dos Reis em caso de
acidente. Após a construção, as praias de Ubatuba, até então de difícil acesso,
passaram a ser alvo de cobiça das empresas e dos agentes imobiliários. Com a
praia de Caçandoca não foi diferente. No final de 1970, c
hega
m ali os primeiros
agentes. Esse momento de tensão é denunciado nas falas dos remanescentes do
quilombo Caçandoca. D. Antonia narra o momento em que foi obrigada a deixar o
local:
“Foi o Nathanael com o Mar
inho
. Era pra nós ficar ali e não
saísse. Todo mundo que eles pagava saía e eu não saí, não vou
saí. um dia o Mari
nho
fez um negócio com nós, eu morava
em cima onde mora o Altamir, em cima. chega o Mari
nho
lá:
vocês não fazem mais a casa aqui, o Marinho com o Nath
anael,
113
passa a morar na casa do compadre (...) que ele está pra Santos
porque ele esta pra Santos, lá em Santos, porque o pai está doente e
ele não (...) depois eu passei pra casa do compadre (...), até o
compadre (...) chegar. (...) Vou começar a chorar outra vez (
quase
chora
). o rapaz e o comprador (...) chegaram, eles: “tem que
sair daqui, tem que sair daqui, porque não tem lugar
pra todo mundo,
porque eu comprei isso aqui”, sem eu saber, porque eu era
analfabeta, não sabia de nada, meu marido também não sabia de
nada. E o Nathanael com o Mari
nho
todo dia lá, todo dia. É o
Nat
ha
nael que mora na Maranduba, Natanael
Giraud
, filho
do
Giroud
que mora na Maranduba. A mulher dele que era a minha prima, que
chama cia. Essa morreu. Ele era casado com a minha prima.
E ele com esse tal de Zé Mari
nho
que foi fazer embrulhada na
Caçandoca. “Aí porque vocês precisam sair daqui, precisam sair
daqui”, eu dizia pra ele: eu não saio, eu não saio eu não saio.
Queriam que a gente saísse pra deixar o lugar pra eles, deixar a
Caçandoca pra eles. Contaram pra eles que a Caçandoca era a
maior riqueza, e a gente que é bobo não sabe das coisas. Po
rque
aquilo ali é nascido do escravo, aquilo ali. É da escravidão, a riqueza
maior onde todo mundo podia trabalhar e podia ter tudo na vida.
chegou o embrulhão fazendo isso. eu disse assim: eu não saio,
não saio, não saio”.
(Ant
ônia Miquelina Jacinta da Conceição, 79 anos, Olaria
Caraguatatuba, 18 de novembro de 2006).
Segundo o relatório do ITESP (2000, p. 35), esta segunda expropriação
ocorreu com o apoio deste “primo” de D. Antônia, Nathanael Giroud, que, na época,
possuía um armazém na praia. Este teria ajudado à José Marinho da Silva (Zé
Marinho, citado por D. Antônia), Joaquim Magalhães e à José Rodrigues, abordar os
moradores da Caçandoca. Estes estavam amando da Urbanizadora Continental que
tinha Mário Gonçalves como representante. Ele se afirmava ser dono das terras e
que todos deveriam sair dali, porque ele as tinha vendido. Para os moradores
38
,
Nathanael foi peça chave para essa venda, visto que usou das dívidas dos
moradores no armazém para a venda de parte do território. No mesmo r
elatório
38
MERLO, M. (2005, p. 19
99). Conforme se pode ler no depoimento de um jovem negro
114
consta a informação de que Mário Gonçalves, no dia vinte e cinco de fevereiro de mil
novecentos e setenta e seis, comprou uma área de terra da Empresa Territorial
Maranduba e, no mesmo dia, vendeu-a à Urbanizadora Continental. Quando o
processo de desapropriação da comunidade foi levado à justiça, a Urbanizadora
alegava ser dona de 410 dos 890 hectares reconhecidos como da comunidade do
Quilombo Caçandoca. Diante da sobreposição de títulos, o Estado levou cinco anos
para desapropriar a Urbanizadora Continental, pagando à ela uma alta indenização,
conforme veremos no capítulo cinco. O momento da expropriação da comunidade de
seu território é reforçado com a fala de S. Miguel e D. Ondina:
Miguel
:
Queimaram duas. Uma minha outra da minha mãe, duas
cas
as lá. A D. Maria que chegou lá com policiamento, eles é que me
valeram lá, porque eles me colocaram numa máquina de
carregadeira, jogaram eu e trouxeram, dois cara da Continental.
Trouxeram até a Maranduba pra falar com o Zé Mari
nho
. O Ricardo .
(se refere ao filho da D. Ondina) conhece o Mari
nho
. Ele
mandava queimar tudo. Agora já morreu aquele cara lá, aquele lá foi
uma pedra para s lá. Aí essa turma foi lá e queimaram tudo,
queimaram a minha casa, queimaram a casa da minha mãe e
ficou um ranchinho que depois que saíram é que fizeram
outra casinha pra morar. tiraram a turma da Caçandoca, saíram
tudo, escapou s que ficou no cantinho da Caçandoquinha e
quando foi agora no finzinho de tudo s foi obrigado a sair. Eles
disseram que estava vendido e que não sei o que, e fomos
obrigados a sair de lá. A sorte é que eu peguei um dinheiro, tinha
um dinheirinho lá que deu pra comprar essa casinha, um trocadinho.
Esse foi da Caçandoquinha, não foi nem da Caçandoca que eu
pegue esse dinheiro.
Ondina
:
Foi assim mesmo, nós saímos, compramos essa casinha
aqui e ficamos aqui até agora. Não queria sair não, mas fui
obrigada. O homem vinha e mandava a gente, expulsar a gente e
expulsava e botava tudo pra fora, botava as coisa e a gente saia e
eles
já tacavam fogo na casa. A casa era tudo de sapê. Aí o
caminhão chegava...
Miguel
:
eles levaram tudo no caminhão de mudança. Ia jogando
as coisas tudo pra fora ia botando no caminhão e botando fogo nas
115
casas. Eu tenho saudade da Caçandoca, às vezes eu fico aí parado
e fico lembrando, tão gostoso lá na praia.
(Ondina Antunes
e
Miguel da Mata Amorim, 68 anos Sertão da
Quina 11 de dezembro de 2006
).
Numa visita à comunidade no dia 12 de agosto de 2006, fui embora do
q
uilombo
de carona com a da D. Gabriela e S. Antonio. No carro eles me contaram
um pouco da história de quando foram expulsos da Caçandoca. Segundo eles, entre
1960 e 1970, alguns agentes imobiliários chegaram à Caçandoca e fizeram uma
proposta de compra de suas terras aos moradores, e ficou acordado que a compra
não implicaria na retirada da comunidade, tanto foi que não foi feito nenhum contrato
e não assinaram nenhum papel. Alguns fizeram o acordo, mas outros não. Passado
algum tempo, os representantes da Urbanizadora pediram para que a co
munidade
se retirasse da área, gerando grande tensão na comunidade. Quando viram que não
iam sair, os agentes vieram vestidos de policiais armados e mandavam as pessoas
se retirarem. A medida que os moradores deixavam suas casas, os “policiais”
ateavam fogo às casas. Ficaram desalojados na beira da estrada sem eira nem
beira”. Alguns foram para Caraguatatuba, outros para o Guarujá, outros para Santos,
entre outros lugares. Para o S. Antônio esta é a grande causa da desunião do grupo.
As representações sociais acerca do momento da expropriação se
relacionam entre si e confirmam a violência da expulsão. Porém, D. Rosa tem outra
versão desse momento, apesar de que, em alguns momentos, sua fala entrecruza
com as demais. Segundo ela:
(...)
E foram saindo um atrás do outro, um atrás do outro e foi
ficando deserto e o pessoal que ficaram num tinha casa assim...
mais debilitada, que não tinha casa boa, passava pra casa de outro
que tava melhor. Assim foram indo, trocando não é? Um foi morar
nas casas... nas terras de um, outros foram morar nas terras de
outro, ficou aquele vai-e-
vem.
Porque quando as pessoas que
ficaram nas terra, que não entenderam, que venderam... . Teve uma
que era assim: você tinha uma porcentagem de dinheiro se você
vendesse e saísse, você ganhava mais, e se você vendesse e
ficasse na terra você ganhava menos. a pessoa ficava na terra e
depois tinha um tempo resolvia sair ai eles pagavam a cadernetação
116
pra pessoa sair. teve muita gente que aconteceu isso. E,
então...(...)Quem não saiu... Ficou... sem... com aquela quantia que
tinha como ficar, porque quem ficou mais o pessoal da Raposa né,
os do Saco da Raposa foi os que ficaram.
(...)
Ah... eu... na minha
opinião, que eu tenho certeza, nunca vi ninguém ter sido expulso
daqui, todo mundo saiu por livre e espontânea vontade. Eu tenho
certeza absoluta: ninguém saiu... quem saiu, vamos supor,
quem
saiu daqui por último que fala que, que foi expulso das terra foi a
Dona Antônia, mas a Dona Antônia ela saiu da casa dela pra ir
morar em outro lugar que não era dela. E ela recebeu uma quantia
também pra comprar fora daqui.
Isso às vezes sabe Tem... que
muita coisa . tem muitas coisas que as pessoas num... sabe?
Passa pela cabeça uma imaginação...que é uma coisa que foi
expulso da terra, que o pessoal tocaram, queimaram a casa. Quem
queimou a casa, quem que derrubava a casa aqui era o pai da Maria
dos Nove, que nós chamamos Maria dos Nove, o pai dela que
derrubava as casa, era o pai da Benedita também.
Eles
derrubavam porque eles trabalhavam pra firma .Eles tavam
trabalhando...Pra Continental. Não era bem a Continental naquela
época, naquela época era a... um senhor chamado Magalhães que
ficou tomando contas das terras porque ele comprou. Quem
comprava as terra era o Mário Gonçalves, o Mário Gonçalves que
comprava. Depois é que o Mário Gonçalves fez negócio com a
Continental, mas quem era o dono das terra mesmo, quem
comprava e pagava era o Mário Gonçalves. Foi... é... cada um tem
uma história pra contar né?
Eu conto a minha porque eu sei que foi
assim porque eu fiquei aqui eu vi que foi assim. Agora os outro que
ta tem imaginação, fala o que quer.(Rosa Gabriel Penha Silva, 70
anos
06 de dezembro de 2006).
A D. Rosa fala de uma venda que não é negada pelos outros. Uma venda
que pelo que parece foi induzida que as pessoas que ficaram nas terra, que não
entenderam que vender
am
. O seu depoimento reafirma o de D. Antônia e confirma a
história de que realmente havia pessoas contratadas pela Continental para retirar a
população do local. Confirma a o nome de Mário Gonçalves como o comprador e
negociador das terras com a Empresa Continental. Sabemos que a negociação de
117
terras dos agentes imobiliários com a população caiçara ao longo dos anos foi dada
de forma arbitrária, muitas famílias que não sabiam ler nem escrever eram induzidas
a colocar o polegar num papel em branco, acreditavam na palavra do agente, visto
que, negociavam dessa forma entre si. D. Rosa trabalha no condomínio do Pulso,
lugar pertencente à antiga área da fazenda e portando, sujeita a desapropriação.
Durante trinta anos D. Rosa teve seu emprego garantido ali e para ela, ele
representa a estabilidade e garantia de um salário para sobreviver a cada mês. Para
ela, ninguém foi expulso do local, mas também ela não desmente o fato das casas
incendiadas e até cita o nome das pessoas que foram contratadas para o serviço
pela Urbanizadora Continental.
Para
S. Antonio, a expulsão significa a repetição da história dos
ancestrais
:
“Mas a gente, como diz a Márcia, tem uma história bonita pra quem
vem da universidade e pra quem ta aqui hoje, mas é uma história
muito triste que nossos antepassados passaram e nós tivemos que
passar isso tudo novamente agora, neste século aqui e essa coisa
toda essa (...)”.
(Antonio dos Santos
60 anos -
Caçandoca,
04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
O novo rompimento com o lugar significou a desmobilização da
comunidade, além de causar muita dor e sofrimento aos seus membros. Para D.
Ondina e S. Miguel, que deixaram o local e vivem atualmente no Sertão da Quina
39
,
a vida econômica fora da comunidade se tornou mais difícil.
Ondina
: Agora não é fácil, se comprar um quilo de farinha, paga
um precinho.
Miguel
: É que aqui é igual na cidade, tudo comprado . Tudo. Se
tiver dinheiro compra se não tiver... Lá a gente se virava, ia na
costeira pegava um marisco, ia na costeira e pegava um peixe.
Pegava minha canoinha e pescava, a gente se virava. Ia no mato
e pegava um palmito, que aqui a gente não pode, se fazer isso o
39
Bairro localizado, seguindo a BR 101, do lado oposto da Caçandoca.
118
pesso
al não deixa. Então a gente fazia isso e se virava. não
passava fome não.
(Ondina Antunes
e
Miguel da Mata Amorim, 68 anos Sertão da
Quina 11 de dezembro de 2006
)
Tratar do momento em que foram expulsos é um assunto muito delicado
para S Antonio e sua irmã D. Marciana. S. Antônio se emociona quando fala da
morte da mãe que ocorreu após a expropriação
:
“Quando tudo aconteceu a minha mãe, pobrezinha foi parar no
hospital. Estava muito ansiosa, queria muito voltar pra Caçandoca. E
quando ela morreu, o médico disse que ela tinha morrido de
ansiedade. (quase chora)”.
(Antonio dos Santos
60 anos -
Caçandoca,
04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
O abuso e ganância da Urbanizadora Continental resultaram em perdas
irrepar
áveis. Segundo D. Sebastiana, os representantes da Urbanizadora fecharam
a estrada de acesso à comunidade. Ninguém da comunidade podia atravessar. Ela
se emociona ao falar do momento em que perdeu a irmã sem poder fazer nada:
“O que a gente passou aqui não foi brincadeira, todo mundo sabe o
que a gente passou. Muita humilhação. Tudo que aconteceu de ruim
que veio essa firma da Continental, a gente não tinha como sair
daqui. Eles não deixavam, tinha uma porteira ali que justamente a
minha irmã morreu ficou embaixo do de.... mangueira, lá
embaixo daquele... chapéu de sol, né? embaixo na praia e eles
não deixaram abrir a porteira pra passar com minha irmã. E nisso
quando minha irmã chegou no hospital já estava em estado de coma.
Minha irmã é a
mãe da Maria Conceição” (D. Dica).
Sebastiana Gabriel dos Santos, 68 anos. Caçandoca 6 de dezembro
de 2006
119
A perda do território para alguns significou também a perda de entes
queridos. Nessa época a Urbanizadora tinha iniciado a construção de um
condomí
nio
em frente à praia do Pulso. Hoje, é um condomínio de luxo, com casas
de veraneio incluindo casas de juíz e desembargador (Fotos 1
1
e 1
2
).
Foto 1
1
Condomínio e
Praia do Pulso.
(F
otos: Elaine Branco, junho de 2006)
Foto 1
2
120
C
asas de veraneio do Condomínio do Pulso.
Segundo S. Antônio, a área do condomínio do Pulso não foi reivindicada
no processo de desapropriação, justamente, devido à presença, no local, das casas
des
tas autoridades, o que significaria uma batalha acirrada e demandaria mais
tempo. Diante as angústias, ansiedades e desesperanças da população preferiram
lutar, primeiramente, pelos duzentos hectares ocupados pela comunidade em
Caçandoca.
Tudo o que pudesse lembrar a comunidade foi destruído pela
Urbanizadora Continental. S Antônio, através de sua fala, reconstituí o lugar,
torna
presente o que a
Urbanizadora destruiu
:
“E no ano 70, como a Márcia falou isso aqui não tinha essa
vegetação aqui. Você dormia era tudo verde e quando acordava era
um perfume, era uma nuvem branca em tudo esse território. Porque
era laranja, o café, tudo florescia numa noite. Então era aquela
maravilha que o via de (...) e as abelhas cantando e a gente
tirando mel. Se vocês vissem gente essa coisa estaria por terra, por
que era uma coisa incomparável. Então não tinha essa mata. A mata
que tinha era café, banana, era a laranja, o limão, era a jacá, era
121
tudo que vopossa pensar. O abacate, laranja, goiaba, maracujá,
manga caju, chuchu, amora. Amora que tem tinha é gigante. Tudo
eu você tinha tudo que você possa imaginar era da mata que está ai
hoje era a mata que tem hoje. Essa mata foi criada porque os
grileiros invadiram, não deixaram o pessoal, cortaram as plantações
todas e daí não pudemos mais recuperar”.
(Antônio dos Santos, 60 anos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
Muitos acabaram recebendo uma quantia irrisória de dinheiro para saírem
do lugar. Diante a pressão dos representantes da Continental, os que resistiram,
acabaram sendo
expulsos violentamente. D. Antô
nia se recorda deste momento com
muita dor. Apesar do sofrimento, as lembranças e a fala de D. Antonia denunciam os
acontecimentos:
Quando chegou um dia: arruma café, arruma isso, porque nós temos
que sair, que nós temos que arrumar. Eu disse; eu não vou sair, eu
não saio. chegou esse Nathanael com o Mari
nho
armados. Os
dois armados na minha casa. Eu bati o disse que não saia, o,
não saio. E o Oliveira estava lá, o compadre Oliveira estava lá,
aquele que mora na Caçandoca. o Nathanael enganou o
compadre Oliveira: Ah compadre Oliveira, que nós vamos pagar
mais”, carregaram o compadre Oliveira pra Ubatuba. E eu fiquei
dentro de casa batendo o pé, dizendo que não saia. veio os dois
armado, encapuzados, que eu não sei quem é. Não posso contar
quem é, tava encapuzado. A senhora tem que sair, e eu: não saio,
quero meu dinheiro. E eles: “dinheiro não tenho, dinheiro vão pagar
na casa do Nathanael. encostou um caminhão, um caminhão
fechado, mas fechado inteiro. Aí, mais com eu, estava minha nora,
estava o Altamir e embarcaram tudo dentro do caminhão.
embarcaram (...), embarcaram mais as coisas, ficou dois sacos de
café do lado de fora, ficou um pilão, ficou um gatinho, ficou tudo.
embarcaram tudo ali ficou o gatinho (...) Aí, me vontade de chorar
(segura para não chorar). embaraçaram tudo ali, eu fui ver estava
tudo fechado. Eu que fui na cabine, eu com minha nora que estava
grávida. quando cheguei na cabine, no alto da Maranduba e eles
122
ficaram pra trás. E (...) de pato, botemos tudo dentro de um (...), a
mãe dela (aponta para a nora Cidinha) e levou tudo pra Raposa,
cada pato desse tamanho assim, porque nós criávamos muito pato.
Quando
chegou na virada do morro da Caçandoca pra Maranduba,
aquela fumaceira. Daqui a pouco estava outro caminhão atrás, o (...)
com a família também fizeram do mesmo jeito, estava o Estevão (?),
também a mesma coisa, um atrás do outro no caminhão tudo atrás
do
outro. Quando vi aquela fumaceira, aquela fumaceira, fumaceira!
Sei que queimaram a casa toda. Queimaram meus dois sacos de
café, queimaram o pilão, queimaram o gatinho que tinha lá.
Queimaram as minhas coisas,
queimara
m tudo. Que era para que se
viesse voltar pra buscar, não deixaram nada pra buscar mais. Foi
isso minha filha, que até nem eu sei. Levaram a gente pro terreno do
Na
th
a
na
el sentado num pedaço de pau. Aí, chegaram com
sessenta reais, eu me lembro até hoje, que disse que era muito
dinheiro, deram na o do meu marido, nem na minha mão o
deram e fiquemos ali a noite inteira. Eu quero saber do meu dinheiro.
“Ah não tem dinheiro”. o Nathanael que (...) com sessenta reais e
deu na minha mão, sem ter ninguém, sem ter ninguém, sem ter
ninguém.
e agora, como é que nós íamos fazer, como é que nós
íamos fazer, que não tinha lugar pra nós ir? tarde da noite me
levaram pra casa do meu irmão na Tabatinga. Chegou no outro dia,
tiraram eu de e levaram ali pra Getuba, ali uma casinha podre que
me arrumaram ali, que botaram nós. E que eu sei dizer é isso. Os
outro tudo saiu na frente, e eu fiquei pra trás. Botaram fogo na casa
pra gente não voltar mais.
(Ant
ônia Miquelina Jacinta da Conceição, 79 anos, Olaria
Caraguatatuba, 18 de novembro de
2006).
A abertura da BR 101 é representada como o marco de profundas
transformações na vida dos moradores da Caçandoca. Além da ruptura com o lugar,
ela significou a destruição do patrimônio material da comunidade
.
Segundo D.
Marciana, com a estrada tud
o foi derrubado:
“... abriram uma estrada aí, derrubaram nossas ruínas, que nóis tinha
um engenho aqui aonde os escravos fazia a pinga antigamente,
123
aonde... casa de farinha... então quando teve... que eles avançaram
pra entrar aqui pra tirar nóis daqui eles derrubaram tudinho essas
ruínas e jogaram ali na estrada, fizeram aterro de estrada, destruíram
tudo as nossas ruínas”.
(Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
E nestes trinta anos de luta, o momento de que D. Marciana não se
esqueceu foi quando o juiz se posicionou contrário ao direito da comunidade à terra.
Segundo ela, neste dia muitos perderam as esperanças de um dia retornar ao
território:
Então, essa é uma luta de quase trinta e poucos anos de briga né...
estamos aqui hoje, graças a Deus, dizer que foi um milagre, pra is
ta aqui foi um milagre de Deus, porque por dinheiro mesmo nóis não
taria mesmo, porque os ricos m muito dinheiro né... e quando teve
uma audiência no Fórum, em Uba
tuba
, o juiz não olhou nosso
documento não, falou que não olhava, ele via o que tava no jornal
não olhava documento de pobre não, falou que nóis tava de invasor
e o juiz saiu rindo: “Pra que nêgo quer terra?” Ainda riu na nossa
cara. E nós tamo aqui na luta, na guerra e, graças a Deus, nós
vencemos, nós não tamos em terras alheias tamo dentro da lei,
fomos criados aqui, tamos criando nossos netos, filhos e por
diante (Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre c
ooperativismo).
Diante da dor e do sofrimento da expropriação, seguido da humilhação
perante as autoridades judiciais, muitos acabaram saindo e não voltando mais. A
família de D. Sebastiana foi uma delas:
“E com isso a gente foi ficando chateada com o lugar e acabamos
saindo. Larguemos tudo aí. Fomos embora. Inclusive minha sobrinha
a Léia que mora ali onde que eu morava. Larguei tudo, fui embora,
porque o sofrimento era demais. E essa firma entrou aí pra arregaçar
mesmo. Então hoje é só alegria. Quem pensava? Coitado da tia
Antonia, nóis mesmo sendo chamado de sem-terra. Ta vendo que a
124
terra era nossa, sendo humilhada pelos outros. Tudo mundo falava oi
que bando de bobo, bando de nego bobo. Sabe quando vocês vão
ganhar isso aí?
Sebastiana Gabriel dos Santos, 68 anos. Caçandoca 6 de dezembro
de 2006
A territorialidade, enquanto sentimento de pertencer a aquilo que lhe
pertence, está presente nas representações dos remanescentes do quilombo da
Caçandoca. Para S. João da Mata, junto com território, for
am herdadas as lutas:
“Ele (o avô) ficava contando pra nóis do passado dele, das lutas que
vinha da terra. E ele falava assim pra mim: “o ta cansando.
Logo o vô vai embora. (...) fica na terra, e vão ficar lutando pela terra.
Precisa lutar pra poder
vencer. Que a terra é pra ficar pro cês porque
agora nóis tamo véio de despedida. E o levou muitos dias que ele
disse isso aí, ele morreu. E isso ficou batendo na minha cabeça e
tudo as coisas aqui na terra tem que lutar, tem que lutar pra poder
vitó
ria, consegui. Os avôs dele falou pra trás pra eles e eles pra nóis
(.
..)”.
João da Mata
, 55 anos
-
Caçandoca 4 de novembro de 2006.
D. Sebastiana manifesta o orgulho de pertencer ao lugar em que viveu
toda família:
“E como eu me sinto quilombola! Porque meu pai foi nascido. Meu
pai faleceu faz quatorze anos. Quando ele faleceu, ele tava com
noventa e seis anos de idade. Ele tava agora com cento e poucos
anos já. Ele foi nascido e criado aqui. Ele a minha e também,
minha , meus avós, meu sogro, tudo é daqui, eu me sinto como
uma quilombola”
.
Sebastiana Gabriel dos Santos, 68 anos. Caçandoca 6 de dezembro
de 2006
Para D. Marciana, o lugar que um dia pertenceu aos seus avós e pais
será dos seus filhos e netos:
125
“E um dia que eu for embora pelo menos eu tenho (um lugar) pros
nossos neto, pro nossos filhos, meus irmãos tão aqui, meus bisavós,
meus tataravô né”.
(Marciana dos Santos Caçandoca, 04 novembro de 2006
Reunião com o IBAP sobre cooperativismo).
A territorialidade evidencia-se no desejo dos pais e dos avós e é
repassada aos herdeiros para que eles possam usufruir de melhores momentos não
vividos por eles. Para muitos uma vida melhor só poderia ocorrer com a conquista do
território.
Após todos estes anos de luta, os quilombolas de C
açandoca
conquistam
o seu território. Quando estávamos no final da pesquisa, conseguimos acompanhar
esse momento marcante na história da comunidade. Por isso, decidimos escrever
mais um capítulo a respeito desta conquista e do seu significado para a comunidade.
A
seguir
, o leitor irá encontrar as representações sociais destes sujeitos a respeito
da conquista do território, juntamente com a nossa interpretação e análise do
processo.
126
Capítulo 5. A conquista do território do Quilombo Caçandoca e a construção
da ident
idade.
No dia 6 de dezembro de 2006, aconteceu o que para muitos era
inesperado: o território do Quilombo Caçandoca foi desapropriado para fins de
interesse social (foto 13). Foi a primeira área do Estado de São Paulo desapropriada
em função de uma comun
idade de remanescentes de quilombo.
Segundo a chefa de divisão de ordenamento de estrutura fundiária do
INCRA, Telma Cardoso, para a Urbanizadora Continental não há recurso válido
nesse caso de desapropriação. O que pode ocorrer questionamento sobre a
ve
racidade do título da propriedade apresentado pela Urbanizadora e também sobre
o valor da indenização na Justiça. Para a desapropriação dos duzentos hectares de
terras onde reside a comunidade, o INCRA depositou em juízo a indenização de R$
4, 17 milhões.
Caso a justiça verifique que as terras são devolutas, o dinheiro voltará
aos cofres do Estado.
Foto 13
F
o
t
o
:
E
l
a
i
n
e
B
r
a
n
c
o
Telma Cardoso (INCRA) na cerimônia de desapropriação do território para fins de interesse social, momento
emocionante
e histórico para a comunidade. Ao lado, o presidente da Associação, Sr. Antonio dos Santos.
(06/12/2006).
127
Com a desapropriação, a comunidade poderá finalmente colocar em
prática os seus projetos de futuro de uma vida melhor. A terra garantida, longe das
ameaças de expulsão, significa a existência de um espaço material para que os
remanescentes do Quilombo da Caçandoca possam construir suas moradias, suas
hortas, seu espaço de lazer e de trabalho. A o sonhada posse do território é
representada pela estabilidade no lugar. Isso significa que poderão concretizar no
lugar os sonhos e aos projetos deixados pelos seus ancestrais.
no dia da desapropriação, a comunidade se reuniu com as autoridades
locais, como o prefeito da cidade, senhor Eduardo sar, e representantes da
Secretaria do Meio Ambiente e também com autoridades de secretarias e
instituições do governo do Estado de São Paulo e representantes do Governo
Federal. Essa reunião foi promovida com a ajuda do Instituto brasileiro de
Administração Pública (IBAP), e juntamente com os outros quilombolas das
comunidades de Ubatuba, os da Caçandoca sentaram com as autoridades para
negociarem uma agenda de trabalho. Com o território garantido, os moradores da
comunidade de Caçandoca reivindicaram a solução dos problemas como a luz,
saneamento, moradia, asfalto, autorização para desenvolverem a agricultura e
construírem e arrumarem suas casas.
As outras comunidades, vendo a desapropriação da Caçandoca, ficaram
motivadas a acreditarem numa futura conquista de seus territórios, e se aliaram ao
pessoal do Quilombo Caçandoca, na requisição de melhorias para os seus
Quilombos. Algumas dessas melhorias, como energia elétrica e asfalto, sempre
foram travadas por órgãos e pelas instituições públicas, principalmente pelo DEPRN
(Departamento Estadual de Proteção dos Recursos Naturais), órgão da Secretaria
do Meio Ambiente. Por se tratar de uma área sobreposta à Mata Atlântica, a
comunidade do quilombo Caçandoca, assim como as outras, sofre pressão das
instituições vinculadas a Secretaria do Meio Ambiente. Por esse motivo, diversos
membros da comunidade tiveram que deixar o local e outros têm de trabalhar fora
dali para garantir o seu sustento. Uma vez com o território garantido, poderão exigir
melhorias para o lugar que sem a preocupação de serem desapropriados
novamente.
Feita a negociação das melhorias para o quilombo, dona Antonia
finalmente poderá concretizar seu sonho de retorno à comunidade, que o que lhe
impede é a ausência de serviços e infra-estrutura, como o atendimento médico,
128
escola e estrada asfaltada. Para ela, o fato do marido se encontrar adoentado, a
vida sem o mínimo de infra-estrutura tornaria a vida ali difícil. Ela nos conta da
situação do marido, da ausência de infra
-
estrutura e do sonho de voltar:
“Meu marido teve derrame, derrame aqui nas costas, sabe. O corpo
tudo é bom, não sei, não sei como é aquilo. O médico vem aqui, deu
remédio pra ele, e ele joga o remédio tudo fora. Essa noite eu não
dormi. Se não fosse eu aposentar, eu estava numa vida.
.. Quando eu
trabalhava, esse meu filho que me ajudava, o Altamir. Quando eu
não tinha nada, ele ia lá me dava o sabão, me dava o feijão, me dava
tudo. Agora eu criei meus filhos, pus eles numa escola lá, e graças a
Deus todos eles sabem ler. E as filhas deles também, pus todas elas
lá. Agora elas levou dois anos aqui comigo em Caraguatatuba
estudando. É uma neta muito boa pra mim. (...) a Didi também, mais
a Elza foi uma neta que uma beleza. Estudaram (na Caçandoca),
mas como o tinha faculdade (
se
refere
ao ensino médio),
passaram para Caraguatatuba. Ela levou dois anos comigo lá, não foi
Cidinha? completou os estudos dela lá. O outro também veio (...),
mas quando ia pra escola, chegava lá, ia trepar no de
amendoeira, ia apanhar amendoeira, quando via estava com a roupa
tudo cheia de ciscos? Vinha o professor e mandava um bilhete pra
mim, porque eu não mandava o menino pra escola cedo. Eu
mandava ele pra escola, mas ele ficava subindo o muro pra ir na
Madureira e não ia pra escola. A Didi também foi, a Didi teve um ano
só, não chegou completar o ano dela, mas foi muito bom. Eu queria
que entrasse logo um pessoal bom lá, que tivesse uma casa boa, um
confortável naquele lugar, pra tirar aquelas ruindades de lá. (
grifo
nosso)
- (Antonia Miquelina Jacinta da Conceição, 79 anos, Olaria
Caraguatatuba, 18 de novembro de 2006).
D. Antônia se refere a um tempo em que a escola se encontrava em
funcionamento, porém, quando os filhos e netos terminavam a quarta série, tinham
que sair da comunidade para estudar. Atualmente, a escola se encontra fechada e
quando as crianças e adolescentes saem para estudar fora da comunidade, se
deparam com o problema do ônibus, que chega à comunidade nos dias em que
não chove e por isso acabam tendo a freqüência comprometida na escola. Além
129
disso, as instituições educacionais não têm estrutura para tratar das diferenças e,
muitas vezes, os jovens da comunidade, no contato com o modo de vida citadino,
sem referenciais que valorizam e fortaleçam a vida cultural e econômica na
comunidade, passam a abandonar a comunidade. Com as escolas da comunidade
funcionando a favor da comunidade, respeitando as suas particularidades, os jovens
poderão optar com consciência pelo modo de vida preferido.
Na data da desapropriação, houve o incêndio do salão da igreja católica
da comunidade. Esse fato acabou por deixar todos que estavam ali presentes muito
preocupados, já que havia a possibilidade do incêndio ser criminoso. Fomos ao local
e verificamos os destroços do incêndio (Foto 14 e 15). Para averiguar se o incêndio
realmente foi criminoso, foi instaurada uma investigação pela polícia federal que, até
o término deste trabalho, não havia sido concluída. Percebemos, nas conversas dos
quilombolas da Caçandoca uma grande revolta. Alguns atribuem o incêndio à
Urbanizadora Continental, outros, à uma das famílias do quilombo que, segundo
eles, queriam o território do Quilombo só pra eles.
A capela que teve o salão incendiado tem grande importância simbólica
para a comunidade que, segundo as pessoas que integram a comunidade, foi
construída com a participação de todos. O motivo que os levou a construir, remonta
à um acontecimento que marcou a vida de todos. Como ele de conhecimento de
toda a comunidade, o incêndio comoveu até mesmo os evangélicos, conforme a
sábia fala de Amarildo Cesário:
Mais interessante é que no dia que puseram fogo, tinham
evangélicos chorando ao lado da capela. Então a beleza que isso
tem nessa história e a dimensão que isso tem para as pessoas. Meu
pai chorou, a D. Maria Machado chorou, as pessoas que.... Meu pai
hoje é evangélico, ele tava passando e viu isso. Então, as pessoas
têm essa noção daquele espaço ali para a importância para a
história da comunidade. Tem que valorizar isso e não perder isso,
esses refere
ncias.
Amarildo Cesário do Prado 38 anos (Ubatuba,
09 de maio de 2007)
130
Foto 14 e 15
Fotos: Elaine Branco
09/12/2006
Destroços dos utensílios da cozinha e área do salão da capela que foram incendiados na data da
desapropriaç
ão. O salão da capela, localizado a beira mar, funcionava como lanchonete para
arrecadar fundos para igreja.
Como vimos no capítulo um, os conflitos internos é um grande problema
para a comunidade. Preservamos a identidade das pessoas envolvidas, mas es
tes
conflitos precisam ser considerados na análise do processo de construção da
identidade, uma vez que poderão ser um entrave para o andamento dos projetos da
comunidade.
Por isso, entendemos que há necessidade de uma consciência de que
as diferenças entre eles precisam ser trabalhadas e superadas, para que possam
construir um projeto maior em conjunto, já que c
om o território conquistado, acabam
-
se as incertezas e inseguranças. Sobre o processo de construção da identidade,
consideramos a idéia de Castells (1999, p. 24) que trata de três formas e origens da
construção de identidades. A primeira, trata-se de uma identidade legitimadora,
introduzida pelos dominantes para expandir e racionalizar a sua dominação com
relação aos atores sociais. A segunda, identidade de resistência, é criada por atores
contrários à dominação atual, criando resistências com princípios diferentes ou
opostos a sociedade. A terceira forma, a qual mais se assemelha ao processo de
construção da identidade da comunidade da Caçandoca, é quando os atores,
usando a comunicação, constroem uma nova identidade para redefinir a sua
situação na sociedade. De acordo com Castells (1999, p. 24) a identidade de projeto
é:
131
Quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material
cultural
ao seu alcance, constroem uma nova identidade capaz de
redefinir sua posição na sociedade e fazê-lo, de buscar a
transformação de toda a estrutura social.
(CASTELLS, 1999, p. 24).
Como se pode verificar, essa idéia se assemelha ao processo de
construção
de identidade da comunidade da Caçandoca, principalmente no que diz
respeito de uma identidade em construção. Ela reforça o quanto é necessário nesse
processo, a comunicação e o entendimento para a redefinição dessa nova
identidade. Trata-se da comunicação necessária para a construção da nova
representação de si, para si, para o grupo e para os outros. Somente através do
entendimento é que a concretização dos sonhos e as transformações se tornarão
possíveis. D. Cidinha, por exemplo, não perdeu as suas expectativas de conquistar a
independência e se livrar de uma das patroas, proprietária de uma das casas do
condomínio do Pulso que mal paga o seu salário. Ela nos conta dessa patroa que
paga um salário mensal abaixo do mínimo estipulado no país e do seu envolv
imento
com os projetos da comunidade:
Dessa patroa aí que nem pergunta como que tá a Caçandoca,
porque faz o que, vinte e dois, vinte três anos que eu to na
casa. E ela é sempre assim, ela nunca paga o salário certo. Porque
o que eu ganho lá é R$235,00. Tem mês que ela paga R$230,
nesse mês ela pagou R$220. Eu falei pro seu Araquém
40
, a hora
que sair a casa de artesanato , eu largo ela. estou no projeto,
estou no marisco, já tou ali no viveiro de planta, já tou fazendo muita
coisa aqui. (Aldacília Rosa Gaspar, 50 anos – Caçandoca, 3 de
março de 2007).
D. Cidinha é uma das mulheres que tenta resgatar a africanidade da
comunidade através do modo de se vestir e a percebe-se com isso que o resgate da
autonomia financeira, resultará no resgate das atividades de que ela sente prazer
em realizar, ou seja, o trabalho que pretende desenvolver, envolvendo artesanato e
agricultura, realizador por ela com prazer, mudará a representação de si. Segundo o
40
Araquém é o técnico do Incra que nos últimos meses tem se dedicado a ajudar a associação a desenvolver os
seus projetos.
132
seu depoimento, sente muito orgulho de ser quilombola, uma das coisas que, além
do entendimento tuo, é muito importante para o processo de construção da
identidade quilombola e do novo papel que assumirão diante a sociedade. Assumir-
se enquanto quilombolas é também assumir-se enquanto negros e como foi
retra
tado no depoimento de um dos moradores da Caçandoca que encontramos em
Merlo (2005, p. 196), trata-se de um resgate da auto-estima para a conquista do
território e resgate da cultura e da espiritualidade.
Quando falamos com as pessoas que saíram do quilombo e não
retornaram, percebe-se que, com a desapropriação do território, um desejo do
retorno. Esse retorno, para D. Ondina que se encontra com problemas de saúde e
um tanto desmotivada, poderá ser concretizado mesmo que seja através dos
herdeiros, com
o mostra a sua fala:
Agora eu não tenho vontade de mais nada porque eu não presto pra
mais nada. Agora eu não tenho coragem nem de sair do lugar.
Aquilo lá só mesmo para os meus filhos e ta bom pra mim.
(Ondina Antunes
Sertão da Quina 11 de dezembro de
2006)
O caso de D. Ondina e de algumas das outras pessoas que saíram da
comunidade que conseguimos encontrar, reforça a idéia de que o houve melhoria
em suas condições de vida. A situação de suas moradias é um tanto precária, com a
ausência em alguns casos de energia elétrica, asfalto, atendimento à saúde entre
outras. Porém, agora se encontram mais distantes do mar e do lugar onde
nasceram. A fala de S. Miguel, compara o lugar onde mora com a Caçandoca:
Miguel: é gostoso mesmo. Um lugar sossegado. Agora aqui a
gente é perturbado, é que nem cidade, quando chega sábado e
domingo a gente o pode nem mais descansar. É barulho,
grito pra rua e acabou-se o sossego nosso. é um lugar
sossegado cem por cento. Eu tinha vontade de fazer minha casi
nha
lá.
(Miguel da Mata Amorim, 68 anos Sertão da Quina, 11 de
dezembro de 2006).
133
Com a desapropriação, pudemos observar as mudanças nas
representações acerca das possibilidades de concretizarem um antigo sonho. O
prazer da conquista se mistura com a dor das lembranças daqueles que lutaram e
se foram. Mistura-se com a emoção e o sentimento de que ali poderão reconstruir
suas vidas, seus projetos, criarem seus filhos e netos, realizarem seus sonhos.
Para
D. Geni, a conquista simboliza o resultado da luta travada pelos familiares que se
foram. E no momento da conquista, apesar de ausentes, os entes queridos se fazem
presentes na sua fala e emoção:
Pra mim não tem explicação, sabe assim quando você acredita e não
acredita? Igual a São Tomé? Eu tava assim. Ontem o Antonio falou
pra mim: amanhã você não poder perder, porque é um dia de festa
pra nóis. Mas eu não esperava que fosse essa festa. Pra mim foi de
mais, a emoção é muito grande. Sabe, junta assim, uma emoção da
saudade, da vitória, sabe, tudo junto. Então pra mim é demais.
Saudade. Muita saudade. De quem ficava com a gente né, Odeir,
Flávio, minha irmã, muitos que ajudou a gente, que tava com a gente
junto na luta, muitos parentes que hoje não estão mais. Foram
embora né, Deus chamou. Eu tenho uma irmã que ela duvidava, ela
falou pra mim: “Eu acredito quando eu ver, quando eu ver eu
acredito”. E ontem, quando foi antes de ontem fez cinco meses ela
foi embora, que Jesus levou né. Então hoje pra mim, eu senti que ela
tava do meu lado assim, sabe, dizendo pra mim, vocês venceram! É
muito bom... é muito bom isso aqui que tá acontecendo. (Geni -
Caçandoca, 6 de dezembro de 2006).
O trabalho realizado pelos ancestrais para os membros da comunidade
teve uma grande importância na conquista do território. Essa ancestralidade,
presentes nas falas dos remanescentes quando falam do território é um traço
marcante na cultura banto, e confirmamos a sua existência na memória do grupo. A
relação entre os mortos, a irmã de Geni, Odeir, Flávio, entre outros que se foram,
com aqueles que ficaram é o que sentido para as suas permanências no lugar.
Isso se confirma também com a fala de S. Antônio. Ele fala com orgulhos dos
parentes que antes lutaram ali:
13
4
Porque a primeira líder aqui foi a tia da minha mãe, a Rita que se
revoltou com o pai, com o Sifrônio Antunes de Sá, um dos donos da
fazenda, a filha que tratava de pegar os alimentos pros negos. Então
começou com ela, depois veio a liderança, o Napoleão, que ele era
escravo, filho do João Benedito ou Benedito João que a gente tem
que ver o nome certo, esta no relatório técnico, que trabalhava
com os granadeiros. (...) Então assim a gente deu a continuidade,
porque com o esbulho que teve aqui, a minha mãe entrou como
liderança entrando com a reintegração de posse, primeiro
documento judiciário. E na continuidade da minha mãe, ficou nós na
liderança. Até que nós fizemos a Associação de bairro, o primeiro
presidente foi o Bonifácio Gabriel dos Santos e o vice foi o
Domingos Crispim dos Santos e dali pra frente faz quatro anos que
sou presidente legalmente, jurídico, e agora a gente vai deixar a
presidência representativa como administrador e a gente vai passar
a desenvolver projeto como liderança e tamo aí colocando um grupo
de jovem pra eles tocarem pra frente. (S. Antonio dos Santos, 60
anos
Caçandoca, 3 de abril de 2007).
E ainda, a fala de D. Cidinha reforça a ancestralidade, o enraizamento
representado pelo espírito dos ancestrais que sentido à seqüência aos projetos
deixados aos herdeiros:
É muito importante, porque o pessoal, sei lá, uns morreu... E tem
muita gente que queria ficar e não conseguiu ficar e a gente... Eu
acho, voltando novamente pra cá, eu acho que muita gente que
faleceu vai ficar muito alegre. Importante a gente ta aqui pra
recuperar
tudo que passou. Ela representa muita coisa, muita coisa
boa. Meus filhos mesmo, tão aqui porque eu passo pra eles, porque
tem que ajudar. Inclusive tá tudo eles aqui, só não tá o Diquinho. (...)
Vem, freqüenta, mas a gente fala que a gente tem que dar ma
ior
força, maior apoio, pra gente recuperar tudo aquilo que passou,
não deixar cair, não deixar perder o, porque um dia se a gente
não estiver, eles estão. Taí o Alexandre, o Marcílio, a Elza, a
135
Claúdia, a Patrícia e a Tamires. (Aldacília Rosa Gaspar, 50 anos
Caçandoca, 3 de março de 2007)
Para os remanescentes da comunidade remanescente do Quilombo
Caçandoca, a conquista do território representa não só a posse material do território.
Ela também tem um significado simbólico como é evidenciado com a fala de S.
Antônio quando se lembra das festas compostas de elementos afro-brasileiros que
pretendem resgatar, já não correm mais o risco de serem expropriados:
A festa, o nome era um só: função. Função queria dizer que a noite
ali corria a dança de lenço, a mazuca, bate pé, é... ciranda, é...
moçambique, congada, era alvorada, uma festa que se faz na praia à
noite com tochas né, as festas dos reis, as festas do divino e as
festas dos santos que começa desde o primeiro do santo reis e
vai embora até chegar dezembro novamente. Então o ano todo aqui
nós festava, o ano todo aqui, tinha festa. Essas tradições essas
festas não se perdeu, elas simplesmente teve um esbulho
possessório né, na invasão da Incorporadora Imobiliária que jogou
esse pessoal tudo pra fora. E esse pessoal não se perdeu e agora
nos que somo já com essa meia idade, que participemos disso,
tamos resgatando outra vez. Não foi uma coisa assim que o pessoal
foram deixando. Eles não deixaram. Eles foram obrigado a deixar pra
trás. E agora estamos recomeçando outra vez. (grifo nosso) -
Antônio dos Santos, 60 anos
Caçandoca, 3 de abril de 2007.
Na fala de S. Antônio, o esbulho possessório realizado pela Urbanizadora
Continental que os expulsou do seu território, significou o rompimento com as festas
e tradições. Por isso a retomada do território é também a retomada das
manifestações simbólicas que, depois de tanto tempo, se mantêm vivas na memória
e são lembradas com saudosismo. O lugar de manifestação das festas foi tomado
durante algum tempo. Durante esse tempo não houve festas, mas nem por isso elas
foram perdidas. Por isso, recuperar a terra perdida é reconstruir a integridade do
patrimônio material e simbólico de uma população que tem um memorial riquíssimo
de um passado composto por diversas influências culturais, representadas pelos
espíritos, santos católicos, danças de origem africanas entre outras. Percebemos
136
que , da parte de alguns, o desejo muito forte do resgate dos elementos afros na
cultura da comunidade, como o Moçambique e a Congada que, apesar de estarem
presentes apenas na memória dos membros da comunidade da Caçandoca, é
praticado em muitas comunidades caiçaras do litoral norte.
Mesmo D. Rosa, que contesta as falas da maioria dos quilombolas de que
foram expulsos do território, no dia da desapropriação, ela cai em contradição
quando recorda que houve realmente um conflito com a Urbanizadora Continental e
fica apreensiva diante da possibilidade de não ter de sai do território:
Olha, para ser bem franca com você, eu ainda to meia balanceada
ainda porque eu...a gente ficou aqui... nós ficamos, que ficou eu, a
minha irmã, a Maria do tio Viana, a Cidinha, a Leia, a Benedita, essa
gente toda. Nós ficamos do lado de lá, em baixo que ficou, na
Caçandoca. Então a gente ficou direto, que às vezes a maioria que
não saíram, continuaram, então, a gente continuou defendendo
em baixo: brigava com a Continental, a Continental vinha e brigava
com a gente e eles ia pra justiça, e tinha briga dali, briga daqui,
então, nós ficamos batalhando por isso.
Então, o quanto a gente
batalhou, mais ou menos, que eu tenho certeza, é que a gente
segurou o lugar pra esse pessoal, que eles continuaram...que eles
voltaram...acharam porque a gente tava nesse lugar não é?(...).
Mas, agora com esse tulo que eles tão ganhando, que eles vão
ganhar, eu não sei se vai caber a mim esse tulo. Porque
basicamente eu não to encaixada na associação
. Agora eu sei que...
eu quero que eles, e eu, quem ficar com o título, que saiba
aproveitar. Que encaminha que leva os seus filhos, os seus netos
para uma coisa bem melhor. Que a gente seja uma associação
assentada mesmo, no capricho, que seja uma coisa verdadeira.
Porque às vezes tem muita coisa que a gente ai...só porque não
tem luz ninguém quer acomodar, porque não tem luz, outro não tem
televisão, outros não tem geladeira, mas, mesmo assim, naquela
época não existia nada disso e todo mundo viveu, e criou e tamo até
hoje e ninguém morreu por causa disso. Então eu acho que as
pessoas tem que por isso na cabeça, tem que ter consciência que
esse título será útil pra todo mundo. Eu acho... eu acho não, eu
tenho certeza.
(grifo nosso)
137
Rosa Gabriel Penha Silva, 70 anos
06 de dezembro de 2006
Mesmo sem a certeza de que poderá continuar no território, D. Rosa
dese
ja uma coisa melhor para os que ficarem como os filhos e netos, ainda que não
consigam conquista os benefícios da modernidade.
Para seu Antônio, a conquista do território representa a realização de um
milagre. Ele fala que os empecilhos eram muitos, mas o maior era a luta travada
com pessoas de dinheiro e de poder. Pessoas de dinheiro, representada pela
Urbanizadora Continental e pessoas de poder, que segundo as falas, é representado
por juiz e desembargador que possuem casas no condomínio do Pulso. A prin
cípio,
a comunidade optou por não reivindicar a área do condomínio do Pulso, pois
acreditava que se reivindicassem aquela área, o processo de desapropriação seria
mais demorado.
Para S. Antonio, a desapropriação não teria ocorrido se não fosse o
governo
de Lula. Se pensarmos em termos históricos, há dezoito anos existe o artigo
na Constituição que garante a posse das terras às comunidades negras e
recentemente percebe-se no país uma movimentação política afim de fazer valer a
lei dos quilombos, mesmo que ainda seja muito pequena, já que existem no país
milhares de comunidades remanescentes de quilombo. O fato é que, em nenhum
outro governo de instância federal
41
, houve uma vontade política para com estas
populações. Nas comunidades que estão sendo beneficiada com a política em prol
da titulação dos quilombos do governo Lula, percebe-se uma representação comum
a cerca do presidente. Temos como exemplo, a fala de Antonio:
Esse processo de desapropriação é uma complementação de um
milagre. Porque hoje no Brasil pra você lidar com poderes é...
financeiro, de muito dinheiro, é uma milagre de isso acontecer, de
nóis ta aqui hoje, e desse novo governo que está agora exercendo a
República do Brasil, realmente a Republica do Brasil tá acontecendo
no governo agora do presidente Lula, não nos outros governos
antes, não teve nada disso. Então as coisas acontece na hora certa.
Então, deus acho que colocou esse governo nesse momento exato
e teve essa desapropriação e essa alegria de renascer a alegria do
41
Fa
lamos da inst
ância federal,
já que compete ao governo da federação a etapa final do processo para se fazer
valer a lei de quilombos, que é a titulação.
138
povo novamente
.
(Antônio dos Santos, 60 anos Caçandoca, 3 de
abril de 2007)
Certamente, representações como a de S. Antonio, fortalecem a imagem do
presidente Lula como um governo popular, mesmo com todos os escândalos
envolvendo pessoas do seu partido, a todo tempo reforçados pelos meios de
comunicação de massa.
Para Amarildo Cesário, que apresenta um discurso do processo mais próximo
ao acadêmico, a maior conquista da comunidade foi a propriedade coletiva da terra,
ou seja, numa sociedade em que se prioriza a propriedade particular, a comunidade
fez prevalecer a coletiva, e terá, dali adiante, uma responsabilidade grande diante os
desafios de fazer prevalecer a coletividade dentro de uma sociedade baseada na
competição, no consumismo e no individualismo. Na fala de Cesário, evidencia-se a
sua inteligência em pensar a situação da comunidade inserida de um espaço maior,
que é o mundo capitalista, globalizado, para que se faça valer o interesse coletivo e
alerta sobre os desafios futuros:
A gente que tem uma discussão assim, enquanto socialista isso é
muito bom. Quando se fala em terra de quilombo, tem todo esse
precedente maravilhoso que é a coletivização da terra. Você pega a
Constituição, esta lá: direito à propriedade. na frente nos artigos
transitórios da Constituição, se fala em terra coletiva. E a
comunidade quilombola se tem isso, esse aspecto da coletivização
do espaço, da socialização da terra, do ponto de vista ideológico
isso é maravilhoso. Isso coloca um desafio pra gente de vivermos
em comunidade e ... isso e não é fácil. Tem uma instituição hoje
com esse precedente também que se criou pra comunidade, na área
de fins sociais, o desafio é muito maior ainda de permanente diálogo
com instituições governamentais e não governamentais.
Naturalmente a prioridade vai ser essa área, vai ser priorizada para
políticas públicas... A gente espera que as coisas caminhem,
aconteçam, que não haja embaraços políticos, situações de
dificuldade, e que a gente consiga fazer nossa história sendo ator
dela. Sejamos protagonistas ali mesmo, não se deixar atropelar por
ninguém e tomando os devidos cuidados, fazer os enfrentamentos
139
políticos para que a gente não perca os ganhos políticos que a
gente vem tendo com essa posição. Os governos passam, os
técnicos passam, as comuni
dades..., a s pessoas continuam lá. Hoje
a mobilização da comunidade vem sendo primordial pra que essas
coisas não se percam. E a gente precisa de referências e lideranças
firmes pra gente manter isso. De uma certa maneira, o
posicionamento do seu Antônio, que eu muitas vezes contexto, no
sentido das práticas dele as vezes, mas pra fora eu sei de forma
contundente que ele apresenta os interesses da comunidade de
forma primordial pra que ao longo do tempo a gente avançasse
nesse processo, e é importante isso. E que a gente tenha essas
referências, que a gente descubra essas referencias dentro da
comunidade pra dar esse segmento, fazendo também um processo
mais ou menos parecido. Mas também estas pessoas, ou esta
pessoa pra ta assumindo isso, ela faça da sua maneira e do seu
jeito que isso não se perca. Porque a gente precisa muitas vezes é
isso. Infelizmente as pessoas vão sempre precisar de uma
referência. Ao longo do tempo, na história do quilombo a principal
referência foi o seu Antônio. E vem sendo assim. Hoje ele não é
mais o presidente da associação, mas a gente sabe que ele é a
principal referência para a comunidade, politicamente falando. Então
é uma coisa que precisa ser construída novas referências, para que
não haja dependência e dessas atribuições que se entrega
diretamente para o seu Antônio, falar o que vai fazer. Que outras
pessoas assumam: tem que fazer, tem que fazer isso, e saibam
distribuir isso com os outros, fazendo um trabalho de diálogo com as
outras pessoas que a gente tenha outras formações. E a gente tem
que apostar isso nos jovens, tem que descobrir outras lideranças
nos jovens.
A propriedade coletiva da terra é o primeiro passo para a comunidade
fazer valer o sentido atual de uma comunidade de que fala Bauman (2003): um
abrigo com
relação aos efeitos da globalização.
Cesário,demonstra o seu descontentamento com a falta de autonomia
das pessoas da comunidade, quando conclui que “infelizmente as pessoas vão
sempre precisar de uma referência”. Com a conquista do território, o que resta à
140
comunidade é a reconstrução da comunidade e da identidade. Fazem parte dessa
reconstrução, as negociações com as instituições governamentais que reconhecem
a associação de remanescentes do quilombo para isso. Temos dois grandes
problemas. De um lado, não há, por parte de grande parte dessas instituições a
preocupação com a forma de que estas associações vêm sendo organizadas. De
outro lado, esse tipo de organização, baseado na representação e num estatuto é
algo que durante muito tempo esteve distante da comunidade o que faz com que a
familiaridade com ela ainda seja muito restrita. Diante esses dois problemas, será
necessário se pensar formas para que a comunidade tenha um maior acesso as
informações e possa participar ativamente da vida social e política da comunidade.
Talvez a reabertura da escola com a realização de cursos que envolvam essa
temática seria uma possível solução para resolver o problema de representatividade
e participação na comunidade.
Não será uma tarefa fácil, já que os proble
mas que envolvem participação
e representatividade não é um problema existente apenas na comunidade de
Caçandoca. No mundo todo, existem sociedades que ainda encontram dificuldades
para lidar com tais problemas. Para os remanescentes da Caçandoca o problem
a
que mais os preocupava era a posse do território, e isso, já conquistaram.
De acordo com Castells (1999), a identidade de projeto visa a
transformação de toda estrutura social e a conquista do território do quilombo
Caçandoca, numa sociedade com tantos latifúndios e fortemente marcada pelo mito
da democracia racial, é o primeiro passo para a transformação dessa realidade.
Neste capítulo, tentamos dialogar com as representações a cerca da
conquista do território. Como se pode verificar, as representações foram colhidas
quando havíamos encerrado a pesquisa de campo e voltávamos a nossa
concentração para a análise das representações. Quando soubemos da notícia da
desapropriação, achamos imprescindível retornar à campo e saber mais sobre esse
momento histórico e claro, além de comemorar a vitória da comunidade. Vimos o
quanto é importante nesse processo a reconstrução da identidade da comunidade
que deve estar amparada no diálogo e entendimento mútuo.
141
O VIR A SER:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como o leitor pode perceber, pelas datas das falas transcritas para esse
trabalho, não houve o devido distanciamento temporal para analisá-las, como
ensinam os métodos dos livros acadêmicos. O nosso tempo chegava ao fim e a
desapropriação aconteceu. Mesmo com o tempo corrido, achamos importante voltar
a campo e saber mais. Saber mais... Deixar
que
os atores conta
sse
m aqui a boa
notícia, como se fosse um “final feliz” de uma dura trajetória, mesmo s
abe
ndo
que
essa história não tem final e que ela continuará sendo feita por eles. O motivo que
nos levou a voltar, foi o nosso desejo de poder participar desse momento único para
a comunidade. Foi pensar que, apesar de todos os desafios que a comunidade
poderá enfrentar daqui para frente, a certeza do lugar para viver, mudaria as
vontades, renovaria as esperanças, desse modo, as representações. O lugar que
para eles não é apenas mais um. É nele onde viveram os ancestrais, onde foram
nascidos e criados,
onde
criaram os filhos, onde o tempo era muito bom, onde o
trabalho era
bas
tante camarada. O lugar onde eram felizes e ao mesmo tempo
tristes
. Voltamos no quilombo Caçandoca para
assistir
a D. Geni, o Fernando, a
Roseli, sua mãe, entre outros que ainda veremos retornarem à sua terra. Voltamos
para
olhar
que agora, com o território garantido, a produção de açaí está
encaminhada e praticamente toda vendida. Para ver que a escola irá reabrir para
educação de jovens e adultos, que um dos jovens, à convite do governo cubano, irá
à Cuba cursar medicina. Para ver que os projetos do marisco e da pesca estão
alimentando a comunidade...
Voltar ao quilombo foi reencontrar mais uma vez, cada um dos sujeitos
que compartilharam conosco as suas histórias, suas experiências e vivências, seus
saberes, persistência e luta por um de sonho comum. E se conquistaram, foi porque
lembraram e falaram. Os seus relatos aos técnicos do ITESP que garantiram o
reconhecimento da comunidade. As suas denúncias sobre a violência sofrida que
indignaram a opinião pública e colocaram-na a seu favor. As suas palavras
e
lembranças que fizeram as autoridades realizar a primeira desapropriação do país
em função de uma comunidade remanescente de quilombo. Sonhos, lembranças,
falas e denúncias que compõem uma revolução molecular anunciada por Guattari e
Rolnik (1986, p. 45). Para Haesbaert (2002, p.78) essa revolução não é menos
importante do que qualquer outra. Segundo ele:
142
Embora não seja preocupação sua precisar sobre conceitos,
Guatarri entende “revolução molecular” como um processo de
diferenciação permanente que estaria contrapondo, hoje, à tentativa
do controle social “através da produção da subjetividade em escala
planetária”, e por meio da qual desenvolver-
se
-ia uma
autonomização de grupos correspondente “à capacidade de operar
o seu próprio trabalho de semiotização, de cartografia, de se inserir
em veis de relações de força local, de fazer e desfazer alianças
etc.” Revoluções menores, é verdade, em relação às utopias com
que muitos de nós ainda sonhamos, mas nem por isto menos
fecundas e pertubadoras, corroendo aos poucos a integridade de
nossos “sistemas (empíricos e conceituais). Geração permanente
de um novo que nem sempre ousamos conhecer. Explosão múltipla
de significações ocultas na simplificação formal de funções que
reconhecíamos para as práticas produtoras do espaço social.
(HAESBAERT, 2002, p. 78).
Nesta constante revolução molecular, quando tudo parecia perdido,
buscaram a lei. Adentraram a linguagem do branco e utilizaram-na para fazer valer
os seus interesses. É a lei que assegura a propriedade coletiva das terras do
quilombo, mas se não houvesse fala e memória, esse momento nunca chegaria. São
dezoito anos da existência da lei dos quilombos e agora, quando rompem com a
invisibilidade e mostram as suas faces ao mundo, que finalmente poderão desfru
-
la.
Quando os sujeitos falaram, travaram uma batalha não apenas de classe,
mas também de raça. Raça negada cientificamente, mas identificadas nas
ideologias e práticas sociais. É a raça que não se identifica nos genes, mas sim na
aparência, no fenótipo. O falar não é apenas denunciar a estrutura, mas também o
preconceito de homens brancos, senhores de poder jurídico, econômico e político,
que lhes perguntam:
para que nêgo quer terra?
No estudo das representações conhecemos as relações sociais
impregna
das de imposição, dominação, afetos, dependências, desigualdades,
solidariedades, proibições e liberdades. Imposição de uma trajetória, a princípio,
privada de liberdade; dominação imposta pela ideologia da modernidade, da
143
nacionalidade, vista como única alternativa possível; afeto aos que se foram e aos
que ficaram, aos lares e lugares; dependências de uma referência política, do
emprego do dominador para sobreviver, que custa a submissão do falar;
desigualdades entre o lugar roubado (o condomínio do Pulso) e o lugar onde moram
as famílias remanescentes que pelejam na vida cotidiana para conseguirem o pão
de cada dia; solidariedades trocadas num tempo em que o dinheiro não existia;
proibições na construção da casa e da horta; liberdades momentâneas vividas
no
lugar onde a
vista para o mar deixa qualquer um doido,
onde podiam
plantar
e
caçar
,
onde eram
felizes
, onde podem correr e brincar, onde hoje finamente podem morar
sem a preocupação de serem expulsos novamente.
No processo vivenciado pela comunidade de Caçandoca, houve a
necessidade da reconstrução da identidade do grupo. A identidade assumida pela
comunidade que a principio representou a possibilidade de acesso do território,
passa a ser representada pelo desejo de mudança, de transformação, do resgate
cultural. Por isso, a idéia de identidade de projeto, vista em Castells, é a que melhor
define o processo de construção da identidade do quilombo Caçandoca. Portanto,
deixar a identidade caiçara e assumir a identidade quilombola, não significou
assumir para si uma
trademaker
. Apesar da denominação “quilombola” não ter
partido dos sujeitos da comunidade, eles passam a incorporá-la nos seus
vocabulários, assumindo-a como identidade, travando desse modo, uma luta política
em que a posse do território ultrapassa os limites materiais, para se projetar e
permanecer na sociedade global.
Assim, com a conquista a posse coletiva do território, a comunidade
consegue inverter a ordem das coisas. Uma das facetas da globalização é a
homogeneização dos lugares. Mesmo com os anseios da comunidade
pelos
benefícios sociais da
moder
nidade (rede de água e esgoto, energia elétrica, asfalto,
entre outros), a propriedade coletiva da terra, torna a Caçandoca um lugar a parte,
pois ela subverte os valores econômicos vigentes. Valores que criaram
desigualdades, conflitos e tensões. Para Santos (1999. p. 131), essa tensão,
chamada por ele de tensão do cerco, é um reflexo do desenvolvimento econômico
brasileiro, cujo modelo expropriou milhares de famílias de suas terras, fazendo-
as
viv
er diante das pressões do medo e insegurança, como o ocorrido
em
Caçandoca.
Segundo ele:
144
O crescimento econômico brasileiro, pelas vias em que se realiza,
exige a expropriação destas diminutas ilhas, ocupantes em alguns
casos dos últimos pedaços de terra fértil. Não por acaso os “papéis
de posse” são a sua paranóia coletiva. (SANTOS, 1999, p. 131).
Não foi por acaso que as famílias da Caçandoca começaram a deixar o
lugar antes mesmo da chegada da urbanizadora Continental. A situação precária
das famílias e a cobiça dos especuladores, fizeram com que as pessoas vendessem
as suas terras por uma quantia irrisória. Por isso, os conflitos internos existentes na
comunidade entre os que venderam e os que não venderam, não têm motivos de
ser, que os desencontros fazem parte das exigências de uma ordem política
econômica voltada para a ascensão de uma minoria e submissão da maioria. Foi
essa política, que por trás se escondem homens de poder, que criou situações que
provocaram a saída de famílias de suas terras
e quando não, usaram a força.
Com a conquista coletiva do território, os desafios que se colocam são
diversos. Bauman (2003, p. 22), por exemplo, chega à conclusão que, diante a
globalização, a possibilidade de se viver em comunidade torna-se praticamen
te
impossível. Segundo ele, os que buscam a comunidade estão condenados à sina de
Tântalo:
Seu objetivo tende a escapar-lhes, e é seu esforço sério e dedicado
que faz com que lhe escape. A esperança de alívio e tranqüilidade
que torna a comunidade com que sonham tão atraente, será
impulsionada cada vez que acreditam, ou lhes é dito, que o lar
comum que procuravam foi encontrado. Às agonias de Tântalo se
juntam, tornando
-
as ainda mais sofridas, as de Sísifo. A comunidade
realmente existente será diferente da de seus sonhos mais
semelhante ao seu contrário: aumentará seus temores e
insegurança em vez de diluí-los e deixá-los de lado. Exigirá
vigilância vinte e quatro horas por dia e a afiação diária de suas
espadas, para a luta, dia sim, dia não, para mante
r os estranhos fora
dos muros e para caçar os vira-casacas em seu próprio meio. (...) É
por essa belicosidade, gritaria e brandir de espadas que o
sentimento de estar numa comunidade, ser uma comunidade pode
ser mantido e impedido de desaparecer. (BAUMA
N, 2003, p. 22).
145
Na mitologia grega Tântalo teria sido condenado pelos deuses por
compartilhar um conhecimento a quem nem ele, nem os mortais como ele deveriam
ter acesso. Foi mergulhado num regato, mas quanto baixava a cabeça para saciar a
sede, a água desaparecia. Ao comparar a agonia de Tântalo com a da sociedade
que tenta alcançar uma comunidade, Bauman se mostra um tanto pessimista.
Porém, o seu pessimismo é necessário para nos alertarmos das dificuldades e
pensarmos as possibilidades. Neste mesmo trabalho, Bauman (2003) escreve que a
abertura dos portões que levam à inocência comunitária deve ser feita à força. Pode
-
se dizer que, o primeiro passo para a Caçandoca romper os portões, foi dado
pelos quilombolas. Mas a força maior a ser empenhada nesse caso é o trabalho
mental de reconstrução e fortalecimento da identidade. Manter-se em comunidade e
fazer
-se diferente diante de uma sociedade baseada na propriedade privada, que a
todo tempo tenta impor um sistema de valores e de crenças como único, é um
desafio que pode ser superado através de bases sólidas, que podem ser
levantadas juntamente com a reconstrução da identidade do grupo.
Como “os projetos do indivíduo transcendem às gerações futuras”, as
esperanças são depositadas nas crianças e nos jovens, herdeiros de uma luta que
não se encerra aqui. Que outros possam acompanhar e compartilhar futuramente,
do riquíssimo universo do que poderá vir a ser a comunidade remanescente do
quilombo Caçandoca.
E como todo trabalho acadêmico tem um começo, m
eio e fim, entregamos
as nossas reflexões e os riquíssimos depoimentos dos remanescentes do quilombo
Caçandoca, com o desejo de que o sucesso do quilombo Caçandoca seja tão
grande que não paire ali. E que todos os esforços contidos nesse trabalho, o da
me
mória e da oralidade dos sujeitos e o das nossas reflexões, possam ser utilizados
pela comunidade como um documentário de suas vidas. Para que as futuras
gerações conheçam as histórias dos que lutaram, lembraram, riram, choraram,
denunciaram e transformaram para conquistar aquele pedacinho de terra para que
um dia eles possam viver ali, o que eles não viveram. E para a academia,
esperamos ser essa mais uma contribuição, principalmente dos sujeitos da pesquisa
para a compreensão de uma realidade social. E por fim, fica aqui o nosso convite
para outras interpretações possíveis acerca das representações contidas no texto
escrito e nas imagens do DVD.
146
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