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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU
EM DESENVOLVIMENTO
A POLÍTICA DELIBERATIVA EM HABERMAS:
UMA PERSPECTIVA PARA O DESENVOLVIMENTO
DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Marcio Renan H
amel
Ijuí
2007
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2
UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU
EM DESENVOLVIMENTO
A POLÍTICA DELIBERATIVA EM HABERMAS:
UMA PERSPECTIVA PARA O DESENVOLVIMENTO
DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Marcio Renan Hamel
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação
Stricto
Sensu
em Desenvolvimento, Linha
de Pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento, da
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul
Unijuí, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Desenvolvimento,
sob a orientação do Prof. Dr. Darcísio Corrêa.
Ijuí
2007
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UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE
DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PÓS
-
GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU
EM DESENVOLVIME
NTO
DIREITO, CIDADANIA E DESENVOLVIMENTO
A POLÍTICA DELIBERATIVA EM HABERMAS:
UMA PERSPECTIVA PARA O DESENVOLVIMENTO
DA DEMOCRACIA BRASILEIRA
Marcio Renan Hamel
Banca examinadora:
Prof. Dr. Darcísio Corrêa
Unijuí
Orientador
Prof. Dr. Gilm
ar Antônio Bedin
Unijuí
Examinador
Prof. Dr.
Ângelo Vitório Cenci
UPF
Examinador
Ijuí
2007
4
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, aos professores do programa do curso stricto sensu do Mestrado em
Desenvolvimento da Unijuí, com os quais convivi por um ano e meio, cujas idéias e
manifestações sempre permanecerão em minha memória.
Aos colegas de turma do Mestrado em Desenvolvimento, de forma especial da linha
de pesquisa Direito, Cidadania e Desenvolvimento, com os quais dividi as tensões, as alegrias,
as preocupações, as expectativas e as desilusões, assim como os sonhos e os objetivos a serem
alcançados durante e após o curso e, cujas amizades, permanecerão eternamente comigo.
Ao professor Doutor Darcísio Corrêa, o qual foi orientador desta dissertação, sempre
preocupado com as delimitações do tema, os enfoques teóricos, as possibilidades de
frustrações e de êxitos ao final da pesquisa científica, mas que, também sempre esteve ao meu
lado nos momentos de tensão e de preocupação.
Ao professor Mestre Doglas César Lucas, com quem sempre conversei abertamente
sobre a perspectiva filosófica habermasiana e sua viabilidade em um contexto latino-
americano, o qual também sempre se mostrou disposto a ajudar na construção deste trabalho,
ainda que de forma indiret
a.
Ao professor Doutor Dieter Rugard Siedenberg, o qual me indicou bibliografia
acerca de alguns pontos tratados no segundo capítulo desta dissertação, no que tange à
participação da sociedade civil na gestão pública.
Ao professor Doutor Cláudio Boeira Garcia, docente do departamento de
Filosofia/Unijuí, que aceitou o encargo de compor a banca qualificadora deste projeto de
5
pesquisa, cujas indicações e sugestões foram de extrema importância na estrutura da presente
dissertação.
À FAPLAN, na pessoa do seu Diretor, professor Doutor Lorivan Fisch Figueiredo,
pelo auxílio financeiro concedido durante o período de realização deste curso, o que me
ajudou na manutenção das despesas necessárias a este empreendimento.
À professora Doutora Sandra Regina Leal, Coordenadora do Curso de
Direito/FAPLAN, pelo incentivo acadêmico oferecido e pela compreensão de minha ausência
em alguns momentos importantes em nossa instituição.
Ao professor Doutor Cláudio Almir Dalbosco e ao professor Doutor Ângelo Vitório
Cenci, docentes do departamento de Filosofia/UPF, com os quais sempre argumentei acerca
do complexo sistema filosófico de Habermas, e que, também, auxiliaram-me em bibliografia
sobre a filosofia habermasiana.
Ao professor Mestre José Ernani de Almeida, docente do Curso de
Direito/FAPLAN,
colega com quem argumentei acerca do governo de Getúlio Vargas por várias ocasiões, tendo
ainda me indicado referências sobre o período.
À Daniele, pela compreensão de muitos momentos de ausência, necessários à
elaboração deste trabalho aca
dêmico.
E, aos meus pais, Milton e Jane, os quais sempre acreditaram em meus esforços e em
meus objetivos, apoiando-me incondicionalmente durante toda a realização do curso e da
dissertação em si.
A todos, o meu sincero
muito obrigado
.
6
O mesmo
respeito para
todos
e
cada um
não se
estende àqueles que são congêneres, mas à
pessoa do outro ou dos outros em sua
alteridade. A responsabilização solidária pelo
outro
como um dos nossos se refere ao nós
flexível numa comunidade que resiste a tudo o
que é substancial e que amplia constantemente
suas fronteiras porosas. Essa comunidade
moral se constitui exclusivamente pela idéia
negativa da abolição da discriminação e do
sofrimento, assim como da inclusão dos
marginalizados
e de cada marginalizado e
m
particular
, em uma relação de deferência
mútua. Essa comunidade projetada de modo
construtivo não é um coletivo que obriga seus
membros uniformizados à afirmação da índole
própria de cada um. Inclusão não significa
aqui confinamento dentro do próprio e
fechamento diante do alheio. Antes, a
inclusão do outro significa que as fronteiras
da comunidade estão abertas a todos
também
e justamente àqueles que são estranhos um ao
outro
e querem continuar sendo estranhos.
Jürgen Habermas.
7
RESUMO
Por meio de uma análise reconstrutiva da filosofia jurídico-política de Habermas, o
presente trabalho objetivou analisar a concepção proposta pelo autor da política deliberativa,
como possível referencial emancipatório para a realidade política e social brasileira. Em vista
de sua teoria discursiva do direito, onde se encontra a transição de uma ética do discurso para
a teoria discursiva do direito, chegando-se à proposição procedimental de democracia, com o
conceito de política deliberativa, no primeiro capítulo estudaram-se os aspectos teóricos da
filosofia jurídico-política de Habermas. Em seguida, passou-se a um estudo acerca da
experiência da democracia ao longo da história brasileira, desde o Brasil - Colônia até os dias
atuais, onde se mostra que, no Brasil, jamais houve a prática de uma política deliberativa,
conforme o modelo discursivo da política deliberativa de Habermas. No terceiro capítulo, por
meio de uma análise crítico-reflexivo a respeito da experiência democrática brasileira e do
exame da viabilidade da proposta habermasiana da política deliberativa para a realidade
política e social do Brasil, aponta-se para a necessidade da busca de políticas inclusivas por
meio de processos democráticos de desenvolvimento, fundada na participação efetiva dos
cidadãos. A conclusão apontou a viabilidade da efetivação de uma política deliberativa, ainda
que com limites, teóricos e práticos, como referencial para a concretização de um projeto
emancipatório sociopolítico para as classes excluídas, em que a teoria jurídico-política de
Habermas traduzida em práticas participativas apontam para um novo e amplo espaço público
integrativo.
Palavras
-
chave: democracia
emancipação
política deliberativa.
8
ABSTRACT
By means of a reconstructive analysis of Habermas' juridical-political philosophy, the
present work objectified to analyze the proposal conception by the author s deliberative
politics, as a possible emancipator referential for Brazilian political and social reality. In
view of its right discursive theory, where it meets the transition of the ethics speech for the
discursive theory of right, reaching to the proposition of a procedural democracy, with the
concept of deliberative politics, in the first chapter was studied the theoretical aspects of
Habermas' juridical-political philosophy. Soon after, it was studied about the experience of
the democracy along Brazilian history, since Brazil - Colony until current days, where it was
shown that, in Brazil, there was never a deliberative politics practice, according to the
discursive model of Habermas' deliberative politics. In the third chapter, by means of a
critical
-reflexive analysis regarding Brazilian democratic experience and exam of the viability
at the proposal habermasiana to a deliberative politics for Brazil s political and social reality,
it has pointed to the need of a search of inclusive politics by means of democratic processes of
development, founded in the citizens' effective participation. The conclusion pointed to the
viability of an effectuations of a deliberative, theoretical and practical politics, although with
limits, as referential for the materialization of an emancipator sociopolitical project for the
excluded classes, that Habermas' juridical-political theory translated in practical participative
points for a new and wide integrative public space.
Word
-
key: democracy
-
emancipation
-
deliberative politics.
9
SUMÁRIO
ABSTRACT
................................
................................
................................................................
8
SUMÁRIO
................................
................................
................................................................
..
9
INTRODUÇÃO
................................
........................................................................................
11
1. A TEORIA JURÍDICO
-
POLÍTICA DE HABERMAS
........................................................
14
1.1. Habermas e o pensamento da Escola de Frankfurt
................................
.......................
14
1.2. Direito e moral: a passagem da ética do discurso para a teoria d
iscursiva do
direito e da democracia
................................
................................................................
.
21
1.2.1. Da razão prática à razão comunicativa: de Kant a Habermas
..........................
21
1.2.2. O Conceito d
e Ação Comunicativa
................................
................................
.....28
1.2.3. Da ética do discurso à teoria discursiva do direito e da moral
.........................
35
1.3. Democracia como procedimento: a política deliberativa
................................
..............42
2. A EXPERIÊNCIA DA DEMOCRACIA BRASILEIRA E O PAPEL DOS
MOVIMENTOS SOCIAIS NO DESENVOLVIMENTO MEDIANTE
PRÁTICAS PARTICIPATIVAS
................................................................
..........................
56
2.1. A estrutura social e política do Brasil Colônia, do Brasil Império, da Primeira
República e do Estado Getulista ................................
................................
...................56
2.2. A experiência democrática do perí
odo compreendido entre 1945 a 1964, o regime
militar e a nova transição para a democracia entre 1964 e 1984
................................
..77
2.3. O papel da sociedade civil na elaboração de políticas públicas
................................
....86
3. A POLÍTICA DELIBERATIVA COMO REFERENCIAL EMANCIPATÓRIO NO
CASO BRASILEIRO
................................
................................
................................
...........99
3.1. A análise da democracia e da participação popular na
história do Brasil
.....................
99
10
3.2. A possibilidade do modelo discursivo habermasiano
................................
.................105
3.3. Democracia como procedimento no caso bras
ileiro: possibilidades e limites............112
CONCLUSÃO
................................
........................................................................................
132
REFERÊNCIAS
................................
................................................................
......................
136
11
INTRODUÇÃO
Como decorrência do receituário neoliberal, aliado às questões resultantes do
processo de globalização hegemônica, tais como transnacionalização de mercados, novos
padrões de processos de produção, crises das instituições jurídicas, políticas e sociais,
visualiza
-se a exclusão sociopolítica das classes subalternas, principalmente nos países
chamados periféricos, como é o caso do Brasil.
Com o objetivo de apontar um referencial emancipatório à exclusão social e política
no Brasil, o presente trabalho faz uma reconstrução da teoria jurídico-política de Habermas,
extraindo
-se de seus textos uma possibilidade defensável acerca da política deliberativa .
Nesse sentido, serão tratadas como fio condutor principal do presente estudo algumas obras
do filósofo alemão consideradas importantes para a análise e o debate da questão colocada,
bem como pelo auxílio de literatura secundária.
Busca
-se, então, com base na matriz filosófica habermasiana, vislumbrar uma
referência teórica de caráter emancipatório para as classes excluídas social e politicamente no
contexto político brasileiro, pelo que se justifica a escolha do norte teórico da filosofia
jurídico
-política de Habermas. É objetivo central do presente trabalho demonstrar que a
matriz jurídico-política habermasiana, no atual processo de globalização, pode oferecer um
caminho para a busca de políticas inclusivas por meio da existência de procedimentos
democráticos de participação política. Nesse viés, a explicitação da teoria jurídico-política de
Habermas será realizada com ênfase na sua proposição de política deliberativa , analisando-
se concomitantemente, o desenvolvimento social e político do Brasil.
Ao longo do trabalho desenvolvem
-
se várias posturas metodológicas, sendo, por isso,
utilizados os seguintes métodos de abordagem: a) dedutivo, ao se partir de teoria geral acerca
12
do tema proposto para se chegar a conclusões sobre situações particulares na análise dos
fenômenos de participação política do caso brasileiro; b) indutivo, nas hipóteses em que se
parte dos casos concretos de participações democráticas brasileiras para tentar demonstrar,
diante das proposições teóricas, as evidências práticas dos efeitos causados pelos processos
participativos; c) analítico, referindo-se à análise conceitual e à busca pelo emprego rigo
roso
de conceitos. O procedimento metódico de tal análise caracteriza-se pelos seguintes
momentos: análise e esclarecimento de conceitos; identificação da idéia-chave; identificação
de teses, hipóteses e argumentos; identificação de problemas e inconsistên
cias
argumentativas; tentativa de resumo e reconstrução pessoal do texto; d) hermenêutico-
fenomenológico, no qual a categoria epistemológica fundamental é a compreensão e a meta é
a interpretação e compreensão dos fatos.
Dessa maneira, o presente estudo divide-se em três capítulos, os quais estão
dispostos da seguinte maneira: no primeiro capítulo, aborda-se a teoria jurídico-política de
Habermas, iniciando-se pela filiação do autor junto ao pensamento filosófico da chamada
Escola de Frankfurt, bem como aos filósofos responsáveis pela produção teórica de tal
corrente de pensamento, cujos ideais filosóficos estão ligados diretamente ao pensamento de
Karl Marx. Após esta primeira incursão acerca do contexto teórico em que Habermas se
encontra, faz-se uma análise acerca do direito e da moral dentro do pensamento
habermasiano, abordando
-
se a transição da ética do discurso para a teoria discursiva do direito
e da democracia, onde se encontra a passagem da razão prática (Kant) para a razão
comunicativa (Habermas), bem como o conceito de ação comunicativa. Ao final do primeiro
capítulo, após se terem vencido os momentos principais da teoria habermasiana, faz-se uma
análise da democracia como procedimento, ao que Habermas intitula de política
deliberativa , pont
o teórico que irá nortear o presente estudo.
No segundo capítulo passa-se ao exame da experiência da democracia brasileira e do
papel dos movimentos sociais no desenvolvimento mediante práticas participativas. Neste
capítulo faz-se a análise detalhada acerca da estrutura social e política ao longo da história do
Brasil, passando-se pelo Brasil Colônia, Império, Primeira República, Estado getulista, bem
como da experiência democrática compreendida nos períodos de 1945 a 1964, do regime
militar e da nova transição para a democracia entre 1964 a 1984. Como análise final do
capítulo, faz-se uma abordagem sobre o papel da sociedade civil na elaboração de políticas
públicas.
13
No terceiro e último capítulo apresenta-se, uma análise reflexivo-crítica acerca da
expe
riência democrática brasileira, bem como da política deliberativa como referencial
emancipatório para o caso do Brasil, visando-se à viabilidade do modelo discursivo
democrático habermasiano, bem como apontando as suas possíveis possibilidades e limites ao
se propor a democracia como procedimento para o caso brasileiro. Ao fim, apresentam-se as
notas conclusivas sobre o presente estudo da teoria jurídico-política de Habermas, em que se
busca justificar a viabilidade da proposição habermasiana da política deliberativa como
projeto emancipatório para as classes excluídas da prática política no Brasil, não ignorando as
flagrantes limitações teóricas e práticas desta abordagem teórica em um país latino-
americano, o que, de certa forma, também não inviabiliza sua prática e seu aperfeiçoamento
como concretização deste importante projeto emancipatório.
14
1. A TEORIA JURÍDICO
-
POLÍTICA DE HABERMAS
1.1. Habermas e o pensamento da Escola de Frankfurt
Dois comentários introdutórios são importantes para esta primeira
parte:
inicialmente, situar o pensamento habermasiano dentro da tradição filosófica e,
principalmente, diante do pensamento da Escola de Frankfurt, ressaltando os objetivos
filosóficos e sociais dos frankfurtianos, cuja continuidade dos trabalhos é atribuída a Jürgen
Habermas, visto como o principal herdeiro da chamada teoria crítica; segundo, esboçar a
teoria jurídico
-
política de Habermas com ênfase na sua proposta de política deliberativa, a fim
de visualizar suas possibilidades e limites para o caso da
democracia brasileira.
É prudente esclarecer que não é objetivo do presente trabalho analisar toda a obra
filosófica de Habermas, o que acarretaria uma demasiada amplitude metodológica, dada a
magnitude do pensamento do autor. Buscou-se, então, uma delimitação da matriz
habermasiana a partir de sua teoria jurídico-política e da sua possível contribuição como
referência de caráter emancipatório para o caso do Brasil.
Em razão da busca dessa referência de caráter emancipatório para as classes
oprimidas brasileiras procura-se vislumbrar tal possibilidade com base na obra de Habermas.
Essa justificativa possui uma razão, que é o entendimento de que Habermas, ao seu modo,
oferece uma continuidade ao pensamento de Marx
1
, cuja preocupação com a emancipação do
1
A fim de contextualizar melhor as raízes da teoria crítica é importante fazer uma breve referência à vida, ao
pensamento e à obra de Marx, conforme expõe Severino: Karl Marx (1818-1883) nasceu em Tréves, na
Alemanha. Estudou direito e filosofia, em Bonn e em Berlim, tornando-se adepto do hegelianismo. Deixou
15
suj
eito humano levou a realizar extraordinária análise acerca do processo de produção
capitalista, das relações de produção e de circulação. Logicamente, a sociedade vivenciada
por Marx era marcadamente diferente da sociedade dos tempos atuais, porém continua-se a
presenciar dentro de um Estado democrático a luta de classes.
Para esboçar o principal objetivo do pensamento filosófico da Escola de Frankfurt é
necessário tecer uma breve trajetória da razão. A partir do século XVI, a razão iniciou uma
marcha rumo ao esclarecimento, visto que se acreditava então que, se emancipada, criaria
condições para aliviar a dor e o sofrimento humanos, dominando as forças da natureza e
fazendo do homem o senhor absoluto do mundo. (BOLZAN, 2005, p. 13).
Fazia
-se, pois, necessário superar a racionalidade objetiva, a qual se mantinha
indiferenciada do todo, e propor uma nova formulação da razão, de característica subjetiva,
capaz de libertar o homem das forças do destino. A partir dos pensadores modernos surgiu
uma racionalidade subjetiva, que enfatiza o privilégio da consciência no processo de
conhecimento. Em meio ao sucesso desse modelo de racionalidade, alicerçado na
subjetividade, tal categoria foi adquirindo conotações não previstas em seu projeto inicial,
isto é, a eficiência do método científico perante a dominação da natureza e também de suas
forças configurou
-
se em subjugação do próprio homem. (BOLZAN, 2006, p. 14).
Pois bem, a razão, que antes procurava um ideal emancipatório para o homem,
acabou se transformando num instrumento de repressão e de destruição das relações sociais,
motivo pelo qual o pensamento frankfurtiano fulmina severa crítica à razão subjetiva. A
teoria crítica, representada pela Escola de Frankfurt, buscou, entre outros objetivos, a
reabilit
ação da razão com vistas a um projeto emancipatório para o homem. Por isso, o nome
Escola de Frankfurt refere-se simultaneamente a um grupo de intelectuais e a uma teoria
social. Em verdade, esse termo surgiu posteriormente aos trabalhos mais significativos de
Horkheimer, Adorno, Marcuse, Benjamin e Habermas [...]. (FREITAG, 2004, p. 9)
2
.
a carreira acadêmica universitária para se dedicar ao jornalismo e à política. Preocupado com as adversas
condições sociais dos trabalhadores no auge do capitalismo industrial, integrou-se às lutas político sindicais
do proletariado, [...] passando a criticar a filosofia idealista de Hegel e a defender o materialismo filosófico.
[...] Marx produziu uma significativa obra teórica nos campos da filosofia, da sociologia e da economia
política. Assim, escreveu Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e de Epicuro (1841),
Crítica
da filosofia do direito de Hegel (1843), Economia e filosofia (1844), Teses sobre Feurbach (1845),
Crítica
da economia política (1859) e o seu clássico e volumoso, O Capital (1867). Com Engels (vide capítulo 11),
publicou
A sagrada família (1845) e A ideologia alemã (1845-1846) [...]. (1994, p. 30). Marx também
publicou os
Manuscritos econômicos
-
filosóficos
(1844) e, com Engels,
O Manifesto Comunista
(1848).
2
Em relação aos pensadores da teoria crítica, pode-se destacar: Max Horkheimer (1895-1973) e Theodor
Adorno (1903-1969) são filósofos alemães que integraram o grupo de pensadores conhecido como Escola de
Frankfurt, ao qual pertenciam ainda Benjamin, Marcuse e Habermas. Por perseguição nazista tiveram de se
16
Com o desenvolvimento dos trabalhos intelectuais dos pensadores frankfurtianos,
criou
-se o Instituto de Pesquisa Social, em 3 de fevereiro de 1923. Sob direção de Max
Horkheimer, a entidade editou uma revista voltada para a história do socialismo e do
movimento operário, sempre procurando descrever, dentro da tradição do pensamento
marxista, as mudanças da organização do sistema capitalista, bem como da relação ca
pital
-
trabalho nos movimentos operários. (FREITAG, 2004, p. 11).
Habermas, considerado o herdeiro intelectual do pensamento da Escola de Frankfurt,
iria notar a subjugação do homem pela razão instrumental a partir da modernidade e apontar a
necessidade da continuidade do projeto emancipatório de seus antecessores, principalmente
Adorno e Horkheimer. Habermas, então, retomaria o debate em torno do conteúdo da obra de
Adorno, Benjamin, Horkheimer e Marcuse, analisando-os criticamente segundo seu próprio
pro
jeto filosófico. Dessa forma, conforme expõe Freitag (p. 30), pode-se visualizar que a
teoria crítica foi concebida em três grandes momentos:
No primeiro, Horkheimer exerce a principal influência sobre o andamento dos
trabalhos. É o período de antes e durante a Segunda Guerra Mundial, até a volta de
Horkheimer e Adorno para Frankfurt em 1950. Num segundo momento, que se
segue ao período da reconstrução do Instituto, é Adorno quem assume a direção
intelectual, introduzindo o tema da cultura e desenvolvendo em sua teoria estética
uma versão especial da teoria crítica. Finalmente, no terceiro momento, a liderança
passa a Habermas que, discutindo a teoria crítica, buscará, com sua teoria da ação
comunicativa, uma saída para os impasses criados por Horkheimer e Adorno,
propondo, para isso, um novo paradigma: o da razão comunicativa. Esse terceiro
momento tem início na década de 70 e continua em pleno desenvolvimento.
Conforme evidencia Freitag (p. 33), o termo Escola de Frankfurt ou a própria
concepção
de uma teoria crítica sugerem uma unidade temática, bem como um consenso
epistemológico teórico e político que raras vezes existiu entre os representantes da escola. De
fato, o que caracteriza a atuação conjunta é a capacidade intelectual e crítica, aliada à reflexão
dialética e à competência dialógica, ao que Habermas chamaria de discurso .
exilar na Inglaterra e nos EUA. Juntos escreveram importantes obras filosóficas, elaborando uma teoria
crítica da ideologia da sociedade e da cultura contemporâneas, enquanto frutos do projeto iluminista da
modernidade. Em co-autoria publicaram Dialética do esclarecimento (1947). Adorno publ
icou
Um novo
conceito de ideologia (1930). Por sua vez, Horkheimer escreveu sozinho: A situação atual da filosofia
social
(1931); Teoria tradicional e teoria crítica (1937); Filosofia da nova música (1949); Por uma crítica
da razão instrumental (1967), Dialética negativa (1966); Teoria estética (1968); e Três estudos sobre Hegel
(1969) . (SEVERINO, 1994, p. 187).
17
Dessa forma, o saber produzido pelo Iluminismo não levou à emancipação humana,
mas à técnica e à ciência moderna, onde a razão manifestada é chamada instrumental , por
ser repressiva. A razão individual de Kant, denominada solipsismo metódico ou filosofia
da consciência , recebe a leitura de razão alienada nos escritos de Adorno e Horkheimer, por
se ter desviado do seu projeto emancipatório, transformando-se em razão instrumental, guiada
pelo controle totalitário da natureza e pela dominação dos homens. A razão moderna também
assume uma conotação racionalista, posto que
a necessidade de aumentar a produção de riquezas, em torno da qual passa a girar a
ec
onomia, bem como o fortalecimento do poder estatal, promovem uma vinculação
entre as esferas da ciência, da tecnologia e da política para a manutenção da ordem
social, a reprodução dos saberes instituídos e um aprendizado que gere resultados
concretos. Sob o prisma da racionalidade científica instrumental se instaura um
modo original de abordagem da realidade, pelo qual, com o método experimental, as
ciências enveredam para a subjetividade do conhecimento, cujos pressupostos se
inspiram no empirismo e no r
acionalismo modernos. (BOLZAN, 2006, p. 31).
De acordo com Nobre (2004, p. 38), a atitude crítica presente nos textos de Max
Horkheimer, quando pretende explicar o funcionamento da sociedade, está presente na
distinção que faz entre teoria tradicional e teoria crítica. A primeira, em nome de uma
pretensa neutralidade da descrição, resigna-se à forma histórica da dominação numa
sociedade seccionada por classes, concepção que acaba ratificando como necessária a divisão
social de classes.
Por sua vez, a teoria crítica busca eliminar as diferenças de classes no interior da
sociedade, mostrando que os homens renovam com seu próprio trabalho uma realidade que os
escraviza de forma crescente e os ameaça com vários tipos de misérias. Assim, a função do
pensame
nto crítico torna-se clara, devendo expor as contradições sociais, o que a teoria
tradicional não faz, e, concomitantemente, buscar a transformação da sociedade. Segundo
Horkheimer (1980, p. 154),
a teoria crítica não tem, apesar de toda a sua profunda compreensão dos passos
isolados e da conformidade de seus elementos com as teoiras tradicionais mais
avançadas, nenhuma instância específica para si, a não ser os interesses ligados à
própria teoria crítica de suprimir a dominação de classe.
18
Em tal contexto, Habermas passaria a questionar o projeto positivista da razão e sua
maneira de postular a verdade e a objetividade do conhecimento tão-somente em prol do
método, escondendo-se na razão instrumental a capacidade de se manipularem as regras
formais
3
. Portanto, o Estado moderno deve preservar o funcionamento da economia, superar
as crises existentes em relação à racionalidade e, ainda, legitimar-se perante a grupos
reivindicadores, sempre numerosos e também diversificados, segundo observa Freitag (2004,
p. 101).
É importante ressaltar que o Estado capitalista enfrenta dificuldades, procurando
maximizar ou otimizar lucros por meio de uma posição econômica que lhe seja favorável no
mercado internacional e busca sempre atender às exigências do sistema produtivo, quer como
consumidor, quer como produtor de mercadorias. Todavia, com o Estado do bem
-
estar,
ele alcança os limites de sua capacidade assistencialista e os problemas de
legitimação quando não consegue mais atender às crescentes reivindicações
emerg
entes, ou quando suas políticas sociais não convencem mais a clientela da
necessidade de se lançar no mercado de trabalho para ali ser consumida como força
de trabalho pelo grande capital (crise de legitimação). (FREITAG, 2004, p. 103).
Para Freitag (p. 103), com base nesse contexto Habermas buscaria, por meio de um
terceiro caminho, inserir o Estado novamente no quadro institucional em que a política deixa
de ser uma simples técnica de silenciamento, uma forma de manifestação da racionalidade
instrument
al, a qual despolitiza os assuntos de Estado, voltando ao modelo da polis grega,
onde as grandes decisões são tomadas como um todo, com base no discurso teórico e prático.
Habermas esforça-se para que o Estado volte a ser como na Grécia antiga, ou seja,
um espaço com integração social, não um subsistema aliciado pelo sistema econômico,
3
Em relação à técnica aplicada à produção, também é necessário destacar que o modo de produção capitalista
instaura a organização racional do trabalho de forma a se tornar eficiente, com capacidade de competição e
imposição de suas regras de produção diante do mercado. Tal avanço científico e tecnológico produz
transformações profundas na relação de produção e nas relações sociais. Nesse sentido ver: BOLZAN, José.
Habermas
: razão e racionalização. Ijuí: Unijuí, 2006; BUSNELLO, Ronaldo. Processo de produção e
regulação social. Ijuí: Unijuí, 2005; MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Tradução de
Reginaldo Sant Ana. Livro
I. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
19
dirigido pelo princípio da acumulação do capital. Com isso, Habermas aponta em sua crítica
três
deficits
em relação à primeira geração da Escola de Frankfurt: a razão, a verdade e a
democracia.
Em relação à razão, de acordo com a análise de Freitag (p. 108), o problema de
Horkheimer e Adorno com o conceito de razão advém do fato de se aterem a um conceito
histórico
-filosófico de razão, de inspiração marxiana. Os dois teóricos não abandonaram a
crença em numa razão histórica que se manifestaria por meio do processo material de
produção e reprodução da moderna sociedade burguesa. Nesse sentido, nunca abandonaram a
idéia de que a razão seria capaz de objetivar-se na história, emancipando a humanidade.
Todas as experiências históricas, no entanto, foram contra essa inspiração de Horkheimer e
Adorno, desaparecendo as últimas esperanças da materialização histórica da razão
emancipatória. Segundo a autora (p. 109),
a crítica de
Habermas a essa posição se resume no fato de Horkheimer e Adorno não
terem, em nenhum momento, revogado, criticado e substituído esse conceito
(ultrapassado) de razão histórico-filosófica [...]. Segundo ele, o equívoco desses
autores remonta a Marx, que acreditava poder encontrar na categoria do trabalho o
substrato material e universal da constituição da razão.
Logicamente, a razão emancipatória em Marx localiza
-
se na categoria do trabalho, ao
passo que em Habermas (teoria da ação comunicativa) a razão emancipatória não está nas
relações do trabalho, mas na intersubjetividade encarnada a partir de sua teoria do discurso.
Por isso, como pensador que dá seqüência aos postulados teóricos da teoria crítica, o filósofo
alemão é considerado o herdeiro do pen
samento frankfurtiano, posto que,
além de comentar e debater a primeira geração dos teóricos críticos, Habermas pode
ser considerado o pensador mais produtivo de uma nova versão da teoria crítica do
momento. [...] Habermas vem se preocupando com uma reformulação da
teoria
crítica
de Frankfurt que permita a sua saída do impasse ao qual foi conduzida
especialmente por Adorno. Suas reflexões em torno dos problemas da legitimação
do Estado moderno (Wissenchaft und Tchnik als Ideologie, 1968,
Legitimations
-
probleme des Spaetkapitalismus, 1972) e a elaboração de uma teoria da ação
comunicativa (Theorie des Kommunikativen Handels, 1981-1984, 3 vols.,
Moralbewusstsein und Kommunikatives Handeln, 1983) exemplificam os esforços
de Habermas em preservar o cunho crítico dos teóricos de Frankfurt no interior de
20
uma reformulação e inovação teórica que os supera e transcende. (FREITAG, 2004,
p. 28
-
29).
Em relação ao
deficit
da verdade, Habermas também diverge de seus predecessores,
visto que Adorno e Horkheimer não conseguiram formular um conceito de verdade capaz de
responder aos requisitos da ciência, ao passo que Habermas o faz por meio de sua teoria
comunicativa da verdade. (FREITAG, 2004, p. 110).
No que diz respeito ao último
deficit
, da democracia
que será o foco da presente
investigação
, adota-se novamente a interpretação acerca de todo o pensamento da Escola de
Frankfurt, evidenciado por Freitag (p. 111) em excelente análise em torno da teoria crítica. A
autora salienta que os pensadores frankfurtianos jamais conseguiram familiarizar-se com uma
perspectiva de democracia fora do contexto de massas, o que sempre foi visto com
desconfiança, temor e, inclusive, como uma ameaça à razão.
A solução a ser apontada por Habermas, que será detalhadamente exposta n
este
primeiro capítulo, passa pelo necessário abandono do paradigma da filosofia da consciência,
proposto por Kant em sua teoria moral e, principalmente, evidenciado nas obras
Fundamentação da metafísica dos costumes
,
Metafísica dos costumes
,
Crítica da razão pura
e
Crítica da razão prática. O solipsismo metódico kantiano de uma razão monológica é
substituído em Habermas por uma razão dialógica, intersubjetiva, mediada pelo consenso.
Dessa forma, segundo a autora (p. 112),
Habermas sugere, como alternativa, retomar o paradigma, toscamente elaborado
por G. H. Mead, Durkheim e Wittgenstein, mas insuficientemente explorado pelas
ciências sociais, da razão comunicativa, da verdade processual, consensualmente
estabelecida. [...] Razão e verdade deixam de ser conteúdos, valores absolutos
universais, para serem definidos
formalmente
como procedimentos, isto é, regras de
jogo, fixadas consensualmente. Seguindo a idéia piagetiana da descentralização,
Habermas afirma que a razão e a verdade resultam da interação do indivíduo com o
mundo dos objetos, das pessoas e da vida interior. Por isso a razão e a verdade
podem decorrer da organização social dos atores interagindo em situações
dialógicas. A razão não tem, pois, sua sede no sujeito epistêmico, como queri
a
Kant, nem no ser antropológico, ao mesmo tempo pulsional e
vernuenftig
(razoável),
como imagina Marcuse, mas sim na organização intersubjetiva da fala. O que é
razoável, para os indivíduos e a sociedade, brota, pois, de um consenso, resultante da
comuni
cação dialógica. O conceito de razão faz sentido enquanto razão
dialógica.
21
A partir da proposição da matriz habermasiana, razão e verdade não serão mais
conceitos absolutos, mas categorias válidas temporariamente, conforme o consenso dos atores
envol
vidos no discurso de um determinado contexto. Nesse sentido, a fim de se evidenciar a
construção habermasiana da razão, passa
-
se a partir do próximo item à análise da passagem da
razão prática, abordada pelo paradigma kantiano da filosofia da consciência, à razão
comunicativa, proposta por Habermas.
1.2. Direito e moral: a passagem da ética do discurso para a teoria
discursiva do direito e da democracia
1.2.1. Da razão prática à razão comunicativa: de Kant a Habermas
Para se poderem vislumbrar os conceitos habermasianos de razão comunicativa ,
ação comunicativa e mundo da vida , bem como para se alcançar um entendimento
detalhado da sua teoria jurídico-política, torna-se necessária a análise do caminho que a ética
assume a partir de Habermas, posto
que o autor diferenciou
-
se substancialmente do modelo da
ética proposta por Kant. Sem dúvida, Habermas assume uma nova proposta para a sua teoria
ética, redefinindo o próprio conceito de imperativo categórico formulado em Kant.
A fundamentação da ética em Kant
4
é abordada com base nas seguintes obras:
Fundamentação da metafísica dos costumes (1785), Crítica da razão prática (1788) e
Metafísica dos costumes
(1797). Para os fins da presente investigação, abordar
-
se
-
á o tema da
ética em Kant a partir da
Fun
damentação da metafísica dos costumes
, entendendo
-
se que essa
análise é suficiente para a compreensão posterior do pensamento habermasiano.
Para Kant as capacidades humanas sem a boa vontade de nada valem. Por isso, ele
tem um propósito claro de fundamentar a moral, objetivo que irá diferenciá-lo de todos os
4
Igualmente, a fim de uma melhor compreensão do pensamento de Habermas, faz-se necessário rápida
consideração sobre vida e obra de Immanuel Kant, também filósofo alemão, cujo pensamento será
reconstruído
por Habermas em sua teoria da ação comunicativa: Immanuel Kant nasceu em 1724, em
Königsberg, a cidade onde sempre esteve, chegando mesmo a reitor da universidade local, onde também
estudou e foi professor de lógica e metafísica. Foi fortemente marcado pelo luteranismo pietista de sua
família. Levou vida tranqüila, austera e estudiosa, mas mesmo assim seu pensamento, pelo teor crítico,
provocou
-lhe perseguições e censuras. [...] Morreu em 1804. Escreveu vários trabalhos de filosofia, de
grande importância para o pensamento moderno:
Dissertação
(1770); Crítica da razão pura (1781);
Prolegômenos a toda metafísica futura (1783) [...] Fundamentação da metafísica dos costumes (1785);
Crítica da razão prática (1788); [...] Tratado sobre a paz perpétua (1795) [...]. (SEVERINO, 1994, p. 112-
113).
22
outros da tradição filosófica, posto que as capacidades, se não forem orientadas pela boa
vontade, podem se tornar coisas más. Para Kant o homem é um ser racional sensível e a
vontade humana não é sempre perfeita, podendo recair em escolhas, as quais podem não ser
boas.
Durante toda a primeira seção da Fundamentação da metafísica dos costumes Kant
trata da boa vontade. O fundamento, pois, da boa vontade deve ser puro, não empírico, uma
vez que, para ele, os motivos devem ser puramente racionais. A vontade deve ser orientada
pela razão, pois
se em um ser dotado de razão e vontade a verdadeira finalidade da natureza fosse a
sua conservação, o seu bem-estar, em uma palavra a sua felicidade, muito mal t
eria
ela tomado as suas disposições ao escolher a razão da criatura como executora
dessas suas intenções. Pois todas as ações que essa criatura tem de realizar com esse
fim, bem como todas as regras de comportamento, lhe seriam indicadas com muito
maior exatidão pelo instinto, e aquela finalidade seria cumprida por meio dele com
muito mais segurança do que se o fosse pela razão. (KANT, 2004, p. 23).
Em Kant (p. 24) o homem não é um ser puramente racional e precisa da lei moral
para fazer a ligação entre vontade e razão. Por isso, é para a vontade não perfeitamente boa
que se põe o dever, posto que
se a razão não é suficientemente apta para guiar com segurança a vontade no que
respeita aos seus objetos e à satisfação de todas as nossas necessidades (que ela
mesma, a razão, em parte multiplica), visto que um instinto natural inato levaria com
muito maior certeza a esse fim, e se, no entanto, não nos foi dada a razão como
faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer influência sobre a
vont
ade, do que resulta que o seu verdadeiro destino será o de produzir uma vontade
boa não como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma,
coisa para a qual a razão era absolutamente necessária, que a natureza em tudo
agiu com acerto na distribuição de suas disposições e talentos. Essa vontade não
será todo o bem, nem o único bem; contudo, terá de ser o bem supremo e a condição
de todo o resto, mesmo de toda a aspiração à felicidade. [...] Mas para desenvolver o
conceito de uma vontade digna de ser estimada em si mesma e sem qualquer
intenção ulterior, [...] Encaremos o conceito de dever que contém em si o de boa
vontade, posto que sob certas restrições e obstáculos subjetivos, os quais, muito
longe de ocultá-los e torná-lo incognoscível, antes fazem ressaltá-lo e aparecer com
mais clareza.
23
Segundo Kant, a moral é uma doutrina para o homem ser digno da felicidade, sendo
necessário que as ações humanas sejam praticadas por dever (ação moral por excelência),
ficando de lado as ações que intitula conforme o dever (possuem um cálculo prudencial:
conseqüências) e contrárias ao dever (imorais). A fim de se poder estabelecer uma maneira
para se saber se as ações humanas são ações morais, Kant lança mão de uma universalização,
pois o princípio que determina a vontade tem de ser universal, ou seja, o dever deve ser
imposto por uma máxima universal.
Para o autor, então, a origem da lei moral deve ser a priori, não empírica. Ora, fica
evidente que para o filósofo de Königsberg a moral não pode ser extraída de fatos da
experiência, visto que o valor moral das ações é buscado em seus princípios íntimos. Se a lei
moral não pode ser fundamentada de forma empírica, será fundamentada de forma metafísica;
assim, a representação de um princípio objetivo, enquanto seja constitutivo para uma
vontade, chama-se mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-
se
imperativo
. (p. 43-
44).
O imperativo em questão é denominado por Kant categórico , pelo fato de não ser
limitado por nenhuma condição e se poder chamá-lo de um mandamento absoluto .
Segundo ele, o imperativo categórico é único e pode ser descrito da seguinte forma: Age
segundo máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal. (p.
51). Eis o princípio supremo da moralidade em Kant, o qual deve ser independente da
experiência e fundar-se na razão pura, ou seja, a priori. Conforme esclarece Brito (1994, p.
60),
este imperativo é expresso numa proposição a que o autor dá o nome de <<sintética-
prática
a priori>> (FMC, 57-58). Esta expressão, proposição sintética a priori, traz
a idéia os juízos sintéticos
a priori
que Kant encontrou nas proposições em que estão
formulados os princípios das ciências e que conseguiu explicar pelo papel
desempenhado pela estrutura transcendental do sujeito no acto cognitivo.
É importante destacar que, em relação ao imperativo categórico, Kant (2004, p. 59-
67) desenvolve, ainda, três formulações derivadas do imperativo, quais sejam: na primeira
fórmula derivada, as máximas devem ser escolhidas de maneira a poderem ser convertidas em
leis universais da natureza; a segunda fórmula derivada considera nas máximas a humanidade
do ser racional como um fim, jamais como um meio; a terceira fórmula derivada considera as
24
máximas na sua determinação completa ao enunciar que emanam da própria legislação do
homem, com o que se gera um reino de fins, o qual seria um reino da natureza.
O importante a ser destacado da teoria kantiana da moral é que o imperativo
categórico não deriva da experiência e impõe-se por si mesmo, não pela finalidade que
permite agir. O imperativo categórico, cumprido ou não, sempre terá o caráter de lei prática,
sendo uma proposição construída por Kant, a qual impõe ao sujeito um imperativo (uma
máxima) que deve ser cu
mprido por enunciar uma lei universal.
Em
Direito e democracia Habermas (2003a, p. 17-20) identifica a razão prática com
uma faculdade subjetiva constituída de um sujeito singular. A filosofia kantiana (prática)
parte da premissa solipsista de um sujeito individual que pensa o mundo e a história a partir
de si mesmo, e a razão prática, estando ligada a uma faculdade subjetiva, tornou-
se uma razão
de cunho normativista
5
.
Na interpretação de Moreira (2004, p. 99), é o conteúdo normativista da razão prática
que oferece ao indivíduo uma alternativa aos problemas que afetam sua vida e sua
comunidade, uma vez que com tal recurso o sujeito passa a ser sede de toda a moralidade e de
toda a politicidade. Habermas analisa que, em Kant, a intersubjetividade da val
idade das leis
morais, admitida a priori mediante a razão prática, permite a redução do agir ético à ação
monológica (apud DUTRA, 2005, p. 157). Dessa forma, o diálogo e a interação entre as
vontades são eliminados do imperativo, ao passo que o imperativo confere universalidade
transcedentalmente necessária a leis abstratas. Habermas, em verdade, faz uma nova
interpretação processual, dialógica e comunicativa do imperativo categórico
6
.
Num paralelo à Fundamentação da metafísica dos costumes de Kant, a ética
discursiva parte de uma reconstrução de nossas intuições morais do senso comum e trata de
fundamentar o princípio subjetivo que norteia tal intuição. Dessa forma, a análise das
intuições morais aponta para o princípio da universalização (U). Por conseguinte, de acordo
5
Sobre essa questão, tem-se a acusação geral da filosofia prática no solipsismo, sobre a forma como Kant
pensou a racionalidade, tendo postulado que a razão individual de cada sujeito bastaria para a fundamentação
da norma moral (solipsismo metódico). Habermas parte da fundamentação dialógica e procedimental do
dever ultrapassando a chamada filosofia da consciência de base kantiana e, portanto, a consciência
individual. Todavia, em que pese o posicionamento de Habermas em relação a essa questão, a qual será
tomada como padrão para o desenvolvimento teórico do presente trabalho, é necessário referir que a questão
referente ao Tribunal da Razão não é pacífica para a filosofia.
6
Ao oferecer essa nova interpretação dialógica do imperativo categórico kantiano, ao contrário da razão
prática, a razão comunicativa não oferece modelos para a ação. Não sendo uma norma de ação, a razão
comunicativa constitui-se como condição possibilitadora e, ao mesmo tempo, limitadora do entendimento
(MOREIRA, 2004, p. 101).
25
com Dutra (2005, p. 165), o mais importante da ética discursiva reside em fundamentar (U)
nos presssupostos pragmáticos do entendimento, do consenso. Habermas tem interesse na
idéia que subjaz ao imperativo de Kant, ou seja, o caráter impessoal e universal da ética. As
normas válidas que merecem ser aceitas são aquelas que exprimem uma vontade universal.
Caberia, assim, à razão prática servir de guia para a ação do sujeito, oferecendo-
lhe
uma orientação normativa para a sua ação. Habermas (2003a, p. 20), por meio da chamada
reviravolta lingüístico
-
pragmática, substitui a razão prática pela razão comunicativa:
A razão comunicativa distingue-se da razão prática por não estar adstrita a nenhum
ator singular nem a um macrossujeito sociopolítico. O que torna a razão
comunicativa possível é o
medium
lingüístico, através do qual as interações se
interligam e as formas de vida se estruturam.
Segundo Habermas, é por meio do
medium
lingüístico que a razão comunicativa se
distingue da razão prática, uma vez que esta, como visto em Kant, está associada a um padrão
interpretativo que se entende a partir da singularidade, ao passo que, inversamente, a razão
comunicativa não oferece modelos para ação. Não sendo uma norma de ação, a razão
comu
nicativa constitui-se como condição possibilitadora e, ao mesmo tempo, limitadora do
entendimento, o qual,
ao contrário da razão prática, não é uma fonte de normas do agir. Ela possui um
conteúdo normativo, porém, somente na medida em que se age comunic
ativamente é
obrigado a apoiar-se em pressupostos pragmáticos de tipo contrafactual. Ou seja,
ele é obrigado a empreender idealizações, por exemplo, a atribuir significado
idêntico a enunciados, a levantar uma pretensão de validade em relação aos
proferim
entos e a considerar os destinatários imputáveis, isto é, autônomos e verazes
consigo mesmos e com os outros. (HABERMAS, 2003a, p. 20).
Pode
-se dizer que uma grande diferença entre a razão prática proposta por Kant e a
razão comunicativa em Habermas é que a razão prática parte de uma orientação para o agir
(imperativo categórico, princípio supremo da moralidade), ao passo que na razão
comunicativa o agir é orientado pelo entendimento, não oferecendo modelos para a ação, pois
26
possui a linguagem como
mediu
m. Habermas entende que a moral orientada nos princípios
depende de uma complementação por meio do direito positivo; por isso, propõe ao lado da
sua teoria do discurso uma teoria do direito, na qual
o princípio da teoria do discurso, configurado inicialmente de acordo com a
formação da vontade individual, comprovou-se no campo ético e na filosofia moral.
Entretanto, é possível provar, sob pontos de vista funcionais, por que a figura pós-
tradicional de uma moral orientada por princípios depende de uma co
mplementação
através do direito positivo. (HABERMAS, 2003a, p. 23).
Nesse sentido, Habermas aponta a necessidade de formulação de uma teoria do
direito e do Estado de direito paralelamente à teoria do discurso. É especificamente esse o
momento em que,
entende
-se, pode-se falar expressamente em uma filiação de Habermas à
teoria crítica, posto que lança mão de uma teoria consensual da verdade, buscando também
uma emancipação social. Tais pontos
tanto a questão da verdade quanto a busca da
emancipação
foram objeto da primeira geração dos teóricos de Frankfurt e, agora, são
questões levadas adiante por Habermas, com um diferencial teórico de seus antecessores.
Habermas fez isso por meio de uma filosofia da linguagem e de seu próprio projeto filosófico,
de forma que,
com isso, fica claro que a noção mesma de emancipação se altera com relação à
Teoria Crítica. Se não é possível estabilizar definitivamente expectativas de
comportamento social, que dependem de soluções falíveis e precárias , é o projet
o
mesmo de uma sociedade integralmente racional
fundada em uma razão íntegra,
pensada a partir do modelo marxista, o que exige o desaparecimento do Estado, por
exemplo
que periclita, seja na versão de Horkheimer de barrar a barbárie, no recuo
utópico de Marcuse, ou na reconciliação adorniana, barrada pelo bloqueio objetivo
da práxis. A emancipação é pensada por Habermas como ampliação das esferas
sociais submetidas à racionalidade comunicativa, no quadro de um mundo da vida
de feições pós
-
tradicionais.
(NOBRE, 1991, p. 389).
Dessa forma, Habermas busca a fundamentação para o seu projeto filosófico numa
filosofia da linguagem destituída de ambigüidades e imprecisões, com necessidade de
superação da metafísica, explicando que,
27
após a guinada analítica da linguagem, levada a cabo por Frege e Peirce, foi
superada a oposição clássica entre idéia e realidade, típica da tradição platônica,
interpretada inicialmente de modo ontológico e, a seguir, segundo os parâmetros da
filosofia da consciência. As idéias passam a ser concebidas como incorporadas na
linguagem, de tal modo que a facticidade dos signos e expressões lingüísticas que
surgem no mundo liga-se internamente com a idealidade da universalidade do
significado e da validade em termos de verdade. (20
03a, p. 55).
Funda
-se, assim, a teoria habermasiana na linguagem, isto é, ação que se expressa na
fala. A teoria que mais teve influência no pensamento habermasiano é abordada por
Wittgenstein (II) em sua obra Investigações filosóficas, a qual contraria o primeiro
pensamento do próprio Wittgenstein em sua obra Tractatus logico-
philosophicus
, onde a
garantia do pensamento era o ter em mente , sendo que as confusões do uso não interferiam
na clarividência do ato mental. A partir de Wittgenstein (II) tal conceito é expulso da mente
humana, e tudo passa a pertencer ao que o autor denomina jogos de linguagem (formas de
vida), uma vez que o ter em mente passa a ser decidido no próprio jogo (WITTGENSTEIN,
1991, p. 12). Dentro dessa conceituação de jogos de linguagem encontram-se duas
características: a imprevisibilidade, ou seja, a possibilidade apenas a posteriori de determinar
o sucesso do lance, e as regras, isto é, gramática superficial e gramática profunda, que são
regras de uso.
Em relação ao sentido da linguagem na obra
Tractatus
, assentava-se no postulado de
que era portadora de uma estrutura de racionalidade garantida pela sua forma lógica. Tal
estrutura é que fundaria o sentido. Por outro lado, já nas
Investigações filosóficas
o sentido da
li
nguagem é deslocado para o espaço público dos jogos de linguagem. Dessa forma, a
racionalidade da linguagem não é mais uma propriedade formal, mas algo decidido nas
circunstâncias concretas dos jogos de linguagem e das formas de vida.
No entendimento de Galuppo (2002, p. 108-109), o que Habermas faz é uma
fundamentação dialógica e procedimental do dever, o que o leva a deslocar o enfoque para
dentro da filosofia da linguagem e a ultrapassar a filosofia da consciência kantiano-
husserliana, que privilegia a consciência individual no processo de conhecimento de
construção de normas de ação. Há, na visão do autor, a possibilidade de a esfera prática,
especialmente o direito, ser estudada como linguagem, isto é, como comunicação, ligando,
assim, a teoria do dir
eito contemporânea à teoria dos atos de fala da linguagem.
28
-se, dessa forma, a passagem da razão prática para a razão comunicativa, o que
significa uma ruptura com a tradição normativista. Tal ruptura, porém, não significa o
abandono por Habermas da razão pensada no modelo proposto por Kant, ou seja, a
desvinculação do modelo de racionalidade prática kantiano pensado a partir do sujeito
individual em oposição a uma proposta de ação comunicativa mediada pelo consenso. Para
Habermas (2003a, p. 26),
a renúncia ao conceito fundamental de razão prática sinaliza a ruptura com esse
normativismo. Todavia, o conceito sucessor razão comunicativa conserva
fragmentos idealistas desta herança, os quais nem sempre são vantajosos, no
contexto modificado de uma te
oria comprometida com o esclarecimento.
A matriz habermasiana oferece uma nova proposta na medida em que, juntamente
com a virada lingüística, rompe com o paradigma da filosofia da consciência, também
entendido como filosofia do sujeito, no qual a verdade a respeito de um determinado juízo
dependia da certeza do sujeito de que sua representação correspondia ao objeto, ao passo que
no novo paradigma o papel do sujeito está na comunicação mediada por argumentos.
1.2.2. O Conceito de Ação Comunicativa
Para
avançar ao próximo tópico, em que será abordada a passagem da ética do
discurso para a teoria discursiva do direito e da moral, bem como para uma melhor
compreensão da própria teoria jurídico-política de Habermas, torna-se necessário revisitar a
obra do filósofo alemão no ponto em que trata o conceito de ação comunicativa. Para
sistematizar um conceito compreensível do que Habermas entende por ação comunicativa,
faz
-se a análise com base na obra Teoria da ação comunicativa
7
, bem como em alguns
comentadores
de Habermas.
7
Para este trabalho foi adotada a versão em língua espanhola da obra Teoria da ação comunicativa. A edição
original
Theorie des kommunikativen Handelns. Band. I. Handlungsrationalität und gesellschaftliche
R
ationalisierung
foi impressa no ano de 1981 pela Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main. A versão adotada
é
Teoría de la accion comunicativa
,
I: racionalidad de la acción y racionalización social, reimpressão de
1992, publicada pela Taurus Humanidades. As traduções para a língua portuguesa realizadas ao longo do
texto da obra referida, bem como de outras obras em língua estrangeira, são de responsabilidade do autor da
presente investigação científica.
29
Tomando por base a argumentação inicial de Habermas na Teoria da ação
comunicativa
(1992, p. 9), o interesse metodológico por uma fundamentação das ciências
sociais em uma teoria da linguagem é substituído por um interesse substancial. Então
, a teoria
da ação comunicativa não é uma metateoria, mas o início de uma teoria da sociedade que se
esforça para dar razão aos cânones críticos de que faz uso. Para Habermas a categoria da ação
comunicativa permite o acesso a três complexas temáticas que
se encaixam entre si:
Trata
-se em primeiro lugar de um conceito de racionalidade comunicativa; que tem
desenvolvido com o suficiente ceticismo, mas que é capaz de fazer frente às
reduções cognitivo-instrumentais que se faz da razão; em segundo lugar, de um
conceito de sociedade articulado em dois níveis, que associa os paradigmas de
mundo da vida e sistema, e não só de forma retórica. E finalmente, de uma teoria da
modernidade que explica o tipo de patologias sociais que hoje se tornam cada vez
mais visíveis, mediante a hipótese de que os âmbitos de ação comunicativamente
estruturados ficam submetidos aos imperativos de sistemas de ação organizados
formalmente que converteram autônomos. Ou seja, a teoria da ação comunicativa
nos permite uma categorização do plexo da vida social, com a que se pode dar razão
dos paradoxos da modernidade. (HABERMAS, 1992a, p. 10).
Num novo paralelo à teoria crítica, nota-se que Habermas também concentra suas
atenções na possibilidade da fundamentação racional do agir humano, o que faz por meio de
sua teoria da ação comunicativa. Pode-se dizer que é difícil tomar um recorte metodológico
da obra de Habermas, que é um filósofo completo, no sentido de dialogar com toda a tradição
filosófica desde o pensamento grego (Sócrates, Platão, Aristóteles), passando pelo
pensamento medieval (Agostinho, Tomás de Aquino), pelos pensadores modernos (Locke,
Hobbes, Rousseau, Montesquieu, Bacon, Berkeley, Leibniz, Descartes, Kant, Fichte, Hegel,
Scheling, Durkheim, Marx, Feurbach, Freud, Piaget) e também pelos contemporâneos
(Gramsci, Wittgenstein, Russel, Husserl) até chegar aos pensadores mais próximos de seu
tempo (Heidegger, Ricoeur, Popper, Peirce, Carnap, Marcuse, Benjamin, Adorno,
Horkheimer, Deleuze e Foucault), isso numa rápida abordagem da trajetória intelectual de
Habermas. Por isso, concorda-se com Lichtheim, um dos comentaristas mais perspicazes da
vida cultural européia, que escreveu o seguinte sobre Habermas:
Não é nada fácil avaliar o trabalho de um erudito cuja competência profisional se
estende desde a lógica da ciência à sociologia do conhecimento, via Marx, Hegel e
30
fontes mais recônditas da tradição metafísica européia... Em uma época em que
quase todos seus colegas conseguiram controlar com muito esforço uma arte do
cam
po de trabalho, ele se apoderou da totalidade, tanto no referente a profundidade
quanto à amplitude. Não há nada que lhe escape, nem tampouco evade nenhum tipo
de dificuldades ou a enunciação ilegítima de conclusões que não estejam apoiadas
pela investiga
ção: tanto se refuta a Popper, examina minuciosamente o pragmatismo
de Charles Peirce, investiga os antecedentes medievais da metafísica de Scheling, o
põe em dia a sociologia marxista, existe sempre o mesmo domínio misterioso das
fontes, unido a um invejável talento para clarear os complicados problemas lógicos.
Parece haver nascido com uma faculdade para digerir o tipo de material mais difícil
e transformá-lo depois em totalidades ordenadas. (LICHTHEIM apud
BERNSTEIN, 1994, p. 13).
Dessa forma, todo o esforço da presente investigação é também manter íntegras as
categorias trabalhadas por Habermas em algumas de suas obras, buscando a melhor
interpretação possível de suas teses e proposições, mesmo sabendo que se está diante de um
dos maiores pensadores da história da filosofia. Um dos objetivos de Habermas, a partir da
teoria da ação comunicativa, é o de oferecer uma teoria crítica da sociedade, o que busca fazer
por meio da estrutura racional interna da ação orientada para o entendimento.
De acordo com Mühl (2003, p. 137), em sua teoria da ação comunicativa Habermas
busca fundamentar esse potencial no interagir comunicativo, pensando nele encontrar uma
saída racional diante das abordagens reducionistas atuais, sem cair numa nova metafísica. Por
isso, Habermas refere que o desafio da atualidade é o motivo da teoria da ação comunicativa,
explicando que
desde fins dos anos sessenta, as sociedades ocidentais se aproximam a um estado em
que a herança do racionalismo ocidental já não resulta inquestionável. A
estabilização da situação interna, conseguida (de forma talvez particularmente
impressionante na Alemanha) sobre a base do compromisso que o Estado social
representa, se está cobrando crescentes cortes culturais e psicossociais; também
tomou maior consciência da instabilidade, obviada passageiramente, mas nunca
realmente dominada, das relações entre as super potências. (1992a, p. 11
-
12).
É importante destacar que Habermas que a posição dos neoconservadores é a de a
qualquer preço alcançar o modelo da modernização econômica e social capitalista. Tal
corrente segue, portanto, concedendo prioridade ao crescimento econômico, protegido pelo
compromisso do Estado social, o qual se encontra mais estrangulado a cada dia que passa.
31
Por isso, busca as que
stões que sirvam de fundamento para uma teoria da sociedade. Segundo
Mühl (2003, p. 139), pode-se localizar a crítica de Habermas à visão reducionista de
racionalidade a que chegaram Adorno e Horkheimer, os quais afirmaram que a razão não
cumpriria a sua finalidade de emancipar a humanidade, quando se nota que no projeto
habermasiano
a racionalidade comunicativa contém, em si mesma, um telos emancipador que torna
possível a manutenção do poder transformador da razão. No telos da linguagem
pragmática, ele encontra elementos para restabelecer o poder da razão de normatizar
e dar validade ao agir humano.
Para esclarecer o conceito de ação comunicativa Habermas explica, primeiro, outros
três modelos de ação e racionalidade. A partir de agora se deve sempre levar em conta que
Habermas tem na linguagem um meio para coordenar a ação; diante disso, visa buscar a
orientação que constitui a ação comunicativa. Na teoria da ação comunicativa estão
estabelecidos quatro tipos de modelos de ação e racionalidade: o modelo teleológico, o
modelo guiado por norma, o modelo dramatúrgico e o modelo comunicativo. Segundo
Habermas,
o conceito de ação teleológica pressupõe relações entre um ator e um mundo de
estados de coisas existentes. Este mundo objetivo está definido como totalidade dos
estados de coisas que existem ou que podem se apresentar ou ser produzidos
mediante uma adequada intervenção no mundo. (1992a, p. 125).
Como se vê, no conceito de ação teleológica a pressuposição da relação de um
ator com um estado de coisas existentes no mundo objetivo. Na interpretação de White
(1995, p. 45), o agente relaciona
-se com esse mundo tanto cognitivamente, por opiniões sobre
ele, quanto volitivamente, por intenções de nele intervir.
O segundo modelo de ação proposto por Habermas é o chamado conceito de ação
regulada por normas , o qual
32
pressupõe relações entre um ator e exatamente dois mundos. Junto ao mundo
objetivo de estados de coisas existentes aparece o mundo social a que pertence o
mesmo ator em sua qualidade de sujeito portador de um rol de outros atores, os
quais podem iniciar entre si interações normativamente reguladas. Um mundo
social consta de um contexto normativo o qual fixa que interações pertencem à
totalidade de relações interpessoais legítimas. E todos os atores para quem regem as
correspondentes normas (por quem estas são aceitas como válidas) pertencem ao
mesmo mundo social. (HABERMAS, 1992a, p. 128).
Conforme White (1995, p. 45), no modelo de ação guiado por norma o agente pode
se relacionar não apenas com um mundo objetivo como também com um mundo social.
Segundo a exposição de Habermas, um mundo social consiste num contexto normativo que
fixa interações pertencentes ao corpo de relações interpessoais justificadas. Quando os
agent
es partilham de um tal contexto, acabam por partilhar também de um mundo social. É o
típico modelo de ação em que se espera um determinado comportamento do ator em relação
ao grupo social.
No entendimento de Bolzan (2006, p. 98), ação regulada por normas tem como
fundamental seguir ou observar uma norma, ou seja, o ator, dentro de um determinado
contexto social, deve observar o cumprimento de normas preestabelecidas em acordos
anteriores. Por isso, pressupõe, além do mundo objetivo, o mundo social (regu
lado
normativamente), no qual o ator deve respeitar e renovar os acordos normativos válidos.
Num terceiro modelo de ação, Habermas aponta o modelo de ação dramatúrgica ,
pela qual entendemos uma interação social como um encontro em que os participantes
constituem, uns para os outros, um público visível e representam algo mutuamente.
(HABERMAS, 1992a, p. 131).
De acordo com Bolzan (2006, p. 98), tal modelo de ação tem o conceito central na
auto
-representação do ator perante si e perante um público de p
articipantes da interação, a fim
de mostrar a vivência interior. É uma auto-apresentação expressiva na qual o ator tem a
oportunidade de manifestar os seus sentimentos, desejos e vivências íntimas diante do público
espectador.
O quarto e último conceito de ação é o de ação comunicativa , o qual tem algo
mais, isto é, opera-se um meio lingüístico em que se reflexam como tais as relações do ator
com o mundo. Neste modelo, a linguagem ordinária é prevista, capacitando os agentes a usar
33
um tal sistema de relações de mundo e reivindicações de validade a fim de coordenar a ação.
Por isso, Habermas define o conceito de ação comunicativa de tal modo que implica o de
comunicação. Primeiramente, define um conceito de ação :
Chamo ações aquelas manifestações simbólicas em que o ator, como nos casos
da ação teleológica, a ação regulada por normas e a ação dramatúrgica, até aqui
estudados, entra em relação ao menos com um mundo (mas sempre
também
com o
mundo objetivo). (HABERMAS, 1992a, p. 139).
Dessa forma, Habermas entende que ação são aquelas manifestações simbólicas
nas quais o autor assume uma relação, pelo menos, com um mundo (porém sempre com o
mundo objetivo). Fica claro que Habermas distingue o modo pelo qual o sujeito atua
instrumentalmente
por meio de movimentos com que intervém no mundo e o modo pelo qual
irá se expressar de forma comunicativa, por meio de movimentos que encarnam significados.
Por isso, o conceito de ação implica o de comunicação:
um falante faz valer uma pretensão de validade suscetível de crítica entabulando
com sua manifestação uma relação pelo menos com um <<mundo>> e fazendo uso
da circunstância de que essa relação entre ator e mundo é em princípio acessível a
um ajuizamento objetivo para convidar a seu oponente a uma tomada de postura
racionalmente motivada. O conceito de ação comunicativa pressupõe a linguagem
como um meio dentro do qual tem lugar um tipo de processo de entendimento em
cujo transcurso os participantes, ao relacionarem-se com um mundo, colocam-se un
s
frente aos outros com pretensões de validade que podem ser reconhecidas ou postas
em questão. (1992a, p. 143).
No modelo de ação comunicativa os sujeitos são concebidos em busca de uma
compreensão desimpedida, ou seja, ação comunicativa é ação orientada para alcançar uma
compreensão. Assevera Bolzan (2006, p. 99) que a ação comunicativa como coroação da
racionalidade comunicativa refere-se à interação realizada de modo intersubjetivo, tendo a
linguagem como o mecanismo coordenador. O conceito de ação comunicativa circula
diante do de interpretação, tendo o entendimento dialógico como forma de negociação na
construção do consenso.
34
Num tempo em que ciência e tecnologia imperam, em que as ações humanas são
pautadas pela racionalidade instrumental, fato que levou ao entendimento de Adorno e
Horkheimer de que a razão não cumpriria o seu papel de emancipar a humanidade, Habermas
concentra todos os seus esforços em, novamente, atribuir à razão o papel de oferecer respostas
ao colapso da modernidade. Para Habermas a ação tem um significado inerente por exprimir
a intenção do agente com respeito à realidade, distinguindo entre quatro tipos de ação social:
estratégica, normativa, dramatúrgica e comunicativa. Na interpretação de Ingram, Habermas
define
a ação teleológica como aquela realizada por uma pessoa em busca de um certo
objetivo: ela será estratégica quando as decisões e o comportamento de pelo
menos uma outra pessoa são incluídos no cálculo correspondente dos meios e fins.
A ação teleológica é racional na medida em que o agente calcula o meio mais
eficiente par alcançar o fim desejado. De acordo com esse modelo de racionalidade,
no modo estratégico os atores se relacionam entre si como meios objetiváveis ou
obstáculos para a realização
dos seus objetivos.
Habermas caracteriza a ação normativa como a ação em que a intenção primária é
atender a expectativas recíprocas mediante o ajuste da conduta e normas e valores
compartilhados. A busca de metas pessoais pode ser neutralizada pelos de
veres
sociais ou pelos padrões de gosto.
O terceiro tipo de ação mencionado por Habermas tem por objetivo principal a
autor
-apresentação, ou seja, a projeção de uma imagem pública. A introdução do
conceito de ação dramatúrgica se inspira, sobretudo, no uso pioneiro por Erving
Goffman da representação de papéis teatrais para iluminar os encontros sociais. O
termo representação de papéis faz referência aqui menos à ação em conformidade
com formas determinadas pela sociedade do que à livre expressão seletiva da
personalidade. Num certo sentido, mesmo a ação mais simples se reveste da
personalidade do agente. Conversamente, toda ação dramatúrgica é implicitamente
estratégica, e busca obter uma resposta determinada de certa audiência. (1994, p.
52
-
53).
Da classificação habermasiana dos tipos de ações, o último, como visto
anteriormente, é a ação comunicativa , a qual se quando duas ou mais pessoas procuram
expressamente chegar a um acordo voluntário para uma cooperação. De certa forma, dentro
do conceito de ação comunicativa estão envolvidos os três conceitos anteriores e, conforme
Ingram (1994, p. 53), a ação comunicativa traz um certo esforço em alcançar um acordo sobre
todo o espectro das reivindicações de validade, apresentando-se, sempre, como
uma
possibilidade imanente.
35
O modelo de ação comunicativa proposto por Habermas atribui aos sujeitos a
competência da linguagem, ou, melhor dizendo, atribui a proposta de Wittgenstein dos jogos
de linguagem , em que os sujeitos têm a capacidade de utilização desse sistema com o fim de
coordenar a ação. Por isso,
dentro do modelo comunicativo, prevê-se que os agentes sejam capazes de se
relacionar simultaneamente com todos os três mundos anteriormente mencionados
(objetivo, social e subjetivo). Ademais, podem relacionar-se com eles
reflexivamente, no sentido de que eles têm a competência para diferenciar os três
tipos de relações e selecionar uma ou outra como a mais apropriada para interpretar
uma dada situação e fazer funcionar um acordo numa definição comum dela.
Assim, as três modalidades de relações de mundo juntas constituem um sistema de
coordenadas comumente imputado, que os agentes têm à sua mútua disposição para
ajudá
-
los a se compreender mutuamente. (WHITE, 1995, p. 47).
No modelo da ação comunicativa os sujeitos são orientados para a coordenação de
forma cooperativa em diferentes planos de ação, o que fazem pelo potencial para a
racionalidade da linguagem ordinária. Estando, pois, esclarecido o conceito de ação
comunicativa , passa-
se
ao próximo item, no qual será examinado o caminho da categoria da
ética do discurso para a teoria discursiva do direito e da moral, pelo qual está implícito em
ambas as categorias o conceito de ação comunicativa .
1.2.3. Da ética do discurso à teoria
discursiva do direito e da moral
A partir da proposição habermasiana da ética do discurso, é importante o significado
das expressões lingüísticas, o que se fará por meio da análise pragmática da linguagem, pelo
entendimento de que, de acordo com Habermas,
o conceito de agir comunicativo , que leva em conta o entendimento lingüístico
como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais
dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância
imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantêm-
se
no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. (2003a, p. 35).
36
Na interpretação de Moreira (2004, p. 109-110), Habermas quer fazer uma
demonstração de como a tensão entre facticidade e validade, inerente à linguagem, é
conectada com a integração de indivíduos socializados comunicativamente. Com isso, surge
a questão da integração social, que, também de acordo com o autor, caracteriza
-
se pelo engate
das diversas perspectivas de ação, de modo que tais perspectivas possam ser resumidas em
ações comuns. A linguagem será, assim, fonte de integração social, por meio do
entendimento comunicativo.
O emprego da linguagem como fonte de integração social, coordenada pelo
entendimento, faz-se necessário para a compreensão do agir comunicativo, fundamental para
se chegar ao entendimento comunicativamente alcançado ou consenso
8
.
Habermas deixa claro em Direito e democracia que a modernidade
9
inventou o
conceito de razão prática , o que fez por meio de uma transposição dos conceitos
aristotélicos de filosofia prática. Tal atitude da modernidade levou a uma ligação da razão
prática à felicidade (categoria largamente discutida por Aristóteles em sua obra Ética a
Nicômacos
), a qual passou a ser entendida de modo individualista. A filosofia prática da
modernidade vê os indivíduos como pertencentes à sociedade e como membros de uma
coletividade ou partes de um todo.
Habermas, entretanto, entende que as sociedades modernas se tornaram tão
complexas que essas duas figuras modernas (sociedade centrada no Estado e sociedade
composta de indivíduos) não podem mais ser utilizadas. Tal consideração também levou
8
Na expressão de Moreira, agir comunicativo vem a ser a disponibilidade que existe entre falantes e ouvintes
a estabelecer um entendimento que surge de um consenso sobre algo no mundo. Nossas intenções situam-
se
em um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente que, permeado por um pano de fundo consensua
l,
possibilita
-nos um entendimento prévio. (2004, p. 111).
9
Em Habermas, o conceito acerca do que significa a modernidade é complexo. A concepção clássica da
modernidade foi desenvolvida sob premissas da filosofia da consciência, mas após a virada lingüística o
solipsismo metódico foi substituído pela concepção pragmática da linguagem. Pode-se dizer que, no
entendimento habermasiano (2001, p. 180), a indústria cultural e os meios de comunicação de massa valem
como os instrumentos mais manifestos do controle social, ao passo que a ciência e a técnica são as principais
fontes de uma racionalidade instrumental que penetra a sociedade em seu todo. A modernidade constitui-
se
em num projeto inacabado, uma vez que as suas promessas não foram totalmente cumpr
idas, entendendo
-
se a
partir dos textos de Habermas que a prometida emancipação sociopolítica não ocorreu. Por isso, o filósofo
alemão (1997, p. 117) esclarece que o conceito de pós-modernidade carece de fundamento, uma vez que a
estrutura do espírito mod
erno não mudou. Nesse sentido ver: HABERMAS, Jürgen.
O discurso filosófico da
modernidade.
Tradução de Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002;
HABERMAS, Jürgen.
A constelação pós
-
nacional:
ensaios políticos. Tradução d
e Márcio Seligmann
-
Silva.
São Paulo: Littera Mundi, 2001; HABERMAS, Jürgen. Ensayos políticos. 3. ed. Traducción de Ramón
García Cotarelo.
Barcelona: Península, 1997.
37
Marx a renunciar a uma teoria normativa de Estado
10
. Habermas opta, então, por ou
tro
caminho que não o de Marx, não relegando o direito a nenhum subsistema, conforme a
interpretação de Dutra, mas incluindo o direito como ponto de mediação entre o que irá
chamar facticidade e validade: Eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da
teoria do agir comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal mudança vai
muito além de uma simples troca de etiqueta. (2003a, p. 19).
Na proposição habermasiana da teoria do agir comunicativo as forças ilocucionárias
das ações
de fala assumem um papel de coordenação na ação, no qual a linguagem passa a ser
explorada como fonte primária da integração social, pois
é nisso que consiste o agir comunicativo . Nesse caso os atores, na qualidade de
falantes e ouvintes, tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar
entre si os seus respectivos planos através de processos de entendimento, portanto
pelo caminho de uma busca incondicionada de fins ilocucionários. (2003a, p. 36).
Habermas transforma os atos ilocucionários em pretensões de validade . A
linguagem possui um
telos
, ou seja, a busca de um entendimento entre pessoas; seu objetivo é
analisar a validade e a legitimidade do direito posto pelo Estado, isto é, busca vislumbrar o
grau de legitimação existente no direito positivo de elaboração legislativa e,
conseqüentemente, a influência do cidadão comum junto ao processo legislativo e à
elaboração da norma jurídica.
Em Notas pragmáticas para a fundamentação de uma ética do discurso , na obra
Consciência moral e agir comunicativo, está presente a formulação de um princípio da
universalização (U), que orienta o próprio discurso e segundo o qual uma norma controversa
só pode ser considerada válida se encontrar assentimento. Dessa forma, são válidas as normas
de ação que possam contar com a concordância de todos os possíveis envolvidos, enquanto
participantes de discursos racionais. Por isso, para Habermas, no discurso prático
10
Acerca dessa visão negativa do direito, pode
-se dizer: Segundo Habermas, Marx
teria tecido uma crítica tão
radical à idéia de juridicidade, dissolvendo sociologicamente a idéia de direitos naturais e rompendo com o
liame entre revolução e direitos naturais, que ele desacreditou completamente no direito. Ou seja, Marx
abandonou uma teoria normativa do estado. Nesse sentido, o marxismo filia-se a uma teoria sistêmica do
38
é preciso um princípio-ponte correspondente. Eis por que todas as investigações a
pro
pósito da lógica da argumentação moral conduzem imediatamente à necessidade
de introduzir um princípio moral que, enquanto regra de argumentação, desempenha
um papel equivalente ao do princípio da indução no Discurso da ciência empírica.
(2003, p. 84).
Na interpretação de Dutra, da mesma forma que em Kant o imperativo categórico é o
critério que permite estabelecer a lei moral, em Habermas o princípio supremo da ética
discursiva (D) é o princípio da universalização (U), o qual pode ser formulado da seguin
te
maneira: Uma norma de ação só tem validade se todos os que podem ver-
se afetados por ela
(e pelos efeitos de sua aplicação) chegarem como participantes de um discurso prático, a um
acordo (racionalmente motivado), acerca de se a norma de entrar (ou seguir) em vigor
(DUTRA, 2005, p. 154).
O princípio da universalização (U) proposto por Habermas permite que sejam
aceitas como válidas as normas que exprimem vontade universal . Segundo Habermas,
todas as éticas cognitivistas retomam a intuição que Kant exprimiu no imperativo categórico,
porém esclarece o seguinte:
A mim interessam aqui, não as diferentes formulações kantianas, mas a idéia
subjacente que deve dar conta do caráter impessoal ou universal dos mandamentos
morais válidos. O princípio moral é compreendido de tal maneira que exclui como
inválidas as normas que não possam encontrar assentimento qualificado de todos os
concernidos possíveis. O princípio-ponte possibilitador do consenso deve, portanto,
assegurar que somente sejam aceitas como válidas as normas que exprimem uma
vontade universal; é preciso que elas se prestem, para usar a fórmula que Kant repete
sempre, a uma lei universal . (p. 84).
Com de tal consideração, Habermas explica que a formação imparcial do juízo se
exprime,
por conseguinte, num princípio que força cada um , no círculo dos concernidos, a
adotar, quando da ponderação dos interesses, a perspectiva de todos os outros . Assim, toda
norma válida deve satisfazer à seguinte condição: que as conseqüências e efeitos colaterais,
direito, a partir da sua redução quase completa a um subsistema da economia política. (DUTRA, 2005, p.
235).
39
que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de
cada
um dos indivíduos
do fato de ser ela
universalmente
seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos. (p.
86)
11
.
Daí, portanto, que somente podem reclamar validez as normas que encontrarem (ou
possam encontrar) o assentimento de todos os concernidos enquanto participantes de um
discurso prático. Habermas entende que o direito moderno não pode satisfazer tão
-
somente às
exigências funcionais de uma sociedade complexa, quando, necessariamente, deve levar em
conta as condições precárias de uma integração social, o que deve ser feito pelo entendimento
dos sujeitos que agem comunicativamente.
Nesse contexto, o direito moderno retira dos indivíduos o fardo das normas morais e
transfere
-as para as leis, as quais obtêm legitimidade por meio do processo legislativo, que,
por sua vez, apóia-se no princípio da soberania do povo. Para Habermas, por meio dos
direitos que permitem aos cidadãos a sua autonomia política deve ser possível explicar o
paradoxo do surgimento da legitimidade a partir da legalidade, posto que
o processo legislativo democrático precisa confrontar seus participantes com as
expectativas normativas das orientações do bem da comunidade, porque ele próprio
tem que extrair sua força legitimadora do processo de um entendimento dos
cidadãos sobre regras de sua convivência. Para preencher a sua função de
estabilização das expectativas nas sociedades modernas, o direito precisa conservar
um nexo interno com a força socialmente integradora do agir comunicativo.
(HABERMAS, 2003a, p. 115).
No entendimento de Moreira (2004, p. 123), o direito estrutura-se como um
ordenamento que, ao mesmo tempo em que supõe serem suas normas seguidas pelo receio
anunciado de sua transgressão, estrutura-se pelo reconhecimento racional de suas prescrições,
indicando que se segue o direito por respeito à lei, ou seja, por dever. Isso implica uma
conseqüência pós-metafísica para o direito, ou seja, a necessidade de uma exigência ra
cional
de legitimação.
11
Conforme observa Dutra, a reconstrução do imperativo em termos de filosofia da linguagem desloca o
marco de referência da consciência moral solitária, reflexiva para a comunidade dos sujeitos em diálogo.
(2005, p. 156).
40
A indagação de Habermas gira em torno da legitimidade do processo legislativo, pois
entende que este será legítimo na medida em que os direitos de participação política são
constitutivos para um processo de legislação eficiente do po
nto de vista da legitimação. Esses
direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados, uma
vez que têm de ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento, os
quais se encontram na prática intersubjetiva de entendimento.
Esses direitos de comunicação e de participação política atribuídos por Habermas
remetem, necessariamente, à idéia de autonomia dos cidadãos. Nessa situação pode
-
se, então,
afirmar que o processo legislativo emana de uma vontade legítima, uma vez que parte, agora,
de cidadãos politicamente autônomos
12
. A esse respeito esclarece Galuppo:
Tal modelo comunicativo representa uma solução para o reducionismo apontado por
Bobbio (1993:23 a 44) e operado tanto pelo realismo jurídico (que identifica a
validade com eficácia), quanto pelo Jusnaturalismo (que identifica a validade com a
justiça) e pelo Juspositivismo (que identifica a justiça com a validade), uma vez que
o mesmo critério (participação dos envolvidos no discurso jurídico na conformação
do consenso que produz as normas) é que confere simultaneamente justiça, validade
e efetividade às normas jurídicas. (2002, p. 140).
Com isso, Habermas acaba por introduzir a categoria da linguagem no processo
legislativo, a qual é pautada pelo entendimento e apoiada numa comunidade ideal de
comunicação. Conforme aduz Galuppo (2002, p. 132-133), por meio da abertura para o agir
comunicativo o direito incorpora em suas estruturas uma idéia de liberdade que o vai
exorcizar da acusação de ser um invólucro artificial, vindo, então, a constituir-se como
instituição que efetiva a liberdade. Veja-se a colocação de Habermas sobre a legitimação do
direito:
12
Contrariamente à visão negativa do direito de Marx, para Habermas, o direito moderno nutre-se de uma
solidariedade concentrada no papel do cidadão que surge, em última instância, do agir comunicativo. A
liberdade comunicativa dos cidadãos pode, como vimos, assumir, na prática da autodeterminação organizada,
uma forma mediada através d
e instituições e processos jurídicos, porém não pode ser substituída inteiramente
por um direito coercitivo. Essa conexão interna entre facticidade e validade da imposição do direito e da
legitimidade do processo de legislação que funda a validade social (
Geltung
) constitui uma hipoteca pesada
para sistemas jurídicos destinados a tirar dos ombros dos atores que agem comunicativamente a sobrecarga
da integração social. (2003a, p. 54-
55).
41
Os limites à autolegislação do direito são tanto mais estreitos quanto menos o
direito, tomado como um todo, pode apoiar-se em garantias metassociais e se
imunizar contra a crítica. É verdade que um direito, ao qual as sociedades modernas
atribuem o peso principal da integração social, é alvo da pressão
profana
dos
imperativos funcionais de reprodução social; ao mesmo tempo, porém, ele se
encontra sob uma certa coerção idealista de legitimá-los. As realizações sistêmicas
da economia e do aparelho do Estado, que se realizam através do dinheiro e do
poder administrativo, também devem permanecer ligadas, segundo a
autocompreensão constitucional da comunidade jurídica, ao processo integrador da
prática social de autodeterminação dos cidadãos. (HABERMAS, 2003a, p. 62
-
63).
É clara a intenção de Habermas de abandonar a filosofia da consciência
c
uja
cautela em relação à questão foi anteriormente referida, tendo-se em vista que tal
problemática da razão não é pacífica para a filosofia , a qual é regida pela razão prática, e de
assumir uma filosofia da linguagem pautada pela intersubjetividade. A constituição de uma
comunidade jurídica autônoma requer o abandono, em tempos chamados pós-metafísicos ,
de uma razão prática, e também
requer que se aponte para uma comunidade que tem, no entendimento, sua
realização. Isso é o que faz Habermas elaborar uma Filosofia do Direito que, pelo
agir comunicativo, proporcionará uma guinada sobre a concepção tradicional (e a
sua própria) no que diz respeito à constituição da relação entre Direito e Moral.
Essa guinada lhe possibilitará uma revisão geral dos fundamentos do Direito e das
bases que constituem o moderno Estado de Direito. (MOREIRA, 2004, p. 133).
Nesse ponto reside a passagem da teoria do discurso para uma filosofia do direito,
em que Habermas demonstra o rompimento com a razão prática, de origem kantiana,
substituindo
-
a pela razão comunicativa. A partir disso, o direito é institucionalizado mediante
um procedimento que emana da relação de complementaridade entre direitos humanos e
soberania política dos cidadãos, estabelecendo
-
se, assim, como
normativo.
Será possível vislumbrar, então, a legitimidade do direito a partir de um arranjo
comunicativo, posto que os discursos constituem o lugar no qual se pode formar uma vontade
racional, onde a legitimidade do direito irá apoiar-se num arranjo comunicativo, uma vez que,
como participantes de discursos racionais, os sujeitos, parceiros do direito , na expressão
habermasiana, devem poder examinar se uma norma controvertida encontra ou poderia
encontrar o assentimento de todos aqueles possíveis atingid
os por ela.
42
Resulta de um tal arranjo comunicativo o que Habermas chama nexo interno
entre soberania popular e direitos humanos, quando formas de comunicação possibilitam
realizar uma legislação política autônoma, que pode ser institucionalizada politicamente. Por
meio da teoria do discurso, os destinatários de seus direitos poderão também, agora, ser os
seus autores, de forma simultânea. Para isso, os direitos humanos possuem um importante
papel, pois a sua substância insere-
se, então, nas condições formais para a institucionalização
jurídica desse tipo de formação discursiva da opinião e da vontade, na qual a soberania do
povo assume figura jurídica. (2003a, p. 139).
Com a passagem da teoria do discurso para uma filosofia do direito, Habermas
proc
ura uma fundamentação racional para o direito positivo moderno, demonstrando que tal
legitimidade somente é proveniente da emanação da vontade discursiva dos sujeitos enquanto
parceiros do direito e da democracia, como se verá no próximo tópico.
1.3. Democ
racia como procedimento: a política deliberativa
O presente tópico reveste-se de fundamental importância, tendo em vista que é o
objetivo central do trabalho. A análise da concepção da democracia no pensamento
habermasiano é tomada com base em algumas de suas obras, tais como Ensaios políticos
,
Direito e democracia
,
A inclusão do outro e Era das transições. É necessário, portanto,
operar um recorte teórico dentro das obras citadas para se extrair a discussão sobre a
democracia, uma vez que Habermas aborda
tal questão juntamente com várias outras questões
teóricas, as quais não serão abordadas nesta investigação
13
.
Em
Ensaios políticos Habermas deixa claro que imprime continuidade ao
pensamento frankfurtiano (Teoria Crítica), também concordando com seus antecessores no
que diz respeito ao domínio da razão instrumental, a qual deveria servir para a emancipação
humana, mas, ao contrário, torna-se destrutiva. É um esforço característico de Habermas a
busca pela superação da razão instrumental, o que, como visto
anteriormente, ele faz por meio
13
Essa análise da democracia no pensamento habermasiano diz respeito ao terceiro
deficit
dos pensadores
frankfurtianos: a democracia. A partir de agora, a razão não tem, pois, sua sede no sujeito epistêmico, como
queria Kant, nem no ser antropológico, ao mesmo tempo pulsional e
vernuenftig
(razoável), como o
imaginava Marcuse, mas sim na organização intersubjetiva da fala. O que é razoável, para os indivíduos e a
sociedade, brota, pois, de um consenso, resultante da comunicação dialógica. O conceito de razão faz
sentido enquanto razão dialógica (FREITAG, 2004, p. 1
12).
43
da sua proposição de razão comunicativa, aduzindo com o seguinte diagnóstico da
modernidade:
Todos os dias nos inteiramos de que as forças produtivas se convertem em forças
destrutivas e de que as capacidades de planejamento se transformam em
potencialidades de transtorno. Por isso não resulta estranho que ganhem influência
aquelas teorias que tratam de demonstrar que as mesmas forças que aumentam nosso
poder, do qual a Modernidade no momento oportuno extraiu sua consciência e suas
esperanças utópicas, de fato permitem que a autonomia se converta em dependência,
a emancipação em opressão, a racionalidade em irracionalismo. (HABERMAS,
1997, p. 116).
Como se vê, também uma preocupação no pensamento habermasiano para com a
emancipação do homem, visto que é a partir de uma concepção de democracia permeada pela
ética do discurso que Habermas vai apontar, de acordo com a sua proposição teórica, a
possível solução para essa questão.
Não sem razão, Habermas entende que a pós-modernidade é um projeto inexistente
pelo fato de que em seu diagnóstico a modernidade ainda se constitui num projeto inacabado.
uma negação da pós-modernidade em sua proposição teórica em razão de que ainda
subsistem os problemas da modernidade. Por
isso,
considero que esta tese da aparição da pos-modernidade carece de fundamento. A
estrutura do espírito da época não mudou, como tampoco faz a forma da polêmica
sobre possibilidades vitais futuras, a consciência histórica não está perdendo as
ener
gias utópicas de modo algum. Quiçá, o que chegou a seu fim foi uma utopia
concreta, a que cristalizou no passado em torno ao potencial da sociedade do
trabalho. (HABERMAS, 1997, p. 117).
Vislumbra
-se, com base nesse escrito de Habermas, mais um grande diagnóstico do
Estado social do que propriamente saídas para o problema da democracia. Fica,
evidentemente, claro que as sociedades contemporâneas possuem uma forma de dominação
democraticamente legitimada, a qual influencia a si mesma e controla o seu pr
óprio
44
desenvolvimento
14
. Com isso, Habermas destaca, citando Offe, que existem três problemas
da ciência política:
No primeiro deles é fácil reconhecer que as elites políticas aplicam suas decisões
dentro do aparato do Estado. Por debaixo disso há um segundo terreno em que uma
multiplicidade de grupos anônimos e de atores coletivos influem uns nos outros,
forjam coalizões, controlam o acesso aos meios de comunicação e de produção e,
ainda que não seja facilmente reconhecível, graças a seu poder social de
terminam
com caráter prioritário o marco de jogo para planejar e resolver questões políticas.
Por último, por debaixo se encontra um terceiro terreno em que as correntes
comunicativas difíceis de compreender determinam a forma da cultura política e,
com ajuda das definições da realidade, competem por aquilo a que Gramsci chamou
hegemonia cultural; e aqui é onde se produzem as trocas de tendência do espírito da
época.
(OFFE apud HABERMAS, 1997, p. 131).
Com tal análise da política e do modo como as elites influenciam e aplicam suas
decisões dentro do Estado Democrático de Direito, Habermas passa, pode-se dizer, em
Direito e democracia, a desenvolver um conceito procedimental de democracia. O modelo
desenvolvido por Habermas de uma democracia procedimental, é, segundo aponta,
incompatível com o conceito de sociedade centrada no Estado, pois, a partir de um tal
momento, a sociedade civil também irá exercer um papel fundamental no sistema político
15
.
Como visto nos tópicos anteriores, a matriz habermasiana é fundamentada numa
teoria do discurso, e para a (re)construção tanto do direito quanto da democracia, Habermas
novamente se volta para o seu empreendimento filosófico da razão comunicativa:
Na teoria do discurso, o desabrochar da política deliberativa não depende de uma
cidadania capaz de agir coletivamente e sim, da institucionalização dos
14
Para Habermas está evidente que a dominação democrática também existe nas sociedades contemporâneas,
conforme expõe: Por demais, isto não está muito distante dos critérios normativos de nossos livros de texto
de educação cívica, segundo os quais
a sociedade que conta com uma forma de dominação democraticamente
legitimada influi sobre si mesma e controla seu desenvolvimento.
(1997, p. 130).
15
Conforme afirma Rochlitz, a filosofia política não é assimilável à intervenção de um filósofo no debate
político. A função política de um trabalho filosófico e teórico é, aliás, dificilmente mensurável. O próprio
Habermas define o papel político de seu trabalho de maneira bastante modesta: Uma teoria da sociedade que,
sem abandonar as ambições críticas, renunciou às certezas da filosofia da história, não pode atribuir-se outro
papel político a não ser o de, por meio de diagnósticos sensíveis da atualidade, chamar a atenção sobre
ambivalências essenciais de nossa situação histórica. Esta frase foi publicada em 1986, seis anos antes de
Direito e democracia, que não tem outra ambição
mas que tem a ver com o gênero da filosofia política.
(2005, p. 137).
45
correspondentes processos e pressupostos comunicacionais, como também do jogo
entre deliberações institucionalizadas e opiniões públicas que se formaram de modo
info
rmal. A procedimentalização da soberania popular e a ligação do sistema
político às redes periféricas da esfera pública política implicam a imagem de uma
sociedade descentrada. (1997b, p. 21).
-se que num tal modelo de democracia não a necessidade de se operar com o
conceito de uma sociedade centrada no Estado, ainda representado como um sujeito
superdimensionado, pois a teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de
entendimento, situada num nível superior, os quais se realizam através de procedimentos
democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas (HABERMAS, 1997b,
p. 21
-
22).
Nessa proposta a teoria do discurso conta com a política, de um lado, e com o direito,
de outro, uma vez que a comunicação irá dar-se pela mediação discursiva por meio do direito,
ao que Habermas atribui o nome de
medium
, dada a função mediadora realizada pelo direito.
Por esse motivo, entende-se que a proposta de uma democracia procedimental por meio de
uma política deliberativa nã
o pode ser articulada sem a plena participação do direito moderno,
o qual exercerá um importante papel de mediador para a institucionalização de procedimentos
democráticos.
Assim, o conceito de democracia, elaborado pela teoria do discurso, apesar de seu
distanciamento em relação a certas idéias tradicionais acerca da constituição de uma
sociedade política, não é incompatível com a forma e o modo de organização de sociedades
diferenciadas funcionalmente (HABERMAS, 1997b, p. 25). O sentido da filosofia po
lítica
de Habermas assumido a partir de Direito e democracia passa a ser desenvolvido na
perspectiva da política deliberativa.
O esgotamento do que Habermas chamou de energias utópicas e a dominação do
espaço público pelo mercado e pelo poder são razões que levaram o filósofo alemão a
(re)discutir a democracia em suas vertentes liberal e republicana, opondo-lhe um terceiro
modelo de democracia. De acordo com a interpretação de Rochlitz (2005), o ponto central de
Direito e democracia é a complementaridade entre autonomia privada e autonomia pública,
que é travado séculos pela teoria da democracia. Habermas busca vencer duas teorias da
democracia: uma idealizada pela concepção liberal (Locke); outra idealizada pela
interpretação republicana (Rousseau)
, conforme explica Rochlitz (2005, p. 164):
46
Liberalismo e republicanismo são, todavia, ambos prisioneiros de uma filosofia do
sujeito: o primeiro parte do indivíduo, o segundo da comunidade étnica para definir
um certo número de regras. A essas duas con
cepções
uma que defende em
primeiro lugar os direitos subjetivos, outra que defende uma ordem jurídica objetiva
Habermas opõe um terceiro modelo: o do sistema dos direitos. Baseia-se nos
processos intersubjetivos pelos quais os cidadãos outorgam-se re
ciprocamente
direitos e deveres, antes de delegar a responsabilidade por ambos ao Estado e às
instituições judiciárias.
Em relação ao processo político , do ponto de vista da concepção liberal , a
política é essencialmente a luta de acesso ao poder e, do ponto de vista da concepção
republicana , o processo político não obedece ao modelo de ação estratégica, mas ao diálogo
e à deliberação. Diante das duas concepções de democracia, Habermas está próximo do
republicanismo, mas propõe uma síntese dos dois
modelos pela teoria do discurso
16
.
O contorno desenhado por Habermas para a necessidade de uma política deliberativa
passa, anteriormente, pelo necessário nexo interno entre Estado de direito e democracia, bem
como por uma relação complementar entre direito e moral, abordada, em que Habermas
o direito como meio organizador da dominação política, requisito necessário para a
consecução de objetivos e programas políticos: O direito
como meio organizador da
dominação política
remete não à regulação dos conflitos interpessoais de ação, senão à
consecução dos objetivos e programas políticos. (HABERMAS, 1997, p. 27).
A teoria do discurso assimila elementos de ambos os lados (liberais e republicanos),
integrando
-os no conceito de um procedimento de deliberação e tomada de decisão, com o
que Habermas começa a dar forma ao seu conceito e a sua proposição da teoria da política
deliberativa. Habermas faz a introdução do princípio do discurso no contexto político,
passando a caracterizar o modo discursivo de deliberar, de maneira que pode ser tido
como legítimo aquilo em torno do qual os participantes da deliberação livre podem unir-
se
por si mesmos, sem depender de ninguém
portanto, aquilo que encontra o assentimento
fundamentado de todos, sob as
condições de um discurso racional. (2003, p. 162).
16
Cf. ROCHLITZA, Rainer. Filosofia política e sociologia em Habermas. In: ROCHLITZ, Rainer (Org).
H
abermas:
o uso público da razão. Trad. Léa Novaes. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005.
47
Com a encarnação institucional do direito no princípio do discurso (D), Habermas
passa a apontar para a necessidade da existência de procedimentos democráticos de
participação política como forma de legitimação do direito, bem como de reconhecimento e
inclusão de minorias. A tal concepção de democracia procedimental o filósofo alemão
intitula política deliberativa , esclarecendo que a criação legítima do direito depende de
processos e pressupostos de co
municação, mediante uma figura procedimental.
Na interpretação de Vallespín, em Direito e democracia, seguem vivos os impulsos
emancipatórios derivados do projeto da teoria do discurso e o correspondente compromisso
com uma concepção radical de democracia, que aqui encontra, ademais, sua defesa mais
elaborada. (1997, p. 201). O principal objetivo da obra talvez seja o de apontar uma
reconciliação entre autonomia privada e autonomia pública, em que o direito irá exercer a
função central de levar a cabo e
ssa função integrativa.
Para um tal empreendimento, a filosofia do direito de Habermas, com base na teoria
do discurso, conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situados num nível
superior, os quais se realizam por meio de procedimentos democráticos. Para o filósofo
alemão, as democracias preenchem o mínimo procedimentalista quando garantem: a) a
participação política do maior número possível de pessoas privadas, b) a regra da maioria para
decisões políticas, c) os direitos comunicativos usuais e com isso a escolha de diferentes
programas e grupos dirigentes e d) a proteção da esfera privada. (1997b, p. 26-
27).
Com isso, a política deliberativa obtém sua força legitimadora da estrutura discursiva
de uma formação de vontade, porém sua função social dependerá da qualidade racional dos
seus resultados. Eis aqui um ponto de grande importância, pois, para se garantir a qualidade
racional dos resultados obtidos a partir da política deliberativa, é necessário um bom nível dos
debates público
s, que, segundo o autor, é a variável mais importante.
Com essa proposição Habermas entende ser possível que os participantes se
comprometam a assumir o direito moderno como um
medium
para regular suas convivências.
Pode
-se dizer, inclusive, que Habermas resgata o conceito de autonomia elaborado por Kant,
uma vez que não considera ninguém livre se não houver autonomia política, ficando o sujeito
impedido de gozar de igual liberdade sob as leis que todos os cidadãos propuseram a si
mesmos. Especificamente
por esse motivo,
48
o processo legislativo democrático precisa confrontar seus participantes com as
expectativas normativas das orientações do bem da comunidade, porque ele próprio
tem que extrair sua força legitimadora do processo de um
entendimento
dos ci
dadãos
sobre regras de sua convivência. Para preencher a sua função de estabilização das
expectativas nas sociedades modernas, o direito precisa conservar um nexo interno
com a força socialmente integradora do agir comunicativo. (HABERMAS, 2003a,
p. 115)
.
Conforme comenta Galuppo, a necessidade de conceber a representação como
sensível aos representados para que haja legitimidade leva à questão da democracia, ponto
central no pensamento habermasiano e que está no eixo da fundamentação normativa do
direi
to positivo moderno. É, então, do próprio procedimento democrático que decorre a
legitimação do direito nas democracias modernas, visto que
só na democracia o direito pode desenvolver de forma a cumprir sua tarefa de
permitir a coexistência de diferentes projetos de vida sem ferir as exigências de
justiça e de segurança, necessárias à integração social. E a democracia, aqui, deve
ser entendida como uma comunidade real de comunicação em que se realiza, na
maior medida possível, a situação ideal de fala,
ou seja, aquela em que os envolvidos
podem desenvolver completamente sua competência comunicativa, o que é
possível, como foi dito, se eles não sofrerem limitações nem externa (violência)
nem interna (ideologia). (2002, p. 152
-
153).
Dessa situação ideal de fala surge a possibilidade de se alcançar o consenso, razão
pela qual a democracia assume uma função normativa em Habermas: A sociedade e o
indivíduo não se constituem mutuamente pela subjetividade ou pela objetividade, mas pela
intersubjetivi
dade. (GALUPPO, 2002, p. 153)
17
.
Com a teoria do discurso a moral passa a ser orientada segundo princípios, porém
necessita de uma complementação por meio do direito positivo moderno. Assim, de um lado,
há a teoria do discurso e, de outro, a teoria do di
reito, sendo que
17
A partir da constituição da sociedade via intersubjetividade, surge o princípio democrático, conforme
assinala Galuppo: [...] enquanto o princípio do discurso (d) exige no plano da justificação uma
fundamentação imparcial das normas de ação que leve em conta a participação de todos os envolvidos, o
princípio democrático diz apenas
como
uma formação de opinião e da vontade pública que se pretenda
legítima pode
ser feita por meio do direito [...]. (2002, p. 154).
49
a partir de uma teoria do discurso, fundada em uma racionalidade comunicativa, será
formulada uma teoria do Direito, e do Estado de Direito, incorporando, contudo, os
questionamentos elaborados pela filosofia social e política, de modo a ultrapassar os
padrões conceituais do Direito formal burguês de cunho privado e do Estado social.
(MOREIRA, 2003, p. 103).
Para tanto, Habermas entende ser necessária a garantia do direito de comunicação e
de participação política aos cidadãos, os quais devem ser apreendidos no enfoque de
participantes orientados pelo entendimento, pois se encontram numa prática intersubjetiva de
entendimento,
na medida em que os direitos de comunicação e de participação política são
constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista da
legitimação, esses direitos subjetivos não podem ser tidos
como
os de sujeitos
jurídicos privados e isolados: eles têm que ser apreendidos no enfoque de
participantes orientados pelo entendimento, que se encontram numa prática
intersubjetiva de entendimento. (2003a, p. 53).
A participação na discussão tem fundamental importância na formulação do processo
de participação política coletiva, garantido pelo direito de comunicação e de participação,
devendo os discursos ser sensíveis aos estímulos, temas, contribuições e informações daquilo
que Habermas chama de esfera pública . Nesse sentido, Habermas (1997b, p. 92) entende
que
a esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para comunicação de
conteúd
os, tomadas de posição e
opiniões
; nela os fluxos comunicacionais são
filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas
em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado globalmente,
a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando apenas o
domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compreensibilidade
geral da prática comunicativa cotidiana.
50
Ao efetivar uma complementação entre direito e moral, Habermas restringe o cam
po
da moralidade às condições e aos pressupostos da deliberação democrática, visto que, de
acordo com Vallespín, é sobre tais restrições procedimentais que se desenvolvem os processos
de discussão pública:
Os processos de deliberação democrática por ele propugnados respondem a
convicção de que na política se combinam e entrelaçam as três dimensões da razão
prática: a dimensão
moral
, preocupada pela resolução equitativa e imparcial de
conflitos interpessoais, que aspira a um reconhecimento universal do prescrito; a
ética
, ocupada da interpretação de valores culturais e de identidades e, portanto,
condicionada em sua força prescritiva por uma avaliação contextual; e, por fim, a
pragmática
, dirigida a satisfação instrumental de fins e geralmente marcada pela
negociação e o compromisso sendo aqui a eficácia seu princípio reitor. (1997, p.
212
-
213).
Para Habermas, os procedimentos de deliberação e de tomada de decisões ideais
pressupõem uma associação titular que se julga capaz de regular de modo imparcial a
s
condições de sua própria convivência, de tal forma que o cerne da política deliberativa
consiste numa rede de discursos e de negociações, a qual deve possibilitar a solução racional
de questões pragmáticas, morais e éticas.
Com a teoria do discurso e, sobretudo, por meio do princípio da democracia,
Habermas busca resolver o problema da legitimidade do direito, o que faz a partir da própria
legalidade do direito positivo moderno. De acordo com Galuppo (2002, p. 152-153), é na
democracia que o direito pode se desenvolver, cumprindo a sua tarefa de permitir a
coexistência de diferentes projetos de vida de maneira a não ofender as exigências de justiça e
de segurança, as quais são necessárias à integração social. Em relação ao direito positivo
moderno, conso
ante explica Dutra,
Habermas pretende dar conta de legitimidade do direito a partir de uma perspectiva
discursiva, o que remete ao conceito de racionalidade comunicativa. Tal conceito é
apresentado na obra Teoria da ação comunicativa em 1980. [...] Hab
ermas
reconstrói tal conceito a partir dos desdobramentos da própria filosofia da
linguagem, perpassando vertentes como a do segundo Wittgenstein, bem como a
filosofia da linguagem ordinária de Austin e Searle. (2005, p. 190).
51
Pode
-se afirmar que Habermas busca a determinação moral dos sujeitos e a
realização ética na prática dialógica (intersubjetivamente), o que acaba por estabelecer com a
produção da teoria jurídica pela interação argumentativa, revelando uma guinada lingüística.
Veja
-
se a explicação
do próprio autor:
Para fazerem uso adequado de sua autonomia pública, garantida através de direitos
políticos, os cidadãos têm que assegurar ser suficientemente independentes na
configuração de sua vida privada, assegurada simetricamente. Porém, os ci
dadãos
da sociedade (
Geseillschaftsbürger
) só podem gozar simetricamente sua autonomia
privada, se, enquanto cidadãos do Estado (
Staatsbürger
), fizerem uso adequado de
sua autonomia política
uma vez que as liberdades de ação subjetivas, igualmente
distr
ibuídas, têm para eles o mesmo valor. (HABERMAS, 2003, p. 155).
Na interpretação de Repolês, a concepção liberal prioriza a esfera privada da
propriedade e da vida do indivíduo como o espaço de realização da liberdade, garantido por
um sistema de direitos naturais, sustentados pela coerção autorizada e legitimados como
direito positivo, independentes da autonomia política. Os republicanos priorizam a esfera
pública como sendo o espaço possível de realização do ser humano, uma vez que este é parte
inte
grante de uma comunidade política, que corresponde a uma vontade ético-política de uma
vontade auto
-
atualizada. Diante das duas concepções, liberal e republicana,
a Teoria do Discurso reconhece o aporte de cada uma dessas tradições para o
pensamento político contemporâneo; a teoria republicana nos ensina que o processo
de auto consciência é feito por meio da solidariedade obedecendo a estruturas de
comunicação pública e ao diálogo envolvendo questões de valor; seu legado é, pois,
a discursividade. A tradição liberal nos mostra uma característica fundamental do
direito moderno que é a formalização e a procedimentalização. (REPOLÊS, 2003,
p. 92).
Dessa forma, o princípio da democracia estatui que somente podem pretender
validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros
52
do Direito, num processo jurídico de normatização discursiva (HABERMAS, 1997a, p. 154).
Com base no princípio da democracia, ocorre a institucionalização da participação nos
processos de formação da opinião e da vontade, nos quais as decisões referentes às questões
práticas devem ser racionais e todas as suas fundamentações devem ser realizadas com base
em discursos, do que depende a legitimidade das leis
18
.
A idéia exposta anteriormente de que Habermas resgata o conceito de autonomia
elaborado por Kant, posto que não considera ninguém livre se não houver autonomia política,
ficando o sujeito impedido de gozar de igual liberdade sob as leis que todos os cidadãos
propuseram a si mesmos, possibilita a idéia de que, em Habermas, o processo legislativo deve
assumir a figura necessária à integração social, e ao direito cabe mediar (
medium
) a tensão
existente entre o factual e a validade. Por isso, uma ordem jurídica não pode limitar-se, tão-
somen
te, a garantir que toda pessoa seja reconhecida em seus direitos por todas as demais
pessoas. Contudo,
o reconhecimento recíproco dos direitos de cada um por todos os outros deve apoiar
-
se, além disso, em leis legítimas que garantam a cada um liberdades iguais, de modo
que, a liberdade do arbítrio de cada um possa manter-se junto com a liberdade de
todos . [...] No sistema jurídico, o processo da legislação constitui, pois, o lugar
propriamente dito da integração social. (HABERMAS, 2003a, p. 52).
Pa
ra que o processo legislativo seja legítimo será necessária a garantia tanto dos
direitos de participação política quanto dos direitos de comunicação, a fim de que os sujeitos
de direito ostentem a qualidade de membros que se orientam pela busca do entendi
mento
intersubjetivo (Moreira 2004, p. 124).
Nesse sentido, para Habermas, são esses direitos de comunicação e de participação
política que irão remeter à idéia de autonomia dos cidadãos, tendo em vista que, por uma
prática intersubjetiva de entendimento,
18
Conforme observa Dutra, no princípio da democracia, cujo sistema de direito se constitui na sua formulação,
o princípio do discurso assume uma figuração jurídica, onde, em suma, dá
-
se aos pressupo
stos comunicativos
as características da forma jurídica, constituída, como vimos, pelas liberdades subjetivas e pela coação
(2005, p. 227).
53
o conceito de direito moderno
que intensifica e, ao mesmo tempo, operacionaliza a
tensão entre facticidade e validade na área do comportamento
absorve o
pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rosseau, segundo o qual a
pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos
pode ser resgatada através da força socialmente integradora da vontade unida de
todos os cidadãos livres e iguais. (2003a, p. 53).
Por esse motivo, Habermas entende que a positividade do direito vem acompanhada
da expectativa de que o processo democrático legislativo terá um fundamento legítimo, com
um suporte de validez para o direito positivo, ao passo que a vontade legítima é conseqüência
de uma autolegislação, a qual se presume seja racional, oriunda de cidadãos politicamente
autônomos.
Conforme Moreira (2004, p. 126), existe um nexo interno no momento da idealidade
de uma proposição dessa validade para uma comunidade de comunicação idealmente
alargada. Reside aqui a necessidade de que tal validade se comprove perante as objeções
factuais que possam se levantar contra ela. Junto à faculdade do resgate discursivo das
pretensões de validade introduz-se a categoria da linguagem, a qual é pautada pelo
entendimento coordenando as ações entre
os sujeitos.
Com isso pode-se vislumbrar que o direito é a fonte de mediação entre o factual e a
validade, sendo, porém, necessário que elimine os sujeitos de direito como tão-
somente
espectadores jurídico-políticos. Portanto, a democracia faz-se necessária a fim de que o
direito se torne legítimo mediante procedimentos democráticos, o que se faz pela proposição
habermasiana da teoria do discurso, com o modelo procedimentalista. Conforme expõe
Repolês,
esse modelo tem como base, de uma perspectiva reconstrutiva, a idéia de auto-
organização política de uma comunidade, perspectiva priorizada pela tradição
republicana, e a idéia de que a autonomia política alcançada nesta auto-
organização
se com base em um sistema de direitos que membros livres e iguais se atribuem
reciprocamente, como priorizado pelos liberais. (2003, p. 126).
A teoria do discurso, efetivamente, assimila pontos de uma e de outra concepção
(liberal e republicana). Nesse contexto, torna-se evidente o importante papel da democracia e
54
do processo democrático para a teoria do discurso, o que Habermas propõe com a política
deliberativa , a qual se baseia num nexo entre direitos humanos e soberania popular. A
formação da opinião e da vontade comum dar-
se
pelo entendimento ético entre os sujeitos
da deliberação. Por isso,
na política deliberativa procedimental, tanto formas de deliberação dialógicas quanto
instrumentais são institucionalizada e válidas (legítimas) na formação da opinião e
da vontade. Transferem-se as condições de virtude do cidadão para a
institucionalização de formas de comunicação e de deliberação em que possam ser
feitos discursos éticos, morais, pragmáticos e de negociação. A política deliberativa
tem como base, portanto, as condições de comunicação, que permitem
pressupor que
decisões racionais podem ser tomadas no processo político. Dessa forma, retira-se o
peso da autonomia real das pessoas para as condições de discurso, em que a
realização da autonomia se amplia para todos os modos deliberativos. Dessa forma
o modelo de política deliberativa procedimental é, assim como o liberal e o
republicano, normativo, que a sua normatividade está no procedimento.
(REPOLÊS, 2003, p. 130).
Habermas objetiva uma comunidade mediada pelo entendimento, cuja elaboração
de
uma filosofia do direito se pelo agir comunicativo, propiciando uma teoria discursiva do
direito. Para tanto, é necessário o abandono da razão prática orientada por uma filosofia do
sujeito, conforme já exposto anteriormente.
A política deliberativa, no quadro da teoria do discurso, irá alcançar sua força
legitimadora da estrutura discursiva da formação da opinião e da vontade, em que, conforme
Habermas, o nível do discurso do debate público constitui a variável mais importante, o que
pode ser conseguido com a garantia do direito de participação política, bem como pela
mediação do direito positivo moderno.
Com a exposição e análise da teoria jurídico-política culminando na sua proposição
de uma democracia mediada pelo discurso, mostrou-se o norte teórico da presente
investigação. Encerrando a exposição deste primeiro capítulo, passa
-
se a um exame acerca da
experiência democrática brasileira e do papel dos movimentos sociais no desenvolvimento
sociopolítico mediante práticas participativas, com o que se buscará vislumbrar, ao longo da
história do Brasil, a possível existência de política deliberativa mediada via discurso,
conforme a matriz habemasiana.
55
Dessa forma, após a análise da evolução política do Brasil, iniciando-se pela Colônia
até a transição para a democracia em 1984, far-
se
no terceiro capítulo um exame crítico-
reflexivo sobre a viabilidade da política deliberativa de matriz habermasiana servir, de
maneira efetiva, como referencial emancipatório para a realidade política brasileira.
56
2
. A EXPERIÊNCIA DA DEMOCRACIA BRASILEIRA E O
PAPEL DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NO
DESENVOLVIMENTO MEDIANTE PRÁTICAS
PARTICIPATIVAS
2.1. A estrutura social e política do Brasil Colônia, do Brasil Império, da
Primeira República e do Estado Getulista
A fim de vislumbrar a atual realidade democrática brasileira, bem como a
experiência participativa ao longo da história do Brasil, faz-se necessária uma abordagem da
historiografia referente às condições políticas participativas, a qual não tem o objetivo de ser
uma abordagem absolutamente verdadeira, mas, sim, como toda a abordagem histórica,
relativa. Dessa maneira, busca-se a verdade relativa do historiador, mas não arbitrária,
podendo o leitor aceitar ou não a versão da interpretação histórica do Brasil adotada para o
presente trabalho.
Quando se sugere uma versão interpretativa da história do Brasil, adotam-se como
fio condutor do presente capítulo as leituras feitas por Boris Fausto, Caio Prado Jr. e
Raimundo Faoro, voltadas, principalmente, à interpretação da condição social e política do
povo brasileiro ao longo da história do Brasil. Por essas razões, os objetivos do presente
trabalho se mantêm fiéis às interpretações históricas expostas pelos referidos autores, cujo
resultado acerca da investigação das práticas políticas participativas atuais estará
fundamentado.
57
Antes mesmo do anúncio do descobrimento do Brasil pela esquadra de Pedro
Álvares Cabral, a 21 de abril do ano de 1500, sabe-se que em Portugal não havia meio-
termo,
pois entre o rei e os súditos não havia intermediação: um comandava e todos obedeciam. No
início do século XV, a expansão correspondia aos interesses das classes, grupos sociais e
instituições que compunham a sociedade portuguesa. (FAUSTO, 2002, p. 10). Dessa
confluência de interesses da elite portuguesa nasceu o projeto nacional da expansão marítima,
momento em que
a dupla formada pelo ouro e pelas especiarias constitui os bens mais buscados na
expansão portuguesa. É fácil perceber o interesse pelo ouro. Ele era utilizado como
moe
da confiável e, por outro lado, empregado pelos aristocratas asiáticos na
decoração de templos, palácios e na confecção de roupas. [...] Ouro e especiarias
foram assim bens sempre muito procurados nos séculos XV e XVI, mas havia
outros, como o peixe e a carne, a madeira, os corantes, as drogas medicinais e,
pouco a pouco, um instrumento dotado de voz
os escravos africanos. (2002, p.
12).
Em relação ao modelo político de Portugal fica claro que, dentre as atribuições do
próprio Estado moderno, estão a supremacia do príncipe, a unidade do reino e a submissão
dos súditos a um poder soberano, o qual é coordenador das vontades. O Estado português
estava claramente assentado sobre as colunas fundamentais do direito romano, no qual,
segundo Faoro (1984, p. 1
1),
o príncipe, com a qualidade de senhor do Estado, proprietário eminente ou virtual
sobre todas as pessoas e bens, define-se, como idéia dominante, na monarquia
romana. O rei, supremo comandante militar, cuja autoridade se prolonga na
administração e na justiça, encontra reconhecimento no período clássico da história
imperial. O racionalismo formal do direito, com monumentos das codificações,
servirá, de outro lado, para disciplinar a ação política, encaminhada ao constante
rumo da ordem social, sob o
comando e o magistério da coroa.
Com o advento do capitalismo comercial e monárquico, a moeda passou a ser o
padrão de todas as coisas e medida de todos os valores, tornando necessária a renovação das
bases de estrutura social, política e econômica do Estado português. Nesse momento, a era
58
capitalista iria se assentar na propriedade burguesa dos meios de produção e de exploração do
trabalho assalariado, com ponto de partida no início do século XVI, quando a produção da
economia natural, com trocas apenas do supérfluo, cedeu o lugar às manufaturas, iniciando o
irreversível e fatal movimento da acumulação do capital [...]. (FAORO, 1984, p. 16).
Diante do desejo português pelo ouro e pela prata, o Brasil surgiu como uma grande
terra, com significativas possibilidades de exploração, como ocorreu nos anos iniciais, com o
predomínio da extração do pau
-
brasil como principal atividade econômica. Dessa forma, o rei
não interferia diretamente no negócio, porém o exercia mediante concessão, permanecendo
comerci
ante sem interferir de forma imediata na Colônia, mas sempre cuidando de seus
interesses.
Conforme Fausto (2002, p. 17), o primeiro sistema de exploração do litoral brasileiro
baseou
-se no sistema de feitorias, o mesmo adotado por Portugal na costa africana. O Brasil
foi arrendado durante o período de três anos a um consórcio de comerciantes de Lisboa, cujo
líder, Fernão de Noronha, recebeu o monopólio comercial, obrigando-se, em contraprestação,
a enviar seis navios a cada ano para explorar trezentas léguas, ou seja, aproximadamente dois
mil quilômetros da costa, e construir uma feitoria. No ano de 1505 a concessão findou, e a
Coroa portuguesa retomou a exploração da nova terra.
Entretanto, era tarefa difícil para os portugueses colonizar tão vasto litora
l, ao mesmo
tempo em que o donio português da Colônia também estava ameaçado pelos espanhóis e
pelos franceses. O problema era colonizar todo o litoral, condição premente para a defesa da
Colônia. Foi então que dom João III decidiu-se pela criação das capitanias hereditárias,
dividindo o Brasil em quinze quinhões, numa série de linhas paralelas ao Equador, os quais
eram entregues aos capitães
-
donatários. No relato de Fausto (p. 19),
os donatários receberam uma doação da Coroa pela qual se tornaram po
ssuidores
mas não proprietários da terra... Não podiam vender ou dividir a capitania, cabendo
ao rei o direito de modificá-la ou mesmo extingui-la. A posse dava aos donatários
extensos poderes tanto na esfera econômica e na de arrecadação de tributos como na
esfera administrativa.
De acordo com Prado Júnior (2006, p. 15), os colonos contemplados com as
capitanias hereditárias eram aqueles que detinham recursos próprios como preferência, em
59
razão de clara intenção de aumentar a produtividade da Colônia, com conseqüente aumento
dos rendimentos da Coroa, o que só poderia acontecer se a terra fosse entregue a quem por
conta própria pudesse aproveitá-la. Não vidas de que se iniciou nesse momento uma
divisão de classes dentro da história do Brasil, a qual iria permanecer durante todo o período
colonial, o Império e a própria República, como reflexo da divisão social do Estado
português.
Na interpretação de Faoro (1984, p. 110), as capitanias hereditárias constituíram-
se
primeira expressão de grande envergadura da empresa colonizadora, com inconfundível
caráter capitalista. A capitania estava assentada, portanto, como um estabelecimento
econômico e militar, voltado à defesa externa e ao fomento de atividades que estimulassem o
comércio português. Dessa forma se caracteriza o início do contexto político da Colônia, isto
é, a distribuição de terras, sendo necessário destacar que a pequena propriedade não conseguiu
se desenvolver na colônia, posto que
a precariedade das condições do pequeno lavrador torna-se ainda maior pela
vizinhança dos grandes e poderosos latifundiários, que lhes movem uma guerra sem
tréguas. A luta destas classes, pequenos e grandes proprietários, enche a história
colonial, degenerando não raro em violentos conflitos a mão armada. Estas lutas
terminam quase sempre pela espoliação dos primeiros em benefício dos segundos.
São conhecidos neste sentido os abusos praticados pelos célebres latifundiários da
Bahia e Piauí: Antônio Guedes de Brito, Bernardo Vieira Ravasco e Domingos
Afonso
Sertão. Quando não sucumbem pela força, cedem os pequenos lavradores
diante de uma legislação opressiva contra eles dirigida. (PRADO JÚNIOR, 2006, p.
20
-
21).
Nessas condições gerais começou a se desenhar a estrutura da sociedade colonial,
bem como de seu estatuto político, com uma economia agrária e um senhor rural, que
monopolizava a riqueza e, por isso, tinha prestígio e domínio. Como se nota, trata-se de um
início de sociedade dividida em classes e na qual os pequenos começam massacrados
pela
classe dominante. Conforme assinala o autor (p. 23), em meio a esses grandes
latifundiários, os quais detinham o monopólio da terra e o prestígio de senhor, compreendia
-
se
uma população miserável de índios, mestiços e negros escravos, de modo que desde o
início
da colonização eram esses que se constituíam a massa popular.
60
Também no âmbito da estrutura colonial, um ponto merece destaque no que se refere
à exclusão social. Segundo Fausto (2002, p. 31-33), um princípio básico de exclusão
distinguia determinadas categorias, ainda que até a Carta-lei de 1773: era o chamado
princípio da pureza de sangue , pelo qual os cristãos-novos, os negros e os mestiços, mesmo
quando livres, e os índios eram impedidos de ocupar cargos, receber títulos de nobreza e
participa
r de irmandades de prestígios. A Carta-lei de 1773 acabou com a distinção entre
cristãos
-novos e antigos, mas não com o preconceito existente na sociedade colonial contra a
essa população. O preconceito em relação ao negro, por exemplo, ultrapassou
signi
ficativamente o fim da escravidão, chegando até a contemporaneidade; assim é que até a
introdução do trabalhador europeu no Brasil o trabalho manual foi socialmente desprezado
como coisa de negro .
Formaram
-se, assim, duas classes na Colônia, sobre as quais também iria se assentar
o estatuto político colonial, com forte domínio dos grandes latifundiários e dos comerciantes,
os quais ignoravam os outros segmentos sociais e, por essa razão, nas palavras de Prado
Júnior (2006, p. 29),
é extremamente simples a estrutura social da colônia no primeiro século e meio da
colonização. Reduz
-se em suma a duas classes: de um lado os proprietários rurais, a
classe abastada dos senhores de engenho e fazenda; doutro a massa da população
espúria dos trabalhadores do campo, escravos e semilivres. Da simplicidade da
infra
-estrutura econômica
a terra, única força produtiva, absorvida pela grande
exploração agrícola
deriva a da estrutura social: a reduzida classe de proprietários,
e a grande massa que trabalha e produ
z, explorada e oprimida.
Como se nota, a estrutura política da Colônia caracterizava-se pela monopolização
dos meios de subsistência, subordinando a massa da população aos grandes latifundiários. A
organização administrativa colonial iniciou-se pelas Câmaras Municipais, que eram quase a
única forma de administração da Colônia. Com intensa dominação dos proprietários rurais, a
Colônia conhece as eleições para os cargos da administração municipal.
Acentua Faoro (1984, p. 176) que a organização da administração pública colonial
realizava
-se de forma vertical, podendo ser traçada em ordem descendente: o rei, o
governador
-geral (vice-rei), os capitães (capitanias) e as autoridades municipais. Diante de
uma tal organização da administração pública colonial, resta saber quem tinha o direito de
61
votar nas eleições da Colônia, quando, como referido anteriormente, a massa dos
trabalhadores do campo, escravos e semilivres estavam sob o domínio dos grandes
proprietários rurais, os quais dominavam o pleito eleitoral. Segundo Prado Júnior (2006, p.
30),
nas eleições para os cargos da administração municipal votam apenas os
homens
bons
, a nobreza, como se chamavam os proprietários. Tal privilégio é por eles
ciosamente defendido, com exclusão de toda a população propriamente urbana:
mercadores, mecânicos, outros artífices, os industriais de então. O poder das
câmaras é pois o dos proprietários.
Fica claro que, dentro do sistema político da Colônia, o poder político da Coroa,
conforme observa Prado, encontrava
-
se in
vestido nos proprietários rurais, os quais o exerciam
por meio das administrações municipais, ou seja, o Estado colonial era um instrumento de
classe desses proprietários, cuja organização política visava manter na sujeição, de forma a
explorar o seu trabalho, a grande massa da população de trabalhadores do campo, escravos e
semilivres.
A interpretação histórica de Prado Júnior não é isolada no que tange à organização da
administração pública da Colônia, no sentido de que ocorreu uma típica estrutura de
classe.
Faoro (1984, p. 203) também entende que a sociedade colonial não esgotou sua caracterização
com o quadro administrativo e o Estado-maior de domínio, ao que o autor chama de
estamento . Conforme destaca, tal minoria comanda, disciplina e controla a economia e os
núcleos humanos, isto é, ela vive, mantém
-
se e articula
-se sobre uma estrutura de classes .
O poder político na Colônia era sempre exercido mediante os interesses dos grandes
proprietários, sendo destes o poder político colonial; em cada região era a Câmara
respectiva que exercia o poder, formando-se sistemas praticamente soberanos, regidos por
uma organização política autônoma. Dessa maneira,
essa posição subalterna das classes caracteriza o período colonial, com
prolongamento até os dias recentes, sem que o industrialismo atual rompesse o
quadro; industrialismo, na verdade, estatalmente evocado, incentivado e fomentado.
Numa sociedade desta sorte pré-capitalisticamente sobrevivente, apesar de suas
contínuas modernizações, a emancipação das classes nunca ocorreu. Ao contrário, a
62
ascensão social se desvia, no topo da pirâmide, num processo desorientador, com o
ingresso no estamento. A ambição do rico comerciante, do opulento proprietário
não será possuir mais bens, senão o afidalgamento, com o engaste na camada do
estado
-
maior de domínio político. (FAORO, 1984, p. 203).
Juntamente com a economia agrícola, a Colônia desenvolveu também outras
atividades econômicas, como a mobiliária, o comércio e o crédito, surgindo, assim, uma ric
a
burguesia de negociantes, que começaram a enfrentar a nobreza dos proprietários rurais, até o
momento a única classe dominante. Iniciava-se, assim, a evolução econômica em meio a
interesses opostos, entre os quais os dos proprietários rurais e os da bur
guesia comercial.
Com tal organização, Faoro (p. 204) aponta que as classes que ocupavam o quadro
social eram as seguintes: a classe proprietária , a classe lucrativa e a classe média . A
primeira definia-se pelas diferenças de bens, que determinavam a situação dos seus membros,
cujo setor privilegiado se compunha de senhores de renda. No outro extremo estavam os
escravos, os devedores e os pobres. A classe lucrativa encontrava-se na valorização de bens e
serviços no mercado, constituindo-se de comerciantes, armadores, industriais, empresários
agrícolas, banqueiros e financistas, bem como, ainda, profissionais liberais e orientadores
econômicos. A classe média, por sua vez, abrangia as camadas intermediárias dos grupos de
proprietários e especuladores e mais setores de expressão própria, como a pequena burguesia
e a nova classe média dos empregados.
Então, com esse novo quadro social, ocorreu uma infiltração da burguesia mercantil
na administração das Câmaras Municipais, quando a figura dos governadores e a dos demais
funcionários reais começam a emergir de um segundo plano. Com isso, as Câmaras perderam
as suas prerrogativas e entrou em cena a onipotência dos governadores. Segundo o mesmo
autor (p. 223),
o alvo visado pela dura atividade financeira será o pagamento de benefícios à
nobreza, reduzida a pedinte de favores e rendas, ao funcionalismo, para cujo
recrutamento a origem fidalga tem marcado relevo, e ao exército. O
desenvolvimento da metrópole e das colônias não entra no plano de governo:
o
cliente será o estamento, a alta nobreza e a administração, com aplicações só
admissíveis no fomento.
63
A partir do referido quadro político, as camadas populares não se encontravam
politicamente maduras, ou seja, aptas a fazerem prevalecer suas reivindicações, pois as
relações de classes ainda se encontravam solidamente alicerçadas na estrutura política da
Colônia. A Independência fez-se, então, apenas mediante a transferência política de poderes
da Metrópole para o novo governo do Brasil.
Durante o período colonial os proprietários rurais objetivavam diminuir o poder do
rei com a intenção de aumentar tão-somente o próprio, num novo arranjo de governo, não
estendendo às classes pobres a participação política. A exclusão das massas populares, ou
seja, das classes que não compunham a cúpula política da Colônia, da participação política
iniciou
-se com os primeiros momentos da atividade política brasileira. Assim, a
independência foi feita mediante simples transferência política de poderes da Metrópole para
o governo do Brasil,
na falta de movimentos populares, na falta de participação direta das massas neste
processo, o poder é todo absorvido pelas classes superiores da ex-
colônia,
naturalmente as únicas em contato direto com o regente e sua política. Fez-se a
Independência praticamente à revelia do povo; e se isto lhe poupou sacrifícios,
também afastou por completo sua participação na nova ordem política. A
Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em
conjunto. (PRADO JÚNI
OR, 2006, p. 52
-
53).
É, no dizer do autor, revelador o caráter classista do projeto de independência, no que
tange à discriminação dos direitos políticos, pois os grandes proprietários rurais, os principais
responsáveis pela independência, reservaram-
se
todas as vantagens políticas. O que deve ser
analisado a partir deste ponto é qual a classe que detinha o direito de voto, ou seja, quem é
que podia exercer seu direito político.
Segundo assinala Fausto (2002, p. 77), o reconhecimento da nova nação por P
ortugal
ocorreu em agosto de 1825, por meio de um tratado em que o Brasil concordou em compensar
a Metrópole com dois milhões de libras pela perda da antiga Colônia e em não permitir a
união de qualquer outra colônia com o Brasil. Nesse contexto, o debate político central entre
os dois primeiros anos de independência do Brasil voltava-se à necessidade de aprovação de
uma Constituição.
64
Raymundo Faoro ressalta que a influência do enciclopedismo, bem como dos dias do
1789 francês e da independência americana prepararam a nova ordem. Para o autor (1984, p.
280), destacam-se de forma clara duas correntes, ambas de origem francesa, as quais
passariam a dividir as opiniões da classe política dirigente:
a corrente da soberania popular, filiada a Rousseau e esboçada em torno das
tentativas democráticas dos últimos anos do século XVIII, que faziam o rei e a
autoridade obra do país e não de condições preexistentes, condições históricas ou
religiosas, e a corrente, sustentada na Constituinte por Antonio Carlos [...], para a
qual, à constituinte e à própria independência, preexistia a monarquia e o imperador.
Ambas as vertentes, a democrática e a liberal temperada, conviveriam numa comum
doutrina, que domaria o ímpeto popular: a autoridade teria seu fundamento e seu
limite num documento
o pacto social para os extremados e a fixação das garantias
de liberdade para os liberais.
Bem observado por Faoro, tal esquema iria procurar a igualdade sem democracia, ou
seja, a escolha foi pelo liberalismo, que deixa de fora a soberania popular, isto é, a soberania
será a nacional, a qual pressupõe um complexo de grupos e tradições, de comunidades e
continuidade histórica, não popular, que cria e abate os reis. Havia, por certo, agora no
regime monárquico uma complicada hierarq
uia de direitos políticos, na qual
excluem
-se de todos, isto é, não se consideravam na terminologia adotada,
cidadãos
ativos os criados de servir, os jornaleiros, os caixeiros das casas comerciais, enfim
qualquer cidadão com rendimentos líquidos anuais inferiores ao valor de 150
alqueires de farinha de mandioca. Numa palavra, toda a população trabalhadora do
país, os escravos naturalmente incluídos. (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 56).
Era, segundo Prado Júnior, um retrato fiel do liberalismo burguês. Conforme Fausto
(2002, p. 80), um contingente ponderável da população, os escravos, estava excluído dos
dispositivos constitucionais. E a massa popular livre dependia dos grandes proprietários
rurais, pois só um pequeno grupo tinha instrução no contexto de uma
tradição autoritária.
Havia uma divisão do Poder Legislativo em Câmara e Senado, com eleições previstas
para as duas casas legislativas, mas com diferenças essenciais: na mara eram temporárias;
65
no Senado, vitalícias. Além do mais, no Senado eram eleitos três nomes, dos quais o
imperador escolhia um em caráter vitalício. Dentro desse sistema, segundo Fausto (p. 81),
o voto era indireto e censitário. Indireto porque os votantes, correspondentes hoje à
massa dos eleitores, votavam em um corpo eleitoral, nas eleições chamadas de
primárias. O corpo eleitoral elegia os deputados. Pelo princípio do voto censitário,
votavam nas eleições primárias os cidadãos brasileiros que tivessem renda anual de
pelo menos 100 mil réis por bens de raiz, indústria, comércio ou emprego. Eram os
votantes. Eles elegiam o corpo eleitoral, ou seja, os eleitores, escolhendo pessoas
que, para candidatar-se, além dos requisitos indicados, deviam ter renda de 200 mil
réis e não serem libertos. Para ser deputado, o censo subia a 400 mil réis e era
necessário professar a religião católica, mantidas as outras exigências. Não houve
referência expressa às mulheres, mas elas estavam excluídas dos direitos políticos
pelas normas sociais.
Com a centralização do poder monárquico e a
abdicação de dom Pedro I, consolidou
-
se o Estado nacional. Com tal quadro, de um lado estavam as classes abastadas,
principalmente os grandes proprietários rurais, e, de outro, as classes populares. As primeiras
buscavam a realização de seus fins e foram elas que o fizeram, saindo às ruas em 7 de abril
para depor o imperador. De acordo com Prado Júnior (2006, p. 65),
o que se segue é o desdobramento lógico da atitude política destas classes no
período anterior. Postas a reboque das camadas superiores, sob cuja hegemonia se
processa toda a revolução da Independência, e confiando numa democracia abstrata
que estas não se cansavam de pregar, e para a qual, diziam, o único obstáculo fora a
atitude intransigente de D. Pedro, vão assistir à formação de um governo e à
consolidação de uma situação que para elas pouco ou nada se diferenciava da
anterior que tinham combatido.
Em relação às camadas médias e inferiores, tornava-se impossível uma articulação e
atuação política eficiente, pelo fato de inexistir coesão social para que, efetivamente, houvesse
uma tal atuação política; por isso, essas ficavam alheias ao sistema político. A ineficiência
política das camadas inferiores da população brasileira pode ser lembrada pelo fato de que
66
a economia nacional, e com ela a nossa organização social, assente como estava
numa larga base escravista, não comportava naturalmente uma estrutura política
democrática e popular. [...] Em todos os movimentos populares deste período que
vamos analisar, o que mais choca é sua completa desagregação logo que passa o
primeiro ímpeto da refrega. Congregam-se as massas em torno de individualidades
mais ou menos salientes
caráter comum a todas as lutas políticas às quais faltam
sólidas bases ideológicas
e a ação revolucionária é dispendiosa em dissensões
intestinas e hostilidades entre os chefes, que afinal não sabem ao certo o que fazer.
(PRADO JÚNIOR, 2006, p. 68).
A partir desse momento, as revoltas regenciais iriam traduzir o anseio da conquista
por maior espaço de integração no comando político, levando a irromperem revoluções em
todo o território nacional: os cabanos (1835), os balaios (1838-1840), os sabinos
(1837) e os farroupilhas (1835-1845) (FAORO, 1984, p. 320). A revolta dos Cabanos no
Pará, cujo início é datado pelos autores entre 1832 e 1833, reuniu pequenos proprietários,
trabalhadores do campo, índios e escravos, ou seja, as camadas pobres da população rural
reivindicavam a religião e queixavam-se das mudanças que não entendiam, as quais, de certa
fo
rma, eram distantes de sua classe. A revolta dos Cabanos é um movimento popular que não
se distingue em conteúdo dos demais, diferenciando-se pelo domínio do governo da
província. Foi esse
um dos mais, senão o mais notável movimento popular do Brasil. É o único em que
as camadas mais inferiores da população conseguem ocupar o poder de toda uma
província com certa estabilidade. Apesar de sua desorientação, apesar da falta de
continuidade que o caracteriza, fica-lhe contudo a falta de glória de ter sido a
primeira insurreição popular que passou da simples agitação para uma tomada
efetiva do poder. (PRADO JÚNIOR, 2006, p. 77).
Entre as queixas de todas as províncias a principal era contra a centralização
monárquica. A rebelição de Cabanos foi sufocada por tropas legalistas com o bloqueio da
entrada do rio Amazonas. Conforme Fausto (2002, p. 90), calculam-se trinta mil mortes entre
os rebeldes e os legalistas, o que chega a 20% da população da província.
Outra revolta regencial, do ano de 1837, na Bahia, ficou conhecida como Sabinada,
pelo fato de o nome do seu principal líder ser Sabino Barroso, um jornalista e professor da
Escola de Medicina. Assinala Fausto que a Bahia estava sendo palco de pequenas revoltas,
67
entre as quais a dos escravos, e a Sabinada reuniu apoio da classe média e do comércio de
Salvador, com idéias federalistas e republicanas, como o compromisso com relação aos
escravos, exigindo que fossem libertados os cativos crioulos que tivessem pego em armas pela
revolução. Porém, a revolução foi vencida após o cerco de Salvador pelas tropas
governamentais, que recuperaram a cidade deixando um saldo de 1.800 mortos.
No Maranhão, a Balaiada, em 1838, conforme Fausto (2002, p. 90), iniciou-se com
uma série de disputas entre a elite local, o que acabou resultando numa revolta popular numa
área de pequenos produtores de algodão e criadores de gado, próximo ao Piauí. Entre os seus
líderes figuraram Raimundo Gomes e Francisco dos Anjos Ferreira, cujo ofício era fazer e
vender balaios, do que derivou o nome da revolução. De suas proclamações constam vivas à
religião católica, à Constituição e à liberdade, não sendo evocados temas sociais ou
econômicos. Os balaios foram vencidos em 1840 por uma ação rápida das tropas do
governo, quando houve uma anistia condicionada à reescravização dos negros rebeldes.
Em 1835 iniciou-se no Rio Grande do Sul a interminável guerra dos Farrapos, cujo
nome, de acordo com Fausto (2002, p. 91), deriva de maltrapilhos, gente vestida com
farrapos. Entre os seus líderes figuravam os nomes de Bento Gonçalves, Davi Canabarro,
oficiais do Exército no Rio Grande do Sul e Giuseppe Garibaldi, um revolucionário italiano
refugiado no Brasil, agora integrado no exército farroupilha. No entanto, a revolta não uniu
todos os setores da população gaúcha, a qual foi preparada por estancieiros e alguns
representantes da classe média. As queixas do Rio Grande do Sul contra o governo central
eram de longa data, posto que, além da contribuição dada à economia brasileira, a província
era explorada por meio de pesados impostos. Assim, entre as reivindicações estavam a
autonomia e a separação do governo.
Na região gaúcha dominada pelos farroupilhas foi proclamada a República do
Piratini, em 1838, cuja presidência ficou a cargo de Bento Gonçalves. Após dez anos de
batalha, em 1845, Canabarro e Caxias, este líder da tropa imperial, assinaram o tratado de paz,
o qual não foi considerado uma rendição incondicional, uma vez que foi concedida anistia
geral aos revoltosos, com oficiais farroupilhas se integrando, de acordo com suas patentes, ao
Exército brasileiro. As dívidas da República do Piratini resultantes do conflito foram
assumidas pelo governo imperial.
Como se vê, as revoltas ocorridas ao longo do período imperial mostram o
desconten
tamento com a centralização política e também com a aristocracia burocrática
existente num sistema que não admitia as manifestações populares. A partir do Segundo
68
Reinado, a luta política se resumiria a dois partidos, o Conservador e o Liberal. Segundo
F
aoro (1984, p. 341),
o partido liberal, comprometido no nascedouro, com a idéia da soberania popular
partido mais democrático que liberal , expurga-se, depois da experiência regencial,
dos seus ramos republicanos, sem desviar-se das origens. [...] Os conservadores,
retemperados com a incorporação dos liberais moderados, limam-se do
corcundismo
a obediência ao trono por mero respeito à tradição , para
encaminharem a organização monárquica brasileira, sob a fórmula de que o rei
reina, governa e administra, dentro do discreto comando de uma estrutura
burocrático
-
política, assentada na vitaliciedade do Senado e do Conselho do Estado.
Nesse período, a grande novidade foi a produção do café para exportação, bem como
o fim do tráfico de escravos, em 1850. Na esfera política, liberais e conservadores chegaram
a um acordo nacional, esboçando mudanças para uma modernização capitalista, com as
primeiras tentativas de criar um mercado de trabalho, da terra e de recursos disponíveis. Com
a insuficiência do trabalho escravo e o acúmulo dos interesses opostos à escravidão, a
evolução política progressista do Império corresponde, assim, no terreno econômico, à
integração sucessiva do país numa forma produtiva superior: a forma capitalista. (PRADO
JÚNIOR, 2006
, p. 99).
A partir de 1870 surgiram os primeiros momentos de crise do Segundo Reinado, com
forte movimento republicano, culminando na queda da Monarquia e a proclamação da
República em 15 de novembro de 1889. Até esse momento a estrutura política tanto do
Brasil
-Colônia quanto do Brasil-Império era fortemente marcada pelo estamento de classes,
ou seja, uma minoria conduzia e escolhia quem conduziria a administração do país, com clara
e escancarada hierarquia e exclusão social das classes que não possuíam poder econômico,
como escravos, pequenos agricultores e semilivres na Colônia, somando-se os pequenos
comerciantes já na fase imperial.
Iniciou
-se, então, a chamada Primeira República, que se estenderia de 1889 até 1930,
quando o Estado conheceu a era Vargas, com suas políticas populistas. No início da
República Velha, os vários grupos que disputavam o poder possuíam interesses diversos, e o
problema era fazer convergir suas concepções acerca de como organizar a República.
Promulgou
-se, assim, a primeira Constituição Republicana no mês de fevereiro de 1891, com
69
forte inspiração no modelo norte-americano, trazendo como novidade o sistema
presidencialista de governo. Com a nova Carta constitucional,
fixou
-se o sistema do voto direto e universal, suprimindo-se o censo econômico.
Foram considerados eleitores todos os cidadãos brasileiros maiores de 21 anos,
excluídas certas categorias, como os analfabetos, os mendigos, os praças militares.
A constituição não fez referência às mulheres, mas considerou-se im
plicitamente
que elas estavam impedidas de votar. (FAUSTO, 2002, p. 142).
Nos primeiros anos da República, com o agravante da crise sofrida pela moeda
brasileira diante da libra inglesa, novamente o Rio Grande do Sul voltou a ser uma região de
política
instável, opondo-se, de um lado, os republicanos e, de outro, os liberais. Em fevereiro
de 1893 iniciou a guerra civil entre os dois grupos, a qual ficou conhecida como a Revolução
Federalista, com duração de dois anos e meio. Entre os republicanos estava o presidente do
estado, Júlio de Castilhos, e entre os liberais, Silveira Martins, este representante de uma nova
elite que estava disposta a monopolizar o poder.
Também no ano de 1893, na Bahia, juntou-se uma população numa fazenda
abandonada, conhecida como o Arraial de Canudos, cujo der, Antônio Conselheiro
19
, fazia
pregação concorrente com a Igreja e proclamava a volta da Monarquia. Segundo ele, a
República só podia ser coisa de ateus e maçons, como comprovavam a introdução do
casamento civil e uma
suposta interdição da Companhia de Jesus (FAUSTO, 2002, p. 146).
De acordo com Faoro (1984, p. 504), o liberto, poupado ao chicote do feitor,
abandona a fazenda, símbolo da sujeição, e vai buscar nas cidades ocupações eventuais.
Consolida
-se a República Liberal, na qual o progresso atraente seria determinado pelo novo
contexto industrial, abandonando-se o exclusivismo agrário do Império. Faoro (1984, p. 527-
528), destaca, porém, que
19
Conforme expõe Fausto (2002, p. 145), Antônio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio
Conselheiro. O Conselheiro nascera no Ceará, filho de um comerciante que pretendia fazer dele um padre.
Depois de ter problemas financeiros e complicações domésticas, exerceu várias profissões, como professor,
vendedor ambulante, até se converter em beato
um misto d
e sacerdote e chefe de jagunços.
70
na convivência nova dos interesses, entra um componente até então arr
edio,
convencido de que as facilidades de importação significam vida barata
o
assalariado. Mais do que o alimento barato do exterior começa a pesar, no seu plano
de vida, a oportunidade de emprego, procurado não apenas nas repartições públicas,
lotadas
de protegidos políticos.
A República, em sua estrutura política, começou a viver um quadro de manipulações
eleitorais, e os resultados eleitorais não espelhavam a realidade. Para agravar ainda mais a
situação política da República Velha, impôs
-
se um con
trole político pelos coronéis, pelo qual
o voto não era secreto e a maioria dos eleitores estava sujeita à pressão dos chefes
políticos, a quem tratava também de agradar. A fraude eleitoral constituía prática
corrente, através da falsificação de atas, do voto dos mortos, dos estrangeiros etc.
Essas distorções não eram aliás novidade, representando o prolongamento de um
quadro que vinha da Monarquia. (FAUSTO, 2002, p. 149).
O coronelismo , como ficou conhecido, representou uma relação sociopolítica d
e
clientelismo no campo e nas cidades. Segundo observa Fausto, tal situação resultava na
desigualdade social, na impossibilidade de os cidadãos efetivarem seus direitos, na
precariedade ou inexistência de serviços assistenciais do Estado, na inexistência de uma
carreira de serviços públicos, resultando numa maior concentração do poder por parte dos
chefes políticos da República. De acordo com o autor (p. 149), o coronel controlava os
votantes em sua área de influência. Trocava votos, em candidatos por ele indicados, por
favores tão variados como um par de sapatos, uma vaga no hospital ou um emprego de
professora .
Durante a República Velha alguns movimentos sociais ganharam entusiasmo,
como observa Fausto com o movimento dos trabalhadores, que são divididos em três grupos:
os que combinaram conteúdo religioso com carência social, os que combinaram conteúdo
religioso com reivindicação social e os que expressaram reivindicações sociais. Como
exemplos desses movimentos sociais, Fausto cita, para o primeiro grupo Canudos; para o
segundo, o Movimento do Contestado
o Contestado era uma região limítrofe entre os
estados do Paraná e Santa Catarina, sendo a posse reivindicada por ambos
e, para o terceiro
71
grupo de movimentos sociais do campo, as greves por salários e melhores condições de
trabalho ocorridas em fazendas cafeeiras de São Paulo.
o movimento da classe trabalhadora urbana mostrou-se limitado e não alcançou
êxito. Esses movimentos, quando ocorriam, atingiam setores importantes do negóc
io
agroexportador, como, por exemplo, as ferrovias e os portos. A política oligárquica da
Primeira República desvencilhava-se das reivindicações sem precisar agradar à classe
trabalhadora, primeiro porque, como observa Fausto (2002, p. 168), os trabalhadores eram
divididos ante rivalidades étnicas, o que impedia sua maior organização, e, segundo, porque a
sindicalização já os inseria na lista negra dos industriais.
Por essas razões, quando do surgimento dos primeiros partidos políticos de teor
operário, predominou um vago socialismo, acompanhado de um sindicalismo inclinado a
buscar soluções imediatas. Alguns movimentos acontecidos no estado do Rio de Janeiro até o
ano de 1917 possuíram conteúdos populares, destacando-se entre eles a revolta da vacina em
1
904, que se opôs à introdução da vacina contra a febre amarela (FAUSTO, 2002, p. 168).
Ponto a ser destacado é que, após a Revolução Russa de 1917, o movimento operário
passou a ser o foco das preocupações, ganhando destaque pela imprensa. Porém, os
traba
lhadores não tinham o ímpeto revolucionário e tão-somente visavam à melhoria de suas
vidas com a conquista de alguns direitos básicos. No ano de 1922 ocorreu a fundação do
Partido Comunista do Brasil, constituindo-se num divisor de águas da República Velha, pois
até 1930 era um partido composto basicamente de operários sob forte influência marxista.
Se, no Brasil Império, a participação política dependia do regime cencitário e do
capacitário, o regime republicano extinguiu o cencitário, mantendo, porém, o
capacitário,
excluindo de forma definitiva os analfabetos. Sem dúvida, a República Velha continuou com
o movimento restritivo de participação popular, paradoxalmente consanguíneo do
liberalismo federal irrompido no fim do Império. A política será ocupação dos poucos,
poucos e esclarecidos, para o comando das maiorias analfabetas, sem voz nas urnas
(FAORO, 1984, p. 621).
A análise da transição do sistema político imperial para o sistema político
republicano, na leitura de Faoro, fez-se de forma gradual. Enquanto o sistema imperial partia
do centro, com os nomeados e não eleitos presidentes da província, ajudado no domínio dos
meios locais de compressão e fraude, na velha República, com o Exército no comando e as
nomeações dos governadores, a estrutura não sofreu alterações. Deslocou-se, então, o eixo
72
decisório para os Estados com os cargos dos governadores, garantindo-se o aliciamento dos
pequenos com uma clara política de governadores.
O coronelismo ganhou tamanho vigor com a transição da política imperial para o
sistema político republicano que, ao se integrar ao poder estadual, o qual é constituído pelo
governador como a espinha dorsal da vida política, torna-se a nova forma de delegação do
poder público no campo privado, sendo que
o coronel municipal, delegado do governo estadual
delegado sem nculo
hierárquico, insista-se, e no exercício de funções com patrimônio próprio
subordina a si diversos subcoronéis, aos quais comanda e dos quais é dependente. O
coronel tem capangas, elementos sem vontade própria, como os têm os subcoronéis.
Entre os coronéis e os subcoronéis, bem como entre os dois e os não dependentes
imediatos (empregados, devedores, moradores em suas terras) um laço de
amizade, que atenua e ameniza a subordinação. Em regra o compadrio une os
aderentes ao chefe, chefe enquanto goza da confiança do grupo dirigente estadual e
enquanto presta favores, com o domínio do mecanismo policial, muitas vezes do
promotor público, não raro expresso na boa vontade do juiz de direito.
As
autoridades estaduais
inclusive o promotor público e o juiz de direito
são
removidas, se em conflito com o coronel. Até a supressão da comarca, seu
desmembramento, elevação de entrância são expedientes hábeis para arredar a
autoridade incômoda. (F
AORO, 1984, p. 632).
O coronel mobilizava e garantia a segurança coletiva, de tal modo que as soluções
para os problemas públicos e populares eram delicadas em meio a tal estrutura política, posto
que lidar com a política, com a justiça, com o fisco, obter uma estrada ou pleitear uma ponte
eram tarefas que exigiam a presença de quem pudesse recomendar o pobre cidadão, mal
alfabetizado e sem preparo para tanto. Continuou-se, pois, na República Velha, com
políticas assistencialistas e não emancipatórias para as classes não privilegiadas na
sociedade brasileira. Com um tal quadro, era preciso libertar o homem do interior do
coronel e os Estados, das oligarquias, instalando um Estado interventor, dirigente, autônomo,
ou seja, o Exército. Uma vez rompida a confiança no aparelhamento presidencial, bem como
na política dos governadores, o domínio estruturado por todas as classes poderia acontecer
de forma autoritária.
No início de 1929 ocorreu uma divisão entre as elites dos grandes estados, fato que
lev
ou ao fim da Primeira República. Após a eleição de e março de 1930, cuja vitória fora
atribuída a Júlio Prestes, acirraram-se os ânimos pela suspeita de que as máquinas eleitorais
73
haviam produzido votos em todos os estados, inclusive no Rio Grande do Sul, onde Getúlio
Vargas teria vencido a eleição. Então, o presidente da República acabou deposto,
constituindo
-se uma Junta Provisória de Governo, com a posse de Getúlio Vargas na
Presidência em 3 de novembro de 1930, marcando o fim da República Velha (FA
USTO,
2002, p. 179
-
181).
O governo de Getúlio Vargas ficou marcado por ser um governo de políticas
populistas, mas com centralização do poder. Em relação às políticas elaboradas neste
período, nenhuma teve caráter emancipatório, além de o poder oligárquico e as relações
clientelistas, características dos períodos coloniais e imperiais, não terem desaparecido,
persistindo com a ditadura de emergência do Exército.
Getúlio conseguiu promover o capitalismo nacional, tendo dois braços importantes
da sociedade em combinação: o Exército nacional e uma forte aliança entre a burguesia
industrial e alguns setores da classe trabalhadora urbana. Entre erros e acertos, uma das
medidas mais importantes e
mais coerentes do governo Vargas foi a política trabalhista. Entre 1930 a 1945 ela
passou por várias fases, mas desde logo se apresentou como inovadora com relação
ao período anterior. Teve por objetivos principais reprimir os esforços
organizatórios da classe trabalhadora urbana fora do controle do Estado e atraí-
la
para o apoio difuso do governo. (p. 187).
Com a criação do Ministério do Trabalho e da Indústria, surgiram as leis de proteção
ao trabalhador, de acomodação dos sindicatos pelo Estado, bem como a criação das Juntas de
Conciliação e Julgamento, que teriam papel importante na relação entre empregadores e
empregados. O sindicato passou a exercer um papel importante, por ser um órgão consultivo
e de colaboração junto ao poder público, sendo adotado o princípio da unidade sindical, isto é,
o Estado reconhecia um único sindicato para cada categoria profissional. Posteriormente,
esse foi substituído pelo princípio da pluralidade sindical, que desapareceu na legislação de
1939.
Além das políticas trabalhistas, o governo Vargas criou o Ministério da Educação e
Saúde, porém sempre tratou a educação de forma autoritária. No dizer de Fausto (2002, p.
188), acabou tratando a educação de cima para baixo, sem envolver uma grande mobilização
74
da sociedade. Deve ser destacado que mesmo na ditadura do Estado Novo, a educação foi
impregnada de valores hierárquicos e de conservadorismo nascidos sob influência católica,
uma importante base de apoio do governo Vargas.
Na análise de Fausto (2002, p. 189), dois pontos são importantes para a definição do
processo político entre 1930 e 1934: primeiro, o tenentismo; segundo, a luta entre o poder
central e grupos regionais. Os tenentes defendiam o prolongamento da ditadura, bem como a
elaboração de uma Constituição que estabelecesse a representação por classe junto com a
represent
ação individual. Dessa forma, o movimento tenentista tentou introduzir certas
melhorias e atender a algumas reivindicações populares, retomando em outro contexto a
tradição do salvacionismo .
No ano de 1932 o governo procurou atender às reivindicações contra o
prolongamento da ditadura, emanadas dos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas
Gerais, promulgando o Código Eleitoral, que, pela primeira vez, reconhecia o direito ao voto
das mulheres. A chamada Frente Única Gaúcha, formada pelos partidos regionais, rompeu
com Vargas, mas, apesar das divergências com o poder central, as elites regionais do Rio
Grande do Sul e de Minas Gerais não se dispunham a correr o risco de enfrentar, pelas armas,
um governo que haviam ajudado a colocar no poder menos
de dois anos antes. (p. 191).
Ainda assim, estourou uma pequena revolução no ano de 1932, a qual uniu diferentes
setores sociais, da cafeiculutra à classe média e industriais, contudo a classe operária, apesar
de realizar várias greves, não participou d
o movimento. Em 15 de julho de 1934, por meio do
voto da Assembléia Nacional Constituinte, Vargas foi eleito presidente da República, devendo
governar até 3 de maio de 1938, quando, então, as eleições para a presidência seriam diretas.
Segundo Fausto (p. 194), parecia enfim que o país iria viver sob um regime democrático.
Entretanto, mais de três anos após ser promulgada a Constituição, o golpe do Estado Novo
frustrou essas esperanças.
Com o término da Primeira Guerra Mundial começaram a surgir em nível mundial
movimentos de inspiração totalitária, momento em que a democracia liberal, com seus
partidos e suas lutas políticas, mostrou-se inócua. No contexto mundial, conforme destaca o
autor (p. 194),
em 1922, Mussolini assumiu o poder na Itália; Stalin foi construindo seu poder
absoluto na União Soviética; o nazismo se tornou vitorioso na Alemanha em 1933.
75
A crise mundial concorreu também para o desprestígio da democracia liberal,
associada no plano econômico ao capitalismo. O capitalismo, que pro
metera
igualdade de oportunidades e abundância, caíra em um buraco negro do qual
parecia incapaz de livrar-se. Em vez de uma vida melhor, trouxera
empobrecimento, desemprego e desesperança.
Na data de 10 de novembro de 1937, Vargas anunciou a nova fase política, na qual o
movimento popular e os comunistas seriam abatidos, iniciando o Estado Novo. É de se notar,
que a classe dominante aceitava o golpe como coisa inevitável e até benéfica. (p. 200).
Resta atentar para a estrutura política implementada pelo governo ditatorial de Vargas no
Estado Novo, na qual a política trabalhista pode ser vista sob dois ângulos: o das iniciativas
materiais e o da construção simbólica da figura de Getúlio Vargas como protetor dos
trabalhadores. (p. 206). O governo do Estado Novo continuou a implementar políticas
iniciadas no ano de 1930, estabelecendo linhas da organização sindical, como que o sindicato
passa a se tornar cada vez mais dependente do Estado. A fim de decidir as questões
trabalhistas, o governo do Estado Novo criou a Justiça do Trabalho, bem como tratou de
sistematizar a legislação trabalhista, em junho de 1943, com a Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT).
Getúlio ganhou a imagem de protetor dos trabalhadores , como sendo o importante
guia e dirigente dos brasileiros, principalmente da classe operária. No Estado Novo também
se criaram o Ministério da Justiça e o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), este
subordinado ao presidente da República. Por outro lado, a repressão também se fez present
e
no novo governo, que prendeu, torturou e exilou intelectuais e políticos de esquerda. Em
relação à estrutura política e à administração pública, segundo Fausto (p. 208),
na Primeira República, o serviço ajustara-se à política clientelista. Salvo rara
s
exceções, não existia o concurso público e os quadros especializados se restringiam
a uma pequena elite. O Estado Novo procurou reformular a administração pública,
transformando
-a em um agente de modernização. Buscou-se criar uma elite
burocrática, desvinculada da política partidária, que se identificasse com os
princípios do regime. Devotada apenas aos interesses nacionais, essa elite deveria
introduzir critérios de eficiência, economia e racionalidade.
76
O Estado Novo criou uma instituição responsável pela reforma da administração
pública, o Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), no ano de 1938. No
interior da cúpula burocrática, as indicações eram feitas de acordo com as preferências do
presidente da República ou seus ministros para
os intitulados cargos de confiança.
Entretanto, o Estado Novo, que havia sido projetado para durar muitos anos, acabou
sendo curto, não chegando a oito anos de existência. O Brasil acabou sofrendo um desgaste
maior por suas políticas externas em suas relações comerciais com a Alemanha nazista, do
que com suas políticas internas. No ano de 1945 foram criados três importantes partidos que
iriam sobreviver até 1964: a União Democrática Nacional (UDN), reunindo socialistas
democráticos e poucos comunistas; o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), além do Partido Comunista Brasileiro (PCB), que fora criado no
ano de 1922.
Vargas acabou renunciando ao poder em 1945, redigindo uma declaração na qual
dizia concordar com a saída. A figura do General Dutra surgiu como o concorrente de
oposição ao ministro de guerra Eduardo Gomes. Dessa forma, essas e outras circunstâncias
fizeram com que a transição para o regime democrático representasse não uma ruptura com o
passado, mas uma mudança de rumos, em meio a muitas continuidades (FASUTO, 2002, p.
215).
A propósito da administração pública brasileira e, portanto, do domínio do poder
político nacional, desde o Brasil Colônia até a era Vargas, na interpretação histórica de Faoro
(19
84), de dom João I a Getúlio Vargas, manteve-se uma estrutura político-social que resistiu
a todas as transformações fundamentais. Nessa, a comunidade política conduz, comanda,
supervisiona os negócios como negócios privados seus, numa realidade histórica de
persistência secular da estrutura patrimonial como forma de domínio, na qual
o poder
a soberania nominalmente popular
tem donos, que não emanam da
nação, da sociedade, da plebe ignara e pobre. O chefe não é um delegado, mas um
gestor de negócios, gestor de negócios e não mandatário. O Estado, pela cooptação
sempre que possível, pela violência se necessário, resiste a todos os assaltos,
reduzido, nos seus conflitos, à conquista dos membros graduados de seu estado-
maior. E o povo, palavra e não realidade dos contestatários, que quer ele? Este
oscila entre o parasitismo, a mobilização das passeatas sem participação política, e a
nacionalização do poder, mais preocupado com os novos senhores, filhos do
dinheiro e da subversão, do que com os comandantes do alto, paternais e, como o
bom príncipe, dispensários da justiça e proteção. A lei, retórica e elegante, não o
interessa. A eleição, mesmo formalmente livre, lhe reserva a escolha entre opções
que ele não formulou (FAORO, 1984, p. 748).
77
O traço característico da estrutura político-social, numa viagem de seis séculos, será
o predomínio do estamento no foco superior do poder, do quadro administrativo, o qual de
aristocrático se burocratiza de forma progressiva, em plena mudança de acomodação. De
ssa
forma, julga-se ter realizado a investigação quanto à estrutura social e política do Brasil
Colônia, do Brasil Império, da Primeira República e do Estado getulista, passando
-
se, agora, à
análise da experiência democrática do período compreendido entre 1945 a 1964, do regime
militar e da nova transição para a democracia entre 1964 e 1984
20
.
2.2. A experiência democrática do período compreendido entre 1945 a 1964,
o regime militar e a nova transição para a democracia entre 1964 e 1984
Com as eleições de 1945 e a vitória de Dutra iniciou-se a fase da experiência
democrática brasileira, sendo promulgada nova Carta constitucional em setembro de 1946, na
qual o Brasil adotou o modelo liberal-democrático. Na política econômica, o governo Dutra
seguiu o modelo liberal: Acreditava-se que o desenvolvimento do país e o fim da inflação
gerada nos últimos anos da guerra dependiam da liberdade dos mercados em geral e,
principalmente, da livre importação de bens. (FAUSTO, 2002, p. 222).
Getúlio Vargas voltaria ao poder com as novas eleições de 1950, quando iniciou um
novo governo, agora com condições de regime democrático. Vargas buscou estabelecer laços
sólidos com a classe operária, ajudando os trabalhadores a se organizarem a partir de suas
classes operárias em sindicatos, porém não conseguiu controlar todo o mundo do trabalho
quando a alta do custo de vida em 1953 acabou por desencadear uma série de greves
importantes em alguns estados da federação.
Várias armações políticas durante o governo Vargas, que envolveram João Goulart,
seu então ministro do Trabalho, bem como o próprio Getúlio, quando da tentativa de
assassinato do seu maior opositor político, Carlos Lacerda, acabaram por manchar a imagem
20
Para a análise do próximo subtítulo será utilizada, de forma exclusiva, a interpretação histórica de Bóris
Fausto para estes três últimos períodos da história do Brasil.
78
do governo, culminando com um grande movimento pela renúncia de Vargas. Em meio a
essas condições, segundo Fausto (p. 231),
quando o cerco se apertou ainda mais, Vargas respondeu com um último e trágico
ato. Na manhã de 24 de agosto, suicidou
-
se em seus aposentos no Palácio do Catete,
desfechando um tiro no coração. O suicídio de Vargas exprimia desespero pessoal,
mas tinha também um profundo significado político. O ato em si continha uma
carga dramática capaz de eletrizar a grande massa. Além disso, o presidente deixava
como legado uma mensagem comovente aos brasileiros
a chamada carta-
testamento
onde se apresentava como vítima e ao mesmo tempo acusador de
forças impopulares, apontando como responsáveis pelo impasse a que chegara os
grupos internacionais aliados a seus inimigos internos.
O governo Vargas, sob a experiência democrática, pouco trouxe de inovador quanto
à participação democrática popular, mas manteve políticas populistas, buscando colocar-se ao
lado da classe trabalhadora pela articulação dos operários em sindicatos de suas respectivas
cat
egorias. Não avançou democraticamente para uma efetiva participação dos cidadãos junto
à administração pública, não alcançando, portanto, a emancipação político-social popular;
assim, o povo novamente, a exemplo do Brasil Colônia, Império, Primeira Repúbl
ica e Estado
getulista, à mercê da classe governante.
Por outro lado, o período Vargas merece destaque pelo fato de ter trazido
importantes leis trabalhistas, o que, sem dúvida, acarretou especial proteção para a classe
trabalhadora que até então não a possuía. Também a organização da classe trabalhadora em
sindicatos referentes às respectivas categorias de trabalho foi significativa, posto que tal
organização fortaleceu o operariado, inclusive em suas reivindicações à classe patronal. O
enaltecimento do Estado foi importante na era Vargas, visto que, até então, o Brasil ainda se
encontrava fragmentado. Vargas conseguiu dar uma unidade ao Estado brasileiro por meio de
várias ramificações estatais criadas no seu governo, tanto no aspecto físico, como rodovias e
ferrovias, quanto no administrativo, como o Departamento de Imprensa, o Ministério da
Justiça, a Justiça do Trabalho, a criação da Petrobras, esta uma importante estatal, que
inaugurou a luta do petróleo é nosso , entre outros pontos relevantes implementados por
Vargas.
Após o governo de Vargas, quem assumiu o poder foi Juscelino Kubitschek, em 3 de
outubro de 1955. O governo de JK obteve estabilidade política; entretanto, o regime
79
democrático era tratado com certos limites, sempre com a preservação da ordem interna. O
período JK foi compreendido com grande preocupações econômicas e pouco
desenvolvimento político-social. Havia entre os trabalhadores organizados resistência quanto
à estabilização político-econômica, pois eram grandes as suspeitas de que exisitam arranjos
junto aos imperialistas, fato que imprimia grande medo aos assalariados, posto que poderiam
sofrer novas restrições.
Com o fim do governo de JK, assumiu a presidência da República Jânio Quadros,
vencendo as eleições de outubro de 1960. Jânio renunciou após sete meses de governo, sem
qualquer novidade no que diz respeito a práticas democráticas participativas, assumindo o
poder João Goulart, então vice
-
presidente. Para que Goulart assumisse o poder foi preciso um
grande movimento do governador do estado do Rio Grande do Sul, Leonel de Moura Brizola,
o qual ficou conhecido como batalha da legalidade , uma vez que forças políticas de
oposição queriam impedir que João Goulart viesse a assumir o poder em razão de uma
suposta ligação com
os comunistas.
O trabalhismo conseguiu de certa forma, triunfar, e no governo de João Goulart era
claro o avanço dos movimentos sociais com forte surgimento de novos atores sociais.
Ocorreu uma mobilização em alguns setores do campo que não haviam recebido atenção das
políticas populistas anteriores, porém
o movimento rural mais importante do período foi o das Ligas Camponesas, tendo
como líder ostensivo uma figura da classe média urbana
o advogado e médico
pernambucano Francisco Julião. Julião promoveu as Ligas à margem dos sindicatos
e tratou de organizar os camponeses, acreditando que era mais viável atrair os
camponeses do que os assalariados rurais para um movimento social significativo.
(FAUSTO, 2002, p. 244).
Tais movimentos sociais aparecem no ano de 1955 e visavam, acima de tudo,
defender os camponeses, lutando contra a expulsão da terra, a elevação do preço dos
arrendamentos e contra a prática de que o colono deveria trabalhar um dia por semana de
graça para o dono da terra. Em relação a
o governo de João Goulart, segundo o autor (p. 245),
também é importante destacar que
80
um avanço importante na esfera legislativa se deu em março de 1963, quando Jango
sancionou uma lei dispondo sobre o Estatuto do Trabalhador Rural. A lei instituia a
carteira profissional para o trabalhador do campo, regulou a duração do trabalho, a
observância do salário mínio e previu direitos como o repouso semanal e férias
remuneradas.
Ainda no governo de João Goulart, cresceu o movimento social entre os estudant
es
através da União Nacional dos Estudantes (UNE), a qual passou a intervir de forma direta nos
rumos políticos do país. É importante destacar que a Igreja Católica mudou algumas
posições, agora com abertura à esquerda, com a criação da Juventude Universitária Católica
(JUC). Para Fausto (p. 245),
tocada pelo clima de radicalização do movimento estudantil a JUC foi assumindo
posições socialistas e entrou em choque com a hierarquia eclesiástica. Dela nasceu
em 1962 a Ação Popular (AP), organização com objetivos revolucionários,
desligada da hierarquia. A AP participou ativamente das lutas políticas da época e
foi duramente reprimida após a instauração do governo militar em 1964.
Com Jango no poder voltaram as políticas populistas e o objetivo do governo de
estender o voto a duas classes sociais que não tinham o direito de voto, ou seja, os analfabetos
e os inferiores do Exército Nacional, cujo objetivo maior era ampliar as bases de sustentação
do governo populista. Jango também tentou reformas de caráter nacionalista com maior
intervenção do Estado na economia, tais como nacionalização de empresas de serviços
públicos e da indústria farmacêutica, ao que as classes dominantes impuseram fortes
resistências.
Ainda conforme Fausto (p. 253), a esquerda via na democracia formal um simples
instrumento a serviço dos privilegiados, e no início de 1964 ocorreu uma grande greve dos
setores metalúrgico, químico, de papel e papelão. Em de abril, após várias instabilidades
políticas, como restrições a salários, queda do PIB, restrições dos proprietários rurais à
reforma agrária, crescente conspiração militar contra a pessoa do presidente, Jango rumou de
Brasília para Porto Alegre e o presidente do Senado declarou vago o cargo de presidente da
República, assumindo
-o o presidente da Câmara dos Deputados. Porém, o poder já não estava
81
com os civis, mas com os militares, culminando com o golpe de 1964 e o fim da experiência
democrática brasileira.
Com o golpe de 1964, o regime militar passou a modificar as instituições por meio
dos atos institucionais (AIs). Durante o período do regime militar, as imunidades
parlamentares foram suspensas, e o comando militar tinha poderes para cassar mandatos e
suspender direitos políticos dentro de um prazo de dez anos. Também os estudantes, que
haviam expressado importante movimento social no período de Jango, foram visados pela
repressão militar, momento em que a sede da UNE no Rio de Janeiro foi invadida e
incendiada, havendo após sua dissolução. Igualmente, a repressão se instalou no campo,
atingindo as Ligas Camponesas e, nas cidades, houve intervenções em vários sindicatos de
trabalhadores, inclusive com prisões de líderes sindicais.
O regime militar sufocou as inspirações democráticas, imprimindo a todas as
manifestações populares violenta repressão em todos os setores. Até mesmo alguns
governadores e políticos acabaram perdendo o seu mandato, bem como tiveram suspensos os
seus direitos políticos, a exemplo de Jango, Brizola, Jânio e Juscelino, fato que indiretamente
levava a
o corte de um suposto candidato civil às próximas eleições presidenciais. O clima era
de medo e pavor, e em junho de 1964, assevera Fausto (p. 259),
o regime militar deu uma passo importante no controle dos cidadãos com a criação
do Serviço Nacional de Informações (SNI). Seu principal idealizador e primeiro
chefe foi o general Golbery do Couto e Silva. O SNI tinha como principal objetivo
expresso, coletar e analisar informações pertinentes à Segurança Nacional, à
contra
-informação e à informação sobre questões de subversão interna . Na prática,
transformou-se em um centro de poder quase tão importante quanto o Executivo,
agindo por conta própria na luta contra o inimigo interno . O general Golbery
chegou mesmo a justificar-se, anos mais tarde, dizendo que sem querer tinha criado
um monstro.
Em 15 de abril do ano de 1964, por meio do golpe militar, assumiu o primeiro
presidente da República do período, o general Humberto de Alencar Castelo Branco,
inaugurando uma sucessão militar que iria até o ano de 1984, quando ocorreu, então, a
transição para a democracia e o fim do período ditatorial. No plano político, o regime militar
implementou uma democracia restringida, sem participação popular, inclusive com
perseguições e fortes restrições em relação a todos os movimentos sociais. Houve a extinção
82
partidária e forçou-se a organização de apenas dois partidos políticos, a Aliança Renovadora
Nacional (Arena), no qual se encontravam os partidários do governo, e o Movimento
Democrático Brasileiro (MDB), em q
ue se encontrava a oposição.
Também no plano político, Carlos Lacerda aproximou-se de seus inimigos
tradicionais, Jango e Juscelino, a fim de formar a Frente Ampla, propondo lutar pela
redemocratização do país e pela afirmação dos direitos dos trabalhadores. Segundo Fausto
(p.263
-
264),
em 1968 as mobilizações ganharam ímpeto, no contexto daquele ano carregado de
significação em todo o mundo. O catalisador das manifestações de rua foi a morte
de um estudante, morto pela Polícia Militar durante um pequeno protesto realizado
no Rio de Janeiro no mês de março. Seu enterro foi acompanhado por milhares de
pessoas. A indignação cresceu com a ocorrência de novas violências. Esses fatos
criaram condições para uma mobilização mais ampla, reunindo não só os es
tudantes
como setores representativos da Igreja e da classe média. O ponto alto da
convergência dessas forças que se empenhavam na luta pela democratização foi a
chamada passeata dos 100 mil, realizada em junho de 1968.
Após o governo de Castelo Branco, em março de 1967, iniciou-se o período dirigido
pelo general Artur da Costa e Silva, o qual baixou o AI
5 e fechou o Congresso Nacional.
No ano de 1969, Costa e Silva, muito doente, foi afastado do poder, sendo nomeado pelas
Forças Armadas o general ga
úcho Emílio Garrastazu Médici.
Em seu governo, Médici não se limitou à repressão, distinguindo quem era
adversário do regime e quem o aceitava e dirigindo a repressão ao grupo descontente. Porém,
Médici enfrentou um foco de manifestação provocada pela esquerda radicial, a qual foi um
foco de guerrilha rural que o Partido Comunista do Brasil (PC do B) começou a instalar em
uma região banhada pelo rio Araguaia, próxima a Marabá, situada no leste do Estado do
Pará. (p. 267).
Posteriormente, no ano de 1973, o nome para a sucessão de Médici foi o general,
também gaúcho, Ernesto Geisel, o qual assumiu o poder em janeiro de 1974. Geisel iniciou a
abertura política do país, com a liberalização do regime, entre pequenos avanços e recuos.
Em que pese a luta do governo contra a linha dura interna adotada pelo regime militar, um
fato acabou chocando o Brasil, cujo episódio envolvia o jornalista Vladimir Herzog:
83
Em outubro de 1975, no curso de uma onde repressiva, o jornalista Vladimir
Herzog, diretor de jornalismo da TV Cultura de São Paulo, foi intimado a
comparecer ao DOI-CODI, por suspeita de ter ligações com o PCB. Herzog
apresentou
-se ao DOI-CODI e dali não saiu vivo. Sua morte foi apresentada como
suicídio por enforcamento, uma forma grosseira de encobrir a realidade: tortura
seguida de morte. (p. 272).
O presidente Geisel acabou substituindo o general do Destacamento de Operações e
Informações e Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), cessando, assim, a
tortura em suas dependências, apesar de as violências em São Paulo não terem terminado por
parte dos militares. A política do governo Geisel no campo acabou gerando a emergência de
um movimento social sob influência da Igreja Católica, conhecido como Comissão Pastoral
da Terra (CPT). Dessa forma, a luta pela posse da terra ampliou-se e tornou-se forte.
Também o movimento operário retornou no governo Geisel com novas feições, quando o
sindicalismo ressurgiu, adotando formas independentes do Estado, a partir muitas vezes da
vivência no interior das empresas, onde os trabalhadores organizaram e ampliaram as
comissões de fábrica. (p. 276).
Com o fim do período Geisel, iniciou-se o governo do general João Batista
Figueiredo, em março de 1979, também com um traço marcante: a ampliação da abertu
ra
política. A partir de 1984 a economia recuperou-se da recessão de 1981-1983, e houve o
aumento do crescimento das exportações; quando Figueiredo deixou o governo no início de
1985, a situação financeira estabilizou-se e o país voltou a crescer. Durante o período do
governo de Figueiredo houve importantes acontecimentos, que prepararam a transição para a
democracia, como quando
a partir do sindicalismo urbano e rural, de setores da Igreja e da classe média
profissional, surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT). O PT propunha-
se
representar os interesses das amplas classes de assalariados existentes no país, com
base em um programa de direitos mínimos e transformações sociais que abrissem
caminho para o socialismo. (p. 280
-
281).
84
Também houve transformações partidárias nos dois segmentos até então existentes,
quando o MDB passou a ser Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e a
Arena, Partido Democrático Social (PDS). Brizola não se acomodou no PMDB, capitalizou o
prestígio do trabalhismo e da esquerda fundando o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
Em 1983, o sindicalismo identificado com o PT fundou a Central Única dos Trabalhadores
(CUT), estabelecendo centrais em todo o país.
Em janeiro de 1985, elegeu-se presidente da República, por eleição indireta,
Tancredo Neves, do Partido da Frente Liberal (PFL), tendo como vice
-
presidente José Sarney,
do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Após a eleição, Tancredo acabou
enfermo, vindo a falecer em abril de 1985, quando, então, tomou posse em seu lugar o vice
José Sarney. O governo enfrentou dificuldades no campo econômico, vindo a anunciar o
Plano Cruzado, em fevereiro de 1986, quando Sarney convocou o povo a colaborar na
execução do plano e a travar uma guerra de vida ou morte contra a inflação. Da noite para o
dia, o presidente ganhou nome e prestígio. (p. 287).
Sarney tomou como medida econômica o congelamento de preços, fato que agradou
à população, bem como as medidas tomadas no campo salarial deram maior segurança às
camadas pobres. No campo político participativo, não houve nenhuma inspiração com ênfase
democrático
-participativa entre as políticas elaboradas pelo governo Sarney, sendo, assim,
promulgada a nova Constituição em 1988. Estava ocorrendo, dessa forma, a transição para a
democracia, mas ainda de forma lenta, posto que
a transição brasileira teve a vantagem de não provocar grandes abalos sociais. Mas
teve também a desvantagem de não colocar em questão problemas que iam muito
além da garantia de direitos políticos à população. Seria inadequado dizer que esses
problemas nasceram com o regime autoritário. A desigualdade de oportunidades, a
ausência de instituições do Estado confiáveis e abertas aos cidadãos, a corrupção, o
clientelismo são males arraigados n
o Brasil. (p. 290).
Realizaram
-se, então, as primeiras eleições diretas para a presidência da República
no ano de 1989, estando, de um lado da disputa, Fernando Collor de Mello, do Partido da
Reconstrução Nacional (PRN), e, do outro, Luís Inácio Lula da Silva, do Partido dos
trabalhadores (PT). Collor venceu as eleições e prometeu combater a corrupção, reduzir os
gastos públicos e combater os marajás, esses funcionários públicos com altos salários. Collor
85
tomou posse em 1990, porém várias acusações de corrupção no governo acabaram por afastá-
lo pela via do
impeachment
.
Assumiu, então, a presidência da República o vice Itamar Franco do PMDB, que teve
de enfrentar o retorno da inflação diante das fracassadas medidas tomadas por Collor. O
governo Ita
mar criou o Plano Real, estabilizou a inflação e começou a sanear a dívida externa.
Novamente as atenções do governo voltaram-se para a atividade econômica, e pode-se dizer
que nada se encontra no período que tenha referência a práticas democráticas parti
cipativas,
levando
-
se em consideração também que o regime democrático ainda estava se solidificando.
Com as eleições de outubro de 1994, elegeu-se presidente da República o sociólogo
Fernando Henrique Cardoso pela sigla do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o
qual fora ministro da Fazenda do governo Itamar Franco. Fernando Henrique manteve os
rumos das políticas econômicas, tendo como seu ministro na Fazenda Pedro Malan. Após
quatro anos de mandato, Fernando Henrique reelegeu-se presidente, governando o Brasil por
mais quatro anos. Durante o período de governo, nota-se que as políticas adotadas pelo
governo possuíam nítidas receitas neoliberais, a exemplo das privatizações promovidas
durante o período.
Quanto ao governo de Fernando Henrique Cardoso, pode-se dizer que a transição
democrática alcançou solidez, quando se assistiu, no Brasil a eleições diretas para a
presidência da República, para os governos estaduais, prefeituras municipais e cargos do
Poder Legislativo federal, estadual e municipal. É um momento em que o regime
democrático brasileiro alcançou a sua maturidade, e em que
as questões da afirmação e ampliação da democracia e do acesso dos excluídos à
plena cidadania estão interligadas. O regime democrático terá condições de s
e
transformar, em nosso país, em um valor universal quando estiver associado a um
maior bem
-
estar dos cidadãos e à perspectiva de um futuro melhor. ( p. 310).
Após o período de domínio do regime militar, no qual jamais houve práticas
democráticas juntamente com a sociedade civil, mas decisões tão-somente tomadas pelas
juntas militares, traduzindo-se em uma não-democracia, o Brasil alcançou solidez
democrática, principalmente a partir das eleições de 1994. Com a intenção de que o regime
democrático devesse se transformar num valor universal, conforme assevera Fausto, torna-
se
86
necessária a análise acerca do papel da sociedade civil na elaboração de políticas públicas, a
fim de se vislumbrar a possibilidade de implementação de política deliberativa na dem
ocracia
brasileira.
2.3. O papel da sociedade civil na elaboração de políticas públicas
Buscar o bem-estar dos cidadãos e a perspectiva de um futuro melhor implica
qualificar o regime democrático e aumentar a participação popular na gestão blica pela
participação da sociedade civil nas deliberações das políticas públicas necessárias ao bem
viver. Na maioria das vezes, a questão social , no Brasil, é encarada pelas elites políticas
como mazelas sociais, como problemas sociais, não sendo objeto de políticas sociais do
Estado, mas da filantropia.
No dizer de Cohn (2000, p. 387), a questão social é tida e havida como objeto da
filantropia, à qual se associa o prestígio social, desvinculado-se da categoria do trabalho, uma
vez que pobre é o criminoso, o violento, aquele que ameaça a ordem pública, indo de
encontro aos bons costumes. A partir desse contexto, a questão social no Brasil começou a ter
nova visão quando dos primeiros movimentos da classe operária, que reivindicavam
melhorias em suas condições sociais, bem como um conjunto mínimo de direitos no mundo
do trabalho.
Com isso algumas questões sociais passam à ótica da responsabilidade pública via
mundo do trabalho, mas a questão da pobreza e da miserabilidade continua não sendo inserida
no mercado de trabalho, ficando refém da esfera privada, da filantropia, à espera da resolução
dos seus problemas sociais. Enquanto algumas questões sociais que atingem a classe operária
acabam passando ao âmbito da política, via relação de trabalho, outras, que fi
cam
centralizadas nas camadas pobres e miseráveis da população, continuam fora do âmbito da
política. Portanto, o vínculo com o mercado de trabalho é requisito indispensável à cidadania
e, segundo Cohn (p. 389
-
390),
não é por outro motivo que os direitos sociais no Brasil até hoje traduzem-se em
políticas e programas sociais que se dirigem a dois públicos distintos: os cidadãos e
87
os pobres. Cidadãos são aqueles que, por exemplo, estão cobertos por um sistema
de proteção social ao qual têm direito porque contribuem para com ele. Os pobres
são aqueles que, por não apresentarem capacidade contributiva, uma vez que nem
sequer apresentam capacidade de formas autônomas de garantia de patamares
mínimos de sobrevivência, são alvo de políticas sociais de caráter filantrópico e/ou
focalizado em determinados grupos reconhecidos como mais carentes e
socialmente mais vulneráveis.
Como se pode constatar, desde os primórdios da história do Brasil, iniciando-se pelo
Brasil Colônia, passando pelo Brasil Império, pela Primeira República, pelo governo de
Getúlio Vargas, pelo Regime Militar e, ao final, pela transição democrática, as políticas foram
sempre de caráter clientelista, paternalista ou populista, podendo-se notar o estamento, o
coronel, o pai dos pobres . D
entro dessa linha política adotada pelas elites brasileiras, nunca
se vislumbraram políticas emancipatórias e inclusivas para as classes proletárias e excluídas
das decisões políticas dominantes.
Esse traço marcante das elites políticas brasileiras na tratada questão social é uma
característica historicamente construída, que representa na atualidade a maneira enclausurada
como a questão social é vista no país, tendo,
de um lado, o traço paternalista com que a questão social é tratada no país, e, de
outro,
o traço clientelista do padrão de atuação do Estado brasileiro no setor, em
seus distintos níveis de poder. Isto é, a característica de as políticas sociais
comandadas pelo Estado reproduzirem a subalternidade de segmentos mais pobres
da população, reforçando assim seu auto-conhecimento como sujeitos dependentes
dos favores personalizados do Estado ou individuais de membros das elites políticas,
locais, estaduais e/ou nacionais. (p. 390).
Principalmente após a experiência autoritária do regime militar instalado em 1964, a
sociedade civil brasileira experimentou a partir da década de 1970 um ressurgimento com a
própria oposição ao Estado autoritário (DAGNINO, 2002, p. 09). Considerada o único núcleo
possível de resistência ao regime militar, a sociedade civil organizou-se e desempenha papel
fundamental no longo e lento processo de transição para a democracia, especialmente a partir
de vários movimentos sociais, tais como sindicatos de trabalhadores, associações de
profissionais, universidades, Igrejas, i
mprensa, partidos políticos de oposição, entre outros.
88
Nesse sentido, ao se vislumbrar que no Brasil ainda camadas da população que
estão reféns das iniciativas do setor privado, via trabalhos filantrópicos, necessário se faz que
se redefina a política ou as políticas sociais do país, no sentido da construção de espaços
públicos, tanto daqueles que visam promover o debate amplo no interior da sociedade civil
sobre temas/interesses até então excluídos de uma agenda pública, como daqueles que se
constitue
m como espaços de ampliação e democratização da gestão estatal. (p. 10).
Conforme a autora, esse processo de democratização que se iniciou com as lutas
contra a ditadura militar e se estende aos nossos dias, sem previsão em relação ao seu término,
não
linear e às vezes até mesmo com avanços e retrocessos, permite mostrar a democracia
como um processo multifacetado, resultado da disputa entre diferenciados projetos políticos,
que no interior da sociedade civil disputam diferentes concepções e interesses. Na atualidade
o que interessa saber é qual é o Estado necessário para enfrentar a cisão da democracia formal
e da democracia real, conforme observa Cohn (2000, p. 401), visto que o tamanho do Estado
já não mais interessa, ou seja,
o desafio hoje consiste em se buscar novas formas de se articular o binômio
desenvolvimento e democracia no enfrentamento das desigualdades sociais, o que
implica resgatar a centralidade do Estado, e mais do que isso, a democratização do
próprio Estado, até hoje não atingida, apesar de a Constituição Cidadã de 1988
garantir inúmeros espaços de participação social sediados nos Conselhos Nacionais
(e seus equivalentes estaduais e municipais) sobretudo na área social.
Nesse sentido, buscar novas formas de articulação entre desenvolvimento e
democracia no enfretamento das desigualdades sociais significa rever a política na sua forma
de democracia representativa ou semidireta e o êxito de seus resultados diante da inclusão
social e a cidadania. Como se viu ao longo da descrição dos momentos políticos da história
brasileira, sempre se vivenciou uma forma monopolista do poder, de forma que as elites
passam a comandar de cima para baixo, não restando muitas oportunidades de abertura
política às classes sociais subalternas.
Pod
e-se dizer que, a partir da década de 1980 os movimentos sociais mudaram
substancialmente a constituição da esfera pública, na qual somente os partidos políticos e as
elites eram aptos a discutir as problemáticas sociais, numa clara e evidente verticalização do
poder no sentido de cima para baixo.
89
Com a ascensão dos movimentos sociais inverteu-se consideravelmente a lógica do
poder político e do próprio poder dominante brasileiro, uma vez que, a partir desse momento,
as aspirações e demandas sociais das classes oprimidas começam a ganhar espaço de
discussão na esfera pública por suas próprias manifestações.
A chamada contra-opressão pode ser expressa por lutas violentas ou não,
reivindicações, pressões, apatia ou mesmo alienação, visto que quando os grupos se
organizam na busca de libertação, ou seja, para superar alguma forma de opressão e para atuar
na produção de uma sociedade modificada, podemos falar na existência de um
movimento
social
(SCHERER-WARREN, 1989, p. 09). A autora (p. 20), define os m
ovimentos sociais
como sendo
uma ação grupal para transformação (a práxis) voltada para a realização dos mesmos
objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de princípios
valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos
definida (a organização e sua direção).
Também se pode dizer que movimentos sociais são ações sociais coletivas de
caráter socio-político e cultural que viabilizam distintas formas da população se organizar e
expressar suas demandas. (GOHN, 2003, p. 13). Enfim, trata-se, sem dúvida, de um agir
comunicativo, no qual as ações coletivas são discutidas na esfera pública a partir dessa
comunicabilidade.
De acordo com Maria da Glória Gohn (p. 18), um novo projeto emancipatório e
civilizatório por detrás dessa concepção, que tem como horizonte uma sociedade democrática
sem injustiças sociais. É inegável que o processo de democratização ocorreu e ocorre pelo
desempenho dos movimentos sociais, posto que a própria redefinição da democracia e
mergiu
de tal luta. A partir das reivindicações dos movimentos sociais se expressada também a
pluralidade de interesses, fator tão importante hoje em sociedades cada vez mais heterogêneas
e multiculturais, nas quais ainda se encontra o confronto da luta de classes, o qual foi
politicamente trabalhado por Marx.
Por intermédio da participação política os cidadãos alcançam a sua autonomia, tão
importante para a emancipação social. Segundo Gohn (2003, p. 30), a participação é um
processo de vivência que imprime sentido e significado a um movimento social,
90
desenvolvendo uma consciência crítica e gerando uma cultura política nova. A defesa da
democracia participativa a partir dos movimentos sociais, como critério legitimador da
própria democracia e como canal de manifestações das classes oprimidas, é uma necessidade
do Estado Democrático de Direito, bem como uma clara e evidente forma de
desenvolvimento.
Por isso, um projeto político é democrático quando não se reduz a um conjunto de
interesses particulares de um grupo, organização ou movimento. (GOHN, 2005, p. 36-
37).
Necessário para ser democrático é incorporar a visão do outro e do universal. A partir dos
movimentos sociais uma ruptura com a tradição paternalista de apropriação das
reivindicações populares e também para com a tradição clientelista, para outra em que os
cidadãos passam a ser os próprios agentes da construção democrática. É um novo cenário da
sociedade civil, onde o espaço público passa a ser ocupado por atores que anteriormente não o
tinham nem, sequer, tinham o direito de reivindicá-lo diante do Estado, o qual a partir deste
momento serve como canal de expressão e atendimento das demandas sociais populares. Por
isso, no dizer de Baierle (2000, p. 192),
a cidadania se constrói pela participação direta e indireta dos cidadãos, enquanto
sujeitos políticos, não apenas para a solução de seus problemas sentidos, sem
espaços públicos onde as decisões coletivas possam ser cumpridas, mas também
para um processo de radicalização democrática, através do desempenho instituinte,
transformador da própria ordem na qual operam.
Como exemplificação de que a democracia por meio dos movimentos sociais é fator
importante para o desenvolvimento social, cita-se o caso da influência dos movimentos
popul
ares urbanos (MPUs) na cidade de Porto Alegre/RS, onde a participação popular na
definição de prioridades e critérios para o orçamento municipal foi pautada pelo Orçamento
Participativo (OP), cuja estrutura é baseada em três princípios:
(a) participação aberta a todos os cidadãos, sem nenhum status especial atribuído às
organizações comunitárias; (b) combinação de democracia direta e representativa,
cuja dinâmica institucional atribui aos próprios participantes a definição das regras
internas; e, (c) alocação dos recursos para investimento de acordo com uma
combinação de critérios gerais e técnicos (ou seja, compatibilizando as decisões e as
91
regras estabelecidas pelos participantes com as exigências técnicas e legais da ação
governamental, respeitadas tamb
ém as limitações financeiras).
Segundo destaca Baierle, a implementação do Orçamento Participativo (OP) na
cidade de Porto Alegre, envolvendo saneamento básico, pavimentação, abastecimento de água
e coleta de lixo para quase toda a população, remodelando as vilas populares, referendou a
cidade como a capital de melhor qualidade de vida do Brasil. Ao se constatar que a
participação popular influenciou diretamente na remodelação da cidade, não esquecendo que
isso foi feito de forma conjunta com o poder público, mas garantindo o direito de participação
dos cidadãos, torna-se inegável que tal procedimento democrático é uma visível forma de
desenvolvimento social. Quanto à estrutura do Orçamento Participativo (OP), segundo Santos
(2003, p. 471),
está articulado em torno das assembléias plenárias regionais e temáticas, do fóruns
de delegados e do Conselho do OP. Há dois ciclos (chamando-se rodadas ) de
assembléias plenárias em cada uma das dezesseis regiões e em cada uma das seis
áreas temáticas. Entre as duas rodadas são realizadas reuniões preparatórias nas
microrregiões e das áreas temáticas. As assembléias e as reuniões têm uma tripla
finalidade: definir e escalonar as exigências e as prioridades regionais ou temáticas;
eleger os delegados para os fóruns de delegados e conselheiros do COP; avaliar o
desempenho do Executivo. Os delegados funcionam como intermediários entre o
COP e os cidadãos, individualmente ou como participantes das organizações
comunitárias e temáticas. Também supervisionam a implementação do orçamento.
Os conselheiros definem os critérios gerais que presidem o escalonamento das
exigências e à distribuição dos fundos e votam a proposta do plano de investimento
apresentada pelo Executivo.
Essa conseqüência é atribuída ao sucesso da experiência dos movimentos populares
urbanos, nos quais a consciência democrática da participação popular proporciona o espaço de
ação necessário às reivindicações dos setores populares na esfera pública. De acordo com
Baierle (p. 211), tal experiência permite afirmar a emergência de um novo princípio ético-
político pelo surgimento de um cidadão de novo tipo, não mais o clientelista de outrora, mas
participativo e parceiro da gestão pública.
Como se afirmou anteriormente, o estamento, o coronelismo, o assistencialismo e o
clientelismo são formas de políticas marcantes na história do Brasil, pelas quais, de certa
forma, ainda que por arranjos diferentes, as classes elitizadas sempre manobraram o poder e,
92
por via indireta, as classes proletárias, se assim podem ser nomeadas. Num tal contexto
político
-social faz-se urgente adotar novas formas de políticas democráticas, com vistas à
emancipação social das classes proletárias, bem como ao próprio atendimento às suas
reivindicações sociais. Isso, no dizer de Dagnino (2002, p. 10), significa a construção de
novos espaços públicos no interior da sociedade sobre interesses excluídos das agendas
públicas.
A par de tal necessidade constatam-se novas experiências no Brasil acerca de
democracia participativa, consoli
dando
-se principalmente a partir da idéia exposta com a
campanha para a Prefeitura da cidade de Porto Alegre, no ano de 1988, na qual o programa de
governo do Partido dos Trabalhadores (PT) apontava como proposta a democratização das
decisões de uma nova gestão a partir dos conselhos populares . Com tal proposta, o
objetivo era permitir que cada cidadão pudesse interferir na criação das políticas públicas e
nas demais decisões de governo que tivessem importância para o futuro da cidade (GENRO;
SOUZA, 1997, p. 23). Conforme evidencia Genro, a idéia dominante nos quadros do PT,
bem como dos partidos que compunham e sustentaram a candidatura da esquerda na ocasião,
era a da realização de uma
transferência
de poder para a classe trabalhadora organizada,
sub
stituindo
-
se, assim, de forma gradativa a representação tradicional pela democracia direta.
De acordo com Avritzer (2002, p. 17), o processo de luta no Brasil contra o
autoritarismo e da transição para a democracia foi marcado pela construção de uma esfera de
práticas sociais mais democráticas, em que práticas dominantes excludentes foram
questionadas pela reavaliação de uma tradição cultural ambígua em relação à democracia e
pela defesa de um campo de demarcação entre a sociedade civil e o Estado, e a luta pela
democratização se desenvolve principalmente em nível local. Em relação ao contexto
histórico
-
político, segundo Santos (2003, p. 458),
o Brasil é uma sociedade com uma longa tradição de política autoritária. A
predominância de um modelo de dominação oligárquico, patrimonialista e
burocrático resultou em uma formação de Estado, um sistema político e uma
cultura caracterizados pelos seguintes aspectos: marginalização, política e social,
das classes populares, ou a sua integração através do populismo
e do clientelismo; a
restrição da esfera pública e a sua privatização pelas elites patrimonialistas; a
artificialidade do jogo democrático e da ideologia liberal, originando uma imensa
discrepância entre o país legal e o país real . A sociedade e a política brasileiras
são, em suma, caracterizadas pela total predominância do Estado sobre a sociedade
civil e pelos obstáculos enormes à construção da cidadania, ao exercício dos
direitos à participação popular autônoma.
93
O drama vivido pela maioria da população reside no fato de que as soluções
burocráticas das máquinas administrativas não alcançam o cotidiano da população,
mostrando
-se que em alguns casos as políticas públicas são cada vez mais impotentes. Há,
aqui, um esforço enorme das classes proletárias em se fazer ouvidas e, também, atendidas em
suas demandas sociais, que as tradicionais políticas governamentais, tidas e mantidas de
cima para baixo, não respondem às necessárias e antigas reivindicações populares em todos os
setores sociais. Num
tal quadro,
este esforço é também necessário para reconstruir o Estado nacional, não somente a
partir de cima , mas também a partir de baixo , ou seja, a partir de um novo tipo
de descentralização e de novos processos de democratização, que possam ser
experimentados, fundidos ao cotidiano da população (GENRO; SOUZA, 1997, p.
10).
A experiência da cidade de Porto Alegre/RS e da cidade de Belo Horizonte/MG, com
a instituição do Orçamento Participativo (OP), traz um novo centro decisório, que, em relaçã
o
ao Poder Executivo e Legislativo, acabou por democratizar a ação política integrando o
cidadão a um novo espaço público. No dizer de Genro;Souza (p. 14),
o cidadão comum sente que o Estado é omisso em relação às suas necessidades e
ele, em conseqüência, torna-se uma presa fácil da ideologia neoliberal. Suas
carências passam a ser resultado de um Estado incompetente , que sabe tirar
recursos da sociedade.
De acordo com os autores (p. 15), fato a ser destacado é que por meio do Orçamento
Partic
ipativo, dos conselhos populares implantados nas diversas regiões da cidade, criam-
se
estruturas de formação e de reprodução de uma opinião pública independente, na qual as
comunidades, por meio do exercício direto da ação política, passam a ter um juízo c
rítico
sobre o próprio poder que as classes privilegiadas exercem sobre o Estado.
94
Segundo constatação de Avritzer (2002, p. 19), durante o período autoritário dois
tipos de políticas urbanas predominaram tanto em Porto Alegre quanto em Belo Horizonte
21
.
Em
Porto Alegre, as áreas ocupadas pela população de baixa renda praticamente não
receberam obras de infra-estrutura urbana, sendo a parte menos organizada da população
removida e alocada numa região distante do centro da cidade, denominada Restinga. Em
Be
lo Horizonte o planejamento não foi capaz de comportar o deslocamento da população de
baixa renda do campo para a cidade, ao passo que no ano de 1970 havia na cidade setenta
favelas. Durante o período autoritário, com a menor organização da população de b
aixa
renda, uma grande parte das favelas centrais foi removida para a periferia da cidade. Tais
situações desencadearam um crescimento do associativismo comunitário tanto em Belo
Horizonte quanto em Porto Alegre, onde é criada a União das Associações de Moradores de
Porto Alegre (UAMPA).
A partir da instituição da prática do Orçamento Participativo na cidade de Porto
Alegre pela administração de Olívio Dutra
PT, destacam-se algumas realizações
importantes, as quais foram eleitas como prioridades pela população. Conforme destaca
Baierle (2000, p. 200), foram consideradas duas prioridades principais ao longo de 11 anos de
administração petista o saneamento básico e a pavimentação, o que permitiu estender a coleta
de esgoto para 76% da cidade e pavimentar 77% das vias urbanas, garantindo também o
abastecimento de água e a coleta de lixo para praticamente a totalidade da população; com
isso, reconstruiu-se a urbanização das vilas populares da cidade, transformando-a na capital
com a melhor qualidade de vida do Brasil. Para Genro; Souza (1997, p. 18), este regime é
defensor dos interesses da população e dos trabalhadores, e
o que se trata é de democratizar radicalmente a democracia, de criar mecanismos
para que ela corresponda aos interesses da ampla maioria da população e de criar
instituições novas, pela reforma ou pela ruptura, que permitam que as decisões sobre
o futuro sejam decisões sempre compartilhadas.
21
Para uma melhor visualização da dinâmica organizacional e de funcionamento do Orçamento Participativo,
ver especialmente: SANTOS, Boaventura de Souza. Orçamento participativo em Porto Alegre: para uma
democracia redistributiva. In: Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. 2ª ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (Reinventar a emancipação social: para novos manifestos);
AVRITZER, Leonardo. Modelos de deliberação democrática: uma análise do orçamento participativo no
Brasil. In: SANTOS, Boaventura de Souza
(org).
Democratizar a democracia: os caminhos da democracia
participativa. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. (Reinventar a emancipação social: para
novos manifestos); AVRITZER, Leonardo. O orçamento participativo: as experiências de Porto Alegre e
Belo Horizonte. In: DAGNINO, Evelina (org). Sociedade civil e espaços público no Brasil. São Paulo: Paz
e Terra, 2002.
95
Nesse contexto o Orçamento Participativo decorre das reivindicações de movimentos
populares perante os limites da democracia representativa no país (RIBEIRO; GRAZIA,
2003, p. 17). A autora entende que tal implementação constitui uma real socialização de um
instrumento de poder, cujo tradicional controle, exercido pelas classes dominantes, tem sido o
único responsável pela reprodução de exclusões sociais do espaço público, bem como da
esfera pública. Conforme expõe a autora (p.25),
a dinâmica do Orçamento Participativo é reconstruída através do detalhamento das
instâncias que compõem o denominado Ciclo de Participação, ou seja, os
momentos que possibilitam e expressam a organização geral do processo
deliberativo (por exemplo: reuniões por bairro, por região, temáticas e dos
Conselhos do Orçamento Participativo) e o acompanhamento da execução das
d
ecisões tomadas no ano anterior.
O objetivo inicial da instituição do Orçamento Participativo na cidade de Porto
Alegre era permitir que cada cidadão pudesse, efetivamente, interferir na criação das políticas
públicas e nas demais decisões de governo que tivessem importância para o futuro da cidade,
contrariando, assim, as formas de políticas conservadoras, cujo objetivo principal é a
despolitização do cidadão e o seu afastamento das discussões inerentes à esfera pública, com
conseqüente perda de sua autonomia política. Ainda conforme evidencia Santos (2003, p.
461),
outra manifestação do sucesso do governo do PT de Porto Alegre é o fato de
Exame
, uma influente revista de negócios, ter várias vezes eleito Porto Alegre como
a cidade brasileira com melhor qualidade de vida, na base dos seguintes
indicadores: alfabetização, matrículas no ensino básico e secundário, qualidade do
ensino superior e da pós-graduação, consumo per capita, emprego, mortalidade
infantil, esperança de vida, número de leitos por hostipal, habitação, esgotos,
aeroportos, auto
-
estradas, taxa de criminalidade, restaurantes e clima.
Ocorre que, com a instituição do Orçamento Participativo, aquele sujeito que antes
era visto como o pedinte, ou seja, que ficava à espera dos favores das elites políticas, agora
96
passa a intervir diretamente na elaboração das políticas públicas, fato que acaba por
incomodar aqueles políticos que não sabem trabalhar de outra forma senão via clientelismo.
Há, sem dúvida, uma inversão na lógica do poder dominante, o qual é historicamente
destacado no desenvolvimento político brasileiro. Assim, no dizer de Genro; Souza (2003, p.
27),
este algo de novo , que era o cumprimento das decisões tomadas por uma base
social pobre e mobilizada, somada à transparência nas informações, começou a
formar um novo imaginário popular. Na periferia da cidade, as lideranças mais
identificadas com o clientelismo e com o exercício de influências pessoais, ou
foram ficando sem audiência ou começaram a mudar seu comportamento
.
Também se pode evidenciar outra forma de experiência de participação popular via
conselhos municipais , os quais são incorporados pelas leis orgânicas municipais como
instrumentos de participação da sociedade civil na gestão pública. De acordo com
Allebrandt
(2002, p. 73), esses conselhos apresentam
-
se como elemento de ligação entre a sociedade civil
e o Estado, tendo por responsabilidade a orientação e a definição das políticas públicas,
acompanhando sua implementação, bem como fiscalizando a qualidade dos serviços em áreas
como ensino, saúde, programas de emprego e renda, entre outros.
A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 houve uma mudança na
democracia brasileira, passou-se a combinar, segundo a Constituição, democracia
represen
tativa com formas de democracia direta, quando se criaram mecanismos institucionais
de participação direta na atividade de produção das leis e de políticas governamentais, como o
referendo, o plebiscito e a iniciativa popular, que foram aprovados para os três níveis
federativos, ou seja, nacional, estadual e municipal. Esses mecanismos institucionais de
participação popular serão retomados à frente, no tópico em que se analisará a política
deliberativa como referencial emancipatório.
Dessa forma, os Municípios, em sua autonomia, via suas leis orgânicas podem
instituir os conselhos municipais como órgãos deliberativos de cooperação e assessoramento
governamental, auxiliando a administração municipal no planejamento das políticas públicas
necessárias à população. Conforme pesquisa realizada por Allebrandt (2002), a Lei Orgânica
do Município de Ijuí em abril de 1990 passou a implementar vários mecanismos previstos no
97
plano de governo daquela administração; a partir da Lei Orgânica de 1990 e com a lei
municipal
2.579, de 12 de dezembro de 1990, foram criados os conselhos distritais , que,
segundo o autor (p. 129),
foi o primeiro tipo de conselho criado, nesta fase pós
-
constituinte. Conselho de base
territorial, foi pensado como órgão de assessoramento da administração pública
municipal, mas também assumia determinadas atribuições típicas de processo de
descentralização administrativa.
Posteriormente, com a promulgação de outras leis municipais, criaram-se outros
conselhos municipais, como o de Educação, de Saúde, dos Direitos da Criança e do
Adolescente, de Energia e Meio Ambiente, de Defesa do Consumidor, de Trânsito, de
Incremento Industrial de Ijuí, de Desenvolvimento, de Agropecuária e Desenvolvimento
Rural, do Idoso, de Assistência Social, de Alimentação Escolar, de Defesa dos Direitos da
Pessoa Portadora de Deficiência, de Turismo, de Acompanhamento e Controle Social do
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério e o de Transportes e Tarifas.
Pode
-se dizer que se trata de experiência bem-sucedida de participação popular em
nível local, um pouco diferenciada do Orçamento Participativo, em que se incentiva a
participação comunitária na discussão e encaminhamento da solução dos problemas pela
publicizaçã
o das ações do conselho e a interação maior entre os membros do
conselho e os seus representados, entre os conselheiros e entre os conselhos, a
construção de espaços ampliados, vinculados a cada conselho, que possibilitem a
participação e envolvimento de um número maior de entidades e cidadãos, seja para
definir diretrizes a serem seguidas pelos conselhos, seja para permitir maior
visibilidade e acompanhamento da atuação do conselho. (p. 139).
Trata
-se, sem dúvida, de extraordinário canal de participação da sociedade na gestão
pública, no qual o governo local pode interagir com a sociedade civil de forma direta,
vislumbrando-se um norte para o planejamento e a execução das políticas públicas.
Concorda
-se com Allebrandt quando aduz que os conselhos não são exclusivamente estatais
98
nem exclusivamente entidades da sociedade civil, mas são espaços de interação entre o Estado
e a sociedade civil, em que as pessoas decidem e influenciam nas políticas públicas.
Cabe destacar que não é objetivo deste trabalho tecer uma análise detalhada do
mecanismo interno de instituição e funcionamento tanto do Orçamento Participativo quanto
dos conselhos municipais, posto que o objetivo aqui, como restou evidenciado no início do
trabalho, é vislumbrar ao longo da história do Brasil a sua experiência democrática e as
formas de democracia participativas existentes, mantendo-se o norte teórico da política
deliberativa de Habermas, para, ao fim, fazer uma análise de sua possibilidade para a
realidade brasileira.
Dessa forma, após a abordagem acerca da experiência da democracia brasileira e o
papel dos movimentos sociais no desenvolvimento mediante práticas participativas, onde se
evidenciou a não existência de política deliberativa conforme o modelo discursivo de
Habermas, mas tão-somente a existência de atividade política de caráter elitista, a qual não
proporciona condições para a efetivação de um projeto emancipatório às camadas populares.
Passa
-se, assim, à análise crítico-reflexiva da história da política no Brasil, vislumbra
ndo
-se a
categoria da política deliberativa como possível referencial emancipatório para a realidade
sociopolítica brasileira.
99
3. A POLÍTICA DELIBERATIVA COMO REFERENCIAL
EMANCIPATÓRIO NO CASO BRASILEIRO
3.1. A análise da democracia e da particip
ação popular na história do Brasil
Conforme se evidenciou no capítulo anterior, a prática democrática na história do
Brasil mostra
-
se pouco legítima e sequer está acompanhada de alguma intenção emancipatória
para as classes populares, o que leva a visualizar que no Brasil se assiste a uma política
classista, ou seja, uma política de que só participaram e participam as elites brasileiras,
enquanto a imensa camada popular fica à mercê dos favores da classe politicamente
dominante.
As práticas políticas evidenciadas durante o período do Brasil Colônia e do Brasil
Império, de certa forma, foram impregnadas na República Velha e também na Nova
República por um clientelismo político , o que impede uma efetiva prática democrática,
ainda que representativa. Após o fim do período do regime militar, com a chamada
redemocratização do país, voltam os direitos civis e políticos e também importantes direitos
sociais garantidos pela era Vargas, mas que, embora assegurados constitucionalmente pela
Carta de 1988, ainda de
vem ser efetivados.
Para analisar a contribuição e a importância dos movimentos sociais como forma de
democracia participativa será utilizado o referencial teórico da política deliberativa de
100
Habermas, a fim de se justificar a viabilidade da instauração de procedimentos democráticos
participativos em meio ao contexto das sociedades complexas do século XXI.
A participação popular recebeu atenção especial da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 em seu art. 1º, parágrafo único, no qual consta expresso que
todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição , ou seja, a Constituição de 1988 traz a garantia da
participação popular via mecanismos institucionais de participação direta na produção de leis
e de políticas públicas, quando no seu artigo 14 expressa que a soberania popular será
exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e,
nos termos da lei, mediante: I
plebiscito;
II
referendo; III
iniciativa popular .
Embora a Constituição de 1988 garanta mecanismos constitucionais de participação
popular, esses são ainda pouco utilizados no Brasil, o que, no entendimento de Benevides, é
conseqüência de uma certa cultura polít
ica, a qual entende que o povo não está preparado para
a democracia representativa e, sequer, para a democracia semidireta, o que pode explicar a
não
-utilização dos institutos referidos. Benevides (2003, p.13) constata em seu estudo acerca
da representação política que, apesar de ser legítima e indispensável às democracias
modernas,
é uma instituição deficiente para exprimir, com fidelidade, a vontade popular e a
realização dos interesses do povo, na multiplicidade de suas manifestações. Esta
premissa a
póia
-se na crescente insatisfação popular com a representação tradicional
e na consolidação de vários institutos de democracia semidireta
,
em sociedades
contemporâneas
, os quais funcionam como corretivo à democracia representativa.
A autora apresenta,
então, um estudo voltado para os mecanismos constitucionais, no
qual apresenta uma proposta de complementaridade entre formas de representação e de
participação, ou seja, a autora vislumbra o aperfeiçoameto da democracia representativa pelo
ingresso direto do povo no exercício da função legislativa e na produção de políticas
governamentais. Segundo aponta Benevides (p. 15), o pressuposto básico, que orienta este
estudo, repousa na convicção de que os mecanismos de democracia semidireta atuam como
correti
vos necessários à representação política tradicional.
101
A democracia política após o regime militar não atendeu aos anseios populares e,
contemporaneamente, continua não atendendo. Conforme destaca Carvalho (2005), persistem
os problemas da área social, principalmente educação, saúde e saneamento, bem como
desigualdades sociais e desemprego. Num paralelo aos movimentos sociais e aos
procedimentos políticos de participação popular implementados em algumas administrações
municipais, como anteriormente abordado, para com os mecanismos institucionais de
participação popular que dificilmente saem do plano teórico-constitucional uma enorme
diferença.
A simples (re)democratização do Brasil não resolveu todos os problemas cotidianos
dos brasileiros excluídos, mas, tão-somente, os das elites políticas, as quais continuam
utilizando o Estado para seus interesses particulares em detrimento de uma maioria
paupérrima e excluída que vive a ilusão de uma pseudodemocracia. Os chamados canais
institucionais
referendo, plebiscito e iniciativa popular
são mecanismos raramente
utilizados pelos poderes instituídos a fim de se buscar a consulta ou a vontade popular, até
porque se depende de votação e aprovação de projeto no Legislativo, o que acaba freando as
intenções d
e consultas. Na opinião de Benevides (2003, p. 17),
a idéia de participação popular permanece vinculada à organização de conselhos
populares (até hoje proposta do Partido dos Trabalhadores, mas pouco
desenvolvida ou suficientemente esclarecida) e, principalmente, à mobilização
popular em movimentos sociais com graus variados de dinamismo,
representatividade, enraizamento e espontaneidade. É evidente que os movimentos
sociais e populares
dos mais conjunturais aos mais duradouros
constituem
formas importantes e necessárias de participação popular numa perspectiva
democrática. Mas é também evidente que não se deve restringir a participação
política aos movimentos, sobretudo quando se abrem possibilidades para canais
institucionais.
A proposta de Benevides é clara quando restringe sua opção por submeter a
participação popular aos mecanismos constitucionais de participação na atividade legislativa e
na definição de políticas públicas, o que, de certo modo, pode não ser benéfico à maioria da
população
brasileira. Assim, mais uma vez se fica à espera da boa vontade da classe política
dominante para que os referidos mecanismos constitucionais possam, efetivamente, ser
utilizados em proveito das classes inferiores, as quais se encontram desprovidas de
rep
resentatividade política suficiente para serem ouvidas.
102
É de se notar, entretanto, que Benevides não desconsidera a participação popular
vinculada aos movimentos sociais ou aos conselhos populares (embora veja este instrumento
com certa restrição), mas defende a tese de que é necessária a utilização dos canais
institucionais de participação popular, garantidos pela Constituição de 1988. Questão a se
colocar, como exemplo, é a da luta pela terra no Brasil: será que a questão da terra no Brasil já
teria sido resolvida, via reforma agrária, após consulta popular por canais institucionais? A
resposta parece um tanto óbvia, aporque, no que tange à prática democrática, um dos
avanços tem a ver com o surgimento do Movimento dos Sem Terra (MST). De alcance
nacional, o MST representa a incorporação à vida política de parte importante da população,
tradicionalmente excluída pela força do latifúndio. (CARVALHO, 2005, p. 203).
Logicamente, todos os avanços na questão da luta pela terra vieram via movimentos
soc
iais, com os trabalhadores rurais se organizando e pressionando o governo. De acordo
com Carvalho, seus métodos de invasão de terra públicas ou não cultivadas acabam por
tangenciar a ilegalidade, embora, diante da opressão secular de que foram vítimas e d
a
lentidão dos governos em resolver o problema agrário, possam ser considerados legítimos,
fortalecendo a democratização do sistema nacional. Este é um exemplo entre várias questões
políticas que podem ser abordadas na deliberação popular, conforme consagrado via
experiência do Orçamento Participativo (OP), que nasceu por pressões dos movimentos
populares urbanos na luta por melhores condições de habitabilidade nas cidades. A discussão
dos problemas populares na esfera pública é meio de inclusão social, de direcionamento da
administração pública e de efetiva participação popular, traduzida pela democracia
participativa. Segundo observa Carvalho (2005, p. 207
-
208),
as maiores dificuldades na área social têm a ver com a persistência das grandes
desigualdades sociais que caracterizam o país desde a independência, para não
mencionar o período colonial. [...] A escandalosa desigualdade que concentra nas
mãos de poucos a riqueza nacional tem como conseqüência níveis dolorosos de
pobreza e miséria.
O estudo acerca da história política do Brasil mostrou que nunca houve na vida
política do país deliberação política via discurso que envolvesse a sociedade civil e os poderes
públicos instituídos, conforme proposto pelo modelo teórico habermasiano. A estrutura
social
e política da sociedade do período colonial mostrou a monopolização da riqueza, o monopólio
103
da terra e domínio sobre índios, mestiços e escravos, os quais iniciaram a composição de uma
imensa massa popular. Na sua organização administrativa também evidenciou que por meio
das maras Municipais havia grande domínio dos proprietários rurais, de modo que nas
eleições votavam apenas os homens bons , a nobreza, como se chamavam tais proprietários,
com exclusão de toda a população urbana da participação
política.
Com a independência transferiram-se os poderes da Metrópole para o governo do
Brasil, porém, na falta da participação direta das massas nesse processo, o poder foi todo
absorvido pelas classes superiores da antiga Colônia. Conforme afirmado por Prado Júnior
(2006, p. 52-53), fez-se a Independência praticamente à revelia do povo , fato que afastou
completamente a sua participação na nova ordem política. Iniciou-se uma nova fase de
exclusão de uma grande parte da população dos dispositivos constitucionais: os escravos.
Contudo, a massa popular livre ainda dependia dos grandes proprietários, pois tinham pouca
instrução, não havendo, sequer, entre as camadas médias e inferiores uma articulação e
atuação política eficiente, pela própria falta de co
esão social.
O período compreendido pela Primeira República mostrou um quadro de
manipulações eleitorais, em que os resultados não traduziam a realidade, iniciando-se, ainda,
o controle político pelos coronéis, fase conhecida como coronelismo , na qual existiu uma
relação sociopolítica de clientelismo . Nesta fase, foi mantido o regime capacitário para a
participação política, o que excluiu definitivamente os analfabetos, em notório movimento
restritivo à participação popular.
Posteriormente ao período da Primeira República, o governo Vargas, embora
marcado por políticas populistas, sempre manteve a centralização do poder, além das relações
clientelistas, como abordado anteriormente. Também durante o chamado Estado Novo,
Vargas continuou a implementar políticas iniciadas em 1930, bem como manteve a estrutura
patrimonial como forma de domínio.
Com o golpe militar de 1964, fechou-se o Congresso Nacional, suspendeu-se as
imunidades parlamentares, dissolveu-se a União Nacional dos Estudantes (UNE), num
verdad
eiro sufocamento às aspirações democráticas, imprimindo a todas as manifestações
populares violentas repressões. Quanto a sua estrutura política, o regime militar não assinala
a participação popular, inclusive perseguindo, os movimentos sociais iniciados na era
trabalhista de Vargas e Jango. Efetivamente, não houve no período qualquer implementação
de democracia participativa e deliberação política entre sociedade civil e Estado, pela própria
característica do regime implementado com o golpe.
104
A partir da promulgação da Constituição de 1988 e com as eleições diretas para
presidente da República em 1989, o país retomou o caminho da democracia, a qual alcançou
uma certa maturidade no ano de 1994, quando da eleição que atribuiu vitória a Fernando
Henrique Cardoso para a chefia do Executivo nacional. Mesmo com o fortalecimento da
democracia representativa, iniciando no governo de José Sarney em 1985 até os dias atuais, o
Brasil jamais conseguiu implementar verdadeiros procedimentos democráticos de
participação
popular.
Em toda a história política do Brasil jamais se obteve deliberação política em nível
do discurso e do consenso como idealizado teoricamente por Habermas. Se houve em algum
momento deliberação política, tal ocorreu tão-somente entre as classes políticas dominantes,
nunca numa relação direta com as classes excluídas da participação política. Nesse contexto,
pode
-se dizer que no período militar até existiu deliberação política, mas de forma restrita às
juntas militares, nas quais se tomavam as decisões e os rumos políticos do regime.
Evidentemente, não é esse o tipo de deliberação política proposta por Habermas, que defende
a igual participação de todos os cidadãos, ou seja, de todos aqueles que serão afetados pelas
decisões políticas públicas.
Vieira (2001), em estudo apresentado sobre o papel da sociedade civil em meio à
globalização, aponta o modelo de espaço público discursivo, desenvolvido por Habermas,
como o único compatível com as aspirações das sociedades modernas. Vieira aduz como
asp
ecto essencial da teoria habermasiana a ênfase dada pelo autor alemão à participação
pública, em que o espaço público é visto, democraticamente, como criação de procedimentos
pelos quais todos os afetados por normas sociais gerais e decisões políticas coletivas possam
participar de sua formulação e adoção.
Em suma, a análise da democracia no decorrer da história do Brasil mostrou que em
todas as fases
da Colônia à redemocratização
sempre ocorreu uma política classista, com
participação única e exclusiva das elites brasileiras, e que o clientelismo político foi e
continua sendo o maior artífice de dominação política das classes subalternas. Ainda com a
garantia de mecanismos constitucionais de participação popular, esta não tem a mínima
efetividade na vida política brasileira, visto que esses deveriam ser muito mais utilizados pela
federação como auxílio na implementação de políticas públicas ou como consultas úteis à
implementação de novos projetos políticos a serem discutidos nas casas legislativas.
O que, em verdade, não se pode aceitar em relação à não-utilização dos referidos
mecanismos institucionais de participação popular é o argumento de que o povo ainda não
105
está preparado para a democracia semidireta. No caso, negar a utilização de tais mecan
ismos
constitucionais sob a alegação da não-preparação política do povo é a própria negação da
racionalidade humana. A partir do momento em que se delega ao cidadão a capacidade de
votar e ser votado
princípio básico da democracia representativa
e, num modelo de
democracia semidireta, atribui-se ao cidadão a capacidade de discussão e votação de
propostas ou consultas apresentadas pelo poder público instituído, está se delegando tal
decisão à capacidade racional do ser humano. Isso, de forma contrária,
implicaria afirmar que
a negação dessa capacidade de decisão pelas massas é a negação da racionalidade humana.
Acerca desse importante argumento, voltar
-
se
-
á a sua defesa adiante.
Após a análise da experiência democrática ao longo da história do Brasil,
passa
-
se ao
exame da possibilidade de adoção do modelo discursivo habermasiano como proposta de
recuperação e ampliação da esfera pública, especialmente no caso brasileiro. Deve-se levar
em consideração a política classista e oligárquica existente ao longo da história brasileira,
práticas dominantes e excludentes, posturas políticas voltadas tão-somente aos interesses
particulares, das quais a maioria da população brasileira sempre foi excluída, para que se
possa vislumbrar, então, a viabilidade da proposta habermasiana de participação política
mesmo para uma realidade latino
-
americana como a brasileira.
3.2. A possibilidade do modelo discursivo habermasiano
O modelo discursivo da política deliberativa de Habermas reforça a idéia de que a
recuperação e ampliação da esfera pública estão colocadas em termos da possibilidade de
que operem como esfera que medeie entre o Estado e a sociedade, exercendo sobre aquele
uma função de crítica e controle. (GRAU, 1998, p. 62). O modelo comunicativo/dialógico,
envolto pela ética do discurso, contribui para uma redefinição da esfera pública, posto que os
sujeitos clientes passam a ser sujeitos políticos atuantes democraticamente, influindo numa
nova concepção de política, bem como num novo projeto comunitário e coletivo de
elaboração de políticas públicas. Conforme assinala a autora (p. 54),
106
atualmente, comparada a parlamentos débeis e burocracias fortes, a ação pela
recuperação de uma esfera pública ampliada aumenta seu próprio horizonte, mas o
patrimonialism
o, o clientelismo e o coorporativismo dominam o cenário da
formação de políticas públicas e da prestação de serviços públicos, como ocorre com
particular ênfase nos Estados da América Latina.
A defesa da possibilidade do modelo discursivo habermasiano para sociedades
modernas é apresentado por Vieira, que vê, com propriedade, a importância da participação
popular por meio de discursos públicos voltados às necessidades sociais. Na opinião do autor
(2001, p. 63),
o modelo discursivo é o único compatível com as inclinações sociais gerais de
nossas sociedades e com as aspirações emancipatórias dos novos movimentos
sociais, como, por exemplo, o movimento das mulheres. O procedimentalismo
radical deste modelo constitui poderoso critério para desmitificar os discursos de
poder e suas agendas implícitas.
É de se notar, como ressaltado no primeiro capítulo do presente estudo, que a
perspectiva emancipatória almejada pelos representantes da teoria crítica volta a ser objeto da
teoria política habermasiana, porém, agora, por meio de um aspecto discursivo de práticas
democráticas participativas e inclusivas, compatíveis, portanto, com sociedades do século
XXI, complexas e tomadas de aspectos multiculturais.
De acordo com Callage Neto, numa sociedade de Modernidade tardia, os espaços
para se agenciar uma transição que além da subordinação devem combinar aspectos de
reflexo externo e emergentes, ampliar direitos e perspectivas emancipatórias se aumentarem a
competência social. Callege interpreta que, no caso brasileiro, a situação social e política
agravou
-se pela articulação interna da uma chamada globalização oligárquica , fato que
acabou por reviver o modelo de castas sociais beneficiadas pela privatização do Estado,
prestadores de serviços e novos estam
entos. Segundo o autor (2002, p. 323),
no caso do Brasil, os desafios são ainda maiores, por que o País constitui dentro de
si pelo menos quatro macro-regiões fundamentais e específicas com características
bastante diferenciadas por sua formação, necessitando recuperar espaços e tempos
107
para aproximarem-se. O federalismo esteve bastante comprometido com a
supremacia do cartorialismo e coronelismo nordestinos no Parlamento pela frente
patrimonialista-oligárquica
que predominou até pouco tempo no gover
no
Fernando Henrique.
Para Callage (p. 306), essa é a situação atual da sociedade brasileira, visto que, a
partir do governo de Fernando Henrique Cardoso, as políticas sociais tornaram-se objetos de
mercado, ficando subordinadas às prioridades financeiras da administração da dívida interna,
bem como se constituíram em potencial para o mercado de investimento privado subsidiado
pelo Estado, com a renúncia fiscal.
Ademais, Callage apresenta em sua obra A cidadania sempre adiada um estudo
empírico acerca do pensamento das elites brasileiras sobre as funções sociais. Conforme
evidenciado por este estudo, a elite política transfere a responsabilidade ao Estado, o qual por
sua vez, não tem vontade política nem planeja bem suas ações, achando pacífico que em um
tal contexto se pode mudar a realidade: Mesmo a elite política
no caso, os parlamentares
no Congresso
e a
elite burocrática
que ocupa as posições superiores da burocracia pública
não se vêem como Estado. Parecem ter uma atitude de clientes diante do Estado (do qual
elas não parecem fazer parte). (p. 311).
Essa elite política e a elite burocrática, as quais não se vêem como Estado e,
tampouco, parecem fazer parte dele é que caracterizam o interesse individualista e não
coletivo; para elas os pobres e excluídos devem permanecer resignados em suas posições
sociais, à mercê de políticas paternalistas e não emancipatórias. De acordo com Callage Neto
(p. 311),
falta noção de responsabilidade social a estas elites, que não se sentem parte da
vontad
e faltante do Estado, desta omissão política. Aparentemente, não se
vêem como parte de uma coletividade, e o Estado não é parte da sociedade. A
erradicação da pobreza e redução das desigualdades não está entre os interesses de
fato.
Diante de um tal quadro social e político brasileiro, a esfera pública deve ser o palco
das discussões políticas e das necessidades das classes populares, uma vez que, de um lado,
108
tem
-se um Estado descomprometido com políticas públicas necessárias, devendo destacar-
se
quando estão no poder algumas siglas partidárias conservadoras ou que representam o
interesse neoliberal privatista e individualista, descompromissado com as políticas sociais, e,
de outro, uma casta social elitista, oriunda dos quadros políticos coloniais do Brasil,
dominante e não filiada ao clientelismo ou ao paternalismo, porque deles não precisam.
Nesse contexto,
os movimentos sociais constituem os atores que reagem à reificação e
burocratização, propondo a defesa das formas de solidariedade ameaçadas pela
racionalização sistêmica. Eles disputam com o Estado e com o mercado a
preservação de um espaço autônomo e democrático de organização, reprodução da
cultura e formação de identidade e solidariedade. (VIEIRA, 2001, p. 63).
A interpretação de Vieira acerca do desenvolvimento do modelo habermasiano
discursivo esclarece que a concepção ético-procedimental, baseada no princípio do discurso,
que não se filia à concepção liberal nem à visão republicana, também não reduz a democracia
à representatividade eleitoral, mas, sim, a valorização do conceito de cidadania propiciou a
revalorização das práticas sociais, o que leva a participação política a transcender o mero ato
de votar. A reconstrução do espaço público dá-se, numa perspectiva emancipatória,
cont
emplando procedimentos racionais, discursivos, participativos e pluralistas, que permitam
aos diversos atores da sociedade civil um consenso comunicativo. Segundo o autor (p. 65),
o modelo discursivo parece adequado às sociedades modernas, pois, com o i
ngresso
de novos grupos na esfera pública e a expansão dos direitos de cidadania na
modernidade, não é mais possível imaginar um espaço público homogêneo e
politicamente igualitário. O modelo habermasiano amplia o âmbito da atividade
política, fertilizando-a com os influxos comunicativos provenientes da sociedade
civil.
Conforme se pode vislumbrar do desenvolvimento da história política brasileira, a
mesma se mostra desde os idos do descobrimento do Brasil, a iniciar pelo Brasil Colônia,
depois pelo Brasil Império, pela República Velha e, também, pela Nova República uma
política sempre dominante por parte das elites brasileiras, sempre vinculando, primeiro, seus
109
interesses, deixando as classes populares em segundo plano. Tal fato é ratificado pelas
pesqu
isas de Raymundo Faoro, Boris Fausto e Caio Prado Júnior, no que tange ao aspecto
peculiarmente histórico de participação popular; quanto ao aspecto cidadania, também se
ratifica a negação da cidadania brasileira pelas obras de José Murilo de Carvalho e Ro
que
Callage Neto.
Num tal quadro de exclusão política e participativa, como se procurou demonstrar ao
início deste terceiro capítulo, concorda-se com Vieira (2001, p. 65) quando afirma que a
política não pode mais ser vista como atributo das elites, tornan
do
-se indispensável a adoção
de mecanismos e procedimentos de participação, de maneira que seja assegurado a todos,
principalmente aos grupos sociais minoritários, igualdade de acesso ao espaço público,
mediante o discurso. Isso implica o papel dos movimentos sociais junto a uma nova
compleição da democracia participativa, com a aplicação dos procedimentos discursivos.
Por isso, Vieira o modelo discursivo como adequado às sociedades modernas,
uma vez que, a partir de uma tal adoção, amplia-se o âmbito de atividade política via influxos
comunicativos advindos da própria sociedade civil, entendimento do qual se compartilha no
presente trabalho. De acordo com Neves (2006, p. 118),
Habermas sustenta um entrelaçamento entre moral, política e direito. De a
cordo
com esse entendimento, impõe-se, por um lado, uma fundamentação moral,
importando que o dever-ser jurídico não ofenda princípios de justiça (universais).
Por outro lado, o pluralismo da esfera pública exige a consideração da diversidade
de valores n
o âmbito de procedimentos políticos.
Nesse contexto, as pesquisas empíricas acerca das práticas de democracia
participativa no Brasil mostram que, sem dúvida alguma, a implementação institucional de
abertura política via espaço público estatal para a discussão das demandas sociais é critério de
aperfeiçoamento de projetos nas políticas públicas. De forma concomitante, emancipa os
indivíduos política e socialmente, atribuindo-lhes uma autonomia política, tão reivindicada
por Habermas em Direito e democr
acia
, transcendendo o entendimento de que participação
política se restringe ao mero ato de votar. Ciente das limitações e possibilidades da
proposição habermasiana, o presente trabalho comunga do entendimento de Neves (p. 120), o
qual assegura;
110
Haberma
s não desconhece, porém, o papel do jogo de interesses no processo de
formação da vontade estatal. Não se trata aqui de sujeitos orientados na busca do
consenso, mas sim de negociações que visam à satisfação de interesses. Mas se
sustenta que, no processo discursivo do Estado Democrático de Direito, essas
negociações são suscetíveis de regulação procedimental. Dessa maneira,
asseguram
-se chances iguais de participação, de influência recíproca e de
imposição dos interesses divergentes nas negociações. Fa
la
-se, então, de
formação de compromissos com base em negociações eqüitativas . Nessa
hipótese, embora os agentes estejam orientados para o êxito, o procedimento torna-
o racional.
O processo de formação racional da vontade política implica uma conexão
complexa entre o discurso pragmático, o ético-político, o moral, o jurídico e as
negociações reguladas procedimentalmente. Esse processo complexo explica a
aceitabilidade
racional dos resultados alcançados conforme o procedimento .
Porém, como já observado acima, Habermas não se afasta totalmente de suas
posições anteriores: a questão moral (da justiça), que implica a pretensão de
universalidade, tem prevalência sobre as questões jurídicas, ético-políticas e
pragmáticas. Ele insiste em um universalismo consensual que lhe dificulta uma
consideração adequada da problemática do pluralismo em uma sociedade altamente
complexa.
Retomando uma análise das práticas democráticas participativas brasileiras e,
principalmente, das administrações implementadas pelo Partido dos Trabalhadores (PT), nas
cidades de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul, e em Belo Horizonte, no estado de
Minas Gerais, consoante ressaltado no item 2.2 do presente capítulo, no qual se destacou a
inclusão do Orçamento Participativo (OP), é de se sublinhar que, conforme Callage Neto
(2002, p. 366
-
367),
os
Orçamentos Participativos articulam políticas setoriais de municípios, em vários
casos superando políticas atrasadas de clientela de secretarias de Governo,
ampliando e tornando eficaz a disputa pelo orçamento e renda das cidades.
Contribuem para melhoria das condições de vida, quando realizadas sob critérios
estritamente democráticos e suprapartidários, não para a hegemonia deste ou
daquele partido no poder. papéis deliberativo ou consultivo, que ampliam a
função destes Orçamentos Participativos, encaminhando-os à instância do poder
representativo
Câmaras Municipais ou Assembléias Legislativas. Os
Orçamentos
Participativos
são Conselhos e muito se tem dito a respeito deles. Conselheiros
representantes de diversos bairros submetem parte do orçamento à deliberação
pública, realizando espaços de co-gestão, e realizam-se através de Assembléias de
Orçamento. Tiveram forte influência sobre Câmaras Municipais acostumadas a
neg
ociar emendas às propostas de orçamento do Executivo para favores do
clientelismo assistencialista atrasado aos seus condomínios de eleitores.
111
Na visão de Callage, o Orçamento Participativo, como forma de democracia
participativa, tem importante função n
a política brasileira, onde se nota que, sobretudo, possui
o papel de influenciar no orçamento dos municípios contra os velhos e corriqueiros favores
do clientelismo assistencialista, marca essa histórica na política brasileira.
Trata
-se, como já abordado, de importante prática de democracia participativa e
deliberativa, que vem a ratificar a teoria habermasiana da política deliberativa, na qual a
sociedade civil passa a exercer um papel fundamental no sistema político. A
intersubjetividade dos processos de entendimento, os quais se realizam via procedimentos
democráticos ou diante a rede comunicacional de esferas públicas políticas, aponta, conforme
aponta Callage Netto (p. 369-
370), na direção de que
o País começa um processo de transformação que integra a
democracia
representativa
com métodos participativos em ões executivas do Estado
vinculando
-os ao setor social nascente. Esta tendência do mundo ocidental,
transfere poder das velhas classes sociais dos setores rural e industrial-
financeiro,
formadoras de valor de transformação econômica. Cria modelos de consulta à
comunidade e avança à medida em que progride a rede de serviços qualificados, que
beneficia a própria organização privada. [...] À medida em que avança a
participação, velhas práticas clientelistas oligárquicas tentam reaparecer no meio de
instituições, como vereadores que mobilizam apoiadores, alianças eleitorais,
populações de vilas e favelas carentes para tentar fazer passar propostas.
Para o autor (p. 418), as precarizações vivenciadas pela população brasileira e o
abandono social e político são o resultado da espera de uma sociedade que vive da expectativa
de cidadanias adiadas, em que a cidadania política nunca esteve em plena vigência. A idéia
de ser bem representado e, ao mesmo tempo, criar vínculos de respeitabilidade por sua
participação, isto é, ser levado em conta, é aspiração do simples trabalhador manual de baixa
qualificação urbana ao formulador sofisticado de operações simbólicas.
Com isso vê-se que a participação popular via política deliberativa entre sociedade
civil e Estado possui importante papel dentro do Estado Democrático de Direito, não por
implementar o aspecto participativo, mas também por atribuir aos sujeitos uma inegável
autonomia política, cap
az, inclusive, de despertar o auto
-
reconhecimento pela sua participação
e conseqüente contribuição político
-
social à sociedade. Grau (1998, p. 143) ressalta que
112
a deliberação na elaboração de decisões políticas constitui-se, assim, em um
requisito indispensável da legitimidade democrática. Ela revela sua importância em
um enfoque da democracia que não é meramente procedimental nem baseado no
intercâmbio (como o pluralista), mas que tampouco presume uma visão substantiva
do bem comum (como o republicanismo cívico). Pressupõe, ao contrário, a
possibilidade de construir um interesse público e a exposição pública de interesses
particulares, com base na formação de opinião livre, expressão e discussão.
O modelo habermasiano reivindica essas possibilidades mostrando-se, pois, capaz de
proporcionar a execução das aspirações emancipatórias dos indivíduos em sociedade,
ratificando
-se a proposição de que a política deliberativa, no seio da ação comunicativa, é
referencial emancipatório, com o que o Brasil começa, no dizer de Callage, um processo de
transformação que integra democracia representativa com métodos participativos.
Dentro dessa reflexão acerca da possibilidade do modelo comunicativo/dialógico de
Habermas para a realidade brasileira, torna-se necessário análise em relação às possibilidades
e limites de um tal modelo filosófico-político diante desta Modernidade periférica. A partir
deste último tópico, busca-se discorrer sobre as possíveis limitações da ética habermasiana,
bem como sobre sua proposta teoria política, procedimentalista, com averigüação também de
suas possibilidades e supostos êxitos para o caso brasileiro.
3.3. Democracia como procedimento no caso brasileiro: possibilidades e
limites
Ao iniciar este último tópico, busca-se vislumbrar possíveis possibilidades e limites
da política deliberativa para um contexto latino
-americano como é o caso do Brasil. Para esta
reflexão, faz-se uma exposição em dois momentos distintos: no primeiro serão abordados os
possíveis limites do procedimentalismo habermasiano, no aspecto filosófico; segundo, faz-
se
uma análise das possibilidades e limites de execução da democracia participativa no aspecto
de cunho prático.
Entretanto, é importante ressaltar e (re)lembrar a real situação do Brasil como sendo
um
país de periferia, ou seja, uma nação ainda não conceituada como desenvolvida, em que
113
ainda está presente alto grau de miserabilidade e de exclusão social. A fim de vislumbrar uma
referência em relação ao desenvolvimento do Estado Democrático brasileiro,
adota
-se o
entendimento de Neves (2006, p. 244-
245):
A experiência brasileira enquadra-se como um caso típico de modernidade
periférica, desde que a crescente complexidade e o desaparecimento do moralismo
tradicional não têm sido acompanhados de maneira satisfatória pela diferenciação
funcional e pelo surgimento de uma esfera pública fundada institucionalmente na
universalização da cidadania. Isso implica obstáculos graves á realização do Estado
Democrático de Direito. Não me refiro aqui às experiências autoritárias de 1937-
45
e 1964-84. Nesses casos, trata-se de uma negação direta e expressa do Estado de
Direito, estando a subordinação de Têmis e Leviatã prescrita claramente nas próprias
leis constitucionais. No presente trabalho, interessam especialmente as situações em
que o modelo textual de Constituição do Estado Democrático de Direito é adotado,
mas carece amplamente de concretização.
O autor em comento está preocupado com um grave problema do Estado
Democrático de Direito, qual seja, o de como conciliar poder eficiente com direito
legitimador. Para tanto, busca visualizar as possibilidades de concretização do Estado
Democrático de Direito com base na própria lei constitucional, através de uma tentativa de
construção de uma relação sólida e fec
unda com a metáfora, entre Têmis e Leviatã.
É de se notar, entretanto, que a preocupação de Neves é trabalhada por Habermas
principalmente em Direito e democracia, onde o filósofo alemão sustenta um entrelaçamento
entre moral, política e direito. A teoria
discursiva do direito busca oferecer uma resposta clara
e eficiente ao problema da relação entre poder e direito legitimador, quando Habermas
pressupõe um direito legítimo a partir do momento em que os cidadãos (possíveis afetados
pelas normas jurídicas)
possam, por meio do direito de participação na discussão e elaboração
de normas na esfera pública, compartilhar as demandas sociais por que anseiam, canalizando
tais discussões para a produção jurídica e política. Por essa razão, Habermas atribui ao dire
ito
o papel de
medium
, ou seja, assume a tarefa de mediar a relação política no interior do Estado
Democrático de Direito via procedimentos democráticos discursivos de formação da vontade
na esfera pública pluralista. Também segundo o entendimento de Neve
s (p. 246),
114
a experiência brasileira marca-se por formas de instrumentalização política,
econômica e relacional de mecanismos jurídicos, apontando no sentido inverso à
indisponibilidade do direito. Há uma forte tendência a desrespeitar o modelo
procedim
ental previsto no texto da Constituição, de acordo com conformações
concretas de poder, conjunturas econômicas específicas e digos relacionais. Isso
está associado à persistência de privilégios e exclusões que obstaculizam a
construção de uma esfera pública universalista como espaço de comunicação de
cidadãos iguais.
Nesse contexto de instrumentalização do direito sem o contrapeso da sua
indisponibilidade, restrições complexas à autonomia privada e à autonomia
pública no sentido habermasiano, ou seja, não se desenvolvem, respectivamente, os
direitos humanos e a soberania do povo. A primeira implica a liberdade igual dos
cidadãos. A segunda, procedimentos de formação da vontade estatal abertos
imparcialmente à esfera pública pluralista. No Brasil, por um lado, a autonomia
privada é profundamente prejudicada pelas relações de dependência que se
estabelecem entre privilegiados e excluídos . Na medida em que os direitos
humanos constitucionalmente estabelecidos como fundamentais não se concreti
zam,
fortifica
-
se o significado dos favores do clientelismo.
Como se sabe, o modelo discursivo de Habermas sofre inúmeras críticas de outros
aportes teórico-filosóficos, como toda e qualquer teoria filosófica. Inicialmente, segundo
assevera Pizzi (2005, p. 263), o procedimentalismo habermasiano demonstra os seus limites
especialmente no que tange à filosofia prática. De acordo com o autor, é imprescindível a
identificação dos limites do procedimentalismo a partir da própria reinterpretação
habermasian
a do imperativo categórico de Kant, cuja análise foi proferida no primeiro
capítulo do presente trabalho, posto que a ética comunicativa pode ser considerada como uma
reconstrução da ética kantiana.
A proposta de Habermas é de substituição do solipsismo moral pelo acordo
consensual entre todos os concernidos, numa tradução procedimental do imperativo
categórico de Kant. De acordo com Pizzi (p. 265), com o objetivo de construir aquela
consciência moral dialógica, a experiência comunicativa supõe uma interação mediada
lingüisticamente, cujo procedimento permite delinear princípios universais.
Em que pese à defesa de que o modelo discursivo habermasiano seja o único que
detenha possibilidade de alcançar as aspirações emancipatórias das sociedades atuais, pod
e
haver limitações nesse processo. Pizzi, em interpretação à obra de Adela Cortina, aduz que ao
limitar a razão prática à produção de premissas geradoras de consensos, apresentam-se sérias
repercussões no campo da filosofia moral, uma vez que reduzir a ética aos procedimentos
legitimadores de normas é renunciar a elementos imprescindíveis do saber ético: Para a
autora, reduzir o âmbito da ética aos procedimentos legisladores de normas,
115
institucionalizadas juridicamente, supõe a renúncia de elementos imprescindíveis do saber
ético, reduzindo o aspecto moral a uma forma deficiente de direito. (p. 272). uma
preocupação da autora quanto à possibilidade de Habermas correr o risco de empobrecer a
filosofia moral, dissolvendo-a em outras disciplinas e eliminando o fenômeno moral ao
reduzi
-
lo a direito e política.
Com o intuito de apresentar uma possível solução à ética do discurso, Pizzi apresenta
uma tentativa de ir além de Habermas, com uma proposta de ética de mínimos e ética de
máximos. A ética de mínimos e de máximos, nesse contexto, representa uma nova ordenação
na dimensão moral do agir comunicativo, uma vez que a configuração de uma ética de
mínimos e de máximos deve conjugar mínimos universalmente exigíveis com máximos
desejáveis
22
. A ética de mínimos ocupa-se da dimensão universalizável do fenômeno moral,
isto é, dos deveres de justiça exigíveis em qualquer ser racional, ao passo que a ética de
máximos busca assegurar aspirações ou ideais de uma vida digna e boa, de um bem-
viver.
Essas seriam limitações e possibilidades da filosofia habermasiana, cujo modelo discursivo
está sendo defendido em aplicação ao contexto sociopolítico, a que Habermas denomina
política deliberativa .
Por outro lado, adentrando no segundo item deste último tópico, analisar-
se
-ão as
possibilidades e limites de execução da democracia participativa, na qual existem aspectos
que Boaventura de Sousa Santos (2003, p. 59) chama de vulnerabilidades e
potencialidades da participação. Como se trata de processos de democratização com
inovação da participação ampliada de sujeitos que nunca tiveram voz e vez no contexto
político brasileiro, o qual sempre foi marcado por forte clientelismo e assistencialismo
políticos, estes processos implicam a inclusão de temáticas até então ignoradas pelo sistema
político, a redefinição de identidades e vínculos e o aumento da participação, especialmente
em nível local.
Tais processos, no entender de Santos, tendem a ser objeto de intensa disputa
política, principalmente por combaterem interesses e concepções hegemônicos, sendo
combatidos e descaracterizados por via da cooptação. Aqui reside o que o autor chama de
vulnerabilidade da participação, na qual ocorre a cooptação dos processos participativos por
22
Para um melhor aprofundamento da questão referente à formulação de uma ética de mínimos e ética de
máximos
ver, especialmente: PIZZI, Jovino. O conteúdo moral do agir comunciativo: uma análise sobre os
limites do procedimentalismo. São Leopoldo: Unisinos, 2005.
116
grupos sociais superincluídos ou pela integração em contextos institucionais que lhes retiram
o seu potencial democrático e de transformação das relações de poder.
Paralelamente, também são diagnosticadas as potencialidades da participação, e o
Brasil é um dos países onde as potencialidades da democracia participativa mais claramente
se manifestam: Entre as diversas formas de participação que emergiram no Brasil pós-
autoritário, o orçamento participativo adquiriu proeminência particular. (p. 65). O
Orçamento Participativo (OP) conseguiu combinar elementos da democracia participativa e
da representativa por meio de formas efetivas de deliberação em nível local. Segundo Santos
(p. 75-
76),
existem duas formas possíveis de combinação entre democracia participativa e
democracia representati
va: coexistência e complementaridade. Coexistência implica
uma convivência, em níveis diversos, das diferentes formas de procedimentalismo,
organização administrativa e variação de desenho institucional. A democracia
representativa em nível nacional (domínio exclusivo em nível da constituição de
governos; a aceitação pública) coexiste com a democracia participativa em nível
local, acentuando determinadas características participativas existentes em
algumas democracias dos países centrais.
A segunda for
ma de combinação, a que chamamos complementaridade, implica uma
articulação mais profunda entre democracia representativa e democracia
participativa. Pressupõe o reconhecimento pelo governo de que o
procedimentalismo participativo, as formas públicas de m
onitoramento dos governos
e os processos de deliberação pública podem substituir parte do processo de
representação e deliberação tais como concebidos no modelo hegemônico de
democracia.
É inegável que, no caso do Brasil, a combinação entre democracia participativa e
democracia representativa permite a argumentação e a justiça distributiva, bem como a
necessária partilha do poder político, que, como se sabe da história brasileira, sempre foi
hegemônico e elitista. A complementaridade implica uma decisão da comunidade política de
ampliar a participação em nível local pela transferência ou devolução para formas
participativas de deliberação de prerrogativas decisórias a princípio debatidas pelos
governantes. De acordo com Santos (p. 69),
117
no Brasil as experiências mais significativas de mudança na forma da democracia
têm sua origem em movimentos sociais que questionam as práticas sociais de
exclusão através de ações que geram novas normas e novas formas de controle do
governo pelos cidadãos.
É importante, ainda, salientar que Santos (p. 77-78) elenca três teses para o
fortalecimento da democracia participativa: 1º) fortalecimento da biodiversidade: implica o
reconhecimento da não-existência de nenhum motivo para a democracia assumir uma
forma, reforça
ndo
-se o argumento pelo fato de que o multiculturalismo e as experiências
democráticas recentes de participação apontam no sentido da deliberação pública ampliada e
no adensamento da participação; 2º) fortalecimento da articulação contra-hegemônica entre o
local e o global: as novas experiências democráticas necessitam do apoio de atores
democráticos transnacionais nos casos em que a democracia é fraca, ao passo que as
experiências bem-sucedidas, como a de Porto Alegre, precisam ser expandidas para que se
apresentem como alternativas ao modelo hegemônico; ) ampliação do experimentalismo
democrático: as novas experiências originaram-se de novas gramáticas sociais, nas quais o
formato da participação foi sendo adquirido experimentalmente. É necessário que se
multipliquem experimentos em todas as direções.
Nuria Grau, em análise da participação da sociedade civil em novas formas de gestão
pública e representação social, argumenta que a democracia direta tem efeitos duais, podendo
tanto servir para proteger quanto para prejudicar os direitos das minorias, especialmente dos
excluídos social e politicamente. Conforme a autora (1998, p. 108), a única forma de lidar
com a complexidade social
é através de uma racionalidade comunicativa aplicada à resolução dos problemas
sociais. E mais: segundo esta posição, participação cidadã, racionalidade
comunicativa e resolução dos problemas constituem os eixos de um triângulo
indivisível. Contudo, o risco da cooptação, da manipulação e, em definitivo, do
controle político por parte do Estado leva a admitir que no espaço próprio da
sociedade que poderia resolver
-
se a dicotomia.
Nesse contexto, Grau coloca a pergunta acerca de a possibilidade da participação
cidadã ser recuperada para a ampliação do espaço público. Conforme a autora (p. 132), a
118
participação cidadã reclama a liberdade e a igualdade entre os sujeitos sociais para tomar
parte em ações públicas, com base numa compreensão ampla da política e do âmbito político
do espaço dos cidadãos. Entende que a construção da cidadania não se resolve com o
estabelecimento de oportunidades para a participação em deliberações democráticas e na
tomada de decisões público-estatais, ficando, tampouco, restrita ao seu âmbito. Ao contrário,
presume um tal contexto institucional que se realize o princípio da autonomia, permitindo,
então, o exercício da cidadania em relação à subjetividade.
O ponto central, para Grau, é o estabelecimento das condições para a participação
dos cidadãos nas decisões sobre questões que são importantes para eles, não o contrário. Em
Habermas, a autonomia também recebe especial atenção, quando o filósofo alemão trabalha
com dois princípios, o princípio do discurso e o da democracia, a fim de fundamentar o
sistema de direitos, garantindo a autonomia privada e pública aos cidadãos. Segundo o autor
(2003a, p. 158),
a autonomia tem que ser entendida do modo mais geral e neutro. Por isso introduzi
um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse
princípio deve assumir
pela via da institucionalização jurídica
a figura de um
princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de
normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da
interligação que existe entre o p
rincípio do discurso e a forma jurídica.
Grau (p. 136), ao analisar a relação entre Estado e sociedade, compartilha o
entendimento de que o projeto democratizador aponta para a recuperação de ambas as esferas,
porém admite que a redução do poder do Estado não se traduz automaticamente à ampliação
do poder da própria sociedade. Por isso,
um desafio, neste sentido, é conseguir que a esfera pública-estatal se torne real e
efetivamente pública, isto é, esteja aberta à participação de todos. A separação do
s
poderes públicos, o sistema de pesos e contrapesos entre eles e os diferentes acordos
institucionais desenvolvidos ao longo da existência do Estado moderno mostram não
ser suficientes para tais efeitos.
119
Para que a esfera pública esteja aberta à partici
pação de todos, a autora sustenta que a
deliberação na elaboração de decisões políticas se constitui num requisito indispensável da
legitimidade democrática. A deliberação pressupõe a possibilidade de construir um
interesse público e a exposição pública de interesses particulares, com base na formação de
opinião livre, expressão e discussão. (p. 143). Apesar desse entendimento, que, de uma
certa forma, corrobora a tese procedimentalista e dialógica habermasiana, Grau aduz que a
situação ideal de diálogo formulada por Habermas supõe uma situação de discussão igual e
livre, ilimitada em sua duração, limitada apenas pelo consenso a que se chegaria pela força do
melhor argumento, ponto que a autora entende ser utópico. Segundo a autora (p. 151),
o assunto que, em definitivo aparece no horizonte atinge a rearticulação das relações
entre o Estado e a sociedade, sem negar nenhum dos dois eixos nem esboçá-los em
termos antagônicos, mas recuperando o princípio da autonomia e da liberdade em
favor da socieda
de. A ampliação da esfera pública aponta para estes propósitos. Ela
coloca uma demanda à sociedade em termos de obter uma maior influência sobre o
Estado, tanto como sua limitação, assumindo que a autonomia social supõe
transcender as assimetrias na representação política e social, assim como modificar
as relações sociais em favor de uma maior auto-organização. O projeto
habermasiano reivindica estas possibilidades. Sua proposta de um conceito
normativo do público remete à criação de associações autônomas, não submetidas à
pressão das decisões
informais
que possam levar à formação democrática de
opinião e vontade políticas, através da geração e propagação de convicções práticas,
de temas relevantes para toda a sociedade. A convicção básica é que, através do
enriquecimento do debate público, no âmago da sociedade, esta pode pressionar o
Estado.
Assinala, ainda, três problemas referentes à institucionalidade da representação
social, uma vez que as formas que a participação cidadã adota na esfera po
lítico
-
estatal podem
facilitar o aumento da representação social na condução dos assuntos públicos. O primeiro
problema diz respeito à adoção de um modelo de pluralismo integrativo, o qual lesa o
princípio da autonomia da sociedade civil, apelando para sua colaboração funcional, podendo
também violentar o princípio da igualdade política, ao sustentar exclusivamente formas
funcionais de representação. O segundo problema está na presunção de que, para obter um
maior pluralismo político, basta favorecer o envolvimento cidadão nos assuntos políticos,
abstraindo com isso o peso das desigualdades econômico-sociais. O terceiro problema
apontado é suscitado ao se subestimar a influência que tem o contexto institucional na criação
120
ou, mesmo, na inibição de oportunidades para a deliberação pública e o compromisso
sustentado.
Num tal contexto, a retomada da participação cidadã como participação política não
está isenta de dificuldades, conduzindo o seu exercício a condições democráticas mínimas
necessárias à participação política, elencadas pela autora como igualdade, pluralismo político
e deliberação pública.
Efetivamente, a busca de espaços públicos em que os sujeitos possam dialogar acerca
de suas demandas sociais a fim de pressionar ou direcionar o Estado para o atendimento, via
elaboração de políticas públicas eficientes, das demandas apontadas pela população, não se
faz sem dificuldades. É, inegável, porém, que a deliberação pública se faz necessária num
Estado que realmente só foi capaz de resolver os problemas das elites, ignorando a maioria da
população brasileira desprovida economicamente e sem qualquer representatividade política.
Segundo Dagnino (2002, p. 279), o projeto de construção democrática não é linear,
mas contraditório e fragmentado. No Brasil, os partidos políticos historicamente se
inclinaram sempre na direção do Estado, com exceções notórias, fato que acabou limitando
sua busca de representatividade na sociedade civil aos momentos eleitorais e aos mecanismos
eficazes nesses momentos, isto é, o clientelismo, as relações de favor e o personalismo. Para
a autora, certamente a busca por parte da sociedade civil e de suas organizações por relações
mais diretas com o Estado está vinculada a mais essa precariedade. Em comentário ao que
Habermas chama
de colonização do mundo da vida , Cruz (2006, p. 106), aduz que
esse processo pode ser ilustrado pela transformação de partidos políticos, que por
definição deveriam ser canais de interlocução entre o governo e as diferentes formas
de postura político-ideológica, em balcões de negociação de interesses particulares
de parlamentares e de lobistas. Os políticos profissionais tornam os partidos em
instrumento de manobra de seus próprios interesses, deixando a massa dos
indivíduos à margem de qualquer delibe
ração.
Conforme evidencia Dagnino, a busca pela partilha de poder é difícil, uma vez que o
Executivo resiste em compartilhar o seu poder sobre decisões referentes às políticas públicas
e, quando tais espaços públicos se constituem no interior do Estado, acaba ocorrendo o
isolamento em relação ao conjunto da estrutura administrativa, quando acabam se
121
constituindo como ilhas separadas em institucionalidades paralelas, à margem e com difícil
comunicação com o resto do aparato estatal. Os mecanismos que bloq
ueiam a efetiva partilha
de poder são vários, e muitos deles têm origem nas próprias concepções políticas resistentes à
democratização dos processos de tomada de decisão, ao passo que outros são características
estruturais do funcionamento do Estado. Inúmeras menções podem ser apontadas no sentido
de dificultar a democratização das decisões, tais como
o predomínio de uma razão tecno-burocrática, o excesso de papelada , a lentidão, a
ineficiência, a falta de sensibilidade e o despreparo da burocracia e
statal; a falta de
recursos; a instabilidade dos projetos que resultam de parcerias com o Estado na
medida em que estão submetidos à rotatividade do exercício do poder, a falta de
transparência que dificulta o acesso a informações, etc. (p. 283).
Dagni
no evidencia também que do lado da sociedade civil existe uma série de
elementos que operam na mesma direção, dificultando uma participação mais igualitária nos
espaços públicos. O mais importante destaque é a exigência de qualificação
técnica e
polític
a
necessária para os sujeitos exercerem a participação na sociedade civil. A
participação na formulação de políticas públicas que exprimam a construção do interesse
público reclama conhecimentos técnicos, como, por exemplo, entender um orçamento, uma
pl
anilha de custos, opções de tratamento médico, diferentes materiais de construção, técnicas
de despoluição dos rios, e conhecimento sobre o funcionamento do Estado, de sua máquina
administrativa e dos procedimentos envolvidos.
Essa necessidade de uma qualificação técnica específica é um desafio importante
para a sociedade civil porque, primeiro, é condição necessária para uma participação efetiva,
e, por outro lado, pelas implicações práticas. A autora destaca, porém, que tal domínio de um
saber técnico es
pecializado não está presente, principalmente nos setores subalternos.
Por outro lado, argumenta que atribuir aos espaços de participação popular da
sociedade civil o papel de agentes fundamentais na transformação do Estado e da própria
sociedade, na eliminação das desigualdades e na difícil instauração da cidadania, pode levar à
construção do seu fracasso. Isso porque, do ponto de vista político, levando em conta o
interesse no aprofundamento da democratização brasileira, deve-se partir do reconhecimento
da complexidade desse processo e da diversidade dos contextos, em que há, sem dúvida,
122
múltiplas relações de forças políticas onde ele se dá. Assim, de acordo com Dagnino (2002,
p. 297),
a avaliação desse espaços públicos de participação deve tomá-
los
não como
resultantes do potencial democratizante de uma única
e homogênea
variável, a
participação da sociedade civil, mas como resultado de relações complexas de forças
heterogêneas, que envolvem atores os mais diversos, numa disputa entre projetos
po
líticos diferenciados à qual a sociedade civil, como vimos, não está infensa.
Concorda
-se com Dagnino quando expõe que resgatar e reforçar o significado da
participação política em torno da constituição do interesse público é tarefa fundamental da
socied
ade civil, bem como na medida em que grande parte da participação da sociedade civil
no Brasil hoje está dirigida para os espaços de formulação de políticas públicas, esse debate
está na base da avaliação dos limites e possibilidades dessa participação. S
egundo a autora (p.
298),
para além da difícil questão da operacionalização da participação da sociedade civil,
que, problemática no nível local, se torna muito mais complexas nas instâncias
nacionais, é preciso reconhecer que a articulação das demandas da sociedade civil,
necessária para atender esse formato centralizado, não parece corresponder à
dinâmica real da sua organização. A pergunta que se coloca, na verdade, é se esse
modelo centralizado, utilizado amplamente pelo Estado brasileiro no passado, é
compatível com a democratização do processo de elaboração de políticas públicas
através da participação da sociedade civil.
Além das possibilidades e limites anteriormente expostos, a teoria discursiva
habermasiana também é alvo de inúmeras críticas no Brasil, pelo entendimento de que
Habermas, ao formular a teoria da ação comunicativa, com conseqüente desdobramento na
ética do discurso e na teoria discursiva do direito, da moral e da democracia, o faz
pressupondo um certo grau de politização dos sujeitos, o que apenas poderia ser pensado ao
nível europeu, não num contexto paupérrimo como o latino-americano. Porém, ainda que,
efetivamente, se tenha um contexto pouco politizado e ainda bastante pobre no Brasil,
123
apresenta
-se a presente defesa acerca da possibilidade, viabilidade e, também, dos limites do
modelo discursivo habermasiano no caso brasileiro. Deve
-
se notar que
Habermas desloca a questão da emancipação humana, que no materialismo histórico
se concentrava no modo de produção econômico que se reproduzia pela reificação
das relações de mercancia, cuja única forma de liberação seria a luta de classes, pela
disputa incessante dos mecanismos de integração social, apostando no potencial
libertador do Estado de Bem Estar Social, capaz de resgatar a dignidade da pessoa
humana por meio de políticas redistributivas e da regulação do mercado, vez que a
consciência social dificilmente surge em seres aviltados pela miséria. (CRUZ, 2006,
p. 110).
Em outros termos, na interpretação de Cruz, Habermas entende que a idéia de Marx
de luta de classes se desfez no capitalismo tardio, uma vez que os interesses e as lealdades dos
sujeitos não podem ser delimitados pela concepção de uma sociedade ordenada por classes.
Por isso, defendeu-se, no início do presente trabalho que a postura teórica de Habermas como
herdeiro direto da teoria crítica foi a de imprimir continuidade aos anseios da teoria marxiana
da sociedade, tal qual objetivaram Adorno, Benjamin, Horkheimer e Marcuse, a partir de seu
próprio projeto filosófico. Habermas, entende-se, com os mesmos objetivos de seus
predecessores, especialmente a filosofia social de Marx, não a razão emancipatória
localizada na categoria do trabalho e na relação patronal, mas, sim, na intersubjetividade
encarnada a partir de sua teoria do discurso. Nesse sentido, a inclusão do outro será realizada
pelas próprias práticas sociais de participação popular, nas quais a linguagem assume
importante função para a mediação dos discursos, até porque, conforme expõe Habermas
(2002,
p. 140
-
141),
as fontes de solidariedade social secam, de tal modo que as condições de vida
existentes até então no Terceiro Mundo expandem-se nos grandes centros do
Primeiro. Essas tendências intensificam-se no fenômeno de uma nova subclasse .
Com es
se singular que pode induzir a erros, os sociólogos sintetizam um conjunto de
grupos marginalizados, que amplas parcelas da sociedade tratam de segmentar e
isolar. A essa
underclass
pertencem os grupos pauperizados que se vêem
abandonados a si mesmos, embora não tenham mais condições de alterar, com as
próprias forças, sua situação social. Eles não dispõem de nenhum potencial de
ameaça, da mesma forma que se com as regiões miseráveis em face das regiões
desenvolvidas do nosso mundo. No entanto, esse tipo de segmentação não significa
que sociedades dessolidarizadas possam simplesmente afastar de si partes da
população
sem que isso tenha conseqüências políticas
.
124
Em relação ao
defict
da democracia que Habermas aponta à primeira geração da
Escola de Frankfurt, parece que, contrariamente aos seus predecessores, os quais não
conseguiram trabalhar e familiarizar-se com uma perspectiva de democracia fora do contexto
de massas, o filósofo alemão consegue apontar uma saída ao Estado Democrático de Direito
pel
a própria democracia. Aquilo que sempre fora visto com desconfiança e temor pela
primeira geração frankfurtiana, e como uma ameaça à razão foi trabalhado por Habermas
como possibilidade de reconciliação entre autonomia pública e privada, em que seguem viv
os
os impulsos emancipatórios do pensamento frankfurtiano, numa concepção radical de
democracia.
A filosofia do direito de Habermas, amparada em sua teoria do discurso, consegue
dar uma resposta aos problemas e anseios populares emergentes que aumentam nas
sociedades modernas do século XXI. Levando-se em consideração a complexidade dos
Estados, o crescimento populacional, a falta de preocupação e iniciativa dos poderes
instituídos, principalmente da classe política, o autor alemão consegue inserir nesse co
ntexto
de incertezas e perplexidades a possibilidade da participação popular na construção de
políticas públicas. De acordo com Cruz (2006, p. 169),
Direito legítimo, moral pós-convencional e política deliberativa são conceitos que se
pressupõem mutuamente, numa relação de co-originalidade, que permite a
configuração de uma legislação racional. Logo, o Direito se situa entre a moral e a
política. Uma moral que abandonou qualquer elemento da ética substantiva,
resumindo
-se agora a um procedimento de direitos admissíveis em função de sua
universalidade, aceitabilidade e de sua reciprocidade. Uma política que se
caracteriza pela consideração imparcial de valores e da escolha racional dos meios
colimados aos fins desejados pela comunidade.
Em nível nacional, consegue se apresentar com grande execução e bons resultados,
principalmente via experiências administrativas do Orçamento Participativo (OP) onde a
deliberação política acerca das demandas sociais da população é discutida na esfera pública,
sopesada
e votada, garantindo-se o direito de participação dos cidadãos e o resultado
consensual de suas decisões, em típico direcionamento do uso do poder público
administrativo para determinados canais. Segundo Habermas (2002, p. 280),
125
a teoria do discurso não torna a efetivação de uma política deliberativa dependente
de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim da
institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito. Ela não opera por
muito tempo com o conceito de um todo social centrado no Estado e que se imagina
em linhas gerais como um sujeito acional orientado por seu objetivo. Tampouco
situa o todo em um sistema de normas constitucionais que inconscientemente regram
o equilíbrio do poder e de interesses diversos de acordo com o modelo de
funcionamento do mercado. Ela se despede de todas as figuras de pensamento que
sugiram atribuir a práxis de autodeterminação dos cidadãos a um sujeito social
totalizante, ou que sugiram referir o domínio anônimo das leis a sujeitos individua
is
concorrentes entre si.
De acordo com Cruz (2006, p. 113-114), num país como o Brasil, parcela
significativa da população encontra-se à margem do processo decisório dos rumos da
autonomia pública. Entretanto, tal peculiaridade não torna impraticável
a visão habermasiana,
uma vez que a exclusão dos grandes debates nacionais se mais por uma postura elitizante
de uma minoria que assume duas posições: primeiro, leva a que os políticos (o governo)
finjam escutá
-
los, mas apenas o fazem de forma plebisci
tária; segundo, aquela que inviabiliza
a oitiva da maioria excluída por entender que seria incapaz de opinar sobre questões técnicas.
Conforme o autor (p. 111-
112),
assim, se se souber ouvir as pessoas mais carentes social, pedagógica e
economicamente,
os representantes das minorias religiosa, étnica, de origem, de
gênero, as crianças, os idosos e até mesmo os portadores de deficiência, não se terá
praticado caridade e sim concretizado uma exigência/dever do princípio da
integração social constituidor d
a legitimidade, da democracia e do Estado de Direito.
A democracia se torna elemento de integração social quando afasta do governo e dos
políticos práticas meramente plebiscitárias diante da população mais carente.
Nesse contexto se vincula a tão discut
ida questão da substância constitucional. Aqui,
porém, Cruz (2006, p. 115) faz a seguinte indagação: Será que alguém seria incapaz de
traduzir em palavras sua carência de proteínas, de habitação, vestuário, educação, lazer, enfim
de suas condições de vida?. Concorda-se com o autor quando defende que a postura
excludente leva à falência do processo democrático e que a postura paternalista se converte
numa nova espécie de discriminação por ignorar o outro, coisificando-o no caminho da
126
compensação de danos e promovendo o fortalecimento de esteriótipos de identidades. De
acordo com Habermas (2002, p. 36),
se para as circunstâncias da aceitação moral não houver nenhuma autoridade mais
elevada do que a boa vontade e a compreensão daqueles que estão se entendendo a
respeito das regras de sua convivência, então a escala de medida para o julgamento
dessas regras deve ser tirada da própria situação dentro da qual os participantes
gostariam de se
convencer
mutuamente
a respeito de suas opiniões e propostas. Na
medida em que eles aceitam entrar em uma práxis de entendimento cooperativo,
também aceitam tacitamente a condição da consideração simétrica ou uniforme dos
interesses de todos. E como essa práxis pode ser bem-sucedida se todos e cada
um estiverem dispostos a convencer os outros, todo participante sério precisa
examinar o que é racional para ele naquelas condições de consideração simétrica e
uniforme dos interesses. Mediante o recurso metódico à possível intersubjetividade
do entendimento mútuo (o qual segundo Rawls, por exemplo, a estrutura da situação
primitiva é constrangida a dar) os fundamentos pragmáticos ganham um sentido
epistêmico. Com isso transcendem
-
se as cancelas da razão instrumental.
No modelo discursivo habermasiano, o princípio da democracia participativa es
colocado ao lado do princípio da moralidade, permitindo que a legitimidade surja da
legalidade, em que direito legítimo e política deliberativa se pressupõem mutuamente. Dessa
maneira, segundo Cruz (2006, p. 176
-
177),
é preciso indagar se o leitor acredita ser importante consultar/ouvir/dialogar com as
pessoas excluídas sobre a melhor forma de se proceder a tal intervenção; se tais
ações deverão ser estabelecidas através de um código de ética individual ou por
meio de um consenso intersubjetivamente compartilhado; e, caso estejam de acordo
com a necessidade do diálogo cabe, então, nova pergunta: ouvir as minorias e/ou os
hipossuficientes deve ser encarado como um ato de caridade/pena ou como um
mecanismo de integridade da
própria democracia? [...]
Dessa maneira, e com esse propósito, é que Habermas o agir comunicativo como
elemento de integração social. Mas o mesmo demanda uma operacionalização que
se dará por via procedimental, que se divide em duas estruturas discursivas, a de
fundamentação e a de aplicação. Esse mecanismo faz com que a noção de validade
de uma norma de ação possa se sustentar tão-somente pelo resgate argumentativo,
imposto pelos princípios da moralidade e da democracia.
127
Dessa forma, pode-se vislumbrar, sem dúvida, que em Habermas o substancialismo
entra pelo procedimento, devendo-se analisar ainda que, para a defesa do substancialismo
constitucional, há que se levar em conta um problema: o que é substancial para aquele que faz
tal defesa? Quais são seus valores? Quais são suas prioridades? Enfim, muitas são as
questões que se pode opor em face da defesa de uma postura unicamente substancialista para
o caso brasileiro. Por seu turno, a teoria do discurso não torna a efetivação de uma política
deliberativa dependente de um conjunto de cidadãos coletivamente capazes de agir, mas sim
da institucionalização dos procedimentos que lhe digam respeito. (HABERMAS, 2002, p.
280). Segundo o autor (p. 282
-
283),
a opinião pública transformada em poder comunicativo segundo procedimentos
democráticos não pode dominar , mas apenas direcionar o uso do poder
administrativo para determinados canais. [...] Ao conceito de discurso na
democracia, por outro lado, corresponde a imagem de uma sociedade
descentralizada, que na verdade diferencia e autonomiza com a opinião pública um
cenário propício à constatação, identificação e tratamento de problemas pertinentes à
sociedade como um todo.
Principalmente no caso da realidade brasileira, a democracia não pode mais ficar
restrita à prerrogativa popular de eleger representantes, tendo em vista que a história do Brasil
sempre mostrou que a democracia foi e continua sendo manipulada. A perspectiva a ser
adotada é, cada vez mais, de uma democracia deliberativa, na qual, além da escolha dos
representantes, também exista a possibilidade de se deliberar de forma pública acerca de
questões a serem decididas, as quais afetem a todos os envolvidos. De acordo com Souza
Neto (2006, p. 86),
a tendência contemporânea da teoria democrática é a de valorizar o momento
comunicativo e dialógico que se instaura quando governantes e cidadãos procuram
justificar seus pontos de vista sobre as questões de interesse público. O fundamental
para a perspectiva democrático-deliberativa é compreender a democracia além da
prerrogativa majoritária de tomar decisões políticas. A democracia deliberativa
implica igualmente a possibilidade de se debater acerca de qual é a melhor decisão a
ser tomada. A legitimidade das decisões estatais decorre não só de terem sido
aprovadas pela maioria, mas também de terem resultado de um amplo debate
público em que forma fornecidas razões para decidir. É nesse debate que as diversas
posições, defendida pelas mais variadas doutrinas filosóficas, morais e religiosas, se
confrontam, e, na sua busca por uma adesão que além de seu círculo de adeptos,
128
procuram se sustentar em argumentos centrados no campo do que é amplamente
compartilhado. O debate público possui, por isso, um potencial legitimador e
racionalizad
or.
É de se observar ainda, conforme o autor, que a democracia participativa não reduz a
política a esse momento deliberativo, ou seja, o envolvimento de inúmeras outras
atividades, tais como a educação política, a organização, a mobilização, com pont
o diferencial
na ênfase dada ao momento deliberativo e à não-exclusividade de tal atividade na
polis
.
Nesse sentido, outro ponto positivo da democracia participativa, de acordo com Souza Neto, é
que a interação comunicativa perquirida pela democracia deliberativa não se confunde com a
agregação de interesses privados de sujeitos agindo estrategicamente, que caracteriza a
perspectiva agregativa elitista. De acordo com o autor (p. 73),
a dimensão agregativa do processo decisório democrático está diretamen
te
relacionada a uma concepção elitista de democracia: a finalidade da agregação de
vontades particulares durante as eleições seria simplesmente realizar a escolha das
elites governantes. Estas é que efetivamente tomariam as decisões políticas.
Souza Neto, em recente trabalho acerca da democracia deliberativa, também
considera que a deliberação deve permanecer aberta quanto aos resultados, pois somente
assim pode ocorrer uma verdadeira manifestação da soberania popular. Por outro lado,
entende que a democracia deliberativa exige não igualdade de possibilidades para
participar da vida pública, mas, também, a igualdade de capacidades para fazê-lo de forma
efetiva, o que pressupõe um contexto econômico razoavelmente igualitário. Para o autor (p.
302), a
democracia deliberativa
defende que sobrecarregar o Judiciário com a expectativa de que possa figurar como
o protagonista do processo de transformação social gera não decepções
inevitáveis, mas também, em certos casos, percepções elitistas de nossa estrutura
institucional. Para a perspectiva democrático-deliberativa, a solução para os
problemas da democracia não pode ser senão o aprofundamento das próprias
práticas democráticas, e não a transferência do poder decisório a elites, sejam
econômicas ou
culturais.
129
O direito de participar, pela proposição habermasiana da política deliberativa, das
decisões públicas que afetam a todos os cidadãos em seu bem-estar cotidiano é o que,
segundo Dagnino (2000, p. 87), define a invenção de uma nova sociedade.
Nesse sentido,
práticas políticas recentes inspiradas pela nova cidadania, tais como as que surgem
nas cidades governadas pelo Partido dos Trabalhadores/Frentes Populares, onde os
setores populares e suas organizações abriram espaço para o controle democ
rático
do Estado mediante a participação efetiva dos cidadãos no poder, ajudam a
visualizar possibilidades futuras. [...] Obviamente, existem dificuldades reais para
que os setores populares possam desempenhar esse novo papel. A maioria delas se
refere
às desigualdades em termos de informação, usos da linguagem e
conhecimentos técnicos. Contudo, essas dificuldades não estão servindo como
desculpas para eliminar o novo papel dos setores populares, mas estão sendo
desafiadas por práticas concretas.
Ne
ste último tópico, buscou-se verificar as reais possibilidades e limites de um
modelo democrático participativo para o caso brasileiro, reconstruindo alguns entendimentos
de autores que abordam o tema. Há, por um lado, grandes possibilidades de efetivação da
democracia participativa para o caso do Brasil, porém não da forma ideal do modelo
habermasiano, discursivo e consensual, mas podendo seguir algumas de suas proposições.
Merece destaque no presente estudo o fato de a história do Brasil ser marcada por
uma política oligárquica e elitista, com grande grau de exclusão participativa dos cidadãos, os
quais em determinados momentos da história eram proibidos, inclusive, de votar em um
modelo representativo. Talvez a leitura de uma política elitista, marcada pelo domínio de
imensa maioria excluída das atividades políticas, seja o traço a ser destacado no presente
trabalho, e, os aportes teóricos de Habermas podem e devem servir de auxílio na construção
de uma esfera pública realmente pluralista, como um lugar marcado pelas diferenças sociais e
pelo consenso diante de determinados projetos políticos coletivos. Esta, sem dúvida, é uma
importante contribuição da teoria habermasiana para a solidificação da democracia mesmo em
países latino-americanos, onde, como referido, parcela significativa da população encontra-
se
à margem do processo decisório. Todavia, conforme aduz Cruz (2006, p. 113), essa
peculiaridade não torna impraticável a visão habermasiana [...].
130
Com o avanço do capitalismo, novas e variadas formas de colonização do mundo da
vida irão advir e, tratando-se de um Estado Democrático de Direito frágil e com sintomas
latentes da exclusão social gerada pelo capitalismo internacional, a questão a se colocar é a de
saber até que ponto os procedimentos democráticos podem ser eficazes perante a formas
excludentes. No mesmo sentido, invertendo-se a questão, resta refletir se o
procedimentalismo, da forma defendida por Habermas, como discursivo e consensual, não é
verdadeiramente uma possível saída às discrepâncias do modelo capitalista, ainda mais num
país com uma imensa classe social subjugada a ser miserável por capricho das elites políticas?
Enfim, muitas são as questões que podem ser discutidas a partir da presente
proposição teórica, ainda mais num contexto de tamanhas desigualdades sociais, bem como
num Estado em que ainda se presencia políticas de coronéis , como um verdadeiro
clientelismo estatal. Com toda a cautela em relação às proposições hermenêuticas que
ganham força na atual discussão do caso brasileiro, cabe salientar também a sua dificuldade
de execução num contexto ainda muito conservador. As saídas apontadas pelo viés
hermenêutico enfrentam outras dificuldades teóricas, que não as apontadas quando da sua
defesa em detrimento ao modelo pro
cedimental proposto por Habermas.
Sem dúvida, as mudanças de configurações distributivas e de justiça social devem
iniciar verticalmente no interior da sociedade, o que, de certa forma, está sendo
demonstrado com as experiências das administrações municipais do Partido dos
Trabalhadores (PT). De fato, as atribuições hermenêuticas, que se entende também úteis à
interpretação do direito, acabam reduzidas em nosso contexto social a um certo meio
intelectual que não os cidadãos. Portanto, também fica, de certa forma, vulnerável, quando
dependendo de quem está fazendo a leitura da lei para a sua aplicação ao caso concreto. O
que se defende é a viabilidade de oportunizar às classes fatigadas socialmente discutirem suas
demandas sociais publicamente, de forma a priorizarem suas reais necessidades e urgência,
sem que tais procedimentos autorizem o Estado a não imprimir continuidade em políticas
públicas também necessárias à população, mas que este ente seja, também, direcionado via
canais de participação popula
r.
A possibilidade da participação democrática cidadã foi mostrada e confirmada pela
execução do Orçamento Participativo (OP) nas cidades de Porto Alegre e Belo Horizonte,
onde há, sem dúvida, as principais provas empíricas de sua viabilidade numa realidade latino-
americana, como é o caso do Brasil. De outro lado, notam-se, ainda, flagrantes limites para a
131
efetivação de uma política deliberativa, o que, contudo, não inviabiliza sua prática e seu
aperfeiçoamento como importante instrumento de emancipação social das classes subalternas.
132
CONCLUSÃO
No presente estudo procurou-se mostrar, principalmente, a proposição da filosofia
jurídico
-política de Habermas como possível referencial de caráter emancipatório para as
classes excluídas no contexto polí
tico brasileiro.
Primeiro, mostrou-se a filiação teórica de Habermas perante o pensamento filosófico
da então chamada Escola de Frankfurt, em que a denominada teoria crítica busca a
construção de um projeto emancipatório para o homem, por meio da produção de sua teoria
social. Adentrou-se, assim, na análise da filosofia habermasiana, especialmente na sua teoria
jurídico
-
política, quando o filósofo alemão imprime continuidade ao projeto emancipatório do
homem, buscando inserir o Estado novamente no quadro institucional em que a política deixa
de ser uma simples técnica de silenciamento, voltando-se a um modelo onde as grandes
decisões são tomadas como um todo, com base no discurso, por meio da razão comunicativa.
A filosofia jurídico-política de Habermas persegue também uma possível emancipação para o
homem, mostrando que o filósofo alemão imprime a continuidade dos anseios sociais de seus
predecessores da teoria crítica .
O exame da relação entre o direito e a moral em Habermas, mostrou, por meio de sua
proposição da ética discursiva, que Habermas refaz, no sentido filosófico, a reconstrução do
imperativo categórico de Kant, com uma transição de sua ética do discurso para uma teoria
discursiva do direito e da democracia, reconhecendo-se aí a sua filosofia do direito. Por meio
da reconstrução do imperativo categórico kantiano do denominado eu quero , Habermas irá
propor por meio da razão comunicativa a proposição do podemos nós querer. O filósofo
alemão aponta, dessa forma, para a preemência de formulação de uma teoria do direito e do
Estado de direito paralelamente à teoria do discurso. O projeto emancipatório é pensado por
133
Habermas como forma de ampliação das esferas sociais, as quais ficam submetidas à
racionalidade comunicativa.
Para tal empreendimento, Habermas expõe uma proposta de democracia como
procedimento, na qual a institucionalização de processos e pressuposto comunicacionais
mediante deliberações públicas liga o sistema político às redes periféricas da esfera pública
política, ao que chama de política deliberativa . Habermas atribui a força legitimadora da
política deliberativa a partir da estrutura discursiva de uma formação de vontade , na qual a
função social dependerá da qualidade racional dos seus resultados. Os procedimentos de
de
liberação e de tomada de decisões ideais pressupõem uma associação titular que julga capaz
de regular de modo imparcial as condições de sua própria convivência, consistindo a política
deliberativa numa rede de discursos e de negociações, devendo possibilitar a solução racional
de questões pragmáticas, morais e éticas.
Com a abordagem da experiência democrática brasileira e o papel dos movimentos
sociais no desenvolvimento mediante práticas participativas, pôde-se vislumbrar as práticas
políticas excludentes implementadas desde o Brasil Colônia até os dias atuais, onde plena
vigência da democracia. Durante as incursões realizadas acerca da existência de práticas
participativas ao longo da história do Brasil, tornou-se manifesto que grande parte da
populaç
ão ficou e fica excluída da prática política brasileira, visto que as elites sempre se
reservaram e se reservam o direito de manipulação de detenção do poder político.
Por meio das análises das práticas políticas brasileiras
da Primeira República, do
Estado getulista e do Regime Militar
evidenciou-se que, realmente, ao longo da história do
Brasil não houve em nenhum momento deliberação política conforme o modelo proposto pela
filosofia política de Habermas. Essa consideração começa a se desvelar principalmente a
partir da exposição do terceiro capítulo, em que se constata, de forma crítico-reflexiva, como
marca constante na política brasileira o clientelismo político , como sério e perplexo entrave
a qualquer prática política deliberativa por meio da
implementação do discurso.
Diante de um quadro de exclusão política e participativa, torna-se necessária a
adoção de macanismos e procedimentos de participação, de tal maneira que seja assegurada a
todos igualdade de acesso ao espaço público mediante o discurso. Podem-se apontar como
exemplo empírico exitoso de política deliberativa as experiências político-
participativas
implementadas pelas administrações petistas nas cidades de Porto Alegre/RS e Belo
Horizonte/MG, por meio da implementação do Orçamento Participativo. O modelo
implementado de democracia participativa traduz-se num novo centro decisório que
134
democratiza a ação política integrando os cidadãos ao espaço público via discussão de suas
demandas. O Orçamento Participativo decorre da pressão política exercida, via movimentos
sociais, e acabou se tornando uma real socialização de um instrumento de poder, visto que o
controle tradicional sempre fora exercido pelas classes dominantes. Neste modelo
democrático participativo, de forma incontestável, o cidadão, que antes era cliente
incondicional da vontade política dominante, passa a ser ator principal da discussão política
na esfera pública, bem como na contribuição da elaboração de políticas públicas relacionadas
às demandas sociais que atingem de forma direta o seu bem-estar social. Tal proposição, por
meio de canais participativos, direciona a administração blica na elaboração de políticas
públicas necessárias à coletividade, ao mesmo tempo em que se mostra próximo ao proposto
pela teoria jurí
dico
-política de Habermas como modelo de política deliberativa em nível
discursivo.
Evidenciaram
-se também vulnerabilidades e potencialidades da participação popular,
em que se ressalta o problema da cooptação de projetos democráticos participativos pelo s
etor
hegemônico da democracia, podendo-se descaracterizar, assim, os processos não
hegemônicos de participação popular. Como potencialidade se encontra a dinâmica
combinação entre democracia representativa e participativa, por meio de formas efetivas de
deliberação política em nível local, permitindo a discussão política e a justiça distributiva,
aliadas à partilha do poder público, o qual sempre foi hegemônico e elitista.
Também deve ser considerado, com cautela, que há condições para a participação
dos cidadãos nas decisões sobre questões importantes, ao passo que a deliberação política
implica a abertura de todos à discussão e elaboração das decisões públicas. Porém, essa
possibilidade de construção do interesse público deve levar em consideração, por exemplo, a
exigência de qualificação técnica e política dos cidadãos para a discussão de determinadas
demandas via participação da sociedade civil, como o entendimento sobre orçamento, planilha
de custos, opções de tratamento médico, diferentes materiais de construção, técnicas de
despoluição de rios, conhecimento sobre o funcionamento do Estado, bem como de sua
máquina administrativa, são modelos palpáveis desta possível carência de conhecimento
técnico para a discussão de algumas demandas sociais.
As alternativas de desenvolvimento dependem de transformações promotoras de
justiça social, cidadania e democracia, com vistas a superar o receituário neoliberal no atual
processo de globalização, sobretudo no que tange à realidade brasileira, para a implementação
da efetiva participação social, assegurando-se a existência de procedimentos democráticos de
135
participação política, onde trabalhadores, mulheres, negros e minorias excluídas possam
discutir suas demandas sociais na esfera pública, com conseqüente inclusão
social e política.
Entretanto, conclui-se que em Habermas o substancialismo entra via procedimento,
ao passo que a democracia brasileira não pode se restringir, tão-somente, à prerrogativa
popular de eleger representantes, devendo-se adotar cada vez mais uma política deliberativa,
na qual as discussões na esfera pública irão atingir a todos os envolvidos pelas práticas
participativas favorecendo o desenvolvimento sociopolítico do país.
A busca de políticas inclusivas por meio de processos democráticos de
desenvolvimento, fundada na participação efetiva dos cidadãos, pode encontrar na categoria
da política deliberativa uma referência de caráter emancipatório, mesmo diante da realidade
político
-
social brasileira.
Contrariamente a uma perspectiva elitista dominante, a filosofia jurídico-política de
Habermas aponta para um novo e amplo espaço público integrativo, valorizando os momentos
comunicativos e dialógicos, nos quais governantes e cidadãos procuram justificar seus pontos
de vista acerca de questões em torno do interesse público. Com este objetivo, buscou-
se
oferecer uma resposta à exclusão social e política por meio de uma análise da matriz
habermasiana, visualizando seus limites e suas possibilidades para a realidade política do
Brasil, no que, pensa-se, ter cumprido as finalidades propostas, visto que o modelo da política
deliberativa se mostrou apto a executar o projeto emancipatório para as classes excluídas.
136
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