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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E URBANISMO
DÉBORA FAIM LAZARINI
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EMANA DE
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RTE
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ODERNA DE
22
AO
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INISTÉRIO DA
E
DUCAÇÃO E DA
S
AÚDE
:
processo de consolidação do Moderno no Brasil
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de
mestre em Arquitetura e Urbanismo
Orientador: Prof. Dr. Carlos Guilherme Mota
São Paulo
2007
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2
DÉBORA FAIM LAZARINI
D
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EMANA DE
A
RTE
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ODERNA DE
22
AO
M
INISTÉRIO DA
E
DUCAÇÃO E DA
S
AÚDE
:
processo de consolidação do Moderno no Brasil
Dissertação apresentada à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, como requisito
parcial para a obtenção do título de mestre
em Arquitetura e Urbanismo
Aprovada em março de 2007.
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Carlos Guilherme Mota
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Prof. Dr. Rafael Antonio Cunha Perrone
Universidade Presbiteriana Mackenzie
___________________________________________________________________
Prof. Dra. Maria Helena Moraes Barros Flynn
Universidade Católica de Santos
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3
Aos meus pais e irmã, pela confiança na realização
deste trabalho, pelo incentivo, apoio e paciência
cotidianos; ao Daniel, pelo companheirismo e carinho
de todas as horas; ao Dr. Carlos Guilherme Mota
pelas sábias orientações sempre providenciais; ao Dr.
Rafael C. Perrone e Dra. Maria Helena Flynn, pelas
valiosas observações no momento do exame de
qualificação; aos amigos e familiares, pelo
encorajamento e compreensão sem fim.
4
RESUMO
Trabalho que se destina a analisar aspectos da trajetória de consolidação do Moderno da
Arte e da Arquitetura no Brasil, percorrendo o período que se estende da Semana de Arte
Moderna (1922) à formulação do projeto do edifício do Ministério da Educação e da Saúde
(1936), a fim de verificar de que forma acontecimentos de ordem econômica, política, social
e, sobretudo, cultural contribuíram para o surgimento dessa arquitetura moderna brasileira
que seria, nas décadas seguintes, objeto de elogiosos estudos internacionais. Dada a
interdisciplinaridade do processo histórico, empreende-se uma análise que prima pela visão
panorâmica e que, seguindo narrativa em ordem cronológica, extrai elementos distintos que
foram estudados isoladamente em áreas do conhecimento como história, literatura,
sociologia, artes plásticas, arquitetura, etc., de forma a compor o quadro que permite
compreender o episódio do Ministério dentro da linha do tempo de nossa história. Partindo
do pressuposto de que o sucesso alcançado por nossa arquitetura moderna é fruto de uma
feliz conciliação entre modernidade e tradição, a pesquisa busca indicar marcas, não só dos
momentos político e econômico, mas sobretudo da intelectualidade modernista proveniente
da Semana de 22 , em especial das correntes nacionalistas, que levaram os arquitetos
brasileiros a pensar uma arquitetura de características brasileiras, diferenciada da
arquitetura produzida em outros países e continentes.
Palavras-chave: Arquitetura moderna - Brasil. Ministério da Educação e da Saúde. Arte
moderna - Brasil
5
ABSTRACT
This work has as its aim to analyze the Art and Architecture modernism’s trajectory
consolidation aspects in Brazil, studding the period of time that goes from Modern Art Week
(1922) to Education and Health Ministry building project formulation (1936), in order to verify
what manner economic, political, social and, above all, cultural order happenings have
contributed to the appearance of the brazilian modern architecture that would be, in the
following decades, issue for eulogious international studies. In view of the relationship
between historical process, it makes an analysis that surpasses by a panoramic vision and
that, following chronologic narration order, it extracts distincts elements that have already
been separately studied in knowledge areas as history, literature, sociology, arts,
architecture, etc., in order to compose a frame to allow understanding the Ministry’s episode
inside our history time line. Taking the success reached by our modern architecture as a
presumption which is a result of a happy conciliations between modernity and tradition, this
research goes to indicate signs, not only from the political and economical moments, but
above all, from the modernist intellectuality proceeding from 22 Week, specially from
nationalist groups, that let the brazilian architects to think about an architecture with brazilian
characteristics, different from the architecture produced in other countries and continents.
Keywords: modern architecture – Brazil. Education and Health Ministry. Modern art - Brazil
6
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1. Claude Monet – Regatas em Argenteuil .............................................................. 40
Figura 2. Paul Cézanne – A casa do enforcado em Auvers ............................................... 40
Figura 3. Paul Signac – Retrato de Félix Fénéon sobre um fundo rítmico, com esferas e
ângulos, tons e cores ............................................................................................ 42
Figura 4. Edvard Munch – Puberdade ................................................................................ 43
Figura 5. Paul Cézanne – O monte Sainte-Victoire ............................................................ 44
Figura 6. Vincent van Gogh – Estrada com ciprestes e estrelas ........................................ 45
Figura 7. Henri de Toulouse-Lautrec – A toalete ................................................................ 46
Figura 8. Paul Gauguin – Dia dos deuses .......................................................................... 47
Figura 9. Henri Matisse – Alegria de viver .......................................................................... 49
Figura 10. Egon Schiele – Jovem nua de braços cruzados ............................................... 51
Figura 11. Erich Mendelsohn – Torre Einstein ................................................................... 52
Figura 12. Pablo Picasso – Les demoiselles d’Avignon ..................................................... 54
Figura 13. Pablo Picasso – Natureza-morta com cadeira de palha ................................... 55
Figura 14. Jules Marey – Experimentos cronofotográficos ................................................. 56
Figura 15. Giacomo Balla – Automóvel correndo ............................................................... 57
Figura 16. Sant’ Elia – A central elétrica ............................................................................. 58
Figura 17. Jean (Hans) Arp – Colagem feita segundo as leis do acaso ............................. 59
Figura 18. Le CorbusierVilla Savoye .............................................................................. 60
Figura 19. Piet Mondrian – Composição A ......................................................................... 61
Figura 20. Gerrit Rietveld – Cadeira, vermelha, azul .......................................................... 62
Figura 21. Joan Miro – A aula de esqui .............................................................................. 64
Figura 22. Capa do catálogo da Exposição da Semana de Arte Moderna de 1922 ........... 97
Figura 23. projeto de Archimedes Memória – Palácio das Festas ................................... 111
7
Figura 24. projeto de Archimedes Memória – Palácio das Indústrias ............................... 111
Figura 25. projeto de Ramos de Azevedo – Laboratório da escola Politécnica ............... 121
Figura 26. residência de Ricardo Severo no Guarujá ....................................................... 123
Figura 27. projeto de Max Hehl – nova catedral de São Paulo ........................................ 124
Figura 28. Tarsila do Amaral – Abaporu ............................................................................ 137
Figura 29. projeto de Warchavchik – Casa da Rua Santa Cruz ........................................ 155
Figura 30. plantas Casa da Rua Santa Cruz .................................................................... 156
Figura 31. projeto paisagístico de Mina Klabin – Casa da Rua Santa Cruz ..................... 157
Figura 32. portão desenhado por Warchavchik para a Casa da Rua Santa Cruz ............ 158
Figura 33. estúdio do arquiteto à Casa da Rua Santa Cruz .............................................. 161
Figura 34. foto da época com faixa referente à Exposição de uma Casa Modernista ...... 164
Figura 35. plantas Casa da Rua Itápolis ............................................................................ 165
Figura 36. vista geral volumetria Casa da Rua Itápolis ..................................................... 166
Figura 37. fachada de uma das residências do conjunto localizado à Alameda Lorena ... 168
Figura 38. croqui do arquiteto para o projeto do Palácio do Governo ............................... 169
Figura 39. fachada para o Palácio do Governo ................................................................ 170
Figura 40. projeto de Lucio Costa – casa Rodolfo Chambelland ..................................... 190
Figura 41. projeto de Lucio Costa e Fernando Valentim – casa de Raul Pedrosa ........... 191
Figura 42. projeto de José Maria da Silva Neves – Grupo Escolar Visconde de Congonhas
do Campo ......................................................................................................... 198
Figura 43. projeto de Reidy – concurso do Ministério da Educação e da Saúde ............. 200
Figura 44. projeto de Luis Nunes – Leprosário de Mirueira .............................................. 201
Figura 45. projeto de Marcelo e Milton Roberto – fachada do edifício da ABI ................. 202
Figura 46. projeto de Archimedes Memória – 1º colocado no concurso .......................... 207
Figura 47. projeto de Mário Fertim e Raphael Galvão – 2º colocado no concurso .......... 208
Figura 48. projeto de Gerson Pinheiro – 3º colocado no concurso .................................. 208
Figura 49. projeto da equipe brasileira, apelidado de “Múmia” ........................................ 210
Figura 50. perspectiva de Le Corbusier para o plano da Praia de Santa Luzia ............... 214
8
Figura 51. perspectiva de Le Corbusier para o plano do Castelo ..................................... 215
Figura 52. fachada norte do Ministério da Educação e da Saúde .................................... 217
Figura 53. plantas do projeto definitivo para o Ministério da Educação e da Saúde ........ 218
Figura 54. vista do elemento curvo acima do restaurante ................................................ 221
Figura 55. azulejos desenhados por Portinari ................................................................... 222
Figura 56. projeto paisagístico de Roberto Burle Marx .................................................... 223
Figura 57. Bruno Giorgi – Juventude ................................................................................ 224
Figura 58. Celso Antonio – Figura reclinada .................................................................... 224
Figura 59. Jacques Lipchitz – Prometeu desacorrentado ................................................ 225
9
Sumário
Linha do tempo .................................................................................................................. 12
Introdução ......................................................................................................................... 15
Capítulo 1. Europa: berço do Movimento Moderno
1.1. A Revolução Industrial e a mudança de paradigma na Europa .............................. 21
1.2. A Ilustração: a razão em foco e a construção do ideário de uma nova sociedade ... 30
1.3. As vanguardas artísticas modernistas: a expressão do novo tempo ...................... 36
Capítulo 2. São Paulo: contexto histórico e surgimento do moderno
2.1. São Paulo: do período colonial à República ........................................................... 66
2.2. Entre a República e o século XX ............................................................................ 76
2.3. São Paulo no século XX ......................................................................................... 81
2.4. A chegada de um novo paradigma em São Paulo: o Moderno .............................. 87
Capítulo 3. Primeira fase do Modernismo (1922 - 1924): a busca de uma nova estética
3.1. Semana de Arte Moderna de 22: o Moderno em altos brados ............................... 96
3.2. A busca de uma nova estética e a luta contra o passadismo ............................... 103
3.3. A necessidade de uma arquitetura para os novos tempos: os escritos de Rino
Levi e Warchavchik ............................................................................................... 110
3.4. Arquitetura em São Paulo: ecletismos e o escritório de Ramos de Azevedo ....... 119
Capítulo 4. Segunda fase do Modernismo (1924 - 1930): nacionalismo e brasilidade
4.1. Segunda fase do Modernismo: a busca da brasilidade adormecida .................... 127
4.2. Oswald de Andrade: Manifesto Pau-Brasil e Antropofagismo .............................. 132
4.3. Outras versões do nacional: Mario de Andrade e Verde-Amarelismo .................. 144
4.4. 1929 e a crise do café: mudanças sociais, políticas e econômicas ...................... 148
4.5. Em meio ao Ecletismo desordenado, o surgimento de realizações
modernas na arquitetura ........................................................................................ 154
10
Capítulo 5. Terceira fase do Modernismo (a partir de 1930): o intelectual e o Estado
5.1. Revolução de 1930: um novo marco .................................................................... 173
5.2. A pulverização do movimento ............................................................................... 181
5.3. A necessidade de se resgatar a identidade do povo brasileiro ............................ 186
5.4. A mediação: Lucio Costa ...................................................................................... 189
5.5. Disseminação da arquitetura moderna no Brasil .................................................. 196
Capítulo 6. Arquitetura Moderna Brasileira
6.1. Os primeiros passos do projeto do Ministério da Educação e da Saúde ............. 205
6.2. O projeto definitivo para o Ministério da Educação e da Saúde ........................... 212
6.3. Condicionantes nacionais sugerem um caminho diferente a ser seguido ............ 220
Conclusão ........................................................................................................................ 230
Referências Bibliográfica ............................................................................................... 236
11
Linha do Tempo
12
NO BRASIL
NO MUNDO
1750 Encyclopédie, de Diderot
expulsão dos jesuítas do Brasil
1759
1769
máquina a vapor de Watt
1795
introdução do sistema métrico decimal
Inconfidência Mineira
1789
Revolução Francesa
chegada da Corte Portuguesa e abertura dos
portos
1808
1814
invenção da locomotiva a vapor
Proclamação da Independência
1822
1851 Palácio de Cristal, de Paxton
1859 A origem das espécies, de Charles Darwin
1874
início do Impressionismo
1876
invenção do telefone
1886
manifesto Simbolista
abolição da escravatura
1888
Proclamação da República
1889
1905
Teoria da Relatividade, de Einstein
surgimento do Fauvismo
1907
Les Demoiselles d’Avignon, de Pablo
Picasso
1909
manifesto Futurista de Marinetti
1913
Ford desenvolve a linha de produção de
suas fábricas
1914
início da 1ª Guerra Mundial
exposição de Anita Malfatti
Juca Mulato, de Menotti del Picchia
A cinza das horas, de Manuel Bandeira
greve geral em São Paulo
1917
fundação da revista De Stijil
Revolução Russa: Lênin no poder
Monteiro Lobato publica Urupês
1918
manifesto do Purismo, por Le Corbusier e
Ozenfant
manifesto Dadaísta
fim da 1ª Guerra Mundial
Idéias de Jeca Tatu, de Monteiro Lobato
Carnaval, de Manuel Bandeira
1919
fundação da Bauhaus
Mussolini funda o núcleo do futuro Partido
Fascista Italiano
Victor Brecheret e o concurso para o
Monumento às Bandeiras
Fundação da Universidade Federal do Rio
de Janeiro
1920
manifesto Realista
discurso de Oswald de Andrade no Parque
Trianon
1921 O Garoto, de Chaplin
Semana de Arte Moderna
lançamento de Klaxon, a 1ª revista dos
Modernistas
Exposição Universal no Rio de Janeiro
Centenário da Independência
1ª transmissão de rádio no Brasil
Revolta Tenentista no Rio de Janeiro
fundação do Partido Comunista Brasileiro
1922
formação da URSS
Mussolini assume o poder na Itália
manifesto da poesia Pau-Brasil
inauguração do 1º edifício em concreto
armado de São Paulo (Ed. Sampaio Moreira)
Revolução Tenentista em São Paulo
1924
manifesto Surrealista
3ª fase do expressionismo alemão
morte de Lênin: poder disputado ente Trotski
e Stalin
13
Warchavchik: Acerca da arquitetura
moderna
Coluna Prestes
1925
em Paris, o Art Déco
formação do grupo Verde-Amarelo
Marinetti visita São Paulo e Rio de Janeiro
1926
O encouraçado Potemkin, de Einstein
Aprovação do Apartheid na África do Sul
formação do Grupo da Anta
Mario de Andrade viaja à Amazônia e ao
Nordeste
o Partido Comunista é declarado ilegal
1927
1º vôo transatlântico sem escalas, entre
Nova York e Paris
Abaporu de Tarsila do Amaral
manifesto Antropófago
Macunaíma, de Mario de Andrade
Retrato do Brasil, de Paulo Prado
inauguração da Casa da Rua Santa Cruz, de
Warchavchik
1928
inauguração do Edifício Martinelli
Le Corbusier visita São Paulo e Rio de
Janeiro
1929
Pavilhão da Alemanha, de Mies van der
Rohe
Bauhaus é transferida para Dessau
quebra da bolsa de Nova York
Libertinagem, de Manuel Bandeira
Lucio Costa assume a Escola Nacional de
Belas Artes no Rio de janeiro
Warchavchik: exposição Uma casa
modernista
IV Congresso de arquitetos no Rio de
Janeiro: neocolonial x modernismo
Revolução de 1930: Getúlio Vargas no poder
como Chefe do Governo Provisório
1930
Frank Lloyd Wright visita o Brasil
assinada a lei de Sindicalização
1931
fundação da Sociedade Pró Arte Moderna:
SPAM
Revolução Constitucionalista em São Paulo
1932
- Salazar torna-se 1º Ministro em Portugal
Casa grande e senzala, de Gilberto Freire
Evolução política do Brasil, de Caio Prado
1º projeto paisagístico de Burle Marx
eleição para a Assembléia Nacional
Constituinte
1933
fechamento da Bauhaus pelo Nacional-
Socialismo
Roosevelt assume a Presidência dos
Estados Unidos: política da boa vizinhança
Hitler proclama o III Reich
fundação da Universidade de São Paulo
Getúlio Vargas é eleito Presidente da
República
1934
Mario de Andrade assume a direção do
Departamento Municipal de Cultura da São
Paulo
“Intentona Comunista”
Congresso Nacional decreta Estado de
Sítio
1935
início da perseguição aos judeus com o
Decreto de Nuremberg
projeto para o Ministério da Educação e
da Saúde do Rio de Janeiro
Raízes do Brasil, de Sergio B. de Holanda
Sobrados e mucambos, de Gilberto Freyre
1936
Tempos Modernos, de Chaplin
início da Guerra Civil Espanhola
14
Introdução
15
Introdução
Modernização, modernidade, moderno: mais do que palavras, conceitos que invadiram o
século XX e o transformaram irreversivelmente. A partir de então as cidades, os homens, a
arte, não seriam mais os mesmos. Desde o evento da Revolução Industrial, a vida entrou
em turbilhão e as inúmeras inovações, irradiadas incessantemente da Europa, puderam
atingir outros continentes, alterando sensivelmente seus desenvolvimentos, em um processo
em que as ciências, a filosofia e as vanguardas artísticas - que interessam particularmente a
este estudo - exerceram fundamental papel.
O Brasil sempre teve nas civilizações européias, em virtude de seu longo período de
colonização, tanto do ponto de vista material quanto cultural, seu maior exemplo,
encontrando todas as “virtudes da civilização” que pretendia ter aqui, o que o levou a
copiar nas mais diversas instâncias, as realizações européias, sobretudo as de caráter
clássico e aristocrático. A semelhança era buscada ao extremo, e o processo de importação
cultural, inevitável.
A intelectualidade brasileira demorou em despertar para o moderno. Com o passar do
tempo, descobriu novas formas de expressão e, sobretudo, de pensar e ver os novos
tempos, que a conduziram a uma valorização da chamada cultura brasileira justamente em
seus aspectos diferenciadores das outras comunidades mundiais, salientando sua
autenticidade e suas qualidades intrínsecas. A Semana de Arte Moderna de 1922 marcou o
início desta caminhada na qual nossos artistas se esforçaram em modernizar nossa
linguagem e lançar o Brasil no mercado internacional como também um país proponente de
arte, e não somente um exportador de matérias-primas subserviente.
A arquitetura brasileira, porém, permaneceu por um tempo alheia a este processo, tendo
seu desenvolvimento sido mais tardio do que o das demais artes. Desta forma, seu
16
despertar teve início somente em 1925 com o Manifesto de Warchavchik e o artigo de Rino
Levi, tendo suas realizações práticas ocorrido a partir de 1928, principiando um longo
processo de amadurecimento. Foi somente em 1936, com o edifício do Ministério da
Educação e da Saúde que a Arquitetura Moderna Brasileira pôde florescer, afirmando-se no
cenário internacional com um produto original, autóctone e ligado à cultura nacional, dando
mostras do que viria a ser nossa produção arquitetônica nas décadas seguintes. Seu
resultado foi reconhecido internacionalmente e, a partir de trabalhos como o Brazil Builds
(1943) de Goodwin e o Modern Architecture in Brazil (1956) de Mindlin, foi apontado por
muitos estudiosos como sendo o marco zero da arquitetura moderna brasileira, embora ela
já contasse com algumas realizações pregressas.
Fica porém a pergunta: este delay que nossa arquitetura moderna sofreu, teria interferido na
constituição de suas características formais? Isto é, a distância temporal que separa a
Semana de 22 e o edifício do Ministério da Educação e da Saúde, bem como os eventos
históricos aí encerrados, contribuiu para que a arquitetura moderna brasileira pudesse trilhar
caminho próprio e, assim, angariar o respeito e a admiração internacionais? Nesta
dissertação, acredita-se que sim.
Seu objetivo é percorrer a trajetória de consolidação do moderno no Brasil, verificando as
transformações econômicas, políticas, sociais e culturais pelas quais o país passou no
período que se estende de 1922 a 1936, a fim de compreender os fenômenos que
conduziram a realizações arquitetônicas passíveis de tamanha admiração. Partindo do
pressuposto de que os eventos históricos não devem ser analisados isoladamente, visto que
são decorrência de processos interdisciplinares e historicidades compostas por inúmeras
variantes, busca compor uma visão global dos fatos, não temendo percorrer águas já
bastante navegadas - uma vez que este período, dada sua importância histórica e frutífera
produção, foi por diversas vezes competentemente estudado. Acredita existir a demanda
de um estudo que, partindo de uma visão panorâmica, costure os fatos históricos dispostos
17
em nossa linha do tempo. Desta forma, elementos distintos que foram analisados
isoladamente em suas áreas, tais como na história, literatura, sociologia, artes plásticas,
arquitetura, etc., seriam narrados de maneira conjunta de forma a compor o quadro que
permite compreender como se deu o surgimento de uma arquitetura moderna brasileira
propriamente dita.
Para tal, seria impossível dissociar os acontecimentos econômicos, políticos e culturais dos
acontecimentos arquitetônicos. Mais do que isso, e compartilhando da visão de Rino Levi, a
arquitetura não poderia ser analisada isoladamente, mas sim, sempre acompanhada das
demais manifestações artísticas do período.
A arquitetura é arte e ciência. Se com tal expressão se quer significar que a arquitetura, como
fenômeno artístico, está sujeita a uma classificação à parte, comete-se grave erro.
A arte é uma só. Ela se manifesta de várias maneiras, quer pela pintura, pela escultura, pela música
ou pela literatura, como também pela arquitetura. Tais manifestações constituem fenômenos afins,
sem diferenças substanciais na parte que realmente caracteriza a arte como manifestação do
espírito
.”
1
Desta forma, a narrativa segue a seqüência cronológica dos fatos a fim de que o leitor possa
mais facilmente acompanhar a evolução dos conceitos neles contidos. Ela está dividida em
três grandes fases, de acordo com a cronologia adotada por estudiosos como Hugo
Segawa
2
e Alfredo Bosi
3
, dentre outros, que tomaram como divisores de água a semana de
Arte Moderna de 1922, o surgimento de um caráter nacionalista em nossa cultura, e a
Revolução de 1930.
Ela se inicia apresentando os antecedentes de nosso Movimento Moderno, isto é, as
transformações ocorridas na Europa, tanto físicas, ideológicas como artísticas, que
1
LEVI, Rino. A arquitetura é arte e ciência. In XAVIER, Alberto (org). Depoimento de uma geração: arquitetura
moderna brasileira. São Paulo. Cosac & Naify, 2003. p.313
2
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo. Edusp, 2002
3
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo. Cultrix. 1994
18
inspiraram nossos intelectuais. Depois parte para analisar o cenário brasileiro, sobretudo
paulistano, que recebeu as novidades vindas do Velho Continente, verificando de que forma
o ambiente estava preparado para as transformações que se seguiriam. Chegando à
primeira fase do Movimento (1922-1924), destaca os esforços de ruptura estética
empreendidos por nossos intelectuais, sempre lembrando que a este momento a arquitetura
brasileira se mantinha em atitude anacrônica com a das demais artes. Avança para a
segunda fase (1924-1930), analisa as primeiras manifestações nacionalistas de nosso
modernismo, verificando o despertar de nossa arquitetura para a expressão moderna,
mesmo que tardiamente. Alcança a terceira fase (a partir de 1930) esmiuçando os
acontecimentos sobretudo de ordem política que levaram a uma pulverização do Movimento
Moderno enquanto unidade estética, mas que criaram cenário propício para o
desenvolvimento de uma arquitetura moderna no Brasil. A narrativa se encerra com o
evento do edifício do Ministério da Educação e da Saúde por ser ele apontado como o
marco inicial da arquitetura moderna brasileira, embora ela tenha alcançado seu esplendor
somente após o episódio de Pampulha.
Para tal, o presente trabalho se valerá de uma ampla revisão bibliográfica, extraindo dos
autores que analisam o período cada qual com um ponto de vista, quer seja político,
cultural, literário, arquitetônico, etc. – os aspectos necessários para a reconstrução do
contexto que propiciou o desenvolvimento e a consolidação do Moderno no Brasil, tais como
Giulio C. Argan, Leonardo Benévolo, Caio Prado Junior, Florestan Fernandes, Aracy Amaral,
Simon Schwartzman, Nicolau Sevcenko, Annateresa Fabris, Alfredo Bosi, Yves Bruand,
Geraldo Ferraz, Luiz Carlos Daher, Boris Fausto, Hugo Segawa, dentre outros. Foram
buscados também os textos escritos pelos personagens que participaram deste processo,
testemunhas que foram das transformações ocorridas no referido período, de forma que
seus relatos pudessem contribuir enquanto cristalizações das reivindicações, ideologias e
projetos pertinentes ao momento histórico então vivido.
19
Carlos Alberto Ferreira Martins escreveu:
quase meio século de distância, o momento de maior projeção da arquitetura moderna no Brasil
parece continuar desafiando os esquemas usuais de interpretação. A Arquitetura Moderna Brasileira
aparecia, e continua aparecendo, em seus traços mais característicos, marcada por algumas
aparentes contradições, das quais a mais visível, e decisiva para compreender as peculiaridades da
constituição de uma linguagem moderna e ao mesmo tempo brasileira, está na forma particular pela
qual se articula a relação entre modernidade e tradição ou, mais precisamente, na equação que se
estabelece entre modernidade e construção da identidade nacional
.”
4
Esta dissertação compartilha de tal visão, acreditando que grande parte do sucesso da
arquitetura moderna brasileira é fruto da sua particular conciliação de modernidade e
tradição; porém mais do que isso, procura demonstrar que, além dos momentos político e
econômico terem criado cenário ideal para seu desenvolvimento, também as correntes
nacionalistas de nossas artes plásticas e literatura contribuíram para que os arquitetos
brasileiros pensassem uma arquitetura brasileira. A chave para a compreensão do processo
está na observação do surgimento de uma auto-estima elevada, que reconhecia as
qualidades do povo e da cultura brasileira, capaz de gerar uma atitude audaciosa por parte
dos nossos profissionais, propiciando que nossa arquitetura se firmasse no cenário
internacional.
Os capítulos que se seguem buscam preencher a lacuna de estudos que se estabeleceu no
período anterior ao do edifício do Ministério da Educação e da Saúde, abordando o contexto
histórico do período de 1922 a 1936, e constatando que nossas realizações arquitetônicas,
que segundo Bonet adaptam o estilo internacional, alcançando uma mestiçagem única, e
de enorme irradiação planetária
5
, são decorrência de um longo processo: o processo de
consolidação do moderno no Brasil.
4
MARTINS, Carlos Alberto Ferreira. Construir uma arquitetura, construir um país. In SCHWARTZ, Jorge
(org). Da antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950. São Paulo. FAAP, 2002. p.374
5
BONET, Juan Manuel. Iluminações brasileiras. In SCHWARTZ, Jorge (org). Da antropofagia a Brasília:
Brasil 1920-1950. São Paulo. FAAP, 2002. p.20
20
Capítulo 1
Europa: berço do Movimento Moderno
21
1.1. A Revolução Industrial e a mudança de paradigma na Europa
Ao se procurar compreender o caminho que conduz à constituição do moderno na história
da humanidade, faz-se indispensável analisar o advento da Revolução Industrial ocorrida na
Europa a partir da segunda metade do séc. XVIII por ter ela alterado de forma definitiva e
irrevogável as relações sociais, econômicas, intelectuais e espaciais até então configuradas.
Este grande evento a que chamamos Revolução Industrial iniciou-se na Inglaterra e, de
acordo com os historiadores, possui duas fases, a primeira iniciando-se em 1760 e
estendendo-se até 1830, a segunda a partir de 1860. Neste período, a Inglaterra, como será
visto a diante, sai de sua condição quase que estritamente rural para conhecer um novo
organismo e uma nova realidade: a cidade industrial.
A princípio, as indústrias localizavam-se próximas ao local de extração de sua matéria-
prima: enquanto o minério de ferro foi trabalhado a partir do carvão de lenha, as indústrias
instalaram-se próximas a bosques; quando o minério passou a ser trabalhado com carvão
fóssil, as indústrias deslocaram-se para os distritos carboníferos; quando se passou a utilizar
a energia hidráulica, a atividade industrial concentrou-se próxima a rios. No entanto, quando
a máquina a vapor de Watt foi patenteada em 1769, permitindo a substituição da energia
hidráulica, a indústria perdeu sua vinculação com qualquer caráter natural fixo, podendo
então estabelecer-se em qualquer local. Surgem então ao redor das indústrias os primeiros
aglomerados humanos, de rápido desenvolvimento e crescimento, originando um forte
movimento de êxodo rural.
Neste período, não surgiu apenas uma nova forma de trabalho, com a introdução de novos
materiais na vida cotidiana, como o ferro e a gusa, mas originaram-se problemas de uma
nova ordem, tais como higiene e sanitarismo, segurança, etc., com os quais os homens de
vida rural da fase pré-industrial não tiveram contato. O fato é que a cidade industrial gerou
22
desconfortos, mazelas e cancros que levaram ao desenvolvimento de novas formas de
organização, normatização, teorias e ideologias que, desenvolvendo-se ao longo dos
séculos XVIII e XIX, juntamente com a cidade industrial, formaram as bases da nova
sociedade moderna que viria a surgir no século XX.
A industrialização trouxe benefícios e melhoramentos em questões como alimentação
(graças aos progressos nas técnicas de cultivo e transporte), limpeza pessoal, higiene das
casas, que tiveram a madeira e a palha substituídas por materiais mais duráveis, etc., mas
tais melhorias não foram suficientes para evitar os males da cidade industrial. Os antigos
trabalhadores rurais, agora mão-de-obra das indústrias, passaram a residir em moradias
abafadas, com insuficiência de infra-estruturas de esgotos, superpostas em alojamentos que
configuravam verdadeiros amontoamentos humanos. Quando se pensa que não havia
apenas um alojamento por cidade, mas sim dezenas deles que traziam em comum entre si
condições de higiene e saúde questionáveis, entende-se o surgimento de uma preocupação
em se normatizar as condições de construção e habitação, dando assim origem às primeiras
leis sanitaristas a partir de 1830 e ao período chamado “a reorganização”.
Tal período compreendeu um conjunto de iniciativas que tinham por objetivo “resolver os
problemas de organização causados por novos desenvolvimentos”, adotando “um sistema
de regras adequado à sociedade industrial”
6
. Nasceu assim a urbanística moderna com o
intuito de ser um instrumento de intervenção que resolvesse os problemas de convivência
na cidade industrial. Benévolo descreve a situação da cidade de então:
“A falta de uma instalação racional para transformação de resíduos líquidos e sólidos pode passar
despercebida no campo, onde cada casa possui muito espaço a sua volta para enterrar e queimar o
lixo e para realizar a céu aberto as operações mais incômodas, mas isso é fonte de graves perigos no
aglomerado urbano, e tanto mais quanto mais extensamente a cidade cresce. O fornecimento de
água pelas fontes blicas pode ser feito facilmente onde as casas estão distribuídas em grupos
6
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo, 2004, p. 70
23
pequenos, mas torna-se trabalhoso nos novos bairros muito extensos e compactos; por outro lado, os
usos industriais da água excluem os usos civis. As funções que se desenvolvem no espaço externo
a circulação de pedestres e carros, as brincadeiras das crianças, a criação de animais domésticos, e
assim por diante não perturbam uns aos outros onde o espaço é abundante, porém interferem de
maneira intolerável se são obrigados a se desenvolver uns sobre os outros nas estreitas passagens
entre as casas. O ambiente que resulta dessas circunstâncias é feio e repulsivo além de todo
comentário; como em um grande aquário, a infecção de cada parte infecta rapidamente o conjunto, e
não é necessário um altruísmo especial para se interessar pelo que ocorre, uma vez que as
contaminações e as epidemias que daí derivam difundem-se, dos bairros populares, para os
burgueses e aristocráticos.
7
Uma vez que tais males afetavam toda a coletividade de habitantes da cidade, é de se
esperar que partisse da autoridade pública a solução de tais problemas. Partem então desta
esfera recomendações, que se transformam em regulamentações, que abrangiam itens
como: projeto de esgotos com plantas em escala, pavimentação, serviços higiênicos para
cada apartamento de habitação, obtenção de fundos para a melhoria e o alargamento das
ruas, bem como a abertura de parques públicos, etc.
Apesar da inegável boa intenção das novas leis sanitaristas, é importante que se observe os
efeitos colaterais trazidos por elas. Embora tenham sido promulgadas a partir de 1830, tais
leis requeriam um certo período de assentamento, assimilação e acomodação das
novidades por elas trazidas, até que pudessem ser incorporadas nas construções. Quando
tal fato ocorreu, os proprietários acabaram por aumentar o valor dos aluguéis, fazendo com
que os inquilinos mais desfavorecidos economicamente abandonassem tais instalações,
deslocando-se para periferias mais distantes de alojamentos mais precários.
É importante que se diga que na França, embora este pais tenha tido uma industrialização
mais tardia e lenta se comparada à da Inglaterra, os problemas da cidade industrial eram
iguais aos ingleses, requerendo da mesma forma soluções sanitaristas reguladoras. Paris
nesta época (1850) configurava-se como um grande aglomerado urbano. As leis sanitaristas
7
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo, 2004, p. 74
24
implantadas, além de trazerem soluções semelhantes às implantadas na Inglaterra,
contavam com um expediente diferenciado: a possibilidade de se expropriar terras
particulares a partir de interesses de bem público. Tal artifício abrirá as portas para muitas
alterações urbanísticas em Paris implementadas por Haussmann, que acabarão por servir
de modelo urbanístico para outras cidades, inclusive brasileiras.
O fato é que a cidade industrial, apesar de trazer malefícios, trazia também benefícios
inegáveis, transformando-se em um organismo indispensável; não havia qualquer
possibilidade de se retroceder e recuperar a situação daquela sociedade
predominantemente rural, mesmo porque não era essa a vontade de seus habitantes. O que
fazia com que tivessem uma impressão tão desagradável da cidade industrial não eram
tanto seus aspectos físicos, mas sim o fato deste novo ambiente urbano possuir limites
menos precisos, modificando-se com uma velocidade muito maior que anteriormente,
dificultando a apreensão de seu conjunto. Segundo Benévolo,
“No passado, o ritmo de vida de uma cidade parecia mais lento e mais estável do que o ritmo da vida
humana, e os homens encontravam na cidade um ponto de apoio e de referência para sua
experiência; agora acontece o contrário, e faz falta aquele ponto de apoio pois a fisionomia da cidade
parece mais efêmera do que a memória humana.”
8
Retrocedendo um pouco na narrativa, faz-se indispensável relacionar os progressos
técnicos e científicos ocorridos no período da Revolução Industrial que acabaram por
modificar os instrumentos de projeto até então utilizados. Como inovações principais da
primeira revolução Industrial têm-se a invenção da geometria descritiva e a introdução do
sistema métrico decimal, em 1795, na França. A geometria descritiva padronizou regras de
representação de objetos tridimensionais na bidimensionalidade das folhas de papel,
tornando-se um poderoso instrumento de projeto, não para a arquitetura mas também
para a mecânica industrial pois agora se tinha em mãos um instrumento universal que
8
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo, 2004, p. 158
25
permitia determinar de maneira inequívoca as características dos elementos construtivos ou
as peças de um todo. No campo arquitetônico esta é uma contribuição de grande
importância porque possibilita, pela primeira vez, um distanciamento entre os executores
das obras e seus projetistas, quebrando um esquema de trabalho que persistia desde a
Renascença, onde os conhecimentos eram transmitidos dentro dos canteiros de obra,
gerações após gerações.
a adoção do sistema métrico enquanto sistema universal de medidas facilitou a difusão e
troca de conhecimentos, trazendo uma maior precisão, adequada aos novos procedimentos.
Além disso, ele permitia uma dissociação entre a Arquitetura e o homem, por trazer medidas
convencionais e universais ao invés de medidas embasadas na escala humana (braças,
pés, etc.), o que era muito conveniente para a sociedade que necessitava de padrões mais
imparciais e racionais para sua afirmação e progresso.
Neste período a construção civil também sofreu o acréscimo de novos programas,
sobretudo estradas e canais, trazendo novas solicitações aos construtores e permitindo um
maior desenvolvimento das técnicas construtivas e de pesquisas com novos materiais. São
desta época os avanços nas pesquisas com o concreto - que utilizado na substituição das
fundações em pedra possibilitou uma acentuada diminuição no custo das estradas - e da
indústria siderúrgica, tanto na Inglaterra quanto da França, disseminando a execução de
grandes pontes metálicas. Tais adventos, além de facilitarem a comunicação entre
diferentes localidades, geraram uma certa competição construtiva entre cidades,
“empresários”, etc.
Os novos materiais logo foram incorporados pelos edifícios. A princípio, o ferro era utilizado
apenas como acessório em forma de correntes ou amarração entre as pedras das
construções em pedra de corte, quer em suas fundações ou fachadas. Com o passar do
tempo e o avanço da indústria siderúrgica ele passou a ser empregado em coberturas e
26
pilares, modificando o caráter das construções de forma significativa, como se pode ver no
trecho transcrito abaixo por parte de um viajante visitando a Inglaterra em 1837:
“Sem a gusa e o ferro, aquelas construções o bem arejadas e iluminadas, tão leves em aparência e
que, entretanto, sustentam pesos enormes, como os armazéns de seis andares na doca de Santa
Catarina em Londres, seriam masmorras espessas e escuras, com postes pesados e feios de
madeira, ou paredes com contrafortes de tijolos.”
9
Outro grande ganho qualitativo para as construções provém das indústrias de vidro que
alcançaram grande progresso técnico na segunda metade do século XVIII e já em 1806
eram capazes de produzir lâminas de 2,50 x 1,70m. Desta forma a utilização do vidro
enquanto material de vedação começou a ser disseminado em larga escala e sua
associação às estruturas metálicas propiciou a execução de coberturas translúcidas. Talvez
o maior feito deste caráter de construção tenha sido o Palácio de Cristal, de Paxton, em
1851.
Desta forma, encontramos as construções repletas de inovações tecnológicas: vidro fazendo
o fechamento das janelas, o ferro e a gusa sendo empregados desde a estrutura de
sustentação até cercas e balaustradas, madeiramento e produtos de olarias industrializados
apresentando melhor qualidade, etc. As redes de canais viabilizaram o transporte de tais
materiais e utensílios, igualando seu fornecimento para todos os locais, distantes ou não. A
industrialização permitiu uma queda no custo dos materiais de construção, possibilitando
sua utilização não só nas construções das classes mais abastadas, mas também nas
populares, contribuindo para a uniformização do aspecto da cidade industrial, sua higiene e
conservação.
Muito embora a Revolução Industrial tenha suas raízes ligadas à Inglaterra, foi a França que
se manteve na vanguarda do progresso científico, servindo de modelo didático para as
9
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo, 2004, p. 50
27
outras nações. O surgimento de novas solicitações construtivas (pontes, estradas, canais,
etc.), técnicas e materiais gerou a necessidade da formação de um pessoal técnico
especializado, o que não poderia ser feito pela Academie dArchitecture, responsável pelo
ensino de arquitetura do antigo regime, com sua formação humanística e tradição clássica
que não se prestavam à instrução de técnicos puros. Desta forma, foi fundada em 1747 a
École dês Ponts e Chaussés e em 1748 a École dês Ingénieurs de Mézières, com o ensino
calcado em bases rigorosamente científicas. Teve início neste momento a separação entre
arquitetos e engenheiros que acompanhará os dias seguintes da história da arquitetura.
O período da Revolução Industrial corresponde ao período do neoclassicismo na
arquitetura. Desde a Renascença a produção arquitetônica européia apoiou-se nas formas
clássicas de composição e harmonia, porém estas ganharam um novo significado e objetivo
dentro do estilo neoclássico.
Se antigamente as colunas, cornijas, tímpanos, etc., justificavam-se em virtude de sua
função estrutural e de sustentação dos edifícios, agora a situação encontrava-se alterada
uma vez que os avanços tecnológicos alcançados dotaram as edificações de uma estrutura
independente, cujas regras compositivas estavam baseadas na razão construtiva e não nas
consagradas proporções clássicas. O modo de pensar dos engenheiros, adequado às
inovações técnicas da era industrial, era discordante do modo de pensar dos arquitetos, o
que fazia com que a arquitetura proposta pelos profissionais formados pela Escola de Belas
Artes parecesse anacrônica e inadequada aos novos tempos vividos. Pela primeira vez,
colocava-se em cheque a tradição clássica, tida anteriormente como inquestionável,
universal, eterna.
Tal debate gerado na opinião blica fez com que os arquitetos se vissem obrigados a
justificar suas escolhas estéticas. Assim, valeram-se dos avanços tecnológicos e das
descobertas arqueológicas para buscar o estudo das edificações clássicas não em suas
28
formas ticas mas sim com todo o afinco científico, propondo precisão e reconstrução fiel.
Nasce o Estilo Neoclássico que, além de fazer uso da razão e das técnicas vigentes na
época, também conferiam às construções uma espécie de princípio de legitimidade da arte e
do belo.
No entanto, o fato da estrutura construtiva das edificações partir de materiais e técnicas
desvinculadas da aparência formal do estilo neoclássico, este passou a representar uma
simples vestimenta das construções, a aparência pela aparência. Esta constatação acirrou
ainda mais o embate entre engenheiros e arquitetos pois os últimos já não eram capazes de
sustentar com argumentos convincentes seu papel na sociedade industrial, uma vez que a
arquitetura por eles proposta encontrava-se destacada da prática da construção. Criam-se
teses, teorias, ideologias, para debater o tema da nova função da Arquitetura.
Os engenheiros afirmavam que a arquitetura deveria ter como objetivo apenas a utilidade
pública e particular, importando-se com o bem-estar dos indivíduos e da sociedade,
orientando-se pelos conceitos de conveniência (solidez, salubridade e conforto) e economia
(simplicidade e simetria). Questionavam a importância das ordens para a arquitetura,
afirmando que elas o eram sua essência, mas sim uma decoração dispendiosa e
incoerente com os tempos correntes.
Os arquitetos deram passos na direção oposta do que sugeriam os engenheiros e, valendo-
se do mesmo discurso que justificava o neoclassicismo e apoiando-se nas descobertas
arqueológicas e contato com a cultura de povos distantes, incluíram na arquitetura
elementos de outros estilos (gótico, chinês, indonésio, etc.) dando início à fase do Estilo
Eclético. No entanto, o ecletismo veio a confirmar o caráter decorativo superficial que a
arquitetura vinha apresentando, gerando mais inconformação e revolta por parte dos
racionalistas.
29
Esta discussão chegou ao interior das escolas de arquitetura que sentiram a necessidade de
assumir uma postura definitiva para a orientação de seus alunos (o ecletismo conhece sua
crise definitiva a partir da segunda Revolução Industrial e o advento da eletricidade,
telefone, motor a explosão, etc., que novamente vieram a introduzir alterações radicais nas
edificações). A Academia assumiu uma postura de defesa da tradição clássica, orientação
tradicional de seus estudos, passando a trazer em seu currículo alguns dos ensinamentos
sistemáticos reivindicados pelos racionalistas. Estes contra-atacaram de maneira frontal,
acusando-a de despótica e avessa ao moderno, ao movimento e ao progresso.
A Academia reagiu em caráter definitivo, reformulando seu programa de forma
extremamente liberal e abrangente, a fim de se abster de qualquer polêmica estilística. Os
estilos foram considerados hábitos contingentes e os arquitetos ganharam a liberdade de
optar por esta ou aquela forma a partir de uma prerrogativa individual, e não coletiva. No
entanto, ao fazer tamanha concessão e abertura, eliminando do ensino todo caráter de
tendência, ela tornou indeterminadas todas as noções tradicionais que constituíam os
fundamentos da cultura acadêmica.
Desta forma, assiste-se à dissolução de toda a herança cultural acumulada na Academia,
abrindo caminho a novas expressões formais nascidas do questionamento e da contestação
da tradição clássica, condizentes com os avanços técnicos dos novos tempos e o
pensamento do que viria a ser a era moderna. Era o prenúncio dos futuros acontecimentos
do século XX e sua virada cultural.
30
1.2. A Ilustração: a razão em foco e a construção do ideário de uma nova
sociedade
O advento da Ilustração abrange um conjunto de transformações sociais, políticas,
filosóficas, intelectuais e científicas ocorridas ao longo do século XVIII, o “Século das
Luzes”. Tal cultura de transformações surgiu na Europa em resposta à crise do século XVII,
marcado por guerras religiosas, descoberta de novos continentes e conquistas científicas
nos campos da física e da astronomia, o que conduziu a um profundo questionamento de
todos os dogmas, doutrinas e opiniões herdados da Idade Média.
Embora a Ilustração tenha seu início associado à Inglaterra, foi na França que encontrou
seu apogeu, entre 1740 e 1770. A publicação da Encyclopédie impactou toda a Europa, de
forma que por volta de 1760 a Ilustração abarcava todo o Velho Continente, da Rússia à
Península Ibérica. O movimento entrou em sua etapa final nos vinte anos que precederam a
Revolução Francesa de 1789, período em que se aprofundaram as discussões entre utopia
e reforma.
A crise de consciência na qual a Europa mergulhou conduziu a transformações profundas,
estruturais, de toda a sociedade. O clamor crítico que se viu surgir desencadeou um
processo de reconstrução em que, como bem traduz Hazard, os homens do século XVIII:
“(...) com a luz da razão dissipariam as grandes massas de negrume que cobriam a terra;
reencontrariam o plano da natureza e bastar-lhes-ia seguir esse plano para reencontrarem a
felicidade perdida. Eles instituiriam um novo direito, sem qualquer relação com o direito divino; uma
nova moral, independente de qualquer teologia; uma nova política que transformaria os súditos em
cidadãos. No intuito de impedirem que os seus filhos viessem a repetir os antigos erros, iriam criar
novos princípios pedagógicos. E então o céu desceria à terra. Nos belos e claros edifícios por eles
construídos, prosperariam as gerações, finalmente libertas da necessidade de procurar, fora de si
próprias, a sua razão de ser, a sua grandeza, a sua felicidade.”.
10
10
HAZARD, Paul. O pensamento europeu no século XVIII. Lisboa. Editorial Presença, 1989. p.08
31
Mas como se deu esse processo? Algumas descobertas geográficas e pesquisas
arqueológicas colocaram em xeque o valor absoluto e único conferido até então à civilização
mediterrâneo-européia. Os relatos trazidos pelos missionários jesuítas a respeito da
civilização da China causaram grande espanto e admiração por apresentarem uma
monarquia sem feudalismo, uma religião sem dogmas, e uma estética bastante exótica à
vivência dos europeus (a estética oriental será rica fonte de inspiração a muitos artistas ao
longo do século XIX).
Além disso, a cronologia da civilização chinesa, bem como de todo Oriente antigo,
contradizia a cronologia trazida pelo Velho Testamento, trazendo uma crise irremediável à
história sacra e profana tradicional, desde a criação do mundo ao juízo final, visto que
nesta não havia espaço para o Oriente. A partir de todo este questionamento, a Ilustração
foi por muitos tida como anti-histórica, o que não condiz com a realidade. Seus pensadores
e historiadores apenas refutavam a visão tradicional da história a fim de abrir possibilidade
para outras histórias, passadas e futuras, além da bíblica.
Havia no período da Ilustração a sensação de que a Europa era um continente aberto ao
livre trânsito das idéias, teoricamente unida, civilizada, culta, iluminada. Embora esta
“ideologia das luzes” não seja condizente com a realidade de então, esta consciência
européia, supranacional, gerou condições para que os europeus definissem e nomeassem
os mundos e povos a eles estranhos como exóticos”. Detentora do progresso, a Europa
podia então exaltar suas realizações e se debruçar curiosa sobre as civilizações tidas como
atrasadas.
A Ilustração trouxe à pauta o “paradigma naturalista” (o natural em oposição ao
sobrenatural). A concepção da idéia de uma natureza auto-reguladora, detentora de sua
própria legalidade, conduziu a uma ciência moderna que trazia uma “outra verdadedistinta
32
da trazida pelos escritos bíblicos, o que acirrou os ânimos da Igreja. Esta se opôs ao
surgimento deste novo espírito científico, suas idéias de progresso e nova civilização.
Porém, apesar de todos os esforços da Igreja católica, pouco a pouco a visão teológica da
natureza perdeu terreno para a visão naturalista e antropocêntrica, o que levou a uma
concepção do mundo e do homem essencialmente terrena e humana, fundada sobre os
pressupostos da racionalidade.
O embate com os valores da Igreja estava estabelecido através de críticas às crenças e
práticas religiosas em nome da liberdade de pensamento, onde a razão seria o único critério
válido. Embora o objetivo inicial fosse a defesa do livre-pensar e não o ataque às instituições
religiosas, o movimento da Ilustração na França assumiu uma forte conotação anticlerical,
sobretudo a partir dos trabalhos de Voltaire. Contrapunham-se então a luz natural da razão
e a luz sobrenatural da revelação religiosa.
Os pensadores da Ilustração opuseram-se à nos milagres, inicialmente restringindo-se às
crendices populares e depois se estendendo aos milagres mencionados pela blia. Tal
hostilidade teve sua origem nesta nova nas leis invioláveis da natureza, bem como a
desconfiança na autoridade da Igreja. No entanto, a Ilustração, ao derrubar as autoridades
antigas, acabou por se submeter a autoridades novas: substituiu a Igreja e Aristóteles por
Newton e Locke.
No que diz respeito às leis da natureza, as descobertas feitas por Newton, sobretudo a Lei
da Gravidade, foram decisivas. Sua ampla divulgação e absorção por parte da sociedade
excluía o milagre e qualquer outra intervenção sobrenatural no curso do mundo. Não tardou
para que sua regularidade pontual e racional fosse desejada em outros campos de atuação
da sociedade.
33
Desta forma, a Razão tornou-se o maior valor da Ilustração, tanto para a religião, a filosofia
e as ciências, tanto quanto para o Estado, o direito e a economia. Isto trouxe profundas
alterações para as instituições do século XVIII uma vez que estas não correspondiam à
racionalidade almejada: vigoravam ainda leis e práticas feudais, limitações medievais das
atividades econômicas, práticas de tortura, etc. A Razão defendida pela Ilustração pode ser
bem compreendida a partir da descrição feita por Falcon:
Longe de ser um conjunto de conhecimentos a priori sobre princípios ou verdades preexistentes, a
razão iluminista é concebida como energia ou força intelectual, só compreensível e perceptível
através da prática, isto é, do que é capaz de fazer e produzir.
Princípio de toda verdade, autônoma por definição, a razão iluminista se opõe a tudo que é irracional
e se oculta sob as denominações vagas de autoridade’, ‘tradição’ e ‘revelação’. Tampouco essa
razão é escrava dos dados empíricos, daquilo que chamamos de ‘fatos’, uma vez que a verdade
jamais é diretamente ‘dada’ por qualquer tipo de ‘evidência’. Para o pensamento iluminista, a razão é
trabalho, trabalho do intelecto, cujas ferramentas são a observação e a experimentação. A razão é
instrumento de mudança: o primeiro passo é mudar o próprio modo de pensar.
Pensar racionalmente, filosoficamente, isto é, pensar diferente. Que significa esse novo pensar?
Basicamente, trata-se de criticar, duvidar e, se necessário, demolir. A razão define-se portanto como
crítica de um pensamento ‘tradicional’ – de suas formas e conteúdos. Não mais espaços proibidos
à razão. Tudo deve ser submetido ao espírito crítico. Afinal, é através da crítica do existente que se
poderá produzir o novo e o verdadeiro
.”.
11
A Razão permitia analisar os fatos registrados pelos sentidos, porém extraindo-os da
confusão da mera impressão, sem interpretá-los mas apreendendo-os em seu estado puro.
Ao invés de partir de princípios apriorísticos, como se fazia anteriormente, a Razão era
capaz de debruçar-se sobre o real, dissecando os fatos em um primeiro momento,
comparando-os em um segundo, a fim de extrair suas leis organizadoras.
uma correspondência entre a evolução filosófica e científica trazida pela Ilustração e a
evolução econômica do século XVIII. Isto porque o pensamento livre, o liberalismo dos
iluministas, encaixava-se muito bem com os conceitos do comércio livre trazidos pela
11
FALCON, Francisco José Calanzans. Iluminismo. São Paulo. Editora Ática, 2002, p.36,37
34
manufatura e pela Revolução Industrial, de forma que a filosofia da Ilustração serviu de
precursora do liberalismo econômico que estava por vir.
A Ilustração é um movimento associado à ascensão da burguesia européia. Seus conceitos
e ideologias estão intimamente ligados ao advento de um movimento de classe média, com
suas afirmações e negações, preconceitos contra os quais lutou e preceitos que cultivou.
Não poderia partir da velha nobreza, nem do clero obscurantista, a liderança desta nova
sociedade que surgia.
A bem da verdade, a classe cultural que encabeçou o movimento pensadores como
Voltaire, d’Alembert, Grimm, Diderot, Rousseau, Montesquieu era em sua maior parte
oriunda da classe média, formando um pequeno grupo de privilegiados, porém muito
distante e segregada da maioria restante da população. Desta forma, a nova cultura pôde se
impor sobre o pano de fundo da incultura da grande maioria silenciosa que permanecia
atrelada ao regime arcaico, à subliteratura popular, ao folclore e ao catecismo. A nova
cultura impôs-se então como uma mentalidade de ruptura frente à mentalidade arcaica.
Um aspecto que caracteriza o pensamento e a prática no século XVIII é seu otimismo. Havia
então uma grande fé na perfeição do ser humano e de suas instituições, sendo que o
progresso era o objetivo maior a ser alcançado. Buscava-se, então, justamente transpor tal
progresso à vida pública.
Os avanços obtidos pela ciência trouxeram verdades indiscutíveis aos filósofos a respeito da
racionalidade do universo. E se a natureza possuía por traz de si este padrão racional, por
que não estendê-lo ao mundo dos homens? Surge este enorme otimismo no poder da
racionalidade humana e fé em seu progresso. A Ilustração tinha então por incumbência a
divulgação dos avanços das ciências e técnicas, verificando quais leis poderiam ser
aplicadas ao homem. Esta transposição das leis da natureza para o contexto humano gerou
35
a naturalização do homem, de sua sociedade e cultura, fazendo com que as instituições
sociais passassem por uma reformulação, abandonando o padrão “irracional” arcaico para
assumir seu novo caráter racional.
O período da Ilustração, não por acaso, coincide com o deslocamento do centro europeu do
mundo mediterrâneo-católico para o norte protestante, com especial destaque para
Inglaterra e Holanda. A Inglaterra configurou-se como centro irradiador do pensamento
iluminista dadas suas conquistas científicas e a vitória política obtida pela burguesia em
1688, cabendo à Holanda o papel de país intermediário e divulgador. Na Alemanha as
manifestações foram mais discretas em virtude da opressão exercida pelo absolutismo
aristocrático e a ortodoxia luterana.
Porém, o centro de irradiação da Ilustração para o restante da Europa, inclusive Itália e
Espanha, foi a França, a partir da publicação em 1734 do Cartas filosóficas ou sobre os
ingleses, de Voltaire. em 1750 inicia-se a publicação da Encyclopédie de Diderot e
d’Alembert, que contava com a colaboração de inúmeros filósofos iluministas e que
concedia grande espaço à tecnologia, revelando o espírito burguês do empreendimento. A
Ilustração produziu ecos em outros países, marcando, por exemplo, a czarina russa
Catarina a Grande, os americanos Benjamin Franklin e Thomas Jefferson e o português
Marquês de Pombal.
Assim sendo, a Ilustração trazia consigo a luz que clarearia os novos caminhos, dissipando
as sombras e névoas do passado. Seus pensadores tinham por tarefa corrigir o erro que se
arrastava por séculos, curando a população de sua cegueira, construindo uma nova
realidade, para que seus descendentes não mais vivessem na ilusão mas fossem filhos da
luz da razão.
36
1.3. As vanguardas artísticas modernistas: a expressão do novo tempo
Tamanhas alterações físicas, sociais, econômicas, ideológicas, logo produziram reflexos no
universo da arte, que agora possuía um novo universo circundante para representar. Na
primeira metade do século XIX encontrava-se a pintura romântica, sobretudo de paisagens,
que surgiu como uma fuga à feiúra e à desordem da cidade industrial. A representação que
fez da natureza não foi neutra e imparcial mas sim apaixonada, configurando-se como uma
idealização da própria natureza, último reduto ainda não maculado pela atividade industrial,
em um profundo sentimento de evasão.
Os realistas adotaram uma postura menos evasiva, propondo-se a retratar a realidade
cotidiana em seus aspectos mais comuns. No entanto, não se ativeram à nova paisagem
(cidade, campo, indústrias) que figuravam em segundo plano de forma indefinida, mantendo
o foco sobre o homem que, como personagem principal, tinha a função de incorporar e
personificar o meio circundante.
Mas foi com o trabalho dos impressionistas que a cidade industrial ganhou sua adequada
representação. Pintura urbana por excelência, foi capaz de apreender o caráter do ambiente
ao seu redor: os espaços contínuos e comunicantes, abertos uns aos outros, a paisagem
composta por uma massa uniforme porém fluída e mutável, o trânsito de homens como
grande agrupamento de vultos semelhante à massa de árvores e veículos.
Por volta de 1890 a cultura artística tradicional entrou em crise. Os positivistas colocavam
em foco as relações entre a arte e as ciências sociais e naturais e, a partir do estudo
científico da cultura de outros povos, ampliaram o campo tradicional da arte para além da
tradição clássica muito reverenciada. Propuseram um novo conceito de arte enquanto
elemento integrante da moderna concepção do mundo o que pressupõe um posicionamento
ativo, criativo e construtivo em contraposição do meramente contemplativo, mimético,
37
passivo. Neste momento tem princípio a quebra da tradição da sucessão de estilos
enquanto desenvolvimento e encadeamento natural dos fatos, abrindo caminho para a
busca de novos estilos e expressões. Buscava-se, assim como os naturalistas, a apreensão
total da realidade do mundo, porém com uma disposição ativa de expressão individual,
embasada em teorias científicas.
As correntes de vanguarda artística do período tiveram seu desenvolvimento coincidindo
com a época chamada belle époque”, período de paz e prosperidade econômica. Não é
possível afirmar que seja esta a causa das experimentações artísticas de então, mas é fato
que elas conferiram maior tranqüilidade e liberdade aos artistas, propiciando um aumento
das oportunidades de trabalho e instrumentos de difusão das experiências. Tal situação irá
perdurar até o advento da Primeira Guerra Mundial.
As experiências realizadas pelas correntes de vanguarda foram fortemente influenciadas
pelas novas descobertas científicas no princípio do século XX. É possível apontar dois
acontecimentos como determinantes para o desenvolvimento da Arte Moderna. O primeiro
trata-se da discussão da técnica da perspectiva, que desde o período da Renascença era
empregada de forma absoluta e inalterada. O segundo é o questionamento das bases do
próprio pensamento científico a partir da Teoria da Relatividade de Einstein (1905) que
colocou em cheque os conceitos tradicionais de tempo e espaço. Este novo posicionamento
perante o mundo encontrará sua maior expressão na corrente de arte cubista.
Os movimentos de vanguarda acabaram por se dedicar quase que exclusivamente aos
problemas da pintura pura, dissociando-se em muitos casos de outros campos de atividade,
como a arquitetura. Com esta atitude puderam, mesmo que involuntariamente, preparar a
cultura artística para seu desligamento com as antigas premissas visuais do passado,
preparando o terreno para a reforma dos princípios reguladores das artes.
38
Um levantamento apurado das expressões artísticas de então levaria a um número
aproximado de 300 correntes distintas. Segue uma seleção de algumas das correntes de
maior expressão e representatividade na sociedade artística, compreendidas entre o final do
século XIX e início do século XX, que acabaram por influenciar outros artistas de outros
tempos, produzindo frutos no período moderno. São apresentadas em seqüência
cronológica a fim de facilitar a compreensão da evolução dos conceitos e do pensamento da
época, de acordo com levantamento e análises de Amy Dempsey e Giulio Carlo Argan.
1) As vanguardas do final do século XIX
IMPRESSIONISMO
Movimento nascido em 1874 em Paris quando um grupo de artistas resolveu montar uma
exposição independente uma vez que suas obras eram constantemente rejeitadas nos
salões oficiais por não estarem de acordo com o padrão artístico de então. Nesta época, a
Academia ainda apoiava-se nos ideais da Renascença, valorizando as obras a partir de sua
capacidade de representar fielmente os objetos naturais.
Os impressionistas discordavam deste posicionamento, conscientes da realidade moderna
da Paris metrópole que habitavam, e buscavam captar em suas obras a impressão das
cenas dos momentos fugazes da cidade em movimento. Assim, incorporaram novas
técnicas, teorias, práticas, variando os temas antes apresentados, atentando para os jogos
de luz e cor. Passaram a trabalhar ao ar livre, ao invés de se limitarem aos ateliers,
procurando representar aquilo que o olho via, e não aquilo que o artista sabia sobre o
objeto, através de uma técnica rápida e sem retoques. As cores eram usadas puras, abrindo
mão da utilização do preto para escurecer as sombras, refutando a técnica do chiaroescuro
tradicional. A perspectiva com um ponto de fuga foi substituída pela perspectiva natural”,
subvertendo a tradição clássica. Sofreram forte impacto por parte do enquadramento da
fotografia moderna – da qual absorveram conceitos como contraste, falta de nitidez e
fragmentação – e das gravuras japonesas, que traziam cores uniformes, perspectiva e
composição não ocidentais. Whistler, um impressionista expatriado americano, defendia que
39
longe de ser descritiva, a pintura era puramente uma ordenação de cor, forma e linha numa
tela
12
. Este posicionamento surgiu a partir da confrontação das técnicas de pintura
tradicionais e o novo contexto social e científico da época. Argan escreveu a este respeito:
“A técnica pictórica é, portanto, uma técnica de conhecimento que não pode ser excluída do sistema
cultural do mundo moderno, eminentemente científico. o sustentam que, numa época científica, a
arte deva fingir ser científica; indagam-se sobre o caráter e a função possíveis da arte numa época
científica, e como deve se transformar para ser uma técnica rigorosa, como a técnica industrial, que
depende da ciência. Neste sentido, pode-se demonstrar que a pesquisa impressionista é, na pintura,
o paralelo da pesquisa estrutural dos engenheiros no campo da construção.”
.
13
Trabalhando em conjunto e encontrando-se regularmente para compartilhar suas idéias, os
artistas impressionistas acabaram criando um estilo próprio. A partir de 1880 começaram a
sentir que, na tentativa de captar a luz e o efêmero da atmosfera, haviam levado longe
demais a erosão da figura, o que levou a uma diversificação do movimento, com cada artista
seguindo por um caminho próprio e diferenciado, gerando movimentos posteriores como o
Sintetismo, o Pós-impressionismo, o Neo-impressionismo, etc.
Apesar do movimento ter se originado na pintura, o termo impressionista” passou a ser
empregado para qualificar obras de outras áreas que também se dispunham a captar as
impressões transitórias, luz, fragmentação, movimento, espontaneidade, como as esculturas
de Auguste Rodin, as músicas de Ravel e Debussy, e os romances de Virginia Wolf.
Este movimento que pode ser considerado precursor do modernismo por revolucionar o
conceito e a percepção do objeto artístico teve como principais artistas: Claude Monet,
Pierre-Auguste Renoir, Edgar Degas, Camille Pissarro, Berthe Morisot, Paul Cézanne,
dentre outros.
12
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo. Cosac
Naify, 2003. p. 18
13
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo. Companhia das Letras, 2004. p.76
40
a captação da luz e do efêmero da atmosfera
Fig. 1 – Claude Monet – Regatas de Argenteuil
a transmissão da sensação visual
Fig. 2 – Paul Cézanne – A casa do enforcado em Auvers
NEO-IMPRESSIONISMO
O movimento iniciou-se em 1886 quando a disposição de alguns quadros em sala separada
dentro da última exposição impressionista levou os críticos de arte a enquadrá-los em uma
nova classificação graças à sua visível diferença perante as obras do Impressionismo
41
original. Sendo uma dissidência do Impressionismo, seus artistas de maior
representatividade são Lucien Pissarro (filho de Camille Pissarro), Paul Signac e Georges
Seurat.
Buscavam reter a luminosidade do Impressionismo, porém reconstruindo seu objeto, que foi
por demais desmaterializado, tornando-se efêmero ao extremo. O trabalho retornou ao
atelier, cada vez mais apoiado em teorias científicas sobre a cor e a óptica (transmissão e
percepção da luz e da cor). Inspirados na teoria desenvolvida por Michel-Eugène Chevreul,
o “princípio dos contrastes simultâneos”
14
, desenvolveram a teoria do “divisionismo”. Tal
teoria apóia-se na premissa de que as cores se misturam no olho, e não na palheta,
resultando em uma técnica que consiste em aplicar pontos de cor sobre a tela de tal forma
que eles se mesclem quando observados a uma distância adequada. A esta técnica é
associado, por parte dos críticos de arte, o termo “pontilhismo”.
Desta forma, a descoberta intuitiva dos impressionistas de que a aplicação direta de
pigmentos não misturados conferia à obra maior luminosidade e brilho, ganhava agora
embasamento científico. Não se pretendia fazer uma pintura científica, mas sim uma ciência
da pintura. Também foi importante a influência exercida pelas teorias estéticas progressivas
da época que exploravam as possibilidades afetivas da linha. Segundo tais teorias, as linhas
horizontais induziam à calma, as ascendentes e oblíquas à felicidade, as descendentes e
oblíquas à tristeza.
14
Tal teoria afirma que quando a região da retina é estimulada por uma cor, ela produz uma imagem seqüencial
de sua cor complementar, e que as cores contrastantes se estimulam mutuamente.
42
uma interpretação divisionista sobre aquele que criou o termo “pontilhismo”
Fig. 3 – Paul Signac – Retrato de Félix Fénéon sobre um fundo rítmico, com esferas e ângulos, tons
e cores
SIMBOLISMO
Iniciado em 1886 a partir do Manifesto Simbolista de Jean Moréas, este movimento colocou-
se em posição de antítese à adotada pelos movimentos anteriores, pois ao invés de exaltar
o mundo objetivo das experiências externas, dedicava-se ao mundo interior dos estados da
alma e das emoções, afirmando ser este o tema mais apropriado para a arte. Assim, a pura
visualidade impressionista era superada, mas não por um caminho científico e sim
“espiritual”.
Suas obras utilizavam símbolos particulares para evocar emoções e criar imagens do
irracional, apresentando temas como sonhos e visões, o oculto, o erótico, o perverso. O
objetivo era transformar os conteúdos, assim como o Impressionismo fizera com as formas,
tornando a arte um instrumento de pesquisa da mente humana, dos seus conteúdos e
processos. Desta forma, os limites para a morfologia e simbologia da arte foram suplantados
pois tudo poderia assumir um significado simbólico, diferente para cada observador.
A teoria da sinestesia de Charles Baudelaire exerceu grande influência sobre os inúmeros
artistas adeptos à corrente simbolista, sugerindo uma arte que satisfizesse todos os sentidos
43
ao mesmo tempo, com sons que sugerissem cores e vice-versa e até idéias formuladas pelo
som das cores.
Gustave Kahn, poeta simbolista, assim descreve os ideais do movimento: O propósito
essencial de nossa arte é objetivar o subjetivo (a exteriorização da Idéia), em vez de
subjetivar o objetivo (a natureza vista através dos olhos de um temperamento).”
15
.
a sensualidade feminina e a auto-descoberta na juventude
Fig. 4 – Edvard Munch – Puberdade
PÓS-IMPRESSIONISMO
O termo pós-impressionismo surgiu a partir de uma exposição realizada em Londres entre
novembro de 1910 e janeiro de 1911 com o propósito de apresentar ao público inglês obras
15
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo. Cosac
Naify, 2003. p.43
44
que vinham sendo produzidas nas últimas décadas por parte da geração que se seguiu aos
impressionistas. No hall de artistas figuravam Gauguin, Vincent van Gogh, Cézanne, Manet,
Matisse, Picasso, Seurat, Signac, Lautrec, dentre outros.
A bem da verdade, o Pós-impressionismo não se configurou como um movimento artístico
completo, mas sim mais como uma nomenclatura empregada pelos críticos de então para
classificar artistas de difícil categorização, acabando por abarcar uma grande diversidade de
estilos que se desenvolveram entre 1880 e 1905. Dentro desta variedade e falta de unidade,
os artistas que melhor representaram esta escola foram Paul Cézanne, Vincent van Gogh e
Henri de Toulouse-Lautrec, cada qual com sua expressão particular.
Cézanne observou que do Impressionismo deveria nascer um novo classicismo, não mais
imitando os antigos, mas formando uma imagem nova e concreta do mundo, buscando a
verdade na consciência e não na simples realidade exterior. Desta forma, tornou-se ícone
inspirador das futuras correntes artísticas do princípio do século XX. Segundo Argan, sua
pintura não era literatura figurada, tampouco uma técnica capaz de transmitir a sensação
visual ao vivo: era um modo insubstituível de investigação das estruturas profundas do ser,
uma pesquisa ontológica, uma espécie de filosofia.
16
. Sua operação pictórica não reproduz,
mas sim produz sensação.
a evolução em Cézanne
Fig. 5 – Paul Cézanne – O monte Sainte-Victoire
16
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo. Companhia das Letras, 2004. p.110
45
Vincent van Gogh lutou contra a marginalização em uma sociedade que, valorizando
somente o lucro, não via utilidade em seu trabalho. Colocou-se do lado dos deserdados e
das vítimas, pintando na primeira fase de sua carreira o sofrimento dos camponeses e a
miséria trazida pela industrialização, apresentando quadros escuros e quase
monocromáticos para tratar do problema social holandês. Somente a partir de 1886, quando
entra em contato com os impressionistas franceses, que sua arte muda, abandonando a
polêmica social e fazendo dela um agente de transformação da sociedade e da experiência
que o homem faz do mundo. Sua técnica de pintura passou a opor-se à técnica mecânica da
indústria, como um gesto espontâneo que exprime as profundas forças do ser. Se o
classicismo de Cézanne formará as raízes do Cubismo, o romantismo de Van Gogh
inspirará o Expressionismo como proposta de uma arte-ação.
a força e a espontaneidade do gesto
Fig. 6 – Vincent van Gogh Estrada com ciprestes e estrelas
46
Lautrec aproximou sua pintura da expressão lingüística, através de uma figuração rápida e
comunicativa. Seu objetivo era não somente representar a realidade vista, mas também
captar o que atua como estímulo psicológico, ultrapassando a sensação visual. Em muitos
de seus trabalhos utilizou o pastel no lugar da pintura por ser um meio mais rápido de
desenho. Estudou a estamparia japonesa atendo-se não à imobilidade da imagem, mas ao
ritmo que transmite ao espectador, atuando no nível psicológico como solicitação motora.
a captação veloz do movimento
Fig. 7 – Henri de Toulouse-Lautrec – A toalete
47
SINTETISMO
A partir de uma desilusão com os impressionistas, que insistiam em descrever unicamente o
que viam diante de si, Paul Gauguin uniu-se a Emile Schuffenecker e Emile Bernard e se
tornou o líder do movimento a que chamaram “Sintetismo”, englobando obras produzidas no
final da década de 1880 e início da de 1890.
Os artistas pretendiam representar sim a aparência da natureza, mas também o “sonho” do
artista perante ela e as qualidades plásticas da cor e da forma, através de uma distorção
proposital das formas e das cores. O naturalismo impressionista foi assim evitado, bem
como as preocupações científicas dos neo-impressionistas, dando vazão ao sentimento do
artista por meio da cor. Segundo Gauguin, a observação da natureza era apenas parte do
processo que, aliada à intervenção da memória, da imaginação e da emoção, resultava em
formas mais significativas.
A ampla aceitação de suas obras no círculo artístico de então fez com que Gauguin fosse
considerado um dos ícones da arte de vanguarda, influenciando as futuras gerações de
artistas. Seu posicionamento contra a representação fiel do mundo por parte dos artistas
contribuiu para a consolidação de um caminho que levaria ao abandono da representação.
a valorização das qualidades plásticas da cor e da forma
Fig. 8 – Paul Gauguin – Dia dos deuses
48
2) As vanguardas modernas do princípio do século XX
O século XX trouxe consigo inúmeras manifestações artísticas que, embora distintas entre
si, apresentavam muitos pontos em comum por serem uma reação aos tempos então
vividos. Argan assim resume as manifestações que se sucederam:
São comuns às tendências modernistas: 1) a deliberação de fazer uma arte em conformidade com
sua época e a renúncia à invocação de modelos clássicos, tanto na temática como no estilo; 2) o
desejo de diminuir a distância entre as artes ‘maiores’ (arquitetura, pintura e escultura) e as
‘aplicações’ aos diversos campos da produção econômica (construção civil corrente, decoração,
vestuário, etc.); 3) a busca de uma funcionalidade decorativa; 4) a aspiração a um estilo ou linguagem
internacional ou européia; 5) o esforço em interpretar a espiritualidade que se dizia (com um pouco de
ingenuidade e um pouco de hipocrisia) inspirar e redimir o industrialismo. Por isso, mesclam-se nas
correntes modernistas, muitas vezes de maneira confusa, motivos materialistas e espiritualistas,
técnico-científicos e alegórico-poéticos, humanitários e sociais. Por volta de 1910, quando ao
entusiasmo pelo progresso industrial sucede-se a consciência da transformação em curso nas
próprias estruturas da vida e da atividade social, formar-se-ão no interior do Modernismo as
vanguardas artísticas preocupadas não mais apenas em modernizar ou atualizar, e sim revolucionar
radicalmente as modalidades e finalidades da arte.
”.
17
FAUVISMO
Em Paris, no Salão de Outono de 1905, surgiu uma nova denominação, Les Fauves (“as
feras”) como designação da produção de um novo grupo de artistas que viria a se firmar
como a primeira das manifestações de vanguarda do século XX. Trazendo como principais
expoentes Henri Matisse, André Derain e Maurice de Vlaminck, dentre outros, o Fauvismo
não se configurou como um movimento organizado, mas sim como uma afiliação de artistas,
estudiosos e amigos que compartilhavam as mesmas idéias sobre a arte. Traziam como
pontos em comum as cores fortes e ousadas, espontâneas e ásperas.
A temática trazida pelos fauves havia sido desenvolvida pelos impressionistas, porém
agora ela era tratada de uma outra maneira, com um outro olhar. Assim como os
simbolistas, acreditavam que a arte deveria evocar sensações por meio da forma e da cor,
porém com uma atitude mais positiva perante a vida, menos melancólica. O principal
17
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo. Companhia das Letras, 2004. p.185
49
objetivo do grupo era explorar a função plástico-construtiva da cor enquanto elemento
estrutural da visão, combinando a decomposição analítica de Signac com a composição
rítmica de Van Gogh. Desta forma, o quadro assumia uma estrutura autônoma, auto-
suficiente, como realidade em si. Em pouco tempo, o público e sobretudo os críticos
abraçaram a expressão dos fauves, fazendo com que a produção dos impressionistas fosse
superada.
A convivência constante dos artistas fez com que os fauves fossem influenciados por muitos
expoentes ligados a movimentos precedentes, tais como Gustave Moreau (Simbolismo),
Paul Gauguin (Sintetismo), Vincent van Gogh (Pós-impressionismo), Paul Cézanne (Pós-
impressionismo). Apresentando uma arte inovadora, forte e surpreendente, a produção dos
fauves que se estende de 1904 a 1908 - rapidamente tornou-se o produto mais desejado
do mercado da arte, com seus autores sendo considerados os pintores mais avançados de
Paris.
Matisse em sua obra “O luxo II”, sua última obra fauvista, já indicava novas direções a
serem seguidas, apresentando um estilo mais despojado de cores e linhas simplificadas,
abrindo caminho para uma nova forma de expressão que seria desenvolvida em breve pelos
cubistas.
a cor enquanto elemento estrutural da visão
Fig. 9 – Henri Matisse – Alegria de viver
50
EXPRESSIONISMO
Este movimento, que teve seu desenvolvimento mais ligado à Alemanha e posteriormente
irradiando-se para outros países da Europa, abarcou uma produção entre 1905 e 1923 de
obras de caráter anti-impressionista em alternativa ao Pós-impressionismo, tanto nas áreas
das artes visuais quanto teatro e literatura. Contendo mais uma postura fortemente
ideológica do que um programa artístico planejado, o Expressionismo, de modo geral,
buscava não mais registrar uma impressão do mundo circundante, mas sim imprimir o
próprio temperamento do artista sobre sua visão de mundo. Esta postura de tal forma
revolucionária e subversiva levou à associação direta do termo “expressionista” a toda a arte
que fosse considerada “moderna”. Argan assim se refere ao movimento:
Literalmente, expressão é o contrário de impressão. A impressão é um movimento do exterior para o
interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito). A expressão é um movimento
inverso, do interior para o exterior: é o sujeito que por si imprime o objeto. (...) O Expressionismo se
põe como antítese do Impressionismo, mas o pressupõe: ambos são movimentos realistas, que
exigem a dedicação total do artista à questão da realidade, mesmo que o primeiro a resolva no plano
do conhecimento e o segundo no plano da ão. Exclui-se, porém, a hipótese simbolista de uma
realidade para além dos limites da experiência humana, transcendente, passível apenas de ser
vislumbrada no símbolo ou imaginada no sonho. Assim se esboça, a partir daí, a oposição entre uma
arte engajada, que tende a incidir profundamente sobre a situação histórica, e uma arte de evasão,
que se considera alheia e superior à história. Somente a primeira (a tendência expressionista) coloca
o problema da relação concreta com a sociedade e, portanto, da comunicação; a segunda (a
tendência simbolista) o exclui, coloca-se como hermética ou subordina a comunicação ao
conhecimento de um código (justamente o símbolo) pertencente a poucos iniciados.
”.
18
O movimento que, assim como os precedentes, propunha o uso emotivo e simbólico da cor
e da linha, teve suas raízes ligadas ao Pós-impressionismo, Sintetismo, Neo-impressionismo
e os Fauves a partir da admiração dos trabalhos de Vincent van Gogh, Paul Gauguin, James
Ensor, Edvard Munch, dentre outros. Houve, novamente, um acentuado interesse pelo
misticismo e pelas artes primitivas. Graças à atuação do escritor e compositor Herwarth
Walden em prol da divulgação do trabalho dos artistas expressionistas, Berlin tornou-se um
importante centro da vanguarda internacional, até o advento da Primeira Guerra Mundial.
18
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo. Companhia das Letras, 2004. p.227
51
o mundo visto através do temperamento
Fig. 10 – Egon Schiele – Jovem nua de braços cruzados
Este movimento, que não se limitou à arte da pintura, atingiu a esfera arquitetônica,
produzindo importantes frutos. Com uma produção distribuída nas fases pré e pós-guerra,
os arquitetos expressionistas, motivados pela crise política daqueles anos, assumiram a
responsabilidade de serem criadores de um mundo melhor, adotando uma conduta ao
mesmo tempo política, utópica e experimental, vinculando o processo de renovação da arte
ao processo revolucionário da sociedade de então (sobretudo aliando-se às forças
democráticas que objetivavam uma economia de paz e cooperação internacional e que
foram superadas pelo nazismo). Com destaque para Hans Poelzig, Max Berg e Erich
Mendelsohn, as raízes do movimento encontram-se no Art Nouveau e na obra de Antoni
Gaudí, apresentando construções funcionais e comunicativas que davam margem à
imaginação e à expressão dos arquitetos, com qualidades monumentais, uso inventivo dos
materiais, excentricidade e expressão individual.
52
De modo geral, o Expressionismo afetou toda a produção artística a ele posterior por ter
eliminado da arte seu papel descritivo, exaltando a imaginação do artista e ampliando os
poderes expressivos da cor, da linha e da forma, lançando novos paradigmas.
renovação nas artes, inovação na arquitetura
Fig. 11 – Erich Mendelsohn – Torre Einstein
CUBISMO
Este movimento surgiu por volta de 1907 com a obra Les Demoiselles d’Avignon de Pablo
Picasso e estudos de Georges Braque sobre a obra de Paul Cézanne, de onde lhe
interessavam a maneira peculiar de tratar a tridimensionalidade através de múltiplas
perspectivas e formas construídas a partir de diferentes planos.
Trabalhando em conjunto, os dois artistas conceberam a estética cubista, que almejava uma
real representação do mundo esquivando-se da “representação ilusionista” que
predominava no ocidente desde a Renascença. Desta forma, refutaram a perspectiva que
53
se limitava a um único ponto de vista. Inspiraram-se nas últimas obras de Cézanne, no que
se refere à estrutura das obras, e na escultura africana, quanto à abstração geométrica e às
qualidades simbólicas.
Na primeira fase do Cubismo, também chamada de analítica, que se estendeu até 1911, os
artistas trabalhavam predominantemente com um palheta monocromática e temas neutros,
a fim de evitar qualidades emocionais declaradas, reduzindo-os a composições
fragmentadas quase abstratas. A composição de um objeto visto a partir de vários ângulos
ao mesmo tempo pressupõe que ele seja representado a partir do que se conhece dele, e
não do que pode ser apreendido quando se olha para ele a partir de um ponto fixo, fazendo
com que o observador o construa não a partir da visão, mas também do pensamento. O
objetivo era transformar o quadro em uma “forma-objeto” que possuísse uma realidade
própria e autônoma, onde o observador não se pergunta o que ele representa, mas sim
como funciona. Se o objeto do impressionismo era efêmero, o cubista é contínuo e a
abstração não é uma meta, mas sim um meio de se alcançar um fim.
Esta atitude cubista perante o objeto encontrava-se em consonância com o pensamento
científico e intelectual da época que especulava sobre a quarta dimensão, o oculto e a
alquimia. Os conceitos de simultaneidade e duração propostos pelo filósofo francês Henri
Bérgson exerceram forte influência sobre os artistas pois postulavam que o passado se
funde com o presente, o qual, por sua vez, caminha em direção ao futuro de maneira fluida,
sobreposta, com o resultado de que a percepção dos objetos pelas pessoas se encontra em
um estado de fluxo contínuo
19
.
19
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo. Cosac
Naify, 2003. p.85
54
a abstração, a fragmentação e a recomposição através do pensamento
Fig. 12 – Pablo Picasso – Les demoiselles d’Avignon
A segunda fase do Cubismo, também chamada de sintética, iniciou-se entre 1911 e 1912,
apresentando temas não mais reconhecíveis, mas repletos de simbolismo, utilizando-se do
abstrato para criar o real. Foi neste momento que Picasso criou a primeira colagem cubista
dando origem aos chamados papiers collés, um marco para a arte moderna, inserindo em
suas obras fragmentos do mundo real tais como textos, tecidos, texturas, cordas, etc. Desta
forma, conferiu à arte uma existência própria, independente do mundo exterior, gerando
uma estranheza que tinha por objetivo comentar e questionar um mundo tido por eles como
estranho.
O movimento cubista conquistou rápido reconhecimento e logo substituiu o Fauvismo na
cena artística de Paris, adquirindo logo amplitude mundial e inúmeros seguidores, tal como
55
Gris, Fernand Léger, Francis Picabia, Marcel Duchamp, dentre outros. Merece destaque a
atuação de Léger que mesclou a estética do cubismo com a estética da máquina,
reverenciando a vida moderna.
O Cubismo extrapolou o universo da pintura, tendo seus conceitos também absorvidos pelas
áreas da escultura, arquitetura e artes aplicadas. Os escultores passaram a retratar novos
temas, pensando a escultura como objetos construídos, não mais apenas objetos
modelados. A versão arquitetônica do Cubismo encontrou sua maior expressão na
Tchecoslováquia, onde os conceitos de formas geométricas simplificadas, contrastes de luz
e sombra, linhas angulosas, foram colocados amplamente em prática.
Desta forma, o Cubismo foi o movimento que destronou todos os anteriores, alimentando a
revolução artística do século, abrindo à pesquisa horizontes muito mais amplos que os da
experiência sensorial.
a recriação do real a partir do abstrato: papiers collés
Fig. 13 – Pablo Picasso – Natureza-morta com cadeira de palha
FUTURISMO
O Manifesto Futurista de Filippo Tommaso Marinetti foi publicado em 20 de fevereiro de
1909 no jornal parisiense Le Figaro com o intuito de deixar claro que aquele não seria um
movimento italiano provinciano, mas sim de abrangência mundial. Rejeitava qualquer
tradição histórica na arte, glorificava a guerra, o militarismo e a máquina; exaltava a
velocidade, o poder, a tecnologia, buscando conferir dinamismo à moderna cidade industrial.
56
Configurou-se como um movimento que trouxe um forte caráter ideológico à arte, através da
subversão radical da cultura e costumes sociais de então, negando em bloco todo o
passado e substituindo a pesquisa metódica pela experimentação na ordem estilística e
técnica.
Embora tenha se iniciado com o intuito de ser uma reforma literária, logo seus conceitos
foram apreendidos por outras disciplinas. Assim, surgiu em 1910 o Manifesto dos pintores
futuristas” no qual se defendia o surgimento de uma nova sensibilidade, transformada. Mas
levou um certo tempo até que os artistas descobrissem como transpor suas idéias para a
tela. Para tal, inspiraram-se no Cubismo, utilizando-se de suas formas geométricas, planos
de inserção, associados a cores complementares. Também sofreram influência do método
divisionista de pintura e realizaram estudos de representações de movimentos seqüenciais a
partir dos estudos fotográficos de locomoção humana e animal de Eadweard Muybridge e
das “cronofotografias” do fisiologista Elienne-Jules Marey.
a captação do movimento
Fig. 14 – Jules Marey – Experimentos cronofotográficos
57
A teoria e a arte futurista se difundiram por toda a Europa, Rússia e Estados Unidos a partir
de 1912. No mesmo ano, Boccioni publicou o “Manifesto futurista da escultura” defendendo
a utilização de materiais não convencionais. Também em 1912 Marinetti, a partir da
tipografia experimental e de uma organização nada ortodoxa, publicou sua teoria sobre a
poesia da “palavra livre”, com as palavras adquirindo novos significados a partir da sua
liberação da gramática e organização convencional. Em 1913 Russolo publicou o manifesto
“A arte dos barulhos”, forma musical que introduzia as “máquinas de barulho” na
composição. Antonio Sant’Elia, com seu “Manifesto da arquitetura futurista”, de 1914,
propunha uma arquitetura condizente com as necessidades da vida moderna, empregando
novos materiais e novas tecnologias, expondo desenhos para as cidades do futuro.
Havia uma forte ligação entre o futurismo e a política. Marinetti tornou-se amigo de Mussolini
e muitos dos participantes do movimento manifestaram-se abertamente a favor da entrada
da Itália na guerra, o que culminou com as mortes de Boccioni e Sant’Elia na linha de
combate, colocando fim na fase mais criativa do movimento. Com o decorrer da Primeira
Guerra Mundial e com o morticínio a ela associado, tornou-se quase insustentável o culto à
máquina e à guerra do início do movimento, conduzindo ao seu gradual enfraquecimento até
a chegada de sua fase final, em 1929.
a transformação do movimento em arte
Fig. 15 – Giacomo Balla – Automóvel correndo
58
o prenúncio da arquitetura do futuro
Fig. 16 – Sant’ Elia – A central elétrica
DADÁ
O movimento dadaísta, de caráter internacional e multidisciplinar, desenvolveu-se durante e
após da Primeira Guerra Mundial como forma de indignação e protesto contra o referido
conflito. Espalhados por Nova York, Zurique, Paris, Berlim, Hanover, Colônia e Barcelona,
seus artistas voltavam-se contra as instituições políticas e sociais, o estamento artístico de
então, afirmando que a presente guerra era a constatação da falência e da hipocrisia de
todos os valores estabelecidos. Assim, a esperança da sociedade estaria na destruição dos
sistemas estabelecidos, embasados na lógica e na razão, substituindo-os por valores
aliados à anarquia, ao primitivismo e ao irracional.
Suas atitudes escandalosas em ataque frontal às tradições artísticas, filosóficas e literárias
visavam abrir caminho para o novo a partir da destruição do antigo. Esta atitude iconoclasta
vinha aliada à sátira, à ironia, humor e irreverência, tal como nos poemas sonoros de Ball
feitos de palavras sem sentido como zimzim urallala zimzim zanzibar” ou a pintura de
59
Marcel Duchamp que trazia Monalisa com barba e bigode. Foi também de Duchamp a
iniciativa dos readymades, objetos manufaturados retirados de seu contexto familiar e
apresentados como objetos de arte, o que alterou as convenções das artes visuais. Argan
comenta:
“(...) o dadaísmo rejeita todas as experiências formais e técnicas anteriores. Retornar ao ponto zero,
todavia, não significa voltar ao ponto de partida refazendo o percurso histórico. Com suas
intervenções inesperadas e aparentemente gratuitas, o Dadaísmo propõe uma ação perturbadora,
com o fito de colocar o sistema em crise, voltando contra a sociedade seus próprios procedimentos
ou utilizando de maneira absurda as coisas a que ela atribuía valor. Renunciando às técnicas
especificamente artísticas, os dadaístas não hesitam em utilizar materiais e técnicas da produção
industrial (...)”.
20
A atividade estética não tinha por objetivo modificar as condições objetivas da existência,
mas sim oferecer o modelo de um comportamento livre de qualquer condicionamento.
O movimento Dadá, como era de se esperar, teve também um forte caráter político,
refletindo a atmosfera turbulenta do pós-guerra, sobretudo em Berlim com as tensões entre
os artistas dadaístas e os líderes do governo, anti-dadá.
O movimento dissolveu-se em 1922 após divergências internas entre alguns de seus
principais artistas, porém deixou um forte legado para os movimentos a ele posteriores,
através de sua atitude de liberdade, irreverência e experimentação, questionando
absolutamente os usos e costumes da sociedade e arte de então.
a arte da iconoclastia
Fig. 17 – Jean (Hans) Arp – Colagem feita segundo as leis do acaso
20
ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo. Companhia das Letras, 2004. p.356
60
PURISMO
O movimento purista teve início em 1918 com a publicação do livro Aprés le cubisme escrito
pelo pintor Amedée Ozenfant e pelo pintor, escultor e arquiteto Charles-Edouard Jeanneret
(também conhecido por seu pseudônimo, Le Corbusier), em resposta à decadência do
movimento cubista.
A partir da economia de meios e harmonias proporcionais, inspiradas na beleza e pureza
das máquinas e nas fórmulas numéricas clássicas, buscavam o resgate de uma arte
saudável que conduzisse à harmonia e à alegria. Havia um declarado culto à ordem,
considerada uma necessidade humana básica. Afirmavam que já não era mais tempo de
revoluções e que o espírito novo deveria ser conduzido a uma condição de normalidade,
difundido, incorporado à vida e aos costumes sociais.
As pinturas puristas traziam temas semelhantes aos cubistas, porém não mais trabalhados a
partir da decomposição do objeto, mas sim de sua geometria e simplicidade. Os conceitos
arquitetônicos desenvolvidos por Le Corbusier (vide o livro Por uma arquitetura, de 1923)
giravam em torno de um estilo funcional, do qual a ornamentação seria retirada.
Apesar do movimento purista ter tido uma ação muito concentrada na produção dos dois
artistas citados, seus conceitos influenciaram outras correntes de pensamento artístico,
tornando-se muito importante para o desenvolvimento da arquitetura e do design modernos.
a retomada a harmonia e da ordem
Fig. 18 – Le Corbusier – Villa Savoye
61
DE STIJL
Iniciado em 1917 a partir de uma aliança de artistas, arquitetos e designers liderados por
Theo van Doesburg, que incluía Bart van der Leck, Piet Mondrian, Georges Vantongerloo,
dentre outros, o movimento De Stijl visava criar uma arte nova que trouxesse um espírito de
paz e harmonia, em contraposição aos sofrimentos trazidos pela Primeira Guerra Mundial,
em um profundo desejo de criar uma sociedade melhor. A razão, e não a violência, deveria
determinar as transformações na vida da humanidade em seus diversos campos de
atividade, revendo todas suas premissas e finalidades.
A produção do grupo caracterizou-se pelo uso de linhas verticais e horizontais, ângulos
retos e cores primárias, traduzido pelo termo “neoplasticismo” criado por Mondrian. Tratava-
se de um desenvolvimento da abstração cubista, agora isenta da subjetividade
expressionista. A idéia central era modificar a sociedade a partir da arte, produzindo uma
cultura mais universal e ética, reduzindo a arte àquilo que nela era mais básico, purificando-
a: uma arte simplificada e ordenada. Houve uma forte influência dos escritos do filósofo
neoplatônico Schoenmaekers que atribuíam significados metafísicos às três core primárias,
além de chamar atenção para um ordenamento geométrico fundamental do universo.
ordenação para resgatar a sociedade: neoplasticismo
Fig. 19 – Piet Mondrian – Composição A
62
Um 1919, o arquiteto e designer Gerrit Rietveld juntou-se ao grupo, configurando-se como
uma aquisição importante por ter sido ele o primeiro a transpor a teoria do design
neoplástico às artes aplicadas. Sua produção arquitetônica, de grande destaque, foi capaz
de realizar na tridimensionalidade os conceitos de linhas e ângulos retos e superfícies
despojadas do neoplasticismo de Mondrian, abrindo caminho para tetos planos e nivelados,
paredes lisas e interiores flexíveis que seriam posteriormente desenvolvidos mais
amplamente pela arquitetura moderna. Rietveld afirmou: Não evitamos estilos mais antigos
por serem feios ou porque nos recusássemos a reproduzi-los, mas porque nossa época
exigia suas próprias formas, quero dizer, sua própria manifestação.
21
.
a versão tridimensional
Fig. 20 – Gerrit Rietveld – Cadeira, vermelha, azul
SURREALISMO
Apesar do termo surrealista” estar em uso desde 1917 quando Apollinaire o criou para
descrever algo que ultrapassava a realidade, o movimento Surrealismo surgiu em 1924
com a publicação do “Primeiro manifesto do Surrealismo” de autoria do poeta francês André
21
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo. Cosac
Naify, 2003. p.123
63
Breton. Aqui o termo ganhou nova significação, referindo-se ao pensamento que é
expresso na ausência de qualquer controle exercido pela razão e alheio a todas
considerações morais e estéticas
22
.
Inspirado pela produção de Sigmund Freud, Leon Trotski, Lautréamont e Arthur Rimbaud,
acompanhando o marxismo, a psicanálise e as filosofias ocultistas, o Surrealismo contou
com a participação de Max Ernest, Man Ray, Jean Arp, Antonin Artaud, Jean Miro, Pierre
Roy, Tristan Tzara, Salvador Dali, dentre outros.
Embora o movimento tenha se inspirado no Dadá, por sua técnica e determinação de
romper com os limites, o Surrealismo não apresentava seu caos e espontaneidade, mas sim
uma grande organização e teorias doutrinárias. Seu otimismo contrastava com a atitude
dadaísta de negação à arte. Seu objetivo era transformar o modo de pensar das pessoas,
libertando o inconsciente e reconciliando-o com o consciente, através da quebra das
barreiras entre os mundos interior e exterior, libertando a humanidade do domínio da lógica
e da razão que até então só haviam conduzido à guerra e à dominação. Se no inconsciente
se pensa por imagens, e a arte formula imagens, este seria o meio mais adequado para
trazer à superfície os seus conteúdos profundos. Uma vez que o inconsciente é a região do
indistinto, onde o ser humano não objetiva a realidade mas constitui uma unidade com ela, a
arte se tornaria uma comunicação vital, biopsíquica, do indivíduo por meio de símbolos.
A temática surrealista recorreu inúmeras vezes ao inconsciente, aos sonhos, e às demais
teorias freudianas fundamentais, alimentando o repertório dos artistas com imagens
reprimidas que deveriam ser exploradas, tais como o medo da castração, os fetiches e o
sinistro. Desta forma, a estética das máquinas de Dadá foi substituída por sentimentos
inquietantes, tais como o medo, o desejo e a erotização, construindo um cenário
extravagante e onírico, muitas vezes conseguido através de estranhas justaposições e
montagens fotográficas. Tratava-se de uma revolta contra a repressão dos instintos por
parte do bom senso e decoro burgueses.
22
DEMPSEY, Amy. Estilos, escolas & movimentos – guia enciclopédico da arte moderna. São Paulo. Cosac
Naify, 2003. p.151
64
O movimento ganhou o cenário internacional na década de 1930, incluindo Londres, Nova
York e Paris. No pós-guerra, perdeu força e passou a ser criticado, tanto por antigos
participantes, tanto quanto pelo líder da vanguarda de então, Jean-Paul Sartre, porém seus
conceitos e técnicas exerceram importante influência nos movimentos a ele posteriores.
a libertação do inconsciente e a negação da lógica
Fig. 21 – Joan Miro – A aula de esqui
65
Capítulo 2
São Paulo: contexto histórico e surgimento do moderno
66
2.1. São Paulo: do período colonial à República
Muito embora saibamos que São Paulo alcançou a condição de metrópole industrial no
século XX, é importante salientar que o caminho que conduziu a essa situação foi muito
distinto do trilhado pelos países europeus. Tratando-se de um processo diferente,
consolidou-se em um tempo diferente do da Europa porque, como será visto adiante,
enquanto os países do velho continente dedicavam-se à produção industrial, o Brasil
permanecia como retaguarda rural, assumindo uma postura até então inquestionável,
abalada apenas em 1929 com a quebra da bolsa de Nova York.
Enquanto o Brasil foi colônia de Portugal, sua produção, oriunda quer da extração quer do
plantio agrícola, tinha um único fim: a exportação. As terras eram concedidas a algumas
famílias portuguesas de grande influência formando imensos latifúndios, constituindo uma
sociedade composta por senhores, escravos, índios e gentio livre. A vida concentrava-se
nos engenhos e nas cidades portuárias ligadas à atividade da exportação, tal como Olinda,
Salvador e Rio de Janeiro, mantendo o interior do país muito pouco explorado, entregue às
tribos indígenas menos amigáveis.
Porém, partindo-se de um sistema de exploração territorial eminentemente litorâneo, como
se deu o surgimento de São Paulo, povoamento localizado no interior do país em sua região
de planalto, e sua evolução a metrópole? Segundo Caio Prado Junior
23
, que tão bem
estudou esta questão, a condição geográfica foi de suma importância para a afirmação de
São Paulo dentro do cenário colonial brasileiro.
A ocupação do litoral brasileiro pôde se desenvolver com sucesso na região Nordeste do
país, uma vez que a Serra do Mar encontra-se de tal forma distante do oceano que gera
uma faixa litorânea larga o suficiente para propiciar um assentamento humano com
23
JUNIOR, Caio Prado. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo. Editora Brasiliense, 1957
67
possibilidades de desenvolvimento pleno. Esta condição geográfica altera-se a partir do
oeste do Rio de Janeiro pois a planície litorânea praticamente desaparece de tão esguia que
se torna aos pés da Será do Mar. Apresentando terrenos baixos, em sua maioria ocupados
por mangues e pântanos que dificultavam o desenvolvimento da agricultura, tal porção do
território brasileiro mostrou-se hostil ao estabelecimento do homem, impelindo o colonizador
europeu à região de planalto a fim de que pudesse esquivar-se das endemias tropicais e de
sua insalubridade.
E o colono português, ao vencer a Serra do Mar, deparou-se com uma imensa clareira na
mata, os Campos de Piratininga, e iniciou seu novo assentamento. Este grande
descampado, livre da cobertura florestal graças ao seu solo pobre, já era muito utilizado
pelos povoamentos indígenas. Suas tribos preferiam a clareira à floresta tropical pois esta,
sempre muito densa e de difícil penetração, exigia grandes trabalhos de desbravamento
preliminares à sua ocupação pelo homem. Desta forma, os Campos de Piratininga exerciam
uma função de condensador demográfico natural.
Inicialmente ocupou-se o ponto em que o Caminho do Mar desemboca no campo, hoje
equivalente à região de Santo André, dando origem à vila de Santo André da Borda do
Campo em 1553. No entanto, sua vulnerabilidade ao ataque dos índios - por se tratar de
uma planície desprotegida -, a distância que se encontrava dos rios da região sempre tão
importantes aos assentamentos humanos somados à preferência política que se deu ao
núcleo fundado pelos jesuítas, fez com que em 1560 Mem de mandasse evacuar Santo
André, transferindo a condição de vila a São Paulo.
Fato é que o assentamento jesuítico de São Paulo apresentava vantagens de ordem física
incontestáveis quando comparado ao sítio de Santo André. Em primeiro lugar, os jesuítas,
ao optarem por instalar seu colégio no alto de uma colina, criaram uma condição natural de
defesa ao ataque do gentio uma vez que suas encostas só podiam ser acessadas por um de
68
seus lados, facilitando ações de defesa, além de propiciarem uma ampla visão dos vales do
Anhangabaú e do Tamanduateí, evidenciando qualquer ataque inimigo (Santo André, por se
situar à orla da mata e sem qualquer tipo de defesa natural, tornava-se suscetível a ataques
súbitos do gentio).
Em segundo lugar, São Paulo localizou-se em um ponto que pode ser considerado o
hidrográfico da região, uma vez que dele partem cursos d’água para quase todas as
direções. Se a Santo André faltavam recursos hídricos que pudessem prover a população
de peixes e facilitar a criação de gado, São Paulo era banhado pelas águas dos rios Tietê e
Tamanduateí que, além de abastecerem a população, eram razoavelmente navegáveis e se
constituíam como as principais vias de comunicação com o interior do território.
Então, valendo-se de sua situação geográfica, associação política com os jesuítas, e o
status de vila concedido pela côrte, São Paulo inicia sua caminhada de consolidação no
cenário brasileiro até atingir a condição de metrópole. Caio Prado Junior assim comenta o
caráter de centro natural da província do qual São Paulo sempre desfrutou:
“Como se vê, através de toda a história colonial da capitania, São Paulo ocupa o centro do sistema
de comunicações do planalto. Todos os caminhos, fluviais ou terrestres que cortam o território
paulista vão dar nele e nele se articulam. O contato entre as diferentes regiões povoadas e
colonizadas se faz necessariamente pela capital. (...)
Mas não é só esta posição central na grande encruzilhada do planalto que a São Paulo na era
colonial a preeminência que sempre desfrutou. É ele, além disto, o ponto intermediário, a escala
necessária das comunicações entre o planalto e o litoral. É pelo Caminho do Mar, a antiga trilha dos
índios transformada em principal artéria da capitania, que se realiza quase todo o contato entre
aquelas duas seções do território paulista.”
24
Mas como seria o cotidiano de São Paulo, neste período chamada simplesmente
Piratininga? Sendo o ponto de confluência da província, era habitada sobretudo por índios e
24
JUNIOR, Caio Prado. Evolução política do Brasil e outros estudos. São Paulo. Editora Brasiliense, 1957.
p.109
69
mestiços preadores de índios. Nela a vida era pobre, contando com algumas culturas de
subsistência, tal como mandioca, trigo, arroz, hortaliças, caracterizada sobretudo pelas
expedições organizadas que adentravam o sertão à busca de índios uma vez que sua
população não possuía condições econômicas de adquirir escravos negros para a execução
das tarefas cotidianas por serem peças muito caras. Desta forma, Piratininga adentrou o
século XVIII falando uma língua mista de português com tupi, organizando Bandeiras em
busca de índios que, apesar de sua truculência e indisposição com os assentamentos dos
jesuítas, vinham de encontro com os interesses da coroa por ampliarem paulatinamente os
domínios portugueses para além do limite demarcado pelo Tratado de Tordesilhas.
Outra atividade importante desenvolvida na vila era a manutenção das tropas de mulas,
meio de transporte indispensável para o escoamento da produção da colônia. Embora
Piratininga estivesse distante das grandes regiões produtoras de açúcar, possuía uma
posição estratégica de comunicação com as cidades mineradoras, tal como a Villa Imperial
de Potosi. Assim, configurava-se como um povoamento que olhava para o interior, ao
contrário das cidades litorâneas que tinham seus olhos voltados para a Europa.
Tal situação era salientada graças à difícil comunicação entre a vila e o porto de Santos, o
mais próximo e que possuía uma função para a Coroa apenas de carga e descarga, não
tendo a mesma importância exportadora que os demais portos. A transposição da Serra do
Mar era muito dificultosa, apenas melhorando um pouco em 1792 com a conclusão de seu
calçamento, o que facilitou a comunicação com o Rio de Janeiro, somente possível através
do mar, via Santos. Esta condição de quase isolamento possibilitou a cristalização de
hábitos e costumes de uma Piratininga pitoresca ao longo de alguns séculos.
Ao final do século XVIII, a capitania paulista possuía 60 mil habitantes espalhados por
cidades, vilas, aldeias, destacando-se Sorocaba, Santos, Guaratinguetá, Taubaté, dentre
outros, com São Paulo assumindo um papel coadjuvante na economia. Tais regiões
70
destacavam-se pela produção de açúcar - atividade que voltou a dominar a economia
brasileira após o esgotamento das minas da região central do país - erguendo a economia,
gerando capital que seria depois empregado no cultivo do café, formando o ciclo produtivo
mais importante da história da região. A São Paulo cabia a função de ser o “porto seco” da
capitania, seu nó articulador.
A vinda da família real ao Brasil, em 1808, e a posterior independência do Brasil de Portugal
introduziram importantes alterações sociais e sobretudo econômicas na vida do país.
Destaca-se aqui a abertura dos portos às nações amigas e o início da importação brasileira.
O mercado brasileiro começava a articular-se diretamente com o mercado internacional,
ampliando suas exportações à medida que as cidades européias tornavam-se mais
industrializadas, dependendo cada vez mais dos produtos agrícolas aqui cultivados. Esta
consolidação do Brasil enquanto retaguarda rural da Europa deu origem a movimentos de
migração interna, com grandes contingentes populacionais deslocando-se das regiões
mineradoras para as de produção de açúcar e de café nos estados do Rio de Janeiro, sul de
Minas Gerais e São Paulo.
A organização da sociedade brasileira no período imperial é uma continuidade do modelo
colonial, porém contando com uma importante diferenciação. No Brasil colônia, a sociedade
baseava-se em uma superposição do padrão português do regime estamental à escravidão
de índios e negros, de tal forma que a “raça dominante” era classificada em termo
estamental, as “raças escravizadas” em termo de castas, havendo toda uma gama de
elementos mestiços libertos ou livres gravitando em torno das duas primeiras categorias.
25
Porém, a partir da emancipação nacional, ocorreu uma integração dos estamentos
senhoriais formando uma ordem civil detentora do monopólio do poder político, o que
permitiu que os senhores controlassem a máquina do Estado sem qualquer mediação.
25
FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1974 in IANNI,
Octavio (org.). Florestan Fernandes: sociologia. São Paulo, Editora Ática, 1986. p.151
71
Assim, o poder saiu das mãos da Coroa e passou às mãos dos estamentos senhoriais. Este
sistema estratificatório misto permaneceu enquanto persistiu o regime servil e o sistema de
produção escravista.
A emancipação nacional trouxe a crise política do antigo sistema colonial, fazendo com que
a aristocracia agrária e seu estamento passassem a monopolizar as funções
administrativas, legais e políticas, antes pertencentes à Coroa. No entanto, tal revolução
política trouxe profundas transformações econômicas uma vez que, eliminado o controle da
Metrópole, os senhores puderam administrar mais livremente o excedente econômico da
produção escravista, muito embora este geralmente entrasse no sorvedouro do mercado
internacional. Sem o controle de Portugal, era possível compor uma política econômica
favorável à defesa dos interesses escravocratas. Assim sendo, a situação do escravo viu-se
inalterada, enquanto o senhor pôde se ver livre do peso da “espoliação colonial” para
aproveitar as vantagens da “espoliação escravista”.
Mesmo após a independência do Brasil, a forma de produção e a economia do país
permaneceram inalteradas, fiéis ao esquema do período colonial. Isto se deu porque havia
pressões simultâneas, internas e externas, para que as estruturas coloniais fossem
mantidas a fim de preservar a estabilidade econômica e social dos grupos dominantes, bem
como a expansão dos países industrializados. Desta forma, a colonização fixava suas raízes
em nossa realidade de forma profunda e duradoura, evitando que o processo de
descolonização pudesse promover um desenvolvimento capitalista moderno no Brasil.
O cotidiano do Brasil império em muito se assemelhava ao do Brasil colônia, tanto nas
grandes propriedades rurais quanto nas vilas e cidades, pois a economia permanecia
agrária e apoiada em latifúndios de mão-de-obra escrava. A conquista de maior liberdade de
comércio e impulso das atividades mercantis possibilitou o desenvolvimento de pequenos
72
portos ao longo de todo o litoral, descentralizando a atividade exportadora dos grandes
portos, desenvolvendo outras cidades litorâneas.
Desta forma, as cidades passaram a ter uma comunicação mais efetiva entre si, com as
cidades portuárias contando com um importante incremento populacional e estético. Com a
ampliação das relações com os portos no exterior ampliaram-se também, além das trocas
comerciais, as trocas culturais, com a instauração de melhorias urbanas tais como teatros e
passeios públicos que, apesar de não modificarem a estrutura das cidades, buscavam
aproximá-las das condições européias.
Tratava-se de embelezamentos, modernizações superficiais e construção de cenário “à
européia”, não alterando a estrutura das cidades, como seu sistema viário, por exemplo,
nem suas redes de esgoto e abastecimento de água. São deste período iniciativas como a
substituição dos tradicionais muxarabies e rótulas por cortinas e vidraças (importadas da
Europa), inserção de platibandas para ocultar o sistema de calhas e condutores (importados
da Europa) no lugar dos amplos beirais das casas coloniais, etc. Assim, as cidades
ganhavam uma nova feição embora mantivessem a mesma configuração.
A cidade do Rio de Janeiro, por ser a sede da monarquia, era o pólo econômico, político e
cultural do país. Mas São Paulo crescia em importância devido à sua posição estratégica de
articulação entre as cidades produtoras de café do interior da província. Tal fato levou à
criação da Academia de Direito, em 1827, com o objetivo de fomentar a criação de novos
quadros dirigentes que pudessem representar a elite do café, que almejava maior
representatividade no cenário da jovem nação.
Era preciso, além disso, equipar o território nacional a fim de ampliar sua exploração
econômica, inserindo cada vez mais a produção brasileira no sistema internacional de
trocas. Tal fato exigia a execução de um número maior de obras de engenharia e, apesar de
73
a atuação de engenheiros existir no Brasil desde o período colonial (vinculados a ações
militares e obras públicas de maior importância) era necessário ampliar o quadro destes
profissionais. São Paulo, desde os anos 1830, havia procurado reorganizar o aparato
técnico-institucional dedicado às obras públicas. O objetivo era a fiscalização por parte dos
engenheiros das estradas e pontes da província, construídas em grande parte por
empreiteiros privados praticamente leigos. Criou-se então, em 1844, a Diretoria de Obras
Públicas da província, extinta em 1847 uma vez que a participação da categoria dos
engenheiros, relativamente nova, no quadro político imperial não era vista com bons olhos
por parte dos fazendeiros e bacharéis.
26
O crescimento da demanda européia pelos produtos agrícolas aqui cultivados, aliado ao
desejo de alguns países da Europa em exportar seus produtos industrializados, fez com que
houvesse um grande investimento nos meios de transporte a partir de 1840 1850, através
da construção de estradas e ferrovias. Desta forma, as cidades aumentaram sua
intercomunicação e a produção pôde ser escoada com maior agilidade, ao mesmo tempo
em que a Europa ganhou um mercado promissor para compra de seus artigos ferroviários,
carruagens e diligências. E São Paulo encontrava-se no nó articulador destas vias de
transporte, sobretudo a partir de 1844 data de construção da Estrada da Maioridade e
1867 – início do funcionamento da São Paulo Railway.
Também teve grande importância no processo de crescimento de São Paulo o início da
formação de um mercado financeiro a partir da liberação do capital antes empregado no
comércio de escravos, uma vez que o tráfico havia sido proibido. São Paulo, capitalizando-
se, começava a estender seu domínio sobre a zona rural, constituindo-se como conexão
entre sistemas mais amplos de comércio.
26
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 41
74
Neste momento, deu-se a transferência da vida da área rural para as cidades, com o
deslocamento da aristocracia cafeeira de suas fazendas para os sobrados urbanos
paulistanos. Logo, esta aristocracia procurou se afirmar, almejando participações cada vez
maiores nos campos empresarial, político e administrativo do país. Muito disto se explica,
não pelo poderio econômico que esta aristocracia detinha, mas também pelo fato de que
muitas destas famílias tinham origem nas regiões mineradoras de Mato Grosso e Minas
Gerais, trazendo consigo uma tradição de vida urbana com forte participação no comércio e
nas finanças.
Mas São Paulo não abrigou somente os barões do café, mas também um grande
contingente populacional que vinha em busca de empregos temporários, o que gerou o
crescimento da cidade com o surgimento de novos bairros, além da necessidade de se
introduzir melhorias urbanas. As classes mais abastadas ocuparam bairros distantes com
seus palacetes ajardinados enquanto à classe proletariada coube a vida nas vilas operárias
próximas às indústrias, por sua vez próximas às linhas férreas.
Assim sendo, São Paulo chega aos anos da proclamação da República contando com uma
população muito maior do que o esperado alguns anos atrás, formada também por uma
massa de imigrantes europeus que aqui chegavam atraídos pelas possibilidades que a rica
cidade oferecia (“o número de habitantes passou de 30 mil em 1870 para 50 mil em 1885,
iniciando a República com quase 100 mil habitantes e chegando a 1900 com 240 mil
27
).
Melhorias urbanas tornavam-se mais presentes, tais como investimentos em edifícios
públicos imponentes, abertura de ruas, inauguração do matadouro municipal em 1887 e de
um segundo mercado em 1890. A partir de 1872 os lampiões a querosene foram
substituídos por iluminação a gás e em 1888 surgiram as primeiras luzes elétricas no centro
da cidade.
27
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 99
75
Porém, seu crescimento era desordenado, sem qualquer preocupação com zoneamento, e a
urbanização acelerada começava a trazer problemas, sobretudo no que diz respeito às
condições de saneamento e abastecimento de água, que eram precárias e agora tinham
que atender uma população muito maior. Tal situação levou a algumas ações sanitaristas
em 1886 que exigiam instalações de esgoto, limpeza e ventilação nas moradias de baixa
renda a fim de reduzir a incidência de doenças sobre o proletariado para que isto não
prejudicasse a economia crescente da cidade.
76
2.2. Entre a República e o século XX
A Proclamação da República marca o início de uma nova fase da história de São Paulo.
Este fato, somado à abolição da escravatura e à industrialização crescente, causou o
deslocamento dos capitais e mão-de-obra da zona rural para a cidade, alterando em
definitivo o equilíbrio político então vigente. Sai de cena a oligarquia monárquica, entra em
cena a oligarquia cafeeira.
São Paulo permanecia como ponto articulador de cidades como Sorocaba, Campinas e
Mogi das Cruzes, assumindo o papel de centro comercial, de serviços e agenciamento de
relações nacionais e internacionais, mas também agora se configurando como um mercado
consumidor populoso, diferente do restante do país. Suas indústrias, tão incipientes no
período do Império, haviam conquistado maior estabilidade com o advento da mão-de-obra
do imigrante europeu e com a oferta de energia elétrica mais barata, visto que os
combustíveis naturais da região eram escassos e de má qualidade.
Com o advento da imigração européia, a sociedade de São Paulo passou a se diversificar,
contando com um novo estrato que nem pertencia à aristocracia rural ou urbana, nem era
proletarizada. Tratava-se de uma camada social intermediária formada por frações sociais
de diversas origens, composta por alfaiates, cozinheiros, funcionários de lojas, professores,
etc., dando início à pequena e média burguesias paulistas, esclarecidas e politizadas.
No entanto, é importante ressaltar que na virada do século a cidade passou por uma
primeira crise do café ocasionada pela superprodução de 1897, que levou a uma queda no
valor das exportações. Foram necessários refinanciamentos de emergência, aumento de
impostos e privatização de empreendimentos públicos a fim de restabelecer o crédito
77
nacional, o que reduziu o apoio à atividade industrial, tão carente de medidas
protecionistas.
28
O novo regime buscava sua afirmação a partir da valorização das instituições republicanas
nascentes, o que levou a novos investimentos em edifícios públicos a fim de corporificar o
reaparelhamento institucional proposto. Surge neste momento a figura importante do
engenheiro-arquiteto Francisco de Paula Ramos de Azevedo, a cujo escritório coube o
projeto da maioria dos edifícios institucionais: a Tesouraria da Fazenda, a Secretaria da
Agricultura, a Escola Normal na Praça da República, a Escola Prudente de Morais, o Liceu
de Artes e Ofícios, a Escola Politécnica, dentre outros.
Foi este espírito modernizador republicano que levou à criação da Escola Politécnica em
1892, instituição de ensino de engenharia que tinha como objetivo formar quadros
especializados nas técnicas necessárias ao aparelhamento do Estado. Seu programa
destacava disciplinas aplicadas - tais como construção civil, agricultura, eletricidade,
ferrovias, saneamento, infra-estrutura urbana, obras viárias, arquitetura, etc. - que
pudessem atender às novas exigências econômicas e de transformação da cidade.
Um diferencial apresentado pela Escola Politécnica paulista foi a inclusão da engenharia
industrial em seu programa, evidenciando as intenções de Paula Souza, ex-superintendente
de obras públicas, de apoiar a produção industrial. Criticava a posição brasileira de
dependência da importação de manufaturados, objetivando superar a posição do Brasil
enquanto país exclusivamente agrícola. Lutava porém contra uma elite cafeeira
conservadora e satisfeita com o caráter da economia nacional a ela favorável.
Esta resistência a mudanças por parte da elite se deu porque a proclamação da República
apenas marcou a ruptura política com o antigo sistema, sem contudo alterar o quadro
28
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 68
78
ideológico e cultural vigentes, o que viria a ocorrer lentamente ao longo das décadas
subseqüentes. Carlos Guilherme Mota e Roberto Righi assim descrevem este processo:
“(...) Na segunda metade do século XIX, após a Guerra da Tríplice Aliança (a denominada Guerra do
Paraguai), frações da elite dirigente deram-se conta, em várias regiões do país, do enorme atraso em
que o regime imperial vinha mantendo a nação. A ordem escravocrata, aliada ao medíocre
desenvolvimento urbano, à infra-estrutura precária nos principais centros, à presença hegemônica de
uma visão ruralista do mundo, à insignificância das instituições de caráter universitário e científico,
demarca e asfixia os horizontes dessa sociedade. Sociedade que se vai descobrindo ainda imersa,
sufocada pela persistência do já distante passado colonial. (...)
Mas a República teve, desde o início, e com a bagagem sociocultural e jurídica disponível, de
administrar dois processos concomitantes, dos quais se beneficiará: o da liquidação difícil do legado
da sociedade escravocrata (a Abolição ocorrera em 1888, mas o regime escravista deixou pesada
herança para as novas gerações) e o da inserção, no conjunto da população e nas instituições sociais
preexistentes, dos imigrantes, cuja chagada em massa aos portos do Sul do país começara nas duas
últimas décadas do século XIX, intensificando-se no primeiro quartel do século XX. E Santos foi um
dos principais pontos de chegada desses desenraizados brancos europeus.
A esses dois processos ligam-se outros dois, o menos importantes na verdade, decisivos para
a definição do Brasil moderno: a industrialização e a urbanização de o Paulo e de outras poucas
cidades adjacentes. Industrialização, imigração e urbanização serão os três elementos básicos
responsáveis pela transformação profunda dessa região do país.”.
29
Neste período entre a proclamação da República e o início do século XX, São Paulo passou
por transformações urbanas que visavam modernizar, mas também “europeizar”, a cidade.
Seus principais objetivos eram criar espaços de prestígio na área central e implantar bairros
residenciais de alto padrão para as classes abastadas, dotados de redes de infra-estrutura.
Desta forma, a colina histórica da cidade era confirmada como espaço central dominante, o
que refletia a dominação urbana e regional que a elite cafeeira desempenhava, e os bairros
residenciais citados consolidavam sua posição privilegiada no quadro urbano.
29
MOTA, Carlos Guilherme; RIGHI, Roberto. Modernidade e cultura: o grupo Santa Helena in CAMPOS,
Candido Malta; JUNIOR, José Geraldo Simões (org). Palacete Santa Helena: um pioneiro da modernidade em
São Paulo. São Paulo. Editora Senac; Imprensa Oficial, 2006. p.168,169
79
Ao mesmo tempo, era necessário romper o sítio de fundação da cidade que caracterizava
seu período colonial, abrindo caminhos para o progresso trazido pelo café. O primeiro passo
em direção à ruptura da acrópole paulista foi dado com a construção do primeiro Viaduto do
Chá, em 1892, possibilitando a transposição do riacho do Anhangabaú. É também deste
período (mais precisamente 1890) o projeto de construção de um viaduto que interligasse o
Largo de São Bento e o de Santa Efigênia mas que, após muitas polêmicas, pôde ser
edificado em 1906, constituindo o Viaduto Santa Efigênia que até hoje serve à cidade.
Outra preocupação presente era a de “isolar” a elite do café do restante da população,
segregada em moradias populares em áreas menos valorizadas. Esta situação era
reforçada pelas ações sanitaristas que, a fim de requalificar o centro urbano, dele expulsou
usos e moradores menos privilegiados. Desta forma, a cidade dava as costas ao seu
contingente popular e operário, vivendo uma utopia isolacionista” segundo a qual,
produzindo uma segregação sócio-espacial da força de trabalho industrial em suas vilas
operárias afastadas, seria possível construir uma “capital do café” europeizada e civilizada
para desfrute da elite dominante.
Mas houve também iniciativas, como as do engenheiro Adolfo Augusto Pinto, que traziam
uma preocupação com o funcionamento global da cidade, não apenas visando as classes
abastadas, configurando-se como iniciativas de melhoramento urbano abrangentes. Imbuído
do espírito positivista que norteava a formação dos engenheiros, defendia: a canalização
dos esgotos, o estabelecimento de um serviço de coleta do lixo domiciliar, a busca de uma
solução para o problema do escoamento das ruas, a salubrificação da Várzea do Carmo, a
drenagem e o ajardinamento da Praça da República, a cobertura e embelezamento do
Anhangabaú e do Largo da Memória até a Rua 25 de março, além da criação de piscinas
80
públicas (para melhorar o problema dos banhos), lavanderias públicas (a fim de livrar as
margens dos rios e córregos) e ginásios esportivos.
30
A partir da superação da crise do café da virada do século, São Paulo ingressou em uma
fase otimista alavancada pelo programa progressista baseado na economia primário-
exportadora. Desse modo, alimentava-se a imagem de um Brasil agrário e cosmopolita,
aberto à importação dos produtos europeus.
30
SEGAWA, Hugo. Prelúdio da metrópole: arquitetura e urbanismo em São Paulo na passagem do século XIX
ao XX. São Paulo. Ateliê Editorial, 2004. p. 46, 47
81
2.3. São Paulo no século XX
No princípio do século XX as medidas para a valorização do café haviam surtido efeito: a
cotação do produto em 1909 em Londres igualava-se à da década de 1880, período áureo
da produção paulista. Os fazendeiros, ávidos por esquecer os tempos difíceis lançavam-se
em uma nova vida de prazeres e fartura, e São Paulo embelezava-se para este fim.
A cidade buscava aproximar-se da estética européia a fim de figurar de igual para igual no
cenário comercial internacional. Importava-se então não somente os adereços da
modernidade européia, como também costumes, idéias e opiniões, compondo uma vitrine
de civilização. Pouco importava se este cenário construído não era compatível com a falta
de estrutura urbana e as epidemias tropicais que assolavam a população, etc., contanto que
a soberania do café fosse mais uma vez ressaltada, trazendo conforto e vida exuberante à
elite.
O modelo urbanístico que servia de inspiração, não só para São Paulo mas também para as
demais capitais do país, era o que havia sido proposto por Haussman em Paris. Propunha-
se assim o saneamento dos centros urbanos a partir da eliminação das habitações
populares e demais usos considerados inconvenientes ou insalubres, com sua substituição
por usos comerciais, institucionais ou residenciais elitizados. Tal transformação seria
possível com a abertura de amplas ruas retilíneas, conjugadas com a substituição de casas
e sobrados por edifícios de alguns andares alinhados com as divisas dos lotes, em estilo
eclético, formando um pano contínuo de fachadas. A difusão deste modelo haussmanniano
de urbanismo se deu graças à atuação de Pereira Passos quando à frente da Comissão de
Melhoramentos do Rio de Janeiro onde desenvolveu, ainda em 1884, a idéia de uma
“avenida central” que resumiria esses princípios de remodelação urbana, idéia que foi
prontamente absorvia por outras capitais brasileiras. Desta forma, a escolha do modelo
parisiense não se deu aleatoriamente:
82
“Os aspectos ‘europeus’ buscados nessa transformação não foram eleitos por acaso ou capricho
entre os estilos em voga. Um tratamento simbólico referenciado nas cidades européias de então e
na imagem emblemática de Paris, representada pelo urbanismo dito ‘haussmanniano’ era
indispensável para ajudar a legitimar os espaços dominantes e os grupos que passavam a ocupá-los,
na medida em que esses eram os representantes locais de um sistema internacional de trocas e de
um quadro de dominação sediado nos grandes centros do hemisfério Norte. Assim, a adoção de uma
imagem ‘civilizada’ nesses termos funcionava antes como recurso de diferenciação dos setores de
poder do que como modelo abrangente a ser aplicado na cidade como um todo. Tal política de
modernização urbanística, mostrava-se parcial e excludente por definição.”.
31
No entanto, Vítor Freire, urbanista atuante em São Paulo, discordava de que este deveria
ser o modelo a ser aplicado na capital paulista. Considerava-o inadequado à condição física
paulistana mas, acima de tudo, buscava superar tal paradigma para construir um novo,
condizente com a autonomia econômica de São Paulo, a fim de construir para esta cidade
um caminho não mais subordinado à capital federal. Espelhava-se nos ensinamentos de
Camillo Site, urbanista crítico de Haussman, cujo modelo, em tese, levaria São Paulo a um
patamar urbanístico mais atualizado, superior em funcionalidade e eficiência.
Tal atitude de Vítor Freire evidencia sua insurreição ideológica em relação ao Rio de
Janeiro, em uma tentativa de afirmação da cidade que era a capital econômica, centro
decisório e comercial do país. No entanto, embora São Paulo pudesse pretender assumir
uma crescente autonomia em sua relação com os centros europeus, abrindo mão da
intermediação da capital federal, culturalmente persistia o provincianismo ideológico em
meio à elite do café, que adotava uma postura de subordinação em relação ao Rio de
Janeiro. No entanto, vê-se aqui o embrião de uma atitude de contestação perante o status
quo e o comodismo da elite agroexportadora que, com o passar de alguns anos, vai ganhar
mais e mais adeptos.
31
CAMPOS, Candido malta; PERRONE, Rafael. O Palacete Santa Helena: implantação, construção e
arquitetura. in CAMPOS, Candido Malta; JUNIOR, José Geraldo Simões (org). Palacete Santa Helena: um
pioneiro da modernidade em São Paulo. São Paulo. Editora Senac; Imprensa Oficial, 2006. p.73
83
A partir da Primeira Guerra Mundial, a estrutura de valorização da Belle Époque européia
viu-se abalada, uma vez que seu cenário já não mais representava um modelo inconteste de
civilização, o que conduziu ao surgimento de movimentos de afirmação da nacionalidade
brasileira. Na área cultural, surgiram mobilizações que objetivavam resgatar o Brasil
esquecido nos campos e sertões, à sombra das grandes cidades.
Neste período, no cenário arquitetônico, surgiu a proposta do neocolonial que buscava
resgatar o estilo que havia nascido da adaptação da herança portuguesa às condições
locais particulares do caso brasileiro. Protagonizado em São Paulo pelo arquiteto português
Ricardo Severo, o estilo neocolonial deveria ser adotado para as construções modernas por
ser adequado ao clima, aos materiais e à cultura local, refletindo a história e a tradição
nacional.
Severo defendia que a nação que pretendia construir-se deveria voltar seus olhos ao
ambiente e às tradições locais, não mais se inspirando na cultura importada da civilização
européia e seu ecletismo. Assumia assim uma postura antagônica à adotada pelas
instituições republicanas brasileiras, imitativas segundo seu julgamento. Opunha-se à
importação da cultura artificial do hemisfério norte, que desvirtuava nossa nacionalidade a
partir de padrões desvinculados da realidade brasileira. Sua atitude inspirou outros
intelectuais, tal como Monteiro Lobato, dando icio a um movimento de redescoberta do
Brasil. Severo ainda foi responsável pela fundação da Revista do Brasil, em 25 de janeiro de
1916, cujo caráter cultural visava divulgar intenções renovadoras e nacionalistas
emergentes nos meios pensantes brasileiros.
No entanto, as características da arquitetura colonial brasileira – austera, modesta, singela –
faziam com que ela parecesse incongruente com a representação simbólica almejada pela
capital agroexportadora. Excluindo-se alguns portais e outros detalhes de igrejas do período
colonial, havia uma carência de modelos “nobres” na tradição local, o que levou à sua
84
associação com elementos oriundos de outros países, como Espanha e México, formando
um estilo que, embora pretendesse ser estritamente nacional, era de fato híbrido.
Apesar disto, o estilo neocolonial teve uma excelente aceitação entre os setores dominantes
da sociedade brasileira, sobretudo em São Paulo. As classes proprietárias viam nele a
recuperação dos valores tradicionais do país, tal como a economia agrária, o patriarcalismo,
a dominação de base fundiária, o ambiente rural. Visavam assim uma legitimação ideológica
condizente com sua ascensão econômica, a partir da construção de uma tradição. Neste
processo, a figura do bandeirante ganhou uma importância e um peso míticos, repercutindo
profundamente no processo de formação da identidade paulista.
São Paulo abraçava sua condição agroexportadora mas, aos pés da década de 1920,
encabeçava um discurso de modernização e racionalização desta atividade. Visava uma
nova civilização pastoril e agrária, iluminada pela ciência, em uma atitude de oposição
frontal às atividades industriais, ditas artificiais. A situação de prosperidade econômica vivida
por São Paulo graças à agroexportação incentivava ainda mais o investimento nas obras
públicas de embelezamento da “cidade do café”.
Deve-se notar, no entanto, que tamanha exacerbação da condição agroexportadora do país
não significava uma postura antagônica à modernização e à expansão interna do
capitalismo comercial. Apenas esta oposição a mudanças caracteriza uma autodefesa do
setor arcaico. Ao mesmo tempo, este novo setor urbano-comercial e industrial que surgia
não lutava pelo controle econômico, sociocultural e político uma vez que se agregava ao
estamento agrário em uma articulação dinâmica. Desta forma, o excedente econômico
proveniente da lavoura financiava os novos investimentos industriais e comerciais,
fomentando o mercado capitalista. As mudanças sociais davam-se paulatinamente, sem que
houvesse revoluções ou tomada de poder, em um processo assim descrito por Florestan
Fernandes:
85
“... de que natureza era o fluxo de mudança social descrito. Ele não surgia insopitavelmente, como
uma torrente volumosa e impetuosa, que abria seu caminho de modo inexorável. Mas uma espécie
de afluente, que desaguava em um rio velho, situoso e lerdo. À medida que os homens drenassem o
velho rio e o retificassem, é que a contribuição da massa de água adquirida iria revelar todo o seu
potencial.”
32
São Paulo, porém, encontrava-se em uma situação de impasse. Embora a municipalidade
se esforçasse em finalizar o conjunto de ações embelezadoras destinadas ao centro da
cidade, as despesas passaram a ter dimensões desproporcionais aos resultados
alcançados, eclipsados pelos problemas urbanos apresentados pela metrópole em
crescimento. As iniciativas de valorização do triângulo histórico tornaram os custos das
intervenções proibitivos, além de lançá-lo em uma condição de constante congestionamento
visto que todas as vias de ligação da cidade passavam por ele. A industrialização, cada vez
mais forte embora ignorada pela elite cafeeira, ampliava os limites da capital para além da
capacidade de atuação do poder público.
Faltava infra-estrutura nos arruamentos distantes, tornava-se dramática a situação
habitacional das classes menos abastadas, o sistema de bondes achava-se
subdimensionado para a população que dele dependia para se locomover pela cidade. São
Paulo, sensivelmente, mudava de caráter e já não mais poderia ser encarada como a
“cidade dourada do café”, nem sua elite era formada apenas pelos barões
agroexportadores: surgia mais forte a elite industrial.
O advento da imigração européia não apenas trouxe alterações para São Paulo de ordem
populacional, modificando seus costumes, língua, culinária, cultura, etc., mas também:
“(...) seria sobretudo a presença de operários e trabalhadores de outros países (notadamente da
Itália, da Espanha, de Portugal, mas também da Alemanha, da Polônia, etc.) que traria um novo
conteúdo político-cultural e ideológico ao cenário econômico-social da região Sul do Brasil. Formados
32
FERNANDES, Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1974 in IANNI,
Octavio (org.). Florestan Fernandes: sociologia. São Paulo, Editora Ática, 1986. p.155
86
de acordo com outros valores, esses operários, muitos deles alfabetizados e mesmo politizados,
tinham alguma qualificação e, por vezes, um excelente domínio de seus variados ofícios, em
especializações que a nova urbe em fase de crescimento acelerado passava a demandar. Dessa
forma, contribuíram decididamente com um novo e atualizado ‘saber fazer’ no vasto campo dos
ofícios, da construção civil, do ajardinamento.
Fração significativa desses trabalhadores (não a totalidade, pois muitos provinham do campo)
trazia enraizada da Europa uma vivência urbana comunitária, e assim contribuíra para a implantação
de um modo de vida que começava a distanciar-se do padrão agrário-colonial luso-brasileiro e da
pesada mentalidade escravista.”.
33
Desta forma, a cidade cosmopolita aos poucos se despiu de seu provincianismo, assumindo
seu caráter internacional e preparando-se para o processo de atualização e modernização
que estava por vir. A urbanização crescente, bem como os progressos na vida cotidiana e
nas comunicações, trouxe mudanças no sistema de poder uma vez que a elite dominante
viu-se obrigada a paulatinamente abandonar sua visão de mundo ruralista, aristocratizante e
elitista, e ceder a um novo cenário econômico e sociocultural latente, onde a nova burguesia
industrial ocupava cada vez mais um espaço maior.
33
MOTA, Carlos Guilherme; RIGHI, Roberto. Modernidade e cultura: o grupo Santa Helena in CAMPOS,
Candido Malta; JUNIOR, José Geraldo Simões (org). Palacete Santa Helena: um pioneiro da modernidade em
São Paulo. São Paulo. Editora Senac; Imprensa Oficial, 2006. p.175
87
2.4. A chegada de um novo paradigma em São Paulo: o Moderno
São Paulo transformava-se a olhos vistos. Aos poucos abandonava seu provincianismo,
contando agora com novas dimensões, novos índices populacionais, novas realidades. Se
antes seus olhos estavam voltados para a Europa e dela copiava os modelos e padrões
estéticos, agora tinha dentro de si novos conceitos de organização social e programas
trazidos pelos imigrantes europeus. São Paulo era então um organismo em mutação.
Na sociedade paulistana destacava-se uma classe dominante composta
predominantemente pela “nobreza fundiária” agro exportadora, contando com uma pequena
parcela de uma burguesia industrial ainda incipiente, apresentando em segundo plano uma
considerável camada de profissionais liberais e um grupo intersticial - o Exército - que,
embora estivesse associado aos estratos médios, ganhava cada vez mais importância no
cenário político desde a Proclamação da República. Esta sociedade complexa ainda
contava com um grande contingente de imigrantes europeus e ex-escravos marginalizados
que contribuíam para o crescimento da pequena classe média, da classe operária e do
subproletariado. Tal quadro propiciou o surgimento de ideologias conflitantes, onde o
tradicionalismo agrário pouco se ajustava à inquietação do centro urbano que surgia e que
apresentava, em sua faixa burguesa, a inclinação aos elementos vindos da Europa e
Estados Unidos e, em suas camadas média e operária, o anseio da mudança e da
revolução.
Embora o cenário urbano clamasse por intervenções e novas abordagens que tratassem a
cidade como um todo integrado, e não apenas visando os interesses da elite dominante, o
ambiente cultural paulistano permanecia inalterado, ainda calcado nos preceitos da Belle
Époque” parisiense. Tal estado de estagnação apenas foi de fato fortemente alterado em
1917, ano de profunda comoção social em São Paulo, com a exposição de quadros de uma
artista, na época, pouco conhecida: Anita Malfatti. A partir de então, os alicerces da arte
88
brasileira foram atingidos e questionados, gerando as reações mais diversas, quer de
repúdio ou adoração, e abrindo caminho para uma nova expressão no Brasil: o Moderno.
Mas como se deu o surgimento, em meio a uma cidade ainda tão conservadora, de uma
exposição de princípios tão renovadores?
Anita Malfatti, filha de um italiano engenheiro civil e arquiteto naturalizado brasileiro, desde
cedo morou com a mãe, viúva, na casa dos avós. Em meio a uma educação rigorosa e
austera, em uma época em que os meios de comunicação eram escassos e até mesmo os
jornais eram poucos, buscava nos livros e nas revistas estrangeiras saciar sua enorme
curiosidade pelo desconhecido e pela novidade. Após concluir seus estudos no Mackenzie
College, buscou ingressar em um curso de pintura ao invés de dedicar-se a um matrimônio,
como muitas de suas colegas fizeram.
Este desejo interno latente de dedicar-se à pintura pôde realizar-se quando surgiu o convite
por parte da mãe de uma de suas amigas de acompanhá-las a Berlim para que estas
pudessem terminar sua educação musical. A partir do auxílio e apadrinhamento de um tio
seu, visto que sua mãe possuía recursos por demais modestos para que pudesse financiar
tal viagem, Anita viu-se diante da possibilidade radiante de ir estudar pintura na Europa.
Chegando ao velho continente, Anita deparou-se com um cenário cultural muito mais
intenso que o de São Paulo. Berlim era então o grande centro musical do mundo e Malfatti
chegou a assistir a setenta concertos em seu primeiro inverno europeu. Seus estudos de
pintura iniciaram-se no atelier do divisionista Fritz Burger, embora neste período ainda não
se atrevesse a pintar, dedicando-se apenas aos desenhos com carvão. Logo depois, visitou
a exposição do artista Lovis Corinth, posteriormente aclamado pela crítica como um dos
maiores pintores alemães da história, o que a transportou a uma nova dimensão pictórica:
Tive ocasião de visitar uma exposição muito discutida. levei um choque. Eram quadros
enormes. A tinta era jogada com tal impulso, com tais deslizes e paradas repentinas, que
89
parecia a própria vida a fugir pela tela afora.
34
Passou a estudar no atelier do célebre
artista e, por ele incentivada, pela primeira vez ousou pintar.
No entanto, Anita aprendeu com estes dois mestres conceitos de arte, mas não de técnica
pictórica (Corinth inclusive desprezava a técnica pois, segundo ele, a preocupação com a
técnica destruiria a inspiração). A partir dos ensinamentos de seu professor de técnica de
pintura, Bishoff Culm, e das experiências divisionistas realizadas no atelier de Burger, Anita
buscou descobrir a regra regente da harmonia das cores, estendendo estes estudos aos
espaços livres e aos contidos pelas linhas, bem como às sombras. Anita descreveu assim
seu aprendizado:
“Aí foi que procurei obter o máximo de efeito, no mínimo da forma e da cor. Nesta experiência não
deve haver hesitações, dúvidas, arrependimentos ou fraquezas. Nesta arte a inspiração inicial deve
ser conservada a todo custo, seja sacrificando tempo, ou o que for preciso. Fiz uma pequena
dissertação sobre estes pontos técnicos, porque acho necessário explicar o que nos leva à
compreensão do chamado mistério da Arte Moderna. Como vimos, é questão de muito espírito de
curiosidade, de iniciativa, de um grande amor pela forma e pela cor, e não de tantos anos de
freqüência nas escolas. A Pintura, como a escultura é o resultado de muita inspiração que é sempre o
fator mais importante. Em qualquer escola para bem pintar é necessário muito trabalho. O que
sempre acompanha todas as técnicas ou escolas é um cuidadoso senso de equilíbrio. Este é sempre
imprescindível. (...)
O estopim tinha mesmo pegado fogo. Compreendi que pintar, depois de absorvidas as primeiras
bases estruturais, era o mesmo que fazer poesia, música. A Pintura, que é arte, deve ser livre, bela,
completamente plástica, moldável para poder mostrar o caráter e a intenção da idéia que inspira o
artista, emocionando ao ponto de realizar o Milagre: a obra de arte. Aliás, arte não é milagre, mas sim
a própria natureza da vida. A arte é um reflexo de Deus.”
35
Anita retornou ao Brasil em maio de 1914, antes da eclosão da Primeira Guerra Mundial (em
julho de 1914). Desta forma, a artista regressou inebriada pelo universo artístico europeu,
sem contudo ser marcada pelos horrores da guerra ou pela “Academia” decadente que
34
MALFATTI, Anita. Conferência realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 1951 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 263
35
Ibidem. p.264 e 265
90
ainda preconizava a arte clássica. Sua família, considerando seus quadros ainda crus,
propiciou sua ida aos Estados Unidos para que pudesse dar continuidade aos seus estudos.
Chegando a Nova York, Anita ingressou na Independence School of Art, onde o professor
era o artista-filósofo Homer Boss, fato determinante para seu futuro. O ambiente da escola
era congregador, com artistas plásticos, escultores, poetas, dançarinos, coreógrafos,
boêmios, etc., vivendo e trabalhando em conjunto, preocupando-se apenas com a “Arte”. Na
temporada de 1915-1916, a escola recebeu grandes expoentes da arte européia refugiados
da guerra na Europa, como Marcel Duchamp, de forma que Anita pôde presenciar o
surgimento da Arte Moderna na América. Evento marcante em sua trajetória de estudos e
aprimoramento na pintura foi a visita a Monhegan Island, na costa da Nova Inglaterra,
durante o verão. Homer Boss sempre conduzia seus alunos a esta ilha de vida simples,
envolta em neblina e circundada por rochedos. Pintando ao ar livre durante o dia, a Arte era
discutida, debatida, vivida e criticada pelos alunos, e após dois meses de trabalho, Anita
retornou a Nova York trazendo consigo A estudante russa, O homem amarelo, O japonês e
A mulher de cabelos verdes, dentre outros (quadros que seriam posteriormente expostos em
São Paulo em 1917). Anita assim descreve a arte que produzia: Eu nunca havia imitado a
ninguém; esperava com alegria que surgisse dentro da forma e da cor aparente, a
mudança; eu pintava num diapasão diferente e era essa música da cor que confortava e
enriquecia minha vida.”.
36
Retornando ao Brasil em agosto de 1917, expôs sua produção à sua família, que reagiu
negativamente àquela nova expressão, o que muito a desapontou. Anita de fato pintava em
um diapasão diferente daquele a que a sociedade paulistana estava acostumada. Este
acontecimento acabou por tirar o ânimo de Anita em voltar a exibir seus trabalhos, o que
36
MALFATTI, Anita. Conferência realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 1951 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 267
91
quase afastou Malfatti do cenário artístico, não fosse a insistência de Di Cavalcanti e
Arnaldo Simões Pinto. Persuadida, Anita aceitou expor.
Então, em uma sala térrea na Rua Líbero Badaró, cedida pelo Conde de Lara, Anita
inaugurou sua grande Exposição, que se estendeu de dezembro de 1917 a fins de janeiro
de 1918. Seus quadros, em um primeiro momento, tiveram ótima aceitação, com oito deles
sendo vendidos nos primeiros dias. Porém, o artigo escrito por Monteiro Lobato no Estado
de São Paulo, chamado Paranóia ou mistificação”, de teor altamente crítico e contrário à
produção de Anita, pôs fim à calmaria e à aceitação da exposição, clamando a opinião
pública contra o trabalho da artista.
A atitude de Monteiro Lobato, ao invés de sepultar o embrião da Arte Moderna no Brasil, fez
com que esta ganhasse defensores inflamados que logo trataram de erguer seus escudos
contra a sova verbal de Lobato. Destacaram-se neste momento Di Cavalcanti, Arnaldo
Simões Pinto, Guilherme de Almeida, Menotti Del Picchia e, sobretudo, Oswald de Andrade
que, em artigo publicado no Jornal do Comércio, defendeu não somente a artista mas
principalmente a idéia nova.
Desta forma, a polêmica surgida e os debates travados por meio dos veículos de
comunicação da época acabaram por introduzir a discussão a cerca da Arte Moderna no
cotidiano cultural paulistano. Quer adeptos da tradição ou da revolução estética, fato é que o
cenário artístico brasileiro iniciava a partir deste momento sua transformação, com o
questionamento sobre a perpetuação da arte acadêmica e a introdução de um novo
conceito: o Moderno.
Deve-se ressaltar que houve em 1913 uma exposição de pequenos estudos de Lasar
Segall. No entanto, não se pode associar a tal evento o despertar do interesse pela Arte
Moderna no Brasil visto que ela não suscitou qualquer tipo de questionamento ou levante,
92
chegando a ser elogiada pelo Estado de São Paulo (o que denota a falta de um elemento
revolucionário), muito embora os trabalhos apresentados contivessem em si a centelha
moderna. Mario de Andrade escreveu a cerca desta exposição:
Tudo será posto a lume um dia... e, no caso que trato com o maior desinteresse pessoal (pois que
não fui eu quem criou coisíssima nenhuma, e, com a maior imparcialidade) pois que ambos são
companheiros de luta e vida, Anita Malfatti se afirmará na sua posição legítima de despertadora do
movimento moderno. A prova acaciana de qualquer revolução e suas fogueiras cruentas ou
incruentas, é a luta, a briga. Eu desafio quem quer que seja a produzir documentos que denunciem
diante da exposição de 1913 o menor prurido da revolta, a menor consciência sequer de um
‘movimento’ o menor ataque, o menor ódio e, em principal, a menor arregimentação
.”.
37
O que se após a Exposição de Malfatti é a reunião de intelectuais entusiastas em torno
da causa moderna, formando um grupo de constantes discussões que só tenderia a crescer.
Embora não houvesse uma estética definida e um movimento propriamente configurado,
havia a consciência de que modificações eram necessárias e que os cânones culturais até
então aceitos sem contestação deveriam ser revistos. O academicismo, através do
parnasianismo, era maciçamente atacado, embora a forma de fazê-lo ainda estivesse muito
atrelada à estética da escrita tradicional, justamente por se tratar de um período de transição
e adaptação. A bandeira do nacionalismo começava a ser erguida, sobretudo após a
entrada do Brasil na guerra, e o futurismo de Marinetti aparecia como exemplo maior de
rebelião e progresso.
Nestes anos que precedem a Semana de Arte Moderna de 1922 viu-se a aclamação do
nacionalismo, e até de um caboclismo como uma última reverência à áurea era agrária
paulista, visto que o universo cultural já principiava a se render ao progresso de São Paulo e
à sua era industrial cada vez mais consolidada. A São Paulo era dada a messiânica tarefa
de modificar o Brasil, visto que a cidade era vista como o carro-chefe da federação, o que
37
MALFATTI, Anita. Conferência realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 1951 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 269
93
elevava ainda mais a importância dada à arte paulista. A adesão ao grupo de Victor
Brecheret, recém vindo da Europa, foi de extrema importância pois serviu como fonte de
inspiração e renovação dos ânimos dos modernistas. A escolha de seu monumento como
forma de homenagem aos bandeirantes por parte do então governador Washington Luiz foi
vista como a primeira vitória oficial do modernismo, e sobretudo da arte paulista, muito
embora esta sua obra, particularmente, não chocasse tão radicalmente a tradição
acadêmica. Mário de Andrade assim descreve este período de descobertas e
experimentações:
Durante essa meia zia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados, vivendo numa
união iluminada e sentimental das mais sublimes. Isolados do mundo ambiente, caçoados, evitados,
achincalhados, malditos, ninguém não pode imaginar o delírio ingênuo de grandeza e convencimento
pessoal com que reagimos. O estado de exaltação em que vivíamos era incontrolável. Qualquer
página de qualquer um de nós jogava os outros a comoções prodigiosas, mas aquilo era genial! (...)
Nisso talvez as teorias futuristas tivessem uma influência única e benéfica sobre nós. Ninguém
pensava em sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se imaginava precursor nem
mártir: éramos uma arrancada de heróis convencidos. E muito saudáveis
.”.
38
Neste momento houve uma dicotomia entre a opinião pública: os defensores do
academicismo e os defensores do modernismo. Os academicistas opunham-se às obras
dos modernos, reunindo a todos sob a qualificação de “futuristas”, desde Brecheret, Di
Cavalcanti, Anita Malfatti, Mário de Andrade, Villa-Lobos, etc. Do outro lado, Oswald de
Andrade, Menotti Del Picchia, Cândido Motta Filho e Sérgio Milliet assumiram a ponta de
lança dos modernistas, utilizando-se dos jornais como meio de veiculação dos ideais
modernos. A denominação de “futuristas” utilizada indiscriminadamente aos artistas, embora
a rigor estivesse equivocada, foi por eles em muitos momentos não aceita mas bem-
vinda pois, na busca da afirmação de uma estética de reação, tal categorização servia como
fuste contra o Parnasianismo engessado e dominante.
38
ANDRADE, Mário de. Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 240 e 241
94
Desta forma, havia no ar em fins de 1921 um estado de exaltação que clamava por um
movimento revolucionário mais amplo. Embora existissem as discussões travadas por meio
dos jornais, havia a necessidade de atingir um público mais amplo e de forma definitiva.
Para abalar a apatia cultural da burguesia paulista e solapar os alicerces petrificados da
Academia era necessário um evento impactante e arrebatador. Estava configurado o
contexto que propiciaria o surgimento da idéia de uma Semana de Arte Moderna.
95
Capítulo 3
Primeira fase do Modernismo (1922-1924): a busca de uma nova
estética
96
3.1. Semana de Arte Moderna de 22: o Moderno em altos brados
Torna-se difícil levantar com precisão o nome daquele que tenha sugerido pela primeira vez
a realização de uma Semana de Arte Moderna em São Paulo, dado o ambiente
efervescente em que viviam os intelectuais da época. O moderno muito vinha sendo
defendido e atacado nos jornais, gerando grande polêmica; alguns versos já haviam sido
declamados até no Rio de Janeiro; Mário de Andrade havia escrito seu célebre Paulicéia
Desvairada (embora ainda não publicado). Teria a idéia partido de Graça Aranha? De Di
Cavalcanti? Fato é que a Semana pôde se realizar graças ao empenho e o apadrinhamento
de Paulo Prado, evidenciando um estreito relacionamento entre os modernistas e a
oligarquia cafeeira, que será discutido mais a diante. Paulo Prado, juntamente com René
Thiollier e Graça Aranha, conseguiu o Teatro Municipal de São Paulo para os artistas
modernistas pelo período de uma semana, viabilizando o evento que hoje representa o
início e a afirmação da nova escola modernista no Brasil. Desta forma, foi inaugurada
oficialmente a página da Arte Moderna dentro da história brasileira.
O Teatro permaneceu aberto na semana de 11 a 18 de fevereiro, com a realização de
espetáculos nos dias 13, 15 e 17. As atividades previstas abarcavam as mais diversas
áreas: poesia, literatura, música, pintura, escultura, arquitetura. As exposições, palestras e
recitais ocupavam os períodos da tarde e da noite, com o Municipal atingindo uma lotação
memorável em todos os dias da Semana. A manifestação do público era de indignação e
desaprovação perante o que viam e ouviam, de forma que ao final de cada sessão pilhas de
bilhetes e cartas anônimas eram deixadas no teatro em uma demonstração de revolta e
discordância. As vaias foram volumosas e marcaram quase que a totalidade das
apresentações.
97
Fig. 22 – Capa do catálogo da Exposição da Semana de Arte Moderna de 1922
Logo no saguão de entrada do Municipal havia uma exposição de plantas e uma maquete
de Georg Prsirembel para Taperinha na Praia Grande. Antonio Moya contribuiu com a
exposição de dezesseis estudos de arquitetura feitos quando do início da discussão a cerca
da Arte Moderna. Victor Brecheret trouxe doze peças e W. Haerberg, cinco. No campo da
pintura participaram Anita Malfatti com doze telas a óleo e oito peças entre gravuras e
98
desenhos, Di Cavalcanti com doze obras entre óleos e ilustrações (deve-se ressaltar que
nesta época este grande artista brasileiro gozava de prestígio e reputação, o que veio a
engrandecer ainda mais os feitos da Semana), John Graz com oito pinturas decorativas,
Martins Ribeiro com quatro desenhos, Zina Aita com oito telas, J. F. de Almeida Prado com
dois desenhos, Ferrignac com uma natureza-morta e Vicente Rego Monteiro com dez telas.
A demais, destacam-se as participações de Tácito de Almeida, Rubens Borba de Moraes,
Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Sergio Milliet, Manuel Bandeira,
Ronald de Carvalho, dentre outros.
39
Segue abaixo a descrição dos acontecimentos por
parte de Anita Malfatti, testemunha que foi da Semana de 22.
Segunda-feira, 13 de fevereiro de 1922.
Primeira Parte: Conferência de Graça Aranha. ‘A emoção estética na arte moderna’. Música de Ernani
Braga. Poesias de Guilherme de Almeida e Ronald de Carvalho.
Guilherme leu seus versos no palco. Ronald não subiu pois não estava com muita coragem de
enfrentar tal público.
Segunda Parte: concerto sinfônico de Villa-Lobos.
Foi a noitada das surpresas. O povo estava muito inquieto, mas não houve vaias. O Teatro
completamente cheio. Os ânimos estavam fermentando; o ambiente eletrizante, pois que, não sabiam
como nos enfrentar. Era o prenúncio da tempestade que arrebentaria na segunda noitada.
Leu também, Ronald de Carvalho, na segunda parte desta noitada, sua conferência: ‘A pintura e a
escultura moderna no Brasil’. Esta conferência é de grande importância documentária. Ignoro se ela
se acha no acervo do saudoso poeta. A seguir ouvimos música brasileira.
Não tenho anotado qual o dia em que Guiomar Novaes, nossa grande virtuose, executou um concerto
inteiro de músicas brasileiras modernas. Hoje considero este gesto de Guiomar Novaes coisa muito
extraordinária para a época.
Quarta-feira: Segundo Recital. Palestra e poesias de Menotti Del Picchia. Trechos em prosa de
Oswald de Andrade.
Recordo-me que o barulho começou logo de início com a chegada do Menotti. Foi aumentando e
explodiu com Oswald de Andrade. Quanto mais a vaia subia com silvos, gritaria e apupos, mais calmo
e feliz ficava o Oswald e sua voz muito suave mas de registro muito intenso foi aumentando de
volume até terminar tudo o que queria dizer.
Ao relembrar fico ainda admirada com a compreensão que teve Oswald do poder de uma revolta
estética e da maneira como soube subjugá-la e vencê-la.
39
MALFATTI, Anita. Conferência realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 1951 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 271, 272
99
Seguiram-se Cândido Motta Filho, Luiz Aranha, Sergio Milliet, Tácito de Almeida, Ribeiro Couto, Plínio
Salgado, então crítico teatral, Agenor Barbosa e Mário de Andrade.
Mário não tinha voz para empolgar as massas. Sua voz desaparecia no barulho das vaias e gritaria.
Resolveu pois ler sua conferência: A escrava que não é Isaura’ da escadaria do saguão. Pegou pois
o pessoal de surpresa e leu, nervoso mas resolvido, sua célebre conferência. O saguão e escadaria
ficaram repletos e quando o pessoal da vaia deu com o que estava se passando recomeçou mas logo
cessou pois o Mário tinha terminado. Foi com esta conferência que apareceram as primeiras idéias
modernas na literatura paulista. Como já mencionei, na ‘Semana’, tudo era sincero. Daí o inédito do
acontecimento.
Sexta-feira. Dia 17.
à tarde muita gente estava a postos para não sair mais. Os bilhetes e cartas insultuosas ou
ridículas tinham aumentado de número. Pena foi não termos guardado alguma coisa concernente a
esta parte, pois teria hoje muita graça. Aliás estávamos completamente felizes apesar dos protestos e
raivas que nos rodeavam. Uma idéia nova sempre provoca raiva aos que não compreendem, aos
ignorantes que se zangam diante do desconhecido. O Villa-Lobos executou um magnífico concerto
sinfônico. Certas partes foram de abalar as paredes do velho Municipal.
Assim terminou a Semana. Os artistas aos poucos se refizeram da emoção tida durante toda a festa.
Também outro grupo de poetas, então não modernistas, mas simpatizantes, como Correia Junior,
Cleómenes Campos, Silvio Floreal e outros, com nossos amigos de fora, estavam todas as
tardes. Saíam um pouquinho mas logo voltavam. Não podíamos mais ir embora...”.
40
A iniciativa de se fazer uma Semana de Arte Moderna em São Paulo foi deveras importante
para que esta nova estética e visão de mundo vingassem em terras brasileiras, uma vez que
ela foi responsável por uma mudança de escala de divulgação das propostas dos
modernistas. Embora muitas das obras apresentadas na ocasião não fossem inéditas (visto
que a maioria dos artistas não teve tempo hábil para produzir peças exclusivas para a
exposição), o que ratifica que a produção moderna paulista se iniciou com a exposição de
Anita Malfatti, a Semana ganha a importância de um marco histórico, um divisor de águas,
pois não apenas levanta um questionamento sobre uma nova estética que possivelmente
seria mais adequada à nova São Paulo moderna que se configurava, mas contesta toda a
“instituição arte” que era então produzida nos mesmos moldes desde os fins do séc. XVIII.
Desta forma, os artistas assumiram sua condição de vanguarda e, conscientes de seu papel
40
MALFATTI, Anita. Conferência realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo. 1951 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 272, 273 e 274
100
histórico junto à atualização da cidade de São Paulo, uniram forças para tirar a Arte
Moderna da situação de marginalidade na qual as instituições tradicionais a confinavam,
reivindicando a ela o status de única forma de expressão capaz de representar São Paulo
em sua nova era. Annateresa Fabris bem sintetiza o papel dos artistas modernos durante a
Semana:
Descontente com a situação cultural vigente no país, que era dominada pela presença do realismo
em suas versões parnasiana, regionalista e acadêmica, o grupo modernista age como um grupo de
pressão, desfechando um ataque sistemático não apenas contra as linguagens na moda, mas
sobretudo contra as instituições artísticas e seus códigos cristalizados. Dentro dos limites de uma
modernização nascente e de uma sociedade em vias de transformação, os modernistas contestam
tanto o sistema de produção artístico-cultural e seus modos de fruição quanto a pouca atenção que
essa produção dedicava à nova paisagem urbana e a seus novos atores
.”.
41
Embora os embates travados por meio dos jornais paulistanos tivessem colocado no
cotidiano da cidade a questão da expressão moderna, foi com a Semana de 22 que os
artistas modernistas conseguiram introduzir sua causa de maneira contundente no principal
local de encontro da elite social: o Teatro Municipal de São Paulo. E é justamente nesta
apresentação inusual das obras e não no seu caráter em si que reside a “pedra de toque” da
Semana e que a fez suplantar em importância os anos de frenética produção que a separam
da exposição de Anita Malfatti. O objetivo não era somente expor uma nova estética, mas
sim desafiar o gosto consolidado e propor um novo olhar para a cidade segundo o qual a
modernização crescente se uniria ao modernismo a fim de forjar a modernidade. Desta
forma, a Semana de 22 foi “o primeiro esforço organizado para olhar o Brasil moderno.”.
42
Mas tal processo seria talvez inviável sem o apadrinhamento que houve por parte da
oligarquia cafeeira. À primeira vista pode parecer paradoxal o apoio que este setor da
41
FABRIS, Annateresa (org). Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas. Mercado de Letras, 1994 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 334
42
BATISTA, Marta Rossetti e BRITO, Ronaldo. Modernismo. Rio de Janeiro. Funarte, 1986 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 310
101
sociedade, sempre tão aliado à tradição e ao conservadorismo da política cafeeira, deu ao
grupo de intelectuais que defendiam o progresso, a urbanização, a atualização e a
modernização, mais associados às transformações da indústria que à era do café. De fato
foi o surto industrial que trouxe à cidade a imigração, o crescimento urbano, um
cosmopolitismo comparável aos grandes centros europeus, e conceitos como rapidez,
economia, racionalização e síntese. Mas é preciso observar que muitos dos mais
importantes aristocratas do café já haviam começado a se aventurar no terreno industrial,
diversificando sua produção entre o produto agrícola e o industrial, e se os capitães-de-
indústria” ricos imigrantes europeus que ascenderam economicamente graças ao trabalho
fabril paulista não tinham vínculos com esta terra e não lutavam pelo poder político, uma
vez que se satisfaziam com o sucesso econômico, os barões do café buscavam uma
legitimação para seu poder e para a importância da tradição de seus sobrenomes.
43
À
medida que os modernistas valorizavam o caráter nacional brasileiro, em oposição à
importação de modelos europeus ocorrida anteriormente, revestiam de magnitude o
passado e a tradição brasileira. Desta forma, a aristocracia paulista abrigou os intelectuais
modernistas em inúmeros salões de periodicidade semanal em uma relação de mútua
autoproteção.
Assim sendo, a partir de tais acontecimentos e ambiente social, São Paulo assumiu a ponta
de lança cultural do país. Embora o Rio de Janeiro fosse uma cidade de caráter muito mais
internacional, visto ser porto de mar e capital do país, São Paulo era muito mais moderna
espiritualmente, pois a economia cafeeira e a conseqüente atividade industrial a obrigaram a
se manter viva comercialmente e atualizada tecnicamente com o restante do mundo. No
entanto, São Paulo apresentava uma ingenuidade e um provincianismo muito maiores que a
cidade carioca, o que foi bastante benéfico para a implantação do modernismo, como nos
conta Mário de Andrade:
43
ANDRADE, Mário de. Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 241
102
Ora no Rio malicioso, uma exposição como a de Anita Malfatti podia dar reações publicitárias, mas
ninguém se deixava levar. Na o Paulo sem malícia, criou uma religião. Com seus Neros também...
O artigo ‘contra’ do pintor Monteiro Lobato, embora fosse um chorrilho de tolices, sacudiu uma
população, modificou uma vida
.”.
44
A partir da Semana de 22, o que se viu foi um modernismo buscando estruturar uma
plataforma teórica que permitisse aos artistas a discussão de sua própria poética. Uma vez
que tal discussão inexiste no campo das artes plásticas, pois cabe aos críticos de arte a
tarefa reflexiva, tal incumbência recaiu sobre o campo literário. Seus intelectuais tornaram-
se os teóricos do movimento, lançando sua plataforma de ação, sua declaração de
intenções.
44
ANDRADE, Mário de. Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 239
103
3.2. A busca de uma nova estética e a luta contra o passadismo
Como foi visto, a Semana de Arte Moderna de 1922 figura na história brasileira como o
marco a partir do qual se procurou estruturar todo um movimento cultural que objetivava
interferir de maneira definitiva na produção artística nacional, dando início a um Movimento
Moderno no Brasil, propriamente dito.
Ao se analisar este movimento, verifica-se que ele apresentou um projeto estético
(modificações operadas na linguagem) e um projeto ideológico (atado ao pensamento de
sua época) que, embora muitas vezes se apresentassem independentes um do outro,
estavam intimamente ligados e associados entre si. Como poderá ser visto mais
detalhadamente a seguir, o projeto estético do modernismo visava, em suma, a renovação
dos meios e a ruptura da linguagem tradicional, enquanto que seu projeto ideológico estava
ligado à criação de uma consciência do país e ao desejo e busca de uma expressão artística
nacional. No entanto, esta segregação do estético e do ideológico de maneira simplista e
radical torna-se perigosa pois o projeto estético, entendido como uma crítica à velha
linguagem pela proposta de uma nova linguagem, já contém em si um projeto ideológico.
João Luiz Lafetá bem explica esta questão:
O ataque às maneiras de dizer se identifica ao ataque às maneiras de ver (ser, conhecer) de uma
época; se é na (e pela) linguagem que os homens externam sua visão de mundo (justificando,
explicitando, desvelando, simbolizando ou encobrindo suas relações reais com a natureza e a
sociedade) investir contra o falar de um tempo será investir contra o ser desse tempo.”.
45
Porém, observando o transcorrer do Movimento ao longo do tempo, é possível detectar
momentos em que cada um desses projetos teve predominância nas atitudes dos
modernistas. Desta forma, adotando a Semana de 22 como o marco zero do Movimento,
sua primeira fase estende-se até 1924 - com predominância do projeto estético -, sua
45
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. São Paulo. Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p.20
104
segunda fase de 1924 a 1929 - quando o caráter nacionalista surge mais forte -, e sua
terceira fase a partir de 1930 - quando seu projeto ideológico mescla-se com os interesses
do Estado.
Neste primeiro momento assumidamente modernista de nossa história, a produção cultural
se comportou como uma continuidade daquilo que já vinha sendo produzido nos anos que
se situam entre a exposição de Malfatti e a Semana de 22. Toda a celeuma travada por
meio dos jornais, muitas vezes proposital para que os ideais modernistas ganhassem mais e
mais evidência nos meios de comunicação, pôde ser aos poucos posta de lado pois os
modernistas, com o advento da Semana, já tinham se afirmado e conquistado um espaço
que não mais seria abandonado.
A partir de então todos os esforços objetivavam configurar uma forte oposição ao
passadismo e elaborar uma nova linguagem capaz de representar a nova realidade
paulistana. Para tal, as artes plásticas e a literatura ganharam grande evidência e
importância, sempre amparadas pelos conceitos lançados pelas vanguardas européias.
Mario de Andrade, em sua célebre conferência, assim se referiu ao Modernismo pretendido:
Não cabe neste discurso de caráter polêmico, o processo analítico do movimento modernista.
Embora se integrassem nele figuras e grupos preocupados de construir, o espírito modernista que
avassalou o Brasil, que deu o sentido histórico da Inteligência nacional desse período, foi destruidor.
Mas esta destruição, não apenas continha todos os germes da atualidade, como era uma convulsão
profundíssima da realidade brasileira. O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista
impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: O direito permanente à pesquisa
estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência
criadora nacional.”
.
46
Como São Paulo se apresentava então aos seus habitantes e atentos observadores? A
cidade, além de passar por profundas transformações físicas decorrentes do seu
46
ANDRADE, Mário de. Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 244
105
crescimento e urbanização (descritas anteriormente), viu sua estrutura sócio-econômica
alterar-se pouco a pouco. A efervescência dos anos 20 configurou-se como o ápice de um
processo de transformações que se iniciaram no final do século XIX - o fim da escravidão, o
emprego do trabalho assalariado, o surto de industrialização, as correntes imigratórias, as
agitações operárias do princípio do século -, resultando em um quadro muito mais complexo
que aquele do sistema agrário-exportador herdado do Império. Embora a oligarquia cafeeira
mantivesse seu poderio, a burguesia e a classe média encontravam-se em franca ascensão,
com o proletariado procurando se fazer ouvir. Apesar de todas essas alterações, o quadro
político permanecia praticamente inalterado: a política dos governadores a serviço das
oligarquias, a política financeira protecionista do café em detrimento das indústrias. Toda
esta situação, em completo estado de ebulição, eclodiria na Revolução de 1930 mas, até lá,
interferiu diretamente na produção cultural paulistana e nacional.
Ser moderno, em um primeiro momento, significava opor-se a toda produção de caráter
passadista, vinculada à estética do período imperial, em um gesto francamente destruidor. À
elite alienada em sua falsa realidade parisiense-tupiniquim era contraposta e escancarada a
realidade da cidade de São Paulo, seu povo e seu eminente progresso. A estética vinculada
ao academicismo era frontalmente combatida pois, à medida que era empregada sem
reflexão em uma repetição sem fim e perpetuando fórmulas de muitos séculos, barrava
ou ao menos inibia a pesquisa estética e formal, e, conseqüentemente, o direito de
atualização. Além disso, e um tanto inconscientemente, nossa arte principiava a introjetar
em si as questões da técnica e da ciência: embora estas ainda fossem incipientes no Brasil,
já configuravam como um novo parâmetro orientador. O poema Os Sapos de Manuel
Bandeira, datado de 1918 e lido por Ronald de Carvalho durante a Semana de Arte
Moderna de 1922, figura como importante exemplo da busca da desmoralização do
academicismo e, neste caso, mais precisamente, do parnasianismo:
Os Sapos
Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- “Meu pai foi à guerra!”
- “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado
Diz: -“Meu cancioneiro
É bem martelado!
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Eu lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A fôrmas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas...
Urra o sapo-boi:
-“Meu pai foi rei!” – “Foi!”
- “Não foi !” – “Foi!” – “Não foi!”.
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- “A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo.”
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- “Sei!” – “Não sabe!” – “Sabe!”.
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio...
E muito embora os modernistas se voltassem contra os modelos importados, sobretudo os
da “Belle Époque” européia por terem sido estes os preferidos do Império, é justamente na
Europa que os modernos vão buscar a inspiração, tirando de seus principais modelos e
ícones. Isto porque, se o processo de modernização proposto por nossos artistas
107
embasava-se em uma proposta de atualização, acompanhando o processo de
modernização sentido nas demais instâncias da vida nacional, sendo São Paulo a região de
maior prosperidade material do país não poderia deixar de se comunicar e se atualizar
culturalmente em relação aos grandes centros irradiadores dos movimentos de renovação,
isto é, a Europa.
Contudo, esta busca no Velho Continente dos exemplos a serem seguidos não implicava em
sua aceitação e aplicação direta, de maneira impensada e sem reflexão, embora a situação
de dependência cultural com relação aos centros europeus persistisse. Havia o desejo de
acertar o passo com a modernidade trazida pela Revolução Industrial - em que pese o
modelo da corrente futurista - mas também se sabia que as raízes brasileiras, sobretudo
indígenas e negras, necessitavam de um tratamento estético, o que conduziu o movimento a
um certo primitivismo. Este primitivismo também esteve presente em muitas realizações das
correntes artísticas européias, porém elas buscavam inspiração nas civilizações da África e
Ásia, em suas estatuetas e máscaras. O elemento diferenciador reside no fato de que o
primitivismo realizado na Europa buscava em elementos externos e distantes conceitos de
pureza e síntese que pudessem quebrar a orientação naturalista e helênica das artes,
enquanto o primitivismo ocorrido em terras brasileiras voltava-se para suas raízes internas,
em um gesto de redescobrimento e auto-afirmação.
Apesar da produção modernista brasileira se assemelhar em muitos aspectos à produção da
Europa, não se pode dizer que o modelo de importação cultural permaneceu inalterado em
comparação com o que ocorria anteriormente. No passado, o que se via era a implantação
de uma falsa cultura no seio da sociedade brasileira, através sobretudo de seus traços
bacharelescos que se pretendiam altamente cultos, o que conduzia a uma nulidade
intelectual, invalidando nossa cultura enquanto força de expressão nacional. Porém, como
108
bem explica Mario Pedrosa, o que aconteceu no caso do Modernismo não pode ser
considerado uma importação cultural, o que vem a contradizer Mario de Andrade
47
:
Entretanto, cabe deter-nos aqui sobre a noção de importação. rio exagera. Não houve
importação, que significa receber produtos, artigos, idéias, prontinhos em folha, bem acondicionados,
para consumo direto. Mas a revolução de arte moderna o estava industrializada nem cristalizada
para exportar-se como mercadoria. Era ainda como é hoje um movimento em marcha. O que
houve não foi importação nem mesmo modas, quanto mais de espírito. O espírito não pode jamais
ser transformado em algo materializado, acabado, como um objeto de exportação. Mas uma de suas
faculdades mais específicas é o terrível poder de contaminação que possui. E foi o que aconteceu.
Os jovens, poetas e artistas de 1922, foram contaminados pelo espírito moderno que absorvia na
Europa a sensibilidade e a inteligência dos seus artistas mais capazes e dotados
.”.
48
Assim sendo, o modernismo brasileiro em sua primeira fase apoiou-se fortemente nas
correntes artísticas européias (mormente nos experimentos formais do futurismo) extraindo
delas seus principais conceitos e modelos - do surrealismo tomaram a concepção
irracionalista da existência e do expressionismo emprestaram processos gerais de
deformação da natureza e do homem. Porém, deve-se destacar que neste primeiro
momento modernista brasileiro nossos artistas, ávidos que estavam de novidades,
acabaram por se apropriar mais da forma que do conteúdo proveniente da Europa, o que
vem a reforçar a característica vitalmente estética do período.
Neste momento, o texto de João Luiz Lafetá apresenta interessante síntese sobre os
principais aspectos e circunstâncias da primeira fase do Modernismo no Brasil, o que
justifica sua transcrição abaixo:
A experimentação estética é revolucionária e caracteriza fortemente os primeiros anos do
movimento: propondo uma radical mudança na concepção da obra de arte, vista não mais como
47
“(...) o espírito [modernista] e suas modas foram diretamente importados da Europa.”. (ANDRADE, Mário de.
Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in ________. Mestres do
modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 239)
48
PEDROSA, Mario. Conferência realizada no Auditório do Ministério de Educação, Rio de Janeiro, 1952 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 280
109
mimese (no sentido em que o Naturalismo marcou de forma exacerbada esse termo) ou
representação direta da natureza, mas como um objeto de qualidade diversa e de relativa autonomia,
subverteu assim os princípios da expressão literária. Por outro lado, inserindo-se dentro de um
processo de conhecimento e interpretação da realidade nacional - característica de nossa literatura -
não ficou apenas no desmascaramento da estética passadista, mas procurou abalar toda uma visão
do país que subjazia à produção cultural anterior à sua atividade. Nesse ponto encontramos aliás
uma curiosa convergência entre projeto estético e ideológico: assumindo a modernidade dos
procedimentos expressionais o Modernismo rompeu a linguagem bacharelesca, artificial e idealizante
que espelhava, na literatura passadista de 1890-1920, a consciência ideológica da oligarquia rural
instalada no poder, a gerir estruturas esclerosadas que em breve, graças às transformações
provocadas pela imigração, pelo surto industrial, pela urbanização (enfim, pelo desenvolvimento do
país) iriam estalar e desaparecer em parte. Sensível ao processo de modernização e crescimento de
nossos quadros culturais, o Modernismo destruiu as barreiras dessa linguagem oficializada’,
acrescentando-lhe a força ampliadora e libertadora do folclore e da literatura popular. Assim, as
‘componentes recalcadasde nossa personalidade vêm à tona, rompendo o bloqueio imposto pela
ideologia oficial; curiosamente, é a experimentação de linguagem, com suas exigências de novo
léxico, novos torneios sintáticos, imagens surpreendentes, temas diferentes, que permite - e obriga -
essa ruptura.
Tal coincidência entre o estético e o ideológico se deve em parte à própria natureza da poética
modernista. O Modernismo brasileiro foi tomar das vanguardas européias sua concepção de arte e as
bases de sua linguagem: a deformação do natural como fator construtivo, o popular e o grotesco
como contrapeso ao falso refinamento academista, a cotidianidade como recusa à idealização do
real, o fluxo da consciência como processo desmascarador da linguagem tradicional. Ora, para
realizar tais princípios os vanguardistas europeus foram buscar inspiração, em grande parte, nos
procedimentos técnicos da arte primitiva, aliando-os à tradição artística de que provinham e, por essa
via, transformando-a; mas no Brasil - já o notou Antonio Candido - as artes negra e ameríndia
estavam tão presentes e atuantes quanto a cultura branca, de procedência européia. O senso do
fantástico, a deformação do sobrenatural, o canto do cotidiano ou a espontaneidade da inspiração
eram elementos que circundavam as formas acadêmicas de produção artística. Dirigindo-se a eles e
dando-lhes lugar na nova estética o Modernismo, de um só passo, rompia com a ideologia que
segregava o popular - distorcendo assim nossa realidade - e instalava uma linguagem conforme à
modernidade do século.
”.
49
49
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o modernismo. São Paulo. Duas Cidades; Ed. 34, 2000, p.21, 22 e 23
110
3.3. A necessidade de uma arquitetura para os
novos tempos: os escritos de Rino Levi e Warchavchik
A inserção de Rino Levi e Warchavchik neste momento de nossa narrativa pode parecer
imprópria por estar deslocada dentro de nossa linha do tempo: uma vez que suas atuações
enquanto defensores e estandartes da arquitetura moderna tiveram início em 1925, seus
nomes deveriam figurar na segunda etapa de nosso modernismo, porém o caráter desta
atuação faz com que seja mais adequada sua vinculação à primeira fase do movimento. Isto
se porque a arquitetura teve um desenvolvimento mais tardio que as demais esferas
artísticas, de forma que ela em 1925 - quando os demais setores da arte já se preocupavam
com questões de aprimoramento, evolução e afirmação - ainda se ativesse com questões de
primeira ordem, tal como a busca pelo direito de atualização estética. Isto porque havia
então uma grande distância entre a São Paulo veloz e sua representação neoclássica.
O Brasil havia assistido pouco à Exposição comemorativa do Centenário de
Independência, ocorrida no emblemático ano de 1922 no Rio de Janeiro. Concomitante a tal
Exposição ocorreu um Congresso Internacional de Arquitetos que trazia em sua pauta
preocupações com a questão da habitação operária, a regulamentação da profissão de
arquiteto e a iminente discussão sobre qual estilo arquitetônico deveria ser adotado no país.
Segundo Candido Malta Campos,
Tal debate envolvia mais que uma mera opção estilística. Arquitetos, engenheiros e construtores
procuravam inserir-se no debate nacional brasileiro, e a questão estética era vista como indissociável
dos aspectos histórico e social da nacionalidade. A polêmica em torno dos estilos implicava a
definição do caráter a ser conferido ao processo de construção nacional, simbolizado pela orientação
arquitetônica a ser adotada na edificação brasileira
.”
50
50
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 204
111
Desta forma, a Exposição do Centenário dividiu-se entre a aclamação tradicionalista da
Academia francesa, representada dentro de um ecletismo desfigurante, e a defesa da
linguagem neocolonial. O Palácio das Festas, um dos principais edifícios da Exposição,
integrava através de seu estilo eclético a linguagem da Beaux-Arts parisiense com
elementos de simbologia nacionalista, tão adequados ao evento comemorativo, de forma
que apresentava capitéis pseudojônicos compostos por cabeças de índios, dentre outras
deturpações. para o Palácio das Indústrias, edifício de igual importância, foi adotado o
estilo neocolonial pois ele partiu da adaptação do antigo Arsenal de Guerra, datado do
século XVIII, o que fez com que a edificação autenticamente colonial passasse a se
assemelhar a um convento mexicano ou missão californiana.
simbologia nacionalista associada ao neoclássico parisiense
Fig. 23 – projeto de Archimedes Memória – Palácio das Festas
uma releitura para o colonial
Fig. 24 – projeto de Archimedes Memória – Palácio das Indústrias
No entanto São Paulo, como já foi visto anteriormente, apresentava um crescimento e
progresso incongruentes com esta eterna reafirmação dos valores da economia agro-
exportadora, o que conduziu aos eventos da Semana de Arte Moderna de 1922. Desta
forma, o cenário que envolveu e acolheu Warchavchik trazia em si desejos de modernização
112
muito mais latentes que o Rio de Janeiro. O próprio Monteiro Lobato chegou a se referir ao
estilo eclético, então predominante, como uma confusão inominável, onde todos os estilos
se mesclariam em balbúrdia atordoante, como um poema de mal jeitosas adaptações de
versos alheios, tirados de todas as línguas e de todas as raças.”.
51
Então, em 15 de outubro de 1925, o jornal O Estado de São Paulo reproduziu em suas
páginas texto do jovem Rino Levi, que a essa época ainda cursava a real Escola Superior de
Arquitetura, de Roma. Tal texto, extraído de uma carta enviada pelo brasileiro que se
encontrava na Europa, intitulava-se A Arquitetura e a Estética das Cidadese tinha como
objetivo elencar as benesses de uma nova prática arquitetônica que surgia no Velho
Continente e que seria capaz de despertar o Brasil de suas manifestações neoclássicas
incondizentes com sua realidade e tradição, inserindo o país no circuito da modernidade e
do progresso.
A Arquitetura e a Estética das Cidades abordava as transformações então em curso na
Europa, chamando a atenção para princípios como praticidade e economia, inerentes aos
novos tempos, em contraposição a um neoclassicismo deslocado da realidade. Afirmava
que o classicismo deveria ser reinterpretado à luz da atualidade, e não copiado, de tal forma
que os estudos na formação do arquiteto deveriam refletir o “espírito de seu tempo”.
Defendia que o projeto da edificação deveria ser considerado juntamente com seu entorno e
contexto urbano, não sendo tratado como um objeto estanque e desconectado, chamando a
atenção para a necessidade de um estudo da estética das cidades. Neste sentido, relatava
estudos realizados na França, Alemanha e Itália sobre as cidades e possíveis soluções para
seus problemas, evidenciando o surgimento de uma nova ciência, ainda sem nome, mas
fundamental e indissociável da função do arquiteto junto à sociedade. Por fim, falava da
importância de se observar os estudos que estavam sendo desenvolvidos no exterior a fim
51
FABRIS, Annateresa (org). Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas. Mercado de Letras, 1994 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 295
113
de poder aplicá-los no Brasil, porém adaptando-os para nossa realidade local fazendo uso
do gênio criativo e inventivo do brasileiro e sob a inspiração de nossas belezas naturais.
Abaixo, seguem transcritos alguns trechos do texto de Rino Levi:
A arquitetura, como arte mãe, é a que mais se ressente dos influxos modernos devido aos novos
materiais à disposição do artista, aos grandes progressos conseguidos nestes últimos anos na
técnica da construção e sobretudo ao novo espírito que reina em contraposição ao neoclassicismo,
frio e insípido. Portanto, praticidade e economia, arquitetura de volumes, linhas simples, poucos
elementos decorativos, mas sinceros e bem em destaque, nada de mascarar a estrutura do edifício
para conseguir efeitos que no mais das vezes são desproporcionados ao fim, e que constituem
sempre uma coisa falsa e artificial.
Sente-se ainda a influência do classicismo que, aliás, hoje, se estuda melhor procurando sentir e
interpretar o seu espírito evitando-se a imitação, já bastante desfrutada, dos seus elementos.
(...)
Não há arte onde não há o artista, mas o jovem, nos anos em que se forma e adquire uma
personalidade, deve ser posto em contato com necessidades modernas para que se eduque no
espírito de seu tempo e possa constituir uma alma sensível e correspondente ao gosto dos seus
contemporâneos.
(...)
As ruas paralelas e perpendiculares, como são projetadas quase sempre hoje nas cidades novas, na
maior parte das vezes resultam monótonas e nem sempre correspondem às necessidades práticas.
Sobre este assunto não se pode estabelecer uma teoria; discute-se muito principalmente na França e
na Alemanha mas até hoje a idéia predominante é que é preciso examinar e resolver caso por caso.
Na Alemanha a estes estudos foi dado o nome de política da cidade; na França alguns dos mais
valentes arquitetos dedicam-se completamente a este novo ramo da arte da cidade; na escola
Superior de Arquitetura de Roma há uma cátedra de ‘Edelizia’ regida pelo distinto arquiteto Marcello
Piacentini, uma das autoridades mais competentes da Itália sobre o assunto.
É preciso estudar o que se fez e o que se está fazendo no exterior e resolver os nossos casos sobre
estética da cidade com alma brasileira. Pelo nosso clima, pela nossa natureza e costumes, as nossas
cidades devem ter um caráter diferente das da Europa.
Creio que a nossa florescente vegetação e todas as nossas inigualáveis belezas naturais podem e
devem sugerir aos nossos artistas alguma coisa de original dando às nossas cidades uma graça de
vivacidade e de cores, única no mundo.
52
52
LEVI, Rino. A arquitetura e a estética das cidades. In SCHWARTZ, Jorge (org). Da antropofagia a Brasília:
Brasil 1920-1950. São Paulo. FAAP, 2002. p.505
114
No entanto, apesar da importância dos conceitos defendidos por Rino Levi em seu texto,
maior destaque no cenário arquitetônico paulista teve o Manifesto de Gregori Warchavchik.
Isto se deu não exatamente pelo Manifesto em si, cuja repercussão foi modesta, como será
visto adiante, mas pela seqüência de escritos de Warchavchik nos meios de comunicação
da época, bem como por sua posterior atuação prática a partir da edificação de residências
de caráter moderno, denotando uma acentuada e contínua defesa dos princípios da
arquitetura moderna no Brasil, agindo como um educador da população, preparando-a para
as transformações inevitáveis que se seguiriam.
Gregori Warchavchik nasceu em 1896 na cidade de Odessa, Rússia, onde fez seus
primeiros estudos de arquitetura. Em 1918 deixou sua cidade natal com destino a Roma,
matriculando-se no R. Istituto Superiore di Belle Arti a fim de completar seus estudos e obter
seu diploma de arquiteto, o que ocorreu em 1920 dentro, como era de se esperar pelo
próprio nome do instituto, da tradição da cultura clássica. Posteriormente passou a trabalhar
como ajudante de Marcello Piacentini, arquiteto italiano de grande reconhecimento
profissional e aliado à concepção clássica da arquitetura, tendo ficado a seu cargo a
construção do Teatro de Savóia, em Florença.
No entanto, apesar de sua formação e atuação profissional estarem muito atreladas à
Academia, Warchavchik soube olhar à sua volta, apreender as transformações que ocorriam
na Europa e absorver as novas ideologias apregoadas pelas correntes de vanguarda,
tornando-se defensor de uma expressão moderna para a arquitetura, diferentemente de seu
mestre Piacentini.
Warchavchik aportou em São Paulo em 1923 a fim de trabalhar para a Companhia
Construtora de Santos, responsável por grandes construções no território nacional e dirigida
por Roberto Simonsen. Encontrou uma cidade que, embora tivesse um ritmo frenético de
crescimento, apresentava um pensamento e um modo de vida ainda muito provincianos, os
115
quais os intelectuais da Semana de 22 custavam a combater. Geraldo Ferraz assim
descreve o panorama arquitetônico encontrado por Warchavchik em São Paulo:
(...) Warchavchik viu-se, porém, sozinho, num meio acanhado, de modesto início industrial, numa
cidade em que as residências mais avançadas eram os bangalôs com que se renovava a paisagem
urbana, sem caráter nenhum, no índice maior desta vitrina de horrores dos palacetes da avenida
Paulista, cujo mau gosto eclético e arbitrário, mesmo hoje ainda pode ser verificado nos
remanescentes. Os mestres de obras, como já referimos, arvoravam-se naquele tempo em arquitetos;
arquitetos estrangeiros, de espírito academizante, mal adaptavam sua medíocre informação do que
aprenderam nas escolas de belas-artes, e muita cópia de inventários históricos da arquitetura
despaisada ocorreu nestas plagas. Os próprios empreiteiros, os ‘gamelas’, encaminhavam suas
plantas à Prefeitura. Não havia qualquer distinção entre engenheiro-civil e arquiteto, mas naquele
tempo a profissão não existia oficialmente. dez anos depois da chegada de Warchavchik ao Brasil
é que a profissão de arquiteto foi codificada. Dominava, pois, o empirismo, quer da parte dos
‘gamelas’, quer mesmo do lado de muitos engenheiros-civis, pois não tinham obrigação de saber
arquitetura
.”.
53
Em um primeiro momento sua carreira profissional manteve-se restrita aos trabalhos
estandardizados da Construtora, situação que seria alterada a partir de seu casamento
com Mina Klabin, em 1927, quando pôde abrir seu próprio escritório e, com a construção da
residência do casal à Rua Santa Cruz, inaugurar uma nova página dentro da história da
arquitetura brasileira. No entanto, foi em 1925, ano da publicação de seu Manifesto, que
Warchavchik deu os primeiros passos em direção à defesa de uma nova expressão
arquitetônica, mais condizente com a São Paulo que ele via a cada dia se desenvolver mais.
Publicado originalmente em italiano, idioma a que estava bastante familiarizado, no pequeno
jornal da colônia em São Paulo Il Piccolo com o título de “Futurismo?”, em 14 de junho de
1925, logo foi traduzido para o português e publicado em de novembro de 1925 no jornal
carioca Correio da Manhã com o título “Acerca da Arquitetura Moderna”. Embora não tenha
levantado grande interesse no público, sua existência é de vital importância por ser o
53
FERRAZ, Geraldo. Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil: 1925 a 1940. São Paulo.
Museu de Arte de São Paulo, 1965. p. 21
116
primeiro texto de difusão doutrinária da arquitetura moderna no país. A partir de então, a
discussão sobre o futuro do cenário arquitetônico nacional não se restringiria mais aos
estilos eclético ou neocolonial: a idéia de uma arquitetura moderna havia sido lançada.
Abaixo são transcritos trechos de seu texto a fim de que seja possível ao leitor observar os
conceitos lançados por Warchavchik no seio da sociedade paulistana de então, bem como a
idéia de arquitetura por ele defendida.
O caráter histórico da noção de beleza
“A nossa compreensão de beleza, as nossas exigências quanto à mesma, fazem parte da
ideologia humana e evoluem incessantemente com ela, o que faz com que cada época histórica
tenha sua lógica da beleza. Assim, por exemplo, ao homem moderno, não acostumado às formas
e linhas dos objetos pertencentes às épocas passadas, eles parecem obsoletos e às vezes
ridículos.
Observando as quinas do nosso tempo, automóveis, vapores, locomotivas, etc., nelas
encontramos, a par da racionalidade da construção, também uma beleza de formas e linhas.
Verdade é que o progresso é tão rápido que tipos de tais máquinas, criadas ainda ontem, nos
parecem imperfeitos e feios. Essas máquinas são construídas por engenheiros, os quais, ao
concebê-las, são guiados apenas pelo princípio de economia e comodidade, nunca sonhando em
imitar algum protótipo. Esta é a razão por que as nossas máquinas modernas trazem o
verdadeiro cunho de nosso tempo
.”
54
O descompasso da decoração inútil do arquiteto versus a racionalidade adequada do
engenheiro
“A coisa é muito diferente quando examinamos as máquinas para habitação - os edifícios. Uma
casa é, no final das contas, uma máquina cujo aperfeiçoamento técnico permite, por exemplo,
uma distribuição racional de luz, calor, água fria e quente, etc. A construção desses edifícios é
concebida por engenheiros, tomando-se em consideração o material de construção de nossa
época, o cimento armado. Já o esqueleto de um tal edifício poderia ser um monumento
característico da arquitetura moderna, como o são também pontes de cimento armado e outros
trabalhos, puramente construtivos, do mesmo material. E esses edifícios, uma vez acabados,
seriam realmente monumentos de arte da nossa época, se o trabalho do engenheiro construtor
não se substituísse em seguida pelo arquiteto decorador. É que, em nome da Arte, começa a
ser sacrificada a arte. O arquiteto, educado no espírito das tradições clássicas, não
compreendendo que o edifício é um organismo construtivo cuja fachada é sua cara, prega uma
54
WARCHAVCHIK, Gregori. Arquitetura do século XX e outros escritos. São Paulo. Cosac Naify, 2006. p. 33
117
fachada postiça, imitação de algum velho estilo, e chega muitas vezes a sacrificar as nossas
comodidades por uma beleza ilusória. Uma bela concepção do engenheiro, uma arrojada sacada
de cimento armado, sem colunas ou consoles postiços assegurados com fios de arame, os quais
aumentam inútil e estupidamente tanto o peso quanto o custo da construção.
(...) É uma imitação cega da técnica da arquitetura clássica, com essa diferença que o que era
tão só uma necessidade construtiva tornou-se agora um detalhe inútil e absurdo. (...) Tudo isso
era lógico e belo, mas não é mais
.”
55
Qual a real importância de se estudar a cultura clássica
“O arquiteto moderno deve estudar a arquitetura clássica para desenvolver seu sentimento
estético e para que suas composições reflitam o sentimento do equilíbrio e medida, sentimentos
próprios à natureza humana. Estudando a arquitetura clássica, poderá ele observar quanto os
arquitetos de épocas antigas, porém fortes, sabiam corresponder às exigências daqueles tempos.
Nunca nenhum deles pensou em criar um estilo, eram apenas escravos do espírito do seu tempo.
Foi assim que se criaram espontaneamente os estilos de arquitetura conhecidos, não somente
por monumentos conservados - edifícios -, como também por objetos de uso familiar
colecionados pelos museus. E é de se observar que esses objetos de uso familiar são do mesmo
estilo que as casas onde se encontram, havendo entre si perfeita harmonia
.”
56
A incongruente adoção de estilos na vida moderna
“Para que a nossa arquitetura tenha seu cunho original, como o têm as nossas máquinas, o
arquiteto moderno deve o somente deixar de copiar os velhos estilos, como também deixar de
pensar no estilo. O caráter da nossa arquitetura, como o das outras artes, não pode ser
propriamente um estilo para nós, os contemporâneos, mas sim para as gerações que nos
sucederão. A nossa arquitetura deve ser apenas racional, deve basear-se apenas na lógica, e
esta lógica devemos opô-la aos que estão procurando por força imitar na construção algum estilo.
É muito provável que este ponto de vista encontre uma oposição encarniçada por parte dos
adeptos da rotina. Mas também os primeiros arquitetos do estilo ‘renaissance’ bem como os
trabalhadores desconhecidos que criaram o estilo gótico, os quais nada procuravam senão o
elemento lógico, tiveram que sofrer uma crítica impiedosa de seus contemporâneos. Isso não
impediu que suas obras constituíssem monumentos que ilustram agora os álbuns da história da
arte
.”
57
O novo critério de beleza para o arquiteto moderno
“O arquiteto moderno deve amar sua época, com todas as suas grandes manifestações do
espírito humano, como a arte do pintor moderno ou poeta moderno deve conhecer a vida de
todas as camadas da sociedade.
55
WARCHAVCHIK, Gregori. Arquitetura do século XX e outros escritos. São Paulo. Cosac Naify, 2006. p.34 e
35
56
Ibid., p.35
57
Ibid., p. 36 e 37
118
Tomando por base o material de construção de que dispomos, estudando-o e conhecendo-o
como os velhos mestres conheciam sua pedra, não receando exibi-lo no seu melhor aspecto do
ponto de vista da estética, fazendo refletir em suas obras as idéias do nosso tempo, a nossa
lógica, o arquiteto moderno saberá comunicar à arquitetura um cunho original, cunho nosso, o
qual será talvez tão diferente do clássico como este o é do gótico.
Abaixo as decorações absurdas e viva a construção lógica, eis a divisa que deve ser adotada
pelo arquiteto moderno.”
58
Embora seu Manifesto não tenha recebido na época a atenção merecida - contribui para tal
o fato de ter sido publicado em meio a uma coluna sobre moda de Paris, anúncios sobre
automóveis, sapatos e produtos farmacêuticos - suas palavras foram assimiladas por
público interessado e bem definido, o dos intelectuais modernistas, o que lhe rendeu a
publicação de um artigo/entrevista na revista Terra Roxa e outras terras, em 1926, figurando
entre importantes expoentes do movimento literário modernista de então.
Warchavchik, com o decorrer do tempo, valendo-se de seu prestígio enquanto arquiteto
estrangeiro e diplomado em Roma, publicará uma série de artigos em jornais, endereçados
ao grande público leigo, a fim de difundir em uma escala maior suas crenças arquitetônicas,
buscando convencer essa população de que a arquitetura moderna seria a única expressão
capaz de se adequar à realidade daquela sociedade. Seu intuito é atingido sobretudo a
partir do momento em que passa da esfera estritamente teórica à pratica, com a construção
de sua primeira residência de cunho moderno, fato que levantou uma grande e previsível
celeuma nos meios de comunicação, chamando a atenção e impulsionando a produção de
arquitetura moderna no Brasil.
58
WARCHAVCHIK, Gregori. Arquitetura do século XX e outros escritos. São Paulo. Cosac Naify, 2006. p.37 e
38
119
3.4. Arquitetura em São Paulo: ecletismos e o escritório de
Ramos de Azevedo
Os textos que defendiam uma linguagem moderna para a arquitetura paulista ganham maior
destaque e importância quando confrontados com o cenário arquitetônico de então. A essa
época, São Paulo encontrava-se imersa em caos, em meio a realizações de caráter eclético
e neocolonial.
Tal Ecletismo já perdurava na cidade desde a virada do século, caracterizado pela
somatória de elementos oriundos de diversos estilos - tal como gótico, art-nouveau, barroco,
etc. - ao já consagrado estilo neoclássico desde muito tempo importado da Europa. A
tradição neoclássica foi inaugurada em São Paulo em 1878 através da construção do Grand
Hotel, primeiro edifício a romper com a tradição local bastante provinciana, mas foi a partir
do monumento comemorativo da Independência, no bairro do Ipiranga, que ele se firmou na
cidade. Neste sentido, parece pertinente a definição que Bruand faz dos estilos históricos a
fim de melhor compreender a situação em que se encontrava a arquitetura em São Paulo:
No Brasil, costuma-se englobar sob o rótulo ‘neoclássico’ todos os edifícios onde se pode notar o
emprego de um vocabulário arquitetônico cuja origem distante remonta à Antiguidade greco-romana.
Portanto o que se convencionou chamar de neoclassicismo, na realidade não passa de uma forma de
ecletismo, onde é possível encontrar justapostos todos os estilos que utilizam colunas, cornijas e
frontões, da Renascença italiana ao Segundo Império francês, passando pelo classicismo, pelo
barroco e pelo verdadeiro neoclássico de fins do século XVIII e primeira metade do XIX. Assim, nessa
categoria de obras o existe qualquer unidade profunda, mas apenas um certo parentesco, devido
ao espírito acadêmico que marca as diversas construções desse tipo.
59
A “adoção” do Ecletismo se deu de forma natural à medida que a parcela da população mais
abastada, ao viajar para a Europa, entrava em contato com formas arquitetônicas que os
fascinavam, tais como chalés, palacetes, etc., de forma que, ao retornar ao Brasil, se
59
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.33
120
incumbiam de reproduzir aqui os cenários encontrados no Velho Continente. No entanto, os
estilos históricos eram copiados sem a preocupação de se compreender o meio circundante
que havia gerado inicialmente tais soluções e, conseqüentemente, sem que houvesse uma
reflexão sobre a adequação ou não destes estilos ao meio brasileiro. Assim sendo, devido à
arbitrariedade com que os diversos elementos eram justapostos em uma mesma
construção, o que se viu foi a transformação da cidade em um grande mostruário onde
figuravam estilos das mais diversas procedências.
A arquitetura realizada em São Paulo trazia consigo fortes características italianas, ao
contrário da carioca, marcada sobretudo pela inspiração francesa. Isto se deu porque no Rio
de Janeiro os ensinamentos implantados pela Missão Francesa, trazida em 1816, ainda se
faziam sentir de maneira acentuada na formação dos jovens arquitetos. Isto sem mencionar
a importância de Paris, capital do mundo, enquanto centro irradiador de tendências. Por
outro lado, São Paulo contava com uma grande parcela de imigrantes italianos em sua
população, os quais, sendo de baixa renda, eram incorporados à construção civil enquanto
artesãos, pedreiros e mestres-de-obras, contribuindo com novos conhecimentos
provenientes dos canteiros de obra de seu país; aqueles que, com o passar dos anos,
haviam acumulado riquezas, compunham uma clientela abastada que possibilitava
financeiramente a vinda de arquitetos da Itália, de forma a buscar “diretamente na fonte”
profissionais capazes de realizar uma arquitetura que lembrasse a da sua terra natal. Assim
sendo, havia na capital paulista toda uma ambiência italiana que favorecia que a arquitetura
aqui realizada se inspirasse fortemente nos períodos áureos do Renascimento e do
Maneirismo.
Deste período, o escritório de maior destaque foi o de Ramos de Azevedo. Responsável
pelo projeto e execução dos mais importantes edifícios públicos de São Paulo, tais como o
Teatro Municipal (1911), o Palácio das Indústrias (1911), a Escola Normal Caetano de
Campos (1894), a Escola Politécnica (1898), o Asilo do Juqueri (1898), o Quartel da Polícia
121
(1892)
60
, o Edifício de Correios e Telégrafos (1920), dentre outros, configurou-se como o
maior expoente da arquitetura neoclássica / eclética da cidade, embora também tenha se
dedicado ao estilo neocolonial a partir do momento em que Ricardo Severo foi incorporado à
equipe do escritório. Ao longo de sua carreira, Ramos de Azevedo contou também com
colaboradores italianos, destacando-se Domiziano Rossi, Cláudio Rossi, Felisberto Ranzini
e Adolfo Borione, o que ratifica a importância conferida à arquitetura italiana no período. As
contribuições trazidas por estes arquitetos possibilitaram a saída de Ramos de Azevedo de
um estilo neoclássico mais restrito, presente sobretudo no início de sua carreira, para um
estilo eclético mais prolixo e variado.
61
a presença de um ecletismo eloqüente nos principais edifícios públicos de São Paulo
Fig. 25 – projeto de Ramos de Azevedo – Laboratório da escola Politécnica
Seu escritório também se dedicou à execução de residências particulares visto que a
parcela mais abastada da população, vivendo um momento de pujança econômica
60
CARVALHO, Maria Cristina Wolff de. Ramos de Azevedo. São Paulo. Edusp, 2000
61
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.39
122
proporcionada pelo café, oferecia muitas oportunidades de trabalho. Porém, o arquiteto que
mais se destacou neste nicho do mercado foi Battista Bianchi, responsável pela construção
de muitas das mansões na Avenida Paulista. No que se refere à habitação particular
aristocrática de uma maneira geral, o Ecletismo foi empregado de maneira desordenada,
abrindo caminho para realizações exóticas e bizarras, dependendo do sonho ou fantasia do
proprietário.
Porém, a partir de 1914, o estilo eclético começou a dividir seu espaço no cenário
arquitetônico paulista com o estilo neocolonial, primeira manifestação da arquitetura
brasileira na tentativa do reconhecimento de seu valor e sua originalidade. Paradoxalmente,
seu maior defensor não foi um arquiteto brasileiro, mas sim português: Ricardo Severo.
Grande estudioso da arquitetura tradicional portuguesa, foi buscar inspiração nos modelos
provenientes de seu país, em um gesto bastante próximo daquele dos arquitetos italianos.
No referido ano de 1914, ele proferiu conferências onde defendeu a estética neocolonial,
propícia ao Brasil uma vez que seria condizente com as condições físico / climáticas locais,
bem como proporcionaria uma volta à tradição nacional, evitando que as construções
buscassem sua legitimação a partir da tradição de outros países. Desta forma, reincorporou
ao vocabulário arquitetônico brasileiro elementos como varandas, largos beirais, muxarabis,
etc., porém não mais os empregando de maneira simplória como no período colonial, mas a
partir das técnicas construtivas contemporâneas, gerando projetos variados e dinâmicos,
como é possível observar na casa que construiu para si no Guarujá.
123
a possibilidade de um neocolonial mais arrojado a partir de técnicas construtivas modernas
Fig. 26 – residência de Ricardo Severo no Guarujá
Outro arquiteto de destaque junto às realizações do neocolonial foi Victor Dubrugas. Como
sua atuação profissional dentro deste estilo principiou-se em 1915, é possível deduzir que
tenha sido diretamente influenciado pelas conferências proferidas por Ricardo Severo. No
entanto, o fato de não possuir o mesmo conhecimento aprofundado, quase que
arqueológico, que Severo possuía a respeito das arquiteturas tradicional portuguesa e
colonial brasileira, contribuiu para que suas realizações se restringissem ao emprego formal
do vocabulário neocolonial, sem que houvesse uma maior preocupação em respeitar os
princípios compositivos deste estilo ou reproduzir fielmente a decoração e os materiais do
período colonial. Desta forma, percebe-se que Dubrugas, que anteriormente ao neocolonial
havia se dedicado a realizações de caráter eclético, utilizou-se do neocolonial como mais
um estilo disponível no mercado que poderia ser incorporado ao Ecletismo e justaposto a
outros estilos a fim de obter mais possibilidades de variação de repertório. Todos os novos
elementos que surgiam no cenário arquitetônico paulista logo eram incorporados pelo
Ecletismo e transformados em adereços que objetivavam mascarar as construções das mais
diferentes formas.
124
Coexistiam também na cidade outros estilos, tais como o neogótico e o art-nouveau, que
apresentaram realizações mais pontuais e menos numerosas. O neogótico foi adotado
sobretudo nas construções de caráter religioso por bem simbolizar o apogeu da Igreja, como
pode ser visto na nova Catedral de São Paulo. o art-nouveau foi bastante empregado no
projeto de residências e, embora na Europa estivesse associado à tentativa de produzir uma
linguagem condizente com a era moderna das máquinas, através da síntese das artes com
uma produção estandardizada, aqui ele figurou como mais um estilo decorativo à disposição
dos arquitetos, configurando-se como mais um modismo da camada abastada sempre em
contato com as últimas tendências européias.
resgatado da Idade Média, um exemplar gótico revisitado em plena São Paulo do século XX
Fig. 27 – projeto de Max Hehl – nova catedral de São Paulo
125
Desta forma, enquanto São Paulo despertava nos campos da literatura, artes plásticas e
música para uma linguagem moderna que rompia com as realizações do passado e
instaurava uma nova forma de olhar para a sociedade e para o contexto urbano, sua
arquitetura permanecia anacrônica, presa a realizações de tradições alheias e pertinentes a
contextos completamente diversos da realidade brasileira. Perseverava a necessidade
sócio-psicológica de aproximar-se ao máximo da estética das cidades européias de molde a
legitimar a “civilização” aqui existente e incluí-la no circuito internacional.
126
Capítulo 4
Segunda fase do Modernismo (1924-1930): nacionalismo e
brasilidade
127
4.1. Segunda fase do Modernismo: a busca da brasilidade adormecida
Neste segundo momento de nosso modernismo, os intelectuais e artistas nele atuantes
trouxeram, com vigor, um novo aspecto para nossa produção: a busca de sua brasilidade.
Desta forma, o caráter ideológico ganhou relevo dentro da produção artística do período,
que se estende de 1924 a 1930, orientado por um forte sentimento de nacionalismo, que
encontrará diferentes expressões com cada um de nossos artistas. Para que se possa
compreender esta mudança ocorrida, alguns fatores devem ser observados, tais como o
momento político então vivido, a produção das correntes de vanguarda européias e o
material ideológico já presente na cultura nacional.
M
OMENTO POLÍTICO
: embora não seja possível definir com exatidão o ponto de interseção
entre o surgimento de um forte nacionalismo em nosso modernismo e o momento político
de então, faz-se necessário observar que a ocorrência de tal fato justamente no ano de
1924 não pode configurar um mero acaso. Em julho do referido ano, São Paulo viu-se
invadida pelas forças rebeldes chefiadas por Miguel Costa e Isidoro Dias Lopes por um
período de aproximadamente um mês, o que interferiu consideravelmente na sua
sociedade. A Revolução de 1924 trouxe para as ruas da cidade intensos tiroteios entre as
tropas federais e o grupo de rebeldes, além de grande algazarra e desordem, de forma
que a população mais abastada acabou por se retirar da capital. Assim sendo, sua vida
industrial, comercial e institucional viu-se paralisada. Os rebeldes traziam consigo
intenções de implantar um novo regime que corrigisse o caráter autoritário e socialmente
injusto do então vigente, questionando duramente o poder econômico dos grandes
comerciantes e industriais. Embora sua passagem por São Paulo tenha sido relativamente
breve - visto que se deslocaram para o Paraná a fim de unir forças com o contingente de
Luís Carlos Prestes e partir em varredura do território brasileiro para libertar seus
esquecidos sertões - deixou na capital paulista o embrião de um questionamento sobre as
bases de nossa cultura. A arte então produzida estaria endereçada a quem? Uma vez que
128
a batalha estética estava sendo vencida pelos artistas modernistas, visto sua paulatina
porém gradativa aceitação por parte da sociedade, era preciso abandonar a postura elitista
e alienada das grandes cidades para se voltar a um Brasil vasto em dimensões territoriais
e culturais que estava sendo aos poucos descortinado aos olhos de nossos intelectuais.
V
ANGUARDA EUROPÉIA
: a partir de nosso padrão de importação cultural perpetuado por
séculos, não é possível negar que tenhamos sido, novamente, influenciados pela
produção artística das correntes de vanguarda européias. Estas se caracterizavam então
pela busca do primitivo através do estudo de culturas exóticas, como as asiáticas e
africanas, que traziam expressões não contaminadas pelos padrões clássicos e
acadêmicos. O Brasil, através de seus intelectuais, também partiu em busca do seu
primitivo, encontrando-o nos temas e nas linguagens indígena e negra. Assim sendo,
expressando um eco das realizações da Europa, nosso modernismo foi conduzido ao
encontro das realidades arcaicas ou primordiais da formação brasileira, supostamente
puras e imaculadas, onde seria possível detectar, em tese, a verdadeira feição de nosso
país.
C
ULTURA NACIONAL
: no período que antecede imediatamente o surgimento de nosso
modernismo, é possível detectar em nossa produção cultural traços de um nacionalismo, o
que pode ser verificado a partir da produção de autores consagrados, como Graça Aranha
e Monteiro Lobato, por exemplo. Graça Aranha, que participou da Semana de Arte
Moderna de 1922 emprestando a ela seu prestígio e notoriedade, exercia grande
influência sobre os artistas modernistas e a essa época já havia escrito “A estética da vida”
e “Metafísica brasileira”, onde buscou encontrar o traço definidor de nosso povo a partir da
análise da miscigenação dos povos índio, negro e português. Monteiro Lobato, autor do
célebre personagem “Jeca Tatu” (1918), também se preocupou com a realidade brasileira,
porém voltando seu olhar não para a aristocracia ou o sertão, mas sim para a população
do decadente Vale do Paraíba, o que dotou sua produção de um caráter regionalista, e até
129
ruralista. Apesar de sua indisposição para com os modernistas, seu prestígio literário faz
crer que os intelectuais adeptos do modernismo tivessem contato com sua obra, de forma
que esta estivesse presente na literatura de base de nossos intelectuais. Euclides da
Cunha e seu memorável “Os sertões”, de 1902, também assume grande importância à
medida que revela um Brasil até então desconhecido da população das grandes cidades,
ampliando os horizontes daqueles que viviam em suas capitais europeizadas.
E quais seriam as características deste nacionalismo introduzido pelos modernistas em
nossa produção cultural de maneira tão impositiva? Infelizmente, os intelectuais a ele
dedicados não foram capazes de, neste momento, investigar e desdobrar as contradições
presentes entre as classes sociais de então, dedicando-se a mitos e esteriótipos como
sangue, força, terra, raça, nação, contribuindo, inconscientemente, para a construção de um
ideário ufanista que após a Revolução de 1930 conduziria ao mascaramento dos reais
problemas brasileiros. No entanto, ele foi responsável pelo levantamento de grandes valores
de nossa história nacional, uma vez que propunha uma volta às origens, bem como a
perpetuação de nosso folclore a partir da catalogação de inúmeras lendas, crenças,
canções, etc., que eram de grande valor à nação que pretendia, a partir da compreensão de
seu passado e da formação de seu povo, projetar-se no futuro.
Houve igualmente a valorização da criação de uma “língua brasileira” de forma a
desenvolver um instrumento de trabalho que proporcionasse uma expressão com
identidade, então adequada à busca do elemento nacional. Assim sendo, esta nova
linguagem modernista, que unia e mesclava elementos nacionalistas à quebra da estrutura
da linguagem passadista, apresentava como principais características: liberdade formal (a
partir da utilização do verso livre e o abandono das formas fixas - como o soneto -, a
incorporação da fala coloquial, ausência de pontuação - infringindo a gramática normativa -,
simultaneidade de cenas como na pintura cubista, execução de colagens caóticas de
idéias), atitude combativa diante de valores que consideravam ultrapassados, valorização de
130
fatos do cotidiano, incorporação das conquistas do progresso, reescritura de textos do
passado, aproximação entre a linguagem da poesia e da prosa, metalinguagem (visto que
questionavam a própria língua literária).
62
Dentro desta busca de qual seria a essência do nacional, de sua brasilidade, surgiram
divergências entre os intelectuais modernistas, causando uma segregação no Movimento.
Embora este possa em seu segundo período, de uma maneira geral, ser caracterizado por
uma forte tendência nacionalista, esta foi expressa de diferentes formas, com cada artista
abordando o problema sob um ponto de vista e sugerindo uma solução, um
encaminhamento, para se atingir a brasilidade almejada. Assim sendo, surgiram diversas
correntes dentro de nosso modernismo, a saber:
63
Corrente (anarco)primitivista: representada pela Poesia Pau-Brasil (1924) e pela
Antropofagia (1928) de Oswald de Andrade, contando também com a participação de
Antonio de Alcântara Machado e Raul Bopp;
Corrente nacionalista: abrangendo o grupo Verde-Amarelo (1925), a Escola da Anta
(1927), Movimento Nhengaçu Verde-Amarelo (1929) e o Movimento da Bandeira (1936),
do quais participaram Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia e Plínio Salgado;
Corrente regionalista: de Gilberto Freyre, Joaquim Inojosa e Jorge de Lima;
Corrente espiritualista: que girava em torno da Revista Festa e que contou com a
participação de Tasso da Silveira, Augusto Frederico Schmidt, Cecília Meireles e Murilo
Mendes.
62
FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco Marto. Língua e literatura. São Paulo. Editora Ática, 1995,
v.3, p.93 a 96
63
MATTOS, Geraldo; MEGALE, Lafayette. Português 2º grau. São Paulo. Editora FTD, 1990, v.3, p.39
131
A seguir, as principais correntes nacionalistas de nosso modernismo serão estudadas,
porém é importante observar a análise que Ronaldo Brito fez de nossa brasilidade e de
como ela se tornou então essencial para a definição de nosso modernismo a partir de 1924:
“(...)
Procurávamos acertar o compasso com uma história que, propositalmente, nos deixava para
trás. Apesar de todo escândalo e toda a crise, as vanguardas faziam sentido na Europa. Um sentido
às vezes negativo, escabroso até, mas afinal um sentido. Nós, a contrário, não fazíamos sentido: a
nossa razão de ser era a Europa. Por isto buscávamos um sentido com a nossa vanguarda - a
afirmação da identidade nacional, a brasilidade. Paradoxal modernidade: a de projetar para o futuro o
que tentava resgatar do passado. Enquanto as vanguardas européias se empenhavam em dissolver
identidades e derrubar os ícones da tradição, a vanguarda brasileira se esforçava para assumir as
condições locais, caracterizá-las, enfim. Este era o nosso ‘Ser’ moderno
.”
64
4.2. Oswald de Andrade: Manifesto Pau-Brasil e Antropofagismo
64
BATISTA, marta Rossetti; BRITO, Ronaldo. Modernismo. Rio de Janeiro. Funarte, 1986 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005, p.312
132
4.2. Oswald de Andrade: Manifesto Pau-Brasil e Antropofagismo
Oswald de Andrade foi o responsável pela inauguração de uma nova fase de nosso
modernismo, agora voltado de maneira intensa ao nacionalismo. Embora este aspecto já se
encontrasse presente na produção moderna brasileira, apresentava-se ainda de maneira
tímida e a partir de manifestações muito diversas, como as de Monteiro Lobato e Mário de
Andrade. Foi com o Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de 1924, que o modernismo brasileiro
passou a reivindicar como um todo a valorização de nossa nacionalidade como forma de
afronta ao modelo de importação da cultura européia, associada à busca do reconhecimento
internacional sobre os valores brasileiros. Desta forma, nosso modernismo superou sua fase
heróica de ruptura estética e adentrou em sua fase nacionalista.
No entanto, faz-se necessário compreender por que o nacionalismo apareceu neste
momento da trajetória do modernismo brasileiro de forma tão acentuada, tendo a seu favor
defesas tão acaloradas e um Manifesto imperativo. E, embora a pretensão de Oswald fosse
afastar o máximo possível a produção brasileira dos acontecimentos europeus, mais uma
vez, este importante e decisivo momento de nossa história está vinculado a eventos
ocorridos no Velho Continente.
Como foi visto anteriormente, havia na Europa uma forte corrente primitivista que
permeava as manifestações artísticas das correntes mais diversas. Sua fonte de inspiração
se encontrava nos países africanos, asiáticos e americanos, o que acabou por conferir ao
primitivismo europeu um caráter de exotismo que visava romper com a estética acadêmica
através da valorização da cultura do outro. Assim sendo, a França, país cuja cultura tornou-
se modelo copiado pelas mais variadas nações, abriu-se para a expressão de outros
continentes, abrigando muitos de seus artistas e incentivando-os a valorizar a própria
cultura, revendo processos de colonização histórica e questionando séculos de discurso
133
eurocêntrico. Muitos países foram assim nacionalizados a partir do cosmopolitismo
francês.
65
Isto se deu porque as correntes artísticas, sobretudo o Dadaísmo, Cubismo e Surrealismo,
almejavam romper com a moral coercitiva e a lógica reducionista no processo artístico.
66
Desta forma, a imagem do bárbaro índio e negro foi utilizada como símbolo de uma ruptura
artística onde a influência do intelecto seria dispensada através da devoração canibal da
tradição, dos valores moralistas e da arte burguesa. Assim, a arte se voltaria a um estado
natural e intuitivo, abrindo caminho para uma expressão anticivilizatória, irreverente e
agressiva. Adriano Bitarães Netto assim se refere à adoção do canibal como símbolo dentro
da arte européia:
Parodiando e ridicularizando a concepção de que o estrangeiro é sempre dotado de um primitivismo
animalesco, enquanto os europeus são, por excelência, os escolhidos para catequizar, educar,
higienizar e ordenar o mundo, os discursos satíricos, produzidos nos manifestos e obras literárias,
elegeram o canibal como ícone para transformar tais tabus no novo totem do ideário que se vinha
constituindo. Por ser ainda uma imagem que causava desconforto e pânico, o ritual antropofágico
passou a circular nas artes como um adequado instrumento de agressão para se criticar a sociedade
capitalista, a arte acadêmica e o conceito de civilização dos europeus. Segundo os intelectuais, a
antropofagia disfarçada que vinha ocorrendo na Europa era muito mais bárbara e selvagem do que a
praticada pelas tribos da América, da África e da Oceania
.”
67
Uma vez que os intelectuais brasileiros encontravam-se em constante contato com a
produção européia, é de se esperar que tais idéias primitivistas os afetassem, assim como
havia acontecido com o futurismo de Marinetti. No entanto, se no início de nosso
modernismo buscava-se uma atualização estética que permitisse ao Brasil estar no mesmo
compasso que a Europa, agora os artistas brasileiros se conscientizavam de que sua
produção não era inferior à estrangeira, mas sim um digno elemento de exportação.
65
NETTO, Adriano Bitarães. Antropofagia oswaldiana: um receituário estético e científico. São Paulo.
Annablume, 2004. p.19
66
Ibidem. p.23
67
Ibidem. p.27
134
Alicerçados pelos estudos da antropologia, psicanálise, filosofia e movimentos de vanguarda
europeus, nossos intelectuais descobriram que a nacionalidade não era uma postura de
mau-gosto, mais sim bem-vinda. O trecho abaixo, extraído de uma carta escrita por Tarsila
do Amaral à sua família, bem ilustra este momento:
“Paris, 19 de abril de 1923.
(...) Sinto-me cada vez mais brasileira: quero ser a pintora da minha terra. Como agradeço por ter
passado na fazenda a minha infância toda. As reminiscências desse tempo vão se tornando
preciosas para mim. Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas de
mato, como no último quadro que estou pintando. Não pensem que essa tendência brasileira na arte
é mal vista aqui. Pelo contrário. O que se quer aqui é que cada um traga contribuição do seu próprio
país. Assim se explicam o sucesso dos bailados russos, das gravuras japonesas e da música negra.
Paris está farta de arte parisiense. (...)”
68
Desta forma, quando Oswald de Andrade dirigiu-se à Europa, acabou por descobrir seu
próprio país, como nos conta Paulo Prado: (...) do alto de um atelier da Place Clichy -
umbigo do mundo -, descobriu, deslumbrado, a sua própria terra. A volta à pátria confirmou,
no encantamento das descobertas manuelinas, a revelação surpreendente de que o Brasil
existia.”
69
E foi em consonância com as realizações européias, e também muito tocado pela
publicação dos relatos produzidos pelos cronistas dos séculos XVI e XVII, como Pero Vaz
Caminha, Hans Staden, Jean de Léry, etc., que Oswald de Andrade produziu em 1924 o
Manifesto da Poesia Pau-Brasil, publicado no Correio da Manhã em 18 de março. A partir
deste momento, Oswald opôs-se frontalmente ao passadismo, mas não a um passado
genérico e sim ao seu lado “doutor” que escondia, dado o recorrente processo de
transplantação cultural, o verdadeiro passado brasileiro. Era preciso se regional, no sentido
68
AMARAL, Aracy. Tarsila: sua obra e seu tempo. São Paulo. Editora 34; Edusp, 2003 in ________. Mestres
do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005, p.176
69
BONET, Juan Manuel. Iluminações brasileiras. In SCHWARTZ, Jorge (org). Da antropofagia a Brasília:
Brasil 1920-1950. São Paulo. FAAP, 2002. p.18
135
de nacional, e puro em sua época. Para tal, foi necessário desconstruir a cultura brasileira,
excluindo a camada mistificadora de cultura importada, para então construir uma nova visão
da realidade, redescobrindo o país. Neste momento, seria possível ser moderno se se
fosse nacional. Dentro do combate à falsa cultura – a cultura importada – os principais alvos
do Manifesto foram o romantismo e o naturalismo enquanto ideais representativistas do
século passado. Abaixo alguns trechos do Manifesto da Poesia Pau-Brasil serão transcritos
a fim de representar suas idéias principais.
A poesia existe nos fatos. Os casebres de açafrão e de ocre nos verdes da Favela, sob o azul
cabralino, são fatos estéticos.
O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Pau Brasil. Wagner submerge ante os
cordões de Botafogo.
Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a
dança.
----------
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como
chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcadismos, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os
erros. Como falamos. Como somos.
----------
Não há luta na terra de vocações acadêmicas. Há só fardas. Os futuristas e os outros. Uma única luta
– a luta pelo caminho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau Brasil, de exportação.
----------
Houve um fenômeno de democratização estética nas cinco partes sábias do mundo. Instituíra-se o
naturalismo. Copiar. Quadro de carneiros que não fosse mesmo, não prestava. A interpretação no
dicionário oral das Escolas de Belas Artes queria dizer reproduzir igualzinho... Veio a pirogravura. As
meninas de todos os lares ficaram artistas. Apareceu a máquina fotográfica. E com todas as
prerrogativas do cabelo grande, de caspa e da misteriosa genialidade de olho virado o artista
fotógrafo.
Na música, o piano invadiu as saletas nuas, de folhinha na parede. Todas as meninas ficaram
pianistas. Surgiu o piano de manivela, o piano de patas. A Pleyela. E a ironia eslava compôs para a
Pleyela. Stravinsky.
A estatuária andou atrás. As procissões saíram novinhas das fábricas.
Só não se inventou uma máquina de fazer versos – já havia o poeta parnasiano.
----------
O trabalho contra o detalhe naturalista pela síntese; contra a morbidez romântica pelo equilíbrio
geômetra e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa.
136
----------
Uma nova perspectiva:
A outra, a de Paolo Ucello criou o naturalismo de apogeu. Era uma ilusão óptica. Os objetos distantes
não diminuíam. Era uma lei de aparência. Ora, o momento é de reação à aparência. Reação à cópia.
Substituir a perspectiva visual e naturalista por uma perspectiva de outra ordem: sentimental,
intelectual, irônica, ingênua.
----------
Uma nova escala:
A outra, a de um mundo proporcionado e catalogado com letras nos livros, crianças nos colos. O
reclame produzindo letras maiores que torres. E as novas formas da indústria, da viação, da aviação.
Postes. Gasômetros. Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e
fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física
em arte.
----------
Nossa época anuncia a volta ao sentido puro.
Um quadro são linhas e cores. A estatuária são volumes sob a luz.
A Poesia Pau Brasil é uma sala de jantar domingueira, com passarinhos cantando na mata resumida
das gaiolas, um sujeito magro compondo uma valsa para flauta e a Maricota lendo o jornal. No jornal
anda todo o presente.
----------
Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres.
----------
Temos a base dupla e presente a floresta e a escola. A raça crédula e dualista e a geometria, a
álgebra e a química logo depois da mamadeira e do chá de erva-doce. Um misto de ‘dorme nenê que
o bicho vem pegá’ e de equações.
Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas
questões cambiais, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau Brasil.
----------
Obuses de elevadores, cubos de arranha-céu e a sábia preguiça solar. A reza. O carnaval. A energia
íntima. O sabiá. A hospitalidade um pouco sensual, amorosa. A saudade dos pajés e os campos de
aviação militar. Pau Brasil.
----------
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura nacional. Realizada
essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
----------
O contrapeso da originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica.
----------
A reação contra todas as indigestões de sabedoria. O melhor de nossa tradição lírica. O melhor de
nossa demonstração moderna.
----------
137
Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau Brasil. A floresta e a escola. O
Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau Brasil
.”
70
Porém, em 1928 Oswald de Andrade uma nova guinada em sua produção e inaugura a
fase antropofágica do modernismo brasileiro. Sua inspiração partiu de um quadro que
ganhou de Tarsila, como nos conta a própria pintora:
Outro movimento, o antropofágico, resultou de um quadro que, a 11 de janeiro de 1928, pintei para
presentear Oswald de Andrade, que, diante daquela figura monstruosa de pés colossais,
pesadamente apoiados na terra, chamou Raul Bopp para com ele repartir o seu espanto. Perante
esse quadro, a que deram o nome de Abaporu - antropófago -, resolveram criar um movimento
artístico e literário radicado na terra brasileira
.”
71
pés fincados no chão, o verde e o sol
Fig. 28 – Tarsila do Amaral – Abaporu
70
ANDRADE, Oswald. Manifesto da Poesia Pau-Brasil. In Correio da Manhã. Rio de Janeiro, 1924 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005, p.221 a 224
71
AMARAL, Tarsila do. Catálogo da exposição Tarsila 1918-1950. São Paulo. Museu de Arte Moderna, 1950
In SCHWARTZ, Jorge (org). Da antropofagia a Brasília: Brasil 1920-1950. São Paulo. FAAP, 2002. p.147
138
A partir deste momento, Oswald deixa de lado o lirismo otimista que caracterizava a fase da
poesia Pau-Brasil, penetrando mais a fundo na realidade do país, atualizando-o porém
conservando suas raízes. Uma vez que o brasileiro deveria assimilar as conquistas da
cultura européia, pois estas eram as contingências de seu tempo, que o fizesse ferozmente,
à moda de seu selvagem nativo. Mario Pedrosa, ao referir-se às transformações ocorridas
nas pinturas de Tarsila neste período bem resume o espírito deste novo momento:
Tarsila entra então numa nova espécie de expressionismo simbólico que contrasta com a maneira
lírica, decorativa da fase anterior. As suas figuras já não saem da poesia popular. Até então as
deformações das imagens, santos e personagens populares de sua iconografia, obedeciam apenas a
uma estrita necessidade técnica de transposição para a superfície plana do quadro. Agora, porém, as
deformações valem por si mesmas, como simbolização da imaginária antropofágica. Abaporu
representa bem essa vontade de violar as proporções naturais dos seres vivos e reais. A antropofagia
nasceu dessa figura. E com ela acabou a linha de desenvolvimento plástico que vem diretamente da
Semana de Arte Moderna
.”
72
O movimento antropofágico propunha uma revisão do retrato amplo do país, sugerindo uma
nova perspectiva, um novo caminho a ser trilhado. Como na Poesia Pau-Brasil, Oswald
assume uma postura de repúdio à cultura importada da Europa, porém agora se
relacionando com ela de forma mais complexa: por um lado, os elementos desta cultura
importada são destruídos pela deglutição, porém por outro lado são mantidos na realidade
brasileira a partir de um processo de transformação/absorção de alguns destes elementos
(digestão antropofágica). Desta forma, a proposta antropofágica apresenta-se em dois
níveis: o de diagnóstico - onde a falsa visão do Brasil é destruída -, e o da cura - onde a
integração edifica uma nova nação.
73
72
PEDROSA, Mario. Acadêmicos e Modernos (org. Otília Arantes). São Paulo. Edusp, 1998 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005, p.289
73
DE MORAES, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro. Edições
Graal, 1978. p.143 e 156
139
Embora o ritual antropofágico estivesse fortemente presente nas propostas artísticas
européias, como foi visto anteriormente, Oswald inseriu esta imagem de maneira diferente
na cultura brasileira. Se na Europa o objetivo dos artistas era chocar a sociedade, afrontar a
arte consagrada e romper estruturas e paradigmas, o objetivo de Oswald era salvaguardar
os valores da identidade cultural brasileira. Dentro do ritual canibal oswaldiano, o gesto de
comer sobrepunha-se ao de ser comido, de forma a recolocar o Brasil no cenário mundial
vencendo o imperialismo europeu. A imagem do canibal surgiu assim como novo totem a
explicitar a verdadeira origem da identidade nacional brasileira, tão deturpada pela cultura
européia a nós imposta.
74
Desta forma, Oswald subverteu a imagem do “bom selvagem”, tão
cultuada na literatura do século XIX, transformando-o em um selvagem que estaria disposto
a absorver a cultura estrangeira. Utilizou-se também daausência de Fé, Lei e Rei, a
poligamia, o ócio, a nudez, a inexistência da propriedade privada , da divisão em classes e
da exploração pelo trabalho
75
para reverenciar um modelo utópico de sociedade, criticando
assim o caos do sistema capitalista de então. Porém este olhar para o nativo do passado
não deixava de se relacionar com as idéias de futuro e progresso, como nos mostra Adriano
Bitarâes Netto:
A teoria antropofágica oswaldiana propunha o estado natural da existência, analisado e promulgado
pelos discursos antropológicos, mas sem perder de vista o progresso, a quina e a técnica. Com
base na dialética de Hegel e no bárbaro tecnizado de Keyserling, o antropófago modernista
estruturou o retorno ao primitivo e o diálogo com o futurismo. Segundo Oswald, a humanidade passou
pelo homem primitivo (tese), depois chegou ao homem histórico/civilizado (antítese) para finalmente
alcançar seu momento máximo, transformando-se no homem natural tecnizado da era atômica
(síntese). (...)
76
Segundo a visão de Oswald, era necessário construir um rótulo para o Brasil a fim de que se
pudesse legitimar uma nação autônoma e original, uma vez que o rótulo exime as diferenças
74
NETTO, Adriano Bitarães. Antropofagia oswaldiana: um receituário estético e científico. São Paulo.
Annablume, 2004. p.54 e 55
75
Ibidem. p.50
76
Ibidem. p.52
140
sociais, étnicas, econômicas e culturais em prol de uma homogeneização da sociedade.
Seguem abaixo trechos do manifesto Antropófago:
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.
- - - -
Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De
todas as religiões. De todos os tratados de paz.
- - - -
Tupy, or not tupy that is the question.
- - - -
Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.
- - - -
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo interior e o mundo exterior. A
reação contra o homem vestido. O cinema americano informará.
- - - -
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida. E a
mentalidade prelógica para o Sr. Levy Bruhl estudar.
- - - -
Queremos a revolução Caraíba. Maior que a revolução Francesa. A unificação de todas as revoltas
eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos
direitos do homem.
A idade de ouro anunciada pela América. A idade de ouro. E todas as girls.
- - - -
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na
Bahia. Ou em Belém do Pará.
- - - -
Contra o Padre Vieira. Autor do nosso primeiro empréstimo, para ganhar comissão. O rei analfabeto
dissera-lhe: ponha isso no papel mas sem muita lábia. Fez-se o empréstimo. Gravou-se o açúcar
brasileiro. Vieira deixou o dinheiro em Portugal e nos trouxe a lábia.
- - - -
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A
transformação permanente do Tabu em totem.
- - - -
Contra o mundo reversível e as idéias objetivadas. Cadaverizadas. O stop do pensamento que é
dinâmico. O indivíduo vítima do sistema. Fonte das injustiças clássicas. Das injustiças românticas. E o
esquecimento das conquistas interiores.
- - - -
Contra as elites vegetais. Em comunicação com o solo.
- - - -
141
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de
Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.
- - - -
Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a língua surrealista. A idade de ouro.
Catiti Catiti
Imara Notiá
Notiá Imara
Ipejú
- - - -
A magia e a vida. Tínhamos a relação e a distribuição dos bens físicos, dos bens morais, dos bens
dignários. E sabíamos transpor o mistério e a morte com o auxílio de algumas formas gramaticais.
- - - -
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da
possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o.
- - - -
Contra as histórias do homem, que começam no Cabo Finisterra. O mundo não datado. Não
rubricado. Sem Napoleão. Sem César.
- - - -
Contra as sublimações antagônicas. Trazidas nas caravelas.
- - - -
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago, o Visconde
de Cairu:- É a mentira muitas vezes repetida.
- - - -
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo,
porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
- - - -
É preciso partir de um profundo ateísmo para se chegar à idéia de Deus. Mas o caraíba não
precisava. Porque tinha Guaraci.
- - - -
Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.
- - - -
Somos concretistas. As idéias tomam conta, reagem, queimam gente nas praças públicas.
Suprimamos as idéias e as outras paralisias. Pelos roteiros. Acreditar nos sinais, acreditar nos
instrumentos e nas estrelas.
- - - -
Contra Goethe, a mãe dos Gracos, e a Corte de D. João VI.
- - - -
A luta entre o que se chamaria Incriado e Criatura - ilustrada pela contradição permanente do homem
e o seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo
sacro. Para transformá-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, as puras
142
elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita
todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se não é uma sublimação do
instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico. De carnal, ele se torna eletivo e cria
a amizade. Afetivo, o amor. Especulativo, a ciência. Desvia-se e transfere-se. Chegamos ao
aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo - a inveja, a usura, a
calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos
agindo. Antropófagos.
- - - -
A nossa independência ainda não foi proclamada. Frase típica de D. João VI: - Meu filho, põe essa
coroa na tua cabeça, antes que algum aventureiro o faça! Expulsamos a dinastia. É preciso expulsar
o espírito bragantino, as ordenações e o rapé de Maria da Fonte.
- - - -
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a realidade sem complexos,
sem loucura, sem prostituições em sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama.
- - - -
Em Piratininga.
Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha.”
77
Desta forma, a antropofagia de Oswald reivindicava um processo de colonização às
avessas, onde o homem se despiria da cultura do ocidente, juntamente com seus tabus.
Uma vez que a imposição da razão e do artifício havia trazido o caos à sociedade, caberia
ao canibal reverter esta situação ensinando aos filósofos e demais letrados. E aos que
afirmavam que Oswald estava a copiar a Europa ele rebatia dizendo que o que acontecia
era exatamente o contrário: a Europa sustentava seu saber a partir das civilizações
americanas, africanas e asiáticas. Nossa antropofagia era, portanto original, enquanto que a
européia era importada.
A partir de todos os conceitos acima analisados, vemos que Oswald de Andrade incentivou
o Brasil a conhecer seu passado e a se orgulhar dele, produzindo material cultural
atualizado com o pensamento internacional mas ao mesmo tempo fiel à tradição nacional, o
que possibilitou que nossos artistas e intelectuais tivessem uma atuação autóctone e digna
de exportação. Desta forma poderiam colocar-se de igual para igual com os artistas
77
ANDRADE, Oswald. Manifesto Antropófago. In Revista de Antropofagia. São Paulo, 1928 in ________.
Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005, p.227 a 231
143
europeus, não mais imitando seus padrões culturais ou subordinando-se a eles, mas sim
sendo autênticos. Pela primeira vez o processo de importação cultural era invertido, com
nossos artistas influenciando a Europa, o que abriu admirável precedente à cultura
brasileira, possibilitando que ela, em outros tempos e outras circunstâncias, também se
valesse desta nova autonomia ideologia conquistada.
144
4.3. Outras versões do nacional: Mario de Andrade e Verde-Amarelismo
Porém a valorização da identidade nacional encontrou outras expressões em nosso
modernismo que não a antropofagia de Oswald de Andrade. Se esta comungava com os
conceitos surrealistas ou dadaístas da arte, o Expressionismo inspirou outra figura central
de nosso modernismo, Mario de Andrade, em sua busca de elaboração de um projeto
moderno e ao mesmo tempo nacional.
A atuação de Mario afastou-se do manifesto, das reivindicações teóricas, calcando-se em
uma “obra ação” condizente com sua visão mais realista e menos otimista dos fatos. Uma
vez que o Expressionismo colocava-se entre o mundo exterior e o lirismo do indivíduo,
permitia uma tomada de posição qualificada perante a realidade, o que fez com que Mario
vislumbrasse a possibilidade de uma arte voltada para o social e para a ação que se
relaciona diretamente com a linguagem nacional, sem contudo se afastar do contexto
internacional. A relação do artista com a sociedade geraria uma estética nacional que,
assumindo e enfatizando suas características próprias, afastar-se-ia naturalmente dos
modelos exteriores.
78
O encontro de Mario com a nacionalidade brasileira se deu de forma definitiva a partir das
três viagens que fez pelo país que, embora tenham sido poucas, conduziram-no à medula
do Brasil. A primeira delas, ocorrida em 1924, destinou-se a investigar o Estado de Minas
Gerais e suas manifestações barrocas; a segunda, desenvolvida de maio a agosto de 1927,
percorreu o Amazonas; e a terceira, de fins de 1928 a início de 1929, dedicou-se ao
nordeste do país a fim de registrar seus elementos folclóricos. Sua postura fortemente
analítica perante os fatos, possibilitou um levantamento de caráter científico de lendas,
78
FABRIS, Annateresa. Figuras do moderno (possível). In SCHWARTZ, Jorge (org). Da antropofagia a
Brasília: Brasil 1920-1950. São Paulo. FAAP, 2002. p.46, 47
145
tradições e costumes típicos do Brasil, evitando que estes se perdessem ou diluíssem ao
longo do tempo, gerando inestimável registro de nossa nacionalidade.
Do conhecimento acumulado em suas viagens surgiu em 1928 uma de suas mais
importantes obras: Macunaíma. Mário de Andrade não a identificou como romance, mas sim
como rapsódia, isto é, uma obra que se utilizou da colagem de elementos da cultura popular
tradicional, normalmente perpetuados através de narrativas orais. Desta forma, a obra
apresentou lendas, ditos, provérbios, superstições, etc., em uma tentativa de traçar um
panorama do Brasil e do homem brasileiro. Seu personagem principal - Macunaíma, o herói
sem nenhum caráter - surgiu como personificação do brasileiro através da imagem de um
índio cheio de malandragem e preguiça. Maria da Conceição Castro assim resume a
narrativa de Macunaíma:
A narrativa se inicia com o nascimento de Macunaíma, na tribo dos Tapanhumas. Feio, pequeno,
negro, preguiçoso, Macunaíma, nada tem em comum com os heróis das histórias tradicionais. Sem
caráter, mente para os irmãos, mata a mãe e parte pelo mundo afora, abandonando sua tribo.
Conhece Ci, a e do mato, com quem se casa. Ci morre e Macunaíma recomeça sua viagem,
levando consigo um amuleto que ela lhe dera: o Muiraquitã. Perde o amuleto, que é encontrado pelo
gigante Piaimã, transformado no respeitável Venceslau Pietro Pietra, habitante de São Paulo.
Macunaíma vem a São Paulo tentar recuperar o amuleto, devendo para isso derrotar o gigante - misto
de canibal, colonizador e imigrante. Influenciado pela metrópole, Macunaíma descaracteriza-se,
perdendo a ligação com suas raízes. Derrota Piaimã, recupera o amuleto, mas logo o perde
novamente, ao retornar à selva. Sua tribo não existe mais e Macunaíma, solitário, sobe aos céus,
transformando-se na constelação da Ursa Maior
.”
79
Se o modernismo de Mario de Andrade teve origem nos conceitos universais do
modernismo internacional, foi no plano nacional que ele se realizou. Em sua obra, o Brasil
entra pelos sentidos à medida que descreve, com grande vigor plástico e cromático, os
elementos da natureza brasileira: cores, formas, aromas, temas, fauna e flora nacionais
eram assim revelados com esplendor.
79
CASTRO, Maria da Conceição. Língua & Literatura. São Paulo. Editora Saraiva, 1993, v. 3. p.133,134
146
Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão uma cunhã. Era a companheira
nova dele e chamava Iriqui. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido na maçaroca dos cabelos e
faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãs passava coquinho de
açaí nos beiços que ficavam totalmente roxos. Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os
beiços viravam totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão listrado com
preto de acariúba e verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda
.”
80
É preciso neste momento destacar a grande diferença conceitual que existe entre a
brasilidade formulada por Mario e por Oswald de Andrade. Para Mario, a defesa da
nacionalidade se dava a partir do levantamento dos elementos que compunham o acervo
cultural da nação, enquanto que para Oswald, e demais defensores da Antropofagia, a
brasilidade era uma espécie de substrato da nação, devendo se apreendida de forma
intuitiva. Mario de Andrade portou-se como um exímio pesquisador, chegando a colocar de
lado o setor da criação artística de sua obra em prol de um refinado e detalhado estudo da
cultura brasileira, o que o colocava em frontal oposição à postura de Oswald, que era
demolidora em relação à sabedoria e aos estudos. O que se é o embate entre a intuição
defendida por Oswald e a construção de uma pesquisa disciplinada defendida por Mario.
Mesmo não compreendendo o posicionamento oswaldiano, Mario aderiu ao Movimento Pau-
Brasil por preferir se colocar ao lado daqueles que lhe pareciam ter as melhores posições no
momento. Porém, suas diferenças conceituais ficam claras no texto que escreve a respeito
da “falação”, forma como se referia ao Manifesto Antropófago:
Aliás, a falação que encabeça o livro é um primor de inconsistência cheia de leviandades. Indigestão
de princípios e meias-verdades colhidas com pressa de indivíduo afobado. Falação de sargento
patriota, baracafusada de parolagem sem ofício. Sobretudo essa raiva contra a sabença. Pueril. O. de
A. desbarata com o que cita ‘Vergílio pros tupiniquins’ no mesmo período, citando ‘as selvas
selvagensde Dante pros tupinambás. Questão de preferência de tribo talvez. Preconceitos pró ou
contra erudição não valem um derréis. O difícil é saber saber. De resto a falação exemplifica o que
ela o justamente se revolta contra: é escritura dum náufrago na erudição. Porque essa volta ao
80
ANDRADE, Mario de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte. Villa Rica Editoras
Reunidas Ltda., 1997. p.13
147
material popular, aos erros do povo, é desejo de verdade erudita e das mais. O. de A. sabe delas e
num átimo se aternurou sem crítica por tudo o que é do povo, misturando, generalizando. E se
contradizendo no mesmo escrito, que é o único jeito mesmo de ter contradição
.”
81
Neste momento em que o modernismo brasileiro começou a se ramificar em diferentes
correntes, é importante ressaltar o posicionamento do Verde-Amarelismo e Grupo da Anta
com relação à nacionalidade. O grupo Verde-Amarelo, encabeçado por Plínio Salgado,
Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida e Cassiano Ricardo, opunha-se fortemente ao
nacionalismo de Oswald, tachando-o de importado. Seu posicionamento era ufanista, sendo
logo associado ao Integralismo, versão brasileira do nazi-fascismo. O grupo posteriormente
se autodenominou Grupo da Anta ao eleger tal animal como símbolo nacional. Sua
produção girou em torno do Brasil tupi e do Brasil colonial, ressaltando seu estado de alma
primitivo, enaltecendo o paraíso perdido habitado pelo bom selvagem. Seu posicionamento
xenófobo prendia-se aos valores autênticos da nação, repudiando o diálogo com as
vanguardas européias e distanciando-se definitivamente dos discursos e ações de Oswald e
Mario de Andrade.
Apesar das divergências existentes entre as correntes do modernismo brasileiro, é
fundamental perceber que a questão da nacionalidade e da brasilidade estava fortemente
em pauta. Mesmo sendo abordados de diferentes maneiras, estes aspectos possibilitaram
que a arte brasileira assimilasse os conceitos da arte européia, porém agora os
transformando a partir das necessidades e condicionantes locais. Nossos intelectuais, ao
valorizarem a cultura nacional, criavam um produto passível de exportação e, sobretudo,
fruto de nossa autonomia intelectual, possibilitando a fixação de um produto brasileiro no
cenário internacional.
81
In DE MORAES, Eduardo Jardim. A brasilidade modernista: sua dimensão filosófica. Rio de Janeiro. Edições
Graal, 1978. p.91
148
4.4. 1929 e a crise do café: mudanças sociais, políticas e econômicas
29 de outubro de 1929, data da quebra da bolsa de Nova York, marcou o início de uma nova
fase do cenário econômico-político mundial: a “grande depressão”, que durou até 1933,
tomou de assalto a economia das grandes potências internacionais e acabou por afetar
drasticamente a economia brasileira, com conseqüências também nos planos político e
social do país.
A essa época, os Estados Unidos apresentavam um cenário econômico consolidado e muito
próspero, impulsionado por suas indústrias e pelo saldo da Primeira Guerra Mundial,
favorável a este país uma vez que as nações européias envolvidas nos conflitos haviam se
tornado suas credoras. Desta forma, a grande produção industrial, o baixo nível de
desemprego e a expansão da produção agropecuária levaram a um clima de euforia
justificável. No entanto, a paz alcançada pelos países da Europa Ocidental permitiu que
estes retomassem suas atividades industriais e agropecuárias, o que fez com que não mais
existisse consumo para uma produção americana tão dilatada.
Repentinamente, a produção, não somente americana mas também européia, teve que ser
freada, fazendo com que retrocedesse a índices comparáveis aos do final do século XIX,
tanto no que se refere à produção de bens de capital, quanto bens de consumo. Outro
aspecto importante do período foi a destruição maciça de riquezas em uma tentativa
desesperada de frear a tendência à baixa dos preços. Desta forma, nos Estados Unidos,
lavouras de algodão foram destruídas (cerca de 25% da área ocupada por este cultivo no
país), criações de bovinos e ovinos foram dizimadas, safras de trigo e milho foram utilizadas
com combustível nas locomotivas em substituição ao carvão, navios foram vendidos como
149
sucatas. No período de 1929 a 1933, mais de nove mil bancos americanos foram à falência,
com redução de 87% na cotação das ações.
82
A crise interna da economia dos países ocidentais também afetou o comércio internacional.
Uma vez que cada país precisava vender suas mercadorias, o cenário internacional
transformou-se em uma arena de disputas acirradas, com cada país buscando preservar o
seu mercado para os produtos de suas próprias indústrias, gerando uma avalanche de
medidas protecionistas.
Os orçamentos federais sofreram fortes déficits, resultantes da redução das receitas fiscais
e do aumento de subsídios nas principais empresas em uma tentativa de impedir a
diminuição da produção, de níveis já muito baixos. Porém, tais medidas não foram
suficientes para deter o crescimento do desemprego, que atingiu índices alarmantes, nem
para conter a redução dos salários, impulsionando grandes contingentes populacionais a
uma condição de miséria. Também é válido ressaltar que a exportação de capitais sofreu
cortes drásticos: no período entre 1928 e 1932, a aplicação de libras da Inglaterra no
exterior caiu de 105,5 milhões para 25,8 milhões, enquanto que os Estados Unidos
deixaram de aplicar 1,3 bilhões de dólares para reduzir este índice para 26 milhões, isto é,
2% do que era antes.
83
Com tamanha crise atingindo as grandes potências internacionais, é de se esperar que suas
colônias, bem como os países exportadores de produtos primários, fossem afetados, como
ocorreu com o Brasil. A exportação brasileira sofreu uma redução dramática, bem como o
preço médio de seus principais produtos exportados - café, açúcar e cacau. O governo
federal comprou, em 1932, 7 milhões de sacas de café para seus estoques, o que não foi o
bastante para impedir a queima de 72 milhões de sacas, quantidade suficiente para
82
___________. Enciclopédia mirador internacional. São Paulo. Melhoramentos, 1987, v.6. p.3004
83
Ibidem.
150
abastecer o mercado internacional por cerca de três anos. Porém a crise de 1929 não afetou
apenas a economia brasileira, uma vez que afetou substancialmente a organização da
sociedade e da política do país, agindo como um catalisador da revolução que ocorreria em
1930.
A bem da verdade, o Brasil enfrentava crises internas ao longo de toda a década de 20,
quando as classes médias paulistas recém formadas passaram a lutar por uma
modernização das estruturas políticas, em um processo antioligárquico. Para se
compreender tal fato é necessário observar o papel desempenhado pela oligarquia cafeeira
dentro do cenário interno brasileiro, sobretudo se comparada à oligarquia açucareira a ela
antecedente. Se a classe dominante no ciclo do açúcar detinha o controle apenas da etapa
produtiva, cabendo o monopólio do comércio a grupos situados em Portugal e na Holanda, a
classe dominante do ciclo do café detinha poderes muito maiores: tendo o país já alcançado
sua independência política, a burguesia do café pôde abranger as áreas de “aquisição de
terras, recrutamento de mão-de-obra, organização e direção da produção, transporte
interno, comercialização nos portos, contatos oficiais”, com interferência na política
financeira e econômica. Desta forma, a burguesia cafeeira deve ser compreendida em um
sentido mais amplo, abrangendo os setores produtores, comerciais e financeiros da
sociedade, o que lhe conferia grande margem de manobra na defesa de seus interesses.
84
No setor político do país, a oligarquia do café conseguiu impor sua supremacia ao se
associar à outra oligarquia de vulto no cenário brasileiro, proveniente de Minas Gerais,
gerando a aliança do “café-com-leite” segundo a qual presidentes paulistas e mineiros eram
eleitos alternadamente, assegurando a defesa de seus interesses. A Constituição de 1891
também evidenciava este protecionismo à medida que conferia ampla autonomia estadual
(possibilidade de contrair empréstimos externos, constituir milícias, etc.). Desta forma, o eixo
84
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.
p.118 e 119
151
São Paulo Minas reafirmava seu poder e seu peso na balança interna nacional,
modelando as instituições do país em proveito da classe hegemônica.
No entanto, todo esse sistema que foi montado em torno da proteção dos interesses do
setor cafeeiro começou a apresentar sinais de desequilíbrio, evidenciados pelo
inconformismo das classes médias e, sobretudo, pelas revoltas tenentistas. Boris Fausto
explica que a revolta dos “tenentes” foi sintoma grave de que uma crise havia se instalado
no aparelho do Estado. Ela teria origem em uma dupla frustração: o fato de a burguesia
cafeeira ter conferido ao Exército um papel subordinado e a aceitação deste papel por parte
da cúpula militar, que entrava sempre em acordo com as oligarquias. Desta forma, o
movimento tenentista voltou-se contra os quadros dirigentes da República Velha, mas
também contra a cúpula do Exército. Boris Fausto complementa:
(...) nas vinculações com núcleos familiares tradicionais de vários líderes tenentistas,
independentemente da condição econômica, encontra-se uma das razões de sua audácia. Os líderes
não se integram ao Exército como figuras obscuras, em busca de ascensão social: pelo contrário,
uma responsabilidade de elite pelos destinos do país, que julgam desviado de seus verdadeiros
objetivos, incentiva-os a romper abertamente com a ordem estabelecida
.”
85
O que se percebe é que, antes do país ser afetado pela crise econômica, teve que lidar e
superar sua crise política. Além do levante tenentista, merece destaque uma certa “rebeldia”
das classes médias que, vivendo em um período em que a economia se encontrava em
plena vitalidade, não se conformava em ver que a “sociedade tradicional” era incapaz de
abrir o Estado aos novos setores criados por sua própria expansão. Desta forma, sem
questionar o processo produtivo nacional, do qual dependiam, reivindicavam alterações nas
estruturas políticas do país.
85
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.
p.123
152
Mas a crise econômica finalmente atingiu o Brasil. Ela era sentida desde o início da
década de 20, uma vez que, se no início do século o Brasil praticamente detinha o
monopólio da produção cafeeira mundial, após a Primeira Guerra Mundial a concorrência de
outros países produtores aumentou, gerando queda dos preços. Tal panorama fez com que
a partir de 1924 houvesse uma política de proteção ao café que conseguiu sustentar os
preços por alguns anos, mas, por outro lado, gerou um endividamento crescente, a
superprodução e o acúmulo de estoques invendáveis. Em 1929, porém, além do país ter
que enfrentar um cenário internacional profundamente desfavorável, também teve que lidar
com a superprodução de seus cafezais, o que contribuiu para agravar a situação da
economia nacional.
A crise mundial de 1929 exerceu importante papel na história do Brasil à medida que
evidenciou as contradições da economia cafeeira nacional, dando outras dimensões às
instituições que consagravam seu predomínio. O que se viu foi o fim da supremacia da
burguesia do café, ocasionando um desencontro entre a classe e seus representantes
políticos. Washington Luís abandonou, assim, a defesa protecionista do café, baixando o
preço do produto na tentativa de elevar as vendas no exterior, além de negar-se a conceder
a moratória, o que gerou grande descontentamento em São Paulo. Desta forma, a classe
dos “tenentes”, bem como a Aliança Liberal e as demais oligarquias brasileiras que até o
presente momento tinham assumido um papel secundário no cenário brasileiro, dada a
hegemonia do café, viram uma brecha que poderia conduzi-los a posições mais favoráveis
dentro do quadro político do país.
A política exercida por Julio Prestes após sua eleição em 1930 evidenciava a retirada do
foco que antes residia na produção cafeeira e sua oligarquia. Ele ainda valorizava a
importância do cultivo do capara a economia brasileira, mas propunha a diversificação
e a racionalização da atividade agrícola através da policultura, abrindo caminho para outros
setores da economia e da sociedade. Prestes também prometeu assistência ao setor
153
industrial, uma vez que contava com o apoio da Fiesp (criada em 1928), em um discurso
que se referia ao desenvolvimento nacional a partir do tratamento da questão urbana e da
modernidade, sem perder o símbolo da “fazenda” enquanto unidade econômica nacional.
86
Desta forma, o que se viu foi o gradativo enfraquecimento das oligarquias cafeeiras, com a
transferência de seu poder para outros setores da sociedade, até então subjugados,
panorama que eclodirá na revolução de 1930. São Paulo perdeu parte de seu poderio
econômico e político, deslocado para o Rio de Janeiro, capital do país. O ressurgimento do
Rio de Janeiro enquanto pólo decisório da nação fez com que ele também ganhasse força
como novo pólo cultural brasileiro, à medida que acumulava prestígio, capital e poder de
decisão, enquanto que a elite paulistana, acostumada a patrocinar e a incentivar as artes,
ganhava preocupações e tinha problemas de outra ordem para solucionar.
86
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 318
154
4.5. Em meio ao Ecletismo desordenado, o surgimento de realizações
modernas na arquitetura
Embora o panorama político-social brasileiro tenha sofrido grandes transformações ao longo
deste segundo período de nossa narrativa, o quadro das realizações arquitetônicas
permanecia praticamente inalterado. A elite cafeeira paulista, bem como outras classes
hegemônicas das demais capitais estaduais brasileiras, insistia nos modelos do Ecletismo e
do Neocolonial como forma de expressão de seu aristocratismo. Apesar da economia dar
mostras ao longo dos últimos tempos de que a supremacia e pujança do café não teriam
vida muito mais longa, a sociedade continuava vestindo suas cidades de modismos, ora
inspirados na cultura européia ora inspirados na nossa tradição colonial, em uma tentativa
de fazê-las se assemelharem às grandes capitais mundiais. Mesmo o surgimento dos
grandes arranha-céus, evidente decorrência do crescimento das cidades, se deu de acordo
com os estilos em voga: o Edifício Martinelli, por exemplo, construído entre 1924 e 1929,
adotou o estilo eclético, enquanto o edifício A Noite, projetado no Rio de Janeiro em 1928,
seguiu os preceitos do estilo Art-Deco.
Warchavchik e a Casa da Rua Santa Cruz
Porém, ao final deste período, mais precisamente em 1928, surgiu um evento que inovaria o
cenário arquitetônico paulistano, causando polêmica e inquietação, necessárias para agitar
e questionar a prática arquitetônica estabelecida. Em 1928, Gregori Warchavchik teve a
oportunidade de libertar-se do discurso apenas teórico e colocar em prática suas crenças
arquitetônicas: tratava-se da construção de uma residência na Rua Santa Cruz, primeiro
edifício erigido em São Paulo sob as luzes da arquitetura nova, de estética modernista. Por
se tratar de um projeto particular, feito para Warchavchik e sua esposa, a artista e paisagista
Mina Klabin que provinha de abastada família, pôde dispensar as etapas de convencimento
do cliente e levantamento de verbas para a obra, embora tenha encontrado alguns
empecilhos por parte da Prefeitura para a aprovação do projeto (o departamento
155
encarregado de fiscalizar as fachadas das novas construções do município tardou em
aprovar o projeto sem ornamentações de Warchavchik).
a ousadia de uma casa despida de ornamentos
Fig. 29 – projeto de Warchavchik – Casa da Rua Santa Cruz
A Casa da Rua Santa Cruz, como ficou conhecida, introduziu diversas inovações no cenário
paulistano, tanto no que se refere à composição de sua fachada, organização de sua planta,
escolha dos materiais, design do mobiliário, características de seu paisagismo, etc. Salta
aos olhos a franca adoção do ângulo reto como elemento fundamental e preponderante de
sua composição. Sua fachada principal era formada por volumes simples justapostos, onde
a absoluta nudez de ornamentos realçava seu caráter provocativo e de afronta aos cânones
acadêmicos, atitude recorrente entre os pioneiros e vanguardistas que necessitavam impor-
se duramente em um meio calcado na cômoda repetição dos elementos tradicionais. O
156
restante da volumetria da residência era composto a partir de grandes prismas elementares,
o que obrigava o observador a deslocar-se à sua volta a fim de que pudesse compreendê-la
em sua totalidade, visto que não trazia consigo a previsibilidade das composições clássicas,
o que denota a influência da estética cubista. A organização de sua planta primava por
ambientes contínuos, racionalmente projetados, de forma a proporcionar a integração entre
o interior e o exterior da edificação, o que foi possível graças às grandes aberturas e
superfícies envidraçadas presentes na construção.
pavimento térreo
pavimento superior
Fig. 30 - plantas Casa da Rua Santa Cruz
O paisagismo proposto por Mina Klabin configurou-se igualmente como uma inovação visto
que se apropriou de espécies vegetais nativas do Brasil, dentre elas os cactos, a fim de
valorizar as características nacionais bem como escapar dos modelos de jardim importados
da Europa e amplamente utilizados na cidade de São Paulo (deve-se ressaltar que esta
tendência de valorização do nacional encontra-se em perfeita consonância com os preceitos
defendidos pelos intelectuais modernistas da Semana de Arte Moderna de 1922).
LEGENDA
L.
sala de estar
En.
entrada
St.
escritório
J.
sala de jantar
Cp.
copa
T.
terraço
Dc.
dispensa
C.
cozinha
D.
dormitórios
B.
banheiros
157
primeiro projeto paisagístico de tonalidade brasileira
Fig. 31 – projeto paisagístico de Mina Klabin – Casa da Rua Santa Cruz
No entanto, naquilo que se refere à escolha de materiais e desenho de mobiliário,
Warchavchik encontrou dificuldades de ordem técnica decorrentes do cenário brasileiro que
o obrigaram a recuar, momentaneamente, em relação às idéias por ele defendidas em seu
Manifesto. São Paulo era ainda uma cidade de industrialização incipiente, onde a
construção civil apresentava aspectos artesanais, ainda muito dependente dos mestres-de-
obras em sua grande maioria italianos, vinculada às técnicas e estética trazidas por eles de
sua terra natal. Embora Warchavchik defendesse em seus escritos a utilização do cimento
armado, material condizente com os avanços técnicos do século XX e empregado com
sucesso na Europa algum tempo, este material era ainda demasiado caro no Brasil, o
que impossibilitava sua utilização em larga escala. Da mesma forma, nossas indústrias não
estavam aptas a disponibilizar no mercado matérias-primas, mobiliário e objetos que fossem
condizentes com a estética modernista. Coube a Warchavchik projetar cada elemento da
casa - desde portas, gradis, luminárias, etc. e ensinar os profissionais a executá-los em
oficinas por ele montadas especialmente para a ocasião uma vez que ele os queria dentro
da mesma linguagem do ângulo reto, há pouco citada, e despidos de ornamentos floreados.
158
a presença do arquiteto nos detalhes
Fig. 32 – portão desenhado por Warchavchik para a Casa da Rua Santa Cruz
Mais uma vez, esta atitude fez com que Gregori contradissesse seu Manifesto pois teve que
abdicar das preocupações econômicas que a arquitetura moderna deveria trazer em si. Mas
cabia a ele a difícil tarefa de optar entre a nova estética - que demandaria esforços de
significativo valor monetário - e uma construção econômica aproveitando os materiais e
elementos existentes, embora não condizentes com a linguagem do novo século: optou
pela primeira solução acreditando que a indústria paulista poderia se desenvolver e em
pouco tempo disponibilizar no mercado os artigos necessários à arquitetura moderna. O
trecho que se segue, extraído de um artigo escrito por Warchavchik para o jornal Correio
Paulistano em 14 de setembro de 1928, bem ilustra as dificuldades construtivas de então
enfrentadas pelo arquiteto.
“Em São Paulo, dada a carestia de cimento e a falta de materiais para construção (materiais
adequados à construção moderna), ainda não é possível fazer o que se fez em outras partes do
mundo. A indústria local, se bem que em estado de incessante progresso, ainda não fabrica as peças
necessárias, estandardizadas, de bom gosto e de boa qualidade, como sejam: portas, janelas,
ferragens, aparelhos sanitários, etc. Estamos sempre peados pela obrigação de empregar material
importado, o que vem a encarecer muito as construções. Assim, torna-se evidente a quase
impossibilidade, no momento, de se obter material manufaturado convenientemente e por baixo
preço. Ora, isto impede que nos libertemos do uso do tijolo, material antiquado, que pouco se presta
159
ao tipo arquitetônico que ora surge. Mesmo assim, com todas essas dificuldades, conseguem-se
realizar trabalhos orientados à maneira moderna, com uma economia de 25% sobre o custo total,
apesar de serem executados com material de primeira ordem. A economia é resultante da quantidade
de material empregado, quantidade que é menor, pois a construção se faz cientificamente, pelo que
se consegue, também, a redução de mão-de-obra devido à organização inteligente do esforço dos
operários. Acresce que a vantagem de erigir muitas casas juntas, o que, quando se emprega a
estandardização, é fator essencial de barateamento. Além disso, economiza-se eliminando-se as
coisas inúteis, ingenuamente necessárias em casas antiquadas, mas que, graças ao bom gosto e à
simplicidade da construção moderna, passam a ser perfeitamente dispensáveis, se não ridículas.
87
E Warchavchik complementa a respeito do emprego de materiais de construção
adequados:
O tijolo é um material arcaico. Precisamos de outro material mais volumoso, a fim de que se possa
levantar uma parede com maior rapidez. Sendo o tijolo um elemento de unidades cujas dimensões
são diminutas, ele requer, para se atingir uma altura preestabelecida, um esforço conjunto muito
maior do que o emprego de material mais volumoso. O tijolo, sem dúvida, já teve a sua razão de ser,
para a construção de cornijas elaboradas, e para certos tipos de prédios executados em material
visível obedecendo a desenhos especiais em sua colocação, como se usa no norte na Alemanha, na
Holanda, e na Inglaterra. Quando as paredes devem ser revestidas de argamassa, o material a
empregar-se poderá ser outro, desde que obedeça às leis da estática, que seja impermeável e
higiênico.
Os blocos de material manufaturado, que desejamos, teriam os orifícios para a passagem dos
encanamentos, o que representaria uma grande vantagem econômica, porque, nas construções
modernas, os encanamentos ocupam um lugar de relevo. Por essa razão, devemos insistir na
necessidade de se preparar o material destinado às construções, nas usinas, material esse que
consistiria em partes componentes da construção geral, como sejam: células ou quartos prontos e
paredes desmontáveis. As experiências européias e norte-americanas provam que isto é possível.
Seria, pois, de grande conveniência que os nossos grandes industriais, aos quais cabe o papel dos
Médici do século XIV, se interessassem por esse problema, patrocinando as experiências
necessárias, porque é deles, principalmente, que depende a solução dessa enorme interrogativa,
constituída de um assunto técnico e humanitário, concretizada na indústria de casas adequadas ao
homem do nosso século
.”.
88
Desta forma, embora Warchavchik acompanhasse atentamente as experiências
arquitetônicas européias, sobretudo de Gropius e Le Corbusier, sua produção em terras
87
WARCHAVCHIK, Gregori. Arquitetura do século XX e outros escritos. São Paulo. Cosac Naify, 2006. p. 85,
86 e 87
88
Idem.
160
brasileiras teve de ser limitada, ao menos neste primeiro momento. Dos cinco pontos
defendidos pelo mestre francês como essenciais à arquitetura moderna mundial - a saber:
terraço jardim, planta livre, pilotis, janelas horizontais, fachada livre - somente pôde
executar, e parcialmente, o item pertinente às janelas horizontais visto que, por exemplo, o
valor do concreto armado era demasiadamente alto para que se pudesse cogitar a utilização
de pilotis. Também não existiam materiais impermeabilizantes de boa qualidade que
permitissem a construção de laje plana com terraço jardim, o que obrigou o arquiteto a
utilizar telhados convencionais, convenientemente ocultos por platibandas para não
comprometer a composição com ângulos retos. No trecho que se segue, extraído de um
relatório escrito por Warchavchik em 1930 para Giedion, secretário geral dos CIAM, é
possível constatar as opções feitas pelo arquiteto no projeto da Casa da Rua Santa Cruz a
fim de que esta pudesse ser edificada dentro da estética modernista.
“Não tive coragem de construir a casa com cobertura de terraço-jardim, como o teria desejado. Ainda
não existiam na praça os materiais isolantes adequados. Cobri o telhado, embutido entre as paredes,
com telhas coloniais. Não pude conseguir nem portas nem janelas lisas. Ninguém as sabia fazer.
Ainda não existia madeira compensada. Pouco a pouco, e de prédio em prédio, obtive certos
progressos, e agora posso empregar portas de madeira compensada fabricadas em minha oficina
própria. Devo desenhar cada detalhe e mandar fazer tudo: janelas de ferro, grades, maçanetas,
caixas luminosas, lustres, móveis e até barras para cortinas. A casa da Rua Santa Cruz está
revestida exteriormente com reboco rústico de cimento branco, caolin e mica. As paredes do estúdio
estão revestidas com o mesmo material. O forro é de esmalte prateado a duco. As cortinas de veludo
cor de tabaco, os móveis de imbuia lustrados preto brilhante, as cadeiras estofadas com peles de
bezerro. O quadro de Lasar Segall. A entrada é pintada em cor de limão claro, vermelho vivo e
branco. A imbuia é lustrada ao natural. A sala de jantar é realizada em vários tons de cinza e prata,
preto e branco. A sala de música é de um azul claro acinzentado, as cortinas azuis e os estofamentos
de veludo roxo-violeta e cinza, os móveis prateados e alguns lustrados de preto. Almofadas em cores
de laranja e abóbora. Todo o primeiro andar é branco e todo o madeiramento, inclusive portas e
móveis, em laca vermelho vivo. Todos os móveis do jardim são também dessa cor, inclusive as tinas
e os vasos das plantas
.”.
89
89
FERRAZ, Geraldo. Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil: 1925 a 1940. São Paulo.
Museu de Arte de São Paulo, 1965. p. 51
161
interior igualmente projetado de acordo com a linguagem moderna
Fig. 33 – estúdio do arquiteto à Casa da Rua Santa Cruz
Assim sendo, apesar de todos os esforços empregados por Warchavchik na tentativa de
contornar os empecilhos apresentados pelo cenário da construção civil paulistana e erigir o
primeiro exemplo de arquitetura moderna da cidade, demonstrando sua viabilidade e
adequação aos tempos então vividos, a casa da Rua Santa Cruz apenas pôde realizar as
conquistas da arquitetura moderna mundial em seu plano estético. De fato, Warchavchik
rompeu neste momento a tradição da linguagem estética clássica então vigente em São
Paulo e introduziu um novo paradigma que abalaria as bases da arquitetura nacional, mas
tratava-se apenas da importação de uma estética. Embora ele tenha feito já neste projeto
concessões e adaptações dos conceitos de arquitetura moderna provenientes da Europa ao
clima e à tradição construtiva brasileira - como se pode ver quando introduz no projeto a
ampla varanda que em muito lembra a tradição da casa-grande - o que sugeriria o início de
uma reflexão sobre como deveria ser uma arquitetura tipicamente brasileira, o que se
principalmente é a importação de uma estética com uma intenção clara de ruptura. E se
neste momento sua atitude em muito se aproxima da dos modernistas provenientes da
Semana de 22, é de se esperar que tenha sido tima de protestos e incompreensão da
162
mesma forma que os intelectuais citados o foram. Lourival Gomes Machado assim descreve
a reação do público à obra de Warchavchik:
“De fato, a moda estava a tal ponto senhora da situação que a própria arquitetura posta em dia,
oferecida pelos primeiros pioneiros, surgia aos olhos do público como novos figurinos. Juntava gente -
contam as testemunhas do tempo - à porta da primeira casa construída em São Paulo por Gregori
Warchavchik, o novidadeiro recém-chegado, como se ali estivesse um animal de circo, uma ousadia
infinita. O mesmo espanto cobriu as experiências, muito mais generosas de gratuidade, com que
Flávio de Carvalho anunciou, no clima de desvario que ama e cria, sua volta ao país. Mas a calma
construtiva de um e os arremetimentos estrondosos de outro talvez correspondam - com algum
natural atraso, é certo - à fase vanguardeira que a literatura e a pintura tinham conhecido, pelo
menos uns dez anos antes. Depois do choque que, do ponto de vista do movimento geral, representa
como que a propaganda prévia do novo produto, veio o período ativo, diríamos mesmo fabril, em que
se procura a fórmula mais útil, mais econômica, mais eficiente e inteiramente autêntica que i
assegurar a conquista do mercado que a surpresa abriu
.”.
90
Esta reação de espanto e aversão por parte do público também foi compartilhada por
arquitetos contemporâneos a Warchavchik, como Dacio de Moraes que publicou artigos no
jornal Correio Popular contra a obra da Rua Santa Cruz, bem como posteriormente por
Christiano das Neves. Mas, se perante seu Manifesto os intelectuais modernistas haviam
tido uma reação positiva, com a edificação da referida obra eles passaram a apoiar
francamente a produção de Gregori, ressaltando suas qualidades em diferentes periódicos
de então. O jornal Diário Nacional, vinculado ao grupo de Mario de Andrade, publicou em
sua edição de 17 de junho de 1928:
“Era justo que a capital paulista, que tem sido mesmo o berço de todas as iniciativas de
modernização artística do Brasil, também tomasse a iniciativa de modernizar a nossa arquitetura. (...)
Agora, a residência de Warchavchik é uma realização completa e veio provar que mesmo em
arquitetura nos coube iniciar a modernização do Brasil
.”.
91
90
MACHADO, Lourival Gomes. Retrato da arte moderna do Brasil. São Paulo. Departamento de Cultura, 1947
in _XAVIER, Alberto (org). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo. Cosac
Naify, 2003. p.76
163
Warchavchik e a Exposição de Uma Casa Modernista
E com o evento Exposição de Uma Casa Modernista, ocorrido de 26 de março a 20 de abril
de 1930, Warchavchik ratificou sua aproximação com o grupo de intelectuais da Semana de
22. A Exposição ocorreu em uma casa por ele projetada à Rua Itápolis, no elegante bairro
do Pacaembu, e contou com a ativa participação dos artistas modernistas. A construção,
assim como ocorrera com a casa da Rua Santa Cruz, caracterizava-se pelas linhas retas,
falta de ornamentos e racionalidade da planta, de forma a implantar no seio de um bairro
notadamente aristocrático de São Paulo mais um marcante exemplar de arquitetura com
linguagem moderna. Tal fato, como era de se esperar, gerou grande revolta e
inconformação nos arquitetos ligados à Academia e sua formação tradicional. Christiano das
Neves demonstra o tom desta reação de indignação a partir de seu artigo publicado no
jornal Diário de São Paulo em 16 de abril de 1930:
É lamentável que a Prefeitura tenha permitido a construção dessas casas grotescas, quando o seu
Código de Obras Arthur Saboya, no art. 146 determina: O estilo arquitetônico e decorativo é
completamente livre, enquanto não se oponha ao decoro e à regra da arte de construir. A Diretoria de
Obras poderá recusar os projetos de fachadas que acusam um flagrante desacordo com os preceitos
básicos da arquitetura. Ora, isto quer dizer que é permitida a construção em qualquer dos estilos
arquitetônicos, mas, logicamente, quando ela não obedece a nenhum estilo deve ser proibida. Logo,
a casa do Pacaembu não poderia ser construída porque, não tendo arte, não pode ter estilo. Tal casa
está portanto em flagrante desacordo com os preceitos básicos da arquitetura porque não tem
beleza.
(...)
A máquina de habitar do Pacaembu é uma nota dissonante no aristocrático bairro que a Cia. City nos
presenteou. Esta benemérita empresa, que traçou com tanta arte o lindo arrebalde obriga os
proprietários a cumprir umas tantas e justas exigências nas construções. É inconcebível que tenha
permitido a edificação da ‘casa mecânicaque, externamente é um monstrengo. Imagine-se o que
será essa cidade-jardim se continuarem a aparecer as casas tumulares de cimento armado. Será
inevitável a desvalorização desses terrenos, que mais parecerão um prolongamento do cemitério do
Araçá.
92
91
FERRAZ, Geraldo. Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil: 1925 a 1940. São Paulo.
Museu de Arte de São Paulo, 1965. p. 26
164
Nas palavras de Christiano das Neves é possível observar o ranço de pensamento que
ainda dominava a arquitetura paulista, sobretudo aquela destinada às classes abastadas
visto que estas necessitavam de uma expressão “dignificante” para suas residências. E é
neste sentido que a Exposição de Uma Casa Modernista ganha maior importância e
destaque pois possibilitou que um público de cerca de 20 mil visitantes
93
entrasse em
contato direto com a arquitetura e a arte modernas, desmistificando tais realizações e
aproximando-as do cotidiano dos cidadãos. As obras de arte - tão ridicularizadas durante a
Semana de 22 - e a construção de linhas simples e sinceras - anteriormente comparada a
lápides de cemitério - podiam ser vistas e apreciadas em um conjunto tão harmonioso e
adequado aos tempos modernos então vividos que foram capazes de, lentamente, derrubar
preconceitos persistentes, tornando-se um eficaz meio de educação da população.
o convite à população para que entrassem em contato com a nova arquitetura
Fig. 34 – foto da época com faixa referente à Exposição de uma Casa Modernista
Na residência projetada para a Rua Itápolis, Warchavchik fez uso novamente de princípios
de racionalidade e economia a fim de contornar as limitações físicas impostas pelo exíguo
terreno do Pacaembu. A partir de uma planta compacta, possível através da eliminação de
corredores de distribuição interna, obteve ambientes confortáveis e aconchegantes,
92
FERRAZ, Geraldo. Warchavchik e a introdução da nova arquitetura no Brasil: 1925 a 1940. São Paulo.
Museu de Arte de São Paulo, 1965. p. 90
165
adequados às necessidades da vida moderna que, uma vez conjugados com as obras de
artistas como Tarsila do Amaral, Anita Malfatti, Menotti del Picchia, Victor Brecheret, dentre
outros, foram capazes de bem surpreender os visitantes, provando a adequação das
propostas modernistas. Neste projeto, ao contrário do que ocorrera com a Casa da Rua
Santa Cruz, Warchavchik pôde fazer uso do concreto armado de forma mais intensa,
aproximando sua realização prática de seu discurso teórico apresentado no Manifesto e
outros escritos.
pav. térreo
pav. superior
Fig. 35 - plantas Casa da Rua Itápolis
93
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.69
166
Fig. 36 – vista geral volumetria Casa da Rua Itápolis
Gregori foi responsável por outros projetos de caráter moderno em São Paulo e
posteriormente no Rio de Janeiro, quando se associou a Lucio Costa na década de 30. Seu
pioneirismo fez com que a arquitetura moderna no Brasil passasse de uma promessa teórica
para ser uma realidade tangível. Mas apesar de todo seu esforço de convencimento e
educação da população, ainda havia um longo percurso até que as expressões
academizantes fossem definitivamente postas de lado. Porém, para se falar deste período
de nossa arquitetura, outra importante personalidade deve ser lembrada por sua atuação
decisiva em defesa da arquitetura moderna no Brasil: Flávio de Carvalho.
Flávio de Carvalho
Flávio formou-se engenheiro civil pela Universidade de Durham, na Inglaterra, e
complementou seus estudos ao freqüentar a Escola de Belas Artes da mesma Universidade,
o que lhe conferiu formação bastante ampla e diversificada. Tendo voltado ao Brasil em
1923, não pôde testemunhar a efervescência da Semana de Arte Moderna de 1922, porém
era defensor da estética modernista e, embora não tenha adquirido de princípio qualquer
destaque, acompanhava assiduamente as manifestações de seus intelectuais.
167
Passou a integrar a equipe do escritório de Ramos de Azevedo na qualidade de calculista
estrutural porém, o fato de se ver obrigado a calcular estruturas mal dimensionadas a fim de
que estas pudessem se enquadrar em determinado estilo histórico, somado à sua
proximidade com os ideais modernistas, fez com que logo ele se voltasse contra aquela
arquitetura de cenário.
Mesclando conhecimento técnico, experiência no exterior - justamente no país berço da
Revolução Industrial - e crítica de arte - escreveu inúmeros artigos sobre espetáculos
teatrais, de dança, exposições, etc. -, Flávio de Carvalho, tornou-se um artista maior cujas
obras arquitetônicas aliavam-se às artes, atingindo resultados que podem ser englobados
nas correntes do futurismo, expressionismo e até surrealismo.
94
A despeito de sua atuação enquanto escultor, cenógrafo, pintor, escritor, desenhista, além
de suas inúmeras performances públicas, ao presente trabalho interessa a polêmica que
gerou em torno da arquitetura moderna à medida que inscreveu-se em concursos públicos
de grande vulto e visibilidade sempre apresentando projetos provocativos em uma franca
defesa da adoção da arquitetura moderna para os edifícios públicos, atitude vista com
desconfiança por parte das autoridades competentes. Embora tenha tido poucas obras
construídas, merecendo destaque o conjunto residencial da Alameda Lorena esquina com
Ministro Rocha Azevedo, datado de 1933, sua importância histórica se pelo caráter
propagandístico pró arquitetura moderna contido em suas propostas. Sua postura altiva,
resoluta, atrevida, e até certo ponto impertinente, “obrigava” as autoridades a sempre se
depararem com uma proposta moderna nos concursos, de forma que aos poucos implantou
um questionamento sobre a adequação e pertinência dos projetos “clássicos” às exigências
de tais concursos.
94
DAHER, Luiz Carlos. Flávio de Carvalho: arquitetura e expressionismo. São Paulo. Projeto
Editores, 1982. p.11
168
o expressionismo levado às últimas conseqüências
Fig. 37 – fachada de uma das residências do conjunto localizado à Alameda Lorena
Flávio de Carvalho sobressaiu-se a partir de seu projeto para o concurso sobre a construção
do Palácio do Governo, ocorrido em fins de 1927. É de se imaginar a polêmica que sua
proposta gerou uma vez que se encontrava apenas dois anos após o Manifesto de
Warchavchik, porém ainda um ano antes da primeira realização de Warchavchik na esfera
prática com a Casa da Rua Santa Cruz. Seu projeto era por demais inovador para o
momento, sobretudo por se tratar de um concurso para um edifício de suma importância
administrativa e, apesar da sumária rejeição que recebeu da junta julgadora, sua atitude foi
imediatamente aplaudida pelos artistas modernistas que tempos se empenhavam em um
movimento de renovação cultural.
Dando-se o concurso em um período posterior a fortes tensões políticas - a capital paulista
havia ficado sitiada em 1924 - Flávio de Carvalho idealizou um edifício que não somente
representasse a força do Estado de São Paulo, mas também possuísse aparato bélico tal
que pudesse garantir a defesa e a ordem. Desta forma, o projeto era marcado por um forte
169
aspecto militar, pela sobriedade e pela imponência, assemelhando-se a uma fortaleza. A
construção seria composta de volumetria variada, como que pela agregação de diversos
edifícios em um só, organizados em torno de um eixo de simetria correspondente aos
elevadores principais. O programa estava organizado da seguinte forma: um hall semi-
cilíndrico ao centro, ladeado pelas casas civil e militar; no nível superior encontravam-se os
salões de baile e banquete; no último vel localizavam-se a residência do presidente do
Estado e suas salas de trabalho; as bases de aviação e defesa estavam localizadas sobre
as coberturas planas laterais. O projeto ainda previa grandes holofotes cuja função era
iluminar as naves que sobrevoariam a cidade.
95
monumental e imponente, porém moderno
Fig. 38 – croqui do arquiteto para o projeto do Palácio do Governo
Flávio encontrou limitações impostas pelo edital de concorrência do concurso, mas sempre
defendeu a adoção das plantas do edifício como sua base de raciocínio, sendo as fachadas
meras conseqüências da organização em planta das necessidades programáticas da
construção. No entanto, por ser um projeto de vanguarda, caracterizava-se por apresentar
elementos ainda de transição, o que pode ser visto à medida que o eixo de simetria,
elemento de caráter clássico, assume fundamental importância na composição do projeto.
95
DAHER, Luiz Carlos. Flávio de Carvalho: arquitetura e expressionismo. São Paulo. Projeto
Editores, 1982. p.15
170
De fato, Flávio de Carvalho não conseguiu neste projeto, e nem em muitos outros de sua
carreira, desvencilhar-se do conceito da simetria, considerado por ele o meio mais eficaz de
se atingir o equilíbrio estético da construção.
a simetria evidenciando princípios compositivos clássicos
Fig. 39 – fachada para o Palácio do Governo
Flávio de Carvalho participou de outros importantes concursos - a saber: concurso para o
Palácio do Congresso Estadual de São Paulo, para a embaixada do Brasil na Argentina,
para a Universidade de Belo Horizonte e para o Farol de Colombo na República Dominicana
- sempre com propostas ousadas e desafiadoras para a mentalidade arquitetônica de então.
As corriqueiras recusas de seus projetos não foram suficientes para abalar sua crença na
vitória da arquitetura moderna enquanto resposta adequada e definitiva aos problemas da
vida moderna.
Le Corbusier
Ao se falar deste período, é mister salientar a vinda de Le Corbusier para o Brasil, ocorrida
em 1929. Ele permaneceu dois meses na América do Sul proferindo conferências em
Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo e Rio de Janeiro. Ao passar pela capital paulista ficou
muito bem impressionado não pela ótima recepção que recebeu por parte das
autoridades locais - sobretudo Julio Prestes, prefeito da cidade e leitor de L’ Esprit Nouveau
- mas também pelas realizações de Warchavchik junto à arquitetura moderna, as quais teve
171
a oportunidade de visitar, o que acabou rendendo ao arquiteto russo a indicação para que
fosse o representante brasileiro nas conferências do CIAM.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, Le Corbusier percebeu que a arquitetura daquela exuberante
cidade encontrava-se, se comparada a São Paulo, mais distante das realizações modernas.
As conferências que proferiu então na Associação dos Arquitetos foram assistidas por um
pequeno grupo de intelectuais e, embora não tenham sido capazes de alavancar a
arquitetura moderna no Rio de Janeiro naquele momento, serviram para lançar sementes ao
vento que foram muito eficientes para que seu retorno ao Brasil em 1936 fosse possível.
***
Desta forma, o período foi marcado pelas primeiras manifestações da arquitetura moderna
no Brasil, tanto nas esferas teórica quanto prática, de forma a dar início a uma trajetória que
se tornaria cada vez mais sólida e definitiva no cenário arquitetônico do país, conduzindo
para o sepultamento da “arquitetura de estilos” e contribuindo para o posterior surgimento de
uma arquitetura moderna brasileira.
172
Capítulo 5
Terceira fase do Modernismo (a partir de 1930): o intelectual e o
Estado
173
5.1. Revolução de 1930: um novo marco
De um quadro de insatisfação política, social e econômica, expressa através de um
movimento tenentista, das classes médias que buscavam espaço e maior representatividade
no cenário brasileiro, da crise da economia fundamentada na monocultura de exportação e
da conseqüente perda de prestígio e força por parte de sua oligarquia, então elite
hegemônica da sociedade brasileira, surgiu o episódio da Revolução de 1930.
Visto objetivamente, ele pode ser descrito a partir da eleição de Julio Prestes para a
presidência da República em março de 1930. Embora a votação apontasse larga vantagem
ao vencedor, as oposições paulistas, gaúcha e mineira alegaram fraude nas eleições e,
tendo em vista este argumento, conseguiram a adesão de Getúlio Vargas ao movimento de
insurreição, fato fundamental para a legitimação do golpe que contava com o apoio dos
“tenentes” que, a cada dia, ganhavam mais espaço nas Forças Armadas. Julio Prestes
tomaria posse em 15 de novembro de 1930 porém, antes disso, houve o levante dos
revolucionários a partir dos quartéis de Rio Grande do Sul e Minas Gerais em uma marcha
que avançou rumo ao Rio de Janeiro e que, dadas suas proporções, gerou uma situação de
insustentabilidade no governo brasileiro, ocasionando a deposição de Washington Luís por
uma junta militar a 24 de outubro de 1930. Desta forma, Getúlio Vargas tomou posse em 3
de novembro de 1930.
Porém, é preciso verificar as características do novo governo que se instaurou, as
alterações trazidas por ele nos âmbitos político, social e econômico, e de que forma isto
afetou o panorama cultural do país, com conseqüências em suas realizações artísticas. De
fato, o que se viu foi o início de um período em que o liberalismo democrático da Aliança
Liberal, com a atuação dos “tenentes” à frente do levante, foi transmutado em autoritarismo;
174
o modelo agro exportador começou a dividir seu espaço com a industrialização; isto é, um
período de abertura para novas alternativas.
96
O episódio da Revolução de 1930 nos mostra um corte de gerações, em que o ímpeto dos
mais jovens, tanto civis quanto militares, superou o peso dos velhos oligarcas e sua
tradicional recomposição em torno do poder. Foi da articulação de uma parcela razoável do
aparelho militar do Estado com representantes das classes dominantes de áreas pouco
vinculadas ou totalmente desvinculadas dos interesses cafeeiros - Minas Gerais, Rio Grande
do Sul e Paraíba - que nasceu a frente que derrubou do poder Washington Luís. O
proletariado teve uma presença difusa na revolução, uma vez que ainda não estava
organizado como uma classe social ou como uma categoria cujos objetivos da coletividade
estariam definidos, porém é possível perceber sua simpatia pelos revolucionários a partir de
algumas manifestações, como a adesão de operários de Brás ao cortejo de Getúlio, por
exemplo. É importante que se destaque também neste momento a atuação da Igreja
Católica. Embora a colaboração entre Igreja e Estado já ocorresse desde os anos 20, ela foi
intensificada neste período, de forma que a grande massa católica foi incentivada a apoiar o
novo governo. Em troca, a Igreja obteve alguns importantes favorecimentos, como a
aprovação do ensino da religião nas escolas públicas.
Dentro do exército, cuja participação foi decisiva para o êxito da revolução, o que se viu foi a
iniciativa ser tomada por seu setor mais dinâmico, representado pelos “tenentes”, e não pela
alta cúpula. Uma vez que muitos dos “tenentesencontravam-se fora do aparelho militar,
pois haviam sido afastados das fileiras do Exército devido aos episódios anteriores, e tendo
em vista que os altos escalões encontravam-se bastante divididos, coube aos quadros
intermediários, representados pelos “generais”, assumir o comando das operações. Desta
forma, a cúpula interveio na luta a partir do momento em que a balança começou a
pender favoravelmente aos revolucionários, com o objetivo nítido de ser um poder
96
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 449
175
substitutivo e moderador, como uma forma de prevenir excessos, embora não se
preocupassem em esconder que tinham intenções de se perpetuar no governo. Boris Fausto
descreve em poucas linhas o que foi a Revolução de 1930 e os mecanismos que a tornaram
possível:
Em síntese, a crise da hegemonia da burguesia cafeeira possibilita a rápida aglutinação das
oligarquias não vinculadas ao café, de diferentes áreas militares onde a oposição à hegemonia tem
características específicas. Essas forças contam com o apoio das classes médias e com a presença
difusa das massas populares. Do ponto de vista das classes dominantes, a cisão ganha contornos
nitidamente regionais, dadas as características da formação social do país (profunda desigualdade de
desenvolvimento de suas diferentes áreas, imbricamento de interesses entre a burguesia agrária e a
industrial nos maiores centros), e as divisões ‘puras’ de fração - burguesia agrária, burguesia
industrial - não se consolidam e não explicam o episódio revolucionário
.”
97
Após o golpe, Vargas assumiu a liderança do governo do país através de um governo
provisório em um quadro que pode ser chamado Estado de compromisso”. Isto se deu
porque a frente que substituiu a hegemonia cafeeira tinha uma formação heterogênea, onde
cada um de seus grupos participantes tinha um peso político equivalente, não conseguindo
conferir ao Estado as bases de sua legitimidade: as classes médias não tinham autonomia
frente aos interesses tradicionais, a burguesia do café havia perdido sua força e
representatividade, os demais setores agrários eram pouco desenvolvidos e estavam
desvinculados das atividades exportadoras, base da economia brasileira. Desta forma, o
“Estado de compromisso” que se instalou partia do princípio de que as várias facções
estariam comprometidas entre si de forma que o governo não mais representaria os
interesses exclusivos de uma só classe hegemônica. É importante ressaltar que tal forma de
governo foi possível também pela falta de oposições radicais no interior das classes
dominantes.
98
97
FAUSTO, Boris. A Revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.
p.135, 136
98
Ibidem. p.136
176
Embora a burguesia do café tenha sido afastada do poder central, Vargas não deixou de
atender aos interesses econômicos do setor visto que, mesmo com o caainda em crise,
ele permanecia constituindo o núcleo central da economia brasileira. No entanto, o Estado
passou a concentrar a política cafeeira em suas mãos. Se antes o controle desta política
ficava a cargo do Instituto do Café do Estado de São Paulo, ligado diretamente à oligarquia
cafeeira, ela passou em 1931 para a tutela do Conselho Nacional do Café e em 1933 ao
Departamento Nacional do Café, cujos diretores eram nomeados pelo Ministro da Fazenda,
anulando as possíveis interferências por parte dos Estados produtores, caracterizando a
federalização da política cafeeira.
99
Houve também incentivos à diversificação da produção,
como forma de contornar a difícil situação econômica e acolher as reivindicações das
classes desvinculadas do setor cafeeiro.
O governo Vargas agiu também no tocante à camada operária, mas mantendo o papel do
Estado enquanto desorganizador político desta classe, reprimindo sua organização
partidária. Porém não o fez adotando a política de simples marginalização antes empregada
pelas velhas classes dominantes, mas abraçando o chamado “problema social”. A partir de
medidas que pretendiam dar tratamento específico à questão, como a criação do Ministério
do Trabalho, Indústria e Comércio, e proteção da força de trabalho - regulamentação do
trabalho de mulheres e menores, concessão de férias, limite de oito horas para a jornada de
trabalho, etc. -, passou a reconhecer a existência da classe, controlando-a através de
instrumentos de representação profissional e sindicatos profissionais apolíticos. Em um
processo de manipulação ideológica, passou a valorizar o operário nacional, dificultando a
imigração européia de forma que o migrante de outras regiões do Brasil ocupasse as vagas
nas fábricas, afastando a ameaça trazida pelo operário europeu subversivo, socialista e
consciente de seus direitos de classe. Boris Fausto ressalta uma diferenciação do governo
Vargas para os demais antecedentes no que se refere à questão operária:
99
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Edusp, 2006. p. 333
177
A política trabalhista do governo Vargas constitui um nítido exemplo de uma ampla iniciativa que não
derivou das pressões de uma classe social e sim da ação do Estado. Os responsáveis pela nova
legislação eram os ministros do Trabalho, homens como os gaúchos Lindolfo Collor e Salgado Filho,
que não representavam os industriais ou os comerciantes; eram antigos participantes de movimentos
populares na Primeira República, como o advogado Evaristo do Morais e o sindicalista Joaquim
Pimenta; eram os técnicos ministeriais, como Oliveira Viana e Waldir Niemeyer
.”
100
O Estado provisório que se estabeleceu a partir do reajuste nas relações internas das
classes dominantes trouxe, por outro lado, uma maior centralização do poder, com um
intervencionismo não mais restrito apenas à área do café. Vargas, ao assumir o poder,
assumiu não o Executivo, mas também o Legislativo, à medida que dissolveu o
Congresso Nacional, os legislativos estaduais e municipais. As oligarquias cafeeiras haviam
abandonado o controle do governo e agora se subordinavam ao novo poder central, tendo
perdido também a ação direta nos governos dos Estados, agora sob o controle de
interventores federais. O Código dos Interventores, criado em agosto de 1931, limitava a
ação dos Estados, proibindo-os de contrair empréstimos externos sem autorização federal e
de dotar as polícias estaduais de artilharia, aviação e armamento em proporção superior ao
Exército. Este intervencionismo era conseqüência de um Estado que precisava se abrir a
todas as pressões mas sem se subordinar a nenhuma delas. Paulatinamente, as ideologias
liberais de governo foram sendo substituídas pelas idéias autoritárias, principalmente
inspiradas no fascismo.
Novamente a atuação dos “tenentes” foi primordial pois eles traziam consigo a intenção de
um programa de governo que pregava o atendimento uniforme das necessidades das várias
regiões do país, a instalação de uma indústria básica e uma proposta de nacionalização que
incluía as minas, a navegação de cabotagem, e os meios de transporte e comunicação.
Como, a seu ver, a implantação de tal programa seria viável a partir de um governo
federal centralizado e estável, acabaram incentivando a centralização do poder, defendendo
100
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Edusp, 2006. p. 336
178
o prolongamento da ditadura Vargas com a elaboração de uma Constituição, em oposição
aos pontos de vista liberais. Ao mesmo tempo, a corrente autoritária apresentava-se de
forma cada vez mais atraente tendo em vista a dificuldade de organização das classes e da
formação de partidos, bem como da associação do liberalismo à antiga prática das
oligarquias. Desta forma, em um país desarticulado como o Brasil, caberia ao Estado
“organizar a nação para promover dentro da ordem o desenvolvimento econômico e o bem-
estar geral. O Estado autoritário poria fim aos conflitos sociais, às lutas partidárias, aos
excessos da liberdade de expressão que só serviam para enfraquecer o país”.
101
Tal centralização do poder também se justificava pelo desejo de moralização administrativa,
de forma que bases racionais e centralizadas pudessem combater a corrupção e o
casuísmo. Assim sendo, o governo central combateria os localismos e as forças regionais a
partir do racionalismo presente em uma gestão científica” e eficiente. As teorias de
Frederick Taylor exerceram neste momento grande influência pois possibilitariam a
reorganização do aparelho estatal em bases técnicas e racionais, bem como das fábricas e
indústrias, proporcionando melhores condições de trabalho, o que afastaria o fantasma da
luta de classes, uma vez que os operários estariam mais satisfeitos, conduzindo a uma
situação de paz social conveniente às classes dominantes.
102
Esta preocupação com a
situação da classe operária era justificável à medida que se percebe seu crescimento em
importância: em meados da década de 1930 a produção industrial paulista equivalia ao
dobro do valor das exportações do café.
Outra questão que diferencia o governo Vargas de seus antecessores é a atuação junto à
educação. Anteriormente, as iniciativas ficavam restritas ao âmbito estadual, correspondente
ao sistema de uma República Federativa, variando muito entre as diversas regiões do país.
A partir de 1930, buscou-se criar um sistema educativo integrado, dentro da visão
101
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Edusp, 2006. p. 357
102
CAMPOS, Candido Malta. Os rumos da cidade. São Paulo. Editora SENAC, 2002. p. 451 a 453
179
centralizadora do governo, cujo marco inicial foi a criação do Ministério da Educação e da
Saúde. Desta forma, o Estado buscou organizar a educação de cima para baixo, ficando a
política educacional a cargo de jovens políticos mineiros: Francisco Campos, ministro da
educação de novembro de 1930 a setembro de 1932, posteriormente substituído por
Gustavo Capanema, que permaneceu à frente do ministério entre 1934 e 1945. No plano do
ensino superior, o Estado criou condições para o surgimento de verdadeiras universidades,
visto que até então elas eram apenas junções de escolas superiores. No que se refere ao
ensino secundário, passou a implantá-lo dentro de um mesmo padrão por todo o país,
instituindo um currículo seriado, a freqüência obrigatória e a exigência de diploma de nível
secundário para o ingresso no ensino superior. Segue uma descrição das correntes que
concorreram para a formação da política educacional do estado Getulista:
A ação do Estado no setor educativo relacionou-se intimamente com movimentos na sociedade,
envolvendo educadores e a elite cultural, como a fundação da USP bem exemplifica. Esses
movimentos vinham da década de 1920 e ganharam maior ressonância após a Revolução de 1930.
Podemos falar de duas correntes básicas opostas: a dos reformadores liberais e a dos pensadores
católicos.
A Igreja Católica enfatizava o papel da escola privada, defendia o ensino religioso facultativo e
diferenciado segundo o sexo. Sob esse aspecto, o pressuposto era de que meninos e meninas
deveriam receber educação diferente, pois destinavam-se a cumprir tarefas diversas, na esfera do
trabalho e do lar.
Os educadores liberais sustentavam o papel primordial do ensino público e gratuito, sem distinção de
sexo. Propunham o corte de subvenção do Estado às escolas religiosas e a restrição do ensino
religioso às entidades privadas mantidas pelas diferentes confissões. O ponto de vista dos
reformadores liberais foi expresso no Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, ou simplesmente,
Manifesto da Escola Nova, lançado em março de 1933. Seu principal redator foi Fernando de
Azevedo, destacando-se também os nomes de Anísio Teixeira e Lourenço Filho, entre outros. O
manifesto constatava a inexistência no Brasil de uma ‘cultura própria’ ou mesmo de uma ‘cultura
feral’. Marcava a distância entre os métodos atrasados de educação no país e as transformações
profundas realizadas no aparelho educacional de outros países latino-americanos, como o México, o
Uruguai, a Argentina e o Chile. A partir de uma análise das finalidades da educação, propunha a
adoção do princípio de ‘escola única’, concretizado, em um primeira fase, em uma escola pública e
gratuita, aberta a meninos e meninas de sete a quinze anos, onde todos teriam uma educação igual e
comum.
(...)
180
O governo Vargas não assumiu por inteiro e explicitamente as posições de uma das correntes
apontadas, mas mostrou inclinação pela corrente católica, sobretudo na medida em que o sistema
político se fechava. (...)
103
Desta forma, é possível perceber que a ascensão de Getúlio ao poder trouxe alterações
substanciais à vida política, social, econômica e cultural do Brasil. Esquemas arcaicos de
favorecimento e exclusão social foram substituídos por um governo centralizador e
intervencionista. A ânsia de uma condição mais igualitária e justa para a população
brasileira acabou se transformando em autoritarismo. Resta enfatizar que este novo cenário
contribuiu para que os artistas e intelectuais do país dessem uma guinada em suas
orientações artísticas, pressupondo maior engajamento político e social como resposta a um
quadro de instabilidade e reorganização.
.
103
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo. Edusp, 2006. p. 339, 340
181
5.2. A pulverização do movimento
O Brasil não era mais o mesmo após a Revolução de 1930. O país havia passado por
transformações estruturais, de forma que a classe dirigente não era mais a mesma, a
economia se diversificava e contribuía para constituir um cenário mais complexo no tocante
a interesses, tensões e articulações, a sociedade brasileira ganhava um maior dinamismo a
partir da dissolução da hegemonia da oligarquia cafeeira e da conscientização de uma
classe operária que, antes desarticulada e oprimida, passou a conhecer seu poder dentro de
uma sociedade cada vez mais industrializada. O governo autoritário buscava abranger de
maneira uniforme, através de suas ações centralizadoras, a integralidade do território
nacional, criando uma demanda de novas instituições e instâncias federais que pensassem
o país como um todo, necessitando, assim, de um quadro de profissionais colaboradores
com o governo mais amplo e diversificado.
Este evento suscitou por todo país correntes de esperança, oposições, programas e
desenganos que acabaram por marcar nossos artistas e intelectuais, gerando
conseqüências no modernismo brasileiro. Na década de 20, a preocupação maior do
movimento era instaurar e firmar uma nova linguagem. No entanto, à medida que suas
proposições revolucionárias de expressão passaram a ser aceitas e praticadas, perderam
sua contundência, sendo gradativamente atenuadas e diluídas. Esta “rotinização da
linguagem, somada à abertura e diversificação trazidas pela Revolução de 1930 levaram à
diluição da estética modernista e, consequentemente, à pulverização do movimento em
direções e ações diversas. O evento revolucionário abriu a discussão em torno da história
nacional, da condição de vida do povo, trazendo uma necessidade urgente de um real
conhecimento do Brasil, de forma que à geração de 22 se juntaram ensaístas, historiadores,
técnicos, críticos, etc., na tentativa de composição do verdadeiro quadro que representasse
o Brasil. Uma vez que a forma de expressão moderna já estava em curso, afastado
definitivamente o fantasma do passadismo, e já havendo a consciência de que a valorização
182
do elemento nacional era a maneira mais acertada de se defender a modernidade - mesmo
que esta defesa fosse feita de diferentes maneiras por cada uma das correntes artísticas -
era preciso saber de que nacionalidade se estava falando e para qual “povo brasileiro” ela
estava sendo dirigida. Tratava-se de uma questão de conhecimento e reconhecimento do
Brasil.
Porém, se uma característica que diferencia a produção artística da década de 20 da
realizada a partir de 1930 é o engajamento social. Por todo o mundo a década de 30 é
marcada pela forte luta ideológica, onde fascismo, nazismo, comunismo, socialismo e
liberalismo protagonizam os maiores embates. No Brasil, por sua vez, houve o crescimento
do Partido Comunista, a organização da Aliança Nacional Libertadora, a Ação Integralista e
o populismo trabalhista de Getúlio, com a consciência da luta de classes passando a
penetrar em todas as instâncias da sociedade, produzindo frutos também no ambiente
literário e intelectual. Este não poderia passar incólume por todas estas transformações.
Houve, portanto, na cada de 30 um predomínio do projeto ideológico sobre o projeto
estético, centro das discussões de nosso modernismo na década de 20. E neste momento o
projeto ideológico veio acrescido de um nono elemento: a consciência política. No primeiro
momento de nosso modernismo, o “anarquismo” serviu para descobrir o país e instaurar
uma nova visão distinta do caráter representativo das oligarquias e das estruturas
tradicionais, mas ainda dotado de um estado de ânimo eufórico que inspirava otimismo;
porém, a politização deste terceiro momento descobriu ângulos diferentes que suscitavam a
preocupação com os problemas sociais, produzindo ensaios históricos e sociológicos, o
romance de denúncia, a poesia militante e de combate. Como nos explica João Luiz Lafetá:
(...) nos anos vinte a tomada de consciência é tranqüila e otimista, e identifica as deficiências do país
- compreendendo-as - ao seu estatuto de ‘país novo’; nos anos trinta dá-se início à passagem para a
consciência pessimista do subdesenvolvimento, implicando atitude diferente diante da realidade.
Dentro disso podemos concluir que, se a ideologia do país novoserve à burguesia (que está em
183
franca ascensão e se prevalece, portanto, de todas as formas - mesmo destrutivas - de otimismo), a
consciência (ou a ‘preconsciência’, como prefere Antonio Candido) pessimista do
subdesenvolvimento não se enquadra dentro dos mesmos esquemas, que aprofunda contradições
insolucionáveis pelo modelo burguês
.”
104
O ambiente intelectual brasileiro seria afetado pelas novas visões políticas, ora
esquerdizantes, ora autoritárias de direita, de forma que as obras resultantes deste período
são um retrato da diversidade e da “tomada de partido” que seus autores fizeram em prol do
governo, em prol da população esquecida, enfim, em prol do que consideravam ser o melhor
para o país. Houve um forte engajamento social que causou uma aproximação entre os
intelectuais e o governo na ânsia de poder contribuir na construção de um Brasil melhor.
Desta forma, já não era mais preciso ajustar o quadro cultural do país a uma realidade mais
“moderna”, mas sim buscar reformar ou revolucionar esta realidade, suplantando a visão
burguesa do mundo. Esta mudança de ênfase do modernismo fez com que surgissem as
figuras do proletário e do camponês em nossa arte - como no caso da obra Vidas Secas -
como forma de denúncia das atitudes que os mantinham em condições de subumanidade.
Mario de Andrade traduz os momentos então vividos:
(...) Mil novecentos e trinta... Tudo estourava, políticas, famílias, casais de artistas, estéticas,
amizades profundas. O sentido destrutivo e festeiro do movimento modernista não tinha razão de
ser, cumprido o seu destino legítimo. Na rua, o povo amotinado gritava: - Getúlio! Getúlio!... Na
sombra, Plínio Salgado pintava de verde a sua megalomania de Esperado. No norte, atingindo de
salto as nuvens mais desesperadas, outro avião abria asas do terreno incerto da bagaceira. Outros
abriam mas eram as veias pra manchar de encarnado as suas quatro paredes de segredo. Mas
nesse vulcão, agora ativo e de tantas esperanças, vinham se fortificando as belas figuras mais
nítidas e construidoras, os Lins do Rego, os Augusto Frederico Schmidt, os Otávio de Faria e os
Portinari e os Camargo Guarnieri. Que a vida terá que imitar qualquer dia
.”
105
104
LAFETÁ, João Luiz. 1930: A crítica e o Modernismo. São Paulo. Duas Cidades; Ed. 34, 2000. p.29
105
ANDRADE, Mário de. Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 244
184
É necessário ressaltar também a influência que o ensaísmo social e as pesquisas
antropológicas sistemáticas exerceram sobre os intelectuais modernistas. As obras de
Gilberto Freyre, Caio Prado, Sergio Buarque de Holanda, dentre outros, trouxeram valiosas
contribuições no sentido de detectar as qualidades e defeitos do homem brasileiro, isto é,
traçar o caráter nacional. Os artistas não tardaram em se apropriar desta abordagem
psicológica do povo brasileiro, incorporando-a em suas obras.
Desta forma, o que se viu foi um período marcado pela associação de um governo
centralizador que buscava consertar erros históricos e unificar culturalmente o país a fim de
constituir uma nação que caminhasse rumo ao progresso, com uma intelectualidade que se
via pela primeira vez perante a possibilidade real de constituir um futuro melhor para o
Brasil. As instituições governamentais careciam de pensadores e articuladores e os
modernistas lançavam-se em projetos de organização em sistematização de uma cultura
nacional. No entanto, e infelizmente, seus esforços se viram frustrados em muitos
momentos uma vez que o autoritarismo, a repressão e a censura, sobretudo após o Estado
Novo, suplantaram os desejos iniciais de construção de uma nação equilibrada, justa e
intelectualizada. Muitos intelectuais perceberam o equívoco de suas pretensões -
transformar em práxis seus ideais culturais - engolidos que foram pelo sistema de governo
centralizador: mais uma vez, suas teorias haviam ficado restritas ao campo das palavras.
Neste sentido, justifica-se finalizar esta breve narrativa com a transcrição da severa
autocrítica feita por Mario de Andrade ao fim de sua vida por bem traduzir este sentimento
de frustração perante o uso “inescrupuloso” de seus ideais e idéias por parte do governo
(lembrando que Mario chegou a ocupar cargos públicos, os quais posteriormente
abandonou ao verificar a ineficiência de seus esforços).
Não tenho a mínima reserva em afirmar que toda a minha obra representa uma dedicação feliz a
problemas do meu tempo e minha terra. Ajudei coisas, maquinei coisas, fiz coisas, muita coisa! E no
entanto me sobra agora a sentença de que fiz muito pouco, porque todos os meus feitos derivaram
duma ilusão vasta. E eu que sempre me pensei, me senti mesmo, sadiamente banhado de amor
185
humano, chego no declínio da vida à convicção de que faltou humanidade em mim. Meu
aristocratismo me puniu. Minhas intenções me enganaram.
(...) O engano é que nos pusemos combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Deveríamos ter
inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior angústia do tempo, de maior revolta
contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou
cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E si agora percorro a minha obra
numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma vez pegar a máscara do
tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim,
não me satisfaz.
Não me imagino político de ação. Mas nós estamos vivendo uma idade política do homem, e a isso
eu tinha que servir. Mas em síntese, eu me percebo, feito um Amador Bueno qualquer, falando
‘não quero e me isentando da atualidade por detrás das portas contemplativas de um convento.
Também não me desejaria escrevendo páginas explosivas, brigando a pau por ideologias e
ganhando os louros fáceis de um xilindró. Tudo isso não sou eu e nem é pra mim. (...)
Tudo o que fizemos... Tudo o que eu fiz foi especialmente uma cilada da minha felicidade pessoal e
da festa em que vivemos. É alias o que, com decepção açucarada, nos explica historicamente. Nós
éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer
individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre. E já mostrei que o movimento
modernista foi destruidor. Muitos porém ultrapassamos essa fase destruidora, não nos deixamos ficar
no seu espírito e igualamos nosso passo, embora um bocado turtuveante, ao das gerações mais
novas. Mas apesar das sinceras intenções boas que dirigiam a minha obra e a deformaram muito, na
verdade, será que não terei passeado apenas, me iludindo de existir? (...)
Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a
ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da
humanidade. Nunca jamais ele foi tão ‘momentâneocomo agora. Os abstencionismos e os valores
eternos podem ficar pra depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa
universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o
amilhoramento político-social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade
.”
106
106
ANDRADE, Mário de. Conferência realizada na Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1942 in
________. Mestres do modernismo. São Paulo. Imprensa Oficial, 2005. p. 252 a 255
186
5.3. A necessidade de se resgatar a identidade do povo brasileiro
Como foi visto, o governo do período Vargas trouxe características e peculiaridades que o
distanciam das administrações federais da República Velha. Se no final do século XIX e
início do século XX o poder econômico e as influências exercidas por determinadas famílias
bastavam para garantir a tranqüilidade administrativa do país, visto que tal esquema não era
questionado com força suficiente capaz de abalá-lo, após a Revolução de 1930 o novo
governo tinha a incumbência de convencer a população de sua capacidade, garantindo o
crescimento e o desenvolvimento da nação para além dos objetivos antes estabelecidos
pela oligarquia cafeeira. A fim de que tal desenvolvimento fosse viável, era preciso unificar
as disparidades de um país continente repleto de regionalismos, tornando fundamental que
se resgatasse, ou se criasse, uma identidade para o povo brasileiro, a partir da definição do
caráter nacional.
Segundo Álvaro Vieira Pinto, o planejamento do desenvolvimento nacional pertencia ao
poder público por ser ele o detentor da melhor aparelhagem para tal feito, bem como pelo
poder de comando. No entanto, a execução de tal plano dependia da atuação de agentes
voluntários oriundos da população cuja colaboração precisaria ser conquistada. Uma vez
que o processo de desenvolvimento pressupõe a existência de uma unidade de ação, seria
necessário que as diversas decisões voluntárias participantes fossem convergentes, o que
seria possível se cada indivíduo construísse para si a mesma representação do estado
social presente pois ele irá agir de acordo com a idéia que o habita. O governo central,
sabedor desta premissa ao desenvolvimento, e conseqüentemente à sua aprovação, não
tarda a investir em uma consciente ação sobre a população. Álvaro complementa:
Para que a resistência seja reduzida, e se converta livremente em concordância, que é necessário?
É necessário que na consciência individual se instale, no lugar da anterior, nova representação,
aquela que, por hipótese, contém a imagem justa da realidade nacional daquele instante, e portanto
permite a concepção do plano de desenvolvimento que os grupos sociais dirigentes pretendem
187
realizar. Como, porém, não violência capaz de forçar a substituição de uma idéia por outra, se
chegará a conseguir essa substituição se a idéia que deve presidir aos processos de
desenvolvimento for tal que, por si mesma, pelos seus caracteres lógicos, pela clareza, exatidão e
força sugestiva, uma vez apresentada à apreciação individual, penetre na consciência de cada
cidadão, dos que dirigem e dos que executam (todos afinal executam o processo histórico) e passe a
comandar-lhe a ação. Em outras palavras, para que se torne possível, e depois real, a unidade
imprescindível ao rendimento ótimo do processo nacional, é necessário que aquilo que em cada
consciência privada é idéia, seja socialmente ideologia
.”
107
Assim sendo, torna-se praticamente impossível dissociar a implementação desta
consciência desenvolvimentista do advento da comunicação de massas. Isto porque as
diretrizes do projeto de desenvolvimento deveriam atingir a consciência popular geral de
forma que, quanto maior fosse a extensão de propagação, maior seria o êxito do projeto.
Porém, era necessário superar ações meramente propagandistas do governo, criando um
verdadeiro estado de consciência com a inclusão ativa da idéia no íntimo do ser. É preciso
que o projeto de desenvolvimento seja assimilado pelo povo e termine por identificar-se à
consciência das massas
108
. Getúlio tinha conhecimento de que a ideologia do
desenvolvimento não poderia se imposta “de cima para baixo”, devendo ser legitimada pela
consciência coletiva provindo diretamente das massas.
Mas qual imagem apoiar a fim de impulsionar o desenvolvimento pretendido pelo governo?
Por um lado, houve a divulgação da seriedade do brasileiro, imagem que vinha de encontro
à defesa de que seria possível erigir uma civilização ao sul do Equador, contrariando a visão
eurocêntrica do mundo. Símbolos desta vertente podem ser encontrados em expressões
como “ordem e progresso”, “povo ordeiro”, “este é uma país que vai para frente”. Por outro
lado encontramos a vertente que valoriza uma cultura tropical particular, suigeneris, distinta
da dos demais países, que sugeria um ethos brasileiro único e intraduzível. Esta vertente
107
PINTO, Álvaro Vieira. Ideologia e desenvolvimento nacional. Rio de Janeiro. Instituto Superior de Estudos
Brasileiros, 1960. p.25
108
Ibidem. p.32
188
estaria representada pelo “jeitinho brasileiro”, a malandragem, a sensualidade, a malícia,
etc.
109
Desta forma, o país foi tomado por um forte sentimento de nacionalismo, conveniente ao
governo centralizador cujo projeto de desenvolvimento pressupunha a unificação nacional
rumo a um denominador comum que se harmonizasse com as pretensões federais. O
caráter nacional foi analisado sob diversos pontos de vista gerando definições distintas - que
podem ser verificadas sobretudo nos clássicos Evolução política do Brasil, Casa grande &
senzala e Raízes do Brasil - porém todas vinculadas à busca da descrição de um quadro
que fosse capaz de abarcar todas as manifestações regionais, gerando uma visão geral e
unificada da nação.
Nosso nacionalismo buscou sua legitimação no culto ao seu passado - sobretudo do período
colonial -, na valorização de uma língua brasileira - expressão única e autêntica do país -, no
resgate de heróis nacionais, símbolos folclóricos e hábitos característicos de sua população,
de forma a ressaltar a autenticidade e soberania desta nação. Esta afirmação das
qualidades de sua nacionalidade, e conseqüente distanciamento da imitação de modelos
europeus alienígenas às condições e características locais deve muito à atuação dos
modernistas provenientes da geração de 1922 e de sua luta em prol de uma autonomia
intelectual.
Resta-nos analisar de que forma as pretensões do governo associadas a uma consciência e
orgulho nacional por parte da população afetaram as realizações arquitetônicas do país,
uma vez que a estética neoclássica estava associada ao período de hegemonia da
oligarquia cafeeira, e a semente da arquitetura moderna havia sido lançada em solo
brasileiro.
109
OLIVEN, Ruben George. In MICELI, Sergio (org). Estado e cultura no Brasil. São Paulo. Difel, 1984. p.46 e
47
189
5.4. A mediação: Lucio Costa
O novo governo instaurado após a Revolução de 1930, bem como os valores por ele
defendidos, propiciaram um novo panorama no qual a arquitetura moderna ganhou mais
espaço e maior representatividade no cenário arquitetônico, de forma que a década de 30
pode ser caracterizada pela proliferação de projetos de caráter moderno, configurando-se
como uma fase de afirmação após o pioneirismo e o vanguardismo dos projetos do final da
década de 20. No entanto, para que se compreenda a transição de um cenário marcado
pelo Ecletismo para um de intenções modernizantes, faz-se necessário analisar a atuação
de um arquiteto emblemático dentro de nossa história: Lucio Costa
110
.
Lucio formou-se arquiteto pela Escola Nacional de Belas Artes em 1924 dentro, como era de
se esperar, dos preceitos do Ecletismo e dos estilos históricos, tão em voga então. Sua
vasta cultura, proveniente da boa formação e das freqüentes viagens à Europa em
companhia da família, somada ao apurado senso crítico e de observação, fizeram com que
ele se destacasse no curso de arquitetura e já, desde o terceiro ano de seus estudos,
conseguisse emprego de desenhista em renomado escritório. Logo depois de formado,
principiava sua carreira projetando edifícios de caráter eclético.
111
110
A fim de que o leitor possa obter maiores informações a respeito da biografia desta importante personalidade,
remeto-o à obra Lucio Costa: registro de uma vivência, contida na bibliografia do presente trabalho.
111
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p. 13, 14 e 15
190
a primeira obra de Lucio Costa
Fig. 40 – projeto de Lucio Costa – casa Rodolfo Chambelland
No entanto, seu horizonte arquitetônico começou a se abrir a partir de uma viagem feita em
1922 à cidade de Diamantina. Descortinou-se à sua frente todo o universo de nossa
tradição, até então pouco conhecida para ele, de forma que suas referências arquitetônicas,
tão fortemente embasadas na cultura européia, começaram a dividir espaço com elementos
da tradição colonial:
chegando caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro; um passado de
verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: casas,
igrejas, pousada dos tropeiros, era tudo de pau-a-pique, ou seja, fortes arcabouços de madeira -
esteios, baldrames, frechais - enquadrando paredes de trama barreada, a chamada taipa de o, ou
de sebe, ao contrário de São Paulo onde a taipa de pilão imperava
.”
112
Assim sendo, sua produção arquitetônica de 1922 a 1928 seguiu o Ecletismo acadêmico,
adotando os estilos históricos de acordo com o desejo do cliente, porém dando grande
ênfase ao estilo neocolonial, o que lhe valeu, por exemplo, o apadrinhamento por parte do
arquiteto José Mariano, implacável defensor do estilo neocolonial. No entanto, é
fundamental destacar que, desde o princípio, a arquitetura neocolonial produzida por Lucio
112
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p. 27
191
Costa soube distanciar-se de um Ecletismo estéril onde o vocabulário arquitetônico era
aplicado superficialmente às construções. A partir de seus amplos conhecimentos,
destacados anteriormente, Lucio Costa pôde investigar e recuperar a gica do pensamento
do período colonial, trazendo-o para o período contemporâneo e adaptando-o às
necessidades da vida moderna, o que gerou projetos em que se pode perceber uma clareza
de intenções e pensamento, uma racionalidade que buscava conciliar a organização das
necessidades em planta com uma estética condizente com a nossa tradição, prenunciando
características de sua atuação profissional quando da adoção da estética moderna. A
respeito do neocolonial em Lucio Costa, Bruand complementa:
(...) Enquanto José Mariano louvava a necessidade de o neocolonial estar perfeitamente adaptado à
vida moderna, mas dando ao aspecto formal uma importância tal que se tornava prisioneiro de um
sistema, enquanto muitos de seus colegas incorriam no erro de querer imitar fielmente os detalhes da
arquitetura da época colonial, continuando assim escravos de um ecletismo de caráter histórico e de
um decorativismo superficial, Lucio Costa tinha compreendido que era preciso não se ater à
interpretação literal, mas procurar também encontrar o espírito que presidira ao nascimento dessa
arquitetura colonial: ora, seu principal valor era o de ter trazido, principalmente para a construção civil,
uma resposta satisfatória aos problemas decorrentes das necessidades da época; portanto não
bastava tomar de empréstimo seu vocabulário arquitetônico, era preciso também transpor sua perfeita
lógica interna para termos contemporâneos. A profunda compreensão do sentido verdadeiro da
arquitetura do passado, assim manifestada por Lucio Costa, era um considerável passo à frente, que
o distanciou em definitivo de um ecletismo estéril. faltava agora libertar-se de um vínculo
sentimental a um formalismo, apenas externo, para que um futuro brilhante se abrisse à sua
frente
.”
113
um neocolonial diferenciado
Fig. 41 – projeto de Lucio Costa e Fernando Valentim – casa de Raul Pedrosa
113
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.58
192
Porém, com o passar dos anos e com as transformações trazidas à vida pela modernidade
veloz, Lucio viu-se obrigado a distanciar-se do estilo neocolonial. Seu apurado senso crítico
percebeu que o cotidiano cobrava cada vez mais racionalidade e economia a fim de que
fosse possível atender aos novos programas trazidos pelo século XX, e que para tal o estilo
neocolonial, por mais que fosse realizado de maneira racional e respeitando sua lógica
interna de articulação e composição, mostrava-se tão anacrônico quanto o Ecletismo mais
desordenado. Isto porque, a fim de que a estética neocolonial pudesse ser aplicada, as
construções tinham que disfarçar as técnicas modernas de edificação empregadas, além de
criar falsos elementos decorativos que remetessem ao período colonial, tal como falsas
vigas de madeira, imitações de acabamento em pedra, etc. Desta forma, embora o discurso
do neocolonial fosse sedutor por tentar ressuscitar nossa tradição, tratava-se de mais uma
forma de se maquiar as edificações, ignorando as condições econômicas e sociais dos
tempos então vividos.
Assim sendo, Lucio Costa viu-se desiludido com as possibilidades de realização do
neocolonial, o que abriu espaço para a arquitetura moderna em sua percepção. No entanto,
sua conversão ao moderno se deu de forma gradativa pois, embora se encontrasse
decepcionado com o Ecletismo e o neocolonial, as propostas dos arquitetos defensores do
modernismo ainda lhe pareciam por demais radicais, dotadas de uma iconoclastia
incondizente com seu apreço às expressões do passado e ao patrimônio histórico. Lucio
Costa chegou a ouvir um trecho da conferência proferida por Le Corbusier em 1929, porém
não foi tocado pelas proposições do mestre franco-suíço uma vez que ainda não estava
pronto para as inovações trazidas por elas, como ele próprio nos conta:
Eu era inteiramente alienado nessa época, mas fiz questão de ir até lá. Cheguei um pouco atrasado
e a sala estava toda tomada. As portas do salão da escola estavam cheias de gente e eu o vi falando.
193
Fiquei um pouco depois desisti e fui embora, inteiramente despreocupado, alheio à premente
realidade
.”
114
No entanto, um fato extraordinário ocorrido em 1930 fez com que se operasse uma
verdadeira transformação: Lucio Costa assumiu a direção da Escola Nacional de Belas
Artes. Isto se deu porque o recém criado Ministério da Educação e da Saúde trazia como
chefe de gabinete Rodrigo Mello Franco de Andrade, intelectual mineiro que, sendo ligado
aos escritores modernistas, pretendia que a escola Nacional de Belas Artes proporcionasse
uma formação que conciliasse o ensino tradicional acadêmico e o espírito moderno,
estratégia viável através da adição de jovens professores ao corpo docente existente, de
forma que os alunos pudessem optar por uma nova orientação para suas carreiras.
De início, a indicação de Lucio Costa foi bem aceita por parte dos arquitetos tradicionais
uma vez que era um conceituado representante da estética neocolonial, porém, a partir das
alterações curriculares introduzidas e da reação dos alunos francamente favorável à estética
moderna, o quadro se reverteu. Lucio Costa trouxe para o curso de arquitetura nomes como
Gregori Warchavchik, Affonso Eduardo Reidy e Alexander Buddeus, gerando uma grande
rivalidade entre os novos e os antigos professores, uma vez que os catedráticos viram-se
preteridos pelos alunos, lançando-os em uma situação embaraçosa e desconfortável. Desta
forma, o corpo docente original indignou-se e, fazendo uso de fundamentação jurídica,
obteve a demissão de Lucio Costa apenas nove meses após sua nomeação e, com isso, a
dissolução de toda a estrutura por ele implantada. No entanto, tais medidas foram tardias:
aquela futura geração de arquitetos que compunha o corpo discente havia sido
sensibilizada pela arquitetura moderna, gerando uma reação em cadeia que afetaria as
gerações subseqüentes, criando desdobramentos irrefreáveis para a arquitetura moderna
brasileira.
114
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p. 144
194
Apesar de toda a situação de embate que se deu entre tradição e inovação, Lucio Costa não
pretendeu em nenhum momento trair a confiança de seus colegas de profissão: apenas
buscava atender à solicitação feita pelo chefe de gabinete, proporcionando à arquitetura a
possibilidade de fugir à falsidade dos estilos a fim de que pudesse ser verdadeira e racional,
como pediam os novos tempos. Seus objetivos na reforma da Escola Nacional de Belas
Artes ficam bem claros em entrevista concedida em fins de 1930:
Embora julgue imprescindível uma reforma em toda a escola, aliás é do pensamento do governo,
vamos falar um pouco de arquitetura. Acho que o curso de arquitetura necessita de uma
transformação radical. o o curso em si, mas os programas das respectivas cadeiras e
principalmente a orientação geral do ensino. A atual é absolutamente falha. A divergência dentre a
arquitetura e a estrutura, a construção propriamente dita, tem tomado proporções simplesmente
alarmantes. Em todas as grandes épocas as formas estéticas e estruturais se identificaram. Nos
verdadeiros estilos, arquitetura e construção coincidem. E quanto mais perfeita a coincidência, mais
puro o estilo. (...) Nós fazemos exatamente o contrário (...). Fazemos cenografia, estilo’, arqueologia,
fazemos casas espanholas de terceira mão, miniaturas de castelos medievais, falsos coloniais, tudo,
menos arquitetura.
A reforma visará aparelhar a escola de um ensino técnico-científico tanto quanto possível perfeito, e
orientar o ensino artístico no sentido de uma perfeita harmonia com a construção. Os clássicos serão
estudados como disciplina; os estilos históricos como orientação crítica e não para aplicação direta.
Acho indispensável que os nossos arquitetos deixem a escola conhecendo perfeitamente a nossa
arquitetura da época colonial - não com o intuito de transposição ridícula dos seus motivos, não de
mandar fazer falsos móveis de jacarandá - os verdadeiros são lindos-, mas de aprender as boas
lições que ela nos dá de simplicidade, perfeita adaptação ao meio e à função, e conseqüente
beleza
.”
115
Se, antes de sua nomeação para a direção da Escola, Lucio Costa tinha vago conhecimento
sobre os conceitos e realizações da arquitetura moderna européia, sua aproximação com os
profissionais que defendiam abertamente a adoção de tais ideais no Brasil fez com que se
interessasse cada vez mais pela arquitetura moderna. O ostracismo que seu escritório
enfrentou após sua demissão, visto que poucos eram os clientes no Rio de Janeiro adeptos
do modernismo arquitetônico e ele próprio não mais poderia dedicar-se a realizações de
115
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p. 68
195
caráter neocolonial tamanha foi a transformação de suas convicções, proporcionou-lhe a
oportunidade de debruçar-se em estudos sobre as obras e textos de mestres como Gropius,
Mies van der Rohe e, sobretudo, Le Corbusier. Por sinal, foi com os dizeres deste que Lucio
Costa mais se identificou, pois Le Corbusier abordava de forma global os problemas da vida
moderna, fazendo proposições de cunho arquitetônico e urbanístico, mas também social e
plástico, trazendo soluções abrangentes que estavam em perfeita consonância com o
ímpeto de transformação do qual Lucio estava imbuído e convencido de ser necessário. O
próprio Lucio comenta:
(...) Le Corbusier era o único que encarava o problema de três ângulos: o sociológico - ele dava
muita importância ao social -, a adequação à tecnologia nova e a abordagem plástica. Isso é o que
mais me marcou, que o diferenciava de todos, embora Gropius na Bauhaus tivesse organizado
uma coisa estupenda. (...) Mas a abordagem de Le Corbusier seduzia mais. Depois ele tinha o dom
da palavra e o texto das publicações, com diagramação diferente, aliciava. Era aquela na
renovação no bom sentido, aquela força que se comunicava com as pessoas jovens
.”
116
Deste modo, Lucio Costa, a partir de sua ampla cultura e respeitada atuação profissional,
firmou-se como a ponte intelectual entre as realizações arquitetônicas tradicionais
academizantes e as novas propostas da arquitetura moderna. A transição que proporcionou
dentro do principal órgão formador da capital federal brasileira, embora tenha sido breve,
deixou marcas indeléveis em toda uma nova geração de arquitetos que levaria tais
ensinamentos para o restante de suas carreiras profissionais. Embora tivesse se tornado
convicto defensor da arquitetura moderna, Lucio Costa jamais se distanciou de seu
aprendizado junto aos estilos históricos europeus e ao colonial brasileiro no que se refere à
adequação de tais expressões às épocas que as geraram: buscou criar uma arquitetura que
aliasse tradição e modernidade técnica e plástica, resultando em uma arquitetura ao mesmo
tempo atual - em conformidade com as realizações mundiais - e nacional.
116
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p. 144, 145
196
5.5. Disseminação da arquitetura moderna no Brasil
A semente do modernismo havia sido lançada em São Paulo; Lúcio Costa incumbira-se de
defendê-la acintosamente no seio da tradicional e academizante Escola Nacional de Belas
Artes, inundando a formação dos novos arquitetos de idéias inovadoras e abrindo caminho
para novas realizações arquitetônicas; o governo federal implantava novas diretrizes que
preconizavam a racionalidade e o progresso. A década de 30 prometia fornecer à
arquitetura moderna terreno e contexto propícios ao seu desenvolvimento.
Faz-se necessário destacar que a partir desse momento o Rio de Janeiro assumiu a
primazia das realizações arquitetônicas do país, restando a São Paulo ocupar um plano
secundário. Isso se deu porque a capital paulista, apesar de concentrar grande contingente
populacional, apresentando índices de crescimento avassaladores, e de ter sido pioneira na
defesa dos ideais modernistas e na sua aplicação prática, teve sua sociedade e poder
público profundamente abalados pela crise de 1929, o que reduziu drasticamente os
investimentos em obras tanto públicas quanto particulares, restringindo de maneira
acentuada o campo de atuação onde a arquitetura moderna prometia brilhar.
No Rio de Janeiro ocorreu justamente o oposto, uma vez que o novo governo necessitava
de novas dependências que pudessem abrigar com rapidez e eficiência as repartições
públicas recém criadas. Desta forma, enquanto São Paulo limitava-se a propor concursos
públicos, sem conseguir construir as obras projetadas, a capital federal oferecia as
condições políticas, econômicas e culturais ideais para a implantação definitiva da
arquitetura moderna em nosso cenário arquitetônico. Ademais, a Escola Politécnica,
instituição responsável pela formação de arquitetos em São Paulo, mostrava-se muito mais
impermeável às idéias modernistas que a Escola Nacional de Belas Artes, de forma que as
197
atuações de caráter moderno permaneciam pontuais na capital paulista, enquanto na
carioca elas passavam a aparecer em maio profusão.
117
O período foi marcado pelo aprimoramento profissional daqueles que haviam recém
descoberto a arquitetura moderna, quer pelas oportunidades oferecidas pelo mercado, quer
por um estudo mais aprofundado das teorias dos mestres europeus. Novamente Le
Corbusier surgiu como o guia maior do desenvolvimento intelectual deste novo grupo-
geração, o que ajudou a criar terreno propício para sua segunda estadia em terras
brasileiras, ocorrida em 1936, responsável pela sedimentação dos ensinamentos do
arquiteto franco-suíço junto aos arquitetos brasileiros:
A obra deste [Le Corbusier] transformou-se numa espécie de ‘livro sagrado da arquitetura’,
sistematicamente analisada e integralmente aceita. A sedução que ela exercia pode ser explicada
pela unidade do sistema proposto, que partia de argumentos de ordem econômica e social de um
lado, e de argumentos de ordem técnica de outro, culminando numa concepção artística. Seu espírito
dogmático atraia os jovens espíritos, um tanto desorientados, na procura de um caminho; oferecia, ao
mesmo tempo, um ideal, regras precisas e uma disciplina, que podiam servir de referências e orientar
os inseguros passos iniciais. A aquisição desses conhecimentos teóricos foi fundamental, pois se
constituiu numa preparação do terreno, e nunca a segunda estadia de Le Corbusier no Brasil teria
tido a importância que teve, se assim não tivesse sido
.”
118
Destacam-se duas medidas governamentais de caráter normativo da arquitetura oficial: uma
ligada ao Departamento de Correios e Telégrafos e outra à arquitetura escolar. A reforma
educacional implantada por Getúlio Vargas exigiu a elaboração de novos modelos de
edifícios escolares que fossem capazes de atender às novas exigências funcionais,
programáticas e pedagógicas. Dessa forma, questões como orientação do edifício e
desenho das janelas, organização do programa mínimo de dependências, acabamentos
119
orientavam a definição deste novo modelo, marcado pelas linhas geometrizantes e pelo
117
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.80
118
Ibidem. p.74
119
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo. Edusp, 2002. p.66
198
projeto racional. Aos poucos a estética eclética e neocolonial foi sendo abandonada para os
edifícios escolares pois estavam vinculadas às antigas práticas educacionais, justamente as
que o governo se esforçava em superar. Vale citar a atuação do engenheiro-arquiteto José
Maria da Silva Neves junto à implantação desta nova tipologia.
uma nova expressão formal para um novo projeto pedagógico
Fig. 42 – projeto de José Maria da Silva Neves – Grupo Escolar Visconde de Congonhas do Campo
No que diz respeito ao Departamento de Correios e Telégrafos, a oportunidade à arquitetura
moderna foi oferecida por um esforço do governo em reequipar o sistema a partir da
construção de agências e sedes regionais nas principais cidades do país. Desta forma,
vários arquitetos foram contratados, sobretudo no Rio de Janeiro, e, a partir do fornecimento
de um programa funcional pormenorizado, puderam projetar edifícios racionais
caracterizados por evidente separação de acessos ou por circulações independentes
conforme hierarquia funcional, amplos salões de atendimento proporcionados pelo emprego
de estruturas em concreto armado com grandes vãos e despojados de decoração
120
.
Em algumas localidades esta estética de linhas geometrizadas foi bastante criticada, porém
o que vale ressaltar é que, independentemente da qualidade das obras projetadas e
executadas, paulatinamente a estética moderna foi sendo aceita e assimilada pela
população, sendo utilizada em larga escala em obras públicas tais como terminais de
120
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo. Edusp, 2002. p.70
199
ônibus, mercados, clubes, etc., restando o setor residencial ainda resistente à sua
linguagem e fiel ao ecletismo e ao neocolonial.
No entanto, muitas das obras de linhas modernas produzidas restringiram-se a um
formalismo de fachada, evidenciando a falta de assimilação completa dos conceitos trazidos
pela arquitetura moderna européia nesta fase de amadurecimento pela qual a arquitetura
brasileira ainda passava. De fato, barreiras haviam sido rompidas, porém a arquitetura
moderna no Brasil ainda precisava vencer longo trajeto até sua emancipação.
Neste período da primeira metade da década de 30, alguns arquitetos conseguiram se
sobressair por melhor compreenderem e aplicarem os conceitos da arquitetura moderna,
buscando adaptá-los ao contexto brasileiro. É o caso, por exemplo, de Affonso Eduardo
Reidy que, vindo de um contato direto com Warchavchik visto que foi seu assistente na
Escola Nacional de Belas Artes durante a reestruturação implantada por Lúcio Costa,
tornou-se arquiteto da Prefeitura do Distrito Federal e, como tal, teve a oportunidade de
projetar inúmeros edifícios destinados a serviços municipais. Seus projetos primavam por
preocupações ligadas à iluminação e à ventilação, de forma a conferir aos locais de trabalho
abrigo do calor tropical externo, mas também condições de iluminação natural que fossem
igualmente econômicas e favoráveis ao trabalho. Alcançou seus objetivos a partir da
utilização de janelas corridas, uma coerente orientação dos edifícios - localizando as salas
de trabalho nas faces leste e sul e galerias de circulação nas faces norte e oeste que
proporcionavam proteção ao sol -, e ventilação cruzada. Tratavam-se de projetos eficientes,
de estética equilibrada, produzidos e consentidos dentro da prefeitura carioca.
200
um pensamento racional, organizado e funcional
Fig. 43 – projeto de Reidy – concurso do Ministério da Educação e da Saúde
Abrindo-se o foco para uma outra região do país, um outro arquiteto que merece destaque é
Luís Nunes, cuja obra desenvolveu-se principalmente em Recife. Original de Minas Gerais,
formou-se na Escola Nacional de Belas Artes onde, a partir de sua personalidade,
sobressaiu-se a ponto de liderar juntamente com Jorge Moreira a greve estudantil de 1931
que protestava contra a demissão de Lucio Costa. Transferiu-se para Recife em 1934 com a
missão de organizar e dirigir o serviço de arquitetura encarregado dos edifícios públicos
pernambucanos, bem como dos edifícios particulares que se valessem de subvenção
estatal. A partir da constituição de uma equipe formada por técnicos, artistas e artesãos -
dentre os quais o engenheiro Joaquim Cardoso e o arquiteto paisagista Roberto Burle Marx
que, embora ainda desconhecidos, logo mais alcançariam enorme reconhecimento
profissional -, desenvolveu amplos estudos no que diz respeito à padronização das
edificações e construções econômicas, porém de alta qualidade. Soube ser original e
diversificado, provando que a padronização não limitaria a criatividade e a expressão
arquitetônica. Desta forma, pôde produzir bons exemplos de arquitetura moderna em uma
cidade distante do eixo Rio - São Paulo, funcionando como ponto disseminador de novos e
bem sucedidos conceitos arquitetônicos.
201
modernidade sem fronteiras
Fig. 44 – projeto de Luis Nunes – Leprosário de Mirueira
Às vésperas da vinda de Le Corbusier ao Brasil, importante evento conferiu à arquitetura
moderna brasileira nova oportunidade de expressão: tratava-se do concurso para a
construção da sede social da ABI. Seu presidente, Hebert Moses, homem esclarecido,
desde o início quis que o edifício fosse projetado dentro dos preceitos da arquitetura
moderna a fim de que constituísse uma obra marcante. O júri escolheu o projeto
apresentado pelos irmãos Marcelo e Milton Roberto dentre outros de importantes
concorrentes, tais como a dupla Jorge Moreira e Ernani Vasconcellos e o grupo formado por
Oscar Niemeyer, Fernando Saturnino de Brito e Cássio Veiga de Sá. O projeto premiado
baseava-se nos cinco pontos de Le Corbusier, porém os irmãos Roberto souberam refletir
sobre esses conceitos e adaptá-los às condicionantes do projeto: visto que o edifício não
estaria isolado no terreno, dada a conformação de seus vizinhos, não viram um porquê de
implantar a solução de pilotis; como o edifício estava localizado no centro comercial do Rio
de Janeiro, as janelas panorâmicas horizontais também não se faziam necessárias uma vez
que a vista não era convidativa. À medida que as fachadas estariam inevitavelmente
orientadas para oeste e norte, os arquitetos fizeram uso do brise-soleil, habilmente
202
empregado, de forma que puderam conferir dinamismo à obra, sem interferir em sua
unidade formal.
maciço dinâmico
Fig. 45 – projeto de Marcelo e Milton Roberto – fachada do edifício da ABI
Além das qualidades inerentes à sua arquitetura, o prédio da ABI destaca-se pelo caráter
promocional que teve a favor da arquitetura moderna. Apesar de, a princípio, ter sido
criticado pelo público sobretudo pelo aspecto fechado de suas fachadas, logo se tornou uma
atração, passando a opinião pública a aceitar seu aspecto incomum. Com isso, os
empresários passaram a enxergar as vantagens da nova arquitetura que podia ser
funcional, econômica, e ao mesmo tempo rentável em termos de publicidade. Conciliando
soluções técnicas e funcionais a uma evidente qualidade plástica, o prédio da ABI
203
demonstrou que a arquitetura brasileira encontrava-se em franco processo de
amadurecimento, apresentando soluções cada vez mais elaboradas e conscientes,
mostrando-se pronta para dar o decisivo passo rumo à sua afirmação junto ao cenário
internacional: o projeto para o Ministério da Educação e da Saúde.
204
Capítulo 6
Arquitetura Moderna Brasileira
205
6.1. Os primeiros passos do projeto do Ministério da Educação e da Saúde
O edifício do Ministério da Educação e da Saúde, dada sua importância dentro da história da
arquitetura brasileira, já foi objeto de diversos estudos minuciosos, com destaque para as
análises feitas por Elizabeth D. Harris e Yves Bruand. Este último não se acanha em
classificá-lo como o monumento que iria mudar, radicalmente, o curso até então seguido
pela arquitetura brasileira
121
, colocando-o como divisor de águas entre a produção
arquitetônica a ele precedente e a que a ele se seguiria no que se refere ao estabelecimento
de uma linguagem arquitetônica brasileira.
O presente estudo não pretende se debruçar sobre o edifício do Ministério da Educação e
da Saúde a fim de analisá-lo pormenorizadamente - devendo o leitor se reportar aos autores
acima citados, e que estão na base das narrativas que se seguem, com o fito de obter
descrições detalhadas - mas sim verificar as características que permitem estabelecê-lo
enquanto marco histórico, compreendendo sua função dentro do processo de
desenvolvimento do moderno no Brasil.
Vargas, ao ascender ao poder, instituiu um governo autoritário tanto quanto os governos que
assumiram os países da Europa, porém aparentemente mais tênue graças à liberdade
intelectual nele presente. Havia uma ânsia de progresso e uma fé no poder da educação
enquanto veículo de unificação e homogeneização das diferenças deste país continente,
conceitos amplamente embasados em um nacionalismo vigoroso. Os novos ministérios
criados foram confiados a intelectuais de idéias progressistas, tais como o Ministério da
Educação e da Saúde. Este novo ministério trazia como função, dentre outras, desenvolver
os recursos culturais da nação, visando libertá-la da dependência da cultura européia, tal
como ocorrera nos séculos anteriores.
121
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.80
206
Gustavo Capanema assumiu o ministério em 1934 e, portando-se como um intelectual no
poder, esforçou-se em abrir as portas à intelectualidade brasileira, sobretudo a modernista
da qual era próximo, integrando-a aos planos do governo.
Uma vez que o ministério, por ser novo, não possuía uma sede onde abrigar suas
atividades, Capanema estabeleceu sua construção como uma prioridade de sua gestão.
Porém, a sede do ministério não deveria ser um edifício qualquer, mas sim um emblema
semiótico das tendências artísticas do país
122
, configurando-se como um legado deixado
por Capanema à nação. Para isso, lançou em marco de 1935 um concurso de arquitetura
cujo objetivo era definir o projeto para o edifício do Ministério da Educação e da Saúde.
As regras estabelecidas para o concurso tinham caráter abrangente, aceitando a inscrição
de projetos tanto tradicionalistas tanto modernistas, apenas exigindo como pré-requisito a
apresentação do registro nacional do arquiteto e da permissão para exercer suas funções;
não havia, desta forma, nenhuma cláusula que exigisse que o candidato fosse,
necessariamente, brasileiro. Merece destaque, porém, uma cláusula adicionada por
Capanema ao edital que afirmava que o governo não seria obrigado a executar o projeto
vencedor caso Capanema, pessoalmente, não o julgasse razoável ou condizente com suas
pretensões. Cada arquiteto poderia, se quisesse, apresentar mais de um projeto e seus
nomes permaneceriam sigilosos a fim de não influenciar o julgamento.
O Concurso, que foi divido em duas fases, contou com 76 inscrições cujos projetos foram
analisados a partir de um conjunto de desenhos composto por fachada principal, plantas do
primeiro piso, perspectiva e perfil, além da apresentação de um orçamento para a futura
obra. De todos os concorrentes, apenas três foram selecionados para irem à segunda fase
do concurso, e a escolha feita pelo júri bem demonstra a mentalidade que, apesar de tudo,
122
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.56
207
ainda persistia na sociedade brasileira. Desta forma, os projetos de Archimedes Memória,
Mário Fertin em conjunto com Raphael Galvão e Gerson Pinheiro foram complementados
em detalhamentos a fim de melhor embasar o julgamento final. A escolha do júri - composto
por representantes da Escola Politécnica carioca, do Instituto Central dos Arquitetos, da
Universidade Federal e pelo superintendente de Transporte e Obras do Ministério da
Educação e da Saúde - foi contestada por alguns por justamente aprovar os projetos de
caráter mais eclético, rejeitando as propostas funcionais e racionais de linhas modernas,
como por exemplo as apresentadas por Reidy e pela dupla Jorge Moreira e Ernani
Vasconcellos.
O projeto vencedor, proposto por Archimedes Memória, então diretor da Escola Nacional de
Belas Artes, apresentava uma composição bastante clássica, baseada na simetria, de
decoração marajoara, proveniente da cultura dos índios da ilha de Marajó, representando
um resquício da corrente nacionalista indianista de nossa cultura. O segundo colocado
apresentou projeto de linha claramente neoclássica, enquanto que o terceiro, Gerson
Pinheiro, propôs uma concepção mais limpa visto que defendia o racionalismo e o
funcionalismo, com planta mais livre, pilotis e janelas com quebra-sóis. No entanto, para a
escolha do vencedor, a questão do orçamento foi decisiva pois apenas o projeto de
Archimedes respeitava o limite orçamentário proposto pelo regulamento, fazendo com que o
júri tivesse que se resignar quanto a uma escolha da qual tinham dúvida quanto à sua
adequação.
indianismo e arquitetura conciliados em um projeto anacrônico
Fig. 46 – projeto de Archimedes Memória – 1º colocado no concurso
208
a persistência na fórmula neoclássica
Fig. 47 – projeto de Mário Fertim e Raphael Galvão – 2º colocado no concurso
uma proposta racionalista e funcional
Fig. 48 – projeto de Gerson Pinheiro – 3º colocado no concurso
Capanema mostrou-se igualmente insatisfeito e receoso sobre a decisão tomada. Submeteu
então o projeto à avaliação de dois engenheiros e um consultor do governo a fim de poder
se certificar de que estaria no caminho certo. Porém, a junta mostrou-se contrária às
soluções adotadas em projeto quanto à distribuição das salas, iluminação e ventilação, além
do fato do projeto não dar margem a futuras ampliações. Desta forma, Capanema obteve
subsídios técnicos que justificariam a Getúlio a necessidade de um novo projeto, apesar de
Archimedes já ter recebido seu vultuoso prêmio.
Apesar de Vargas ter assinado recentemente uma lei que afirmava que edifícios públicos de
grandes proporções deveriam ter seus projetos escolhidos a partir de concurso, logo abriu
uma exceção a Capanema, autorizando que o novo projeto para o Ministério da Educação e
da Saúde viesse de um processo que o concursivo uma vez que Capanema o havia
209
convencido que não haveria tempo hábil para outro concurso, além de questionar se não
resultaria em projeto novamente muito próximo daquele que havia sido recém rechaçado.
Desta forma, em março de 1936, Capanema procurou Lucio Costa a fim de que este
pudesse materializar um edifício que fosse representativo do estilo moderno.
No entanto, Lucio Costa não abraçou a oportunidade sozinho, abrindo-a à participação de
outros arquitetos por compreendê-la como um momento de vitória da arquitetura moderna, o
que deveria ser compartilhado com aqueles que como ele por ela também lutavam. Assim,
montou uma equipe composta por Reidy, Oscar Niemeyer, Carlos Leão, Jorge Moreira e
Ernani Vasconcellos, além de Emílio Baumgarten, engenheiro de estruturas.
A equipe pôs-se ao trabalho, inspirando-se francamente nos cinco pontos de Le Corbusier.
No entanto, apesar dos esforços, não conseguiram se desvencilhar dos moldes de
composição clássica, ficando o projeto profundamente vinculado a um esquema de simetria.
O edifício seria composto por três blocos formando um “U”, além do volume trapezoidal que
conteria o auditório. Os blocos laterais traziam pilotis que, além de liberar o solo, permitindo
um tratamento paisagístico mais proveitoso, possibilitavam a circulação da brisa marítima
para o interior do terreno, algo bastante bem vindo nos trópicos. o bloco central seguia
fechado até o chão e continha, além da entrada principal, a escadaria monumental que
definia o eixo de simetria. Havia a preocupação de proteger os escritórios do forte calor
resultante da radiação solar, de forma que em todo o edifício os corredores de circulação
foram dispostos ao lado de cada fachada mais exposta ao sol. Esta seria uma solução
coerente no que diz respeito à insolação, mas restringia muito a área efetiva dos escritórios.
As janelas, como se sabe, foram tratadas diferentemente em cada fachada, alternando vãos
estreitos ou largos de acordo com a incidência solar nos blocos laterais, contando com o
auxílio extra de persianas internas; o bloco central trazia as fachadas totalmente
envidraçadas, porém estando a face norte protegida por brise-soleil, permanecendo a face
sul livre. Isto é, viam-se os conceitos corbusianos em todas as partes do projeto mas, no
210
entanto, a equipe não ficara satisfeita com o resultado final do conjunto, o qual apelidou de
“múmia”. Segundo Elizabeth D. Harris haveria motivo para tal insatisfação visto que o
projeto não resultava harmonioso devido a falhas de escala e proporção:
O grupo fizera uma tentativa de seguir a nova escola, mas as proporções eram acanhadas, o espaço
desigual, e sombras de monumentalidade acadêmica habitavam os vazios e a escadaria central.
Enquanto na Europa os arquitetos dominavam o sistema cartesiano de coordenadas de tempo e
espaço, os brasileiros se inspiravam na geometria euclidiana e nas relações tradicionais de espaço-
forma, sem a plasticidade e o componente cubista da época
.”
123
um projeto estático e estagnado no tempo
Fig. 49 – projeto da equipe brasileira, apelidado de “Múmia”
Capanema novamente submeteu o projeto à avaliação de uma junta técnica que, composta
por oito autoridades imparciais, mostrou-se dividida quanto à adequação do projeto.
Pairavam dúvidas quanto à eficiência dos conceitos de Le Corbusier, uma vez que este
possuía muitos projetos, porém poucas construções. Capanema percebeu que, para
justificar sua opção pela estética modernista, teria que garantir a qualidade e conveniência
da proposta. Uma vez que ela estava calcada nos ensinamentos corbusianos, nada mais
apropriado do que o próprio Le Corbusier vir ao Brasil a fim de, na qualidade de consultor do
projeto, assegurar seu êxito.
123
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.75
211
Desta forma, em maio de 1936, Capanema pôde convidar Le Corbusier para aqui estar e
prestar seus serviços enquanto consultor para o projeto do Ministério da Educação e da
Saúde, consultor para o projeto da Cidade Universitária, além de proferir seis conferências.
Esta oportunidade ajudaria em muito a mudar o rumo da arquitetura moderna brasileira uma
que vez que, se através de suas palestras pôde disseminar amplamente suas crenças e
conceitos, durante o processo projetual do Ministério da Educação e da Saúde permitiu que
os arquitetos brasileiros entrassem em contato direto com sua prática profissional, modo de
pensar e agir, contribuindo para que suas idéias fossem introjetadas, assimiladas e depois
transformadas pelos profissionais brasileiros.
212
6.2. O projeto definitivo para o Ministério da Educação e da Saúde
Recém chegado ao Brasil, Le Corbusier pôs-se a analisar, a pedido de Capanema, o projeto
desenvolvido pelos arquitetos brasileiros, devendo para tal responder às seguintes
questões:
“1) O senhor considera o projeto bom?
2) O senhor considera o projeto ruim?
3) Nesse caso, que orientação deveria seguir a comissão para apresentar um bom projeto?
4) O senhor considera o projeto razoável?
5) Nesse caso, quais são seus defeitos e imperfeições, e que correções o senhor sugere a fim de
que tais defeitos e imperfeições sejam corrigidos de forma a que o projeto possa ser considerado
bom?”
124
Le Corbusier respondeu ao ministro que o projeto desenvolvido pelos brasileiros era bom,
porém sua aparente inadequação seria fruto não da falta de habilidade dos arquitetos que o
propuseram, mas sim do acanhamento inerente ao terreno escolhido para receber o futuro
edifício do Ministério da Educação e da Saúde. O mestre franco-suíço não concordava com
a adoção do terreno do Castelo - resultante da retirada de um morro de acordo com o plano
Agache e localizado no centro comercial da cidade -, e propôs que o novo sítio para o
projeto fosse localizado na Praia de Santa Luzia a fim de poder tirar partido da proximidade
com a baía de Guanabara, integrando-o às belezas naturais do Rio de Janeiro ao invés de
enclausurá-lo em uma quadra do centro carioca. No entanto, apesar da coerência da
proposta de Le Corbusier, tendo em vista o efeito que Capanema buscava alcançar com a
construção do edifício do Ministério da Educação e da Saúde, o terreno escolhido na Praia
de Santa Luzia pertencia ao município do Rio de Janeiro e não ao governo federal, o que
inviabilizaria a tão almejada transferência proposta por Le Corbusier. Ainda assim, o mestre
lançou-se ao trabalho projetando um novo edifício para o terreno da Praia, na esperança de
que a prefeitura carioca cedesse aos seus argumentos.
124
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.82
213
O projeto resultante é fruto de sua colaboração com os arquitetos brasileiros (Niemeyer, por
exemplo, incumbiu-se da maioria dos esboços, fazendo uso da linguagem linear
corbusiana), ficando bastante visível sua atuação na elaboração dos detalhes, o que se
configurou importante aprendizado para a equipe chefiada por Lucio Costa. Le Corbusier
tomou como ponto de partida o projeto da múmia”, empenhando-se em aperfeiçoá-la e
corrigi-la: desmembrou suas alas laterais concentrando as atividades em um único bloco
totalmente destacado do chão, sustentado por pilotis, preocupando-se em anular sua
simetria clássica; insistiu na fachada envidraçada, agora aberta à paisagem da baía, e na
utilização dos brises na fachada posterior. Desta forma,
O novo esquema para Santa Luzia ampliava a sala principal de conferências e o saguão, mas
evitava a simetria restringindo a escadaria a um formato descentralizado. Ademais, a entrada e o
auditório trapezoidal foram conservados, embora cortando o bloco horizontal assimetricamente. O
jardim de cobertura ficou limitado ao teto do auditório, que agora avançava para além do gabinete do
ministro e não da biblioteca. Le Corbusier acrescentou um tratamento paisagístico ao traçado urbano,
uma área aberta para estacionamento e a escultura O Homem Brasileiro’, de Celso Antônio. No
geral, o plano de Le Corbusier foi concebido e elaborado com base nas suas idéias arquitetônicas
mais relevantes, aliás já contidas no projeto da equipe de Lucio Costa e apenas corrigidas por ele.
Le Corbusier deixou claras as mudanças maiores que fez, e, no entanto, as nuanças sutis e a
sofisticação dos esboços deram ao plano vida nova. O plano de Le Corbusier mudava o traçado em U
para um simples bloco horizontal apoiado em pilotis, o que permitia a integração dos espaços
externos e internos do edifício, a liberação de grande parte do terreno ao trânsito dos pedestres e
enriquecia o projeto com passagens cobertas e amplos jardins. A localização assimétrica da entrada
e do auditório reorientou a estética do projeto da equipe, que forçava proporções para contrabalançar
a assimetria, adicionando uma nova dimensão às suas concepções arquitetônicas. Acrescentando
esculturas, afrescos, pinturas e mobiliário, Le Corbusier sublinhava a importância de uma obra de arte
completa, incorporando todos os aspectos das artes plásticas. Finalmente, os desenhos das
perspectivas internas e externas exemplificavam o enfoque de Le Corbusier, realçando a
tridimensionalidade do edifício em contraste com o traçado acadêmico da equipe
.”
125
125
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.85
214
a estética corbusiana aplicada diretamente no Brasil
Fig. 50 – perspectiva de Le Corbusier para o plano da Praia de Santa Luzia
A pedido de Capanema, e às vésperas de seu retorno para a Europa, Le Corbusier
desenvolveu novos estudos para o edifício do Ministério da Educação e da Saúde, agora
destinado ao terreno do Castelo, uma vez que o ministro sabia das dificuldades em obter o
terreno da Praia de Santa Luzia. Como dispôs de dois dias para o desenvolvimento do
projeto, teve que se limitar à execução de esboços rápidos mas que, embora graficamente
comprometidos, continham suas idéias principais de alterações. Manteve a idéia dos pilotis,
a assimetria, os quebra-sóis e a horizontalidade do conjunto, porém agora o desenvolvendo
em um edifício com formato em “L”, o que propiciava a criação de uma praça urbana no lote.
As adaptações trazidas pelo projeto não tiveram tempo para serem amadurecidas e
refinadas, o que exigiu a participação ativa dos arquitetos brasileiros a fim de que o projeto
para o Ministério da Educação e da Saúde pudesse ser concluído após a partida de Le
Corbusier.
215
adaptação de Le Corbusier
Fig. 51 – perspectiva de Le Corbusier para o plano do Castelo
Após o regresso de Le Corbusier à Europa, a equipe de Lucio Costa voltou a se debruçar
sobre o projeto da “múmia” com o objetivo de adaptá-lo a partir dos ensinamentos deixados
pelo mestre. Os desenhos de Le Corbusier haviam sido parcialmente postos de lado uma
vez que o projeto para a Praia de Santa Luzia, apesar de ter sido elogiado por Capanema,
era inviável, e os esboços para o terreno do Castelo estavam por demais crus. Chegaram a
apresentar ao ministro um plano para aprovação, dois meses após a partida de Le
Corbusier, composto pela “múmia” superficialmente modificada. Capanema, valendo-se da
passagem de Auguste Perret pelo Brasil - renomado arquiteto que havia sido mentor de Le
Corbusier - submeteu o plano à sua avaliação juntamente com os estudos deixados por Le
Corbusier. Perret mostrou-se partidário da solução retangular corbusiana, o que deu o aval
necessário a que os arquitetos brasileiros persistissem em planos assimétricos para o
edifício.
Neste momento da narrativa, uma figura que aentão havia se restringido a um plano
secundário de importância tornou-se responsável pela decisiva mudança de direção dos
planos para o edifício: Oscar Niemeyer. De todos os membros da equipe, Oscar foi o que
216
mais profundamente assimilou os conceitos de Le Corbusier e, embora de dia se dedicasse
às alterações da “múmia”, no período da noite embrenhava-se em estudos para um novo
projeto, calcado diretamente nos ensinamentos corbusianos. Desta forma, em dezembro de
1936 mostrou à equipe seu projeto o qual, conciliando elementos do projeto para o tio do
castelo com aspectos do projeto da Praia de Santa Luzia, resultou em composição
equilibrada que se tornou a base do projeto definitivo executado para o Ministério da
Educação e da Saúde.
Assim sendo, em janeiro de 1937, a equipe apresentou a Capanema os estudos de
Niemeyer, agora mais aprimorados, que configurariam o projeto definitivo para o
Ministério da Educação e da Saúde. Capanema contribuiu com o projeto à medida que
externou seu desejo de ter uma praça urbana mais livre do que a projetada por Le
Corbusier, com o edifício do ministério estando alto e afastado da rua, em franca oposição
ao projeto dos demais ministérios a ele próximos, todos apresentando pesadas feições
neoclássicas. Também sugeriu que a fachada norte fosse inteiramente revestida com os
brises, complementando o projeto de Le Corbusier que previa as estruturas protetoras em
apenas parte da fachada.
O projeto resultante é composto por um prisma principal de onze andares, apoiado sobre
pilotis de dez metros, que forma um plano em “T” com os dois volumes em anexo, ligado
diretamente ao volume trapezoidal do auditório, este estando rotacionado em 45° com
relação ao corpo principal do edifício.
(...) Os pilotis eram três sob o bloco de escritórios de onze andares e quatro sob o anexo, com
largura menor, em ritmo com os intervalos entre os pilotis do prisma central. A entrada, com os lados
menores em vidro, estendia-se em um balcão de informações, de madeira encurvada que preenchia
um dos cantos, aos três elevadores públicos e o vestíbulo defronte de uma monumental escada
circular que subia até o mezanino. O nível formava o anexo, que consistia no auditório ao norte e na
sala de exposições ao sul. Os pilotis redondos sustentavam lajes horizontais e exibiam o desenho-
padrão de Le Corbusier, em concreto armado, inspirado no edifício DOM-INO de 1914.
217
(...)
O andar superior possuía um jardim de cobertura no verdadeiro estilo corbusiano, com um
restaurante e um terraço aberto com vista direta para o Aeroporto Santos Dumont; os empregados
podiam almoçar enquanto olhavam os aviões decolar e aterrissar. (...) Os motores dos elevadores
estavam situados sobre o teto do restaurante anexo e abrigava-se em caixas de concreto que
conferiam um aspecto escultural ao edifício. Uma forma redonda e uma configuração oblonga,
pintadas de azul, davam a impressão de formas plásticas pertencentes a um transatlântico, em
harmonia com a paixão de Le Corbusier pela forma aerodinâmica dos navios singrando o mar
.”
126
sua configuração final
Fig. 52 – fachada norte do Ministério da Educação e da Saúde
126
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.112,124
218
Fig. 53 – plantas do projeto definitivo para o Ministério da Educação e da Saúde
andar tipo
2º andar
sobreloja
pilotis
219
O longo processo pelo qual o edifício do Ministério da Educação e da Saúde passou até que
atingisse sua conformação final marcou o último estágio do processo de amadurecimento
pelo qual a arquitetura moderna passou no Brasil. Os arquitetos a ela devotados
principiaram tal processo possuindo conceitos ainda limitados, e dele saíram transformados:
as idéias dos mestres europeus, que até então haviam sido estudadas em teoria, foram
postas em ação, tendo sua prática projetual sido absorvida do contato direto do mestre mais
admirado, Le Corbusier. A arquitetura moderna, que até então havia sido praticada através
de tentativas de caráter sobretudo estético, embora algumas delas tenham atingido
resultados bastante satisfatórios, como no caso da ABI, foi assimilada por completo pelos
arquitetos brasileiros, fincando definitivamente suas raízes em território nacional.
A convivência com Le Corbusier permitiu que os arquitetos brasileiros terminassem de
rasgar os postulados da arquitetura neoclássica que ainda habitavam seus pensamentos,
resquícios da orientação que dominava a Escola Nacional de Belas Artes, de forma que
puderam mergulhar em uma nova forma de pensar arquitetura. O aprendizado com o mestre
deixou marcas indeléveis em suas personalidades, conferindo novas orientações que jamais
seriam abandonadas.
Porém, o aspecto mais importante do episódio do Ministério da Educação e da Saúde foi a
oportunidade que proporcionou aos arquitetos da equipe de Lucio Costa para que
pensassem por conta própria, não apenas copiando as soluções européias: como sugeria a
antropofagia de Oswald de Andrade, os conceitos arquitetônicos aplicados na Europa foram
observados, deglutidos e transformados, resultando em uma aplicação que traduz uma
consciência quanto às necessidades e condicionantes locais, trabalhados a partir da
personalidade e do talento de nossos profissionais.
220
6.3. Condicionantes nacionais sugerem um caminho diferente a ser seguido
Como foi visto, o edifício do Ministério da Educação e da Saúde nasceu com o propósito de
ser um marco da passagem de Capanema à frente do ministério, simbolizando todo o
progresso material e cultural que o governo Vargas pretendia implantar no Brasil. No
entanto, ao se observar o prédio concluído, bem como a repercussão que causou na
imprensa especializada tanto européia quanto americana, é possível constatar por que ele
se tornou também um marco dentro da história de nossa arquitetura.
À primeira vista, ele pode se confundir com uma simples aplicação dos princípios
corbusianos em terras brasileiras, porém seu processo projetual denota a franca evolução
de raciocínio por parte dos arquitetos da equipe de Lucio Costa, que passaram a confiar em
sua autonomia intelectual, expressando suas personalidades através da arquitetura,
afastando-se por completo do processo de mimetização pertinente à arquitetura eclética.
Embora o projeto final do Ministério da Educação e da Saúde em muito se baseie nos riscos
deixados por Le Corbusier, cuja participação no projeto não pode jamais ser minorada,
apresenta elementos introduzidos pelos arquitetos brasileiros que podem ser vistos como
inovadores e, até certo ponto, surpreendentes. Se ambos os projetos deixados por Le
Corbusier para o Ministério da Educação e da Saúde traziam um sentido de
monumentalidade, obtido a partir de um equilíbrio perfeito entre as partes componentes do
edifício, bem como através de seu aspecto estático, as alterações introduzidas pela equipe
brasileira conferiram um forte dinamismo ao edifício, que pode ser apreendido tanto da
articulação dos volumes principais dispostos em “T”, quanto do tratamento de suas fachadas
e demais detalhes: a oposição entre a fachada sul envidraçada e a fachada norte revestida
pelos brises, o contraste entre as linhas retas e ortogonais do corpo principal e as linhas
curvas dos volumes da cobertura, conferiram ao edifício características dinâmicas que o
afastam da austeridade da proposta corbusiana. O projeto da equipe de Lucio Costa
221
também diferenciou-se do de Le Corbusier à medida que adotou a solução de pilotis com
dez metros de altura, o dobro do proposto pelo mestre franco-suíço. Esta alteração,
aparentemente simples, dotou o projeto de uma leveza que não podia ser percebida nas
propostas de Le Corbusier, visto que este sempre primou por manter seus edifícios
visualmente fincados no solo de maneira firme, mesmo quando da utilização dos pilotis. O
projeto proposto pelos brasileiros tirava partido dos pilotis, não apenas com o intuito de
liberar o solo, mas também de dar um caráter aéreo ao edifício, destacando-o do chão.
127
a negação da ortogonalidade, quando necessário
Fig. 54 – vista do elemento curvo acima do restaurante
Outro fator importante introduzido pelos arquitetos brasileiros ao edifício do Ministério da
Educação e da Saúde foi a plena articulação da arquitetura com as artes plásticas. Le
Corbusier chamava a atenção para este aspecto, tanto que considerava suas
perspectivas para o projeto do ministério finalizadas a partir do momento em que contavam
com a presença da escultura “O homem brasileiro”, de Celso Antônio. Porém, ele
normalmente abdicava da colaboração de outros artistas, visto ser ele próprio um artista
completo. Lucio Costa e equipe souberam valorizar jovens brasileiros promissores nas
artes, integrando-os à equipe, de forma a compor um todo onde arquitetura e artes plásticas
se complementavam mutuamente, tornando o edifício do Ministério da Educação e da
127
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo. Perspectiva, 1997. p.92
222
Saúde uma excelente expressão da moderna cultura brasileira, indo de encontro aos
desejos de Capanema.
Da equipe de artistas, o primeiro nome a ser lembrado é o de Cândido Portinari, que foi
incumbido de desenhar os azulejos que revestiriam algumas paredes do pavimento térreo -
recuperando uma antiga tradição portuguesa e resgatando o uso do azul-ultramarino versus
um fundo branco - além de realizar inúmeras têmperas e telas a óleo a serem dispostas no
andar que abrigaria o ministro, tal como os painéis destinados à sala de reuniões do
ministro, que abordavam os doze principais ciclos econômicos do Brasil.
128
a tradição dentro da modernidade
Fig. 55 – azulejos desenhados por Portinari
Além de Portinari, o nome de Roberto Burle Marx deve ser destacado, tendo ele ficado a
cargo do projeto do jardim do ministro, do terraço-jardim que circundava o restaurante, além
da praça onde se erigia o edifício. Fez uso, como é característica de seu trabalho, das
128
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.154,155
223
plantas nativas brasileiras, dispostas em canteiros de formas abstratas e estilizadas, bem
como das palmeiras imperiais preconizadas por Le Corbusier.
129
o jardim tropical que emoldura o edifício público
Fig. 56 – projeto paisagístico de Roberto Burle Marx
Ainda merecem destaque as diversas esculturas dispostas por todo o edifício do Ministério
da Educação e da Saúde, a saber: “Mãe” e “Figura reclinada” de Celso Antônio; “Juventude”
de Bruno Giorgi (que substituiu O homem brasileiro” depois que seu estudo em gesso se
despedaçou); “Mulher brasileira” de Adriana Janacopolus; e “Prometeu desacorrentado” de
Jacques Lipchitz que, residente em Nova York, integrava-se à equipe com o objetivo de
salientar o internacionalismo presente no ministério.
130
Assim sendo, o edifício do Ministério
da Educação e da Saúde configurava-se como representação da cultura brasileira, indo de
encontro aos ensejos nacionalistas do governo Vargas e ao momento de auto-afirmação da
sociedade brasileira.
129
HARRIS, Elizabeth Davis. Le Corbusier: riscos brasileiros. São Paulo. Nobel, 1987. p.164,165
130
Ibidem. p.156, 160 e 163
224
a simbologia através da arte
Fig. 57 – Bruno Giorgi – Juventude
Fig. 58 – Celso Antonio – Figura reclinada
225
Fig. 59 – Jacques Lipchitz – Prometeu desacorrentado
O edifício do Ministério da Educação e da Saúde evidencia o momento em que a arquitetura
brasileira conseguiu se distanciar do modelo de imitação da produção européia, que havia
sido adotado por séculos no Brasil, quando a equipe de Lucio Costa soube dar uma
resposta arquitetônica condizente com a realidade e contexto brasileiros, evitando assim
que as soluções adotadas na Europa fossem simplesmente transplantadas para cá sem que
sofressem qualquer tipo de reflexão ou adaptação. Lucio Costa assim se reportou ao
ministro da fazenda, a pedido de Capanema, em carta de 27 de outubro de 1939:
Ainda não existe, com efeito, nem na Europa, nem na América ou no Oriente, nenhum edifício
público com as características deste agora em vias de conclusão. É certo que os nossos críticos
divergem nesse particular: os que consideram as soluções de ordem geral adotadas em todos os
demais países sempre inadmissíveis em nosso meio, em virtude das ‘condições locais’ e da nossa
‘formação particularíssima’; e os que entendem acertado reproduzir-se de segunda mão aquilo
que se faz no estrangeiro, os erros inclusive - E.U.A., Itália, França, Alemanha, variando as
preferências de acordo com o itinerário de cada um. O fato, entretanto, é que, neste caso, não
estamos, Sr. Ministro, a imitar aqui o que se fez em outros países, nem o pouco a improvisar
coisa alguma. Estamos simplesmente a aplicar, com consciência, os princípios reconhecidos pelos
226
arquitetos modernos do mundo inteiro como fundamentais da nova técnica de construção, muito
embora nenhum governo ainda os tivesse oficialmente adotado em obra de tamanho vulto.
Trata-se, assim, de um empreendimento de repercussão internacional e que como tal terá o seu lugar
na história da arquitetura contemporânea. Prova disto é o interesse que vêm demonstrando pela obra
as melhores revistas técnicas e estrangeiras. E coube ao nosso país dar esse passo definitivo: mais
um testemunho bem significativo de que já não condicionamos as nossas iniciativas a beneplácitos de
fora
.”
131
Distinto do europeu, o contexto brasileiro criava uma demanda para novas respostas à qual
os arquitetos brasileiros não foram insensíveis. Se a Europa passava por um período de
entre guerras e, portanto, necessitava de uma arquitetura que permitisse a reconstrução
rápida das áreas destruídas e com preço acessível, daí seu caráter predominantemente
racional e funcional, o Brasil encontrava-se em um momento de progresso e prosperidade,
devendo ser sua arquitetura a expressão não do poder econômico do país que crescia,
como também do “caráter nacional” tão salientado então. Esta situação diferenciada dentro
do contexto mundial contribuiu para que a arquitetura brasileira se destacasse
internacionalmente, atraindo os olhares dos críticos estrangeiros que, após o episódio do
Ministério da Educação e da Saúde, descobriram, entre perplexos e encantados, uma
arquitetura que, mesmo calcada nos preceitos corbusianos, sabia ser livre, inventiva e
exuberante. Ela lhes era intrigante e desafiadora à medida que fazia com que
questionassem as soluções arquitetônicas adotadas em seu continente, vistas até então
como única possibilidade para a arquitetura moderna.
O sucesso do Ministério da Educação e da Saúde deu-se graças à atuação de toda a equipe
de arquitetos brasileiros, bem como pelo papel fundamental de Capanema, que soube usar
de seu prestígio junto a Getúlio Vargas a fim de forçar o emprego da arquitetura moderna
para o edifício, sendo ele o principal responsável pela importante vinda de Le Corbusier
como consultor do projeto. No entanto, os nomes de dois profissionais em especial devem
131
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p.133,134
227
ser sublinhados: Oscar Niemeyer e Lucio Costa. Oscar soube, a partir de sua genialidade
que logo o conduziria ao carro chefe da arquitetura moderna brasileira e a um
reconhecimento internacional, dar o primeiro passo rumo à superação dos cânones de
formação acadêmica e da mera aplicação dos pontos de Le Corbusier, levando o projeto a
um resultado único e condizente com o contexto brasileiro. Lucio Costa, que chefiava a
equipe de arquitetos e era por eles profundamente respeitado, devido à sua formação
ampla, densa e ligada aos valores da arquitetura colonial brasileira, soube conciliar o
conceito de uma arquitetura moderna com a tradição nacional, fazendo com que os
arquitetos de sua equipe não se esquecessem da cultura brasileira que inevitavelmente os
cercava.
Pode-se argumentar que a insistência de Costa na procura das formas puras e na defesa dos cinco
pontos corbusianos contida em ‘Razões da nova arquiteturasignificaria uma aplicação estática no
Brasil dos enunciados do movimento moderno, o que não é verdade. Costa sempre falou da presença
das particularidades locais, de ‘nossa maneira peculiar, inconfundível - brasileira - de ser (...)
preservando e cultivando tais características diferenciadoras, originais (...) e recusando subserviência,
inclusive cultural, mas absorver e assimilar a inovação alheia’. Assim, ele definia a arquitetura como
‘construção concebida com uma intenção plástica particular, em função de uma época, de um meio,
de uma técnica e de um programa determinados’. Ou seja, distante de um regionalismo folclórico ou
de formalismos pré-concebidos, procurava a personalidade nacional ‘’que se exprime através das
individualidades do gênio artístico nativo, servindo-se dos materiais, técnicas e do vocabulário
plástico de nosso tempo’. A procura das formas puras não era então um exercício estilístico, como
acontece com Niemeyer, mas uma síntese entre as duas tendências essenciais na arquitetura atual: a
orgânico-funcional e a plástico-ideal
.”
132
O próprio Lucio Costa assim se refere ao edifício do Ministério da Educação e da Saúde e a
tudo que ele simbolizou para a arquitetura moderna brasileira:
Este prédio, esta nobre ‘casa’, este palácio, concebido em 1936 - há, portanto, mais de meio século -
é duplamente simbólico: primeiro porque mostrou que o gênio nativo é capaz de absorver e assimilar
132
SEGRE, Roberto. Ideologia e estética no pensamento de Lucio Costa. In NOBRE, Ana Luiza (org). Um
modo de ser moderno: Lucio Costa e a crítica contemporânea. São Paulo. Cosac & Naify, 2004. p. 110
228
a inventiva alheia, não só lhe atribuindo conotação própria, inconfundível, como antecipando-se a ela
na realização; segundo, porque foi construído lentamente, num país ainda subdesenvolvido e
distante, por arquitetos moços e inexperientes mais possuídos de convicta paixão e de fé, quando o
mundo, enlouquecido, apurava a sua tecnologia de ponta para arrasar, destruir e matar com o
máximo de precisão
.”
133
Desta forma, o edifício do Ministério da Educação e da Saúde pode ser visto como o fim de
um ciclo de subserviência brasileira aos ditames europeus. Após um período em que a
arquitetura moderna custou a se impor no Brasil, a parir das realizações de Warchavchik
que muito espanto e polêmica causaram, passando por um processo de amadurecimento
em que buscou se fortificar em torno de conceitos mais profundos ao invés de uma
expressão puramente estética, era chegado o momento de a arquitetura moderna brasileira
atingir sua maioridade, ganhar autonomia e trilhar seu caminho próprio. O edifício do
Ministério da Educação e da Saúde foi o primeiro passo rumo à construção de uma
arquitetura moderna tipicamente brasileira, cujas obras seriam internacionalmente
reconhecidas e elogiadas, mas suficiente para marcar o término da busca de consolidação
que o moderno teve no Brasil. A partir de então, novos capítulos da história de nossa
arquitetura seriam escritos.
133
COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo. Empresa das Artes, 1995. p.128
229
Conclusão
230
Conclusão
Foi longa a trajetória até que se tornasse possível o moderno no Brasil. Estrondosos
esforços de ruptura foram necessários para que a sociedade brasileira se desligasse da
visão europeizante e aristocrática do mundo, passando a aceitar a premente necessidade
de mudança que os novos tempos traziam.
Artistas, engenheiros, arquitetos e cientistas europeus também tiveram seus fantasmas do
passado para afugentar e combater, no entanto, as alterações físicas, sociais e econômicas
pelas quais o continente passou - que cumprem uma trajetória de progressos materiais,
avanços tecnológicos, incremento urbano, novas afirmações ideológicas, descobertas
científicas, até culminarem em guerras - contribuíram para que a novidade moderna fosse lá
aceita mais rapidamente uma vez que ela era uma necessidade presente. A vida havia
mudado substancialmente e as artes souberam acompanhar suas transformações, lançando
linguagens e visões de mundo condizentes com a nova realidade que se apresentava.
Contudo, no Brasil, os homens sonhavam em se aproximar materialmente da rica e
exuberante civilização européia e, a partir de uma situação econômica de pujança e
estabilidade, construíram toda uma idealização de vida, calcada em cenários importados, ou
transplantados, para as nossas cidades, que imitavam uma cultura alienígena à nossa
tradição e que, muito mais do que não dialogar com a tradição brasileira, esforçava-se em
ocultá-la, mascará-la, esquecê-la. E foi, por ironia do destino, justamente este intercâmbio
cultural tão apreciado pelos brasileiros que fez com que a jovem Anita Malfatti fosse ao
Velho Continente em busca de seus mestres de pintura, propiciando que ela entrasse em
contato pela primeira vez com a arte moderna. Após sua passagem pelos Estados Unidos,
em viagem igualmente frutífera e inspiradora, trouxe ao Brasil o resultado de seus estudos
e, embora sem a intenção de sê-lo, tornou-se o estopim de um movimento de renovação
cultural que eclodiria na Semana de Arte Moderna de 1922.
231
Tal acontecimento enquadra-se na linha do tempo de nossa história como o marco zero do
modernismo no Brasil, isto é, a ocasião primeira em que se reivindicou a linguagem
moderna como forma de expressão dos novos tempos. Iniciou-se aí a longa batalha em que
os intelectuais da vanguarda modernista se lançaram, preocupando-se, em um primeiro
momento, em derrubar os antigos cânones que orientavam nossa produção cultural a fim de
impor uma nova estética. Enfrentaram brados, calúnias, mas, lentamente, puderam cavar a
trilha que seria seguida pelas gerações subseqüentes, instituindo uma nova expressão para
a sociedade brasileira.
Vencido este estágio, nossos intelectuais puderam aprofundar suas pesquisas e quando,
mais uma vez, se voltaram para a Europa com o intuito de obter novas orientações, vieram
a, paradoxalmente, descobrir o valor do próprio país, passando a se dedicar a um mergulho
rumo às raízes brasileiras, inaugurando assim a fase nacionalista de nosso Modernismo. Os
ícones do movimento que maior destaque tiveram neste momento foram Oswald e Mario de
Andrade que, a partir da adoção de caminhos distintos as viagens científicas e analíticas
de Mario e a Antropofagia de Oswald – contribuíram imensamente para o resgate do orgulho
nacional, de nossa tradição, e da valorização de uma “cultura brasileira autêntica” (na
conceituação de Mario), sui generis, digna de admiração e que nada devia em qualidade às
culturas européias. Havia sido dado um importante passo rumo a um reconhecimento dos
valores do Brasil, tanto por parte dos estrangeiros, como também dos próprios brasileiros.
Enfim, já não exportávamos apenas o café, mas também nossa imagem.
Porém, enquanto as demais artes já eram capazes de estabelecer um diálogo com a
sociedade dentro da linguagem moderna, a arquitetura permanecia incólume a todas essas
transformações, portando-se da mesma forma distante e aristocrática, como sempre o
fizera. Prevaleciam os cânones da tradicional academia européia, sobretudo italiana e
francesa, em uma atitude anacrônica que transformava nossas cidades em representações
232
distantes da nossa realidade. Warchavchik, em pleno ano de 1928, ainda lutava a fim de
impor uma nova estética, enfrentando críticos furiosos, uma sociedade ainda presa a valores
pertinentes a anos áureos que cada vez mais se mostravam distantes, além de dificuldades
técnicas e materiais para a implantação da linguagem da arquitetura moderna no Brasil. O
país ainda não estava pronto para sua transformação arquitetônica.
E, então, a década de 1930 chegou com uma revolução, um novo governo - na realidade um
rearranjo de oligarquias - e novas pretensões: o progresso, a unificação deste país de
dimensões continentais e de grandes disparidades de desenvolvimento, o fortalecimento da
nação. Era necessário reafirmar e ratificar a potencialidade brasileira, sendo o nacionalismo,
neste momento, transformado na principal ferramenta do governo a fim de que este
alcançasse seus objetivos. Era necessário que o brasileiro recuperasse sua auto-estima e
que acreditasse em um futuro promissor e próspero. Então Getulio Vargas, sabiamente,
incorporou à estrutura governamental justamente os intelectuais e artistas que lideravam as
ações de caráter nacionalista, isto é, os modernistas, dotando seu staff de profissionais
abertos a mudanças. Tratava-se do momento ideal para uma renovação. Esta sua política
cultural possibilitou que à frente do Ministério da Educação e da Saúde, recém criado, fosse
colocado Gustavo Capanema que, dada sua proximidade com os intelectuais modernistas,
soube se cercar daqueles profissionais que seriam capazes de incrementar e transformar o
panorama cultural do país, dentre eles Lucio Costa.
A figura de Lucio Costa foi primordial para a fluência dos acontecimentos rumo à
implantação definitiva do moderno em terras brasileiras, uma vez que ele fez a transição
entre a “Academia” e a novidade, conciliando a tradição e o modernismo e - em virtude de
sua passagem à frente na Escola Nacional de Belas Artes, seu reconhecimento profissional
e liderança intelectual - cunhando toda uma nova geração de arquitetos de acordo com seus
preceitos. Lucio Costa foi capaz de concentrar tanto a visão nacionalista de Mario de
Andrade - valorizando o conhecimento, o patrimônio e os elementos tradicionais da cultura
233
brasileira -, quanto a visão antropofágica de Oswald - com todo seu processo de deglutição
das informações estrangeiras, assimilação de seus pontos positivos, e transformação em
um produto autêntico e de características brasileiras.
O projeto do Ministério da Educação e da Saúde bem traduz este momento da história de
nossa arquitetura, sendo o resultado do amadurecimento dos conceitos da arquitetura
moderna vindos dos mestres europeus, porém demonstrando toda uma autonomia
intelectual por parte dos arquitetos brasileiros, que souberam refletir a respeito das idéias
provenientes da Europa, verificando sua pertinência e transformando-as em um produto
condizente com nossa realidade. O edifício encerrou um ciclo de transplantação cultural
para iniciar outro em que a arquitetura moderna brasileira seria admirada por suas
qualidades, autenticidade e inovação. Para além dele as personalidades conciliadora de
Lucio Costa e inventiva de Oscar Niemeyer continuariam a dar o tom de nossa arquitetura.
Desta forma, este trabalho, que buscou traçar a trajetória de consolidação do moderno no
Brasil, pôde demonstrar que o edifício do Ministério da Educação e da Saúde (1936),
apontado por muitos historiadores como o marco zero da arquitetura moderna brasileira, é
conseqüência de um intrincado processo onde artes plásticas, literatura, políticas
governamentais, ideologias, técnicas construtivas e arquitetura encontram-se amarradas e
indissoluvelmente misturadas no caldeirão da cultura brasileira. Foi cumprida a tarefa de
levar ao leitor o esclarecimento de que o surgimento da arquitetura moderna brasileira não é
fruto do acaso ou de uma genialidade divina, mas sim da confluência de fatores históricos,
com a devida ênfase sendo dada às figuras que sintetizaram em ações os ensejos de uma
sociedade que crescia, se desenvolvia e se modernizava, tendo preservado o valor histórico
de cada um. Se a arquitetura moderna brasileira é mestiça, parafraseando Juan Manuel
Bonet, ela o é como nosso povo, nossa língua, nossa cultura.
234
A presente dissertação, que se propôs a proporcionar uma visão panorâmica dos
acontecimentos - pois é justamente na macro-visão que são percebidos os elementos de
conexão, os pontos de inflexão e os de convergência do processo histórico-cultural - abre
caminho para novas abordagens sobre o tema, a fim de que elementos pontuais possam ser
investigados mais a fundo, revelando suas particularidades e tendo seu valor histórico
destrinçado.
Para o momento, fica a breve contribuição do preenchimento da lacuna que se colocava
entre uma arquitetura de caráter eclético e a moderna, compreendida a partir dos
fenômenos político, sociais, econômicos e culturais que a ocasionaram.
235
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