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UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
Estética cinematográfica do
“estranho” feminino
em Carrie, A Estranha
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Comunicação da Universidade
Paulista UNIP para a obtenção do
título de mestre em Comunicação
Juliana Porto Chacon
São Paulo
2007
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2
UNIVERSIDADE PAULISTA – UNIP
Estética cinematográfica do
“estranho” feminino
em Carrie, A Estranha
Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em
Comunicação da Universidade
Paulista UNIP para a obtenção do
título de mestre em Comunicação
Juliana Porto Chacon
São Paulo
2007
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3
Aos meus pais e ao meu irmão por
terem proporcionado as bases para
que eu chegasse até aqui.
4
Agradecimentos
Ao Elcio por ser meu companheiro de todas as horas.
Ao Juan Droguett por sua dedicação, compreensão, carinho e, acima de tudo,
por ser um mestre que, ao me guiar pelos caminhos do conhecimento, tornou-
se um amigo.
5
Resumo
Estética cinematográfica do “estranho” feminino em Carrie, A
Estranha é o título dessa dissertação de mestrado que tem o objetivo de
refletir sobre como a concepção estética de uma obra cinematográfica é capaz
de gerar identificação com o público receptor, utilizando o campo simbólico
como instrumento de representação de uma “realidade possível”.
Em busca da elucidação sobre como o fenômeno cinematográfico
interage com a audiência feminina, contribuindo para a geração de efeitos,
adentramos as bases teóricas da fenomenologia da percepção e da física
quântica, entendendo essas duas correntes como os pilares fundamentais para
a percepção natural do espectador, frente ao campo simbólico da obra em
questão.
Construído a partir dos princípios básicos do gênero horror, o filme
Carrie, A Estranha, busca envolver o receptor em uma temática religiosa
emergida de uma estética denominada do estranhamento. Para definição
desse estranhamento estético, apoiamos nosso estudo nas quatro questões
psicanalíticas vividas pelas personagens principais (Angústia, Pulsão,
Narcisismo e Desejo), e que são consideradas cruciais para a concepção do
Belo/Horrível na construção de uma imagem.
Ainda com relação aos elementos constituintes da narrativa ficcional em
Carrie, A Estranha, que nesse caso se constitui no próprio protagonismo do
filme, aparece a problemática dos gêneros associada diretamente à seleção do
público espectador.
Um estudo sobre a geração de efeito, por meio dos enunciados trazidos
pelo cinema, pode representar um rico caminho para o conhecimento sobre a
percepção humana, à medida que o fenômeno cinematográfico representa um
dos maiores recursos para o despertar das sensações humanas.
Assim, essa dissertação justifica-se por se propor a aprofundar as
discussões existentes sobre a estética cinematográfica e a simbologia
empregada no processo criativo do cinema, para a construção imagética da
6
obra que, certamente, representa o elo entre a obra e o receptor, ou seja,
entre a ficção e o sujeito, ou ainda, entre o ser humano e a sociedade
midiática.
Este estudo é caracterizado por uma pesquisa teórica que aprofunda o
entendimento sobre os conceitos propostos pelos autores que constituem o
referencial teórico do projeto, nos diferentes campos do conhecimento: teoria
da percepção, estética cinematográfica e física quântica.
Consideramos, também, a presença de uma pesquisa prática e
exploratória nesse estudo, à medida que os conceitos teóricos são aplicados
na análise do fenômeno cinematográfico como aparelho reprodutor da
realidade que, ao utilizar símbolos em sua construção estética, permite que a
obra gere uma identificação com o público espectador.
A base teórica da dissertação é constituída por três autores cujas obras
pertencem a campos distintos do conhecimento.
Na abordagem sobre as questões centrais que se referem à possibilidade
individual do ser humano construir seu próprio conhecimento e sua própria
realidade, formando assim, uma rede ímpar de signos responsáveis por
múltiplas “visões de mundo”, utilizaremos a física quântica, que representa uma
ideologia típica do século XX, por meio do cientista Amit Goswami e sua obra A
Física da Alma: uma explicação científica para a reencarnação, a
imortalidade e experiências de quase morte (2005).
Na exposição sobre como a simbologia presente na obra é capaz de
gerar efeito de sentido, garantindo a identidade com o espectador, utilizamos a
obra A Percepção: uma teoria semiótica (1998), de Lúcia Santaella.
Ainda com relação à análise da rede de signos particular de cada
observador, suscitada pela estética cinematográfica, empregamos os conceitos
de Maria Inês França e sua obra Psicanálise, Estética e Ética do Desejo
(1997), na elucidação dos conflitos vividos pelas personagens principais (mãe e
filha), como fatores determinantes do processo criativo dos recursos estilísticos
do Belo/Horrível voltados para o público feminino.
7
A partir dessas fundamentações teóricas, reforçamos que o estudo que se
segue pretende fundamentar a estética do estranhamento, a partir das
categorias do Belo/Horrível e da teoria da recepção, definindo os parâmetros
de recepção feminina no contexto da identificação cinematográfica.
Palavras-chave: Cinema; Estética; Percepção; Psicanálise, Estranhamento.
8
Abstract
The cinematographic aesthetics of the female "stranger" in Carrie, is the
title of this master's degree dissertation the purchase of which is to reflect upon
how the aesthetic conception of a cinematographic work is capable of
generating identification among the receiving public, using the symbolic field as
an instrument of representation of one "possible reality."
In search an explanation as to how the cinematographic phenomenon
interacts with the female audience, contributing to the generation of effects, we
went into the theoretical bases of the phenomenology of perception and of
quantum physics, understanding those two currents as being the fundamental
pillars for the viewer’s natural perception, in the face of the symbolic field of the
work in question.
Constructed from the basic principles of the horror genre, the film Carrie,
seeks to involve the spectator in a religious theme arising out of the aesthetic of
unfamiliarity. In order to define this aesthetic of unfamiliarity, we based our
study on the four psychoanalytical questions lived by the main characters
(Anguish, Impulse, Narcissism and Desire), and which are considered to be
crucial for the conception of what is Beautiful/Horrible in the construction of an
image.
Still in connection with the constituent elements of the fictional narrative
in Carrie, which in this case is constituted in the film’s own protagonism, there is
the problem of the genres directly associated to the selection of the viewing
public.
A study regarding the production of effect, by means of the statements
brought by the movies, could represent a rich path of knowledge in terms of
human perception, as the cinematographic phenomenon represents one of the
largest resources for arousing human sensations.
Therefore, this dissertation is justified by its proposal to discuss in
greater depth cinematographic aesthetics and the symbology utilized in the
9
creative process of the movies, for the image construction of the work that,
certainly, it represents the link between the work and the viewer, in other words,
between fiction and the subject, or even between human beings and the media
society.
This is a theoretical study that deepens our understanding regarding the
concepts proposed by the authors that constitute the project’s theoretical
reference in the different fields of knowledge: the theory of perception,
cinematographic aesthetics and quantum physics.
We also took into account the presence of a practical and exploratory
research in that study, to the extent that the theoretical concepts are applied in
the analysis of the cinematographic phenomenon as reproductive device of
reality which, by using symbols in its aesthetic construction, allows the work to
generate an identification with the viewing public.
The theoretical base of the dissertation is based on three authors whose
works belong to different fields of knowledge.
In our approach to the central questions that refer to the human being's
individual possibility of constructing his own knowledge and his own reality,
forming in this way, an uneven network of signs accounting for multiple "world
visions", we will use quantum physics, which represents a typical ideology of the
20th century, by means of the scientist Amit Goswami and his work A Física da
Alma: uma explicação científica para a reencarnação, a imortalidade e
experiências de quase morte (2005).
In the explanation regarding how the symbology present in the work is
capable of generating sense effect, guaranteeing the identity with the viewer,
we used the work A Percepção: uma teoria semiótica (1998), by Lúcia
Santaella.
Still in relation to the analysis of the private network of signs of each
observer, caused by the cinematographic aesthetics, we used the concepts of
Maria Inês França and her work Psicanálise, Estética e Ética do Desejo
(1997), in the explanation of the conflicts experienced by the main characters
10
(mother and daughter), as decisive factors of the creative process of the stylistic
resources of the Beautiful/Horrible aimed at the female audience.
Based on these theoretical foundations, we stress that the following
study intends to explain the aesthetics of unfamiliarity, based on the categories
of the Beautiful/Horrible and on the theory of reception, defining the parameters
of female reception within the context of cinematographic identification.
Key-words: Movies; Aesthetics; Perception; Psychoanalysis; Unfamiliarity.
11
Sumário
INTRODUÇÃO................................................................................................. 12
CAP.I – PRINCÍPIOS FÍSICOS PARA UMA ESTÉTICA CINEMATOGRÁFICA
I- Princípios da percepção natural – a evolução do conhecimento ..... 21
II- O “estranho” conflito do observador observado .............................. 39
III- Desvelando a escrita em movimento de uma realidade simbólica. 54
CAP.II – CARRIE, A ESTRANHA – UM DISPOSITIVO TÉCNICO PARA A
CONSTRUÇÃO DA REALIDADE ESTÉTICA
I- Realidade Material da produção de Carrie, A Estranha ................. 72
II- O Gênero horror – subjetividade e objetividade em jogo .............. 106
III- Confluências e divergências do tema do amor materno no
cinema…… ....................................................................................... 123
CAP. III – A CONCEPÇÃO DE UMA TEORIA ESTÉTICA DO
ESTRANHAMENTO NA RECEPÇÃO CINEMATOGRÁFICA
I- Religiosidade feminina – vicissitudes do erótico e do ético na
narrativa ficcional.............................................................................. 138
II- Estética do “estranho” desejo........................................................ 153
III- Metacinema para o gozo feminino ............................................... 162
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 180
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 183
12
Índice de Imagens / Seqüências / Figuras
Seqüência para análise 1 – JOGO DE VÔLEI............................................................................................91
Seqüência para análise 2 – A NOTÍCIA......................................................................................................95
Seqüência para análise 3 – PREPARAÇÃO PARA A HUMILHAÇÃO DE CARRIE ...................................98
Figura 1 – MOVIMENTOS DE CÂMERA NA SEQÜÊNCIA DO BAILE.....................................................101
Imagens para análise 1 – ANTECIPAÇÃO X AÇÃO.................................................................................116
Seqüência para análise 4 – O AMBIENTE FAMILIAR..............................................................................118
Seqüência para análise 5 – A VINGANÇA ...............................................................................................118
Seqüência para análise 6 – A VINGANÇA FINAL ....................................................................................121
Seqüência para análise 7 – VOCË É UMA PECADORA..........................................................................125
Imagens para análise 2 – SUBMISSÃO X INSUBMISSÃO DE CARRIE..................................................128
Seqüência para análise 8 – O RENASCIMENTO DE CARRIE.................................................................157
Imagens para análise 3 – CONSTRASTE SIMBÓLICO DE CARRIE WHITE ..........................................160
Imagens para análise 4 – LAPSOS DE IMAGEM.....................................................................................161
Imagens para análise 5 SALA DA CASA DE MARGARETH E CARRIE WHITE X VOCAÇÃO DE SÃO
MATEUS .........................................................................................................................................166
Imagens para análise 6 - O REALISMO BARROCO DOS ELEMENTOS DE CENA................................169
Imagens para análise 7 – A INFLUÊNCIA GÓTICA DA ARQUITETURA CENOGRÁFICA......................171
Imagens para análise 8 – ANIQUILANDO O PECADO ............................................................................175
Seqüência para análise 9 – A SUBLIMAÇÃO DO IDEAL NARCÍSICO – O “GOZO MÍSTICO................176
Figura 2 – SANTA TERESA D’ÁVILA.......................................................................................................177
Imagens para análise 9 – IMAGEM DE MARGARETH ............................................................................178
Imagens para análise 10 – A LIBERTAÇÃO DE CARRIE ........................................................................179
Seqüência para análise 10 – A TRANSCENDÊNCIA DE CARRIE...........................................................179
13
Introdução
Estética cinematográfica do “estranho” feminino em Carrie, A
Estranha é o título dessa dissertação apresentada ao programa de mestrado
em comunicação da Universidade Paulista UNIP, na área de concentração
Cultura Midiática, na linha de pesquisa Cultura Midiática e Grupos Sociais.
Tomando como referência à produção cinematográfica e os efeitos receptivos
do gênero horror, determinantes da esfera pública, mobilizamos nosso
propósito de tratar sobre os fundamentos físicos e naturais do mundo objetal ou
do significante como causas primeiras que desencadeiam tais efeitos. Nesse
sentido o “estranho aparece como conceito atrelado às relações afetivas
primordiais que estruturam o sujeito a ser tratado na narrativa ficcional.
Para uma abordagem ampla sobre a problematização da recepção
cinematográfica, partindo da concepção estética do filme e atingindo o
espectador inserido no contexto da contemporaneidade e, justamente por isso,
sujeito a interferências de sentido e de pensamento, utilizaremos teorias de
áreas distintas do conhecimento por serem frutos do pensamento moderno,
concebido durante a revolução do conhecimento humano, que ocorreu,
principalmente, durante o culo XX. São elas: a física quântica, a teoria da
percepção e a teoria psicanalítica.
Assim, esse estudo pretende situar-se na análise de um filme de horror
que contribui para a exploração do gênero, no sentido mais literal da palavra,
tratando o modo como a produção cinematográfica assume o universo feminino
na configuração estética e narrativa da obra. Para tanto, traçaremos uma
trajetória que vai desde os princípios físicos que explicam a percepção natural,
passando pelos conflitos do observador para desvelar a transposição da escrita
para a imagem, ambas em movimento, com o fim de produzir um efeito de
sentido no receptor.
Para estreitarmos os limites conceituais que nos conduzirão por esse
estudo, é necessário refletirmos sobre a capacidade do cinema em representar
a realidade, ou seja, a possibilidade do movimento cinematográfico em nos
aproximar do verdadeiro despertar, isto é, o real do desejo. “O derradeiro esteio
de realidade’ é a fantasia, o que não significa que a vida é apenas um sonho
ou que a realidade é só uma ilusão.” (DROGUETT, 2004:22).
14
É desse limiar entre cinema e realidade, ou seja, da capacidade do
fenômeno cinematográfico em reproduzir a realidade a partir dos efeitos de
sentido que é capaz de gerar, que esse estudo estará fundamentado,
principalmente em relação à configuração da identificação da obra com o
receptor.
Atuaremos, portanto, no rico campo da fenomenologia, em busca de uma
possibilidade interpretativa, mas que ao mesmo tempo representa uma
possibilidade baseada em um único ponto de vista quântico, perceptivo e
teórico-psicanalítico, na busca pelo significado da enunciação do protagonismo
do filme e sobre como o “estranho” impera nessa relação. Por isso, mesmo,
ressaltamos que esse estudo não pretende encerrar o espectro interpretativo
do filme, fornecendo apenas um frescor significativo, a partir de nosso contato
com a obra.
O objeto de estudo da dissertação que se apresenta é a obra de horror
Carrie, A Estranha, que tem como fio condutor do universo narrativo ficcional
o relacionamento entre e e filha e todas as subjetividades que esse laço
afetivo pressupõe. Carrie, A Estranha conta a história de uma adolescente
tímida e rejeitada socialmente que se constantemente submetida aos ritos,
fruto do fanatismo religioso de sua mãe. Carrie possui poderes telecinéticos
que tornam-se incontroláveis a partir de seu desejo de vingança por ter sido
humilhada, com um banho de sangue, na frente de todos os colegas, no baile
de formatura da escola.
Apesar da obra apresentar o típico drama adolescente da descoberta
corpórea e em busca de aceitação social, a grande questão dos conflitos
vividos por Carrie está no comportamento de sua mãe, que a manteve alheia
às informações sobre o desenvolvimento natural feminino, na tentativa de
reprimir seus desejos. Mas, seus ideais caem por terra, a partir do momento
em Carrie tem sua primeira menstruação, ou seja, a partir do momento em que
Carrie renasce para sua condição de mulher. A partir desse fato, Margareth
White passa a perder o controle de seus desejos reprimidos, tornando-se uma
personagem que significa perigo para sua filha, de acordo com os preceitos de
um filme do gênero horror.
Diante das atitudes da mãe de Carrie White, é possível afirmarmos se
tratar de uma personagem psicótica, ou seja, uma personagem com distúrbios
15
mentais graves que afetam o sentido da realidade e cujo caráter mórbido não é
reconhecido por ela.
No entanto, para efeito desse estudo a personagem Margareth White não
atuará como uma personagem psicótica, pois nossa proposta para a
elucidação do protagonismo do filme está relacionada às quatro categorias de
análise psicanalítica, por meio de uma conceituação estritamente teórica, que
nos possibilitará o desvelamento dos impulsos latentes que regem o
relacionamento entre mãe e filha.
A partir da possibilidade interpretativa que estamos propondo para esse
estudo, desembocaremos na concepção estética da obra cinematográfica,
como representativo dessa realidade latente emergida por meio das categorias
de análise psicanalítica, a saber: Narcisismo, Angústia, Pulsão e Desejo. É
desse processo criativo determinante do campo simbólico da obra que surgem
as possibilidades de identificação entre filme e público espectador, mais
especificamente, o blico feminino ou, ainda, feminino adolescente, por tratar
da subjetividade desse grupo social permeado pela simbologia do caráter
intrínseco da feminilidade.
Na busca por compreender essa relação entre obra e receptor,
encararemos os enunciados fílmicos como representativos da realidade como
efeito de sentido, à medida que a concepção imagética apresenta indícios de
realidade que são capazes de suscitar os sentimentos emergidos diante da
realidade natural.
No primeiro capítulo desse projeto traçaremos um panorama da evolução
do pensamento humano ao longo dos tempos, até atingirmos o século XX, que
através das transformações sociais vividas pelos observadores propiciou o
surgimento das teorias da percepção, da física quântica e, principalmente, do
cinema e suas teorias que impregnam o imaginário cultural.
No segundo capítulo descreveremos o filme que nos servirá como suporte
técnico na análise de uma teoria estética do estranhamento, apontando para a
realidade material do mesmo, para as características do gênero e para o
tratamento da relação entre os personagens na ação.
Cabe aqui destinarmos algumas linhas dessa introdução para estabelecer
alguns parâmetros sobre a estética no sentido literal do conceito. Iniciaremos
por uma definição trazida por Gianni Carchia na obra Dicionário de Estética:
16
“A utilização do termo estética numa acepção generalizada, indicando a filosofia
do belo e da arte independentemente das circunstâncias de tempo e lugar, é uma
operação que prescinde da natureza determinadamente histórica do conceito.”
(CARCHIA, 2003:109)
A crítica estética, como disciplina filosófica, nasce como tentativa de
fundamentar tudo aquilo que aparece como acidental ou irracional, a partir de
sua universalidade, para a qual não valem os juízos determinantes das ciências
mecânicas da natureza, mas sim os juízos refletentes que se esforçam para
encontrar a normalidade a partir do acidental.
Apesar de a estética também fundamentar seus princípios na
redescoberta da individualidade e do sujeito, é importante ressaltar que no
estudo que se apresenta, a análise estética estará contida no espectro do
estranhamento, ou seja, tentaremos resgatar em nossa análise, os elementos
estéticos individuais que ao serem dispostos em um conjunto enunciativo de
sensações torna-se estranho, ao mesmo tempo em que se torna belo e por
isso mesmo, causa no receptor uma sensação de abdução. Portanto, não
temos nesse estudo nenhuma pretensão a mais sobre estética do que analisar
os princípios regimentais do que chamaremos mais adiante de estética do
Belo/Horrível, advinda das questões subjetivas do protagonismo do filme, ou
seja, do relacionamento mãe e filha, que carrega em seu âmago o traço do
reprimido.
No capítulo terceiro ensaiaremos a construção de uma teoria estética
baseada na subjetividade feminina, que tem como ponto de partida a
enunciação erótica, constituinte de uma estética do Belo/Horrível, como sendo
a mais adequada para o estranhamento. Essa estética que delimitará as
transições das personagens, dando vazão aos movimentos narrativos, estará
relacionada à geração de efeito de sentido, proporcionada por um metacinema
para o gozo feminino.
Desta forma, essa dissertação pretende demonstrar como o cinema no
seu afã comunicativo procura desvelar o mistério da natureza humana, social e
transcendente ao perscrutar o fascínio que exerce sobre s a imagem em
movimento.
17
CAPÍTULO I –
Princípios físicos para uma estética
cinematográfica
18
tempos a ciência busca formas e caminhos para desvendar a
realidade do universo que nos cerca. Essa busca pela compreensão da
realidade e pela conseqüente formação de um repertório de conhecimento
humano constitui o objetivo final da ciência, que analisa seus objetos de estudo
como parte de uma dimensão físico-natural. Em função desse campo de
atuação, a ciência moderna interage com os fenômenos naturais,
estabelecendo um paradigma que envolve a experimentação: o que é passível
de ser experimentado é o que pode ser ou não comprovado, portanto, todos os
fenômenos que não podem ser submetidos à investigação tornam-se
improváveis.
No entanto, outros campos de estudo que, geralmente, adotam uma
posição menos cética e mais flexível em relação às suas considerações, muitas
vezes acabam complementando o conhecimento gerado pela ciência ou, ainda,
explicando os fenômenos que não podem ser esclarecidos sob uma ótica
maniqueísta, culturalmente arraigada, e que domina os princípios de conduta
em todos os campos de atuação humana.
A Filosofia e, mais recentemente, a Comunicação representam dois
desses campos de conhecimento que, para buscarem a verdade sobre os
fenômenos naturais, inserem em suas teorias a questão da participação do ser
humano em relação aos fenômenos a serem explicados.
Dentre todas as definições possíveis para a Filosofia, podemos destacar
uma, escrita por Platão que parece esclarecer o cerne da questão filosófica.
Para Platão, a Filosofia é o uso do saber em proveito do ser humano, sendo
necessária uma ciência que coincida fazer e saber utilizar o que é feito e, essa
ciência, é a Filosofia. Porém, é justamente no pensamento filosófico que
encontramos a refutação mais veemente sobre o conceito de maniqueísmo,
principalmente na obra de Santo Agostinho.
De forma breve, podemos sintetizar assim a teoria maniquéia: duas
divindades supremas presidiam o universo, o princípio do Bem e o do Mal— a
luz e as trevas. Como conseqüência moral, o ser humano teria duas almas,
cada uma controlada por um desses princípios. Assim, podemos dizer que o
mal é metafísico e ontológico, sendo, portanto, imposto a qualquer pessoa.
19
Ao dedicar-se à questão, Santo Agostinho encontrou uma resposta
chave para sua solução: “o mal não é um ser, mas uma deficiência e privação
de ser” (SANTO AGOSTINHO, [430 d.C.] 1995:16).
Aprofundando-se ainda mais, o Bispo de Hipona examina o problema do
mal a partir de três níveis: o primeiro, metafísico-ontológico: o segundo, moral;
e o terceiro, físico.
Portanto, mesmo mantendo o caráter ontológico da atuação humana no
mundo,o pensamento de Santo Agostinho começa a proporcionar uma
liberdade de escolha para os seres, atribuindo uma responsabilidade maior do
indivíduo na construção do conhecimento humano.
no campo da Comunicação, os estudos dos fenômenos humanos
recebem uma grande contribuição no século XX, trazida por Charles Sanders
Peirce e seu método de análise, que refutava a doutrina científica. Buscando
analisar esses fenômenos sob a ótica da percepção, Peirce trabalha com a
teoria semiótica, que também envolve três níveis: primeiridade, secundidade e
terceiridade.
Com relação à ciência, a medicina, a biologia, a astronomia e a
neurologia prometem, nesse novo milênio, iluminar a mente humana com um
espetáculo de descobertas. Porém, dentre todas as ciências modernas, a física
quântica desponta entre as que mais prometem desvelar os segredos perdidos
da chamada “realidade oculta”, justamente por quebrar os paradigmas da
ciência tradicional, através da qual esses fenômenos podem ser explicados
por meio do método.
O pensamento moderno,representado pelos filósofos do século XX,
compreendeu que os fenômenos humanos o peças fundamentais na
construção do conhecimento, a partir do momento em que fazem parte da tão
buscada “realidade possível”.
E o campo da Comunicação busca compreender esses fenômenos
humanos voltando sua atenção aos sentidos, capazes de capturar a realidade
perceptiva que iluminam os fenômenos interativos, que representam a forma
operacional de mediação. Essa característica de operacionalidade atribui à
mediação quatro categorias de análise: simbólicas, ritualísticas, institucionais e
tecnológicas.
20
Nesse processo de interação, o sujeito passa a ser fruto de si mesmo,
em um movimento constante, no qual ele deixa de ser apenas o reflexo para se
tornar uma projeção de si mesmo e de sua capacidade de percepção. Essa
capacidade perceptiva como força motriz da interatividade entre cinema e
espectador, entre obra cinematográfica e grande público, como processo
gerador de sentido, é o fenômeno que pretendemos iluminar nesse primeiro
capítulo.
21
I. Princípios da percepção natural a evolução do
conhecimento
O princípio da percepção natural está relacionado diretamente aos
efeitos receptivos que o cinema é capaz de produzir nos seus espectadores.
Sendo o cinema uma invenção moderna capaz de reproduzir o imaginário
individual e social, ele aparece como um fenômeno estético de produção,
oferecido ao espectador como uma modalidade perceptiva que favorece o
caráter “sensorial” da experiência por sobre a cognitiva, provocando uma
verdadeira revolução no campo do sentir, em detrimento da inteligibilidade na
qual a cultura fundou suas raízes num passado mais recente.
É objetivo deste primeiro item esboçar uma trajetória sobre a evolução
do conhecimento para vislumbrar nela a passagem de uma cultura verbal para
uma cultura mais visual, na qual o observador transforma-se no espectador e
consumidor das inúmeras imagens que orbitam o universo sígnico.
Desde o início da civilização, o ser humano busca compreender o
mundo no qual está inserido, e o seu papel na construção dos fenômenos que
o integram. Essa busca fez com que, ao longo dos séculos, o ser humano se
debruçasse sobre estudos e teorias que, interligadas, formavam o
conhecimento que temos sobre a realidade. Algumas teorias foram refutadas,
outras consagradas, mas o fato é que essa vontade humana de desvendar os
mistérios do mundo natural jamais cessou.
Inicialmente os filósofos, seguidos pelos cientistas, traçaram teorias
diversas que versavam sobre a influência humana nos fenômenos naturais.
Essas correntes de pensamento transformavam-se à medida que o ser humano
e o mundo adquiriam novas dimensões. No entanto, no culo XX, o
pensamento moderno rompeu com os paradigmas que cerceavam o
desenvolvimento de idéias efetivas sobre as possibilidades humanas na
formação do conhecimento, fazendo surgir teorias nos campos da ciência e da
filosofia que apresentavam novas possibilidades de conhecimento do ser
humano sobre sua própria capacidade de interação com o mundo natural, até
então divinizado por quase todas as correntes teóricas.
22
Essas teorias, fruto de uma sociedade moderna envolvida com as
mudanças de início de século e pronta para contestar ideologias defendidas
durante séculos, apresentam uma nova concepção sobre os fenômenos
naturais que compõem a realidade, e que funcionarão, nesse estudo, como
base de esclarecimento das teorias perceptivas aplicadas ao cinema.
No final do século XIX e, posteriormente, do século XX, houve
tendências de elaboração de uma teoria final, uma grande síntese que
representasse uma forma única de explicação para qualquer fenômeno físico.
As presunçosas necessidades de padronização de teorias e de formas
de pensamentos corresponderam a momentos de transformações na
sociedade com as quais o sujeito estava se vendo obrigado a lidar. Em um
primeiro momento com a revolução industrial e, mais tarde, com a revolução
tecnológica— formadoras do cenário da modernidade— o ser social passa a
ser levado a uma interação com as novas máquinas e tecnologias em uma
espécie de desapropriação do próprio cérebro, ou seja, da própria capacidade
de produção e de pensamento.
A partir das revoluções impingidas ao indivíduo, surge a Indústria
Cultural, através da qual o ser torna-se consumidor de informações, apreciador
da lógica, da técnica, dos sistemas e padrões e, acima de tudo, das
informações que geram a inteligência. É nessa indústria humana capitalista que
as teorias sistematizadas, encapsuladas com o invólucro da grande descoberta
advinda da inteligência, são consumidas vorazmente, sem contestação, pois
somente o fato de serem “novas informações” é o suficiente para entrarem no
hall de dados que formam o conhecimento e o intelecto.
Edgar Morin apresenta um panorama do século XX sobre o consumo de
informação técnica sistematizada:
“Pela primeira vez a humanidade foi abraçada por uma civilização técnica. Pela
primeira vez, os problemas não podiam compreender-se e desenredar-se senão em
escala da mundialidade. Jamais a rede das interações cercara o mundo a esse
ponto. Jamais os interesses e os sonhos humanos se viram apreendidos em tais
relações de interdependências.É efetivamente, a técnica que mundializa o planeta
Terra.” (MORIN, 1986: 203)
23
Para Morin, a humanidade moderna vive sufocada por dois impulsos
distintos: um, em direção ao conformismo e ao produto padrão; outro, em
direção à criação artística e à livre invenção. No entanto, a regularidade, a
estabilidade, a impossibilidade vinda do mundo material, fruto da extrema
exaltação da técnica e da inteligência, torna o ser criador, o ser livre de
barreiras, o ser compreensivo com o impulso renovador do universo, somente o
artista, esse sim, capaz de abrir suas possibilidades e criar seu mundo real.
Assim, do encadeamento dessas transformações típicas do início de um
século envolvido com revoluções e novas idéias, surge o conhecimento técnico
sistematizado e pulverizado, que atende às necessidades de um novo sujeito
consumidor de informação. Entretanto, nenhum ser é capaz de sobreviver sem
dar luz à sua imaginação e aos seus sonhos, o que permitiu que aqueles que
fugiam dos padrões técnicos tivessem a chance de dar vazão às suas
produções por meio de mais um novo sistema, esse sim, em busca de
padronização, que surgia no século XX: os meios de comunicação social.
A humanidade passa a ter, a partir desse novo sistema de informação,
uma cultura industrializada, aos moldes dos novos tempos, que foi sendo
construído a partir de invenções técnicas que possibilitavam a pulverização em
maior escala das informações.
No início do século XX, a imprensa atuava selecionando seus
conteúdos de acordo com a “divisão cultural” a que as diferentes classes
sociais estavam submetidas. Da imprensa popular à imprensa burguesa, dos
conteúdos críticos e politizados aos conteúdos popularescos, as sociedades
tinham na imprensa o embrião da disseminação em massa de informação. E
dentre todas as invenções dos novos tempos, o cinematógrafo foi o que mais
serviu ao consumo de informações, independente do nível de educação de
quem o consumia, justamente por ter sido absorvido pelo espetáculo e pelo
consumo, a serviço do lazer e do sonho.
A partir da evolução do cinematógrafo, surge o cinema, que vem atender
às necessidades cognitivas de uma população atordoada com os inúmeros
estímulos típicos da modernidade. Meios de transportes barulhentos, cartazes
e anúncios por todos os lados, vitrines abarrotadas de informações,
crescimento populacional vertiginoso que causava o acotovelamento pelas ruas
das cidades, o barulho das máquinas; tudo isso tornava a vida na cidade um
24
constante desafio aos sentidos humanos, acostumados com a tranqüilidade
típica de grande parte do século XIX.
O cinema culminou com a tendência das intensas sensações vividas por
esse ser social de início de século, utilizando seu poder como veículo de
transmissão de velocidade, simultaneidade e abundância visual que causavam
um choque visceral nos espectadores. O cinema passa a refletir, em suas
imagens em movimento, as reviravoltas do mundo moderno, causando uma
identificação visual sem precedentes na história da humanidade.
“O cinema não constituiu apenas uma entre várias tecnologias de percepção,
tampouco refletiu o ápice de uma determinada lógica do olhar; ele foi, sobretudo, o
mais singular e expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade
foram refletidos, rejeitados ou negados, transmutados ou negociados. Foi um dos
mais claros sintomas da crise na qual a modernidade se fez visível e, ao mesmo
tempo, transformou-se em um discurso social por meio do qual uma grande
variedade de grupos buscou se ajustar ao impacto traumático da modernização.”
(BRATU HANSEN, 2004:409)
Diante dos acontecimentos que pareciam carregar a humanidade para o
futuro, por um caminho ainda novo e confuso, é possível deduzir que a busca
da comunidade científica por uma teoria física única e definitiva, no início do
século XX, surgiu de um processo de “auto-referência” em defesa da invasão
tecnológica que, naquele momento, parecia ser capaz de reduzir a
intelectualidade humana.
No entanto, principalmente durante a última tentativa de realização
dessa grande síntese, o que se de perceber em seguida foi uma revolução
em busca da renovação conceitual da história da física.
A partir desse momento, a ciência buscou uma reestruturação das
teorias clássicas e passou a revisar a base envolvida na formulação dessas
teorias: a base cinemática
1
. As teorias clássicas, essencialmente mecanicistas,
baseavam-se no estudo de mecanismos dinâmicos, no qual o papel do
observador era somente o de contemplação. Esta postura, originalmente
adotada por Isaac Newton (1643 – 1727), de um fenômeno com características
1
A Cinemática é o ramo da mecânica que estuda o movimento como tal, sem considerar causa ou
natureza dos corpos que se movem.
25
próprias e absolutas, que independem do observador, vigorou até o início do
século XX.
Interessante notarmos que o surgimento do cinema é a materialização
da revolução da base cinemática, no sentido de que o aparato cinematográfico
cria a ilusão do movimento, recriando uma realidade instantânea. A tecnologia
cinematográfica irrompe a questão da percepção natural, dotando o observador
da condição de componente indispensável para o acontecimento do fenômeno
cinematográfico.
Nesse ponto, faz-se necessário uma pausa na evolução das teorias
científicas, para elucidarmos a importância da transformação do observador
das teorias físicas clássicas para as modernas, a partir do início do século XX.
A partir de uma abordagem filosófica, é possível estabelecer um paralelo
entre a função do observador nas teorias físicas de Isaac Newton e o papel do
ser humano no mundo, segundo uma concepção trazida desde os pensadores
clássicos, com poucos questionamentos, até o advento do pensamento
moderno.
De Sócrates a São Tomas de Aquino, os pensadores buscaram
respostas para a questão do conhecimento humano, porém a concepção da
capacidade humana tratada na maioria desses filósofos impediu a produção de
uma teoria efetiva que respondesse a essa questão, mesmo porque as teorias
que vigoraram do período clássico à era medieval priorizavam a centralização
da Metafísica
2
.
Em linhas gerais, podemos tentar elucidar essa linha de pensamento da
Filosofia clássica com a questão da realidade do tempo e do espaço existente,
independente da mente humana, da qual o sujeito só pode fazer idéia da
verdade através da instrução, ou seja, da não ignorância. Buscando conhecer
as matérias básicas de um filósofo como, por exemplo, a matemática e a
aritmética, um indivíduo pode ter conhecimento desse mundo exterior e natural,
2
A Metafísica tem como objeto todas as outras ciências e parte do princípio de que o saber existe
e está organizado em diversas outras ciências, relativamente independentes, mas com fundamentos em
comum. Pode-se imaginar que a busca por essa “ciência da ciência” denominada Metafísica, tenha sido
necessária em função da produção de Platão e seus discípulos que contribuíram para o desenvolvimento
da matemática, física, ética e política. Para Aristóteles a Metafísica, denominada em sua obra como
“filosofia primeira”, era abordada através de problemas que versavam todos, direta ou indiretamente,
sobre as relações entre as ciências e seus objetos ou princípios relativos.
26
mas jamais secapaz de interferir nele, pois esse mundo nos é dado por uma
força superior. Assim, no pensamento grego, o ser humano poderia instruir-se
para conhecer a realidade da qual fazia parte e seria um sujeito destacado
se conseguisse entender essa verdade, o que seria possível através da
infinita contemplação.
No entanto, é em Santo Agostinho que encontraremos o elo para o
pensamento moderno que, na metade do culo XX, será representado pela
física quântica. Em toda a extensão de sua obra, que apresenta um caráter
estritamente teológico, Santo Agostinho insere a questão divina na formação
do conhecimento assim como Platão e Aristóteles, mas Santo Agostinho deixa
claro que o livre arbítrio e a liberdade humana representam as fontes para a
condução da alma ao conhecimento.
Influenciador de toda a Idade Média, Santo Agostinho consolidou a
síntese da filosofia grega clássica com a religião cristã em a patrística
3
. A partir
da síntese elaborada pelo bispo de Hipona, calcada na idéia de que é
necessário compreender para crer e crer para compreender”,surge a teoria da
iluminação, através da qual Deus possibilita o conhecimento das verdades
eternas, mas a inteligência humana, apoiada na fé, torna-se apta a atingir a
virtude do conhecimento de uma ordem divina.
Bem mais tarde, no início do século passado, os pensadores
modernos iriam compartilhar da idéia de um homem soberano em seu
conhecimento. Apesar de podermos encontrar o embrião dessa corrente em
Santo Agostinho, o pensamento moderno não iria incluir em suas teorias a
questão da fé, tema esse que, aliás, na modernidade, jamais se misturaria com
a ciência.
Com o passar do tempo, sujeitos a inúmeros fatos históricos e
transformações nas sociedades, os grandes pensadores passaram a modificar
a forma de considerar o papel do ser humano na construção de seu
conhecimento. Assim, é possível encontrarmos na Filosofia moderna
preocupações acentuadas sobre os limites e possibilidades desse
conhecimento humano, principalmente em relação ao conhecimento científico.
3
Patrística é o nome dado pelos historiadores à filosofia dos padres da Igreja. Desta filosofia,
surgirá posteriormente, a escolástica, com São Tomás de Aquino como principal interlocutor.
27
Segundo a tendência moderna de pensamento, a grande questão a ser
explicada era a da natureza segundo as suas leis imanentes, situando o
problema do ser humano no universo e compreendendo o universo à luz do
destino humano, sendo essa a motivação principal da obra de Santo Agostinho.
Ao contrário da forma pela qual o sujeito era visto nas teorias clássicas, como
um ser independente de sua inteligibilidade, do qual tudo se afirma e que não é
ele próprio afirmado em nada, aos poucos, na filosofia moderna, foi se
fortalecendo a tendência de colocar o ser humano como ente que conhece,
independente das prévias questões Metafísicas.
A partir dessa nova forma de enxergar o conhecimento humano, seguida
pelas exigências da ciência moderna, fortalecida pelos pensamentos de
Leonardo da Vinci (1452 1519) e de Galileu Galilei (1564 1642), surge a
colocação inicial da metodologia moderna, na qual o conhecimento científico
resultava da análise e da síntese, gerando um pensamento ordenado passível
de comprovação.
Portanto, nesse momento, apesar das questões naturais, que ainda
incluíam o sujeito como parte do mundo real, inicia-se um processo de
descoberta do conhecimento por meio da análise humana.
Podemos entender, então, que as bases para a função do observador
nas teorias físicas sofreram influências externas sociais, assim como o
pensamento filosófico. A teoria mecanicista de Isaac Newton, que ajudou a
construir as bases para a física clássica, estava calcada no pensamento
moderno que, apesar de especular a importância do sujeito na construção do
seu conhecimento, mantinha na análise pura do fenômeno o foco para sua
comprovação. Além disso, a questão ontológica da inspiração humana estava
longe de ser descartada pelos cientistas influenciados pela Igreja da Idade
Média.
no início do século XX, com o novo panorama social no qual o ser
estava inserido, os teóricos físicos não conseguiam mais manter os mesmos
paradigmas adotados até então. Parecia haver uma vontade inerente pela
revolução teórica e não pela evolução do pensamento clássico. Na ideologia
moderna, parecia não haver mais espaço para a moral cristã que prevaleceu
até então. A igreja caía em descrédito no início do século. Por conseguinte, não
era mais possível pensar o sujeito como um ser que necessita contemplar a
28
natureza para tornar-se capaz e obter conhecimento. Tampouco parecia ser
possível aguardar alguma espécie de inspiração divina para produção de
conhecimento. A revolução industrial e tecnológica, a alteração na concepção
de tempo e a fragmentação da informação foram, paulatinamente, tornando o
indivíduo incapaz de simplesmente contemplar e refletir. A partir dos estímulos
trazidos pelos aparatos da modernidade, surge um conceito com o qual o ser
moderno teria que aprender a lidar: a distração.
Com o ritmo de vida frenético e acelerado pelos transportes ágeis e pela
velocidade das linhas de produção, a metrópole sujeitou o indivíduo a um
bombardeio de impressões e choques, configurando o espaço urbano em um
mundo estritamente fenomenal, em que um revezamento quase simultâneo
entre atenção e distração. Certamente que nesse cenário não há mais espaço
para a simples contemplação.
Nesse contexto, o indivíduo passa a ser um sujeito participativo e
selecionador de suas impressões. Ansioso pelo desenvolvimento pleno de sua
capacidade de produzir o próprio conhecimento, e absorto em uma luta
imaginária contra o domínio tecnológico, o ser humano passa a conviver com o
reflexo de seus próprios anseios e de sua própria imaginação. A produção
científica parece ferver em um caldeirão de novas idéias, mas, paralelamente,
a produção artística também aprende a ultrapassar os limites da realidade e,
através do cinema, extrapola as barreiras da mente criadora, passando a fazer
parte do mundo da realidade.
A metamorfose do cinematógrafo em cinema, que representa a
passagem de um aparelho capaz de reproduzir imagens em um sistema
reprodutor de idéias, faz com que, entre todos os meios de comunicação de
massa, o cinema tenha se tornado o maior ícone da Indústria Cultural no início
do século. Justamente por não depender do filtro, único e exclusivo das
palavras, o cinema representava naquele momento, e continua representando,
a possibilidade de compreensão por meio do mundo acessível das imagens.
Através do cinema, a platéia é capaz de reconhecer sua própria
realidade em um espetáculo visual que caracteriza o mundo das massas
urbanas. A necessidade de distração havia encontrado no cinema o berço para
as fortes impressões desconectadas, atropeladas e, acima de tudo, intensas.
29
Nesse cenário, Albert Einstein (1879 1955), ainda fundamentado nas
teorias mecanicistas, introduziu o conceito do relativismo. Com esse conceito,
as características de um fenômeno, outrora absolutas, passam a ser variáveis
conforme a posição, mais especificamente conforme a velocidade do
observador em relação ao fenômeno observado, ou seja,., dois observadores,
apesar de meramente contemplativos, enxergavam resultados diferentes na
observação de um mesmo fenômeno.
Na teoria da relatividade proposta no início do século XX, é possível
percebermos claramente que o observador o é mais subjugado às leis
naturais. Agora, sua posição diante dos fenômenos é capaz de alterar
resultados, na exata medida em que a atuação do indivíduo no mundo também
está mudando no início do século. Com essa nova percepção, Einstein
transparece sua posição sobre a formação do conhecimento humano,
influenciado pelo amadurecimento da concepção da razão, trazida pelos
filósofos e cientistas modernos.
Seguindo a evolução das teorias do conhecimento, reforçada por
Leonardo da Vinci e Galileu Galilei, que retiraram a Metafísica do centro das
teorias para inserção do poder humano, surgem duas correntes, ditas dos
novos tempos, que acentuam a importância da atuação humana na construção
do conhecimento e das verdades científicas: o “racionalismo”, de René
Descartes (1596 1650), que considerava o conhecimento a partir da razão; e
o “empirismo”, de Francis Bacon (1561 1626), que considerava o
conhecimento a partir dos fatos, ou seja, da experiência. Embora obedecendo
a orientações diversas, ambos se preocupam com o problema relativo às bases
do conhecimento na conquista da natureza, graças às leis descobertas
metodicamente pelo espírito humano.
Observando as correntes de pensamento elaboradas por Descartes e
Bacon, percebemos que o núcleo dessas teorias metodológicas é a
gnoseologia, ou seja, o conhecimento.
A filosofia moderna iria, assim, demonstrar que o sujeito dos novos
tempos, antes de se considerar apenas um componente do mundo real e
buscar respostas filosóficas para essa integração, indaga sobre as
possibilidades de seu próprio pensamento.
30
O elo decisivo do processo gnoseológico da filosofia moderna veio com
um pensador napolitano chamado Giambattista Vico (1668 1744) e a sua
ciência do espírito ou do “fato histórico”.
Vico produziu teorias que formavam uma crítica radical ao racionalismo
em voga na filosofia cartesiana. Para ele, a formulação sica para a
construção do conhecimento vem do fato de que se é capaz de conhecer
aquilo que se pode fazer. Dessa forma, Deus tem um conhecimento perfeito
sobre o mundo porque Ele mesmo o fez. O ser humano, criado por Deus, é
capaz de conhecer o mundo imperfeitamente. Resumidamente, para Vico a
verdade corresponde ao fato.
Incompreendido por seus contemporâneos, por ser autor de uma teoria
que abalava algumas certezas importantes como a própria matemática, Vico
acreditava que, caso o sujeito quisesse aprender algo sobre a natureza,
deveria adotar muito mais uma abordagem empírica, através da experiência e
da observação do que propriamente um procedimento matemático.
Outra questão importante na obra de Vico é a teoria da história. Para
compreendermos a importância dessa “Nova Ciência”, utilizaremos um trecho
do livro História do Pensamento Ocidental:
“A outra principal conseqüência do princípio de Vico é a teoria da história. Vico
sustentou que a matemática era perfeitamente cognoscível por ser feita pelo
homem e não se referir à realidade. A natureza não era perfeitamente cognoscível
por ser feita por Deus mas efetivamente se referir ao real. Este paradoxo subsiste
nos dias de hoje, sempre que se considera a matemática pura como mera
construção. Vico tentou descobrir uma “nova ciência”, que ao mesmo tempo fosse
perfeitamente cognoscível e se referisse ao mundo real. Encontrou-se na historia,
onde o homem e Deus colaboram, uma surpreendente inversão do ponto de vista
tradicional, pois os cartesianos haviam banido a historia como não científica. A
visão de que a sociedade é inerentemente mais cognoscível do que a matéria inerte
foi revivida no século XIX, pelo filósofo alemão Wilhelm Dilthey e pelos sociólogos
Max Weber e Werner Sombart.” (RUSSELL, 2001:299)
A obra desse pensador, surgida no século XVIII, apesar de não ter sido
amplamente lida, foi responsável por muitos desdobramentos da filosofia do
século XIX. A partir de suas teorias, temos, pela primeira vez, a concepção da
capacidade do indivíduo não estar subjugada à realidade imposta por Deus.
31
Dessa maneira, através de experimentação e observação, Vico apresenta
possibilidades do sujeito construir seu próprio conhecimento real.
Mesmo com o olhar para o futuro proposto por Vico, a filosofia
continuava com duas grandes linhas de pensamento: o empirismo” britânico,
nesse texto exemplificado pelas teorias de Francis Bacon; e o “racionalismo”
cartesiano, baseado no inatismo originado pela teoria das idéias de Platão. O
problema, pela ótica do inatismo, poderia ser assim formulado: como são
inatos, as idéias e os princípios da razão são verdades intemporais que
nenhuma experiência nova pode modificar. E, pela ótica do empirismo”, o
problema poderia ser formulado assim: a razão é capaz de alcançar a
universalidade e a necessidade que governam a própria realidade, isto é, as
leis racionais que governam a Natureza, a sociedade, a moral e a política.
Em decorrência das formas tão distintas de considerar a questão da
razão em relação à sua intenção de ser conhecimento universal e necessário
da realidade, surge na filosofia a tendência do ceticismo, uma corrente que
passa a duvidar da razão toda vez que ela tem intenção de levar ao
conhecimento verdadeiro do real.
Os problemas criados pela divergência entre inatistas e empiristas foram
resolvidos em dois momentos: na filosofia de Gottfried Wilhelm Leibniz (1646
1716) e na filosofia de Immanuel Kant (1724 – 1804). Esse último será utilizado
como exemplo no paralelo a que nos propomos, por apresentar as teorias mais
comumente difundidas em torno da razão.
“Revolução copernicana” é o nome pelo qual são conhecidas as
soluções propostas por Kant em torno da razão, em contraposição ao que
afirmavam os inatistas e os empiristas. Kant considerava que a grande questão
formulada pelos filósofos estava incorreta e, por isso, esses estavam
impossibilitados de entrar em consenso em relação ao conhecimento e à razão.
Para ele, os filósofos se preocuparam em responder o que era a realidade,
afirmando que ela era racional e que, por isso, poderia ser inteiramente
conhecida pela razão quando, na verdade, a pergunta deveria ser sobre o que
seria a razão e o que ela poderia ou não conhecer e, ainda, o que seria a
experiência e o que ela poderia ou não conhecer, procurando assim entender o
que seria a verdade. Para Kant, o centro da preocupação o deveria estar na
32
realidade exterior ou nos objetos do conhecimento, mas sim no sujeito do
conhecimento.
Em função desse deslocamento do sujeito do conhecimento para o
centro da questão filosófica, Kant chegou à conclusão de que a razão é uma
estrutura inata igual em todos os seres humanos, ou seja, a razão existiria
anterior (a priori) à experiência. Porém, os conteúdos que a razão conhece e
nos quais ela pensa, esses sim, dependem da experiência. Sem ela, a razão
seria sempre inoperante, nada conhecendo. Com isso,, Kant afirmou que a
experiência fornece a matéria do conhecimento para a razão e esta, por sua
vez, fornece a forma do conhecimento. Portanto, a matéria do conhecimento,
por ser fornecida pela experiência, viria depois desta, ou seja, a posteriori.
Sendo assim,, é possível afirmarmos que, a partir da evolução filosófica
sobre o papel do sujeito do conhecimento, encontramos em Kant um princípio
para a transformação de um sujeito inapto a construir seu conhecimento —para
o qual as idéias inatas e o conhecimento são colocados por uma força superior
como Deus, por exemplo—, para um sujeito capaz de construir seu próprio
conhecimento.
Certamente que, para Kant, o indivíduo ainda estava preso puramente à
experiência e à razão, mas temos nele o embrião para a concepção de um ser
que, apesar de estar preso à realidade através das idéias inatas, tem, na
percepção individual, o início para o crescimento de seu conhecimento.
Porém,, a partir da metade do século XIX, surge um dilema
epistemológico da modernidade sobre a capacidade humana de síntese em
meio ao bombardeio do campo cognitivo. O que certamente reduziria a questão
da razão a priori de Kant a algo impossível nos novos tempos. Em razão desse
dilema, surge o questionamento sobre a possibilidade humana de manutenção
da realidade a partir dessa capacidade de síntese perceptiva. O resultado não
é para nós algo de grande valia, pois as respostas atrelavam essa explosão
perceptiva a patologias mentais, mas o que realmente ilustra a importância
desse tipo de questionamento é o seu estopim, causado pela difusão em
massa do estetoscópio no início da década de 1850, aas primeiras formas
de cinema na década de 1890.
Ainda influenciado por Kant, Einstein baseou suas descobertas apoiado
fundamentalmente na inserção do sujeito na totalidade de seus elementos
33
materiais e espirituais, integrando um papel importante e necessário do
desenvolvimento da capacidade de cada ser ao mundo envolvente da cultura a
que pertence.
Se analisarmos somente o campo da física, certamente perceberemos
que os paradigmas adotados pela física clássica não eram mais suficientes
para satisfazer a elucidação de fenômenos. A evolução do conhecimento
humano passou a exigir que a aderência das soluções se tornasse cada vez
mais precisa. No entanto, não podemos subjugar o fato de que a ciência está
suscetível ao ser, sujeito à inferência de julgamentos, preconceitos e
sensações, ou seja, está sujeita à influência do próprio ser que a produz.
O pensamento contemporâneo aponta para uma espécie de desamparo
ao buscar novas concepções em todos os campos, em resposta à necessidade
de questionamento do novo mundo pós-sagrado e pós-feudal.
Por isso, o observador, que representa um ponto de suma importância
nas teorias físicas, não tem seu papel alterado ao longo do tempo
simplesmente em função de novas descobertas, mas também porque o agente
produtor da descoberta e da teoria também está sendo submetido a influências
externas.
Portanto, a teoria da relatividade, proposta por Einstein no início do
século XX, veio complementar o momento de transição do ser contemporâneo.
Em linhas gerais, o mundo no qual foram geradas as teorias físicas clássicas e
os pensamentos filosóficos até aquele momento refletia um ser que não tinha
mais como sobreviver no mundo que se constituía para o futuro.
Conforme afirmamos anteriormente, as sucessivas revoluções e o
surgimento da Indústria Cultural fizeram do sujeito um ser incapaz de
contemplar. O foco para a construção do conhecimento, a partir do surgimento
da indústria, era a captura de informação, pois com as novas máquinas e,
posteriormente, com as novas tecnologias, passa a existir uma espécie de
manipulação de pensamento construído através de fragmentos de informação.
Walter Benjamin, um dos grandes filósofos do século XX, que dedicou
grande parte de sua obra à abordagem das questões da modernidade e do
momentâneo, afirmou em muitos de seus ensaios que a vida moderna havia
alterado as condições da “estrutura da experiência”, fazendo-a caminhar na
direção do momentâneo e do fragmentário. Por volta de 1940, Benjamin
34
produziu uma obra denominada Trabalho das Passagens”, que o seguia
uma estrutura linear, apenas apresentava uma série de idéias, observações e
citações descontínuas ou fragmentadas. O interessante é que Walter Benjamin
utilizou o formato dessa obra para exemplificar a forma de produção do cinema
que, ao exibir informações sem a necessidade de completá-las, estava
afirmando a identificação do meio com a cultura da fragmentação e do
momentâneo.
Para exemplificar o espírito humano de compreensão sobre sua própria
realidade, que não aceitava mais rejeitar sua importância diante de um
fenômeno natural, tal qual a teoria da relatividade de Einstein, é pertinente
inserirmos uma citação de Sergei Einsenstein para ilustrar como, no campo das
artes, o sujeito e suas produções também estavam tentando derrubar os limites
da realidade:
“(..)que a arte não se reduz ao registro ou imitação da natureza; que arte é conflito
entre representação de um fenômeno e a compreensão e o sentimento que temos
desse fenômeno representado; é uma representação que toma os elementos
naturais do fenômeno representado e cria com eles a lei orgânica da construção da
obra; que arte é conflito a lógica da forma orgânica e a lógica da forma racional.”
(EISENSTEIN, 1948:7)
Apesar do conceito aparentemente revolucionário do relativismo de
Einstein, a verdadeira revolução estava ainda por vir. Max Planck (1858
1947), que no início do século XX realizava experimentos de termodinâmica,
passou a precisar de um novo conceito para nomear uma característica até
então não evidenciada por nenhum de seus colegas da comunidade científica:
a transferência de energia em pequenas “porções” ou “pacotes”. A cada um
desses “pacotes” de energia, Planck nomeou Quantum e, ao seu conjunto,
Quanta. A partir desse conceito, temos o início do que hoje chamamos de física
quântica.
A difusão dessas idéias na comunidade científica causou uma ruptura
no consenso sobre o fato de a luz ter, exclusivamente, o comportamento de
uma onda, passando a ser aceito, também, o comportamento da luz como
partícula, ou seja, algo consagradamente contínuo e o-material, agora,
também, passa a ser fragmentado e material. Esse comportamento paradoxal
35
ficou cada vez mais evidente nos experimentos derivados de Planck, nos quais
a intenção do observador, definitivamente, influenciava no resultado.
Basicamente, essa “nova física” pregava que os fenômenos o o
apenas relativos aos observadores, mas, principalmente, influenciados por
quem os observa, ao ponto extremo de se considerar que eles existem
somente porque são observados.
A nova proposta da física quântica colocada por Planck permite a
possibilidade de reafirmação dos princípios cinematográficos. Primordialmente,
o que confere vida ao cinema é a luz, com a sua propriedade imanente de
carregar informação. O cinema surge através do fenômeno da refração, que
ocorre quando essa luz incide em ângulo sobre uma superfície transmissora
capaz de alterar a sua velocidade. Mas, certamente, o cinema não se
configurou no estágio atual somente pelo fato de transformar imagens estáticas
em movimentos transmitidos através da luz e refletidos em uma superfície
transmissora. O cinema transformou-se no refletor dos sonhos humanos por
contar, justamente, com o observador como elemento primordial para a
existência do fenômeno cinematográfico. Portanto, é possível afirmarmos que
as novas teorias quânticas trazem em si o embrião da arte imagética.
De volta à questão filosófica dessa nova concepção do ser como agente
de seu próprio conhecimento, surge uma corrente denominada fenomenologia,
introduzida pelo filósofo alemão Edmund Husserl (1859 – 1938).
O princípio dessa nova filosofia era substituir a análise experimental de
um mundo objetificado pela atenção na “existência” em si, no mundo vivido
pelo indivíduo, com sua permanente ambigüidade, sua espontaneidade e
autonomia, suas dimensões infinitas e sua complexidade profunda.
É com o surgimento da fenomenologia, juntamente com a Psicologia da
Gestalt, surgidas no início do século XX, que dois conceitos primordiais
passaram a ser utilizados como elementos de construção de conhecimento: a
sensação e a percepção. Apesar de terem sido utilizados em teorias
anteriores, inclusive em Kant, pela primeira vez temos a noção de que não
diferença entre sensação e percepção, pois, para a fenomenologia, o indivíduo
não tem sensações parciais ou pontuais separadas de cada qualidade
(fornecidas pelos sentidos humanos), e que depois seriam organizadas pelo
espírito como percepção de um único objeto, mas, ao contrário, sente e
36
percebe totalidades estruturadas, dotadas de sentido e de significação. Assim,
a percepção é uma relação do sujeito com o mundo exterior, relação essa que
dá sentido ao percebido e ao percebedor, não existindo um sem o outro.
Para Husserl, a fenomenologia estabelece a direção da consciência ao
objeto, ao real, que é definidora da própria consciência. Sua proposição é de
uma teoria fenomenológica como instrumento para uma investigação
sistemática da consciência e de seus objetos.
Segundo Husserl, os objetos se definem precisamente como correlatos
dos estados mentais, não havendo distinção possível entre aquilo que é
percebido e nossa percepção. A experiência inclui, entretanto, não a
percepção sensorial, mas todo objeto do pensamento:
“A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma
tomada de posição deliberada; ela não é o fundo sobre o qual todos os atos se
destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual possuo
comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos os meus
pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas. A verdade não
“habita”apenas o “homem interior”, ou antes, não existe homem interior, o homem
está no mundo, é no mundo que ele se conhece. Quando volto a mim a partir do
dogmatismo do senso comum ou do dogmatismo da ciência, encontro não um foco
de verdade intrínseca, mas um sujeito consagrado ao mundo.”
(HUSSERL apud MERLEAU- PONTY, 1999:6)
Entretanto, mesmo com a filosofia em busca da questão da percepção
constituída a partir da idéia do conhecimento da realidade do corte epistêmico,
houve uma lacuna deixada pelas teorias da percepção, justamente por
considerarem o aparelho perceptivo primordialmente composto pelos órgãos da
visão. Com base nessa premissa, inicia-se uma busca dessas teorias por
respostas, anulando as questões cognitivas.
Lucia Santaella expõe em seu livro A Percepção: Uma teoria
semiótica, os perigos desse foco somente na percepção visual sem, no
entanto, a busca pelo aprofundamento do entendimento da percepção na
construção do conhecimento e dos processos cognitivos. Segundo a autora, o
método de análise da teoria semiótica, traçado por Charles Sanders Pierce,
37
trabalha a questão da percepção na construção do conhecimento através da
representação sígnica:
“Os argumentos que embasam essa afirmação são muitos, mas podem, no
momento, ser reduzidos a dois: de um lado, o fato de que, para Pierce, não há, e
nem pode haver, separação entre percepção e conhecimento. Segundo ele, todo
pensamento lógico, toda cognição, entra pela porta da percepção e sai pela porta
da ação deliberada. Além disso, a cognição e, junto com ela, a percepção são
inseparáveis das linguagens através das quais o homem pensa, sente, age e se
comunica. Daí a teoria da percepção peirciana estar intimamente ligada à sua teoria
dos signos, que, por sua vez, está fundamentada numa lógica tri-relativa, altamente
rigorosa, que não se separa dos processos mentais, e mesmo os sensórios, das
linguagens em que eles se expressam.” (SANTAELLA, 1998:16)
Diante do surgimento dessas teorias, cada uma em seu campo, temos o
retrato completo da transformação pela qual a sociedade, e com ela os
intelectuais, filósofos, teóricos e, acima de tudo, os seres humanos, estavam
passando no início do século XX.
A teoria da percepção e os princípios básicos da física quântica, apesar
de se enquadrarem em campos distintos da ciência, parecem adotar os
mesmos parâmetros de existência e coexistência, além da percepção da
realidade. Essas duas teorias, com as quais pretendemos firmar esse estudo,
sugerem estabelecer uma única quebra de paradigma, que só poderá ser
compreendida a partir do instante em que, ao invés de pensarmos em objetos,
passarmos a pensar em possibilidades. Tudo é possibilidade inconsciente. A
física quântica calcula apenas essas possibilidades e a teoria da percepção
busca interpretar a ação de uma mente interpretante, que, na sua função de
observadora, tem o papel de selecionar dentre essas possibilidades a que tem
maior probabilidade de acontecer no nível consciente, considerando seus
paradigmas.
Por fim, é válido ressaltarmos que dificilmente encontraríamos uma
forma melhor de destacar a evolução das teorias humanas formadoras do
conhecimento, senão expondo a revolução dos paradigmas intelectuais
concomitantemente ao surgimento da cultura de massa, mais especificamente
ao momento da industrialização do cinema na virada do século XX.
38
Foi então que o cinema, como um fato específico da modernidade, uma
nova tecnologia de percepção, de reprodução e de representação, tornou-se
uma mercadoria cultural de produção e de consumo social, representando,
naquele momento, uma possibilidade inusitada de dar vazão ao sonho e à
imaginação de um indivíduo atarefado com a adequação aos novos tempos.
Ao apresentarmos as transformações do pensamento humano no século
passado, colocando-as ao lado do desenvolvimento da tecnologia
cinematográfica, podemos compreender que o cinema refletiu o momento
vivido pela sociedade. O fenômeno cinematográfico estimulou a mente
interpretante, libertando-a dos estigmas que frearam a criatividade, a liberdade
e a imaginação humana por longos séculos.
Essa característica imanente do cinema de ser um dispositivo de
reprodução da realidade, transforma a experiência cinematográfica em um
fenômeno perceptivo, causado pela rede simbólica, capaz de estimular os
sentidos humanos em busca da identificação com a narrativa ficcional. Mas,
hoje, podemos nos debruçar sobre esse tipo de discussão, somente porque o
conhecimento humano se permitiu à libertação do estigma ontológico e
metafísico que cerceava a evolução do pensamento, em função do homem
como influenciador de sua realidade.
39
II. O “estranho” conflito do observador observado
A nova ciência, chamada física quântica, é sujeita a todo tipo de
hipóteses, pensamentos, sentimentos, intuições, para desvendar a realidade.
Dentro das linhas de pesquisa da física quântica, existem escolhas nos
caminhos da realidade, cada um representando diferentes “realidades
possíveis” entre si.
O princípio quântico, o qual abordaremos nessa parte, é o de múltiplas
“realidades possíveis”, construídas a partir da percepção de cada indivíduo em
relação ao mundo material e natural em que vive.
Essa abordagem quântica está intimamente relacionada às teorias
cognitivas de Pierce, apresentadas por Lucia Santaella, e que serão utilizadas
a partir desse momento, com o intuito de debater a atuação da mente
interpretante, ou seja, da mente cognitiva capaz de cruzar informações frente
ao fenômeno cinematográfico, representado aqui pelo objeto de estudo desse
projeto, o filme do gênero terror, dirigido, em 1976, por Brian de Palma,
intitulado Carrie, A Estranha.
A abdução proposta por Pierce, correspondente à primeiridade, oferece
uma explicação lógica para a questão do desvelamento das diferentes
“realidades possíveis”. Para Pierce, a abdução está relacionada ao
espontâneo, ao original, ao livre. Ou seja, a partir da categorização da
semiótica, intimamente ligada às bases fenomenológicas, é possível entender
que a realidade não é algo pronto, mas, ao contrário, é algo que depende
primeiro da percepção; em segundo, do raciocínio; e, em terceiro, da
interpretação. Todas elas individuais, mutáveis e interdependentes, pois somos
criadores de nós mesmos, de nossos sentimentos, intenções e atos. Assim
como afirma Henri Bergson: Somos criadores de nós mesmos, artistas quando
o queremos, trabalhamos continuamente na modelagem, com a matéria que
nos é fornecida pelo passado e pelo presente...”. (BERGSON, 2006:105).
Carrie, a personagem título do nosso objeto de estudo, comprova as
afirmações de Pierce e de Bergson, construindo sua realidade diária a partir da
percepção obtida sobre os acontecimentos de seu passado. Carrie é
constantemente subjugada aos rituais provenientes do fanatismo religioso de
sua mãe, que considera a filha responsável pelo marido tê-la abandonado
40
(culpa a filha por ter sido a causadora do abandono de seu marido). Os
constantes sentimentos de dor e sofrimento fazem com que Carrie ignore os
acontecimentos mais prováveis de uma realidade adolescente, modelando sua
realidade presente a partir da matéria-prima da amargura, do estranhamento e
da reclusão.
A exemplo das idéias de Pierce e Bergson, a forma ortodoxa de
pensamento na física, utilizada originalmente para explicar a realidade, foi
banida, pois se tornou necessário reconhecer que inclusive as coisas materiais
não são mais o que se pensava: algo estático e previsível; passando a ser
possíveis movimentos da consciência, tornando a realidade o fruto da seleção
do observador de um destes movimentos.
Na busca constante por reverter sua realidade ritualística e cerceadora,
Carrie cria, então, um movimento contrário ao de sua mãe, buscando
distanciar-se cada vez mais da imagem sagrada que a aprisiona desde criança.
Assim, a personagem seleciona para si uma espécie de realidade que,
conforme suas convicções, a afastaria da imagem religiosa da mãe.
Para isso, Carrie passa a interferir na realidade das “coisas materiais”,
tornando-a, a partir da seleção de seus observadores, literalmente, uma
realidade móvel e imprevisível. Essa realidade— que a fez conhecida por
Carrie, A Estranha desarranjava a rede simbólica dos observadores,
incluindo sua mãe, causando uma sensação de estranhamento, à medida que
remetiam à mente interpretante, no âmbito da primeiridade, um movimento em
direção ao sobrenatural, ao repudiável, ao horrível.
Numa contextualização mais abrangente sobre o movimento, temos, no
cinema, uma representação irrefutável sobre o pensamento que se forma a
partir da concepção do observador. O filósofo Gilles Deleuze, em sua obra
Imagem-Movimento Estudos sobre cinema 1, na qual debate sobre algumas
colocações de Henri Bergson em relação ao movimento, extrapola os limites
da ciência e da filosofia, inserindo esse principio físico no contexto
cinematográfico. Segundo Deleuze, para Bergson “o movimento não se
confunde com o espaço percorrido. O espaço percorrido é passado. O
movimento é presente, é o ato de percorrer”.
(BERGSON apud DELEUZE, 2005:13)
41
Partindo dessa afirmação, entendemos que, para Bergson, o espaço
percorrido é infinitamente divisível e pertence a um único espaço homogêneo;
por outro lado, o movimento é indivisível, pois é heterogêneo, ou seja,
irredutível. Portanto, o como reconstruir o movimento com posições no
espaço e com instantes no tempo, a partir de cortes. é possível fazer essa
reprodução unindo-se posições ou instantes à idéia abstrata de uma sucessão
de um tempo mecânico, homogêneo e universal, o mesmo para todos os
movimentos.
Esse é, justamente, o princípio da ilusão cinematográfica, o fenômeno
que só existe porque está sendo observado por um espectador que possui uma
percepção imediata das imagens reproduzidas pelo aparelho do cinema, capaz
de simular não somente o movimento, mas também uma diferente “realidade
possível”, distinta para cada indivíduo, já que provém de uma seleção realizada
por esse observador.
A seleção realizada pelo observador representa um recorte epistêmico
pelo qual se produz o conhecimento sobre a realidade. Dessa forma, para a
fenomenologia, não como garantir que a percepção de um será idêntica à
percepção do outro. A realidade de um não poderá ser a realidade de outro. A
concepção de diferentes “realidades possíveis” torna-se, a partir desse prisma
e partir do que passa a propor a física quântica, uma matéria que faz parte da
realidade, algo que se movimenta e que se transforma ao longo de seu
percurso:
“A realidade é um crescimento global e indiviso, invenção gradual, duração: como
um balão elástico que se dilatasse pouco a pouco assumindo a cada instante
formas inesperadas. Mas a nossa inteligência representa-se a origem e a evolução
da realidade como um arranjo e um rearranjo de partes que não fariam mais que
mudar de lugar; teoricamente, portanto, ela poderia prever qualquer estado de
conjunto: pondo um número definido de elementos estáveis, brindamo-nos
implicitamente, antecipadamente, com todas as combinações possíveis. Isso não é
tudo. A realidade, tal como a percebemos diretamente, é um pleno que não cessa
de se inflar e que ignora o vazio, tendo extensão, assim como tem duração.”
(BERGSON, 2006:190)
42
A realidade construída por Carrie, no contexto do filme, assumia, a cada
instante, uma forma que parecia alertar a todos os outros sobre o perigo de
inserção naquele mundo, assoberbado de elementos simbólicos, incomuns à
percepção rasa e rotineira.
Em uma constante movimentação na órbita do sobrenatural, Carrie
adicionava ao seu enredo elementos que versavam sobre a timidez, a rejeição,
a ignorância, a infantilidade, a loucura e a feitiçaria.Essa última responsável por
agregar o maior número de símbolos causadores de repulsa por parte dos seus
observadores. Mesmo assim, conforme afirma Bergson, a realidade é capaz de
assumir formas inesperadas. Portanto, apesar de todos os ingredientes da
realidade de Carrie suscitarem em seus observadores a concepção de uma
realidade estranha e obscura, essa mesma rede de signos foi capaz de acionar
um outro tipo de percepção, totalmente distinta, em uma das personagens.
Para a professora de educação física da escola na qual Carrie estudava,
aqueles elementos em nada remetiam a uma realidade estranha e diferente,
mas, sim, estavam relacionados à triste realidade de uma menina rejeitada e
submissa, que não conhecia o amor materno.
Apesar do fascínio proporcionado pela idéia do observador, a ciência
estranhou tais afirmações. Tradicionalmente, a ciência evolui fundamentada em
experimentos,ou seja, as constatações decorrentes destes necessariamente
devem ser conclusivas em relação ao que se propôs experimentar. Assim, para
a física quântica ser aceita pela comunidade científica, tornou-se necessário
evidenciar constatações e resultados de experimentos, com o propósito de
comprovar a validade de seus fundamentos.
No entanto, apesar das dificuldades envolvidas nessa comprovação,
derivadas da própria natureza desses experimentos, tornou-se cil trazer à
tona as provas de que a física quântica era verdadeira, tanto no imenso
universo dos planetas e galáxias, quanto no pequeno universo das partículas
subatômicas
4
.
4
Partículas subatômicas são partículas constituintes dos átomos, com um nível de grandeza
infinitamente menor. (HAWKING, 2005:462)
43
Assim, a validade da física quântica passou a ser reconhecida no
infinitamente pequeno e no infinitamente grande, porém, ainda restou uma
barreira a ser ultrapassada: provar que poderia ser viável na vida cotidiana.
É nesse ponto de vista do cotidiano que se permanece preso à
uniformidade da realidade, pois apesar de ser relativamente fácil compreender
os conceitos da física quântica aplicada a algo intangível (partículas
subatômicas e planetas), quando se trata de algo tangível (objetos), uma
tendência em concluir que a realidade é absoluta e que o ser é insignificante a
ponto de jamais poder alterá-la. Enfim, no âmbito dos objetos, a realidade
passa a ser mais completa do que ela realmente é.
Por outro lado, se mesmo em termos de objeto, a realidade é uma
possibilidade da própria consciência, imediatamente torna-se possível
considerar uma forma de alterá-la, de torná-la melhor, de torná-la mais
compreensível. A realidade passa a ser uma extensão da imagem do ser e de
seu próprio pensamento, ou seja, o ser passa a ter papel de agente
modificador dessa realidade.
Esse paradoxo é o que mantém a tentativa de comprovar a aplicação da
física quântica ao nível cotidiano. Por mais que essa ação pareça simples,
existe ainda uma grande força contrária presente no paradigma das
associações existentes dentro do ser, induzidas por meio de condicionamentos,
permitindo que só chegue à consciência o que serve mais à pessoa.
No entanto, a percepção de Carrie sobre o mundo natural e os
fenômenos que o acompanham é de tal grandeza que sua realidade é moldada
até mesmo em relação ao mundo material. Com o intuito de adicionar mais
elementos ao seu contexto de estranhamento, Carrie quebra o paradigma que
impede a comprovação das teorias quânticas no cotidiano e passa a manipular
o movimento dos objetos, rompendo com a concepção da física clássica e da
imensa maioria das pessoas sobre esse assunto.
Sua sensibilidade para interagir com o mundo natural é tamanha que a
personagem manipula o movimento objetal aos moldes da tecnologia
cinematográfica e, conforme afirma Bergson, faz com que as pessoas ignorem
o espaço percorrido por esse objeto, tendo somente uma percepção
momentânea de sua localidade no tempo e no espaço. Essa percepção,
provocada nas pessoas que orbitam na realidade de Carrie, faz com que, mais
44
uma vez, a mente interpretante de seus observadores assimile essa
informação, associando, no âmbito da terceiridade, essa capacidade com
poderes sinestésicos.
A concepção de que a realidade está pronta e é algo imutável pode ser
comparada à Teoria das Idéias elaborada por Platão, na qual está
representado o estado de nossa natureza relativamente à instrução e à
ignorância.
A melhor explicação, dada pelo próprio Platão, à essa teoria é hoje
conhecida como o “Mito da Caverna”. Em linhas gerais, nessa imagem, Platão
afirma que a maioria dos seres humanos vive como se estivesse em uma
caverna escura, sendo esse o único ambiente conhecido desde a infância. É
nesse local que os homens vivem acorrentados de forma que não podem
mexer a cabeça. A única coisa presente a sua frente é uma parede branca pela
qual são projetadas as sombras do que acontece do lado de fora. Tudo o que
esses homens viram por toda a sua vida o essas sombras tremulantes de
toda a sorte de objetos e é isso que tomam por realidade.
O Mito da Caverna representa, exatamente, a alegoria do cinema. O
fenômeno da refração, produzido pela projeção de imagens em uma superfície
branca, deflagra em nós a mesma experiência visual que temos ao enxergar o
objeto real. Por isso, no instante em que nos deparamos com a imagem,
tomamos por realidade a imagem o que se vê refletido.
Para Platão, essa concepção da realidade nos homens acorrentados é
tão forte que, se a algum deles for dado o direito de sair da caverna e encarar a
luz do sol diretamente, assim como todas as coisas das quais antes era
capaz de ver as sombras, certamente esse sujeito duvidará da realidade
presente e, quando voltar à caverna, será dado como louco pelos outros
homens acorrentados.
É no Mito da Caverna que Platão apresenta a afirmação de que a
verdadeira realidade é a do reino das idéias e a de que os homens somente
serão capazes de enxergar a verdadeira luz da realidade se aprenderem a se
voltar contra a parede branca e contra as sombras nela projetadas.
Portanto, a realidade artificial, a qual estavam fadados os homens
acorrentados na caverna e pela qual estariam condenados à ignorância, não
parece ser tão funesta quando as sombras da alegoria de Platão, ou seja, as
45
imagens refletidas na parede são transportadas para o fenômeno
cinematográfico. O cinema também prouma realidade artificial, reproduzida
por meio da imagem, “mas no cinema há a correção da artificialidade, no qual o
movimento é um dado imediato que ao ser compreendido iniciamos uma
espécie de cinematógrafo interior” (BERGSON apud DELEUZE, 2005:15).
O mesmo acontece com a percepção natural, a imagem, ou seja, a
realidade reproduzida está sujeita à percepção do indivíduo. “A partir do
princípio da percepção natural o cinema nos imediatamente uma “imagem –
movimento”. Percebemos a imagem ao mesmo tempo em que percebemos o
movimento”. (DELEUZE, 2005:15).
Esse fenômeno nos ajuda a explicar de que forma Carrie manipula a
percepção de seus observadores, fazendo-os ignorar o espaço percorrido e
percebendo somente o instante presente de sua posição. A amplitude de sua
sensibilidade é tamanha que sua realidade, amparada pelas imagens-
movimento, fazem com que a semiose gerada pelo contexto narrativo extrapole
os limites da ficção, tornando-se também uma diferente “realidade possível”
para os indivíduos que interagem com as imagens refletidas na superfície
branca: os espectadores. Mas, é importante ressaltarmos que o imbricamento
de ficção e realidade, diante do fenômeno cinematográfico, permite aos
espectadores se relacionarem com a realidade criada pela personagem, mas
dentro dos limites que ela mesma estabelece. Ou seja, existe o sentimento
mútuo de dor, de sofrimento, de angústia, existe ainda a transposição da
realidade, mas, diante dos fenômenos produzidos por Carrie, os espectadores
permanecem em estado de estranhamento, é isso aliás que permite a
identificação receptiva.
Os observadores de Carrie e, quando nos referimos a eles, estamos nos
referindo tanto aos observadores espectadores do filme - quanto aos
observados por meio da obra pelos espectadores, permanecem acorrentados
frente à sombra de uma suposta realidade irrefutável. Essa corrente os impede
de entender que a realidade da adolescente está, conscientemente, sendo
manipulada por Carrie, fazendo-a permanecer em um estado constante de
extensão do ser.
Essa manipulação permite que a realidade moldada por Carrie torne
possível o afastamento proposital da realidade construída a partir do
46
relacionamento com a mãe, da qual a personagem quer se afastar. Esse
processo consciente nada tem a ver com feitiçaria ou bruxaria, como imaginam
os espectadores, mas sim com uma percepção do poder do indivíduo sobre a
participação na construção de si mesmo.
Ainda é possível estabelecer um paralelo entre os textos filosóficos
clássicos e as teorias quânticas modernas. O “Mito da Caverna”, apresentado
por Platão, pode ser complementado com a explicação do funcionamento do
cérebro e a concepção de realidade a que se está habilitado a ver, oferecida
por Amit Goswami
5
:
“Considera-se que o cérebro não sabe a diferença entre o que no ambiente e o
que se lembra, pois os mesmos neurônios são ativados. Os olhos são como lentes,
mas o que realmente está enxergando é a parte de trás do cérebro, o córtex visual.
O único “filme” que está passando no cérebro é o que se está habilitado a ver. A
realidade é a percepção do ser sobre o que é real, ou seja, o que acontece dentro
do ser é o que vai criar o que acontece fora dele. se consegue enxergar o que
se acredita ser possível.” (GOSWAMI, 2005:47)
A partir da afirmação feita por Goswami, é possível perguntamo-nos,
então, por qual razão o indivíduo o consegue aplicar na realidade a mesma
característica humana imanente quando se trata do cinema. Inúmeros teóricos
do cinema ainda buscam respostas sobre o que vemos quando olhamos uma
imagem cinematográfica. Mas, antes mesmo de termos a resposta certeira,
sabemos que é possível deixarmo-nos levar pela ilusão quando estamos diante
de uma imagem. É como se em nossa consciência houvesse uma clara
distinção entre a percepção do mundo físico e do mundo mental. Richard Allen
coloca a questão da percepção imagética como percepção da realidade em
seu ensaio Olhando Imagens Cinematográficas:
“Ao vermos uma pintura representativa, uma fotografia ou uma imagem
cinematográfica, encontramo-nos diante de um arranjo bidimensional – de pigmento
5
Amit Goswami é físico, doutorado em física quântica e considerado um dos maiores físicos
teóricos da atualidade. Nascido na índia, desde 1968 é membro do Instituto de Física Teórica da
Universidade de Oregon, nos Estados Unidos. Uma das maiores contribuições de Goswami para a ciência
foi a inserção das questões religiosas, mais especificamente, da doutrina hinduísta, na explicação dos
fenômenos físicos. A idéia central de sua teoria é de que a consciência é a base de toda a existência.
47
sobre uma tela, ou de luz registrada em a tela de cinema organizado sob a forma
de objetos reconhecíveis. De acordo com a teoria causal, minha ‘experiência visual’
de uma imagem é causada pelo arranjo bidimensional do objeto. No entanto,
quando vemos uma pintura, uma fotografia ou uma imagem cinematográfica e
relatamos nossa experiência visual’, normalmente afirmamos que vemos não
apenas a disposição de pigmento ou o arranjo de luz, mas o que é afigurado na
representação.” (ALLEN, 2004:191).
Ainda em relação à dualidade entre o plano da realidade e o plano do
real, apresentamos uma história do folclore americano que conta que, nas ilhas
caribenhas, quando as naus de Colombo se aproximaram, os índios não as
enxergaram num primeiro momento, pois não eram parecidas com nada que
tivessem visto antes. A razão de não terem visto os navios estava relacionada
ao fato de não terem conhecimento prévio de tais formas materiais. Seus
cérebros o tinham a experiência de que existiam navios. Porém, o xamã
começou a notar ondulações no oceano. Mesmo não vendo os navios, tentou
imaginar o que poderia estar causando aquele fenômeno. Intrigado, passou a
contemplar, todos os dias, as inusitadas ondulações, até que conseguiu,
efetivamente, enxergar os navios.
A partir dessa percepção, o xamã passou, então, a contar a todos sobre
a existência das naus. Como todos confiavam muito nele, acreditaram
prontamente em seu relato. A partir desse momento, passaram, também, a
enxergá-las.
Essa história pode parecer banal, considerando os paradigmas atuais de
um ser humano comum, pois é muito difícil compreender os fundamentos da
física quântica, enquanto prevalecer a visão de que o mundo existe
independente da experiência individual.
A dificuldade de esvaziamento da certeza de que o mundo pode ser
constituído de possibilidades está relacionada ao conceito que Merleau - Ponty
coloca como uma espécie de determinação do mundo:
“No mundo tomado em si tudo é determinado. muitos espetáculos confusos,
como uma paisagem em dia de névoa, mas justamente nós sempre admitimos que
nenhuma paisagem real é em si confusa. Ela só é para nós.”
(MERLEAU - PONTY, 1999:27)
48
No entanto, buscando extrapolar os limites da física quântica e, ao
mesmo tempo, tentando reafirmar os princípios expostos na lenda das naus,
parece ser de grande valia citar um exemplo dado por Pierce em sua teoria
sobre o percepto, transcrito na obra A Percepção: Uma teoria semiótica:
“(...) Digamos que, enquanto estou aqui sentado, escrevendo, vejo do outro lado de
minha mesa, uma cadeira amarela com uma almofada verde. Isso deve ser o que
os psicólogos chamam de percepto’ (respercepta). Eles também chamam de uma
imagem’. Não vou brigar com esse termo, contanto que tenhamos precaução
contra a falsa impressão que ele pode insinuar. Quer dizer, uma imagem
usualmente significa algo que intenta representar virtualmente professa
representar alguma outra coisa, real ou ideal. Assim entendida, a palavra imagem
seria um nome equivocado para percepto. A cadeira, que me parece ver, não
professa nada de espécie alguma, essencialmente não corporifica nenhum tipo de
intenção, não está para outra coisa. Ela se impõe ao meu olhar; mas não como um
deputado de qualquer outra coisa, não ‘como’ qualquer coisa. Ela simplesmente
bate à porta de minha alma e lá fica na soleira.
Ela é muito insistente para todo seu silêncio. Seria inútil que eu tentasse nega-la,
dizendo ‘Ora, não acredito na cadeira’. Sou forçado a confessar que ela aparece.
Não apenas aparece, mas me perturba, até um certo ponto. Não posso pensar que
a aparência não está lá, nem posso dispensa-la como faço com uma fantasia.
posso me livrar dela pela execução de uma força física...”
(SANTAELLA, 1998:55)
Numa primeira análise, é possível questionar a ligação entre a lenda
americana e o exemplo de Pierce, citado por Santaella, mas a questão
presente nos dois exemplos é puramente a da existência. As naus de Colombo
existiam, assim com a cadeira amarela com estofado verde, independente da
percepção dos envolvidos. E, é nessa questão de existência além do que se
pode perceber, que se encontra a relação com a teoria da física quântica. No
entanto, certamente, há algo que interferiu no julgamento perceptivo dos xamãs
em relação às naus de Colombo e de Pierce com a cadeira amarela: a
experiência.
Por mais que haja esforços para compreender as experiências descritas
anteriormente, é natural a resistência à idéia de que a realidade depende do
observador, principalmente quando se considera que existe uma realidade
49
comum a diversos observadores. Por que, então, se houvesse alguém no
escritório com Pierce no momento em que percebeu a existência da cadeira
amarela, os dois a veriam exatamente no mesmo lugar e na mesma posição,
se existe a possibilidade da realidade de cada um ser diferente?
A explicação mais acessível para isto, mantendo-se no domínio da física
quântica, é dada por Amit Goswami:
“Objetos quânticos existem como superposição de possibilidades até que nossa
observação cause a realidade da potencialidade, gerando um evento real e
localizado dentre os diversos eventos possíveis. Se uma possibilidade em particular
tem uma grande chance de se tornar real, graças a observação, então a onda de
possibilidade também é forte; quando a onda é fraca, é pequena a probabilidade de
que sua possibilidade correspondente se torne real.” (GOSWAMI, 2005:26)
Para facilitar a compreensão sobre a afirmação anterior, cabe aqui,uma
explanação sobre como a física quântica revolucionou os conceitos da
Metafísica materialista vigente no cotidiano, diante da complexidade da teoria
quântica.
Para a Metafísica materialista, partículas elementares formam átomos,
átomos formam moléculas, moléculas formam células (inclusive os neurônios),
neurônios formam o cérebro e o cérebro forma a consciência. Deste modo, é
fácil compreender que a causa vai das partículas elementares, ou micro, até a
consciência e o cérebro, macro, de forma ascendente. Para a Metafísica
materialista, não existe poder causal em qualquer entidade do mundo, exceto
nas interações entre partículas elementares. No entanto, para Amit Goswami, o
poder causal permanece em toda a cadeia de interação desde o micro até o
macro:
“Mas, se nós mesmos nada somos senão possibilidades materiais, como nossa
observação pode reduzir ondas de possibilidade? A interação de possibilidade com
possibilidade gera possibilidades mais complexas, nunca uma realidade. Assim,
se existisse a causação ascendente no mundo, o colapso quântico seria um
paradoxo. Na interpretação correta e livre de paradoxos da física quântica, a
causação ascendente é capaz de produzir ondas materiais de possibilidade para
a escolha da consciência (não material), e a consciência tem o poder supremo,
chamado de causação descendente, de criar a realidade manifestada por meio da
50
livre escolha dentre as possibilidades oferecidas. A consciência não é mais vista
como um epifenômeno do cérebro, mas como a base da existência, na qual todas
as possibilidades materiais, inclusive o cérebro, estão incrustadas.”
(GOSWAMI, 2005:27)
Assim, a realidade comum do cotidiano, considerando diversos
observadores, é percebida porque tendem a colapsar a possibilidade de maior
probabilidade. Por isso, Pierce e o acompanhante sugerido anteriormente,
enxergariam a cadeira amarela exatamente no mesmo lugar e na mesma
posição.
A partir dessa afirmação, podemos entender que a capacidade de Carrie
em manipular sua realidade está relacionada ao respectivo poder de colapsar
realidades com poucas probabilidades, tornado-a uma realidade comum a
todos que interagem com ela. Essa força fenomenológica é tão intensa, que
Carrie o faz em dois momentos distintos: nos limites da narrativa, possibilitando
que os outros personagens (observadores-observados) dêem movimento à
continuidade fílmica e, concomitantemente, nos limites da obra
cinematográfica, fazendo com que os espectadores (observadores externos),
ao contatarem a rede de símbolos, intrínseca à personagem, interpretem sua
realidade, colapsando as mesmas probabilidades que os observadores-
observados, por mais imaginativas que elas sejam.
Podemos, então, compreender por qual razão os observadores
conseguem colapsar realidades de pequena probabilidade somente quando
estão interagindo com o imaginário cinematográfico. Segundo Goswami,
raramente estamos no estado de consciência dotado de liberdade de escolha.
Ele ocorre quando estamos criativos, por exemplo, como as crianças em
seu estado de descoberta do mundo. As experiências comuns a todas as
pessoas adultas são determinadas por seus egos, além de serem muito
pessoais e condicionadas (praticamente sem criatividade), e, nelas, a liberdade
quântica lugar à quase 100% de condicionamento em virtude de muitas
reflexões no espelho da memória de experiências passadas:
“Com isso, a experiência primária ou mesmo secundárias, com certa liberdade de
escolha, tornam-se pré-conscientes quando são identificadas com nossa memória,
51
nosso ego. Mas sempre que escapamos da identidade-ego, sempre que
conseguimos lidar com o pré-consciente, surge a possibilidade da liberdade...”
(GOSWAMI, 2005: 61)
A idéia de que a realidade é fechada, tal qual propõe a Metafísica, e a
de que o ser não é capaz de interagir com essa realidade a ponto de alterá-la,
cabendo a ele somente ser levado pelas circunstâncias, passou a ser
exaustivamente contestada por Henri Bergson. Conforme afirmado por ele
mesmo, esse assunto, do qual tratou diversas vezes, era senão a criação
contínua de imprevisível novidade que parece desenrolar-se no universo”.
Dentre as diversas discussões propostas por Bergson, uma delas registrada
em um ensaio de 1930, intitulado O Possível e o Real, nos serve
perfeitamente para estabelecer, mais uma vez, o vínculo entre as teorias dos
cientistas quânticos e da maioria dos filósofos do século XX:
“Acredito que acabaremos por achar evidente que o artista cria o possível ao
mesmo tempo que o real quando executa sua obra. De onde vem então que
provavelmente hesitaremos em dizer o mesmo da natureza? Não é o mundo
igualmente uma obra de arte, incomparavelmente mais rica do que a do maior
artista? E não é igualmente absurdo, senão mais, supor aqui que o porvir se
desenhe antecipadamente, que a possibilidade preexista à realidade?”
(BERGSON, 2006:118)
Na sua incessante busca por abrir os caminhos que levam à percepção
consciente do desenrolar do tempo e da evolução, Bergson afirma que os
nossos hábitos intelectuais nos impedem de perceber que o possível é apenas
o real acrescido de um ato do espírito e, em decorrência dessa irrelevância
intelectual, o possível se torna pura e simplesmente aquilo que não é
impossível. É dessa redução das possibilidades do universo que, para
Bergson, surgem os problemas metafísicos malpostos”, que reduzido por eles
a somente dois, engendraram-se nas teorias do ser e nas teorias do
conhecimento:
“O erro começa quando a inteligência pretende pensar um dos aspectos como
pensou o outro e aplicar-se a um uso para o qual não foi feita. Estimo que os
52
grandes problemas metafísicos são malpostos, que eles freqüentemente se
resolvem por si mesmos quando lhes retificamos o enunciado, ou ainda que são
problemas formulados em termos de ilusão, que se desvanecem assim que
olhamos de perto os termos da fórmula. Nascem, com efeito, do fato de
transpormos em fabricação aquilo que é criação.” (BERGSON, 2006:108)
A partir das afirmações de Bergson e Goswami, é possível
compreendermos o quanto é difícil para o indivíduo moderno perceber sua
capacidade de transformar o universo em que está inserido.
Ainda na obra Percepção: Uma teoria Semiótica, Santaella, após
expor o fato de compreender a teoria peirceana da percepção dentro da
moldura lógica da semiose, apresenta a seguinte afirmação:
“De resto, mesmo que Pierce não tivesse criado um outro nome para o percepto tal
como interpretado, a tendência lógica seria a de ler o outro sentido do percepto, o
sentido mental, como cumprindo a função do objeto imediato, ou seja, aquele objeto
que tem primazia lógica sobre o objeto dinâmico, o que significa que, na percepção,
o percepto, tal como interpretado ou percipuum, do ponto de vista da mente que
interpreta, é anterior ao percepto, enquanto este desempenha o papel de causa ou
determinante do julgamento de percepção.” (SANTAELLA, 1998:63)
Se, do ponto de vista da mente interpretante, o percipuum é anterior ao
percepto e, como exposto anteriormente, podemos considerar que o percipuum
é interior e o percepto exterior, ou seja, algo que existe independente de nossa
percepção, podemos afirmar que notamos e, acima de tudo, interpretamos,
algo sobre qual temos uma certa dose de conhecimento prévio, algo com o
qual vivemos alguma espécie de experiência anterior, algo que está em nosso
repertório, com o qual construímos nossa rede de signos:
“Se aplicarmos a rede de semiose sobre os ingredientes da percepção, torna-se
evidente que o percepto desempenha o papel lógico do objeto dinâmico, enquanto
o percipuum desempenha o papel do objeto imediato e o julgamento de percepção
está no papel do signo-interpretante.” (SANTAELLA, 1998:64)
Amit Goswami vai além, para ele o poder da consciência é o propósito
da vida:
53
“O propósito da vida individual é o mesmo que o propósito cósmico, ou seja,
manifestar o possível, dedicar-se ao jogo criativo de se descobrir o potencial da
consciência. A consciência, vendo-se a si mesma, parece se expressar dentro de
certos contextos. contextos que o ser humano precisa viver plenamente, deve
expressar criativamente.” (GOSWAMI, 2006: 227)
Portanto, a partir das considerações de Amit Goswami, podemos afirmar
que, quando estamos diante de imagens-movimento, permitimos que inúmeros
contextos sejam vividos sem a limitação da realidade incontestável, mas sim, a
partir dos conteúdos criativos que libertamos de nosso inconsciente quando
estamos em contato com o fenômeno cinematográfico. Assim, se em nosso
cotidiano somos capazes de interpretar somente aquilo com o qual tivemos
uma experiência anterior, os signos interpretantes utilizados em uma obra de
ficção tornam-se muito mais elásticos, em um estado genuíno de qualidade
pura, fazendo com que a rede simbólica da obra em questão torne-se uma
realidade que, apesar de efêmera, seja totalmente possível de ser colapsada.
A partir da confluência do observador externo ao contexto narrativo, que
o faz sentir-se parte de uma realidade pouco comum mas ao mesmo tempo
fascinante, surge a intensa relação entre observador e observado, gerando a
identificação com a obra cinematográfica, numa espécie de cooperação mútua
entre criação e público.
54
III. Desvelando a escrita em movimento de uma realidade
simbólica
Carrie, A Estranha é um filme que condensa em seu contexto a síntese
de toda a concepção de possibilidade real e percepção natural que abordamos
nas partes anteriores deste capítulo.
Tendo como centro da narrativa a história de uma adolescente que vive
sufocada pelo fanatismo religioso de sua mãe e que permanece excluída do
convívio social pelas pessoas ao seu redor, o filme Carrie, A Estranha,
carrega uma carga de possibilidades, colapsadas pela vontade consciente do
todo.
Na terceira parte deste capítulo, pretendemos debater sobre as
questões sicas do relacionamento mãe e filha na obra, chegando a uma
análise dos fatos advindos desse relacionamento que levam à necessidade de
fuga da dor pela manipulação da realidade. A análise proposta de Carrie, A
Estranha, nos levará, naturalmente, a inserir os propósitos do filme ao
fenômeno perceptivo do cinema e ao entendimento da identidade receptiva do
público feminino proporcionada pelos recursos cinematográficos.
Antes de partirmos para a análise do contexto fílmico, propriamente dito,
é importante contextualizarmos o propósito da obra como produto artístico
comercial produzido para o cinema.
A gênese do cinema, desde os primeiros curtas produzidos por Thomas
Edison e pelos irmãos Lumière, está calcada na identificação com o receptor,
muitas vezes provocada pelo fascínio causado pela representação do
cotidiano.
De certa forma, é possível afirmarmos que o principal elemento de
sucesso do cinema atual, principalmente das produções comerciais, está
fundamentado na geração do fascínio conseguido pelo antagonismo entre a
representação do cotidiano e o esvaziamento da realidade, possibilitando ao
espectador identificar no enredo a sua própria realidade ao mesmo tempo em
que, tomado pela ilusão cinematográfica, cria novas possibilidades para ela.
Fruto da modernidade, o aparato cinematográfico moldou-se à
efemeridade de situações e conseguiu adequar suas cnicas à identificação
55
do receptor acelerado por inúmeras sensações, tendências, estilos e
preocupações trazidas pela vida capitalista do século passado e que ainda
impera nos cenários econômico, político e social. Nesse contexto, o cinema
figura como parte da violenta reestruturação da percepção e da interação
humana promovida pelos modos de produção e pelo intercâmbio industrial-
capitalista; enfim, pela tecnologia moderna e pela urbanização desordenada
em larga escala.
Esse cenário é capaz de explicar a razão pela qual o cinema, em seu
estado inicial, representou o resumo da crise perceptiva, principalmente através
da visão. Situar o cinema na esfera da modernidade contribui para que
possamos afirmar que o cinema representa a possibilidade de reestruturação
da percepção, unindo esses fenômenos em uma perspectiva de prazer,
exacerbação dos sentidos e extrapolação da realidade.
Dessa forma, a imagem assume seu papel principal, como ponto de
partida para a reprodução da realidade, como dispositivo estético que, ao se
tornar complexo, torna-se capaz de atingir o ápice da busca pela identificação
com o espectador.
Em Carrie, A Estranha, a vicissitude estética é o caminho percorrido
por todo o tempo fílmico para a construção da realidade do universo feminino a
ser absorvida.
Para Martine Joly, a imagem independe de seu uso ou significação, a
imagem depende da produção de um sujeito: imaginária ou concreta, a imagem
passa por alguém que a produz ou reconhece”. (JOLY, 2004:13)
Essa definição sobre a gênese da imagem nos leva ao princípio sico
do cinema: a produção de uma obra com contexto narrativo, apoiado em
imagens que intentam representar a realidade, confeccionadas uma a uma,
mas que, através do aparato cinematográfico, configuram-se na ilusão do
cinema, constituindo-se em imagem-movimento que ativa os princípios da
percepção natural.
No entanto, a identificação do público com o contexto fílmico se dá
por completo no momento em que o autor concebe sua obra explorando todos
os recursos cnicos cinematográficos para a reprodução da realidade. Além
disso, a construção de uma imagem fílmica como instrumento para o
desenrolar da narrativa ficcional, que intenta carregar o receptor para o fascínio
56
do cinema, deve se apoiar em signos que conferem à imagem fílmica a
capacidade se tornar algo significativo para a mente interpretante.
A partir desse ponto, podemos considerar, então, a imagem fílmica
como algo relativo ao percepto que possibilita à mente cognitiva resgatar os
pontos comuns entre o mundo exterior (representado pela imagem) e o mundo
interior suscitado pela rede de signos do receptor.
Portanto, tendo como base as três categorias de análise propostas por
Pierce, podemos afirmar que: a imagem por si mesma, da forma como
concebida por seu autor, é o estopim para o fenômeno perceptivo
(primeiridade); os elementos trabalhados para a constituição dessa imagem
(secundidade), com o intuito de representar a realidade, o desejo e o prazer
perceptivo, é o que prende o receptor à teia ficcional da narrativa; e,ainda, a
composição total da imagem filmica, constituída a partir dos elementos
estéticos e técnicos possibilita a identidade da obra com o público, na exata
medida em que permite a relação da obra com a realidade do receptor
(terceiridade). É da conjunção dessas três categorias em uma obra
cinematográfica que surge o fenômeno da mediação do cinema com o público.
Esse estatuto semiótico apresentado acima, está calcado na produção e
na geração de sentido. Para esclarecermos a idéia acima, faz-se necessário
apresentar de forma conceitual as três categorias universais do pensamento
peirciano, trazida por Juan Droguett em Sonhar de Olhos Abertos (2004):
“1. PRIMEIRIDADE que se refere à possibilidade lógica, mas não factual, da
presença de uma única sensação na mente, sem nenhuma relação com qualquer
outra sensação ou idéia; 2. SECUNDIDADE caracterizada pela relação
estabelecida entre dois perceptos, é um estado de choque ou encontro entre dois,
no qual ainda se encontra suspensa qualquer possibilidade de uma conexão casual
ou qualquer interferência a partir da relação entre esses dois; 3. TERCEIRIDADE
refere-se ao pensamento lógico e à capacidade de inferência. Cabe assinalar que a
terceiridade pressupõe as duas anteriores.” (DROGUETT, 2004:91)
A classificação dos elementos constituintes da obra, a partir das
categorias universais do pensamento semiótico de Peirce, revela uma tentativa
de distinguirmos a concepção estética da imagem e a configuração técnica do
filme, como dispositivos geradores de identificação com o receptor. nessa
57
tentativa a idéia de diferenciação entre os elementos estéticos, que para nós
pertencem à realidade latente (não revelada) e os elementos técnicos que, ao
estarem em conformação com a narrativa, pertencem à realidade manifesta
(explícita) da obra. Essa distinção torna-se coerente ao concebermos como
fator propulsor do processo estético as questões advindas do protagonismo
narrativo, ou seja, do relacionamento entre mãe e filha, em contraposição aos
recursos técnicos que o utilizados para garantir a materialização da
adaptação.
Em Carrie, A Estranha, a mediação entre obra e receptor ocorre por
meio de uma visualidade complexa, dotada de significação como fonte de
desvelamento da realidade latente e como condição primordial de prazer
estético, que leva à identificação.
Essa geração de efeito através da visualidade estética está relacionada
ao conceito de pulsão escópica”, que se refere ao olhar como objeto pulsional,
apontando que entre o olho e olhar existe uma cisão, algo que insiste,
inscrevendo-se aí como marca pulsional”. (DROGUETT, 2004:119)
Em sua obra, Sonhar de olhos abertos, Juan Droguett debate sobre a
possibilidade de erogeneização do órgão da visão, considerando a
possibilidade de fundar um outro estatuto para a visualidade, tendo como ponto
de referência a imersão do pulsional no campo escópico:
“Trata-se, aí, de uma epistemologia da visualidade mediada pela câmera, levando-
se em conta o sujeito desejante (sujeito inconsciente), barrado pelo significante da
imagem, da fantasia e sobredeterminado pelas vicissitudes do campo pulsional.”
(DROGUETT, 2004:119)
O conceito de pulsão escópicanos ajuda a amalgamar a concepção
estética de Carrie, A Estranha com a identificação receptiva que, ao deslocar
a relação sujeito-objeto do campo estrutural da narrativa para o campo
fenomenológico da percepção do composto simbólico, torna-se um sujeito
escópico”, ou seja, aquele que advém como resultado do circuito pulsional que,
no filme em questão, não está relacionado com a realidade manifesta
(narrativa), mas sim com a realidade latente (protagonismo).
58
Trata-se de uma relação direta entre espectador e diretor, um recorte
entre o olho e o olhar, um entremeio do processo criativo e da sensação
perceptiva, caracterizando a absorção da obra pelo espectador por meio do
prazer da imagem, do prazer do belo, ou seja, de um prazer intuitivo, que
transmite por trás de uma narrativa estruturada a sensação de estranhamento
e, ao mesmo tempo, a sensação de gozo estético:
“(...) trata-se de observar o comportamento desse sujeito escópico nos pólos enunciativos
e receptivos do cinema. Ou seja, o jogo dialético constitutivo do ato que faz comparecer o
sujeito escópico como correlato das posições dialéticas de enunciação e recepção da
produção cinematográfica.” (DROGUETT, 2004:121)
O filme tem sua narrativa focada nos dramas vividos pela personagem
principal, Carrie, em função da rígida convivência com a sua mãe, que impinge
à filha uma devoção religiosa, e, em função da rejeição imposta pela
sociedade, em decorrência da realidade construída por ela, em torno de si.
Mas, por trás do drama aparentemente comum vivido por uma adolescente em
busca de aceitação social e de libertação familiar, Carrie, A Estranha carrega
uma rie de conflitos intensos que, apesar de serem o foco dos problemas
enfrentados pela garota, são tratados de forma velada no filme. É essa
realidade latente que faz da obra uma constituição estética do desejo feminino.
Para compreendermos a questão estética presente em cada uma das
imagens-movimento do filme, será necessário inserirmos alguns conceitos
apresentados por Maria Inês França, em seu livro Psicanálise, Estética e
Ética do Desejo:
“A estética do desejo encontra na estrutura afetiva não só a expressão e a forma de
dizer no discurso, mas, também, o sentido fundante de um sujeito fraturado e
incompleto, pois a verdade do discurso estético é a revelação de um corpo inserido
traumaticamente na linguagem”. (FRANÇA, 1997:26)
Cabe, então, iniciarmos o desvelamento dos dramas implícitos em
Carrie, A Estranha, iniciando pela história da mãe, Margareth White, que
carrega consigo a angústia de ter sido abandonada pelo marido, quando sua
filha ainda era criança. Esse parece ser o ponto crucial para a concepção
59
imagética do filme, em oposição à estrutura narrativa, pois, na história
adaptada, através da qual o espectador é inserido no contexto da convivência
familiar, esse não é um ponto tratado constantemente, mas, para efeito de
concepção estética do filme, esse parece ser o pilar fundamental para o ato
criativo.
Nesse ponto, parece ser inevitável adentrarmos o campo da psicanálise,
pois, para Maria Inês França, essa práxis psicanalítica se propõe como lugar
de criação e produção implicado na dimensão estética e ética do desejo”.
(FRANÇA, 1997:21)
Para trabalharmos com esse campo analítico, que para nós será de
grande valia no entendimento da construção filmica, não podemos deixar de
esclarecer alguns conceitos teóricos fundamentais na metapsicologia freudiana
e no pensamento lacaniano, que são argumentos pertinentes e consistentes
sobre a problemática da estética a que nos propomos discutir.
Os quatro conceitos que parecem elucidar o comportamento ético da
mãe em relação à filha, além de reafirmarem a concepção estética das cenas
da personagem, são os conceitos da Angústia, Pulsão, Narcisismo e Desejo
6
.
A Angústia é um conceito paradoxal porque se afirma como motor
propulsor do recalque e delegado pulsional, no campo da representação
afetiva. Este paradoxo possibilita à angústia tornar-se o plano fundamental
constitutivo do sujeito e tornar-se o princípio estético do Belo e do Horror, à
medida que indica uma “exterioridade familiar” não dizível, que insistentemente
ecoa a presença de uma ausência, causando um efeito de tragicidade
implacável, que Freud nomeia como “o eterno retorno dos mortos”.
O conceito da pulsão articula-se com o primeiro porque é o impacto
pulsional que imprime o caráter do objeto fundamental como sendo o de um
vazio determinante, testemunhada pela angústia. A pulsão produz rupturas nos
circuitos estabelecidos para sua satisfação, causando uma desarrumação
permanente da ordem estabelecida pelo registro simbólico. Portanto, o campo
primário de julgamento é a diferença introduzida em um impacto pulsional, de
onde emerge uma ambivalência e uma dialética das pulsões e, ainda, a
6
FRANÇA, Maria Inês. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997.
Os conceitos apresentados aqui são retirados da obra freudiana e trabalhados no livro em um contexto
ético e estético, situando-nos no intertexto das três estruturas de sublimação – ciência – arte e religião.
60
decisão de atribuir prazer e desprazer como resposta à questão sobre o desejo
do Outro. Isso constitui o que delimitamos como uma estética - erótica.
É só através do juízo de existência como segundo juízo, que tenta
recuperar a coisa enigmática, que podemos afirmar a ética como face da
estética. Isso porque esta face ética marca a operação de busca e de
reencontro do objeto, afirmando que não objeto existente, movimento
desejante, que permite o processo criativo.
Desse modo, é possível afirmarmos que as ações desejantes da mãe de
Carrie, inseridas em uma dimensão trágica, atribuem um caráter compulsivo ao
desejo inevitável do retorno do ausente.
A partir dos conceitos apresentados, podemos iniciar o entendimento
dos sentimentos que levam ae de Carrie às atitudes que nos inserem no fio
condutor da narrativa, ou seja, na realidade manifesta da obra.
Ao ser obrigada a lidar com o abandono do marido, a mãe de Carrie
passa a conviver com a angústia alimentada pela presença da ausência, que
faz com que o desejo feminino, imanente à mãe, deva ser constantemente
aniquilado pela idéia de pecado. É dessa percepção do desejo e do amor não
correspondido por uma figura masculina, simbolicamente presente, que ocorre
a relação estabelecida pela mãe entre desejo e angústia, tornando o impulso
ao fanatismo religioso o único capaz de preencher o vazio da necessidade
afetiva feminina.
A busca compulsiva pelo rito e pelo campo do simbólico cria uma falsa
sensação de substituição do desejo. Ficando, assim, sem controle o impulso de
reprimir a face feminina, caracterizada pelo desejo de sua filha que, a partir da
sua primeira menstruação, deixa de ser apenas o fruto do relacionamento com
o pai ausente, para se tornar a figura do pecado como fonte de desejo
masculino. Por isso, Margareth White obriga sua filha a viver os rituais
religiosos capazes de aproximá-la do divino e afastá-la do profano.
Ainda, essa transferência pulsional da ritualidade em oposição à culpa
pelo desejo pode ser relacionada com mais um conceito psicanalítico, trazido
por Maria Inês França, como relativo ao campo estético e ético feminino: o
narcisismo.
Esse conceito é apresentado como contraponto a uma erótica referida à
verdade imparcial do desejo. Esse ideal narcísico é a primeira ficção que
61
distingue o eu e o sujeito, sendo que é dessa discordância fundamental que
surge a estranheza, pois a forma que assegura o poder diante da onipotência
imaginária tem como estatuto sua condição de miragem. Ainda, é desse
conceito que surge a discussão sobre o sentido mais comumente ativado
quando discutimos as questões perceptivas: o olho, assim como cita Maria Inês
França:
“O olhar é imaginado no campo do Outro e, portanto, ele se subverte quando o Isso
faz sua aparição. Diferencia-se, assim, no campo escóipo, o olhar e o olho, pois o
olho representa o vazio determinante onde se assenta a imagem. Em relação à
pulsão escópica o sujeito é determinado pela cisão olhar/olho. Assim, no registro
imaginário, se aparentemente a harmonia da semelhança no que diz respeito à
função da imagem de barrar a falta, por outro lado o retorno do que vem a ser
discordante sob a forma de uma agressividade primária.” (FRANÇA, 1997:14)
Assim, podemos compreender que a marca fundamental do desejo, no
caso de Margareth White, a figura do pai, é constantemente revivida através do
efeito da imagem que faz surgir a dialética aparência e para-além-da-
aparência.
No entanto, a quietação do desejo por meio do ideal narcísico pode ser
repentinamente suspensa pelo que se chama de lapsos de imagem”. Esse
acontecimento psíquico, provocado por uma falha no imaginário, faz revelar a
estranheza inquietante do desejo inconsciente. Dessa forma, esse “algo
estranho”, apresentado como algo Horrível, emerge para logo escapar, fazendo
sua aparição em um resplandecimento, que é na função do Belo.
Quando essa queda da imagem, surge um vazio angustiante, que
revela a imagem nua do próprio narcisismo. É nesses momentos que a mãe
tem consciência do desejo sentido pelo pai, fazendo emergir a necessidade do
rito religioso que conduz ao fanatismo. Mas, não é isso, o encontro das
pulsões do desejo e da necessidade de repelir o desejo, por meio da
compulsividade religiosa, incita um sentimento de rivalidade e de ódio, de júbilo
e de amor, contrastes que a mãe credita à filha como se ela fosse o
instrumento responsável pelo abandono do pai. Dessa forma, o único caminho
para aliviar a dor consciente é fazer com que essa filha sinta a mesma dor, o
mesmo ódio, o mesmo repúdio ao desejo e, para isso, ela também deve ser
62
inserida nos ritos religiosos, para escapar da estranha angústia refletida da
própria imagem do passado jovem da mãe para a presente imagem da jovem
filha. Mais uma vez retornamos ao conceito de narcisismo ao constatarmos que
a mãe transfere para a filha suas dores, seus impulsos, suas culpas e seus
desejos.
O desejo é o último dos quatro conceitos que Maria Inês França coloca
como pilares para a construção da estética e da ética feminina:
“A dimensão de movimento do desejo de desejar emerge de uma estrutura trágica
que, como veremos, implica a ausência de sentido que leva a outra satisfação, que
é com a ordem do símbolo articulada à experiência estética erótica e ética. Em
relação ao processo criativo da sublimação, o desejo pode expressar-se
enquanto movimento de desejar, pois, como mencionamos, este percurso pulsional
indica o objeto como radicalmente separado, fora e inerte na sua queda”.
(FRANÇA, 1997:14)
O movimento desejante pode ser o movimento propulsor do processo
criativo e produtor de novas formas de apresentação do Belo/Horrível. No
entanto, no caso da mãe de Carrie, o movimento desejante representa a
paralisação do deslocamento do desejo, através de fixações imaginárias,
associadas, necessariamente, a fantasias de onipotência. Mas, ao mesmo
tempo em que, na narrativa, esse aprisionamento vivido pelas personagens
principais impede que o movimento desejante esteja configurado no processo
de criação, na totalidade da obra como reprodução da realidade, é justamente
esse movimento que caracteriza o processo de criação, sendo determinante na
configuração do campo simbólico que será utilizado no filme, em busca da
identidade com o espectador feminino, através da instituição da estética do
desejo:
“A estética do desejo é representada pela função do Belo, que sustenta o
imaginário ao mesmo tempo em que o faz falhar. Assim, esta função opera como
lugar do equívoco, porque oculta e desvela o horrível a um só tempo. A produção
simbólica e seus efeitos de movimento através da pluralidade de formas estéticas
de apresentação da palavra se torna possível, enquanto produção criativa, se
63
esta inquietante estranheza enquanto princípio estético e efeito daquilo que nos
escapa for capturada no valor impresso da expressão da própria palavra”.
(FRANÇA, 1997:15)
Em seu campo de atuação, a psicanálise se auto-define como uma
prática essencialmente interpretativa, que se apóia em seus conceitos
fundamentais para analisar o dado vivenciado, tratando o real pelo simbólico.
Esse tipo de análise caracteriza-se por propiciar a verificação dos fenômenos
naturais de uma experiência vivenciada, a partir dos símbolos e de seus
significados individuais.
Assim, as bases da análise psicanalítica sobre um determinado
fenômeno natural estão relacionadas aos princípios que norteiam a teoria da
percepção, pois as duas práticas teóricas não pretendem fixar uma única
“visão de mundo” no campo das significações simbólicas, responsáveis pela
formação do conhecimento através da experiência individual vivida.
As convicções propostas pelas duas teorias o ainda complementares
à filosofia básica da física quântica quando aplicadas em um estudo
fenomenológico, pois as três, cada uma em seu campo de atuação, entende
que a modernidade é composta por seres individuais, para os quais o campo
simbólico é dotado de múltiplas significações, advindas de um sujeito soberano
na constituição de sua própria razão, de seu próprio conhecimento e, acima de
tudo, de sua própria realidade.
Empregando os princípios dessas três teorias na análise da obra
cinematográfica, podemos afirmar que o fanatismo religioso de Margareth
White está intrinsecamente relacionado à simbologia dos rituais que,
vivenciados rotineiramente, são feitos em resposta ao estímulo pulsional da
necessidade de preencher a angústia do vazio, sentido pelo abandono do pai,
e de atenuar o desejo sentido pela figura masculina, emergidos nos lapsos de
imagem do ideal narcísico.
A mesma simbologia que para a mãe liberta da dor, para a filha
representa a impossibilidade de viver e de sentir. Para Carrie, a ausência da
figura do pai não está relacionada ao movimento desejante, mas sim às
amarras impostas pela mãe por meio dos ritos religiosos.
64
Portanto, apesar de estarem carregados de simbologia, esses rituais
trazem sensações distintas para mãe e filha, justamente porque os signos
presentes nesses rituais são relacionados a experiências distintas, logo, estão
relacionados a diferentes significações, mesmo que em alguns casos
circundem o mesmo campo de significação. Conseqüentemente, a cada dia em
que os rituais estão, concomitantemente, presentes na vida das personagens
principais, eles estão colapsando realidades distintas, apesar de muito
próximas.
No campo da teoria da percepção, essas múltiplas significações estão
relacionadas à mediação do signo, pois à medida que os signos, presentes nos
rituais religiosos, estão aptos a afetar uma mente, são também capazes de
produzir algum tipo de efeito:
“Um signo intenta representar, em parte (pelo menos), um objeto que é portanto,
num certo sentido, a causa ou determinante do signo, mesmo que o signo
represente o objeto falsamente. Mas dizer que ele representa seu objeto implica
que ele afete uma mente, de tal modo que, de certa maneira, determina, naquela
mente, algo que é mediatamente devido ao objeto. Essa determinação da qual a
causa imediata ou determinante é o signo e da qual a causa mediada é o objeto
pode ser chamada de interpretante.”
(PIERCE apud SANTAELLA, 1998:39)
Relativamente ao processo criativo da obra cinematográfica como um
todo, nos referimos aqui à construção do roteiro na adaptação da obra, temos
nos rituais religiosos a base para a concepção estética do filme que
possibilitam a confluência dos elementos do campo estético para a construção
da identificação com o público.
No campo da psicanálise, a concepção do estranhamento que circunda
a personagem representa justamente a condição de beleza da obra. Segundo
Maria Inês França, Freud, ao indicar a evanescência da beleza, mostra a
transitoriedade como condição do belo, porque o valor estético é indicador da
falta de ser, da relação com a morte”. (FREUD apud FRANÇA, 1997:25). Ou
seja, o criador da obra, ao enfocar o problema do abandono familiar como fator
circundante da narrativa sem, no entanto, tratá-lo de forma manifesta, está, na
verdade, delimitando o Belo como foco criativo da forma e do movimento da
65
obra, como expressão da finitude e da dor, fazendo com que a forma estética
do filme se enquadre na narrativa do estranhamento proposta para a
personagem principal:
“O valor da transgressão criativa do par expressão-impressão que vai-se colocar
em um movimento de vaivém, o qual faz bascular a estranheza inquietante do
Outro no eu, produz um efeito de fascínio e de feitiço. Esta reflexão afetiva é a
linguagem da paixão pulsional operando em um mundo fantasmático. Assim é que
a expressão ou forma do dizer é responsável pela densidade significativa do
enunciado, marcando a articulação do afeto com a palavra designada.”
(FRANÇA, 1997:226)
Com a apresentação do Belo/Horrível e seus condicionantes psíquicos
como formas determinantes da estética do filme, Carrie, A Estranha
conseguiu criar uma forte ligação com o receptor, por apresentar um contexto
sombrio e de dor em um cenário que suscitava a perplexidade pelo
estranhamento.
Essa capacidade criativa de explorar os recursos cinematográficos para
inserir o espectador em uma reprodução da diferente “realidade possível”,
apesar de atípica por ter pouca probabilidade de colapso do todo, faz com que
o espectador, ao ser tocado pelo movimento simbólico e estético da obra,
tenha a possibilidade de vivenciá-la, sem no entanto colapsá-la para sua
própria realidade. Ou seja, no decorrer do filme, o espectador tem a
oportunidade de experimentar as sensações de angústia, de desejo e de dor
vividas pelas personagens, encapsuladas pela estética do Belo/Horrível,
geradoras do estranhamento, mas com a possibilidade de despertar para uma
realidade mais afável ao final do filme.
Um dos aspectos proporcionados pela ficção cinematográfica é a
possibilidade de perdermos nossa consciência habitual durante o envolvimento
com a ficção. Em um artigo sobre ficção, crença e atenção, chamado
Espectatorialidade cinematográfica e a instituição da ficção, Murray Smith,
professor de cinema da Universidade de Kent, insere uma afirmação feito por
Richard Allen, sobre o poder de uma obra de ficção cinematográfica:
66
“Através da ilusão projetiva, deixamos de ter consciência da imagem projetada
como uma reprodução ou registro de alguma coisa e experimentamos os
acontecimentos nela representados como se estivessem presentes”.
(ALLEN apud SMITH, 2005:142)
De acordo com o afirmado por Richard Allen, podemos entender que o
filme Carrie, A Estranha, apesar de ser uma obra de ficção, inclui na
totalidade narrativa fatos presentes na realidade cotidiana e que, por meio de
suas representações simbólicas, componentes da esfera estética do filme,
incita o espectador a perder-se no limite entre ficção e realidade:
“Passemos, agora, à “perda da consciência”, onde tomamos não apenas uma
espécie de representação por outra (a ficção pela história), mas também a
representação pelo seu referente. Nessa formulação, postula-se que a ilusão
sensorial ou perceptiva (x parece ser um objeto real, embora eu esteja ciente de
que x é um representação) conduz a uma ilusão epistêmica (tomo x por um objeto
real), o que pode ser usado para sustentar a idéia de que, ao apreendermos o
ficcional, nele acreditamos como se realidade fosse.” (SMITH, 2005:145)
Partindo das bases teóricas apresentadas neste capítulo, podemos
concluir que o filme Carrie, A Estranha, tem como aspecto fundamental de
seu afã comunicativo a perfeita manipulação do aparato cinematográfico, em
prol da construção de uma obra capaz de suscitar os princípios perceptivos
que geram a identificação com o filme.
O processo criativo, que se apóia em uma realidade latente,
relacionando a estética da obra a algo infimamente presente no contexto
narrativo, torna a simbologia do Belo/Horrível capaz de gerar o estranhamento,
não somente pela sua concepção imagética que contempla o rito, mas também
por enaltecer sentimentos e sensações que, ao permanecerem
constantemente cravados no íntimo do espectador, quando emergidas pelo
caminho da imaginação e do sonho, revelam uma realidade adormecida e
jamais colapsada.
Por fim, ao apoiar a questão estética no protagonismo do filme, revelado
pelo relacionamento entre mãe e filha, a obra retira da narrativa a obrigação de
gerar a identidade, transferindo à imagem, carregada de signos-interpretantes,
67
e por isso muito mais eficientes na reprodução da realidade, a certeza de fazer
do filme uma explosão estética ao mesmo tempo bela, ao mesmo tempo
horrível.
68
CAPÍTULO II –
Carrie, A Estranha – um dispositivo técnico para a
construção da realidade estética
69
Como forma de comunicação, o cinema tem na imagem fílmica seu
principal elemento de transmissão de mensagem. Essa imagem,
invariavelmente, pode ser considerada como matéria-prima da linguagem
cinematográfica. Marcel Martin, na obra A Linguagem Cinematográfica,
afirma que a imagem é, antes de tudo, um instrumento realista, dotado de forte
poder no acionamento do fenômeno perceptivo:
“Duas características fundamentais da imagem resultam de sua natureza de
reprodução objetiva do real. Primeiro, ela é uma representação unívoca: por seu
realismo instintivo, capta apenas aspectos precisos e determinados únicos no
espaço e no tempo da realidade. (...) Em segundo lugar, a imagem fílmica es
sempre no presente. Enquanto fragmento da realidade exterior, ela se oferece ao
presente de nossa percepção e se inscreve no presente de nossa consciência: a
defasagem temporal faz-se apenas pela intervenção do julgamento, o único capaz
de colocar os acontecimentos como passados em relação a nós ou de determinar
vários planos temporais na ação do filme.” (MARTIN, 2003:22)
Partindo dessa premissa, em Carrie, A Estranha – Um dispositivo
técnico para a construção de uma realidade estética, tentaremos expor
nosso objeto de estudo sob a ótica estruturada das técnicas cinematográficas
que, ao constituírem a materialidade da obra, contribuem para ocorrência dos
fenômenos imanentes ao cinema, entre eles a percepção e a identificação com
a obra.
Complementando os aspectos perceptivos trazidos na primeira parte
desse estudo, a análise estruturada da materialidade da obra como um todo
nos ajudará a compreender como os fenômenos estéticos, apoiados nos
aspectos psicológicos do protagonismo do filme, tornam-se críveis quando
associados a uma manipulação minuciosa das técnicas cinematográficas em
cada uma das unidades imagéticas, representativas da realidade.
Para que possamos trazer à tona a realidade material de Carrie, A
Estranha, utilizaremos para análise as principais seqüências da obra,
destacando alguns momentos cruciais do filme como exemplos da
configuração do desenrolar da narrativa ficcional, da constituição sígnica da
obra, bem como da evolução dos personagens na trama.
70
Essa busca por uma análise técnica nos levará, inevitavelmente, a uma
estruturação do gênero, pois, o entendimento das características
classificatórias do horror nos ajuda no esclarecimento das razões fílmicas
que resultaram nas opções feitas pela utilização de alguns recursos materiais
utilizados, em detrimento de outros, em função do universo diegético.
7
Se a diegese é um conceito global do universo fictício, no qual a
narrativa se concretiza em tudo o que a história evoca no espectador, parece
ser primordial examinarmos de que forma os elementos que compõem o
universo diegético da obra foram trabalhados em função de uma significação
efetiva, sem lacunas, completa em todos os sentidos.
Uma abordagem utilizando alguns conceitos sobre a semiologia do
cinema, principalmente os levantados por Christian Metz, na obra A
significação no cinema, pode nos ser útil na tentativa de estruturação dos
recursos, para abordagem dos fenômenos fílmicos.
“Outras narrações recorrem à imagem como veículo: tal como a narração
cinematográfica. (...) cada imagem, longe de equivaler a um monema ou mesmo a
uma palavra, corresponde mais exatamente a um enunciado completo (...).”
(METZ, 2006:39)
É a partir dessa concepção de que uma imagem corresponde a um
enunciado, que a composição técnica e simbólica de cada uma das unidades
fílmicas foram cuidadosamente elaboradas em prol da enunciação
interpretativa do protagonismo do filme. Essa relação entre matéria-prima e
obra busca fortalecer os laços de identificação do público com a estética do
Belo/Horrível. Não se trata de utilizar os recursos técnicos para garantir um
realismo crível, mas sim, em transformar cada elemento simbólico em um fator
determinante para a identificação com a obra.
Segundo Metz, a impressão de realidade trazida pelo cinema deve-se à
interação da atividade mental com as propriedades físicas brutas da imagem
7
AUMONT, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995.
“Qualquer história particular cria seu próprio universo diegético, mas, ao contrário, o universo diegético
(delimitado e criado pelas histórias anteriores como é o caso de um gênero) ajuda a constituição e a
compreensão da história.”
71
cinematográfica, pois cada imagem contém inúmeros índices de realidade. No
entanto, somente índices não são suficientes, pois a impressão de realidade
está relacionada, também, à capacidade e à necessidade da mente em
“perceber” um mundo cheio e coerente para a percepção.
8
Portanto, podemos admitir que, de certa forma, a aparência da imagem
é decisiva para que uma obra cinematográfica consiga suscitar na mente do
espectador a realidade possível representada na ficção, mesmo que essa
realidade seja proveniente dos aspectos psicológicos, pois, ao contrário de um
realismo puro, a imagem deve servir para reforçar os aspectos primordiais da
enunciação.
Dessa forma, o capítulo que se apresenta pretende trazer à baila a
materialidade cnica e simbólica do filme, apresentando os dispositivos que
propiciam a relação entre a mente criadora e a mente perceptiva.
“Quando um homem intervém, coloca-se, por menor que seja, o problema daquilo
que os estudiosos chamam de equação pessoal do observador, ou seja, a visão
particular de cada um, suas deformações e, suas interpretações, mesmo que
inconscientes. Com muita razão, quando o diretor pretende fazer uma obra de
arte, sua influência sobre a coisa filmada é determinante e, através dele, o papel
criador da câmera é fundamental.” (MARTIN, 2003:24)
8
ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2002.
72
I. Realidade Material da produção de Carrie, A Estranha
A necessidade de tentarmos exaurir a exposição da realidade material
da obra, iluminando as intenções dos elementos em todas as instâncias
fílmicas, vem reafirmar a concepção de que uma obra cinematográfica trabalha
com uma intensa rede simbólica que, ao intermediar as intenções da mente
criativa para com a mente receptora, mas não menos inventiva, condensa uma
série de interpretações em um espectro menor de sensações trazidas pelo
fenômeno cinematográfico.
Sergei Eisenstein dedicou uma boa parte do início de sua carreira no
cinema discutindo a questão da matéria-prima na construção da realidade
cinematográfica. Apesar de muitas vezes inflexível e dogmático em relação às
características técnicas do meio cinema, Eisenstein jamais conseguiu deixar-se
ludibriar pelo realismo do cinema russo, repleto de planos gerais que
funcionavam apenas como pano de fundo para os diálogos, numa espécie de
transposição para o cinema do Teatro de Arte de Moscou. Para ele, a principal
característica desses filmes era a ineficiência, à medida que o cineasta
permanecia à mercê dos acontecimentos que filmava, sem conseguir
transformar os elementos da realidade em material útil para o processo criativo.
Assim, em um de seus debates sobre a realidade cinematográfica, Eisenstein
apresentou o conceito de neutralização:
“O processo de decompor desse modo a realidade em blocos ou unidades
utilizáveis pode ser chamado de neutralização. Ele afirmava que a música e a
pintura baseiam-se na neutralização do som e do tom, respectivamente. Em seu
ensaio sobre cor, negou especificamente que determinada cor pudesse ter um
significado próprio que o amarelo, por exemplo, pudesse significar ciúme e o
vermelho, paixão. O significado da cor, como todos os significados, deriva de
uma inter-relação de partículas neutras: o verde adquire um significado quando
aparece num sistema de relações envolvendo outras cores e outros códigos.”
(EISENSTEIN apud ANDREWS, 2002:48)
Dessa forma, Eisenstein nunca conseguiu dar méritos ao cinema como
mero registro da vida, afirmando em diversas ocasiões que não entendia qual a
função de uma cena ao apresentar um olhar para um evento cujo significado
73
havia sido absorvido. Para ele, os elementos de uma cena deveriam ser
capazes de provocar reações distintas no espectador. Assim, em decorrência
da construção de uma teoria sobre a matéria-prima fílmica, Eisenstein
apresentou dois conceitos inerentes à neutralização: a transferência e a
sinestesia.
“Na transferência, um único efeito pode ser reproduzido por vários elementos
diferentes. Num filme, muitos elementos estão presentes na tela ao mesmo
tempo. Eles podem reforçar-se uns aos outros, aumentando o efeito; os
elementos podem entrar em conflito entre si e criar um novo efeito; ou um
elemento inesperado pode acrescentar um efeito necessário. Este último é o
auge da transfrência.(...) Quando vários elementos se combinam ao mesmo
tempo, ocorre o máximo da sinestesia, ou experiência multisensorial”
(EISENSTEIN apud ANDREWS, 2002: 50)
Os conceitos de neutralização, transferência e sinestesia, propostos por
Eisenstein, perpassarão nossa análise a partir dos dispositivos técnicos de
Carrie, A Estranha por possibilitarem uma visão mais voltada para a
fenomenologia, à medida que propõem uma participação efetiva da percepção
individual em relação aos recursos técnicos.
No entanto, para que possamos compreender com unicidade o contexto
das seqüências destacadas para a análise, será necessário construirmos uma
sinopse detalhada do filme, com o intuito de conduzirmos o leitor ao universo
de Carrie, A Estranha.
Após apresentarmos esse universo, será possível analisarmos alguns
trechos considerados cruciais, apoiando a análise da construção material de
cada um desses momentos do filme sem, no entanto, prejudicarmos a
compreensão da obra como um todo.
Contudo, o como compreendermos o universo de Carrie, A
Estranha, sem uma exposição prévia sobre o autor da obra original: Stephen
King.
Stephen King é, indiscutivelmente, o escritor mais popular dos Estados
Unidos. Atualmente, é considerado, não somente pelos seus fãs mas também
pela mídia especializada, o mestre do terror moderno, bem como o escritor
mais bem sucedido da história americana. Essa história de sucesso e o
74
relacionamento das obras do autor com Hollywood (que o faz ser o escritor
com maior número de obras adaptadas para o cinema), começou, justamente,
com a adaptação de seu livro escrito em 1973, objeto de estudo desse
trabalho: Carrie, A Estranha.
Existem muitos livros especializados no estilo de produção e nas obras
de Stephen King, todos repletos de histórias sobre o sucesso da trajetória
profissional do autor. No entanto, em função de seu gênero literário, muitos
mitos presentes nesses livros ao redor de sua vida. Contudo, interessantes
análises presentes nas edições especializadas e, apesar de toda a fantasia
sobre a pessoa de Stephen King, um consenso sobre o brilhantismo de
suas obras e sua importância em alguns aspectos da cultura popular
americana.
A maioria dos estudiosos e escritores afirma que o autor foi o
responsável pela boa aceitação do gênero terror por parte do blico
americano e, conseqüentemente, pelo interesse da sociedade nesses
assuntos. Cabe aqui ressaltarmos que em seus contos encontram-se vampiros,
adolescentes perturbados, animais ferozes, carros assassinos, ciganos
poderosos, entre outros personagens que, invariavelmente, inserem-se nas
sutilezas do dia-a-dia da rotina americana, oferecendo uma naturalidade e uma
porção factível de realidade para as suas histórias de terror, garantindo assim a
notável popularidade das obras do autor.
Uma lista dos livros publicados por Stephen King, hoje em dia na casa
das centenas de obras, pode se confundir com a lista dos livros mais vendidos
nas últimas duas décadas nos Estados Unidos, lista essa, inaugurada,
justamente, com a novela de 1973, Carrie. Após essa estréia, vieram outras
grandes obras, para citar somente uma pequena parcela dos lançamentos em
livro e adaptações com distribuição no Brasil, teremos:
Jerusalem’s Lost (1975), Salem’s Lost (A Hora do Vampiro 1975),
The Shining (O Iluminado 1977), The Stand (A Dança da Morte 1978),
The Dead Zone (A Hora da Zona Morta 1979), Dance Macabre (Dança
Macabra 1981), Cujo (Cão Raivoso – 1981), Pet Sematary (Cemitério
Maldito 1983), Christine (O Carro Assassino 1983), Apt Pupil (O
Aprendiz 1983), Thiner (A Maldição do Cigano- 1984), It (A Coisa - 1986),
Insomnia (Insônia 1994), Rita Hayworth e The Shawshank Redemption (Um
75
Sonho de Liberdade 1994), The Green Mile (À Espera de um Milagre
1996), Dreamcatcher (O Apanhador de Sonhos – 2001).
De fato, Stephen King não parou de produzir de uma a duas obras por
ano desde 1970, sendo que alguns de seus contos datam de 1960, quando
ainda era um estudante. A pequena lista citada acima não representa somente
livros publicados, mas também obras adaptadas para o cinema, muitas delas
transformadas em ícones dos famosos trashies movies, característicos dos
anos 80, não só nos Estados Unidos, como também no resto do mundo,
principalmente no Brasil.
Apesar de todo o sucesso nas vendas e no consumo cinematográfico
das obras de Stephen King, sua reputação como autor de sucesso ainda gera
um certo desconforto entre a comunidade de críticos literários e
cinematográficos. Essa reticência no reconhecimento de suas obras, não pode
ser relacionada somente ao fato de Stephen King ter se tornado um escritor de
gênero único cujos contos são consumíveis. Muito dessa repulsa por parte dos
críticos pode ter sido causada em função das adaptações cinematográficas das
obras do autor que, na maioria dos casos, não podem ser consideradas
exemplos de cinema de qualidade.
Em meados de 85, os trashies movies deixaram de ser considerados
somente filmes de produção barata e roteiros pouco profundos para se
tornarem produtos com valor cultural. Esse fenômeno possibilitou que uma
série de filmes do gênero fosse lançada no Brasil com garantia de sucesso, aos
moldes dos lançamentos cinematográficos do verão americano: Sexta-feira 13,
A Hora do Pesadelo, A Hora do Espanto, Hellraiser, A Bolha Assassina,
Pague para Entrar Reze para Sair, Halloweeen, entre outros. Vale
lembrarmos que, inclusive, diretores dos famosos “filmes B”, renegados em sua
época, passaram a colher os frutos póstumos com a aceitação de suas
76
produções, entre eles podemos citar Ed Wood
9
e Tod Browning.
10
Por outro lado, o relacionamento das obras de Stephen King com o
cinema não gerou somente filmes com produções baratas, renegadas até hoje
ao duvidoso gosto popular. Ao mesmo tempo em que o grande público,
principalmente os adolescentes americanos, ignoravam os críticos e pediam
cada vez mais adaptações ao estilo, uma outra história prosseguia saudosa em
relação a adaptações anteriormente feitas por grandes nomes do cinema.
Carrie, a Estranha, a primeira adaptação feita para o cinema, dirigida
por Brian de Palma, em 1976, é considera até hoje uma obra prima do cinema-
terror e, curiosamente, é um dos únicos filmes do gênero, além de O Exorcista
(The Exorcist – 1973) de William Friedkin, indicado ao Oscar.
Carrie, A Estranha seguida por O Iluminado (The Shining 1978),
dirigido por Stanley Kubrick, juntamente com O Bebê de Rosemary, de Roman
Polanski, e O Exorcista, transformaram a história do cinema de terror, criando
um novo gênero cinematográfico aclamado até hoje: os filmes de terror
psicológico (ou terror sutil). Neste gênero, as cenas bizarras e o terror explícito
são trocados por técnicas cinematográficas com a predominância dos jogos de
câmera, iluminação e interpretações intensas.
Com relação à direção de grandes atores e interpretações antológicas,
Hollywood tem, em Brian de Palma, um ícone do cinema moderno.
9
Edward Davis Wood Junior (1924-1978) é considerado por alguns críticos de cinema o “pior
cineasta de todos os tempos”. No entanto, uma legião de fãs que consideram suas produções um
ícone do trash movie, nomeando-o como um diretor cult, principalmente, em relação ao seu maior
sucesso: Plano 9 do Espaço Sideral (Plan 9 from Outer Space – 1956). Com roteiros quase sem sentido e
imagens desconectas, Ed Wood produziu inúmeros filmes nos quais sua principal preocupação era o
discurso imagético. Bela Lugosi e Boris Carloff estrelaram alguns de seus filmes, quando estavam
esquecidos pela indústria cinematográfica, após terem sido imortalizados por personagens como Drácula
e Frankestein. Em 1994, percebendo a crescente procura pelas obras de Ed Wood e acompanhando a
tendência trash movie, o diretor Tim Burton filmou a biografia do diretor.
10
Tod Browning dirigiu, em 1931, o filme Drácula, que imortalizou Bela Lugosi no personagem. Em
1932, sua produção denominada Freaks (Monstros), apesar de ter sido comprada pela MGM, foi muito
mal recebida pelo público, a ponto de ser proibida em diversos países. Freaks arruinou a carreira
promissora do diretor e durante décadas o filme ficou esquecido até que, nos anos 60, passou a ser
exibido em circuitos alternativos e nas famosas “sessões malditas” que ocorriam à meia noite, nos
Estados Unidos. Desde então, o filme é considerado um exemplo de filme de arte, adorado pelos amantes
do cinema cult.
77
Sendo um dos diretores mais cultuados da atualidade, sua filmografia é
confundida com o dito cinema comercial de qualidade hollywoodiano: Wedding
Party (A Festa de Casamento, 1964), Sisters (Irmãs Diabólicas, 1973),
Phanton of the Paradise (O Fantasma do Paraíso, 1974), Carrie (Carrie, A
Estranha, 1976), The Fury (A Fúria, 1978), Dressed to Kill (Vestida para
Matar, 1980), Scarface (Scarface, 1983), Body Double (Dublê de Corpo,
1984), The Untouchables (Os Intocáveis, 1987), The Bonfire of the Vanities (A
Fogueira das Vaidades, 1990), Raising Cain (Síndrome de Caim, 1992),
Carlito’s Way (O Pagamento Final, 1993), Mission: Impossible (Missão
Impossível, 1995), Femme Fatale (Femme Fatale, 2002).
No entanto, a reputação de Brian de Palma nem sempre foi tão boa
como a de hoje. Durante os anos iniciais de sua carreira, mais precisamente
até metade dos anos 70, Brian de Palma era considerado somente mais um
dos diretores que copiavam Alfred Hitchcock.
Hoje, o diretor afirma sem pudores ser um discípulo incondicional do
mestre do suspense, mas essa possibilidade de assumir tal inspiração foi
possível após o lançamento de Carrie, A Estranha, em 1976, considerado por
muitos, até hoje, o melhor filme de Brian de Palma.
Em Carrie, A Estranha, o diretor de imprimir seu lado artístico com
uma direção na qual não cansou de homenagear seu grande mestre sem
perder a sua identidade no trabalho. São diversas cenas, enquadramentos e
movimentos de câmera em Carrie, A Estranha que fazem uma alusão às
obras de Hitchcock. A mais clara delas é percebida na cena em que a mãe de
Carrie pega uma faca para matar a filha em uma das seqüências finais do
filme. Além disso, o cenário para a tragédia final da história é o Bates School,
uma homenagem à Norma Bates, a estrela de Psicose.
Mesmo com todas as referências feitas a Hitchcock no filme, Brian de
Palma encontrou uma forma de se diferenciar de seu mestre influenciador,
exagerando em cenas de sangue, morte e sexo, as quais Hitchcock sempre se
referiu em suas obras, mas nunca explicitamente. Mesmo em produções no
estilo suspense, como Dublê de Corpo, uma referência aos moldes dos
grandes filmes dirigidos por Hitchcock, a marca de Brian de Palma estava lá,
diferenciando os trabalhos dos dois diretores.
78
A direção de Carrie, A Estranha, não se resume somente ao pleno
domínio das técnicas cinematográficas que fazem da adaptação um triller de
terror e suspense capaz de prender o espectador do primeiro ao último minuto,
mas caracteriza-se, também, pela direção de atores que levaram Sissy Spacey
a realizar o papel mais marcante de sua carreira, como Carrie White, e Piper
Laurie a ser indicada ao Oscar de melhor atriz como a Sra. White, e de
Carrie.
Após o sucesso da adaptação da obra de Stephen King, Brian de Palma
obteve “carta branca” para todas as produções que realizou posteriormente.
Ficha Técnica
Título: Carrie, A Estranha (Carrie)
Ano de Produção: 1976
Estúdio: MGM Studio
Direção: Brian de Palma
Roteiro: Lawrence D. Cohen - baseado na novela de Stephen King
Elenco Principal: Sissy Spacek, Amy Irving, Willian Katt, Nancy Allen, John
Travolta, Betty Buckley, P.J. Soles
Atriz Convidada: Piper Laurie como Margareth White
Direção de Fotografia: Mario Tosi
Direção de Arte: William Keney e Jack Fisk
Efeitos Especiais: Gregory M. Auer
Maquiagem: Wesley Dawn
Figurino: Rosanna Norton
Edição: Paul Hirsch
Trilha Sonora: Pino Donaggio
Produtor Associado: Louis A. Stroller
Produzido por: Paul Monasch
Duração: 98 minutos
79
Sinopse detalhada
Jogo de Vôlei
0 00' 25" - 0 01' 08"
Jogo de Vôlei com meninas uniformizadas. O jogo corre até que se
inicia o game point”. A professora apita e as coordenadas para
prosseguir a última jogada. A bola é passada para uma menina
desajeitada que perde o ponto. A garota permanece parada e isolada
enquanto as outras meninas se retiram da quadra. Ao se retirarem, as
meninas dirigem-se à garota com desprezo, xingando-a e, em alguns
casos, agredindo-a.
Vestiário
0 01’ 09” - 0 02’ 29”
No vestiário as meninas conversam e brincam entre si, mostrando
uma sensação de intimidade entre elas, pois, além do clima
descontraído, garotas nuas que não aparentam timidez naquela
situação.
A Primeira Menstruação
0 02’ 30” - 0 06’ 42”
Enquanto há um clima de descontração e amizade, a garota que
perdeu o ponto está tomando banho isolada no fundo do vestiário. De
maneira casualmente sensual e relaxada, a menina escorrega as
mãos pelo corpo, banhando-se suavemente. De repente, um fluxo de
sangue passa a escorrer por entre as pernas da garota. A garota fica
apavorada com o que está acontecendo.
Desesperada e chorando muito, a menina pede ajuda às outras
garotas do vestiário, mas, ao contrário do que espera elas não a
ajudam. Às gargalhadas, as meninas passam a atirar absorventes na
menina que, muito assustada, acua-se na parede. Enquanto é
atingida pelos objetos, a menina ouve os gritos de: “Carrie ficou
menstruada”.
Em sua sala, anexa ao vestiário, a professora de educação física
percebe a agitação. Imediatamente, parte ao socorro de Carrie,
enquanto expulsa as outras meninas. Durante o desespero da
menina, a lâmpada do vestiário estoura, assuntando a professora.
80
Conversa com o Diretor
0 06’ 43” - 0 09’ 12”
Após o episódio no vestiário, Carrie é encaminhada pela professora à
sala do diretor, que não compreende como uma menina da sua idade
não tem conhecimento sobre o fluxo menstrual.
Enquanto dispensa Carrie do restante das aulas, o diretor insiste em
trocar seu nome por “Cassie”. Muito abalada, ela permanece olhando
fixamente para um cinzeiro em cima da mesa até que, durante um
acesso de fúria de Carrie, o cinzeiro cai no chão sem que ninguém o
toque.
A Volta para Casa
0 09' 13" - 0 09' 48"
Enquanto volta caminhando sozinha para casa, um menino de
bicicleta aproxima-se, chamando-a de “estranha”. Carrie olha
fixamente para o menino que acaba perdendo o equilíbrio e cai no
chão.
Pregando na Vizinhança
0 09' 49" - 0 12' 24"
Uma mulher assiste televisão, no momento em que toca a campainha
de sua casa. Trata-se de uma vizinha que veio pregar a palavra de
Deus. Rapidamente a mulher oferece dinheiro como se fosse um
dízimo. Quando a pregadora vai embora, percebemos se tratar da
mãe de Carrie, a mulher visitada é mãe de uma das garotas do
vestiário.
Você é uma pecadora
0 12' 25" - 0 16' 37"
A Sra. White retorna para casa. Carrie está aguardando sua mãe,
observando pela janela do sótão.
Ao chegar em casa, a Sra. White recebe um telefonema, através dele
toma conhecimento do acontecido com sua filha na escola. diante
da filha, Margareth White atinge o rosto de Carrie com a Bíblia e
passa a chamá-la de pecadora. Chorando, Carrie questiona a mãe por
81
ela não ter lhe informado sobre a menstruação e afirma não ser uma
pecadora. Sua mãe não lhe dá ouvidos e continua obrigando-a a
repetir os pecados de Eva.
Transtornada, Margareth White arrasta a filha para um quarto de
oração, no qual encontram-se inúmeras velas e imagens de santos.
Durante a noite
0 16' 38" - 0 19' 03"
Anoitece. Carrie pede permissão para parar com as orações. Sua mãe
ordena que a menina para o quarto. Recolhida, Carrie olha-se no
espelho e, enquanto chora, ele se parte. Com o barulho, a mãe de
Carrie dirige-se ao quarto da filha, no qual o espelho, apesar de
rachado, está novamente no lugar.
Sala de Aula
0 19' 04" - 0 21' 26"
Em sala de aula, o professor poesias feitas por alunos. Todos na
sala, inclusive o rapaz em primeiro plano, autor do poema, estão
rindo. Ao terminar a leitura, o professor pede para que alguém a
comente. Carrie, que permaneceu quieta e de cabeça baixa durante
todo o tempo, arrisca-se dizendo que o texto é lindo. Após esse
comentário, todos partem para humilhar Carrie, incluindo o professor,
Tommy Ross, que de início, parece constrangido com tal situação,
passa também a rir do comentário da menina.
Educação Física
0 21' 27" - 0 25' 29"
Durante a aula de educação física, a professora, furiosa, passa a
comentar o ocorrido no vestiário. A maioria parece não ligar, mas,
uma das garotas, chamada Sue, namorada de Tommy Ross, parece
estar arrependida de sua atitude. Como castigo, a professora,
chamada Srta. Collins, diz às meninas que sua idéia é cancelar os
convites das garotas para o baile de formatura. Mas, ao invés disso,
fará com que tenham uma tarde exaustiva de exercícios e promete
que se todas se comportarem bem, a punição será cancelada. A Srta.
Collins parece estar especialmente irritada com uma das alunas
chamada Chris Hargensen.
82
A Punição
0 25' 30" - 0 28' 35"
As meninas estão sendo submetidas a uma rigorosa série de
exercícios até que, em uma das pausas, Chris Hargensen tenta
convencer suas colegas de que elas não devem se sujeitar a tal
punição. Com medo de perderem os convites para o baile, as garotas
ignoram a colega, especialmente Sue, que a manda calar a boca.
Muito irritada, Chris Hargensen perde a cabeça e resolve enfrentar a
professora sozinha. Ao ameaçar a Srta. Collins, a professora perde a
cabeça e atinge a aluna com um forte tapa no rosto, enquanto informa
que ela será proibida de ir ao baile.
A Pesquisa
0 28' 36" - 0 29' 15"
Seguindo com sua rotina de isolamento na escola, Carrie realiza uma
pesquisa sobre sinestesia. Aparentemente, ela está tentando entender
o fenômeno que é capaz de provocar.
O Pedido
0 29' 16" - 0 30' 03"
Tommy Ross treina com o time de futebol americano da escola.
Interrompendo o treino, Sue, que é sua namorada, insiste para que
Tommy convide Carrie White para ir ao baile como sua
acompanhante. Tommy não aceita a proposta da namorada.
Os namorados
0 30' 04" - 0 35' 43"
Durante a noite, Chris Hargensen sai com Billy Nolan, o rapaz que a
levaria para o baile. Os dois parecem ser íntimos, mas algumas
atitudes de Chris deixam Billy irritado de forma que, repetidas vezes,
ele a agride.
Tommy e Sue estão em casa. Sue parece não estar falando com o
namorado e, diante do comportamento da garota, o rapaz aceita
convidar Carrie para o baile.
Chris e Billy estão estacionados em frente a uma festa. Os dois
conversam enquanto a menina está, insistentemente, arrumando seu
cabelo e retocando sua maquiagem. Os dois discutem. Chris resolve
seduzir o rapaz para que ele aceite uma proposta que ela tem a fazer.
Enquanto pratica sexo oral em Billy, Chris repete “Eu odeio Carrie
White”.
83
O Convite na Biblioteca
0 35' 44" - 0 36' 52"
Cumprindo a promessa feita para a namorada, Tommy Ross procura
Carrie na biblioteca e faz o convite para o baile. Carrie, estranhando o
convite e envergonhada com a situação, sai correndo e deixa o rapaz
sozinho.
Conversa entre Amigas
0 36' 53" - 0 39' 01"
Srta. Collins encontra Carrie sentada sozinha em um canto da escola.
As duas começam a conversar. A professora parece ser a única
pessoa com a qual Carrie sente-se à vontade. Carrie conta à Srta.
Collins que Tommy Ross convidou-a para o baile. A professora insiste
para que ela aceite, mesmo desconfiando do convite.
Explicação para a Professora
0 39' 02" -0 41' 27"
Tentando proteger Carrie de mais um constrangimento, a Srta. Collins
questiona o casal de namorados sobre o convite feito à Carrie. Sue
tenta convencê-la de que estão fazendo isso para proporcionar
momentos felizes para Carrie. A professora não acredita na versão da
menina e promete que, se algo acontecer à Carrie, eles serão
severamente punidos.
Convite em Casa
0 41' 29" - 0 43' 28"
Tommy vai à casa de Carrie para insistir no convite. Apavorada com a
presença do rapaz e com medo que sua mãe perceba, Carrie aceita ir
ao baile, para que ele vá embora rapidamente.
Matando Porcos
0 43' 29" - 0 45' 00"
Chris Hargensen e Billy Nolan vão a um criadouro de porcos. Após
muitas discussões, Billy sacrifica um animal.
84
Pedido para Mãe
0 45' 01" - 0 48' 22"
Durante o jantar, Carrie pede à mãe permissão para ir ao baile. A Sra.
White fica furiosa com o pedido e passa a chamar a filha de pecadora.
Carrie argumentar que ir ao baile é algo comum às pessoas da sua
idade. Margareth White atira café no rosto da filha e passa a agredi-la
verbal e moralmente. Encerrando o assunto, a mãe afasta-se da mesa
para fechar as janelas. Carrie faz com que as janelas se fechem sem
que sua mãe tenha que fazê-lo. Perplexa, a Sra. White passa a
chamar a filha de bruxa. Carrie afirma que irá ao baile e que a
situação entre as duas irá mudar.
Preparando a Armadilha
0 48' 23" - 0 49' 20"
Ainda durante a noite, Chris Hargensen e Billy Nolan enchem um
balde com o sangue do porco sacrificado e, escondidos, o colocam no
local onde será realizado o baile de formatura.
Confeccionando o Vestido
0 49' 21" - 0 49' 37"
Prosseguindo com a idéia de ir ao baile, Carrie confecciona seu
vestido.
A Preparação para o Baile
0 49' 38" - 0 52' 58"
Iniciam-se os preparativos para o baile. As amigas da turma da escola
estão no cabeleireiro. Sue, que não vai ao baile, ajuda na decoração
do local. Chris Hargensen conta à sua amiga Norma quais são seus
planos para o baile. Tommy Ross e seus amigos divertem-se em uma
loja de roupas enquanto escolhem o que irão vestir na festa. Carrie
White, sozinha, es em uma loja escolhendo a maquiagem que irá
usar.
85
Ansiedade
0 52' 59" - 0 55' 25"
Carrie White está pronta para o baile. Muito bonita, ela os últimos
retoques em sua leve maquiagem. Sua mãe ainda tenta dissuadi-
la.
Carrie não ouvidos aos apelos desesperados da mãe e, tentando
acalmá-la, promete estar em casa às dez horas. Descontrolada, a
mãe de Carrie passa a se auto flagelar, enquanto professa que todos
rirão dela durante o baile. Ansiosa, Carrie faz com que a mãe
permaneça quieta na cama, enquanto ela vai ao encontro de Tommy.
O Baile
0 55' 27" - 0 58' 42"
O casal dirige-se ao baile. Contrariando as expectativas de Carrie, ela
é bem recebida no baile e está sendo gentilmente tratada por Tommy.
Enquanto Carrie chega ao baile, Sue esjantando em casa com sua
família. Ao reparar na hora, pede licença e sai apressada.
Momento entre Amigos
0 58' 43" - 1 02' 24"
Apesar do constrangimento, Carrie e Tommy conversam. A Srta.
Collins chega à mesa para conversar com Carrie. As duas trocam
confidência sobre o baile de formatura da professora, enquanto
Tommy retirou-se para conversar com os amigos. Quando o rapaz
volta, a professora vai embora, deixando os dois sozinhos. Tommy
convida Carrie para o acompanhar em encontro após o baile.
A Primeira Dança
1 02' 25" - 1 05' 22"
Tommy insiste para que Carrie aceite dançar. Após muita insistência,
ela aceita o convite. Enquanto Carrie revela sua baixa auto-estima ao
rapaz, ele a beija.
Tomando Coragem
1 05' 23" - 1 08' 14"
Um pouco mais confiante, Carrie é convencida por Tommy a votar
neles mesmos para rei e rainha do baile.
86
Enquanto isso, Margareth White está em casa. Transtornada, ela
anda de um lado a outro da cozinha. Pega uma faca a passa a cortar
os legumes que estão em cima da pia, utilizando golpes furiosos.
A Votação
1 08' 15" - 1 10' 05"
A votação do concurso prossegue. Norma, a amiga de Chris
Hargensen, sabota o concurso, trocando as cédulas de votação. Ela
entrega as cédulas falsas aos jurados.
O Rei e a Rainha
1 10' 06" - 1 13' 07"
Sue também está no baile. Escondida detrás do palco, ela observa a
movimentação da festa. No entanto, ela percebe uma corda
pendurada no fundo do palco. Nesse momento, podemos perceber
que é a corda que segura o balde de sangue colocado por Chris e
Billy durante a noite.
Tommy Ross e Carrie White são eleitos o casal mais bonito da festa.
Os dois dirigem-se ao palco. As pessoas estão felizes com o
resultado. Os dois são aplaudidos enquanto caminham para a
coroação. Chris e Billy permanecem escondidos debaixo do palco,
enquanto Sue está feliz com o destaque de Carrie.
Carrie e Tommy são coroados. Os dois estão muito felizes. As
pessoas aplaudem. Carrie está muito emocionada e Tommy es
realmente feliz com a acompanhante que levou ao baile. Tommy e
Carrie se beijam novamente.
Sue está muito contente, mas desespera-se quando descobre o que
está sendo tramado por Chris e Billy. A Srta. Collins, acreditando que
Sue está com ciúmes de Carrie White com seu namorado, expulsa a
garota do baile, sem dar ouvidos ao que a menina acabou de
descobrir.
A Humilhação
1 13' 08" - 1 16' 38"
Enquanto a professora carrega Sue para fora do salão, Chris
Hargensen se prepara para o golpe final. Aparentando muito prazer,
ela puxa a corda, fazendo com que o balde vire e derrame seu
conteúdo em Carrie.
87
De repente, o sangue do porco sacrificado por Billy Nollan é
derramado em Carrie. Instantaneamente instala-se um silêncio
generalizado na festa.
A platéia permanece chocada. Norma, a garota que sabotou o
resultado do concurso, parece ser uma das poucas pessoas que está
se divertindo com a cena.
Enfurecido, Tommy Ross pergunta o que esacontecendo. É nesse
momento que o balde se desprende da corda que o segura, atingindo-
o na cabeça. Tommy cai desmaiado.
Carrie parece não acreditar no que está acontecendo. O sangue
escorre por seu corpo.
De repente, Carrie entra em transe e passa a ouvir a voz insistente de
sua mãe repetindo: “Eles rirão de você”. A partir desse momento,
Carrie passa a enxergar que todos, inclusive a Srta. Collins, estão
rindo dela.
A Vingança
1 16' 39" - 1 20' 16"
Em transe, Carrie inicia sua vingança. Antes que qualquer pessoa
deixe o baile (exceto Chris e Billy que saíram pelos fundos sem que
ninguém percebesse), Carrie fecha todas as portas e apaga todas as
luzes. Utilizando a força de sua mente, Carrie faz com que algumas
pessoas morram esmagadas pela força das portas.
O público entra em pânico. As pessoas começam a gritar e a correr de
um lado para outro. Carrie permanece estática no centro do palco.
A Srta. Collins corre para o palco na tentativa de socorrer Tommy que
ainda está desmaiado. Ela olha com desespero para Carrie, mas
percebe que não há nada que possa ser feito naquele momento.
Carrie faz com que a mangueira de incêndio funcione e atinja algumas
pessoas até morrerem afogadas. Norma é uma das pessoas que
morrem afogada pela força da água.
88
Continuando com sua vingança, Carrie faz com que o diretor da
escola e o professor da aula de literatura morram eletrocutados com o
microfone, enquanto pedem calma às pessoas.
Carrie mata a Srta. Collins fazendo com que uma viga caia do teto,
atingindo violentamente o abdômen da professora.
Carrie termina sua vingança incendiando o local. Todas as pessoas
que estavam no baile morreram sem que Carrie se movesse do centro
do palco. Os únicos sobreviventes são Billy e Chris que saíram pelos
fundos e Sue, que foi expulsa pela professora antes do acontecido.
Acerto Final
1 20' 18" - 1 21' 27"
Carrie, ainda em transe, sai do salão e caminha pela rua.
Durante o percurso, Chris Hargensen e Billy Nolan tentam atropelar
Carrie, mas, no momento em que o carro irá atingi-la, Carrie o faz
capotar e explodir. O casal está morto.
A Volta para Casa
1 21’ 28” – 1 25’ 57”
Em transe, Carrie volta para casa.
Ao chegar, Carrie impressiona-se com a quantidade de velas que
pela casa e percebe que algo de errado aconteceu, que alguns
objetos religiosos estão destruídos. Chocada, Carrie dirige-se
lentamente para o andar de cima, procurando sua mãe.
Carrie se banha cuidadosamente. Ela parece estar saindo do transe,
pois, em alguns momentos, ela começa a chorar enquanto parece se
lembrar do que aconteceu.
89
A Benção da Mamãe
1 25’ 58” – 1 28’ 40”
Ao sair do banheiro, Carrie chama por sua mãe. Muito abalada, ela
pede para que a mãe a abrace. Margareth White ajoelha-se junto à
filha e passa a pedir perdão por seus pecados. Enquanto rezam
abraçadas, Margareth puxa uma faca escondida no piso do andar
superior e apunhala a filha pelas costas. Ferida, Carrie cai pela
escada.
Redimindo os Pecados
1 28’ 41” – 1 33’ 33”
Carrie arrasta-se tentando fugir dos golpes. Encurralada e
pressentindo que sua mãe não desistirá enquanto não matá-la, Carrie
utiliza sua força mental e faz com que algumas facas de cozinha
atinjam Margareth White, fazendo a morrer pregada na porta da
cozinha.
Com a morte da mãe, Carrie se desespera. Ao perceber o que tinha
acabado de fazer, Carrie provoca um desmoronamento da casa,
seguido de um incêndio. Carrie morre abraçada à sua mãe.
O Trauma
1 33’ 34” - 1 36’ 40”
Sue, a única sobrevivente do episódio do baile, es de repouso
recuperando-se do terrível trauma. Durante um sonho, Sue vai até o
local onde se encontram os restos mortais de Carrie. Ao chegar ao
local, Sue avista uma placa de vende-se na qual está escrita: “Carrie
White queima no inferno”. Abalada, Sue abaixa-se para,
respeitosamente, deixar o buquê de flores que trouxe para Carrie. Ao
depositar as flores, uma mão surge das cinzas e agarra o braço de
Sue. Trata-se da mão de Carrie White.
Desesperada, Sue desperta e é amparada por sua mãe.
Créditos Finais
1 36’ 41” – 1 38’ 00”
90
A partir da sinopse detalhada do filme, é possível compreendermos o
contexto narrativo da obra: a história de Carrie, que representa o fio condutor
perscrutado pelos dramas psicológicos que pautam o relacionamento entre
mãe e filha. Somente a partir do conhecimento sobre o texto narrativo é que
poderíamos prosseguir em uma análise dos dispositivos materiais da obra, na
busca pelo entendimento sobre como os elementos globais convergem para
uma concepção estética, efetivamente atuante na identificação do público com
a obra, pois, conforme afirmam Jacques Aumont e Sergei Eisenstein, não
como entendermos os elementos de uma composição fílmica separadamente,
mesmo em uma interpretação como a que estamos propondo, ou seja, uma
interpretação na qual o enunciado emerge prioritariamente do protagonismo e,
minoritariamente, da narrativa.
“A narrativa é o enunciado em sua materialidade, o texto narrativo que se
encarrega da história a ser contada. Porém, esse enunciado que, no romance, é
formado apenas de língua, no cinema, compreende imagens, palavras, menções
escritas, ruídos e música, o que torna a organização da narrativa fílmica mais
complexa. Por exemplo, a música, que não tem em si valor narrativo (ela não
significa eventos), torna-se um elemento narrativo do texto apenas pela sua co-
presença com elementos, como a sua imagem colocada em seqüência ou os
diálogos: portanto, seria necessário levar em conta sua participação na estrutura
da narrativa fílmica.” (AUMONT, 1995:106)
Temos em Jacques Aumont o conceito de neutralização de Eisenstein, no
entanto, acrescentando o texto narrativo como um elemento constituinte da
forma do filme.
“A narrativa fílmica é um enunciado que se apresenta como discurso, pois implica,
ao mesmo tempo, um enunciador (ou pelo menos um foco de enunciação) e um
leitor-espectador. Seus elementos estão, portanto, organizados e colocados em
ordem de acordo com muitas exigências (...)” (AUMONT, 1995:107)
91
Seqüência para análise 1 – JOGO DE VÔLEI
(1) (2)
(3) (4)
(5)
A seleção acima constitui a seqüência inicial do filme. Essa seqüência,
que, aparentemente, é somente um dispositivo inicial para a narrativa, tem seu
potencial descritivo aumentado por ser utilizada como o primeiro indício do
caráter norteador do papel dos personagens na trama.
A imagem um é exatamente a primeira cena do filme e,
conseqüentemente, faz com que a obra seja inaugurada com um plano geral
da quadra onde ocorre o jogo, fazendo emergir, imediatamente, a noção de
que se trata de um ambiente escolar.
Ao contrário da idéia proposta por Sergei Eisenstein de que o plano
geral representa apenas o ponto de vista do olhar natural, a utilização desse
plano na cena inicial não tem a intenção de reproduzir o simples olhar da
92
realidade, pois, o ângulo superior proposto pelo plano de abertura não é
passível de reprodução na realidade. Na verdade, quando assistimos a um
jogo, passamos, automaticamente, a fazer parte daquele cenário, tanto com
nossas interferências, quanto em relação ao nosso posicionamento diante da
quadra, ou seja, na realidade não ficamos dispostos por esse ângulo quando
estamos diante de um jogo.
Dessa forma, o plano geral da primeira cena do filme nos coloca em
uma posição superior frente ao conteúdo observado, isto é, nos coloca
distantes da obra. Somos conduzidos a uma percepção de que não fazemos
parte daquela história, isto é, de que não estamos inseridos naquele contexto.
Somos observadores e, como tal, não nos cabe interferir de nenhuma forma
naquele universo ou nas situações que, eventualmente, nele venham a ocorrer.
Segundo Marcel Martin, em sua obra A Linguagem Cinematográfica,
“o plano geral reduz o homem a uma silhueta minúscula, faz com que as coisas
o devorem, objetiva-o, daí uma tonalidade psicológica bastante pessimista,
uma ambivalência moral um tanto negativa.” (MARTIN, 2003:38)
Essa questão parece ser muito interessante quando relacionada à cena
inicial do filme, pois, nela há uma certa carga negativa dos elementos da
imagem que vai desde a iluminação que simula a naturalidade de um dia
cinzento, até a falta de contraste entre as cores na tela que insinua uma triste
monotonia.
Além disso, Carrie, a personagem principal, que até esse momento
ainda não é revelada como tal, é determinante para a delimitação do
enquadramento em plano geral, pois a personagem está posicionada como o
último elemento em quadro. Se, quando da utilização desse plano, uma
intenção em reduzir os personagens frente à dramaticidade da trama, Carrie,
ao fechar o enquadramento, permanecendo estática e calada no limite do
campo de visão, assume o último patamar em relação ao grupo de elementos
que compõe a cena.
Antes de continuarmos com a análise dos dispositivos da seqüência,
faz-se necessário estabelecermos o conceito de plano que, à priori, abrange
uma série de parâmetros como: dimensões, quadro, ponto de vista, movimento,
duração e ritmo. No entanto, existem outros significados para plano,
dependendo do estágio em que a obra se encontra quando o termo é utilizado,
93
podendo ter um significado em relação ao filme ainda em confecção e outro
significado quando o filme está pronto. Como estamos realizando uma
análise da obra a partir da forma com a qual ela se apresenta para nós depois
de concluída, utilizaremos a noção de plano referente à segunda opção:
“Na fase da montagem, a definição do plano é mais precisa: torna-se então a
verdadeira unidade de montagem, o pedaço de película mínima que, juntada a
outras, produzirá o filme (...) Na maioria das vezes, o plano define-se
implicitamente (e de maneira quase tautológica) como qualquer pedaço de filme
compreendido entre duas mudanças de plano.” (AUMONT, 1995:39)
Na imagem dois, temos o momento da seqüência em que, após o plano
geral, inicia-se um movimento de câmera que busca o enquadramento do
elemento presente no fundo da cena com um travelling
11
frontal em plongée.
Logo perceberemos se tratar de Carrie. Conforme o travelling avança, o jogo
de vôlei segue normalmente, mas a ação e o ambiente passam a ser
elementos de importância menor, em relação ao ponto no limite do quadro, que
está sendo buscado pela câmera.
Quanto mais a câmera se aproxima, mais percebemos que aquele é o
ponto central do contexto da cena. Essa função do travelling frontal pode ser
chamada de finalmente que, segundo Martin, é capaz de assumir uma
perspectiva objetiva, interpretando o ponto de vista virtual do espectador.
“O finalmente é, sem dúvida, a função mais interessante do travelling, pois
exprime, objetiva e materializa a tensão mental (impressão, sentimento, desejos
e idéias violentos e súbitos) de um personagem.” (MARTIN, 2003:50)
Na imagem três, temos o momento em que a mera enquadra seu
objetivo final, ou seja, Carrie, a garota desajeitada que recebe a bola e perde a
jogada no único movimento atribuído a ela até esse ponto da seqüência. Ainda
de acordo com a imagem selecionada, verificamos que, no momento em que a
personagem entra em ação, a mera está posicionada em plano americano,
11
Movimento no qual a câmera desliza sobre trilhos. “Esse artifício foi espontaneamente inventado
em 1896 por um operador de Lumière que havia colocado sua câmera sobre uma gôndola em Veneza.”
(MARTIN, 2003:31)
94
interrompendo o movimento do travelling frontal. Esse tipo de plano parece ser
o mais confortável para uma função descritiva da ação, pois, nesse caso, ele
nos permite restringir o foco de atenção no elemento essencial à cena sem, no
entanto, perdermos a noção em relação ao ambiente como um todo.
Após esse momento, o travelling frontal é novamente acionado,
aproximando nosso olhar à personagem. Interessante notarmos que nas
imagens quatro e cinco, a personagem permanece isolada no enquadramento,
enquanto todas as outras meninas se retiram da quadra. Algumas garotas, não
querendo perder a oportunidade de humilhar a menina desajeitada, entram e
saem do enquadramento, deixando a personagem prostrada em cena. A
câmera permanece estática em um ponto de vista objetivo, atribuído ao olhar
do espectador.
A seqüência do jogo vôlei, composta basicamente por cores em tons
pastéis, sugere uma triste monotonia, captada por movimentos de câmera
distintos para cada um dos momentos da cena e, é essencial para transmitir ao
espectador os ingredientes principais da personalidade e da rotina da
protagonista: a timidez, a rejeição social e a solidão.
Todas essas informações são compreendidas sem que uma palavra
sequer sobre essas questões seja dita, com exceção da hostilidade em relação
à Carrie, captada no final da partida. Essa seqüência de abertura é reveladora
como referência às técnicas que serão utilizadas no decorrer da obra, em uma
espécie de composição de elementos de cena que buscam estabelecer o
conjunto de dispositivos técnicos que definirá o padrão narrativo da obra.
Para concluirmos a análise da primeira seqüência selecionada,
trataremos do espaço lmico, apresentado em uma imagem plana e delimitada
por um quadro. O espaço fílmico está relacionado aos elementos presentes na
cena dentro dos limites da imagem que, apesar de ter um componente artístico
para sua delimitação, tal qual ocorre em um quadro de pintura, há também as
limitações técnicas (relacionadas ao formato do filme: largura da película-
suporte e dimensões da janela da câmera), que impõem ao criador da obra a
obrigatoriedade de selecionar os elementos essenciais em uma cena que,
dentro do limite da imagem representarão melhor a realidade naquela unidade
fílmica.
95
Conforme podemos constatar nas imagens de um a cinco, uma clara
preocupação do cineasta em configurar o quadro, mantendo o equilíbrio e a
expressividade da composição, convergindo e fortalecendo os elementos
cênicos em favor da sinestesia, de forma a potencializar a capacidade
significativa de cada um dos quadros da obra. Nesse contexto, cada elemento
é posicionado no quadro de acordo com a sua importância na unidade fílmica e
essa intenção engloba não somente os personagens, mas todos os
componentes do universo diegético como, por exemplo, as cores, a iluminação,
as vozes das meninas e os movimentos de câmera, esses últimos
responsáveis pela impressão de realidade, por imprimirem movimento ao
quadro, nos inserindo numa analogia ao espaço real.
“É claro que a experiência, mesmo a mais breve, de assistir a um filme, basta para
demonstrar que reagimos diante dessa imagem plana como se víssemos de fato
uma porção de espaço de três dimensões análogo ao espaço real no qual
vivemos.” (AUMONT, 1995:21)
Seqüência para análise 2 – A NOTÍCIA
(1) (2)
(3)
96
A seqüência acima intitulada A Notícia, representa o segundo momento
fundamental da obra, pois ela nos apresenta o ambiente familiar da
personagem, bem como as características psicológicas da mãe de Carrie.
A abertura da seqüência é marcada por um plano geral da casa, na qual
vivem mãe e filha. Nesse momento, o plano geral, ainda com ponto de vista
objetivo, é utilizado na inscrição dos protagonistas no cenário de suas
paixões”.
12
Observando a imagem um, podemos perceber o ambiente sombrio
a que as personagens estão destinadas.
A iluminação externa, sempre buscando uma luz próxima ao natural,
representa um dia nublado e sem vida. Notamos que, em nenhum momento
posterior a esse, a casa de Carrie estará envolta por um clima ameno e
ensolarado.
Há, ainda, uma forte degradação no aspecto físico das redondezas da
casa: uma velha placa em um terreno vizinho abandonado talvez por não
suportarem a convivência próxima com as protagonistas -, uma pintura
cinzenta e descascada da fachada, além de uma arquitetura sombria com
janelas fechadas, fornecem ao ambiente um retrato do desconforto que envolve
as protagonistas. Notamos, por meio da observação da imagem um, que não
árvores no terreno, não há qualquer tipo de elemento que atenue a
atmosfera obscura.
As imagens dois e três trazem as primeiras impressões que temos do
interior da casa. Cabe aqui uma análise minuciosa dos detalhes do ambiente
para que possamos compreender como essas imagens são ricas na concepção
do campo simbólico, representativo do protagonismo da obra.
Iniciaremos a análise pela iluminação, composta por tons de sépia e
jogo de sombras, em um tipo de iluminação interna predominante que
poderíamos classificar como “quase sem luz”. A definição de um estilo para a
iluminação interna da casa denota a preocupação em condensar todos os
elementos em prol de uma densidade dramática e psicológica das
personagens. Marcel Martin apresenta um conceito sobre iluminação que traz à
tona a idéia de como é complicada a transferência do valor dramático para a
iluminação, transferência essa que suprime a função básica desse tipo de
12
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003:38
97
recurso que, a priori, atua somente como recurso facilitador para captação de
imagens de qualidade:
“A iluminação constitui um fator decisivo para a criação da expressividade da
imagem. Mas como contribui sobretudo para criar a ‘atmosfera’, elemento
dificilmente analisável, sua importância é desconhecida e seu papel não aparece
diretamente aos olhos do espectador desavisado; além disso, a maior parte dos
filmes atuais manifesta uma grande preocupação com o realismo na iluminação,
e tal concepção tende a suprimir seu uso exacerbado ou melodramático.”
(MARTIN, 2003:56)
Além da iluminação quase obscura do ambiente interno, a utilização de
sombras é muito representativa para o campo simbólico da imagem, no sentido
de que contribui para a atmosfera emocional da cena, suprimindo a feição
humana das personagens e transferindo a maioria das possibilidades de
interpretação ao âmbito psicológico. Esse recurso dramático da utilização de
sombras em ambientes, mesmo que sobrepuje a verossimilhança com a
naturalidade, ganhou força com a escola alemã que, posteriormente, deu
origem ao expressionismo alemão, como resultado da herança deixada por
Fritz Lang, Sternberg, Siodmak, entre outros.
“Num filme alemão, a preocupação em compor uma atmosfera que sugira as
vibrações da alma” une-se ao jogo de luzes. Em outras palavras a Stimmung
13
flutua tanto em torno dos objetos quanto em torno dos personagens: ‘É uma
consonância metafísica, uma harmonia mística e singular em meio ao caos das
coisas, uma espécie de nostalgia dolorosa’...”
(EISNER apud MARTIN, 2003:58)
Por último, é válido percebermos que, assim como no expressionismo
alemão, a pouca iluminação no rosto das personagens esvai as feições
humanas, renegando-as ao segundo plano, como numa espécie de catarse
que leva essas personagens aos acontecimentos futuros, numa dramática
13
Para Lotte Eisner, a Stimmung é a transformação da luz em criadora de atmosfera: “A alma
faustiana do nórdico se abandona aos espaços brumosos, ao passo que um Reinhardt forja seu mundo
mágico com a ajuda da luz, servindo a obscuridade apenas de contraste. Eis a dupla herança do
cinema alemão.” (EISNER apud MARTIN, 2003:59)
98
junção tempo-espaço, conforme propunha Caravaggio. Dessa forma, a
utilização desse tipo de iluminação propõe-se a transpor as questões advindas
da razão de Margareth White, para adentrar as motivações psicológicas que a
levarão, no futuro ficcional da trama, a decidir pela aniquilação da filha. Esse
esvaziamento através de uma iluminação obscura da face das personagens
professa o fim trágico que aquela cena provocará na narrativa. Temos aqui,
então, um dos principais indícios de que a composição estética da obra está
intimamente relacionada ao protagonismo do filme, trata-se da enunciação
trazida pelo relacionamento mãe e filha.
Outra seqüência importante no filme é a que intitulamos de Preparação
para a humilhação de Carrie, no baile de formatura. No decorrer do filme, mais
precisamente da metade da trama até esse ponto, a artimanha vem sendo
preparada, mais, especificamente durante essa seqüência, o espectador tem
uma percepção objetiva sobre os acontecimentos programados para a
protagonista.
Um dos pontos decisivos da trama é a execução da vingança preparada
por Chris Hargensen e seu namorado, Billy Nolan, com a ajuda da amiga
Norma. Essa vingança está relacionada ao fato de Chris ter sido proibida de ir
ao baile em decorrência de sua atitude diante dos acontecimentos com Carrie
no vestiário da escola.
Seqüência para análise 3 – PREPARAÇÃO PARA A HUMILHAÇÃO DE CARRIE
(1) (2) (3)
(4) (5) (6)
Por se tratar de um fato muito importante da história, a seqüência que
iremos analisar é cuidadosamente montada de forma que o espectador tenha
99
clara noção do que irá acontecer, pois esse entendimento formará o suspense
que levará ao ponto culminante da narrativa. A medida em que o espectador
compreende o que está para acontecer, passa a ocorrer uma contraposição
entre a antecipação trágica do fato futuro e o momento unicamente especial
que Carrie está vivendo no presente. Essa oposição entre os dois momentos
(presente e futuro ficcional) traz do espectador uma sensação de desconforto,
elemento responsável pela construção do suspense.
Certamente, uma breve conversa entre os personagens envolvidos
nessa armação seria suficiente para esclarecer os fatos, no entanto, esse
recurso esvaziaria a carga dramática do ponto determinante da trama. Dessa
forma, a opção técnica para essa questão foi utilizar uma montagem com
elipses de estrutura, que se trata de um recurso motivado por razões de
construção do enredo, isto é, razões dramáticas, no sentido etimológico da
palavra”. (MARTIN, 2003:77)
A elipse tem por objetivo dissimular um instante decisivo da ação para
suscitar no espectador um sentimento de espera ansiosa, ou seja, o suspense.
No caso da seqüência que iremos analisar, uma antecipação clara dos
fatos, na qual todos os instantes o recriados de forma análoga, até que o
momento culminante da ação é adiado. A elipse mencionada é de natureza
objetiva, pois, de certo modo, é para o espectador que alguma coisa é
dissimulada”. (MARTIN, 2003:79).
Aqui, caberá reafirmarmos que essa possibilidade de antecipação está
intimamente calcada à possibilidade do ato artístico de representar a realidade,
suprimindo a relação tempo-espaço na ação ficcional. Poderíamos restringir
essa supressão da ordem do real ao cinema, mas não podemos nos esquecer
de que essa era uma das principais características das obras de Caravaggio.
Por último, antes de iniciarmos a análise da seqüência em si, não
podemos deixar de abordar os elementos sonoros utilizados na seqüência,
pois o esses recursos cnicos que contribuem definitivamente para a
construção do suspense intencionado pela seqüência. Construída a partir de
sonantes eminentemente graves, a trilha que acompanha a antecipação é
ritmicamente cortada por agudos que professam o trágico instante final da
ação, como os batimentos cardíacos ansiosos pelo acontecimento. O ambiente
100
sonoro atribui à imagem um maior valor realista, conforme afirma Marcel
Martin:
“(...) o som aumenta o coeficiente de autenticidade da imagem; a credibilidade
não apenas material, mas estética da imagem é literalmente multiplicada por
dez: o espectador reencontra de fato essa polivalência sensível, essa
compenetração de todos os registros perceptivos que nos impõe a presença
indivisível do mundo real.” (MARTIN, 2003:114)
Com relação ao movimento de câmera, a seqüência foi construída sem
cortes, utilizando sucessivos travellings em direções distintas, mas que
percorrem todo o ambiente, fechando o círculo da ação. Ressaltamos que
trata-se de uma extensa seqüência que seanalisada somente até o ponto
em que a antecipação do suspense é concluída, pois é da parte selecionada
da seqüência que eclodirá uma das cenas antológicas do cinema: o banho de
sangue em Carrie, durante a coroação da rainha do baile.
A seguir, apresentamos um esquema que tenta demonstrar como os
sucessivos movimentos de mera possibilitam a construção da seqüência
sem cortes e, ao perpassarem diferentes pontos do baile, antecipem a
humilhação que Carrie enfrentará nas próximas seqüências.
101
Figura 1 – MOVIMENTOS DE CÂMERA NA SEQÜÊNCIA DO BAILE
Cena 1 Chris Hargensen e Billy Nolan estão assistindo ao baile
escondidos debaixo do palco, enquanto aguardam para colocar em prática o
plano de humilhar Carrie na frente de todos os presentes. Essa cena
representa o início da seqüência marcado por um travelling frontal que,
supostamente, assume um ponto de vista objetivo, ou seja, aquele atribuído ao
expectador, pois nenhum dos personagens da trama os descobriu ali, com
exceção da amiga Norma, que participa do plano, mas que, nesse momento,
está cuidando de uma outra parte da ação: a adulteração no resultado do
concurso da rainha do baile.
102
Movimento de Câmera 1 Panorâmica descritiva
14
. Travelling lateral
desacelerado com a função de descrever um espaço/ação. O travelling
assume um ponto de vista objetivo pois, claramente, esse movimento de
câmera está destinado a fazer-nos entender como a ação está se formando no
ambiente como um todo.
Movimento de Câmera 2 Travelling frontal com uma aceleração maior
do que o anterior. O movimento da câmera culmina num close da personagem
chamada Sue, que permanece escondida detrás do palco observando o baile.
Esse close estabelece um ponto de vista objetivo que intenta levar o
espectador à significação psicológica da personagem
15
. Dessa forma, através
do close, penetramos a intimidade de Sue no exato momento em que ela
entenderá toda a gravidade da horrível artimanha que está sendo preparada.
16
A aceleração assumida pela mera tenta, de forma muito sutil, representar o
incômodo sentido pela personagem ao entender o que está para acontecer.
Cena 2 A personagem se distrai com a corda apoiada de forma
suspeita na lateral do fundo do palco. Ela passa, então, a guiar seu olhar,
seguindo o percurso feito por essa corda.
Movimento de Câmera 3 Panorâmica da posição da corda. Por meio
de um travelling em câmera desacelerada, o espectador é guiado pelo
percurso da corda. Essa tomada é realizada sob um ponto de vista subjetivo,
atribuído ao olhar de Sue, na sua descoberta sobre o que está sendo tramado.
14
“A panorâmica consiste numa rotação da câmera em torno de seu próprio eixo vertical ou
horizontal (transversal), sem deslocamento do aparelho. Ela freqüentemente se justifica pela necessidade
de seguir um personagem em movimento(...)” (MARTIN, 2003:51)
15
Sem dúvida, é no primeiro plano do rosto humano que se manifesta melhor o poder de
significação psicológico e dramático do filme, e é esse tipo de plano que constitui a primeira, e no fundo a
mais válida, tentativa de cinema interior. (MARTIN, 2003:39)
16
“Entre o espetáculo e o espectador, nenhuma ribalta. Não contemplamos a vida, penetramo-la.”
(EPSTEIN apud MARTIN, 2003:38)
103
Movimento de Câmera 4 Ainda com olhar subjetivo, a câmera atinge a
galeria do palco, seguindo o caminho da corda. Nesse ponto, inicia-se um
travelling frontal que, lentamente, busca a outra extremidade da corda.
Cena 3 - Travelling frontal continua seguindo o trajeto até o momento em
que a câmera enquadra o balde de sangue amarrado pela corda. Por ser esse
o elemento crucial da seqüência, a câmera, ainda assumindo o olhar subjetivo
de Sue, inicia uma movimentação em torno de seu próprio eixo, de forma que
a seqüência se complete sem que o balde saia do enquadramento.
Movimento de Câmera 5 Discreto travelling vertical, no qual a câmera
enquadra o balde pelo ângulo de sua abertura superior, possibilitando o
enquadramento, tanto do balde, quanto do palco, localizado abaixo.
Cena 4 – Balde em primeiro plano, com parte do palco abaixo. Essa cena
permite que o espectador, através do olhar subjetivo de Sue, compreenda o
posicionamento do balde o como ele será utilizado.
Movimento de Câmera 6 Travelling vertical. Câmera rotaciona em
torno do eixo do balde, mantendo o ângulo superior, no entanto um pouco
recuado, de forma que seja possível enxergar Carrie e Tommy sentados à
mesa, durante a votação.
Cena 5 Balde em primeiríssimo plano. Ao fundo, a cena, fechando o
enquadramento, Carrie e Tommy à mesa.
Movimento de Câmera 7 Travelling continua seu movimento de
rotação, mantendo Carrie e Tommy ao fundo do enquadramento, porém,
centralizados no quadro.
104
Movimento de Câmera 8 Carrie e Tommy são, a partir desse
movimento, o elemento mais importante da cena. Inicia-se uma trajetória
17
,
claramente em direção ao casal. A velocidade do movimento é maior nesse
momento, o que relaciona a posição do balde com a ação praticada pelos dois
naquele momento.
Cena 6 Carrie e Tommy conversam em plano geral do baile. A
seqüência termina sem cortes até esse momento. Os acontecimentos que se
sucederão foram explicados aos espectadores, por intermédio do olhar
subjetivo da câmera e, a partir desse instante, o suspense criado pela
seqüência envolverá todas as ações subseqüentes.
A seqüência do baile continuará, mas essa continuação está
representada no esquema somente pela seta tracejada, pois, nela será
utilizado outro formato de montagem, no qual prevalecerão diferentes
movimentos e cortes de câmera. Ao final dessa seqüência, o ciclo se fechará e
a câmera voltará para debaixo do palco até o momento em que Carrie e
Tommy subirão a escada do palco, reproduzindo a tomada da cena 1 do
esquema que retoma a explicação dada na seqüência anterior, fazendo com
que o espectador associe a antecipação ao acontecimento presente.
Ao analisarmos algumas das seqüências primordiais do filme, pudemos
perceber que a construção material de Carrie, A Estranha foi realizada
concernente às teorias da semiologia, que compreendem cada imagem como
um verdadeiro enunciado. Essa preocupação em potencializar a capacidade
significativa de cada cena, buscando a neutralização dos elementos de
composição em cada um dos quadros, possibilita que o filme ultrapasse os
limites da narrativa, transformando-se em uma experiência multisensorial. Por
sua vez, essa multisensorialidade acarreta a mutação do universo diegético em
uma explosão estética vivaz capaz de fazer sentir, fazer significar, ou seja,
fazer relacionar-se com a obra.
17
“Mistura indeterminada de travelling e panorâmica efetuada com o auxílio de uma grua.
(MARTIN, 2003:52)
105
Essas funções atribuídas ao campo estético são possíveis somente
porque uma manipulação das técnicas cinematográficas constituintes de
uma materialidade coerente com o enunciado narrativo que, de acordo com
nossa leitura interpretativa, derivam do protagonismo da obra, referente ao
relacionamento feminino representado pela mãe e pela filha.
A análise estruturada que acabamos de realizar ilumina os recursos
técnicos coincidentes com os fenômenos perceptivos estéticos, corroborando
para a idéia de que as principais características da composição dos quadros
têm a finalidade de reforçar as questões psicológicas que fundamentam a
existência das personagens na realidade ficcional.
Dessa forma, a análise dos dispositivos técnicos para a construção de
uma realidade estética, nos permitiu adentrar os limites do processo criativo
sob a ótica dos elementos que acionam a percepção do espectador.
106
II. O Gênero horror – subjetividade e objetividade em jogo
A palavra “horror” deriva do latim horrore - ficar de pé ou eriçar. A origem
dessa palavra está relacionada a um estado fisiológico de agitação anormal.
Da mesma forma, a palavra “terror”, do latim terror õris, significa estado de
grande pavor ou apreensão ou, ainda, grande medo ou susto.
Por conseguinte, o gênero cinematográfico de terror, ou horror, recebeu
essa denominação justamente pela intenção explícita de suas produções que,
independente do formato narrativo, intentam provocar emoções exaltadas em
sua audiência, deixando-a em estado apreensivo de extremo pavor, em uma
relação direta com algumas reações fisiológicas como, por exemplo, cabelos
em pé e arrepios na espinha.
Muitos são os temas que podem ser abordados sob uma ótica
aterrorizante, o que garante ao gênero uma rie praticamente infindável de
produções. Carrie, A Estranha é uma dessas histórias que, tanto na literatura,
quanto no cinema, são concebidas com o firme propósito de horrorizar.
No entanto, apesar do terror ou horror ser um gênero com finalidades
bem definidas, cada uma das produções, apesar de pertencerem a um mesmo
estilo, estabelece sua própria materialidade, seu próprio campo simbólico a ser
empregado como suporte narrativo.
Dessa forma, após a exposição de alguns parâmetros técnicos que
compõem a obra, nesse item continuaremos explorando essas questões,
porém, agora, atreladas às características do gênero, no qual o filme está
inserido.
Ainda, abordaremos alguns temas centrais da narrativa, expondo a
subjetividade e a objetividade com os quais esses temas são apresentados
para os espectadores. A exemplo do item anterior, destacaremos alguns
momentos relevantes do filme, tendo como base a capacidade representativa
desses trechos em relação à obra como um todo.
Mas, antes de passarmos a tratar das questões fílmicas propriamente
ditas, será necessário apresentarmos alguns aspectos importantes sobre o
gênero, que nos serão úteis na compreensão das características de Carrie, A
Estranha, sob o espectro do gênero terror/horror.
107
Primeiramente, definiremos o termo horror como o que será empregado
a partir desse momento em nossa análise, pois, além de ser o termo preferido
por historiadores e críticos especialistas no gênero, a definição da palavra
horror parece representar melhor o objetivo final do estilo, enquanto a
terminologia terror parece estar mais relacionada a um estado específico de
susto ou pavor, portanto, inserido em um contexto mais amplo de horror.
Desde o início do século XX, o cinema de horror vem se desenvolvendo
como um dos gêneros mais populares do cinema.
Com uma capacidade inventiva dificilmente vista em outro gênero
cinematográfico, o tanto pelos roteiros gerados a partir desse estilo, mas
muito mais pela capacidade de transformar praticamente qualquer elemento
em algo horripilante, esse gênero do cinema tem nos brindado com criaturas
que vão desde bonecos assassinos e crianças possuídas, passando por toda
sorte de fantasmas, zumbis, bruxas, vampiros e duendes, até animais
ameaçadores e aberrações experimentais que, de outra forma, não poderiam
ser imaginados, senão pela vocação do cinema para o gênero.
Além da certeza de que muitas outras criaturas ainda surgirão desse
nicho para se tornarem ícones, aos moldes de Frankenstein e Drácula, para
citarmos apenas dois dos mais famosos, podemos professar que muitas das
figuras do terror clássico viajarão do século XX para o século XXI, para se
vestirem com a nova roupagem do extremo realismo dos recursos técnicos
típicos dos novos tempos, para os quais não há limites na arte de aterrorizar.
Essa previsão pode ser facilmente comprovada pela tendência
percebida nos últimos 15 anos do cinema de horror em trazer às telas
refilmagens de antigos clássicos. Entre essas produções, encontra-se,
inclusive, o objeto do nosso estudo, a personagem Carrie, que nos anos 2000
retornou às telas do cinema com A Maldição de Carrie (The Rage: Carrie 2
1999 – Kath Shea).
No entanto, o gênero em questão não depende de recursos tecnológicos
para a concepção de filmes horripilantes, estando essas obras muito mais
relacionadas às tradicionais técnicas cinematográficas que, ao serem utilizadas
ainda na época do cinema mudo e no ápice do expressionismo alemão, fizeram
com que o gênero se tornasse tão popular. Christopher Frayling, no prefácio
que escreveu para a coleção Film Pôster - Horror, que reúne pôsteres de
108
divulgação das principais obras do gênero no cinema, fornece uma visão sobre
os filmes de horror, no mínimo, inusitada: “o horror tende a estar fora dos olhos,
na esquina da retina(FRAYLING, 2004:6). Essa afirmação comprova que as
técnicas primitivas do cinema são capazes de criar situações aterrorizadoras,
sem que grandes recursos tecnológicos sejam empregados.
Com relação ao início do gênero cinematográfico, ainda na década de
20, surgem duas das obras mais expressivas da escola alemã: O Gabinete do
Dr. Caligari (Das Cabinet Des Dr. Caligari 1919 Robert Wiene) e
Nosferatu The Vampire (Nosferatu, Eine Symphonie Des Grauens 1922 -
Friedrich Wilhelm Murnau). Essas duas obras marcaram a história do cinema, a
primeira, por ter influenciado grandes obras-primas Metrópolis (Metropolis
1927 Fritz Lang), o próprio Nosferatu e, mais adiante, Cidadão Kane
(Citizen Kane 1941 Orson Wells) e, a segunda, Nosferatu, por ter sido a
primeira produção do personagem Drácula, baseado sem autorização na obra
de Bram Stoker. O filme enfrentou problemas em sua época com relação aos
direitos da esposa do autor da obra original e, apesar de quase ter sido
totalmente extinto pela queima obrigatória das cópias imposta ao estúdio,
Nosferatu abriu as portas para uma centena de produções que viriam,
posteriormente, inspiradas no personagem.
Na década de 30, muitos outros filmes do gênero foram lançados, a
maioria com qualidade suficiente para continuarem sendo referências do
gênero. Algumas das produções mais importantes da década foram: M. O
Vampiro de Dusseldorf (M 1931 Fritz Lang), Frankenstein (Frankenstein
– 1931 – James Whale), Drácula (Dracula 1931 – Tod Browning), Os
Monstros (The Freaks – 1932 - Tod Browning), O Homem Invisível (The
Invisible Man 1933 – James Whale), Os Crimes do Dr. Mabuse (Das
Testament Des Dr. Mabuse 1933 Fritz Lang), A Noiva do Frankenstein
(The Bride Of Frankenstein 1935 – James Whale), entre outros.
Além da forte influência do gênero sofrida pelos filmes do início do
século passado, principalmente os produzidos nas três primeiras décadas,
alguns filmes que não eram inicialmente classificados como terror, tornaram-se
referências para os filmes, posteriormente produzidos, principalmente em
relação ao contraste entre luz e sombra, interpretações carregadas de
dramaticidade, trilha sonora com tons predominantemente graves e concepção
109
estética obscura. Os dois filmes mais marcantes para o gênero terror sem que
fossem compreendidos como tal, foram: Fausto (Faust – 1926 - Friedrich
Wilhelm Murnau) e Metrópolis (Metropolis – 1927 – Fritz Lang).
No entanto, apesar do sucesso do gênero ser atribuído aos primeiros
filmes produzidos, o podemos abster o fato de que a própria humanidade
tem uma história intimamente relacionada ao prazer e ao medo. Sendo assim,
é possível afirmarmos que muitos desses filmes, e da literatura que os
precedeu vieram complementar uma lacuna existente entre a naturalidade do
sentimento e a possibilidade de extravasamento dessa sensação por
intermédio do lazer.
Jean Delumeau, em sua obra A História do Medo no Ocidente – 1300-
1800, estabelece uma relação entre o medo e a humanidade:
“Quer haja ou não em nosso tempo mais sensibilidade ao medo, este é um
componente maior da experiência humana, a despeito dos esforços para supera-
lo. ‘Não acima do medo’, escreve um militar (...) O título da obra de Jakov Lind,
O medo é minha raiz, não se aplica só ao caso de uma criança judia de Viena que
descobre o anti-semitismo. Pois o medo nasceu com o homem na mais obscura
das eras’. Ele está em nós. Acompanha-nos por toda a nossa existência. Citando
Vercors, que esta curiosa definição da natureza humana os homens usam
amuletos, os animais não os usam.” (DELUMEAU, 1989:18)
Essa questão do medo como um sentimento imanente à humanidade,
coloca em pauta o paradoxo do horror, que questiona o fato das imagens
repulsivas das obras de horror serem atraentes para o ser humano. Parece
natural afirmarmos que o medo não é um sentimento exatamente confortável e
que a nossa tendência natural seja o esvaziamento dessa sensação, sempre
que possível. Se essa afirmação for consensual, como explicar então que
obras com o claro objetivo de causar uma sensação de agitação, traduzida
pelo medo e que utiliza como matéria-prima imagens repulsivas, possa ter
admiradores por toda a parte? A resposta para essa pergunta tem sido
buscada por profissionais de todas áreas, de críticos de cinema a psicanalistas
e historiadores. Diversas são as vertentes possíveis para uma conclusão, mas
como não pretendemos responder essa questão, utilizaremos a idéia
110
apresentada por Nöel Carrol, em sua obra A filosofia do horror ou
paradoxos do coração:
“O pressuposto subjacente, aqui, é o de que estar num estado emocional é
revigorante e, se não tivermos de pagar o preço do estado emocional (no sentido,
por exemplo,em que o medo costuma exigir perigo), consideraremos que estar
nesse estado é algo valioso. Ora, pode ser verdade que os estados emocionais
são muitas vezes revigorantes dessa forma (isto é, provocam um choque de
adrenalina) e que os buscaremos por isso mesmo, se nenhum risco estiver
envolvido. E também pode ser verdade que isso explique em parte porque a ficção
de horror é atraente.” (CARROL, 1999: 242)
No entanto, as obras de horror não podem ser interpretadas nem como
completamente repelentes nem como completamente atraentes. A percepção
isolada de cada uma dessas perspectivas suprime a qualidade essencial do
gênero que nasce, exatamente, da curiosa combinação de atração com
repulsão.
A relação entre o gênero, teoricamente repulsivo, e a misteriosa atração
que é capaz de exercer, simboliza um fenômeno relativamente recente, mais
precisamente do culo XVIII, no qual teve início a disseminação da literatura
gótica inglesa. Alguns historiadores acreditam que o primeiro romance gótico
de relevância para o gênero tenha sido O Castelo de Otranto (1765), de
Horance Walpole
18
, de destaque na história da literatura de horror por ser
considerado o ponto de resistência ao gosto neoclássico, iniciado pela geração
anterior, dos chamados poetas de cemitério
19
.
A evolução natural da literatura de horror foram as dramatizações que
têm início datado em 1820. O próximo passo seria, naturalmente, o cinema,
atendendo ao realismo necessário para que esse tipo de obra desse vazão ao
prazer envolvido no contato com essas histórias. Principalmente no período
compreendido entre 1820 e 1870, foram escritas inúmeras novelas e romances
relevantes para a literatura gótica. É nesse ínterim que surge, nos Estados
Unidos, Edgar Allan Poe (1809 1849), que, juntamente com outros grandes
escritores ingleses firmaram o gênero como literatura de sucesso, mas agora
18
CARROL, Nöel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus, 1999.
19
FRANK. Frederick S. (1762 – 1820) apud CARROL.
111
com um caráter mais realista. Nöel Carrol apresenta uma citação de Benjamin
Franklin Fischer, sobre o caráter realista das obras do período:
“A tendência significativa desse período para histórias de horror reflete
desenvolvimentos nos maiores romances vitorianos e americanos, que surgiam
então como um gênero artístico e sólido. Houve uma passagem do pavor fictício,
expresso por misérias exteriores e atos infames, ao medo psicológico. A virada
interior na ficção deu ênfase às motivações, e não a suas patentes conseqüências
aterrorizantes. O fantasma-de-lençol deu lugar, como ocorreu literalmente em
Canto de Natal, de Charles Dickens, à psique mal-assombrada, uma força muito
mais significativa para ‘assombrar’ vítimas infelizes.”
(FISHER apud CARROL, 1999:18)
Apesar do gênero gótico se firmar como gênero artístico na metade do
século XIX, a grande fase da literatura de horror que, definitivamente,
influenciou o cinema desde seu início, ocorreu entre 1872 e 1920. Nessa
época, os grandes romances, posteriormente adaptados para o cinema,
ganharam vida, muitos deles em forma de contos, uma nova modalidade de
literatura que representava uma fórmula de sucesso no final daquele século. É
nessa fase que surgiram: O Estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde (The
strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde 1887 Robert Louis Stevenson),
adaptado para o cinema sob o título de O médico e o monstro (The strange
case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde 1932 Rouben Mamoulian); O retrato de
Dorian Gray (The picture of Dorian Gray – 1891 – Oscar Wilde), adaptado para
o cinema com título homônimo em português (The picture of Dorian Gray
1945 Albert Lewin); e Drácula (Dracula 1887 Bram Stoker), adaptado
para o cinema pela primeira vez com o título Nosferatu The Vampire
(Nosferatu, Eine Symphonie Des Grauens – 1922 - Friedrich Wilhelm Murnau).
A julgar pelo início do relacionamento bem sucedido entre a literatura e o
cinema, o gênero terror estabeleceu bases fortes para se tornar um estilo
popular, irresistivelmente consumível, que representa, até hoje, uma fonte
rentável para estúdios do mundo inteiro. Mas essa popularidade foi sendo
construída pelo cinema por meio de ciclos de produções: após os anos 20 e os
anos 30, decisivos para o gênero, um novo ciclo de produções, voltadas para o
público jovem, surge nos anos 40; nos anos 50 nasce o ciclo horror/ficção
112
científica, que inspira a indústria japonesa a criar Godzilla; nos anos 60, surge
o ciclo das adaptações literárias; os anos 70 viram nascer as produções de
terror psicológico que perduram até hoje; no entanto, paralelamente, temos,
nos anos 80, o surgimento da indústria massiva dos trashies movies e,
atualmente, convivemos com uma profusão de espíritos e remakes de
produções clássicas.
Mesmo se tratando de um gênero que possibilita um sem número de
contextos narrativos, existem algumas características em comum, que definem
o estilo e que permitem uma classificação mais restrita às produções de horror.
A primeira e mais expressiva característica refere-se à atitude dos
personagens:
“O que parece servir de demarcação entre a história de horror e meras histórias
com monstros, tais como os mitos, é a atitude dos personagens da história em
relação aos monstros com que se deparam. Nas obras de horror, os humanos
encaram os monstros que encontram como anormais, como perturbações da
ordem natural. Nos contos de fadas, por outro lado, os monstros fazem parte do
mobiliário cotidiano do universo.” (CARROL, 1999:31)
Assim, podemos compreender que, pelo menos inicialmente,
detectamos se tratar de um filme de horror por meio da análise das reações
emocionais dos personagens da história em relação ao ser impuro, ou seja, em
relação ao ser com propriedades monstruosas, sendo essa característica de
impureza o fator determinante para a criação do que Nöel Carrol chama de
horror artístico
20
.
Conseqüentemente, os criadores do horror artístico devem certificar-se
de que as criaturas de suas ficções sejam impuras e ameaçadoras e isso pode
ser conseguido com um monstro psicologicamente ameaçador, mesmo que ele
não apresente nenhum tipo de deformação, nenhum tipo de ameaça física, isto
é, um monstro que seja perigoso somente para a nossa mente ou através de
sua mente, será, mesmo assim, uma criatura de horror. É válido notarmos,
20
O horror artístico difere-se do horror natural por envolver emoções relativas a criaturas de
horror, as quais temos consciência que são advindas da ficção e pelas quais aprendemos a nos relacionar
por meio dos personagens da história.
113
ainda, que o horror pode perpassar pelo sobrenatural e pela ficção científica,
desde que mantenha sua função de inspirar repulsa.
“(...) a emoção do horror artístico envolve quintessencialmente uma combinação
de medo e repulsa em relação ao pensamento de monstros como Drácula, de
modo que esses estados cognitivos geram uma espécie de agitação física, que
pode ser patente, como tremedeiras e náuseas de estômago, ou silenciosa, como
sensações de formigamento ou como uma maior sensação física de apreensão,
de alerta ou de expectativa. Isso pode ser gerado pelo pensamento de tais
criaturas e não exige a crença na existência de tais seres. O estado psicológico do
público, portanto, diverge, do estado psicológico dos personagens em relação à
crença, mas converge com ele no que se refere à maneira como as propriedades
desses monstros são emocionalmente avaliadas.” (CARROL, 1999:76)
Dessa forma, a validação do gênero ocorre no exato momento em que a
emoção é estritamente direcionada ao objeto de horror, mantendo-se focada
nesse objeto definido pela trama como uma criatura impura e ameaçadora da
ordem natural, ou seja, um monstro causador de repulsa.
Devemos ainda nos ater sobre a noção de impureza em uma obra de
horror. A grande questão que permite aos monstros serem adjetivados por
impuros é a relação desse conceito com seus poderes mágicos ou
sobrenaturais. Para Carrol, esses poderes fazem dessas criaturas algo
irresistível:
“objetos culturalmente impuros são geralmente tidos como investidos de poderes
mágicos (...) Assim, os monstros das obras de horror, por extensão, podem estar
analogicamente imbuídos de poderes fantásticos em virtude de sua impureza”.
(CARROL, 1999:53)
No caso de Carrie, A Estranha, o objeto ameaçador, passível de causar
horror, está relacionado ao ser reprimido. Essa característica é comum em
filmes do gênero horror psicológico. Carrie amplia o âmbito do reprimido,
tornando-se uma criatura de horror a partir do momento em que manifesta sua
repressão, atrelada aos seus desejos sexuais, às suas angústias. O foco de
repulsa em Carrie passa a existir juntamente com a presença de uma fúria
reprimida que, quando emergida, veste-se com a roupagem do horror.
114
Mesmo com o terror causado pela libertação da ria de Carrie, um
outro elemento no filme que circula em pontos diferentes em relação ao objeto
de repulsa: Margareth White, mãe de Carrie que, ao mesmo tempo nos instrui
sobre as reações que devemos ter diante dos poderes da filha (que no futuro
serão objetos de horror), enquanto ela própria se configura num foco de
repulsa, à medida em que incita a repressão, tornando-se, também, uma
criatura psicologicamente ameaçadora.
“Evidentemente, quanto mais fontes psíquicas recalcadas acima e além dos
desejos sexuais reprimidos o analista tomar como perspectivas de
manifestação encoberta, mais figuras de horror ele será capaz de explicar
dessa maneira. (...) Além disso, presumir-se-á que a manifestação de
qualquer forma de material reprimido proporciona prazer e que o aspecto
horrendo dos monstros é o preço da suspensão ou da libertação dessa
repressão.” (CARROL, 1995:248)
Portanto, podemos entender que Carrie, em toda sua fúria irreprimível
como monstro, também representa uma prazerosa fantasia de vingança,
através de “olhos que matam”. Ou seja, como monstro, Carrie provoca horror,
mas, ao mesmo tempo, ela permite que venha à tona uma fantasia infantil de
onipotência da vontade.
Há, ainda, uma outra porção de horror em Carrie, A Estranha: a religião.
A analogia entre o horror e a experiência religiosa é não raro articulada,
explicita ou implicitamente, conforme afirma Noël Carrol, em virtude da análise
da experiência religiosa, desenvolvida por Rudolf Otto, sobre a idéia do
sagrado
21
.
Para Otto, a religião tem um elemento o –racional, um objeto inefável a
que ele se refere como nume. Esse é o objeto da experiência religiosa, ou
experiência numinosa. Os termos em que essa experiência é caracterizada são
mysterium, tremendum, fascinans et augustum. Ou seja, o objeto da
21
CARROL, Noël. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. São Paulo: Papirus, 1999.
Rudolf Otto em sua obra A idéia do sagrado (1928), desenvolveu sua filosofia religiosa, na qual
apresenta o conceito de numinoso, que se refere ao estado da alma inspirado pelas qualidades
transcendentais da divindade.
115
experiência religiosa é tremendo, causa uma sensação paralisante de ser
sobrepujado, de ser dependente, de ser nada, de ser insignificante.
“O nume é assombroso. O nume também é misterioso, é totalmente outro, para
além da esfera do costumeiro, do inteligível e do familiar, de tal maneira que induz
um sentimento vazio de encanto, que faz perder a fala, uma espécie de
estupefação absoluta. Esse encontro com o totalmente outro não apenas
aterroriza o sujeito, ele também fascina. De fato, a tremenda energia e urgência
excitam nossa homenagem, portanto, augustum.” (CARROL, 1995:240)
Por último, trataremos de um elemento que também caracteriza o
gênero horror, por fazer parte da maioria das narrativas do estilo. Trata-se do
suspense que, apesar de ser considerado um gênero absoluto, mesmo
podendo atravessar todos os gêneros narrativos, é um fator praticamente
inseparável do horror. Sendo assim, o suspense perscruta uma história do
gênero em qualquer nível narrativo, configurando-se em um acompanhamento
emocional valioso, quando se trata de conduzir o espectador por entre os
elementos narrativos. Esse estado emocional é suscitado por meio de uma
condição necessária para o suspense, que ao ser empregada na narrativa
estabelece uma relação entre pergunta e resposta de forma estruturada. Esse
conceito é denominado antecipação
22
. O desfecho dado à antecipação na
narrativa quase sempre é irrelevante, pois o que realmente importa é a série de
cenas e acontecimentos que envolvem o suspense.
Podemos iniciar nossa análise das seqüências fílmicas, a partir das
características do gênero, pela seqüência que traz a antecipação da
humilhação de Carrie (continuação da seqüência intitulada Preparação para
humilhação, analisada na parte um desse capítulo), responsável pela criação
do suspense, que culminará na cena principal do filme: o derramamento de
sangue em Carrie.
22
CARROL, Nöel. A filosofia do horror ou paradoxos do coração. Campinas: Papirus, 1999.
116
Imagens para análise 1 – ANTECIPAÇÃO X AÇÃO
ANTECIPAÇÃO AÇÃO
(1) – Votação. (2) – Anúncio do resultado.
(3) Posicionamento do balde em relação à
Carrie.
(4) Momento em que o sangue é
derramado.
(5) Antecipação da puxada do balde. (6) Momento da puxada do balde.
De acordo com a seleção mostrada, a antecipação empregada na
seqüência do baile cria a situação de suspense não por revelar
antecipadamente o que está por acontecer, mas também por fornecer ao
117
espectador um panorama exato de como os fatos se desenrolarão. Assim, o
público sente a ansiedade gerada pela certeza dos acontecimentos, agregando
a isso o sentimento de solidariedade para com a personagem. No momento da
ação, não como ocorrer nenhum tipo de dúvida, pois os movimentos de
câmera e os enquadramentos são reproduzidos muito semelhantemente ao
apresentado na antecipação.
Vale, ainda, notarmos que a iluminação, com a predominância de tons
avermelhados que envolvem Carrie e Tommy no palco, ajuda na criação do
desconforto que deve ser gerado pela antecipação.
O suspense que se pretende criar depende de tal maneira do completo
entendimento da antecipação por parte do blico que o papel preso ao balde
se solta, caindo próximo de Carrie, com o intuito de fornecer uma perspectiva
exata do posicionamento dos dois elementos, conforme demonstram as
imagens na antecipação de número três.
Já colocamos nesse estudo a questão do ponto de vista da câmera que
pode variar entre subjetivo (focalização por um personagem) e objetivo
(focalização sobre um personagem). Carrie, A Estranha é composto por
movimentos de câmera que, em muitos casos, substituem o texto narrativo,
portanto é inevitável que a realidade material do universo diegético seja
constituída por constantes variações de ponto de vista da câmera.
No entanto, essa é a primeira oportunidade que temos de nos
debruçarmos sobre a compreensão da subjetividade e, por vezes, objetividade
do horror apresentado em Carrie, A Estranha. Trataremos as seqüências
selecionadas a seguir, de acordo com o conceito apresentado por Jacques
Aumont em A estética do filme. Segundo ele, o modo é relativo ao ponto de
vista que guia a relação dos acontecimentos e que regula a quantidade de
informação dada sobre a história pela narrativa”. (AUMONT, 1995:119)
118
Seqüência para análise 4 – O AMBIENTE FAMILIAR
(1) (2)
Nas imagens acima, temos dois exemplos de terror subjetivo utilizado
como fio condutor em quase todas as cenas que envolvem um contato direto
entre mãe e filha. Conforme podemos perceber na imagem um, o plano geral
da atmosfera obscura da casa fica ainda mais aterradora, quando
instantaneamente iluminada pela luz de um raio em meio a uma tempestade.
Da mesma forma, numa cena interna da casa, durante uma conversa entre
mãe e filha, a mesma tempestade provoca um raio que ilumina a face da mãe.
Em nenhuma das duas situações, temos informações de ordem
narrativa que justificam um momento de terror, no entanto, a atmosfera
horripilante é construída pelo recurso do raio, pois, esse elemento, em
referência ao gênero como um todo, quase nunca é empregado, senão em
situações de antecipação ao extremo medo ou perigo. Trata-se, portanto, de
um horror subjetivo.
Seqüência para análise 5 – A VINGANÇA
(1) (2)
119
(3) (4)
A seqüência da vingança motivada pela humilhação impingida à Carrie,
durante o baile, apresenta uma mistura frenética de horror subjetivo e objetivo.
A intenção de fazer com que os espectadores se vejam envolvidos com
uma mistura de sensações, faz com que a seqüência tenha muitos quadros
divididos ao meio, demonstrando pontos de vistas diferentes. Esse
procedimento, conhecido por split screen, permite que o limite do quadro seja
dividido em várias zonas, iguais ou não, cada uma delas ocupada por uma
imagem parcial.
23
A utilização desse recurso permitiu que a seqüência
ganhasse maiores possibilidades multisensoriais, à medida que o espectador
pôde perceber ângulos diferentes de uma mesma situação, ou seja, pôde
perceber ao mesmo tempo a ira e a concentração mental de Carrie e o
desespero de suas vítimas.
Na primeira imagem selecionada, temos um dos raros momentos de
terror objetivo apresentado no filme. Ressaltamos aqui que esse modo
narrativo é utilizado somente deste ponto em diante. De toda forma, essa
imagem não deixa lastro para dúvidas. O universo diegético está totalmente
voltado para o horror: a expressão da personagem em transe e banhada em
sangue, a escuridão que a envolve, o enquadramento de câmera em plano
médio que nos permite focar a atenção somente no elemento principal e, o
silêncio taciturno que, apesar de não poder ser apresentado aqui,
complementa a cena de tal forma que parece fazer o instante se perpetuar na
mente do espectador.
23
AUMONT, Jacques. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995.
120
As imagens dois, três e quatro o representativas de técnica de split
screen, utilizada em abundância na seqüência. No canto esquerdo da imagem
um, temos uma situação de horror subjetivo, no qual somente um fragmento do
momento nos é apresentado no limite da imagem. No entanto, essa
subjetividade se esvai quando complementada pela objetividade do close que
compõe o canto direito do quadro. A expressão da personagem, associada à
imagem da mangueira, não deixa dúvidas de que alguém está sendo atingido
pela ira de Carrie, através do forte jato de água.
As imagens três e quatro apresentam, simultaneamente, características
subjetivas e objetivas, tanto em relação ao modo narrativo, quando em relação
ao ponto de vista da câmera.
No canto esquerdo da imagem três, o ponto de vista objetivo da cena é
utilizado na composição de uma narração subjetiva, ou seja, nosso olhar diante
do quadro nos permite compreender se tratar de uma situação de horror
somente pela visão do desespero sentido pelas personagens sem, no entanto,
sabermos para onde o olhar delas está direcionado. A subjetividade da
narrativa é simultaneamente substituída pela objetividade da imagem presente
no canto direito do quadro. Desse lado do quadro, do qual tomamos
conhecimento através do olhar subjetivo das personagens presentes no canto
oposto, entendemos que a situação que aterroriza as personagens de um lado
é a situação que enxergamos do outro.
Da mesma forma, a narrativa nos é transmitida na imagem quatro, pois
ao termos uma visão objetiva da feição horrorizada dos personagens situados
no canto direito, entendemos, simultaneamente, se tratar do medo em relação
à situação que, por um ponto de vista subjetivo, ocorre no canto oposto.
Por fim, é interessante notarmos que a técnica do split screen nos
possibilita posições distintas diante do medo, pois, numa narrativa subjetiva
percebemos que o horror é algo iminente, geralmente pressentido com a ajuda
de uma elipse de montagem
24
. Mas, ao mesmo tempo, sentimos o terror, ao
sermos impactados pela narrativa de modo objetivo.
24
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. São Paulo: Brasiliense, 2003.
“Deixar certos elementos da ação fora do enquadramento.”
121
Seqüência para análise 6 – A VINGANÇA FINAL
(1) (2)
(3) (4)
Essa seqüência também apresenta uma variação no modo narrativo, ou
seja, no fazer pressentir o horror e no fazer sentir o horror. No entanto,
diferentemente do que acontece no decorrer da vingança no baile, essa
seqüência é apresentada totalmente sob o olhar do espectador, isto é, através
do ponto de vista objetivo da câmera.
Nas imagens um e quatro, a disposição dos elementos no quadro é
pensada de forma que o momento da história seja intenso e aterrorizador, pois
o suspense, nesse caso, está atrelado à expectativa de ver Carrie sendo
atingida pelo carro dirigido pela antagonista: Chris Hargensen. Nesses dois
quadros, todos os objetos de horror estão presentes, portanto trata-se de um
modo objetivo.
No entanto, as imagens dois e três trazem uma narrativa subjetiva, na
qual o terror nos é transmitido pelo close da fisionomia das personagens. Com
a utilização dessa elipse de montagem, que deixa de fora do enquadramento
os elementos de horror da narrativa, substituímos o terror pela ansiedade e
pelo suspense.
A partir da exposição das características do gênero terror, bem como
das particularidades que delimitam o espaço fílmico da obra, acreditamos
122
termos elucidado alguns pontos essenciais do processo criativo, revelando a
clareza do cineasta sobre o potencial representativo do cinema.
Por meio da intensa manipulação dos recursos técnicos, associados a
uma forte inclinação em fazer do contato com esse fenômeno algo único,
acreditamos que o filme deixa de ser exemplar do gênero para se tornar uma
obra-prima do cinema.
Todos os elementos que configuram o universo diegético de Carrie, A
Estranha, são capazes de transformar a experiência com a história numa
intensa experiência de horror, com uma energia convergente para a
transformação da simples ficção em algo realmente prazeroso e compensador,
no sentido de nos permitir a completude de nossos sentimentos.
123
III. Confluências e divergências do tema do amor materno no
cinema
Conforme demonstramos nos itens anteriores, Carrie, A Estranha é
uma obra concebida a partir da intensa manipulação dos recursos
cinematográficos, sejam eles de natureza cnica, do âmbito da realidade a
favor da ficção, ou, sejam eles de ordem simbólica, a serviço da percepção.
Independente da natureza desses recursos, a concepção artística da obra
busca, a cada instante, o potencial ximo da sinestesia multisensorial dos
elementos técnicos em função do significar.
Apesar do filme apresentar características estruturadas, específicas do
gênero horror, uma certa tendência por fazer desses elementos uma
figuração para um significado maior da obra como um todo. Isso se reflete no
fato de podermos detectar duas realidades distintas, correndo paralelamente
em um mesmo universo diegético.
Nesse ponto, estamos, novamente, trazendo à baila nossa interpretação
de que duas realidades distintas que compõem o universo diegético de
Carrie, A Estranha. Uma delas é a realidade manifesta de Carrie, construída
por meio da realidade material da obra: sua rotineira solidão, as constantes
humilhações na escola e as dúvidas em relação aos medos e anseios de uma
jovem adolescente; e, concomitantemente, entramos em contato, por meio do
campo simbólico que permeia a narrativa, com uma realidade latente pautada
pelo relacionamento entre e e filha. Esses dois universos paralelos dentro
da obra constituem o elementos primordiais do processo criativo: o primeiro,
fundamentado pelas cnicas cinematográficas. O segundo emergido através
da significação do fenômeno estético da obra.
É partindo dessa possibilidade de interpretação sobre a construção de
Carrie, A Estranha, que analisaremos algumas seqüências, nas quais
acreditamos que os recursos manipulados no campo técnico e no campo
simbólico, constroem as duas realidades paralelas existentes na obra. Assim,
por meio da análise proposta, tentaremos iluminar o tratamento dado às
confluências e divergências do tema do amor materno, dentro do universo
ficcional representativo de uma diferente realidade possível.
124
Iniciaremos a análise expondo a concepção cenográfica que,
fundamentada nas características dos elementos cênicos busca fazer sentir a
realidade latente, enquanto a realidade manifesta ocorre nesses ambientes.
A composição cenográfica representa um dos recursos mais poderosos
para a representação do campo simbólico de Carrie, A Estranha.
“O cenário tem mais importância no cinema do que no teatro. Uma peça pode
ser representada com um cenário extremamente esquemático ou mesmo diante
de uma simples cortina, ao passo que se confia menos numa ação
cinematográfica fora de um quadro real e autentico: o realismo inerente à coisa
filmada parece exigir obrigatoriamente o realismo do quadro a e da
ambientação.” (MARTIN, 2003:62)
No entanto, é válido verificarmos que, na maioria dos filmes, uma
exacerbada tendência ao realismo cenográfico. Essa concepção realista faz
com que os cenários estejam sempre muito relacionados à idéia de que todos
os elementos que o compõem devam contribuir para uma forma mais
confortável de representação da realidade. Ao contrário do que geralmente
verificamos, em Carrie, A Estranha a concepção cenográfica busca a
transformação e a sinestesia, fazendo com que o exagero dos elementos
cênicos contribua para uma transferência de valores simbólicos ao campo do
psicológico. Dessa forma, podemos traduzir a tendência dos cenários internos
da cada protagonista, como uma tendência impressionista
25
. O impressionismo
dos cenários internos da casa pode ser verificado em favor de um campo
estético estabelecido para a obra, muitas vezes apoiada em um simbolismo
bastante elementar, que tenta empregar ingredientes que realmente
signifiquem e não somente representem. Mais á frente, retornaremos à
questão cênica estabelecendo um diálogo com o metacinema.
25
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. o Paulo: Brasiliense, 2003.
“Impressionista é o cenário escolhido em função da dominante psicológica da ação, condiciona e reflete
ao mesmo tempo o drama dos personagens”.
125
A próxima seqüência que analisaremos nos permitirá compreender
como os movimentos de câmera ressaltam os parâmetros fundamentais do
papel de cada uma das personagens no relacionamento mãe e filha.
Seqüência para análise 7 – VOCË É UMA PECADORA
(1) (2)
(3) (4)
(5)
As imagens entre um e cinco foram destacadas do primeiro momento
no filme em que ocorre o contato direto entre mãe e filha. Interessante
notarmos que o comportamento de Margareth White para com Carrie White
nos é apresentado de forma a ressaltar os limites do relacionamento, sob a
forma de um duro golpe, com a Bíblia empunhada, no rosto da filha.
126
A partir desse golpe, o espectador é brindado com uma seqüência de
demonstrações sobre os delírios religiosos da mãe, reforçados por meio dos
movimentos de câmera.
Na imagem dois, podemos notar que, durante uma pregação exaltada,
na qual a e atribui à filha os mesmos pecados cometidos por Eva, a
câmera alterna-se em contra-plongée e plongée, cada uma destinada a uma
personagem específica: a primeira para as tomadas da mãe e a segunda
para as tomadas da filha. Esses posicionamentos de câmera são
intermediados por cortes secos que, ao serem utilizados repetidas vezes,
conferem mais dramaticidade ao momento, transferindo para as tomadas a
sensação de ruptura da razão e distanciamento entre mãe e filha.
“A contra-plogée (o tema é fotografado de baixo para cima, ficando a objetiva
abaixo do nível normal do olhar), geralmente uma impressão de superioridade,
exaltação e triunfo, pois faz crescer os indivíduos e tende a torna-los magníficos,
destacando-os contra o céu aureolado de nuvens.” (MARTIN, 2003:41)
A afirmação de Martin sobre as intenções da utilização de um contra-
plongée como enquadramento pode ser perfeitamente aplicada na
representação da figura da e, tanto para a filha atingida pela magnitude
de sua progenitora, quanto para os observadores atingidos pelo momento
da fúria religiosa. As intenções das técnicas em relação à beatificação da
mãe são tão claras que o feixe de luz acima de sua cabeça, complementa a
cena, reafirmando as convicções da própria personagem em relação à sua
supremacia religiosa.
“A plongée (filmagem de cima para baixo) tende, com efeito, a apequenar o
indivíduo, a esmaga-lo moralmente, rebaixando-o ao nível do chão, fazendo dele
um objeto preso a um determinismo insuperável, um joguete da fatalidade.”
(MARTIN, 2003:41)
127
Sendo assim, a utilização da plongée como enquadramento da filha
durante a pregação da mãe, traz ao espectador a idéia irrefutável de como
Carrie é forçadamente submissa à e e, também, à Escritura, que, como
podemos perceber por meio dos cortes de cena, a menina é minimizada tanto
em face à sua mãe, quanto em relação à Bíblia Sagrada, não havendo espaço
nessa tríade para a razão que faria emergir os anseios de uma adolescente
recém-tornada uma jovem mulher.
Para concluir o fechamento da análise dessa seqüência primordial
temos uma marcação de cena na qual a mãe, mesmo permanecendo
ajoelhada juntamente com a filha, mantém sua soberania continua latente, ou
seja, apesar de Margareth White permitir-se estar no mesmo patamar da filha
pecadora, não há como aventarmos a solidariedade da mãe ante aos anseios
da jovem. Ela está ali tentando salvá-la, mas deixando transparecer se tratar de
seus próprios pecados.
A cena é enquadrada por um plano médio das personagens que intenta
representar o padrão do olhar humano, pois esse tipo de plano quase sempre é
o mais eficiente em cenas que m uma função descritiva, nos momentos em
que a fala assume a posição principal, permitindo, assim, focarmos com mais
atenção o discurso da e e o desespero da filha. É interessante notarmos
que aqui, ao contrário do utilizado anteriormente, o rosto iluminado da mãe
humaniza-a, tornando possível a captação interpretativa dos sentimentos da
personagem que, naquele momento, ao ajoelhar-se perante Deus, pedindo
ajuda para a filha, coloca sua voz na posição da própria pecadora.
Outros dois momentos cruciais para o processo narrativo, advêm do
pedido de autorização de Carrie para ir ao baile de formatura, bem como sua
postura de não atender às ordens da mãe para que ela desista da idéia.
128
Imagens para análise 2 – SUBMISSÃO X INSUBMISSÃO DE CARRIE
(1)
(2)
(3)
(4) (5)
No momento do pedido, Carrie permanece diminuída em relação à sua
mãe. Com medo da reação dela ao pedido, Carrie está acuada (quase no limite
do espaço da imagem), bem como aparenta ser, proporcionalmente, o menor
elemento da cena.
Há, como sempre, uma atmosfera obscura, sombria, aterrorizadora.
Entre mãe e filha na mesa de jantar, somente a escuridão, um vazio quase
impossível de ser transposto. Na imagem um, temos a clara noção de como se
configura o ambiente de relacionamento entre as duas, de uma forma trica e
sombria. Conforme podemos perceber na imagem dois, que destaca o exato
momento em que Carrie tomou coragem para fazer o pedido à mãe, Margareth
White assume, novamente, sua posição autoritária. Suas convicções a
129
engrandecem de tal maneira que, seu tamanho, literalmente, sobrepuja todos
os outros elementos da imagem, principalmente a filha.
No momento em que sua ira toma corpo, novamente, explode uma luz
instantânea, quase profética, advinda de um raio. Temos aqui, a exemplo de
outros momentos dessa seqüência, apresentados anteriormente, a criação do
ambiente propício para a sensação de horror. Algo de ruim está para
acontecer, caso contrário, essa luz “agourenta” não estaria inserida nesse
enunciado.
Ao contrário do que encontramos nas imagens um e dois, a imagem três
traz o início do melhor momento de Carrie na história. Ela parece ter se
libertado das amarras maternas e está pronta para levar sua vida, a partir
desse momento. Conforme podemos perceber, a atmosfera do quarto, que
antes também era taciturna (detalhe a), torna-se tranqüila, podemos interpretar,
inclusive, uma espécie de ensaio para um “mundo de Carrie” mais ameno,
quase cor de rosa.
Nesses dois momentos das personagens, temos na iluminação um
compromisso selado entre as técnicas de produção representativas da
realidade manifesta, com o simbolismo da realidade latente, ou seja de um
estado de espírito, dum momento do relacionamento entre mãe e filha.
Para reforçar a idéia de utilização dos recursos técnicos em favor da
transformação do campo emocional das personagens, destacamos as imagens
quatro e cinco, que nos possibilitarão comprovar esse efeito de sentido.
A imagem quatro contrapõe-se totalmente à imagem cinco. o
momentos distintos do caráter psicológico de e e filha. Na imagem quatro,
temos a continuidade da representação de Margareth White em relação à
Carrie: uma câmera em plongée enaltece o poder materno, subjugando a filha
ao desespero, à pequenez de suas convicções frente às convicções da outra.
Por outro lado, o plano geral da imagem cinco intenta demonstrar a
transformação de Carrie, nos fornecendo uma visão sem contestação do
posicionamento da filha em relação à mãe. Trata-se de um plano descritivo
muito importante, pois essa é a primeira vez que Carrie estará em um plano
superior ao de Margareth White. No entanto, uma clara divisão entre os
campos da imagem, sendo que o lado do quadro em que se encontra Carrie é
iluminado com o predomínio do Rosa. O lado do espaço da imagem destino à
130
mãe, submissa à filha, ainda sofre com uma certa obscuridade, numa espécie
de mau presságio advindo do novo comportamento de Carrie.
O relacionamento mãe e filha configura-se no ponto de apoio para a
realidade narrativa do universo ficcional. No âmbito da história, alguns
momentos desse relacionamento fazem com a narrativa se desenrole, caminhe
para frente, ou seja, os acontecimentos desse relacionamento são dispositivos
condutores para novos momentos da trama.
Portanto, é possível afirmarmos que tanto na realidade manifesta,
quanto na realidade latente, o universo diegético ganha corpo, à medida que
novos elementos vão sendo inseridos pelo universo mãe e filha. Abaixo,
apresentaremos alguns desses momentos que denominaremos como
movimentos narrativos:
Movimentos narrativos no
universo de Carrie White (filha)
Movimentos narrativos no
universo de Margareth White (mãe)
Carrie, sendo humilhada por o ter
conhecimento sobre a primeira
menstruação. Sua mãe nunca havia lhe
falado sobre o assunto.
Margareth White, ao saber que sua filha
havia se tornado mulher, considerou-a
pecadora. Ela estaria incorrendo no
mesmo erro de Eva, pois se não tivesse
sentimentos lascivos o teria sido
castigada por Deus com a “visita”do
sangue. A próximo castigo está
professado: Carrie ficará grávida.
131
Carrie tenta fazer sua e entende
r que
ela é uma adolescente normal. O
fanatismo de suae a torna uma pessoa
“esquisita” que não consegue ser aceita
socialmente. A mãe se considera superior
à filha.
Margareth White entende que sua filha
se perdeu no caminho do pecado. Ela
tenta impedir que sua filha se libere e
ameaça tira-la daquele lugar. A posição da
mãe ante a filha é superior, quase
beatificada.
Carrie tenta dissuadir sua mãe sobre suas
convicções que a impedem de ser uma
adolescente normal. Novamente, Carrie
está em posiç
ão de inferioridade em
relação ao comportamento da mãe.
Margareth White acuada em relação aos
poderes da filha. Para ela, Carrie é uma
bruxa. Pela primeira vez Carrie sente-se
superior à mãe, percebendo, assim, que
uma brecha para sua libertação, Carrie
promete que as coisas mudarão naquela
casa.
Com um semblante tranqüilo, Carrie
confecciona o vestido que usará no baile.
Pela primeira vez, Carrie está tranqüila em
casa. O sofrimento de sua mãe não a
abala. Há um indício de que Carrie não
está di
sposta a submeter sua vida aos
rígidos preceitos religiosos de sua mãe.
A desobediência de Carrie e sua vontade
de levar uma vida livre fazem com que
Margareth White sofra, como se estivesse
diante de seus próprios pecados. Para ela,
esses momentos representam a perdição
de Carrie.
132
Carrie está pronta para o baile. Agora ela
está vestida com a indumentária da
sensualidade de uma jovem mulher. Esse
momento é especial para Carrie, de forma
que os apelos de sua mãe não a fazem
reconsiderar essa sua nova fase.
Margareth White se autoflagela. O
comportamento de Carrie desperta na mãe
um intenso sentimento de culpa. As
atitudes de Carrie parecem tocá-la como
se fossem suas próprias atitudes. Os
pecados da filha parecem ser sua própria
perdição.
Ao
se libertar das amarras maternas,
Carrie se possibilita viver seu momento
mais especial. Nesse momento, ela é
aceita e desejada, sem medo e sem culpa.
Agora Carrie é ela mesma, como
imaginou: sendo uma adolescente normal.
A atitude de Carrie parece representar o
dispositivo capaz de reacender seu
passado pecaminoso, desejante. O castigo
parece ser sua única salvação. Agora,
Margareth foi retirada de suas convicções.
Sua superioridade o existe mais, ela
está pequena, ela está inserida no mundo,
tendo sido obrigada a sobreviver no
mesmo plano dos pecadores.
133
Carrie, ainda em transe, retorna para casa.
Ao chegar, percebe que houve algo de
errado com sua mãe. velas em todos
os cantos e muitos objetos religiosos
foram quebrados. Essa situação é t
ão
aterrorizante para a menina que ela
começa a sair do estado de choque em
que se encontra. Discretamente, ela
começa a chamar pela mãe.
O estado em que a casa se encontra
revela um descontrole emocional de
Margareth White que atingiu seu ápice
durante a ausência da filha. A mãe parece
também estar em transe e ela não
responde ao chamado de Carrie,
permanecendo escondida detrás da porta
do banheiro.
Carrie se banha cuidadosamente.
Lentamente, ela parece começar a voltar a
si, pois em alguns mome
ntos ela esboça
um choro calado.
Ao sair do banho, Carrie chama sua e
novamente. Margareth White revela-se
detrás da porta e caminha, lentamente, em
direção à filha. Carrie pede que ela a
abraça, mas a mãe, muito abalada,
ajoelha-se aos s de Carrie e começa a
contar sobre seu passado. Notamos ser
essa a primeira vez em que mãe encontra-
se em uma posição de inferioridade em
relação à filha.
Carrie, insistentemente, pede para que a
As atitudes de Carrie e sua
vulnerabilidade, naquele momento,
favorecem Margareth a desferir o golpe
134
mãe a abrace. A filha parece ter se
arrependido de não ter segui
do os
preceitos da mãe. Ela se acalma
aconchegada nos braços de Margareth. As
duas começam a rezar o Pai Nosso.
final na filha. Para a mãe, Carrie,
representa o próprio pecado e diante de
suas últimas decisões, a e tem certeza
de que o diabo retornou e condenou sua
filha à uma vida de perdição, tal qual
aconteceu com ela no passado.
Diante da impossibilidade de se defender
frente à atitude da mãe em querer matá-
la,
Carrie, acuada, utiliza seu poder mental e
atira inúmeras facas de cozinha em sua
mãe.
Margareth White agoniza com os
ferimentos causados pelas facas.
Margareth White morre.
Desesperada pelo que acabou de fazer,
Carrie abraça sua mãe morta e causa um
desmoronamento da casa, seguido de
incêndio. Carrie morre nos braços da mãe.
As análises que apresentamos buscam a todo tempo corroborar a
construção de dois universos ficcionais paralelos que, juntos, compõem o
universo diegético.
135
Conforme procuramos demonstrar, a concepção estética da obra, bem
como suas fundamentações simbólicas com funções multisensoriais, co-
existem com os recursos cnicos cinematográficos no sentido de fazer saltar
aos nossos sentidos, os meandros do relacionamento mãe e filha, pois é
dessas particularidades que surgem os movimentos narrativos que fazem
crescer a narrativa ficcional,construída, essa sim, a partir dos recursos de
produção.
A significação, no caso de Carrie, A Estranha, representa muito mais
do que uma afirmação da capacidade criativa, pois, nela uma função muito
clara em fazer emergir do contexto narrativo, o suporte para o significado
intrínseco ao universo ficcional, numa extrema convergência entre técnica
estruturada e fenômeno simbólico, entre realidade material e real
representativo, e, por conseqüência, entre criador, obra e público.
É dessa convergência, e somente por causa dela, que se torna possível
o imbricamento da realidade manifesta e da realidade latente que, a todo o
momento, permeiam a obra por meio do fenômeno da neutralização, fazendo
com que uma aconteça paralelamente à outra, mas, ao mesmo tempo, uma
não seja capaz de existir sem a interferência da outra.
136
CAPÍTULO III –
A concepção de uma teoria estética do
estranhamento na recepção cinematográfica
137
Várias são as possibilidades para a interpretação do conjunto de
elementos em um determinado universo diegético, em função da relação a ser
estabelecida com o espectador.
Interpretar a realidade representada por um universo ficcional é atuar
diretamente com a incumbência primordial dos princípios elementares do
fenômeno cinematográfico. Mais ainda, relacionar-se com a realidade do
universo ficcional é estabelecer os parâmetros regimentais que levarão a
percepção natural ao completo imbricamento da simbologia do real com nossa
própria realidade subjetiva.
É da simbologia inerente a uma obra cinematográfica que emerge a
possibilidade do sonhar, de modo que enquanto estamos em contato com as
sombras de uma “diferente realidade possível” estamos nos aproximando das
sensações que sentiríamos diante dessa realidade não colapsada. É a partir
daí que se torna possível identificarmo-nos com esse universo simbólico, que,
ao cumprir seu papel, nos permite sonhar e gozar nossos prazeres submersos
em nossos medos, mas que, ao delimitarmos como sendo da ordem do real,
permitimos que se torne realidade por tempo determinado.
Dessa maneira, a simbologia empregada em uma obra cinematográfica
assume um papel crucial como dispositivo para o extravasamento de
sensações retidas. É no contato com o real que nos permitimos sermos nós
mesmos, sob a faceta da ficção, dando início ao processo de identificação com
a obra.
O cinema em si não é somente um dispositivo através do qual vemos
imagens representativas da realidade capaz de nos iludir com através da
reprodução do movimento e da relação tempo-espaço. Na verdade, o cinema
pode ser somente isso, o cinema pode ser somente um produto consumível e,
muitas vezes, o é. Por outro lado, o cinema, elevado à sua condição suprema
de fenômeno perceptivo, pode e deve ser não apenas representativo, mas
também e, acima de tudo, significante, num ato contínuo de abdução da platéia
e de enunciação a cada imagem, transferindo um frescor interpretativo em
cada fotograma em movimento.
Contraditoriamente, a significação cinematográfica, como ponto de
partida para a identificação, o está calcada no realismo puro. Não
acreditamos que a transmutação pura da realidade para a ficção seja capaz de
138
produzir sentido quando faz uso do ponto de vista da realidade natural. Enfim,
a ficção parece se distanciar da sua significação quanto mais procura se
aproximar da representação pura.
Em contrapartida, ao perseguir a sinestesia do campo simbólico,
sobrepondo elementos que exacerbam a capacidade enunciativa da imagem,
mais a ficção se aproxima do princípio da abdução, à medida que nos retém
em cada detalhe, em cada ponto do limite do espaço ficcional. E, é dessa
explosão multisensorial de significação que conseguimos interagir por completo
com o universo diegético, sentindo e percebendo com muito mais intensidade
as situações que nos são colocadas dentro desse sistema representativo.
Nesse capítulo, pretendemos esboçar uma série de possibilidades
interpretativas para a questão da estética fílmica, que busca significar muito
mais do que representar, pois ela própria traz à tona a realidade latente,
referindo-se diretamente às questões da religiosidade feminina, do erótico e do
ético, num incessante movimento desejante, sendo essas questões
determinantes para a criação da estética do Belo/Horrível.
139
I. Religiosidade feminina vicissitudes do erótico e do ético na
narrativa ficcional
O ser humano é por sua natureza um ser que deseja. Há em sua
constituição inata o desejo incessante de suprir uma falta, de preencher um
vazio. Sua existência está calcada em um intenso movimento desejante. pois,
por mais que o ser se satisfaça, sempre haverá a falta de alguma coisa, caso
contrário, seríamos iguais a Deus
26
.
O protagonismo de Carrie, A Estranha, baseado na realidade latente
que emerge do relacionamento mãe e filha,traz a questão da falta como algo
relacionado, principalmente, com a fragilidade psíquica da mãe aprisionada em
um ideal narcísico que traz à tona uma série de sentimentos relacionados à
culpa.
A culpa é um sentimento intrinsecamente calcado no desejo. Esse
sentimento está ligado ao ser humano desde seus primórdios, tanto que hoje,
esse sentimento representa a estrutura das sociedades ocidentais,
especialmente as ligadas ao cristianismo, pois, desde as primeiras páginas da
Bíblia sobre a epopéia humana, uma cobrança de Deus às suas novas e
mais sublimes criaturas, ou seja, a culpa é um sentimento ligado ao pecado
original.
(...) ‘parirás com dor’, era a conta de Eva, e comerás o pão com o suor
de teu rosto’, era o débito de Adão. (...) Era o pagamento que deviam por terem
conhecido o bem e o mal, por terem desejado. O casal acabava de receber
gratuitamente, e sem ter pedido, o dom da vida. Mas, ao abrir os olhos ao
conhecimento das coisas, estavam culpados, com pesada dívida a pagar e
tendo que cobrir suas ‘vergonhas’.” (FERREIRA NETTO, 1998:71)
Dessa intervenção divina, que fundamentou a culpa original no desejo e
na procriação, surge, ao mesmo tempo, o recalque e a falta. O recalque
aprisiona a culpa, sendo quase sempre necessário transportarmos nossa culpa
26
FERREIRA NETTO, Geraldino Alves. Sentimento de culpa e religião. In: Culpa: aspectos
psicanalíticos, culturais e religiosos. São Paulo: Iluminuras, 1998.
140
a um motivo concreto, tal qual fez Caim, o primeiro filho, ao matar Abel. E o
desejo, num movimento constante, tenta apaziguar uma falta inexaurível de
retomarmos o paraíso, que perdemos quando do pecado original.
Essa relação entre falta, desejo, além de um intenso sentimento de
culpa, co-existindo com estreita afinidade ao conceito de pecado original,
revelam-se os componentes estruturais de Margareth White. Toda sua conduta
em relação à filha é pautada na simultaneidade desses sentimentos, somados
a um ideal narcísico que, ao ser interrompido nos chamados lapsos de
imagem, conduzem a realidade manifesta para a atmosfera de horror que
apresentamos anteriormente.
A exemplo da realidade de Margareth White, a sociedade cristã foi
sendo constituída carregando a culpa original de geração em geração,
somando ainda a esse sentimento as sensações de punição, dor e vergonha.
No protagonismo de Carrie, A Estranha, a história não é diferente, à medida
que Margareth não transfere esses sentimentos para a filha, como também,
muitas vezes, atribui-lhes a Carrie.
A partir do princípio de transferência da mãe para a filha, retornamos à
existência das duas realidades do universo ficcional e, portanto, nesse
momento, faz-se necessário tentarmos estabelecer uma diferenciação entre
essas duas realidades, a partir dos princípios que regem nossa interpretação
da obra. O relacionamento mãe e filha, ao qual estamos nos referindo por
realidade latente, não é mais do que uma manifestação dos lapsos de imagem
do ideal narcísico de Margareth White. O narcisismo da mãe de Carrie toma
forma para o público por meio do campo simbólico da obra, que aciona
constantemente os princípios perceptivos da audiência. A significação
simbólica de Carrie, A Estranha, configurada de forma a inserir o espectador
na sustentação desse relacionamento, permite uma identificação entre o
público e a realidade latente do filme, causando o chamado efeito de sentido
sobre o qual nos debruçaremos mais adiante. Em contrapartida, essa realidade
impulsiona os movimentos narrativos, sugerindo, assim, uma “diferente
realidade possível”, determinante da realidade manifesta da narrativa ficcional
que, por meio da intersecção desses dois universos, possibilitam a
representação de uma realidade colapsada.
141
Tendo caracterizado os princípios da enunciação da obra, podemos
continuar adentrando os meandros da convivência entre Margareth e Carrie
White, garantindo, assim, as bases para nossa interpretação subjetiva da obra.
Propomos, então, um retorno à teoria maniquéia de Santo Agostinho,
que aprofundou seu pensamento na questão da culpa como um elemento da
alma. Esse pensamento caracterizou-se por difundir a idéia da vontade e do
livre-arbítrio, segundo os preceitos sobre o bem e o mal. Segundo sua filosofia,
a vontade quase sempre se inclina para o mal, embora nela esteja envolvida
grande porção de livre escolha. Sendo assim, a vontade, muitas vezes, pode
estar voltada para o desejo, para a libido, para a luxúria e para o prazer. Em
contrapartida, o livre-arbítrio quase sempre se configura no bem, a partir do
momento em que possibilita a escolha do caminho que vamos seguir, nos
dirigindo ou não pelos caminhos de nossos desejos.
Apesar do pensamento de Santo Agostinho propor uma distinção efetiva
sobre livre-arbítrio e vontade (sobre bem e mal), parece claro que a psique
humana nem sempre consegue destacar suas razões com tal clareza. Estamos
nos referindo a essa difícil conduta humana em separar o bem e o mal, com o
claro intuito de trazermos à baila a confusão em que Margareth White se ao
tentar agir seguindo tal distinção. A mãe protagonista, na ânsia de suprimir sua
vontade, caminhando incessantemente rumo aos princípios do livre-arbítrio,
causa em si mesma uma angústia insuportável, apaziguada por um movimento
pulsional em direção ao campo simbólico, que a afaste das motivações do
pecado original.
Ainda segundo Santo Agostinho, o pecado original desembocará na
questão da morte, pois, para ele, se Adão não tivesse cedido aos seus desejos,
seu corpo teria sido transformado em corpo espiritual e, por conseqüência, ele
não teria envelhecido. Portanto, na concepção cristã da Filosofia Patrística, o
pecado original não só causou a culpa eterna, como também conduziu o
homem para a certeza da morte.
“Se alojamos o pecado original no corpo e dizemos que Adão foi mudado
fisicamente, neste caso é fácil ver como o pecado deve passar de Adão para todos
os homens, por descendência natural. Mas, se o pecado vem da vontade, então
ele começa na alma. Assim, é fácil ver como o pecado original pode se transmitir à
142
alma, se todas as almas derivam da alma de Adão, assim como todos os corpos
humanos derivam de seu corpo.”
(SANTO AGOSTINHO apud FERREIRA NETTO,1998:74)
Mas, conforme podemos observar, a exemplo de Santo Agostinho, a
mulher está renegada à posição de objeto de desejo, no sentido de que a
humanidade foi condenada a perecer, por Eva ter tentado Adão. Não há, na
Filosofia Patrística, assim como em grande parte da doutrina cristã, um outro
caminho feminino, senão o de subserviência, sob pena de revelar-se sobre
“elas” um trágico destino: o de cair em desgraça ao se tornar objeto desejante.
Recai uma das maiores motivações para a culpa de Margareth White,
motivação essa determinante para que a realidade latente conduza os
movimentos narrativos, compondo, assim, a realidade manifesta da obra,
que é dessa culpa sentida pela mãe que Carrie terá seus passos demarcados
na ficção.
No entanto, para tentarmos compreender melhor a angústia de
Margareth White que, conforme afirmamos, é fator determinante na obra, é
necessário afirmarmos que a culpa pelo pecado original recai com mais força
sobre as mulheres do que sobre os homens, pois, para Eva, não houve escolha
ao ter sido criada com as formas tentadoras do pecado. Dessa forma, não cabe
à mulher o livre-arbítrio e, portanto, não há o caminho do bem, restando
somente a elas,sentirem-se a verdadeira razão do pecado do corpo.
Trata-se, portanto, de uma condenação divina, através da qual estão
fundamentados os preceitos da doutrina cristã que pautaram a evolução do ser
feminino por séculos. Talvez daí possamos compreender o movimento
pulsional de Margareth White em direção ao campo simbólico do religioso, na
tentativa de apaziguar sua culpa.
Há ainda uma relação entre essa condenação secular e a tendência
feminina em reprimir seus desejos, percebendo-os como algo sujo, algo
impuro, de natureza permissiva. Quando, enfim, uma mulher se deixa levar
pela fraqueza, entregando-se ao seu trágico destino, o prazer passa a estar
relacionado com a dor que redime a culpa, de forma que a partir desse
momento ela percebe-se autorizada ao gozo, provocado por um mestre eleito,
143
um mais forte, que irá puni-la por meio da dor. Encontramos, portanto, o ponto
fundamental do masoquismo, contraponto para o gozo feminino:
“(...) um desejo de não-desejo. Ou seja, um consentimento em ser o objeto
do desejo do Outro, de ser destituído, pela dor física e moral, de todo e qualquer
resquício de subjetividade.” (FERREIRA NETTO, 1997:162)
Retornamos aqui aos conceitos de angústia e pulsão, abordados por
Maria Inês França, na obra Psicanálise, estética e ética do desejo, como
determinantes para uma delimitação de uma estética – erótica.
O motor propulsor do recalque e do impacto pulsional é a angústia:
plano fundamental constitutivo do sujeito, quando encontra uma relação
possível com o sentimento de culpa relacionado ao desejo.
É a angústia, enquanto representante pulsional afetivo indeterminado e
sem objeto, o motor inquietante de uma ameaça anônima, impossível de
suprimir. Quando essa incessante pulsão afetiva depara-se com um extenso
campo simbólico, no qual a culpa está relacionada ao falicismo, ao desejo de
não desejar, podemos entender que estamos diante de uma forte tendência ao
fanatismo religioso, fenômeno que leva a um forte poder pulsional quando
encontra no sujeito uma resignação em relação à castração e à culpa
depositada no desejo pelo ser ausente em corpo.
Podemos determinar esse panorama como sendo determinante para as
atitudes adotadas por Margareth White na obra ficcional.
O movimento pulsional constante em busca de uma satisfação que não
está relacionada ao desejo, intenta afastá-la do sentimento de perversão, mas,
ao contrário, reforça-o, pois, à medida que a mulher caminha para se destituir
do desejo lascivo, em função do recalque, mais faz emergir sua condição
feminina, conduzindo-a naturalmente para um gozo absoluto, além do falo e
além do homem, um gozo completo, subjetivo. Na tentativa de dissolver o ser
desejante, ela se torna um significado para ela mesma, o ser enche-se de
feminilidade, propiciando um fenômeno, oposto ao masoquista, conforme
afirmou Lacan:
144
“É nisso, justamente nesse fenômeno que aparece o oposto do atual falicismo de
nossa cultura -, que se intui a existência de um Outro gozo. Gozo enigmático, sem
sujeito e sem objeto puro gozo do ser, ao qual Lacan denominou ‘gozo feminino’
(...)” (LACAN apud FERREIRA NETTO, 1997:162)
Em Carrie, A Estranha, a pulsão de Margareth White surge na tentativa
de suprir a falta do outro. Com a intenção de suprimir seu movimento
desejante, ela atribui intenso significado ao campo simbólico, inserindo-se no
real, com o propósito de escapar de sua própria realidade recalcada. Com essa
percepção de que o sujeito se basta a si mesmo, passamos, então, ao conceito
do narcisismo, também apresentado por Maria Inês França, como uma verdade
imparcial do desejo. Trata-se de uma ficção que distingue o eu e o sujeito,
sendo que dessa discordância fundamental surge a estranheza, como forma
que assegura a onipotência imaginária tratada no filme por meio de uma
linguagem subjetiva que procuraremos decifrar a partir dos códigos que a
psicanálise nos oferece e que nos conduzem ao significado do campo
simbólico, por meio do fenômeno da percepção natural.
Cabe aqui, antes de adentrarmos as razões que levam à conduta do
fanatismo de Margareth White, fundamentarmos um pouco mais a questão do
“estranho”, enquanto conceito que, mais à frente, constituirá a estética da
narrativa ficcional presente na trama.
No fenômeno da estranheza, o sujeito está sob a compulsão de atribuir
a seus atos psíquicos um valor absoluto, mas, ao mesmo tempo, ele se coloca
diante de um desejo perdido: a condição de todo-poderoso. O fenômeno do
duplo apresenta a divisão estrutural e a marca significante de duplicidade e
alteridade que determina o sujeito de modo permanente.
A partir da apresentação e resgate de alguns conceitos intrincados com
a questão do erótico feminino, sentimo-nos aptos a tentar elucidar alguns
preceitos da existência da personagem de Margareth White, que a conduzem
por questões primordiais da narrativa ficcional.
Para iniciarmos essa tentativa de elucidação, destacaremos abaixo a fala
de Margareth White (a mãe), em uma espécie de confissão à Carrie White (a
filha):
145
“Eu devia ter me matado quando ele colocou em mim.
Depois da primeira vez, antes de nos casarmos.
Ralph prometeu que nunca mais o faria.
Ele prometeu e eu acreditei nele.
Mas, o pecado nunca morre. O pecado nunca morre.
No começo estava tudo bem, nós vivemos sem pecado.
Dormíamos na mesma cama, mas nunca fazíamos.
Mas, então, naquela noite, eu o vi me olhando daquele jeito.
Nós nos ajoelhamos para orar e pedir força.
Eu senti cheiro de whiskey no hálito dele.
E ele me tomou! Ele me tomou.
Com o fedor do whiskey barato em seu hálito.
E eu gostei. Eu gostei!
Bem, com todas aquelas carícias imundas nas mãos dele em mim inteira.
Eu devia ter entregado você a Deus quando nasceu.
Mas eu fraquejei. E tive uma recaída.
Mas, agora, o demônio voltou.
Nós rezaremos. Nós rezaremos. Nós rezaremos pela última vez.”
Margareth White
Nessa confissão, podemos detectar a enorme culpa recaída sobre a mãe
protagonista, tal qual recaiu sobre Eva. Seu destino fatal de objeto desejante se
concretizou, num rito de desejo que traz o significado da desgraça humana,
estreitando os limites do generalizado e recaindo exatamente sobre ela.
Margareth White não foi capaz de extinguir o desejo do homem: eu o vi me
olhando daquele jeito”. O fruto desse destino, ou seja, a culpa, tomou forma
concreta, tomou a forma de Carrie, assim como a morte de Abel tomou para
Caim. Portanto, para a mãe, Carrie é a concretização do desejo, a
concretização da culpa, no mesmo sentido, a filha é a figura concreta do
recalque, que a leva para o campo pulsional do simbólico.
“ (...) Eu senti cheiro de whiskey no hálito dele.
E ele me tomou! Ele me tomou.
Com o fedor do whiskey barato em seu hálito.
E eu gostei. Eu gostei!(...)”
A partir desse trecho, percebemos as bases fundamentais da questão
do masoquismo, ou seja, a posição de “submissão consentida” que determina
146
as escolhas da vida, isto é, o lugar do sujeito sexual. Maria Escolástica Álvares
da Silva, em seu artigo A ausência da culpa, relaciona a questão do
masoquismo, ou seja, do prazer pela dor, à teoria lacaniana das posições
sexuais do sujeito:
“O conceito de objeto a é o de um lugar de espelhamento do desejo do outro, um
lugar suposto vazio que irá refletir aquilo que o sujeito fálico projeta. Nesse
caso, não importa o sexo biológico. Tudo que conta é a posição subjetiva que um
homem ou uma mulher ocupam na relação com o falo, ou o seu fantasma.”
(SILVA, 1998:125)
É daí que Margareth White faz emergir o grande drama para a conduta
pulsional das protagonistas em direção ao campo simbólico. Sua posição em
relação ao falo é o da submissão, do consentimento. Originariamente, talvez
pudéssemos afirmar que Margareth se permitiria o gozo face ao desejo de seu
mestre, que a toma e que a possui, “com fedor de whiskey barato”, sem
nenhum respeito, ela é apenas o objeto de desejo e gosta de sê-lo, pois seu
prazer está relacionado a uma posição submissa. Nesse movimento desejante,
Margareth White assume um significado, no qual está refletido o desejo do
Outro. No momento dessa confissão, Margareth não significa nada, nem
mesmo para ela, pois a mulher sem o espelho de seu desejo não significa
nada. uma carência profunda, por não significar. A única saída é o registro
do imaginário, no qual a Lei, presente na ausência da figura masculina em si,
obriga-a ao recalque, leva-a à busca incessante por uma completude através
dos símbolos, no caso, os símbolos religiosos.
Nos lapsos de imagem de seu ideal narcísico, Margareth White percebe
que não há mais relação entre seu corpo e o desejo do Outro, restando apenas
a Lei, a palavra presente de um reflexo de desejo ausente. Nesses lapsos de
imagem, surge a pulsão compulsiva, rumo ao fanatismo religioso, que
representa um caminho para o recalque de seus desejos, mas que, quase
sempre, não consegue apaziguar sua culpa: (...) Mas, o pecado nunca morre. O
pecado nunca morre.(...)”
147
“O lapso de imagem traz o retorno do recalcado referido a um para-além-da-
função-da-aparência, pois revela o centro dos olhares, que é de um vazio
deslumbrante, deixando o Eu despojado de todas as suas vestes narcísicas.”
(FRANÇA, 1997:84)
É nesses lapsos de imagem que emerge a cadeia significante de
Margareth White, pois é daí que surge a Horrível nudez do Eu, efeito da
imagem gerador do horror que classifica a obra. A destituição do lapso de
imagem faz revelar à Margareth sua verdade desejante e sua culpa. Inicia-se
então a pulsão em direção ao campo simbólico, significativo para ela mesma e
significativo para seus observadores, no caso a audiência que passa a atribuir
significado à realidade latente da personagem por meio dos signos intrínsecos
ao seu ideal narcísico.
Nessa nudez narcísica que ocasiona o vazio determinante do ser,
manifesta-se a angústia da realidade, uma verdade indesejada contraposta à
imagem desejada. Ao cair o véu do ideal narcísico, não resta mais nada,
somente o olhar da morte.
“Eu devia ter me matado quando ele colocou em mim.
Depois da primeira vez, antes de nos casarmos.
Ralph prometeu que nunca mais o faria.
Ele prometeu e eu acreditei nele. (...)”
Com base no trecho acima, podemos tentar relacionar um outro ponto
fundamental para as bases psicológicas que conduzem Margareth White ao
movimento pulsional em direção ao campo simbólico. Essa característica está
relacionada à Fala.
Conforme denotado no trecho, Margareth tenta transferir as bases de sua
culpa no Outro, por não ter conseguido fazer o pecado morrer”. Mas essa
tentativa de transferência pode estar baseada na própria vontade de Margareth
em recalcar o desejo do Outro, no sentido de não mais enxergar nela as formas
do pecado. Sendo assim, a palavra do ser oposto desejante passa a significar
a espera pela resposta ao desejo de não desejar, pois a palavra, em termos
psicanalíticos, implica um buraco de silêncio em que cada locutor espera em
vão a palavra justa que corresponderia a seu desejo. “Por essa razão, a fala
148
sub-tende o desejo e a castração, pois um outro corpo é necessário para
assegurar o corte do qual o sujeito se desprende e se recobra.”
27
Assim, segundo Freud, a fala tem a capacidade não de contar
(lembrar), mas, acima de tudo, de enunciar (provocar efeito de sentido).
Portanto, a partir dessa função de produzir efeito de sentido,
conseqüentemente, a fala articula-se ao desejo que, segundo Lacan, é o “único
sentido”, é o fim da linha do sentido não-senso, ou seja, do sentido sexual.
“É esperada a interpretação: a enunciação oferece um dizer aberto ao campo da
verdade (de estrutura); a fala se distingue assim da linguagem porque cobre o
campo da verdade singular, ao passo que esta cobrirá o da lei.”
(LACAN apud KAUFMANN, 1996:189)
Portanto, é possível interpretarmos a afirmação de Margareth White, em
relação à promessa feita por seu “marido”, como sendo o caminho para a
constituição do eu ideal, ideal do eu como forma em relação ao que está no
outro, instalando o desejo como desejo do outro no plano imaginário e como
desejo do Outro no plano simbólico. A promessa traduzida pela fala do outro é,
senão, para Margareth White, a transferência da culpa por o ter conseguido
manter seus desejos recalcados, seu gozo reprimido.
A credibilidade que Margareth atribuiu à fala do outro, a ponto de tentar
transferir sua culpa a ele, por não ter cumprido sua promessa, pode ser
relacionada ao ímpeto de atacar o impossível objeto de desejo por meio do
sonho e da fantasia. A função da fala é atribuída à estrutura construída entre o
outro imaginário e a constituição do objeto de desejo: “ela vai se estender de
um significante da fala (o traço unário) ao objeto que supostamente a completa
(o objeto de desejo)”. Segundo Lacan, não há na fala traços definitivos de
verdade ou mentira, sendo que, dessa forma, podemos entender que
Margareth atribuiu um significado conveniente para si ao discurso do outro.
“A fala verdadeira opõe-se assim ao discurso, a verdade de ambos se distinguindo
pelo fato de a primeira constituir o reconhecimento pelos sujeitos de seus seres na
27
KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise: O legado de Freud e Lacan.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1996.
149
medida em que estão inter-essados nisso, ao passo que a segunda é constituída
pelo conhecimento do real, na medida em que ele é visado pelo sujeito nos
objetos”. (LACAN apud KAUFMANN, 1996:190)
O fato de Margareth tentar convencer a filha de que só sucumbiu aos seus
desejos porque o pai não foi capaz de manter sua palavra, traz à tona uma
possível intenção da mãe de Carrie em suplantar sua culpa e,
conseqüentemente, justificar-se à filha, demonstrando que sua conduta em
relação ao desejo é correta e que poderia ter sido mantida, senão pelo fato de
o pai não cumprir sua palavra. Para tentarmos exemplificar o poder do
discurso de Margareth sobre Carrie, traremos o mito da horda primitiva de
Freud, sob a ótica de Maria Madalena de Freitas Lopes, em sua tese de
doutorado intitulada Como as mulheres amam: uma leitura semiótico-
psicanalítica do amor feminino.
28
“O mito da horda primitiva de Freud também descreve a contenção da energia
energia sexual que permitiu que os filhos se reunissem e assassinassem o Pai.
Neste mito, o pai gozava das mulheres do grupo e impedia seus filhos de
gozarem. Após sua morte, o Pai se legitimou como símbolo, como Lei. Perdeu-se
com isso o gozo da natureza, o gozo dos instintos.” (LOPES, 2002:39)
Logo adiante, tentaremos estender um pouco mais o significado do discurso da
mãe para Carrie White, relacionando-o ao Édipo Feminino.
“Eu devia ter me matado quando ele colocou em mim.(...)
Eu devia ter entregado você a Deus quando nasceu.
Mas eu fraquejei. E tive uma recaída.”
Nas entrelinhas desse trecho do discurso de Margareth White à filha, é
possível detectarmos um movimento rumo à pulsão da morte, como única
forma para o esquecimento e para o silêncio. Essa pulsão significaria para a
mãe a possibilidade de redimir sua culpa, silenciar sua vergonha. Para
Margareth, a busca pela morte não basta somente para si, pois a mãe se
28
Tese de doutorado defendida em 2002, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC/SP, sob orientação de Lúcia Santaella.
150
identifica e projeta na filha o seu recalque e sua culpa. Logo, a única maneira
de silenciar seu passado de pecado é não somente buscar sua própria morte,
como também causar a morte da filha, como meio de aniquilar por completo a
continuação de sua existência pecadora, após a sua morte. Portanto, essa
pulsão de morte, suscitada pelo desvelamento do ideal narcísico, caracteriza-
se pelo retorno do recalcado ao sofrimento.
“Há nesse funcionamento psíquico dois modos de atuação, pulsão de morte e
pulsão de vida, que revelam dois princípios. A pulsão de morte está estritamente
vinculada ao princípio nirvânico (além do princípio de prazer) e a pulsão de vida
vincula-se ao princípio de constância (princípio de prazer e de realidade).”
(LOPES, 2002:152)
Novamente, retornamos à questão do fanatismo religioso de Margareth
White. Na busca pelo recalque de seus desejos, ela se volta constantemente,
em um movimento pulsional, ao campo simbólico que a ajuda reafirmar seu
ideal narcísico. No lapso de imagem, desvela-se o olhar para a morte.
O simbolismo religioso, que se revela cada vez mais forte no decorrer da
narrativa ficcional, permitindo assim a percepção da realidade latente como
dispositivo para o relacionamento entre mãe e filha, tem sua gênese na
fraqueza de Margareth ante a realidade: “(...) Eu devia ter entregado você a
Deus quando nasceu. Mas eu fraquejei. E tive uma recaída.” Esse momento
faz sua culpa crescer, tanto por não ter levado a cabo a atitude natural do
universo real de seu ideal narcísico, quanto por ser obrigada a conviver com a
concretização de seu pecado, que a insere num moto constante entre sua auto-
imagem e sua realidade.
Ainda, a origem do fato que se deve silenciar pela morte está na
significação do que ele colocou em mim”. Ou seja, a origem desse fato está
intricada com a significação do falo.
“O falo na doutrina freudiana não é uma fantasia, se por isso devemos entender
um efeito imaginário. Como tal, não é tampouco um objeto (parcial, interno, bom
ou mau, etc.) na medida em que este termo tende a apreciar a realidade
interessada numa relação. Muito menos ainda é o órgão, pênis ou clitóris, que ele
simboliza”. (KAUFMANN, 1996:194)
151
A referencia ao falo como o que ele colocou em mimreflete o que,
para Margareth, pode ter representado o hiato entre seu ideal narcísico e seu
Eu, entre seu real e sua realidade, exaltando seu lado desejoso, seu lado
feminino, contraposição mortífera à sua ausência de desejo narcísico. O falo
como algo “colocado em mim” fornece à percepção uma significação global do
campo simbólico da obra, fazendo com que ele assuma uma significação
correspondente à negação da significação do falo que representa, acima de
tudo, a transformação da figura de Margareth White em mulher desejante em
função da falta que a constitui.
É a partir dessa figura de mulher desejante que Carrie toma ciência da
dimensão da identificação entre ela e a e. Esse compreender da realidade
que toma conta de Carrie diante do discurso confesso da mãe. A atitude de
Carrie, nesse momento é, pela primeira vez, pedir para que a mãe a abrace, no
âmbito da realidade manifesta da obra.
“É a esta forma de estrutura que a mulher é relançada na problemática específica
de sua identidade. É através dela da imagem de outra mulher que ela sabe de
sua existência. Esta dimensão primordial da identificação é independente da
questão sexual, pois é anterior ao complexo de Édipo. Versa, portanto, a
dimensão egóica.” (LOPES, 2002:40)
Então, surge a questão do Édipo Feminino. Freud, na descrição do Édipo
Feminino, menciona o ressentimento da menina em relação à e. Ela se
ressente com sua e por ela não ter lhe dado algo que também ela o tem
para lhe dar: o falo. Decaem mãe e filha em suas castrações. As filhas
constatam que não foram amadas.
“Seus apetrechos femininos, por um lado, lhes garantem feminilidade
narcísica. Serem desejadas em sua feminilidade é maior garantia do que esta
tem valor. Indo pedir ao pai este reconhecimento, confronta-se com o
impedimento materno: o pai é desta mulher que é sua mãe na complexidade
de seu Édipo Feminino.” (LOPES, 2002:42)
152
Colocamos aqui a questão do Édipo Feminino, pois consideramos que
Carrie está diante de um aprendizado, tal qual o aprendizado infantil, se
levarmos em consideração que até pouquíssimo tempo (na realidade ficcional),
sua vagina ainda era ignorada, em função do desconhecimento de seu papel
como objeto de desejo. Portanto, somente a partir do momento que Carrie
passa a perceber o lugar do falo que se encarna na figura do pai, na medida
em que ele faz parte do desejo da mãe é que o falo passa a significar para ela,
na exata medida em que Margareth White revela-se sua imagem de mulher
marcada pelo desejo do falo.
Nesse ponto, faz-se necessário retomarmos o desenvolvimento da
narrativa ficcional, para buscarmos esclarecer as circunstâncias nas quais a
mãe de Carrie decide revelar à filha as razões de seu recalque, num ápice de
sofrimento emergido da brecha entre o real e a realidade da mãe.
A motivação de Margareth White para tal atitude refere-se a um
acontecimento do universo narrativo do filme, ou seja, um componente da
realidade manifesta da obra. Estamos nos referindo, aqui, ao momento em que
Carrie White teve sua primeira menstruação na escola e, diante de sua
completa ignorância sobre sua condição de feminilidade, foi humilhada pelas
colegas. Sua e, ao ser informada sobre o ocorrido, perde o controle sobre
seu ideal narcísico, ao projetar na filha a culpa de seu desejo, pois, para a mãe,
Carrie não foi capaz de ignorar seu desejo de suprir a falta. Sendo assim, para
Margareth, Carrie está fadada a incorrer no mesmo erro de Eva, isto é, no
mesmo erro que a própria e cometera ao se submeter ao seu desejo como
reflexo do desejo do outro.
Para Carrie, a primeira menstruação representa a possibilidade de
distinção entre a ignorância em relação à vagina e a significação que o falo
passa a ter para ela. É a partir dessa consciência sobre sua condição feminina
que Carrie se volta contra a mãe por não aceitar a culpa depositada nela pela
ausência do pai, negando-se a sucumbir ao recalque impingido pela mãe e
pelas colegas, a partir da humilhação no vestiário. Carrie parece querer lutar
para manter sua condição de mulher.
Essa luta velada entre os sentimentos de e e filha pautam o relacionamento
e a ligação entre as duas, dando forma à realidade latente do filme
representada pelo campo simbólico. No entanto, essa simbologia está a
153
serviço da manifestação narrativa que conduz o espectador pela trama
ficcional. A justaposição dessas duas realidades forma o universo diegético
que, ao buscarem a sinestesia desses elementos, ativam o fenômeno
perceptivo, propiciando a identificação entre obra e público.
154
II. Estética do “estranho” desejo
Por diversas vezes, afirmamos que o filme Carrie, A Estranha é uma
obra cujo processo criativo está focado na concepção estética, sendo que
essa, por sua vez, se manifesta como representação simbólica do
protagonismo do filme, presente no relacionamento mãe e filha. Afirmamos
ainda que a estética fílmica, empregada com a função de significar, gera efeito
de sentido, propiciando a identificação da obra com o público espectador à
medida que suscita significados e sensações de uma realidade consciente não
colapsada.
A partir desse momento, tentaremos desvelar os pontos fundamentais
dessa estética como sendo uma estética do “estranho” desejo, identificada com
os parâmetros do desejo e da culpa femininas, apresentadas no item anterior,
mas que, acima de tudo, são determinantes para os sentidos da obra como um
todo, incluindo o sentido de horror a que o filme se propõe.
Esse desvelamento interpretativo partirá de uma análise subjetiva
apoiada fundamentalmente nos conceitos da psicanálise, muitos deles sob a
ótica de Maria Inês França na obra Psicanálise, estética e ética do desejo.
Deixaremos, portanto, ao largo dessa análise as características técnicas da
obra, por entendermos que, ao estarem voltadas para o movimento narrativo
ficcional, elas não estão relacionadas aos princípios dessa estética que
estamos denominando do “estranho” desejo, apesar de, certamente, serem
fundamentais para a construção do universo diegético.
Para iniciarmos nossa análise interpretativa, apresentamos o conceito
de Freud sobre a estética relacionada às qualidades do sentir:
“A estética é abordada por Freud em Das Unheimliche
29
, como a teoria das
qualidades do sentir. Caminhando junto com o pensamento freudiano neste texto,
interpretamos que, ao colocar o efeito da surpresa da estranheza inquietante como
29
Das Unheimliche é um texto de Freud datado de 1919. A palavra é uma conjunção de um
adjetivo alemão heimlich com seu antônimo unheimlich. Heimlich tem seu significado relacionado ao
“familiar”, enquanto que unheimlich significa algo “secreto”, “escondido”, “tenebroso”, “dissimulado”.
Assim, esses dois significados, quando unidos, trazem à tona o sentido de “sobrenatural”, relacionado a
algo assustador, porém familiar que se revela. Portanto, a definição de Unheimliche é O estranho-
familiar”, por referir-se a algo que emerge de dentro do próprio ser.
155
um ramo “central da estética”, o que é posto em jogo é o enigma da semelhança
como o avesso da diferença, o que inclui uma duplicação: o igual e o familiar
aliado a um equívoco, cuja estranheza implica a promessa infinita do idêntico
aliada a uma sinistra ameaça.” (FRANÇA, 1997:133)
A partir dessa definição conceitual sobre as qualidades do sentir,
sentimo-nos aptos a definir a questão da estranheza como elemento
constituinte da estética do Belo/Horrível.
Todo sujeito é impulsionado pela força do desejo em suprir uma falta, num
incessante movimento desejante que, quando suprimido pelos ideais
narcísicos, sublima a condição do “estranho-familiar”.
“O confusionamento próprio do fenômeno do Unheimliche, que se traduz na
expressão estranheza familiar, vem afirmar que nada se parece mais íntimo em
nós do que aquilo que é mais estranho.” (FRANÇA, 1997:132)
A estranheza familiar emerge do ser recalcado. Portanto, o “estranho”
contrapõe, ao mesmo tempo em que completa, os desejos reprimidos quando
esses se libertam por meio dos lapsos de imagem do ideal narcísico, ou seja, o
estranho é a face inquietante do desejo que vem à luz. É nessa falha do
imaginário, nessa fissura do ser entre o ideal narcísico e o Eu, que o belo e o
horrível se misturam. Em Carrie, A Estranha, essa mistura configura-se na
estética do Belo/Horrível, como simbólico das inquietudes das protagonistas.
O Belo, por sua vez, tem a função de representar o desejo. É o Belo que
sustenta o imaginário e o faz falhar, ou seja, o Belo oculta e desvela o Horrível
ao mesmo tempo.
Assim, podemos afirmar que o imaginário falha em sua função de barrar
algo que não se pode ser. É daí que surge o Horrível, se apresentando como
algo estranho, inapreensível, que emerge para logo escapar na função do Belo,
porém provocando angústia, à medida que esse revela o desejo reprimido.
Em Carrie, A Estranha, conforme os movimentos narrativos conduzem
Carrie para sua condição feminina na realidade manifesta da obra, mais
Margareth White se diante do Horrível, concebido por meio das formas de
seus desejos reprimidos, constituintes da realidade latente. Pouco a pouco, as
falhas do imaginário de seu ideal narcísico vão tornando-se freqüentes, sempre
156
acompanhadas de intensa angústia —sentimento característico da irrupção do
imaginário no simbólico—, carregando a personagem para uma finitude, ou
seja, para a pulsão da morte. Portanto, Margareth, diante de seus lapsos de
imagem, permite a fluidez da angústia que, por ser um sentimento de afeto
indeterminado e sem objeto, revela o desamparo da personagem diante da
ameaça de destruição do próprio ser. Paralelamente, Carrie tenta libertar-se da
castração da mãe.
É a partir desse conflito entre imaginário simbólico e realidade
consciente de Margareth e de Carrie White que a concepção estética de
Carrie, A Estranha está fundamentada, pois o campo simbólico da obra que
intenta fazer possível a compreensão do que há na brecha entre o inconsciente
e o Eu das personagens principais. É a partir da concepção de uma estética do
Belo/Horrível que o dispositivo perceptivo é acionado, possibilitando que o
simbólico das duas personagens seja apreendido pela audiência.
“A angústia suscitada na produção artística é similar na produção psicanalítica,
pois efeito produzido não garante a produção de um novo efeito. Ou seja, a obra
criada é um efeito transitório, instantâneo. O que quer dizer que o efeito é causado
pelos tropeços no real, em uma origem perfeitamente desconhecida.”
(FRANÇA, 1997:136)
Do esclarecimento sobre os princípios fundamentais da estética do
Belo/Horrível, partiremos para uma análise subjetiva dos momentos primordiais
da existência das personagens protagonistas que, ao serem determinantes
para o enunciado do protagonismo fílmico, acabam por geram a completude da
estética do desejo.
Iniciaremos pelo momento determinante da configuração de Carrie: o
momento em que ela toma consciência de sua feminilidade.
Na seqüência destacada abaixo, podemos detectar a angústia
desvelada pelo afrontamento com a realidade do Eu, no momento exato da
transição entre o imaginário e a realidade da personagem.
Até esse instante, Carrie via-se submersa em uma condição de
aprendizado quase infantil, no qual o havia brecha para a compreensão de
seu movimento desejante. Por conseqüência, ao ser mantida nesse estado,
157
não havia para ela um desvelamento do desejo sexual, que sua condição
infantil a mantinha na completa ignorância em relação ao seu corpo feminino e
à significação do falo. Essa condição, causada pelo recalque da mãe, reprimiu
os desejos da filha até o instante em que ocorre o ápice de uma brusca
descoberta sexual. Contraditoriamente, acreditamos que Margareth White, ao
manter sua filha alheia à essa condição sexual na tentativa de reprimir os
desejos da filha, acabou causando a ausência da culpa, pois Carrie, pelo
menos até aquele momento, não havia deparado-se conscientemente com o
sentimento de culpa.
No entanto, essa era a condição ideal de Carrie, pois, conforme
podemos observar nas imagens abaixo, encontra-se submersa em Carrie a
condição para uma sexualidade feminina, incluindo-se sua relação com a
significação com o falo. Dessa brecha entre o ideal e a realidade, surge o
campo simbólico constituinte da estética do desejo presente na obra.
Essa transição da ignorância para o conhecimento está representada
pelos elementos que compõem o espaço fílmico, garantindo a unicidade da
significação por meio da percepção. Observemos as imagens abaixo:
Seqüência para análise 8 – O RENASCIMENTO DE CARRIE
(1) (2)
(3) (4)
(5) (6)
158
Nas imagens um e dois, os movimentos sensuais do corpo de mulher estão
encobertos pelo vapor do chuveiro, isto é, estão encobertos pelo véu do ideal
imaginário, que impede essa condição de sensualidade feminina saltar aos
olhos da adolescente infantilizada, ao mesmo tempo em que permite à
percepção do observador espectador, compreender se tratar de uma condição
simbólica que passa despercebido somente aos olhos da personagem. O
enunciado da cena é definitivamente completado pelo chuveiro em
primeiríssimo plano, jorrando um fino jato de água sobre os seios da garota, à
frente da cortina de vapor. No campo simbólico da estética do desejo,
compreendemos que a mulher (que se imagina menina), em sua brecha entre o
imaginário e o real (representada pelo espaço fílmico), é capaz de suscitar
no sexo oposto um desejo incontido, trazido à tona pela forma poética do pênis
em pleno gozo diante das belas formas femininas.
as imagens três a seis, nos revelam o fenômeno da queda do
imaginário, por meio de um lapso de imagem, um efeito surpresa que,
inevitavelmente, causa uma intensa angústia no ser defrontado com seu Eu.
Nessas imagens, acompanhamos a transição de Carrie de menina (imaginária)
para uma mulher (real) constituída em seu desejo.
A primeira menstruação de irrompe sua condição imaginária,
carregando-a para a realidade. Surge então a angústia diante do “estranho-
familiar”, pois a sua feminilidade mantida oculta pelo campo simbólico
resplandece diante dela mesma e diante das colegas de escola. Carrie se
angustia, pois está diante de algo que deveria ser suprimido, inicia-se, então,
sua pulsão à morte, representada no filme pela certeza de que ela tem de que
está morrendo.Na verdade, quem está morrendo é o ideal narcísico constituído
a partir do recalque da e e Carrie recusa-se a aceitar essa estranha
condição de sujeito desejante.
159
Esta manifestação da realidade latente da personagem está
contemplada na realidade manifesta da narrativa pela tendência da
personagem em acreditar em sua própria morte. Essa manifestação é um
desvelamento de um entendimento secreto das intensidades pulsionais
antagônicas, em que um arcaico ao tempo de origem de constituição do sujeito
apresenta seu duplo aspecto libidinal e mortífero. Este encontro mediatizado é
da ordem da indizível angústia, única testemunha do enigma originário, por isso
a necessidade veemente de estar presente na seqüência de transição de
Carrie.
“Ao sublinhar a irrupção do imaginário no simbólico presentificando o real,
pretendemos demonstrar a articulação do Belo ao Horrível no aspecto que desvela
a relação do ser com sua finitude.” (FRANÇA, 1997:133)
Permeando a relação da finitude do ser e a pulsão da morte, está o
Horrível como materialização do “estranho”, no instante da aparição súbita para
a percepção, como que vinda do exterior e que promove uma movimentação
intensa no psiquismo. Essa movimentação está relacionada à realidade latente
que, para ser perceptível na representação ficcional, apóia-se nos elementos
estéticos em uma configuração que sustenta o valor do imaginário por meio do
fenômeno do Belo, mas que não descarta seu valor transitório para a finitude
do ser, portanto, não descarta o Horrível.
Essa configuração estética de valor imaginário, portanto Belo, e ao
mesmo tempo de valor transitório, portanto Horrível, alicerça os movimentos
narrativos, atribuindo a cada cena um valor enunciativo em relação ao
protagonismo do filme.
Assim, como afirma Freud, o prazer estético revela os limites da
realização narcísica que, no caso de Carrie, A Estranha, a impulsiona para a
morte pelos lapsos de imagens, cada vez mais constantes a partir do início da
transição de Carrie.
160
“Esta visão do Belo que excede, porque mostra a insistência pulsional, apresenta
o conflito como permanente e revela os efeitos de sublimação na cultura, é o que
dá subsídios para o discurso estético sobre um corpo inserido traumaticamente na
linguagem e que escapará sempre da marca do significante”
(FRANÇA, 1997:137)
No caso específico da personagem Carrie White, a justaposição
sinestésica de suas realidades - latente e manifesta -, ocorre por meio de uma
contraposição simbólica. Essa contraposição salta da imagem para a mente
interpretante, inserindo-nos na subjetividade de Carrie White em todos os seus
momentos, desde sua castração até a libertação do reprimido, momento esse,
aliás, em que ela se torna, literalmente, o objeto de horror na trama ficcional.
Portanto, podemos afirmar que a fascinação exercida pela estética do
estranhamento refração do momento de transição e, portanto estética do
Belo/Horrível -, estabelece uma relação indicial com a subjetividade da
personagem, pois, podemos considerar que o contraste sígnico que a envolve,
nos fornece índices da fantasia do reprimido, que ao se relacionarem com a
mente interpretante geram o efeito de sentido.
Imagens para análise 3 – CONSTRASTE SIMBÓLICO DE CARRIE WHITE
(1) (2)
(3) (4)
161
Para a personagem Margareth White, o prazer estético está intrincado
com os lapsos de imagem entre seu ideal narcísico e sua realidade recalcada.
A explosão estética das cenas que envolvem a personagem, representam a
emersão do “estranho-familiar”, portanto, são genuinamente Belo/Horrível.
Constantemente, no universo diegético, a personagem flutua pelo campo
subjetivo, dando forma à concepção estética com um rico “material” para a
mente receptora, estabelecendo uma relação constante entre obra e
espectador, à medida que ao representar a transição da personagem do real
para a realidade perpassa pela culpa (imaginária primeiridade), pela dívida
(simbólica – secundidade) e pela morte (real- terceiridade).
Imagens para análise 4 – LAPSOS DE IMAGEM
(1) (2)
(3) (4)
(5) (6)
162
A riqueza de recursos empregada na obra deve-se à necessidade de
representar simultaneamente duas realidades paralelas a realidade manifesta,
proveniente da narrativa ficcional e a realidade latente, calcada no
relacionamento entre mãe e filha.
A partir desse conceito de composição do universo diegético, o qual
exploramos anteriormente, podemos entender que Carrie, A Estranha,
sublima a realidade subjetiva das personagens, a partir de sua concepção
estética.
Mas, conforme pudemos verificar, a geração de efeito de sentido é muito
mais convincente ao simbolizar a transição entre imaginário e real, por qual
passam as personagens. Temos, então, a concepção da estética do
Belo/Horrível que nos fascina, justamente, por nos apresentar a familiaridade
do desejo reprimido, trazido à tona pela simbologia idealizada no narcisismo de
Margareth White e no renascimento para a condição feminina de Carrie White.
Desse diálogo constante entre símbolos e significação que completam o
enunciado fílmico é que a realidade latente sobressai-se gerando no
espectador a identificação com o drama do protagonismo da obra.
163
II. Metacinema para o gozo feminino
Metacinema refere-se ao cinema construído a partir do diálogo com
outras áreas, sejam elas culturais, científicas ou religiosas, em prol da geração
de efeito de sentido.
Dessa forma, o metacinema, tal qual estamos delimitando, com um
escopo de produto consumível, e por isso mesmo concebido como dispositivo
para a geração de sentido no espectador, interfere na própria natureza
cinematográfica com propósito de se destacar como objeto estético.
Com esse propósito estético, uma obra cinematográfica passa a dialogar
com a fenomenologia da percepção, à medida que sua intencionalidade passa
a gravitar entre a consciência e seus conteúdos. Dessa forma, sua estrutura
enquanto objeto estético tem como característica imanente tornar-se acessível
ao campo fenomenológico, ou seja, tornar-se um tipo de objeto que nunca
perca seu frescor significativo, renascendo em sua terceiridade a cada mente
interpretante com a qual se dialogando. Conseqüentemente, essa estrutura
de objeto estético acaba por se identificar tanto com as coisas da natureza,
quanto com as coisas subjetivas.
Conforme afirmado diversas vezes, nossa interpretação do objeto
estético Carrie, A Estranha, busca aprofundar a significação do universo
diegético, distinguindo a funcionalidade dos critérios estruturais das técnicas
narrativas, bem como dos elementos simbólicos componentes da imagem.
Assim, procuramos corroborar a teoria de que no universo diegético duas
realidades justapostas e que só podem atuar simultaneamente no aparato
perceptivo porque são concebidas a partir da sinestesia dos elementos que
compõem esse universo, sendo essa, justamente, a característica que permite
à obra ser denominada como um objeto estético com capacidades
representativas e significativas.
É possível, ainda, afirmarmos que a intenção de duplicação de realidade
presente na obra é responsável pela possibilidade enunciativa de cada imagem
do filme: cada quadro, ou seja, cada cena do filme, é capaz de significar, tendo
todas elas em sua gênese a função de efeito receptivo. Seria possível,
inclusive, uma análise a partir da semiologia em busca do valor enunciativo
164
textual em cada uma delas. Mas, efetivamente, essa não é a intenção desse
estudo.
No entanto, salta-nos aos olhos o diálogo constante desse metacinema
com a função metalingüística, na qual os códigos interagem com a linguagem
poética, contribuindo para o fortalecimento da recepção estética. Essa
recepção estética nos permite tratar a obra como um conjunto de significados
globais, num processo de comunicação estética cujo múltiplo significado se
revela determinado em igual medida pelo cineasta, pela obra e pelo receptor.
Nesse sentido, em busca de sua significação global na representação de
uma realidade o colapsada, mas que é suscetível de fazer brotar
sentimentos numa simbiose consciente entre obra e receptor, Carrie, A
Estranha, busca um diálogo profundo para a concepção do campo estético,
trazendo à tona a realidade latente das personagens, que, de outra forma, não
poderiam significar, estando o protagonismo do filme reduzido a uma
capacidade de apenas sugerir.
O principal diálogo estabelecido pelo metacinema é com a religião e, por
conseqüência, com a arte. Essas duas manifestações caminham juntas desde
o início da produção intelectual humana, mas esse diálogo em Carrie, A
Estranha é essencial para a existência da obra, na medida em que o
movimento pulsional de Margareth White rumo ao fanatismo religioso é peça
fundamental para a realidade latente do filme. No entanto, é dessa antiga e
bem sucedida relação entre esses dois termos que esse diálogo parece-nos
tão bem sucedido quando empregado na obra, conforme explicita Flávio
Cuniberto, em um verbete sobre a arte e a religião, escrito para o Dicionário
de Estética:
“Entre a religião e a arte subsiste, desde os primórdios da sociedade humana, uma
relação muito estreita, quase uma simbiose. A religião atrai a arte para a esfera do
sagrado. Por seu lado, a arte assumiu a tarefa de manifestar em formas sensíveis
os conteúdos da experiência religiosa.” (CARCHIA, 2003:303)
Desse diálogo, nascem algumas das mais veementes manifestações
estéticas de Carrie, A Estranha, conforme tentaremos explicitar abaixo. Mas,
parece-nos extremamente oportuno chamarmos a atenção para a natureza do
165
Belo, presente em cada um dos quadros, mas que, ao mesmo tempo, revelam
o Horrível do ideal narcísico de Margareth White. Esse desvelamento da
realidade latente está representado na obra pela estreita ligação dos elementos
de cena com a arte e a religião.
Para nos debruçarmos em uma análise interpretativa sobre esse diálogo
será inevitável adotarmos uma atitude estruturalista paralela à fenomenológica,
no sentido de que algumas técnicas cinematográficas fornecem o suporte para
a significação simbólica.
Iniciaremos nossa análise do diálogo no metacinema pela relação entre o
jogo de sombras utilizado no ambiente da sala das White, com as obras do
realismo barroco que priorizavam o drama humano e, exatamente por isso,
geraram obras com extraordinária obscuridade trazida pelo contraste entre
claro e escuro. Wendy Beckett, em sua obra História da Pintura, apresenta
um sucinto, mas bem claro, panorama do período barroco:
“Barroco, uma palavra portuguesa que significava ‘pérola irregular, com
altibaixos’, passou bem mais tarde a ser utilizada como termo desfavorável para
designar certas tendências da arte seiscentista. Hoje, entende-se por barroco
uma orientação artística que surgiu em Roma na virada para o século XVII,
constituindo até certo ponto uma reação ao artificialismo maneirista do século
anterior. O novo estilo estava comprometido com a emoção genuína e, ao
mesmo tempo, com a ornamentação vivaz. O drama humano tornou-se
elemento básico na pintura barroca e era em geral encenado com gestos
teatrais muitíssimo expressivos, sendo iluminado por um extraordinário claro-
escuro e caracterizado por fortes combinações cromáticas.”
(BECKETT, 1997:172)
166
Imagens para análise 5 – SALA DA CASA DE MARGARETH E CARRIE WHITE X VOCAÇÃO DE SÃO
MATEUS
Cena em que a mãe recebe um telefonema da escola.
Essa cena dará início aos acontecimentos que sucederão a
seqüência e que serão definitivos para o desenrolar dos fatos
primordiais da trama.
Caravaggio - Vocação de São
Mateus (c1593), 328 x 348 cm.
Michelangelo Merisi Caravaggio foi um dos artistas que mais marcaram
o estilo barroco, tendo sido o protagonista ximo das polêmicas
antimaneiristas que cultuavam os rígidos modelos pictóricos renascentistas.
Alguns de seus quadros foram recusados pelo clero, em função de seu
realismo pejorativo e, entre eles, encontra-se o da imagem anterior: Vocação
de São Mateus, de 1593, pintado para a capela de San Luigi dei Francesi,
considerado irreverente e sem o decoro exigido pela Igreja da época.
Sem revelar as críticas sofridas pelo pintor em sua época, advindas de
várias partes e por motivos distintos, para efeito desse trabalho, nos valem
algumas características imanentes nas obras de Caravaggio que, claramente,
influenciaram a obra de Brian de Palma, muitos séculos depois.
A Igreja católica do século XVII, principalmente na Espanha e na Itália,
estava em clima de militância e Contra-Reforma. Em decorrência dessa fase,
havia uma pressão feita pela Igreja aos artistas, para que esses buscassem um
realismo a mais convincente possível. Mas, Caravaggio foi além, e, refutando a
rígida normatividade das regras, o pintor de histórias, como ficou conhecido, foi
muitas vezes incompreendido. Para Caravaggio, a pintura tratava
sumariamente de uma repentina e impetuosa ultrapassagem do tempo
167
histórico, em que tudo é resolvido, para o tempo existencial
30
. Partindo desse
princípio, Caravaggio era capaz de pintar sob apenas um facho de luz cenas
atemporais que, apesar de representarem momentos distintos em uma história,
poderiam ser colocadas debaixo de um mesmo drama, inseridos em uma
mesma cena.
Com sua obra, Caravaggio adentrava, então, os limites do real,
suprimindo a relação espaço-tempo em construções artísticas que, apesar de
buscarem uma representação fiel da realidade, utilizando um realismo quase
afrontoso, se distanciavam do olhar natural, buscando a proximidade com a
ficção, condensando momentos distintos sob o facho de um mesmo instante
perceptivo. É possível verificarmos esse traço de ficção na constituição cênica
da imagem destacada de Carrie, A Estranha.
Uma das características mais marcantes da obra de Caravaggio que parece ter
influenciado na iluminotécnica das imagens internas da casa é o ambiente
enclausurado, envolto por uma atmosfera pesada, melancólica e, por vezes,
malévola. Os tons utilizados na composição da cena estão intimamente
relacionados ao contraste proposto por Caravaggio na obra Vocação de São
Mateus. Um olhar mais atento poderá verificar que, inclusive, a luz que tenta
invadir o ambiente escuro através dos vidros da única janela, ambas as cenas
têm como predominância a cor laranja. Ainda, como ponto em comum entre as
duas imagens, temos as marcas das sombras que invadem as paredes
obscurecidas pelos tons escuros. Pelas sombras imaginamos tratar-se de
grandes janelas, mas que não podem ser avistadas pelo ângulo selecionado
nas imagens.
No âmbito cenográfico, uma clara divisão das influências sofridas no
processo criativo empregado no campo da representação. Assim, nos
elementos de cena, podemos perceber referências ao estilo gótico e ao estilo
barroco. O estilo gótico, presente na arquitetura dos ambientes internos da
casa, nos permite concretizar os aspectos psicológicos compulsivos de
Margareth White, pois, nos momentos em que mãe e filha estão em contato,
sob o pano desse cenário, as convicções religiosas de Margareth White
30
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão. Ensaios sobre o Barroco. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 213
168
sobrepujam qualquer indício de vontade própria da filha. É inserida nesse
cenário que a mãe acredita ser a única fonte de salvação de Carrie.
os objetos de cena, que complementam o ambiente da casa, são
concebidos sob a influência do estilo barroco, por permitir o realismo dos
objetos, particularmente das imagens, de forma que o ambiente permaneça
carregado de simbologia, mas com uma beleza agonizante, também
representativa das facetas psicológicas da mãe.
Assim, a concepção estética do ambiente familiar está intrinsecamente
comprometida com o objetivo de reforçar os aspectos psicológicos,
fundamentais para o protagonismo do filme. Esse papel da cenografia é um
dos principais elementos técnicos utilizados na obra, que nos permite ter
contato com as duas realidades paralelas, de forma que o universo diegético
seja constituído com em prol da experiência cinematográfica multisensorial
perceptiva.
Primeiramente, tentaremos comprovar essa tendência, a partir da
análise de um dos objetos cênicos, apresentado abaixo:
169
Imagens para análise 6 - O REALISMO BARROCO DOS ELEMENTOS DE CENA
Imagem de Cristo que se encontra no minúsculo e sombrio quarto de reza da casa das
White. Essa imagem tem uma importância essencial no campo simbólico da obra,
exatamente por isso, ela retorna, insistentemente, como elemento principal dos
enquadramentos de cena.
Velázquez - Cristo na Cruz
(c1632), 248 x 169 cm.
Caravaggio Sepultura de
Cristo (c1602), 30 x 203 cm.
Morazzone – São Francisco
em êxtase. Milão, castelo
Sforza.
Esse objeto de adoração ocupa um lugar de destaque no referido quarto
de reza e, na primeira vez que temos contato com ele, Carrie não está somente
ajoelhada diante da imagem, mas está transferindo sua diretamente para
ele.
A aparência dessa imagem o é exatamente a difundida pela Igreja.
nela um realismo extremo, baseado no estilo barroco, no entanto, com uma
certa dose de horror, influenciada pela agonia transparecida na feição da
imagem.
Essa agonia latente é possível de ser sentida graças à estranha
vivacidade que emerge dos olhos, contrapondo a mórbida inação do corpo
esculpido, estarrecedoramente com as formas humanas.
170
Contribuindo ainda mais para a estranha beleza estética da imagem, o
cabelo naturalmente desgrenhado, denota um sofrimento duradouro.
As flechas que causam sangramento no corpo da imagem saltam aos
olhos e expandem o espaço de dor reservado a ela. As flechas não foram
retiradas, ainda estão ali, causando dor, trazendo um sofrimento latente como
se tivesse começado a um instante apenas.
A sensação de sofrimento trazida pela imagem é possibilitada pela junção
dos elementos que convergem para um realismo extremo. Reparando os
quadros selecionados de Caravaggio e Velázquez, esse último também um
importante artista do movimento, podemos perceber a mesma intenção trazida
pelos traços que compõem os corpos padecidamente definidos, envoltos pela
escuridão vinda do fundo negro, que traz à tona a agonia e o sofrimento da
face, tal qual faz o fundo de onde se encontra a imagem no filme.
A obra São Francisco em Êxtase nos permite quase tentar uma
transcrição da feição agonizante, estampada na imagem do filme e na feição
de São Francisco, de Morazzone.
A imagem agonizante de Cristo assume um papel importante no campo
estético representativo da realidade latente, pois, possivelmente, sua
relevância recorrente nos enquadramentos de cena possa ser justificada pela
extrema adoração que as personagens, principalmente Margareth White,
depositam nela. Talvez a supra importância dada à imagem possa ser
traduzida pela transferência de sofrimento, ou seja, pela possibilidade de
salvação da própria mãe, que para ela, o sofrimento representa a única
possibilidade de salvação, daí a auto-flagelação praticada. Assim, a resignação
frente à agonia e o sofrimento estampado na imagem, possa relembrá-la de
sua condição desejada.
com relação ao ambiente interno da casa, os planos gerais utilizados
para descrevê-los, reafirmam o exagero dos elementos ligados à questão
religiosa, representativos do fanatismo da mãe. No entanto, esse exagero
propositado acaba gerando um ambiente belo, apesar de carregado e sombrio,
permitindo a fixação do espectador diante do quadro, em busca da
compreensão total do contexto. Talvez possamos afirmar, que em face dessas
duas imagens, estejamos diante da sinestesia proposta por Eisenstein, na qual
o relacionamento mãe e filha é abordado por meio de uma experiência
171
multisensorial das questões psico-religiosas, que nos é proporcionada pelos
elementos cênicos, combinados com a luz, o movimento de câmera, a
interpretação e o figurino das personagens.
Além da grande quantidade de detalhes cênicos, temos na própria
arquitetura da casa a reafirmação simbólica do contexto religioso. É possível
percebermos que claras referências ao estilo gótico, característico das
construções religiosas do período posterior à chamada “Idade das Trevas” que
representou, exatamente a fase triunfante do cristianismo que parece estar
encarnada no fanatismo da personagem da mãe.
Imagens para análise 7 – A INFLUÊNCIA GÓTICA DA ARQUITETURA CENOGRÁFICA
Plano geral da sala de Carrie e Margareth
White. Reprodução da arquitetura gótica,
apresentada pelo equilíbrio dos arcos ogivais,
ambiente único e iluminação predominante
vinda do “vitral” ao fundo.
Projeto de catedral gótica,
com o estilo que buscava a
austeridade decorativa e
grandiosidade do espaço.
Ambientes únicos
conseguidos com imensas
naves favoreciam a reunião
de grandes massas de fiéis,
enquanto os característicos
arcos ogivais apontavam
para céu, em perfeito
equilíbrio arquitetônico.
Catedral de Notre-Dame
(1920). Exemplo clássico da
primeira fase do período gótico.
equilíbrio entre todos os
elementos que compõem os
três corpos verticais separados
por maciços contrafortes.
ainda uma divisão horizontal
que contempla os portais, a
galeria real e a rosácea, além
da galeria alta e das torres.
Corte transversal da catedral
de Bourges (1195). As naves
laterais apresentam uma
altura crescente, em um claro
sentido ascensional e um
considerável efeito de
amplitude espacial, mesmo
que a iluminação interior não
seja intensa.
172
O plano geral utilizado na cena apresentada acima, refuta a teoria sobre
esse tipo de plano, defendida por Eisenstein. Essa teoria declara o plano geral
como capaz de fornecer somente um ponto de vista absorvido por meio da
realidade, portanto, sem muito valor artístico. No entanto, a manipulação das
técnicas utilizadas nessa seqüência de Carrie, A Estranha, busca, justamente,
um certo conforto na interpretação simbólica à medida que fornece o ponto de
vista usual da realidade.
Dessa forma, o enquadramento utilizado nessa cena tenta reproduzir o
olhar humano frente aos templos religiosos, especialmente os do cristianismo,
construídos também com a função do admirar. Ao contemplarmos esse tipo de
arquitetura, naturalmente, buscamos uma visão geral, a partir do centro,
tentando captar o equilíbrio entre os elementos, sem que percamos nenhum
detalhe. Assim, a posição do enquadramento da sala reflete o posicionamento
do observador em relação ao templo de pregação de Margareth White,
reafirmando a busca pela transformação e sinestesia na experiência
interpretativa multisensorial da primazia religiosa no relacionamento entre as
protagonistas.
Ainda, a marcação da personagem em cena, busca relacionar a
condição da mãe naquele momento ao papel de um verdadeiro sacerdote que,
posicionado no centro do altar e envolto pelo equilíbrio dos elementos
ornamentais, se prepara para empunhar a Escritura e proferir a Palavra. Esse
cuidado no emprego das técnicas cinematográficas na construção dessa cena,
reflete a necessidade de reforçar o elemento fundante da percepção da mãe
ante a filha, pois ao aludir a um templo religioso, contribui para o entendimento
de que a mãe se considerada, naquele exato momento, um sacerdote que ao
se preparar para o sermão, salvará a filha de seus pecados carnais.
Após estabelecermos uma análise calcada na possibilidade
interpretativa dos elementos nicos compostos sinestesicamente dentro do
espaço fílmico, com a intenção de atribuir valor perceptivo em relação à
realidade latente das personagens, podemos retornar à questão intrínseca
desse diálogo, típico do metacinema na geração de efeito de sentido.
É nesse enunciado no qual a linguagem e os códigos trabalham juntos
que as seqüências que acabamos de destacar cumprir seu papel de geração
173
de efeito de sentido, efeito este que atinge seu ápice em outro momento crucial
de Carrie, A Estranha: a morte das protagonistas na realidade ficcional.
Em termos do gênero cinematográfico, o aniquilamento dos objetos de
repulsa representa o triunfo do bem contra o mal, ou seja, representa o castigo
merecido para aquele que simboliza o perigo. No caso de Carrie, A Estranha
esse castigo ocorre de forma cíclica, correspondente às condições da realidade
subjetiva das personagens que, interagindo uma com a outra e com seus ideais
narcísicos, constroem as características psicológicas que denotam o horror na
obra. No entanto, para efeito de audiência da realidade manifesta, o
aniquilamento do mal ocorre exatamente por “ordem grandeza”, ou seja, pela
qualidade de terror e repulsa que a personagem é capaz de causar.
Carrie apesar de ser objeto de horror na trama, é também a personagem
reprimida e, portanto, merecedora de uma certa simpatia por parte da
audiência, portanto ela início à derrocada do horror ficcional, para
restabelecimento da ordem natural da realidade. De fato, Carrie consegue se
vingar de todos aqueles que a humilharam durante a narrativa. A seqüência do
baile, permite que o espectador entre em contato com a fantasia do olhar
fulminante, ou seja, aquele capaz de literalmente matar a todos que nos fazem
mal. Em seguida, Carrie consegue uma vingança particular e quase simbólica
contra Chris Hargensen e, por último Carrie livra-se de sua mãe que, na
narrativa ficcional representa a razão para sua fúria reprimida. No entanto, a
própria Carrie é ameaçadora da condição de paz na narrativa, portanto sem
sua morte, não seria possível retornar à condição da ordem natural. Mesmo
assim, há o eterno retorno dos mortos, típico das narrativas do gênero.
Mas, para efeito de nossa análise interpretativa calcada na teoria
psicanalítica, a morte de Margareth e de Carrie White assume uma outra
possibilidade perceptiva. No âmbito dessa análise, o ápice atingido com a
morte das protagonistas, principalmente da mãe está relacionado ao gozo
feminino, o qual apresentamos anteriormente nesse estudo como sendo o
contraponto do masoquismo, particularidade presente no lapso de imagem de
Margareth White, em decorrência de sua submissão em relação ao falo.
O gozo feminino está relacionado à condição ontológica da mulher, em
uma espécie de ornamentação capaz de preencher um vazio. Mas, a mulher
também é símbolo da falta que equivale ao falo, em seu fundamento simbólico.
174
Essa questão aparece em Margareth em seu imaginário simbólico como
objeto de desejo capaz de preencher o vazio do Outro. Essa dimensão trágica
do narcisismo feminino, intrincado em Margareth, faz com que a mulher rejeite
o essencial de sua feminilidade, na alucinação de ser o próprio falo, significante
do desejo do Outro, mas “ela não pode se manter nessa posição – é impossível
-, uma vez que figura como falo, aprisionada no olhar desejante do homem”.
(LOPES, 2002:249).
A imagem do corpo feminino, ou seja, a relação da mulher com sua
feminilidade, é apreendida pelo viés do olhar de um homem. Para manter essa
imagem, para amá-la, ela precisa deste olhar e de seu amor. Dessa forma ela
se identifica com o desejo do homem. No entanto, para Margareth esse desejo
masculino está relacionado ao que deve ser oculto, ou que deve ser secreto.
Seu ideal narcísico está para além do prazer, está para o desejo do Outro.
Quando sua feminilidade representada por aquele homem que ocupou o vazio
do desejo do Outro, ela se depara com o estranho, com o familiar que quando
emerge a impulsiona para a morte.
ainda a questão do amor, o qual Freud começou a conceber como
narcísico, ou seja, o ser humano se ama no outro, por meio de uma estrutura
imaginária do eu e do objeto de amor. Para Lacan o amor implica na função da
falta que reside dentro do objeto, falta essa sempre na origem do desejo,
sempre concernente com o movimento desejante na busca por suprir a falta,
mesmo que seja referida a uma falta simbólica, para além de si mesmo. Nesse
sentido, para Margareth White o amor ao Outro representa sua própria carência
de significado em relação ao outro, ou seja, para ela o amor pode não se tratar
da busca por um objeto concreto, mas sim por um objeto trabalhado pelo
significante, algo perdido em sua própria significação subjetiva.
Dessa forma, Margareth White passa a viver o amor também em seu
ideal narcísico, algo que parece ser inconcebível, pois o imaginário cobre o
real, no sentido de que ele passa a ressaltar o drama da identificação, ou no
caso da mãe de Carrie, o drama da o identificação, que o reflexo do
desejo do outro permanece recalcado.
A partir dos atos insubordinados de Carrie, em relação à tentativa da
mãe em transferir sua castração a ela, os lapsos de imagem de Margareth
White passam a ser cada vez mais constantes. É nessa transição entre
175
imaginário e real que emerge o Horrível, encarnado na pulsão de morte da
mãe. Mas, essa pulsão permanece contida pelo vazio do desejo do Outro, de
forma que, sob a coerência do imaginário narcísico, Margareth transfere esse
impulso mortífero para a filha, assim como faz com sua castração e sua culpa.
Ainda no âmbito do ideal de Margareth, a necessidade de suprimir a figura do
pecado, ou seja, a concretização de sua culpa Carrie -, aparece como
condição fundamental para a sublimação de seu movimento constante rumo ao
preenchimento do vazio do desejo do outro. Daí surge a enorme satisfação em
aniquilar o pecado (imaginário), aplacar sua culpa (real), ou seja, apunhalar sua
filha Carrie até a morte.
Imagens para análise 8 – ANIQUILANDO O PECADO
(1) (2)
No entanto, lembrando que ainda baseados em nossa possibilidade
interpretativa, Carrie permanece determinada em o ceder à angústia da mãe
e, encontra-se incluída nessa insubordinação a determinação de “não morrer”,
pelo menos pelas mãos de sua mãe, tomada pelo desejo de sublimação de seu
ideal. Carrie, portanto, revolta-se e encontra nessa atitude a possibilidade de
definitivamente libertar sua feminilidade que, a aquele momento, estava
sendo veementemente castrada por sua mãe. Com esse propósito, a filha
(Carrie) mata a mãe (Margareth).
Mais uma vez, estamos diante de uma diferente possibilidade
interpretativa através da qual a morte de Margareth White adquire um outro
contexto no efeito de geração de sentido. Retornamos à questão da geração de
sentido, pois estamos diante de mais um diálogo proposto pelo metacinema
para exacerbar a capacidade de significação do enunciado fílmico. Para
176
estabelecermos os parâmetros do diálogo arte-religião, destacamos as
imagens abaixo:
Seqüência para análise 9 – A SUBLIMAÇÃO DO IDEAL NARCÍSICO – O “GOZO MÍSTICO
(1) (2)
(3) (4)
No momento da sublimação de seu ideal narcísico, que consiste em
ocupar o vazio do desejo do Outro, ideal esse pelo qual ela foi impulsionada
aos rituais religiosos em resposta à angústia de se deparar com seu desejo
reprimido, Margareth White o está morrendo, ela está em êxtase em um
gozo simbólico para além do prazer, para além do falo.
Estamos diante do ápice proporcionado pelo metacinema permeado
pela simbologia da arte e da religião, nos desvelando a mais pura significação
do que vem a ser a estética do Belo/Horrível.
Faremos aqui uma referência ao Êxtase de Santa Teresa D’Ávila
31
,
como complemento importante na elucidação do diálogo do metacinema.
31
O Êxtase de Santa Teresa foi esculpido pelo arquiteto-escultor italiano Bernini, no século XVII.
177
Figura 2 – SANTA TERESA D’ÁVILA
Santa Teresa contara que um anjo lhe trespassara o coração com uma seta de
ouro flamejante: “A dor foi tão intensa que gritei; mas ao mesmo tempo, senti uma
tão infinita doçura que desejei que a dor jamais acabasse. Não foi uma dor física,
mas mental, embora afetasse também, de alguma maneira, o corpo. Foi a mais
doce carícia da alma por Deus.” (CEIA, 2002:37)
uma clara referência na sublimação do ideal de Margareth em preencher o
vazio do Outro, com o que Lacan chama de “gozo místico”, da ordem do
indizível, da ordem de um "mais além" da linguagem.
“Há um gozo dela, desse ela que não existe e não significa nada. um gozo dela
sobre o qual talvez ela mesma não saiba nada a não ser que o experimenta isto
ela sabe. Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não acontece a
elas todas. (...) Para a Hadewijch em questão, é como para Santa Tereza basta
que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que
ela está gozando não dúvida. E do que é que ela goza?É claro que o
testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o
experimentam, mas não sabem nada dele.” (LACAN, 1985:103)
178
Podemos interpretar as imagens abaixo como sendo a concretização do
desejo do Outro em Margareth. Retornamos à imagem, principal objeto de
adoração da casa, na qual o semblante de sofrimento incessante, está refletido
nas feições da própria Margareth, resplandecendo em sua redenção.
Imagens para análise 9 – IMAGEM DE MARGARETH
(1) (2)
(3) (4)
O sentido do “gozo místico” de Margareth reflete na realidade manifesta
no desespero de Carrie ao perceber o que havia acabado de fazer com seus
poderes, ou com sua capacidade consciente de colapsar uma “diferente
realidade possível”. No âmbito do gênero fílmico, o gozo da e, ou aqui seria
melhor afirmarmos a morte da mãe, acaba por gerar a necessidade do castigo
esperado para o objeto de repulsa. Portanto, na narrativa ficcional Carrie deve
morrer. E, é exatamente isso que acontece quando Carrie caminha para sua
própria morte. Num ato de extrema compaixão para com o público, Carrie
abraça sua mãe e a carrega para o quarto de reza, de onde espera sua própria
morte, provocada pelos seus poderes de fazer com que a casa desabe sobre
elas.
No entanto, acreditamos ser possível uma outra interpretação que
continuidade à subjetividade latente das personagens. Nesse espectro de
análise, Carrie abraça sua mãe, movimentando toda sua força consciente de
179
manipulação real para uma morte simbólica, ou seja, para um retorno ao ventre
materno, de onde, em uma condição de inércia, ela finalmente poderá se
libertar, poderá fluir sua condição de feminilidade. Abraçada à sua mãe ela faz
desmoronar por sobre seus corpos de mulher objeto de desejo -, qualquer
resquício do que a reprimia, qualquer ritual religioso, qualquer símbolo
denotativo do ideal de sua mãe, Carrie, queima os indícios da realidade para
renascer numa condição simbólica, sublimando seu desejo de libertação.
Imagens para análise 10 – A LIBERTAÇÃO DE CARRIE
(1) (2)
Ao determinar sua condição simbólica, Carrie transforma seu intenso
movimento desejante numa analogia à trama ficcional. Colapsando sua
“diferente realidade possível”, ela transcende a realidade física, reafirmando
seus poderes, mesmo depois de morta na realidade manifesta da obra.
Seqüência para análise 10 – A TRANSCENDÊNCIA DE CARRIE
(1) (2)
Diante do pesadelo do retorno de Carrie, a personagem título reafirma o
sonho de imortalidade feminina por meio fenômeno cinematográfico. Essa
imortalidade simbólica liberta o mais puro efeito de sentido colapsado pela
significação do metacinema. A significação de um sonho refletido em Carrie, A
Estranha que, ao ser envolvido por uma estética do estranhamento, torna-se
ao mesmo tempo Bela, ao mesmo tempo Horrível.
180
Considerações finais
Estética cinematográfica do “estranho” feminino em Carrie, A
Estranha foi o título empregado nessa dissertação de mestrado que
compreendeu estudos relacionados à estética cinematográfica como dispositivo
de geração de efeito perceptivo, fundamental para a identificação da obra com
o público feminino.
A interpretação do fenômeno cinematográfico na obra, envolveu uma
análise calcada no enredo filmográfico, a partir dos princípios da física
quântica, que nos ajudou a destinar uma participação crucial da visão individual
de mundo do receptor/observador.
Outra teoria que nos acompanhou durante nossa possibilidade
interpretativa foi a teoria da percepção, como base fundamental para a
significação do campo simbólico da obra.
Por último, as teorias da psicanálise forneceram as bases para que
pudéssemos compreender as questões imanentes ao protagonismo do filme,
geradores de efeito de sentido, por meio da esfera estética de Carrie, A
Estranha. As teorias da psicanálise, que nesse estudo não foram empregadas
com o intuito clínico, foram de extrema importância na interpretação dos
enunciados imagéticos, à medida que nos possibilitou a aproximação na
subjetividade, em um filme de terror, que mobiliza o espectador no sentido do
despertar para a realidade do inconsciente, que conforme afirma Lacan, é
estruturado por meio da linguagem.
A linguagem constituída por códigos e signos representativos da
realidade e enunciadores da subjetividade humana, permitiu que
adentrássemos no campo analítico-interpretativo que, apesar de
fenomenológico pelo frescor de sua significação, nos consentiu o
dimensionamento dos valores enunciativos de cada imagem, de cada cena do
filme, à medida que compreendemos essa interpretação como sendo,
justamente, o que atribui ao filme um valor artístico, já que os receptores, assim
como nós, contribuem com experiências para atribuir-lhe significado.
Ainda como contribuição para a interpretação dos enunciados a que nos
propusemos, destacamos os recursos técnicos como suporte para a
manifestação dos fenômenos da receptividade à medida que propiciam a
181
manifestação sinestésica dos elementos do campo imagético, determinantes
para a representação da realidade.
Estética cinematográfica do “estranho” feminino em Carrie, A
Estranha ofereceu uma abordagem fenomenológica subjetiva, a partir de
alguns conceitos psicanalíticos, seguindo os passos de alguns teóricos como
Pierce que reconhecem socialmente o valor sígnico das produções do
inconsciente e, também como Christian Metz, que compreende a impressão da
realidade trazida pelo cinema como fruto da interação entre a atividade mental
e as propriedades físicas brutas da imagem cinematográfica, pois cada imagem
contém inúmeros índices de realidade.
A metodologia teórica da pesquisa constituinte desse estudo, foi de
extrema importância, uma vez que alguns conceitos da psicanálise nos eram
desconhecidos. Ainda essa fundamentação teórica nos possibilitou
implementar uma análise interpretativa do filme baseada na realidade latente
das personagens, como motor propulsor para os movimentos narrativos da
realidade manifesta, por meio do jogo das imagens proposto pelo cineasta.
Entre os principais resultados desse estudo, destacamos os seguintes:
1- os princípios da física quântica como fatores determinantes para que
observador percebesse a realidade representada na obra como uma
“diferente realidade possível”, colapsada por meio do fenômeno
cinematográfico;
2- os conceitos da teoria da percepção como informação advinda do
mundo exterior fundamental para a significação da obra, a partir da rede
simbólica individual de cada mente interpretante;
3- as quatro categorias de análise psicanalíticas (Narcisismo, Angústia,
Pulsão e Desejo), como motores propulsores da subjetividade do
relacionamento mãe e filha;
4- os elementos estéticos componentes do espaço fílmico, dispostos
sinestesicamente, em busca de uma significação multisensorial, na
representação da realidade latente do protagonismo do filme;
5- os recursos técnicos como base para a manifestação dos movimentos
narrativos do universo diegético, impulsionado pela subjetividade do
relacionamento mãe e filha;
182
6- a principal característica do gênero horror que, ao necessitar de um foco
gerador de repulsa, destina à Carrie e à Margareth White o adjetivo de
criatura ameaçadora da ordem natural, por meio dos sentimentos que
essas geram nos outros personagens da trama ficcional;
7- a conceitual da estética do Belo/Horrível como sendo aquela que possui
valor significativo ao concretizar o momento de transição entre ideal
narcísico e realidade, na qual emerge o “estranho-familiar”;
8- a compreensão dos diálogos estabelecidos pelo metacinema em prol da
geração dos efeitos de sentido, que conferem à obra o valor de objeto
estético.
Por fim, afirmamos que a Estética cinematográfica do “estranho”
feminino em Carrie, A Estranha, nos possibilitou a compreensão da
relação fenomenológica entre cinema e receptor, aprofundando os
meandros desse afã comunicativo por meio dos conceitos quânticos,
perceptivos e psicanalíticos, nos fazendo pensar na continuidade desse
projeto em outra instancia conceitual do expressionismo alemão que,
certamente, nos fornecerá motivos para indagações.
183
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