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Parecendo se contradizer, Montaigne afirmou que o seu
pensamento estava em constante movimento de acordo com o
devir, o que evidenciava a impossibilidade humana de obter,
conforme seu pensamento, o conhecimento das coisas e de si
mesmo, além das aparências
208
.
O fato é que esse idealismo referente à figura de La Boé-
tie não foi, pela fortuna do amigo, posto à prova, face à abrevi-
ação do comércio pelo seu falecimento. Embora houvesse dis-
sensões políticas
209
, não houve tempo
210
para, por que não di-
208
AZAR FILHO, Celso Martins. Acerca do Naturalismo de Montaigne. O
que nos faz pensar (Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio),
nº 8, 1994, p. 28-38.
209
LACOUTURE, Jean. Montaigne a Cavalo. Trad. F. Rangel, Editora Re-
cord, Rio de janeiro, 1998, p. 87/92: “Na região de Agenais, a tensão não
pára de aumentar, pois os protestantes invadem igrejas e conventos, in-
clusive o dos dominicanos, quebrando imagens e relíquias. A Corte não
pode deixar passar tal ofensa; entretanto, fiel a sua política apaziguado-
ra, decide enviar para o local dos distúrbios um chefe militar conhecido
por sua moderação, Charles de Coucy, senhor de Burie, lugar-tenente do
rei na região da Guyenne desde 1558 [ajudado por La Boétie, que enca-
minharam a missão] (...) Burie e La Boétie encaminham a missão (setem-
bro-novembro de 1561) de tal maneira que a calma retorna às margens
do Garona, graças sobretudo à iniciativa audaciosa que tomam: nas loca-
lidades onde existem duas igrejas, a menor será reservada aos reforma-
dos; naquelas onde só existia uma, esta seria colocada à disposição dos
dois cultos, que se revezariam (...). Eis portanto La Boétie na dianteira
de uma tentativa política audaciosa. (...) o momento de paz ainda não
chegara (...) quando os “radicais” do partido católico provocam nova rup-
tura (...). A resposta protestante toma formas militares em todo o país,
sobretudo na Guyenne: enquanto Bordeaux é invadida (em vão) pelas
tropas de Duras, Bergerac é tomada pelas de Clermont. O parlamento de
Bordeaux vê-se obrigado a recrutar milícias para conter tais investidas e
escolhe alguns de seus membros para administrá-las ou limitar seus ex-
cessos. Entre eles, o antigo pacificador transformado em chefe de guer-
ra, Étienne de La Boétie. Essa mudança de papel, que é muito comum em
períodos conturbados, teria provocado no amigo de Montaigne uma mu-
dança de caráter que o teria levado a se arrepender de suas atitudes de
1561 e de seu papal de defensor da tolerância, de precursor da coexis-
tência? Com as esperanças destruídas, como é muitas vezes o caso dos
pacifistas, ter-se-ia tornado um homem raivoso, condenando suas atitudes
fracassadas? [a existência de um “Relatório sobre a Pacificação das Re-
voltas”, cuja autoria teria sido atribuída, embora existam teses, a La Boé-
tie, fez com que comentadores de sua obra discutissem a mudança radical
de opinião de La Boétie] que de apóstolo da coexistência em 1561 trans-
formou-se, um ano depois, em defensor do pluralismo. (...) A religião ca-
tólica não poderia ser reformada, na França, sem violência nem rebelião,
reelaborando alguns sacramentos, proibindo algumas práticas? Não po-