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Universidade Gama Filho
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Mestrado em Filosofia
Carlos Magno Siqueira Melo
O CETICISMO DE MICHEL DE MONTAIGNE
NO ENSAIO DA AMIZADE
Rio de Janeiro, dezembro de 2005
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Carlos Magno Siqueira Melo
O CETICISMO DE MICHEL DE MONTAIGNE
NO ENSAIO DA AMIZADE
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia da
Universidade Gama Filho como parte dos re-
quisitos necessários à obtenção do tulo de
mestre em Filosofia.
Orientador: Prof. Dr. Edson Peixoto Resende Filho e Prof. Dr. Celso Martins Azar
Filho (co-orientador)
Rio de Janeiro
2005
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Melo, Carlos Magno Siqueira.
O ceticismo de Michel de Montaigne no ensaio Da Amizade /
Carlos Magno Siqueira Melo. 2005.
170 f.: il.
Dissertação (Mestrado em Filosofia) Universidade Gama Fi-
lho, Rio de Janeiro, 2005.
Orientador: Edson Peixoto de Resende Filho;
Co-orientador: Celso Martins Azar Filho
1.Michel de Montaigne. 2.Amizade. 3.Filosofia - Teses. I. Filho,
Edson Peixoto de Resende; Filho, Celso Martins Azar (Orient.).
II. Universidade Gama Filho. Programa de Pós-Graduação em
Filosofia. III. Título.
Para minha Ilda Maria e minha Diou companheiras de to-
do o sempre. Para o melhor amigo que alguém poderia ter
e, que, nessa vida, por acaso, foi minha mãezinha Ione.
Em memória.
Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de
justiça, enquanto são justa elas necessitam da amizade;
considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma
disposição amistosa. (Aristóteles, EN, VIII, 1)
Resumo
Abordamos, nessa dissertação, o ceticismo de Michel de Montaigne no
seu ensaio sobre a amizade. Todavia, não constitui o objetivo específico dessa
pesquisa, exaurir a questão do ceticismo, servindo-nos, apenas, para demons-
tração de uma leitura diversa acerca do móbil do ensaísta ao dissertar sobre o
tema da amizade. Nesse sentido, ao analisarmos o ensaio Da Amizade, cons-
tante do Capítulo 28, do Livro I, procuramos evidenciar as certezas absolutas,
dele paradoxalmente existentes, que parecem negar todo o ceticismo inerente
ao pensamento montaigniano, no intuito de apresentarmos a nossa tese sobre
o móbil de Montaigne em enaltecer o seu amigo Etienne de La Btie. Traba-
lhamos, então, o ceticismo do ensaísta; a sua análise, extremamente crítica,
dos tipos de amizade, pela qual restringe a incidência do termo amizade, tor-
nando-a inatingível, o que acaba por excluir, dentro desse conceito ímpar, as
diversas formas de relacionamento; e as divergências entre o pensamento do
ensaísta e de seu amigo La Btie. Embora o objetivo primordial de Montaigne
fosseviver adequadamente, o que pressupõe liberdade, inclusive de expres-
são, procurou indicar, numa ética utilitária, a educação e o relacionamento en-
tre os concidadãos, semelhante ao da amizade, como meios propícios à convi-
vência pacífica na sociedade. Porém, dentro da sociedade francesa renascen-
tista do século XVI, governada pela monarquia absolutista e pelos dogmas da
Igreja, nem todas as questões, mormente as político-religiosas, podiam ser dis-
cutidas de modo liberal, o que nos levou, nessa dissertação, a perceber o en-
saio Da Amizade como uma estratégia de Montaigne para atingir outro fim,
além de simplesmente relatar um possível relacionamento, como apontam os
demais comentadores dos Ensaios.
Palavras-chave: amizade, ceticismo, ensaio, moral, Montaigne.
Abstract
I cope, in this dissertation, with the skepticism of Michel de Montaigne in his
essay on the friendship. HoIver, it does not constitute the specific objective of
this research to close the question of skepticism, but to demonstrate a different
possible reading concerning the mobile of the essayist as he writes on friend-
ship. This way, by analyzing the essay On Friendship, I have sought to point
out the absolute certainties which paradoxically dIll in it and which seem to
deny the whole skepticism inherent in the Montaignian thought in order to pre-
sent our thesis on the Montaignes mobile to praise his friend Etienne de La
Btie. I have therefore worked on the skepticism of the essayist: his extremely
critic analyses of the kinds of friendships shrink the possible uses of the con-
cept, what turns it unattainable leading to the exclusion of many a way of rela-
tionship and the divergences between the essayists and his friend La Bties
thoughts. Although Montaignes main purpose was to live properly, that pre-
supposes liberty, including liberty of expression, he tried to show in a utilitarian
ethics the education and the relation among the citizens, similar to the those to
friendship, as good means to a pacific life in society. However, in the Renais-
sance French society of the XVI Century, ruled by the absolutist monarchy and
by the dogmas of the Church, not all the questions, especially the politic-
religious ones, could be freely discussed, which led me to notice the essay On
the Friendship as a Montaignes strategy to achieve another scope beyond the
bare report of possible relations as some commentators point out.
Key words: friendship, skepticism, essay, moral, Montaigne.
Résumé
Nous faisons face, dans cette dissertation, au scepticisme de Michel de
Montaigne dans son analyse au sujet de lamitié. Cependant, il ne constitue pas
l'objectif scifique de cette recherche épuiser la question du scepticisme, mais
seulement, montrer une lecture divers au sujet du mobile de Montaigne
quand il écrit sur l'amitié. De cette façon, en analysant De l'Amit, nous
essayons de montrer "les certitudes absolues" qui paradoxalement y
demeurent et qui semblent nier tout le scepticisme inhérent à la pensée de
Montaigne, dans l'intention de présenter notre tse sur les mobile de
Montaigne pour louer son ami Etienne de La Btie. Nous travaillons, donc, le
scepticisme de l'essayiste: son analyse, extrêmement critique, de types d'amitié
qui limite l'incidence de l'amitié, en la faisant inaccessible; ça finit par exclure, à
l'intérieur de ce concept, ses divers formes de rapport; et les divergences entre
le pensé de lessayiste et de son ami La Btie. Bien que l'objectif primordial de
Montaigne était "vivre en juste proportion", en présupposant liberté, inclusive de
lexpression, il a cherc à indiquer dans une éthique utilitariste léducation et la
relation parmi les citoyens, comme dans lamitié, comme moyens propices pour
le convivium pacifique dans la société. Cependant, à l'intérieur de la société
française renascentiste du XVI siècle, régie par la monarchie absolutiste et pour
les dogmes d'église catholique, ni toutes les questions, principalement les
politicien-religieux, ont pu être discutés de la manière libérale. Cela nous a
conduit à consirer le Essai De l’Amit comme une «stratégi de Montaigne
pour atteindre une outre but au delà de le simple rapport de relations comme
quelques commentateurs de les Essais indiquent.
Mot-clef: amitié, scepticisme, analyse, morale, Montaigne.
Sumário
Resumo/Abstract/Résumé
Introdução
10
I O ceticismo em Michel de Montaigne
24
a. Do cético 24
b. Do ceticismo montaigniano
27
II Formas de amizade no ensaio Da Amizade
38
a. Amizade e vínculo natural 45
b. Amizade e amor-paixão 48
c. Amizade e demais relacionamentos
60
III Amizade Perfeita, fundada na virtude
65
a. O problema ético de Montaigne, relativo à Amizade Per-
feita
71
b. Problemas e Limites da Amizade Perfeita 78
c. Soluções possíveis para os problemas da Amizade Per-
feita
87
IV La Boétie e Montaigne, amigos perfeitos?
93
a. La Boétie e as possibilidades da Amizade 93
b. Do móbil de Montaigne em dissertar sobre a Amizade 106
V Concluo
116
Referências
127
a. Obras de Montaigne 127
b. Estudos e Ensaios sobre Montaigne e sua obra 129
c. Outras obras 139
d. Dicionários 146
Anexo
148
10
INTRODUÇÃO
Que sçay-je?
1
. Essa indagação demonstra, para a grande
maioria dos estudiosos da obra montaigniana, o ceticismo de
Michel de Montaigne (1533/1592), que, após séculos de certe-
zas governamentais e religiosas, procurou dentre os antigos
2
,
resgatar seus valores pois entendia que os costumes de sua
época estavamextremamente corrompidos, pendendo, com ex-
trema inclinação, para a deterioração
3
, a ponto de obscurecer
nossos jugamentos eis quetambém estão afetados e acom-
panham a depravação de nossos costumes
4
.
1
MONTAIGNE, Michel de. Apologie de Raimond Sebond; introduction de
Samuel Sylvestre de Sacy, Collection Idées, NRF, France: Éditions Gal-
limard, 1967, p. 211.
2
MOREAU, Pierre. Montaigne, o homem e a obra, texto inserto in Ensaios
1, trad. Sérgio Milliet, Editora Universidade de Brasília, Hucitec, 2ª ed.,
1987, p. 38: “(...), um senso da hierarquia espiritual em que a Antiguida-
de ocupa o primeiro lugar. Antes dos clássicos do século XVII, Montaigne
considera indiscuvel essa superioridade dos antigos sobre os moder-
nos”.
3
MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios, III, 13; trad. Rosemary Costhek
Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 485.
4
MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios, I, 37; trad. Rosemary Costhek Abí-
lio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 344.
11
Na realidade, quando Montaigne, em seus Ensaios, se
perguntou o que sabe, pôs em dúvida suas próprias conclu-
sões, o que poderia, no mínimo, sugerir aos seus leitores num
primeiro momento, que o seu pensamento apresentaria inúme-
ras contradições e incoerências. Porém, o que a indagação
constantemente formulada pelo ensaísta apresenta, na realida-
de, é a posição cética por ele adotada.
Embora a análise do ceticismo montaigniano não seja o
objetivo específico da presente dissertação, importante se faz a
sua breve apreciação uma vez que ele serviu de esteio a todo o
comportamento do autor, por ele narrado em seus Ensaios, nu-
ma situação política e religiosa delicada, a qual se encontrava a
sociedade francesa no século XVI, trazendo-lhe, ao menos apa-
rentemente, a tranqüilidade de seu espírito.
Michel de Montaigne, como se mede na sua obra Les Es-
sais, se pôs a examinar o homem objeto central de seu traba-
lho e, enquanto os outros autores, moralistas, o formavam,
ele se contentava apenas em descrevê-los
5
, optando por adotar
como modelo a si mesmo para, como afirmou, pintar seu auto-
retrato
6
.
Nesse intuito de pintar-se a si próprio, acabou por tecer,
como ressaltaram muitos comentadores de seu livro, uma moral
e uma ética muito próprias, embora tendo emprestado inúmeros
excertos de filósofos e poetas da antiguidade que lhe serviram,
antes, de assistência ao seu entendimento
7
e, apenas para
5
Os Ensaios, III, 2, p. 27.
6
MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios, I, nota ao leitor; trad. Rosemary
Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 4, e Os Ensaios II,
18; trad. Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p.
498.
7
Ensaios, II, 18, 499: Não estudei para fazer um livro; mas de certa
forma estudei porque o fiz, se é estudar o fato de aflorar e pinçar pela
cabeça ou pelos pés ora um autor, ora um outro; o para formar minhas
12
manter a rédea curta à temeridade das críticas severas que
são lançadas sobre toda a escie de publicações, nomeada-
mente as obras recentes de escritores ainda vivos, omitiu-nos,
não raras vezes, a fonte das citações para ver os seus críticos,
ao lhe passaremo correctivo, se aproximassem de Plutarco e
que se acalorassem injuriando Séneca quando me injuriarem.
Isso porque, como confessa Montaigne logo adiante, era preciso
esconder a sua fraqueza atrás das grandes autoridades
8
.
Aliás, com relação a isto, Montaigne censurou, de forma
elegante, porém incisiva, os comentadores, dizendo quehá
mais dificuldade em interpretar as interpretações do que em in-
terpretar as coisas, e mais livros sobre os livros do que sobre
outro assunto
9
esente-se por experiência que tantas interpre-
tações dispersam a verdade e desbaratam-na
10
. Enfim, para o
ensaísta,tudo fervilha de comentários; de autores grande
penúria
11
e, diante dessa reprovação, não podemos deixar de
dizer que, com o presente estudo, estamos arriscando a fre-
qüentar um lugar provavelmente pouco estimado pelo ensaísta.
Mas, enfim, que isso não seja óbice ao seu estudo e reflexão.
Nesse rumo, os estudiosos da obra montaigniana foram
uníssonos ao relatar sobre o móbil do ensaísta ao iniciar seu
livro: a perda do amigo Étienne de La Boétie, a quem a sorte
levou à morte prematura e o afastou definitivamente do comér-
cio de sua amizade.
iias mas sim para assisti-las já formadas muito tempo -, secundá-
las e servi-las.
8
MONTAIGNE, Dos Livros; trad. Telma Costa, Editorial Torema Lta.,
Lisboa, Portugal, 1999, p.25.
9
Ensaios, III, 13, 428.
10
Ibidem, p. 426.
11
Ibidem, p. 429.
13
Montaigne, em Da Amizade
12
, pareceu contradizer o seu
ceticismo, tão evidente em grande parte de seus Ensaios. Pa-
receu contradizer, ainda, a si próprio, pois que, como bem ad-
vertiu ao admirara segurança e a expectativa que todos têm
de si, sendo que não praticamente nada que eu saiba que
sei (...) tão em dúvida sobre mim quanto sobre qualquer outra
coisa
13
. Acabou, o ensaísta, por individualizar sua relação a-
mical com o Monsieur Étienne de La Boétie e, por não haver
testemunho sobre essa relação na literatura, como advertiram
alguns estudiosos, não há contestação quanto a sua veracida-
de, grandeza e limites.
Talvez por isso, os pesquisadores que se depararam sobre
o ensaio Da Amizade se limitaram a analisá-lo sob o foco da
própria relação dos amigos, Montaigne e La Boétie.
Houve, porém, quem dissesse que gostariade conhecer o
que ele [Montaigne] deve a tão precioso comércio, e como La
Boétie, que ele tanto admirava, influiu em suas idéias, modifi-
cando-as talvez. Infelizmente nada sabemos, ou quase nada.
A própria fisionomia do jovem magistrado não aparece com a
nitidez desejável através do caloroso testemunho do amigo
14
.
Entretanto, essa objeção o é uníssona
15
pois, sustentam al-
guns, que a obra de La Boétie
16
nos deu a sua fisionomia, uma
vez que a liberdade é para ele uma condição de vida, assim
como o ar e a luz, acrescentando que ele não sabe respirar em
12
O original, em francês, foi transcrito no Anexo, ao final dessa disserta-
ção.
13
Ensaios, II, 17, 453.
14
WEILER, Maurice. Para conhecer o pensamento de Montaigne, texto
inserto in Ensaios 3, trad. Sérgio Milliet, Editora Universidade de Brasília,
Hucitec, 2ª ed., 1987, p. 9.
15
HAYES, Ricardo Sáenz. Amistades históricas: Montaigne y De la
Btie, disponível no sitehttp://www.enfocarte.com/3.20/amistades.html.
Acesso em 02/2005.
16
LA BOÉTIE, Etienne de. Discurso da servidão voluntária; comentários
Marilena Chauí et alli; trad. Laymert Garcia dos Santos, Brasiliense: São
Paulo, 1999.
14
ambientes de covardia e servio e tampouco saberia transigir
com os spotas. La Boétie apontava a tirania de Um contra
todos; de uma casta ou classe sobre o imenso conglomerado
social e humano, sendo, o um, um ser desprezível e imoral.
Ainda que o pudéssemos imaginar a fisionomia de La
Boétie (o que o é verdade
17
), a obra de La Btie prestaria,
então, para mostrar-lhe suas disposições de caráter.
Não obstantes essas divergências, o fato é, que, em Da
Amizade, para Montaigne, tudo parece pronto, aprovado, perfei-
to e, com a morte do amigo, acabado. E assim, acabado, preci-
sava Montaigne, quejá estava tão afeito e habituado a ser um
de dois em tudo que parece, agora em luto, não ser mais do
que meio
18
, reconstruir, ao atar os fios de sua memória que
confessa fraca
19
, aquele comércio que detinha.
Daí o móbil dos Ensaios e, em especial aquele sobre a a-
mizade em que Montaigne de dar lugar” ao Sr. de La Boétie,
que lhe havia rogado na oportunidade em que, então moribundo,
também confiava ao amigo sua biblioteca
20
.
Montaigne inicia, então, uma empreitada na busca de con-
ferir o justo lugar ao amigo. Publica parte da obra de Étienne
de La Boétie e a encaminha a leitores privilegiados, através
17
Cf. Ensaios, III, 12, 411: A feiúra que em La Boétie revestia uma alma
belíssima era dessa natureza. Essa feiúra superficial, que porém é muito
imperiosa, causa prejuízo menor ao estado do espírito e tem pouca influ-
ência na opinão dos homens, falando da fisionomia do amigo.
18
Ensaios, I, 28, 289.
19
Ensaios, I, 9 (Dos mentirosos).
20
STAROBINSKI, Jean. Montaigne em Movimento; trad. Maria Lúcia Ma-
chado. Companhia das Letras, São Paulo, 1992, p. 49: La Btie teria
merecido um grande emprego; ele próprio o lamentou durante sua última
doença, segundo o relato que disso fez Montaigne; e Montaigne pede que
se creia em sua palavra, pois deseja assegurar um lugar, uma morada,
para essa figura ameaçada de esquecimento, para esse amigo cujos es-
critos, por si sós, o bastam para garantir-lhe a sobrevivência: Desejo
muito que ao menos depois dele sua memória, única a que doravante me
obrigam os deveres de nossa amizade, receba a recompensa de seu valor,
e que se aloje na recomendação das pessoas de honra e de virtude.
15
de cartas-dedicatórias, como, para servir-nos de exemplo, a-
quela enviada ao Sr. De Mesmes
21
.
E, nesse ímpeto de preservar a memória do amigo, Mon-
taigne publicou o seu legado literário por fragmentos,de ma-
neira sistematicamente esparsa, para multiplicar-lhe os destina-
tários
22
. Destinatários estes, honrados e virtuosos segundo o
próprio Montaigne, cuja inflncia na sociedade francesa do sé-
culo XVI, por certo, se fazia, de algum modo, sentir.
No entanto, como será também discutido ao longo da pre-
sente dissertação, motivos outros além de outorgar um lugar”
ao amigo, parece Montaigne esconder. Mesmo porque, nos afi-
liamos às conclusões no sentido de que se La Btie não foi
capaz de oferecer outros atributos dignos de perdurar na memó-
ria, o Discurso da Servidão Voluntária bastaria para salvaguar-
dar-lhe os ouvidos”
23
.
Por outro lado, causa espécie a forma pela qual Montaigne
descreveu sua amizade com o Sr. La Boétie.
Se o homem não é perfeito, como bem reconhece o ensa-
ísta, e se apresenta, naturalmente, composto de virtudes e ví-
cios, como poderia pretender Montaigne a existência da amiza-
de - que é uma disposição imanente do homem - perfeita?
21
Ibidem, p. 48.Considero (...) que seja um grande consolo à fraqueza e
brevidade desta vida crer que ela se possa fortalecer e prolongar pela
reputação e pelo renome (...). De maneira que, tendo amado mais do que
a qualquer coisa o falecido sr. De La Boétie, em minha opinião o maior
homem de nosso século, pensaria faltar com gravidade a meu dever se,
cientemente, deixasse dissipar-se e perder-se um nome tão rico quanto o
seu, e uma memória tão digna de recomendação, e se não tentasse, por
essas qualidades, ressuscitá-lo e recolocá-lo em vida. (...) Ora, senhor,
porque cada novo conhecimento que dou dele e de seu nome é igualmente
multiplicação desse segundo viver, e ainda que seu nome se enobrece e
se honra pelo lugar que o cede, cabe a mim fazer não apenas com que se
expanda o mais que me for possível, mas ainda confiar-lhe a guarda a
pessoas de honra e virtude (...).
22
Ibidem, p. 50.
23
HAYES, op. cit.
16
No primeiro Capítulo iremos abordar a questão do ceti-
cismo de Montaigne que - embora não constitua o objeto espe-
cífico dessa dissertação e por isso não pretendemos esgotá-la -
aponta a linha filosófica do ensaísta, adotada em sua obra para,
após a sua confrontação com as certezas absolutas do ensaís-
ta, constantes do ensaios Da Amizade, podermos apresentar,
em conclusão, a tese em relação ao móbil de Montaigne ao en-
saiar sobre a amizade.
Antecipe-se, entretanto, que o ensaísta não pareceu credi-
tar à essa questão a importância que ela requeria, negando, ou-
trossim, o seu próprio ceticismo - que será discutido no primeiro
Capítulo dessa dissertação - ao narrar enfaticamente a perfei-
ção de sua amizade com Étienne de La Boétie.
Soa, no mínimo estranho, a forma pela qual Montaigne
tanto se empenhou por transmiti-la, conferindo à sua amizade,
um conhecimento pleno e estatuto estável e estático acerca de
todos os pensamentos, inclinações e virtudes do amigo.
É exatamente isso que vem representar a negativa de todo
o movimento apresentado pelo pensamento montaigniano.
Bem sabia Montaigne a respeito da obscuridade do ho-
mem, tanto que afirmou quedecididamente o homem é um as-
sunto espantosamente vão, variado e inconstante. Sobre ele é
difícil estabelecer uma apreciação firme e uniforme.
24
Deixou claro que estabelecer uma moral universal, seria,
senão impossível, tarefa das mais árduas e, talvez por isso
mesmo, Montaigne não tenha pretendido tecer uma paradigma
ético:
Seja como for, quero falar; e, quaisquer que sejam estas
inépcias, não deliberei escondê-las, não mais do que um
retrato meu, calvo e grisalho, em que o pintor tivesse co-
24
Ensaios, I, 1, 10.
17
locado não um rosto perfeito e sim o meu. Pois aqui es-
tão tamm meus sentimentos e minhas opiniões; apre-
sento-os como algo em que acredito e não como algo em
que se deva acreditar. Viso aqui apenas a revelar a mim
mesmo, que porventura amanhã serei outro, se uma nova
aprendizagem mudar-me. Não tenho autoridade para ser
acreditado, nem o desejo, sentindo-me demasiadamente
mal instruído para instruir os outros.
25
Analisaremos, no segundo Capítulo, o ensaio Da Amiza-
de, pelo qual Montaigne se apresenta conhecedor de todas as
intenções do amigo La Btie. Optamos, nesse capítulo, em
dividi-lo em tópicos para melhor trabalharmos a noção de ami-
zade em Michel de Montaigne, nos quais o ensaísta analisou,
sempre em tom extremamente crítico, os tipos de amizade, pa-
ra, ao final, tecer a sua amizade com o Sr. La Boétie, como úni-
co exemplo de amizade perfeita.
Nessa abordagem, sempre que necessário, de acordo com
o nosso critério, iremos confrontar as certezas absolutas que
Montaigne detém sobre a perfeição de sua amizade com o Sr.
La Boétie, com excertos de alguns outros ensaios, cujo resulta-
do nos permitirá vislumbrar, contraditoriamente, a contingência
do pensamento do ensaísta e, em última análise, o seu ceticis-
mo.
Posteriormente, no terceiro Capítulo, abordamos, ainda
em tópicos, a amizade perfeita, seus problemas e seus limites,
bem como as possíveis soluções relativos à amizade perfeita.
Nessa leitura, nos perguntamos, de forma diversa de ou-
tros comentadores, o que de fato buscou Michel de Montaigne,
ao nos apresentar o seu ensaio Da Amizade.
Montaigne, de fato, queria falar, mas, como já dissemos, a
conjuntura política, social e religiosa de sua época o lhe
permitiam a sinceridade sem disfarces.
25
Ensaios, I, 26, 221.
18
Com efeito, criou, com seus Ensaios, uma estética capaz
de lhe permitir tal empreitada. Sua perspicácia pode ser perce-
bida em suas próprias palavras,
na medida do possível, aqui [nos Ensaios] revelo minhas
iias e afeições e as revelaria mais livremente de viva
voz a quem as desejasse conhecer. Não obstante, ver-
se-á que nestas memórias tudo disse e indiquei e o que
não pude expressar aponto-o com o dedo
eacrescendo que tenho, por vezes, a obrigação de falar por
meias palavras, confusamente, contraditoriamente
26
. Ou seja,
demonstrado está que o ensaísta não era ingênuo e sua hones-
tidade passava, por pruncia, pela dissimulação
27
, quando cri-
ticava os padrões morais de sua sociedade. Mais especifica-
mente, no dizer de alguns, dissimulação honesta”
28
.
Assim, não ousou o ensaísta publicar o Discurso da Servi-
dão Voluntária, de autoria do amigo enaltecido Étienne de La
Boétie, certamente audacioso em relação ao poder absoluto
29
.
Aliás, como asseveram os comentadores da obra montaig-
niana, o Contrun
30
teria sido o estopim que suscitou a admira-
ção do ensaísta, antes mesmo de conhecer pessoalmente o a-
26
Ensaios, III, 9, 297.
27
LACOUTURE, Jean. Montaigne a Cavalo. Trad. F. Rangel, Editora
Record, Rio de Janeiro, 1998, p. 149.Há obviamente algumas alusões à
necessidade de só escrever pela metade, algo confusamente (III, 9).
o reconhecimento da censura (da Igreja) diante da qual me inclino de
maneira integral (I, 56). Há também a supressão dos dois grandes textos
de La Boétie que ele prefere não publicar em uma época tão desagradá-
vel.
28
Recurso intelectual acrescentado por filósofos e cientistas do século
XVII para expressar suas idéias como escreveu Adone Agnolin, no texto A
“razão tênue de Montaigne, constante da Introdução à nova tradução dos
Ensaios de Montaigne, editada pela Martins Fontes (Livro I, p. XXIV), a
dissimulação tornava-se um importante instrumento de mediação entre as
esferas contrapostas, convertendo-se, ao mesmo tempo, em instrumento
de defesa garantia da (nova) autonomia adquirida e de ofensa ga-
rantia da afirmação (legitimação)”.
29
Ibidem, p. 150.
30
Outro nome conferido ao Discurso da Servidão Voluntária.
19
migo, no parlamento de Bordeaux. Foi, em função dessa obra
de La Boétie, que eles, como bem disse Montaigne, se procura-
vamantes de nos termos conhecido, e por informações que ou-
víamos um sobre o outro
31
.
Essa obra poderia, de fato, exercer uma função esclarece-
dora e direcional à sociedade francesa da época
32
, totalmente
submetida apenas a Um - o monarca tirano.
Todavia, o receio da conjuntura política e religiosa e a ne-
cessidade que provavelmente sentia de informar seus compatri-
otas pelo Discurso da Servidão Voluntária, obra que, como ele
mesmo afirmou no início do ensaio Da Amizade, gostaria de ter
publicado dentro de seu livro (não o fazendo sob pretextos di-
versos)
33
, eram demasiados e, embora não tenha dito aberta-
31
Ensaios, I, 28, 281.
32
Embora Montaigne afirme que não é sua intenção nos Ensaios.
33
Examinando o procedimento de um pintor num trabalho que possuo,
senti vontade de imitá-lo. Ele escolheu o lugar mais belo [deu a La Btie
o lugar que ele lhe rogou] e no centro de cada parede para ali instalar um
quadro elaborado com todo o seu talento; e o vazio ao redor, encheu-o de
grutescos, que são pinturas fantasiosas cuja única graça está na varieda-
de e estranheza. O que são estes [ensaios] também, na verdade, senão
grutescos e corpos monstruosos, remendados com membros diversos, sem
forma determinada, não tendo ordem, nexo nem proporção além da causa-
lidade? (...). Acompanho bem meu pintor até esse segundo ponto, mas
fracasso na outra e melhor parte; pois meu talento não vai tão longe a
ponto de ousar tentar um quadro rico, polido e formado de acordo com a
arte. Resolvi tomar emprestado um de Etienne de la Boétie, que honrará
todo o restante deste trabalho. É um discurso a que deu o nome de A
servidão voluntária; mas os que ignoraram esse nome depois rebatizaram-
no com muita propriedade de Contra um. Escreveu-o em forma de ensaio,
na sua adolescência [investidas para não suscitar suspeitas], em honra da
liberdade contra os tiranos. Há muito tempo ele corre pelas mãos das
pessoas inteligentes, não sem um prestígio muito grande e merecido; pois
é nobre e tão sólido quanto possível. Entretanto muito lhe falta para ser
o melhor que La Boétie pode fazer; e se na idade em que o conheci, mais
avançada, concebesse um projeto como o meu, de lançar por escrito suas
elucubrações, veríamos muitas coisas raras e que nos aproximariam muito
da honra da Antiguidade; pois sobretudo nessa parte dos dons da nature-
za não conheço outro que lhe seja comparável. Mas dele restou apenas
este discurso e ainda por acaso, e creio que nunca mais o reviu depois
que o deixou surgir -, e algumas anotações sobre esse edito de janeiro,
famoso por nossas guerras civis, e que talvez ainda encontre alhures seu
lugar. Isso é tudo o que pude recuperar de suas relíquias eu a quem
ele, com tão amorosa estima, às portas da morte, por seu testamento,
20
mente, não deixou de ressaltar aos leitores mais atentos, a im-
portância do discurso de La Btie, ainda que por linhas indire-
tas,apontando-o com o dedo.
Com efeito, sobre isso, conclui-se que Montaigne apela,
pois, para o leitor inteligente e atento, convidando-o a olhar de
perto, desculpando-se por não poder dizer tudo o que pensa e
arranjando-se para que o compreendam por meias palavras
34
.
Nos diz Weiler, ainda, queMontaigne só fala por meias
palavras, embrulha e contradiz propositalmente porque a tanto
se sente obrigado. Obrigado por quê? Sem dúvida pela pru-
dência
35
, fazendo-nos, nesse passo, relembrar os instrumentos
instituídos pelo Santo Ocio para banir a heresia e pela Monar-
quia Absolutista, representada pela figura do tirano. Montaigne
teria, então, deliberadamente procurado desnortear o
leitor superficial, apresentando-se como um modelo de
inconstância e mesmo de incoerência, confundindo as
pistas, e jactando-se de escapar, assim às suspeitas e
às perseguições
36
Sem a pretensão, nesta dissertação, de desmentir sua re-
lação com o aclamado amigo, que se frisar que, no estilo dos
Ensaios como um todo e a conjuntura em que foram redigidos,
exigia-se de Montaigne, pelo menos, as meias-palavras, para
não levantar suspeitas pois, que, como todo ser humano que
deixou como herdeiro de sua biblioteca e de seus papéis, am do libreto
de suas obras, que mandei publicar. Entretanto sou particularmente grato
a esse texto [Discurso da Servidão Voluntária], uma vez que serviu de
intermediário para nosso primeiro contato. (...)” Aliás, esse excerto do
ensaio Da amizade traz, em quase sua totalidade, as informações sobre
La Boétie que, como advertiu Maurice Weiler, de La Boétie pouco nos foi
informado.
34
WEILER, op. cit., p. 4.
35
Ibidem, p. 5.
36
Ibidem, p. 19.
21
tem por objetivo primeiro a própria vida
37
que, em sua plenitude,
inclui não só as virtudes, mas tamm os vícios constantes do
homem, temia a fogueira da Santa Inquisição e a bastilha da
Monarquia Absolutista. Isso lhe é suficiente para afirmar que
quantas vezes, estando aborrecido por alguma ação que a civi-
lidade e a razão me proibiam de criticar abertamente, aliviei-me
aqui [nos Ensaios], o sem o intuito de ensinamento público!
38
No quarto Capítulo - diante disso - fez necessário evi-
denciar a diverncia de pensamento entre Montaigne e La Boé-
tie e, de modo a corroborar a própria tese esboçada quanto ao
móbil do ensaísta em dissertar sobre a amizade, optamos por
trazer como objeto para indicar essa diverncia, o próprio sig-
nificado da amizade para La Btie. Assim, passaremos à aná-
lise do conceito de amizade em La Btie.
Nesse sentido, será apresentada a importância da amizade
para o amigo perfeito de Montaigne, Étienne de la Btie, que,
em contraste às características que lhe foram endereçadas no
ensaio Da amizade, os afastam, pelo menos ideologicamente,
um do outro eis que, em relação às possibilidades da amizade,
a observação de ambos os amigos não guardam muita seme-
lhança.
Evidenciamos, então, o nosso problema: se Montaigne,
cético, duvida da possibilidade de se conhecer, de forma plena
e absoluta, não só as coisas, mas também os homens e suas
ações (inclusive a si próprio), como poderia ele, julgar conhecer
La Boétie tão bem, a ponto de afirmar não ter qualquer vida
37
Ensaios, III, 13, 489 :Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver ade-
quadamente; Ensaios, I, 39, 360 :Já vivemos por outros o suficiente;
vivamos para s pelo menos esse final de vida. Voltemos para nós e
para nosso contentamento nossos pensamentos e intenções.
38
Ensaios, II, 18, 499.
22
sobre as intenções do amigo se ele duvida até das próprias in-
tenções?
Montaigne parece duvidar, a todo instante, de seu próprio
pensamento (afinal, pergunta, o que sei eu?”), como poderia
crer na certeza acerca dos pensamentos de La Boétie? E de
sua amizade?
Seria isso, justamente, a negativa de todo seu pensamen-
to.
Daí sugerirmos, na presente dissertação, uma leitura di-
versa daquela elaborada pelos comentadores do ensaísta.
Nesse sentido, apresentamos uma interpretação sobre o
móbil de Montaigne em dissertar sobre o tema da amizade.
E, em Conclusão, esperamos demonstrar que a amizade
teria sido, para o ensaísta, uma estratégia”
39
, muito apropriada
para, diferentemente das teses obtidas pelos conhecedores da
obra montaigniana em relação ao ensaio Da Amizade, remeter
seus leitores à obra de La Boétie que, em última análise, nos
induz à necessidade de revisão dos programas de educação da
sociedade, único meio capaz de preparar e possibilitar aos su-
jeitos, que por se renderem ao tirano, acabam mais fechados no
seu mundo subjetivo, egoísta, esquecendo dos outros em prol
da mantença de seus bens, em nítida inversão de valores mo-
rais, que tanto lutam para preservá-los, tornando-se escravos
do trabalho escravo numa sociedade, cuja qualidade de vida é
nenhuma.
Para tanto, perdem a liberdade ao esquecerem do outro,
do amigo. Formam, por conseguinte, um exército desejado de
solidão, onde as pessoas não deixam a condição de servidão
voluntária, ondea multidão não é companhia, nela os rostos
39
Cf. observação de Adone Agnolin (nota 28, infra) sobre o recurso da
dissimulação honesta”.
23
não são mais do que uma galeria de retratos e as conversas ti-
nidos de címbalos, onda o há amizade
40
.
A indagação de Lefort é muito apropriada: é de se espan-
tar que, com os séculos passando sobre sua obra [referindo-se
ao Discurso da Servidão Voluntária, de La Btie], o desejo de
desconhecer sua questão continue tão obstinado quanto o dese-
jo de servidão, sempre capturado por novos feitiços?
41
.
Nesse ímpeto, Montaigne reafirma a iia de La Btie, ao
r em questão:de que adianta o conhecimento das coisas se
com isso perdemos o repouso e a tranqüilidade que sem ele te-
ríamos?
42
.
Enfim, procuraremos demonstrar na presente dissertação,
mediante a evidência das contradições aparentes e incoerên-
cias propositais de Montaigne, constantes do seu pensamento,
a importância dessa interpretação, que, se plausível (como a-
creditamos ser), compromete, sem o intuito de ser presunçoso,
mas aceitando o risco de sê-lo, as demais leituras da obra mon-
taigniana, mormente aquelas inerentes ao conservantismo do
ensaísta; à sua crença religiosa; à importância de sua família
(que muitos acreditam que Montaigne o a tem em considera-
ção ou apreço, pois pouco, ou quase nada, fala dela. Fala, a-
penas, de seu já falecido pai) ou qualquer outra que ponha em
risco a sua integridade, tendo em vista o cenário político-
religioso de sua época.
40
BACON, Francisco. Ensaios; trad. e prefácio de Álvaro Ribeiro, 3ª ed.,
Lisboa: Guimarães Editores Ltda., 1992, p. 104.
41
LEFORT, Claude. O nome de um, texto inserto in La Boétie, Etienne
de. Discurso da servidão voluntária; comentários Marilena Chauí ; trad.
Laymert Garcia dos Santos, Brasiliense: São Paulo, 1999, p. 171.
42
Ensaios, I, 14, 79.
24
CAPÍTULO I
O Ceticismo em Michel de Montaigne
a. Do Cético
A característica fundamental do ceticismo clássico é a no-
ção de epoc, compreendida como a possibilidade do sujeito
em obter uma tranqüilidade estável (ataraxía), capaz de viabili-
zar o objetivo primordial do homem: a vida feliz (eudaimonía).
Há que se relembrar, entretanto, que o cético, antes de se
tornar efetivamente cético, buscava a verdade. Todavia, em
assim proceder, acabava por entrar em contato com diferentes
doutrinas acerca da verdade e, por isso, não raras vezes, se via
num conflito resultante da impossibilidade em distinguir um cri-
tério de verdade que fosse capaz de resolver a oposição entre
as várias proposições.
E, no intuito de não viver esse conflito, o cético opta por
suspender o seu juízo (epoc), cuja conseqüência é justamen-
te a almejada tranqüilidade (ataraxía), solucionando, dessa
forma, o problema inicial.
25
Contudo, a epoc noção que a doutrina freqüentemente
traduz por suspensão (de juízo) suscitou na filosofia inúme-
ras teses, pelas procurou-se evidenciar a inviabilidade da atitu-
de cética. Nesse sentido, indagações surgiram: Quais seriam
as conseqüências do ceticismo? Quais seriam as conseqüên-
cias da atitude suspensiva inerente ao ceticismo? Seria uma
recusa em manter uma determinada posição doutriria? Seria
uma recusa em se admitir qualquer opinião como verdadeira?
Dessa forma, os filósofos que se opuseram ao ceticismo
antigo, procuraram demonstrar que a atitude cética seria, em
última instância, inacessível pois o ceticismo se auto-refutaria,
pois, para eles, pelo ceticismo, não poderíamos crer que uma
coisa é e ao mesmo tempo crer que não é.
Tal feita, violaria o Princípio da Não-Contradição.
A posição cética resultaria, então, num paradoxo, pois, ao
propor argumentos pelos quais busca a suspensão do juízo, o
cético está, na realidade, nesse momento, se autocontradizen-
do: a asserção nada sei é contraditória em si mesma
43
.
Porém, o que os céticos procuram, em última análise, res-
saltar a inexistência de critério único e absoluto de verdade
44
para atender a posição dos dogmáticos. Não poderia, o ceti-
cismo, por óbvio, ser levado a extremo. O cético acredita e tem
fatos por verdadeiros: sente frio, calor; observa o dia, a noite;
enfim, percebe a vida:
43
MARCONDES, Danilo. Autenticidade do Discurso Cético: O Problema
da Auto-Refutação do Ceticismo. O que nos faz pensar (Cadernos do De-
partamento de Filosofia da PUC-Rio), nº 8, 1994, p. 134.
44
No mesmo sentido, AZAR FILHO, Celso Martins. Acerca do Naturalismo
de Montaigne. O que nos faz pensar (Cadernos do Departamento de Filo-
sofia da PUC-Rio), nº 8, 1994, p. 33: O problema é que a inexistência de
critério racional de verdade para o homem, não nos permitirá reconhecê-
la de modo imediatamente claro ou evidente”.
26
(...) É preciso saber se o fogo é quente, se a neve é
branca, se o que conhecemos é duro ou mole. E quanto
a essas respostas com que se fazem contos antigos
como o de alguém que punha em vida o calor e a quem
foi dito que se lançasse no fogo; a alguém negava a fria-
lidade do gelo, que o colocasse sobre o peito -, são mui-
to indignas da profissão.
45
(...) Afinal de contas, não saberíamos mais do que uma
pedra se não soubéssemos que som, odor, luz, sabor,
medida, peso, moleza, dureza, rugosidade, cor, brilho,
largura, profundidade.”
46
(...) Em nossa opinião, não absurdo mais extremo do
que sustentar que o fogo não aquece, que a luz não ilu-
mina, que o ferro não tem peso nem rigidez, que são co-
nhecimentos que os sentidos nos trazem, nem no homem
crença ou ciência que se possam comparar a essa em
certeza.
47
Onde estaria o verdadeiro Montaigne indagam alguns
comentadores - eis que não poderia ser, ele, ao mesmo tempo,
incrédulo e crente, covarde e corajoso?
48
Essa questão, entre-
tanto, não se sustenta eis que o cético não poderia ser” e o
ser” dentro, apenas, da mesma relação, no mesmo tempo. Na-
da impediria que o fosse e não o fosse em relações diver-
sas; em tempos diversos.
Procura, porém, torná-la feliz e para, tanto, entende que
de nada adiante procurar conhecer as coisas em si, pois a nos-
sa inteligibilidade não nos permite.
Para o cético, apenas o conhecimento absoluto, dogmáti-
co, mormente aqueles relativos à ética e à moral, seria inviável
ao homem.
45
Cf. Ensaios, II, 12, p. 312.
46
Ibidem, p. 383.
47
Ibidem, p. 384.
48
WEILER, op. cit., p. 4.
27
Montaigne, como veremos adiante, adota uma postura di-
versa do ceticismo antigo ao propor, não em forma de asserção,
mas de interrogação: que sei?
b. Do ceticismo montaigniano
Relembre-se, de início, que a conjuntura da época, marca-
da pelo fim da Idade Média, pelo descobrimento do Novo Mun-
do, pela transformação das iias, pela Reforma e guerras reli-
giosas, inseriu novas perspectivas, modificando a imagem que
se tinha do homem e do universo, mitigando as crenças tradi-
cionais, reacendendo a essência do ceticismo.
Às concepções do passado se confrontava a inteligência
do Período Renascentista, que surgia, a despeito de desorde-
nada e confusamente, produtiva. Era, a época, propícia ao de-
senvolvimento da dúvida.
Muitos, ao longo da tradição literária, afirmaram queo
principal responsável pelo sucesso do ceticismo foi, bem enten-
dido, Montaigne
49
. Mas o ceticismo do ensaísta nos demonstra
que ele acabou se dando conta não apenas de que os ideais es-
tóicos da constância e do domínio próprio racional nos são ina-
cessíveis, mas tamm de que o que ele deseja tomar como te-
ma é a inconstância do homem, a diversidade e a mutabilidade
da opinião, e em geral a incapacidade em que nos encontramos
de organizar o mundo e s mesmos como um todo racional
50
.
49
DUMONT, Jean-Paul. Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis,
Paris, s.d.,vol:14, p. 719-723.
50
LARMORE, Charles. Montaigne. Diciorio de Ética e Filosofia Moral,
vol. 2, organização Monique Canto-Sperber, trad. Ana Maria Ribeiro-
Althoff et alli, Coleção Iias Dicionários, Editora Unisinos, RS, 2003, p.
190.
28
Alguns ensaios, em seu próprio título, são suficientes para
nos permitir vislumbrar a dúvida de Montaigne
51
, principalmente
em relação ao homem, objeto de seu estudo nos Ensaios.
Com efeito, os estudiosos de Montaigne não são unísso-
nos com relação à genialidade do ensaísta. Pascal, citado por
Weiler
52
, viu nele um pirrônico puro, pois que
põe todas as coisas em uma vida universal e tão geral
que essa vida se exagera sozinha, isto é, se ele duvi-
da, duvidando de sua própria vida, rola sua incerteza
sobre si mesmo em um círculo pertuo e sem repouso...
Nessa vida de si e nessa ignorância que se ignora e
que ele denomina sua forma principal (sua maneira de
ser) é que está a essência de sua opinião, a qual ele não
pôde exprimir por nenhum termo positivo.
Aliás, com relação à certeza sobre as coisas, não pode-
mos deixar de considerar que o próprio Montaigne tomou para
si, no constante intuito de corroborar seu pensamento, as pala-
vras de Plínio, no sentido de quenão nada certo exceto a
incerteza, e nada mais mísero e orgulhoso do que o homem
53
.
Todavia, parecia saber o ensaísta que o cético, ao atribuir
à sua vida um caráter universal e absoluto, acabaria por se
contradizer (“só sei que nada sei, máxima representativa do
paradoxo socrático). Montaigne, para escapar dessa autocon-
tradição, evidenciou sua dúvida pertua, em forma de interro-
gação: “que sei?
54
.
Dessa forma, como observou Larmore, do ponto de vista
lógico,apenas os enunciados que são suscetíveis de serem
verdadeiros ou falsos, isto é, apenas as asserções e não as
51
Cf. Ensaios, I, 1, 14, 27, 38 e Ensaios, II, 1.
52
WEILER, op. cit., p. 37.
53
MONTAIGNE citando Plínio nos Ensaios, II, 14, 418.
54
Que sçay-je? (MONTAIGNE, Michel de. Apologie de Raimond Sebond;
introduction de Samuel Sylvestre de Sacy, Collection Idées, NRF, France:
Éditions Gallimard, 1967, p. 211).
29
questões, podem envolver alguma coisa. Uma questão, não en-
volve nada e, portanto, não pode se contradizer
55
.
E continua Larmore,
A propósito, a fórmula O que eu sei? convém admira-
velmente à filosófica cética de Montaigne, a qual se con-
cebe não como uma posição estável e definitiva, mas
como o movimento incessante do espírito.
Aliás, nesse sentido que se indagar sobre a possibili-
dade de o próprio Pascal ter moldado Montaigne segundo suas
próprias necessidades, pois, buscava aquele, provas da misé-
ria, do vazio, da corrupção, da vaidade, da ignorância do ho-
mem e, pôde, talvez na Apologia de Raymond Sebond
56
, encon-
trar o que procurava. Todavia, fez desse ensaio o fundamento
para tentar desacreditar todos os Ensaios
57
.
O ceticismo de Montaigne o tem como finalidade a imo-
bilidade do sábio inabalável, pois esse ideal ultrapassa de lon-
ge as características do homem, que bem sabe, inconstante,
pois ele próprio indaga ao leitorquem se lembra de tantas e
tantas vezes ter se descontentado de seu próprio julgamento
não será um tolo se não se puser a desconfiar dele para sem-
pre?
58
.
É antes o reconhecimento do movimento pertuo de nos-
so pensamento que ele prega, pois, como afirmou o próprio en-
saísta: não pinto o ser, pinto a passagem
59
.
55
LARMORE, op. cit., p. 190.
56
Concordam muitos comentadores que a Apologia de Raymond Sebond
(E, II, XII) é a própria representação e expoente máximo do ceticismo de
Montaigne.
57
WEILER, op. cit., p. 37.
58
Ensaios III, 13, 436.
59
MONTAIGNE, Michel de. Essais, Livre Troisièmer; Texte intégral, Édi-
tion présentée, établie et annotée par Pierre Michel, préface de Maurice
Merleau-Ponty, Collection Folio, Paris: Éditions Gallimard, 1965, chapitre
II, p. 44: “Je ne peins pás lêtre, Je peins passage”.
30
Com efeito, nos diz Dumont
60
, o conhecimento do ensaísta
sobre o ceticismo antigo é singularmente rico e exato. Para e-
le, Montaigne reata com a tradição grega: sua convicção é a de
um relativismo universal, pois está intimamente persuadido que
o sujeito singular é incapaz de ultrapassar a singularidade de
suas impressões e de sua imaginação para alcançar um conhe-
cimento válido universalmente. Montaigne via o mundo através
dele mesmo, ao invés de adotar sobre o mundo um ponto de
vista universal, decidido e dogmático. Afinal,
Nada parece verdadeiro que não possa parecer falso.”
61
É por isso que Montaigne, que cita tão abundantemente os
antigos, declara preliminarmente ser ele mesmo a matéria de
seu livro, o que nos remete à compreensão de que, para ele,
todo dado é relativo a um sujeito, isto é, aos sentidos e à ima-
ginação particulares:
Creio que minhas idéias são boas e corretas, mas quem
não crê o mesmo das suas?
62
Montaigne, por outro lado, acredita na possibilidade de se
conhecer alguma coisa, mas não tudo. As causas primeiras es-
capam-nos e, provavelmente, a ignorância acerca dessa impos-
sibilidade, é justamente as causas primeiras as que tentamos
incansavelmente descobrir
63
, o que nos causa, talvez, angús-
tias, cuja conseqüência é uma vida infeliz contrário, portanto,
à máxima montaigniana: “viver adequadamente
64
.
60
DUMONT, Jean-Paul. Scepticism: Artigo da Encyclopædia Universalis,
Paris, s.d.,vol:14, pp. 719-723.
61
Ensaios II, 12, 258.
62
Ensaios, II, 17, 487.
63
WEILER, op. cit., p. 33.
64
Ensaios III, 13, 489.
31
Para alguns, a inteligência de Montaigne nos monstrou
que a variação de nossos estados de espírito é tanta que torna
impossível sabermos o que é a normalidade
65
, pois, como ob-
servou o ensaísta,nunca dois homens julgaram da mesma for-
ma sobre a mesma coisa, e é impossível ver duas opiniões exa-
tamente iguais, não apenas em diversos homens mas no mesmo
homem em diversas horas
66
.
Nada é constante e uniforme no homem; seria pretensão
esperar uniformização de suas idealizações, julgamentos e a-
ções eis que a discordância é a sua qualidade específica
67
.
O centro de toda a problemática do conhecimento e, con-
seqüentemente, de toda a filosofia não é, portanto, o mundo,
mas o homem. E este pouco sabe de si mesmo
68
e, se desi
mesmo o homempouco sabe voltando ao nosso tema cen-
tral - como esperar ou pretender Montaigne saber tanto a res-
peito de La Btie a ponto de jul-lo, assimilando as lições a-
ristotélicas
69
um outro Montaigne?
Enfim,aquilo [que o homem] toma por real não é mais
que uma parcela do possível. Como pode pretender que isto
aqui [e porque não a perfeição de sua amizade com La Boétie]
exista e aquilo ali não?
70
, pois, afinal,quem se lembra de tan-
tas e tantas vezes ter se descontentado de seu próprio julga-
65
Cf. PETRÔNIO, Rodrigo. Montaigne: o teatro do mundo. Revista de
Cultura 21/22. Fortaleza/SP, fev/mar de 2002), disponível no site
66
En-
saios, III, 13, 426.
67
MOREAU, op. cit., p. 30.
68
CHAUÍ, Marilena. Montaigne-vida e obra, texto inserto em Montaigne,
vol. I, Coleção Os Pensadores, Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo,
1996, p. 15.
69
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro IX. Coleção Os Pensadores,
Editora Nova Cultural Ltda., São Paulo, 1996, p. 292.
70
CHAUÍ, op. cit., p.15
32
mento o será um tolo se o se puser a desconfiar dele para
sempre?
71
.
Montaigne sabe que
Todos somos retalhos, e de uma contextura tão informe
e diversa que cada peça, cada momento faz seu jogo. E
observa-se tanta diferença de s para s mesmos
quanta de s para outrem.
72
Nessa linha raciocínio, disse o ensaísta ter aprendido a
suspeitar de seu procedimento em tudo
73
. Será? O ensaio Da
amizade parece negar isso.
Acreditava Montaigne - e ninguém duvida disso - na ami-
zade verdadeira, que tem como fundamento exclusivo a virtude
que resgata nas lições dos antigos, principalmente as que nos
foram legadas por Aristóteles
74
e Plutarco
75
(que serviram inclu-
sive de embasamento ao ensaio sobre a amizade), dos sujeitos
envolvidos.
Porém, não obstante o fato de ser, ele próprio, um homem
virtuoso, dúvidas há quanto a sua crença na amizade perfeita
ou verdadeira, por ele enaltecida no ensaio Da Amizade, a pon-
to de se apresentar emum nítido movimento reducionista do
conceito de amizade e da extensão do universo coberto pelo
termo
76
ede cuja possibilidade volta-se Montaigne em âmbito
exclusivamente privado
77
.
71
Ensaios, III, 13, 436.
72
Ensaios II, 1, 12.
73
Cf. Ensaios, III, 13, 436.
74
ARISTÓTELES, op. cit.
75
PLUTARCO. Como distinguir o bajulador do amigo, apresentação de
Manuel da Costa Pinto, trad. Célia Gambini, São Paulo: Scrinium Editora
e Distribuidora Ltda., 1997.
76
CARDOSO, Sérgio et alli. Paixão da igualdade, paixão da liberdade: a
amizade em Montaigne, texto inserto em Os Sentidos da Paixão, Compa-
nhia das Letras, São Paulo, 1986.
77
PASSETTI, Edson. Texto “A arte da amizade, disponível no site
http://www.nu-sol.org/verve/n1/verve_1_-_2002.pdf. Acesso em 02/2005.
33
Inclusive, essa posição adotada pelo ensaísta o faz afas-
tar-se do próprio La Btie, que indica no Discurso da Servidão
Voluntária
78
, como veremos adiante, a amizade como forma de
convivência pacífica e, portanto, pluralista.
Não estar em dúvidas corresponderia a aceitar, por conse-
guinte, que todo relato montaigniano, impregnado pelo ceticis-
mo, representado pela dificuldade (ou quiçá pela impossibilida-
de) de se conhecer a essência das coisas ou as coisas em si
mesmas e, principalmente, conhecer a si mesmo de forma abso-
luta e invariável, tendo em vista suas próprias palavras no sen-
tido de esclarecer aos seus leitores quesou muito ignorante do
que me diz respeito
79
, seria contraditório e incoerente:
nada tenho a dizer de mim, sólida, simples e inteiramen-
te, sem confusão e sem mistura, nem uma palavra (...)
não descrição que iguale, em dificuldade, à descrição
de si mesmo
80
Contradição e incoerência? Talvez sim.
Se de fato ele não consegue (ou pelo menos diz que não
consegue) se ver com nitidez, de forma estável, como poderia,
em relação à amizade perfeita e ao amigo perfeito, dizer que
nada dele lhe é estranho pois que certifica conhecer integral-
mente os pensamentos do amigo La Boétie?
Não está no poder de todos os argumentos do mundo
afastar-me da certeza que tenho sobre as intenções e
julgamentos de meu amigo. Nenhuma de suas ações me
poderia ser apresentada, sob qualquer aparência, sem
que eu descobrisse incontinenti seu motivo. Nossas al-
mas viajaram tão unidamente juntas, examinaram-se com
tão ardente afeição, e com a mesma afeição descobri-
ram-se até as mais profundas entranhas uma da outra,
78
LA BOÉTIE, op. cit.
79
Ensaios, II, 17, 452/453.
80
Tradução apresentada em CHAUÍ, op. cit., p. 15.
34
que não apenas eu conhecia a sua como se fosse a mi-
nha mas indiscutivelmente me confiaria a ele de melhor
grado do que a mim mesmo.”
81
Dessa forma, ou Montaigne, inspirado por um sentimento
exagerado e exacerbado, mitigou a própria razão
82
e idealizou a
sua amizade com o amigo Étienne de La Boétie que, igualmen-
te, parece idealizar, ou teve o ensaísta outro móbil.
Nesse sentido, foram levantadas algumas hipóteses e te-
ses, inclusive sobre a própria sexualidade do ensaísta, pelas
quais afirmou-se que a afetação de Montaigne ao descrever sua
amizade suscitava desconfianças de ser, ele próprio, homosse-
xual
83
. Todavia, os próprios comentadores que aderem a essa
possibilidade deixam claro que tal posição não passa de mera
especulação.
Da mesma forma, Cardoso
84
, que afirmou quequantos
amantes não se reconheceriam em tão belas palavras [referin-
do-se ao ensaio Da amizade], concluiu que
O caso Montaigne não se deixa, porém, apanhar facil-
mente por esta versão fácil e preguiçosa.
Mesmo porque o “receio encontrado na sociedade sobre a
homossexualidade que, por sua vez suscitou a necessidade de
dissimulá-la só veio a surgir séculos mais tarde, com, por e-
xemplo, a sua inclusão no rol das doenças patológicas, qualifi-
cando o homossexualismo como desvio do estado normal, no
81
Ensaios, I, 28, 283.
82
PLUTARCO, op. cit., p. 48. : (...) a violência e a grandeza das paixões
nos tornam surdos à voz da razão.
83
SILVA, H. Pereira da. Montaigne (Brasil, Alma e Obra). Rio de Janeiro:
Museográfica Editora, 1977/78, p. 142: A amizade de Montaigne por La
Btie, encerrando uma lição de fraternidade, o deixa, nem por isso, de
conter algo suspeito, ligado à sexualidade de ambos. Foi uma amizade
mais amorosa que a fraternidade o indica.
84
CARDOSO, op. cit., p, 164.
35
caso de conduta, bem como as prescrições religiosas; a valori-
zação da família; do casamento e da esposa, e a vigilância so-
bre a juventude
85
.
Na realidade, o cético (e porque o dizer Montaigne) pro-
cura demonstrar que não como chegar à certeza alguma e
admitindo sua recusa em envolver-se nessas discordâncias, po-
deria chegar à serenidade e, deste modo, se convencer a per-
manecer fiel à atitude de submissão às aparências sobre a qual
fundaram sua ação
86
.
Viveria talvez adequadamente, sem as angústias
resultantes do anseio pelo conhecimento universal
87
.
Talvez isso, poderia justificar inclusive o seu aparente
conservadorismo, relativos à política e à religião, até mesmo
porqueas leis e costumes ancestrais são vistos como um con-
junto suficientemente coerente, suficientemente unívoco para
que o cético possa guiar sua conduta por eles, sem no entanto
conhecer o dilaceramento que resultaria do sentimento de ter
que escolher no absoluto
88
.
Aparente conservadorismo, pois, todos sabem que Mon-
taigne estava insatisfeito com os costumes de sua sociedade,
afirmando estarem eles,extremamente corrompidos, pendendo,
com extrema inclinação, para a deterioração
89
. Além disso, sa-
85
ORTEGA, Francisco. Genealogia da Amizade. São Paulo: Editora Ilu-
minuras Ltda., 2002.
86
LÉVY, Carlos. Ceticismo. Dicionário de Ética e Filosofia Moral, vol. 1,
organização Monique Canto-Sperber, trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff et
alli, Coleção Iias Dicionários, Editora Unisinos, RS, 2003, p. 242.
87
Cf. tamm Ensaios, I, 14, 73:Os homens (diz uma antiga máxima
grega) são atormentados pelas iias que têm das coisas, e não pelas
próprias coisas”.
88
LÉVY, Carlos. Ceticismo até o século XVIII As éticas céticas de Pirro
no final do século XVIII, verbete inserto in Dicionário de Ética e Filosofia
Moral, organizado por CANTO-SPERBER, Monique. Dicionário de Ética e
Filosofia Moral, trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff, et alli, vol. 1; Rio Grande
do Sul: Editora Unisinos, 2003, p. 239.
89
Ensaios, III, 13, 485.
36
bia que osnossos julgamentos tamm estão afetados e acom-
panham a depravação de nossos costumes
90
.
Tinha, o ensaísta, consciência que
Não podendo comandar os acontecimentos, comando a
mim mesmo, e adapto-me a eles se eles não se adaptam
a mim.
91
Assim poderia submeter-se aos governos, seja político,
seja religioso, sem muito esforço
92
, pois,
Por certo não é pouca coisa ter de governar outros, pois
para governarmos a s mesmos se apresentam tantas
dificuldades. Quanto ao comanda, que parece ser tão
fácil, considerando a fraqueza do discernimento humano
e a dificuldade de escolha nas coisas novas e incertas,
sou muito de opinião de que é mais fácil e mais agradá-
vel seguir do que guiar, e que é uma grande tranqüilida-
de de espírito ter apenas de se manter num caminho tra-
çado e de responder somente por si.
93
Montaigne, em seu ceticismo, acabou por demonstrar as
contradições dos dogmáticos e a vaidade das explicações meta-
sicas e religiosas que pretendem explicar ao homem, de forma
total e definitiva, sobre o conhecimento em geral que, pretensi-
osamente, possibilitaria a tranqüilidade e a felicidade. Criticou,
em outras palavras, o pedantismo, e o fez num ensaio próprio.
Remete, o cético, as questões dogmáticas ao domínio das
ilusões, pois que são, na compreensão de Dumont, as fontes da
inquietação do homem; as fontes de sua intransigência; de sua
fantasia ou, numa única palavra, de sua infelicidade.
90
Ensaios, I, 37, 344.
91
Ibidem, p. 468.
92
Ensaios, II, 17, 471: É bom nascer num século depravado, pois, em
comparação com outras pessoas, sois considerado virtuoso a baixo cus-
to”.
93
Ensaios, I, 42, 391.
37
Assim, o ensaísta procurou evidenciar que o homem deve-
ria procurar, antes de ser erudito, ser sábio, confiando apenas
na vida após um longo estudo do mundo, que deveria ser o livro
de todos.
Desse modo, atenderia seu natural desejo de conhecimen-
to
94
.
94
Cf. Ensaios, III, 13, 422.
38
CAPÍTULO II
Formas de amizade no ensaio Da Amizade
No que tange propriamente à questão da amizade, cumpre-
nos observar preliminarmente que as palavras pai, mãe, fi-
lho, irmão são freqüentemente utilizadas pelas pessoas, de
um modo geral, para expressar dentro de uma escala de gran-
deza, a importância de outras pessoas, ao tê-las como amigas
e, como indagou Derrida
95
, já no futuro, no intuito de viabilizar
eventuais políticas da amizade,por que o amigo seria como um
irmão?.
Assim o fazem porque, o vínculo representado por essas
palavras é, para s, hoje ainda mais marcante (embora o pró-
prio Montaigne já tivesse se referido a La Boétie como um ir-
mão
96
) e denota, ainda, o sentimento de afeição, de simpatia, de
estima e de reciprocidade, inerente à amizade e à fraternidade.
95
DERRIDA, Jacques. Políticas de la amistad seguido de El oído de Hei-
degger; trad. Patrício Peñalver y Francisco Vidarte. Madrid: Editorial
Trotta S.A., 1998, p. 12 : “¿Por qué el amigo sería como um Hermano?.
96
O próprio Montaigne, enaltecendo o amigo, às vezes se refere a ele (e
vice-versa), como irmão, realçando a aliança (Ensaios, I, 28, 276).
39
Com efeito, essa conotação advém, muito provavelmente, do
período destacado como declínio da amizade”
97
.
Não percebem, contudo, em função da vulgarização da pa-
lavra amigo, freqüentemente utilizada para indicar até mesmo
um recém conhecido, que a relação de parentesco encontra sua
força apenas no acaso, que somente no campo da metafísica
poder-se-ia tentar encontrar alguma explicação, eis que o filho
não escolhe, através de seu arbítrio, o pai; o escolhe a mãe
ou o irmão.
Embora entendam alguns - para expressar a grandeza da
sua amizade a alguém - elevá-lo à qualidade de pai, mãe, filho
ou irmão quando, não raras vezes, se observa que pai não é
amigo de filho; que irmãos, por não terem a menor afinidade,
estima e reciprocidade, são estranhos entre si, porque a ordem
natural representada pelo acaso, ordem essa que suprime o li-
vre arbítrio dos parentes na escolha dos seus, não possui, em
si mesma, a determinante do vínculo de afeição, simpatia, esti-
ma, ternura e reciprocidade.
Por outro lado, é justamente essa fraternidade o ponto de
diverncia do pensamento de Montaigne e La Btie. Mon-
taigne e La Boétie se reconhecem e abominam a servidão dos
cidadãos ao tirano.
La Btie vê a amizade como uma forma possível de opo-
sição à tirania. Montaigne suscita vidas com os ensaios,
porque para Montaigne, a amizade é mais rara e exceção para
os homens. Perfume de um mundo a chegar que pode jamais
acontecer
98
.
97
ORTEGA, op. cit.
98
RABINOVITCH, Gerard. Lhomme endetté, texto inserto in Montaigne,
De l’amitié, texto integral, Mille et une nuits, Éditions Ara, 1992, p.
39/40: Montaigne et La Btie se reconnurent devant leur commune a-
bomination de la jouissance de la servitude. Ils se trouvèrent dans ce qui
40
O que La Boétie procurou em sua obra foi justamente a
liberdade dos cidadãos, em face do tirano. Liberdade essa, tão
enaltecida em Montaigne, mas que ele próprio parece limitar
com seu conservadorismo político e religioso e mitigar com a
essência de sua amizade, pois que, nessa relação, parece, ele
próprio, se escravizar ao amigo
99
.
Descrevendo sobre as possibilidades de utilização do ter-
mo amizade na sociedade, Montaigne não se propõe a discutir a
amizade perfeita, mas apenas a recusar à todas as demais
formas de associação o nome amizade, propondo-se, por con-
seguinte, reservá-lo apenas a sua forma perfeita. Tem como
paradigma, Aristóteles.
Assim, prescreve Montaigne que, enquanto na amizade
interessada ou agravel, a relação com o outro é acidental
(pois subordina-se a fins exteriores à própria relação), na ami-
zade propriamente, o bem que se procura é interno, imanente
ao vínculo: a amizade perfeita encerra em si o seu fim; en-
contra seu bem na sua própria existência.
Dessa forma, lícito seria dizer que a origem da relação en-
tre amigos não se funda na bondade ou virtude dos sujeitos,
mas sim neles mesmos. O princípio, se é que podemos cha-
mar assim, é imanente à própria relação
100
.
Aristóteles destacou
leur paraissait son antithèse: lamitié. Mas si La Btie supposait pou-
voir déduire lamitié dun compagnonnage originel, d’une fraternité
première s hommes (...) Si La Boétie peut attendre du commerce de
lamitié qu’il soit funeste pour la tyrannie et que la possibilite d’un autre
lien social y ait as résidence, Montaigne se montrera, lui, dans Les Es-
sais, plus dubitatif. (...) Ainsi, pour Montaigne, l’amitié reste une rareté,
demeure une exception parmi les hommes. Le parfum d’un monde à venir
qui ne peut jamais advenir.
99
BOUTAUDOU, Christiane. Montaigne, textes et débats, le livre de po-
che, France: Librairie Generale Française, 1984, texte l’éthique des Es-
sais, p. 169, citando Merleau-Ponty: Son amitié avec La Btie fut exac-
tement le genre de lien qui nous esclave à autrui.
100
CARDOSO, op. cit., p. 172.
41
(...) A amizade perfeita é a existente entre as pessoas
boas e semelhantes em termos de excelência moral; nes-
te caso, cada uma das pessoas quer bem à outra de ma-
neira idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são
boas em si mesmas. Então as pessoas que querem bem
aos seus amigos por causa deles são amigas no sentido
mais amplo, pois querem bem por causa da própria natu-
reza dos amigos, e não por acidente; (...).”
101
Mas Montaigne restringiu a incidência do termo amizade à
uma perfeição inatingível e, assim, exclui as formas de relacio-
namento encontradas na sociedade. Referiu-se, no seu ensaio,
às outras associações tradicionais (em gênero e número), se-
melhantes à amizade, discutidas pelos antigos. Porém, o fez
em tom de crítica
102
.
Nesse rumo, conforme os ensinamentos de Aristóteles,
Montaigne acentuou radicalmente em seu ensaio Da amizade
que, entre pais e filhos e entre irmãos não poderia haver ami-
zade face à condição de desigualdade e à falta de escolha entre
os sujeitos. Citou, para tanto, Aristipo que, quando
pressionado sobre a afeição que devia a seus filhos por
terem saído dele, s-se a cuspir, dizendo que aquilo
tamm saíra dele e Plutarco que queria induzir a en-
tender-se bem com o irmão, respondeu quenão tinha
maior consideração por ele só porque saiu do mesmo bu-
raco
103
.
101
ARISTÓTELES, op. cit., p. 260/261.
102
CARDOSO, op. cit., p. 169:Se Montaigne parte, como indicamos an-
teriormente, da acepção mais abrangente da palavra amizade cujo con-
texto acabamos de assinalar é, no entanto, apenas com uma intenção
purgativa e crítica. Pois, na verdade, a primeira parte de seu texto, exa-
minando a tipologia tradicional das formas associativas, opera um redu-
ção tão drástica na extensão do conceito que solapa profundamente não
só as elaborações humanistas de seu tempo mas tamm a opinião dos
antigos.
103
Ensaios, I, 28, 276.
42
Michel de Montaigne parece ter encontrado uma verdadei-
ra amizade. Em seu ensaio Da Amizade, demonstrou, emocio-
nadamente, toda a importância do amigo perfeito, Étienne de
La Btie, em sua vida, mas, ao descrevê-la, reduziu, como já
dito, o seu conceito e extensão, além de trabalhar a questão
apenas no âmbito privado, estritamente particular.
Teceu, por conseguinte, um paradigma inalcançável e, tal-
vez, por isso, a nosso ver, estranho à ética
104
.
Ademais, não mais se discute que a amizade entre Mon-
taigne e La Boétie inspirou um dos capítulos mais sentidos e-
mocionalmente, não se conhecendo outra afeição digna de nota
em sua obra
105
.
Montaigne, coadunando-se à iia de Aristóteles no senti-
do de queo homem é um animal social e um animal para o qual
a convivência é natural. Logo, mesmo o homem feliz tem de
conviver, pois ele deve ter tudo que é naturalmente bom. É ob-
viamente melhor passar os dias com amigos e boas pessoas do
que com estranhos e companheiros casuais. Conseqüentemen-
te, o homem feliz necessita de amigos
106
, salientou que
Não algo a que a natureza pareça nos ter encami-
nhado tanto como para a sociedade. E diz Aristóteles
que os bons legisladores ocuparam-se mais da amizade
que da justiça. Ora, este é o último ponto de sua perfei-
ção. Pois, em geral, todas as que a volúpia ou o provei-
to, a necessidade pública ou privada engendram e ali-
mentam são menos belas e nobres e menos amizades na
medida em que misturam à amizade outra causa e objeti-
vo e fruto que não ela mesma.”
107
104
CARDOSO, op. cit., p. 173: “Seu propósito fundamental, podemos ver, é
recusar a todas as demais formas de associação o nome amizade; é re-
servá-lo apenas a sua forma perfeita.
105
SILVA, op. cit., p. 27/28.
106
ARISTÓTELES, op. cit., p. 293.
107
Ensaios, I, 28, 275.
43
No mesmo sentido, Montaigne entende que a
Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver adequada-
mente
108
.
E, se homem é um animal social, como disse Aristóteles e
Montaigne disso não discorda, oviver adequadamente pressu-
põe, de acordo com as leis da natureza do homem, a freqüenta-
ção de amigos pois, que, como bem observou Bacon,a multi-
dão não é companhia, nela os rostos não são mais do que uma
galeria de retratos, e as conversas tinidos de címbalos, onde
não há amizade
109
.
Sérgio Cardoso disse que
O amigo nos espelha e nos identifica. Por isso talvez
Aristóteles que Montaigne acompanha de perto tenha
dito na abertura de sua grande dissertação sobre a ami-
zade que ela é o que de mais necessário para vi-
ver
110
Escreve a M
me
de Lambert,
Nossos amigos nos caracterizam, somos buscados ne-
les; é dar ao público nosso retrato, e a confissão daquilo
que somos.
111
Todavia, a questão da amizade, pensada por inúmeros fi-
lósofos ao longo da história, evidenciou problemas como, por
exemplo, a sua definição, a instituição de um caráter normativo
ou a sua elevação a uma universalidade que ainda não foram
solucionados, talvez por limitação.
108
Ensaios, III, 13, 489.
109
BACON, op. cit., p. 104.
110
CARDOSO, op. cit., p. 162.
111
VINCENT-BUFFAULT, Anne. Da amizade, uma história do exercício da
amizade nos séculos XVIII e XIX; trad. Maria Luiza X. de A. Borges, Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996, p. 63.
44
Mas, como vemos em Montaigne, isso não constitui qual-
quer pretensão. Muito ao contrário, o paradigma por ele cria-
do demonstra a eminência de uma dificuldade intransponível.
Nas lições constantes da Ética a Nicomaco, Livros VIII e
IX, poderíamos inferir como amizade perfeita (adjetivo neces-
sário à diferenciação das outras semânticas do termo amizade),
em síntese, toda aquela que possui um fim nela mesma, não
servindo de meio para qualquer outro, como é o caso daquela
advinda em função do prazer e do interesse. O mesmo se vê
em Cícero e Plutarco, nas obras já citadas.
E Montaigne, seguindo a linha dos antigos, escreveu que
nem as quatro espécies antigas natural, social, da hospitali-
dade, venérea convêm com ela, isoladamente ou em conjun-
to
112
. Ou seja, como exposto anteriormente, não é em função
do vínculo natural, da escolha dos amantes, nem nas práticas
junto aos concidadãos que todos devem conviver com afinidade
e em harmonia.
A ordem natural, que suprime o livre arbítrio dos parentes
na escolha de seus amigos, por exemplo, não possui, em si
mesma, a determinante do vínculo amical, embora, sem descon-
siderar o fato constatado já em Aristóteles
113
.
A amizade seria, então, ovínculo social por excelência,
pois ela faz do viver em comum uma escolha e o uma neces-
sidade, como realçou Labarrière
114
, embora seja o termo, fre-
qüentemente, utilizado em função da semelhança, para indicar
as amizades comuns, representadas pelo vínculo natural (fili-
112
Ensaios, I, 28, 276.
113
ARISTÓTELES, op. cit., p. 262: As pessoas chamam de amizade até
as relações cujo motivo é o interesse (...) e aquelas em que as pessoas
se amam por prazer.
114
LABARRIÈRE, Jean-Louis. Aristóteles, verbete inserto In Dicionário de
Ética e Filosofia Moral, organizado por CANTO-SPERBER, Monique. Di-
cionário de Ética e Filosofia Moral, trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff, et alli,
vol. 1; Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2003, p. 123.
45
ação), matrimonial, social (prazer e interesse), camaradagem
(prazer), venérea (paixão erótica). Isso será objeto de crítica
para Montaigne.
a. Amizade e vínculo natural
Em relação à questão da filiação, o próprio Montaigne, que
encontrou apoio na ética nicomaquea, disse que jamais um pai
poderia ser amigo de um filho, ou vice-versa, face às diferenças
existentes entre eles, eis que os filhos jamais poderiam ter en-
tre as práticas e ofício da amizade, a possibilidade de adver-
tências e reprimendas ao pai, restando-lhes, então, o respeito
como princípio a reger aquela relação. Devemos, para evitar a
repetição excessiva, apenas remeter o leitor para o excerto re-
lativo à narrativa sobre Aristipo e Plutarco
115
.
Cardoso observa que
Ainda que Aristóteles considere a desigualdade das par-
tes e as relações hierarquizadas que vigem na família - o
que introduz nela o princípio da utilidade e faz sua co-
municação com as relações políticas -, funda-o essenci-
almente na semelhança. (...).”
116
E, citando Aristóteles, continua o autor
Os pais amam os filhos como eles mesmos (os seres
que deles procedem são como outros eles mesmos, ou-
tros em razão de sua existência separada), enquanto os
filhos amam os pais como tendo deles nascido, e os ir-
mãos amam-se uns aos outros como tendo nascido dos
mesmos pais, porque sua identidade com estes últimos
os faz idênticos entre si; de onde vêm as expressões ser
do mesmo sangue, da mesma cepa e outras parecidas.
115
Ver nota 103, infra.
116
CARDOSO, op. cit., p. 176.
46
Os irmãos são portanto, num certo sentido, a mesma coi-
sa, embora em indivíduos distintos.
117
Mas Montaigne, que não está denegrindo os vínculos fami-
liares (pelo contrário, ele e La Boétie se tratavam como irmãos,
embora não considere esse vínculo como determinante da ami-
zade perfeita), reluta contra essa semelhança,
Dos filhos para com os pais, trata-se principalmente de
respeito. A amizade alimenta-se de comunicação, que
não pode existir entre eles, devido à excessiva desigual-
dade, e possivelmente prejudicaria os deveres naturais.
Pois nem todos os pensamentos secretos dos pais podem
ser comunicados aos filhos, para não gerar uma intimi-
dade inconveniente, nem as advertências e reprimendas,
que são um dos principais ofícios da amizade, se poderi-
am exercer dos filhos para os pais. Viram-se países on-
de, segundo o costume, os filhos matavam os pais, e ou-
tros em que os pais matavam os filhos, para evitar o en-
trave que por vezes eles se podem causar mutuamente, e
um depende naturalmente da destruição dou outro. (...)
Na verdade, o nome irmão é um nome belo e cheio de di-
leção, e por esse motivo nós dois, ele [referindo-se a La
Btie] e eu, usamo-lo em nossa aliança. Mas essa mis-
tura de bens, essas partilhas [inventário] e que a riqueza
[herança] de um seja a pobreza do outro, destempera es-
tranhamente e afrouxa esse amálgama fraternal [de fato,
assiste razão a Montaigne nessa observação, hoje, ainda
mais]. Tendo os irmãos de governar o curso de seu a-
vanço na mesma trilha e no mesmo andamento, é forçoso
que amiúde se esbarrem e se choquem.
E continua Montaigne em sua digressão
E, mais ainda, por que se encontraria neles a corres-
pondência e afinidade que gera essas amizades verda-
deiras e perfeitas? O pai e o filho podem ter complei-
ções totalmente diversas, e os irmãos tamm. É meu fi-
lho, é meu pai, mas é um homem selvagem, um homem
maldoso ou um tolo. E depois, na medida em que são
amizades que a lei e a obrigação natural nos ordenam,
tanto menos de nossa escolha e livre arbítrio. E nos-
117
ARISTÓTELES, op. cit., p. 176.
47
so livre arbítrio não tem manifestação que seja mais ver-
dadeiramente sua do que a da afeição e amizade.
118
Todavia, aceitamos, em parte, a fundamentação de Mon-
taigne que nos diz que o vínculo familiar não traz a determinan-
te da verdadeira amizade, pois contestamos, por outro lado, que
o fato desse vínculo não trazer essa determinante não exclui a
possibilidade de, uma vez adultos os sujeitos, de, em seu livre
arbítrio, escolherem como amigo verdadeiro, o seu pai ou o seu
irmão.
Realmente, o vínculo familiar não induz necessariamente a
afeição, a reciprocidade e o cuidado de si que devem ter os a-
migos, quando sua relação tem por móbil apenas ela mesma,
mas também não impede que isso possa ocorrer.
Aliás, o próprio Montaigne tece demonstrações de afeto e
carinho para com o seu pai, em imeras passagens de seu li-
vro
119
, inclusive no ensaio Da amizade
120
.
Além disso, Montaigne traduziu, a pedido de seu pai e o
querendo desagradá-lo, a Tologie naturelle de Raymond Se-
bond, publicada em 1487
121
, pois omais característico da ami-
zade é o fato de desejar o bem àquele que amamos, indepen-
dentemente do bem que possamos obter dele. É tamm asso-
ciar ao bem de outrem, a seus desejos e a suas necessidades,
118
Ensaios, I, 28, 276/277.
119
Ensaios, III, 10, 332:Ele era assim; e esse modo de ser provinha-lhe
de uma grande bondade natural: nunca houve alma mais caridosa e popu-
lar. Essa atitude, que louvo em outrem, não gosto absolutamente de se-
gui-la, e o deixo de ter justificativa. Ele ouvira dizer que era preciso
esquecer de si pelo próximo, que o particular não tinha a menor importân-
cia em comparação com o geral.
120
Ensaios, I, 28, 277:Não que eu tenha experimentado desse lado tudo o
que pode ser, tendo o melhor pais que já existiu, e o mais indulgente, até
sua extrema velhice, e sendo de uma família renomada de pais para filho,
e exemplar nessa parte da concórdia familiar e, citando Horácio, diz
eu próprio sendo conhecido por minha afeição paternal por meus irmãos
121
Cf. nota da tradutora, inserida nos Ensaios, II, 12, 157.
48
as razões que temos para agir, a fim de proporcionar-lhe o que
deseja
122
e finaliza,
A amizade leva a buscar principalmente o bem do ama-
do: e quem ama, ao agir para o bem de outrem, pode
tamm agir para o seu próprio bem. (...) O valor moral
da filía está não apenas no cuidado partilhado com o
bem de outrem, mas tamm na consciência mútua do
desejo de outrem.
123
Pois - como é uníssono nos discursos sobre a amizade - o
amigo vê a si próprio no outro e querendo o seu bem, está na
verdade exercendo o cuidado de si, como denominam alguns;
está na verdade querendo o próprio bem.
Talvez por isso Montaigne, pela comuno de algumas i-
ias com La Btie, julgou-o conhecedor dele próprio, mais do
que ele próprio. Buscou, nos ensaios, então, se conhecer a si
como julgava que La Btie o conhecia
124
.
b. Amizade e amor-paio
Montaigne distinguiu, igualmente a Aristóteles, a amizade
daquele sentimento existente para com as mulheres, eis que,
neste, embora venha a nascer de nossa escolha, é
mais ativo, mais ardente e mais intenso. Mas é um fogo
temerário e volúvel, inconstante e diverso, fogo de febre,
sujeito a acessos e arrefecimentos, e que nos prende
122
CANTO-SPERBER, Monique. Amor, verbete inserto in Dicionário de
Ética e Filosofia Moral, 2 volumes, trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff, et alli,
Editora Unisinos, Rio Grande do Sul, 2003, p. 66.
123
Idem (2003), p. 66.
124
BOUTAUDOU, op. cit., texte l’éthique des Essais, p. 169:Il ne pensait
pas se connaître mieux que La Boétie ne lê connaissait, il vivait sous sés
yeux; après as mort il continue: cest pour se connaître comme La Btie
le connaissait que Montaigne sinterroge et sétude, lui seul jouissait de
ma vraie image et l’emporta. C’est pourquoi je me déchiffre moi-même, si
curieusement.
49
apenas por um fio
125
. Na amizade, é um calor geral e u-
niversal, temperado e uniforme em tudo, um calor cons-
tante e sereno, todo doçura e gentileza, que nada tem de
rude e pungente. Tão logo entra nos termos da amizade,
isto é, na concordância das vontades, o amor se dissipa
ou se enfraquece. A fruição, arruína-o, pois sua meta é
corporal e sujeita a saciedade. A amizade, ao contrário,
é desfrutada na medida em que é desejada, e apenas na
fruição se cria, se alimenta e cresce, porque é espiritual
e a alma se aprimora com o uso.
126
Em relação ao casamento, Montaigne esclarece
Quanto aos casamentos, além de ser um negócio em
que apenas a entrada é livre (sendo sua duração imposta
e forçada, dependente de outras coisas além de nossa
vontade), e negócio que habitualmente se faz com outros
fins
127
em meio a ele sobrevêm mil emaranhamentos es-
tranhos a serem desenredados, suficientes para romper o
fio e perturbar o curso de uma viva afeição; ao passo
que na amizade só afazer e comércio dela mesma.”
128
Em seguida, Montaigne esboça como verdade a incapaci-
dade habitual das mulheres, eis que elas - segundo ele afirma -
não teriam qualidades para corresponder à freqüentação e co-
municação que alimentam a amizade. Ressalta, nesse rumo,
que a suaalma o parece bastante firme para suportar o am-
plexo de um laço tão estreito e tão duradouro
129
Mas, como observa Boutaudou, se persistia a nostalgia
do amigo falecido, Montaigne, ao escrever, admitia sua
busca de um novo amigo. O acaso quis que Montaigne en-
125
Pois, quando a harmonia presente na amizade é mitigada pela discór-
dia ou pelo destrato, por exemplo, afigura-se o incômodo. Esse incômo-
do, quando, por qualquer motivo, se torna freqüente, a amizade deixa de
ser desejada nela mesma.
126
Ensaios, I, 28, 277/278.
127
Além da amizade, eis que o casamento não é, necessariamente, conse-
qüência da amizade entre os cônjuges, embora devêssemos, hoje, pres-
supô-la em função da valorização da família e dos cônjuges no século
XIX.
128
Ibidem, p.278/279.
129
Ibidem, p. 278/279.
50
contrasse, perto do fim de sua vida, a substituta do amigo
perdido: uma mulher, Marie de Gournay, de vinte anos de
idade. O Ensaio II, XVII mostra o preço que o escritor colo-
ca nesse encontro. Não nos remete, esse ensaio, a uma
questão sobre a convicção de Montaigne, de que as mulhe-
res o incapazes de amizade
130
.
Vejamos a afeição de Montaigne a Marie de Gournay:
Tive prazer em divulgar em vários lugares a esperança
que deposito em Marie de Gournay le Jars, minha filha
por aliança, sem vida amada por mim muito mais que
paternalmente e envolvida em meu retiro e solidão, como
uma das melhores partes de meu próprio ser. Não vejo
mais que ela no mundo. Se a adolescência pode pressa-
giar, um dia essa alma será capaz das mais belas coisas,
e entre outras da perfeição dessa santa amizade à qual
não lemos que seu sexo já tenha conseguido elevar-se:
a sinceridade e firmeza de seu caráter já são suficientes,
sua afeição para comigo mais que abundante e tal em
suma que nada a desejar, exceto que a apreensão
que ela sente por meu fim, aos cinqüenta e cinco anos
nos quais me encontro, a atormentasse menos cruelmen-
te. O julgamento que fez dos primeiros Ensaios, sendo
mulher e neste século e tão jovem e sozinha em sua re-
gião, e a notável intensidade com que me amou e me
buscou durante muito tempo, baseada simplesmente na
estima por mim que adquiriu por meio deles, antes mes-
mo de me ter visto, é uma particularidade digna de con-
sideração.”
131
Esse discurso montaigniano não sobreviveu, contudo, os
séculos vindouros pois, no século XIX
130
BOUTAUDOU, op. cit., p. 176/177:Mais si persistait la nostalgie de
lami défunt, Montaigne, en écrivant, avouait aussi as qte dun nouvel
ami. (...) En cela l’auteur ne semble envisager d’abord que la répétition,
dans la réalité, de lexpérience illuminante de lamitié labtienne. Le
hasard voulut que Montaigne rencontre, vers la fin de as vie, ce substitut
de l’ami perdu: une femme, Marie de Gournay, âgée de vingt ans.
Lessai II, XVII montre le prix que lécrivain, vieillard, attac à cette ren-
contre. Ne va-t-il pas, pour elle, jusquà remettre em question as
conviction que les femmes sont incapables damitié?
131
Ensaios, II, 17, 494.
51
a amizade vai se descobrir dividida entre a exaltação do
amor romântico e a intensificação dos vínculos familiares
em sua versão nuclear, em particular conjugal. A amiza-
de e depois o amor, sob a forma de um romantismo do-
mesticado que faz sua entrada progressiva no casamen-
to, vão dar lugar a uma profusão de discursos tanto lite-
rários quanto médicos. O discurso sobre a amizade ten-
de então a escassear e a se concentrar em suas funções
educativas.
132
Nessa linha de raciocínio, constatou-se a valorização do
vínculo familiar pela dissolução da distinção entre amizade e
família:
Com o recurso à intimidade e à confiança, as relações
de amizade serão introduzidas na família, entre irmãos,
cônjuges e pais e filhos. A nova amizade familiar abjura
da noção de livre escolha, ao se apoiar nesses valores,
que possibilitam o seu deslocamento para o seio da famí-
lia.
A família consegue tornar-se o pivô fundamental das re-
lações de sociabilidade e afetividade no século XIX.
133
Afinal,
parece que o amor é uma emoção e a amizade é uma
disposição do caráter; de fato, pode-se sentir amor tam-
m por coisas inanimadas, mas o amor recíproco pres-
supõe escolha e a escolha tem origem numa disposição
do caráter; além disto, desejamos bem às pessoas que
amamos pelo que elas são, e não em decorrência de um
sentimento, mas de uma disposição do caráter.
134
Repita-se, por oportuno, que realmente, o vínculo conju-
gal, assim como o natural, não induz necessariamente a afei-
ção, a reciprocidade e o cuidado de si que devem ter os ami-
132
COSTA, op. cit., p. 90.
133
ORTEGA, op. cit., p. 141.
134
ARISTÓTELES, op. cit., p. 263.
52
gos, quando sua relação tem por móbil apenas ela mesma, mas
também não impede que isso possa ocorrer.
Aristóteles, em sua ética, esclarece quea amizade entre
marido e mulher parece existir por natureza, corroborando essa
tese ao acrescentar que
Esta amizade pode fundar-se tamm na excelência mo-
ral, se as duas partes são boas, pois cada uma delas tem
sua própria forma de excelência moral, e isto pode con-
tribuir para a satisfação de ambas.”
135
Discorreu o estagirita, por outro lado, que a utilidade ob-
servada no vínculo matrimonial (vínculo esse, que Montaigne
chamou de negócio) também pode ser a determinante do con-
vívio dos cônjuges o que, per si, demonstraria que não ami-
zade ali.
No entanto, parecendo Montaigne antecipar-se ao seu
tempo, consignou que, acaso pudéssemos construir uma convi-
vência simbiótica com a mulher, sem dúvida teríamos a mais
plena e completa amizade, pois seria amizadeem que o a-
penas as almas desfrutariam totalmente mas também os corpos
participariam da aliança, em que o homem se envolveria por in-
teiro
136
.
Mas, como declarou adiante, inclusive com fulcro nas es-
colas antigas como ressaltou, não houve um exemplo sequer
que pudesse afirmar que a mulher pudesse chegar à verdadeira
amizade.
Nega, aqui, a amizade que tinha com Marie de Gournay?
Se assim é, como ele classificaria a sua relação? Qual o
seu fundamento? Prazer? Interesse?.
Salienta, contudo, Vincent-Buffault,
135
Ibidem, p. 274.
136
Ensaios, I, 28, 279
53
A valorização da amizade no Renascimento, que se rea-
propria da herança antiga, conjuga aspiração a uma ex-
celência, a uma glória comum e amor viril. Fora dos mo-
delos elitistas, a honra e a hospitalidade que regem a
amizade são assuntos de homem, ainda que as mulheres
desempenhem um papel nisso. (...) Mais próximo de
s, os laços que nascem do combate e da guerra, que o
recrutamento generalizou para o conjunto da população
masculina, influíram consideravelmente sobre a experi-
ência de amizade dos homens. Afrontar a morte juntos,
em um universo de que as mulheres estão ausentes, tor-
na-se parte absorvente do imaginário da amizade mascu-
lina.
137
E conclui a autora queesses modelos masculinos recusa-
vam às mulheres o acesso à amizade, considerada privilégio
dos homens. Tais modelos não têm equivalente na amizade fe-
minina
138
.
Relembre-se que nomundo antigo, a amizade tem um pa-
pel central. Em um mundo no qual a mulher é marginalizada, a
amizade ocupa o lugar que, em nossa sociedade, é reservado
ao amor. A amizade é o modelo de todas as relações humanas
(pessoais, familiares, políticas). É cantada pelos poetas e ce-
lebrada pelos filósofos
139
e, citando Dugas em Lamitié anti-
que
140
O lugar que os gregos deram à amizade em suas vidas e
conseqüentemente tamm em suas teorias morais, é
mais ou menos o mesmo que hoje damos ao amor. (...)
Os modernos que, ao contrário, praticam e louvam o a-
mor, conhecem pouco a amizade. Esta vem, para eles,
depois das afeições domésticas; é algo supérfluo, não
uma necessidade. É apreciada apenas pela natureza de-
licada: é um luxo da vida moral.
137
VINCENT-BUFFAULT, op. cit., p. 140.
138
Ibidem, p. 141.
139
Cf. BALDINI, Massimo. Amizade & Filósofos; trad. Antonio Angonese.
Bauru, São Paulo: EDUSC, 2000.
140
DUGAS, Ludovic. Lamitié antique. 2ª ed. Paris: 1914, p. 61.
54
Ainda se referindo à amizade cujo móbil seria outro, diver-
so dela mesma, o ensaísta criticou a pederastia
(...) aquela outra licenciosidade grega é legitimamente
abominada por nossos costumes. Entretanto, como, se-
gundo o uso, ela comportava uma tão necessária dispari-
dade de idades e diferença de benecios entre os aman-
tes, tampouco atendia suficientemente à perfeita união e
concordância que aqui exigimos.
E, citando Cícero, Montaigne indagou sobre o que seria,
de fato, esse amor de amizade? De onde viria que ele não se
ligue nem a um jovem feio nem a um ancião belo? Alicencio-
sidade grega era fundamentada simplesmente
em uma beleza exterior, falsa imagem da geração corpo-
ral. Pois não podia fundamentar-se no espírito, cuja de-
monstração ainda estava oculta, que estava apenas no
nascimento e antes da idade de germinar. Se esse delí-
rio se apossava de um coração baixo, os meios de sua
perseguição eram riquezas, presentes, favorecimento no
proveito de honrarias, e outros mercadejos igualmente
baixos, que eles reprovam. Se coincidisse com um cora-
ção mais nobre, as mediações eram igualmente nobres:
instruções filosóficas, ensinamentos sobre respeitar a re-
ligião, obedecer às leis, morrer pelo bem de seu país:
exemplos de coragem, prudência, justiça, empenhando-
se o amante em fazer-se aceitável pela amabilidade e
beleza de sua alma, a do corpo estando muito fanada,
e esperando por essa associação mental estabelecer um
arranjo mais firme e duradouro. Quando essa persegui-
ção obtinha sucesso em sua hora (pois o que eles não
exigem no amante, que ele empregue tempo e moderação
em seu empreendimento, exigem-no rigorosamente no
amado, porque ele tinha de julgar sobre uma beleza in-
terna, de conhecimento dicil e descoberta abstrusa),
então nascia no amado o desejo de uma compreensão
espiritual por intermédio de uma beleza espiritual. Esta
era a principal; a corporal, acidental e secundária: exa-
tamente o contrário do amante.”
141
141
Ensaios, I, 28, 279/280.
55
Com efeito, assim pareceu Montaigne desmentir a tese
daqueles que viram na sua amizade com La Boétie, uma sexua-
lidade.
Afirmou em relação ao período grego, por fim, quetudo o
que se pode apresentar em favor da Academia é dizer que se
tratava de um amor que terminava em amizade
142
.
O que diriam, então, aqueles que suspeitam da sexualida-
de de Montaigne, sobre os elogios do ensaísta a Marie de
Gournay?
Ademais, não nos parece tão sentido com a separação
de seu amigo La Boétie,
Obtive outrora proveito e vantagem com nosso afasta-
mento. Separando-nos completávamos melhor e ampliá-
vamos a posse da vida: ele vivia, desfrutava, via por
mim, e eu por ele, tão plenamente como se estivesse ali.
Quando estávamos juntos, uma parte permanecia ociosa:
confundíamo-nos um no outro. A separação espacial
tornava mais rica a conjunção de nossas vontades.
143
Noutro rumo, constataram alguns autores, tamm, que,
com o surgimento e fortalecimento do cristianismo, a amizade
renegou-se a favor da caridade, resultando disso, numa redefi-
nição de sua natureza e de sua finalidade.
Indubitavelmente, entre a caridade e a amizade existem
algumas afinidades e não poucas diferenças, (...) pode-
se observar que, enquanto a caridade é uma opção fun-
damental, a amizade certamente não se ressente de tal
absolutismo. Além disso, enquanto a caridade é triádica
(é uma relação com o outro, em Deus), a amizade é,
normalmente, diádica. E mais: a amizade é facultativa,
espontânea, não comunitária, não necessariamente san-
ta; ao contrário, a caridade é um dever, comunitária, o
arbitrária. (...) enquanto a amizade é necessariamente
142
Ibidem, p.280.
143
Ensaios, III, 9, 288.
56
recíproca, a caridade pode permanecer muito tempo, ou
mesmo para sempre, não retribuída.”
144
Em crítica ao cristianismo, Kierkegaard, in Diários
145
, cons-
tatou-se que os padres são mais professores do que testemu-
nhas, parecendo aqui, coadunar-se com o pensamento montaig-
niano posto no ensaio Da educação das crianças
146
e, como dis-
se Massimo Baldini em op. cit., p. 33,os sermões acabam sen-
do exercícios de retórica, ou seja, simples tagarelices. Na rea-
lidade eles deveriam pregar mais com o exemplo da vida do que
através de palavras, seguindo, igualmente, o exemplo de Mon-
taigne que prestigia, em detrimento de um saber puramente li-
vresco, a experiência. Kierkegaard observou que o cristianismo
destronou o amor e a amizade, para colocar no seu lugar o a-
mor do espírito, o amor do próximo pois, para o cristianismo
somente o amor de Deus e do próximo é o verdadeiro amor, im-
pondo, por outro lado, a desconfiança ao cristão ao se deparar
com o amor profano e a amizade.
Ecom o predomínio do Cristianismo diz Abbagnano
147
a importância da amizade como fenômeno humano primário de-
clina na literatura filosófica. O conceito mais amplo e mais im-
portante passa a ser o do amor, do amor ao próximo, que care-
ce dos caracteres seletivos e específicos que Aristóteles atribu-
íra à amizade. De fato, próximo é aquele com que deparamos
ou que está comumente em relação conosco, seja quem for, a-
migo ou inimigo. A máxima aristotélica da Amizade, compor-
tar-se com o amigo como consigo mesmo, ver nele um outro
144
BALDINI, op. cit., prefácio.
145
Cf. KIERKEGAARD, Soeren. Drios, edit. por Cornélio Fabro,
Morcelliana, Brescia, 1980.
146
Cf. Ensaios, I, 26.
147
ABBAGNANO, Nicola. Amizade, verbete inserto in Dicionário de Filo-
sofia; Martins Fontes, São Paulo, 2000, p. 38.
57
eu (Ét. Nic., IX, 9, 1170b 5; IX, 12, 1171b 32) é estendida pelo
Cristianismo a todo próximo.
Parece-nos, então, haver surgido conflito entre a caridade
(eminentemente universal) e a amizade (por sua vez, como es-
tritamente particular e de âmbito privado), o que nos induz per-
ceber que quando o sujeito se depara em situação na qual deve
decidir entre um sentimento e outro (afeto caritativo e afeto a-
mical), se vê em culpa (aliás, que constitui o eficaz instrumento
da Igreja Católica Apostólica Romana, vide a noção de peca-
do”) por preferir o amigo ao estranho e, novamente em culpa ou
remorso, por não tomar o partido dele diante de noções morais
preestabelecidas.
Enfim, chega-se aqui, a uma ética da amizade que, não
raras vezes, suscita conflitos nos indivíduos da sociedade, o
que, per si, configura problemas cujas soluções somente pode-
riam advir do estudo filosófico do tema.
Com o Renascimento o modelo de amizade elaborado na
antiguidade encontra novos cultores e, por breve espaço de
tempo, goza de alta estima, mas tudo volta a ser discutido no-
vamente no século XVIII
148
, pois, afinal,
a partir desse século o amor (eros) começou a fazer
concorrência e venceu a amizade. É este, aliás, o sécu-
lo no qual as mulheres começam a despontar sempre
mais nos caminhos da amizade, onde se celebra, cada
vez mais, a amizade entre os sexos como algo possível,
em que se teoriza e se pratica a amitié amoureuse.
149
Na mesma linha de constatação de Ortega
150
, esse autor
asseverou queem nossa sociedade a amizade parece ter sido
relegada a um breve período da vida do homem (a adolescên-
148
BALDINI, op. cit., prefácio.
149
Ibidem.
150
Cf. ORTEGA, op. cit.
58
cia) mas, para alguns, os mais pessimistas, é sua própria so-
brevivência que é colocada em dúvida por causa de determina-
das características estruturais da vida cotidiana nestas últimas
cadas: grandes movimentações populacionais, falta de tem-
po, formalidade nas relações interpessoais, falta de comunica-
ção, etc
151
.
A amizade cede, então, lugar ao amor, que, embora tam-
bém traga sofrimentos aos sujeitos da relação, quando, por e-
xemplo, não correspondido (semelhante à amizade que exige
reciprocidade), não exige um código de virtudes reais e con-
dições morais, reclamados somente pela amizade.
Mas, para Montaigne, oamor, é apenas um desejo des-
vairado perseguindo o que nos foge
152
.
Montaigne era, pelo que deixou transparecer em seus En-
saios, mais espírito do que físico, mais razão do que sentimen-
to, e, empolgado com a sua relação com o Sr. La Boétie, o exal-
tou em suas qualidades.
Isso poderia justificar as observações de alguns comenta-
dores, no sentido de que o ensaísta não acaricia, como se vê,
ilusões com as mulheres. Mas o ensaio Sobre os Versos de
Virgílio
153
mostra exatamente o contrário e, antecipando-se às
críticas sobre sua amizade com La Btie, considerou que
Todas as ações fora dos limites habituais estão sujeitas
a interpretação desfavorável, uma vez que nossa apreci-
ação não chega ao que está acima dela mais do que ao
que está abaixo.
154
151
Cf. BALDINI, op. cit.
152
Ensaios, I, 28, 277.
153
Cf. Ensaios, III, 5.
154
Ensaios, II, 2, 25.
59
Montaigne foi claro e fiel à sua intenção de auto-pintar-se
em seus ensaios sem articios
155
, ao afirmar queamava La Bo-
étie por que era ele acrescentando noutra edição posterior a
expressãopor que era eu
156
.
Ademais, a exposição de Montaigne que, acaso pressiona-
do teria tentado esclarecer o motivo de sua afeição a La Boétie,
respondendoporque era ele; porque era eu não foge a fórmula
aristotélica, assimilada séculos mais tarde por Cícero. Aristóte-
les registrou que oamigo é um outro eu
157
e Cícero afirmou
quecada um ama seu próprio eu (...), pois um amigo verdadei-
ro é para seu amigo um segundo ele próprio
158
Ainda em defesa das intenções de Montaigne, sem, contu-
do, algum interesse moral nisso, ressalte-se que o próprio en-
saísta, naquela ordem de importância, consignou que caso pu-
dessem as mulheres atingir um estado de verdadeira amizade,
seria, com elas, o relacionamento mais perfeito pois ali teriam
compartilhado, não só o espírito, como também a matéria
159
,
deixando claro distinguir a necessidade espiritual na aquisição
de conhecimento e sabedoria, pouco observada nas mulheres
155
Ensaios, I, 26, p. 221.
156
Ensaios, I, 28, p. 281, nota 21, da tradutora: O exame do exemplar de
Bordeaux revela que esse acréscimo manuscrito não foi redigido de uma
só vez: primeiro Montaigne escreveu porque era ele. Em uma outra o-
caso acrescentouporque era eu.
157
ARISTÓTELES, op. cit., p. 292.
158
Cf. CÍCERO, Marco Túlio. Da Amizade; trad. Gilson César Cardoso de
Souza; revisão Jo Carlos Cabral Mendonça, Marianna Sérvulo da Cu-
nha; notas Homero Santiago. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
159
Ensaios, I, 28, 278/279:Quanto aos casamentos, am de ser um ne-
cio em que apenas a entrada é livre (sendo sua duração imposta e for-
çada, dependente de outras coisas am de nossa vontade), e negócio
que habitualmente se faz com outros fins em meio a ele sobrevêm mil e-
maranhamentos estranhos a serem desenredados, suficientes para romper
o fio e perturbar o curso de uma viva afeição; ao passo que na amizade
só afazer e comércio dela mesma (...). Mas certamente, se assim não
ocorresse, se fosse possível construir uma tal convivência, livre e volun-
tária, em que não apenas as almas desfrutassem totalmente mas tamm
os corpos participassem da aliança, em que o homem se envolvesse por
inteiro, é indiscuvel que então a amizade seria mais plena e mais com-
pleta.
60
daquela época, face a então conjuntura que lhes impusera o
domínio apenas das prendas do lar
160
, da necessidade física,
resultante dos afagos amorosos.
O próprio Montaigne ressaltou, inclusive, queum bom ca-
samento, se é que existe, rejeita a convivência e as condições
do amor. Procura imitar as da amizade
161
.
E, para finalizar esse tópico de modo a arrematar a conju-
tura cultural e política da época de Montaigne e aquela, poste-
rior, Nietzsche indaga,
Ainda não é a mulher capaz de amizade. Mas dizei-me,
vós, homens, quem de vós é capaz de amizade?
162
c. Amizade e demais relacionamentos
No rumo que adotamos na presente dissertação, devemos
nos ater as observações de Montaigne, relativas às demais re-
lações sociais, representadas pela camaradagem, que podem
ter por fundamento, o prazer e o interesse.
Freqüentando Montaigne, ainda, as lições aristotélicas,
coadunando-as às suas, afirmou que
De resto, o que costumamos chamar de amigos e amiza-
des são apenas contactos e conveniência por meio da
qual nossas almas se mantêm juntas. Na amizade de
que falo
163
, elas se mesclam e se confundem uma na ou-
160
Ibidem, p. 278 :Acresce que para dizer a verdade a capacidade habi-
tual das mulheres, não é para corresponder à freqüentação e comunica-
ção que alimentam essa sagrada juntura; nem sua alma não parece bas-
tante firme para suportar o amplexo de um laço tão estreito e tão dura-
douro.
161
Ensaios, III, 5, 99.
162
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim falou Zaratustra, um livro para todos
e para ningm; trad. Mário da Silva, 6ª ed., Rio de Janeiro: Editora Ber-
trand Brasil S.A., 1989, p. 73.
163
“Amizade verdadeira, fundada na virtude.
61
tra, numa fusão tão total que apagam e não mais encon-
tram a costura que as uniu.
164
Montaigne, sem muito se esforçar para nós, demonstra
que enquanto nas relações de camaradagem amizades co-
muns do dia-a-dia o vínculo que as mantém é apenas super-
ficial, na amizade perfeita que tanto prega a La Btie, uma
força inexplicável e fatal, mediadora dessa união.”
165
, enfim,
umaquintessência de toda essa mistura
166
Nas relações de camaradagem,as amizades deste tipo
são apenas acidentais, pois não é por ser quem ela é que a
pessoa é amada, mas por proporcionar à outra algum proveito
ou prazer
167
.
Ressalta o ensaísta, ainda, que
Tendo tão pouco tempo para durar
168
e começando tão
tarde, pois ambos éramos homens feitos, e ele com al-
guns anos a mais, ela não podia perder tempo e sujeitar-
se ao modelo das amizades frouxas e regulamentares, às
quais são necessárias tantas precauções de longa e pré-
via freqüentação. Esta não tem outra iia a não ser ela
mesma, e só pode ser conforme consigo mesma.
169
Perder tempo e sujeitar-se ao modelo das amizades frou-
xas? Ora, não se produz prontamente amizades perfeitas.
Não se tem fórmula ou uma codificação para atingi-la. Necessi-
ta-se, unicamente, de tempo que possa mostrar a intimidade
dos sujeitos e, conseqüentemente, suas virtudes.
164
Ensaios, I, 28, 281.
165
Ibidem, p. 281.
166
Ibidem, p. 282.
167
ARISTÓTELES, op. cit., p. 260.
168
Talvez essa amizade só tenha nascido e crescido, e não tenha tido
tempo de morrer em si mesma, mas por ocasião do destino e fortuna de
La Boétie, durou pouco para que ambos se conhecessem efetivamente.
Aproximadamente quatro anos, sem descontar as viagens que o ofício e-
xigia de ambos.
169
Ensaios, I, 28, 282.
62
Demonstrando assim que tudo é efêmero, volátil e frágil,
nada se mantém
170
, Montaigne
mostra esses vínculos como familiaridades superficiais
(superficille accointance), sempre estabelecidas por al-
guma ocasião ou comodidade, de modo a sugerir que
resultam finalmente em pura proximidade (ocasião) ou se
mantêm pelo apoio que tomam na complementaridade
dos interesses, na utilidade (os exemplos que lhe aco-
dem são, aliás, significativos: as relações com seu mé-
dico, advogado u lacaio, os convivas da mesa e a socie-
dade de discurso).
171
E conclui,
Frágeis semelhanças portanto, que nos atam apenas
por uma ponta (uma pontinha: confederations qui ne
tiennet que par um bout; enquanto na amizade verdadei-
ra estamos interiamente em causa, tudo conta, pois ela
não deixa resto).
172
Enfim,o vínculo o toma forma, faz o corpo
173
.
Se as ações de ambos [referindo-se Montaigne a Tirio
Graco e a Caio Blósio] se desencontrassem, eles não se-
riam nem amigos um do outro segundo minha medida,
nem amigos de si mesmos. (...) Por isso não atesta aqui-
escência em fazê-lo [atear fogo ao templos a mando do
amigo] porque não tenho a menor vida sobre minha
vontade, e tampouco sobre a de um tal amigo. Não está
no poder de todos os argumentos do mundo afastar-me
da certeza que tenho sobre as intenções e julgamentos
de meu amigo.
174
Montaigne suplica, então, que o o coloque na mesma
linha das relações de camaradagem (amizades comuns”)
175
,
170
CARDOSO, op. cit., p. 180.
171
Ibidem, p. 180.
172
Ibidem, p. 180.
173
Ibidem, p. 180.
174
Ensaios, I, 28, 282/283.
175
Ibidem, p. 283.
63
pois que, nestasé preciso andar com as rédeas na mão, com
prudência e precaução uma vez que aligação não é atada de
maneira que não haja a menor desconfiança
176
em função de
fins diversos: a esperança de serviços e benecios.
Ou seja, nesse tópico a relação poderá se fundar, tanto na
utilidade (ou interesse) quanto no prazer, o que, por outro lado,
não quer dizer que na amizade perfeita essas qualidades o
possam aparecer, porque
Tal amizade é logicamente permanente, já que ela com-
bina em si mesma todas as qualidades que os amigos
devem ter.
Esta espécie de amizade, então é perfeita relativamente
à duração e a todos os outros aspectos, e nela cada par-
te recebe da outra em todos os sentidos o mesmo que
lhe , ou algo muito parecido; e é isto que deve ocorrer
entre amigos.
A amizade por prazer tem alguma semelhança com esta
escie, pois pessoas boas também são reciprocamente
agradáveis. Acontece o mesmo em relação à amizade
por interesse, pois as pessoas boas tamm são recipro-
camente úteis.”
177
embora não sejam elas, o fundamento da relação com o outro.
Assim que algo perder a sua utilidade, deixará de ser inte-
ressante. O fim dessa amizade se esgota no interesse; naqui-
lo que se pode extrair, não é o fim em si; não se tem amizade
pelo amigo em si mas pelo que ele pode oferecer.
Não é ele que importa e sim o que dele advém de vantajo-
so. Ele só importa em si como meio e não como fim.
O mesmo ocorre em relação ao prazer.
Em contrapartida, a amizade fundamentada na virtude, se
tem pelo amigo, que é o telos da amizade, o que importa é o
176
Ibidem, p. 283.
177
ARISTÓTELES, op. cit., p. 261/262.
64
amigo, do jeito que ele é, com qualidades e defeitos (estes re-
cusados por Montaigne, que parece não ter visto nenhum em La
Boétie), e o que importa de fato, em última instância, é o bem
estar do amigo, é o bem (que embora seja fim em si mesmo
concorre para um bem maior, desejado em si, que não serve
como meio a um outro objetivo), dentre todos os bens, deve ser
aquele que é o mais excelente de todos: a vida e se possível
- feliz.
Assim as ações dos amigos buscam, reciprocamente, a fe-
licidade do outro e o maior bem para o outro: por isso Aristóte-
les diz que a amizade verdadeira é trágica pois ela se esgota
em si pois um amigo deseja ao outro a divindade e, devido a
distância entre deuses e homens, não como se manter ami-
zade pois, nesta qualidade, presume-se certa igualdade entre
eles, que comporte apenas pequenas variações
178
.
Aristóteles tem por maior virtude a justiça e a amizade,
sendo que, para ele, um homem justo o é, necessariamente
amigo e, por outro lado, um amigo é sempre um homem justo
com o amigo.
Isso forma os princípios de uma ética da amizade porque,
como se depreende dos ideais aristotélicos, o homem é um a-
nimal social e, por isso, se vê infeliz quando vive isoladamente:
por isso o homem feliz necessita de amigos.
178
Cf. AUBENQUE, Pierre. La prudencia en Aristóteles; com un apéndice
sobre La prudencia en Kant; tradução castelhana Maria José Torres gó-
mez-Pallete. Barcelona: Novagràfik, S.L., 1999.
65
CAPÍTULO III
Amizade Perfeita, fundada na virtude
Kranz observou que a justiça e a amizade formam para A-
ristóteles o fundamento ético da vida na sociedade
179
. Repita-
se que estagirita, além de reconhecer que o homem é uma ani-
mal político
180
, reconhece que o homem justo é virtuoso.
E, com efeito, o homem justo poderá o ser amigo, mas
este será, necessariamente, um homem justo com o outro ami-
go, motivo pelo qual, se os cidadãos fossem amigos entre si,
dispensável seria o estudo da justiça como fundamento ético
181
,
poiscomo um e outro procuram, mais que qualquer outra coisa,
fazer-se mutuamente o bem, aquele que fornece matéria e oca-
179
KRANZ, Walter. La filosofia griega. Em História da filosofia; trad. A-
fonso José Casto Piñan. México: Hispano Americana. p. 41:justicia
y amistad (ésta todavia em grado más alto) formam para Aristótles el fun-
damento ético de toda vida em comunidad.
180
ARISTÓTELES, op. cit., p. 292/293: “(...) ninguém desejaria todo o
mundo com a condição de estar só, já que o homem é um animal social e
um animal para o qual a convivência é natural.
181
ARISTÓTELES, op. cit., p. 258:quando as pessoas são amigas não
têm necessidade de justiça, enquanto são justa elas necessitam da ami-
zade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposi-
ção amistosa
66
sião para isso é que age como generoso, dando ao amigo a ale-
gria de fazer por ele o que mais deseja
182
.
Montaigne esclarece, no entanto, a utopia de Aristóteles,
Cícero e, por que não dizer, de La Boétie também, sob o argu-
mento, talvez falho, de que a amizade perfeita é indivisível,
uma vez que
cada um se tão inteiramente a seu amigo que nada
lhe resta para distribuir alhures.
183
Nega, categoricamente, a possibilidade de se ter mais de
um verdadeiro amigo.
Porém, na linha de Cícero que salientou que se deve evi-
tar as amizades numerosas, para que um só não se preocupe
com muitos, pois é notório que cada qual já tem problemas de
sobra, não precisando meter-se com os dos outros
184
, intuiu
Montaigne a dificuldade em formar amigos verdadeiros
185
.
O ensaísta, entretanto, traduziu a impossibilidade de uni-
versalizá-la
186
, dogmatizando-a o que, por si só, resulta na ne-
gativa de seu pensamento.
182
Ensaios, I, 28, 284.
183
Ibidem, p. 285.
184
CÍCERO, op. cit., p. 59.
185
Ensaios, I, 28, 275: “(...), encaminhando assim essa amizade que, en-
quanto Deus quis, alimentamos entre s, tão íntegra e tão perfeita que
sem a menor dúvida o se lê sobre outras iguais, e entre nossos con-
temporâneos não se vê menor indício de sua prática. Para construí-la
são necessárias tantas circunstâncias que é muito se a fortuna o conse-
guir uma vez cada três séculos.
186
Ibidem, p. 285: “(...). A Amizade perfeita é indivisível: cada um se
tão inteiramente a seu amigo que nada lhe resta para distribuir alhures;
ao contrário, ele se aborrece por não ser duplo, triplo ou quádruplo e por
não ter várias almas e várias vontades para entregá-las todas a esse ob-
jeto. As amizades comuns podem ser repartidas: pode-se amar neste a
beleza, nesse outro a docilidade do comportamento, em outro a liberali-
dade, naquele a conduta como pai, neste outro a fraternidade, e assim
sucessivamente; mas, essa amizade que possui a alma e a governa com
total soberania, é impossível que seja dupla. Se dois ao mesmo tempo
pedissem para ser socorridos, qual acudiríeis? [Aos dois ao mesmo tem-
po. Acaso tivesse condição física para socorrer apenas um, morreriam,
67
Todavia, ao assim proceder, não esclarece porque a sua
regra serve à justificação de nossa duplicidade, eis que o a-
migo é um outro eu e temosuma única alma em dois cor-
pos
187
, e não fundamenta a possibilidade de sermos triplos,
quádruplos, quíntuplo, enfim.
Estranheza causa, então, a afirmação de Montaigne no
sentido de quenada sei fazer melhor do quer ser amigo
188
,
porque, se a amizade exige “reciprocidade, e ele não tem ami-
gos, como poderia sê-lo de outros?
Há comentadores que vêem, nessa assertiva de Montaig-
ne, a inflncia de sua obra sobre o pensamento ocidental,
sendo que cada leitor encontra, certamente essa amizade, nas
páginas dos Ensaios
189
. Nada mais poético.
Plutarco, por sua vez, vê a possibilidade de possuirmos
amigos verdadeiros, não limitando apenas a um,
Nada é mais agradável do que dividir com várias pesso-
as os sentimentos de uma benevolência recíproca, e um
verdadeiro amigo trabalha incessantemente para nos tor-
nar queridos e estimáveis por todos que nos conhecem.
Persuadido de que entre amigos tudo é comum, é sobre-
tudo a amizade que quer com eles partilhar.
190
então, os três tentando]. Se solicitassem de vós serviços opostos, que
ordem encontraríeis nisso? [Os três, por se considerarem um, permitiria
que, por óbvio, o outro fosse atendido em primeiro lugar, eis que o seu
bem-estar consiste em proporcionar o bem-estar do outro, ademais, em
função da afinidade de vontades e virtudes, não haveria entre eles quais-
quer oposição]. Se um confiasse ao vosso silêncio algo que ao outro fos-
se útil saber, como vos desenredaríeis disso? [Os três seriam como um
só e nada impediria que, confiar a um por tê-lo como se fosse um outro
eu, não pudesse confiar a um terceiro, por tê-lo tamm como a um
outro de nós”. A amizade perfeita de “A e “B”, seria para “B”, tamm
tão perfeita com C se A tamm tivesse C como um amigo perfeito.
Se “A” se identifica com “B”, e “B” com C, “A”, necessariamente se iden-
tificará com C].
187
Ibidem, p. 284.
188
Ensaios, I, 9, p. 48.
189
COELHO, Marcelo. Montaigne. São Paulo: Publifolha, 2001, p. 17.
190
PLUTARCO, op. cit., p. 57.
68
Com efeito, Aristóteles afirmou a importância da amizade
na vida ética, tendo-se por verdadeiroque as pessoas boas
praticam muitas ações por causa de seus amigos e de sua cida-
de e, acaso necessário, até morreriam por eles e ela”.
191
Na ética nicomaquea, essa prática corresponderia às ver-
dadeiras ações nobilitantes, cujo exercíciorecebem a aprova-
ção e o louvor de todos; e se todos se emulassem no sentido do
que é nobilitante e se esforçassem ao máximo por praticar as
ações mais nobilitantes, tudo seria, como deve ser, para o bem
comum, e cada pessoa asseguraria para si mesma os bens mai-
ores, já que a excelência moral é o maior dos bens
192
.
Sendo que as ações nobres seriam ainda mais nobres,
quando praticadas pelo bem de um amigo, que, até aqui, con-
corda Montaigne.
Aubenque procurou, em relação ao sábio, discutir se ele,
autárquico, necessitaria ou o de amigos ou, em função da sua
auto-suficiência, que o faz assemelhar a sua vida virtuosa à vi-
da divina, dever-se-ia fazê-lo um homem solitário.
Relembrando Sêneca, Petit ressaltou queo basta dis-
tinguir as ligações temporárias das amizades verdadeiras, para
imunizar estas últimas contra as virtualidades da discórdia.
Mesmo com essa disposição favorável, restaria superar a difi-
culdade muito real que consiste na aparente exterioridade dos
amigos diante da auto-suficiência do homem completo, o spou-
daios de Aristóteles. Com efeito, considera-se que o homem
completo se basta a si mesmo, evidentemente com toda a ra-
zão; essa autarquia não deixou, porém, de suscitar uma longa
controvérsia, já que parecia tornar supérflua toda amizade”.
193
191
ARISTÓTELES, op. cit., p. 291.
192
Ibidem, p. 291.
193
PETIT, op. cit., p. 58/63
69
Enfim, voltamos a Aristóteles para saber se uma pessoa feliz
necessita ou não de amigos”
194
.
Embora Montaigne diga que s possuímosuma alma que
pode se recurvar em si mesma
195
- e adverte que
quem puder inverter e misturar em si mesmo os papéis
da amizade e da companhia, que o faça. Nessa queda,
que o torna itil, pesado e importuno para os outros, e-
vite ele tornar-se importuno para si mesmo, e pesado, e
itil
196
,
pareceu estranho a Aristóteles, contudo, querer que o homem
feliz o tenha amigos uma vez que, amizade é um bem ineren-
te ao homem, que é, repita-se, um animal político para qual a
convivência é natural.
O homem feliz deve ter uma vida agradável e, se ele fosse
solitário, sua vida seria difícil pois, para o homem só não é fácil
estar constantemente em atividade e a felicidade, para Aristóte-
les, é uma atividade
197
.
Além do mais, o homem dotado de excelência moral, con-
templará as boas ações, as ações nobilitantes ese as pessoas
dotadas de excelência moral se comportam em relação a si
mesmas da mesma forma que em relação aos amigos (pois o
amigo é um outro eu)- se tudo isto é verdade, então, da mes-
ma forma que sua própria existência é desejável para cada pes-
soa, a existência de um amigo é tamm desejável
198
.
Assim, mediante a consciência recíproca da existência dos
amigos, a convivência evidenciará a comunhão de palavras; a
comunicação como resumiu Aubenque (o que La Btie queria
194
ARISTÓTELES, op. cit., p. 292.
195
Ensaios, I, 39, 359.
196
Ibidem, p. 361.
197
ARISTÓTELES, op. cit., p. 293.
198
Op. cit., p. 294.
70
no seu Discurso); a reciprocidade de sentimentos e de ações,
nobilitantes por óbvio.
Poder-se-ia dizer, acreditamos, que a amizade poderia
emprestar seus princípios à uma ética e à uma moral que, por
sua vez, procuram, educar os desejos das pessoas e ensi-las
o valor da autonomia ao agir, porque o prudente é aquele que
não depende das coisas ou dos outros para agir, pois encontra
dentro de si os meios da ação sobre as coisas, sobre os outros
e com os outros
199
.
O ideal da autonomia é autárquico e, para Aristóteles, so-
mente o Primeiro Motor Imóvel possui autarquia. Somente Deus
é auto-suficiente e independente dos outros e das coisas e, por
isso, apenas ele é plenamente feliz. Os homens não podem ter
essa plenitude, mas podem desejá-la e imitá-la, como já foi di-
to. E assim o fazem pela amizade.
Não é possível, a partir de Deus, deduzir o homem e nem
a partir do homem a Deus
200
. Para os homens, o bem implica
numa relação com o outro, enquanto que Deus é par si mesmo
seu próprio bem.
O homem - animal político forma então, junto ao amigo,
a unidade mais completa e perfeita do que os indivíduos sepa-
rados e, pela ajuda recíproca e busca do bem recíproco, fazem
com que cada um seja mais autônomo.
E, como um amigo é um outro eu, se espelham no amigo
não só para contemplarem-se reciprocamente, por identidade de
199
CHAUÍ, op. cit., p. 462.
200
Ensaios, II, 12, 250:Dizemos que Deus teme, que Deus se encoleri-
za, que Deus ama, expressando em termos mortais coisas imortais, tudo
isso são agitações e emoções que o podem existir em Deus segundo
nossa maneira de ser, nem podemos imagi-lo segundo a dele. Somente
a Deus cabe conhecer-se e interpretar suas obras.; e Ibidem, p. 281:O
homem só pode ser o que é, e imaginar de acordo com sua medida. Para
os que são apenas homens, diz Plutarco, é maior presunção aventurar-se
a falar e discorrer sobre os deuses e os semideuses do que o é um ho-
mem ignorante em música querer julgar os que estão cantando, (...)”.
71
caráter, como também para corrigirem-se, mutuamente, na bus-
ca da felicidade, bem maior.
A amizade é, portanto, a forma pela qual o homem imita a
autarquia divina e, através dela, emprestam ao nível humano as
intenções divinas.
Nessa linha, Aubenque diz que os objetivos dos homens
são os mesmo de Deus, porém, os meios para realização des-
ses fins são diferentes
201
.
A amizade como nos disse o padre Pluquet, citado por
Vincent-Buffault -ao unir os homens mais ou menos segundo o
grau de suas semelhanças, tende a produzir no mundo moral
uma harmonia constante, uma concórdia universal e uma felici-
dade para todos os homens
202
, o que nos demonstra a temati-
zação da amizade como um programa ético a ser posto em prá-
tica, codificando-se os comportamentos sociais.
a. O problema ético de Montaigne, relativo à Amizade Per-
feita
O Da amizade, voltando-se ao ensaísta, nos parece, à
primeira vista, suficiente para demonstrar o primeiro problema
ético encontrado em Montaigne que, levado pelo sentimentalis-
mo exacerbado, poderia ter se equivocado quanto ao conheci-
mento que julgava ter acerca da verdadeira amizade com La
Boétie, eis que a emoção (acentuada nesse ensaio face à morte
201
Cf. AUBENQUE, op. cit., p. 209: eis que el hombre tiene necesidad de
medios, mientras que dios es la inmediatez misma de la intencion y del
acto. Esta auto-suficiência originárias de la esencia divina, el hombre
sólo puede alcanzarlas mediante un proceso de tanteo laborioso, cuyo
rasgo principal es la existencia da mediación [porque para Deus, o pen-
samento e a ação se o imediatemante, enquanto que para os homens
isso não é possível]. Así, es necesario que el hombre tenga amigos, ya
que no puede conocerse y realizar su próprio bien más que a través de
um alter ego, ou seja, um outro eu.
202
VINCENT-BUFFAULT, op. cit., p. 65.
72
do amigo), muitas vezes induz os indivíduos a enxergarem coi-
sas ou situações, conhecendo-as, não conforme a coisa ou si-
tuação conhecidas, mas sim conforme a própria vontade.
203
Nesse sentido foi que Cícero, pela boca de lio, repreen-
deu Fânio que, por agir certamente como amigo, como ressal-
tou, lhe atribuía tanta coisa que não reconhecia nem postula-
va
204
. Enxergava Fânio, qualidades que não existiam no amigo
lio.
Não teria La Boétie, aqui, repreendido Montaigne que cos-
tuma ao falar a favor de seus amigos, fazia, como confessou,
de um de valor, um e meio
205
?
Tal postulado se evidencia pelo convívio com os mais va-
riados tipos de pessoas conhecidas, que, em determinadas si-
tuações, afirmam solenemente que não se reconhecem mais.
A questão, então, resumiria em não se reconhecer o amigo
porque ele age de modo estranho aquele que se julgava ser ele
incapaz de agir (aliás,não é de espantar se o vedes transfor-
mado em outro por outras circunstâncias opostas
206
), face à
sua personalidade que igualmente se julgava conhecer ou re-
presentaria essa tal atitude do amigo estranha para o julgador,
a percepção de que, naquele momento, passa-se a conhecer, de
fato, o amigo?
Naquele momento, se toma consciência da contingência e
inconstância do homem?
203
Aqui cabe ao leitor, acaso deseje aprofundar um pouco mais o assunto,
ler os Ensaios III e IV, do Livro I, respectivamente, intituladosNossas
afeições deixam-se levar para am de nós eComo a alma descarrega
suas paixões sobre objetos falsos, quando os verdadeiros lhe faltam”.
204
Cf. CÍCERO, op. cit., p. 13.
205
Ensaios, II, 17, 489.
206
Ensaios, II, 1, 9.
73
Se assim fosse, Montaigne estaria de acordo com o seu
pensamento cético. Mas não é isso que ocorre em seu ensaio
Da Amizade.
Enfim, não raras às vezes, é possível verificar que muitos
que convivem um, dois, dez, vinte anos e ainda são surpreendi-
dos pelas atitudes do outro, que nele via um amigo; porque
Montaigne, em quatro anos de convívio com La Btie, julgaria
tê-lo conhecido tão bem a ponto de julgar não poder se surpre-
ender?
Talvez porque ele tivesse visto no amigo, o que gostaria
de ver, um amigo verdadeiro a não conhecer, ou não querer re-
conhecer no amigo, os defeitos dele próprio (Montaigne). Afi-
nal, a fórmula utilizada por Aristóteles e Cícero, é agora absor-
vida por Montaigne ao dizer que La Boétie eraum outro eu
207
.
Não teria Montaigne, então, feito com La Btie aquilo que
Fânio fez a Lélio?
Ou quiçá, não teria Montaigne outro móbil para exaltar
tanto o amigo? Tentaremos responder isso mais adiante.
Ademais, Montaigne conheceu-se durante seus trinta e oi-
to anos de idade, quando então se exilou definitivamente na tor-
re de seu castelo no intuito de, nos Ensaios, se pintar. Como
poderia, em apenas quatro anos de convívio com La Boétie (que
não foram diários face os ofícios que ambos exerciam no gover-
no que exigiam deles, as constantes viagens), julgar conhecê-lo
tão bem de modo a, nele, se reconhecer?
207
Ensaios, I, 28, 283: Não está no poder de todos os argumentos do
mundo afastar-me da certeza que tenho sobre as intenções e julgamentos
de meu amigo. Nenhuma de suas ações me poderia ser apresentada, sob
qualquer aparência, sem que eu descobrisse incontinenti seu motivo.
Nossas almas viajaram tão unidamente juntas, examinaram-se com tão
ardente afeição, com a mesma afeição descobriram-se até as mais pro-
fundas entranhas uma da outra, que não apenas eu conhecia a sua como
se fosse a minha mas indiscutivelmente me confiaria a ele de melhor gra-
do do que a mim mesmo..
74
Parecendo se contradizer, Montaigne afirmou que o seu
pensamento estava em constante movimento de acordo com o
devir, o que evidenciava a impossibilidade humana de obter,
conforme seu pensamento, o conhecimento das coisas e de si
mesmo, além das aparências
208
.
O fato é que esse idealismo referente à figura de La Boé-
tie não foi, pela fortuna do amigo, posto à prova, face à abrevi-
ação do comércio pelo seu falecimento. Embora houvesse dis-
sensões políticas
209
, não houve tempo
210
para, por que o di-
208
AZAR FILHO, Celso Martins. Acerca do Naturalismo de Montaigne. O
que nos faz pensar (Cadernos do Departamento de Filosofia da PUC-Rio),
8, 1994, p. 28-38.
209
LACOUTURE, Jean. Montaigne a Cavalo. Trad. F. Rangel, Editora Re-
cord, Rio de janeiro, 1998, p. 87/92: Na região de Agenais, a tensão não
ra de aumentar, pois os protestantes invadem igrejas e conventos, in-
clusive o dos dominicanos, quebrando imagens e relíquias. A Corte não
pode deixar passar tal ofensa; entretanto, fiel a sua política apaziguado-
ra, decide enviar para o local dos distúrbios um chefe militar conhecido
por sua moderação, Charles de Coucy, senhor de Burie, lugar-tenente do
rei na região da Guyenne desde 1558 [ajudado por La Boétie, que enca-
minharam a missão] (...) Burie e La Boétie encaminham a missão (setem-
bro-novembro de 1561) de tal maneira que a calma retorna às margens
do Garona, graças sobretudo à iniciativa audaciosa que tomam: nas loca-
lidades onde existem duas igrejas, a menor será reservada aos reforma-
dos; naquelas onde só existia uma, esta seria colocada à disposição dos
dois cultos, que se revezariam (...). Eis portanto La Boétie na dianteira
de uma tentativa política audaciosa. (...) o momento de paz ainda não
chegara (...) quando os radicais do partido católico provocam nova rup-
tura (...). A resposta protestante toma formas militares em todo o país,
sobretudo na Guyenne: enquanto Bordeaux é invadida (em vão) pelas
tropas de Duras, Bergerac é tomada pelas de Clermont. O parlamento de
Bordeaux vê-se obrigado a recrutar milícias para conter tais investidas e
escolhe alguns de seus membros para administrá-las ou limitar seus ex-
cessos. Entre eles, o antigo pacificador transformado em chefe de guer-
ra, Étienne de La Btie. Essa mudança de papel, que é muito comum em
períodos conturbados, teria provocado no amigo de Montaigne uma mu-
dança de caráter que o teria levado a se arrepender de suas atitudes de
1561 e de seu papal de defensor da tolerância, de precursor da coexis-
tência? Com as esperanças destruídas, como é muitas vezes o caso dos
pacifistas, ter-se-ia tornado um homem raivoso, condenando suas atitudes
fracassadas? [a existência de um Relatório sobre a Pacificação das Re-
voltas”, cuja autoria teria sido atribuída, embora existam teses, a La Boé-
tie, fez com que comentadores de sua obra discutissem a mudança radical
de opino de La Btie] que de apóstolo da coexistência em 1561 trans-
formou-se, um ano depois, em defensor do pluralismo. (...) A religo ca-
tólica o poderia ser reformada, na França, sem violência nem rebelião,
reelaborando alguns sacramentos, proibindo algumas práticas? Não po-
75
zer, decepções que viessem a enfraquecer a relação ou desmiti-
ficar o amigo perdido.
Seja sob o olhar intratável do mais velho, seja sob o o-
lhar malvel do mais novo, a guerra civil aparecia sem-
pre como algo abomivel. A paixão pela justiça ou o
gosto pela tolerância aliavam-se tão bem quanto os co-
rações diferentes dos dois jovens. Seríamos por isso o-
brigados a supor como o faz com amargura Pierre
Barrière que as desavenças políticas teriam mais cedo
ou mais tarde acabado com a harmonia desse famoso ca-
sal?
Enfim,
O destino não permitiu que o desenvolvimento da guer-
ra, a partir de 1562, pusesse à prova essa harmonia:
menos de um ano mais tarde, a peste tiraria Étienne de
La Btie de seu amigo.
211
pois, afinal,as pessoas amigas com base na excelência moral
mostram-se ansiosas por fazer bem umas às outras (isto é ca-
racterístico tanto da excelência moral quanto da amizade), e
entre pessoas que se emulam reciprocamente neste procedi-
mento não pode haver queixas ou querelas; pessoa alguma é
ofendida por outra que ama e lhe faz bem
212
.
deria uma reforma amigável e negociada não sob a égide de Roma, a-
bominada pelos protestantes, mas soba a autoridade do parlamento e do
rei ao qual este servia substituir o combate e a coabitação competitiva?
(...) Essa reatribuição [sobre a autoria do referido Relatório a um buro-
crata ao invés de La Boétie] traz à tona um dos incontáveis problemas
levantados pela amizade-paixão dos dois jovens magistrados: o de sua
convergência política. (...) Nessa área, a amizade-paixão por La Boétie
não passaria de uma parênteses. É muito provável que tenham chegado a
um acordo devido à influência decisiva do mais velho em relação a
suas opines sobre a tolerância, a coexistência, a transição de uma para
a outra, (...). Seríamos por isso obrigados a supor como o faz com a-
margura Pierre Barrière que as desavenças políticas teriam mais cedo
ou mais tarde acabado com a harmonia desse famoso casal?”
210
No mesmo sentido, COELHO, op. cit., p. 21.
211
LACOUTURE, op. cit., p. 92.
212
ARISTÓTELES, op. cit., p. 275.
76
Se Montaigne tivesse constatado a necessidade de formu-
lar, como o fez Aristóteles
Outra pergunta que se pode fazer é se as amizades de-
vem ou não devem ser desfeitas quando os amigos já
não são os mesmos que eram no início das relações.”
213
e queocorrem muitas diverncias entre amigos quando a na-
tureza de sua amizade o é a que eles pensam
214
, teria perce-
bido que o que pressupunha não o era de fato. Poderia concluir
que
quando uma pessoa se engana pensando que está sen-
do amada por causa de seu caráter, enquanto a outra
nada faz que a autorize a pensar desta maneira, ela deve
culpar-se a si mesma; quando, porém, ela é enganada
pelo fingimento da outra, é justo que ela se queixe da-
quela que o enganou; (...), porquanto a ofensa se rela-
ciona com algo mais valioso do que o dinheiro.”
215
pois, com efeito,as formas que tomam nossos sentimentos a-
mistosos em relação ao próximo, e as características pelas
quais se definem as diferentes espécies de amizade, parecem
derivar de nossos sentimentos em relação a s mesmos
216
.
Que nossa opinião atribui um preço às coisas, vê-se por
aquelas, em grande mero, em que nos fixamos por es-
timar não a elas e sim a s; e o consideramos nem
suas qualidades nem suas utilidades, mas somente nos-
so custo para obtê-las, como se isso fosse uma parte de
sua substância; e chamamos de valor nelas o o que
trazem e sim o que lhes colocamos.
217
213
Ibidem, p. 283.
214
Ibidem, p. 282.
215
Ibidem, p. 283.
216
Ibidem, p. 284.
217
Ensaios, I, 14, p. 90.
77
Isso demonstra, em síntese, que a amizade não pode
pressupor um conhecimento preestabelecido, estático e efetivo
dos sujeitos, resultando, em contrapartida, em preconceito.
Aqui sim, estaríamos resgatando o ceticismo montaignia-
no, impregnado em toda a sua obra. O idealismo de Montaigne,
corroborado pela perda do amigo, não foi, pelo decurso do tem-
po, pela experiência, confirmado pelo ensaísta.
Porém, Montaigne em Da amizade insiste em negar sua
vida perpétua
218
, sempre presente, e responderia, acaso
fosse pressionado a dizer por que o amava
219
,
Parce que cétait lui; parce que cétait moi.”
220
Mas o ensaísta - ciente de quenada parece verdadeiro
que não possa parecer falso
221
respondeu noutra oportunida-
de, que
quantas tolices digo e respondo todos os dias, em minha
opinião.
222
Cada um ama seu próprio eu, e não na esperança de ob-
ter para si uma recompensa desse amor, mas porque seu eu lhe
é caro por si mesmo
223
.
Nietzsche, cuja filosofia muito apreendeu do ensaísta, com
muita propriedade, afirmou queeu e mim estamos sempre em
colóquio por demais acalorado; como poderia suportar-se tal
218
GIDE, André. O Pensamento Vivo de Montaigne; trad. Sérgio Milliet.
São Paulo: Livraria Martins Editora S.A., 1951, p. 10.
219
Ensaios, I, 28, 281.
220
MONTAIGNE, Michel de. Essais, Livre Premier; Texte intégral, Édition
présentée, établie et annotée par Pierre Michel, préface dAndré Gide,
Collection Folio, Paris: Éditions Gallimard, 1965, chapitre XXVIII, p. 271.
221
Ensaios, II, 12, 258.
222
Ensaios, III, 8, 215.
223
Cf. CÍCERO, op. cit.
78
coisa sem um amigo? (...) A nossa fé nos outros revela aquilo
que desejaríamos acreditar em s mesmos. O nosso anseio
por um amigo é o nosso delator
224
.
Para Nietzsche, a necessidade da amizade é a fuga da
subconsciência que encontra no outro o subterfúgio para a pró-
pria consciência afinal, como disse Montaigne -não me en-
contro onde me procuro; e me encontro mais por acaso do que
por investigação de meu discernimento
225
.
Petit
226
afirma queas virtudes são habitus, a amizade é
um habitus comum; pode-se, certamente, dizer que ela pressu-
põe em cada um a presença da virtude ao menos em sua for-
ma soberana, mas o que no caso importa é a adaptação de cada
um ao outro, o reconhecimento no outro das razões pelas quais
posso amar a mim mesmo.
Ou seja, deseja-se o bem ao outro e busca-se a contem-
plação de virtudes no outro, que pensamos possuir (por isso os
maus não podem ter amigos). Isso pressupõe tempo e intimida-
de. Tempo, que Montaigne e La Btie, repita-se, não tiveram.
b. Problemas e Limites da Amizade Perfeita
Problemas como esse levaram Petit, em obra citada, a
consignarque a amizade apresenta sérias dificuldades para ter
reconhecido o caráter normativo pois ela,tomada em si mes-
ma, poderiaantes de mais nada, ser passível de algum equí-
voco, já que nem toda amizade figura entre as que deveriam ser
224
NIETZSCHE, op. cit., p. 72.
225
Ensaios, I, 10, 57.
226
PETIT, Alain. Amizade, artigo inserto in Dicionário de Ética e Filosofia
Moral, organizado por CANTO-SPERBER, Monique. Dicionário de Ética e
Filosofia Moral, trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff, et alli, vol. 1; Rio Grande
do Sul: Editora Unisinos, 2003, p. 58/63.
79
buscadas por elas mesmas, relembrando a tese aristotélica das
diversas formas de relação sob o nome de amizade.
Esse autor salientou
227
, o reducionismo do conceito de a-
mizade em Montaigne,
o que no Estagirita é ainda amizade imperfeita torna-se
para Montaigne uma pseudo-amizade, como se a amizade
se encerrasse dentro dos limites de sua forma acabada,
mas, do mesmo modo, esse encarecimento é revelador
da incerteza que se tem quanto à natureza ética da ami-
zade, na medida em que ela pode ser contraída sem que
suas razões se devam ao que os amigos são por eles
mesmos”.
Contrariando, novamente, o ceticismo, Montaigne parece
envolvido de forma tal em sua amizade com La Boétie que julga
ter conhecido, de plano e plenamente, a personalidade do ami-
go, todas as suas qualidades e defeitos (se é que distinguiu al-
gum), reconhecendo nele um outro Montaigne.
Enfim, parece negar, dessa forma, a sua fórmula, que
muitos estudiosos convencionaram denomi-laMontaigne em
movimento e, quiçá, faltando-lhe a modéstia tão pregada, se vê
com perfeição, pois, como se disse, oamigo é um outro eu e
se ele (La Btie) não tem defeitos, eu (Montaigne) também
não.
Parece Montaigne, ainda, se contradizer às iias postas
no ensaio Da Vaidade
228
.
Porém, Petit asseverou, de forma contrária, que a amizade
não é justamente um sentimento puro, ela deve antes
ser entendida como uma atividade comum [ou seja, empí-
rica], e é desse modo que ela pode constituir-se eventu-
almente como virtude. Convém não lhe atribuir de ante-
mão uma estabilidade que ela conquista laboriosamente,
227
No mesmo sentido, cf. Cardoso, op. cit.
228
Cf. Ensaios III, 9.
80
sem jamais estar segura de sua perenidade, a intimidade
que ela busca sendo justamente uma das razões de sua
vulnerabilidade. Se ela fosse puramente instrumental
[em função do interesse ou prazer], a mutabilidade dos
parceiros importaria muito menos; ela se pereniza reno-
vando-se, mas a questão é precisamente a de sua pere-
nidade pelo aprofundamento da mesma relação, se isso é
possível, até a percepção conjunta de meu ser e do ser
do amigo, não diretamente, por certo, mas sob o domínio
de uma mesma regra [tentativa de fundamentação da a-
mizade], pois se a amizade em seu começo é tão pro-
blemática, não é assim por causa de seu caráter eletivo,
a amizade dificilmente consentido relações a outrem que
não sejam voluntariamente contraídas como reconhece
Montaigne (Ensaios, I, XXVIII, ed. Villey, 186)?
229
Continuando suas ponderações, sem discordar que a ami-
zade surge da escolha, volta a indagar sobre a possibilidade de
conhecer o sujeito a ponto de tê-lo como amigo pelo que ele é,
sem considerar a experiência.
E acrescenta o autor, de forma a demonstrar sua posição
(distinta) em relação à de Montaigne, quecom exceção dos
amigos predestinados de Montaigne, é preciso admitir que
um risco na origem de toda amizade, mesmo se a igualdade dos
spoudaioi, mencionada por Aristóteles, reduz esse risco ao re-
duzir ao mesmo tempo o mero dos elegíveis. E é verdade
que a amizade é uma disposição que requer e fortalece a pro-
ximidade, envolvendo, como ela o faz, o conhecimento prático
do outro e de si.
Dessa forma e até mesmo em função da contingência do
homem, não havia como Montaigne confiar no seu conhecimento
acerca do amigo La Btie, o que, neste caso tomado como i-
lustração, evidencia a dificuldade de conferir um caráter norma-
tivo à amizade.
Aqui cairia bem a expressão de Montaigne,
229
PETIT, op. cit., p. 58/63.
81
não pinto o ser, pinto a passagem;
230
que nos permite observar, em composição ao ceticismo do en-
saísta, que não havia como pintar a amizade perfeita em si
mesma, mas apenas a sua passagem, não passando seu relato
de mera idealização, reflexo de um determinado momento.
Não amigos, tão-somente momentos de amiza-
de.”
231
Sendo cético, Montaigne só acredita na experiência
232
o
que inviabiliza um conhecimento a priori da virtude nos sujeitos
e nele mesmo pois estavam em constante movimento.
Porém, idealizava em La Boétie a sua disposição de cará-
ter que, acrescida por uma sabedoria que julgava igualmente
ter, o tornava sábio, digno de apreciação e modelo. E, pela
comunhão de vontades e opiniões, como se fossem eles,uma
alma em dois corpos, se igualava ao sábio, detentor da virtude.
Por ser La Boétieum outro eu epor só poder dizer por-
que eu o amava porque era eu, verifica-se a autocontemplação
não declarada: afinal, “só o amigo dá identidade ao amigo
233
.
Em que pese a amizade virtuosa, mister se faz realçar a
definição aristotélica de amizade:uma certa virtude, ou o
existe sem virtude; além disso, é o que de mais necessário
para viver.
230
GIDE, op. cit., p. 90, transcrevendo excerto de Os Ensaios, III, cap. 2:
Je ne peins s l’être, Je peins lê passage.
231
RENARD, Jules. Journal, Gallimard, 1960; 4 de janeiro de 1894, p.
193, citado por VINCENT-BUFFAULT, Anne in Da amizade, uma história
do exercício da amizade nos séculos XVIII e XIX; trad. Maria Luiza X. de
A. Borges, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1996, p. 50.
232
WEILER, op. cit., p. 29.
233
CARDOSO, op. cit., p. 192.
82
Curiosa tal definição, pois não se sabe ao certo se a ami-
zade é uma virtude ou algo que pressupõe a existência de vir-
tudes, sendo, então, uma conseqüência da vida virtuosa
234
.
Na tentativa de esclarecer, consignou-se, com muita pro-
priedade, que se a amizade, como afirma Aristóteles, é indis-
pensável à vida, teríamos de admitir que é condição e não con-
seqüência da vida virtuosa
235
. A amizade, conforme compreen-
dida por Aristóteles, “é uma disposição do caráter
236
.
A amizade é benevolência mútua, é boa-vontade recípro-
ca
237
, onde os amigos, unidos pela virtude e conscientes dessa
reciprocidade, importam-se reciprocamente, do jeito que eles
são, com suas qualidades e defeitos
238
e, em última instância, o
melhor que se pode ter é o bem do outro, que embora seja fim
em si mesmo, concorre para um bem maior, este sim desejado
234
CHAUI, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-
socráticos a Aristóteles, vol 1, 2ª edição, revista e ampliada. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002, p. 460.
235
Ibidem, p. 460/461.
236
ARISTÓTELES, op. cit., p. 263.
237
Ibidem, p.286: “(...) só se ama quando se anseia pela pessoa ausente e
se deseja intensamente a sua presença; da mesma forma, as pessoas não
podem ser amigas se não passam a sentir uma boa vontade recíproca,
mas nem por isto as pessoas que sentem boa vontade recíproca são ami-
gas; (...)”
238
TUGENDHAT, Ernst. Lições sobre ética; tradução grupo de doutoran-
dos do curso de s-graduação em Filosofia da Universidade do rio Gran-
de do Sul; revisão e organização da tradução Ernildo Stein e Ronai Ro-
cha. 4ª edição, Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2000, p. 281/282: (...),
em IX, 4, suscita a questão da possibilidade de ser amigo de si mesmo. A
resposta é a de que apenas o virtuoso é amigo de si mesmo, o mau não o
pode ser. Aqui o critério para a amizade é o de que se compartilhe os
sentimentos do amigo no positivo e no negativo (1166a7s) e que se queira
conviver com aquele de quem se é amigo (1166a7). Quem é virtuoso tem
uma atitude constante (...) o que significa que para tal indivíduo sempre o
mesmo é agradável ou desagradável (1166a28), e ele quer, por isso,
sempre conviver consigo mesmo (a23). Quem, em contrapartida, é um
joguete de seus sentimentos e possui uma vida interior que se encontra
em luta (b19), foge de si mesmo (14). (...). Parece, todavia, mais ade-
quado compreender a tese de Aristóteles de que a virtude é algo cons-
tante (1156b12), (...). Ao tornar-se virtuoso, o homem torna-se uno con-
sigo mesmo. Falar em ser amigo de si mesmo pode parecer duvidoso,
caso se considere o ser distinto como constitutivo da amizade. (...) falar
em ser amigo de si mesmo (...) é uma metáfora para significar ser uno
consigo mesmo.
83
em si, que não serve como meio a qualquer outro objetivo e por
ser o bem mais desejado dentre todos os outros bens, é o mais
excelente de todos e objetivo da filosofia: a vida feliz.
A amizade perfeita é a existente entre as pessoas boas
e semelhantes em termos de excelência moral; neste ca-
so, cada uma das pessoas quer bem à outra de maneira
idêntica, porque a outra pessoa é boa, e elas são boas
em si mesmas. Então as pessoas que querem bem aos
seus amigos por causa deles são amigas no sentido mais
amplo, pois querem bem por causa da própria natureza
dos amigos, e não por acidente; (...) logo, sua amizade
durará enquanto estas pessoas forem boas, e ser bom é
uma coisa duradoura. Cada uma das pessoas neste caso
é boa irrestritamente e boa em relação ao seu amigo,
pois as pessoas boas são boas irrestritamente e são re-
ciprocamente úteis (...). E por serem assim, estas pes-
soas são tamm agradáveis, pois as pessoas boas são
agradáveis irrestritamente e são reciprocamente agradá-
veis, já que para cada uma delas suas próprias ações e
outras semelhantes às suas são um motivo de prazer, e
as ações das pessoas boas são idênticas ou parecidas
(...). Tal amizade é logicamente permanente, já que ela
combina em si mesma todas as qualidades que os amigos
devem ter (...). Mas é natural que estas amizades sejam
raras, (...). Ademais, amizades desta escie pressu-
põem tempo e intimidade; como diz a sabedoria popular,
não podemos conhecer as pessoas enquanto elas não ti-
verem consumido juntas o sal proverbial; as pessoas
tamm não poderão manter amizade umas com as ou-
tras ou ser realmente amigas enquanto cada uma das
partes não houver demonstrado à outra que é digna de
amizade e não lhe tiver conquistado a confiança.”
239
O telos de toda ação nobilitante é, em Ética a Nicômaco, a
felicidade; o bem mais excelente dentre todos os outros. O
mesmo poderia se dizer em relação aos Ensaios.
Nesse sentido, poder-se-ia dizer que as ações dos amigos,
unido pela virtude, objetivam, reciprocamente, a felicidade do
outro sobre todas as coisas.
239
ARISTÓTELES, op. cit., p. 260/261.
84
Os limites da amizade perfeita demonstram, todavia, que
essa iia o pode ser compreendida como absoluta.
Petit
240
fez constar o clássico exemplo (inclusive utilizado
por Montaigne em seu ensaio sobre a amizade), em que Cícero,
relatando a amizade de Tirio Graco e Caio Blósio
241
, se es-
candaliza com a resposta deste que coloca a amizade com a-
quele acima de qualquer coisa e faria de tudo pelo amigo, po-
dendo, inclusive em reverência a ela, cometer injustiças. Então
interrogado por lio, disse-lhe Blósio que o amigo jamais o pe-
diria para atear fogo ao Capitólio, mas, se o tivesse pedido, o
teria obedecido.
Montaigne, de sua parte, parecendo negar a existência de
limites na amizade, preferiu, no mesmo exemplo, simplesmente,
dizer que
se ele era tão perfeitamente amigo de Graco, como di-
zem as histórias, não tinha por que ofender os cônsules
com essa última e ousada confissão; e não devia afastar-
se da certeza que tinha da vontade de Graco. (...) Con-
fiando-se completamente um ao outro, controlavam com-
pletamente as rédeas da inclinação um do outro; se fi-
zerdes essa parelha ser guiada pela virtude e pelo go-
verno da razão (como ademais é totalmente impossível
atrelá-la sem isso), a resposta de Blósio é tal como devia
ser. Se as ações de ambos se desencontrassem, eles
não seriam nem amigos um do outro segundo minha me-
dida, nem amigos de si mesmos”.
A constatação de limites na amizade, embora talvez irre-
conhecida em Montaigne, que sequer se deu ao trabalho de i-
maginar a possibilidade de solicitação igual provinda de La
Boétie, não o era para Aristóteles
242
.
240
PETIT, op. cit., p. 60.
241
CÍCERO, op. cit., p. 49/51.
242
Cf. AUBENQUE, op. cit.:Si Aristóteles fue el filósofo de la amistad,
es tambn aquel que, primeiro en su vida, reconoció com alguna solem-
nidad sus límites, passagem em que Aristóteles faz alusão a Platão.
85
Contudo, Aubenque concluiu que essa questão poderia in-
duzir-nos a pensar que este gênero de conflitos seria inerente,
apenas, às amizades fundamentadas em algum mal-entendido,
ou, mais precisamente, àquelas baseadas no interesse ou no
prazer, nas quais o bem que se deseja ao amigo não se em
função da própria natureza dos amigos, mas apenas por aciden-
te, como faz Montaigne em sua empreitada reducionista.
(...) as pessoas que amam as outras por interesse amam
por causa do que é bom para si mesmas, e aquelas que
amam por causa do prazer amam por causa do que lhes é
agradável, e não porque a outra pessoa é a pessoa que
amam, mas porque ela é útil ou agradável. (...), as ami-
zades deste tipo são apenas acidentais, pois não é por
ser quem ela é que a pessoa é amada, mas por propor-
cionar à outra algum proveito ou prazer (...). Tais ami-
zades se desfazem facilmente se as pessoas não perma-
necem como eram inicialmente, pois se uma delas já o
é agradável ou útil a outra cessa de amá-la (...). Portan-
to, desaparecido o motivo da amizade esta se desfaz,
uma vez que ela existe somente como um meio para che-
gar a um fim (...).
243
Porém, como adverte Aubenque, a iia de que aquele gê-
nero de conflitos apareceria apenas dentre as amizades susci-
tadas pelo interesse ou pelo prazer é equivocada.
Nessa linha de raciocínio, retoma a tese de Empédocles,
citada por Aristóteles, segundo a qual o semelhante ama o se-
melhante
244
, obviamente, referindo-se ao caráter e aos senti-
mentos dos homens, sem qualquer preocupação relativa a pro-
blemas físicos
245
.
que se consignar, entretanto, que para Montaigne não havia amizade sem
verdade. Podemos, nesse rumo, inferir que Aristóteles, talvez, jamais
tivesse reconhecido Platão, como um verdadeiro amigo.
243
ARISTÓTELES, op. cit., p. 259/260.
244
Ibidem, p. 258.
245
Ibidem, p. 258.
86
(...) A amizade, com efeito, pressupõe igualdade e se-
melhança, especialmente a semelhança daquelas pesso-
as que se assemelham em excelência moral; sendo cons-
tantes em si mesmas, elas são reciprocamente constan-
tes, e nem pedem nem prestam serviços degradantes; ao
contrário, pode-se dizer que uma afasta a outra do mal,
pois não errar e não deixar que seus amigos errem é
uma característica das pessoas boas.
246
Com efeito, os amigos, unidos pela excelência moral, ja-
mais corroborariam o erro do outro a ponto de admitirem que
ele se afastasse da verdade ou, em referência, ateasse fogo ao
Capitólio apenas para agra-lo (isso seria, como disse Plutar-
co, empresa do bajulador, que o pode ser considerado ami-
go).
Pensar diferentemente disso pressupõe um julgamento
prévio do amigo e de si mesmo a ponto de antecipar todas as
ações e reações dos sujeitos dessa relação para julgar, previa-
mente, que jamais seria necessário esse afastamento, o que re-
presenta - conforme o ensaio de Montaigne - a negativa do mo-
vimento de seu pensamento e, mais, a negativa das possibilida-
des do devir.
Não poderíamos deixar de perguntar, tamm, ainda em
relação ao exemplo de Tirio Graco e Caio Blósio: e se o Ca-
pitólio traísse a nação? E se isso fosse descoberto pelo amigo,
não seria ele, eliminado? Porque o Capitólio seria, então, o
bem e o amigo não?
Outra questão relacionada aos limites da amizade há que
ser abordada: a dissipação da igualdade e semelhança dos a-
migos.
As ações nobilitantes dos amigos têm por foco o sumo
bem (felicidade) dos amigos e, em última instância, a sua divin-
dade. Há, nesse rumo, uma situação trágica pois, se queremos
246
Ibidem, p. 267/268.
87
para nossos amigos o maior dos bens, que se tornem deuses
247
,
esta amizade, poder-se-ia dizer, perfeita, estaria fadada à ex-
tinção, configurando ela mesma, a própria tragédia, eis que se
esgotaria em si quando o amigo viesse a se tornar deus, pois,
devido a distância entre deuses e homens, não como se
manter essa amizade. A amizade presume certa igualdade en-
tre os amigos, comportando apenas, pequenas variações.
Assim sendo, o amigo deve continuar, no sentido aristoté-
lico, sendo como era quando do início da amizade, pois, quando
um dos amigospermanece o mesmo enquanto o outro se torna
melhor e o ultrapassa consideravelmente em excelência mo-
ral
248
, não como manter a amizade, uma vez que a impossi-
bilidade se torna patente quando a distância é grande.
Porém, isso não foi pensado por Montaigne pois, quando
se prediss a redigir Os Ensaios, La Btie já tinha falecido.
c. Solução possível para os problemas da Amizade Perfei-
ta
Conhecendo o movimento e, porque o dizer, a contin-
gência do homem que Montaigne tanto demonstra em toda sua
obra (embora o negue no ensaio Da amizade), Aristóteles afir-
ma que o amigo deve continuar sendo como era quando do iní-
cio da amizade, pois, quando um dos amigospermanece o
mesmo enquanto o outro se torna melhor e o ultrapassa consi-
deravelmente em excelência moral, não como manter a ami-
zade, uma vez que a impossibilidade se torna patente quando a
distância é grande
249
,
247
AUBENQUE, op. cit., p. 206:para nuestros amigos el mayor de los bi-
enes, por ejemplo, que se vuelvan dioses.
248
ARISTÓTELES, op. cit., p. 283.
249
Cf. ARISTÓTELES, op. cit.
88
a amizade fundada no caráter das pessoas, como já dis-
semos, é duradoura porque nela as pessoas se amam pe-
lo que elas são.
250
Estuda, em relação à amizade, hipóteses que evidenciari-
am perspectivas humanas, o que para Montaigne não chegaria a
tal
(...) Mas se aceitamos uma pessoa como amiga por con-
siderá-la boa, porém ela se comporta mal e percebemos
o seu mau comportamento, ainda devemos amá-la?
(...) Devemos então romper a amizade prontamente? Ou
não devemos fazê-lo em todos os casos, mas somente
com os amigos cuja deficiência moral é incurável? Se
eles são passíveis de regeneração devemos ajudá-los
moralmente (...), porquanto agir assim é melhor e mais
característico da amizade.
Mas uma pessoa que rompesse uma amizade deste tipo
não estaria aparentemente agindo de maneira estranha,
pois não era por alguém desta escie que ela nutria a-
mizade; seu amigo mudou, portanto, e se não pode rege-
nerá-lo ela o abandona.
251
Assim sendo, lícito e legítimo seria ao amigo afastar-se do
outro acaso venha a solicitar-lhe coisas desonestas.
Cícero, ao estabelecer os limites da amizade, consignou
que aos amigosnada pedir de vergonhoso, nada de vergonho-
so conceder
252
, estabelecendo-se, assim, uma Lei da Amizade
para queum tal conluio de maus cidadãos não se deve prote-
ger com a escusa da amizade; mas antes deve ser punido com
todos os suplícios, a fim de que ninguém se creia autorizado a
seguir um amigo que se insurge contra a própria pátria.
250
Ibidem, p. 279.
251
Ibidem, p. 283.
252
CÍCERO, op. cit., p. 53.
89
Aqui está, então, a primeira lei da amizade a ser san-
cionada: só pedir aos amigos coisas honestas; para aju-
-los, fazer apenas coisas dignas sem sequer esperar
que no-las peçam; mostrar interesse sempre, não hesitar
jamais; finalmente, ousar dar francamente sua opinião.
Na amizade, convém que os amigos mais prudentes te-
nham maior autoridade, intervenham para advertir; o
apenas com franqueza, mas com severidade quando a si-
tuação o exigir, e que se obedeça a essa intervenção.”
253
Uma vez que para Cícerotambém é verdadeiro no caso
das pessoas boas que elas praticam muitas ações por causa de
seus amigos e de sua cidade, e se for necessário morrerão por
eles e ela
254
.
Duas observações relativas à advertência apregoada por
Cícero, concernentes aos limites postos numa ética dos amigos:
a primeira de Plutarco que tem a sinceridade como incondicio-
nalmente boa, pois é nela que se nota a ocorrência instantânea
da coragem, porque dizer a verdade a quem amamos é o mesmo
que tomar a decisão de dizer o que somos o que seria o mesmo
esforço de si, mas
Evitemos ainda corrigir nossos amigos em público, (...).
Os vícios são doenças vergonhosas cujo tratamento deve
ser secreto; longe de procurar ostentação, é preciso evi-
tar os espectadores e as testemunhas. São os pedantes
e não os amigos que repreendem em público com exage-
ro, para serem valorizados pelos erros de outrem, (...).
Além de não devermos jamais humilhar aquele que que-
remos corrigir, (...)”
255
e a segunda, de Nietzsche
Quem nada sabe ocultar de si suscita revolta; (...).
Nunca te enfeitarás bastante para o teu amigo: porque
deves ser, para ele, uma flecha e um anseio no rumo do
253
Ibidem, p. 57/59.
254
ARISTÓTELES, op. cit., p. 291.
255
PLUTARCO, op. cit., p. 73.
90
super-homem. Já olhaste o teu amigo dormindo para
aprenderes que aspecto tem? Que é, afinal, fora daí, o
rosto do teu amigo? É o teu próprio rosto num espelho
tosco e imperfeito. (...) Mestre, deve ser o amigo, no a-
divinhar e calar-se: nem tudo deves querer ver. (...)
Que a tua compaixão seja um adivinhar: para que sai-
bas, primeiro, se o teu amigo quer compaixão. Talvez
ele ame em ti o olho impassível e o olhar fito na eterni-
dade.”
256
O que, por outro lado, legitima tamm a atitude do amigo,
por notar noutro um determinado vício, afastar-se dele, como
disse Cícero
Eis pois, a conduta que devemos prescrever aos homens
de bem: se, por acaso, e sem o saber, se envolveram
com tais amizades, não creiam que seus deveres lhes
proíbam afastar-se dos amigos quando estes cometerem
algum delito grave;
257
Sabendo Montaigne que o homem freqüentemente se equi-
voca em seu julgamento, se prepara indagando,
por que, ao avaliar um homem, o avaliais totalmente re-
coberto e empacotado? Ele nos exibe apenas as partes
que não são suas, e oculta-nos as únicas pelas quais
podemos realmente julgar sobre sua valia. O que bus-
cais é o valor da espada, não da bainha; talvez não s-
seis um vintém por ele, se o tivesses desnudado. É pre-
ciso julgá-lo por si mesmo, não por seus adereços - pois
bem sabe o ensaísta que -o pedestal não é a estátua
258
afinal, deveríamos desconfiar dos amigos que
são tão úteis aos amigos quão importunos a si mesmos.
Ninguém distribui seu dinheiro aos outros, no entanto
256
NIETZSCHE, op. cit., p. 72.
257
CÍCERO, op. cit., p. 56.
258
Ensaios, I, 42, 385.
91
distribui-lhes seu tempo e sua vida
259
- além do que -
quem não pode livrar-se de seus próprios grilhões e, a-
inda assim, é um salvador para o amigo”.
Diz Montaigne,
Acho que devemos emprestar-nos aos outros e dar-nos
a s mesmos.
260
Mas as pessoas pensam que na pobreza e em outros infor-
túnios os amigos são o único refúgio
261
.
Com efeito, a abreviatura da vida de La Boétie não permi-
tiu que as dissensões políticas - por exemplo - entre ele e Mon-
taigne, pusessem à prova sua amizade que, pintada conforme a
passagem (o momento), restou na memória de Montaigne uma
perfeição idealizada,
Há alguma lógica em julgar um homem pelas caracterís-
ticas mais habituais de sua vida; mas, vista a natural ins-
tabilidade de nossos costumes e idéias, amiúde me pare-
ceu que mesmo os bons autores erram ao obstinar-se em
formar de s uma contextura constante e sólida. Eles
escolhem uma aparência geral e de acordo com essa i-
magem vão dispondo e interpretando todas as ações de
um personagem.
262
Mas o próprio Montaigne demonstra o seu entusiasmo com
a sua suposta afinidade com La Boétie que roga paraque não
me coloquem na mesma linha essas outras amizades comuns;
tenho tanto conhecimento delas como qualquer outro, e das
mais perfeitas em seu gênero, mas não aconselho a confundir
259
MONTAIGNE, Michel Eyquem de. Ensaios: vol. III; tradução Sérgio Mil-
liet, precedido de Montaigne-o homem e a obra, de Pierre Moreau. 2ª edi-
ção, Brasília, Editora Universidade de Brasília; Hucitec, 1987, p. 304.
260
Ibidem, p. 303.
261
ARISTÓTELES, op. cit., p. 257.
262
MONTAIGNE (2000b), p. 5.
92
suas regras: seria um engano
263
, e face o infortúnio do destino
e a morte prematura de La Btie, não foram testados nem e-
ventualmente frustrados por qualquer desagrado, desconsidera-
ção ou destrato do amigo, que geralmente surpreendem os su-
jeitos, então desprevenidos, incutindo-lhes, então, a vida a-
cerca da veracidade de tal amizade.
Não , então, como transferir a amizade à transcendência
divina, mesmo porque, como ressaltou Aristóteles, a felicidade
é uma atividade.
Não há como dirigir amizade a deus e Montaigne concor-
da, em outras palavras, na Apologia de Raymond Sebond. Nem
a objetos inanimados (e, segundo o estagirita, nem animais ou
a escravos, a menos que estes estivessem na condição de ho-
mens), o que a faz diferir do amor, cuja característica de afei-
ção, permite dirigir-se até às coisas inanimadas,mas o amor
recíproco pressupõe escolha e a escolha tem origem numa dis-
posição do caráter
264
. A amizade implica uma escolha que pro-
vém de um hábito
265
.
263
Ensaios, I, 28, 283/284.
264
ARISTÓTELES, op. cit., p. 263.
265
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; Martins Fontes, São
Paulo, 2000, p. 37.
93
CAPÍTULO IV
La Boétie e Montaigne, amigos perfeitos?
a. La Boétie e as possibilidades da Amizade
Conheço bastantes homens, que possuem diferentes
qualidades belas: um, o espírito; um, a habilidade; ou-
tro, a consciência; outro, a linguagem; outro ainda, um
conhecimento; aquele, um outro. Mas um grande homem
em geral e tendo tantas belas qualidades juntas, ou um
tão alto grau de excelência que tenhamos de espantar-
nos ou compará-lo com os que honramos do tempo pas-
sado, minha fortuna não me mostrou nenhum.
266
O leitor poderia perguntar-se onde estaria La Boétie nesse
excerto de Montaigne? Sendo que o ensaísta responderia, logo
em seguida, que o maior que conheci vivo, digo quanto às qua-
lidades naturais da alma, e o mais bem nascido, era Etienne de
la Btie: era verdadeiramente uma alma plena e que mostrava
uma bela face em todos os sentidos; uma alma da escie anti-
ga e que teria produzido grandes ações se sua fortuna assim
tivesse desejado, tendo acrescentado muito a essa rica nature-
za por meio de conhecimento e estudo.
266
Ensaios, II, 17, 490.
94
Curiosamente, Montaigne inseriu tal passagem no ensaio
em que se voltou a falar Da Presunção que, na linguagem do
vulgo podemos dizer que é opinião ou juízo baseado nas apa-
rências; suposição, suspeita e, na filosófica,juízo antecipado e
provisório, que se considera válido até prova em contrário
267
.
Ou seja, em ambas podemos observar, agora
268
, a presen-
ça do ceticismo de Montaigne, que impregna toda a sua obra,
também no que se refere à amizade, afinal
Nada parece verdadeiro que não possa parecer falso
269
.
Com efeito, Montaigne, após a perda do amigo, pôde per-
ceber no intuito de se pintar, tal como era, num primeiro mo-
mento para seus amigos, que, embora afirmando não ser filóso-
fo
270
, a sua filosofia não era tão afim à de La Btie o que de-
monstra, igualmente, que a comunhão de pensamentos não
passaria de uma idealização.
Assim observou Starobinski:
O conflito, para ele [Montaigne], não consiste apenas no
choque dos valores morais antimicos, tal como são de-
finidos no interior da linguagem do humanismo cristiani-
zado, mas coloca em causa essa mesma linguagem, sua
validade, a obrigação de obedecê-la. La Btie, até o
fim de sua brevíssima vida, deixara-se guiar por essa
linguagem: Montaigne a põe à prova, interroga-a, afas-
ta-se dela... Esse código, esses sistema de valores, ini-
cialmente respeitados, tornam-se para ele problemáticos;
logo constituirão apenas uma lição entre outras, diante
da qual convém adotar uma sabedoria, uma arte de vi-
ver independentes.
267
ABBAGNANO, op. cit., p. 790.
268
Para exprimir sobre as idéias constantes do Livro II dos Ensaios. O
ensaio Da Amizade está no Livro I.
269
Ensaios, II, 12, 258.
270
Ensaios, III, 9, 247.
95
À vista da obra realizada, é lícito deturpar o sentido das
palavras latinas de La Btie e dizer que o maior comba-
te, para Montaigne, residiu precisamente na relação am-
bígua - a um só tempo atenta e infiel com a lição a-
prendida.
(...) La Btie foi o homem-exemplo, e seu desapareci-
mento, antes que tenha início a empresa de escrever, re-
veste-se de uma significação emblemática: não poderá
jamais ser apagado pelo esquecimento. Mas a virtude
que vivia nele não tem mais representante nem campo de
ação neste mundo; mais nada pode ser feito daquilo que
ele teria feito e do que sem vida teria levado Montaig-
ne a realizar com ele: apenas, essa impossibilidade po-
de e deve ser dita, confiada ao papel, comunicada ao lei-
tor.”
271
Uma imaginação forte produz o acontecimento
272
. Mon-
taigne tinha La Btie como um guia de pensamento e regras de
conduta e, após a perda do amigo, passou ele próprio a estabe-
lecer a suas regras e a conduzir-se a pensar,
(...) uma vez desaparecido La Btie, falta a Montaigne
aquele que foi o próprio exemplo da resolução. E, mes-
mo concedendo um lugar”, em sua própria consciência,
à imagem e à voz do amigo, Montaigne não esperará de-
las os conselhos e as advertências que constituíram o
nervo da amizade viva. A participação da testemunha,
ainda que profundamente interiorizada, terá perdido mui-
to de sua insistência e de sua eficácia pragmáticas; (...)
ela não exercerá o efeito disciplinar.
La Btie queria seguir o caminho mais reto: Montaig-
ne, ficando só, não se impedirá mais de tresvariar, de
obliquar, de desviar.
273
A diferença entre os amigos; a aclamada semelhança e i-
gualdade, comunhão de pensamentos se revela, então, possibi-
lidade. Daí a inserção daquele excerto no ensaio Da Presun-
ção.
271
STAROBINSKI, op. cit., p. 66.
272
Ensaios, I, 21, 144: “Fortis imaginatio generat casum.
273
STAROBINSKI, op. cit., p. 66/67.
96
Até em relação à amizade, eles viam sua possibilidade de
formas diferentes. É Montaigne homem de experiência. Obser-
va e tenta se coadunar aos exemplos vivos e memoráveis do
passado; estuda tudo, tanto o que deve evitar, como o que deve
imitar, como bem afirma no ensaio Da experiência
274
, mas quan-
do pode -los em prática, deixa o discurso e experimenta, ad-
mitindo e reconhecendo em si a condição vulnerável e incons-
tante, própria do homem,
O ensaio, mais ainda, será a mobilização de um novo ti-
po de identificação: simpatia toda mental, compreensão
das grandes almas do passado, admiração estudada pe-
los modelos de virtude. Mas ao mesmo tempo: consci-
ência aguda de pertencer a uma fôrma diferente, de
não dispor das forças necessárias para passar da identi-
ficação intuitiva à imitação ativa. A partir daí, o eu se
percebe por sua distância e sua disparidade que, simul-
taneamente, o faz venerar a figura exemplar e o obriga a
dela afastar-se.”
275
A partir da perda do amigo, o seu eu se percebe por sua
distância e disparidade e escolhe como tema de seu discurso
essa diferença. Isso pode ser sentido até na própria concepção
que Montaigne e La Btie tinham em relação a sua própria a-
mizade, na qual, aquele parece negar toda a sua tradição céti-
ca, enquanto este, a evidencia, diante da morte, deixando a
Montaigne a lembrança de uma resolução exemplar, perceben-
do, embora, a inconstância de seu julgamento:
Porque pela singular e fraterna amizade que nos dedi-
cávamos mutuamente, eu tinha certíssimo conhecimento
das intenções, julgamentos e vontades que ele [Montaig-
ne] tivera durante sua vida, sem vida tanto quanto um
homem pode ter de um outro;
276
274
Ensaios, III, 13, 440.
275
STAROBINSKI, op. cit., p. 68.
276
STAROBINSKI, op. cit., 66.
97
La Boétie mostra, por sua vez, conhecer o limite do co-
nhecimento sobre o outro, ainda que um amigo, ao afirmarsem
vida tanto quanto um homem pode ter de um outro, que Mon-
taigne, em seu ensaio Da Amizade, parece desconhecer:
Esta [a sua amizade com La Btie] não tem outra iia
a não ser ela mesma, e só pode ser conforme consigo
mesma. Não foi uma consideração especial, nem duas,
nem três, nem quatro, nem mil: foi não se que quintes-
sência de toda essa mistura, que, tendo se apossado de
toda a minha vontade, levou-a a mergulhar e perder-se
na sua; que, tendo se apossado de toda a sua vontade,
levou-a mergulhar e perder-se na minha, com a mesma
gana, com a mesma convergência. Digo perder verdadei-
ramente, sem nos conservar que nos fosse exclusiva-
mente particular nem que fosse ou dele ou meu.
277
Porém, se a comunhão de pensamentos é tão afim como
afirma, a expressão de La Btie, acima transcrita, não deveria
merecer crédito, pois Montaigne parece não só se contradizer
em seu próprio ceticismo, mas também a La Btie.
Observe-se,
Não está no poder de todos os argumentos do mundo
afastar-me da certeza que tenho sobre as intenções e
julgamentos de meu amigo. (...) Nossas almas viajaram
tão unidamente juntas, examinaram-se com tão ardente
afeição, e com a mesma afeição descobriam-se até as
mais profundas entranhas uma da outra, que não apenas
eu conhecia a sua como fosse a minha mas indiscutivel-
mente me confiaria a ele de melhor grado do que a mim
mesmo.
278
Que tão prontamente atingiu a perfeição
279
.
Todavia, esse idealismo referente à figura de La Boétie
não foi como se disse dantes, pela fortuna do amigo, posto à
277
Ensaios, I, 28, 282.
278
Ibidem, 283.
279
Ibidem, 281.
98
prova, face à abreviação do comércio pelo seu falecimento.
Embora houvesse dissensões políticas, não houve tempo para,
por que não dizer, decepções que viessem a enfraquecer ou
desmitificar o amigo perdido,
Seja sob o olhar intratável do mais velho, seja sob o o-
lhar malvel do mais novo, a guerra civil aparecia sem-
pre como algo abomivel. A paixão pela justiça ou o
gosto pela tolerância aliavam-se tão bem quanto os co-
rações diferentes dos dois jovens. Seríamos por isso o-
brigados a supor como o faz com amargura Pierre
Barrière que as desavenças políticas teriam mais cedo
ou mais tarde acabado com a harmonia desse famoso ca-
sal?
O destino não permitiu que o desenvolvimento da guer-
ra, a partir de 1562, pusesse à prova essa harmonia:
menos de um ano mais tarde, a peste tiraria Étienne de
La Btie de seu amigo.
280
Talvez a morte do amigo tenha contribuído para a caracte-
rização da amizade perfeita, exaltada por Montaigne pois teria
pintado, a um só tempo, oser e apassagem.
Mas Montaigne, consciente de quenossa grande e glorio-
sa obra-prima é viver adequadamente
281
, sentencia:
Já vivemos por outros o suficiente, vivamos para s
pelo menos esse final de vida. Voltemos para s e para
nosso contentamento nossos pensamentos e inten-
ções.
282
para poder, já que a isso foi imposto pela fortuna do amigo,
pensar a si mesmo por si mesmo.
Sem dúvidate, quando Montaigne dizia que se procuravam,
ele e La Btie, pelos nomes e se admiravam antes mesmo de
280
LACOUTURE, op. cit., p. 92.
281
Ensaios, III, 13, 489.
282
Ensaios, I, 39, 360.
99
se conhecerem, se referia às iias postas no Discours de la
Servitude Volontaire.
Nessa obra, La Boétie, que tenta despertar o leitor, a
quem trata como amigo
283
, da própria passividade diante da fi-
gura do monarca, cuja tirania passa a atacar, induzindo os a-
migos a procurarem o sentido da amizade e o da servidão.
Leforte bem assinalou
Ainda que não soubéssemos nada das circunstâncias do
Discours, que ignorássemos a repressão que se abate
sobre Bordeaux e a Guyenne em 1549, após a revolta
das gabelas, o saque do campo pelos exércitos de Hen-
rique II, a ruína dos camponeses, as execuções na cida-
de, o fechamento do Parlamento, a humilhação dos ma-
gistrados enfim, o terror que manifestou o todo-poderio
do príncipe e a impotência total daqueles que se preten-
diam seus súditos, s nos sentiríamos intimados a in-
dagar a partir de nosso lugar, receberíamos o choque da
questão da servidão voluntária.
O Discours força o muro do tempo. Diríamos que con-
segue fazer ressoar uma voz. É preciso acrescentar que
só o ouvem aqueles que não são surdos aqui e agora à
opressão.”
284
O que teria levado ao enraizamento de nossa vontade de
servir, esta vontade de ser súditos, de assujeitar-se, de criar
entre nós esta condição de reprodução do soberano para além
de sua existência? - pergunta Passetti
285
. Respondendo, afirma
Segundo La Btie, os direitos de natureza nos mostram
que somos naturalmente obedientes aos pais, sujeitos à
razão e, portanto, servos de ninguém. Na natureza o
servidão, mas uma liberdade que nos indica um go-
283
LEFORT, op. cit., p. 129 e 170:Ao destinatário, o escrito até diz, in-
diretamente, o seu nome: o amigo. Induzindo o leitor a buscar o sentido
da amizade ao mesmo tempo que o da servidão, o faz descobrir pouco a
pouco, nessa procura, a dimensão política da leitura (...) o discurso é
destinado aos amigos.
284
Ibidem, p. 127/128.
285
Cf. PASSETTI, op. cit.
100
verno de irmãos, de companheiros, que não desconhece
a diferença de talentos e de estruturas sicas e incentiva
a ajuda e o recebimento de ajuda.
Surdo, Montaigne não o era. Pelo contrário, em seu
conservantismo
286
, como afirmam alguns, deixa escapar a liber-
dade de pensamento
Apesar de suas tendências conservadoras, a política de
Montaigne é o que no século passado se denominava
uma política liberal: deixa o indivíduo livre dentro do
quadro das leis, visa tornar tão leve quanto possível a
autoridade do Estado, suas exigências e seu controle;
considera melhor governo o que menos se faz sentir, o
que assegura a ordem pública sem invadir a vida priva-
da, sem pretender orientar os espíritos. Esse governo
convém aos homens esclarecidos, conscientes de seus
deveres e de seus direitos, obedientes às leis de sua pá-
tria e ao príncipe, não por temor mas por vontade pró-
pria”.
287
Homens esclarecidos? Para Montaigne,
Que ele se contente em corrigir a si mesmo e não pare-
ça criticar nos outros tudo o que se recusa a fazer, nem
contrariar os costumes públicos. É possível ser sábio
sem ostentação, sem arrogância. Que evite essas ima-
gens professorais e impolidas e essa ambição pueril de
querer parecer mais fino para ser diferente, e obter re-
nome por suas críticas e originalidades.
288
Afinal,saber de cor é não saber: é conservar o que foi
entregue à guarda da memória. Do que sabemos efetivamente,
dispomos sem olhar para o modelo, sem voltar os olhos para o
livro
289
.
286
Ensaios, III, 1, 8: “(...) não sou presionado por paixão de ódio ou de
amor para com os grandes; nem tenho minha vontade sob o jugo de ofen-
sa ou de obrigação pessoal.
287
WEILER, op. cit., p. 93.
288
Ensaios, I, 26, 231.
289
Ibidem, p. 228.
101
Nesse ensaio, no qual Montaigne fala Da educação das
crianças, teceu tamm um tratado à tolerância, tão em voga
em seu tempo
Ele sondará o alcance de cada um: um vaqueiro, um
pedreiro, um viandante; é preciso pôr tudo a render, e
tomar emprestado de cada um segundo sua mercadoria,
pois em administração tudo serve; mesmo a tolice e a
fraqueza dos outros lhe será instrução.
290
É preciso, então, reconhecer nos outros, concidadãos, a-
migos em potencial, capazes de, unidos, voltarem-se ao ideal
de vida boa, pois, como disse noutrora, sabe que os maiores
eruditos não são os mais sábios
291
.
Porém, a educação de sua época (e por que não dizer
também a nossa) ensinava apenas a obedecer.
Montaigne sabe que o homem resulta dos costumes e criti-
ca o educador que tanto se esforça em formá-lo
292
conforme
uma tradição, ainda que não apto a pensar, poistinha [o edu-
cador] como objetivo fazer-nos o bons e sábios, mas erudi-
tos
293
.
Dedicou-se, então, à sugestão de La Btie - como ressal-
tou Passetti - acerca da amizade e da educação para novos
costumes, o deixando de atentar para o fato de que sua reali-
zação somente é possível por meio de investimentos na educa-
ção autônoma e livre.
A amizade para Montaigne está relacionada com a vida
adulta, a maturidade dos espíritos, e se diferencia do
amor pela concordância de vontades, por ser temperada
e serena, suave e delicada, sem aspereza e excessos.
290
Ibidem, p. 233.
291
Ensaios, I, 25, 199:magis magnos clericos non sunt magis magnos
sapientes.
292
Ensaios, III, 2, 27: “Os outros formam o homem; eu o descrevo.
293
Ensaios, II, 17, 491.
102
Nela as almas se confundem numa só. Trata-se de uma
identidade compartilhada, desterritorializante, alheia à
prudência, serviços e favores. O que se ao amigo é
por satisfação, por prazer. É uma relação pautada na
indivisibilidade. Nada resta para dividir; estamos deso-
brigados de tudo e silenciamos segredos. Contudo, a re-
flexão de Montaigne situa a amizade no âmbito priva-
do.
294
Assim, Montaigne no seu ensaio Da educação das crian-
ças, propiciou ao seu leitor, detalhes importantes para a com-
preensão da invenção dos costumes, sob a perspectiva de La
Boétie. Para Montaigne, ao contrário dos programas de educa-
ção, o livro do aluno é o mundo todos os lugares lhe serão
estúdio
295
.
Com efeito, contra a servidão, tanto La Btie como Mon-
taigne pensam na possibilidade do comércio de homens, o qual
aquele denominou amizade. São uníssonos, entretanto, quando
se referem à qualidade que esses homens devem possuir.
Assim anota La Btie,
(...) que os livros e a doutrina dão aos homens, mais
que qualquer outra coisa, o sentido e o entendimento pa-
ra se reconhecerem e odiar a tirania; averiguo que em
suas terras ele não tem sábios, nem os quer.
296
Cria-se, de contrapeso, atrativos para adormecer o povo,
tais como
teatros, jogos, farsas, espetáculos, gladiadores, bichos
estranhos, medalhas, quadros
297
, enfim,artimanhas le-
294
Cf. PASSETTI, op. cit.
295
Ensaios, II, 26, 246.
296
LA BOÉTIE, op. cit., p. 24.
297
CHAUI, op. cit., p. 191.
103
gais para bestializar os súditos (...) proibindo os livros,
impedindo os sábios e dispersando os amigos.
298
Passetti, com muita propriedade, disse queo assujeita-
mento para La Btie exige uma outra coisa. Eles precisam de
ilusão ou de serem forçados a algo: nascidos sob o jugo, edu-
cados sob o jugo, os homens se conformam. Sob a tirania, as
pessoas se tornam covardes e efeminadas, fracas. Os costu-
mes são a primeira razão da servidão
299
.
Dos espíritos simples, menos curiosos e menos instruí-
dos, fazem-se os bons cristãos, que, por respeito e obe-
diência, acreditam com simplicidade e se submetem às
regras.
300
Bons cristãos sob a ótica de quem?
Para Lefort, o Discurso da Servidão Voluntária revela a
dimensão política da amizade e Montaigne percebeu isso.
Nada mais apropriado, então, do que falar entrelinhas aos
seus leitores sobre o Discours no seu ensaio Da Amizade. Afi-
nal, a conjuntura política da sociedade francesa do século XVI,
e seus instrumentos contra a heresia (não só religiosa, mas
também política), não permitia aos autores perspicazes uma
dissertação livre de dissimulação que um leitor atento poderia
perceber
301
. Dissimulação esta, chamada de honesta por Agno-
lin
302
.
Outro ideal apresentado por La Btie, que Montaigne a-
companha de perto em seu livro, é a falta de presunção de se
criar uma normatização, uma dogmatização das relações entre
298
Ibidem, p. 187.
299
Cf. PASSETTI, op. cit.
300
Ensaios, I, 54, 465.
301
WEILER, op. cit., p. 4.
302
AGNOLIN, Adone. A razão tênue de Montaigne, texto inserto in MON-
TAIGNE, Michel de. Os Ensaios, I; trad. Rosemary Costhek Abílio. São
Paulo: Martins Fontes, 2000, p. XXIV.
104
concidadãos. O Discurso da Servidão Voluntária não encerra
uma construção teleológica de restringir as perspectivas e limi-
tar o devir
303
. E, muito menos, Os Ensaios.
Esse fato suscitou, inclusive, críticas à obra de La Btie,
que, conforme Paul Bonnefon citado por Chaui
304
,mais descre-
ve os efeitos da servidão do que busca suas causas, e não indi-
ca remédios.
Não percebeu, porém, que La Btie, assim procedendo,
atribuiu o ônus de pensar o governo ao leitor-amigo ou, como
conceituará Nietzsche no futuro, valoriza o perspectivismo.
La Btie
interroga a sociedade e a política, procura a origem do
infortúnio que arrasta a liberdade para fora do mundo e
não apresenta respostas positivas que pudessem ser
convertidas em programa para uma organização da práti-
ca política.
305
Enfim,quão decepcionante, depois da longa exposição
sobre a gênese e os efeitos da tirania, descobrir que La Btie
nada pretende fazer
306
. Aqui entra a importância de se rever o
programa educacional das sociedades uma vez que a tirania
impede a comunicação e com ela a amizade, dispersando-a.
Seguindo La Btie, Montaigne diz
Não tenho autoridade para ser acreditado, nem o dese-
jo, sentindo-me demasiadamente mal instruído para ins-
truir os outros.
307
Isso suscita em Montaigne a apreciação de La Boétie.
Mas Montaigne, disposto num primeiro momento a publi-
303
CHAUÍ, op. cit., p. 185: (...) o Contrum é um contra discurso.
304
Ibidem, p. 180.
305
Ibidem, p. 183.
306
Ibidem, p. 183.
307
Ensaios, I, 26, 222.
105
car, nos Ensaios, o Discurso da Servidão Voluntária, desistiu,
tendo em vista que os tiranicidas - segundo o ensaísta - o fize-
ram com maus fins.
Resolveu, então, incitá-lo no ensaio Da Amizade, apelan-
do, contudo, para o leitor mais atento ao colocar o Discours
como obra imatura, realçando, por outro lado, a própria relação
com La Boétie fugiria, dessa forma, aos riscos de heresia
pública.
Um fugir sem ser preciso recorrer à crueldade que, inclu-
sive, Montaigne critica a ponto de lamentar não ter sido incluída
dentre os Pecados Capitais, assim como La Boétie sugere ao
povo que, para libertar-se do tirano
não é preciso guerrear para ser livre, basta não servir
mais ao soberano. Elaborando um vetor no sentido in-
verso de Maquiavel, não está mais em discussão manei-
ras pelas quais os súditos podem desestabilizar um so-
berano, mas a afirmação de outras existências alheias ao
príncipe e capazes de anular o sentido da autoridade
centralizada. Não é por meio da política e da guerra que
se encontra liberdade ou garantias de vida. O ato de
pronunciar-se contra o Um institui outras possibilidades
de vida. Diante da política e da sociedade, La Btie in-
sinua a vida em associações livres de amigos que pelas
suas próprias existências inibem, até anular, a pertinên-
cia do soberano e da autoridade centralizada. O autor
está interessado em mostrar a liberdade do soberano de
si diante do soberano sobre todos nós.”
308
Finalmente, se a perda do amigo foi o motivo para Mon-
taigne iniciar a empresa de se auto-retratar, cujo resultado se
nos Ensaios, o móbil do ensaio Da Amizade, a nosso sentir,
não foi sua relação com o amigo La Boétie, mas o Discurso da
Servidão Voluntária.
308
Cf. PASSETTI, op. cit.
106
b. Do móbil de Montaigne em dissertar sobre a Amizade
A conjuntura francesa do século XVI apresentava-se mar-
cada por guerras civis, resultantes de dissensões políticas e
religiosas
309
.
Era o fim da Idade Média, época marcada pelo descobri-
mento do Novo Mundo; pela transformação das iias; pela Re-
forma e guerras religiosas. Tudo isso acabou por inserir novas
perspectivas, que resultaram na modificação da imagem que se
tinha do homem e do universo; na mitigação das crenças tradi-
cionais, reacendendo a essência do ceticismo.
No Renascimento, filósofos e pensadores buscaram, em
suma, resgatar na antiguidade, valores éticos e morais que, i-
gualmente ao que ocorria com a filosofia do século XVI, esta-
vam se transformando
310
.
Montaigne evidenciou, em seus Ensaios, o ceticismo que
ele próprio resgatou da filosofia pirrônica,
A ignorância que se conhece, que se julga e que se
condena não é uma ignorância total: para sê-lo, é preci-
so que ignore a si mesma. De forma que o ocio dos pir-
rônicos é abalar, duvidar e inquirir, não ter certeza de
nada, não responder por nada.
311
Ims Montaigne, em inúmeros ensaios, a suavida
pertua
312
.
Não obstante a concordância doutriria, relativa ao ceti-
cismo do ensaísta, devemos ler o ensaísta, como advertiu Wei-
ler,recolocando-o no seu contexto para penetrar a arte sutil
com que Montaigne insinua o que não ousa dizer abertamente;
309
Podemos citar, como exemplo, o massacre que ficou conhecido na
história como A Noite de São Bartolomeu, no qual milhares de pessoas
foram mortas.
310
MOREAU, op. cit., p. 9.
311
Ensaios, II, 12, 255.
312
GIDE, op. cit., p.10.
107
e através de insensíveis transições que ele chega a manifestar
seu pensamento secreto
313
.
Montaigne não era ingênuo e, a corroborar sua perspicá-
cia, temos que ele próprio afirmou que
na medida do possível, aqui [nos Ensaios] revelo minhas
iias e afeições e as revelaria mais livremente de viva
voz a quem as desejasse conhecer. Não obstante, ver-
se-á que nestas memórias tudo disse e indiquei e o que
não pude expressar aponto-o com o dedo e, repita-se
por oportuno: acrescendo que tenho, por vezes, a obri-
gação de falar por meias palavras, confusamente, con-
traditoriamente.
314
O fato é que Montaigne não poderia levantar suspeitas so-
bre sua posição em relação aos partidos políticos e religiosos.
Temia, por experiência própria de ter sido preso na Bastilha
315
,
a fogueira da Santa Inquisição e a bastilha da Monarquia Abso-
lutista.
Em contrapartida, sabendo que o homem não é perfeito e
se apresenta, naturalmente, composto de virtudes e vícios, co-
nhecendo igualmente sua obscuridade, tanto que afirmou que,
repita-se,decididamente o homem é um assunto espantosa-
mente vão, variado e inconstante. Sobre ele é dicil estabele-
cer uma apreciação firme e uniforme
316
, não poderia ele pre-
tender a existência da amizade perfeita, nos moldes como a te-
ceu, sem que o fato de a idealizar constituísse em negativa do
ceticismo que envolve toda a sua obra.
Não obstante isso, cuidou de narrar a perfeição de sua
amizade com Étienne de La Btie, conferindo-a um conheci-
313
WEILER, op. cit.p. 5.
314
Ensaios, III, 9, 297.
315
MOREAU, op. cit., p. 7.
316
Ensaios, I, 1, 10.
108
mento e estatuto estáveis e estáticos acerca de todos os pen-
samentos, inclinações e virtudes do amigo.
Mas
O centro de toda a problemática do conhecimento e,
conseqüentemente, de toda a filosofia não é, portanto, o
mundo, mas o homem. E este pouco sabe de si mes-
mo
317
e, se desi mesmo o homempouco sabe, como esperar ou
pretender Montaigne saber tanto a respeito de La Btie a pon-
to de jul-lo, assimilando as lições aristotélicas
318
um outro
Montaigne?
Enfim,
Aquilo [que o homem] toma por real não é mais que uma
parcela do possível. Como pode pretender que isto aqui
[e porque não a perfeição de sua amizade com La Btie]
exista e aquilo ali não?
pois, afinal,
Quem se lembra de tantas e tantas vezes ter se descon-
tentado de seu próprio julgamento não será um tolo se
não se puser a desconfiar dele para sempre?
319
Verificaríamos, então, uma contradição e incoerência no
pensamento montaigniano? Possivelmente sim, pois, se de fato
ele não consegue se ver com nitidez, de forma constante e es-
tável, como poderia dizer que, em relação à amizade perfeita e
ao amigo perfeito, nada do Sr. La Boétie lhe era estranho.
317
CHAUÍ, op. cit., p. 15.
318
ARISTÓTELES, op. cit., p. 292.
319
Ensaios, III, 13, 436.
109
A exaltada inspiração de Montaigne para escrever o en-
saio Da Amizade sugeriu aos comentadores, teses sobre sua
sexualidade. A nosso ver, parece ter havido outro móbil.
Lacouture ao indagar sobre Montaigne, se eleescrevia
livremente ou sob inflncia de alguma inquisição política ou
religiosa?
320
respondeu, logo adiante, que haviaobviamente
algumas alusões à necessidade de só escrever pela metade,
algo confusamente (III, 9). Há o reconhecimento da censura
(da Igreja) diante da qual me inclino de maneira integral (I,
56). Há tamm a supressão dos dois grandes textos de La
Boétie que ele prefere o publicar em uma época tão desa-
gradável.
Montaigne, no início do ensaio Da Amizade, ressaltou que
gostaria de transcrever o Discurso da Servidão Voluntária, obra
de La Btie que teria, segundo os autores que sobre Montaig-
ne dissertaram, suscitado o interesse e admiração do ensaísta
no amigo.
Mas o fato é que Montaigne, temendo os governantes,
não ousou no entanto publicar o Discurso da Servio Voluntá-
ria, certamente audacioso em relação ao poder absoluto
321
.
Dilema, pois Montaigne sabia que aquela obra exerceria
uma função esclarecedora e direcional à sociedade francesa,
totalmente submetida ao monarca tirano. Resolveu, então, por
linhas indiretas, r à disposição da sociedade francesa o Dis-
curso da Servidão Voluntária, apenasapontando-o com o dedo
para o seu leitor, evitando os riscos da fogueira da Santa Inqui-
sição e da bastilha.
Quantas vezes fiz para comigo uma injustiça evidente, a
fim de evitar o risco de recebê-la ainda pior dos juízes,
320
LACOUTURE, op. cit., p. 149.
321
Ibidem, p. 150.
110
após um século de problemas e de práticas sujas e vis,
mais contrárias à minha natureza do que o são a tortura
e a fogueira? Convenit a litibus quantum licet, et nescio
an paulo plus etiam quam licet, abhorrentem esse. Est
enim non modo liberale, paululum nonnunquam de suo ju-
re decedere, sed interdum etiam fructuosum.’
322
Para Weiler, Montaigneapela, pois, para o leitor inteli-
gente e atento, convida-o a olhar de perto, desculpa-se por o
poder dizer tudo o que pensa, arranja-se para que o compreen-
dam por meias palavras
323
.
Incita a curiosidade de seus leitores sobre ele próprio e La
Boétie, ao enaltecer, ao exortar a imagem do amigo já falecido.
Dessa forma, permitiria interpretações que o tornassem,
por exemplo, homossexual, inteiramente apaixonado pelo ami-
go, para terentão, deliberadamente procurado desnortear o
leitor superficial, apresentando-se como um modelo de incons-
tância e mesmo de incoerência, confundindo as pistas, e jac-
tando-se de escapar, assim às suspeitas e às perseguições
324
.
Enfim, aredação dos ensaios é mais trabalhada do que ele diz,
e o autor menos ingênuo do que afirma
325
.
Tanto conseguiu que Os Ensaios só foram classificados
como subversivos (por seus juízes como anota no Ensaio Das
Orações, constante do Livro I, no qual, a nosso ver, não perdeu
a oportunidade de criticar contidamente os doutrinadores ecle-
siásticos) décadas depois
Os próprios jesuítas, durante muito tempo favoráveis,
começam a criticá-lo por sua vez; e um deles, o pe. Ra-
322
Ensaios, III, 10, 350. A tradução da citação em latim, de Cícero in De
off., II, XVIII, utilizada por Montaigne, é: Para evitar os processos, de-
vemos fazer tudo o que pudermos e talvez um pouco mais, pois o ape-
nas é louvável como às vezes tamm vantajoso renunciar a algum direito
nosso”.
323
WEILER, op. cit., p. 4.
324
Ibidem, p. 19.
325
Ibidem, p. 40.
111
pin declara que é tanto mais perigoso para a religião
quanto mais parece não o ser”. Assim, em menos de um
século a Igreja inverteu sua posição, e em 1676, cem
anos depois da Apologia de Raymond Sebond, os Ensai-
os são postos no Índex.
326
E assim o foi, porque, além da dissimulação honesta (co-
mo chamou Agnolin
327
), Montaigne, cavaleiro da Ordem de São
Miguel e membro da Câmara do Rei Cristianíssimo, tinha sido
condecorado com o direito de cidadania romana pelo Senado e
pelo povo romanos
328
.
Curiosamente, Montaigne inicia sua obra com o ensaio in-
titulado de Por meios diversos chega-se ao mesmo fim
329
. Nele,
demonstra as várias possibilidades para atingir-se um determi-
nado fim.
Se Montaigne despertasse a curiosidade de seus leitores
sobre ele e La Boétie, a ponto de incitá-los a procurar sobre La
Boétie, sobre quem teria sido e o que teria ele feito, o ensaio
Da Amizade não seria um dosdiversos meios possíveis para
sechegar ao mesmo fim?
Não estaria Montaigne, assim, atingindo sua intenção -
obviamente não declarada - de fazer chegar aos leitores, as ad-
vertências postas no Discurso da Servidão Voluntária.
Afinal,
Costumo falar a favor de meus amigos, pelo que neles
vejo de louvável; e de um de valor costumo fazer um
e meio. Mas não posso atribuir-lhes qualidades que
não existem neles nem defendê-los abertamente das im-
perfeições que têm.”
330
326
Ibidem, p. 56.
327
AGNOLIN, op. cit., p. XXIV.
328
Ensaios, III, 9, 323/324.
329
Ensaios, I, 1. quem diga, porém, que Montaigne teria iniciado sua
obra pelo ensaio Da Tristeza, que aparece no Livro I, no segundo
capítulo.
330
Ensaios, II, 12, 490.
112
Legítimo seria, então, o entendimento de queo poderia
defender abertamente o Discurso da Servidão Voluntária, do
amigo La Btie, tendo em vista que o mesmo poderia ser con-
siderado, para a Monarquia Absolutista, cuja conduta é corrobo-
rada pelos ideais ascéticos da Igreja católica, comoimperfei-
ção.
Correr risco? Não é do feitio de Montaigne, homem pre-
cauto
331
.
E porque utilizaria a questão da amizade como o meio?
Primeiro porque conhecia o autor do Discurso da Servidão Vo-
luntária, pois ambos eram magistrados e conviveram no parla-
mento de Bordeaux. Segundo porque o próprio La Btie colo-
ca a amizade
332
, no referido discurso, como forma possível de
uma sociedade justa, adotando como iias próprias, as de Cí-
cero, em Lélio
333
e as de Plutarco, nos opúsculos
334
.
E terceiro porque, ao trabalhar num evidente cunho redu-
cionista do conceito de amizade, bem como da extensão do uni-
verso compreendido pelo termo amizade, focalizando-a no
331
Ensaios, II, 17, 468.o podendo comandar os acontecimentos, co-
mando a mim mesmo, e adapto-me a eles se eles o se adaptam a mim.
332
LA BOÉTIE, op. cit., p. 35/36 : É certamente por isso que o tirano
nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome sagrado, é uma coisa
santa; ela nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa
apanhar por mútua estima; se mantém não tanto através de benecios
como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o
conhecimento que tem de sua integridade; as garantias que tem são sua
bondade natural, a fé e a constância. Não pode haver amizade onde está
a crueldade, onde está a deslealdade, onde está a injustiça [lembrando as
lições aristotélicas de que um amigo jamais seria injusto com outro EM,
VIII]; e entre os maus, quando se juntam, há uma conspiração, não uma
companhia; eles não se entre-amam, mas se entre-temem; não são ami-
gos, mas cúmplices. (...) Ora, mesmo quando isso não impedisse, ainda
seria dicil encontrar um amor seguro em um tirano, pois, estando acima
de todos e não tendo companheiro, já está além dos limites da amizade,
cuja verdadeira presa é a igualdade, que jamais quer claudicar, e caminha
sempre igual.
333
Cf. CÍCERO, op. cit.
334
Como tirar proveito de seus inimigos eComo distinguir o bajulador
do amigo.
113
âmbito estritamente privado, tornando a amizade perfeita algo
praticamente ininteligível e impraticável aos mortais”
335
indu-
ziria, então, a curiosidade dos leitores dos Ensaios - fator de-
terminante para que La Boétie (e sua obra) fosse procurado.
Montaigne, finaliza o ensaioÉ loucura condicionar ao
nosso discernimento o verdadeiro e o falso (E I, 27), imediata-
mente anterior ao ensaio Da Amizade (E I, 28), da seguinte for-
ma:
Quantas coisas ontem nos serviam de artigos de fé e
hoje nos são fábulas? A presunção e a curiosidade são
os dois flagelos de nossa alma. Esta leva-nos a meter o
nariz por toda parte e aquela nos impede de deixar algo
sem solucionar e sem decidir.”
336
Ou seja, a curiosidade dos leitores sobre La Boétie, ins-
tigada no ensaio seguinte, Da Amizade, eis que os leitores iri-
am, segundo a medida de Montaigne que enalteceu tanto o ami-
go perdido,meter o nariz por toda parte e a presunção do
ensaísta que oimpede de deixar algo sem solucionar: apontar
com o dedo o Discurso da Servio Voluntária, de La Boétie,
eis que o poderia transcrevê-lo, como desejara, nos seus En-
saios, para não arriscar ser considerado, também, subversivo e,
quiçá, herético.
Logo as a citação retro, inicia-se o ensaio Da Amizade.
Esclareça-se que o expediente utilizado por Montaigne o
é exclusivo. Assim o fez no ensaio Dos Canibais, no intuito de
criticar os padrões morais de sua sociedade,
335
Cf. STAROBINSKI, op. cit., p. 63: À força de idealização, Montaigne
estima que sua amizade se desligou dos modelos, a ponto de ela própria
não poder oferecer-se como um modelo: ninguém a alcançaria.
336
Ensaios, I, 27, 272.
114
Alguns críticos conhecedores das astúcias de Montaigne
já haviam sugerido que tudo seria invenção do escritor,
que teria criado o diálogo e posto na boca dos canibais
brasileiros idéias que ele queria passar (a relatividade
dos costumes e a injustiça social), mas que não podia
reivindicar como suas, porque eram subversivas.
337
Esses críticos referiram-se ao trecho do ensaio em que os
índios brasileiros, na oportunidade em que conheceram a capi-
tal da Normandia, teriam respondido quando indagado sobre,
que o compreendiam duas coisas: a primeira, como poderiam
homens velhos serem governados por uma criança (Charles IX
contava, então, 12 anos); e, a segunda, como poderia haver ta-
manha desigualdade entre as pessoas, com alguns vivendo em
palácios e outros mendigando, passando fome e frio nas ruas e
porque eles não se revoltavam.
Não obstante isso, pela tradição cética de Montaigne e pe-
las lições por ele apreendidas de Aristóteles, Cícero e Plutarco,
que lhe formaram o substrato, podemos inferir que a amizade
verdadeira resulta de tempo, experiência, intimidade, que todo
o exposto acima indica que Montaigne e La Btie não tiveram,
pois conviveram pouco mais de quatro anos,
(...) Para uma amizade perfeita ambas as partes devem
adquirir experiência recíproca e tornar-se íntimas, e isto
é muito dicil.”
338
Se conheceram homens feitos e não conviveram constan-
temente em função dos ocios que exerciam no Parlamento de
Bourdeaux, que exigiam deles, viagens freqüentes. Montaigne
337
FILHO, José Alexandrino de Souza. Montaigne, os canibais e a arte do
blefe, texto inserto na Revista Cncia Hoje, vol. 32 nº 187/outubro de
2002, p. 37.
338
ARISTÓTELES, op. cit., p. 264.
115
é homem de experiência, cético, portanto, não acredita nas ra-
zões a priori, e deixa isso claro, todo o tempo nos Ensaios.
Porém, quando aborda o tema da amizade, idealiza de
forma confusa e contraditória à sua obra, demonstrando uma
incoerência, a nosso ver inexistente, para despistar oleitor
superficial.
Montaigne sabe que, em não sendo ele perfeito, jamais
poderia reconhecer no amigo, a perfeição.
Reconhecer algo que ele próprio desconhece? Sabe que
não poderia. Sabe também, que a idealização é fruto da imagi-
nação dos homens e que, quase sempre, resulta de algum pre-
conceito.
O ensaísta sabe também que ele próprio o se conhece
em absoluto e, em assim sendo, não poderia pretender conhe-
cer, também em absoluto, o amigo La Btie.
Parece Montaigne, negar o devir e as perspectivas, a in-
constância do homem e seu movimento. Não pintou Montaigne,
em relação a La Btie, apassagem como afirmou no ensaio
Do Arrependimento
339
, maso ser.
Todaessa confusão que vai até a incoerência, essas con-
tradições desconcertantes, tudo isso se torna ininteligível se
Montaigne não tem uma segunda intenção
340
, quiçá, de remeter
os seus leitores ao Discurso da Servidão Voluntária, do amigo
Étienne de La Boétie.
339
Ensaios, III, 2, 27.
340
WEILER, op. cit., p. 42.
116
CONCLUSÃO
Procuramos mostrar na presente dissertação, a todo ins-
tante, avida perpétua
341
de Montaigne, contrapondo-a, ao
que parece, à única certeza que parecia Montaigne possuir
sua amizade com o Sr. La Boétie que, até mesmo em função da
paixão que o quis, propositalmente, esconder, sugeriu inúme-
ras teses relativas ao seu móbil. Seu verdadeiro móbil.
Seu propósito fundamental no ensaio Da Amizade - po-
demos ver, é recusar a todas as demais formas de associação o
nome amizade; é reservá-lo apenas a sua forma perfeita
342
.
Mas com qual intenção? Qual o seu móbil para assim proce-
der? Por que restringir a incidência do termo amizade, tornan-
do-a inatingível aos homens? Por que excluir a amizade, dentro
desse conceito ímpar, as diversas formas de relacionamento?
Há, a nosso sentir, outro motivo.
E porque utilizaria a questão da amizade como o meio a
atingir seu objetivo? Primeiro porque conhecia o autor do Dis-
341
Assim denominada por GIDE, op. cit., 10.
342
CARDOSO, op. cit., p. 169.
117
curso da Servidão Voluntária, pois ambos eram magistrados e
conviveram no parlamento de Bordeaux. Segundo porque o
próprio La Boétie coloca a amizade, no referido discurso, como
forma possível de uma sociedade justa. E terceiro porque, ao
trabalhar num evidente cunho reducionista do conceito de ami-
zade, tornou a amizade perfeita algo praticamente ininteligí-
vel e impraticável aos mortais”
343
- induziria, então, a curiosida-
de dos leitores dos Ensaios - fator determinante para que La
Boétie (e sua obra) fosse procurado.
Intenção representada em transmitir o Discurso da Servi-
dão Voluntária, escrito pelo amigo La Boétie, cuja impossibili-
dade de fazê-lo diretamente advém dos riscos de ser conside-
rado subversivo pela situação política e religiosa da sociedade
francesa do século XVI.Assim acontece com tudo; a dificulda-
de (e quiçá, a impossibilidade) valor às coisas
344
. Talvez
por isso La Btie lhe tenha sido tão caro, eis que a fortuna do
amigo lhe abreviou o comércio.
Montaigne, sem muito se esforçar para nós, demonstra
que enquanto nas relações de camaradagem (“amizades comuns
do dia-a-dia”) o vínculo que as mantém é apenas superficial, na
amizade perfeita que tanto prega a La Btie, umaforça i-
nexplicável e fatal, mediadora dessa união
345
, enfim, umaquin-
tessência de toda essa mistura
346
.
O fato é, que Montaigne procurando o argumento para ex-
plicar essa referidaforça inexplicável e fatal que o unira ao
seu amigo; o fundamento para demonstrar aquintessência que
343
Cf. STAROBINSKI, op. cit., p. 63:À força de idealização, Montaigne
estima que sua amizade se desligou dos modelos, a ponto de ela própria
não poder oferecer-se como um modelo: ninguém a alcançaria.
344
Ensaios, II, 15, 421.
345
Ensaios, I, 28, 281.
346
Ibidem, p. 282.
118
resultara em simbiose
347
, em depenncia do outro que afirma,
unilateralmente, correspondido, a ponto de subestimar a própria
autonomia
348
, se viu, pressionado, justificando de forma inacei-
tável, a nosso ver, “porque era ele; porque era eu
349
.
Mas o ensaísta - ciente de quenada parece verdadeiro
que não possa parecer falso
350
respondeu noutra oportunida-
de - que
quantas tolices digo e respondo todos os dias, em minha
opinião.
351
E, para não arriscar ser desmentido pelo único que o po-
deria fazer, La Boétie, eis que daquela amizade o único teste-
munho é o ensaio Da Amizade, Montaigne escreve queos que
mereceram de mim amizade e reconhecimento nunca os perde-
ram por não estarem mais aqui: ausentes e ignorando-o, pa-
guei-lhes melhor e mais solicitamente. Falo mais afetuosamen-
te de meus amigos quando não mais meio de saberem dis-
so
352
.
O amigo é, desde os antigos, o nosso espelho; um outro
eu. Com efeito, para Montaigne,o verdadeiro espelho de nos-
sos discursos é o curso de nossas vidas
353
e o ensaísta, que
afirmou categoricamente se conhecer bem
354
, sabia-se
(...) tão zeloso da liberdade de meu julgamento que difi-
cilmente consigo deixá-la por qualquer paixão que seja.
347
Ibidem, p. 282:Digo perder verdadeiramente, sem nos conservar nada
que nos fosse exclusivamente particular nem que fosse ou dele ou meu.
348
Ibidem, p. 289:Já estava tão afeito e habituado a ser um de dois em
tudo que me parece não ser mais do que meio.
349
Ibidem, p. 281.
350
Ensaios, II, 12, 258.
351
Ensaios, III, 8, 215.
352
Ensaios, III, 9, 318.
353
Ensaios, I, 26, 251.
354
Ensaios, III, 9, 275.
119
Mentindo, causo mais mal a mim mesmo do que àquele
sobre quem minto.”
355
e, não mais podendo causar mal ao outro se acaso já tiver mor-
rido, pois pintou-se para a posteridade, não ressentiria a culpa
de faltar” à verdade com objetivos, talvez em sua concepção,
maiores, afinal, Por meios diversos chega-se ao mesmo fim.
356
Observa-se pois - tanta diferença de nós para nós
mesmos quanta de nós para outrem
357
. Ademais, Montaigne
apreendeu de Aristóteles o seu paradigma ético da prudência.
Conhecia, em sua conjuntura política e social, da necessidade
de selevar uma vela para São Miguel e outra para sua serpen-
te
358
, como confessa sem hesitar.
Michel de Montaigne, em seu livro, jamais procurou tecer
qualquer paradigma ético, muito menos no ensaio pelo qual dis-
serta sobre o tema da amizade. Nesse aspecto, os outros que
mais se preocupavam em formar o homem enquanto ele se ocu-
pou em descrevê-lo
359
, obtiveram, na medida do possível, me-
lhor resultado.
Em relação a Montaigne e La Btie, podemos dizer que
os seus ideais, que a sua comunhão de pensamentos cuja lite-
ratura nos permite aferir, o nos pareceram tão afins a ponto
de se poder afirmar quenão está no poder de todos os argu-
mentos do mundo afastar-me da certeza que tenho sobre as in-
tenções e julgamentos de meu amigo. Até mesmo no que se
refere às possibilidades da amizade, Montaigne e La Btie dis-
cordaram.
355
Ensaios, II, 17, 490.
356
Ensaios, I, 1.
357
Ensaios, II, 1, 12.
358
Ensaios, III, 1, 9.
359
Ensaios, III, 2, 27: “Os outros formam o homem; eu o descrevo.
120
O primeiro a teceu, em caráter privado e restrito, reducio-
nista do conceito de amizade e do universo de relações coberto
pelo termo amizade, tal que aquela que representaria para A-
ristóteles uma amizade problemática, para o ensaísta seria
uma pseudoamizade, como afirmaram alguns.
La Btie, ao contrário, tratou do tema como forma possí-
vel de advertir aos concidadãos sobre a natureza da tirania,
seus meios e possíveis soluções: nada dar ao tirano e ter com
os concidadãos, a política da amizade, única capaz de evitar a
dispersão dos indivíduos e, conseqüentemente, a falta de co-
municação. Como Aristóteles, Cícero e Plutarco, La Boétie vê,
na amizade, a possibilidade de uma sociedade justa eis que um
amigo jamais seria injusto com outro amigo, como ressaltou o
estagirita.
A amizade, para La Btie, é a existência pelo lado de fo-
ra do privado, diferenciando-se de Montaigne, pois, para aque-
le, a amizade é sempre pública. Vê a amizade, La Boétie, não
como conceito e tampouco como prática, uma possível rotina,
mas experiência pública entre amigos, livres de Estado, de au-
toridade centralizada.
Em comum, entretanto, Montaigne e La Boétie tinham a
necessidade de se revisar os programas de educação de sua
sociedade, poisnão desejo mais natural do que o desejo de
conhecimento
360
. Porém, a educação de sua época (e por que
não dizer tamm a nossa) ensina apenas a obedecer e Mon-
taigne sabe que o homem resulta dos costumes e critica o edu-
cador que tanto se esforça em formá-lo conforme uma tradição,
ainda que não apto a pensar, poistinha [o educador] como ob-
jetivo fazer-nos não bons e sábios, mas eruditos
361
.
360
Ensaios, III, 13, 422.
361
Ensaios, II, 17, 491.
121
Montaigne ensaiou a educação das crianças para novos
costumes, o deixando de atentar para o fato de que sua reali-
zação somente é possível por meio de investimentos na educa-
ção autônoma e livre.
E, contra a servidão, tanto La Boétie como Montaigne pen-
sam na possibilidade do comércio de homens, o qual aquele de-
nominou amizade. Unem-se, contudo, quando se referem à
qualidade que esses homens devem possuir.
Perceberam, La Boétie e Montaigne, que para o assujeita-
mento dos homens era necessário criar ilusão ou forçá-los a al-
go: nascidos sob o jugo, educados sob o jugo, os homens se
conformam. Sob a tirania, as pessoas se tornam covardes e e-
feminadas, fracas. Os costumes são a primeira razão da servi-
dão
362
.
O Discurso da Servidão Voluntária revela a dimensão polí-
tica da amizade e Montaigne percebeu isso. Justifica-se, então,
inserir o Discours nas entrelinhas do ensaio Da Amizade.
Entrelinhas, pois, a conjuntura política da sociedade
francesa do século XVI, e seus instrumentos contra a heresia
(não só religiosa, mas também política), não permitia aos auto-
res perspicazes uma dissertação livre de dissimulação que so-
mente um leitor atento poderia perceber
363
. Por isso Montaigne
dissimulou honestamente.
Para nós, hoje, a amizade tecida por Montaigne parece, de
fato, estranha, mas isso porque nósmal nos damos conta do
modelo de amizade que praticamos, modelo cristão pautado na
família e confinado ao privado
364
.
362
Cf. PASSETTI, op. cit.
363
WEILER, op. cit., p. 4.
364
RAGO, Margareth. A reinvenção da amizade, no site
http://www.pucsp.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=148&sid
=64, acesso em 02/2005.
122
E, para aqueles que, devido à forma como Montaigne poe-
ticamente enalteceu o amigo perdido, pensaram numa possível
homossexualidade, cumpre nos indagar o que diriam a respeito
do elogio tecido por Montaigne a sua amiga Marie de Gournay
le Jars, tão eloqüentemente como fizera a La Boétie?
O que diriam também, em relação à falta, que Montaigne
não parece sentir, do seu amigo, dele separado pela morte
prematura. Pelo contrário, afirmou que obteve
Outrora proveito e vantagem com nosso afastamento.
Separando-nos completávamos melhor e ampliávamos a
posse da vida: ele vivia, desfrutava, via por mim, e eu
por ele, tão plenamente como se estivesse ali. Quando
estávamos juntos, uma parte permanecia ociosa: con-
fundíamo-nos um no outro. A separação espacial torna-
va mais rica a conjunção de nossas vontades.
365
Mas, para aqueles que insistem em vê-lo apaixonado, re-
sume quetodas as ações fora dos limites habituais estão sujei-
tas a interpretação desfavorável, uma vez que nossa apreciação
não chega ao que está acima dela mais do que ao que está a-
baixo”.
366
E sua amizade, na forma como demonstrou, estava de
fato,fora dos limites habituais.
Não pinto o ser, pinto a passagem
367
,
ou seja, Montaigne sabia que não havia como ele pintar” a a-
mizade perfeita em si, mas apenas a sua passagem, não pas-
sando seu relato de mera idealização fixada num determinado
momento, pois, como já dito outrora, não houve tempo - fator
determinante na formação de uma verdadeira amizade.
365
Ensaios, III, 9, 288.
366
Ensaios, II, 2, 25.
367
GIDE, op. cit., p. 90.
123
Sabia ainda, da dificuldade ou, por que não, impossibili-
dade, de se conhecer e conhecer a outrem, a ponto de possuir
toda a certeza quanto aos pensamentos e intenções do outro,
pois a única coisa que o homem tem de constante, paradoxal-
mente, é a sua inconstância, poisnunca dois homens julgaram
da mesma forma sobre a mesma coisa, e é impossível ver duas
opiniões exatamente iguais, não apenas em diversos homens
mas no mesmo homem em diversas horas
368
.
Enfim, a amizade observada por Montaigne induz, não às
conclusões obtidas pelos conhecedores da doutrina montaignia-
na, mas à necessidade de revisão dos programas de educação
da sociedade, único meio capaz de preparar e possibilitar aos
sujeitos, que estão mais fechados no seu mundo subjetivo, ego-
ísta, que esquecem dos outros em prol da mantença de seus
bens, em nítida inversão de valores morais, que tanto desejam
e lutam para preservá-los, tornando-se escravos do trabalho
escravo numa sociedade, cuja qualidade de vida é nenhuma.
Para tanto, perdem a liberdade ao esquecerem do outro,
do amigo. Formam, por conseguinte, um exército desejado de
solidão, onde as pessoas não deixam a condição de servidão
voluntária, ondea multidão não é companhia, nela os rostos
não são mais do que uma galeria de retratos e as conversas ti-
nidos de címbalos, onda o há amizade
369
.
Isso foi observado pelo Sr. La Boétie, no Discurso da Ser-
vidão Voluntária, obra pela qual alertou seus compatriotas so-
bre o assujeitamento dos homens, sobre as técnicas (ilusões)
criadas para esse fim, sobre a força cruel sobre eles que: nas-
cidos e educados sob o jugo, acabavam por se conformar. Os
costumes - repita-se - seriam a primeira razão da servidão.
368
Ensaios, III, 13, 426.
369
BACON, op. cit., p. 104.
124
Porém, todos sabem que Montaigne estava insatisfeito
com os costumes de sua sociedade, afirmando estarem eles,
extremamente corrompidos, pendendo, com extrema inclinação,
para a deterioração
370
, a ponto de obscurecernossos julga-
mentos pois tamm estão afetados e acompanham a depra-
vação de nossos costumes
371
.
E - sabia Montaigne - somenteuma boa educação muda o
julgamento e os costumes
372
.
Apropriada a observação de alguns estudiosos
373
no senti-
do de que é se espantar que, com os séculos passando sobre a
obra de La Boétie, o desejo do cidadão de desconhecer sua
questão continue tão obstinado quanto o desejo de servidão,
sempre capturado por novos feitiços. Hoje, o capitalismo serve
ao propósito.
Montaigne, por seu turno, reafirma a iia de La Btie,
ao r em questão:de que adianta o conhecimento das coisas
se com isso perdemos o repouso e a tranqüilidade que sem ele
teríamos?
374
. Afinal, é a nossa opinião que atribuipreço às
coisas
375
e, como se verifica, mais valem que a própria vida.
Montaigne entende quese o que temos basta para manter a
condição em que nascemos e a que nos habituamos, é loucura
largar a presa pela incerteza de aumentá-la
376
.
Mas, afinal, o educador tão preocupado em formar o ho-
mem
377
conforme uma tradição e costume, ainda que não apto a
370
Ensaios, III, 13, 485.
371
Ensaios, I, 37, 344.
372
Ensaios, II, 12, 491.
373
LEFORT, op. cit., p. 171.
374
Ensaios, I, 14, 79.
375
Cf., Ensaios, I, 14, 90.
376
Ensaios, II, 17, 470.
377
Ensaios, III, 2, 27: “Os outros formam o homem; eu o descrevo.
125
pensar
378
senão em gerar riquezas, mantém como objetivo, ape-
nas,fazer-nos não bons e sábios, mas eruditos
379
.
O homem que ordena a si mesmo estar necessariamente
em falta
380
, em esperança, conclui o ensaísta quese é
mau viver na necessidade, pelo menos viver na necessi-
dade não é uma necessidade. Ninguém fica mal por lon-
go tempo a não ser por sua própria culpa.
381
Sem o propósito específico, Montaigne evidenciou uma é-
tica hedonista, salientando quequem puder inverter e misturar
em si mesmo os papéis da amizade e da companhia, que o faça.
Nessa queda, que o torna inútil, pesado e importuno para os ou-
tros, evite ele tornar-se importuno para si mesmo, e pesado, e
itil. Adule-se e se afague, e acima de tudo se governe, res-
peitando e temendo sua razão e sua consciência
382
.
Obviamente, sem perder-se aos devaneios e descuidado
do amor-próprio que, como disse Plutarco, é o início de todo
mal da bajulação
383
. E, por que o dizer, uma ética utilitária,
(...) É verossímel que entre estes se encontre a verda-
deira medida da amizade que cada qual deve a si. Não
uma amizade falsa, que nos faz abraçar uma afeição
predominante e imoderada, como partes de nosso ser;
nem uma amizade frouxa e sem discernimento, na qual
advém o que se vê na hera, que degrada e arruína a pa-
rede a que adere; mas uma amizade salutar e regrada,
tão útil quanto agradável. Quem conhece os deveres de-
la e exerce-os é realmente do toucador das musas; atin-
giu o topo da sabedoria humana e de nossa felicidade.
Sabendo exatamente o que deve a si, percebe que parte
de seu papel consiste em aplicar a si o exercício dos ou-
tros homens e do mundo, devendo, para fazê-lo, contri-
buir para a sociedade pública com os deveres e serviços
378
Cf. nota 300, infra.
379
Ensaios, II, 17, 491.
380
Ensaios, III, 9, 309.
381
Ensaios, I, 14, 99.
382
Ensaios, I, 39, 361.
383
PLUTARCO, op. cit., 27.
126
que cabem a ele. Quem não vive um pouco para o outro
quase não vive para si. Qui sibi amicus est, scito hunc
amicum omnibus esse [sabei que quem é amigo de si
mesmo é amigo de todos, Sêneca, Ep., VI].”
384
Por isso Montaigne - mesmo sob o risco de ser compreen-
dido como incoerente ou contraditório (talvez isso tenha sido,
até, proposital, no intuito de desnortear o leitor superficial); o
se importando em, por vezes, faltar à verdade; em, por vezes,
afastar-se do ceticismo oulevar uma vela para São Miguel e
outra para sua serpente
385
- disse que o amor ignora as re-
gras
386
. Amor pela vida. Tudo, para obter um bem maior, afinal,
Nossa grande e gloriosa obra-prima é viver adequada-
mente.
387
E os Ensaios são, na medida do possível, o retrato fiel do
pensamento de Montaigne que, como afirma,se não estou em
mim, estou sempre bem perto
388
.
* * *
384
Ensaios, III, 10, 333/334.
385
Ensaios, III, 1, 9.
386
Ensaios, III, 5, p. 166: “Amor ordinem nescit.
387
Ensaios, III, 13, 489.
388
Ensaios, III, 2, 37.
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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia; Martins Fontes,
São Paulo, 2000.
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ANEXO: Ensaio De l'Amit.
149
LIVRE PREMIER - CHAPITRE XXVII
De l'Amit.
CONSIDERANT la conduite de la besongne d'un peintre
que j'ay, il m'a pris envie de l'ensuivre. Il choisit le plus bel en-
droit et milieu de chaque paroy, pour y loger un tableau élabou-
ré de toute sa suffisance; et le vuide tout au tour, il le remplit
de grotesques, qui sont peintures fantasques, n'ayans grace
qu'en la varieté et estrangeté. Que sont-ce icy aussi à la verité
que grotesques et corps monstrueux, rappiecez de divers mem-
bres, sans certaine figure, n'ayants ordre, suite, ny proportion
que fortuite?
Desinit in piscem mulier formosa superne.
Je vay bien jusques à ce second point, avec mon peintre, mais
je demeure court en l'autre, et meilleure partie; car ma suffisan-
ce ne va pas si avant, que d'oser entreprendre un tableau riche,
poly et formé selon l'art. Je me suis advisé d'en emprunter un
d'Estienne de la Boitie, qui honorera tout le reste de cette be-
songne. C'est un discours auquel il donna nom La Servitude vo-
lontaire; mais ceux qui l'ont ignoré, l'ont bien proprement dépuis
rebatisé, Le Contre Un. Il l'escrivit par maniere d'essay, en sa
premiere jeunesse, à l'honneur de la liberté contre les tyrans. Il
court pieça és mains des gens d'entendement, non sans bien
grande et meritee recommandation: car il est gentil, et plein ce
qu'il est possible. Si y a il bien à dire, que ce ne soit le mieux
qu'il peust faire; et si en l'aage que je l'ay cogneu plus avancé,
il eust pris un tel desseing que le mien, de mettre par escrit ses
fantasies, nous verrions plusieurs choses rares, et qui nous ap-
procheroient bien pres de l'honneur de l'antiquité; car notam-
ment en cette partie des dons de nature, je n'en cognois point
150
qui luy soit comparable. Mais il n'est demeuré de luy que ce
discours, encore par rencontre, et croy qu'il ne le veit oncques
depuis qu'il luy eschappa, et quelques memoires sur cet edict
de Janvier fameux par nos guerres civiles, qui trouveront enco-
res ailleurs peut estre leur place. C'est tout ce que j'ay peu re-
couvrer de ses reliques, moy qu'il laissa d'une si amoureuse re-
commandation, la mort entre les dents, par son testament, heri-
tier de sa Bibliotheque et de ses papiers, outre le livret de ses
oeuvres que j'ay faict mettre en lumiere. Et si suis obli parti-
culierement à cette piece, d'autant qu'elle a servy de moyen à
nostre premiere accointance. Car elle me fut montree longue
espace avant que je l'eusse vu, et me donna la premiere cog-
noissance de son nom, acheminant ainsi cette amitié, que nous
avons nourrie, tant que Dieu a voulu, entre nous, si entiere et si
parfaicte, que certainement il ne s'en lit guere de pareilles, et,
entre nos hommes il ne s'en voit aucune trace en usage. Il faut
tant de rencontre à la bastir, que c'est beaucoup si la fortune y
arrive une fois en trois siecles.
Il n'est rien à quoy il semble que nature nous aye plus
acheminés qu'à la societé. Et dit Aristote, que les bons legisla-
teurs ont eu plus de soing de l'amitié, que de la justice. Or le
dernier point de sa perfection est cetuy-cy. Car en general tou-
tes celles que la volupté, ou le profit, le besoin publique ou pri-
vé, forge et nourrit, en sont d'autant moins belles et genereu-
ses, et d'autant moins amitiez, qu'elles meslent autre cause et
but et fruit en l'amitié qu'elle mesme.
Ny ces quatre especes anciennes, naturelle, sociale, hos-
pitaliere, venerienne, particulierement n'y conviennent, ny con-
jointement.
151
Des enfans aux peres, c'est plustost respect. L'amitié se
nourrit de communication, qui ne peut se trouver entre eux, pour
la trop grande disparité, et offenceroit à l'adventure les devoirs
de nature. Car ny toutes les secrettes pensees des peres ne se
peuvent communiquer aux enfans, pour n'y engendrer une mes-
seante privauté, ny les advertissemens et corrections, qui est
un des premiers offices d'amitié, ne se pourroient exercer des
enfans aux peres. Il s'est trouvé des nations, par usage les
enfans tuoyent leurs peres, et d'autres, les peres tuoyent
leurs enfans, pour eviter l'empeschement qu'ils se peuvent
quelquesfois entreporter, et naturellement l'un depend de la rui-
ne de l'autre. Il s'est trouvé des philosophes desdaignans cette
cousture naturelle, tesmoing Aristippus qui quand on le pressoit
de l'affection qu'il devoit à ses enfans pour estre sortis de luy, il
se mit à cracher, disant, que cela en estoit aussi bien sorty; que
nous engendrions bien des pouz et des vers. Et cet autre que
Plutarque vouloit induire à s'accorder avec son frere: Je n'en
fais pas, dit-il, plus grand estat, pour estre sorty de mesme
trou. C'est à la verité un beau nom, et plein de dilection que le
nom de frere, et à cette cause en fismes nous luy et moy nostre
alliance. Mais ce meslange de biens, ces partages, et que la ri-
chesse de l'un soit la pauvreté de l'autre, cela detrampe mervei-
lleusement et relasche cette soudure fraternelle. Les freres
ayants à conduire le progrez de leur avancement, en mesme
sentier et mesme train, il est force qu'ils se heurtent et cho-
quent souvent. D'avantage, la correspondance et relation qui
engendre ces vrayes et parfaictes amitiez, pourquoy se trouvera
elle en ceux cy? Le pere et le fils peuvent estre de complexion
entierement eslongnee, et les freres aussi. C'est mon fils, c'est
mon parent, mais c'est un homme farouche, un meschant, ou un
sot. Et puis, à mesure que ce sont amitiez que la loy et l'obliga-
152
tion naturelle nous commande, il y a d'autant moins de nostre
choix et liberté volontaire. Et nostre liberté volontaire n'a point
de production qui soit plus proprement sienne, que celle de l'af-
fection et amitié. Ce n'est pas que je n'aye essayé de ce costé
là, tout ce qui en peut estre, ayant eu le meilleur pere qui fut
onques, et le plus indulgent, jusques à son extreme vieillesse,
et estant d'une famille fameuse de pere en fils, et exemplaire en
cette partie de la concorde fraternelle.
et ipse
Notus in fratres animi paterni.
D'y comparer l'affection envers les femmes, quoy qu'elle naisse
de nostre choix, on ne peut, ny la loger en ce rolle. Son feu, je
le confesse,
neque enim est dea nescia nostri
Quæ dulcem curis miscet amaritiem,
est plus actif, plus cuisant, et plus aspre. Mais c'est un feu
temeraire et volage, ondoyant et divers, feu de fiebvre, subject
à accez et remises, et qui ne nous tient qu'à un coing. En
l'amitié, c'est une chaleur generale et universelle, temperee au
demeurant et égale, une chaleur constante et rassize, toute
douceur et pollissure, qui n'a rien d'aspre et de poignant. Qui
plus est en l'amour ce n'est qu'un desir force apres ce qui
nous fuit,
Come segue la lepre il cacciatore
Al freddo, al caldo, alla montagna, al lito,
Ne piu l'estima poi, che presa vede,
Et sol dietro à chi fugge affreta il piede.
153
Aussi tost qu'il entre aux termes de l'amitié, c'est à dire en la
convenance des volontez, il s'esvanouist et s'alanguist. La
jouïssance le perd, comme ayant la fin corporelle et sujette à
sacieté. L'amitié au rebours, est jouye à mesure qu'elle est de-
siree, ne s'esleve, se nourrit, ny ne prend accroissance qu'en la
jouyssance, comme estant spirituelle, et l'ame s'affinant par l'u-
sage. Sous cette parfaicte amitié, ces affections volages ont au-
tresfois trouvé place chez moy, affin que je ne parle de luy, qui
n'en confesse que trop par ses vers. Ainsi ces deux passions
sont entrees chez moy en cognoissance l'une de l'autre, mais
en comparaison jamais: la premiere maintenant sa route d'un
vol hautain et superbe, et regardant desdaigneusement cette cy
passer ses pointes bien loing au dessoubs d'elle.
Quant au mariage, outre ce que c'est un marché qui n'a
que l'entree libre (sa duree estant contrainte et forcee, depen-
dant d'ailleurs que de nostre vouloir), et marc, qui ordinaire-
ment se fait à autres fins, il y survient mille fusees estrangeres
à desmeler parmy, suffisantes à rompre le fil et troubler le cours
d'une vive affection; là où en l'amitié, il n'y a affaire ny com-
merce que d'elle mesme. Joint qu'à dire vray, la suffisance ordi-
naire des femmes, n'est pas pour respondre à cette conference
et communication, nourrisse de cette saincte cousture; ny leur
ame ne semble assez ferme pour soustenir l'estreinte d'un neud
si pressé, et si durable. Et certes sans cela, s'il se pouvoit
dresser une telle accointance libre et volontaire, non seule-
ment les ames eussent cette entiere jouyssance, mais encores
les corps eussent part à l'alliance, où l'homme fust enga
tout entire, il est certain que l'amitié en seroit plus pleine et
plus comble. Mais ce sexe par nul exemple n'y est encore peu
arriver, et par les escholes anciennes en est rejetté.
154
Et cette autre licence Grecque est justement abhorree par
nos moeurs. Laquelle pourtant, pour avoir selon leur usage, une
si necessaire disparité d'aages, et difference d'offices entre les
amants, ne respondoit non plus assez à la parfaicte union et
convenance qu'icy nous demandons.Quis est enim iste amor
amicitiæ? Cur neque deformem adolescentem quisquam amat,
neque formosum senem? Car la peinture mesme qu'en faict l'A-
cademie ne me desadvoüera pas, comme je pense, de dire ainsi
de sa part: que cette premiere fureur, inspiree par le fils de Ve-
nus au coeur de l'amant, sur l'object de la fleur d'une tendre
jeunesse, à laquelle ils permettent tous les insolents et pas-
sionnez efforts, que peut produire une ardeur immoderee, estoit
simplement fondee en une beauté externe, fauce image de la
generation corporelle. Car en l'esprit elle ne pouvoit, duquel la
montre estoit encore cachee, qui n'estoit qu'en sa naissance, et
avant l'aage de germer. Que si cette fureur saisissoit un bas
courage, les moyens de sa poursuitte c'estoient richesses, pre-
sents, faveur à l'avancement des dignitez, et telle autre basse
marchandise, qu'ils reprouvent. Si elle tomboit en un courage
plus genereux, les entremises estoient genereuses de mesmes:
instructions philosophiques, enseignements à reverer la relig-
ion, obeïr aux loix, mourir pour le bien de son païs, exemples
de vaillance, prudence, justice. S'estudiant l'amant de se rendre
acceptable par la bonne grace et beauté de son ame, celle de
son corps estant pieça fanée, et esperant par cette societé
mentale, establir un marc plus ferme et durable. Quand cette
poursuitte arrivoit à l'effect, en sa saison (car ce qu'ils ne re-
quierent point en l'amant, qu'il apportast loysir et discretion en
son entreprise, ils requierent exactement en l'aimé; d'autant qu-
'il luy falloit juger d'une beauté interne, de difficile cognoissan-
ce, et abstruse descouverte) lors naissoit en l'aymé le desir
155
d'une conception spirituelle, par l'entremise d'une spirituelle
beauté. Cette cy estoit icy principale; la corporelle, accidentale
et seconde: tout le rebours de l'amant. A cette cause preferent
ils l'aymé, et verifient, que les Dieux aussi le preferent, et tan-
sent grandement le poëte Æschylus, d'avoir en l'amour d'Achi-
lles et de Patroclus, donné la part de l'amant à Achilles, qui es-
toit en la premiere et imberbe verdeur de son adolescence, et le
plus beau des Grecs. Apres cette communauté generale, la
maistresse et plus digne partie d'icelle, exerçant ses offices, et
predominant, ils disent, qu'il en provenoit des fruicts tres-utiles
au privé et au public. Que c'estoit la force des païs, qui en re-
cevoient l'usage, et la principale defense de l'equité et de la li-
berté. Tesmoin les salutaires amours de Hermodius et d'Aristo-
giton. Pourtant la nomment ils sacree et divine, et n'est à leur
compte, que la violence des tyrans, et lascheté des peuples, qui
luy soit adversaire. En fin, tout ce qu'on peut donner à la faveur
de l'Academie, c'est dire, que c'estoit un amour se terminant en
amitié; chose qui ne se rapporte pas mal à la definition Stoique
de l'amour:Amorem conatum esse amicitiæ faciendæ ex pulcri-
tudinis specie. Je revien à ma description, de façon plus equi-
table et plus equable. Omnino amicitiæ, corroboratis jam, con-
firmatisque ingeniis et ætatibus, judicandæ sunt.
Au demeurant, ce que nous appellons ordinairement amis
et amitiez, ce ne sont qu'accoinctances et familiaritez nouees
par quelque occasion ou commodité, par le moyen de laquelle
nos ames s'entretiennent. En l'amitié dequoy je parle, elles se
meslent et confondent l'une en l'autre, d'un meslange si univer-
sel, qu'elles effacent, et ne retrouvent plus la cousture qui les a
joinctes. Si on me presse de dire pourquoy je l'aymoys, je sens
156
que cela ne se peut exprimer, qu'en respondant: Par ce que
c'estoit luy, par ce que c'estoit moy.
Il y a au delà de tout mon discours, et de ce que j'en puis
dire particulierement, je ne sçay quelle force inexplicable et fa-
tale, mediatrice de cette union. Nous nous cherchions avant que
de nous estre veus, et par des rapports que nous oyïons l'un de
l'autre, qui faisoient en nostre affection plus d'effort, que ne
porte la raison des rapports, je croy par quelque ordonnance du
ciel. Nous nous embrassions par noz noms. Et à nostre premie-
re rencontre, qui fut par hazard en une grande feste et compag-
nie de ville, nous nous trouvasmes si prins, si cognus, si obli-
gez entre nous, que rien des lors ne nous fut si proche, que l'un
à l'autre. Il escrivit une Satyre Latine excellente, qui est publie-
e, par laquelle il excuse et explique la precipitation de nostre
intelligence, si promptement parvenue à sa perfection. Ayant si
peu à durer, et ayant si tard commencé (car nous estions tous
deux hommes faicts, et luy plus de quelque annee) elle n'avoit
point à perdre temps. Et n'avoit à se regler au patron des amiti-
ez molles et regulieres, aus quelles il faut tant de precautions
de longue et preallable conversation. Cette cy n'a point d'autre
idee que d'elle mesme, et ne se peut rapporter qu'à soy. Ce
n'est pas une speciale consideration, ny deux, ny trois, ny qua-
tre, ny mille: c'est je ne sçay quelle quinte-essence de tout ce
meslange, qui ayant saisi toute ma volonté, l'amena se plonger
et se perdre dans la sienne, qui ayant saisi toute sa volonté,
l'amena se plonger et se perdre en la mienne, d'une faim, d'une
concurrence pareille. Je dis perdre à la verité, ne nous reser-
vant rien qui nous fust propre, ny qui fust ou sien ou mien.
Quand Lælius en presence des Consuls Romains, lesquels
apres la condemnation de Tiberius Gracchus, poursuivoient tous
157
ceux qui avoient esté de son intelligence, vint à s'enquerir de
Caius Blosius (qui estoit le principal de ses amis) combien il
eust voulu faire pour luy, et qu'il eust respondu: Toutes choses.
Comment toutes choses? suivit-il, et quoy, s'il t'eust commandé
de mettre le feu en nos temples? Il ne me l'eust jamais com-
man, repliqua Blosius. Mais s'il l'eust fait? adjousta Lælius:
J'y eusse obey, respondit-il. S'il estoit si parfaictement amy de
Gracchus, comme disent les histoires, il n'avoit que faire d'of-
fenser les Consuls par cette derniere et hardie confession; et ne
se devoit departir de l'asseurance qu'il avoit de la volonté de
Gracchus. Mais toutesfois ceux qui accusent cette responce
comme seditieuse, n'entendent pas bien ce mystere et ne pre-
supposent pas comme il est, qu'il tenoit la volonté de Gracchus
en sa manche, et par puissance et par cognoissance. Ils estoi-
ent plus amis que citoyens, plus amis qu'amis ou que ennemis
de leur païs, qu'amis d'ambition et de trouble. S'estans parfait-
tement commis, l'un à l'autre, ils tenoient parfaittement les re-
nes de l'inclination l'un de l'autre; et faictes guider cet harnois,
par la vertu et conduitte de la raison (comme aussi est il du tout
impossible de l'atteler sans cela) la responce de Blosius est tel-
le, qu'elle devoit estre. Si leurs actions se demancherent, ils
n'estoient ny amis, selon ma mesure, l'un de l'autre, ny amis à
eux mesmes. Au demeurant cette response ne sonne non plus
que feroit la mienne, à qui s'enquerroit à moy de cette façon:
Si vostre volonté vous commandoit de tuer vostre fille, la tueri-
ez vous? et que je l'accordasse. Car cela ne porte aucun tes-
moignage de consentement à ce faire, par ce que je ne suis po-
int en doute de ma volonté, et tout aussi peu de celle d'un tel
amy. Il n'est pas en la puissance de tous les discours du mon-
de, de me desloger de la certitude, que j'ay des intentions et
jugemens du mien. Aucune de ses actions ne me sçauroit estre
158
presentee, quelque visage qu'elle eust, que je n'en trouvasse
incontinent le ressort. Nos ames ont charié si uniment ensem-
ble, elles se sont considerees d'une si ardante affection, et de
pareille affection descouvertes jusques au fin fond des entrail-
les l'une à l'autre, que non seulement je cognoissoy la sienne
comme la mienne, mais je me fusse certainement plus volontiers
fié à luy de moy, qu'à moy.
Qu'on ne me mette pas en ce rang ces autres amitiez
communes; j'en ay autant de cognoissance qu'un autre, et des
plus parfaictes de leur genre, mais je ne conseille pas qu'on
confonde leurs regles, on s'y tromperoit. Il faut marcher en ces
autres amitiez, la bride à la main, avec prudence et precaution;
la liaison n'est pas nouée en maniere, qu'on n'ait aucunement à
s'en deffier. Aymez le (disoit Chilon) comme ayant quelque jour
à le hair; haïssez le, comme ayant à l'aymer. Ce precepte qui
est si abominable en cette souveraine et maistresse amitié, il
est salubre en l'usage des amitiez ordinaires et coustumieres, a
l'endroit desquelles il faut employer le mot qu'Aristote avoit tres
familier, O mes amys, il n'y a nul amy.
En ce noble commerce, les offices et les bien-faicts nour-
rissiers des autres amitiez, ne meritent pas seulement d'estre
mis en compte; cette confusion si pleine de nos volontez en est
cause. Car tout ainsi que l'amitié que je me porte, ne reçoit
point augmentation, pour le secours que je me donne au besoin,
quoy que dient les Stoiciens, et comme je ne me ay aucun gré
du service que je me fay, aussi l'union de tels amis estant
veritablement parfaicte, elle leur faict perdre le sentiment de
tels devoirs, et haïr et chasser d'entre eux, ces mots de division
et de difference, bien-faict, obligation, recognoissance, priere,
remerciement, et leurs pareils. Tout estant par effect commun
159
entre eux, volontez, pensemens, jugemens, biens, femmes, en-
fans, honneur et vie, et leur convenance n'estant qu'une ame en
deux corps, selon la tres-propre definition d'Aristote, ils ne se
peuvent ny prester ny donner rien. Voila pourquoy les faiseurs
de loix, pour honnorer le mariage de quelque imaginaire res-
semblance de cette divine liaison, defendent les donations entre
le mary et la femme. Voulans inferer par là, que tout doit estre à
chacun d'eux, et qu'ils n'ont rien à diviser et partir ensemble. Si
en l'amitié dequoy je parle, l'un pouvoit donner à l'autre, ce se-
roit celuy qui recevroit le bien-fait, qui obligeroit son compag-
non. Car cherchant l'un et l'autre, plus que toute autre chose,
de s'entre-bien faire, celuy qui en preste la matiere et l'occa-
sion, est celuylà qui faict le liberal, donnant ce contentement à
son amy, d'effectuer en son endroit ce qu'il desire le plus.
Quand le Philosophe Diogenes avoit faute d'argent, il disoit,
qu'il le redemandoit à ses amis, non qu'il le demandoit. Et pour
montrer comment cela se pratique par effect, j'en reciteray un
ancien exemple singulier.
Eudamidas Corinthien avoit deux amis, Charixenus Sy-
cionien, et Aretheus Corinthien. Venant à mourir estant pauvre,
et ses deux amis riches, il fit ainsi son testament: Je legue à
Aretheus de nourrir ma mere, et l'entretenir en sa vieillesse; à
Charixenus de marier ma fille, et luy donner le doüaire le plus
grand qu'il pourra; et au cas que l'un d'eux vienne à defaillir, je
substitue en sa part celuy, qui survivra. Ceux qui premiers
virent ce testament, s'en moquerent; mais ses heritiers en
ayants esté advertis, l'accepterent avec un singulier contente-
ment. Et l'un d'eux, Charixenus, estant trespassé cinq jours
apres, la substitution estant ouverte en faveur d'Aretheus, il
nourrit curieusement cette mere, et de cinq talens qu'il avoit en
160
ses biens, il en donna les deux et demy en mariage à une si-
enne fille unique, et deux et demy pour le mariage de la fille
d'Eudamidas, desquelles il fit les nopces en mesme jour.
Cet exemple est bien plein, si une condition en estoit à
dire, qui est la multitude d'amis. Car cette parfaicte amitié, de-
quoy je parle, est indivisible; chacun se donne si entier à son
amy, qu'il ne luy reste rien à departir ailleurs; au rebours il est
marry qu'il ne soit double, triple, ou quadruple, et qu'il n'ait plu-
sieurs ames et plusieurs volontez, pour les conferer toutes à ce
subjet. Les amitiez communes on les peut partir, on peut ay-
mer en cestuy-cy la beauté, en cet autre la facilité de ses
moeurs, en l'autre la liberalité, en celuy-là la paternité, en cet
autre la fraternité, ainsi du reste; mais cette amitié, qui possede
l'ame, et la regente en toute souveraineté, il est impossible qu-
'elle soit double. Si deux en mesme temps demandoient à estre
secourus, auquel courriez vous? S'ils requeroient de vous des
offices contraires, quel ordre y trouveriez vous? Si l'un commet-
toit à vostre silence chose qui fust utile à l'autre de avoir,
comment vous en desmeleriez vous? L'unique et principale ami-
tié descoust toutes autres obligations. Le secret que j'ay juré ne
deceller à un autre, je le puis sans parjure, communiquer à ce-
luy, qui n'est pas autre, c'est moy. C'est un assez grand miracle
de se doubler; et n'en cognoissent pas la hauteur ceux qui par-
lent de se tripler. Rien n'est extreme, qui a son pareil. Et qui
presupposera que de deux j'en aime autant l'un que l'autre, et
qu'ils s'entr'aiment, et m'aiment autant que je les aime, il multi-
plie en confrairie, la chose la plus une et unie, et dequoy une
seule est encore la plus rare à trouver au monde.
Le demeurant de cette histoire convient tres-bien à ce que
je disois: car Eudamidas donne pour grace et pour faveur à ses
161
amis de les employer à son besoin. Il les laisse heritiers de cet-
te sienne liberalité, qui consiste à leur mettre en main les mo-
yens de luy bien-faire. Et sans doubte, la force de l'amitié se
montre bien plus richement en son fait, qu'en celuy d'Aretheus.
Somme, ce sont effets inimaginables, à qui n'en a gousté, et qui
me font honnorer à merveilles la responce de ce jeune soldat, à
Cyrus, s'enquerant à luy, pour combien il voudroit donner un
cheval, par le moyen duquel il venoit de gaigner le prix de la
course, et s'il le voudroit eschanger à un royaume: Non certes,
Sire, mais bien le lairroy je volontiers, pour en aquerir un amy,
si je trouvoy homme digne de telle alliance.
Il ne disoit pas mal, si je trouvoy. Car on trouve facilement
des hommes propres à une superficielle accointance. Mais en
cettecy, en laquelle on negotie du fin fons de son courage, qui
ne fait rien de reste, il est besoin, que touts les ressorts soyent
nets et seurs parfaictement.
Aux confederations, qui ne tiennent que par un bout, on
n'a à prouvoir qu'aux imperfections, qui particulierement inter-
essent ce bout là. Il ne peut chaloir de quelle religion soit mon
medecin, et mon advocat. Cette consideration n'a rien de com-
mun avec les offices de l'amitié, qu'ils ne doivent. Et en l'ac-
cointance domestique, que dressent avec moy ceux qui me ser-
vent, j'en fay de mesmes. Et m'enquiers peu d'un laquay, s'il est
chaste, je cherche s'il est diligent. Et ne crains pas tant un mu-
letier joueur qu'imbecille, ny un cuisinier jureur, qu'ignorant. Je
ne me mesle pas de dire ce qu'il faut faire au monde, d'autres
assés s'en meslent, mais ce que j'y fay,
Mihi sic usus est; tibi, ut opus est facto, face.
162
A la familiarité de la table, j'associe le plaisant, non le prudent;
au lict, la beauté avant la bonté; et en la societé du discours, la
suffisance, voire sans la preud'hommie, pareillement ailleurs.
Tout ainsi que cil qui fut rencontré à chevauchons sur un
baton, se jouant avec ses enfans, pria l'homme qui l'y surprint,
de n'en rien dire, jusques à ce qu'il fust pere luy-mesme, esti-
mant que la passion quiluy naistroit lors en l'ame, le rendroit
juge equitable d'une telle action. Je souhaiterois aussi parler à
des gens qui eussent essayé ce que je dis. Mais achant com-
bien c'est chose esloignee du commun usage qu'une telle ami-
tié, et combien elle est rare, je ne m'attens pas d'en trouver au-
cun bon juge. Car les discours mesmes que l'antiquité nous a
laissé sur ce subject, me semblent lasches au prix du sentiment
que j'en ay. Et en ce poinct les effects surpassent les preceptes
mesmes de la philosophie:
Nil ego contulerim jucundo sanus amico.
L'ancien Menander disoit celuy-là heureux, qui avoit peu
rencontrer seulement l'ombre d'un amy. Il avoit certes raison de
le dire, mesmes s'il en avoit tasté. Car à la verité si je compare
tout le reste de ma vie, quoy qu'avec la grace de Dieu je l'aye
passee douce, aisee, et sauf la perte d'un tel amy, exempte
d'affliction poisante, pleine de tranquillité d'esprit, ayant prins
en payement mes commoditez naturelles et originelles, sans en
rechercher d'autres; si je la compare, dis-je, toute, aux quatre
annees, qu'il m'a esté don de jouyr de la douce compagnie et
societé de ce personnage, ce n'est que fumee, ce n'est qu'une
nuict obscure et ennuyeuse. Depuis le jour que je le perdy,
163
quem semper acerbum,
Semper honoratum (sic Dii voluistis) habebo,
je ne fay que trainer languissant; et les plaisirs mesmes qui
s'offrent à moy, au lieu de me consoler, me redoublent le regret
de sa perte. Nous estions à moitié de tout; il me semble que je
luy desrobe sa part,
Nec fas esse ulla me voluptate hic frui
Decrevi, tantisper dum ille abest meus particeps.
J'estois desja si faict et accoustumé à estre deuxiesme par tout,
qu'il me semble n'estre plus qu'à demy.
Illam meæ si partem animæ tulit
Maturior vis, quid moror altera,
Nec charus æque nec superstes
Integer? Ille dies utramque
Duxit ruinam.
Il n'est action ou imagination, je ne le trouve à dire, comme
si eust-il bien faict à moy. Car de mesme qu'il me surpassoit
d'une distance infinie en toute autre suffisance et vertu, aussi
faisoit-il au devoir de l'amitié.
Quis desiderio sit pudor aut modus
Tam chari capitis?
O misero frater adempte mihi!
Omnia tecum u perierunt gaudia nostra,
Quæ tuus in vita dulcis alebat amor.
Tu mea, tu moriens fregisti commoda frater,
Tecum una tota est nostra sepulta anima,
164
Cujus ego interitu tota de mente fugavi
Hæc studia, atque omnes delicias animi.
Alloquar? audiero nunquam tua verba loquentem?
Nunquam ego te vita frater amabilior,
Aspiciam posthac? at certè semper amabo.
Mais oyons un peu parler ce garson de seize ans.
Parce que j'ay trouvé que cet ouvrage a esté depuis mis
en lumiere, et à mauvaise fin, par ceux qui cherchent à troubler
et changer l'estat de nostre police, sans se soucier s'ils l'amen-
deront, qu'ils ont meslé à d'autres escrits de leur farine, je me
suis dédit de le loger icy. Et affin que la memoire de l'autheur
n'en soit interessee en l'endroit de ceux qui n'ont peu cognois-
tre de pres ses opinions et ses actions, je les advise que ce
subject fut traicté par luy en son enfance, par maniere d'exerci-
tation seulement, comme subject vulgaire et tracassé en mil en-
droits des livres. Je ne fay nul doubte qu'il ne creust ce qu'il
escrivoit, car il estoit assez conscientieux, pour ne mentir pas
mesmes en se jouant. Et sçay d'avantage que s'il eust eu à
choisir, il eust mieux aymé estre nay à Venise qu'à Sarlac; et
avec raison. Mais il avoit un'autre maxime souverainement em-
preinte en son ame, d'obeyr et de se soubmettre tres-
religieusement aux loix, sous lesquelles il estoit nay. Il ne fut
jamais un meilleur citoyen, ny plus affectionné au repos de son
païs, ny plus ennemy des remuëments et nouvelletez de son
temps. Il eust bien plustost employé sa suffisance à les estein-
dre, qu'à leur fournir dequoy les émouvoir d'avantage. Il avoit
son esprit moulé au patron d'autres siecles que ceux-cy.
165
Or en eschange de cest ouvrage serieux j'en substitueray
un autre, produit en cette mesme saison de son aage, plus gail-
lard et plus enjoué.
166
UNIVERSIDADE GAMA FILHO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Av. Presidente Vargas, 62/12º andar - Centro
CEP: 20071-000. Tel. (21) 2518.2028 ramal 359
e-mail: doumesfi@ugf.br
O CETICISMO DE MICHEL DE MONTAIGNE NO ENSAIO DA AMIZADE Dis-
sertação de Mestrado apresentada por Carlos Magno Siqueira Melo, em 20 de
dezembro de 2005 ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UGF-RJ, e
aprovada pela Comissão Julgadora formada pelos seguintes membros:
Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho
(Orientador-UGF)
Prof. Dr. Celso Martins Azar Filho
(Co-orientador-UNESA)
Prof. Dr. Jorge Luiz Rocha de Vasconcellos
(UGF)
Prof. Dr. Edson Peixoto de Resende Filho
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Universidade Gama Filho
Livros Grátis
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