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LUIZA MARIA LEITE MACHADO ALVES
LEITURA DE FÁBULAS E ESCRITA:
UM PERCURSO DE SUBJETIVAÇÃO ÉTICA
DO ALUNO-PROFESSOR
Tese apresentada para obtenção do Título de
Mestre pelo Curso de Lingüística Aplicada do
Departamento de Ciências Sociais e Letras da
Universidade de Taubaté.
Área de Concentração: Língua Materna
Orientadora: Profª. Dra. Elzira Yoko Uyeno
TAUBATÉ - SP
2007
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Alves, Luiza Maria Leite Machado
Leitura de Fábulas e Escrita: Um Percurso de Subjetivação
Ética do Aluno-Professor. / Luiza Maria Leite Machado Alves –
Taubaté: UNITAU, 2007.
Orientadora: Profª. Dra. Elzira Yoko Uyeno
Dissertação (Mestrado) – Universidade de Taubaté,
Departamento de Ciências Sociais e Letras, 2007.
1. Análise do Discurso. 2. Ética. 3. Leitura. 4. Escrita. 5.
Representação – Dissertação. I. Universidade de Taubaté.
Departamento de Ciências Sociais e Letras. II. Título.
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LUIZA MARIA LEITE MACHADO ALVES
LEITURA DE FÁBULAS E ESCRITA: UM PERCURSO DE
SUBJETIVAÇÃO ÉTICA DO ALUNO-PROFESSOR
UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ, TAUBATÉ, SP.
Data: ______________________________________________
Resultado: __________________________________________
COMISSÃO JULGADORA
PROFª.DRª. __________________________________________
Assinatura:
__________________________________________
PROFª.DRª. __________________________________________
Assinatura:
__________________________________________
PROFª.DRª. __________________________________________
Assinatura:
__________________________________________
DEDICATÓRIA
Um sonho que se sonha só pode ser pura ilusão.
Um sonho que se sonha junto é a realidade. (L. Boff)
Ao meu esposo, Pedro TADEU Alves, pelo incentivo constante, pelo carinho,
compreensão e cumplicidade, também nos momentos de ansiedade.
A você meu amor, minha alegria e gratidão.
Neste momento único, alguém que gostaria que estivesse junto de mim está ausente... Mas a
lembrança de sua presença e o som da sua voz sopram suaves na memória, num murmúrio de
saudade. Você está aqui, papai: lembrado, presente, inesquecível.
Ao meu amado pai, ANTONIO Machado Junior, exemplo de digno mestre,
cujo legado de uma vida virtuosa foi minha inspiração, e seus atos e palavras,
a “motivação” necessária na caminhada por um ideal.
AGRADECIMENTOS
Reparai: [ ... ] entre o semeador e o que semeia há muita diferença:
(..) o semeador e o pregador é o nome;
o que semeia e o que prega é a ação;
e as ações são as que dão o ser ao pregador.
Ter o nome de pregador, ou ser pregador de nome, não importa nada;
as ações, a vida, o exemplo, as obras, são as que convertem o mundo. [ ... ]
hoje pregam-se palavras e pensamentos,
antigamente pregavam-se palavras e obras.
Palavras sem obras são tiros sem balas; atroam, mas não ferem.
O pregar que é falar, faz-se com a boca;
o pregar que é semear faz-se com a mão.
Para falar ao vento, bastam palavras;
para falar ao coração, são necessárias obras”.
Pe. Antônio Vieira.
A Deus pela dádiva do dom da vida.
Olhar o passado com gratidão, viver o presente com paixão,
assumir o futuro com coragem e sem medo.
A minha querida Orientadora e Professora Drª. Elzira Yoko Uyeno
pelo carinho, paciência e competência com que me orientou na elaboração desta pesquisa
e com quem tive a oportunidade de conviver e muito aprender. Muito.
Às Prof
as
. Doutoras: Juliana Santana Cavallari
Vera Lúcia Batalha de Siqueira Renda
Maria Aparecida Garcia Lopes Rossi
Márcia Aparecida Amador Mascia.
Pela gentil presença a minha Banca de Defesa
e generosa contribuição para o desenvolvimento desta dissertação.
Uns são homens, alguns são professores, poucos são mestres.
Aos primeiros, escuta-se; aos segundos, respeita-se; aos últimos, segue-se.
Aos “mestres” do curso de Pós-Graduação
que na partilha dos seus conhecimentos, transformaram meu ideal em realidade.
A CAPES, Coordenação de Pós-Graduação e Funcionários da UNITAU,
na pessoa de sua Coordenadora PROFª.DRª. Solange Terezinha Ricardo de Castro.
Educador é aquele que, além de ensinar, aprende;
Educando é aquele que, além de aprender, ensina. (Paulo Freire)
Ao Diretor e Coordenadoras da FAI:
Professor Aldo Ambrósio Moreli,
Valéria Santos Paduan Silva,
Rosé Mary Bueno Paiva Alcântara Cunha
e aos alunos do NS pela realização de uma pesquisa que se tornou NOSSA!
“Existem pessoas que passam na vida da gente e levam um pouquinho de nós; outras passam e deixam um
pouquinho de si. Entretanto, existem aquelas que não passam, FICAM”.
Às amigas do Colégio Sagrado “Coração” de Jesus:
Ir. Terezinha Maria Veroneze - Diretora
Profª. Camila das Graças Zulcarelli
Profª. Terezinha da Rocha Tenório.
Um coração não se mede pelo tanto que se ama, mas pelo quanto se é amado.
(O Mágico de Oz)
À minha doce tia Terezinha
pelo carinho e aconchego do um lar onde dormi o meu sono sossegada.
À prima Luizamélia
pela total alegria e confiança, sempre presentes em nossos longos abraços.
À minha adorada MÃE, cuja fiel intercessão revelou-me a imagem de MARIA.
À mana PATRÍCIA que no ombro amigo vi o gesto concreto do amor-doação.
À linda, maravilhosa e cheia de mil encantos, minha filha MARINA.
A todos, sem exceção, o meu sincero “MUITO OBRIGADA”!
ALVES, Luiza Maria Leite Machado. LEITURA DE FÁBULAS E ESCRITA:
UM PERCURSO DE SUBJETIVAÇÃO ÉTICA DO ALUNO-PROFESSOR.
2007. Dissertação (Mestrado, Lingüística Aplicada) – Departamento de
Ciência Sociais e Letras, Universidade de Taubaté, Taubaté.
RESUMO
A evidência de que se é regido por uma ordem do discurso da ética é
tão visível que nem requer argumentação. A inclusão em suas grades
curriculares da disciplina de Ética pelos diferentes cursos do nível de
formação superior revela esse paradigma. A inexistência dessa disciplina em
Curso Normal Superior, antigo curso de formação de professores, constituiu a
motivação para o desenvolvimento da presente pesquisa. A hipótese para essa
inexistência foi a de que a ética é pressuposta no fazer docente. Norteado pela
perspectiva discursiva francesa, o estudo objetivou por meio de uma análise
preliminar, detectar no discurso dos alunos, indícios de que eles acreditavam
que a ética era constitutiva do fazer pedagógico. Entretanto, não encontrou os
indícios da
hipótese da qual partiu. Buscou-se, então, entender qual era a
representação que as alunas do Curso Normal Superior tinham sobre ética e
propôs uma atividade de leitura e produção de textos, com o intuito de se
perceber se a leitura de textos filosóficos sobre ética promovia ou não de
deslocamentos na leitura de fábulas. A análise do discurso das alunas levou à
conclusão de que elas detêm um conceito de ética como valores desenvolvidos
pela educação familiar, no interior da instituição familiar e como obediência a
limites exigida pela convivência em sociedade, portanto, com os outros. Não
se trata, portanto, da educação no sentido de estudo sistemático e formal,
desenvolvida pelo Aparelho Ideológico Escolar, mas determinada pelo
Aparelho Ideológico Familiar. A análise dos textos redigidos sobre a leitura de
fábulas realizadas após a leitura de textos filosóficos sobre ética levou à
conclusão de que a leitura destes últimos promovem deslocamentos na leitura
daquelas, parecendo revelar um processo de ethopoiésis, de constituição do
sujeito ético pela leitura e pela escrita.
Palavras-chave: Análise do discurso, Ética, Leitura, Escrita, Representação.
ABSTRACT
FABLES READING AND WRITING: A PROCESS
OF ETHIC SUBJECTIVINESS OF STUDENT-TEACHER
The evidence that one is ruled by an order of the ethical discourse is so
visible that it requires no argumentation. The inclusion of the Ethics discipline
in several graduate level courses reveals this paradigm. The inexistence of this
discipline in the Curso Normal Superior, the former teacher formation course,
constitutes the motivation for the development of this present research. The
hypothesis for such inexistence was that Ethics is implied in the teacher’s
work. Guided by the perspective of the French discourse, the study aimed at,
through a preliminary analysis, detecting signs in the students’ discourses
whether they believed Ethics constituted a pedagogical work. However, no
signs were found from the initial hypothesis. It was searched, then, what
representation the students from Curso Normal Superior had about Ethics. A
reading and writing activity was proposed with the objective of perceiving
whether the reading of philosophical texts promoted any change or not in the
reading of tales. The analysis of the students’ discourse led to the conclusion
that they withhold a concept of Ethics as values developed by family
upbringing, and as the obedience to limits established by social living,
therefore with the others. It is not a matter, however, of education in the sense
of a formal systematic study carried out by the School Ideological Apparatus,
but determined by the Family Ideological Apparatus. The analysis of the texts
written about the reading of tales carried out after the reading of philosophical
texts about Ethics led to the conclusion that the latter promotes changes in the
reading of the former, revealing, apparently, a process of ethopoiesis, of the
making of the subject through reading and through writing.
Keywords: Discourse analysis, Ethics, Reading, Writing, Representation.
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................9
Parte I PRESSUPOSTOS TEÓRICOS......................................................................12
Capítulo 1 – Os PCN e as teorias de leitura...............................................................13
1.1 A leitura nos PCN de Língua Portuguesa ........................................................13
1.2 Teorias de leitura indicadas pelos PCN ...........................................................15
1.3 Os gêneros discursivos.....................................................................................20
1.3.1 A Fábula.................................................................................................... 23
Capítulo 2 – Análise do Discurso de Perspectiva Francesa.......................................38
2.1 Pressupostos teóricos da análise do discurso de linha francesa.......................38
2.2 Pressupostos teóricos da escrita de si...............................................................41
Parte II CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO E ANÁLISE DE
CORPUS....................................................................................................................47
Capítulo 1 – CONDIÇÃO DE PRODUÇÃO DO DISCURSO.................................48
1.1 Condições mediatas de produção do discurso.................................................. 48
1.1.1. O Curso Normal Superior no Brasil......................................................... 48
1.1.2. FAI - O curso Normal Superior e sua base legal .....................................50
1.2. Condições imediatas de produção do discurso ...............................................53
1.2.1. A história da criação do Curso Normal Superior da FAI.........................53
1.2.2. Constituição do corpus de pesquisa .........................................................61
C
ONCLUSÃO DO CAPÍTULO 2 DA PARTE II.....................................................72
C
APÍTULO 2 - ANÁLISE DE CORPUS RELATIVO AOS TEXTOS
PRODUZIDOS PELOS ALUNOS-PROFESSORES ...............................................73
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................124
R
EFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA.........................................................................127
9
INTRODUÇÃO
Há 20 anos exerço minhas atividades no Magistério e, ao longo deste período,
tenho tentado fazer do meu cotidiano escolar um momento de responsabilidade,
dedicação, compromisso e felicidade.
No desenvolvimento das disciplinas de Metodologia da Língua Portuguesa,
Literatura Infantil e Filosofia tenho me preocupado em levar aos meus alunos aulas,
conteúdos e materiais didático-pedagógicos de todos os níveis para que eles se
interessassem, se envolvessem, se comprometessem e procurassem abrir os seus
próprios caminhos de progresso, como aquele que deseja aprender, aquele que anseia
por uma visão cada vez mais aprimorada de si e do mundo que o rodeia,
possibilitando-lhe transformar-se e transformar o meio em que vive.
Desta cumplicidade com meus alunos, senti a necessidade e o desejo de maior
aprofundamento, aperfeiçoamento nas áreas em que atuo, porque sempre é tempo de
conquistar caminhos e abrir horizontes; de sonhar e tornar o sonho uma realidade.
Reconheço, hoje, com mais tranqüilidade e maturidade, que quanto mais me
envolvo com meus alunos, mais me desdobro em ações, porque, a meu ver, é
premente e urgente que o educador enquanto formador de formadores redescubra as
delícias de tomar as “sementes” e espalhá-las em profusão, sem se preocupar com a
colheita... Uma vez educador, caminhar sempre; uma vez educador, semear sempre;
sem nunca desacreditar na semente.
É fato que sociedade hoje, vive momentos difíceis... Momentos de
permanentes conflitos éticos. Observa-se uma grande dificuldade para falar sobre
ética, para discernir o que é correto e o que é errado, onde encontrar a unidade na
diversidade, uma concepção do humano diante das distinções culturais, uma melhor
compreensão sobre as relações que constituem o ser humano. Mas é absolutamente
imprescindível resgatar as questões éticas, pois toda nossa vida está envolvida nela.
Toda ação deve ser ética. E a ética é sempre “ética das relações”.
Nos tempos contemporâneos, a ética ressurge como uma necessidade
histórica diante da crise social que assola os mais diversos aspectos da sociedade: na
política, na religião, na economia, na saúde, na cultura, na educação. A ética,
portanto, torna-se um instrumento simbólico de intervenção, a fim de orientar a
sociedade para um agir de maneira mais racional, com vistas ao ser humano.
10
A inclusão em suas grades curriculares da disciplina de Ética pelos diferentes
cursos do nível de formação superior revela esse paradigma ético.
A inexistência dessa disciplina em Curso Normal Superior, antigo curso de
formação de professores para os níveis básicos de ensino, constituiu a motivação
para o desenvolvimento de um estudo que resultou na presente dissertação.
A hipótese para a ausência da disciplina de Ética no currículo da Escola
Normal Superior foi a de que existia um senso comum de que a ética já era
pressuposta no fazer docente.
A análise preliminar desta pesquisa, assim, objetivou detectar no discurso
produzido por alunos do Curso Normal Superior da Faculdade de Administração e
Informática (FAI), situada na cidade de Santa Rita do Sapucaí, no estado de Minas
Gerais, indícios de que eles acreditavam que a ética era constitutiva do fazer
pedagógico. Entretanto, não encontrou esses indícios da hipótese da qual partiu.
Para compreender melhor o universo de alunos-professores, esta pesquisa
passou a objetivar analisar o que eles pensam sobre esse assunto tão na pauta
cotidiana. Mais especificamente, esta pesquisa objetivou detectar na materialidade
lingüística dos discursos produzidos por esses alunos a representação que fazem
sobre ética.
Com o intuito de contribuir para com a formação dos futuros professores e,
como tais, responsáveis pela formação inicial de cidadão, esta pesquisa propôs uma
atividade de leitura de fábulas e de textos filosóficos sobre ética, com o objetivo de
analisar os efeitos causados pela leitura de textos filosóficos nos alunos-professores,
e, por conseguinte, na leitura das fábulas.
Em síntese, esta pesquisa objetivou: 1) analisar, na materialidade lingüística
do discurso produzido por esses alunos, a representação que fazem sobre ética, 2)
propor uma atividade de leitura de fábulas e de teorias sobre ética, seguida de
produção de textos para se analisar, na materialidade das produções escritas, indícios
de incorporação das teorias de ética em suas interpretações de fábulas.
Para atingir os objetivos a que se propõe, esta dissertação se norteou por duas
perguntas de pesquisa:
11
Metodologicamente, apóia-se na Análise do discurso de linha francesa que
considera a impossibilidade de separar o sujeito de seu discurso.
O corpus de análise será constituído de: 1) respostas de alunos-professores de
Curso Normal Superior a um questionário e 2) interpretações de fábulas, realizadas
por esses alunos sob a forma de textos e de anotações de leitura de textos teóricos de
filosofia que versam sobre ética.
Para efeito de melhor compreensão do relato do caminho percorrido por esta
dissertação, faz-se necessário elucidar a sua composição. Esta dissertação é composta
de duas partes.
Na primeira parte, expõem-se o universo especificamente do Curso Normal
Superior no quadro da educação brasileira, ao universo especificadamente do Curso
Normal Superior do Instituto Superior de Educação da Faculdade de Administração e
Informática (FAI), objeto de estudo desta pesquisa e aos pressupostos teóricos da
Análise de Discurso de linha francesa; ainda nessa parte, num segundo momento,
analisa-se o primeiro corpus composto de respostas de alunos ao questionário.
Na segunda parte da dissertação, num primeiro momento, expõem-se, ainda
que sucintamente, a ética como vista por filósofos, os pressupostos teóricos sobre a
escrita de si, postulados por Foucault; e num segundo momento, analisa-se o corpus
composto de textos produzidos pelos alunos-professores, cujo conteúdo é a
interpretação que fazem de algumas fábulas escolhidas para a atividade conduzida.
12
Parte I PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Nesta primeira parte da dissertação, apresentam-se os pressupostos teóricos
que nortearam o estudo empreendido e que ora se passa a relatar.
Esta parte da dissertação apresenta-se subdividida em dois grande capítulos.
No primeiro capítulo, apresentam-se as orientações dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) no que tange ao ensino de leitura bem como as teorias
indicadas por esses parâmetros.
No segundo capítulo, apresentam-se os fundamentos da Análise do Discurso
de perspectiva francesa bem como os princípios foucautianos nos quais se
sustentaram o estudo empreendido.
13
Capítulo 1 – Os PCN e as teorias de leitura
Esse capítulo tem por objetivo expor a proposta dos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa no que diz respeito ao ensino de leitura, bem como
as teorias por eles mencionadas.
1.1 A leitura nos PCN de Língua Portuguesa
De um modo geral, os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Fundamental (1998) e Médio (1999) estão voltados para os cursos regulares. Nesse
sentido, é importante observar o que propõem os PCN de Língua Portuguesa sobre o
ensino de leitura, visto que este trabalho tem como enfoque a leitura de fábulas. Os
PCN de Língua Portuguesa consideram que o trabalho com leitura deve levar o aluno
a ser “capaz de interpretar diferentes textos que circulam socialmente” (p. 19).
Para que o aluno desenvolva sua competência discursiva, é necessário,
segundo os PCN de Língua Portuguesa, que a noção de gênero,
constitutiva do texto, seja tomada como objeto de estudo (p. 23).
Os PCN argumentam que existem gêneros privilegiados para leitura de textos
literários (conto, novela, romance...), de imprensa (notícia, editorial...), de divulgação
científica (verbete...), publicidade (propaganda...). Esses gêneros devem ser
trabalhados pelos professores de maneira diversificada. Os professores devem
priorizar os gêneros que “aparecem com maior freqüência na realidade social e
universo escolar...” (p. 26).
Os PCN, assim, se apóiam em Bakhtin (1992) que afirma que os gêneros
discursivos são constituídos nas diferentes esferas da comunicação verbal. Também
considera Paredes Silva (1997) para quem esses gêneros são formas típicas de
enunciados relativamente estáveis, em um contexto social, pois cada ambiente da
vida social organiza as produções da linguagem de uma forma particular ou típica.
Como exemplo, citar a carta, que tem forma e tipo estáveis estipulados pela
sociedade há muitos anos.
14
Ainda em relação aos gêneros discursivos, de acordo com Bakhtin (1992),
quando um indivíduo conhece as características de um texto pertencente a um gênero
discursivo qualquer, fica mais fácil visualizá-lo pronto, uma vez que já está definido
em sua mente, qual a organização, a linguagem e a forma desse gênero. Por exemplo,
um indivíduo que saiba elaborar um anúncio publicitário ou uma propaganda
institucional consegue, previamente, visualizá-los por inteiro, antes mesmo de iniciar
sua produção. Isso ocorre devido ao seu conhecimento prévio adquirido em suas
relações de linguagem na sociedade. Diferentemente desse, outro indivíduo que não
mesmo como iniciá-lo.
Essa advertência de Bakhtin é considerada por Lopes-Rossi (2002b), para
quem as experiências sociais são imprescindíveis para que o aluno conheça os vários
gêneros discursivos (curriculum vitae, procuração, declaração, requerimento,
relatório, ofício, notícia, reportagem, anúncio, poema, dentre outros...). Para ela, é
tarefa da escola auxiliar na construção desse conhecimento, pois o aluno pode não ter
oportunidades de adquiri-lo na sua vida cotidiana. Alguns gêneros não são comuns
no dia-a-dia. tenha tido acesso a esse gênero discursivo não conseguirá fazê-lo, não
saberá sem Nesse sentido, a autora sugere a inserção de projetos pedagógicos de
leitura, nos diversos níveis de ensino, apoiando-se nos vários gêneros discursivos que
circulam socialmente. Ela sugere a elaboração de atividades de leitura a partir de
alguns gêneros discursivos, tais como: “rótulos de produtos, embalagens de produtos,
bulas de remédio, manuais de instrução de equipamento, entre outros” (p. 31).
Segundo a autora (Lopes Rossi 2002a), dessa forma, o aluno leitor terá a
possibilidade de perceber como o gênero é composto, tanto no aspecto verbal como
no não verbal, e ainda, as informações por ele apresentadas conforme sua função
social e propósitos comunicativos. Portanto, a adoção dessas atividades de leitura
colabora para a formação de alunos mais críticos e participativos na sociedade. Por
nessa perspectiva, a leitura não pode ficar restrita aos aspectos lingüísticos do texto,
isto é, não se deve ensinar ao aluno somente a parte teórica; forma e conteúdo dos
diferentes gêneros. Deve-se, também, enfatizar o valor e os usos sociais que eles
terão na vida dele, ou seja, aspectos discursivos envolvidos na circulação daquele
gênero. A notícia é, para ela, um exemplo para demonstrar os aspectos ideológicos
envolvidos, pois ao escrevê-la, o jornalista pode ou não omitir fatos e, com isso,
manipular informações, favorecer ou não a imagem de alguém. Uma análise
15
puramente lingüística do texto, visando apenas a seus aspectos estruturais e
organizacionais, não capta essas propriedades discursivas da notícia. Concluiu a
autora que, assim como ocorre com esse exemplo, em todos os outros gêneros é
necessário levar o aluno à observação de aspectos lingüísticos, textuais e discursivos
dos textos.
Para os PCN em síntese, uma aula de leitura pautada em gêneros discursivos
mostra-se bastante promissora, porque contempla tanto as características lingüístico-
textuais como as discursivas. Nesse sentido, argumentam, o professor tem em mãos
ferramentas para despertar em seus alunos o interesse pela leitura, visto que estes
gêneros possuem circulação social, portanto, muitos deles fazem parte do cotidiano
do aluno-leitor. Além disso, continuam, o conhecimento de mundo dos alunos será
ampliado para que percebam como se organizam textualmente determinados gêneros
e quais as suas principais características, e ainda, em que circunstância aparecem
inseridos na sociedade.
Para que as orientações dos PCN sejam melhor entendidas, apresentam-se as
teorias de leitura que os fundamentam.
1.2 Teorias de leitura indicadas pelos PCN
A antiga concepção de leitura é compreendida como “decodificação linear de
um texto”, isto é, quando o leitor é capaz de codificar palavras e frases é considerado
competente, o que chamamos de proficiente. De acordo com Lopes Rossi (2002):
a experiência, especialmente de professores, no entanto, mostra que
isso não é verdade. Já é senso comum que grande parte dos alunos lê,
mas não entende o que lê, no sentido de não conseguir comentar o
texto, relacioná-lo com outras informações ou situações, perceber
significados implícitos ou, ainda, executar uma tarefa a partir de suas
instruções.
Embora ultrapassada, a concepção ainda norteia os princípios básicos das
seqüências de atividades de compreensão de texto propostos nos livros didáticos,
como, por exemplo, apontaram as pesquisas realizadas por Marcuschi (1997).
16
Essa noção equivocada de que os textos são produtos acabados e de que a
compreensão se restringe a localizar as informações explícitas no texto não oferece
suporte para o desenvolvimento das habilidades de leituras nos alunos.
Diante de tal constatação, no final dos anos 60, surgiram novos estudos no
campo da psicolingüística dando origem à concepção cognitiva de leitura.
Pesquisadores da área voltaram seus olhares e esforços na busca de detectar “o
processo mental (cognitivo) de compreensão de texto, envolvendo atenção, memória,
procedimento do leitor imaturo e do leitor proficiente”, como afirma Kleiman (1996,
apud Lopes Rossi 2002).
Esses trabalhos concluíram que ler é uma atividade com poucas
manifestações exteriores e que o leitor competente faz uso de estratégias de leitura
categorizadas em cognitivas e metacognitivas.
Segundo Kleiman (2000)
as estratégias cognitivas são operações mentais automatizadas
baseadas no conhecimento lingüístico que constituem “um processo
inferencial de natureza inconsciente”, ao passo que as metacognitivas
são procedimentos monitorados pelo leitor, ou seja, “o leitor tem
controle consciente sobre as operações que realiza enquanto lê”.
Observou-se, ainda, que a bagagem de conhecimento que o leitor possui é
outro aspecto determinante para a compreensão leitora. Assim, as propostas de
pesquisa mais recentes nessa concepção cognitiva de leitura centralizaram seus
estudos no processo de interação dos conhecimentos prévios do leitor com o texto.
Conforme Kleiman (2000), os conhecimentos prévios podem ser classificados
em vários níveis, a saber: conhecimentos lingüístico: de pronúncia, vocabulário,
regras da língua e o seu uso; conhecimento textual: de gêneros discursivos e de suas
características típicas; conhecimentos de mundo: enciclopédico, adquirido de
maneira formal e informal ao longo da vida.
O ato de ler passou, então, a ser considerada uma atividade construtiva à
compreensão leitora, em decorrência da construção de significados que o leitor infere
a partir das informações presentes no texto e nas suas entrelinhas. Também dos
conhecimentos prévios do leitor sobre o texto.
17
Nessa concepção de leitura, a compreensão é considerada uma atividade
construtiva, mas isso não significa que seja um “vale-tudo”, pelo qual o leitor está
autorizado a atribuir qualquer sentido ao texto. A esse respeito Marcushi (1997, p.
74) declara:
[...] Um texto permite muitas leituras, mas não inúmeras e infinitas
leituras. Não podemos dizer quantas são as compreensões possíveis de
um determinado texto, mas podemos dizer que algumas delas não são
possíveis. Portanto, pode haver leituras erradas, incorretas, impossíveis
e não autorizadas pelo texto. Por exemplo, não podemos atender o
contrário do que está afirmado, ou seja, nossa compreensão não pode
entrar em contradição com as proposições do texto.
Assim ocorre com qualquer tipo de gênero discursivo, entretanto cabe ao
professor de língua portuguesa repensar, criticamente, seus conteúdos e estratégias
para que seus alunos possam apropriar-se das características discursivas e
lingüísticas de gêneros diversos, em situações de comunicação real e para que dessa
forma se efetive a aprendizagem significativa tanto de leitura como de escrita.
A prática pedagógica, segundo os teóricos da abordagem interativista, deve
contemplar o ensino de estratégias metacognitivas de leitura.
De acordo com Solé (1998 p. 70):
Se as estratégias de leitura são procedimentos e os procedimentos,
conteúdos de ensino, então é preciso ensinar estratégias para
compreensão dos textos.
Ao abordar estes conteúdos e ao garantir sua aprendizagem
significativa, contribuímos com o desenvolvimento global de meninos
e meninas, além de fomentar suas competências como leitores.
As estratégias de leitura são operações mentais ativadas durante a realização
da leitura, de acordo com as características gráficas, lingüísticas, assim como do
conteúdo e dos objetivos de leitura pré-estabelecidos.
Dado a sua importância, elas atuam como procedimentos gerenciadores da
leitura, pois permitem ao leitor, conscientemente, levantar hipóteses, verificar,
selecionar, antecipar, confrontar, inferir, tomar decisões e avaliar.
Sobre as estratégias de leitura, Solé (1998, 74-75) afirma:
18
considero que o fato de estudar deste modo às diversas estratégias
poderá permitir enfatizar a idéia de que o ensino da leitura pode e deve
ocorrer em todas as suas etapas (antes, durante e depois) o que
restringir a atuação do professor a uma dessas fases seria adotar uma
visão limitada da leitura e do que pode ser feito para ajudar a criança a
dominá-la.
Conforme comenta Lopes Rossi (2002, p. 5), o conceito Baktiniano de gênero
discursivo complementa a construção de sentido do texto, porque amplia a
concepção das características típicas textuais dos gêneros discursivos utilizados nas
aulas de leitura. Ao considerar a condições sócias – discursivas de produção e
circulação dos textos, o trabalho pedagógico automaticamente é redimensionado,
pois possibilita ao leitor inferir com maior precisão.
o que nos interessa evidenciar é que o conhecimento do gênero
permite ao leitor uma visão mais ampla sobre o texto que está sendo
lido – em toda sua dimensão – mais do que meramente uma leitura do
conteúdo do texto verbal. Também o capacita a estabelecer objetivos
de leitura pertinentes ao gênero, o que se constitui numa outra
estratégia de leitura.
A autora, por meio de seus estudos e pesquisas a luz dos gêneros discursivos,
propõe algumas estratégias metacognitivas de leitura que devem ser adotadas por
todos os leitores. Embora sejam quatro as estratégias básicas aplicáveis a qualquer
texto, isto é, a qualquer gênero discursivo, elas orientam o leitor a considerar as
características típicas do gênero que está sendo lido.
A partir dos fundamentos da concepção interacionista de leitura, as estratégias
metacognitivas podem ser ensinadas aos alunos com o objetivo de desenvolver as
suas habilidades de leitura.
De acordo com o texto: “O aprendizado da leitura” de Mary Kato, as
estratégias cognitivas têm merecido atenção constante por parte da literatura referente
à aquisição da linguagem, entretanto as metacognitivas é que têm um interesse
especial para a aprendizagem formal na escola em virtude de sua natureza consciente.
Brown (1980), autora que trabalha com maior minúcia a questão de estratégias
metacognitivas, apresenta como atividades de leitura o estabelecimento de um
19
objetivo explícito para a sua realização – buscando a identificação dos aspectos da
mensagem – como também a monitoração da compreensão da leitura com vista a esse
objetivo.
Segundo Kato a falha no ensino da leitura pode estar na falta de objetivos
claros para a leitura. Se a criança enfrenta o texto sem nenhum objetivo prévio, ela
dificilmente poderá monitorar sua compreensão tendo em vista esse objetivo. Sua
monitoração, quando muito, poderá se dar apenas de maneira vaga e geral, ou, ainda,
ela poderá ler o texto, tendo em mente apenas o tipo de perguntas que a escola está
acostumada a lhe fazer. Sua compreensão, nesse caso, será monitorada apenas para
atender à expectativa da escola e não à dela mesma.
A escola pode oferecer atividades de leitura orientadas, com o fim específico
de criar situações que exijam a aplicação das estratégias metacognitivas. O professor
criativo e experiente poderá utilizar-se do conhecimento que tem a criança e da
situação de aprendizagem para, a partir delas, propor atividades significativas que
levem a criança a utilizar e desenvolver toda sua capacidade cognitiva e
metacognitiva.
Segundo Marcuschi, o professor, em sala de aula, deve desenvolver exercícios
que permitam que o aluno veja o que está subjacente no implícito, fazendo
inferências. Desta forma, cria-se a oportunidade de trabalhar o leitor (o aluno) numa
perspectiva crítica, desenvolvendo nele a capacidade de raciocínio.
Segundo Richards (1998: p.16), professores e pesquisadores têm tentado
identificar as atividades mentais – estratégias de leitura – que os leitores empregam
para construir o significado do texto. Algumas dessas estratégias, entretanto, são
utilizadas de forma consciente e outras inconscientemente.
É necessário que os professores possam desenvolver estratégias eficazes no
desenvolvimento das aulas de leitura e que as atividades de compreensão de textos
incentivem os alunos a utilizar seu conhecimento prévio e as estratégias
metacognitivas a fim de se tornarem um leitor eficaz.
Concomitantemente aos estudos realizados sob a ótica cognitivista de leitura,
os teóricos da linha de Análise do Discurso também desenvolveram suas pesquisas
sobre leitura.
20
Nessa perspectiva, o ato de ler é considerado um processo discursivo, pois as
sócio– histórico- ideológicas determinam não só a produção do texto como também,
a compreensão leitora Orlandi (1999, apud Lopes Rossi 2002) afirma que:
levar em conta esses aspectos é uma maneira de reconhecer que a
linguagem é um fenômeno complexo que tem sua especificidade num
modo de funcionamento que se dimensiona no tempo e no espaço das
práticas do homem.
Portanto, o leitor passa a ser concebido como um sujeito assujeitado por essas
condições e, por conseqüência, a sua construção de sentidos a partir do texto torna-se
única em relação aos outros leitores e aos diferentes momentos de sua vida.
A leitura considerada sob a perspectiva discursiva será ampliada no capítulo
relativo à análise do discurso de perspectiva francesa que sustenta esta dissertação.
1.3 Os gêneros discursivos
Com o objetivo de conceituar gêneros discursivos, contempla-se,
inicialmente, o teórico russo Mikhail Mikhailóvitch Bakhtin, figura das ciências
humanas cuja perspectiva sobre a linguagem da década de 20, opunha-se
radicalmente ao sistema lingüístico da época, o qual abstraía o contexto de
comunicação por ver a língua como algo concreto.
De acordo com Bakhtin (1992), o conceito de gênero discursivo refere-se às
formas típicas de enunciados falados ou escritos que se realizam em condições e com
finalidades específicas nas diferentes situações de interação social. Segundo Bakhtin
(1992 p. 279),
a riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são inficitas, pois, a
variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera
dessa atividade comporta um repertório de gênero do discurso que vai
diferenciando – se e ampliando – se à medida que a própria esfera se
desenvolve.
21
Em sua obra Estética da Criação Verbal (1992), Bakhtin dedica um capítulo à
reflexão sobre a heterogeneidade de gêneros discursivos produzidos por sociedade
complexa como a atual, e os fatores (de natureza lingüística e extralingüística) que
influenciam em sua constituição.
Na reflexão Bakhtiniana, a noção de gênero discursivo reproduz o
funcionamento da língua em práticas comunicativas reais e concretas, construídas
por sujeitos que interagem nas diferentes esferas das relações humanas e da
comunicação. É no interior dessas esferas, correspondentes às instâncias públicas e
privadas do uso da linguagem, que se elaboram os gêneros discursivos, para
responderem às necessidades sócio-interlocutivas dos sujeitos que nelas se inter-
relacionam. Dada à diversidade de esferas da comunicação humana, as quais refletem
as diferentes relações sócio culturais dos grupos sociais, os gêneros discursivos são
múltiplos, heterogêneos.
A respeito da aquisição e domínio dos diferentes gêneros discursivos por
parte dos sujeitos, Bakhtin (1992, p. 302) afirma que
aprender a falar é aprender a estruturar enunciados (porque falamos
por enunciado e não por orações isoladas e, menos ainda é óbvio, por
palavras). Os gêneros do discurso organizam nossa fala da mesma
maneira que organizam as formas gramaticais (sintáticas).
Aprendemos a moldar nossa fala às formas do gênero e, ao ouvir a fala
do outro, sabemos de imediato, bem nas primeiras palavras a pressentir
– lhe o gênero, adivinhar-lhe o volume (extensão aproximada do todo
discursivo), a dada estrutura composicional, prever-lhe o fim, ou seja,
desde o início, somos sensível ao todo discursivo que, em seguida, no
processo da fala, evidenciará suas diferenciações. Se não existissem os
gêneros do discurso e se não os dominássemos, se estivéssemos de
criá-los pela primeira vez no processo fala, se tivéssemos de construir
cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase
impossível.
No processo da construção do discurso, o locutor, projetando a compreensão
do destinatário, pressupõe os conhecimentos que este possui sobre o assunto, bem
como as opiniões, as convicções, os preconceitos que possa ter contra a abordagem
dada ao tema. A isso se soma o intuito discursivo do locutor, que se realiza acima de
tudo na escolha de um gênero e determina toda a organização dos enunciados, no que
22
se refere à escolha dos procedimentos composicionais, isto é, dos modos de
organização discursivos e da seleção dos recursos lingüísticos, a fim de provocar no
seu destinatário o efeito de sentido desejado.
Na base dessas reflexões sobre gênero discursivo, está o pressuposto de que a
linguagem é uma atividade cujo espaço de realização e de construção é a interação
verbal. Atribuir à linguagem esse estatuto como pondera Bakhtin, implica considerá-
lo como algo que não está previamente pronto, ou seja, dado como um sistema de
que o sujeito se apropria, mas como algo que se constitui fundamentalmente pelo
trabalho lingüístico empreendido pelos sujeitos nos processos interlocutivos,
atualizados nas diferentes esferas de atividade humana.
É nesse trabalho lingüístico – produção de discursos – que os sujeitos agem
sobre a linguagem, redimensionando recursos lingüísticos que possam evidenciar ou
provocar o sentido por eles desejado ao que está sendo enunciado. E é nesse território
de atos dialógicos que os sujeitos se constituem (Bakhtin 1990), no processo de
interiorização de discursos preexistentes, materializados nos diferentes gêneros
discursivos, atualizados nas contínuas e permanentes interlocuções de que vão
participando. Assim, esses sujeitos, dialogicamente passam a dominá-los e
deliberadamente alteram-lhes o funcionamento, introduzindo, nos gêneros de uma
dada esfera da atividade social, os procedimentos composicionais e o estilo de outros
pertencentes à outra esfera.
Todos os gêneros discursivos, de acordo com Lopes – Rossi (2202, p. 26),
possuem características típicas que incluem, entre outros aspectos, formas de
linguagem adequadas. Mainguieneau (2001, p. 66-68), apud Lopes – Rossi (2202),
explica que cada gênero do discurso submete-se a certas condições como: uma
finalidade reconhecida pelo enunciador – determinando socialmente o uso daquela
forma de linguagem; a instituição de parceiros legítimos enunciador e o co-
enunciador assumem papéis que determinam de quem parte e a quem se dirige o
enunciado; o lugar e o momento discursivos, em geral, podem ser associados a
espaços que os legitimam. Quanto à temporalidade, os gêneros podem ou não
obedecer a uma periodicidade. Numa organização-textual cada gênero do discruso
organiza-se de uma maneira típica. É importante observar que cada gênero discursivo
se organiza de forma mais ou menos rígida ou ritualizada em função das convenções
sócio – históricas instituídas.
23
Atualmente, no ensino de língua portuguesa, devemos considerar como
organização textual não apenas o texto verbal, mas os elementos não-verbais, que
compõem os gêneros discursivos, como afirma Lopes – Rossi (2202 p. 27).
Os aspectos gráficos e não-verbais são característicos de cada gênero social,
cultural e historicamente determinado. Segundo Lopes – Rossi (2002, p. 28) além da
característica lingüística textual típica do gênero – aspectos gráficos – há outras – as
características discursivas – que não são visíveis. Refletem-se às condições de
produção e de circulação do gênero na sociedade e são relevadas com respostas e
perguntas como: Quem escreve esse gênero discursivo? Com que propósito? Onde?
Quando? Como? Com base em que informação? Como obtém as informações? Quem
escreveu este texto que estou lendo? Quem lê esse gênero? Por que o faz? Onde o
encontra? Que tipo de respostas pode dar ao texto? Que influência pode sofrer devido
a essa leitura? Em que condições esses gêneros podem ser produzidos na nossa
sociedade?
Esses conhecimentos podem ajudar na escolha vocabular adequada, no uso
dos recursos lingüísticos e não-linguísticos e na determinação do tom, do estilo e da
condição de texto para produção e leitura de um gênero.
1.3.1 A Fábula
Conforme Bagno (2002) a fábula é um gênero muito antigo que se encontra
praticamente em todas as culturas humanas e em todos os períodos históricos. Esse
caráter universal da fábula se deve, sem dúvida, a sua ligação muito íntima com a
sabedoria popular. De fato, a fábula é uma pequena narrativa que serve para ilustrar
algum vício ou alguma virtude e termina, invariavelmente, com uma lição de moral.
Até hoje, quando terminamos de contar um caso ou algum acontecimento
interessante ou curioso, é comum anunciarmos o final de nossa narrativa dizendo:
“moral da história...”. É justamente da tradição das fábulas que nos vem esse hábito
de querer buscar uma explicação ou uma causa para os fatos que acontecem em
nossa vida ou na vida dos outros, ou de tentar tirar delas algum ensinamento útil,
alguma lição prática.
Segundo Bagno (2002), a moral de algumas fábulas muito conhecidas acabou
se tornando provérbios nas línguas do Ocidente, muita vezes, até sem que a maioria
24
das pessoas conheça a fábula original. É o caso, por exemplo, dos provérbios “quem
desdenha quer comprar” ou “quem ama o feio bonito lhe parece”. O primeiro é a
moral da fábula da raposa que, vendo uvas muito bonitas, mas fora de seu alcance,
acaba desistindo de apanhá-las, sob a alegação de que estão verdes. O segundo é a
conclusão da história da águia que devora os filhotes da coruja – como a coruja tinha
dito que seus filhotes eram de uma beleza incomparável, a águia ao encontrar num
ninho um punhado de criaturinhas muito feias, não hesitou em comê-las, porque
julgara que aqueles jamais poderiam ser os filhotes lindos de sua comadre coruja.
Aliás, é dessa mesma história que procede a nossa expressão “mãe coruja” ou “pai
coruja”, para designar os pais que não vêem defeitos nos próprios filhos.
A grande maioria das fábulas tem como personagem animais ou criaturas
imaginárias (criaturas fabulosas) que representam, de forma alegórica, os traços de
caráter (negativos e positivos) dos seres humanos. Os gregos chamavam a fábula de
apólogo, e esta palavra também passou ser usada para designar uma pequena
narrativa com seres inanimados e que encerra uma lição de moral. A palavra latina
fábula deriva do verbo fabulare “conversar” “narrar”, o que mostra que a fábula tem
sua origem na tradição oral, aliás, é da palavra latina fábula que vem o substantivo
português “fala” e o verbo “falar”.
É muito provável, segundo Bogno (sp. at), que as fábulas que chegaram até
nós por meio da escrita tenham existido durante muito tempo como narrativas
tradicionais orais, o que faz esse gênero remontar a estágios muito arcaicos da
civilização humana. As fábulas devem ter sido usadas com adjetivos claramente
pedagógicos: a pequena narrativa exemplar serviria como instrumento de
aprendizagem, fixação e memorização dos valores morais do grupo social. Por isso a
preocupação de inserir em nossas escolas um trabalho com fábulas, possibilitando
aos alunos o contato com esse gênero discursivo por ser o mesmo muito agradável de
se trabalhar.
Smoka (1995) orienta que as fábulas podem ser um importante aliado para o
trabalho pedagógico com a língua oral, a leitura e a língua escrita, como também em
uma perspectiva sócio-antropológica. Esses pontos justificam a presença desse
gênero discursivo já nos primeiros anos escolares, aprovando também a
aplicabilidade das fábulas em projetos pedagógicos. Como a questão da ética tem
sido muito enfatizada nas propostas atuais de ensino (como nos Parâmetros
25
Curriculares Nacionais), as fábulas poderão suscitar relevantes discussões em torno
de temas como a solidariedade a (in) justiça social, a vaidade, a violência, a
ganância, o espírito de vingança, o autoritarismo, entre outros.
É possível, por meio das fábulas, recuperar a animalidade perdida no humano,
resgatando os valores essenciais e a razão para conviver. Os animais, plantas, e
outros seres que se fazem presentes nas fábulas pouco são compreendidos pelos
leitores em seus limites e valores. Quem ler, sobretudo em grupo, entrará no mundo
da bicharada, das plantas, da natureza, experienciará e aprenderá aí, os reais valores
da vida.
A opção por esse tipo de gênero discursivo – fábulas – possibilita aos
professores rever conceitos, princípios e valores com seus alunos. Para desenvolver
esse trabalho, entretanto, faz-se necessário que se compreenda algumas de suas
características.
Com enredo tramado entre animais, pessoas, personagens mitológicas e
deuses, a fábula, pequena composição de acontecimentos fictícios, possui a dupla
finalidade de instruir e divertir, encerrando, também, um aspecto filosófico. Em
prosa ou verso, essa narração esconde sempre uma verdade moral, nas tramas de
fatos alegóricos. A fábula, propriamente, é representada por animais, ou animais e
homens. Quando são animais e seres inanimados os seus interlocutores, a fábula tem
o nome de apólogo. Como fábula racional, isto é, representada só por homens,
chama-se parábola. Pode ser mista, quando, na estória, se alternam animais, homens
e seres insensíveis.
A fábula é, em si, uma alegoria, uma prosopopéia. É um produto espontâneo
da imaginação humana. A origem da fábula se perde no tempo, tornando-se difícil
fixá-la. Acredita-se que a fábula tenha sido documentada desde o tempo de Buda, e
consta que muitas fábulas, atribuídas a Esopo, já haviam sido divulgadas no Egito,
quase 1000 anos antes de sua época.
Contudo, foi Esopo o criador da Fábula, na tradição oral. A ele atribui a
autoria de um imenso número de apólogos e fábulas que foram reunidos na célebre
obra “Vida de Esopo”, escrita no século XIV.
Esopo viveu no século VI a.C. e foi escravo, sendo depois liberto. Fedro
(Julio Phedrus), embora se acredite natural da Macedônia, foi liberto por Augusto,
vivendo em Roma e sendo considerado fabulista latino, de 30 a.C. a 44 E. C. Suas
26
fábulas foram escritas em verso e tinham um acentuado cunho satírico. Foi Fedro
quem introduziu o gênero Fábula na Literatura Latina.
A evolução mental do homem vem passando por diferentes fases, através do
tempo, até o domínio do raciocínio.
Na fase da lenda e do mito, predomina o imaginismo puro, o realismo
imaginário, fase que por satisfazer exigências místicas, passou a se chamar “Fase do
Folclore”; a primeira e mais antiga, que se tem em cada região e em cada povo. A
seguir, encontra-se a da descoberta do homem pelo homem, com a observação de
suas qualidades e seus vícios, cujo sentido crítico revela a evolução mental da
humanidade, é a “Fase da Fábula”, segunda fase evolutiva. Finalmente, na Idade
Média, encontra-se o homem voltado para os sentimentos e os ideais, os sentimentos
cavalheirescos de amor, de religião e de honra, caracterizando seu terceiro estágio
mental, completando-se, portanto, o ciclo evolutivo da humanidade, com a “Fase dos
Ideais”. Com os poemas e as cantigas da Idade Média, cultuaram-se os sentimentos
humanos eternos: o amor, a honra e a religião, como ideais sagrados.
Ainda na Idade Média, tornaram-se famosos os fabulários, todos de
acentuado cunho satírico, a exemplo dos clássicos. Depois da Idade Média, iniciam-
se as traduções das fábulas clássicas por toda a Europa.
Na Idade Clássica Moderna, o homem ressurge, em plena maturidade, para
lançar-se ao progresso contínuo e crescente, em que os sentimentos elevados não são
cultivados e a sua mensagem expõe exatamente os sentimentos negativos do homem.
A fábula, expressão de uma sociedade já adulta e cética, por isso mesmo pouco
educativa, transmite uma mensagem moral às avessas, mas, sendo uma alegoria, em
cuja prosopopéia está o centro de interesse para o leitor, conseguiu atrair os leitores
infanto-juvenis.
Moldadas ao espírito clássico, as fábulas em si constituíram-se verdadeiras
armas satíricas: críticas de caráter e de costumes, em que os animais retratavam os
vícios e as maldades do homem, os quais, envolvidos nas peles dos irracionais,
tornaram-se símbolos seculares.
Paralelamente aos contos maravilhosos, na Idade Média, começam a circular
as fábulas gregas de Esopo e as latinas de Fedro. Eram narradas em versos e em
língua “romance” (a língua que foi apenas falada durante o longo tempo
27
compreendido entre o latim – língua geral – e o surgimento das novas línguas
modernas como francês, italiano, português etc.).
Entre as diversas coletâneas de fábulas medievais que se tornaram fonte das
narrativas populares, está “Os Isopetes” (O Romance da Raposa), contendo fábulas
satíricas em que a raposa é personagem central. São 27 fábulas com as peripécias da
raposa em luta contra o lobo. Nelas, o mundo dos animais está organizado à imagem
da sociedade francesa do tempo, e toda sua arte consiste em parodiar a comédia
humana, uma arte que La Fontaine, alguns séculos depois, iria retomar e à qual daria
forma definitiva, chamando a atenção para a natureza exemplar dessas pequenas
“histórias de animais” que prefiguram os homens. Na apresentação de sua primeira
coletânea, Fábulas (1668), ele diz:
Sirvo-me de animais para instruir os homens.
[...]
Procuro tomar o vício ridículo, por não poder atacá-lo com braço de
Hércules.
[...]
Algumas vezes oponho, através de uma dupla imagem, o vício à
virtude, a tolice ao bom senso.
[...]
Uma moral nua provoca o tédio: o conto faz passar o preceito com ele.
Nessa espécie de fingimento, é preciso instruir e agradar, pois contar
por contar, me parece coisa de pouca monta.
Nesses últimos versos, La Fontaine toca no ponto vital de toda literatura
autêntica e não só da fábula: sua leitura deve dar prazer e, ao mesmo tempo, dar
alguma lição de vida. Assim acontece com as fábulas, que vêm da origem dos
tempos e continuam correndo mundo: a Cigarra e a Formiga (o eterno confronto
entre prazer e dever), O Lobo e o Cordeiro (o poder explorador do forte contra o
fraco), A Raposa e as Uvas (o desdenhar daquilo que não se pode alcançar), dentre
outras.
1.3.1.1 As Fábulas de La Fontaine e a heterogeneidade de suas fontes
A fábula, uma das espécies literárias mais resistentes ao desgaste do tempo,
teve sua forma definitiva na literatura ocidental, graças a Jean La Fontaine. Apesar
das muitas transformações sofridas e do abandono através dos séculos, as fábulas de
28
La Fontaine, traduzidas em todas as línguas, continuam vivas, sendo retomadas de
geração em geração como leitura obrigatória pelas crianças de todo o mundo.
Desde os meados do século XV, italianos e franceses redescobrem as fábulas
de Esopo e divulgam várias versões em latim e em francês. Muitas versões surgiram,
mas sem nenhuma arte inovadora, até surgir La Fontaine, a quem coube a tarefa não
só de restituir à fábula em verso todo o seu relevo literário, mas também de elevá-la
ao nível da alta poesia, alimentada por um novo pensamento filosófico – valores que
só a posterioridade iria reconhecer.
Admirador incondicional dos antigos, cujas obras procurou imitar, La
Fontaine não negava também a grande importância dos “modernos” como modelos a
serem seguidos.
Iniciou sua carreira de escritor em 1650, escrevendo peças de teatro, o mais
importante gênero de sua época. Em seguida, dedicou-se à poesia. La Fontaine
publicou madrigais, baladas, epístolas em que mistura poesia e prosa, elegias formas
rigorosamente submetidas ao modelo clássico vigente. Entretanto, apesar da
variedade dessas formas ou gêneros “nobres” que lhe valeram na época a fama de
escritor, La Fontaine se imortalizou com a forma literária popular, então considerada
“menor”: a fábula.
Conforme o registro de vários pesquisadores, La Fontaine foi buscar seus
argumentos nos gregos, latinos, franceses, medievais; nas parábolas bíblicas, contos
populares, narrativas medievais e renascentistas e várias outras leituras que
desafiassem sua infatigável curiosidade.
La Fontaine reuniu todos os breves poemas narrativos constituindo doze
livros que resultaram de suas pesquisas e criação. E é, nessa heterogeneidade das
fontes, que vai, talvez, determinar as diferenças de matéria literária, evidentes em
suas “fábulas”. Nem todos são histórias de animais. Há, entre esses livros, um grande
número de fábulas; porém, ao lado destas, aparecem também apólogos, parábolas,
contos exemplares, contos jocosos, alegorias e estorietas.
Todos os poemas narrativos de La Fontaine se imortalizaram como fábulas na
história da literatura e passaram a ser repetidos de geração em geração, até hoje,
porque o fabulista revela sua peculiaridade ao apresentar breves relatos que divertem
e instruem, expondo uma “situação” que se encerra com uma lição de moral.
29
Tudo o que corresponde ao verdadeiro valor de La Fontanaine como escritor,
cujo estilo leve e atraente, criativo ao transformar certos relatos em prosa, técnica
literária e lingüística, e talento para transfigurar a matéria literária dos antigos em
matéria moderna, praticamente se perdeu nas mil e uma traduções de suas Fábulas,
que continuam correndo o mundo.
A grande maioria das versões de La Fontaine já não é em verso e apresenta
bastante adulterada a escrita original, bem como o argumento ou a moralidade.
Portanto, o que venceu o tempo, entre o grande público, não foi propriamente a
forma literária de La Fontaine, mas as situações humanas ali transfiguradas, e que
nasceram, com certeza, com uma intenção totalmente distinta das possíveis intenções
as quais o leitor de hoje lhes atribui.
De acordo com seus contemporâneos, as Fábulas de La Fontaine
denunciavam as misérias, desequilíbrios e injustiças de sua época. E foi sua
dedicação e amizade a um conterrâneo aprisionado injustamente que o levou não só a
intervir publicamente em favor do amigo e protetor, como a escrever as fábulas “O
Lobo e o Cordeiro” e a “Raposa e o Esquilo”, fábulas lidas para o público seleto dos
“salões”, na ocasião.
Partindo dessa intenção, o “leão” de suas fábulas, orgulhoso por sua
autoridade quase divina, que despreza seus súditos (“Animais Enfermos da Peste”),
seria o Rei; um rei que gosta de ostentar seu poder em pomposas cerimônias (“A
Corte do Leão”); que procura ocasião para mostrar-se generoso (“O Leão e o Rato”),
mas que se presta também a comédias mostrando-se um Justo, quando na verdade
está esmagando os fracos. Nessa perspectiva, La Fontaine mostra à corte como um
país de parasitas, maquinador de imposturas (“O Pastor e o Rei”), onde reina a
servilidade e a hipocrisia, as rivalidades levam às denuncias e traições (“O Leão, O
Lobo e a Raposa”).
Com sua arte de bajular o Rei e tocar o seu fraco, tomando sempre o seu
partido, está como cortesã, a “raposa”, que também precisa ser prudente, porque sabe
que não pode confiar muito na palavra do Rei (“O Leão Doente e a Raposa”).
Simbolizando a “nobreza” burguesa, está a “raposa”, uma “nobreza” que se enche de
tédio em suas propriedades na província, pensando muito mais em suas distrações e
festas do que em seus camponeses, dos quais esperam tudo:
30
comem suas galinhas, presuntos, bebem seu vinho, acariciam suas
filhas e saqueiam imperturbavelmente suas plantações... (Apud M.
Soriano,).
A comédia da vida da corte com suas etiquetas e cerimônias oficiais é
retratada na fábula “Os Funerais da Leoa”, assim como os sonhos muito altos, sem
serem seguidos de ação adequada, em “Perrette ou A Leiteira e o Pote de Leite”.
A simbologia utilizada por La Fontaine em suas narrativas dispensa qualquer
conhecimento de suas possíveis implicações contemporâneas; por essa razão, para
compreendê-la, não há necessidade de que se conheçam essas possíveis relações
entre os personagens da fábula e as figuras do tempo.
Apesar de ter enriquecido significativamente os argumentos que retomou das
fábulas antigas, La Fontaine não alterou a simbologia que seus antecessores
atribuíram aos animais. De acordo com o fabulista, o leão ainda é o monarca
orgulhoso; a raposa é a astúcia; o rico é gordo; o pobre é magro; a garça é delicada; o
coelho, um desmiolado sem experiência; a doninha, uma astuta; o gato, um gabola; o
urso, um rústico cabeçudo e solitário; a cigarra vive pelo ideal da arte; a formiga,
pelo trabalho incessante; o burro, um fanfarrão; o rato, a esperteza matreira; o corvo,
a voracidade. É evidente, porém, que o elemento simbólico, seja ele qual for, só atua
quando corresponde exatamente às características que a tradição o consagrou.
Em rigoroso respeito ao espírito dos antigos, La Fontaine não corrigiu as
“falhas” de conhecimento científico cometidas pelos primeiros criadores das fábulas.
Por exemplo, a cigarra não come moscas, não “canta” e morre antes do inverno; a
formiga está adormecida, quando vêm os ventos gelados do inverno; o corvo e a
raposa, carnívoros, não comem queijo.
La Fontaine não ignorava tais erros, e se divertia com eles, mas como
os encontrou os antepassados fabulistas e sua preocupação principal
era contar tais estórias, não hesitou em repeti-las, (La garde &
Michard, XVII. Siecle – 222).
Com relação às diferenças de matéria literária, pode-se dizer que, no geral, a
fábula visa aos costumes, ao comportamento social dos homens, enquanto o apólogo
e a parábola visam, em última análise, às atitudes morais. O que não quer dizer que
as várias intenções não possam estar presentes em todas as espécies.
31
1.3.1.2 Charles Perrault e outros fabulistas seletos
Charles Perrault, contemporâneo de La Fontaine, entra para a História
Literária Universal não como poeta clássico, mas como o autor de uma literatura
popular, desvalorizada pela estética de seu tempo e que, apesar disso, transforma-se
em um dos maiores sucessos da literatura para a infância.
Intelectual e ativo, Perrault, durante algum tempo, destacou-se nos círculos
literários da França. Nesse período, produziu uma obra que, com o tempo,
imortalizou-se; os “Contos da Mamãe Gansa”, escrito num momento em que ainda
não existia o gênero “literatura infantil”, mas que se revelou como leitura para
crianças.
Marc Soriano, professor e pesquisador francês, classifica tais contos como
um “ninho de enigmas e de contradições” e mostra que sua celebridade “não deve
grande coisa à cultura e à educação. É o único clássico que cada criança francesa
conhece de cor antes de entrar para a escola, onde, aliás, não é lido, o único que ela
conhece antes mesmo de aprender a ler, o único também do qual ela guardará a
lembrança, mesmo que não o releia mais ou não goste de ler.
esse pequeno livro é, ao mesmo tempo, o mais misterioso e o mais
paradoxal que possamos encontrar (GLJ-393)
Entretanto, o que se afirma das crianças francesas, pode-se também afirmar
das brasileiras. “O Pequeno Polegar”, “ A Bela Adormecida”, “O Gato de Botas”,
são histórias que fazem parte da vida de toda criança, mesmo antes de aprenderem a
ler e lhes são tão familiares quanto as cantigas de ninar com que foram embaladas.
De onde vem esse sucesso é difícil ou talvez impossível explicar, embora muitos e
muitos estudiosos o tenham tentado, levantando, uma série de hipóteses e
explicações, das mais diversas naturezas. Para Soriano, no entanto, o “período de
maturação afetiva intensa” pelo qual passam todas as crianças dos 3 aos 9 anos e a
essa afetividade exigente os Contos de Perrault responderiam perfeitamente, pois
“não se limitam a exprimir tensões sociais”, mas são organizados “em torno de
interdições ou de permissões que estruturam a família e a sociedade”.
32
As fábulas são tão antigas quanto as conversas dos homens; às vezes, nem
sabemos quem as criou, pois por meio da oralidade eram carregadas como vento de
um lado para outro, já que a própria palavra provém do latim FABULA = contar.
No século VIII a.C. já se tinha notícias dessas histórias, sendo que as fábulas
muito antigas do Oriente foram difundidas na Grécia, há 2600 anos, por um escravo
chamado Esopo. Apesar de gago, corcunda, feio e miúdo, como diziam alguns, era
inteligente, esperto e de muito bom senso; por esse motivo, conquistou a liberdade e
viajou por muitas terras dando conselhos por meio das fábulas.
Esopo foi condenado à morte e jogado do alto de um abismo, mas as suas 600
fábulas continuaram a ser contadas, escritas e reescritas por outros fabulistas. Fedro é
o primeiro escritor latino a compor uma coletânea de fábulas, tendo sido imitado e
refundido várias vezes. O escritor francês La Fontaine usava fábula para denunciar as
misérias e as injustiças de sua época em versos e em prosa.
A partir dessa época, muitas histórias, escritas inicialmente para adultos, já
começaram a ser adaptadas para crianças, retirando delas os elementos violentos e os
aspectos nocivos à educação. A fábula moderna contudo, preserva todo o vigor que
vem apresentando desde os tempos antigos.
No Brasil, temos o grande fabulista, Monteiro Lobato, que além de recontar
as fábulas antigas, criou suas próprias fábulas com a turma do sítio, como mostra o
seu livro “Fábulas”, onde Pedrinho diz “As fábulas, mesmo quando não valem
grande coisa, têm um mérito: são curtinhas; Narizinho acha as fábulas “sabidíssimas”
e Emília as considera uma indireta”.
Bagno (2002) afirma que, em seu projeto de criar uma literatura brasileira
especialmente voltada para o público infanto-juvenil, o grande Monteiro Lobato
também se interessou por esse gênero tradicional. Em seu livro “Fábula”, o escritor
reconta, numa prosa brasileira moderna, algumas das fábulas de Esopo, Fedro e La
Fontaine, além de apresentar outras de sua própria autoria em que insere, depois de
cada uma das narrativas, as animadas discussões provocadas pela fábula no círculo
de personagens que povoam o Sítio do Picapau Amarelo.
Dona Benta, narradora das fábulas, representa a sabedoria popular, também se
mostra bastante inclinada a aceitar a moral das fábulas. Pedrinho e Narizinho fazem
comentários de acordo com seu espírito irrequieto de crianças curiosas e dispostas a
33
aprender enquanto a irreverente Emília tenta, a cada momento contestar a lição de
moral que a fábula encerra.
O escritor brasileiro usou fábulas para criticar e denunciar as injustiças,
tiranias, mostrando às crianças a vida como ela era. Em suas fábulas, alertou que o
melhor é esperto (inteligente), porque o forte sempre vencia e Visconde afirmava que
o único meio de derrotar a força era a astúcia.
Esse resgate das fábulas tradicionais tem inspirado muitos escritores,
humoristas, teatrólogos e artistas em geral. A fábula da cigarra e da formiga, talvez,
tenha sido a que mais passou por esse processo de (re)interpretação. Os humoristas
Jô Soares e Millôr Fernandes fizeram paródias dessa narrativa muito conhecida pelo
público infanto-juvenil.
Millôr Fernandes, com seu humor e ironia, cria e recria fábulas refletindo
sobre valores, satirizando a nossa realidade sócio-econômica em seus livros,
“Fábulas fabulosas”, “Novas fábulas fabulosas” e “Eros uma vês”. O escritor
contemporâneo divertiu bastante o público, criticando acontecimentos políticos ou
figuras da sociedade brasileira por meio de suas fábulas parodiadas.
Outros autores também vêm se dedicando ao gênero, como Carlos Eduardo
Novaes, que, em “A história de Cândido Urbano Urubu” retrata a realidade social
brasileira; Augusto Monterroso, com “A Ovelha Negra e outras Fábulas” e Ulisses
Tavares, com “Fábulas do futuro” versões de uma mesma fábula.
Muito do sucesso das fábulas vem da forma concisa com que elas apresentam
questões, muitas vezes complexas. Assim, os leitores conseguem entender com
clareza modelos de comportamento humano.
“A Cigarra e a Formiga”, por exemplo, se nos deixa indignados com a
avareza da formiga que nega alimento à cigarra e a deixa morrer, também nos faz
refletir sobre a necessidade de sermos comedidos, precavidos para o dia de amanhã.
As fábulas, pelas suas características lingüísticas e textuais, e também por seu
conteúdo temático, têm sido apreciadas, há muito tempo, na literatura universal. Na
escola, sua leitura oferece aos alunos uma interação com o mundo letrado e ficcional
de ótima qualidade literária. Sua aplicação de maneira muito rígida, porém, facilitou
o surgimento de sátiras - composição artística que censura ou ridiculariza vícios - e
paródias - imitação cômica de uma composição literária. Ambas são vistas como
recursos que se prestam a fazer rir da seriedade das fábulas e de sua pretensão
34
moralista. Enfim, o propósito de resgatar a moral inerente às fábulas é o de levar o
aluno a refletir sobre determinadas atitudes, além de despertá-lo para o gosto da
leitura e dar-lhe oportunidades para desenvolver sua criatividade usando todos os
seus sentidos e habilidade escrita.
1.3.1.3 Moral x Ética
Um dos objetivos essenciais do processo educacional é o exercício da
cidadania e a formação da conduta ética do jovem cidadão. Uma educação
empenhada em aprimorar o comportamento humano; motivada pelo respeito aos
princípios e à dignidade humana é consolidada pela lei 9394/96 em seu artigo 2º a
qual estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Segundo a lei
"A educação, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de
solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania ... ".
Assim como a LDB, os Parâmetros Curriculares Nacionais também objetivam
priorizar esse ideal de formação ética e cidadã no processo educativo. As propostas
pedagógicas de diversas instituições escolares, os livros didáticos, os discursos de
pais, professores e demais profissionais da área, parecem insistir na necessidade de
que as instituições escolares se voltem para essa tarefa: a de uma formação geral que
resulte no preparo para o exercício da cidadania. A promoção de uma conduta
fundamentada em princípios éticos de valorização aos direitos e deveres da pessoa
humana deixou de ser um assunto restrito a especialistas e profissionais da educação
para constituir uma questão de interesse público.
Re-significar as práticas escolares bem como a grade curricular enfatizando
essas metas, vistas em épocas passadas como secundárias, é uma exigência que se faz
necessária, já que uma crise de valores assola a sociedade como um todo.
Na escola tradicional, a despreocupação para com a formação do educando e
a valorização da mera transmissão de informações, apontou para a necessidade de se
recorrer a teorias educacionais mais eficazes a fim de diversificar as metodologias de
trabalho. Assim concebido, o problema da consolidação de uma educação voltada
para a formação ética e para o exercício da cidadania aparece como um "novo
35
desafio" o qual também aponta para o desenvolvimento de novos parâmetros e
metodologias de ensino.
Diferentes desafios surgem com a intenção de direcionar a conduta do
educando a princípios éticos considerados valiosos, de tal maneira que o exercício da
cidadania passa a ter em sua formação, um lugar privilegiado.
Entretanto, reconhecer a diferença entre Moral e Ética, atualmente, é tarefa
fundamental, uma vez que há muita relação na definição e aplicabilidade de ambos
os termos. O primeiro conceito a ser destacado, Ètica, caracteriza-se como um termo
mais restrito no tempo enquanto concepção e constituição de uma disciplina
filosófica do que a história das idéias morais da humanidade, as quais surgiram com
os primeiros grupos sociais da nossa história, e se alongam até à atualidade.
A reflexão sobre a moral ganha nova dimensão, na idade antiga, com
Sócrates, em diálogos sobre justiça, coragem, amor que interpunha junto aos seus
discípulos “Que entendeis por virtude, por patriotismo, por honra, por coragem?”.
Entretanto, a Ética é formalizada em tratados especiais a partir da obra de Aristóteles
seguindo-se posteriormente por outras escolas filosóficas.
A essência das idéias morais que constitui o objeto da Ética - segundo
conceito a ser destacado - não é aceito como válido. Diferentemente da Moral, sua
fundamentação é analisada, não importando se o critério de avaliação seja extra-
moral, metafísico ou teológico.
Do grego Ethos, caráter formado pelos usos e costumes, este conceito é
reconhecido como a ciência da conduta humana. Historicamente, a ética tem sido
enfocada de duas maneiras: como ciência do fim – “ideal” a que o homem está
dirigido pela sua própria natureza - para o qual se orienta a conduta humana e dos
meios - os “motivos” que determinam sua conduta para alcançar tal fim. A ética tem
sido enfatizada também como ciência que busca a identificação do desenvolvimento
do comportamento humano de acordo com a sua evolução, com o objetivo de dirigi-
la ou controlá-la.
Apesar da observação de que em ambas as definições estejam subentendidas
ao conceito de bem, no primeiro caso, o bem é visto como realidade perfeita,
coerente com o pensamento de Aristóteles e S. Tomás, significando: “A felicidade é
o fim da conduta humana, dedutível da natureza racional do homem”. Já no segundo
caso é visto como objeto de desejo. Dessa forma em, “O bem é a felicidade”, a
36
palavra “bem” apresenta um significado totalmente diferente daquele expresso na
frase “O bem é o prazer”.
Observa-se que toda a Ética Medieval tem por comportamento, definir a
natureza necessária do homem, deduzindo de tal natureza, o fim a que deve ser
dirigida a sua conduta. Citando mais uma vez S. Tomás, uma vez que nossa ética foi
profundamente influenciada por ele, toda sua ética parte do princípio “Deus é o
último fim do homem”; princípio este de onde se deduz a doutrina da felicidade e a
da virtude.
De acordo com o dicionário Abbagnano, na filosofia moderna, os
Neoplatônicos retomam a concepção estóica de ética; viver segundo a razão,
declarando que a ordem do universo também é aceita para dirigir o caráter inato das
idéias morais e da conduta do homem.
Os conceitos de moral e ética, embora sejam diferentes, são com frequência
usados como sinônimos. A etmologia dos termos é semelhante: moral vem do latim
mos, moris, que significa “maneira de se comportar regulada pelo uso”, daí
“costume”, e de morales, morale, adjetivo referente ao que é “relativo aos
costumes”. Ética, ethos, tem o mesmo significado de “costume”.
Em um sentido mais amplo, a moral é o conjunto das regas de conduta
admitidas em determinada época ou por um grupo de homens. Nesse sentido, o
homem moral é aquele que age bem ou mal na medida em que acata ou transgride as
regras do grupo.
A ética ou filosofia moral se ocupa com a reflexão das nocões e princípios
que fundamentam a vida moral. Essa reflexão pode seguir as mais diversas direções,
dependendo da concepção de homem que se toma como ponto de partida. O sujeito
ético ou moral não se submete aos acasos da sorte, à vontade e aos desejos de um
outro, à tirania das paixões, mas obedece apenas à sua consciência – que conhece o
bem e as virtudes, que conhece os meios adequados para chegar aos fins morais. A
busca do bem e da felicidade são a essência da vida ética.
O cristianismo introduz duas diferenças primordiais na antiga concepção
ética: primeiro, a idéia de que a virtude se define pela relação com Deus e não com a
polis nem com os outros. Essa relação com os outros vai depender da qualidade da
relação com Deus. Por esse motivo, as duas virtudes cristãs primeiras e condições de
todas as outras são a fé e a caridade. Virtudes provenientes da relação do indivíduo
37
com Deus e com os outros, a partir da intimidade e da interioridade de cada um; em
segundo, a afirmação de que todos são dotados de vontade livre – livre-arbítrio – e
que a liberdade dirige-se para a transgressão das leis divinas.
Analisando o discurso avaliador do sujeito-professor de língua estrangeira,
Cavallari (2005) afirma que a moral pregada e cultivada na sociedade brasileira está
fortemente atrelada à ideologia judaico-cristã. A pesquisadora encontra em Perelman
(203, p.318, apud Cavallari, 2005, p.64) uma pesquisa histórica da religião que o
levou à conclusão de que durante muitos séculos, a moral se inspirou nas
considerações religiosas. À análise da autora, a conduta moral está fundamentada na
ordem do dever-ser, interdiscursivo de discursos da religião, da Igreja e da lei, o qual
determina as regras de conduta.
Enquanto que para os filósofos antigos a vontade era uma faculdade racional
capaz de dominar e controlar a desmesura passional dos desejos, havendo uma força
interior que torna o indivíduo moral; para o cristianismo, a própria vontade está
pervertida pelo pecado e precisando do auxílio divino para tornar-se moral.
O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo
e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a
introduzir uma nova idéia na moral: a idéia do dever. Idéia esta, para resolver um
problema ético, qual seja, oferecer um caminho seguro para a nossa vontade, que,
sendo livre, mas fraca, sente-se dividida entre o bem e o mal.
38
Capítulo 2 – Análise do Discurso de Perspectiva Francesa
Neste capítulo constitutivo dos pressupostos teóricos que orientaram o
empreendimento do presente estudo apresentam-se, num primeiro momento, os
fundaments da Análise do Discurso de perspectiva francesa (doravante ADF),
formulada por Pêcheux, que nortearam a pesquisa, num segundo momento,
apresentam-se os princípios de confissão e da escrita de si formulados por
Foucault.
Esses princípios pecheutianos e foucaultianos constituíram o arcabouço
teórico de leitura adotado por esta dissertação.
2.1 Pressupostos teóricos da análise do discurso de linha francesa
Neste item do capítulo 2, apresentam-se os pressupostos teóricos da ADF nas
três fases pelas quais passa essa teoria formulada por Michel Pêcheux, a qual trouxe
uma grande contribuição aos estudos lingüísticos, ao desenvolver a idéia de que a
linguagem é uma importante forma material de ideologia.
Na segunda metade do século XX, dentro de um contexto no qual prevalecia
o estruturalismo, surge na França a Análise do Discurso de linha francesa, de base
marxista e que apresenta não só uma análise formal do texto, mas também uma
análise das materialidades discursivas relacionadas com a História, levando-se em
conta as condições de produção do discurso. Pêcheux e J. Dubois, partindo de pontos
diferentes, dão inicio a ADF (Sargentini, 1999).
A ADF buscou realizar uma análise dentro da reflexão sobre como se dá a
articulação entre o discurso, a língua, o sujeito e a História. A interpretação deve
considerar “o modo de funcionamento lingüístico-textual dos discursos, as diferentes
modalidades do exercício da língua num determinado contexto histórico-social de
produção” (Brandão, apud Martins, 2004, p2).
Buscando problematizar os deslocamentos teóricos da AD, Pêcheux (1997)
analisa as três fases por que passou esta disciplina em seu percurso de constituição.
Nota-se que, passagem de um momento para outro, houve mudanças significativas de
caráter metodológico e teórico.
39
Nas “três fases de Pêcheux”, revelam-se os embates, as reconstruções, as
retificações na constituição do campo teórico da ADF, atingindo a reflexão de como
se dá a relação entre discurso, língua, sujeito e Historia a partir dos estudos das
propostas de Althusser, à qual Pêcheux dá novos aportes (Gregolin, 2004}.
A primeira fase inicia-se com a publicação de Analyse Automatique du
Discours, em 1969. em que Pêcheux apresenta uma proposta teórico-metodológica,
deslocando o objeto de análise, pensando a langue, com sua sistematicidade e caráter
social, como base dos processos discursivos. Na constituição desse objeto, o
discurso, espelham-se as releituras de Saussure por Pêcheux, de Freud por Lacan, de
Marx por Althusser.
As teses althusserianas sobre os aparelhos ideológicos e o
assujeitamento propõem um sujeito atravessado pela ideologia e pelo
inconsciente (um sujeito que não é fonte nem origem do dizer; que
reproduz o já-dito, o já-lá, o pré-construído). A metodologia – derivada
do estruturalismo harrisiano – propõe a ‘análise automática’, por meio
da qual buscam-se colocar em evidência traços do processo discursivo,
a fim de determinar os enunciados de base produzidos pela ‘máquina
discursiva’ (Gregolin, op.cit: 61).
Gregolin ressalta, ainda, que Pêcheux em sua auto-critica considera a análise
automáticacomo primado do Mesmo sobre o Outro’, que levou a análise à busca
invariâncias, das paráfrases de enunciados sempre repetidos, o que o conduziu a
uma segunda fase em direção à heterogeneidade, ao Outro, à problematização
metodológica.
Nessa segunda fase, há um deslocamento teórico em relação ao primeiro
momento, passando a ser foco de estudo as relações entre as máquinas discursivas
estruturais. A formação discursiva passa a ser definida como:
um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram uma época dada, e para uma área
social, econômica e geográfica ou lingüística dada, as condições de
exercício da função enunciativa (Foucault, 1987, 43-4, apud Martins,
2004, 5).
Evidencia-se, nos artigos de Pêcheux e Funchs (1975), um novo quadro
epistemológico geral da ADF que explicita a vinculação com Saussure, Marx e
Freud. Em sua teoria dos dois esquecimentos, Pêcheux refina a análise das relações
entre língua, discurso, ideologia e sujeito, em que este pensa ser a fonte do dizer.
(Gregolin, op.cit: 62).
40
Na verdade, o sujeito tem a ilusão de ser a fonte do sentido, o que Pêcheux
denomina esquecimento 1; segundo o qual o sujeito tem a impressão de que é o
criador absoluto de seu discurso, quando, na verdade, repete dizeres já existentes, faz
parte do esquecimento número 1. Pêcheux fala ainda sobre um outro esquecimento, o
esquecimento 2, que concerne à seleção que o falante faz em relação aos processos
de produção de uma língua determinada. À medida que “escolhe” o que diz, ele
exclui o que seria possível dizer naquela mesma situação, o que implica a existência
de outros dizeres. Esse esquecimento dá ao sujeito a ilusão de que o que diz, reflexo
do seu pensamento, corresponde ao seu conhecimento objetivo da realidade (e os
outros discursos que se lhe opõem devem parecer discursos em desacordo com a
realidade, portanto, “falsos”). Isso nos leva diretamente à questão do sentido.
Para Pêcheux (1995:160),
“o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição etc.,
não existe em si mesmo” (isto é, em sua relação transparente com a
literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas
posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no
qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é,
reproduzidas).” Assim, as expressões lingüísticas mudam de sentido de
acordo com a posição ideológica daquele que as emprega. A partir daí,
Pêcheux define formação discursiva: “aquilo que, numa formação
ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa conjuntura
dada, determinada pelo estado da luta de classes, determina o que pode
e deve ser dito”...
Les Vérités de la Palice (1975), a grande obra de Pêcheux, ao propor uma
teoria do materialista do discurso, marca um momento essencial de teorização das
mudanças, em que considera as bases lingüísticas como suporte para o processo
discursivo. Ao mesmo tempo o processo discursivo se dá numa relação ideológica de
classe, mas de forma contraditória. Reafirmando sua vinculação com as propostas de
althusserianas, Pêcheux retoma a tese da interpelação ideológica acentuando o
caráter contraditório e desigual do assujeitamento e o fato de os aparelhos
ideológicos não só reproduzirem, mas também transformam as relações de produção.
Retoma também o conceito de formação discursiva do texto de 1971 e acrescenta a
ele a reflexão sobre a materialidade do discurso e do sentido (Gregolin, op.cit: 63).
Na terceira época (de 1980 a 1983), Pêcheux afasta-se de posições
dogmáticas sustentadas por seu vínculo com o Partido Comunista, numa crise
irreversível das esquerdas francesas, e reaproximação com as teses de Foucault. Ao
41
criticar duramente a política e as posições derivadas da luta na teoria, Pêcheux abre
assim várias problemáticas sobre o discurso, a interpretação, a estrutura e o
acontecimento. (Gregolin, op.cit: 64). Este é o período no qual a teoria do discurso
assumiu a sua forma atual.
2.2 Pressupostos teóricos da escrita de si
Foucault (2005) em sua última obra, na qual focaliza os processos de
subjetivação, atribui à escrita a função ethopoiética, isto é, a função de promover o
desenvolvimento do ethos, por ela permitir a “ascese” – áskesis – que significa
exercício prático que leva à plenitude moral.
Em “A escrita de si”, o autor (2005) resgata a anotação escrita das ações e dos
pensamentos; elementos indispensáveis da vida ascética.
O autor descobre, em seus estudos, que Santo Antonio aconselhava aos
colegas ascetas e também impunha a si anotar as ações e movimentos da alma, isto é,
pensamentos indevidos, a fim de que, mutuamente, se dessem a conhecer e, se
tornados conhecidos esses pensamentos e ações indevidos, por vergonha, deixassem
de portar qualquer perversidade.
O fato de se obrigar a escrever sobre os atos – pensamentos e movimentos da
alma – desempenharia o papel de um companheiro: o caderno de notas do solitário.
Essa prática configura-se como um procedimento próximo à confissão, arma de
combate espiritual para dissipar as obras do inimigo.
Em “Vontade de Saber” (1993) Foucault elucida os efeitos do ato da
confissão. A obrigatoriedade da revelação completa dos pensamentos, retomada da
prática ascética, entendida como “exercício espiritual”, foi transferida, no século
XVIII, para pessoas comuns, primeiro constituindo ritual de adesão ao cristianismo
e, posteriormente, como ritual de extração da verdade de suas ações e pensamentos,
com o objetivo de controlá-los. Essa tradição monástica, própria dos ascetérios,
passou a se constituir um dos dispositivos de normalização do indivíduo cristão.
Em sua análise desse dispositivo de controle, Foucault descobriu que verdade
que se escondiam ao próprio sujeito que confessava apareciam no ato da confissão e
permitiam-lhe conhecer-se.
42
O processo de escrita é lento, inacabado. O processo de aprendizagem da
escrita exige um questionamento que necessita de um tipo específico de treinamento,
análogo ao processo de constituição ética do indivíduo. Segundo Foucault (1992),
nenhuma técnica ou aptidão profissional é adquirida sem exercício. Para ele, a arte de
viver – askesis – deve ser entendida como um adestramento de si mesmo.
O papel de escrita na filosofia de si nasce muito antes; encontrado em Sêneca,
é resgatado por Foucault (1992): a leitura era importante nas práticas de si, mas a
escrita também.
Em Sêneca, observa Foucault (op. cit.:144), na prática de si não se devem
dissociar leitura e escrita: deve-se recorrer alternadamente a essas duas ocupações e
temperar uma por meio da outra. A prática de si, para Sêneca, implica a leitura, por
não ser “possível tudo tirar do fundo de si próprio nem armar-se por si só com
princípios de razão indispensáveis à conduta; guia ou exemplo, o auxílio dos outros é
necessário”.
Foucault (op.cit.:144) revela-nos que Epíteto imputou à escrita o exercício
pessoal com vistas à arte de viver; exercício este que previa os atos de meditar, de
escrever e de treinar, como forma para encontrar o alívio a episódios indesejáveis.
Epíteto insiste várias vezes no exercício da escrita como um treinamento pessoal. Em
textos deste filósofo, a escrita sempre aparece regularmente associada a um exercício
do pensamento sobre si mesmo que traz à memória uma regra ou um princípio que
reflete sobre a ação do sujeito, sobre ele mesmo e o prepara para enfrentar a vida.
A escrita em Epíteto está associada ao exercício do pensamento de duas
maneiras diferentes. Uma tem a forma de uma série linear que vai da meditação à
atividade escrita e, desta, para o treino na situação real que é a prova. A outra forma
é circular: a meditação vem antes da anotação, ou seja, a meditação precede as
anotações que permitem releitura e que por sua vez, revigora, alimenta a meditação.
Seja como for, essa associação,
“A escrita constitui uma etapa essencial no processo para o qual tende
toda a askesis: a saber, a elaboração dos discursos recebidos e
reconhecidos como verdadeiros em princípios racionais de ação”
(FOUCAULT, 1992, p. 134).
Em ambos os ciclos de exercício, a escrita constitui etapa essencial no
processo ascético.
43
De acordo com Foucault, no treino de si, a escrita tem uma função
“ethopoiética” – expressão que Foucault resgata em Plutarco – função de operador de
transformação da verdade em “ethos” que implica as relações com o individuo
consigo mesmo, com os outros e com a verdade.
Esse “ethos” diz respeito à
“maneira pela qual o indivíduo deve construir este ou aquele aspecto
dele próprio como matéria principal de sua conduta moral“. (Foucault,
2004a: 144).
O sujeito só se faz por meio de um trabalho ético realizado sobre si mesmo,
para fazer de si um sujeito moral de sua conduta; sujeito este que não se constitui
sem uma ascética, isto é, sem a prática de si.
A “ascese” foucaultiana deve ser entendida como “aprendizagem”; como
experiência de si, que implica progressiva auto-consideração e auto-domínio. Esse
exercício prático de escrita de si deve ser entendido como uma tentativa de
determinar o que se pode fazer e o que não se pode fazer com a liberdade de que se
dispõe.
A escrita etopoiética de estabeleceu em duas formas conhecidas e utilizadas:
os hypomnémata e a correspondência.
Os hypomnémata eram anotações que se faziam em cadernos pessoais que
serviam como agenda; eram uma espécie de livro da vida que servia como guia de
conduta e que se tornou corrente entre o público mais culto. Nesses livros, podiam-se
encontrar citações, trechos de obras literárias, relatos de fatos testemunhados pelo
autor ou fatos sobre os quais ele tivesse lido. Esses escritos eram uma memória
material de tudo que fora lido ouvido ou pensado.
“Os hypomnémata constituíam uma memória das coisas lidas, ouvidas
ou pensadas destinadas à releitura e à meditação posterior, passando a
se constituir parte do próprio autor” (Foucault, op. cit.: 146).
Em seu artigo, Da autonarração à escrita acadêmica: a constituição da
subjetividade do aluno de cursos de especialização, Uyeno (2005) detecta na
autonarração dos seus alunos do curso de engenharia, fragmentos de anotações que
determinaram a escrita de si. A articulação do que foi lido e ouvido com a realidade
pôde ser observado em seus textos, ganhando a dimensão das hypomnémata de que
44
fala Foucault(2004). De acordo com Uyeno (2005) esse treino é determinado pelo
funcionamento da associação dos hypomnémata (Foucault, 1983) com as marginalia,
isto é, respectivamente, dos fragmentos do que é lido, ouvido e pensado, destinados à
releitura e à meditação posterior e das anotações às margens das páginas dos livros,
os quais passam a constituir parte do próprio autor.
O objetivo dos hypomnémata – cadernetas pessoais –
“é permitir a constituição de si a partir da coleta do discurso dos
outros” (Foucault, op. Cit.: 156).
Isso ocorre em virtude três razões principais: os efeitos limitadores devidos ao
emparelhamento da escrita com a leitura, a prática refletida que determina a escolha,
e a apropriação que se faz o material lido neste ato de escolha. É por essa razão que a
escrita dos hypomnémata se constitui como um procedimento de subjetivação pelo
discurso, isto é, como um procedimento que permite a constituição de si, a partir do
discurso, da leitura e pela escrita.
Godói (2006) constata, em textos produzidos por seus alunos, idéias de
Foucault. Aulas teóricas, filmes vistos e discutidos por eles serviram como
hypomnémata para a produção textual. Segundo a pesquisadora, quando se escreve
sistematicamente, os conceitos aprendidos passam a constituir o sujeito e assim
aparecem nas escritas subseqüentes, sem que o próprio sujeito se dê conta do fato,o
que significa que os redatores incorporam esses conceitos que passam a constituí-lo.
Para Godói, os conceitos agregados à constituição do sujeito são reconhecidos por
eles por meio dos efeitos de melhoria nas produções textuais posteriores.
A escrita dos hypomnémata é também uma prática regrada e voluntária da
disparidade. Consiste na escolha de elementos muitas vezes heterogêneos e é regida
por dois princípios que podem ser chamados “a verdade local da máxima” e “o seu
valor circunstancial de uso”. Não importa de quem seja a frase escolhida, o que
importa é que ela se constitua em verdade naquilo afirma, conveniente naquilo que
prescreve e útil à circunstância.
45
1.1 O cuidado de si
Em “O Cuidado de Si”, Foucault (1984) revela-nos que passamos de uma
moral da antiguidade, essencialmente a busca de uma ética pessoal, para uma moral
do cristianismo, a qual se constituía da obediência a um sistema de regras.
Em “Hermenêutica do sujeito” (1982), o autor estudou a constituição do
sujeito como objeto para ele próprio; investigou a formação de procedimentos pelos
quais o sujeito é levado a se reconhecer como um campo de saber; dedicou-se ao
estudo das artes de si mesmo, à estética da existência, e o domínio de si e dos outros.
Tratou da história da subjetividade em um jogo da verdade no qual o sujeito faz a
experiência de si mesmo – no qual ele se relaciona consigo mesmo.
Em face ao paradigma libertário que se vive, em “A estética da existência”
Foucault (1994) propõe que não pode haver uma “moral única”. Cada um deve
buscar uma forma de se constituir; de se criar como “obra de arte”.
A reconstrução da moral greco-romana que Foucault (1993) propõe em
“História da Sexualidade 2”; o uso dos prazeres em “História da Sexualidade 3”, o
“Cuidado de si”, permitiu ao autor distinguir o que significam moral e ética.
Entende-se moral como um conjunto de valores e de regras de ação que são
propostas aos indivíduos e aos grupos por meio de diferentes aparelhos prescritivos
(família, instituição educativas, igrejas, etc). Essa moral produz uma “Moralidade
dos Comportamentos”. Por outro lado, a Ética diz respeito à maneira pela qual cada
um se constitui a si mesmo como “Sujeito Moral do Código”. E nesse sentido que a
ética foucaultiana é da ordem de cuidar de si.
A moral grega da Antiguidade se pautava no respeito do caráter individual da
conduta. Era fundada no trabalho do indivíduo sobre si e na “ascese”, constitutiva do
“ethos”, que implicava as relações do indivíduo consigo mesmo, com os outros e
com a verdade.
1.2 Marginalia
Marginalia, derivada do latim marginalia, significa as anotações que se fazem
à margem de jornais e livros. Ao ser incorporada ao texto em processo de redação, a
marginalia adquire a função de hypomnémata.
Há três grandes tipos de práticas de marginalia:
46
“as anotações de professores e dos estudantes, tanto durante as
próprias lições como durante o estudo; a dos eruditos fora de qualquer
contexto pedagógico, e a dos profissionais – médicos e cirurgiões”
(1993 apud Chartier 2005, 95).
Uyeno (2005), analisando o processo da escrita de si por alunos de curso de
engenharia, chega à conclusão de que o ato de escrever para si e para o outro, por
permitir a “ASKESIS” – o treino do “adestramento” de si por si mesmo, tem a
função “ETOPOIÉTICA”; a de operadora da transformação da verdade dos textos
lidos em “ethos”. Esse treino é determinado como HYPOMNÉMATA (Foucault
1983) – fragmentos do que é lido, ouvido e pensado, destinados à releitura e à
meditação posterior e também das MARGINÁLIA – anotações das citações que o
leitor retém como modelos e transfere para o seu caderno, anotações estas que
passam a constituir parte do próprio autor (Uyeno, 2005).
Uyeno (2005) conclui da pesquisa empreendida que a associação da leitura e
da escrita revelou transcender os efeitos do dispositivo disciplinar de assujeitamento
da instituição escolar” e se transformar em tecnologia de subjetivação,
procedimentos pelos quais o indivíduo assume para si a tarefa de se constituir sujeito
moral.
As marginalia constituem uma forma de encontrar as citações e exemplos que
o leitor retém como modelos estilísticos, dados factuais ou argumentos
demonstrativos e que ele transfere do livro lido para seu caderno (Chartier 2002, 94).
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Parte II CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO DISCURSO E
ANÁLISE DE CORPUS
Esta segunda parte da dissertação apresenta-se dividida em três capítulos.
No primeiro capítulo, apresentam-se o universo do Curso Normal Superior
como condição mediata de produção do discurso e o Curso Normal Superior da
Faculdade de Administração e Informática (FAI) da cidade de Santa Rita do Sapucaí,
em Minas Gerais como condição imediata de produção do discurso.
No segundo capítulo, apresenta-se a análise de uma parcela do corpus
constituída das respostas das alunas a um questionário.
No terceiro capítulo, apresenta-se a análise do restante do corpus constituído
de textos redigidos pelas professoras em uma atividade de leitura e produção de
textos proposta para a realização da pesquisa que resulta nesta dissertação.
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Capítulo 1 – CONDIÇÃO DE PRODUÇÃO DO DISCURSO
1.1 Condições mediatas de produção do discurso
Considerem-se como condições mediatas de produção do discurso os
determinantes mais amplos em que se inserem os discursos produzidos pelas alunas
do Curso Normal Superior da Faculdade de Administração e Informática, localizada
na cidade de Santa Rita do Sapucaí, no estado de Minas Gerais.
1.1.1. O Curso Normal Superior no Brasil
Expõe-se, neste item, o Curso Normal Superior que se insere no universo da
educação formal brasileira.
O curso de Pedagogia surgiu no Brasil pelo Decreto lei nº 1.190 de 1939,
visando à formação do profissional docente que se habilitava como bacharel –
titulação que conferia ao pedagogo o cargo de técnico de educação e, posteriormente
à titulação de licenciado que o habilitava para lecionar no Curso Normal Superior.
A estrutura do curso de Pedagogia permaneceu até 1969
, quando, então, foi
abolida a divisão entre as titulações: bacharelado e licenciatura. Aos que concluíssem
o bacharelado seria conferido o diploma de Pedagogo ou Técnico em Educação e
,
concluído o curso de Didática, a licenciatura para atuar como professor da Escola
Normal.
A organização curricular da Escola Normal fundamentava-se na separação do
bacharelado, que se preocupava com o conteúdo e o método – o pedagogo nesse caso
tinha o direito de ocupar o cargo de Técnico de Educação no Ministério de Educação
- e a licenciatura, preocupava-se com a teoria e a prática.
Com a lei nº 5540/68, surgiram às habilitações e, nessa nova organização, o
curso foi dividido nas disciplinas: Fundamentos da Educação e as Habilitações
Específicas, continuando, no entanto, a formar especialistas na área da educação.
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O Curso Normal Superior foi criado pela Lei nº 9394/96, com o propósito de
habilitar docentes para atuar nas áreas da educação infantil e nas primeiras séries do
ensino fundamental, sem, entretanto extinguir o Curso de Pedagogia. A ele foi
conferida à instituição dos Institutos Superiores de Educação.
O artigo 64 da referida lei diz que “A formação de profissionais de educação
para administração, planejamento, inspeção, supervisão e orientação educacional
para a educação básica será feita em cursos de graduação em pedagogia ou em nível
de pós-graduação, a critério da instituição de ensino, garantida, nesta formação, a
base comum nacional”.
A organização do curso de Pedagogia, ainda em vigor, se constitui conforme
o Parecer CFE 252/69, por uma base comum de estudos reorganizada a todos os
profissionais da educação e composta pelas disciplinas: sociologia geral, sociologia
da educação, psicologia da educação, história da educação, filosofia da educação e
didática; e uma parte diversificada, cuja proposta era a de dar suporte às habilitações
específicas. Apesar da atualização da estrutura e da manutenção de uma concepção
tecnicista de educação, a parte específica do currículo - influenciada pelo contexto
histórico-político e econômico da sociedade brasileira - permaneceu conforme a
organização dicotômica do curso anterior: fragmentado.
Segundo SILVA (1999),
(...) não se pode formar o educador com partes desconexas de
conteúdos, principalmente quando essas partes representam
tendências opostas em educação: uma tendência generalista e
uma outra tecnicista. Essas tendências (...) a primeira quase que
exclusivamente na parte comum, considera que ela se
caracteriza, a grosso modo, pela desconsideração da educação
concreta como objeto principal e pela centralização inadequada
nos fundamentos em si (isto é, na psicologia e não na educação;
na filosofia e não na educação, e assim por diante). A segunda,
por sua vez, é identificada com as habilitações consideradas
como especializações fragmentadas, obscurecendo seu
significado de simples divisão de tarefas do todo que é a ação
educativa escolar.
O Parecer CFE 252/69 atribuía ao pedagogo o diploma de Licenciado,
habilitando para o cargo de professor para o Ensino Normal e nas áreas de
orientação, administração, supervisão e inspeção, o título de “especialista”, para o
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exercício em sistemas escolares. Dessa forma, a organização curricular do referido
curso tinha como objetivo primeiro a formação do “especialista em educação”.
Formavam-se profissionais específicos para atuar em áreas específicas, contribuindo
dessa maneira para com a divisão do trabalho pedagógico das especialistas.
Com a reforma de ensino de 1º e 2º graus, através da LDB 5692/71 os cursos
superiores de formação sofreram alterações com o propósito de ajustá-los às
necessidades da referida lei.
1.1.2. FAI - O curso Normal Superior e sua base legal
A Fundação Educandário Santarritense - FES, começou a sua experiência em
educação superior com a Faculdade de Administração e Informática – FAI, criada em
1971, por meio da aprovação do projeto elaborado por uma equipe de
“empreendedores educacionais comunitários” e apoiada pela comunidade
santarritense.
Sua sede própria, construída com a ajuda direta da comunidade, foi
inaugurada em 1974. O modelo acadêmico adotado foi o da FGV – Fundação
Getúlio Vargas, São Paulo, que por meio de convênio de cooperação, cedeu os
primeiros professores, juntamente com o ITA – Instituto Tecnológico de
Aeronáutica, de São José dos Campos.
Em 1978
, a FAI implantou, com pioneirismo, o Curso Superior de
Tecnologia em Processamento de Dados – o segundo autorizado pelo MEC para o
Estado de Minas Gerais. Sua aprovação deu-se no dia 05 de fevereiro de 1980. Em
setembro de 1997, o Curso Superior de Tecnologia em Processamento de Dados
transformou-se em Bacharelado de Ciência da Computação.
Durante a implantação do seu curso de Ciência da Computação, constatou-se
a necessidade de promover o desenvolvimento de softwares educacionais como
ferramentas de apoio ao processo ensino-aprendizagem. A partir de então foi criado
um grupo de estudos e orientações, constituído por professores, supervisores e
pedagogos das instituições públicas e privadas e professores da área tecnológica da
cidade. Dos trabalhos realizados por esse grupo nasceu um curso de especialização,
em nível de pós-graduação, no uso de tecnologia na educação para os professores.
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O convívio com os professores do Ensino Fundamental, que constitui
maioria dos alunos do curso de pós-graduação, a aspiração destes professores em
habilitarem-se, segundo as exigências da LDB (Lei das Diretrizes e Bases) e as
potencialidades da FES, deram origem ao anseio de criar um Curso Normal Superior
para Formação de Professores dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, com ênfase
no uso de Tecnologias de Informação na Área Educacional.
De acordo com a legislação vigente, para que o curso fosse implantado houve
a necessidade de que a FES criasse o Instituto Superior de Educação – ISE.
Delinear o perfil do mundo atual é tarefa instigante e bastante complexa.
Diferentes abordagens têm sido realizadas em terrenos culturais, sociais, políticos,
econômicos elaboradas por vários pensadores.
Nas análises realizadas, sinais comuns aparecem, destacando-se: os desafios
da globalização, as conquistas da Ciência e da Tecnologia, a ênfase no
Conhecimento, a velocidade das mudanças e das transformações, os problemas
ligados à distribuição de renda, desigualdades sociais, emprego, consumismo,
modelos econômicos hegemônicos e principalmente um quadro de incertezas se
configura como a única certeza possível.
Nesse cenário, faz-se necessário pensar o cotidiano das pessoas e das
organizações. Está em gestação uma nova cultura, que faz novos questionamentos
exigindo novas respostas.
A Escola aqui se insere e o pode fugir a essas características e solicitações.
Trata-se de ressignificar ações e objetivos no sentido de rever os processos de
construção do conhecimento, repensando os paradigmas vigentes que formatam
racionalismos técnicos e engessam o universo do pensamento humano.
A escola busca redefinir valores, posturas e assumir novos papéis, vivenciando
práticas coerentes. Como sistema aberto, precisará trabalhar em ritmo de
aprendizagem permanente e de possibilidade de desenvolvimento pessoal e
profissional para cada uma das pessoas que a compõem.
Nesse contexto, a formação inicial como preparação profissional tem papel
decisivo para possibilitar que os professores se apropriem de determinados
conhecimentos e possam experimentar, em seu próprio processo de aprendizagem, o
desenvolvimento de competências necessárias para atuar nesse novo cenário. A
formação de um profissional de educação tem que estimulá-lo a pesquisar, a investir
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na própria formação e a usar sua inteligência, criatividade, sensibilidade e capacidade
de interagir com outras pessoas.
O Curso Normal Superior para formação de professores dos anos iniciais do
Ensino Fundamental do Instituto Superior de Educação – ISE aceita o desafio de
desenvolver uma educação significativa para todos os sujeitos envolvidos no
processo de ensino e de aprendizagem.
A responsabilidade pedagógica, social e cultural da formação destes
professores é questão de cidadania, pois a contribuição desses profissionais em seu
campo de trabalho e na sociedade em geral poderá ser fator diferenciador nos
contextos, oportunizando efetiva humanização.
A LDB 9394/96 dos Profissionais da Educação explicita aspectos importantes
de fundamentação para a formação de professores. Ressalta a necessidade de esta
formação estar articulada aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de
ensino. Nos artigos dessa lei, abrem-se os tipos e modalidades dos cursos de
formação inicial de professores e sua localização institucional: há que se destacar a
definição de todas as licenciaturas como plenas; a reafirmação do ensino superior
como nível desejável para o professor dos anos iniciais de ensino. Ainda na LDB
9394/96, traça-se um perfil profissional dos docentes, que extrapola os contornos da
sala de aula e fazem jus às demandas sociais da realidade atual.
Alguns outros instrumentos legislativos merecem destaque, como
fundamentação legal para os cursos normais superiores: 1) Parecer 115 de 10/08/99 –
CP/CNE que trata da formação de professores dos anos iniciais do Ensino
Fundamental e dos Cursos Normais Superiores; 2) Resolução 01/99- CP/CNE que
dispõe sobre os Cursos Superiores de Educação; 3) Decreto nº 3276/99 de 6/12/99,
que dispõe sobre a formação de professores em nível superior para atuar na Educação
Básica.
O Decreto 3276/99 regulamenta a formação básica comum que, do ponto de
vista curricular, se constitui no principal instrumento de aproximação entre a
formação dos professores das diferentes etapas da educação básica. Esse decreto
recomenda que a referência principal deva ser os Parâmetros Curriculares Nacionais,
formalizando a vinculação entre formação e exercício profissional. Ele decreta que a
formação dos professores dos anos iniciais e da educação infantil deva ser feita
exclusivamente no Curso Normal Superior.
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1.2. Condições imediatas de produção do discurso
Considerem-se condições imediatas de produção do discurso o contexto mais
próximo no qual se encontram inseridos os produtores de determinados discursos.
No caso deste estudo, as condições imediatas de produção do discurso
constituem os elementos constitutivos do contexto no qual se inserem as alunas do
Curso Normal Superior da Faculdade de Administração e Informática (FAI),
localizada na cidade de Santa Rita do Sapucaí, no estado de Minas Gerais. Mais
especificamente, esses elementos que determinam os discursos das alunas são: quem
são as alunas que falam, para quem falam, o que falam, onde falam.
Relata-se, a seguir, uma entrevista concedida pela professora Valéria Paduan,
idealizadora da FAI à autora desta dissertação.
1.2.1. A história da criação do Curso Normal Superior da FAI
Em 1996, a atual Coordenadora Pedagógica do Curso Normal Superior,
Valéria Paduan, regressou a sua cidade natal, Santa Rita do Sapucaí. Nessa época, ela
trabalhava exclusivamente na área técnica em Belo Horizonte, com desenvolvimento
de sistema, consultoria, projeto, auditoria e atuava em empresas multinacionais
prestando serviço ao Estado. Decidida a voltar com a família para o sul de Minas,
permaneceu na mesma área, apesar da pouca oportunidade de crescimento e da
impossibilidade de continuar em desenvolvimento, uma vez que não existia em seu
município ou região, a tecnologia avançada com a qual trabalhava na capital mineira.
Estabelecida, montou, num primeiro momento, um curso de Informática
Educacional com a intenção de trabalhar com projetos de informática, visto que sua
formação era na área de informática aplicada à educação. Buscou, inicialmente, o
Colégio Tecnológico sem saber que o mesmo integrava a Fundação Educandário
Santarritense pertencente à FAI. Em visita ao colégio, juntamente com o marido que
também é professor da área, encontraram laboratórios desativados, cobertos por
lençóis, sem nenhuma utilização; muitas máquinas paradas e os responsáveis sem
saber o que fazer, como dar manutenção ou aproveitá-las. Fez então uma proposta à
diretora da instituição à época, Professora Maria Luiza Campos do Amaral Moreira,
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para colocá-lo em funcionamento, pois havia feito alguns cursos específicos, em
Belo Horizonte. Comprou uma mesa pedagógica de Israel que podia ser trabalhada a
partir da educação infantil até a 4ª série do ensino fundamental que veio
acompanhada por material completo e um projeto com softwares que viabilizava o
trabalho integrado de informática em apoio às disciplinas. Todos ficaram encantados
com a mesa digital e por meio desse projeto Professora Valéria fez uma parceira com
a escola; ofereceram manutenção às máquinas, as colocaram em funcionamento,
substituíram as peças e iniciaram o trabalho com a informática educacional. Na
época, trouxeram também uns teclados importados dos Estados Unidos; teclados
específicos para criança, com filtros e personagens da Disney. Preocuparam-se
também com o ambiente, e o decoraram, porque deveria ser convidativo às crianças,
uma vez que a proposta era trabalhar a educação infantil e o ensino fundamental. No
entanto, não podia trabalhar com a informática na educação sem um projeto
interdisciplinar que envolvesse todos os professores. O laboratório não podia ser
visto como um ambiente isolado da escola, ele já fazia parte do projeto e
conseqüentemente uma extensão da sala de aula. Obrigatoriamente, o professor
deveria estar envolvido. O trabalho inicial da professora foi totalmente pessoal:
preparava as aulas, conversava com os professores, verificava o conteúdo que
estavam trabalhando e os adaptava às aulas, acompanhando também os alunos nos
laboratórios. Como nenhum professor sabia utilizar os computadores dedicava tempo
integral às aulas e os professores apenas assistiam.
Num segundo momento, fez a proposta de capacitar esses professores. Estava
certa de que sendo o laboratório uma extensão das salas de aula, o próprio professor
deveria estar atuando, juntamente com seu aluno.
Depois de dois anos trabalhando com a educação infantil e o ensino
fundamental montou uma consultoria, na área de informática na educação,
começando a trabalhar em outras escolas: o colégio G9 (Itajubá), o colégio APICE
(Pouso Alegre), ambos em cidades vizinhas. Dedicou-se até 1998 ao trabalho de
consultoria e de alfabetização tecnológica dos professores que trabalhavam com
informática na educação.
Neste mesmo ano conheceu na FAI (Faculdade de Administração e
Informática, em Santa Rita do Sapucaí), o professor Moisés Rennó Vilela,
Coordenador do Curso de Sistema de Informação, na época, Ciência da Computação
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e também coordenador e responsável pelo CDP – Centro de Desenvolvimento e
Pesquisa – que desenvolvia projetos para as empresas da região. Com a intenção de
dar aula no curso de Ciência da Computação na FAI, pois sua formação era de
graduação com especialização na área, ela trouxe um currículo para o professor, que,
na ocasião, havia montado um curso de informática para adultos no Colégio
Tecnológico.
Conhecendo o trabalho do professor que ministrava, na mesma área, um curso
para adulto, fez o convite para que conhecesse não somente o laboratório e os
recursos didático-pedagógicos como também a metodologia utilizada por ela.
Interessado em seu curso de capacitação, o professor sugeriu que trabalhassem em
parceria, já que o enfoque do seu curso era técnico e o ensino de informática,
totalmente instrumental.
Compreendendo que o enfoque da professora Valéria Paduan era diferenciado
e que sua metodologia unia a tecnologia à área pedagógica, sugeriu um trabalho
integrado, acreditando na sua contribuição para com o projeto e conseqüentemente
para a formação dos professores. Fizeram então uma parceria com a Secretaria da
Educação de Santa Rita e capacitaram todos os professores da rede municipal de
ensino.
Nesse período, a professora percebeu a insatisfação do professor Moisés que
não compreendia que só o ensino instrumental da informática não era suficiente,
porque usar o Word para digitar ou o Excel para aprender os comandos básicos sem
contextualizá-los não era prático para a educação. Ele não conseguia enxergar uma
aplicabilidade pedagógica com aqueles comandos, até conhecê-la. E a professora
talentosamente associava as novas tecnologias da informática à realidade educacional
promovendo uma metodologia inovadora. Começaram então com uma capacitação, e
juntos montaram uma micro empresa de prestação de serviço de informática, a
INFOTEC – hoje a professora já criou a INFOTEC JÚNIOR – que ministrava cursos
de informática para crianças e formação de professores e juntos também decidiram
transformar o curso em extensão. Um curso de Pós-graduação foi a proposta da
professora, pois não havia no estado nenhuma Pós naquela área. Eles foram os
primeiros a oferecer uma Pós-graduação de informática na educação.
Com a implantação da pós-graduação, o movimento com professores – em
especial com professores da educação infantil e do ensino fundamental – foi maior.
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As escolas estavam começando a receber os computadores, e o contato com os
professores foi cada vez mais intenso.
Nesse mesmo ano (1996), a mídia anunciava as novas diretrizes do Mec,
divulgando como uma necessidade o curso de nível superior para os professores do
ensino fundamental. Como estavam muito ligados à Secretaria de Educação,
realizando capacitação para várias secretarias e trabalhando com a pós-graduação,
perceberam nos alunos-professores que procuravam pelo curso, a grande necessidade
de uma visão mais prática, já que eles estavam carregados de teoria. Eles não
conseguiam contextualizar as novas tecnologias ao cotidiano educacional. Da
mesma forma acontecia com a informática: havia um conhecimento de comando,
mas não se conseguia associá-lo à realidade prática; ao dia a dia escolar.
E foi a partir dessa constatação que a professora recomendou ao professor
Moisés montar um curso de graduação na área da Educação do Normal Superior. Ela
acreditava que, além de atender as diretrizes educacionais, poderiam instituir um
curso inovador, cuja metodologia, avançada e diversificada era ainda desconhecida
pelo professor do 1º Grau. Ela constatou que a matriz curricular do curso estava
muito envolvida com a gestão e tinha muito pouco de metodologia. Era o que
acontecia com o professor da Educação Infantil, ele era cobrado por não desenvolver
habilidades específicas (música, dança, teatro, recorte, colagem, dobradura, entre
outras) nos seus alunos, habilidades estas, que eles próprios não possuíam. Os cursos
de Pedagogia não proporcionavam condições; não davam essa formação que
atendesse a necessidade do profissional da educação infantil. Falava-se em trabalhar
a Psicomotricidade, trabalhar Educação Física com os alunos e não ofereciam
nenhuma disciplina da área no curso.
A professora Valéria observou ainda que os professores das APAES também
não recebiam nenhuma formação específica na Pedagogia para trabalhar com os
alunos especiais e portadores de deficiência. Não constava na matriz curricular dos
cursos da região, uma disciplina sequer, direcionada à educação inclusiva.
Reconhecendo, então, essa necessidade da clientela e a sua capacidade para
montar um curso com esse diferencial que enfatizasse a educação inclusiva e a
informática na educação, iniciaram o projeto do Curso Normal Superior com a
informática em todos os períodos, uma carga de metodologias bem maior do que os
outros, inserindo a Educação Especial que é a Educação Inclusiva, a Informática e o
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Empreendedorismo. Nesse período, Santa Rita já realizava um trabalho de
capacitação dos professores para trabalhar o empreendedorismo desde a educação
infantil; preocupava-se com a questão dos sonhos dos alunos, seus objetivos de vida,
envolvendo os pais, inclusive os da zona rural, mostrando a eles as possibilidades de
terem um rendimento extra, trabalhando em conjunto.
A partir dessa realidade o Empreendedorismo, a Informática na Educação e a
Educação Inclusiva foram introduzidas no projeto como um diferencial e realmente
foi, tanto que outras faculdades inseriram informática em sua grade curricular e
começaram a colocar alguma coisa de concreto em seu currículo, porque o projeto da
Faculdade de Administração e Informática de Santa Rita foi inovador.
Aconteceu, porém, que o professor Moisés adoeceu gravemente e com a visão
quase que totalmente comprometida, zero, já não andava mais sozinho. Debilitado
devido ao câncer, reconheceu não ter condições físicas para ajudar a professora, mas
que ainda poderia lutar pela implantação do Curso Normal Superior na FAI.
Na época, a professora Valéria estava terminando seu mestrado em
Florianópolis e conheceu a professora Terezinha em Varginha – hoje, Secretária da
Educação de Três Corações e diretora do mestrado da UNICOR – que a convidou
para dar um curso de capacitação de informática na educação para os professores da
rede municipal da sua cidade. Conversou com ela, informou-lhe sobre o projeto de
montar o Curso Normal Superior em Santa Rita, e sobre o seu diferencial; a mudança
na grade curricular para concretizar o sonho de um curso inovador. Solicitou ajuda
da professora para mandar para Brasília o pedido de abertura do curso. Ela aceitou
escrever, considerando o diferencial teórico, os pressupostos teóricos, a referência
bibliográfica e a professora Valéria montou a matriz curricular, buscando as
emendas, junto com a atual secretária do Curso Normal Superior, Juceli Costa de
Lima. Apesar de não ter experiência, pois nunca havia montado um curso antes, a
professora sentiu-se desafiada. E o projeto foi colocado no correio no último dia; no
último instante, foi encaminhado para Brasília. Trabalharam por dias inteiros sem
remuneração alguma, na esperança de que, se aprovado, seria contratada para
trabalhar no curso. Constituía um contrato de risco.
A sorte não estava do seu lado: a FAI foi penalizada, porque tinha um
processo de enchente e, como estava vinculada diretamente ao MEC, o ministério
levou dois anos para aprovar o seu projeto. Nesse meio tempo, outras instituições da
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região colocaram o Normal Superior. Se a FAI tivesse sido aprovada, na ocasião em
que se depositou o projeto, seria a primeira instituição – o que, pelo cadastro, pode
ser conferido – do Sul de Minas a pedir concessão para o Curso Normal Superior.
Com isso, outras cidades da região tiveram seus cursos aprovados e, como a FAI não
tinha uma tradição na área da educação, começou o curso numa situação de
desigualdade.
O desafio foi grande, mas, em 2002, o curso foi aprovado e começaram a
formar sua equipe: os mantenedores convidaram os professores e tiveram a
preocupação de prestigiar os próprios alunos que passaram pelo curso e foram
referência dentro dele (é oportuno que mencione que essa é a justificativa para a
minha contratação como Professora Assistente da referida faculdade). Hoje, 70% dos
professores foram alunos de pós-graduação da FAI.
Como, na região, não havia oferta de mestres e doutores e o curso estava
começando com número reduzido de alunos, porque as cidades vizinhas já o
ofereciam passaram então, a acreditar, desde o primeiro momento, na proposta, no
diferencial do curso. José Cláudio Pereira que era o diretor na ocasião aceitou o
desafio de colocar o curso em funcionamento. E, apesar da mudança de diretoria, a
aprovação foi total também pelo novo diretor, Professor Aldo Ambrósio Moreli.
Nesse mesmo período professor Moisés faleceu. Segundo a professora,
Moisés não viu a primeira turma ser formada, mas ficou sabendo que tinham
conseguido a aprovação do MEC. Ela recorda um comentário do professor, quando
começaram a pós graduação, cujo primeiro curso foi o de informática: “Eu tenho
uma tristeza de ver as salas e os pátios assim, vazios... O sábado parado, as salas sem
alunos... Meu sonho, Valéria, é ver a FAI cheia...” Ela continua “se ele estivesse
aqui, estaria satisfeito, porque a faculdade oferece agora quinze cursos de pós
graduação com mais de 350 alunos matriculados na pós. Chegar à faculdade, no
sábado, e não encontrar estacionamento, não é novidade. Durante os intervalos, é
aquela efervescência”... E a professora encerra: “onde o Moisés estiver ele deve estar
feliz, porque isso era tudo o que ele queria ver”.
Segundo a professora, o curso teve início com muita garra, com muita
vontade porque eles acreditaram que fariam a diferença e percebem hoje, que
realmente fizeram. O curso é presencial, os alunos são cobrados, são reprovados,
ainda hoje, também por freqüência. Há seriedade, comprometimento; o aluno tem
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envolvimento; o curso exige leitura, oferece-lhe condições para sair com uma
formação prática e com embasamento teórico. O estágio da educação ocorre,
inclusive, dentro da Apae. É o único curso em que os alunos vão realmente para
dentro da Apae.
A professora declara, com toda segurança, que o sucesso do curso está no
corpo docente e que o projeto pedagógico, ainda hoje é inovador. Recentemente, a
FAI formalizou uma parceria com o UNIVERSITAS (Itajubá), porque são
respeitados pelo trabalho que desenvolvem, levando as outras instituições a enxergá-
lo como parceiro e não como concorrente. Pela primeira vez, fizeram um convênio
de parceria, trabalhando juntos em duas unidades: Ipuiúna e Borda da Mata e um
projeto de controle acadêmico do UNIVERSITAS, cujo projeto pedagógico é da
FAI.
Hoje, a FAI presta serviço de consultoria para a Secretaria de Educação,
serviço de avaliação da rede municipal de Santa Rita do Sapucaí, Brasópolis, Pouso
Alegre e de Ipuiúna, o diagnóstico de todos os alunos deste a 1ª série do ensino
fundamental até o ensino médio, a avaliação da rede municipal e o concurso para
diretores de Andradas.
A faculdade está sendo procurada e é considerada uma referência pelos seus
cursos de capacitação e formação continuada de professores. Ela oferece, na área da
educação, cinco cursos de pós-graduação: o de Informática na Educação que foi o
primeiro, o curso de Docência do Ensino Superior, Educação Inclusiva,
Psicopedagogia (Clínica e Institucional), Supervisão, Gestão Escolar e Alfabetização.
A FAI cresceu, formou um núcleo de pós-graduação que também é considerado uma
referência na região.
Hoje, a professora declara, com toda tranqüilidade, que a faculdade está se
consolidando cada vez mais e sendo olhada por toda comunidade acadêmica como
uma instituição que veio com seriedade para área da educação, e veio para se
consolidar e permanecer. Continua informando que é gratificante o reconhecimento
das outras instituições e o da comunidade quando o trabalho é levado para fora, em
eventos como o da FAITEC – Feira Tecnológica da FAI – e o da Responsabilidade
Social os quais a faculdade participa.
De acordo com a professora, essa repercussão é visível. Quando a equipe
pedagógica do Curso Normal Superior entra nas instituições de ensino e encontra
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com os diretores, é comum ouvir elogios aos alunos que se formam na FAI. Para
eles, as alunas do Curso Normal da FAI têm desenvoltura e aptidão. Apesar de achar
que poderiam apresentar um desempenho superior e obter um resultado muito
melhor, perante as instituições de ensino da cidade, são vistas com admiração. Todas
as alunas que se formaram estão trabalhando; todas, sem exceção. E agora, as escolas
estão buscando estagiárias no 5º e 4º períodos. As alunas estão sendo contratadas
antes mesmo de terem concluído o curso; antes da formação completa, porque a
sociedade acredita nessa formação e no trabalho realizado pelo corpo docente da
faculdade.
Segundo a coordenadora, quando um professor é contratado, o que menos a
preocupa é saber se ele tem experiência na docência do ensino superior. Para ela, é
preciso olhar para o professor e sentir que ele tem a vontade, o sonho, a garra e que
ele está ali não pela remuneração, mas porque está envolvido com os sonhos de
pessoas que muitas vezes doaram uma vida em benefício à educação.
Ela declara que os projetos na área da educação não acontecem
repentinamente; é um investimento feito a médio e longo prazo. E continua dizendo
que, “há um tempo de plantar e um tempo de preparar a terra, de cuidar e de colher“.
E afirma acreditar que está na fase da colheita. Formaram a primeira turma e todos os
alunos estão trabalhando. A comunidade educativa vê o diferencial e o reconhece
como um curso fascinante, porque ele nasceu de um sonho um sonho que iniciou
com um projeto, mas que, por coincidência, trabalha com os sonhos das pessoas, as
quais, em depoimento, revelam que esperaram a vida toda, alguns quase aposentados,
para ter a oportunidade de fazer um curso superior. Alunos depositam um salário que
de tão reduzido que é o valor consomem, com a mensalidade, mais de 60% do
recebido; tudo isso, porque eles estão apostando num sonho. “Isso, completa a
coordenadora, faz com que o professor tenha muita consciência, porque trabalhar
com os sonhos das pessoas, com as esperanças que envolvem família, maridos, filhos
que ficam em casa, conflitos do dia-a-dia é de grande responsabilidade. A cada turma
que se forma, vê-se a realização de um sonho dos alunos, dos professores e das
pessoas que estão ali ajudando a construí-lo.
As disciplinas de Filosofia Aplicada ao Ensino Fundamental e Ética entraram
na nova grade curricular, em atendimento a uma sugestão da autora desta dissertação
(também se faz oportuno que se mencione que essa solicitação resultou do
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desenvolvimento desta dissertação) e também porque a coordenadora concorda que
as disciplinas deveriam compor o Projeto Político Pedagógico da instituição. Ela
acredita que as escolas estão mudando e vão mudar muito mais. E essas mudanças do
projeto político pedagógico nas escolas já foram discutidas, assim como a questão da
formação do educador e da nova proposta de formação continuada pelo educador. De
acordo com a professora, está na hora de buscar o resgate dos valores dentro das
instituições, de trabalhar com os alunos a questão da ética, porque tudo o que está
acontecendo é reflexo de uma formação, de uma educação. A Escola tem muito a
contribuir com essa mudança, e tanto a Filosofia como a Ética vêm resgatar esse lado
humanístico, resgatar os valores e sensibilizar o aluno por meio de suas emoções.
Este é o olhar que se tem agora: direcionado para o projeto pedagógico, para
as disciplinas na área das ciências humanas, para a questão da formação dos
professores e para que eles possam levar tudo o que receberem de novo e
enriquecedor para dentro das salas de aula com seus alunos.
A professora encerra seu depoimento declarando que se sente extremamente
realizada e feliz pela oportunidade de estar, hoje, aprendendo, trabalhando,
convivendo, compartilhando com profissionais experientes na área. Ela menciona
que o curso ofereceu uma oportunidade para todos e para ela em especial, porque foi
um aprendizado muito grande, uma oportunidade de realização. Ela afirma que,
quando se tem um sonho, acreditar é possível, é viável, e que a união dos esforços
nos leva à realização dos objetivos. Ela jamais teria conseguido sucesso se não
tivesse o apoio da diretoria, o apoio do corpo docente e dos funcionários. “Não há
como negar, sem demagogia, a professora conclui, o trabalho não é resultado de uma
pessoa, mas de um conjunto. E o fruto desse trabalho é o que se vê hoje, que motiva
e incentiva a ir em frente“. Esta é a história da criação do Normal Superior, finaliza a
professora.
1.2.2. Constituição do corpus de pesquisa
O corpus de análise é constituído de respostas das alunas do terceiro e quinto
período do Curso Normal da Faculdade de Administração e Informática ao
questionamento: O que é ética?
As respostas foram produzidas individualmente, de maneira espontânea, sem
qualquer tipo de consulta, queram material impresso, quer a colegas de sala, para se
62
saber as representações que as alunas tinha sobre ética. Isso se justificou para o
acompanhamento dos possíveis deslocamentos produzidos em uma segunda coleta
feita após terem sido conduzidos leituras de textos sobre ética e fabulas.
Algumas alunas são professoras atuantes na rede pública do estado de Minas
Gerais; outros, profissionais liberais. Outras ainda, retornam aos bancos escolares
depois de longo período de afastamento. Buscam “atualização” e um curso superior
como realização pessoal. Muitas se reconhecem defasadas, inseguras e admiradas
com as mudanças ocorridas no sistema educacional e revelam, na sua maioria,
grande comprometimento, cumplicidade e entusiasmo com o curso.
As alunas gastaram entre quinze e trinta minutos para responderem à
pergunta. Fez-se notar certa angústia na produção dos textos, embora as respostas
tenham sido, na maioria dos casos, superficiais e pouco reflexivas. O fato remete à
Uyeno (2005, p1), em sua fala:
Alinhando-se a Sócrates, em sua releitura de Fedro, Derrida (1994)
imputa à escrita a natureza de um phármakon, uma droga, cujo
substrato é ser, ao mesmo tempo, remédio e veneno: uma vez escrito, o
discurso pode ser interpretado das mais diversas formas e seu autor
não está presente para defender o sentido que quisera imprimir. É
certamente o temor dos efeitos dessas características inerentes à escrita
que explica a nossa luta (por vezes vã) com as palavras. “Não leia o
meu texto agora, professor”, quando os alunos entregam as redações,
tomando o cuidado de colocá-las embaixo dos textos de seus colegas;
“Não gosto de escrever”, “Não sei como começar”, “Tenho um monte
de idéias, mas não consigo colocar no papel”; o fatídico “Deu um
branco!” são alguns das lamentações diante da tarefa de ter de redigir
tão cotidianas ao professor de línguas.
Para facilitar a compreensão da análise dos dados que compuseram o corpus
analisado neste item procede-se ao relato do percurso trilhado por esta pesquisa.
O problema de onde partiu a presente dissertação constituiu a constatação de
que, à diferença do que ocorre-nos outros cursos de formação do ensino superior, no
Curso Normal Superior – antigo curso Normal, posteriormente denominado de
Magistério, que fazia parte do nível de ensino médio e que, hoje, faz parte do nível
de ensino superior – não consta sistematicamente a disciplina de Ética.
Levantou-se como hipótese para que a ética não constasse como disciplina
nesse curso, a sua pressuposição no fazer docente.
A análise preliminar objetivou detectar no discurso produzido por alunos do
Curso Normal Superior da Faculdade de Administração e Informática (FAI), situada
na cidade de Santa Rita do Sapucaí, no estado de Minas Gerais, indícios de que eles
63
acreditavam que a ética era constitutiva do fazer docente e não encontrou esses
indícios na hipótese da qual partiu.
Buscou-se, então, analisar na materialidade lingüística do discurso produzido
por esses alunos a representação que fazem sobre ética.
Os dados para análise foram constituídos a partir de respostas dos alunos de
um Curso Normal Superior no sul do Estado de Minas Gerais à pergunta: “O que é
ética?" e buscou-se entender a representação, isto é, qual é o conceito que os
normalistas têm sobre ética, o que os normalistas pensam sobre ética.
1.2.2.1 Ética e educação familiar
Submetido à análise, o discurso produzido pelos alunos do Curso Normal
Superior apresentou uma regularidade discursiva, isto é, um dizer comum no que se
refere ao que significava ética para eles.
Apresentam-se e analisam-se a seguir, os excertos de discursos que apontam
essa regularidade discursiva.
Observe-se no excerto (doravante E) 1 como o enunciado de A34 caracteriza
a ética, ainda que indiretamente, como uma educação de base familiar: a chamada
educação “de berço”.
E01
A34 – É um conjunto de regras a serem respeitadas e passadas de
GERAÇÃO PARA GERAÇÃO.
Quando declara que as regras éticas a serem respeitadas são adquiridas e
passadas por “gerações”, seu discurso evidencia uma reprodução do que é dito em
família, embora tenha a ilusão de que ela é origem do seu dizer. Trata-se de um
interdiscurso, isto é, de um discurso que se faz sob o esquecimento número u que é
de ordem ideológica.
Observa-se que A34 tem um conceito de ética como prescrição de regras a
serem aprendidas de uma geração por outra. Nesse sentido, ela revela considerar
ética como um conjunto de regras a serem aprendidas no seio da convivência
familiar, portanto, é da ordem da educação no sentido valor moral da criança e do ser
humano em geral a ser aprendido e desenvolvido a partir do ensino dos pais.
64
Observe-se no E02, transcrito a seguir, como A10 apresenta um discurso
semelhante ao de A34 no que diz respeito ao que considera ética, com a
particularidade de que A10 explicita a palavra educação.
E02
A10 – É ter uma certa EDUCAÇÃO. São normas seguidas pelas
pessoas que buscam “o certo”.
Ao definir ética como uma certa educação, a passagem discursiva de A10
revela que também considera que a ética é de base familiar, é uma conseqüência das
normas vivenciadas em família. O sentido que atribui ao termo “educação” não é o
da educação formal, institucionalizada pelo Estado, mas o de “processo de
desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral da criança e do ser humano
em geral, visando à sua melhor integração individual e social” (Dicionário Aurélio).
Além disso, a aluna deixa subentendido o valor das normas avocadas
“conscientemente” pelas pessoas que objetivam a busca do “certo”. Embora seu
dizer, no que diz respeito à forma com que se desenvolve a ética, não explicite como
A34, para quem ela é prescritiva, A10 revela que considera a ética como normas
derivadas da educação, no sentido de processo de desenvolvimento da capacidade
moral e, como tal, de formação familiar. Não se trata, assim, como se pode notar, da
educação no sentido de estudo sistemático e formal.
No E03, apresentado a seguir, A02 revela em seu dizer um conceito de ética
como uma conduta inerente à educação, conceito esse que se assemelha ao de A34 e
ao de A10.
E03
A02 – É respeito, compromisso e sigilo para com o outro. A ética faz
parte da EDUCAÇÃO e EDUCAÇÃO é muito necessária.
Como se pode notar, para A02, ética e educação são características
constitutivas entre si: “é educado ser ético”, assim como “é ético ser educado”.
Se A10 conceitua a ética como normas seguidas por pessoas que procuram o
que é certo. A02 explicita e enumera o que considera o certo: É respeito,
compromisso e sigilo para com o outro.
65
Ao incluir em seu discurso valores morais como respeito, compromisso,
sigilo, com o outro, A02 revela acreditar que a ética se constitui nas trocas de valores
e experiências realizadas entre o indivíduo e o outro.
A menção ao outro em discurso revela a reprodução de um dizer ideológico
que perpassa a sociedade contemporânea, constituindo um dizer interdiscursivo: A02
profere imaginando que constitui um dizer que lhe pertence, quando, na verdade,
reproduz um dizer já existente.
Os valores mencionados constituiriam a ética que, para A02, fariam parte da
educação.
Em síntese, A02 também expõe em seu discurso um conceito de ética como
valor advindo da educação como processo de formação individual e, como tal, a
educação considerada familiar, a determinada pelo Aparelho Ideológico Familiar, e
não a formal, determinada pelo Aparelho Ideológico Escolar.
No E04, A 20, tal como em E01, E02, e E03, revela, em seu discurso, um
conceito de ética como valor advindo da educação familiar.
E04
A20 – É a EDUCAÇÃO que se tem ao próximo e a si mesmo. A ética é
fundamental para o convívio com os grupos.
Note-se como A 20, sendo mais explícita que A02 (E03), para quem a
educação que pressupõe a ética é muito necessária, aponta essa necessidade: A ética
é fundamental para o convívio com os grupos. Também à semelhança de A02, A20
enuncia o discurso ideológico do momento atual da consideração do próximo e do
grupo.
Observa-se no E05, abaixo transcrito, como A25 apresenta uma passagem
discursiva análoga à de E04 em que também define ética como “educação”; não a
educação formal, tratada como escolaridade, mas àquela adquirida por meio da
formação social a de cunho familiar.
E05
A25 – São costumes, princípios, EDUCAÇÃO, dedicação,
determinação, solidariedade. Quando uma professora critica outra
professora e revela o seu nome ela faltou com a ética profissional.
66
Esse conceito de que se trata de uma educação com o sentido de valores
aprendidos no meio familiar fica evidente em sua definição de ética. Os aspectos
apresentados no E05 revelam que, para A25, alguns valores morais são fundamentais
quando compartilhados socialmente. A25 explicita que ética, para ela, constitui
costumes, princípios, como dedicação e determinação, valores fundamentais para o
exercício da ética. Ao incluir nessa enumeração de valores a solidariedade, A25
revela deter um conceito de ética solidária, revelando reproduzir, sob o esquecimento
número um, um dizer ideológico que perpassa o momento atual. Mais do que a
“educação” que se tem ao próximo e a si mesmo como expõe A20, no excerto de
A25 fica patente o conceito da ética solidária tão propalada e incluída no discurso
empresarial e neoliberal. O traço de ética empresarial se explicita na passagem
Quando uma professora critica outra professora e revela o seu nome ela faltou com
a ética profissional com o qual ela ilustra o seu conceito de ética. Como se pode
notar, trata-se de um conceito de ética profissional.
Para A25, a educação está presente e se realiza por meio de uma “ética-
cidadã”.
Em síntese, a análise da passagem discursiva do E05 revela um conceito de
ética sob a perspectiva familiar nas referências de que ética é educação ou calcada
nesta; além disso, seu discurso apresenta características de teor social, por considerar
“o outro” e “os grupos”, como elementos significativos no processo de
desenvolvimento da ética.
A análise da regularidade discursiva mais evidente do corpus que se encerra
neste momento permite a conclusão de que as alunas do Curso Normal Superior
detêm o conceito de ética como valores desenvolvidos na convivência familiar, no
interior da instituição familiar.
Também é regular o conceito de ética como conjunto de valores a serem
ensinados pelos familiares aos filhos e, nesse sentido, detêm um conceito prescritivo,
aristotélico de ética.
A evocação do outro no conceito de ética que aparece em alguns dos excertos
desta seção de análise será abordado na seção seguinte.
67
1.2.2.2 A Ética e o outro
A análise do discurso das alunas do Curso Normal Superior revelou, uma
outra regularidade discursiva no que se refere ao significado que elas atribuem à
ética.
Apresentam-se, a seguir, as análises dos excertos de textos dos alunos que se
referem ainda, ao conceito de ética que detêm.
Analise-se o E06, recortado do discurso de A07 e abaixo transcrito:
E06
A07 – É sentimento de respeito a nós mesmos e aos outros, A ética é
fundamental aos seres humanos.
Observe-se como, embora conceitue ética, de uma maneira inconsistente,
A07 deixa perceber a crença na necessidade do estabelecimento de limites nos
procedimentos em relação aos outros. Mais detalhadamente, nota-se que A07
conceitua ética por meio de um dizer generalizado, uma vez que usa da palavra
respeito sem especificá-la, isto é, sem dizer em que consiste respeito, qual é o
sentido que ela atribui à palavra respeito. Determinada pelo esquecimento número 2
ou intradiscursivo, A07 mostra enunciar sob a ilusão de que a palavra respeito tem
apenas um sentido – o sentido que A07 detêm – quando essa palavra tem outros
sentidos. Em outras palavras, ela não especifica se respeito consiste na aceitação das
diferenças constitutivas de cada um ou na preservação dos limites das atitudes de
cada um. Essa imprecisão faz com que sua definição de ética fique vaga,
generalizada, própria do senso comum e, como tal, um conceito político de
convivência civilizada que se formou ao longo do tempo e é repetido por todos. Não
deixa, entretanto, de fazer pressupor a necessidade do estabelecimento de um limite
na relação com os outros.
Ao apresentar em seu discurso uma virtude moral como o respeito, A7
demonstra acreditar que a ética se estabelece na troca de valores consigo mesmo e
com o outro.
Observe-se, ainda, que a menção ao respeito a nós mesmos e aos outros
remete ao discurso largamente utilizado de que se deve o respeito a si mesmo e aos
outros e que é repetido por A07.
68
O conceito de ética para A07, assim, mostra-se ligado ao do respeito ao outro
(no seu sentido de próximo, de aquele com quem se convive) e a si mesmo,
evidenciando um discurso que se faz sob o esquecimento da determinação da
religiosidade e da moral social de ordem política que enuncia a necessidade da
limitação das liberdades para que seja possível uma convivência civilizada.
Verifica-se, no E06, um dizer pautado no dizer do “outro” (no sentido de
outras vozes), num dizer da Igreja, da sociedade e, como responsável pela inserção
dos filhos nessa sociedade, num dizer da família.
A presença do outro, nesta passagem discursiva, evidencia a reprodução de
um dizer já existente, embora a aluna julgue como seu. A07 enuncia sob a ilusão de
que ela é a origem do seu dizer, mas evidencia uma reprodução do que é dito
socialmente.
Analise-se, em seguida, o E07, um excerto do discurso de a13:
E07
A13 – É um conjunto de normas que controlam uma sociedade, que
distinguem o certo do errado, o moral do imoral. A ética existe para
nos impor limites e organizar nossas vidas de uma forma que seja
benéfica e justa a todos.
Observe-se como, se A07 deixava implícito o conceito de ética como
estabelecimento de limites sob a palavra respeito, A13 explicita o critério para esse
estabelecimento.
Percebe-se do excerto de A13 um discurso pautado na distinção do que é
certo e do que é errado, distinção esta que, para ela, corresponde ao estabelecimento
do que é moral e do que é imoral, um discurso marcadamente de origem familiar.
Assim como A07, A13 enuncia um discurso da valorização da virtude moral.
Quando A13 declara que A ética existe para nos impor limites e organizar
nossas vidas de forma benéfica e justa a todos, revela que acredita no valor dos
limites como uma condição para se viver em harmonia com os outros numa
sociedade e caracteriza o conceito que tem de ética como conjunto de regras
impostas.
Determinando à ética finalidade de impor limites e de organizar a vida, com
vista ao benefício e justiça para todos, uma vez que a convivência em sociedade só se
69
faz sob limitação das liberdades, a aluna evidencia um discurso de ordem ideológica,
historicamente construído, embora pense que ela é a origem do seu dizer.
Observe-se, no E08, transcrito a seguir, como A06 apresenta um discurso
cujo teor é semelhante ao de A13, no tocante às regras, normas e princípios como
uma necessidade para se viver bem em qualquer situação.
E08
A06 – Ter bom senso para saber viver bem, respeitando os valores, as
regras, normas, princípios em toda e qualquer situação.
Ao conceituar ética como ter bom senso, segundo seu discurso, A6 revela
considerar que a ética é uma conseqüência da observação das normas não somente
em família, mas também em sociedade, uma vez que implica “cautela, ponderação,
prudência, reserva”, sentidos que lhe são pressupostos.
Além disso, a aluna deixa subentendido em seu conceito que a ética é
fundamental para se viver bem.
Quando A6 menciona o respeito aos valores, às regras, às normas e aos
princípios, para saber viver bem, ela sugere crer na necessidade de “cautela,
ponderação, prudência, reserva” para escolher as atitudes corretas para os momentos
certos e, nesse sentido, entende-a como dependente de prescrições que lhe são
exteriores.
Observa-se, assim, que, tal como A07 e A13, A06 enuncia, esquecendo-se
que seu dizer é determinado pela família e pela sociedade e constitui uma memória
discursiva da política, isto é, de um dizer que se pensa natural e do que seja viver em
sociedade.
Analise-se, em seguida, o E09, recortado do discurso de A18, abaixo
transcrito:
E09
A18 – São os direitos e deveres sociais de cada ser humano.
Note-se também no discurso de A18 a referência à ética como limite, já que
direitos são limitados por deveres:
70
Quando a aluna caracteriza ética como sendo uma responsabilidade para com
seus atos, sugere deter um conceito de ética como compromisso também para com os
seus semelhantes, como enunciaram A07, A13 e A06. A análise desse excerto leva-
nos a concluir que A18 demonstra um conceito ético que transcende o ambiente sala
de aula, estendendo-o para uma vivência social mais abrangente, o que evidencia um
discurso de ordem política.
Analise-se, por fim, o E10, retirado do discurso de A17 e transcrito a seguir,
em que enuncia seu conceito sobre ética:
E10
A17 – É todo conhecimento que o ser humano tem em relação aos seus
valores e princípios, resgatando-os para o seu bem próprio e de toda
sociedade.
Observa-se, em E10, que A17 sugere deter como conceito de ética o
conhecimento dos valores e princípios, considerando-os, tal como o fizeram suas
colegas de sala, composta de limites que lhes são externas e impostas, revelando-se
um discurso político, historicamente construído, de que a convivência social só é
possível sob a observação desses limites.
Quando a aluna menciona o resgate dos valores e princípios para o seu
próprio bem e o de toda sociedade, ela dirige à ética o papel de criar “coesão” na
sociedade, “unidade” na divergência própria do discurso político, disseminado na
sociedade e incutido pela família.
A análise da passagem discursiva do E10 revela um conceito de ética de teor
marcadamente político-social, por considerar o “outro” como elemento significativo
no processo de desenvolvimento da ética.
A análise do discurso das alunas da Escola Normal Superior, no que diz
respeito ao conceito que detêm sobre ética, neste item de análise que se encerra,
revelou que compartilham a crença de que a ética constitui a obediência a limites
exigida pela convivência em sociedade, portanto, com outros.
A reincidência de palavras e expressões equivalentes, tais como bom senso,
lealdade, compromisso, aceitação, harmonia, para definir ética, remetem a um
conceito assinalado por princípios e valores, também regras e limites.
71
A representação de ética que se depreende dos excertos demonstra refletir
uma formação sócio-cultural desenvolvida na convivência com família, escola e
sociedade como um todo, revelando, enfim, uma formação atravessada pela ideologia
sócio-historicamente construída.
A regularidade, isto é, o dizer que se repetiram nesse item de análise, mostra
um discurso que se realiza sob o esquecimento número um de ordem ideológica o
qual implica a existência de outros dizeres. Os alunos pensam que possuem um dizer
próprio, quando, na verdade, reproduzem um discurso de “outros”, isto é, um
interdiscurso proveniente de uma formação social, um dizer contemporâneo cujas
características como respeito ao próximo, honestidade, e cidadania, fazem constituir
um conceito de ética fundamentado na solidariedade, determinado por uma memória
discursiva do que seja viver em sociedade.
72
CONCLUSÃO DO CAPÍTULO 2 DA PARTE II
A análise do discurso das alunas do Curso Normal Superior da FAI, no que
diz respeito à representação, isto é, ao que entendem como ética, que se encerra neste
momento da dissertação permite-nos a conclusão de que a entendem como valores
derivados da educação familiar e limites estabelecidos pela vida em sociedade.
A representação de ética que as alunas detêm mostrou-se constituída das
várias vozes que ressoam em seus discursos: os dizeres da Família, da Igreja e da
Sociedade.
Todas essas vozes que entrecortam os dizeres das alunas e das quais elas são
constituídas levam à conclusão de que entendem a ética como prescrições de regras
que lhes são impostas e, como tal, que lhes são exteriores e lhes determinam limites
em seus procedimentos e atitudes na convivência com os semelhantes em sociedade.
Revela-se, assim, um conceito sócio-histórico e, portanto, ideológico da ordem da
memória discursiva política que é evocada e que a mantém.
73
CAPÍTULO 2 - ANÁLISE DE CORPUS RELATIVO AOS
TEXTOS PRODUZIDOS PELOS ALUNOS-PROFESSORES
Esta seção de análise apresenta o caminho percorrido pelas alunas do Instituto
Superior de Educação – FAI – Santa Rita do Sapucaí, MG, para a constituição do
conceito de ética.
A fim de verificar em que medida os conceitos de caráter filosófico,
ensinados e assimilados em sala-de-aula passaram a fundamentar o texto dos alunos,
realizou-se um trabalho junto ao 3º e 5º períodos do Curso Normal da referida
instituição.
Num 1º momento foi pedido aos alunos que fizessem a leitura da fábula “A
raposa e a Cegonha” e a escrita da sua opinião sobre a relação que a narrativa
estabelecia com o mundo real. Após a escrita (sobre a leitura da fábula) foi possível
observar que os alunos realizaram exclusivamente uma interpretação textual.
Dando continuidade ao trabalho junto aos alunos-professores, foi oferecida
num 2º momento uma resenha da obra “Ética à Nicômaco” de Aristóteles,
oportunizando os alunos à leitura, estudo e discussões interativas em sala-de-aula.
Depois de responderem à pergunta “O que é ética?”, escreveram livremente sobre o
que entenderam do texto filosófico.
Encerrando as etapas do trabalho acima, os alunos realizaram a leitura de uma
2º fábula: “A Cigarra e a Formiga” e de forma semelhante ao exercício de produção
realizado com a fábula anterior, foram instruídos à escrita sobre a relação que essa
fábula estabelecia com a vida real.
A fábula constitui um gênero versátil que é constitutivo da infância letrada
universal. Invariavelmente, nas culturas letradas, as fábulas começam a ser
apresentadas nos lares e depois aparecem nas fases de aquisição de leitura e de
escrita. Etmologicamente derivada do termo latino fábùla,ae, significando “conversa,
boatos, tipo de narração alegórica, conversação, relato”, fábula constitui um gênero
discursivo que se caracteriza por constituir uma “narrativa curta, em prosa ou verso,
que tem entre as personagens animais que agem como seres humanos, e que ilustra
um preceito moral” (Dicionário Houaiss).
É de conhecimento de todos que, nas famílias que mantêm a tradição de se
contarem histórias para as crianças, a fábula também se encontra presente. Ainda, faz
74
parte do imaginário popular a função que a fábula cumpre no ensino dos
comportamentos considerados ideais pela sociedade e pelo momento sócio-histórico
em que se vive.
O ensino da fábula como um dos gêneros literários para alunos do nível de
ensino fundamental já constitui uma tradição. Suas formas de abordagem parecem
ser idiossincráticas, isto é, cada professor aborda o seu ensino da forma como
consideram mais aproveitável. Dado o seu caráter constitutivamente moral, as
fábulas demonstram-se também oportunas para o ensino dos temas transversais
recomendados pelos PCN. É por essa razão que a abordagem do ensino das fábulas
por professoras em formação é pressuposta.
Esta dissertação desloca o foco no ensino de fábulas para a aprendizagem e
desenvolvimento de leitura de fábulas por professoras em formação.
Nesta primeira fase da atividade de leitura, foi solicitado às alunas que lessem
e, em seguida, escrevessem suas impressões pessoais sobre a leitura de uma
determinada fábula, neste caso, a da “A Raposa e a Cegonha”, transcrita a seguir:
75
“A RAPOSA E A CEGONHA”
Esopo
A raposa e a cegonha mantinham boas relações e pareciam ser amigas
sinceras.
Certo dia, a raposa convidou a cegonha para jantar e, por brincadeira,
botou na mesa apenas um prato raso contendo um pouco de sopa. Para ela, foi
tudo muito fácil, mas a cegonha pode apenas molhar a ponta do bico e saiu dali
com muita fome.
- Sinto muito, disse a raposa, parece que você não gostou da sopa.
- Não pense nisso, respondeu a cegonha. Espero que, em retribuição a esta
visita, você venha em breve jantar comigo.
No dia seguinte, a raposa foi pagar a visita. Quando sentaram à mesa, o
que havia para o jantar estava contido num jarro alto, de pescoço comprido e
boca estreita, no qual a raposa não podia introduzir o focinho. Tudo o que ela
conseguiu foi lamber a parte externa do jarro.
- Não pedirei desculpas pelo jantar, disse a cegonha, assim você sente no próprio
estômago o que senti ontem.
Moral: Quem com ferro fere, com ferro será ferido.
FASE1.
Apresenta-se abaixo transcrito o texto redigido pela aluna 4, após a leitura
livre (doravante codificada como T1A, relativo a texto 1 da aluna)
1
da fábula “A
Raposa e a Cegonha”:
1
LEGENDA;
T1A: texto escrito por aluna antes da leitura de teorias sobre ética.
H: Hypomnémata ou anotação de aluna.
T2A: texto escrito por aluna depois da leitura de teorias sobre ética.
76
E01
T1A4 – A relação que existe entre a fábula (A raposa e a cegonha) e a
vida real é que existem pessoas que são vingativas como fez a cegonha
com a raposa e também existem pessoas que brincam maldosamente
com o sentimento e o jeito da pessoa ser, como a raposa fez com a
cegonha.
A atitude dos animais foi impensada e maldosa, onde um queria
prejudicar o outro. Não é uma atitude justa, pois um poderia mostrar
ao outro que as diferenças existem e que em determinadas situações é
preciso adaptar-se às diferenças alheias, para que ambos não sejam
prejudicados.
Como se pode observar, no primeiro parágrafo do texto, T1A4 faz uma mera
interpretação da fábula no sentido de constatar a vingança da cegonha em devolver à
raposa o tratamento que dela recebera e a existência de pessoas maldosas como a
raposa.
No segundo parágrafo, julga os comportamentos dos animais, num primeiro
momento, de forma generalizada, isto é, sem estabelecer distinções entre as atitudes
da raposa e da cegonha, afirmando que ambos se prejudicavam entre si, deixando de
estabelecer a distinção do caráter vingativo da cegonha e o maldoso da raposa. Em
certa medida, contraria a análise anterior ao afirmar: Não é uma atitude justa, pois
um poderia mostrar ao outro que as diferenças existem e que em determinadas
situações é preciso adaptar-se às diferenças alheias, para que ambos não sejam
prejudicados. Percebem-se, em sua análise, menções que remetem ao paradigma
ético do respeito às diferenças tão disseminado na sociedade contemporânea como o
valor predominante, uma certa ordem do discurso contemporâneo e presente em
campanhas, na campanha da Igreja e, sobretudo, na nova diretriz pedagógica da
inclusão da qual A4 faz parte. Essa contradição revela A4 como um sujeito que
enuncia sob o esquecimento número 2, isto é, sob a ilusão de que tem controle sobre
o que fala, de que seu dizer é coerente e compreensível por todos. Revela também
como um sujeito que enuncia sob o esquecimento número 1, isto é, sob a ilusão de
que o dizer lhe pertence, quando, na verdade, repete um discurso ideológico, um
discurso já existente e disseminado socialmente.
77
FASE2.
Após a fase de leitura e comentários livres em forma de texto, numa segunda
fase da atividade de leitura do gênero discursivo fábula, apresentou-se às professoras
um texto teórico relativo à obra “Ética a Nicômaco” de autoria de Aristóteles.
Transcreve-se abaixo o fragmento dessa obra:
“ÉTICA A NICÔMACO” (Resenha)
2.1 O objeto do agir humano
A primeira pergunta é sobre o que é o bom ou o bem. Se o livro inicia com o questionamento,
há também uma afirmação: todo o indivíduo, assim como toda ação e toda escolha, tem em mira um
bem e este bem é aquilo a que todas as coisas tendem.
O fim de nossas ações é o Sumo Bem, mas,
como o conhecimento de tal fim tem grande importância para nossa vida, devemos determiná-lo para
saber de qual ciência o Sumo Bem é objeto.
Tal ciência é a ciência mestra (que é a Política) e seu estudo caberá à Ética. É objeto da
política porque as ações belas e justas admitem grande variedade de opiniões, podendo até ser
consideradas como existindo por convenção, e não por natureza. O fim que se tem em vista não é o
conhecimento do bem, mas a ação do mesmo; e esse estudo será útil àqueles que desejam e agem de
acordo com um princípio racional, por isso não será útil ao jovem que segue suas paixões e não tem
experiência dos fatos da vida.
Mas, se todo o conhecimento e todo trabalho visam a algum bem, qual será o mais alto de
todos os bens? O fim certamente será a felicidade, mas o vulgo não a concebe da mesma forma que o
sábio. Para o vulgo, a felicidade é uma coisa óbvia como o prazer, a riqueza ou as honras; aqueles
que identificam a felicidade com o prazer vivem a vida dos gozos; a honra é superficial e depende
mais daquele que dá do que daquele que recebe; a riqueza não é o sumo bem, é algo de útil e nada
mais.
Dessa forma, devemos procurar o bem e indagar o que ele é. ora, se existe uma finalidade
para tudo o que fazemos, a finalidade será o bem. A melhor função do homem é a vida ativa que tem
um princípio racional.
Consideramos bens aquelas atividades da alma, a felicidade identifica-se com a
virtude, pois à virtude pertence à atividade virtuosa. No entanto, o Sumo Bem está colocado no ato,
porque pode existir um estado de ânimo sem produzir bom resultado:
“Como no homem que dorme ou que permanece inativo; mas a atividade virtuosa, não: essa
deve necessariamente agir, e agir bem".
Sendo a felicidade a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo e tendo-na
identificado como uma atividade da alma em consonância com a virtude, não sendo propriamente a
78
felicidade a riqueza, a honra ou o prazer, etc.; a felicidade necessita igualmente desses bens exteriores,
porque é impossível realizar atos nobres sem os meios:
“O homem feliz parece necessitar também dessa espécie de prosperidade; e por essa razão,
alguns identificam a felicidade com a boa fortuna, embora outros a identifiquem com a virtude".
Por isso, pergunta-se se a felicidade é adquirida pela aprendizagem, pelo hábito ou
adestramento; se é conferida pela providência divina ou se é produto do acaso. Se é a felicidade a
melhor dentre as coisas humanas, seguramente é uma dádiva divina – mesmo que venha como um
resultado da virtude, pela aprendizagem ou adestramento, ela está entre as coisas mais divinas. Logo,
confiar ao acaso o que há de melhor e mais nobre, seria um arranjo muito imperfeito. A felicidade é
uma atividade virtuosa da alma; os demais bens são a condição dela, ou são úteis como instrumentos
para sua realização.
2.2 As virtudes
Há duas espécies de virtudes: as intelectuais e as morais. As virtudes intelectuais são o
resultado do ensino, e por isso precisam de experiência e tempo; as virtudes morais são adquiridas em
resultado do hábito, elas não surgem em nós por natureza, mas as adquirimos pelo exercício, como
acontece com as artes:
“(...) os homens tornam-se arquitetos construindo e tocadores de lira tangendo seus
instrumentos. Da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos".
Também pelas mesmas causas e pelos mesmos meios que se gera e se destrói toda a virtude,
assim, como a arte: “de tocar o instrumento surgem os bons e os maus músicos”.
Com as virtudes dá-se o mesmo. É pelos atos que praticamos, nas relações com os homens,
que nos tornamos justos ou injustos. Por isso, faz-se necessário estar atento para as qualidades de
nossos atos; tudo depende deles, desde a nossa juventude existe a necessidade de habituar-nos a
praticar atos virtuosos.
Ao nosso estudo, não interessa tanto investigar o que é a virtude, mas, estudar a virtude para
tornar-nos bons. Mas consideremos que em nossa natureza o excesso e a falta são destrutivos:
“Tanto a deficiência como o excesso de exercício destroem a força; e da mesma forma, o alimento e a
bebida que ultrapassam determinados limites, tanto para mais como para menos, destroem a saúde".
Também nas virtudes, o excesso ou a falta são destrutivos, porque a virtude é mais exata que
qualquer arte, pois possui como atributo o meio-termo – mas é em relação à virtude moral; é ela que
diz respeito a paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e meio-termo. O excesso é uma
forma de erro, mas, o meio termo é uma forma digna de louvor; logo, a virtude é uma espécie de
mediana.
Conquanto, cabe frisar que é meio-termo entre dois vícios, um por excesso e outro por falta.
Mas, nem toda ação e nem toda paixão admitem meio-termo; há algumas ações ou paixões que
implicam em maldade, como a inveja. Elas são más em si mesmas, nelas não há retidão, mas erro. É
absurdo procurar meio-termo em atos injustos; do excesso ou da falta, não há meio-termo.
Como nossa tarefa de estudo das virtudes tem como resultado a ação, e não o conhecimento
da virtude, é necessário frisar a prática dos atos. É pela prática dos atos justos que se gera o homem
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justo, é pela prática de atos temperantes que se gera o homem temperante; é através da ação que
existe a possibilidade de alguém tornar-se bom:
“Mas a maioria dos homens não procede assim. Refugiam-se na teoria e pensam que estão
sendo filósofos e se tornarão bons dessa maneira. Nisso se portam como enfermos que escutassem
atentamente seus médicos, mas não fizessem nada do que estes lhe prescrevem".
2.3 A estrutura do ato moral
A virtude relaciona-se com paixões e ações, mas, um sentimento ou uma ação pode ser
voluntária ou involuntária. Às paixões ou ações voluntárias dispensa-se louvor e censura, enquanto as
involuntárias merecem perdão e, às vezes, piedade; por isso, é necessário distinguir entre o voluntário
e involuntário. São involuntárias aquelas ações que ocorrem sob compulsão e ignorância, é
compulsório ou forçado aquilo em que o princípio motor está fora de nós e para tal em nada contribui
a pessoa que age ou sente a paixão. Há atos praticados para evitar males maiores:
"Se um tirano ordenasse a alguém um ato vil e esse, tendo pais e filhos em poder daquele,
praticasse o ato para salvá-los de serem mortos".
Tais atos assemelham-se aos voluntários pelo fato de serem escolhidos, e o princípio motor
estar no agente, por estar na pessoa fazer ou não fazer. Ações de tal espécie são voluntárias, mas, em
abstrato talvez sejam involuntárias, já que ninguém as escolheria por si mesmas. As ações são
forçadas quando as causas encontram-se externas ao agente e ele em nada contribuiu. O voluntário
parece ser aquilo cujo motor se encontra no próprio agente que tenha conhecimento das circunstâncias
particulares do ato.
Também o ato de escolher parece ser voluntário, mas não se identifica ao voluntário porque
seu conceito é mais extenso. Os atos praticados sob o impulso do momento podem ser voluntários,
mas não escolhidos, a escolha não é comum às criaturas irracionais, pois essas agem segundo seu
apetite; a escolha envolve um princípio racional e o pensamento, ela é aquilo que colocamos diante de
outras coisas.
O objeto da escolha é algo que está em nosso alcance e este é desejado após a deliberação. A
escolha é, portanto, um desejo deliberado. Mas como o fim é aquilo que desejamos e o meio aquilo
que deliberamos e escolhemos, as ações devem concordar com a escolha e serem voluntárias. O
exercício da virtude diz respeito aos meios, logo, a virtude está em nosso poder de escolha. Em
outras palavras, podemos escolher entre a virtude e o vício, porque se depende de nós o agir, também
depende o não agir. Depende de nós praticarmos atos nobres ou vis, ou então, depende de nós sermos
virtuosos ou viciosos: "(...) O homem é um princípio motor e pai de suas ações como o é de seus
filhos".
Os atos que encontram-se em nós, também devem estar em nosso poder e serem voluntários.
É pelo exercício de atividades sobre objetos particulares que se formam as disposições de caráter. Não
menos irracional é supor que um homem que age injustamente não deseja ser injusto, ou aquele que
corre atrás de todos os prazeres não deseja ser intemperante:
"Podemos supor o caso de um homem que seja enfermo voluntariamente, por viver na
incontinência e desobedecer aos seus médicos. Nesse caso, a princípio dependia dele o não ser
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doente, mas agora não sucede assim, porquanto virou as costas à sua oportunidade. Tal como para
quem arremessou uma pedra, já não é possível recuperá-la; e, contudo, estava em nosso poder não
arremessar, visto que o princípio motor encontrava-se no agente".
O mesmo acontece com os vícios, que a princípio dependiam dos homens não se tornarem
viciosos, mas foi por sua própria vontade e escolha que tornaram-se assim. Agora, já não é possível
ser diferente. Fica esclarecido que as virtudes são voluntárias, porque somos senhores de nossos atos
se conhecemos as circunstâncias, e estava em nosso poder o agir ou o não agir de tal maneira. Os
vícios também são voluntários, porque o mesmo se aplica a eles.
2.4 As Virtudes Morais:
01. A coragem
(andrêia)- é meio-termo em relação ao sentimento de medo e de confiança.
As coisas que tememos são terríveis e as qualificamos como males. Nós tememos todos os
males, e temer certas coisas é até justo e nobre – é vil não temê-las. A pobreza ou a doença não
devemos temer, nem aquelas coisas que procedem do vício ou aquelas que não dependem de nós; é
covarde aquele que não suporta os insultos ou a inveja como deve. A bravura relaciona-se com as
coisas mais nobres como a morte na guerra, e bravo é aquele que se mostra destemido em face a uma
morte honrosa.
Os bravos, embora temam aquelas coisas que estão acima das forças humanas, caracterizam-
se por enfrentá-las como se deve. Mas aquele que diz não ter medo, que é insensível ao que realmente
é terrível, é o homem temerário; ele é um simulador de coragem, porque deseja parecer corajoso. Em
contrapartida, aquele que excede no medo é covarde, porque ele teme o que não deve temer, falta-lhe
confiança e é dado ao desespero por temer certas coisas.
A covardia e a temeridade são a carência e o excesso e a posição correta é a bravura.
02. A Temperança
(Sofrosíne)- é o meio-termo em relação aos prazeres e dores.
As espécies dos prazeres com que se relaciona são os prazeres corporais. Mas não se
relaciona aos objetos da visão, nem da audição ou do olfato. A temperança e a intemperança
relacionam-se aos prazeres do tato e do paladar.
Ao intemperante somente interessa o gozo do objeto em si, no comer e beber e na união dos
sexos. Por causa dos prazeres, a intemperança é, dentre os vícios, a mais difundida; e é motivo de
censura porque nos domina, não como homens, mas como animais.
O apetite é natural, mas o engano é o excesso. Os intemperantes excedem com o que não
devem, e mais do que devem.
O excesso em relação aos prazeres é intemperança e é culpável, porque, nesse estado, somos
levados pelo apetite. O temperante, que ocupa a posição mediana, não aprecia o que não deve, nem
nada disso em excesso. Os apetites devem ser poucos e moderados, e não podem opor-se, de modo
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algum, ao princípio racional. No homem temperante, o elemento apetitivo harmoniza-se ao racional,
o que ambos têm em mira é o nobre.
03. A Liberalidade
(Eleuteriótes)- é o meio-termo no dar e no receber dinheiro. O excesso é a prodigalidade e a
deficiência é a avareza.
O homem liberal é louvado no tocante a dar e receber riquezas, mas é especialmente louvado
aquele que sabe dar suas riquezas. O avarento quer o dinheiro mais do que deve e o pródigo esbanja a
riqueza com seus prazeres. Quem melhor usa a riqueza é aquele que possui a virtude a ela associada:
o homem liberal.
O homem liberal dá as quantias que convém, às pessoas que convém e na ocasião que
convém, com todas as demais condições que acompanham a reta ação de dar, com prazer e sem dor.
A liberalidade é uma disposição de caráter daquele que dá.
A avareza é deficiente no dar e excede no receber; a prodigalidade excede no dar e no não
receber, esses não tardam em exaurir suas posses porque dão em excesso.
04. A Magnificência
(Megaloprépeia)- é um meio-termo quanto ao dinheiro dado em grandes quantias; o excesso
é a vulgaridade e o mau gosto, a deficiência é a mesquinhez.
É uma virtude relacionada com a riqueza, mas se estende apenas às ações que envolvem
gastos. A magnificência é um gasto apropriado de grandes quantias, logo, ela deve ser apropriada ao
agente e às circunstâncias.
Sendo os gastos do homem magnificente vultuosos e apropriados, tal serão os seus
resultados. Um grande dispêndio com grandes resultados. A magnificência é um atributo dos gastos
honrosos, como os que se relacionam a ofertas, construções e sacrifício aos deuses. Por isso o homem
pobre não pode ser magnificente, porque não tem os meios de sê-lo.
A deficiência a essa disposição de caráter é a mesquinhez; este fica aquém da medida em
tudo, em tudo o que faz estuda a maneira de gastar menos e lamenta até o pouco que tem.
O excesso é a vulgaridade, porque gasta além do que é justo. Por exemplo, dá um jantar de
amigos na escala de um banquete de núpcias.
05. O Justo Orgulho
(Megalopskhia)- é o meio-termo em relação à honra e à desonra. O excesso é a ‘vaidade oca’
e a deficiência é a humildade indébita.
O Justo Orgulho também pode ser chamado Magnanimidade ou Respeito Próprio. O homem
magnânimo é aquele cujos méritos e pretensões são igualmente elevados, por isso essa virtude
pressupõe outras, realçando-as. O homem magnânimo reclama a honra, mas aquela honra conferida ao
homem bom lhe dará apenas prazer moderado, porque o Justo Orgulho relaciona-se com a honra em
grande escala.
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Ele é um extremo com respeito à grandeza de suas pretensões, mas é meio-termo na justiça
de suas pretensões. O objetivo do homem magnânimo é a honra, e a respeito dela que ele é como
deve ser.
O que fica aquém é o homem indevidamente humilde, que sendo digno de coisas boas, rouba
de si o que merece e não se julga digno de coisas boas. Aqueles que ultrapassam a medida são
vaidosos; todos que ignoram a si mesmos, aventuram-se a honrosos empreendimentos sem serem
dignos para tal e logo fracassam.
06. Anônimo
O homem que excede no desejo à honra é o ambicioso (Afilotimia), o que fica aquém é
desambicioso (Filotimia), o intermediário é o Anônimo.
A honra pode ser desejada mais ou menos do que se convém, ou da maneira e das fontes que
se convém. O homem ambicioso deseja a honra mais que convém, o desambicioso não quer se
honrado e fica aquém da medida.
A esta disposição de caráter o que se louva é um meio-termo no tocante à honra.
07. A Calma
(Praótes)- é o meio-termo em relação à cólera; aquele que excede é o irascível, o que fica
aquém é o pacato.
Louva-se o homem que se encoleriza justificadamente, tal homem tende a não deixar-se
perturbar nem guiar-se pela paixão, mas ira-se da maneira, com as coisas e no tempo prescrito.
A deficiência é a pacatez, e essas pessoas não se encolerizam com coisas que deveriam
excitar sua ira; também são chamados de tolos e insensíveis.
O excesso é o homem irascível, que se encoleriza com coisas indevidas e mais do que
convém.
08. A Veracidade
(Alétheia)- é o meio-termo no tocante à verdade, o exagero é a jactância e o que a subestima
é a falsa modéstia.
09. A Pessoa Espirituosa ou Espírito
(Eutrapelia)- é o meio-termo na aprazibilidade no proporcionar divertimento. O excesso é a
chocarrice e a deficiência a rusticidade.
10. A Amabilidade
(Filía)- é o meio-termo na disposição de agradar a todos de maneira devida e amável; o
excesso é o obsequioso se não tiver propósito, e lisonjeiro se visa a um interesse próprio; a
deficiência é a pessoa mal humorada.
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11. A Modéstia
(Aidémôón)- é o intermediário nas paixões e relativo a elas; aquele que excede é o acanhado
e este se envergonha de tudo, enquanto aquele que mostra deficiência é o despudorado e não se
envergonha de coisa alguma.
12. A Justa Indignação
(Némesis)- é o meio-termo entre a inveja e o despeito, e refere-se à dor ou prazer da boa ou
má fortuna dos outros. O excesso é a inveja, e a deficiência é o despeito.
13. A Justiça
(Dicaiosíne)- nela faz-se necessário distinguir as duas espécies e mostrar em que sentido cada
uma delas é um meio-termo.
A justiça é a disposição de caráter que torna as pessoas propensas a fazer o que é justo e a
desejar o que é justo. Dessa forma, a justiça é uma virtude completa ou é muitas vezes considerada a
maior das virtudes. É uma virtude completa por ser o exercício atual da virtude completa, isto é,
aquele que a possui pode exercer sua virtude sobre si e sobre o próximo. Por isso se diz que somente a
justiça, entre todas as virtudes, é o bem do outro, visto que é possível fazer o que é vantajoso a um
outro. O melhor dos homens é aquele que exerce sua virtude para com o outro, pois essa tarefa é a
mais difícil.
Há dois tipos de justiça, uma que se manifesta na distribuição das honras, de dinheiro entre
aqueles que têm parte na constituição; e outra, que tem um papel corretivo nas transações entre os
indivíduos; ela se divide em transações voluntárias e involuntárias.
Há quem defenda outro tipo de justiça, que não se enquadra nas citadas acima, que seria a
reciprocidade. A reciprocidade não é justiça, porque pagar o mal com o mal ou o bem com o bem faz
parte das ações dos cidadãos, e não caracteriza o agir justo, salvo em alguns casos.
A justiça política divide-se em natural e legal. A natural é aquela que tem a mesma força em
toda parte; a legal é a justiça estabelecida. Alguns pensam que toda justiça é estabelecida porque há
alterações nas coisas percebidas como justas, e se fossem naturais, teriam que ser imutáveis, como o
fogo que arde em toda a parte. No entanto, ambas as espécies de justiça são mutáveis, as coisas justas
por convenção assemelham-se a medidas, que não são iguais em toda parte.
No tocante à justiça, cabe destacar que é o caráter voluntário ou involuntário que determina o
justo. O homem somente é justo quando age de maneira voluntária, e se age involuntariamente não é
justo nem injusto, a não ser por acidente.
2.5 As Virtudes intelectuais
A alma humana possui duas partes: a que tem um princípio racional e a privada de razão. A
parte racional da alma se divide em científica (direcional ou prática) e calculativa (especulativa e
teórica). A calculativa é uma parte da alma que concebe um princípio racional, ela versa sobre coisas
universais e teóricas, que não podem ser a não ser aquilo que são. O objeto da parte calculativa é a
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verdade, logo, para o conhecimento especulativo o bem se identifica com o verdadeiro e o mal com o
falso.
A alma possui três elementos: a sensação, a razão e o desejo. A sensação não controla a
ação, e isto pode ser percebido nos animais que têm sensação, mas não produzem ação. A razão e o
desejo determinam a ação, entretanto, de modo diferente, já que a virtude moral é uma disposição para
a escolha; contudo, ela envolve o desejo por um fim e a razão descobre os meios próprios para esse
fim:
"A origem da ação é a escolha, e da escolha é o desejo e o raciocínio com um fim em vista.
Eis aí por que a escolha não pode existir nem sem razão nem sem intelecto, nem sem uma disposição
moral".
O puro pensamento nada anima, somente possui um poder animador assim dirigido para um
fim; o homem, visto como um autor de ação é uma união do desejo com a razão. A virtude de uma e
de outra, devem constituir-se aquilo que permite chegar à verdade.
As disposições, pelas quais a alma possui a verdade, são cinco: a arte, o conhecimento
científico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva.
1. O conhecimento científico (episteme)
Seu objeto é o necessário e eterno; toda ciência pode ser ensinada e seu objeto aprendido. O
conhecimento científico é um estado que nos torna capaz de demonstrar, é quando um homem tem
certa espécie de convicção, além de conhecer os pontos de partida, que possui conhecimento
científico. É uma disposição em virtude da qual demonstramos.
2. A Arte (tekné)
É idêntica a uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocínio. Toda arte visa à
geração e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa que tanto pode
ser como não ser, e cuja origem está no que produz, e não no que é produzido. A arte não se ocupa
nem com as coisas que são ou que se geram por necessidade, nem com as que fazem de acordo com a
natureza. A arte é uma questão de produzir e não de agir.
3. A Sabedoria Prática (phrónesis)
É característica de um homem que delibera bem sobre o que é bom e conveniente para ele.
Mas o homem com essa sabedoria não procurar coisas boas somente para si, mas sabe deliberar sobre
aquelas coisas que contribuem para a vida boa em geral.
A sabedoria pratica é uma capacidade verdadeira e raciocinada de agir com respeito às coisas
que são boas ou más para o homem.
4. A Razão Intuitiva (nõus)
Consiste aquilo pelo qual aprendemos as últimas premissas de onde parte a ciência; ela
aprende os primeiros princípios. Seu método é a indução, que apreende a verdade universal e a partir
disso aparece como evidente a si.
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5. Sabedoria Teorética. (sofia)
A sabedoria é a razão intuitiva combinada com o conhecimento científico, orientada para
objetos mais elevados. É, dentre as formas de conhecimento, a mais perfeita; superior à sabedoria
prática que tem como objeto as coisas humanas e diz respeito à ação; deveríamos possuir ambas as
espécies de sabedoria, mas de preferência a sabedoria teorética.
Depois de haver classificado as virtudes intelectuais, tentaremos uni-las em torno de um
objetivo comum:
"Ora, todas as disposições que temos considerado convergem, como era de se esperar, para
o mesmo ponto, pois quando falamos de discernimento, de inteligência, de sabedoria prática, e de
razão intuitiva, atribuímos às mesmas pessoas a posse do discernimento, o terem alcançado a idade
da razão, e serem dotados de inteligência e de sabedoria prática".
Todas essas faculdades giram em torno de coisas imediatas, e o homem inteligente é aquele
capaz de julgar as coisas com que se ocupa a sabedoria prática. Pois não só o homem dotado de
sabedoria prática deve ter conhecimento dos fatos particulares, mas também a inteligência e o
discernimento versam sobre coisas a serem feitas; a razão intuitiva também se ocupa de coisas
imediatas.
Aristóteles volta-se agora ao problema da utilidade da sabedoria teorética e prática. Neste
contexto surgem três questões.
1º: Já que a sabedoria filosófica não considera nenhuma das coisas que tornam o homem
feliz, e a sabedoria prática, embora trate dessas coisas, para que precisamos dela? A sabedoria prática
é uma disposição da mente e é característica de um homem bom e não nos tornamos mais capazes de
agir pelo fato de conhecê-las. .
Se dissermos que o objetivo da sabedoria prática é tornar o homem bom, ela não terá
nenhuma utilidade para aqueles que já são bons:
"... e, por outro lado, de nada serve ela (sabedoria prática) para os que não possuem virtude.
Com efeito, nenhuma diferença faz que eles próprios tenham sabedoria prática ou que obedeçam a
outros que a têm, e seria suficiente fazer o que costumamos fazer com respeito à saúde: embora
desejemos gozar saúde, não nos dispomos por isso a aprender a arte da medicina".
2º: Pois, quanto aos que não são bons, esses podem consultar um homem sábio, da mesma
maneira como procedemos com o médico, em vez de tentarem eles serem sábios? 3º: Será que a
sabedoria filosófica, sendo inferior à prática, tem autoridade sobre a última?
A resposta é: 1º- Ambas as formas de sageza produzem felicidade, simplesmente pelo fato de
serem virtudes:
"Antes de tudo, diremos que essas disposições de caráter devem ser dignas de escolha
porque são virtudes das duas partes da alma respectivamente, e o seriam ainda que nenhuma delas
produzisse o que quer que fosse".
2º- Elas, de fato, produzem algo, não como a arte médica produz saúde, mas como a saúde
produz saúde. Assim a sabedoria filosófica produz felicidade, porque é parte da virtude inteira:
"Ambas as formas de sageza produzem felicidade, pois são a sua causa formal, distinta da
causa eficiente".
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3º- A sabedoria prática leva-nos a escolher o melhor fim a atingir, também a escolher os
justos meios; no entanto, a sabedoria prática não pode existir independente da virtude. O fim que nos
propomos alcançar, seja bom ou mau, não consiste numa sabedoria prática, mas na inteligência. Mas,
desde que o fim seja justo, e isso é tarefa da virtude, a inteligência transforma-se em sabedoria prática:
"Por outro lado, a obra de um homem só é perfeita quando está de acordo com a sabedoria
prática e com a virtude moral; esta faz com que seja reto o nosso propósito; aquela, com que
escolhamos os devidos meios".
Podemos estabelecer outra relação entre os dois problemas: 1- que a virtude não é
simplesmente uma sabedoria (como sustentava Sócrates), mas implica a sabedoria prática. 2- embora
as virtudes naturais possam existir isoladas umas das outras, as virtudes morais não, pois qualquer
virtude moral implica uma sabedoria prática, e esta implica todas as virtudes:
E desta forma podemos refutar o argumento dialético de que as virtudes existem
separadamente uma das outras, e o mesmo homem não é perfeitamente dotado pela natureza para
todas as virtudes, de modo que poderá adquirir uma delas sem ter ainda adquirido outra. “Isso é
possível no tocante às virtudes naturais, porém não aquelas que levam a qualificar um homem
incondicionalmente de bom; pois a presença de uma só qualidade, a sabedoria prática, lhe serão
dadas todas as virtudes”.
A relação entre a sabedoria moral com a intelectual é estabelecida de modo abreviado. É
verdade que é a sabedoria prática que determina os estudos em qualquer estado, mas ao fazê-lo ela não
procede em vista da sabedoria teorética, mas em vista de seus interesses:
"Mas nem por isso a domina a sabedoria filosófica, isto é, a parte superior de nossa alma,
assim como a arte médica não domina a saúde, mas fornece só meios de produzi-la".
CONCLUSÃO
É extremamente enriquecedor estudar e pesquisar o tema da ética Aristotélica. A importância
da Ética à Nicômaco, aqui exposta, reside exatamente na sua primazia: foi o primeiro tratado sobre o
agir humano da história, daí sua inegável importância para a história da filosofia. Foi possível, com
este trabalho, dar atenção ao problema das relações entre os indivíduos, que é justamente a proposta e
o objetivo da ética aristotélica.
Também há primazia na construção de uma ética científica; ela é classificada como uma
ciência prática, como uma parte que antecede a política. Depois das ciências teoréticas, vêm as
ciências práticas, que dizem respeito à conduta dos homens e o fim que eles querem atingir, seja como
indivíduos ou como parte de uma sociedade política. O estudo da conduta e do fim do homem como
indivíduo cabe à ciência ética.
Dentre as descobertas do trabalho, podemos apontar a responsabilidade; sem qualquer
dúvida, Aristóteles afirma a necessidade da responsabilidade para uma ação ser considerada como
moralmente válida; definitivamente, não há moralidade em uma ação irresponsável, ou naquela em
que o sujeito não agiu com pleno conhecimento. Isto pode ser demonstrado na frase: O homem é
responsável pelos seus atos como o é responsável pelos seus filhos. Ilustra claramente que, em face
aos seus atos, o homem necessariamente é julgado. .
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Outra descoberta é a classificação das virtudes. Primeiramente Aristóteles faz uma distinção
na alma humana: a que concebe um princípio racional e a desprovida de razão. Também dissemos que
há no homem duas espécies de virtudes, as Intelectuais e as Morais; as virtudes intelectuais são
resultado do ensino e necessitam de tempo; já as virtudes morais são resultado do hábito, e é pelo
exercício que as adquirimos. Para isso resumimos neste trabalho treze virtudes morais, explicitando
serem elas o meio-termo em relação a dois extremos viciosos. O próximo passo foi resumir as cinco
virtudes intelectuais; chegamos à conclusão de que as intelectuais são as melhores, porque a melhor
parte do homem é aquela que concebe um princípio racional. Dentre as virtudes intelectuais, a
sabedoria é superior.
Outra contribuição significativa desse trabalho foi ter esclarecido qual é o ideal de felicidade;
a conclusão foi de que feliz é aquele que vive as virtudes dentro da pólis. É aquele que vive uma vida
intelectual, sendo capaz de dirigir bem a vida, deliberando de modo correto o que é bem ou mal para
si. É o exercício dessa virtude que constitui a perfeição da atividade contemplativa, e dessa forma que
é possível alcançar a felicidade máxima.
Podemos avaliar a ética aristotélica, dizendo que sempre se pensa a ética na pólis; não há
ainda a concepção de indivíduo separado de sua cidade. A vida ideal e feliz é a vida racional; essa
vida feliz supõe a estima de si mesmo e a amizade.
Na ética Aristotélica, toda ação humana está orientada para a execução de algum bem, ao
qual estão unidos o bem e a felicidade; o bem possui o caráter de causa final, que age sobre o agente.
Mas há uma dificuldade em determinar em que consiste esse bem e essa felicidade, já que não há a
identificação do sumo bem do homem com deus, a ele corresponde o bem mais alto em si mesmo.
Para Aristóteles há muitos bens: uns são preciosos, dignos de estima como a virtude, a alma e o
entendimento; outros são desejáveis, como as virtudes que servem para agir bem; outros, como a
força, o poder, a riqueza e a beleza são simplesmente potências, que podem ser empenhadas para o
bem ou o mal; outros, como a saúde e a ginástica, contribuem para a prática do bem; uns como a
justiça e as virtudes são sempre desejáveis, e outros, como a força, a riqueza e o poder nem sempre o
são; alguns bens possuem finalidade, como a saúde, outros são meios para consegui-la, como a
medicina; alguns bens pertencem à alma, como a virtude, outros ao corpo, como a saúde e a beleza,
outros são exteriores, como as riquezas. Usando o método da exclusão, descarta-se que os bens do
homem sejam os prazeres sensíveis, tampouco consistem nas riquezas, que são apenas meios para a
felicidade; tampouco a glória e a honra, que são apenas uma compensação na vida política. Para
determinar quais são os bens e a atividade própria do homem, Aristóteles analisa as funções do ser
humano: uma é viver, mas esta é comum aos homens e às plantas, outra é sentir, que também é
comum ao homem e aos animais, a terceira, e a que distingue verdadeiramente o homem, é a atividade
racional; portanto, essa é sua atividade própria, e assim a vida do homem deve consistir em viver
conforme a razão. Mas isso não basta: a razão deve dirigir e regular todos os atos da vida do homem,
e isto consiste essencialmente na vida virtuosa. E, como há muitas virtudes, esta fórmula deve
completar-se dizendo que a perfeição do homem, logo, seu bem e sua felicidade, é a atividade dirigida
pela virtude mais alta e elevada, a sabedoria, porque ela é a virtude das virtudes. No primeiro livro da
Ética à Nicômaco, Aristóteles detém-se nesse ponto; mas no livro X, tratando do mesmo tema, ele
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declara que a vida ideal é a teorética e contemplativa, quer dizer, o exercício da atividade na sua
potência mais alta, que é a sabedoria.
Há uma medida para todas as ações humanas, que é o justo-meio. A felicidade é definida
como atividade da alma, dirigida pela virtude perfeita; é excelente e divina, mas não é presente dos
deuses e nem produto do acaso, porque é preciso conquistá-la com muito exercício e muita prática da
virtude. Para tanto é necessário indagar sobre a virtude e em que condição ela é um meio-termo para a
felicidade. As virtudes morais consistem em ser um meio entre dois extremos viciosos; em toda
quantidade é possível distinguir o excesso, o pouco e uma medida, que é o meio-termo; quando se
trata de coisas, o meio-termo é aquele ponto que se encontra em igual distância entre dois pontos
extremos, mas quando se trata do homem, o meio-termo é aquilo que não peca nem por excesso e
nem por defeito, e esta medida muda muito e não é única para todos os homens. Como é difícil
estabelecer o justo-meio em cada caso particular, deve-se deixar esta definição a uma pessoa sensata,
que decida retamente; mas há casos em que não cabe estabelecer nenhuma medida, assim como em
excesso não existe medida.
Dentre os limites, destaca-se primeiramente a necessidade da inserção do indivíduo na Pólis,
há um certo intelectualismo na visão de vida ideal, tanto que há um problema: ser livre implica
necessariamente em ser racional.
BIBLIOGRAFIA
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão
inglesa de W. D. Rosá. Col. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973..
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a
Aristóteles, vol. 01. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DURANT, Will. Os grandes pensadores. 7
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ed. Trad. de Monteiro Lobato. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1967.
FRAILE, Guilhermo. História de la filosofía. 4
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Ed. Madrid: Biblioteca de autores
Cristianos, 1976.
LADRIERE, Jean. Os desafios da racionalidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1979.
PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da filosofia. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1954.
REALLE, Giovanni; ANTISERI, Dário. História da filosofia, vol I. 2
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Ed. São Paulo:
Paulus, 1991.
________. História del pensamiento filosofico y científico. Tomo I - Antiguedad y edad
media. Barcelona: Editorial Herder, 1988.
ROSS, Sir David. Aristóteles. Biblioteca de filosofia. Buenos Aires: Sudamericana, 1957.
VERGNIÈRES, Solange. Ética e política em Aristóteles. Ed. Paulus.
89
Anexo I: QUADRO DAS VIRTUDES MORAIS
Sentimento ou
paixão (por
natureza)
Situação em que
o sentimento ou
a paixão são
suscitados
Vício (excesso)
(por deliberação
e por escolha)
Vício (falta) (por
deliberação e
por escolha)
Virtude (justo
meio) (por
deliberação e
por escolha)
Prazeres Tocar, ter ingerir Libertinagem Insensibilidade Temperança
Medo Perigo, dor Covardia Temeridade Coragem
Confiança Perigo, dor Temeridade Covardia Coragem
Riqueza Dinheiro, bens Prodigalidade Avareza Liberalidade
Fama Opinião alheia Vaidade Humildade Magnificência
Honra Opinião alheia Vulgaridade Vileza Respeito próprio
Cólera
Relação com os
outros
Irascibilidade Indiferença Gentileza
Convívio
Relação com os
outros
Zombaria Grosseria
Agudeza de
espírito
Conceder prazer
Relação com os
outros
Condescendia Tédio Amizade
Vergonha
Relação de si
com outros
Sem-vergonhice Timidez Modéstia
Sobre a boa sorte
de alguém
Relação dos
outros consigo
Inveja Malevolência Justa apreciação
Sobre a má sorte
de alguém
Relação dos
outros consigo
Malevolência Inveja Justa indignação
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à história da filosofia: dos pré-socráticos a Aristóteles, vol.
01. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LORENZETTI, Josemar Pedro. A Ética à Nicômaco: Atualização e comentários. Edição Revisada..
Viamão, Rio Grande do Sul: Mimeo, 2003.
Resenha disponível no site:
www.consciencia.org/aristotelesjosemar.shtml.
90
CONTINUAÇÃO DA ANÁLISE DA LEITURA E ESCRITA
DAS ALUNAS DO CURSO NORMAL SUPERIOR
A atividade de leitura e de escrita conduzida por esta dissertação foi realizada
em quatro fases. Na primeira fase, solicita-se às alunas que procedam à leitura de
uma fábula e à escrita sobre essa leitura; na segunda, solicita-se que elas realizem a
leitura de um texto filosófico que versa sobre ética; na terceira, elas são estimuladas a
participarem de uma discussão sobre o conteúdo desse texto e a fazerem, nesse texto
filosófico, anotações que julgarem pertinentes e, finalmente, na quarta fase, solicita-
se a elas que leiam uma outra fábula e redijam um texto sobre essa fábula.
2.1. O percurso ethopoiético de A4
FASE 3.
Abaixo, transcrevem-se as anotações realizadas em sala de aula por A4
durante a leitura e a discussão do fragmento de texto “Ética a Nicômaco”:
91
92
Considerando as anotações de A4, realizadas durante a leitura e a discussão
da resenha “Ética a Nicômaco”, em sala de aula, é possível observar a presença de
alguns pontos relevantes: o conceito de sumo bem, de felicidade e virtude.
Note-se como ela enfatiza o conceito relativo à virtude em seu registro
paralelo. A4 afirma que Aristóteles sugere a necessidade de praticarmos atos
virtuosos. Ela anota em seguida que em relação às nossas ações o excesso e a
carência são prejudiciais e destrutivos, isto é não são consideradas ações virtuosas.
Repare como sua anotação se desenvolve, apontando que no tocante às
paixões e ações a virtude é o meio-termo, por isso, considerada saudável. Ela
enfatiza que a pratica de atos nobres ou viciosos é uma virtude e está em nosso poder
de escolha exercitá-las ou não.
Por meio das observações pessoais e citações (de trechos da resenha) de A4,
realizadas em seu caderno, se constata os hipomnemata, isto é, a memória material
das coisas lidas, ouvidas e pensadas destinadas à releitura e à meditação posterior e
que passariam a se constituir parte do próprio autor (Foucault, op.cit. 146).
A reiteração de anotações sobre a leitura da resenha comprova que a aluna
escolheu dos conceitos de Aristóteles aqueles os quais considerou essenciais;
fundamentais.
FASE4.
Em uma quarta fase da atividade de leitura, foi solicitado aos alunos que
lessem uma outra fábula: “A Cigarra e a Formiga”, e, em seguida, conforme se fez da
outra vez, a solicitação para que redigissem um texto sobre o que fora lido.
Transcreve-se a seguir, a famosa fábula de Esopo:
93
“A CIGARRA E A FORMIGA”
Esopo
Num belo dia de inverno as formigas estavam tendo o maior trabalho para
secar suas reservas de trigo. Depois de uma chuvarada, os grãos tinham ficado
completamente molhados. De repente aparece uma cigarra:
- Por favor, formiguinha, me dê um pouco de trigo! Estou com uma fome
danada, acho que vou morrer.
A formiga parou de trabalhar, coisa que era contra os princípios dela, e
perguntou:
- Mas por quê? O que você fez durante o verão? Por acaso não se lembrou de
guardar comida para o inverno?
- Para falar a verdade, não tive tempo – respondeu a cigarra. – Passei o verão
cantando!
- Bom... Se você passou o verão cantando, que tal passar o inverno dançando? – disse
a formiga, e voltou para o trabalho dando risada.
Moral: Os preguiçosos colhem o que merecem.
Como se pôde conferir no E1, por ocasião da primeira leitura, A4 realizou tão
e somente uma interpretação textual, isto é, bastou-se em parafrasear o conteúdo da
fábula “A Raposa e a Cegonha” que lhe fora apresentada e a criticar apenas as
atitudes dos dois animais. Para que se realize uma comparação com a leitura da
segunda fábula, julgou-se necessária a repetição da transcrição da leitura da primeira
fábula como se segue.
T1A4 – A relação que existe entre a fábula (A raposa e a cegonha) e a
vida real é que existem pessoas que são vingativas como fez a cegonha
com a raposa e também existem pessoas que brincam maldosamente
com o sentimento e o jeito da pessoa ser, como a raposa fez com a
cegonha.
Veja como, embora tivesse remetido à vida real, isto é, tivesse tomado esses
animais como alegóricos a homens, A4 bastou-se a descrever suas atitudes e a
condená-las. Não se percebem preocupações pedagógicas em sua leitura. É de se
94
supor que a abordagem que fariam em seus futuros alunos é que A4 se deteria apenas
na crítica e na condenação das atitudes das personagens de fábulas, sem levá-los a
analisarem quais seriam as atitudes que deveriam tomar em situações similares às das
fábulas.
Já na leitura da segunda fábula, a da “Cigarra e a Formiga”, realizada após a
leitura, a discussão e as anotações relativas à resenha “Ética à Nicômaco”, percebeu-
se um deslocamento na leitura de A4. Os dados dessa fase serão codificados
comoT2A que significa Texto 2 escrito pela Aluna.
Transcreve-se abaixo um excerto do texto escrito por A4
T2A4 – A relação que estabelece entre a fábula (A formiga e a
cigarra) e a vida real é que devemos ser virtuosos. Não exagerar na
alegria (só cantar) e nem trabalhar excessivamente, atitude que
deixou a formiga muito rude. A virtude deve estar no “meio termo”
entre o trabalho e o lazer.
Observem-se na leitura de “A Cigarra e a Formiga” como A4 não mais realiza
a paráfrase, isto é, não se deteve na descrição das atitudes da cigarra e da formiga. A
presença de Aristóteles é inequívoca: devemos ser virtuosos.
Note-se como A4 não usa apenas da terceira pessoa em tom mais acusativo
do que analítico; nessa leitura pós Aristóteles, usa da primeira pessoa do plural:
“devemos”. Essa primeira pessoa do plural revela que A4 valeu-se do que leu, ouviu
e aprendeu para se constituir; ou seja, em alguma etapa do processo de leitura e
escrita, houve como efeito a subjetivação no discurso.
Quando ela declara que “A virtude deve estar no meio termo entre o trabalho
e o lazer”, A4 exterioriza o que foi assimilado em sua leitura e discutido sobre os
princípios de Aristóteles, o qual considera que em nossa natureza o excesso e a falta
das virtudes são destrutivos, porque a virtude moral possui o meio-termo como um
só atributo.
É possível concluir que ela estabeleceu uma analogia entre a fábula lida, a
vida real e a teoria filosófica refletida. E que esta atividade escrita revelou que os
alunos conseguiram realizar uma transposição do conteúdo da obra para a realidade
em que vivem demonstrando nesse momento o caráter de hypomnémata que a aula
proporcionou.
95
2.2. O percurso ethopoiético de A5
Concluída a análise do processo desenvolvido por A4, analise-se, a trajetória
percorrida por A5 nas atividades de leitura de fábulas e de textos filosóficos e de
escrita sobre as fábulas, trajetória esta realizada em quatro fases, a saber: 1) leitura da
fábula e escrita; 2) leitura da resenha sobre a obra “Ética a Nicômaco” de Aristóteles;
3) discussão sobre essa resenha e anotações individuais em seus textos e 4) leitura e
escrita sobre outra fábula.
FASE1: Leitura da fábula “A Raposa e a Cegonha”
Para facilitar a compreensão da atividade conduzida por esta dissertação,
relembra-se que, na denominada Fase 1, A5 tal como o restante de suas colegas de
sala do Curso Normal superior procederam à leitura da fábula “A Raposa e a
Cegonha” transcrita na (P. 75) desta dissertação e, em seguida redigiram um texto a
partir dessa leitura.
Passemos para a análise do percurso de leitura e de constituição de si pela
leitura e escrita da aluna 5 (doravante A5). Os enunciados dessa fase serão
codificados comoT1A5 que significa Texto 1 escrito pela Aluna 5.
Apresenta-se, abaixo transcrito, o texto 1 redigido por A5, após a leitura da
fábula “A Raposa e a Cegonha”:
E02
T1A5 – Lendo a fábula “A raposa e a cegonha” chego à conclusão
que os dois animais foram infelizes nas suas atitudes. Eles agiram de
forma grosseira através de uma brincadeira de mau gosto, e sem
pensar nas conseqüências. A raposa achando-se muito esperta, quis
pregar uma peça na cegonha, a qual se sentindo frustrada deu-lhe o
troco. Foi uma atitude trapaceira e vingativa e nenhuma delas deve
ser estimulada, pois geram conflitos entre as pessoas.
Na vida real, existem muitas pessoas-cegonhas e pessoas-
raposas agindo de modo semelhante. Não pensam nas conseqüências
que as brincadeiras de mau gosto podem ocasionar; preferem dar o
troco com a mesma moeda, ao invés de pensar a situação e resolvê-la
de maneira adulta e correta.
Assim como os personagens da fábula, muitas pessoas deixam
o bom senso de lado. Em situações-problema assumem, sem
consciência crítica, posturas incorretas, desrespeitando integralmente
a pessoa do outro.
96
Observe-se como, no E02, de forma semelhante à que ocorreu no texto de
T1A4, T1A5 procede à simples interpretação da fábula pela qual lamenta as atitudes
tomadas pelos animais. No primeiro parágrafo de seu texto, interpretativamente,
T1A5 faz menção à incapacidade de os animais pensarem nas conseqüências de seus
atos, somada ao espírito traiçoeiro da raposa e vingativo da cegonha retrata um
tratamento de reciprocidade também existente entre as pessoas maldosas e ardilosas
como as personagens.
No parágrafo seguinte, quando a aluna ainda compara os animais às pessoas
que agem de modo semelhante aos animais, ela afirma que as brincadeiras de mau
gosto, bem como o ato de “dar o troco com a mesma moeda”, geram inimizade e
desunião entre as pessoas. Afirma, ainda, que pensar as situações conflituosas com
maturidade e senso crítico é a melhor solução, flagrantemente um dizer do senso
comum.
Apesar de apresentar compreensão da estrutura figurativa do texto, considerar
esses animais como seres humanos e remetê-los à realidade humana, A5 limitou-se
apenas a criticar seus comportamentos.
Da mesma forma que ocorreu com A4, não se percebem preocupações
pedagógicas em sua leitura. Mais uma vez, é possível presumir por esse
procedimento de A5 que a abordagem das fábulas que faria com seus futuros alunos
seria apenas a de tecer críticas aos animais, sem levá-los à reflexão sobre as atitudes
que poderiam tomar em situações semelhantes. Sua abordagem cairia no lugar
comum de um encaminhamento moralista de estabelecer, segundo seu critério, o que
é certo e o que é errado.
Note-se que a aluna restringiu sua explanação à cópia do conteúdo da fábula
“A Raposa e a Cegonha” que lhe fora oferecida, isto é, A5 realizou uma mera
interpretação textual.
Finalmente, reiterando sua análise A5, afirma: “Assim como as personagens,
muitas pessoas deixam o bom senso de lado... assumem, sem consciência crítica,
posturas incorretas, desrespeitando integralmente a pessoa do outro”.
Observa-se, em sua análise, referência às questões éticas de bom senso,
respeito e solidariedade à pessoa humana, tão presentes em diversas instituições e
reivindicadas pela sociedade contemporânea a qual pertence. Na verdade a aluna
emite palavras, julgando tratar-se de sua opinião, quando, na verdade, enuncia sob o
97
esquecimento número 1, de ordem psicanalítica, uma vez que sob a ilusão de que o
que foi dito lhe pertence, reproduz um discurso ideológico já existente.
FASE2 Leitura da resenha sobre a obra “Ética à Nicômaco”.
Nesta fase, A5 e suas colegas realizaram a leitura individual, acompanhada de
anotações se assim o desejassem.
FASE3 Discussão sobre a resenha e anotações subsidiadas pela discussão.
Seguem, abaixo reproduzidas, as anotações realizadas por A5 durante a
leitura da resenha “Ética à Nicômaco” e/ou durante a discussão sobre essa leitura.
98
99
Observem-se as anotações realizadas, em sala de aula por A5 durante a leitura
e discussão da resenha “Ética a Nicômaco”. Essas considerações como o valor do
sumo bem, das virtudes, da estrutura do ato moral e da necessidade de se reconhecer
o meio termo das virtudes, certamente foram feitas porque fizeram sentido para A5,
já que nem todas fizeram anotações e, as que as fizeram não anotaram esses aspectos
Nota-se que a aluna ressalta as virtudes em seu registro, reafirmando a
necessidade de reconhecer o seu meio termo, conforme os aconselhados por
Aristóteles. Quando registra que “depende de nós o AGIR como também o NÃO-
AGIR” destaca conceitos sobre as virtudes nas atitudes humanas; destaca o conceito
de vício, ponderando constantemente sobre as conseqüências de seu excesso ou
carência.
Observe-se que, à medida que suas anotações se desenvolvem elas sugerem
começar a se constituirem hypomnémata em seu texto. Ao relacionar as virtudes,
reiteradamente, A5 reforça a importância do meio termo, permitindo-nos interpretar
que resgata a própria anotação anterior.
Assim como A4, ela indica que o exercício dos atos nobres ou viciosos está
em nosso poder de escolha e decisão, não mais se limitando a tecer críticas em
atitude meramente moralista, mas assumindo-se como indivíduo ético que reflete
sobre a validade do comportamento.
FASE4 Leitura e escrita sobre a fábula “A Cigarra e a Formiga”
Na quarta fase da atividade de leitura e produção de textual, após a leitura da
fábula: “A Cigarra e a Formiga” os alunos foram, novamente, solicitados a redigirem
um texto sobre o que fora lido.
Na leitura da segunda fábula, “A Cigarra e a Formiga”, realizada
posteriormente à leitura da resenha sobre “Ética à Nicômaco” de autoria de
Aristóteles, à discussão sobre essa leitura e às anotações relativas à resenha, percebe-
se um deslocamento no discurso de A5. Os enunciados dessa fase serão codificados
comoT2A5 que significa Texto 2 escrito pela Aluna 5.
Analise-se um excerto do texto escrito por A5 e transcrito em seguida:
100
T2A5 – Existem pessoas “cigarras” e pessoas “formigas” em nossa
sociedade, sim. As “cigarras” são as mais evidentes. A relação que
existe entre a fábula e vida real é que em ambos os casos ocorrem a
falta do bom senso.
Considero extremistas as ações dos animais. Ambas não
tiveram uma atitude justa, nem encontraram o meio termo das
virtudes. Praticaram tão somente a reciprocidade de pagar o mal com
o mal. A cigarra demonstrou coragem ao dizer a verdade à formiga,
que por sua vez foi mesquinha ao pensar em si mesma. Ela não pensou
no bem do outro.
Note-se, na leitura de “A Cigarra e a Formiga”, como A5, ao contrário da
forma como procedeu por ocasião da leitura da fábula “A Raposa e a Cegonha”, não
se detém à simples menção e crítica às atitudes da cigarra e da formiga. Nesta quarta
etapa da atividade de leitura e escrita proposta por esta pesquisa, os conceitos
aristotélicos se fazem presentes, quando a aluna, entre outras considerações, declara:
Ambos os animais não tiveram uma atitude justa nem encontraram o meio termo
das virtudes”. Inicialmente, A5 parece estar meramente reproduzindo um senso
comum, sob efeito do esquecimento número um, ao afirmar que ambos os animais
não tiveram uma atitude justa. Entretanto, ao continuar seu texto afirmando que nem
encontraram o meio termo das virtudes, A5 desloca-se do senso comum e resgata a
hypomnémata que apresentara por ocasião da leitura de “Ética a Nicômaco”: “o meio
termo está em nosso poder de escolha e decisão pois encontra-se no âmbito
humano”. A5 em T2 parece comprovar o caminho circular da constituição de si pela
escrita de que fala Foucault pelo resgate do que falara Sêneca. Não se pode deixar de
perceber, também, que A5 parece fazer da escrita um procedimento ethopoiético, de
que fala Plutarco, resgatado por Foucault, isto é, da escrita como construção do
indivíduo ético que assume a ponderação, a meia medida como forma de
adestramento de si mesmo.
Ao considerar a necessidade do equilíbrio entre o excesso e a carência,
enfatizando o meio termo das virtudes, a aluna consolida a teoria de que os alunos
foram capazes de associar o conteúdo de fundamento filosófico à vida real. Neste
momento, efetiva-se a função dos hypomnémata que a proposição de uma atividade
de leitura dirigida possibilitou aos leitores.
Enfim, a evidência de que as aulas constituíram-se um hypommata para a
produção textual dos alunos pode ser conferida no excerto acima. T2A5 revela que
os princípios de Aristóteles estão sendo incorporados por meio da transposição da
101
leitura filosófica para a realidade em que vivem. Revela também a importância dos
conceitos éticos como o bem, a justiça, a qualidade dos nossos atos, entre outros
apresentados em suas anotações, como valores imprescindíveis para uma sociedade
pós-moderna carente de modelos e desejosa de humanização e, num momento sócio-
histórico esvaziado de modelos, não nos resta, como adverte Foucault, outra
alternativa senão constituirmo-nos como obra de arte.
2.3 O percurso ethopoiético de A6
Concluída a análise do processo desenvolvido por A5, analise-se, a trajetória
percorrida por A6 nas atividades de leitura e de escrita.
FASE1: Leitura da fábula “A Raposa e a Cegonha”
Nesta fase, junto com suas colegas de turma, A6 procedeu à leitura da fábula
“A Raposa e a Cegonha”, transcrita na página 75 desta dissertação.
Realizada a leitura, ela procedeu à escrita de seu texto sobre a fábula lida, o
qual se apresenta transcrito a seguir:
E03
T1A6 – A atitude dos animais, de acordo com o meu ponto de vista,
não foi correta. A raposa demonstrou-se muito egoísta, pois convidou
a cegonha para um jantar e não pensou em sua convidada, levando-se
em conta onde foi servida a comida. E a cegonha por sua vez, não viu
a hora de dar-lhe “o troco”. Tais atitudes demonstram falta de
humildade e respeito para com o próximo.
Infelizmente, em nossa sociedade, há muitas pessoas “raposa”
e “cegonha”, que querem levar vantagem em tudo e outras ainda, que
acham difícil perdoar. Sendo assim, é mais fácil “dar o troco”,
“desforrar”.
As personagens raposa e cegonha não foram idôneas. Uma
avarenta querendo “fazer bonito” e a outra desejosa de “pagar na
mesma moeda”. Em ambos os casos, um retrato da vida real. Uma
filosofia facilmente encontrada em nossa sociedade, onde as pessoas
se mostram como realmente são.
Novamente, tal como ocorreram com os excertos anteriores, observa-se, no
texto de A6, uma mera interpretação da fábula, com uma passagem, aliás, que se
constitui paráfrase. A passagem A raposa demonstrou-se muito egoísta, pois
convidou a cegonha para um jantar e não pensou em sua convidada, levando-se em
102
conta onde foi servida a comida. E a cegonha por sua vez, não viu a hora de dar-lhe
“o troco”, presente no primeiro parágrafo se realiza como mera reprodução da
fábula. De forma idêntica aos textos T1A4 e T1A5, em TA16, a aluna se limita a
censurar as atitudes tomadas pelos animais. No princípio do excerto, T1A6 recrimina
o comportamento que ela julga incorreto e desleal dos personagens, apontando o
egoísmo da raposa associado ao espírito retaliativo da cegonha que a deixa “cega” e
desejosa “de dar o troco”, atitudes que demonstram, segundo a aluna, total
desrespeito à pessoa humana.
Em seguida, a aluna compara os animais às pessoas de nossa sociedade; umas
querendo levar vantagem em tudo e outras com grande dificuldade para perdoar. Ela
reafirma, em sua conclusão, as críticas às pessoas que agem para obterem o
reconhecimento, para “fazerem bonito” e às que se vingam, “dão o troco”.
Sua leitura, enfim, prossegue no mesmo sentido ao das alunas anteriores: o de
julgar e condenar a atitude dos animais.
No terceiro parágrafo, mais uma vez, não se percebem em sua leitura,
preocupações didático-pedagógicas, levando-nos à conclusão de que a abordagem
que faria junto aos seus alunos, certamente se limitaria a de ingênuas críticas aos
animais, sem levá-los a uma reflexão sobre os comportamentos e sobre a prática
diante das situações cotidianas semelhantes.
Enfim, confrontando-se as análises das referidas alunas é possível notar
aspectos semelhantes em suas produções, cujo teor enfatiza a importância de se
pensar no “outro”. Retomem-se seus enunciados, para se observarem os pontos de
intersecção: quando A4 afirma que A atitude dos animais foi impensada e maldosa,
onde um queria prejudicar o outro e A5 menciona que Assim como as personagens
da fábula, muitas pessoas deixam o bom senso de lado... assumem, sem consciência
crítica, posturas incorretas, desrespeitando integralmente a pessoa do outro,
observa-se a coincidência de idéias expressas também por A6 que enuncia: Tais
atitudes demonstram falta de humildade e respeito para com o próximo. Nota-se,
claramente, uma característica comum presente nos argumentos das todas as alunas:
o espírito fraterno e solidário para com as pessoas, discurso largamente em uso.
Humildade, respeito e honestidade também são ressaltados em sua análise;
certamente princípios desejados não só pela aluna como também por uma sociedade
carente que anseia por valores humanos e éticos.
103
As alunas deixam perceber que escrevem palavras sob a ilusão de que o que
disseram lhes pertence, quando, na verdade enunciam sob o esquecimento número 1,
uma vez que reproduz um discurso ideológico já existente.
A análise permite a percepção, ainda, de que, para A6, seu dizer é
compreensível por todos, evidenciando um sujeito que anuncia sob o esquecimento
número 2 de ordem discursiva, quando afirma tratar-se de Uma filosofia facilmente
encontrada em nossa sociedade, onde as pessoas se mostram como realmente são.
A6 usa a palavra filosofia para se referir a “condutas morais”, já que, por meio delas,
as pessoas se mostram como realmente são, quando esse termo tem um sentido
absolutamente oposto, qual seja, “Estudo que se caracteriza pela intenção de ampliar
incessantemente a compreensão da realidade (Dicionário Aurélio).
FASE2 Leitura da resenha sobre a obra “Ética à Nicômaco”.
Nesta fase, A6 e suas colegas realizaram a leitura individual, acompanhada de
anotações se assim o desejassem.
FASE3 Discussão sobre a resenha e anotações subsidiadas pela discussão
Apresenta-se, abaixo reproduzida, a página do caderno com as anotações
realizadas por A6 durante e após a leitura da resenha sobre a obra “Ética à
Nicômaco”.
104
105
Após a leitura compartilhada e o estudo dirigido sobre a resenha “Ética à
Nicômaco”, realizados em sala de aula, aspectos considerados relevantes por A6
apresentam-se lembrados e registrados no seu caderno.
Notem-se expressões que sugerem terem sido consideradas significativas por
A6 em sua produção como a anotação do conceito de motivação, sumo bem, das
virtudes morais e intelectuais, do vício, da estrutura do ato moral, entre outros.
Quando A6 ressalta a coragem e a justiça como exemplos de valores morais
em seu caderno, ela confirma como A5 a necessidade de se reconhecer o meio termo
das virtudes: “Há necessidade de se encontrar o meio-termo das virtudes”,
considerando assim, por meio da reflexiva resenha, uma sugestão de Aristotélica.
Observa-se também em sua anotação, expressiva evidência às virtudes; ênfase
aos valores morais e intelectuais; preocupação para com vício, alertando quanto ao
seu excesso e falta; reconhecimento da maior e mais completa das virtudes: a justiça.
Constata-se a presença dos hypomnémata em sua produção, à medida que
seus registros se efetivam. Observe-se, na folha de caderno contendo anotações sobre
a leitura, como A6 anota, duas vezes, o conceito aristotélico de meio-termo das
virtudes, como se a segunda anotação tivesse sido feita pela consulta à anotação
anterior. Em outras palavras, é como se A6 tivesse voltado a uma anotação anterior
sobre o conceito de meio-termo no próprio texto que está redigindo, sugerindo que, a
partir de uma reflexão sobre a validade desse conceito, assimilou-o.
Observe-se ainda que ao anotar várias vezes o mesmo conceito, sugerido por
Aristóteles, a aluna demonstra estar reiterando o que foi assimilado e fazendo de suas
anotações anteriores um hypomnémata.
FASE 4
Resgatando-se os procedimentos da quarta fase, para se facilitar a
compreensão do desenvolvimento da atividade, após a leitura da fábula “A Cigarra e
a Formiga”, foi solicitado que os alunos redigissem, livremente, um texto sobre o que
fora lido.
Note-se como a leitura, a discussão e as anotações relativas à resenha sobre a
obra “Ética à Nicômaco” proporcionaram um deslocamento no discurso de A6, em
sua tarefa de ler a fábula “A Cigarra e a Formiga” e de redigir um texto sobre essa
fábula.
106
Os enunciados dessa fase serão codificados como T2A6 que significa Texto 2
escrito pela Aluna6, o qual se encontra abaixo transcrito:
T2A6 – Como os animais da fábula, em nossa sociedade muitas
pessoas só pensam em si mesmas. Enquanto umas trabalham e nem
vêem a vida passar, outras se divertem sem pensar no futuro.
Formigas e cigarras precisam estabelecer um “meio termo” entre
trabalhar e aproveitar a vida.
A sociedade atual se solidifica de forma muito
individualista. Vejo no patrão e seu empregado a relação que se
estabelece entre a fábula e a vida real.
Sob o ponto de vista humano e considerando que a JUSTIÇA
é o bem do outro, entre todas as virtudes a maior e mais completa,
acredito que agiria de forma a ajudar a cigarra.
A evidência de que as as anotações no caderno que foram realizadas no
caderno de A6 constituíram-se um hypomnémata para a produção textual dos alunos
pode ser conferida no excerto de seu texto acima transcrito.
Esses registros se tornaram significativos na construção textual de A6 por
reforçarem a importância do meio-termo das virtudes, bem como o poder de decisão
sobre o exercício dos atos nobres, tão claramente expresso por A4. Semelhantemente
à A5, as anotações de A6 sobre a leitura da resenha demonstram que a aluna leu,
refletiu e apropriando-se da leitura, deslocou os conceitos apontados por Aristóteles
para as fábulas.
A análise de T2A6 permite-nos concluir que A6 realiza o processo circular de
subjetivação pelo procedimento da escrita de si de que fala Foucault, isto é, que está
iniciando um processo de subjetivação. Observe-se esse processo circular de que fala
Sêneca, resgatado por Foucault, na passagem em que A6, para redigir T2 resgata as
anotações relativas ao conceito de meia-medida (aliás, já tinha sido objeto de resgate
no próprio caderno). A6 articula esse conceito com fatos da vida real, imputando-lhe
necessidade de aplicar o princípio da meia-medida no que diz respeito ao trabalho e
ao lazer, como, também, na relação que se estabelece entre o patrão e o empregado,
tão oportunamente mencionado por ela em seu excerto.
Em síntese, a análise do processo circular, postulado por Sêneca – que se faz
a partir 1) da leitura de outros, 2) das anotações sobre os aspectos que julga
relevantes encontrados nessa leitura, 3) do estabelecimento de relações entre os
aspectos anotados e a vida real, 4) da consulta e resgate das anotações a partir dos
outros –, realizado por A6 permite-nos concluir que ela realiza a “escrita de si” ,
107
postulado por Foucault, que permite àquele que escreve um conhecimento sobre si. A
“escrita de si” esteja presente nos dados, não foi explorada por esta dissertação por
uma delimitação academicamente necessária, detendo-se à exploração do caráter
ethopoiético da escrita.
Esse trajeto circular percorrido por A6 permite-nos pensar que ela realiza uma
escrita ethopoiética, da qual fala Plutarco, resgatado por Foucault, no sentido de que
se constrói como um indivíduo ético porque impõe a si um adestramento de assumir
para si a meia-medida como princípio.
A partir do momento em que a aluna, entre outras exposições, enuncia
considerar a JUSTIÇA como a maior e a mais completa virtude, ela não só começa
seu processo de subjetivação, associando o conteúdo filosófico à sua realidade; como
também concretiza a função dos hypomnémata que a atividade de leitura e escrita
propiciou.
Quando A6 redige em T2A6 que “Sob o ponto de vista humano e
considerando que a JUSTIÇA é o bem do outro, entre todas as virtudes a maior e
mais completa, acredito que agiria de forma a ajudar a cigarra”; ela supera o
esquecimento número um pelo qual reproduziria, como reproduziu em T1A6, um
senso comum e resgata a hypomnémata que apresentara ao ler “Ética a Nicômaco” “a
justiça é o bem do outro” e dá mostras de que realiza uma escrita ethopoiética. Assim
como considera o bem do próximo como um ato justo a aluna admite que agiria de
forma a ajudar a cigarra. Essa abordagem mostra que os princípios Aristotélicos
estão sendo internalizados por A6 e aos poucos essa incorporação a constitui e se
revela em seus atos e atitudes.
Conclui-se da trajetória percorrida por A6 que diferentemente da primeira
atividade proposta, quando ela realizara a mera interpretação da fábula “A raposa e a
cegonha”, e se restringiu a criticar e julgar o comportamento antiético dos animais, a
eficácia da proposição das 3 fases seguintes, propostas por Sêneca. Fases que
também foram resgatadas e propostas por Foucault como potencial para a construção
do indivíduo ético que se faz pela escrita e por si mesmo.
108
2.2. SEGUNDA APLICAÇÃO DA ATIVIDADE DE LEITURA E PRODUÇÃO
TEXTUAL
Terminada uma seqüência da atividade de leitura e produção textual com
respaldo na resenha sobre a obra “Ética a Nicômaco”, procedeu-se à reaplicação da
atividade apoiada, desta vez, na resenha, escrita pelo doutor Renato Janine Ribeiro,
professor emérito de ética e filosofia política da USP, sobre a obra "Os Dez
Mandamentos da Ética" de autoria de Gabriel Chalita.
Com o intuito de facilitar a leitura desta dissertação, nomear-se-ão as fases de
reaplicação da atividade como FASE2a, FASE3a e FASE4a para indicar que se trata
da segunda fase reaplicada.
Assim, refazendo-se o percurso de aplicação das atividades, na FASE2a, as
alunas procederam à leitura da resenha sobre o livro "Os Dez Mandamentos da
Ética", de autoria de Gabriel Chalita, acompanhada das anotações na cópia da
resenha. Na FASE3a, procederam à discussão sobre a resenha e a anotações. Na fase
FASE4a, leram a fábula “O leão, o lobo e a raposa” e escreveram um texto sobre
essa fábula.
Em continuidade à leitura e produção textual, do mesmo modo apoiada na
resenha do doutor Renato Janine Ribeiro sobre a obra de autoria de Gabriel Chalita,
“Os Dez Mandamentos da Ética”, realizou-se novamente a aplicação da atividade.
2.2.1. O percurso ethopoiético de A5 em curso
FASE2a Leitura da resenha da obra “Os Dez Mandamentos da Ética” e
anotações
Assim, como primeiro procedimento da FASE2a foi oferecida uma nova
resenha também de fundamento filosófico: “Um guia pré-moderno para o bem”
escrita pelo professor de ética e filosofia política Renato Janine Ribeiro, para que os
alunos lessem e discutissem.
Transcreve-se, a seguir, a resenha da obra “Os Dez Mandamentos da Ética”
incluída em uma atividade proposta por Uyeno (2005).
109
UM GUIA PRÉ-MODERNO PARA O BEM
"Os Dez Mandamentos da Ética" parte de Aristóteles para discutir os conceitos de certo e errado, mas
ignora as reflexões de Maquiavel, Kant e Descartes sobre o tema.” (Renato Janine Ribeiro)
Fernando Henrique Cardoso, o mais destacado intelectual tucano, falou constantemente sobre
ética e política durante os seus mandatos presidenciais [1995-2002]. Usava Max Weber e se referia à
ética da responsabilidade, que seus detratores assimilavam a uma ética com desconto. Não citava
Maquiavel, que em última análise inspira Weber, pela simples razão de que o pensador italiano goza
injustamente de má fama. Gabriel Chalita, secretário da Educação do Estado de São Paulo, publica
agora um livro sobre ética, todo ele baseado em Aristóteles [384-322 a.C.]. Mas o contraste não podia
ser maior, entre a ética moderna falada pelo ex-presidente e a ética antiga reescrita pelo educador,
embora ambos sejam tucanos. Chalita expõe longamente e com clareza a "Ética a Nicômaco", que o
pensador grego destinou a seu filho. É, pois, um trabalho de pedagogo. Mas cabe a pergunta: a ética
aristotélica é adequada para a educação atual? Constitui uma boa base para pensar as escolhas em
nossos dias?
"Verdade absoluta"
Falta, neste livro, uma definição do que é "bem". Essa palavra é presumida de ponta a ponta
como também é presumido que exista uma "verdade absoluta" (pág. 100), o que dificilmente um
filósofo de nossos dias admitiria, ou que "as verdades científicas" expressem "a essência e o
comportamento das coisas" (pág. 138), o que tampouco um cientista aceitaria.
O autor assim não pergunta o que é o bem. Parece supor um consenso a seu respeito. Discute as
escolhas, elogia o meio-termo, defende a amizade. Nada de que discordemos. Mas disso resulta um
guia insuficiente para as questões de hoje, em especial porque esse livro não problematiza as boas
intenções.
Daí um certo tom de prédica, mais que de questionamento, nessa ética. Uma ética moderna
deve basear-se na autonomia do indivíduo e na opacidade do mundo. Este é opaco, porque
desconhecemos para onde ele irá. Agimos sob uma luz turva. Ignoramos em que resultarão nossos
atos.
E sabemos que boas intenções geram maus resultados, até do ponto de vista ético. Por isso,
desde o fim da Idade Média, há uma consciência de que a simples exortação à ação equilibrada, nos
termos de Aristóteles e de Tomás de Aquino, de pouco serve.
Além disso, a pessoa moderna é autônoma. Para esse ser "condenado à liberdade" (Sartre), que
somos nós, não tem cabimento uma ética de dez mandamentos, como a que propõe Chalita. Até
podemos seguir esses dez pontos, mas bastará isso para sermos éticos? Podemos ser éticos sem uma
forte dúvida sobre o certo e errado, o bom e o mau? O que quer que pensemos de Kant, o cerne de sua
ética é mais válido hoje do que o Aristóteles aqui invocado. Insisto na autonomia do sujeito ético. Ela
se expressa na regra de que cada um escolha livremente como agir, sob uma só condição: que todo ato
seu signifique a proclamação de que todo e qualquer homem deva agir do mesmo modo. Podemos
divergir dos detalhes da formulação kantiana, mas essa tese é forte. Implica que não haja mapa prévio
110
do certo e do errado. Coloca-nos diante de nossa responsabilidade. Mas a condiciona a um princípio
fortíssimo, o da igualdade e reciprocidade entre os homens. Se mato, furto ou furo fila, autorizo todos
os demais a matar(-me), a furtar(-me) e a furar(-me a) fila. Os valores éticos, que Chalita não
questiona, ele também os aplica à política. Entendo que sua prédica cause sucesso. “As idéias de
Gabriel Chalita caem em solo fértil, o de uma sociedade cansada de corrupção e sequiosa de
decência.”
Descarte
Mas me impressiona como está alheia à discussão dos últimos 500 anos e não só por sua
definição da ciência, já citada. Há uma grande distância entre o que dizia Fernando Henrique Cardoso,
citando Weber, e o que diz o responsável pela educação paulista. Aqui, não há problematização dos
elos entre ética e política. É só aplicar a primeira à segunda. Mas, para tanto, é preciso descartar o que
se pensou sobre ética e política desde a Renascença.
As idéias de Gabriel Chalita caem em solo fértil, o de uma sociedade cansada de corrupção e
sequiosa de decência. Mas, contra esses inegáveis males, não adianta postular uma ética que suponha
o bem, sem interrogar sua ambigüidade. A modernidade nasce, séculos atrás, de uma série de dúvidas.
"O que é o bem?" é uma delas. Maquiavel, mostrando como a boa intenção pode resultar em males,
Descartes, questionando as evidências dos sentidos, e Kant, exortando-nos a "ousar saber", romperam
com um universo transparente de valores que nos bastaria identificar e seguir. Uma ética para nossos
dias não pode esquecer a modernidade.
Renato Janine Ribeiro é professor de ética e filosofia política na
Usp. - Os Dez Mandamentos da Ética - 224 págs., R$ 25,00 - de
Gabriel Chalita. Ed. Nova Fronteira
Questão 1.
A resenha acima transcrita é de autoria do doutor Renato Janine Ribeiro, professor emérito de
ética e filosofia política da USP, sobre a obra “"Os Dez Mandamentos da Ética", do secretário da
Educação do Estado de São Paulo, Gabriel Chalita. Coincidentemente com o programa de leitura do
curso HUM16
2
, o livro resenhado parte da obra “Ética a Nicômaco”, um clássico de Aristóteles e a
resenha recorre a conceitos centrais da obra “Crítica à razão prática”.Como você analisa as colocações
do eminente professor, no que diz respeito ao questionamento da imposição de um código de ética e à
necessidade de se considerar a autonomia do sujeito ético?
Considere a coletânea de textos abaixo.
2
Disciplina ministrada no curso de graduação em Engenharia no Instituto Tecnológico de Aeronáutica
em São José dos Campos.
111
Texto I “Adorno e Horkheimer relêem a saga de
Ulisses, a narrativa épica de Homero, como a
história premonitória da evolução do sujeito que
deve passar pelo aprendizado de inúmeras
renúncias, para conseguir manter-se vivo, para se
conservar a si mesmo. O triunfo de Ulisses sobre
as sereias tem um significado alegórico: ao pedir
para ser amarrado no mastro para não ser
seduzido pelo canto das sereias, Ulisses se
transforma na imagem exata da auto-repressão,
condição necessária da transformação de si , para
chegar a Ítaca e aí conseguir reapropriar-se da
realeza, da esposa e do filho, isto é, para conseguir constituir-se em sujeito adulto com uma identidade
assegurada. Sucumbir à sedução dessa felicidade também significa desistir da individuação e,
portanto, arriscar a própria existência: os viajantes que se entregaram às sereias foram por elas
devorados” (Gagnebin, Jeanne Marie, “Resistir às sereias”, Revista Cult, 52, julho de 2003).
Texto II
“O romance Ensaio sobre a Cegueira de autoria do romancista, dramaturgo e poeta
português José de Saramago conta a história da “treva branca” que acomete um
motorista e vai se espalhar incontrolavelmente pela cidade e, em breve, uma
multidão de cegos precisará aprender a viver de novo, em quarentena. “Só num
mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são” é o significado desta
parábola que incita o leitor a uma experiência imaginativa única, no esforço de
recuperar a lucidez” (Arthur Nestroviski, contracapa do romance “Ensaio sobre a
Cegueria”).
Texto III
“Todo mundo é ninguém” (Heidgger)
Texto V
“A onda de esperança mexeu nos corações e mentes atormentados com o desastre da
globalização. Caiu a ficha: fomos todos enganados. A nova era de consumo que surgiria no mundo
inteiro virou pó – ou melhor, dívidas. Neo-liberalismo? Deus nos livre. E o brasileiro, que pensou que
poderia ter tudo o que os americanos usufruíam, caiu de cabeça no endividamento, acordando para a
necessidade de ensaiar uma importante mudança de valores. Reflexos dessa mudança se fazem
perceber na sociedade brasileira que volta a reencontrar o prazer das coisas simples – estar com
112
amigos, trabalhar no que gosta, cozinhar, curtir filhos, família, a casa, o jardim. Isso aparece
claramente num estudo inédito realizado no Brasil sob a coordenação da Agência de Marketing,
Sonhos de Consumo em Tempos de Mudança*. O estudo mostra que o modelo convencional e
sucesso pessoal, baseado em êxito financeiro, tende a ser atacado e estigmatizado. Jovens deixam de
considerar carreiras financeiramente promissoras para sonhar com vidas mais modestas, longe do
stress e da agressividade dos grandes centros urbanos. Revela que o brasileiro busca um modelo de
vida e de felicidade mais acessível, menos dependente do dinheiro, de consumo e de aquisições
materiais – o que indica que muitos itens de consumo ganham significados novos e outros perdem sua
força habitual. Constata que há, sem dúvida, um processo de avaliação mais crítico e exigente de
todos os itens e marcas de consumo. Nesse processo, as marcas com história, simbologia ou
comportamento mais atacáveis são abandonadas até com certo prazer” (Célia Chaim, O Sonho mudou,
Revista Isto É, 27.08.2003)
Texto VI
American Society of Mechanical Engineers (ASME) vs. Hydrolevel Corp.: In 1971,
McDonnell and Miller, an engineering firm, used an interpretation of an ASME code to undermine a
boiler control device competitor, Hydrolevel Corp. As a result, Hydrolevel sued McDonnell and
Miller, the Hartford steam Boiler Inspection and Insurance Company, and ASME on the basis of
restraint of trade. In the ensuing trial, which went all the way up to the U.S. Supreme Court,
Hydrolevel's lawyers argued that two key ASME subcommittee members acted not only on the
conflicting self-interest of their companies, but also in violation of the Sherman Anti-Trust Act. The
case of ASME vs. Hydrolevel Corp. shows how easily individuals, companies, and professional
societies can find themselves embroiled in expensive legal battles that tarnish the reputation of the
engineering profession as a whole. The case is appropriate for all engineering upper-level curricula,
for it discusses not only conflicts of interest and various engineering codes of ethics, but also
illustrates the roles of engineers within their professional societies (Engineering Ethics: The
Professional Challenge ).
Questão2
A coletânea de textos acima transcrita faz referência à coragem de que o homem
contemporâneo tem de se munir para dar sentido a sua vida: ser não se deixar seduzir pelos cantos das
sereias do utilitarismo, ceticismo, do hedonismo e ser capaz de enxergar quando todos estão cegos,
para não ser ninguém. Como você acha que devemos proceder para realizar essa intransferível tarefa
do homem? Que conceitos kantianos estão presentes nos textos sobre Adorno e sobre Saramago?
113
FASE3a Discussão e anotações na resenha da obra “Os Dez
Mandamentos da Ética”
Nesta terceira fase da segunda aplicação da atividade de leitura e produção
textual proposta por esta dissertação, as alunas procederam à discussão completando
anotações já feitas durante a leitura da resenha. Elas também responderam às
questões propostas A seguir, transcrevem-se as anotações realizadas por A5 durante
a leitura e discussão da resenha “Um guia pré-moderno para o bem”.
114
114
115
Note-se expressões que A5 considerou relevantes em suas sintéticas
anotações, expressões estas que remetem ao conceito de bem, ética, autonomia,
liberdade, modernidade. Na passagem em que a resenha menciona Aristóteles, A5,
coloca um ponto de exclamação parecendo estar resgatando Aristóteles em suas
anotações anteriores, quando da leitura da primeira resenha. Essa anotação sugere
que A5 esteja fazendo uma hypomnémata da hyponmémata da resenha lida na
primeira aplicação da atividade.
Observem-se os registros paralelos, realizados no momento em que o texto foi
discutido em sala de aula e em que as questões propostas foram discutidas e
respondidas; note-se como eles apresentam pontos significativos sobre o conceito de
ética: a compreensão de liberdade, individualidade, justiça, igualdade, autonomia.
A5 destaca o conceito de autonomia do indivíduo em suas anotações,
confirmando por meio de frases assertivas: “Uma ética moderna deve basear-se na
autonomia do indivíduo...” e “... a pessoa moderna é autônoma”. A reprodução
desses fragmentos da resenha demonstra que a aluna valeu-se dos conceitos
mencionados pelo autor porque os mesmos foram significativos na construção do
próprio conceito.
Acompanhando as anotações de A5, realizadas paralelamente à leitura da
resenha, verifica-se a efetiva presença dos hypomnémata, os quais possibilitaram
num momento posterior à leitura, a construção de novos conceitos de sua autoria.
Confere-se por meio dessa fase de produção, que A5 adaptou o conteúdo do texto
filosófico para constituir sua argumentação.
Quando A5 se apropria do texto filosófico, demonstra, por meio dos
intertextos e transposições, que os conceitos começam a fazer sentido para ela,
permitindo-nos afirmar que ela esteja passando por um processo de subjetivação
escrita, uma vez que ela incorpora novos conceitos e os desloca para a fábula e
conseqüentemente para a vida real.
Quando A5 declara que “A autonomia que temos como seres livres, muitas
vezes não é bem utilizada...” ou “...não gostaríamos de receber dos outros a mesma
atitude adotada por nós...” ela demonstra que leu, compreendeu e se apropriou dos
novos conceitos apreendidos por meio da resenha, a qual enfatiza questões relevantes
como a autonomia do indivíduo, a ética e a modernidade, o princípio de igualdade e
reciprocidade, entre outros.
116
Ao considerar tais questões, a aluna não só comprova que houve uma
transposição do texto filosófico para a sua escrita, como resgata em Sêneca a prática
da escrita de si, que segundo Foucault, não deve ser dissociada da leitura. Ambas as
ocupações devem ser recorridas alternadamente por não ser possível tudo tirar de si
próprio.
A5, em T3, revela que a escrita implica leitura porque o auxílio dos outros na
compreensão dos fatos da vida é necessário. Percebe-se então que a aluna faz da
escrita uma maneira de recolher a leitura feita, que segundo Sêneca é um exercício da
razão.
FASE4a Leitura da fábula “O Leão, o Lobo e a Raposa” e redação de um
texto sobre a fábula lida.
Nesta quarta fase da 2ª aplicação da atividade de leitura e produção escrita, as
alunas foram convidadas à leitura de uma nova fábula, desta vez, “O leão, o lobo e a
raposa” de Esopo; de forma semelhante ao procedimento assumido nas fases4, os
alunos redigiram, sem que houvesse quaisquer instruções específicas, um texto sobre
o que fora lido.
Abaixo, segue transcrita a versão da fábula de Esopo utilizada pela
atividade:
117
O LEÃO, O LOBO E A RAPOSA
Um velho leão estava doente no seu covil. Foram todos os animais visitá-lo,
mas nenhum podia fazer nada por ele, e o leão sentia-se cada vez mais fraco.
- Já reparou, senhor Leão - disse o lobo um dia - que a raposa ainda não o
veio visitar? Vê-se logo que não quer saber de si para nada, mas quando o senhor
está de boa saúde não se cansa de lhe adular.
Aconteceu que a raposa ia a passar nessa altura e, ouvindo o que disse o lobo,
espreitou com o focinho comprido para dentro do covil.
- Senhor, parece-me que o lobo não percebe nada do que se passa. Eu
preocupo-me mais consigo do que todos os outros animais. Enquanto ele estava aqui
de conversa, eu com tudo à procura de um remédio para si. Estou exausta.
- E encontraste alguma coisa? - perguntou o leão com mau modo.
- Claro que encontrei. Falei com um velho médico que sabe muito bem o que
diz. E diz que o senhor se deve abafar com a pele de um lobo acabado de matar. É a
única coisa que o vai pôr bom.
E antes que o lobo tivesse tempo de raciocinar, o leão levantou-se e matou-o
para lhe tirar a pele.
- Ah! Ah! - riu a raposa - não é tão cedo que vai arranjar mais arranca-rabo,
senhor Lobo.
Moral: Os intriguistas são vítimas de suas próprias intrigas.
Assim como fora constatado um deslocamento na leitura de A4, após o estudo
da resenha “Ética à Nicômaco”, os alunos, nesta fase, reproduziram novos
deslocamentos, verificado, dessa vez, por meio da leitura, discussão, anotações
relativas à segunda resenha “Um guia pré-moderno para o bem” e também, por meio
da interpretação de uma outra fábula: “O leão, o lobo e a raposa”.
Os dados da aluna5 serão codificados como T3A5 que significa Texto 3
escrito pela aluna 5.
Transcreve-se, a seguir, o excerto referente à interpretação de A5
118
E17
T3A5 – Os animais da fábula, não foram éticos. Primeiro o lobo
fazendo intriga da raposa para o leão com o propósito de ressaltar a
sua postura. Segundo a raposa para manter seu conceito, age de
forma semelhante, premeditando a morte do lobo.
Na sociedade atual agimos de certa forma como animais. Às
vezes ignorando as conseqüências dos nossos atos e/ou por outras
vezes premeditando os resultados. Essa atitude mostra que não agimos
eticamente, pois agimos de forma individual e consequentemente,
muitos de nossos atos não seriam adotados por todos. Não
gostaríamos de receber dos outros a mesma atitude adotada por nós e
nem paramos para questionar a ambigüidade dessas nossas atitudes.
A autonomia que temos como seres livres, muitas vezes não é bem
utilizada, o que nos leva a agir sem pensar nas conseqüências dos
nossos atos.
Observe-se, nesta fase de leitura da fábula “O leão, o lobo e a raposa”,
também de Esopo, que diferentemente do ocorrido com a escrita sobre a fábula “A
raposa e a cegonha”, A5 não se limita, simplesmente, a interpretá-la. Da mesma
forma que demonstrou resgatar hypomnématas do caderno sobre a resenha da obra
“Ética a Nicômaco”, ela resgata as anotações deixadas nas margens da resenha “Os
Dez mandamentos da Ética” na FASE1a, para redigir o texto sobre a leitura da fábula
“A Cigarra e a Formiga”.
Note-se a profundidade reflexiva de seus argumentos, os quais também foram
baseados no texto filosófico lido e discutido coletivamente.
2.2.1. O percurso ethopoiético de A6 em curso
Nesta fase procede a leitura de uma nova resenha, “Um guia pré-moderno
para o bem”, escrita pelo professor doutor Renato Janine Ribeiro, também de
fundamento filosófico sugerida como leitura, discussão e escrita aos alunos,
conforme atividades realizadas na FASE2a.
Confira-se a resenha na página 109 desta pesquisa.
FASE3a: Discussão e anotações na resenha da obra “Os Dez
Mandamentos da Ética”
Na Fase3a as alunas procederam à discussão da resenha completando
anotações já realizadas durante sua leitura. Da mesma forma responderam ao
119
questionamento proposto.
Note-se, a seguir, as anotações que A6 efetuou durante os momentos de
leitura e discussão coletiva em sala de aula sobre a resenha “Um guia pré-moderno
para o bem”.
120
121
Observe-se, nesta etapa de trabalho, as anotações realizadas por A6 que,
assim como A5 o fez, na resenha oferecida. Nota-se que à medida que seu breve
registro se desenvolve, a aluna atribui à escrita o que segundo Foucault, revela-nos
Epíteto: o exercício pessoal prevê meditação e treinamento. Mais uma vez, A6, em
T3, parece comprovar o que nos expõe Foucault, fundamentado em Epíteto: “o
exercício da escrita está associada ao exercício do pensamento”.
Confere-se, em seu texto, a primeira etapa da forma circular da constituição
de si pela escrita, apresentado por Foucault, e que constitui momento essencial no
processo. As anotações realizadas nesta etapa são destinadas à releitura, por ocasião
da escrita, permitindo o resgate dessa leitura.
Analisem-se as observações de A6 no texto que foi escaneado – realizadas no
momento em que o texto foi lido e discutido em sala de aula.
Acompanhando-se suas anotações, é possível verificar que, na anotação à
margem da resenha em que A6 declara que O indivíduo consciente e responsável por
suas ações agirá com discernimento, liberdade e inteligência, ela remete, por meio
do uso do número 1, como se fosse nota, ao texto filosófico que define uma ética
moderna baseada na autonomia do indivíduo.
Da mesma forma, quando registra O indivíduo moderno é capaz de tomar
decisões com independência e liberdade..., a aluna faz uso do número dois e redige
uma paráfrase da passagem sublinhada na resenha oferecida em xérox.
Observe-se que A6 destaca na resenha do professor Renato Janine Ribeiro
(ver xérox escaneado) por meio da marca “3” conceitos sobre certo e errado, valores,
princípios morais e éticos, ressaltando que as diferenças devem ser respeitadas. A
aluna lembra, como A5 assim o fez, conceitos apresentados em “Ética à Nicômaco”,
demonstrando com isso que A6 também realiza um hypomnemata do hypomnemata
da leitura efetuada na primeira aplicação da atividade.
FASE4a Leitura da fábula “O Leão, o Lobo e a Raposa” e redação de um
texto sobre a fábula lida.
Assim como realizado anteriormente, os alunos foram convidados à leitura da
fábula “O leão, o lobo e a raposa” e como atividade posterior, a redação
122
de um texto sobre o que fora lido. Desta forma, efetivou-se, novamente, a quarta fase
da 2ª aplicação da atividade de leitura e produção escrita dos alunos.
Na página 117 da dissertação, apresenta-se transcrita a fábula de Esopo, “O
leão, o lobo e a raposa”, utilizada pela atividade.
Transcreve-se a seguir o excerto referente a sua interpretação. Os dados desta
aluna serão codificados como T3A6 que significa Texto 3 escrito pela aluna 6.
E18
T3A6 – Na minha opinião a atitude tanto do lobo quanto da raposa,
não foi ética.
O lobo se envolve na intriga com o objetivo de se valorizar,
pois ao desqualificar a atitude da raposa em não visitar o leão, se
mostra superior e melhor.
A raposa para se defender, faz uso da sua liberdade de
escolha e leva o lobo à morte.
Hoje, a sociedade nos “dá o direito”; a autonomia de
resolver nossos problemas no individualismo, sendo nossa avalista
quando praticamos a maldade para nos defender e eliminar o outro
que nos fere. Ela, a sociedade, não nos estimula na busca de soluções
para a construção de uma convivência justa e igualitária; portanto, de
paz.
Observe-se, na FASE4a da aluna A6, os efeitos produzidos pela leitura do
texto filosófico acompanhado das anotações.
Note-se em seu excerto, como A6 além de mencionar a discordância com a
atitude antiética dos animais, com a prepotência do lobo, analisa a atitude da raposa
pelo conceito da liberdade de escolha, mais especificamente, pelo mau uso da
liberdade de escolha pela raposa.
Quando A6 expõe sua interpretação na produção textual, afirmando que A
raposa, para se defender, faz uso da sua liberdade de escolha e leva o lobo à morte,
ela nos remete diretamente à anotação por ela realizada na resenha do Professor
Renato Janine Ribeiro sobre a passagem em que ele declara, “Uma ética moderna
deve basear-se na autonomia do indivíduo”. Sobre essa passagem ela anotara: O
indivíduo consciente e responsável por suas ações agirá com discernimento,
liberdade e inteligência.
Da mesma forma, quando ela escreve, a partir de sua interpretação da fábula
Hoje a sociedade nos dá o direito de resolver nossos problemas no individualismo,
A6 remete-nos à passagem da resenha “Um guia pré-moderno para o bem”, segundo
a qual “A pessoa moderna é autônoma”. Neste caso, como ocorreu da outra vez, por
123
ocasião da primeira aplicação da atividade, A6A resgata os hypomnémata que
apresentara por ocasião da leitura do fragmento filosófico em questão. Sua anotação
dessa passagem fora O indivíduo moderno é capaz de tomar decisões com
independência e liberdade justamente por dever ser cidadão consciente. A anotação
resgatada por ocasião da escrita completa o processo circular de que fala Foucault, a
partir de Sêneca e Plutarco, e parece ter surtido o efeito ethopoiético de constituí-la
como indivíduo ético, uma vez que inclui essa hypomnémata na reflexão de sua
realidade para além da fábula:
É possível reconhecer pelo resgate de suas anotações que a leitura do texto
filosófico produziu deslocamentos na sua leitura da fábula.
Ao adequar texto filosófico, fábula e realidade, A6 evidencia, assim como
A5, a as transposições, mais especificamente, os resgates das anotações realizadas,
comprovando que as leituras dos textos filosóficos promoveram um deslocamento
nas interpretações das referidas alunas.
Transcrevendo-se, novamente, a passagem em que A6 declara Hoje a
sociedade nos dá o direito de resolver nossos problemas no individualismo, sendo
nossa avalista quando praticamos a maldade para nos defender e eliminar o outro,
que nos fere, em tom de crítica à sociedade, e também a de A5 em que afirma: “Na
sociedade atual agimos de certa forma como os animais; às vezes ignoramos as
conseqüências dos nossos atos... agimos de forma individual e muitos dos nossos
atos não seriam adotados por todos”, constatam-se, deslocamentos não só na
interpretação das fábulas como na forma de abordá-las: ambas deixam de tecer dos
questionamentos sobre os procedimentos dos outros e passam a se observarem a si
mesmas em relação à sociedade. Esse deslocamento parece comprovar os efeitos dos
hypomnématas na constituição dos sujeitos e da escrita como uma atividade de
subjetivação no e pelo discurso. Esse processo de subjetivação por meio da escrita
vem confirmar que a leitura e a produção escrita do texto transcendem as suas
funções pedagógicas. Além do desenvolvimento dos processos de aprendizagem que
lhes são próprios, a atividade da leitura e da escrita comprovam-se como potenciais
para a constituição do indivíduo ético.
Ao transpuserem a memória do que foi lido e ouvido, na redação de um outro
texto, e tendo promovido deslocamentos na reflexão sobre sua própria realidade, as
alunas se revelam construírem-se como sujeitos a caminho de se tornarem éticos.
124
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O problema de onde partiu a presente dissertação constituiu a constatação de
que, à diferença do que ocorre nos outros cursos de formação do ensino superior, no
Curso Normal Superior – antigo curso Normal, posteriormente denominado de
Magistério, que fazia parte do nível de ensino médio e que, hoje, faz parte do nível
de ensino superior – não consta sistematicamente a disciplina de Ética.
Levantou-se como hipótese para que a ética não conste como disciplina nesse
curso porque ela já é pressuposta no fazer docente.
A análise preliminar objetivara detectar no discurso produzido por alunos do
Curso Normal Superior da Faculdade de Administração e Informática (FAI), situada
na cidade de Santa Rita do Sapucaí, no estado de Minas Gerais, indícios de que eles
acreditavam que a ética era constitutiva do fazer docente e não encontrou esses
indícios da hipótese da qual partira.
Buscou-se então, analisar na materialidade lingüística do discurso produzido
por esses alunos a representação que fazem sobre ética.
Os resultados revelaram que os alunos do Curso Normal apresentaram como
regularidade discursiva, isto é, como um dizer predominante, e que, portanto,
conceituam ética como uma educação de base familiar: a chamada educação “de
berço”. A análise da regularidade discursiva mais evidente do corpus composto de
respostas a um questionário permite a conclusão de que as alunas do Curso Normal
Superior detêm o conceito de ética como valores desenvolvidos na convivência
familiar, no interior da instituição familiar. Não se trata, portanto, da educação no
sentido de estudo sistemático e formal, desenvolvida pelo Aparelho Ideológico
Escolar, mas a determinada, em alguma medida, pelo Aparelho Ideológico Familiar.
Revelou-se também regular o conceito de ética como conjunto de valores a serem
ensinados pelos familiares e, nesse sentido, os alunos demonstraram que detêm um
conceito prescritivo, aristotélico de ética.
A análise do discurso dessas alunas revelou, também, uma regularidade
discursiva no que diz respeito ao conceito que elas detêm sobre ética pela
convivência com o “outro”. Demonstrou que compartilham a crença de uma ética
constituída pela obediência a limites, exigidos pela sociedade a que pertencem e
pelos valores e princípios que possuem.
125
O conceito de ética das alunas demonstrou também uma formação
desenvolvida em uma sociedade mais abrangente; família, escola, igreja; revelando
enfim, uma formação ideológica socialmente estabelecida.
Na regularidade discursiva das alunas, constata-se a existência de outros
dizeres que se realizam sob o esquecimento número dois de ordem ideológica. Os
alunos pensam que possuem um dizer próprio, quando, na verdade, reproduzem um
discurso de “outros”, cujas características fazem constituir um conceito de ética
determinado por uma memória discursiva do que seja viver em sociedade.
No que tange à análise da atividade de leitura de textos teóricos e de fábulas,
os resultados da análise levam à conclusão de que os conceitos de caráter filosófico,
contidos nos textos filosóficos lidos, debatidos e anotados em sala-de-aula,
fundamentaram a leitura das fábulas propostas. Em outras palavras, os textos dos
alunos, em que relatavam a interpretação das fábulas, apresentaram deslocamentos
em relação às interpretações não precedidas de leituras de textos filosóficos. Por
conseguinte, a análise permitiu verificar um deslocamento na constituição do
conceito de ética por esses professores.
Após a realização da leitura das fábulas e escrita sobre a atitude dos animais e
a leitura da resenha “Ética à Nicômaco” de Aristóteles, observa-se que na grande
maioria das respostas, as idéias do texto filosófico estão presentes. A evidência de
que as aulas constituíram-se um hypomnémata, isto é, subsídios a serem
posteriormente usados para a produção textual dos alunos pode ser conferida na
análise das escritas realizadas nesta pesquisa. Essa produção textual subsidiada não
deve ser entendida como composta de outros textos, no sentido de que conteria
fragmentos.
As análises permitem algumas considerações enriquecedoras no processo de
formação dos alunos-professores do Curso Normal.
Por meio da análise dos dados, foi possível perceber que os alunos
conseguiram estabelecer uma analogia entre a fábula lida, a vida real e a teoria
filosófica discutida e refletida coletivamente, evidenciando claramente a escrita dos
hypomnémata e as marcas de subjetividade, uma vez que o processo de escrita acaba
por constituí-lo como sujeito.
Constatou-se ao realizar as análises, que as alunas não só demonstraram que
houve uma transposição do texto filosófico para a sua escrita, como resgataram em
126
Sêneca a prática da escrita de si, que segundo Foucaut, não deve ser dissociada da
leitura.
As análises revelaram que a produção textual realizada pelos alunos implicou,
segundo Sêneca um exercício da razão, uma vez que fizeram da atividade escrita
uma maneira de recolher a leitura feita. Revelaram também a necessidade do auxílio
dos outros, por não ser possível tudo tirar de si próprio.
Nesse momento de constituição do conceito de ética, a atividade de leitura se
entrelaça com a escrita de si (leia-se construção de si), pois o texto dos alunos torna-
se uma espécie de hypomnémata de que fala Foucault, a partir de suas leituras de
Sêneca e Plutarco; e serve como um adestramento deles próprios em direção ao ethos
de que fala Foucault, a partir de suas leituras sobre Santo Antônio.
Os dados revelam que os conceitos de ética foram internalizados. Os alunos
incorporaram os conceitos e revelam essa incorporação através da transposição da
leitura filosófica para a realidade em que vivem.
Finalizando, é possível concluir que os alunos se valeram do que foi lido,
ouvido, discutido e aprendido em sala-de-aula para se constituir, isto é, em alguma
etapa do processo de leitura e escrita, houve como efeito a incorporação de outros
discursos que passaram a fazer parte dos alunos por um processo de subjetivação.
Este estudo que ora se encerra teve como preocupação maior contribuir para a
formação de professores de níveis de ensino básicos, cujas atribuições transcendem o
de uma mera relação empregatícia, mas responde, intransferivelmente, pela formação
integral de seus futuros alunos. Sob o ponto de vista do ensino de língua materna,
pretendeu ratificar a importância do ensino de um gênero literário não tão presente
nas salas de aula de séries iniciais como já o foi que é a fábula. Sob uma preocupação
pela exploração de temas transdisciplinares, recomendado pelos PCN, a fábula é
relevante para o desenvolvimento da fantasia infantil – tão necessária – e, ao mesmo
tempo, oportuna para o desenvolvimento de valores éticos – tão imprescindíveis –
para a sociedade moderna.
127
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