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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
O PODER PUNITIVO DA MÍDIA E A PONDERAÇÃO DE VALORES
CONSTITUCIONAIS: UMA ANÁLISE DO CASO ESCOLA BASE
Andréa de Penteado Fava
Orientadora:
Professora Dra. Vera Malaguti Batista
Rio de Janeiro
2005
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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
O PODER PUNITIVO DA MÍDIA E A PONDERAÇÃO DE VALORES
CONSTITUCIONAIS: UMA ANÁLISE DO CASO ESCOLA BASE
Dissertação apresentada ao Curso de
Mestrado em Direito, área de Ciências
Penais, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Direito,
sob a orientação da Professora Doutora
Vera Malaguti Batista.
Rio de Janeiro
2005
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Fava, Andréa de Penteado.
O poder punitivo da mídia e a ponderação de valores constitucionais:
uma análise do Caso Escola Base / Andréa de Penteado Fava. Rio de
Janeiro. Universidade Candido Mendes, Mestrado em Direito, 2005.
123 p., 31 cm.
Orientadora: Professora Doutora Vera Malaguti Batista.
Dissertação – UCAM, Mestrado em Direito, 2005
Referências, f. 113/123.
1. criminologia 2. poder punitivo 3. mídia
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
MESTRADO EM DIREITO
O PODER PUNITIVO DA MÍDIA E A PONDERAÇÃO DE VALORES
CONSTITUCIONAIS: UMA ANÁLISE DO CASO ESCOLA BASE
Andréa de Penteado Fava
Dissertação apresentada ao Programa de
Mestrado em Direito submetida à
aprovação da Banca Examinadora
composta pelos seguintes membros:
_________________________________
Orientadora: Professora Dra. Vera
Malaguti Batista.
_________________________________
Professor Dr. Nilo Batista
_________________________________
Professora Dra. Regina Neri
Rio de Janeiro
2005
Ao meu primo, Marcelo, eterno
vencedor, dedico o presente trabalho
como forma singela de demonstrar o meu
amor e de retribuir a força, coragem e
dignidade com que sempre pautou sua
existência.
AGRADECIMENTOS
A Deus, início de tudo, pela inspiração e paz com que iluminou minha
caminhada;
À minha orientadora, Professora Vera Malaguti, pelo brilhantismo com que
norteou os estudos para esse trabalho, pela genialidade de cada palavra, de cada
indicação e, acima de tudo, pela generosidade com que sempre me recebeu;
Aos meus pais, pela minha formação, pelo amor incondicional, preocupação,
envolvimento, doação; pelos valores que me ensinaram, tais como honestidade,
seriedade, perseverança...Pelo exemplo de profissionalismo dos dois, cada um ao seu
modo, mas ambos tão iguais no grau de dedicação, no orgulho pela carreira que
escolheram... À minha mãe ainda, pelas indicações e presentes bibliográficos...
Ao João Paulo, único grande amor da minha vida, que compartilhou e vivenciou
comigo todas as etapas do nosso Mestrado...Meus sinceros agradecimentos pelos
sorrisos nos momentos mais difíceis, pela compreensão nas horas de nervosismo, pela
cumplicidade, amizade, carinho, união, torcida, estímulo... A ele, todo o meu amor...
Ao Bene, meu filhinho, por encher meu coração de alegria e contentamento;
À Gracinha, querida, artista por excelência, pela paciência em escutar cada
parágrafo de tantos trabalhos feitos, desde a época da graduação; pelo interesse sincero,
por me fazer acreditar que tudo vale à pena;
À minha amada família, apoio em todas as horas;
Ao meu irmão César, pelas buscas na biblioteca da PUC do material sugerido e
pelas trocas em torno do tema;
Aos meus primos Melissa e Marcelo, pelas traduções necessárias;
Ao Seu Teófilo e Dona Mariza, pelo estímulo em todos os encontros;
Aos amigos de trabalho, Joycita, Alê, Eloah, Cris, Aninha e Mário, que
participaram ativamente da elaboração dessa dissertação, seja na busca de material, seja
no entusiasmo e vibração com que recebiam cada nova linha escrita.
Aos meus queridos professores do Mestrado da Candido, por sua inteligência,
dedicação e insistência em nos apresentar uma visão crítica da realidade.
“Possui esse caminho um coração? Em
caso afirmativo, o caminho é bom. Caso
contrário, esse caminho não possui
importância alguma.”
Carlos Castañeda
RESUMO
A presente dissertação tem por escopo estudar o poder punitivo da mídia através
dos movimentos de Reação Social liderados pelos noticiários, com o enfoque específico
sobre o caso da Escola Base, uma das maiores aberrações provocadas pela imprensa do
espetáculo, envolvendo uma história de abusos sexuais de crianças. Visa-se ainda
estabelecer, no caso sob análise, uma ponderação entre dois valores tutelados
constitucionalmente: a liberdade de informação e a preservação dos direitos da
personalidade intimidade, honra e imagem. Para tanto, procedeu-se inicialmente ao
aprofundamento sobre esse poder invasor de telas, jornais e do imaginário coletivo,
típico de uma era de ortopedia social e rotulacionismos, buscando demonstrar como
certas formas de verdade podem ser produzidas a partir da atuação midiática e como os
canais de comunicação são poderosos aliados na produção do medo na sociedade. Em
seguida, o estudo direcionou-se para o magnetismo que a sexualidade, mormente os
crimes sexuais, exerceu sobre a humanidade ao longo da história, revelando-se um dos
alvos prediletos do direito penal máximo. Por fim, realizou-se a ponderação dos
interesses em conflito, visando obter o necessário equilíbrio entre os mesmos e
atribuindo especial enfoque ao princípio da dignidade da pessoa humana que, acima de
qualquer ponderação, consiste em um imperativo de justiça social.
Palavras-chave: criminologia, poder punitivo, mídia, Escola-Base.
ABSTRACT
The objective of this thesis is to study the media´s punitive power through the
social reaction movements guided by the news, using one of the most absurd cases
involving children sexual abuse, “Escola Base”. This work also tries to establish a
balance between two principles preserved constitutionally: the freedom of information
and the protection of people´s rights intimacy, honor and image. For that, initially the
invasion power of screens, newspapers and collective imagination, tipical of a social
orthopedic era, was studied, trying to demonstrate how certain forms of truths can be
produced through media´s acts and how the communication channels are powerful allies
in the increased social fear. Following this, the study was focused in the way sexual
magnetism, especially sexual crimes, acted through the ages, turning to be one of the
favorite target of maximal criminal law. Finally, the interests in conflict were balanced
in order to obtain the necessary equilibrium, attributing special focus to the principle of
human being´s dignity that, above all, is a social justice demand.
Keywords: criminology, punitive power, media, Escola Base.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................
..................................................................
... 12
CAPÍTULO I – CRIMINOLOGIA E MÍDIA..........................................................
20
1.1 - A Mídia como Quarto Poder e a Lógica do Capital.........................................
20
1.2 - O Papel da Mídia na Falsificação da Ordem Democrática em Ordem
Policial..................................................................................................................
24
1.3 - A Sociedade Espetacular e a Equiparação da Notícia à Mercadoria............
27
CAPÍTULO II – CRIMINOLOGIA E SEXUALIDADE..............................................
40
2.1 - A colocação do sexo em discurso atrelada à incidência do poder de normalização
sobre o domínio da sexualidade.......................................................................................
40
2.2 - O controle exercido sobre a sexualidade infantil.................................................
46
2.2.1 - O efeito degradante da prática masturbatória...................................................
46
2.2.2 - A aproximação necessária entre pais e filhos.....................................................
49
2.2.3 - A masturbação como indicativo de abuso sexual. Afastamento entre pais e
filhos...................................................................................................................................
51
2.2.4 - A participação do Estado e do saber médico na cruzada contra a
masturbação......................................................................................................................
53
2.3 - Campanhas diferenciadas conforme a classe social.............................................
55
2.4 - Poder/Prazer e Saber como legitimadores de práticas racistas..........................
57
2.5 - Os delinqüentes sexuais como alvo do panoptismo penal e dos processos de
estigmatização..................................................................................................................
59
CAPÍTULO III – O CASO ESCOLA-BASE..................................................................
66
CAPÍTULO IV – INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE, DA HONRA E DA
IMAGEM X LIBERDADE DE INFORMAÇÃO DOS MEIOS DE
COMUNICAÇÃO.............................................................................................................
81
4.1 - Ponderação de Interesses como mecanismo necessário para o empreendimento de
ponderações.................................................................................................................
81
4.2 - Princípio da Dignidade como vetor essencial para o empreendimento de
ponderações ......................................................................................................................
88
4.3. Solução de conflitos entre direitos preservados constitucionalmente através do
princípio da proporcionalidade.......................................................................................
95
4.4. O limite da liberdade dos meios de comunicação..................................................
99
CONCLUSÃO..................................................................................................................1
09
INTRODUÇÃO
A imbecilidade crê que tudo é claro, quando a televisão mostrou uma bela imagem e a comentou
com uma audaciosa mentira.
Guy Debord
Um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade apenas lhe
pode retirar a proteção pública depois que seja decidido que ele tenha violado as normas em que tal
proteção lhe foi dada.
Cesare Beccaria
A notícia faz história. Essa assertiva pode ser ampliada, estendida,
dilargada para que se entenda o papel da mídia (travestida de veículo com
substancial função pública) no Direito Penal, mais especificamente na construção
da figura do transgressor, do desviante, das forças perniciosas e destrutivas do
tecido social. A notícia não faz história, como aumenta e modifica a história da
sociedade e, principalmente, aparece como principal elemento de construção da
realidade dos indivíduos isoladamente. A forma espetacular com que os fatos são
veiculados e as imagens transmitidas detêm a força de agir sobre o psiquismo do
público, perturbando a percepção habitual e suscitando indignação moral,
embaraço, irritação, ódio, aversão e outros sentimentos análogos.
Legítimo afirmar que o processo de produção das notícias, capitaneado pelo
capital, e justificado por oferecer o que o público deseja, exerce uma influência
decisiva no processo de atribuição de uma responsabilidade moral aos indivíduos,
eis que desencadeia uma reação social correspondente ao delito perpetrado.
Percebe-se que, através da imprensa, constitui-se uma verdadeira criminalidade,
com a produção de efeitos estigmatizantes sobre determinados indivíduos. A idéia
de comunicação de massa e de que os olhares dos telespectadores são mercadorias,
na correta acepção da palavra, a serem vendidas aos anunciantes, vem incentivar
uma atuação leviana e, na grande maioria dos casos, mais preocupada em
escandalizar, prender as atenções, do que em oferecer informações colhidas de
forma ética, em busca da verdade real.
Conseqüência natural desse mecanismo repousa na circunstância
de que a mídia invade a intimidade dos supostos inimigos da ordem
social, antecipando-se às atuações policial, do Ministério Público e do
Poder Judiciário, convertendo-se em juiz inquisitorial que prolata
sentenças inapeláveis, sem qualquer suporte fático, vulnerando
princípios constitucionais como os da ampla defesa, do contraditório,
da presunção de inocência, do devido processo legal, além de direitos
consagrados na Carta Magna, como os direitos à intimidade, à honra e
à imagem.
Essa sentença proferida pelos canais midiáticos cria um novo status, um
novo rótulo para os sujeitos, objetos de investigação, o qual os acompanhará e
maculará sua realidade ao longo de toda a sua existência. A sociedade, diante de
uma violência propagandiada, que penetra no seu imaginário, clama por medidas
urgentes que neutralizem as condutas transgressoras ou, antes mesmo de obter a
veracidade dos fatos, rebela-se e parte para meios alternativos de solução de
conflitos, fazendo justiça com as próprias mãos. Afinal, “sociedades assombradas
produzem políticas histéricas de perseguição e aniquilamento”.
1
A atribuição unilateral de juízos de valor, produzindo a
qualidade criminal de certas pessoas, com as conseqüências sociais
conexas, dentre as quais se destaca o esfarelamento da dignidade da
pessoa humana, realizou-se com toda a sua força no Caso Escola Base,
ocorrido em São Paulo, em 1994. A mídia produziu uma verdadeira
histeria a partir de um único depoimento neurótico da mãe de uma
criança e mudou para sempre os destinos dos fictícios criminosos. Os
personagens dessa criativa, entusiasmada e rentável história de abusos
sexuais de crianças foram transformados em monstros pelas principais
emissoras de televisão, rádio e por alguns jornais diários. O suposto
envolvimento desses sujeitos em fatos criminosos e a veiculação maciça
e ininterrupta de todas as elucubrações possíveis ou não pela imprensa
foi o catalisador para a submissão das mesmas a um julgamento
público precoce, deixando-lhes marcas indeléveis. Ainda na fase do
inquérito, quando se provou a inocência dos envolvidos, sua execração
pública já havia se consumado. Era tarde demais e suas vidas jamais
seriam as mesmas.
1
MALAGUTI BATISTA, Vera. O medo na cidade do Rio de Janeiro: dois tempos de uma história. 2
a
.
edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.26.
Destarte, a mídia, a par de servir de um eficiente aparato de controle social,
formando valores determinantes, revela-se como detentora de um poder punitivo
que se apóia na tão propalada “liberdade de imprensa” e que parece não encontrar
limites em qualquer valor fundamental. Ocorre que a liberdade de informação não
é um direito absoluto (como não o é quaisquer dos direitos) e, portanto, deve
harmonizar-se com outros ditames constitucionais, sob pena de comprometer a
unidade do ordenamento jurídico, o qual demanda uma coerência interna.
Ademais, ao tratar o homem como meio para atingir seus fins, a imprensa
desrespeita o “epicentro axiológico da ordem constitucional”
2
, qual seja, o princípio
da dignidade da pessoa humana, que repousa exatamente na máxima kantiana de
que o homem deve sempre ser tratado como um fim em si mesmo. No caso
concreto, portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana sempre deverá
prevalecer, sob pena de desmoronar o estado democrático de direito. A este
respeito, as precisas lições do Professor Daniel Sarmento, verbis:
Assim, é apenas o respeito à dignidade da pessoa humana que
legitima a ordem estatal e comunitária, constituindo, a um só
tempo, pressuposto e objetivo da democracia.
Por outro turno, transparece da própria dicção do princípio
a sua pretensão universalista, que se evidencia, por exemplo,
na redação da Declaração Universal dos Direitos do
Homem, em cujo preâmbulo consta que a dignidade
inerente a todos os membros da família humana é
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo.
Assim, a dignidade não é reconhecida apenas às pessoas de
determinada classe, nacionalidade ou etnia, mas a todo e
qualquer indivíduo, pelo simples fato de pertencer à espécie
humana. Dela não se despe nenhuma pessoa, por mais
graves que tenham sido os atos que praticou. A idéia é a de
2
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. 1
a
. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Júris, 2002, p.59.
que em cada ser humano, por mais humilde e obscura que
seja a sua existência, pulsa toda a Humanidade.
3
No mesmo sentido, as lições de Ingo Wolfgang Sarlet:
Todavia, justamente pelo fato de que a dignidade vem sendo
considerada (pelo menos para muitos e mesmo que não
exclusivamente) qualidade intrínseca e indissociável de todo
e qualquer ser humano e certos de que a destruição de um
implicaria a destruição do outro, é que o respeito e a
proteção da dignidade da pessoa (de cada uma e de todas as
pessoas) constituem-se (ou, ao menos, assim o deveriam) em
meta permanente da humanidade, do Estado e do Direito.
4
O terrorismo penal propagado pelos meios de comunicação,
mormente precipitando-se na fase persecutória em anunciar culpados,
sob o pretexto de manter a população informada, suprime as garantias
individuais, conspurcando a honra, violando a imagem e a intimidade
dos indivíduos, golpeando, enfim, a dignidade da pessoa humana.
Nesse cenário, a presente dissertação tem por escopo estudar o
poder punitivo da mídia através dos movimentos de Reação Social
liderados pelos noticiários, com o enfoque específico sobre o caso da
Escola Base, uma das maiores aberrações provocadas pela imprensa
3
SARMENTO, Daniel. Op.cit., p.60.
4
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de
1988. 3
a
. edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p.27.
do espetáculo, estabelecendo, por fim, uma ponderação entre dois
interesses tutelados constitucionalmente: a liberdade de informação e a
preservação de direitos da personalidade – intimidade, honra e
imagem. Para tanto, passa-se inevitavelmente pela análise da forma
espetacular e, principalmente, inventiva, com que foram veiculados os
fatos atribuídos aos envolvidos, bem como o efeito produzido nos
espectadores, o que revela um verdadeiro excesso e até abuso
midiático, perpassando a liberdade de imprensa. Já na década de 60,
escrevendo sobre a sociedade do espetáculo, assim profetizava Guy
Debord, verbis:
O espetáculo apresenta-se como uma enorme positividade
indiscutível e inacessível. Ele nada mais diz senão <<o que
aparece é bom, o que é bom aparece>>. A atitude que ele
exige por princípio é esta aceitação passiva que, na verdade,
ele já obteve pela sua maneira de aparecer sem réplica, pelo
seu monopólio da aparência.
5
Visa-se, assim, denunciar esse poder invasor de telas, jornais e do
imaginário coletivo, típico de uma era de “ortopedia social”
6
e de
rotulacionismos. Tentar-se-á mostrar como certas formas de verdade
podem ser produzidas a partir da atuação midiática e como os canais
de comunicação podem ser poderosos aliados na produção do medo da
5
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro:
Contraponto, 1998, p.19.
6
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo
Machado e Eduardo Jardim Morais. 3
a
. edição. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003, p.86.
sociedade. A este respeito, os ensinamentos profícuos da professora
Vera Malaguti:
Interessa também compreender a difusão de imagens de
terror na produção de políticas violentas de controle social.
O nosso dia-a-dia pós-moderno, o espetáculo de sangue, ao
vivo e a cores é, na verdade, um conjunto de alegorias do
poder (...).
7
Revelar-se-á, enfim, que a construção da figura do transgressor,
percebido como o diferente e que causa medo e ódio porque é visto
como ameaçador, agente portador de fatores perturbadores da ordem
a provocar fissuras no todo harmônico e integrado é realizada
incessantemente, gerando um verdadeiro individualismo
psicopatológico. Tais análises passam inevitavelmente pela ponderação
de interesses, avaliando se a notícia sobre fatos ocorridos no âmbito do
Direito Penal pode ser encarada como um produto à venda,
preponderando sobre valores individuais, que nada mais são do que
irradiações do princípio da dignidade da pessoa humana.
Para me aventurar nesta seara, procedi inicialmente ao estudo
da mídia e do poder que se sustenta a partir de discursos falsos, sendo
guiada eminentemente por Guy Debord, Pierre Bourdieu, Sylvia
Moretzsohn, Eugênio Bucci e Maria Rita Kehl. Comentando o
7
MALAGUTI BATISTA, Vera. Op.cit., p.52.
supramencionado poder, assim nos ensinam os Professores Raúl
Zaffaroni e Nilo Batista:
Pretender conservar um poder exercido mediante um
discurso falso, quando se sabe que ele legitima – e sustenta –
um poder diverso exercido por outros, que custa vidas
humanas, que degrada um grande número de pessoas (tanto
aquelas que o sofrem quanto as que o exercem) e que se
trata de uma constante ameaça aos âmbitos sociais de auto-
realização, é, a todas as luzes, eticamente reprovável.
8
Em Debord, encantei-me com a precisão terminológica com que
definiu a sociedade do espetáculo, que se alimenta de imagens,
aparências, representações, ilusões. Pierre Bourdieu iluminou o
caminho sobre a atração exercida pela televisão sobre os
telespectadores, bem como sobre os estragos que as palavras podem
causar. Em Moretzsohn, trabalhei principalmente com a contradição
intrínseca existente entre o caráter industrial da atividade jornalística
e a função pública de informar a verdade dos fatos. Aproveitei em
“Videologias”, de Maria Rita Kehl e Bucci, o mecanismo proposto
para explicar o modo de inclusão imaginária da sociedade de consumo
pelos meios de comunicação.
O capítulo intitulado “Criminologia e Sexualidade” direcionou-
se para o aprofundamento sobre o magnetismo que a sexualidade,
8
ZAFFARONI,E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal
Brasileiro I. 2
a
. edição. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 75.
mormente os crimes sexuais, exerceu sobre a humanidade ao longo da
História e como o poder lança mão de verdades científicas sobre o
comportamento sexual dos indivíduos para imprimir sua força. Com
este desiderato e seguindo uma metodologia histórica-descritiva para
aprofundar o problema priorizado, abusei de Michel Foucault, através
das suas obras “Os Anormais” e a “História da Sexualidade”. Em Löic
Wacquant, estudei a imposição de uma perseguição impiedosa aos
delinqüentes sexuais pela mídia com a chancela da população, assim
como a aplicação aos mesmos da “lógica do panoptismo punitivo e do
encarceramento segregativo”
9
. Por meio de Bauman, ative-me ao
surgimento do fenômeno da sexualidade infantil que influenciou o
poder panóptico total através da vigilância perene dos hábitos
solitários das crianças, culminando na concepção das crianças como
objetos sexuais em potencial e, portanto, suscetíveis de abusos.
Superadas as discussões acima descritas, realizei um cruzamento
entre a mídia e a sexualidade, transportando os conceitos extraídos da
referida análise para o caso da Escola Base. Para tanto, passei
inevitavelmente pela coleta de trabalhos jornalísticos elaborados em
São Paulo que colacionaram os periódicos da época, com a atenção
9
WACQUANT, Löic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia/ Freitas Bastos, 2001, p. 123.
minuciosa para a evolução dos fatos narrados que pareciam seguir o
ritmo ditado pelas crescentes sugestões midiáticas. Paralelamente,
busquei demonstrar como a imprensa explorou o suposto abuso sexual
de crianças por profissionais que deveriam justamente zelar por sua
integridade para investir em uma cobertura sensacionalista, que
demandava, entre outras coisas, o relato minucioso da vida e dos
passos dos envolvidos.
Por derradeiro, dediquei o último capítulo à ponderação dos
interesses preservados constitucionalmente: de um lado a propalada
liberdade de imprensa, sustentáculo para o cometimento de toda a
sorte de abusos; do outro lado, um bloco de direitos indissociáveis: o
direito à imagem, à honra, à intimidade, visando obter o necessário
equilíbrio entre os interesses conflitantes no caso concreto sem, com
isso, extirpar um direito em detrimento do outro. Atribuí nesse
contexto especial enfoque ao princípio da dignidade da pessoa humana
que, acima de qualquer ponderação, revela-se um imperativo de
justiça social e, como tal, deve pautar todas as condutas na nossa
sociedade. Encerrando esta fase introdutória, transcrevo alguns
comentários sobre os valores constitucionais, os quais inspiraram a
elaboração da presente dissertação:
À luz dessa concepção, infere-se que o valor da dignidade da
pessoa humana, bem como o valor dos direitos e garantias
fundamentais, vêm a constituir os princípios constitucionais
que incorporam as exigências de justiça e dos valores éticos,
conferindo suporte axiológico a todo o sistema jurídico
brasileiro.
10
10
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 3
a
. edição. São Paulo:
Max Limonad, 1997, p.60.
CAPÍTULO I - CRIMINOLOGIA E MÍDIA
1.1 – A Mídia como Quarto Poder e a Lógica do Capital
Ora, a mídia não cessa de intervir
para anunciar vereditos.
Pierre Bourdieu
A imprensa ocidental, quando do seu surgimento, adotou, como princípios
básicos, os postulados do Iluminismo, ligados às idéias de imparcialidade e
objetividade, incorporando a Teoria da Responsabilidade Social, segundo a qual o
público tem o direito de saber. Esse ideário inicial inspirou a classificação da
imprensa como quarto poder, que, por não ter interesses específicos a defender,
fala em nome e para o bem de todos. A mídia, originariamente, seria concebida,
então, como um ente vigilante, substituto do Estado, não podendo calar-se sob
pena de calar toda a sociedade. Ocorre que essa proposta do jornalismo como
mediador – quarto poder, jamais se realizou, uma vez que a notícia sempre foi “um
meio de manipulação ideológica de grupos de poder social e uma forma de poder
político”.
11
A este respeito, impende conferir os comentários que se seguem, verbis:
No mundo das grandes corporações da Idade Mídia, a
imagem do jornalismo como mediador associada à idéia de
“quarto poder” só pode sobreviver como nostalgia de um
tempo que talvez jamais tenha existido.
12
11
MARCONDES FILHO, Ciro. O Capital da Notícia jornalismo como produção social da segunda
natureza. São Paulo: ÁTICA, 1986, p. 13.
12
MORETZSOHN, Sylvia. Jornalismo em Tempo Real: o fetiche da velocidade. Rio de Janeiro:
REVAN, 2002, p.117.
Sobre o tema, Eugênio Bucci afirma que a ética na comunicação
de massa não pode ser discutida a partir das mesmas balizas da ética
na imprensa. De fato, o termo imprensa refere-se ao relato de notícias
e debate de assuntos em jornais, revistas, emissoras de rádio e de
televisão, designando a instituição constituída pelos veículos
jornalísticos, seus profissionais e seus laços com o público. Desta feita,
sua ética deve primar pela verdade factual, pela transparência,
objetividade, independência editorial e equilíbrio. Por sua vez e em
sentido diametralmente oposto, a comunicação de massa, pela sua
própria natureza, mistura os conceitos de realidade e ficção, de
jornalismo e entretenimento, de interesse público e interesses privados.
Em suas próprias palavras:
A assim chamada “comunicação de massa”, além de
modificar para sempre a própria natureza da imprensa,
tende a misturar os domínios da arte e do jornalismo num
mesmo balaio de imposturas éticas, prontas para o consumo
e inimigas da virtude tanto artística (criar em conformidade
com a imaginação) quanto jornalística (falar em
conformidade com a verdade factual).
13
A ética que hoje prevalece é totalmente diferente da ética
original do jornalismo, que repousa na premissa de que o poder emana
do povo e, por isso, o público tem o direito de saber – esta é a função
13
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004, p.127.
pública do jornalismo! Decorrência lógica é que não existe bom
jornalismo sem boa-fé, sem a garantia de que os fatos serão buscados
de forma honesta e que o seu relato será o mais transparente possível.
O projeto do ideal jornalístico deveria ser, então, o de um ideal
racional, o que se obstaculiza pelo advento dos meios de comunicação
de massa. Na medida em que o olhar do público torna-se mercadoria,
passível de ser vendida ao anunciante, o que mais importa é o número
de pessoas reunidas em torno do veículo de comunicação, o que
interessa é a massa, ou seja, consumidores anônimos reunidos,
compactados. Mais uma vez, os comentários salutares de Eugênio
Bucci:
A imagem, tal como pode ser posta pelo desejo, tiraniza o
espaço público. Definitivamente, os olhos do público se
tornam mercadorias.
14
Trata-se de entreter ou morrer – o que digo sem nenhum
espírito anedótico. A ética do telejornalismo não é mais
presidida pela verdade, mas pelo imperativo de extrair o
olhar.
15
Maria Rita Kehl afirma que a sociedade contemporânea é
comandada pela lógica do capital e que seus membros obedecem a uma
ética bizarra que tem por valor absoluto a visibilidade. No instante em
14
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit., p.137.
15
Id. Ibid., p.138.
que o espaço virtual do espetáculo substituiu o espaço público, nada
mais era esperado senão o entretenimento das massas e a catarse, uma
vez que o espetáculo não tem o comprometimento de ser fiel à mais
absoluta verdade. Alerta a autora que, na sociedade do espetáculo,
toda imagem, até mesmo a jornalística ou a informação mais essencial
para a sociedade, caracteriza-se como mercadoria e “todo
acontecimento se reduz à dimensão do aparecimento”.
16
Neste cenário, legítimo afirmar que a objetividade no jornalismo repousa no
terreno da utopia, sendo, desta feita, inalcançável. A velha premissa de que “os fatos
falam por si” revela-se enganosa e detém a função clara de fazer de conta que a
atividade jornalística é neutra e que o jornalista não possui qualquer carga de
subjetivismo, revelando-se imparcial, distante, frio.
Em verdade, não há neutralidade possível, mormente na hipótese das notícias
veiculadas pela televisão, pois, como adverte Pierre Bourdieu, dificilmente a
transmissão dos acontecimentos é despida de emoção ou de uma carga relativa de
subjetivismo, dada a existência de um implícito não-verbal na comunicação verbal,
donde se extraem os silêncios, os gestos, os movimentos dos olhos, as entonações, os
quais revelam tanto ou mais que as palavras e que, por mais que se queira, não são
passíveis de disfarce ou controle.
16
Id. Ibid., p.156.
Bourdieu, referindo-se ao poder e ao alcance da mídia, assevera que a mera
narração dos repórteres implica em uma construção social capaz de exercer efeitos
sociais de mobilização ou desmobilização, muitas vezes ligados a sentimentos
negativos, como o racismo, o xenofobismo, a aversão a estrangeiros. A mídia, sem
sombra de dúvidas, impõe princípios de visão do mundo, o que pode ser usado como
instrumento de dominação e, por conseguinte, de manipulação de toda uma
sociedade. Aponta o autor para os apresentadores de jornais televisivos, para os
animadores de debate, para os comentaristas esportivos, denominando-os “diretores
de consciência”
17
, que dirigem a todo momento o pensamento dos telespectadores.
17
BOURDIEU, Pierre. Sobre a Televisão. Tradução de Maria cia Machado. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p. 65
1.2 – O Papel da Mídia na Falsificação da Ordem Democrática em Ordem Policial
As filmagens, não raras vezes, deixam de ser informativas para
tornarem-se catalisadores do medo e do pavor. O sangue derramado
com requintes de crueldade agita o imaginário dos telespectadores, os
quais passam a fazer parte da cena, clamando, com urgência, pela
intervenção da força policial, dos redentores, dos heróis, dos únicos
que podem reverter uma situação catastrófica. Como retaliação, o
povo, assombrado, enraivecido, legitima qualquer ato de selvageria,
mesmo que supere o ato anterior, suscitador de tamanha revolta. E
nesse ciclo de violência, afirma Bucci que estaremos sempre
procurando nossos heróis e cultuando as execuções rituais. A este
respeito, o trecho que ora se traz à colação, verbis:
As doses mais fortes do espetáculo apenas escancaram a
nossa sede. Balas perdidas. Comandos perdidos. O show da
violência é a cara em negativo do nosso desgoverno. O nosso
medo é o medo ao vivo e nenhuma força espetacular poderá
levar embora essa angústia terminal.
18
No que tange especificamente às cenas de mortes reais, Eugênio
Bucci observa que o jornalismo, ao longo das décadas, relaxou no que
concerne aos limites anteriormente existentes na sua transmissão. A
18
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit. p. 116.
morte real deixou de ser uma notícia que se veiculava com certa
cerimônia para tornar-se um recurso das empresas jornalísticas,
convertendo-se em um clipe publicitário, um must jornalístico
19
.
Referindo-se à aprovação dos telespectadores ao assistirem à “telinha”
repetir incessantemente imagens de policiais matando, eliminando os
denominados bandidos, inimigos da ordem social imposta e, por
conseguinte, restaurando a paz tão sonhada, assevera brilhantemente o
autor:
Aqui, a massificação da morte não veio apenas atiçar o
sadismo covarde da turba que urra em torno da arena de
gladiadores-escravos, mas veio para reforçar o nosso medo
de morrer pelas mãos dos excluídos. O que é outra
conversa. Não é um medo difuso, atemporal, mas um medo
historicamente posto: temos medo de ser mortos pelos
parias que matamos diariamente. Que matamos de
desemprego, de fome, de vergonha. O nosso medo de
morrer se converte assim num desejo de matar – não
genérico, mas específico.
20
A parcialidade é latente e a tentativa de tornar os telespectadores
participantes decisivos na busca de perigosos criminosos se repete a
todo instante, como é a hipótese do telejornalismo policial, que
implementa seu show, tornando-se impactante e dramático como
nunca com o programa da Rede Globo, o Linha Direta, que apela com
histórias verídicas que mais parecem filmes de ação, provocando
19
Id. Ibid., p. 109.
20
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit., p. 109.
compaixão e suspense. Neste contexto, encenação e documentário,
ficção e realidade se confundem, tornando difícil identificar as meras
suposições dos fatos que restaram efetivamente comprovados. O autor
entende ser imoral a interatividade acusatória estimulada pelo
programa, através do qual só consegue interagir aquele que faz o papel
de delator, fazendo, ademais, uma analogia com os regimes
totalitaristas, em que todos, indistintamente, tornavam-se agentes do
poder e denunciavam-se mutuamente, sem qualquer pudor, chegando
ao extremo da instituição do Estado policial sobrepujar a unidade
familiar, subordinando-a à lógica totalitária. O Linha Direta, por esta
ótica, nos torna delatores anônimos permanentemente mobilizados e,
pior: os delatores reanimam o show!
Anunciando em todas as edições que a identidade do delator será
mantida no mais absoluto sigilo, estimula-se a prática de atos de
calúnia sem qualquer espécie de reprimenda. A pretexto de prender
bandidos e pessoas perigosas, absolvem-se os indivíduos que, de forma
irresponsável, possam utilizar do artifício concedido e estimulado por
um canal de comunicação para cometer crimes impunemente. Mais
uma vez, imperioso que se proceda a uma ponderação de valores para
verificar se os fins justificam os meios.
Eugênio Bucci, repudiando o Linha Direta, entende tratar-se de
uma excrescência moral, em que o problema da verdade e da mentira é
um problema ético menor, vez que é indiscutível que o programa
constitui uma falsificação na medida em que falsifica a ordem
democrática em ordem policial. Responde às demandas do público, que
busca o desejo e não a opinião, a razão, a vontade. Promete sucesso ao
desejo de vingança do público e mente ao projeto de cidadania,
fazendo de conta que a paz social é responsabilidade da investigação
social. Não é novidade que o Direito Penal, ao longo da História, jamais
foi instrumento de realização de justiça social e, por conseguinte,
jamais restabeleceu a paz social. Sobre a ética midiática, as linhas a
seguir:
Estamos subordinados a uma “ética” (grifada assim, com
aspas) da violência, do lucro, da exclusão e do espetáculo. Aí
estão os padrões éticos consagrados na mídia.
21
21
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit., p. 133.
1.3 – A Sociedade Espetacular e a Equiparação da Notícia à Mercadoria
A especialização das imagens do mundo
encontra-se realizada no mundo da imagem
autonomizada, onde o mentiroso mentiu a si
próprio. O espetáculo, em geral, como
inversão concreta da vida, é o movimento
autônomo do não-vivo.
Guy Debord
A noção ideal de neutralidade e afastamento contrasta com as condições
modernas de produção dos noticiários, as quais redundaram em um acúmulo de
espetáculos, atribuindo-se maior atenção à representação que aos fatos reais. Neste
diapasão, Guy Debord, verbis:
O espetáculo, compreendido na sua totalidade, é ao mesmo
tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente.
Ele não é um suplemento ao mundo real, a sua decoração
readicionada. É o coração da irrealidade da sociedade real.
Sob todas as suas formas particulares, informação ou
propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos,
o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente
dominante. Ele é a afirmação onipresente da escolha já feita
na produção, e o seu corolário o consumo.
22
Pierre Bourdieu repisa que os mecanismos do campo jornalístico, cada vez
mais sujeitos às pressões do mercado, exercem uma influência desmesurada sobre os
próprios jornalistas e ainda sobre os diversos campos de produção cultural, campo
jurídico, literário, artístico e científico. Atentando especificamente para o universo
judiciário, ressalta que o trabalho dos jornalistas orienta muitas vezes o trabalho dos
22
DEBORD, Guy. Op.cit., p.17.
juízes, caracterizando, de certo modo, a transferência do poder de julgar a quem não
tem conhecimentos específicos para tal mister.
O mais impressionante é que o poder punitivo da mídia só é imposto porque
encontra cúmplices nos demais universos. Outro não é o entendimento de Zaffaroni
ao incluir, em seu rol de agências do sistema penal, as agências de comunicação
social.
Sylvia Moretzsohn adverte que a nossa realidade pode ser sintetizada como
a “era do descartável”
23
, o que é imposto pelo modo de produção e caracteriza-se
pelo descarte de pessoas, de valores, de estilos de vida, de relacionamentos estáveis.
Tal volatilidade foi muito bem ressaltada por Bauman quando afirmou que a
velocidade aceleradíssima gera em todos um sentimento de insegurança, em que
jamais estamos tranqüilos pois os vencedores de hoje podem ser os derrotados de
amanhã. A mesma noção inspirou Marx ao discorrer sobre “Tudo o que é sólido
desmancha no ar”. A autora propõe que o processo de produção de notícia se
insere nesse sistema volátil e que ele se justifica por oferecer o que o público
deseja.
Dessume-se que, desde a sua origem, a produção da notícia está sujeita às
leis de mercado, podendo, portanto, ser equiparada à mercadoria, com valor de
uso e troca. Partindo dessa premissa, é possível que se conclua que, assumindo o
caráter de mercadoria, toda notícia acaba sendo sensacionalista porque construída
de modo a agradar o público, ou seja, “de modo a apelar aos sentidos do público”
24
.
Acerca da descaracterização do jornalismo para atender às exigências do mercado,
confira-se o seguinte trecho:
23
MORETZSOHN, Sylvia. Op.cit., p.26.
24
Id. Ibid., p.46.
Pois, na era do “tempo real”, quando a informação deve ser
instantânea para ter valor, o jornalismo mudou
profundamente, a ponto de descaracterizar-se, embora os
grandes conglomerados multimídia venham consolidando
seu poder econômico e político.
25
De fato, a realidade não poderia ser outra na medida em que a
natureza da indústria cultural é incompatível com o projeto da
verdade jornalística, o que causa, de modo inarredável, o “mal-estar
ético da mídia contemporânea”
26
. De forma ousada, Eugênio Bucci
afirma que o negócio do telejornalismo não é o jornalismo ou a
veiculação de conteúdos, mas sim a atração dos olhares do público
para depois vender aos anunciantes. Essa ética é estranha à velha ética
jornalística, que tinha sua deontologia fincada na busca da verdade.
Sobre o tema, seus comentários:
A busca da verdade era um projeto da razão e os
conglomerados há muito se divorciaram da razão. Não
porque seus gestores sejam pessoas mentirosas, mas pela
própria natureza dos conglomerados e da comunicação
tiranizada pela imagem. Onde quer que a notícia esteja a
serviço do espetáculo, a busca da verdade é apenas um
cadáver. Pode até existir, mas, sempre, como um cadáver a
serviço do “dom de iludir”.
27
25
Id. Ibid., p.47.
26
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão,
op.cit., p.128.
27
Id. Ibid., p.129.
Referindo-se ao conceito de fetichismo da mercadoria, de Marx –
“processo através do qual os bens produzidos pelo homem, uma vez
postos no mercado, ganham vida própria, escondendo a relação social
que lhe deu origem”
28
, Sylvia Moretzsohn insiste na equiparação da
notícia à mercadoria, asseverando que “a notícia esconde o processo
pelo qual foi produzida e vende mais do que a informação ali
apresentada. Vende também, e principalmente, a ideologia da
velocidade.”
29
De fato, “noticiar antes” tornou-se mais importante do
que dizer a verdade. A notícia, ao tornar-se mercadoria, é uma fonte
certa de lucros uma vez que, mais do que a rentabilidade dos fatos
noticiados, tem-se o lucro advindo do impacto causado no público.
Destarte, quanto mais explosiva e espetacular for a informação,
maior será o lucro da empresa jornalística. Discorrendo sobre a mídia
espetacular, Guy Debord alerta que a sociedade contemporânea é uma
sociedade do espetáculo, que assiste à constituição de diversos excessos,
tais como uma política espetáculo, uma medicina espetáculo, uma
justiça espetáculo. Exacerbando, pois, a sua função precípua de
comunicar, a mídia, freqüentemente, comete excessos, produzindo o
espetáculo. Continua o autor, salientando que a dominação espetacular
28
MORETZSOHN, Sylvia. Op.cit., p.119.
29
Id. Ibid., p.120.
culminou por criar uma geração que se alimenta e vive do espetáculo,
submetendo-se, por conseguinte, às suas leis. O espetáculo exprimiria o
empobrecimento, a submissão e a negação da vida real, representando
o domínio completo do homem. Referindo-se à existência de um
quadro de esquizofrenia, sustenta Debord:
A consciência espectadora, prisioneira dum universo
estreitado, limitado pelo écran do espetáculo, para trás do
qual a sua vida foi deportada, não conhece mais do que os
interlocutores fictícios que lhe falam unilateralmente da sua
mercadoria e da política de sua mercadoria. O espetáculo,
em toda a sua extensão, é o seu sinal do espelho. Aqui se põe
em cena a falsa saída de um autismo generalizado.
30
Não distoando dessa concepção de submissão do homem pelo
espetáculo, Cremilda Medina, ao conceituar a informação jornalística
como produto de consumo, salienta que a sociedade industrial tende a
transformar o indivíduo em homem de massa, ou seja, um grupo de
pessoas que não tem individualidade e sente uma enorme dificuldade
em exprimir sua qualidade humana. O gosto dessa sociedade de massa
seria aferido com base nos membros mais primitivos, menos sensíveis e
mais ignorantes. Estar-se-ia em uma encruzilhada entre o direcionismo
do comunicador e a passividade do receptor, com a imposição de um
gosto massificado de baixo nível.
30
DEBORD, Guy. Op.cit., p.110.
Discorrendo sobre o espetáculo como meio de subjetivação,
Maria Rita Kehl reporta-se à Lacan para ensinar-nos que a televisão
detém meios de agir sobre o psiquismo das pessoas através de uma
combinação de paixões e imagens. Exemplifica a autora com a
afirmativa de que o espetáculo instrumentaliza o imaginário para tornar
a dominação desejável
31
. O mecanismo proposto para explicar o modo
de inclusão imaginária da sociedade de consumo pelos meios de
comunicação baseia-se no oferecimento de prazeres, traduzindo-se em
um verdadeiro poder de sedução da imagem espetacular.
As cenas de violência na televisão têm sua importância
concentrada na sua própria imagem, segundo Maria Rita Kehl, eis que
transmitida de forma a excitar e provocar um gozo imediato no
telespectador e impedir os processos psíquicos e sociais de
simbolização, inviabilizando, por conseguinte, o pensamento, a
reflexão, a crítica e o diálogo. O gozo seria incompatível com o
pensamento eis que aquele representa o momento de pausa na
atividade psíquica. Isto porque o pensamento seria um processo
demorado pelo qual o ser humano busca um “objeto de satisfação que
se perdeu”
32
, ao passo que o gozo é a satisfação de um desejo –
31
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão,
op.cit., p.55.
32
Id. Ibid., p. 90.
hipoteticamente, o achado do objeto de satisfação. Sem pensamento,
inarredável chegarmos à conclusão de que se impõe uma aceitação
dócil, serena, resignada do que é oferecido.
Nesse mesmo sentido, Pierre Bourdieu constata que a televisão
não é propícia à expressão do pensamento, eis que há um profundo
abismo entre a urgência e o pensamento. De modo brilhante, observa:
Quando emitimos uma “idéia feita” é como se isso estivesse
dado; o problema está resolvido. A comunicação é
instantânea porque, em certo sentido, ela não existe. Ou é
apenas aparente. A troca de lugares-comuns é uma
comunicação sem outro conteúdo que não o fato mesmo da
comunicação. Os “lugares-comuns” que desempenham um
papel enorme na conversação cotidiana têm a virtude de
que todo mundo pode admiti-los e admiti-los
instantaneamente: por sua banalidade, são comuns ao
emissor e ao receptor. Ao contrário, o pensamento é, por
definição, subversivo, deve começar por desmontar as
“idéias feitas” e deve em seguida demonstrar (...). Ora, esse
desdobramento do pensamento pensante está
intrinsecamente ligado ao tempo.
33
Guy Debord, reforçando a mencionada aceitação dócil, sustenta
que, consistindo o espetáculo na principal produção da sociedade atual,
a tendência é que este permaneça gozando desta posição privilegiada,
dada a inexistência de contestação. Este aparece sem réplica diante de
uma aceitação passiva, provocando, inclusive, um comportamento
hipnótico, o que o coloca em situação de real antagonismo com o
diálogo. Em uma manifestação de desalento, afirma que “o espetáculo é
o mau sonho da sociedade moderna acorrentada, que finalmente não
33
BOURDIEU, Pierre. Op.cit., pp. 40-41.
exprime senão o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guardião deste
sono.”
34
O fluxo das imagens dominaria tudo, ditando o ritmo das
reações e não deixando espaço nem tempo para a reflexão. Neste
sentido, a falta de lógica teria sido injetada na população pelos
produtores do espetáculo de tal forma que o indivíduo não vislumbra
outra alternativa senão a de colocar-se a serviço da ordem
estabelecida.
Sob esta perspectiva, pode-se asseverar que não há nada de
neutro nas manifestações do espetáculo, sendo as mesmas
essencialmente unilaterais e tendenciosas. Ademais, o sistema
espetacular seleciona determinados bens, exemplificando Debord com
a televisão, e usa esses bens para reforçar seu mecanismo de
isolamento das “multidões solitárias”
35
. A sociedade que vive sob o
manto do espetáculo vive em estado completo de alienação. Os homens,
essencialmente espectadores, aceitam o pensamento difundido pelas
empresas de valorização da comunicação espetacular, tornando-a
absoluta.
Produz-se irreversivelmente a alienação do espectador face o que
se contempla da seguinte forma:
34
DEBORD, Guy. Op.cit., p.21.
35
Id. Ibid., p.24.
...quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita
reconhecer-se nas imagens dominantes da necessidade, menos ele
compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. A
exterioridade do espetáculo em relação ao homem que age
aparece nisto, os seus próprios gestos já não são seus, mas de
outro que lhes apresenta. Eis porque o espectador não se sente
em casa em nenhum lado, porque o espetáculo está em toda a
parte.
36
Debord finaliza essa idéia, apontando para a cisão mundial entre
realidade e imagem, ressaltando uma certa adesão do espetáculo à
realidade na medida em que esta não mais logra êxito ao tentar se
afastar da contemplação daquele.
Pierre Bourdieu observa que a busca do espetacular, do
sensacional impõe aos jornalistas uma forma diferente de enxergar os
acontecimentos e, ainda, um olhar seletivo e criativo sobre o que é
visto. Os profissionais, através das imagens, operam uma
dramatização, exagerando na importância, na gravidade e no caráter
trágico dos eventos. Nessa linha de raciocínio, o autor denuncia a
pressão econômica que é exercida sobre a televisão, o que justificaria a
veiculação maciça de notícias de variedades, de sangue e sexo, de
drama e de crime, os quais sempre foram o alimento predileto da
imprensa sensacionalista e jamais deixaram de vender.
Cremilda Medina entende que as notícias sensacionalistas como,
por exemplo, a veiculação de crimes bárbaros, são um atrativo para a
36
DEBORD, Guy. Op.cit., p.31.
massa, notando, por conta disto, uma busca desenfreada por fatos
tensos, que provocam a emoção dos leitores, o que reserva um
lugar especial para as crônicas policias. Assim, as notícias factuais
invadem as páginas, em detrimento das opiniões individualizadas. Em
sua próprias palavras:
O jornal atual dos grandes centros urbanos reflete essa
herança: o espaço predominante da narrativa é ocupado
por fatos, situações externas ao mundo particular do
jornalista. E surge então a necessidade de coleta de fatos
mais evidentes – o real concreto. O reforço da narrativa es
hoje centralizado não mais no mundo lógico do autor, nem
nas emoções particulares do poeta da realidade, mas nos
detalhes do contexto exterior que o repórter vai “caçar”
37
Em perseguição ao furo, ao novo, ao extraordinário, os
jornalistas, segundo Bourdieu, conferem um espaço imenso ao
extraordinário ordinário, tendo como meta tornar extraordinário o
ordinário. Nessa tentativa, parece não haver limites para a atuação
midiática. Não distoando dessa concepção, Debord assevera que, para
manter a chama da imagem espetacular acesa, todos os que detiverem
37
MEDINA, Cremilda. Notícia um produto à venda: Jornalismo na Sociedade
Urbana e Industrial. 3
a
. edição. São Paulo: Summus Editorial, 1978, p. 112.
o controle sobre a informação estão absolutamente livres para
falsificar, havendo um descrédito generalizado: “atualmente já não
existe julgamento com a garantia de relativa independência”.
38
De igual
modo, não se pode pensar em narrativa imparcial dos fatos porque o
que é normal não exerce força atrativa sobre as pessoas.
O poder penal da mídia, salienta Bourdieu, torna-se ainda
mais pernicioso em virtude da lógica de que o círculo vicioso da
informação produz um fechamento mental, segundo o qual os
informantes, informados por outros informantes, acabam por
homogeneizar as notícias e, por conseguinte, comprometer cada vez
mais a veracidade das
mesmas. Produz-se verdade a partir de fatos contados por outrem.
Comentando as notícias policiais transmitidas, analisa Guy Debord
que “os rumores midiático-policiais adquirem num instante, ou no pior
dos casos depois de terem sido repetidos três ou quatro vezes, o peso
indiscutível de provas históricas seculares.”
39
Culmina-se, através de tais
discursos, em legitimar a pena estabelecida pelo sistema penal.
38
DEBORD, Guy. Op.cit., p.126.
39
DEBORD, Guy. Op.cit., p.148.
Palavras e verdades são proferidas pela mídia sem qualquer
pudor, independendo o efeito das mesmas na vida dos atingidos. Pierre
Bourdieu adverte para os estragos que as palavras podem causar,
como se depreende do trecho ora colacionado, verbis:
Acontece-me ter vontade de retomar cada palavra dos
apresentadores que falam muitas vezes levianamente, sem
ter a menor idéia da dificuldade e da gravidade do que
evocam e das responsabilidades em que incorrem ao evocá-
las diante de milhares de telespectadores, sem as
compreender e sem compreender que não as compreendem.
Porque essas palavras fazem coisas, criam fantasias, medos,
fobias ou, simplesmente, representações falsas.
40
A situação se agrava na medida em que as imprecisões
raramente são desfeitas com a mesma magnitude com que foram
divulgadas. Acerca desse aspecto, Guy Debord critica a inércia dos
midiáticos, asseverando que, por mais que suas consciências o
impinjam a fazer retificações, a “autoridade generalizada do
espetáculo”
41
os impede de agirem corretamente. Prossegue,
afirmando categoricamente que o experto que melhor se encaixa na
sociedade do espetáculo não é aquele que sabe mais, e sim aquele que
mente melhor.
40
BOURDIEU, Pierre. Op.cit., p. 26.
41
DEBORD, Guy. Op.cit., p.124.
1.4 – A Era do Tempo Real e os Mecanismos de Produção de Verdades
Sylvia Moretzsohn, destacando o lema tradicional da imprensa
de “dar a verdade em primeira mão”
42
, identifica uma contradição
intrínseca, eis que o caráter industrial dessa atividade impõe uma
celeridade, o que, na maioria esmagadora dos casos, obstaculiza a
transmissão da verdade dos fatos, gerando conseqüências catastróficas.
A era do “tempo real”
43
dá origem a uma irracionalidade no processo
de produção das notícias, na medida em que a idéia primordial é dar a
notícia antes do concorrente, não interessando o quão verídica seja a
mesma. Essa irracionalidade seria aparente vez que, na realidade,
procura defender que a atividade jornalística é um serviço prestado ao
leitor e, para que seja prestado adequadamente, imperioso que
acompanhe o ritmo acelerado dos tempos atuais. Afinal, a velocidade é
uma exigência do capitalismo, resumida na expressão, como bem
lembra Moretzsohn, de que “tempo é dinheiro”.
44
Esse ritmo veloz da produção dos noticiários retiraria ainda a possibilidade
de reflexão do próprio jornalista, gerando a possibilidade maior de erros, além de
reduzir ao máximo a veiculação de matérias com ângulos distintos de abordagem.
42
MORETZSOHN, Sylvia. Op.cit., p.11.
43
Id. Ibid., p.11.
44
Id. Ibid., p.18.
Inviabilizando-se a diversidade, culmina-se por anular a natureza questionadora
do leitor.
Paralelamente, a imposição de que os jornalistas cumpram suas tarefas nos
prazos determinados gera um verdadeiro mecanismo de fabricação das notícias, o
que se choca frontalmente com o princípio de que o povo tem o direito de
saber...Saber a verdade, nós supomos...Sobre o tema, assim se posiciona Sylvia
Moretzsohn:
As grandes redações brasileiras fornecem, em todas as
editorias, exemplos diários de notícias fabricadas de acordo
com a busca pela informação capaz de ganhar destaque,
ainda que com muitos malabarismos verbais e/ou visuais,
coerentes com a nossa sociedade do espetáculo.
45
Na esteira dessa idéia de fabricação das notícias, Luís Nassif, repórter da
Folha de São Paulo, operou uma inversão da ordem das palavras de um conhecido
slogan do meio “Aconteceu? Virou manchete”, dando origem ao novo título “Virou
manchete? Aconteceu.”
46
De fato, a veiculação pela mídia de determinada notícia
acaba por produzir uma verdade absoluta. Sob a justificativa de que determinados
fatos são corriqueiros, a imprensa sente-se autorizada a produzir novos fatos, da
mesma estirpe daqueles que aconteceriam de qualquer forma. Brilhantemente,
comenta Moretzsohn:
Entretanto, exatamente por apresentar-se como aquilo que
não é, o jornalismo consegue legitimar-se e assegurar seu
lugar de autoridade, como o mediador definido pelo conceito
45
MORETZSOHN, Sylvia. Op.cit., p. 74.
46
NASSIF, Luis. “Virou manchete? Aconteceu.”. Folha de São Paulo, 4 de maio de 1995, caderno
Dinheiro, p.3.
de “quarto poder”, e garante foros de “verdade” aos fatos que
divulga – e que supostamente “falam por si” -, elidindo as
mediações discursivas que dão a esses fatos o status de
notícia.
47
Mais do que a notícia propriamente dita, há o consumo da velocidade, o que
reforça ainda mais a idéia de fetiche. Diante desse processo acelerado, o imaginário e
os prognósticos acabam por substituir a realidade dos fatos, o que se revela temerário,
eliminando de uma vez por todas uma das partes do lema da imprensa, consoante se
depreende do trecho ora colacionado:
Agora, na era do “tempo real”, essas contradições tendem a se
agravar, e a se “resolver” pela eliminação de um dos termos
do problema – a necessidade de veicular informações corretas
e contextualizadas -, pois “qualquer explicação serve” para
sustentar a notícia transmitida instantaneamente.
48
As pressões do mercado financeiro corroboram para que as fontes noticiem
“qualquer coisa para alimentar o sistema
49
, o que facilita a ocorrência de erros e,
mais que isso, a divulgação de fatos inverídicos, falsos, mas que vendem, importando
mais se uma determinada informação é interessante do que se é verdadeira. Ademais,
o regime de pressa, em vez de atender à utilidade pública, torna-se seu grande vilão,
uma vez que a instantaneidade é o grande fetiche da pós-modernidade.
Esmiuçando a concepção de espaço na era da televisão, Bucci
imagina uma lei que preceituaria que “o que não aparece na TV não
47
MORETZSOHN, Sylvia. Op.cit., p.79.
48
MORETZSOHN, Sylvia. Op.cit., p.128.
49
Id. Ibid., p.145.
acontece de fato”
50
, ou seja, a TV é o único espaço cognoscível, o novo
espaço público. Tudo o que estiver fora do campo de visibilidade não
está no mundo, não é verdadeiro. Da mesma forma, a TV encerra uma
nova dimensão do tempo; colocando tudo em um gerúndio sem começo
ou fim, os eventos vão acontecendo, sucedendo-se e, com isso, causando
no telespectador um torpor
51
, uma sensação de gozo. Não há, destarte,
futuro ou passado, eis que ambos são transmitidos como se presente
fossem, como se tivessem a c o n t e c e n d o naquele exato instante.
Passado e futuro confundem-se como acontece no inconsciente. A este
respeito, Eugenio Bucci: “Nessa perspectiva, eu afirmo que o tempo da
TV é o tempo do inconsciente.”
52
Essa instituição do espaço-tempo públicos pelos meios de comunicação seria,
então, de modo indiscutível, mais uma manifestação de poder comandado pelo
capital. Acerca do poder, as conjecturas a seguir:
O poder pode ser mais bem descrito, hoje, como o
mecanismo de tomada de decisões que permitem ao modo
de produção capitalista, transubstanciado em espetáculo, a
sua reprodução automática. O poder, portanto, é a
supremacia do espetáculo (...) sobre todas as atividades
humanas. O poder, enfim, é a gestão do espetáculo pelos
seus encarregados que, no entanto, não são seus autores,
mas seus subordinados.
53
50
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit., p.33.
51
Id. Ibid., p.35.
52
Id. Ibid., p.35.
53
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit., p.20
CAPÍTULO II - CRIMINOLOGIA E SEXUALIDADE
2.1 A colocação do sexo em discurso atrelada à incidência do poder de normalização
sobre o domínio da sexualidade
Michel Foucault, buscando analisar a tecnologia de poder que
utiliza os discursos de verdade e tenta fazê-los funcionar, observa que
tais discursos estão presentes no próprio âmago da instituição
judiciária, em que, a todo momento, são proferidas decisões acerca da
liberdade dos homens e, em certos casos, detêm uma força suficiente
para decidir acerca da vida e da morte dos indivíduos. Convencem
porque são construídos sobre uma base científica, por pessoas
qualificadas e no interior de uma instituição científica. Os
formuladores e aplicadores dos discursos são revestidos de uma
autoridade que Foucault denomina de “indignidade do poder”
54
, a qual
apresenta graus variados que vão desde a “soberania infame à
autoridade ridícula”
55
. Observa o autor que o poder, por mais infame
que seja, é inevitável, podendo funcionar com todo o seu rigor mesmo
nas mãos da autoridade mais desqualificada.
54
FOUCAULT, Michel. Os anormais. Tradução de José Teixeira Coelho Netto. 2
a
. edição. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 16.
55
Id. Ibid., p. 16.
O Ocidente, desde a cidade grega, atribui um poder
desmesurado ao discurso científico. No que tange especificamente aos
exames psiquiátricos, seus textos repetem noções como “imaturidade
psicológica, personalidade pouco estruturada, má apreciação do real”
56
,
que possuem duas funções, a saber:
1) confundir o delito com a maneira de ser de cada um, de modo a que
a infração seja constituída como traço individual;
2) “deslegalizar a infração”
57
, tornando-a uma manifestação de
inobservância de regras éticas, de qualificações morais.
Efeito inarredável dessa nova concepção é que o psiquiatra não visa
explicar o crime, mas sim enunciar uma tese de que quem merece
punição é o próprio objeto de exame, o infrator. Nesse sentido, toda a
fúria do aparelho judiciário deve dirigir-se ao sujeito. Não se quer
punir a infração – a psiquiatria, de forma associada com o Poder
Judiciário, apropria-se dos corpos dos indivíduos, em busca de sua
transformação, através da utilização de técnicas científicas. Isso
descaracteriza a função precípua da psiquiatria que seria de substituir
a instituição judiciária em caso de loucura. Ao revés, os exames
56
Id. Ibid., p. 20.
57
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 21.
médico-legais atestam que determinado indivíduo cometeu
determinada infração com base exclusivamente em suas características
atuais ou em atitudes do passado, que remontam, na maioria
esmagadora dos casos, a atitudes praticadas na infância. Destarte, a
dupla qualificação, médica e judiciária, determina o grau de
perversidade dos sujeitos, objetos de exame.
Michel Foucault, descrevendo um caso em que a análise
psiquiátrica acabou condenando o indivíduo à guilhotina, afirma, de
forma impecável:
Trata-se, pois, num exame como esse, de reconstituir a série
do que poderíamos chamar de faltas sem infração, ou
também de defeitos sem ilegalidade. Em outras palavras,
mostrar como o indivíduo já se parecia com seu crime antes
de o ter cometido.
58
Partindo dessas considerações, o autor enuncia um certo tipo de
poder de normalização que se apóia tanto na instituição médica quanto
na judiciária – com base em definições ligadas à perversidade, tais
como “imaturidade, debilidade do Eu, não-desenvolvimento do superego,
58
Id. Ibid., p. 24.
de estrutura de caráter”
59
, o discurso médico e, insisto, científico,
conclui pela existência de dolo no cometimento do delito, ou seja,
define-se o ânimo deliberado na prática de certa conduta com fulcro
em características particulares dos sujeitos.
A circulação do vocabulário médico no campo do Poder
Judiciário detém uma força impressionante de unificar a reação social,
impondo, conjuntamente, a prisão e o hospital, a expiação e a cura.
Vislumbra-se, nesse cenário, uma rede contínua de instituições que se
unem para responder ao perigo. De fato, para responder ao crime,
bastaria a instituição punitiva; para tratar a doença, bastaria a
instituição médica. Nas palavras de Foucault:
É para o indivíduo perigoso, isto é, nem exatamente doente
nem propriamente criminoso, que esse conjunto
institucional está voltado.
60
O poder de normalização, segundo essa concepção, funciona
intervindo e transformando, mas nunca excluindo ou rejeitando – “a
norma traz consigo ao mesmo tempo um princípio de qualificação e um
princípio de correção”
61
. Ao longo da História, o poder de normalização
incidiu sobre o domínio da sexualidade, consistindo em um poder
59
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 41.
60
Id. Ibid., p. 43.
61
Id. Ibid., p. 62.
tipicamente produtivo, inventivo, inovador, e apenas secundariamente
repressivo.
Mais do que a censura da sexualidade, Michel Foucault nos
aponta para a história da revelação da sexualidade. A este respeito,
impende transcrever o trecho ora trazido à colação:
Em outras palavras, não é a censura que é o processo
primário e fundamental. Quer se entenda a censura como
recalque, quer simplesmente como uma hipocrisia, trata-se
em todo caso de um processo negativo ordenado a uma
mecânica positiva (...).
62
Destarte, é legítimo que se diga que a interdição do sexo não foi o
elemento fundamental e constituinte da História da Sexualidade.
Sugere Foucault que todos os elementos negativos, os quais inibiram e
reprimiram as manifestações sexuais ao longo da história são apenas
mais elementos que assumem uma função tática nos discursos, nas
técnicas de poder, na vontade de saber, o que perpassa a mera coibição
do sexo. Assim sendo, a partir do século XVI, a colocação do sexo em
discurso, em vez de ser restringida, sofreu um processo de crescente
incitação. De fato, em torno do sexo, houve uma verdadeira explosão
discursiva, logicamente sem olvidar que o vocabulário autorizado
62
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 214.
sofreu concomitantemente um processo de depuração, com a fixação
de regras de decência que filtravam as palavras proferidas.
Papel decisivo nesse estímulo ao discurso sobre sexo
desempenhou a Contra-Reforma, a qual se dedicou a acelerar o ritmo
de confissão em todos os países católicos, mormente a relacionada aos
pecados ligados às insinuações da carne:
(...) pensamentos, desejos, imaginações voluptuosas,
deleites, movimentos simultâneos da alma e do corpo, tudo
isso deve entrar, agora, e em detalhe, no jogo da confissão e
da direção espiritual. O sexo, segundo a nova pastoral, não
deve mais ser mencionado sem prudência: mas seus
aspectos, suas correlações, seus efeitos devem ser seguidos
até às mais finas ramificações: uma sombra num devaneio,
uma imagem expulsa com demasiada lentidão, uma
cumplicidade mal afastada entre a mecânica do corpo e a
complascência do espírito: tudo deve ser dito.”
63
O projeto de colocação do sexo em forma de discurso formara-se
há muito tempo, tendo o século XVII tomado para si a tarefa de torná-
lo uma regra para todos, principalmente através da inscrição, pela
pastoral cristã, do dever fundamental de se externar tudo o que se
relacionava ao sexo, desde os atos consumados até os olhares maldosos.
Essa técnica de dizer tudo sobre o próprio sexo, afirma Foucault, não
se manteve atada ao destino da espiritualidade cristã, tendo sido
63
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da
Costa Albuquerque e J.A Ghilhon Albuquerque. 16
a
. edição. São Paulo: Edições Graal Ltda, 2005, p. 23.
apoiada por outros mecanismos de poder, engendrados por um
interesse público.
Daí nasceria, a partir do século XVIII, uma incitação, agora
política, econômica, técnica, de falar do sexo. Passou-se a empreender
uma análise quantitativa e causal dos discursos (forma de análise,
contabilidade, classificação e especificação), formulando sobre o sexo
um discurso, não somente moral, mas racional. Desenvolveu-se, assim,
a idéia de que seria preciso regular o sexo por meio de discursos úteis e
públicos e não pelo rigor de uma proibição. Inúmeros focos
começaram a suscitar os discursos sobre o sexo, donde se destaca a
justiça penal que, a partir da segunda metade do século XIX, passou a
preocupar-se com os pequenos atentados relacionados à sexualidade –
“ultrajes de pequena monta, perversões sem importância”
64
,
empreendendo um controle social vigoroso com o objetivo claro de
filtrar a sexualidade dos casais, proteger pais e filhos, prevenir,
despertar atenções, enfim, suscitar perigos incessantes que culminam
por incitar a fala sobre ele.
Percebe-se que, de uma hora para outra, o cotidiano da
sexualidade é invadido pela ação judiciária, pela intervenção médica,
64
Id. Ibid., p.32.
formando-se acerca deste toda uma elaboração teórica. Acerca do
tema, nos ensina Michel Foucault, verbis:
Desde o século XVIII o sexo não cessou de provocar uma
espécie de erotismo discursivo generalizado. E tais discursos
sobre o sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra
ele, porém lá onde ele se exercia e como meio para o seu
exercício; criaram-se em todo canto incitações a falar; em
toda parte, dispositivos para ouvir e registrar,
procedimentos para observar, interrogar e formular.
Desenfurnam-no e obrigam-no a uma existência discursiva.
Do singular imperativo, que impõe a cada um fazer de sua
sexualidade um discurso permanente, aos múltiplos
mecanismos que, na ordem da economia, da pedagogia, da
medicina e da justiça incitam, extraem, organizam e
institucionalizam o discurso do sexo, foi imensa a
prolixidade que nossa civilização exigiu e organizou.
65
Efeito inarredável de tais discursos foi a multiplicação das
condenações judiciárias das perversões menores, bem como a
caracterização de todos os desvios possíveis, gerando-se uma
abominação de todas as mínimas fantasias e organizando-se controles
pedagógicos e tratamentos médicos: o século XIX foi a era iniciadora
das “heterogeneidades sexuais.”
66
Equiparou-se a irregularidade sexual
à doença mental, surgindo as nomenclaturas de loucura moral, da
neurose genital, da aberração do sentido genésico, da degenerescência ou
do desequilíbrio psíquico”.
67
65
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber, op.cit., p. 34.
66
Id. Ibid., p. 38.
67
Id. Ibid., p. 41.
2.2 – O controle exercido sobre a sexualidade infantil
2.2.1 – O efeito degradante da prática masturbatória
Percebe-se, claramente, um detalhamento na classificação dos
delitos sexuais no século XIX pela medicina, o que corroborou para a
implementação de uma série de instâncias de controle pela pedagogia e
pela terapêutica. Dentre inúmeras modalidades de controle, Michel
Foucault destaca o controle incidente sobre a sexualidade infantil,
apontando para a perseguição implacável de seus “hábitos solitários.”
68
Da mesma forma, a primeira manifestação do poder de
normalização no campo da sexualidade deu-se em relação à criança
masturbadora, que, segundo Foucault, aparece em meados do século
XVIII e adquire sua regularidade científica, através das técnicas de
saber, apenas no século XIX. A pedagogia concebe a figura da criança
masturbadora como algo universal, que existe em todas as famílias e
que todos silenciam, atribuindo a essa prática todas as doenças, sejam
as de fundo nervoso, as corporais ou as psíquicas. Nesse contexto,
todas as formas de anomalia teriam sua raiz, seu fundamento, na
68
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber, op.cit., p. 42.
sexualidade infantil, mais precisamente no onanismo, no “corpo
solitário e desejante”.
69
Foucault ressalta que as falas e os escritos sobre a masturbação
começam e perduram por mais de um século, em um volume
avassalador, primeiro nos países protestantes, mas, logo em seguida,
nos países católicos. Interessante observar que os discursos sobre a
masturbação não detinham um caráter científico, mas revelavam-se
como conselhos aos pais para evitar a prática pelas crianças e
adolescentes, caracterizando uma verdadeira “cruzada
antimasturbatória
70
. Ademais, muitos tratados dirigiam-se
especificamente aos adolescentes e vinham recheados de ilustrações de
jovens definhando em decorrência dos hábitos relacionados à
masturbação.
Michel Foucault insurge-se contra a concepção formada por Van
Ussel de que a história da sexualidade era marcada pela repressão e
visava transformar o órgão de prazer em instrumento de desempenho
para atender às necessidades de produção. Foucault repudia essa
explicação, afirmando que a campanha contra a masturbação do
século XVIII não se dirigia, em aspecto algum, à atividade sexual em
geral, a qual só foi objeto de análise no final do século XIX. Além disso,
69
Id. Os anormais, op.cit., p. 244.
70
Id. Ibid., p. 299.
as indagações não estavam voltadas para a sexualidade operária
adulta; ao revés, questionava-se a masturbação da criança e do
adolescente burguês.
O discurso antimasturbatório visava anunciar, como já colocado
linhas acima, que a vida adulta da criança de hábitos solitários seria
uma vida repleta de doenças, como uma espécie de somatização, em
que a masturbação apresentava-se como a causa universal de todas as
doenças. Era como se o jovem ou a criança, ao se tocarem, estivessem
traçando um futuro mórbido e doloroso. Descrevendo esse processo, os
comentários seguintes, verbis:
Logo, de um lado, a fabulação científica da doença total; em
segundo lugar, a codificação etiológica da masturbação nas
categorias nosográficas mais bem estabelecidas; enfim,
organização, sob o comando e a conduta dos próprios
médicos, de uma espécie de temática hipocondríaca, de
somatização dos efeitos da masturbação, no discurso, na
existência, nas sensações, no próprio corpo do doente.
71
Cuida-se, como afirma o autor, de uma manifestação de poder da
pedagogia e da medicina, as quais dispensaram um tratamento de tal
monta severo que se assemelhava ao combate a uma verdadeira
71
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 304.
epidemia, que precisa ser aniquilada. Para tanto, mobilizou-se o
mundo adulto em torno do sexo das crianças, obrigando-as a
esconderem suas manias e depois a confessá-las, de tal modo que se
tornasse possível identificar as origens e os efeitos de tais práticas. Pais
e educadores eram alertados para o vício de suas crianças e de que, a
princípio, todas elas seriam culpadas e, portanto, mereceriam uma
vigilância constante e perene. Foucault comenta brilhantemente esse
poder exacerbado exercido à época, além do interesse em se propagar e
manter esse domínio, verbis:
O ‘vício’ da criança não é tanto um inimigo, mas um
suporte; pode-se muito bem designá-lo como o mal a ser
suprimido. O necessário fracasso, a extrema obstinação
numa tarefa tão inútil leva a pensar que se deseja que ele
persista e prolifere até os limites do visível e do invisível, ao
invés de desaparecer para sempre. Graças a esse apoio o
poder avança, multiplica suas articulações e seus efeitos,
enquanto o seu alvo se amplia, subdivide e ramifica,
penetrando no real ao mesmo ritmo que ele. Trata-se,
aparentemente, de um dispositivo de barragem; de fato,
organizaram-se, em torno da criança, linhas de penetração
infinitas.
72
De fácil conclusão que todas as doenças que, a princípio, a
medicina não lograria êxito em explicar, serão atribuídas à
sexualidade, antes ainda à atividade masturbatória – assiste-se, então,
a uma responsabilização patológica do próprio sujeito por sua doença.
72
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber, op.cit., p. 43.
A criança seria, como conclui Foucault, responsável, mas de quem
seria a culpa? “A culpa vem do exterior”
73
, é o que afirma a
generalidade. Culpam-se os pais, os educadores, mas principalmente
aqueles que se colocarão dentro de casa, entre a virtude dos pais e a
inocência natural das crianças
74
- a governanta, a criadagem doméstica
em geral. De maneira mediata, atribui-se a culpa aos pais negligentes
que, por não dispensarem atenção suficiente aos seus filhos, culminam
por entregá-los aos criados, repletos de desejo sexual. A campanha
antimasturbatória aponta para a necessidade de tornar os pais mais
circunspectos, mais vigilantes, eliminando, dentro do possível, todos os
elementos invasores – “a solução ideal sendo precisamente a criança
sozinha, num espaço familiar sexualmente asséptico”.
75
Pais com
olhares voltados para os seus filhos, de forma ininterrupta e perene.
2.2.2 – A aproximação necessária entre pais e filhos
Essa exigência de vigilância constante aproxima o corpo dos pais
do corpo dos filhos, como observa muito bem Michel Foucault,
constituindo uma família-célula
76
, em que se misturam os corpos dos
73
Id. Os anormais, op.cit., p. 308.
74
Id. Ibid., p. 309.
75
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 311.
76
Id. Ibid., p. 314.
pais com os corpos dos filhos, não havendo mais ninguém, mais nada
entre eles. A este respeito, a leitura do autor:
(...) toda essa dramaturgia que aproxima indefinidamente a
curiosidade do adulto do corpo da criança. Sintomatologia
miúda do prazer. Nessa aproximação cada vez mais estreita
do adulto à criança, no momento em que o corpo da criança
está em estado de prazer, vamos encontrar, no limite, a
diretriz, simétrica à diretriz de solidão de que lhes falava há
pouco, que é a presença física imediata do adulto ao lado, ao
longo da criança. Quase em cima da criança.
77
Como decorrência desse processo, o tema do incesto adquire uma
importância abissal no fim do século XIX. Ao observarem tão
intimamente sua prole, os pais percebem a existência de um desejo que
advém exatamente dos seus filhos. Nesse instante, os mecanismos de
poder retiram dos pais essa culpa por terem descoberto o “corpo
desejante de seus filhos”
78
, convencendo-os de que não foi a
aproximação, a vigilância necessária a causa do desejo, uma vez que os
desejos partem, desde a origem, dos seus filhos, e não o contrário. Esse
surgimento do incesto, do desejo incestuoso reforça a urgência de um
77
Id. Ibid., p. 313.
78
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 339.
elemento exterior, médico, com conhecimento suficiente para intervir,
corrigindo a pior das anomalias.
Zygmunt Bauman, reportando-se à História da Sexualidade, de
Foucault, reitera a sua concordância com o renomado autor,
afirmando que o sexo sempre serviu à articulação dos novos e
modernos mecanismos do poder e do controle social. Bauman aponta
para os discursos médico e educacional do século XIX que, entre
outras coisas, criaram o fenômeno da sexualidade infantil e,
juntamente com este, o pânico em torno da tendência ou propensão da
criança a se masturbar, delineando um cenário patológico e de dano
potencial, o qual só poderia ser contornado com a participação ativa
dos pais e professores. As crianças, portanto, eram submetidas a um
processo de vigilância perene que incluía a observação aprofundada
dos seus gestos, da mudança de seu comportamento, de sua expressão
facial, além da advertência às mesmas do quão mórbidas eram as
práticas sexuais; tudo para proteger e livrar os pequenos do repulsivo
e insistente “vício infantil”.
79
A propagação desse pânico em relação à masturbação infantil
seria, então, uma das manifestações do poder panóptico na medida em
79
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Tradução de Mauro
Gama e Claudia Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1998, p.
181.
que o sexo, ao longo dos tempos, desempenhou um papel decisivo na
edificação das famílias modernas e, dessa forma, influenciou
sobremaneira o poder panóptico total. A família, como é cediço, exerce
uma função disciplinadora e castradora sobre os seus componentes,
mormente naqueles que não sofrem o controle já exercido pelas
grandes instituições panópticas, tais como a fábrica e o exército.
Destarte, nenhum indivíduo escaparia ao olhar do grande panóptico.
Discorrendo sobre o poder de controle do sexo, assevera o autor:
O sexo era mais apropriado a essa finalidade do que
qualquer outro aspecto do corpo e da alma humana;
natural, ainda eriçado de tentações inaturais, iniludível
ainda que cheio de perigos e acima de tudo onipresente e
partilhado por todos os seres humanos, o sexo era como que
feito sob medida para o poder total e que em tudo
penetrasse, concentrado na administração do corpo e do
espírito humanos – um espírito são num corpo
são...Oferecia tudo o que tal poder podia ter precisado para
se estabelecer e reproduzir, simultaneamente seu
mecanismo e seu objeto.
80
A sexualidade das crianças, destarte, consistia em um pretexto
para a interferência impertinente e arrebatadora dos pais em sua
individualidade, estimulando confissões de segredos, conversas íntimas,
aproximações, mesmo que de forma forçada.
80
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade, op.cit., p. 182.
2.2.3 – A masturbação como indicativo de abuso sexual. Afastamento entre
pais e filhos.
Em sentido diametralmente oposto, nos dias atuais, a sexualidade
tornou-se um instrumento de afastamento entre pais e filhos, na
medida em que o pânico de outrora em relação à masturbação infantil
converteu-se, na atualidade, no medo do que os pais podem fazer com e
aos seus filhos. O foco está agora incidindo sobre as crianças, objetos
sexuais, sugestionadas pelo desejo sexual de seus pais que, de
protetores, passaram a agressores, a sujeitos sexuais, com pensamentos
doentios. Os filhos, forçosamente, devem ser isolados do amor dos seus
pais, amor que nada mais tem de puro. Comentando um caso famoso,
ocorrido na Grã-Bretanha, em que foi veiculada pela mídia uma
epidemia de exploração sexual de crianças por seus genitores e, por
conseguinte, muitos filhos foram arrancados dos braços de seus pais,
afirma Bauman:
Apenas alguns dos casos publicamente discutidos eram
levados a julgamento. Em certos casos, os pais acusados
conseguiam provar sua inocência e tinham os filhos de volta.
Mas o que aconteceu aconteceu. A ternura dos pais perdeu
sua inocência. Fora levado a público a consciência de que as
crianças são sempre e em toda parte objetos sexuais, de que
há um fundo sexual potencialmente explosivo em qualquer
ato de amor dos pais, de que toda carícia tem seu aspecto
erótico e em todo gesto de amor pode esconder-se um
assédio sexual.
81
81
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-Estar da Pós-Modernidade, op.cit., p. 187.
Afigura-se legítimo afirmar, na esteira do pensamento de
Bauman, que o interesse das crianças por seus órgãos genitais, bem
como os casos de masturbação, são encarados, nessa recentíssima
concepção, como indicadores de abuso sexual e como decorrentes da
sexualidade dos pais. A criança, agora, como objeto sexual, não mais
precisa da proteção atenta e compreensiva dos pais, mas, ao contrário,
demanda um necessário afastamento e rompimento de laços afetivos
com os mesmos. Relatando um caso amplamente divulgado, o qual
retrata bem o discurso dos nossos dias, nos conta o autor:
(...) Amy, de três anos de idade,, foi encontrada na escola,
fazendo objetos, com massa de modelar, em forma de
lingüiça ou de cobra (que o professor identificava como
pênis) e falava de coisas que “esguichavam substância
branca”. A explicação dos pais, de que o misterioso objeto
que esguichava substância branca era um borrifador contra
congestão nasal, enquanto as coisas em forma de lingüiça
eram imagens dos doces de gelatina preferidos por Amy,
não ajudaram. O nome de Amy foi colocado na lista de
“crianças em perigo”, e os pais entraram numa batalha
para limpar seus nomes.
82
2.2.4 – A participação do Estado e do saber médico na cruzada contra a
masturbação
A família sólida e solidária do século XIX constituiu-se em torno,
portanto, da sexualidade infantil, através dos mecanismos de vigilância
82
Id. Ibid., p. 188.
e controle. Os pais eram incitados a observar seus filhos, convencidos
da idéia de que a masturbação constituía uma doença, da qual
derivariam outras tantas. Aliando-se, pois, ao controle parental, estava
o controle médico, com suas intervenções, com todo o seu saber, que
deveria ser apreendido e aceito pelos pais. “A nova família, a família
substancial, a família afetiva e sexual, é ao mesmo tempo uma família
medicalizada.”
83
Alerta Foucault que é essa família que faz surgir, nas
primeiras décadas do século XIX, o normal e o anormal na ordem
sexual, sendo, ademais, o princípio de correção do anormal.
Coube, dessa feita, aos pais apropriarem-se dos corpos dos
seus filhos para corrigi-los e, na grande maioria dos casos, para
preservar suas vidas, impedindo que se degradassem através das
práticas de masturbação. Para tanto, os genitores deveriam permitir a
penetração, em seus lares, do conhecimento médico-científico, que teria
vindo como um grande aliado na proteção dos mais jovens. Ato
contínuo, o Estado, depois de pedir que as famílias mantivessem vivos
seus filhos, pede que os entreguem à proteção e à educação estatais –
Foucault sugere um processo de troca:
Mantenham seus filhos bem vivos e fortes, corporalmente
sadios, dóceis e aptos, para que possamos fazê-los passar
por uma máquina que vocês não controlam, que será o
83
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 317.
sistema de educação, de instrução, de formação, do
Estado.
84
A sexualidade continua pertencendo aos pais, mas, em troca de
tanto poder que se conferiu aos mesmos, o Estado requer, ou melhor
dizendo, requisita a aptidão e o desempenho dos filhos. Haveria, então,
um engodo: os pais passariam suas vidas evitando um processo natural
tal qual a masturbação tão somente para adquirirem um poder sobre
seus filhos e, ao final, entregá-los ao Estado, seu destinatário final.
84
Id. Ibid., p. 325.
2.3 – Campanhas diferenciadas conforme a classe social
Paralelamente à cruzada antimasturbação, que se dirigia quase
que exclusivamente à família burguesa, surge, sem relação direta, um
outro movimento, dirigido ao proletariado (início do século XIX),
consistente em impedir o concubinato, o que se justificava por razões
econômicas, políticas e, principalmente, para facilitar o controle sobre
essa camada da população (não-mobilidade, não-agitação)
85
. Outra
campanha, surgida na mesma época, pugnava por um distanciamento
necessário entre as pessoas, dentro do espaço familiar, incluindo o
afastamento entre pais e filhos e a divisão de quartos. Mais uma vez, a
temática do incesto aparece, agora com uma outra roupagem, quase
oposta à da burguesia – o perigo do incesto não se dirige dos filhos
para os pais, mas do mais velho ao mais novo, do irmão à irmã.
Buscava-se evitar uma promiscuidade que adviria, principalmente, da
sexualidade adulta. Foucault, voltando-se para seus alunos, retrata da
seguinte maneira a questão, verbis:
De um lado, o processo de que lhes falava da última vez:
processo de aproximação-coagulação, que permite definir,
na larga rede da família detentora de status e bens, uma
pequena célula intensa que se agrupa em torno do corpo da
criança perigosamente socializada. E, de outro lado, temos
85
FOUCAULT, Michel. Os anormais, op.cit., p. 343.
outro processo. Não é mais o processo da aproximação-
coagulação, mas da estabilização-repartição das relações
sexuais: instauração de uma distância ótima em torno de
uma sexualidade adulta, considerada perigosa. Num caso, é
a sexualidade da criança que é perigosa e que pede a
coagulação da família; no outro, é a sexualidade do adulto
que é considerada perigosa e que pede, ao contrário, a
repartição ótima da família.
86
Vê-se que a intervenção autoritária no ambiente familiar varia conforme a
classe social que se visa atingir. Em se tratando da família burguesa, clama-se por
uma intervenção médica para tratar da fatalidade do desejo ligado à formação da
criança (teoria psicanalítica do incesto). No que concerne ao proletariado, exige-se
uma intervenção policial e judiciária para combater, punir e exterminar o velho
pervertido que ataca as criancinhas indefesas, o que envolve todas as instâncias de
controle social (teoria sociológica do incesto).
A partir do histórico narrado, nota-se que a história da
sexualidade não é uma história de repressão relacionada à utilização
da força de trabalho e, portanto, não se relaciona diretamente ao
domínio sobre as classes pobres. Ao contrário, as técnicas de controle
mais rígidas foram primeiramente aplicadas nos meios mais abastados,
das classes dirigentes e economicamente privilegiadas. A este respeito,
as próprias palavras de Foucault, verbis:
(...) foi na família burguesa, ou aristocrática, que se
problematizou inicialmente a sexualidade das crianças ou
86
Id. Ibid., p. 345.
dos adolescentes; e nela foi medicalizada a sexualidade
feminina; ela foi alertada em primeiro lugar para a
patologia possível do sexo, a urgência em vigiá-lo e a
necessidade de inventar uma tecnologia racional de
correção. Foi ela o primeiro lugar de psiquiatrização do
sexo. Foi quem entrou, antes de todas, em erotismo sexual,
dando-se a medos, inventando receitas, pedindo o socorro
das técnicas científicas, suscitando, para repeti-los para si
mesma, discursos inumeráveis.
87
Com isso, insinua o autor que as camadas populares ficaram
ilesas, por bastante tempo, do dispositivo da sexualidade e que a
história da sexualidade foi muito mais uma história de “auto-afirmação
de uma classe”
88
do que de sujeição de uma outra. De fato, a classe
dominante preocupava-se em demasia com o seu corpo, seu sexo,
devotando aos mesmos os maiores cuidados e precauções, muitas vezes
de forma aterrorizadora. Somente mais tarde o dispositivo da
sexualidade foi estendida aos desfavorecidos, agora sim com um
caráter de repressão, de controle da população, de eliminação das
epidemias, das doenças venéreas. Afigura-se lícito afirmar que a teoria
da repressão é ligada historicamente à difusão do dispositivo da
sexualidade para as camadas pobres.
Facilmente se percebe que o sexo tornou-se um foco de disputa
política, em que se coloca, de um lado, o adestramento, a economia das
energias, a correta distribuição das forças e, de outro, a regulação das
87
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber, op.cit., p. 114.
88
Id. Ibid., p. 116.
populações, a repressão. No que concerne especificamente à
sexualização da criança, esta realizou-se sob a forma de “uma
campanha pela saúde da raça”
89
, entendendo-se que a precocidade
sexual ameaçava o futuro da sociedade como um todo.
2.4 – Poder/Prazer e Saber como legitimadores de práticas racistas
O Ocidente, ordenando que se dissesse a mais absoluta verdade
sobre a sexualidade, produziu uma rede de discursos, prazeres, saberes
e poderes, disseminando o sexo, incitando a sua confissão e descrição.
Nesses discursos, afirma Foucault, articulavam-se as noções de poder e
saber o tempo todo. Uma das manifestações de poder residia
exatamente na idéia de degenerescência, ou seja, uma teoria que se
baseava na premissa de que uma hereditariedade carregada de
doenças diversas produzia “um perverso sexual”
90
.
Destarte, a tecnologia do sexo baseada na degenerescência
informou a psiquiatria, a medicina legal, as instâncias do controle
social, a vigilância das crianças perigosas, criando uma verdadeira
89
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber, op.cit., p. 137.
90
Id. Ibid., p. 112.
rede racista estatal, em que se exercia um poderio imensurável sob
uma justificativa científica.
Foucault assemelha esse processo de invasão dos indivíduos para
arrancar-lhes confissões à inquisição, eis que a mecânica de poder
parece não ter limites. Quanto mais se exerce o poder, mais se
impulsiona o seu exercício, despertando curiosidades sobre os relatos
sexuais que se prolongam em um questionário que parece não ter fim.
De modo interessante, muito embora, a princípio, estes mecanismos de
controle visem a coibir essas práticas, estas acabam operando o efeito
inverso, incitando-as. O poder sobre os relatos acaba confundindo-se
com o prazer de espiar e revelar as manifestações sexuais. Poder e
prazer impulsionam uma fiscalização cada vez mais profunda. Efeito
inarredável dessa interferência nos corpos e nos prazeres é o
crescimento das perversões. De fato, quanto mais se rotula as
sexualidades de acordo com determinadas características, tais como a
idade, gosto, tipo de prática, mais aumenta o catálogo das perversões
identificáveis e, por conseguinte, dos pervertidos classificáveis.
O autor alerta que, por detrás desses mecanismos de controle, há
inumeráveis lucros econômicos, envolvendo a medicina, a psiquiatria, a
prostituição e a pornografia, o que apontaria para um estímulo
crescente do prazer e do poder. Observa-se que “prazer e poder não se
anulam; não se voltam um contra o outro; seguem-se, entrelaçam-se e se
relançam. Encadeiam-se através de mecanismos complexos e positivos,
de excitação e de incitação.”
91
No que tange especificamente à prática médica do final do século
XIX, esta, sem qualquer pudor, faltava com a verdade para atender à
lei e à opinião dominante. Constantemente, sob a justificativa de
eliminação de tarados, de degenerados, a medicina legitimava práticas
racistas, sem o menor fundamento científico. Observa Foucault, com
brilhantismo, que, em torno do sexo, criou-se toda uma aparelhagem
para produzir a verdade, através de duas linhas essenciais (a da
confissão e a da discursividade científica), sendo essa verdade, no
último momento, mascarada de acordo com interesses determinados.
2.5 – Os delinqüentes sexuais como alvo do panoptismo penal e dos
processos de estigmatização liderados pelos meios de comunicação
As práticas racistas e de perseguição em torno da sexualidade
perduram até os dias atuais. Löic Wacquant, com uma perfeição rara,
denuncia o mais novo alvo favorito, ao lado dos jovens de bairros
pobres, do panoptismo penal norte-americano: os delinqüentes sexuais.
91
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade1: a vontade de saber, op.cit., p. 48.
Discorre sobre os estigmas que perseguem os condenados por atentado
violento ao pudor e outros crimes correlatos, os quais revelam-se há
tempos objeto de medos e de medidas especiais, seja para mantê-los
isolados em guetos, seja para afastá-los definitivamente do convívio
social. O autor descreve uma série de medidas criadas pelo poder
público e referendadas pelos cidadãos que, longe de viabilizar a
recuperação e ressocialização desses condenados, visam estabelecer
penas vexatórias perpétuas de controle, repúdio e perseguição.
Dentre as várias restrições que atingem os “sex offenders”,
nomenclatura que lhes foi dada pelo distrito de Colúmbia e por outros
vinte e cinco estados, está a de exercer qualquer atividade que lhes
mantenha em contato com menores. Ademais, aponta o autor, na
Califórnia, estabeleceu-se que todos os que haviam cumprido pena em
virtude da prática de crimes sexuais deveriam se registrar no
comissariado de polícia até cinco dias após o cumprimento da pena e
comparecer anualmente nesse comissariado. É como se o crime
perpetrado marcasse o condenado para sempre e o impingisse a pedir
perdão à sociedade e aos denominados “homens de bem” até o fim de
sua vida. Uma das Leis que mais fortemente retrata essa sina imposta
aos “Sex offenders” é a Lei de Megan (nome dado em virtude de
Megan, uma menina que foi vítima de um vizinho pedófilo em
liberdade condicional), de 1996, que coloca o nome de cada um deles
no índex, ao qual todos os cidadãos, à exceção dos próprios
delinqüentes sexuais (para evitar a formação de grupos criminosos),
têm amplo e irrestrito acesso.
Houve outro caso, no mesmo ano de 1996, em que se percebe a
nítida parceria entre os órgãos de segurança e os de comunicação.
Amber Hagerman, moradora de Arlington, no Texas, tinha 9 (nove)
anos de idade quando desapareceu, vista pela primeira vez quando
andava de bicicleta, perto de sua casa. À época, apesar dos esforços das
agências policiais e do envolvimento da comunidade na procura da
menina, seu corpo nu foi encontrado quatro dias mais tarde, flutuando
de bruços em um riacho, com o pescoço cortado. Esse fato inspirou a
criação do AMBER – Plano de Alerta AMBER, conhecido como o
“alarme que salva
92
e que, além de representar uma homenagem à
menina morta, significa oficialmente “America’s Missing: Broadcoast
Emergency Response (Desaparecidos da América: Resposta de
Divulgação de Emergência”
93
. O Programa fundamenta-se no
entendimento de que o tempo e a agilidade são fundamentais em casos
92
“AMBER, the Alarm that save lives.” Revista Espaço Acadêmico, ano II, n. 22, março de 2003
93
Id. Ibid.
como esse, utilizando, para seu desiderato, o sistema de divulgação de
emergência, que funciona do seguinte modo:
1 - agências policiais locais são notificadas do rapto de determinada
criança;
2 – o rapto é confirmado;
3 – a polícia detecta se a criança está em perigo de ferimento ou morte;
4 – Junta-se uma evidência para ajudar na rápida recuperação da
criança, que pode consistir na descrição detalhada da criança, do
raptor ou do carro envolvido no ato;
5 – a polícia dá o alerta máximo;
6 – as emissoras de rádio, televisão e painéis de notícias nas ruas e
estradas contam e mostram a foto da criança e/ou do seqüestrador,
com detalhes do ocorrido.
A existência do Alerta AMBER foi divulgado recentemente, na
novela “América” da Rede Globo, no episódio do dia 16 de agosto deste
ano. Como não poderia ser de outro modo, realizou-se uma verdadeira
apologia ao sistema ágil de identificação dos “transgressores”. O
diálogo entre a personagem representada por Débora Secco e Caco
Ciocler representa de modo ímpar a aprovação do Alerta, como se
verifica das linhas ora transcritas:
Débora Secco: “ Esse Alerta AMBER é maravilhoso!”
Caco Ciocler: “É verdade. O melhor de tudo é que cria um sentimento
de união na população, que passa a perseguir os pedófilos.”
E não pára por aí. Clama-se, cada vez mais intensamente, pelo
auxílio da população que, assustada e revoltada, não se esquiva de tal
mister. Em maio de 2005, o jornal de Washington noticiou que os
usuários de telefones celulares nos estados Unidos receberiam
mensagens de textos em seus aparelhos quando a polícia divulgasse o
Alerta AMBER.
Wacquant, destacando o papel da mídia e da política na década
de 90 em relação aos crimes contra os costumes, afirma:
Sob o efeito da recuperação do moralismo no campo político
e da midiatização a todo o transe dos crimes sexuais durante
a década passada, a opinião se polarizou como nunca sobre
os atentados aos costumes perpetrados contra as crianças e
a vigilância punitiva desta categoria de condenados – e, por
um efeito de propagação, de todos os prisioneiros ‘caídos’
por causa de costumes, por mais benignos que sejam –
endureceu a tal ponto que hoje eles são considerados não
mais como desequilibrados passíveis de uma ação
terapêutica, mas como desviantes incuráveis que
representam um perigo criminal ad aeternum, qualquer que
seja o seu status judicial, sua trajetória de reinserção e seu
comportamento pós-penal.
94
94
WACQUANT, Löic. Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
Unidos. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/ Freitas Bastos, 2001,
114.
Após a promulgação da Lei Megan, tornou-se inviável que os
delinqüentes sexuais se entregassem à clandestinidade após o
cumprimento da pena, vez que a Lei autoriza qualquer forma de
notificação ao público da exata localização do sujeito. Há previsão,
inclusive, em alguns Estados, de que esta notificação seja ativa, ou seja,
realizada pelo próprio ex-apenado, às suas custas. Löic Wacquant
afirma, por mais absurdo que possa parecer, que os Tribunais, com
respaldo na Lei Megan, poderiam até exigir a colocação de cartazes na
casa do delinqüente, adesivos no seu carro ou qualquer outra forma de
identificação.
Os discursos que se estendem por toda a parte dos Estados
Unidos propalam a urgência em se estabelecer um sistema informativo
de detecção dos condenados por delito sexual, como se este fosse um
critério confiável para o estabelecimento de uma escala de
periculosidade dos bairros.
Wacquant, de forma sarcástica, discute que a exposição das fotos
dos ex-delinqüentes sexuais tornou-se uma atração na Califórnia,
equiparando-a a outros eventos bizarros. Em suas próprias palavras:
Desde 1997, uma das atrações mais concorridas das feiras
dos condados organizadas na Califórnia durante a bela
estação, junto com as corridas de cavalos, a pesagem dos
leitões e os concursos de cuspe a distância, é o “outing” dos
condenados por atentado aos costumes: entre a carrocinha
do vendedor de sonhos, o estande de tiro ao alvo e a barraca
que exalta as qualidades dos produtos da horta, sob uma
imensa faixa de cores gritantes (“Check it out! Relação dos
delinqüentes sexuais com acesso livre”), o Ministério da
Justiça oferece seus sete computadores equipados com o
CD-ROM da Lei de Megan, no qual o freguês pode digitar o
código postal de seu domicílio e ver aparecer instantemente
na tela a foto dos (ex)delinqüentes sexuais residentes em seu
bairro.
95
Alerta Löic Wacquant que os dados insertos no CD-ROM de
Megan apresentam o rol dos criminosos que remontam a 1944,
revelando, inevitavelmente, uma série de erros no que concerne aos
endereços, além de não especificar o crime praticado pelo sujeito
fichado, o que colocaria no mesmo patamar o estuprador e o pederasta
que, faz tempo, não é mais considerado um criminoso, mas que será
eternamente exposto ao ridículo em decorrência da sua opção sexual.
Os pervertidos, face à exposição da sua imagem, da sua
identidade, da sua localização, são importunados e ameaçados com
uma freqüência impressionante, o que faz com que muitos se
escondam, mudem de endereço, percam seus empregos e, de uma
forma drástica, mas, em muitos casos, irremediável, cometam suicídio.
Talvez, quem sabe, não seja esta a real finalidade da Lei Megan?
Impor uma pena de morte fomentada pela mídia e aprovada pela
95
WACQUANT, Löic. Op.cit., 118.
população... A par disso, Wacqüant repisa que a Lei Megan representa
a imposição de uma pena de infâmia que suplanta a pena imposta pelos
Tribunais, podendo durar décadas e vulnerando, sobremodo, o direito
à intimidade dos cidadãos.
Houve, portanto, na última década, como bem assinala
Wacqüant, uma clara opção pelo modelo retributivo na resposta aos
atentados contra os costumes, deixando-se de lado o modelo médico.
Aos delinqüentes sexuais, aplica-se a “lógica do panoptismo punitivo e
do encarceramento segregativo
96
, tendo desaparecido qualquer
consideração sobre a possibilidade de reabilitar os desviantes. A idéia,
pois, é conter, isolar, controlar os pervertidos de modo a preservar ao
máximo a segurança das pessoas normais. De modo ímpar, afirma
Wacqüant que o governo penal da miséria (sexual, no caso) tende a
agravar justamente o fenômeno que deveria combater, tanto do lado dos
infratores quanto daquele da população que os teme e rejeita”
97
.
Definindo os pontos negativos mais proeminentes da Lei Megan,
Löic Wacqüant afirma que a insistência político-jormalística em se
estabelecer uma vigilância punitiva perene acaba por desviar as
autoridades de um estudo aprofundado acerca de uma solução eficaz
para neutralizar o problema, como, por exemplo, oferecendo uma
96
WACQUANT, Löic. Op.cit., p. 123.
97
Id. Ibid., p. 124.
combinação de prevenção e tratamento. Afigura-se de fato menos
dispendioso, a curto prazo, exibir os delinqüentes por meio de um CD-
ROM do que organizar um programa de cuidados psiquiátricos.
A Lei Megan, sob esta perspectiva, pode acarretar justamente o
que ela visa combater, eis que a condenação dos delinqüentes ao exílio
social, sem recursos, sem emprego, sem qualquer perspectiva de
construir uma vida digna, os empurra para a prática de novos delitos.
Impende conferir as lições transcritas a seguir:
Mas há coisa mais grave: ao fazer pesar sobre todos os
condenados por atentados contra os costumes, inclusive
aqueles que se corrigiram e começaram uma nova vida, a
ameaça de serem ‘“desemboscados” e atados ao pelourinho
simbólico, diante da família, dos amigos, dos colegas e dos
vizinhos, um tal dispositivo encoraja os ex-delinqüentes
sexuais a se refugiarem na clandestinidade e, portanto, na
ilegalidade.
98
As leis de Megan são um forte exemplo do poder punitivo da
mídia e dos efeitos nocivos que a elaboração de uma norma em um
cenário de clima passional pode acarretar. Ademais, tais leis são
inócuas do ponto de vista da prevenção e do combate a esta espécie de
delito vez que vários estudos foram implementados, concluindo-se que
a notificação pública não tem qualquer efeito sobre a taxa de recidiva
dos condenados por atentados aos costumes.
98
Id. Ibid., p. 126.
Leis como essa, conclui Wacqüant, têm o condão de estender sem
limites os dispositivos de vigilância punitiva das categorias sociais que
inspiram medo e repugnância, chegando-se ao ponto de influenciar o
prolongamento, em vários Estados norte-americanos, do
encarceramento do condenado que, após cumprir sua pena, adquire o
status de doente, o que justificaria sua manutenção na clausura. Em
verdade, “na ocorrência, trata-se justamente de um encarceramento de
segregação”
99
, cuja tendência é expandir-se e aplicar-se a outras, quem
sabe a todas as categorias de infratores.
Ao discorrer sobre a funcionalidade dos crimes sexuais para o
direito penal máximo, sintetiza com maestria Moretzsohn:
Nessa onda repressiva, os crimes sexuais, especialmente
contra menores – nesse caso genericamente referidos como
pedofilia -, ocupam lugar de destaque, porque associam o
desejo de punição ao discurso moralista puritano, ao mesmo
tempo que prometem saciar o pouco reprimido - e
certamente condenável, se o moralismo não fosse em si
mesmo tão hipócrita – voyeurismo do público, ao exporem,
ou pelo menos insinuarem, aspectos da vida íntima dos
acusados.
100
99
WACQUANT, Löic. Op.cit., p. 132.
100
MORETZSOHN, Sylvia. Em nome da justiça, contra o direito: os escândalos do jornalismo nas
denúncias de pedofilia. In Discursos Sediciosos crime, direito e sociedade, n. 14. Rio de Janeiro,
Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 1º - 2º semestres de 1999, p. 249-256.
CAPÍTULO III - O CASO ESCOLA BASE
Apontando para a dificuldade em distinguir o real da ficção em uma
sociedade marcada pela profusão exagerada de imagens, Adauto Novaes propõe
uma reflexão sobre o espetáculo das imagens invisíveis, focando sua atenção
naquelas que entram pelos olhos e alcançam o cérebro sem ser notadas”
101
.
Questionamento que se alevanta consiste em: como, neste cenário, definir a ética
que regerá o espetáculo influenciador de todas as esferas da vida pública e
privada, mormente em relação ao direito penal, que tem o poder de mudar a vida
de pessoas?
Esta e muitas outras perguntas ainda estão sem resposta 11 (onze) anos
depois do caso amplamente divulgado da Escola de Educação Infantil Base,
localizada no Bairro da Aclimação, em São Paulo, em que os donos da escola, seus
sócios e mais um casal, pais de um aluno, foram acusados de abusar sexualmente
de 2 (duas) crianças que, à época, tinham 4 (quatro) anos de idade. Para começar o
relato dessa fantasiosa história, nada melhor que reproduzir os comentários do
jornalista da Revista Caros Amigos, Thiago Domenici, um dos produtores do
vídeo-documentário Escola Base, verbis:
Foi numa segunda-feira, 28 de março de 1994, que a mídia
iniciou uma série de erros e mentiras na falta de conduta
ética e jornalística mais clássica da década de 90. O caso da
Escola de Educação Infantil Base, referência negativa para
o meio jornalístico, fatídico para os envolvidos foi o episódio
negro que se convencionou chamar de jornalismo
sensacionalista. Algo que 11 anos faz raciocinar as amarras
e relações éticas da mídia, do compromisso com a verdade e
101
NOVAES, Adauto. 2005. A Imagem e o Espetáculo. In: Muito Além do Espetáculo. São Paulo: Editora
Senac, p. 07.
não com a vendagem, de como uma mentira pública pode
destruir a integridade de seres humanos e da promíscua
relação com a fonte oficial. Se a idéia era chocar a opinião
pública, conseguiu, mas atirou no próprio e prejudicou
muita gente.
102
Talvez este tenha sido o episódio que mais escancarou a força midiática e o
descrédito na justiça, tornando-se comum o comentário proferido por leigos de que
o processo judicial, bem como todas as garantias asseguradas aos acusados, tais
como a ampla defesa, o contraditório e o princípio da presunção de inocência não
passam de mecanismos utilizados para evitar a punição. As imagens, as
publicações jornalísticas são assimiladas como veredictos incontestáveis, o que nos
leva a crer cada vez mais na concepção da mídia como quarto poder.
De modo irretocável, Luís Nassif, comentando outro caso de
impacto nacional, demonstra como a mídia fomenta apenas e tão
somente o espírito de linchamento, vulnerando todo e qualquer direito
fundamental. Imperioso transcrever suas próprias palavras:
se vai avaliar corretamente a motivação dando o direito
de defesa aos culpados, ouvindo os argumentos da defesa e
da acusação, pesando a lógica de cada uma, os antecedentes
dos envolvidos, os detalhes do crime. Quando se mistura
justiça com o fantástico show da mídia, essa defesa deixa de
existir. Troca-se a análise isenta das provas pelo
sensacionalismo e se criam unanimidades que atropelam
toda norma de direito individual
103
.
102
DOMENICI, Thiago. Onze anos do caso Escola Base Passo a passo sobre como a mídia grande
destruiu a vida de duas famílias”. Fazendo Media. Disponível em:
http://www.fazendomedia.com/novas/educacao3000705.htm Matéria de 30/07/2005. Acesso em
15/10/2005.
103
NASSIF, Luís. Caso Galdino”. Observatório da Imprensa. Disponível em
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp141120019.htm .Matéria de 14/11/2001. Acesso
em 15/10/2005.
De fato, foi o extraordinário show da mídia que comandou durante três meses
a perseguição implacável de seis pessoas inocentes e a degradação pública de suas
imagens, aniquilando suas carreiras, entregando-as à clandestinidade e alterando
para sempre suas histórias. Um enredo foi rapidamente construído e culminou nas
mais cruéis e humilhantes conseqüências.
Tudo teve início com o relato de Fábio, uma criança que estudava na Escola
Base. O menino de 4 (quatro) anos sentou-se na barriga de sua mãe (Lúcia) enquanto
brincava com a mesma e começou a fazer movimentos que assemelhavam-se a atos
sexuais. A mãe, de forma histérica, iniciou um questionamento altamente sugestivo e
concluiu, após a indicação de que a criança havia aprendido “aquelas coisas feias”
em uma fita de videocassete, que seu filho havia sofrido abusos sexuais. Ato contínuo
e a partir da imaginação fértil do menino (ou da própria mãe), montou-se todo um
enredo, o qual foi muito bem descrito pelo jornalista Alex Ribeiro:
Lúcia voltou ao quarto. Ninguém presenciou a inquirição, mas o fato é que ela saiu
de lá dizendo que o menino revelara barbaridades. A fita pornográfica, ele a teria
visto na casa de Rodrigo, um coleguinha da Escola Base. Um lugar com portão verde,
jardim na lateral, muitos quartos, cama redonda e aparelho de televisão no alto.
Seria levado a essa casa em uma perua Kombi, dirigida por Shimada – o Ayres,
marido da proprietária da escolinha. Fábio teria sido beijado na boca por uma
mulher de traços orientais e o beijo fotografado por três homens: José Fontana,
Roberto Carlos e Saulo, pai do Rodrigo.
Maurício – marido de Paula, sócia da escolinha – teria agredido o pequeno a tapas.
Uma mulher de traços orientais faria com que ele virasse de bruços para passar
mertiolate e pomada em suas nádegas. Ardia muito, foi o que o garoto disse à mãe. E
uma mulher e um homem ficariam “colados” na frente dele.
Outros coleguinhas de Fábio teriam participado da orgia: Iracema, Rodrigo e Cibele.
104
104
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base: Os Abusos da Imprensa. 2
a
. edição. São Paulo: Editora Ática,
2003, p 20-21.
Lúcia, então, entrou em contato com Cléa, mãe de Cibele, que, depois de um
choque, chamou o marido e a cunhada para inquirirem a filha. Após uma tentativa
frustrada em que a menina nada narrava, os adultos, reproduzindo o que Fabio
contara, pediram a versão de Cibele que, por fim, confirmou o que o coleguinha
dissera.
Nenhuma dúvida, a partir daí, pairava no ar. A imprensa, opostamente ao
campo jurídico, não fez qualquer reserva aos depoimentos infantis. As crianças
haviam sofrido abusos sexuais e a polícia, os demais pais e a vizinhança deveriam ser
informados do ocorrido. Cléa e Lúcia dirigiram-se para a 6
a
DP aos 28 de março de
1994 e o delegado plantonista Antonino Primante determinou o encaminhamento das
duas crianças ao exame de corpo de delito no Instituto Médico Legal, além de obter
na Corregedoria de Polícia Judiciária um mandado de busca e apreensão para entrar
na casa de Mara e Saulo, pais de Rodrigo, lugar onde supostamente ocorriam as
orgias. Nada parecido com a descrição das crianças foi encontrado. A cama era
retangular e as únicas fitas de vídeo existentes eram as do cantor Fábio Junior e de
um Globo Repórter sobre ufologia.
Todos, então, seguiram para a Escola de Educação Infantil Base, onde já se
encontrava um número considerável de jornalistas e um aglomerado de pais que
manifestavam opiniões diversas. Depois de revirada a escola, só foi apreendida uma
coleção de fitas de Walt Disney. Indagado pela imprensa, o delegado Primante
limitou-se a afirmar que só existia uma denúncia sem qualquer prova e que as
investigações continuariam. Imperioso ressaltar que, muito embora horas antes, o
Diário Popular tenha recebido a notícia em primeira mão do Delegado-assistente da
6
a
. DP, Edélson Lemos, não publicou uma linha sequer sobre o relato das mães, sob o
argumento de que não havia provas conclusivas sobre os fatos narrados. Como bem
mencionou Alex Ribeiro:
Essa era a postura, irredutível, que o Diário Popular iria manter durante todo o
caso.
105
No mesmo sentido, nos relatam Domenici, Brigatto e Martino Pinto:
O Diário Popular – atualmente Diário de São Paulo – foi o único a não publicar
matérias sobre a Escola Base, mesmo tendo sido o primeiro veículo a receber a
notícia sobre os possíveis abusos sexuais e com um possível furo nas mãos.
106
Irresignadas com a conduta absolutamente normal de Primante, as mães
decidiram que o melhor a fazer era apresentar o fato para a Rede Globo. Era o início
do espetáculo. Bastou o repórter global Valmir Salaro chegar à Delegacia para que se
chamassem os primeiros acusados (Ayres, Cida, Maurício e Paula) para inquirições
informais. Na presença do jornalista, ávido pelos detalhes mais picantes, os quatro
sofreram um verdadeira pressão psicológica. Paula, no entanto, afirmou que sofrera
também pressão física:
Segundo sua versão, os policiais a colocaram de joelhos no banheiro do distrito e,
debaixo de pancadas, ameaçaram mergulhar sua cabeça no vaso sanitário. Segundo
Paula, Salaro estava no distrito nesse momento e, se não presenciou a tortura, num
dos intervalos do espancamento, ela teria segurado seu braço, pedindo socorro.
107
105
RIBEIRO, Alex. Op.cit., p37.
106
BRIGATTO, Gustavo Guedes; PINTO, Paulo Rodrigo Ranieri, DOMENICI, Thiago Rafael. 2004.
“Ética na imprensa na década de 90 e as lições do Caso Escola Base”. Trabalho apresentado à Faculdade
de Comunicação e Artes da Universidade Presbiteriana Mackenzie, p. 24.
107
RIBEIRO, Alex. Op.cit., p. 41.
Confirmada ou não a sessão de tortura, o fato é que aos 29 de março, o Jornal
Nacional, da Rede Globo, noticiou a denúncia das mães, sem sequer apresentar as
versões dos acusados. De concreto, havia ainda um telex do resultado preliminar do
exame realizado em Fabio, enviado pelo IML, que apontava para uma possível
prática de atos libidinosos. Os demais jornais, quando do surgimento das denúncias,
apresentaram uma narrativa ética sobre o caso, o que, infelizmente, não duraria
muito tempo.
Em 30 de março, durante a madrugada, um coquetel molotov é lançado na
escola e só não causou um incêndio porque um funcionário dormia no local e logrou
êxito em conter as chamas. Nesse mesmo dia, jornais e revistas publicam as histórias
dos abusos, omitindo o lançamento do coquetel molotov. Inicia-se uma perseguição
implacável aos acusados. Jornalistas fazem plantão na frente da casa de Mara e
Saulo que, ademais, são recebidos com palavrões e escárnios por parte dos vizinhos.
Todos escondem-se onde podem para evitar um linchamento. A abordagem da
imprensa começa a mudar, mergulhando em uma cobertura sensacionalista,
capitaneada mormente pelas emissoras de televisão que insistiam em transmitir o
sofrimento das mães das vítimas.
As imagens dominam de ponta a ponta os telespectadores. Visando entender o
poder das imagens, assim nos ensina Francis Wolff:
Eis, portanto, um segundo aspecto do poder das imagens. As imagens são capazes de
suscitar aos poucos quase todas as emoções e paixões humanas, positivas e negativas,
todas as emoções e paixões que as coisas ou pessoas reais que elas representam
poderiam suscitar: amor, ódio, desejo, crença, prazer, dor, alegria, tristeza,
esperança, nostalgia, etc.
108
Wolff afirma que a verdadeira superioridade da imagem está na sua
irracionalidade. Nada melhor que a imagem para emocionar, provocar uma reação
imediata, não controlada, de medo, compaixão, repulsa. Neste diapasão, a imagem,
afastando a razão, cria unanimidades, pensamentos monolíticos, reações
padronizadas. Se as imagens insistiam em mostrar o sofrimento de mães de crianças
que teriam sofrido abusos sexuais, está afirmado e reafirmado que esses “monstros”
são culpados e a reação natural é a revolta e o clamor popular por justiça ou, na
melhor acepção da palavra, vingança. A imagem não permite contraditórios. “Ela é
pura afirmação”.
109
Sendo pura afirmação, a imagem acaba por transmutar a dignidade dos seis
acusados, que passa a adquirir um valor de mercado. A dignidade da existência
humana, que jamais poderia ser medida em termos econômicos, adquire um preço,
tornando-se mercadoria rentável para praticamente todos os jornais, revistas e
emissoras. O comportamento agressivo das massas é manipulado de forma
surpreendente. Sobre o efeito hipnotizante das imagens, as lições de Rodrigo Duarte:
(...) a solução sobre a qual se concentram as cada vez menos agências de decisão no
capitalismo tardio é uma espécie de direcionamento da percepção dos indivíduos,
uma espécie de “pedagogia dos sentidos” por meio da qual as pessoas vêem e ouvem
apenas aquilo para o que elas estão programadas para ver e ouvir.
110
108
WOLFF, Francis. 2005. “Por trás do espetáculo: o poder das imagens”. Op. cit., p. 20.
109
WOLFF, Francis. 2005. “Por trás do espetáculo: o poder das imagens”. Op. cit., p. 27.
110
DUARTE, Rodrigo. “Valores e Interesses na Era das imagens”. In: NOVAES, Adauto (Org.). Muito
Além do Espetáculo. São Paulo: Senac, p. 104.
Recebendo o suporte das imagens e das transmissões da imprensa, no dia 31
de março surge uma suposição acerca do uso de drogas pelos acusados, bem como a
possibilidade dessas substâncias estarem sendo ministradas às crianças. Ato contínuo,
denúncias atrás de denúncias são propagadas e fomentadas pelas empresas
jornalísticas sem sequer serem previamente investigadas. O jornalista Alex Ribeiro,
que captou com maestria todos os passos do caso, nos narra:
Os jornais, portanto, aceitavam publicar qualquer denúncia, mesmo de pessoas não
identificadas. A imprensa não era mais movida pelo animus narrandi, ou intenção de
narrar. O que estava mais do que presente era o animus denunciandi, ou compulsão
por denunciar. Essa prática é também chamada de “denuncismo”.
..........................................................................................................
Mais uma vez, o que os jornalistas publicaram nunca se confirmaria no inquérito
policial. E, novamente, os leitores ficaram sem nenhuma satisfação posterior.
A cobertura na mídia impressa começava a entrar no ritmo sensacionalista da
televisão. A manchete da Folha da Tarde de quinta-feira já aceitava denúncias como
fatos verdadeiros: “Perua escolar carregava crianças para orgia”.
111
Nessa mesma linha das notícias escandalizadoras, durante todo o episódio
Escola Base, o jornal Notícias Populares publicou manchetes rotulacionistas e
tendenciosas. É o que se pode demonstrar através das transcrições ora colacionadas:
30 de março de 1994 – “Escola usava crianças para filme pornô
31 de março de 1994 – “Kombi era motel na Escolinha do sexo”
31 de março de 1994 – “Perua escolar levava crianças pra orgia no maternal do
sexo.”
1° de abril de 1994 – “Exame procura a AIDS nos alunos da escolinha do sexo.”
112
Como já antecipado na manchete acima, no dia 1º de abril, as mães levantam
suspeita sobre a provável contaminação das crianças pelo vírus HIV e a Comissão
111
RIBEIRO, Alex. Op.cit., p. 56-57.
112
BRIGATTO, Gustavo Guedes; PINTO, Paulo Rodrigo Ranieri, DOMENICI, Thiago Rafael. Op. cit.,
p. 31.
Parlamentar de Inquérito pede a quebra do sigilo bancário dos seis suspeitos, o que
acabou, de fato, sendo deferido, evidenciando que, mesmo na ausência de qualquer
prova da materialidade do delito, a histeria popular, desencadeada pelas acusações
midiáticas, interferiu no próprio rumo das decisões judiciais. Na madrugada deste
mesmo dia, a Escola é saqueada e depredada, sendo que todos os envolvidos no ato de
selvageria foram liberados quase que imediatamente. Afinal, não eram estes os alvos
do momento da imprensa. A residência de Paula e Maurício é invadida e também
saqueada no dia 02 de abril. Seis dias já eram suficientes para tornar letra morta o
texto da lei fundamental, estraçalhando os direitos de personalidade e destruindo a
função precípua de proteção da pessoa humana acima de qualquer outro direito.
Os acusados, finalmente, decidem conceder uma entrevista aos jornalistas
Florestan Jr., Chico Verani e Regina Terraz no dia 03 de abril. Tarde demais. Aos 05
de abril, o delegado responsável pelo caso, Edélson Lemos, que, desde o início,
manteve uma postura leviana e irresponsável, reúne-se com os advogados dos
suspeitos, exigindo sua apresentação e garantindo que estes não seriam detidos. O
juiz Galvão Bruno determina a prisão dos envolvidos. Saulo e Mara são presos e os
demais conseguem escapar. Nesse mesmo dia, a imprensa obtém a cópia do laudo
inconclusivo do Instituto Médico Legal referente ao menino Fábio: as lesões
encontradas poderiam ser atribuídas tanto a coito anal quanto a problemas intestinais
– a segunda causa foi confirmada algum tempo depois através do depoimento da
própria mãe de Fabio que afirmara que o filho sofria de constipação intestinal.
Muito embora seja regra básica no processo penal pátrio que a restrição ao
direito de liberdade é medida extraordinária, cuja adoção deve estar sempre
subordinada a parâmetros de legalidade estrita, foi decretada a prisão cautelar dos
indiciados. Afigura-se de crucial importância esclarecer, nesta seara, que a custódia
cautelar não objetiva a punição, mas constitui apenas instrumento para a realização
do processo ou para a garantia de seus resultados. Dois requisitos seriam exigidos
para viabilizar tal providência, quais sejam: a probabilidade da condenação ou fumus
boni iuris (prova da materialidade do delito e indícios suficientes de sua autoria) e o
periculum in libertatis, que consiste no perigo causado pelo suposto criminoso em
liberdade, seja pela possibilidade de frustração da execução penal, seja para
assegurar a correta apuração do fato criminoso, seja pelo temor causado na
população.
No caso da Escola Base, o fumus boni iuris não se configurou uma vez que
não havia qualquer prova contundente do crime. No que concerne ao periculum in
mora, há tempos a mídia vem legitimando uma série de prisões a esse título na
medida em que a forma sensacionalista, teatral, odiosa com que os delitos são
descritos causa, inevitavelmente, um pânico generalizado, um alarde público, o que
justificaria a restrição da liberdade de todo aquele que é previamente condenado
pelos veículos de comunicação, muitas vezes sem que haja processo instaurado.
O jornalista Luís Nassif, da TV Bandeirantes, na mesma noite da prisão do
casal, opinou pela defesa dos direitos fundamentais dos suspeitos, afirmando a
necessidade urgente de se valorizar os depoimentos daqueles que, de uma hora para
outra, tornaram-se inimigos públicos. Os jornais, em geral, passam a assumir uma
postura crítica em relação ao caso. As emissoras de televisão, sempre apelativas,
“mudaram de lado” – deixaram de transmitir as imagens dos pais das crianças
possivelmente violentadas para veicular as imagens de Saulo e Mara, no momento da
decretação da prisão. “Parecia que a imprensa havia aprendido a lição da Escola
Base. Mas era apenas aparência.”
113
Na sexta-feira, dia 08 de abril, o casal Mara e Saulo foi solto, o delegado
Lemos, afastado do caso, e as investigações iniciadas, agora em silêncio, sem
qualquer alarde público. Era como se os noticiários liderassem o rumo das
investigações.
Três dias depois, uma denúncia anônima revelava que uma Kombi escolar
constantemente estava estacionada em frente a uma mansão, no Bairro da
Aclimatação, onde residia o americano Richard Pedicini. De posse de um mandado
de busca e apreensão assinado pelo juiz Galvão Bruno, os policiais dirigiram-se ao
local, onde encontraram uma grande piscina, uma relação com os nomes de crianças
autorizadas a nadar no local, além de álbuns de fotografias com fotos inocentes e
fotos de adultos e crianças nuas em praias de nudismo nos Estados Unidos e no Rio
de Janeiro, sem qualquer conotação pornográfica. O americano é detido por suspeita
de pedofilia. Um cenário perfeito para o sensacionalismo midiático ressuscitar estava
formado. Richard Pedicini seria o contato internacional dos personagens da Escola
Base, cedendo sua casa para as orgias e fotografando as crianças.
Com perfeição, Alex Ribeiro assim narrou o impacto que essa nova descoberta
(ou fantasia) exerceu sobre os canais jornalísticos, verbis:
Nesse episódio, até o Diário Popular, que até então havia se mantido afastado do caso
da Escola Base, errou. Assumiu a suspeita como verdadeira no título “Americano
fazia fotos eróticas com crianças” e publicou equivocadamente que na casa de
Richard encontraram-se fotos de “adolescentes mantendo relações sexuais”.
114
113
RIBEIRO, Alex. Op.cit., p. 107.
114
RIBEIRO, Alex. Op.cit., p. 116.
Mais uma manchete publicada pelo jornal Notícias Populares, agora com
certo tom irônico:
13 de abril de 1994 – “Americano taradão ataca na Aclimação.”
115
A sociedade do espetáculo parece tomar corpo mais uma vez e o homem,
circunscrito ao mundo apresentado pela mídia, reduz-se a um papel de espectador,
imerso em uma contemplação passiva, aceitando tudo o que é veiculado. Parece que a
sociedade da mercadoria retirou de cada indivíduo a capacidade de raciocinar e de
posicionar-se distintamente da massa. Foi de fato o que aconteceu: a população,
coesa, assustava-se diante da quadrilha da Escola Base, que recebia mais um
elemento - Richard Pedicini.
Após uma série de acareações, o delegado Gérson Carvalho desfaz a ligação
entre os casos. No dia seguinte, os jornais voltariam atrás sobre o reconhecimento da
mansão pelas crianças. Richard Pedicini é solto depois de nove dias de prisão.
Depoimentos a favor dos indiciados são prestados um em seguida ao outro.
A análise minuciosa do inquérito por psicólogos demonstrava que a mãe de
Fabio, precursora das denúncias, tratava das questões referentes à sexualidade
infantil com muito temor e fantasia, maximizando gestos do menino e abominando a
possibilidade da masturbação infantil. Cuida-se de uma reprodução da família sólida
do século XIX descrita por Foucault, a qual se constituía em torno da sexualidade
115
BRIGATTO, Gustavo Guedes; PINTO, Paulo Rodrigo Ranieri, DOMENICI, Thiago Rafael. 2004. Op.
cit., p. 31.
infantil, através dos mecanismos de vigilância e controle. Os pais eram incitados a
observar os seus filhos, convencidos da idéia de que a masturbação constituía uma
doença. Complementando essa concepção, afirma Bauman que a sexualidade das
crianças consistia em um pretexto para a interferência impertinente e arrebatadora
dos pais em sua individualidade, estimulando confissões de segredos, conversas
íntimas e aproximações, mesmo que de forma forçada. No século XXI, a concepção
altera-se vez que o interesse das crianças por seus órgãos genitais, bem como os casos
de masturbação são encarados como indicadores de abuso sexual. In casu, Lucia,
mãe de Fabio, atribuiu os supostos abusos aos donos da Escola Base e encontrou o
eco que precisava na sociedade midiática do espetáculo.
Como outrora já asseverava Michel Foucault, percebe-se que, de uma hora
para outra, o cotidiano da sexualidade é invadido pelos pais, pela intervenção
policial, pela ação judiciária e agora, mais do que nunca, pela histeria da imprensa.
As crianças, a população, os suspeitos, os investigadores, os pais, todos foram
incitados a falar do sexo e, portanto, a colocá-lo em forma de discurso. Poder e prazer
impulsionam uma fiscalização cada vez mais profunda. Quanto mais se exerce o
poder, mais se impulsiona o seu exercício, despertando curiosidades sobre os relatos
sexuais que se prolongam em um questionário que parece não ter fim. De fato, ao
longo da história da sexualidade, a técnica de dizer tudo sobre o sexo sempre se
encontrou apoiada por inúmeros mecanismos de poder, engendrados por um suposto
interesse público.
No caso sob análise, conclui-se que o poder manifestou-se ainda através da
substituição do espaço público pelo espaço virtual do espetáculo, havendo a mídia
operado uma construção social capaz de exercer efeitos de mobilização de toda a
sociedade. O problema da verdade e da mentira tornou-se um problema ético menor.
Afigura-se legítimo afirmar que, no caso da Escola Base, a ética que prevaleceu foi a
da violência, do lucro e do espetáculo. Essa ética bizarra reafirmou-se pela conduta
da Folha da Tarde que permaneceu faltando com a verdade mesmo após o dia 22 de
junho, data em que o Delegado Gérson de Carvalho concluiu que os seis indiciados
eram inocentes. O referido jornal publicou que o inquérito fora arquivado por falta
de provas. Aos 07 de abril de 1995, o inquérito de Richard Pedicini também é
arquivado.
Depois de mais uma década do ocorrido, as marcas ainda se fazem presentes.
Ayres trabalha em um xerox no Centro de São Paulo, é devedor de vários
bancos e tornou-se, segundo o relato de estudiosos do caso, uma pessoa nervosa,
irritadiça, descrente, neurótica que precisa de tranqüilizantes para dormir. Cida, após
o sonho de lecionar e ser dona de uma escola para crianças enterrado, vive em estado
de depressão, sobrevivendo também à base de remédios.
Paula e Maurício separaram-se. Maurício sofre da síndrome do pânico,
manifestando manias de perseguição. Tenta refazer sua vida trabalhando em uma
lanchonete. Paula está desempregada e voltou a morar com a mãe, juntamente com
suas duas filhas.
Saulo toca bateria em bares. Mara faz bijuterias. O filho do casal, Rodrigo, à
época da prisão dos pais, passou a comer com as mãos ao saber que não havia
talhares na prisão onde os dois ficaram detidos. Atualmente, Rodrigo não assiste mais
a qualquer reportagem sobre abusos sexuais.
Richard Pedicini busca ainda provar sua inocência.
A Escola de Educação Infantil Base, após ser usada pela Febem por cinco
anos, está hoje abandonada.
Os acusados ajuizaram uma série de ações de indenização com pedido de
danos morais e materiais contra o Estado de São Paulo, contra as mães que iniciaram
as acusações e contra todos os jornais que fizeram a cobertura do caso. O Estado de
São Paulo foi condenado ao pagamento de R$ 250.000,00. Os jornais “O Estado de
São Paulo”, “Folha de São Paulo” e a Revista “Isto é” também já foram condenados.
Recentemente, no dia 15 de setembro, a Rede Globo foi condenada, por unanimidade,
pela 7ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, a pagar R$
1,35 milhão para reparar os danos morais sofridos pelos donos e pelo motorista da
Escola Base, sob a fundamentação de que a atuação da imprensa deve pautar-se pelo
cuidado na divulgação ou veiculação de fatos ofensivos à dignidade e aos direitos de
cidadania.
De fato, a decisão pautou-se pela atual Carta Magna que, na trilha das demais
Constituições elaboradas após a eclosão da chamada questão social, colocou o
Homem no vértice do ordenamento jurídico, tutelando acima de todo e qualquer valor
os valores humanos. O dano moral, portanto, à luz da Constituição vigente, nada
mais é do que qualquer lesão à honra e, portanto, à dignidade da pessoa humana. A
este respeito, os ensinamentos do Professor Sérgio Cavalieri, verbis:
Pois bem, logo no seu primeiro artigo, inciso III, a Constituição Federal consagrou a
dignidade humana como um dos fundamentos do nosso Estado Democrático de
Direito. Temos hoje o que pode ser chamado de direito subjetivo constitucional à
dignidade. Ao assim fazer, a Constituição deu ao dano moral uma nova feição e
maior dimensão, porque a dignidade humana nada mais é do que a base de todos os
valores morais, a essência de todos os direitos personalíssimos. O direito à honra, à
imagem, ao nome, à intimidade, à privacidade ou a qualquer outro direito da
personalidade – todos estão englobados no direito à dignidade, verdadeiro
fundamento e essência de cada preceito constitucional relativo aos direitos da pessoa
humana.
116
O dano moral está ínsito, pois, na própria ofensa perpetrada aos personagens
do fantástico show que teve por cenário os arredores da Escolinha de Educação
Infantil Base, decorrendo da gravidade e da repercussão do ilícito em si. Desta sorte,
outra não poderia ser a decisão dos Tribunais, eis que há provas cabais de que as
imagens foram vilipendiadas, os nomes aviltados, não havendo mais nada a se
provar.
As indenizações milionárias e as retratações por parte de todos os meios de
comunicação que cobriram o caso são de fato imperiosas e decorrência lógica e
necessária da proteção integral do ser humano como pessoa, muito embora não sejam
o bastante para apagar o ocorrido e eliminar as seqüelas que sofreram e ainda sofrem
os acusados. Na verdade, nada o será. Para sempre restará registrada a sensação de
dor, vexame, sofrimento e humilhação que interferiram intensamente no
comportamento psicológico das verdadeiras vítimas do Caso Escola Base, causando-
lhes aflições, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. As pessoas envolvidas,
enquanto seres morais por excelência, jamais terão reparados os danos sofridos em
sua honra, intimidade e imagem.
116
FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Responsabilidade Civil. 5
a
. edição. Rio de Janeiro: Editora
Malheiros, 2003, p. 94.
CAPÍTULO IV – INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE, DA HONRA E DA IMAGEM x
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO
4.1 – Ponderação de Interesses como mecanismo necessário para a realização da justiça
Despiciendo afirmar a freqüência com que ações de indenização são
ajuizadas contra empresas de jornalismo, escrito ou falado, por dano moral
desencadeado pela veiculação de notícias que caracterizem fatos típicos dos crimes
de injúria, calúnia, difamação e, portanto, sejam atentatórias do direito à
dignidade. Se de um lado temos a inviolabilidade da intimidade, da vida privada,
da honra e da imagem como corolários do direito à dignidade, do outro lado
invoca-se, também com natureza jurídica de direito fundamental, a liberdade de
informação dos veículos de informação, garantida pelos arts. 5
o
, IX, e 220, § § 1
o
e
2
o
, da Constituição Federal, com a conseqüente impossibilidade de a lei impor
censura ou obstáculos à livre informação jornalística.
Tendo como escudo essa liberdade de informação, as empresas cometem
abusos de poder, invadindo a intimidade alheia, divulgando fatos ofensivos ou
injuriosos e aproveitando-se das imagens das pessoas para retirar-lhes proveito
econômico. Essa conjuntura clama por um estudo que delimite o espaço que cada
direito ocupa no ordenamento jurídico pátrio e, sem olvidar o princípio da unidade
constitucional, estabeleça a baliza necessária para que um direito não seja
eliminado em prol de outro. Discorrendo sobre o tema, assim se manifesta Sérgio
Cavalieri Filho, verbis:
É tarefa do intérprete encontrar o ponto de equilíbrio entre
princípios constitucionais em aparente conflito, porquanto,
em face do princípio da unidade constitucional, a
Constituição não pode estar em conflito consigo mesma, não
obstante a diversidade de normas e princípios que contém;
deve o intérprete procurar as recíprocas implicações de
preceitos e princípios até chegar a uma vontade unitária na
Constituição, a fim de evitar contradições, antagonismos e
antinomias. Em outras palavras, não é possível analisar-se
uma disposição constitucional isoladamente, fora do conjunto
harmônico em que deve ser situada; princípios aparentemente
contraditórios podem harmonizar-se desde que se abdique da
pretensão de interpretá-los de forma isolada e absoluta.
117
Edilsom Pereira de Farias identificou o grande dilema existente entre os dois
blocos de direitos, como se verifica do trecho a seguir:
A colisão dos direitos à honra, à intimidade, à vida privada e à
imagem versus a liberdade de expressão e informação
significa que as opiniões e fatos relacionados com o âmbito de
proteção constitucional desses direitos não podem ser
divulgados ao público indiscriminadamente. Por outro lado,
conforme exposto, a liberdade de expressão e informação,
estimada como um direito fundamental que transcende a
dimensão de garantia individual por contribuir para a
formação da opinião pública pluralista, instituição
considerada essencial para o funcionamento da sociedade
democrática, não deve ser restringida por direitos ou bens
constitucionais, de modo que resulte totalmente
desnaturalizada.
118
Especialista em ponderação de interesses, o Professor Daniel Sarmento nos
ensina que muito embora no imaginário social a idéia de ponderação esteja
visceralmente ligada à noção de justiça, essa temática foi durante muito tempo
117
FILHO, Sérgio Cavalieri. Op.cit., p. 121.
118
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A Honra, a intimidade, a vida privada e a imagem
versus a liberdade de expressão e informação. 2
a
. edição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor,
2000, p. 171.
negligenciada em razão do predomínio da teoria jurídico positivista, segundo a qual a
norma representa a premissa maior e, por conseguinte, o juiz seria mero aplicador ao
caso concreto da vontade da lei preexistente, desempenhando um papel irracional e
servil. Por esta concepção, o Direito seria uma ciência pura, que deve afastar-se e
manter-se incólume das influências da moral, da política e da sociologia. Em suas
próprias palavras:
Sob este prisma, afirma-se que o jurista deve ocupar-se
apenas da norma posta, relegando a ética ao filósofo, a
ideologia ao cientista político e a análise do fato social ao
sociólogo.
A coerência do ordenamento jurídico, pressuposta por esta
concepção, impediria a existência de antinomias reais entre as
suas normas. Todos os conflitos normativos são por ela
considerados como meramente aparentes, sujeitos à resolução
através de critérios abstratos, definidos de antemão pelo
ordenamento. Sob esta ótica, seria sempre possível precisar,
com base no raciocínio lógico-formal, a norma aplicável a
cada caso concreto, de modo que, definidos os fatos, todas as
suas conseqüências jurídicas adviriam por via de um
mecânico silogismo.
119
Com o advento do Estado Liberal, esta imagem do Direito, que havia
encontrado seu apogeu à época das grandes codificações do século XIX, entrou em
crise, sofrendo ataques contundentes por parte das novas demandas sociais que
impunham uma concepção substantiva de justiça. De fato, diante da nova idéia do
Direito como fator de transformação social, revela-se inadmissível a sua
categorização como ciência exata. Ademais, uma Constituição rica em direitos
individuais, coletivos e sociais restaria morta se a prática jurídico-judiciária só
119
SARMENTO, Daniel. Op.cit., p. 20.
negasse aplicação a esses direitos, o que aponta para a emergência de uma atuação
criadora e determinante do aplicador da lei, mormente do Poder Judiciário na
interpretação da Carta Magna, sempre pautando sua conduta pelo mundo histórico
em que se insere. Criticando o modelo anterior de engessamento e mecanicismo do
Direito, assim expõe firmemente Lenio Luiz Streck:
Numa palavra: essa (nova) crítica deve ser entendida como
uma peculiar maneira de compreender o Direito, ou seja, essa
(nova) perspectiva crítica, rompendo com a idéia da
subsunção do caso sob uma regra (“categoria” primordial
fundante) que lhe corresponde e da possibilidade da
autonomia do texto, deve ser vista não como um emaranhado
sofisticado de palavras, mas, sim, como uma ferramenta
metateórica e transmetodológica a ser aplicada no processo de
des-construção do universo conceitual e procedimental do
edifício jurídico, nascido no paradigma metafísico, que o
impediu (e continua impedindo) de submetê-lo às mudanças
que há muito tempo novas posições teóricas – não mais
metafísicas – nos põem à disposição!
120
Nessa linha de raciocínio, a atuação importante do intérprete será encontrar o
ponto de equilíbrio entre princípios constitucionais em aparente conflito para que se
alcance a vontade unitária da Constituição e para que parte do seu texto não se
converta em letra morta. O Positivismo restaria afastado uma vez que este implica na
aplicação pura e simples de uma norma, ignorando o conjunto harmônico da Carta
Magna e a imprescindível harmonização de princípios aparentemente contraditórios.
Percebe-se, pois, que a técnica de ponderação de princípios demanda uma
análise cuidadosa do peso assumido por cada princípio dentro das circunstâncias
concretas presentes em cada caso, a fim de que se possa precisar em que medida cada
120
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma Nova Crítica do Direito. 2
a
.
edição. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004, p. 11-12.
um cederá espaço ao outro. Como alerta o Professor Sarmento, há a possibilidade de
que um determinado princípio seja válido e pertinente a dado caso, mas que suas
conseqüências jurídicas não sejam deflagradas naquele caso, ou não o sejam
inteiramente, em razão da incidência de outros princípios também aplicáveis. As
regras jurídicas, ao contrário, incidem sob a forma do tudo ou nada, ou seja,
presentes os seus pressupostos fáticos, ou a regra é aplicada ao caso a ela subsumido
ou é considerada inválida para o mesmo. A opção por uma das regras é solucionada
através dos critérios hierárquico, cronológico e de especialidade, o que implica na
completa desconsideração da outra regra. Reportando-se ao autor italiano Gustavo
Zagrebelsky e referindo-se à complexidade da aplicação dos princípios, assim afirma
o Professor Daniel Sarmento:
Esta idéia se conjuga com a exposta por Gustavo Zagrebelsky,
que salienta o fato de que, ao contrário das regras, os
princípios não possuem fattispecie, razão pela qual não se
prestam à subsunção. Por este motivo, os princípios não
podem ser aplicados mecanicamente. Se o direito não
contivesse princípios, mas apenas regras jurídicas, afirma
Zagrebelsky, seria possível a substituição dos juízes por
máquinas.
121
Não destoando desse entendimento, o Professor Luís Roberto Barroso, ao
empreender um estudo sobre a Interpretação e Aplicação da Constituição, sustenta
que os bens jurídicos constitucionalmente protegidos devem ser coordenados de
forma a que todos eles possam conservar sua identidade, cabendo ao intérprete, por
força do princípio da unidade, um esforço de otimização, pelo qual o limite de ambos
os bens seja estabelecido a fim de que cada um deles alcance sua efetividade ótima. O
121
SARMENTO, Daniel. Op.cit., p. 44.
processo interpretativo deixaria de ser reprodutivo e passaria a ser produtivo. Para
tanto, a grande bússola da interpretação constitucional seriam os princípios
fundamentais, gerais e setoriais inscritos ou decorrentes da Lei Maior. Sobre a
finalidade do princípio da unidade, dispõe o Professor Barroso:
O fim primário do princípio da unidade é procurar determinar
o ponto de equilíbrio diante das discrepâncias que possam
surgir na aplicação das normas constitucionais, cuidando de
administrar eventuais superposições.
122
Com propriedade, Alexy, acerca da diferenciação entre as regras e princípios,
esclarece:
Quando dois princípios entram em colisão – tal como é o caso
quando segundo um princípio algo está proibido e, segundo
outro princípio, está permitido – um dos princípios tem que
ceder ante o outro. Mas, isto não significa declarar inválido o
princípio desprezado nem que no princípio desprezado há que
ser incluída uma cláusula de exceção. O que sucede, mais
exatamente, é que, sob certas circunstâncias um dos
princípios precede o outro. Sob outras circunstâncias, a
questão da precedência pode ser solucionada de maneira
inversa. Isto é o que se quer dizer quando se afirma que nos
casos concretos os princípios têm diferente peso e que
prevalece aquele com maior peso. Os conflitos de regras
resolvem-se na dimensão da validade; a colisão de princípios
– como somente podem entrar em colisão princípios válidos –
tem lugar mais além da dimensão da validade, na dimensão
do peso.
123
122
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 4
a
. edição. São Paulo: Saraiva,
2001, p. 193.
123
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Tradução de Ernesto Garzón Valdes. Madrid:
Centro de Estúdios Constitucionales, 1997, p.89.
Identificando os focos de tensão normativa da Carta Constitucional, Barroso
aponta que, no campo dos direitos individuais, a Lei básica consigna a liberdade de
manifestação do pensamento e de expressão em geral (art. 5
o
., IV e X), sendo que tais
liberdades públicas hão de encontrar justos limites no direito à honra e à intimidade,
que a Constituição também assegura (art, 5
o
, XI). Do mesmo modo, Cavalieri afirma
que a Constituição garante o direito de livre expressão à atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença (arts.
5
o
., IX, e 220, §§ 1
o
. e 2
o
.), dispondo, ao mesmo tempo, em seu inciso X do art. 5
o
,
serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, o que
sugere uma necessária confrontação e conciliação desses princípios constitucionais
na temática dos direitos e garantias fundamentais.
Com efeito, partindo-se da concepção de que o direito não é aplicação de
normas, mas antes a busca do justo concreto e de que ao tratarmos da liberdade de
expressão, estaremos envolvendo temas como privacidade, honra, ordem pública,
dentre outros, revela-se imperioso discernir de modo ético e jurídico o que se deve
entender por “exercício legítimo do poder dos meios de comunicação”, tendo por
balizamento os fins sociais para os quais esses meios de comunicação foram criados
e, acima de tudo, a idéia primeira da proteção da pessoa humana. Em outras
palavras, dever-se-á proceder a uma ponderação de interesses, a um balanceamento,
interpretando os elementos envolvidos à luz das circunstâncias contingentes da
realidade concreta. Só desta forma obter-se-á o ajustamento concreto das relações
sociais. Brilhantemente, assevera Guilherme Döring Cunha Pereira:
É preciso dar-se conta de que o direito é sobretudo tarefa
prudencial. A prudência, enquanto virtude retora da própria
justiça, se consolida na experiência, no empenho por discernir
uma vez e outra, em um caso e noutro, o meio termo, a
solução acertada. Da multiplicidade de situações vitais reais
vão sendo mais bem percebidas as diferenças e as
semelhanças. Desse acúmulo de experiência, desde que fruto
de verdadeiro esforço da razão prática, forma-se um saber
prudencial, extremamente valioso, que se traduz em critérios
de decisão, que podem depois vir ou não a ser convertidos em
lei.
124
Por fim, importante destacar que o tema da ponderação de valores é de
substancial importância no âmbito do Estado Democrático de Direito, em que a
função do Direito passa a ser transformadora, estando o pólo de tensão concentrado
no Poder Judiciário, o qual deverá conceber o conjunto de discursos do texto
constitucional como os limites do mundo jurídico-social, interpretando-os e
aplicando-os de modo a realizar justiça. A este respeito, assim se pronunciou o
eminente Lenio Streck, verbis:
Portanto, a noção de um terceiro modelo de Direito, o do
Estado Democrático de Direito, leva em conta a noção de
Constituição como valores a serem realizados, exsurgentes do
contrato social. A Constituição surge, nesse terceiro
modelo/paradigma, não somente como a explicitação do
contrato social, mas, mais do que isso, com a sua força
normativa de constituir-a-ação do Estado.
125
124
PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Liberdade e Responsabilidade dos Meios de Comunicação. 1
a
.
edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 87.
125
STRECK, Lenio Luiz. Op.cit., p. 168.
4.2 – Princípio da Dignidade como o vetor essencial para o empreendimento de
ponderações
Consistindo no epicentro axiológico do ordenamento constitucional, o
princípio da dignidade é apontado pelos constitucionalistas como o vetor essencial
para o empreendimento de ponderações. Outro não poderia ser o entendimento na
medida em que, como muito bem explica o Professor Daniel Sarmento, a ponderação
visa promover valores humanísticos superiores que se sintetizam no princípio da
dignidade da pessoa humana, o qual confere unidade teleológica a todos os demais
princípios e regras que compõem o ordenamento jurídico constitucional e
infraconstitucional.
A consagração do princípio da dignidade da pessoa humana no título
concernente aos princípios fundamentais como valor nuclear do Estado Democrático
de Direito (art. 1
o
, inciso III, da CF) implica no reconhecimento categórico de que o
Estado existe em função da pessoa humana, constituindo o ser humano a finalidade
precípua da atividade estatal. De fato, o desenvolvimento do humanismo e a
preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social posicionaram
o princípio da dignidade da pessoa humana na base de todos os direitos
constitucionalmente tutelados, sejam dos direitos e liberdades tradicionais, sejam dos
de participação política, sejam dos direitos dos trabalhadores e de prestações sociais.
Corolário disto é que em todos os níveis da vida social, do público ao privado, a
dignidade da pessoa humana repete-se como valor fundamental e concretiza-se,
dentre outros aspectos, ao se assegurar o exercício dos direitos individuais e sociais.
Nesse sentido, Ana Paula de Barcellos sustenta que o princípio da dignidade
da pessoa humana deve ser o vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá
orientar-se em seu ofício. Isto porque os princípios em geral e em especial o da
dignidade da pessoa humana manifestam as decisões fundamentais do constituinte.
Em verdade, não é novidade que determinadas normas constitucionais desempenham
funções diferentes ou são dotadas de uma “superioridade axiológica” quando
comparadas com outras, devendo-se, portanto, buscar-se a solução que prestigia a
dignidade da pessoa humana em detrimento das demais. Expondo as razões de tal
critério, assim leciona Barcellos:
A decisão de tomar como critério para a ponderação a
preferência aos direitos fundamentais pode ser justificada
teoricamente de variadas maneiras. Em primeiro lugar, é
absolutamente consensual na doutrina e na jurisprudência
que a Constituição de 1988 fez uma opção material clara pela
centralidade da dignidade humana e, como uma sua
decorrência direta, dos direitos fundamentais. Isso decorre de
forma muito evidente da leitura do preâmbulo, dos primeiros
artigos da Carta e do status de cláusula pétrea conferido a tais
direitos. Com efeito, não há autor, de direito público ou
privado, que não destaque a dignidade da pessoa humana
como elemento central do sistema jurídico, bem como sua
superior fundamentalidade, se comparada a outros bens
constitucionais. Há, portanto, uma justificativa normativa
para o critério escolhido: a própria Constituição decidiu
posicionar a dignidade humana e os direitos fundamentais
como centro do sistema por ela criado.
126
No mesmo diapasão, Flávia Piovesan afirma que a dignidade humana
simboliza um superprincípio constitucional, a norma maior a orientar o
126
BARCELLOS, Ana Paula de. 2003. “Alguns parâmetros normativos para a ponderação
constitucional”. In: BARROSO, Luis Roberto (Org.). A nova interpretação constitucional: ponderação,
direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, p. 108/109.
constitucionalismo contemporâneo, atribuindo-lhe especial racionalidade, unidade e
sentido. Impende sejam transcritos os seus comentários:
Nesse sentido, há que se ater aos comandos constitucionais
consagrados nos arts. 1
o
ao 4
o
da Carta de 1988, com nítida
prevalência para o postulado da dignidade da pessoa humana,
não só como critérios definitivos de interpretação da Carta, no
que se constituem em parâmetro para aferimento de
inconstitucionalidades; como principalmente, norte e
exigência da aplicação da Constituição aos casos concretos.
127
Gustavo Binenbojm, tratando da jurisdição constitucional como instrumento
de defesa dos direitos fundamentais, observa que a idéia da dignidade da pessoa
humana eleva-se à condição de princípio jurídico, valor-fonte do qual decorrem
direitos fundamentais do homem que não podem ser relativizados em prol de
qualquer projeto coletivo de bem comum. A própria Declaração Universal dos
Direitos Humanos dispõe, em seu preâmbulo, que “a dignidade inerente a todos os
membros da família humana é fundamento da liberdade, da justiça e da paz no
mundo.” Corroborando esta concepção, leciona Sarmento:
O Homem – medida de todas as coisas, nas palavras imortais
de Protágoras – é assim concebido como centro de referência
da ordem jurídica, que se humaniza e legitima, imantada pelo
valor que se irradia a partir do princípio da dignidade da
pessoa humana.
128
127
PIOVESAN, Flavia. Temas de Direitos Humanos. 2
a.
edição. São Paulo: Max Limonad, 2003, p.104.
128
SARMENTO, Daniel. Op.cit., p. 60.
O professor Grandinetti assim qualificou o princípio da dignidade humana,
verbis:
O princípio em epígrafe é um princípio semântico e
estruturalmente aberto, de “abertura valorativa”, o que faz
com que o mesmo seja em grande parte colmatado pelos
agentes jurídicos no momento da interpretação e aplicação
das norma jurídicas. Assim, em razão de o princípio da
dignidade da pessoa humana ser uma categoria axiológica
aberta, considera-se inadequado conceituá-lo de forma
“fixista”. Além do mais, uma definição filosoficamente
sobrecarregada, cerrada, é incompatível com o pluralismo e a
diversidade, valores que gozam elevado prestígio nas
sociedades democráticas contemporâneas.
129
Pertinente seria compreender qual a fundamentação do princípio da dignidade
humana. A concepção jusnaturalista consagra a idéia de que o homem, em virtude
tão-somente de sua condição humana e independentemente de qualquer outra
circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus
semelhantes e pelo Estado. Por sua vez, segundo a concepção metafísica, a dignidade
da pessoa humana é a última garantia da pessoa humana em relação a uma total
disponibilidade por parte do poder estatal e social. Para a concepção de inspiração
estóica e cristã, donde se destaca Tomás de Aquino, a noção de dignidade
fundamenta-se na circunstância de que o ser humano foi feito à imagem e à
semelhança de Deus, estando ademais relacionada com a capacidade de
autodeterminação da natureza humana, segundo a qual o ser humano, por força de
sua dignidade e sendo livre por natureza, existe em função da sua própria vontade.
129
CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Direito de Informação e liberdade de
expressão. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.61.
A par de todas as concepções acima sintetizadas e sem olvidar que todas estas
inspiraram a construção da fundamentação, aceita modernamente, do princípio da
dignidade, esta encontrou em Kant seu maior expoente. Para Kant, a concepção de
dignidade parte da autonomia ética do ser humano, o que conduz à conclusão
inarredável de que o indivíduo não pode ser tratado como objeto. Segundo a
concepção kantiana, o Homem existe como um fim em si mesmo, não podendo ser
encarado como meio para o uso arbitrário de qualquer vontade. Desta feita, a
autonomia da vontade – faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade
com a representação de certas leis – é um atributo privativo dos seres racionais e,
portanto, fundamento da dignidade da natureza humana. Ingo Sarlet repisa que a
dignidade da pessoa humana, segundo a concepção kantiana, repudia toda e
qualquer espécie de coisificação e instrumentalização do ser humano. Transcrevendo
as idéias de Kant, assim cuida da matéria o autor:
Ainda segundo Kant, afirmando a qualidade peculiar e
insubstituível da pessoa humana, “no reino dos fins tudo tem
um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um
preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra coisa como
equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o
preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela
dignidade...Esta apreciação dá pois a conhecer como
dignidade o valor de uma tal disposição de espírito e põe-na
infinitamente acima de todo o preço. Nunca ela poderia ser
posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse
um preço, sem de qualquer modo ferir a sua santidade.
130
A constitucionalista Ana Paula Costa Barbosa complementa todas as
concepções, afirmando que o seu fundamento está nos valores da liberdade e
130
SARLET, Ingo Wolfgang. Op.cit., p. 33.
igualdade, aduzindo ainda que a sua base de sustentação é moral, tendo por pilares o
consentimento e o consenso.
Superada a questão concernente à sua fundamentação, impõe-se dimensionar
as funções desempenhadas pelo princípio da dignidade da pessoa humana no nosso
ordenamento jurídico e que concernem ao presente trabalho. Salienta o Mestre Ingo
Sarlet que a dignidade da pessoa humana é simultaneamente limite e tarefa dos
poderes estatais, da comunidade em geral, de todos e de cada um. Explicando essa
condição dúplice, assevera que na qualidade de limite da atividade dos poderes
públicos e de todos em geral, a dignidade necessariamente é algo que pertence a cada
um e que não pode ser perdido ou alienado, sob pena de não existirem mais limites a
serem observados. Já na condição de tarefa, implica em que o Estado deverá ter como
meta permanente a proteção, promoção e realização concreta de uma vida com
dignidade para todos, viabilizando condições para o pleno desenvolvimento da
personalidade de cada indivíduo. Especificamente no que tange ao papel da
dignidade como princípio norteador da ponderação de valores, assim menciona o
Professor Sarlet:
Considerando, ainda, a perspectiva da dignidade como limite
– mas agora num outro sentido – cabe lembrar que, no âmbito
da indispensável ponderação (e, por conseguinte, também
hierarquização) de valores, inerente à tarefa de estabelecer a
concordância prática (na acepção de Hesse) na hipótese de
conflitos entre princípios (e direitos) constitucionalmente
assegurados, o princípio da dignidade da pessoa humana
acaba por justificar (e até mesmo exigir) a imposição de
restrições a outros bens constitucionalmente protegidos, ainda
que se cuide de normas de cunho jusfundamental.
131
131
SARLET, Ingo Wolfgang. Op.cit., p. 114.
Desta feita, impõe-se, para a compreensão do presente trabalho, seja
ressaltada a função instrumental integradora e hermenêutica do princípio, na medida
em que este serve de parâmetro para aplicação, interpretação e integração não
apenas dos direitos fundamentais e das demais normas constitucionais, mas de todo o
ordenamento jurídico. A dignidade da pessoa humana aparece no processo
hermenêutico desempenhando um papel único, razão pela qual é reconhecida como o
valor de maior hierarquia da nossa e de todas as ordens jurídicas que a
reconheceram. Legítimo então afirmar que uma ordem jurídica só é verdadeiramente
democrática se albergar, no seu âmago, os direitos fundamentais, assim como e
acima de tudo, a dignidade da pessoa humana.
Acompanhando este entendimento, Daniel Sarmento afirma que o princípio
da dignidade da pessoa humana revela-se o principal critério substantivo para a
ponderação de interesses constitucionais, visto que a fórmula elástica do princípio em
tela permite o acolhimento de valores potencialmente conflitantes, tais como
liberdade e segurança, igualdade e direito à diferença. Destarte, ao operador do
direito caberá, diante de uma colisão concreta de princípios constitucionais, adotar a
solução mais consentânea com os valores humanitários que o princípio da dignidade
promove. Para ilustrar esta assertiva, nada mais propício que transcrever as lições de
Sarmento, verbis:
Nesta ponderação, porém, a liberdade do operador do direito
tem como norte e como limite a constelação de valores
subjacentes à ordem constitucional, dentre os quais cintila
com maior destaque o da dignidade da pessoa humana.
Nenhuma ponderação poderá importar em desprestígio à
dignidade do homem, já que a garantia e promoção desta
dignidade representa o objetivo magno colimado pela
Constituição e pelo Direito, ou, nas palavras de Teresa
Negreiros, a própria “razão de ser” do sistema jurídico-
constitucional.
132
Para encerrar este subitem e com vistas a viabilizar uma melhor utilização do
princípio da dignidade da pessoa humana como vetor para o empreendimento de
ponderações, recorremos à conceituação do referido princípio fornecida por Sarlet,
verbis:
(...) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o
faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um
complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante
e desumano, como venham a lhe garantir as condições
existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão
com os demais seres humanos.
133
132
SARMENTO, Daniel. Op.cit., p. 75.
133
SARLET, Ingo Wolfgang. Op.cit., p. 60.
4.3 – Solução de conflitos entre direitos preservados constitucionalmente através do
princípio da proporcionalidade
O princípio ou máxima da proporcionalidade é decomposto analiticamente
pela doutrina alemã em três subprincípios ou máximas parciais: a adequação, a
necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito.
Com base na máxima parcial da adequação, exige-se que as medidas adotadas
pelo Poder Público se mostrem aptas a atingir os objetivos pretendidos. Em outras
palavras, cuida-se da aferição da idoneidade do ato para a consecução da finalidade
perseguida pelo Estado. A máxima parcial da necessidade ou exigibilidade impõe a
verificação da inexistência de meio menos gravoso para o atingimento dos fins
visados – com fulcro neste princípio, na promoção dos interesses coletivos, deve-se
interferir o mínimo possível na esfera dos direitos fundamentais do cidadão.
Por derradeiro, tem-se como máxima parcial a proporcionalidade em sentido
estrito, também conhecido como mandado de ponderação, que consiste no
balanceamento entre o ônus imposto e o benefício trazido pela norma avaliada. Esta
ponderação, segundo Alexy, é realizada segundo um modelo de fundamentação, ou
seja, verificar-se-á se uma escolha entre dois valores postos em conflito foi
proporcional com base na possibilidade de fundamentá-la racionalmente. Sarmento
esclarece este subprincípio, afirmando que:
Na verdade, o subprincípio da proporcionalidade em sentido
estrito convida o intérprete à realização de autêntica
ponderação. Em um lado da balança devem ser postos os
interesses protegidos com a medida, e no outro, os bens
jurídicos que serão restringidos ou sacrificados por ela. Se a
balança pender para o lado dos interesses tutelados, a norma
será válida, mas, se ocorrer o contrário, patente será a sua
inconstitucionalidade
134
.
Destarte, o método da ponderação de interesses deve pautar-se pelo princípio
da proporcionalidade, transpondo o mesmo raciocínio que é utilizado em suas três
fases para a técnica da ponderação de valores. Traduzindo: as restrições aos
interesses em disputa devem ser arbitradas mediante o emprego do princípio da
proporcionalidade em sua tríplice dimensão – adequação, necessidade e
proporcionalidade em sentido estrito. Ao julgador, incumbirá buscar o ponto de
equilíbrio entre os interesses em jogo, que atenda aos seguintes requisitos:
a) adequação – a prevalência de um dos interesses no caso concreto deve ser apta
a atingir os fins colimados pela Carta Constitucional (preservação de todos os
valores), donde se extrai que a restrição a cada um dos interesses deve ser
idônea para garantir a sobrevivência do outro;
b) necessidade – tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do
interesse contraposto;
c) proporcionalidade em sentido estrito o benefício logrado com a restrição a
um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse
antagônico.
134
SARMENTO, Daniel. Op.cit., p. 89.
Nesse diapasão, a doutrina majoritária preceitua que a composição dos
princípios deve guiar-se pela proporcionalidade, segundo a qual a norma concebida
como a “mais fraca” só poderá ser afastada quando parecer necessário do ponto de
vista lógico e sistemático, sempre respeitando-se o seu conteúdo de valor fundamental
concreto.
Não é por outra razão que se delineia uma íntima relação entre o princípio da
proporcionalidade, a proteção ao núcleo essencial dos direitos fundamentais e a
ponderação de bens, servindo o princípio da proporcionalidade como o critério
orientador na ponderação de bens, interesses e valores e na proteção ao núcleo
essencial. Eduardo Slerca leciona que o princípio da proporcionalidade traduz a
própria idéia de justiça na resposta aos casos de colisão de direitos fundamentais,
sugerindo que, para o desempenho de tal desiderato, mister conhecer muito bem não
só os valores em jogo de cada lado da balança, mas também e sobretudo com que
intensidade eles se apresentam e em que medida um valor afeta o outro.
Ademais, de nada adiantaria relacionar um rol extenso de direitos
fundamentais se não houvesse meios eficazes para protegê-los não só do poder
estatal, mas uns dos outros, nas hipóteses em que a prevalência de um ameaçar a
própria existência do outro. Será precisamente o princípio da proporcionalidade que
servirá de contemporizador entre os direitos fundamentais e o poder estatal.
Inevitável, por conseguinte, indicar o princípio da proporcionalidade como
sendo o meio mais adequado para solucionar eventuais conflitos entre a liberdade de
comunicação e os direitos da personalidade, objeto do presente estudo. No processo
de ponderação e tendo por vetor o princípio da dignidade da pessoa humana, as
decisões da jurisprudência pátria vêm preconizando que o direito de noticiar há de
ceder espaço sempre que o seu exercício importar sacrifício da intimidade, da honra e
da imagem das pessoas.
Na hipótese de ser inverídica a informação, sequer se estabelece o conflito,
segundo a melhor doutrina, vez que a mentira e a transmissão de dados não
verdadeiros não se inserem no âmbito do conteúdo material da liberdade de
informação e expressão. A este respeito:
Logo, se o noticiado não corresponde à verdade, não
maiores dificuldades em se concluir pelo afastamento da
liberdade de informação, haja vista ter sido ela deturpada em
sua origem, não podendo albergar inverdades.
135
Note-se, por derradeiro, que a doutrina rejeita a predeterminação rígida da
ascendência de determinados valores e bens jurídicos, prevalecendo entre nós a teoria
relativa do núcleo essencial dos direitos fundamentais, segundo a qual o núcleo
fundamental de cada bem posto sob ponderação só pode ser delineado à luz do caso
concreto.
135
CASTRO, Mônica Neves Aguiar da Silva. Honra, imagem, vida privada e intimidade, em colisão com
outros direitos. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 112.
4.4 – O Limite da Liberdade dos Meios de Comunicação
É cediço que os direitos individuais não podem ser considerados ilimitados e
absolutos, em face da natural restrição resultante do princípio da convivência das
liberdades, razão pela qual não se tolera que qualquer desses direitos seja exercido de
modo prejudicial à ordem pública e às liberdades alheias. O Professor Sérgio
Cavalieri nos lembra que, segundo a doutrina moderna, não mais se deve falar em
direitos individuais, mas sim em direitos do homem inserido na sociedade, de tal
modo que não é mais exclusivamente em relação ao indivíduo, mas com enfoque em
sua inserção na sociedade, que se justificam, no Estado Democrático (e social) de
Direito, tanto os direitos como as suas limitações.
A necessidade de limitar direitos manifesta-se com toda a sua força quando
referida aos meios de comunicação, vez que o poder de que dispõem é de tamanha
magnitude que detém o condão de interferir em toda a sociedade, de influir na
cultura e no comportamento dos seres humanos, traduzindo-se em potencial de
transformação positiva das realidades da convivência humana bem como em
potencial lesivo de enormes proporções.
Inspirado por esta idéia, o constituinte brasileiro, muito embora tenha sido
bastante generoso em vários dispositivos no que tange à liberdade fundamental de
pensamento, sobretudo com relação às liberdades referentes à comunicação,
estabeleceu que o exercício da liberdade de expressão deve fazer-se com observância
do disposto na Constituição, nos moldes do caput do artigo 220, o que indica uma
observância necessária de outros preceitos albergados. O § 1
o
do mesmo dispositivo
subordina expressamente o exercício da liberdade jornalística à observância do
disposto no art. 5
o
, IV, V, X, XIII e XIV, autorizando o estabelecimento de restrições à
liberdade de imprensa com vistas a preservar outros direitos, não menos importantes,
como os direitos de personalidade em geral.
Existem conteúdos comunicacionais que, por serem falsos, prejudicam o
funcionamento, as relações humanas e o desenvolvimento pessoal. Entre os bens que
podem ser atingidos por uma notícia falsa avulta a honra que significa tanto o valor
moral íntimo do homem, como a consideração social, a estima dos outros, a boa
fama, o bom nome e até o sentimento ou consciência da própria dignidade. O poder
destruidor de uma falsidade contra o bom nome de alguém veiculada de forma
espetacular pelos meios de comunicação é incomensurável. Apreciando o espectro de
abrangência da ofensa à honra, sentencia o jurista Antônio Chaves, verbis:
A honra – sentenciou Ariosto – está acima da vida, por larga
que seja, tem os dias contados; a fama, por mais que conte
anos e séculos, nunca lhe há de achar conto, nem fim, porque
os seus são eternos: a vida conserva-se em um só corpo, que é
o próprio, o qual, por mais forte e robusto que seja, por fim se
há de resolver em poucas cinzas: a fama vive nas almas, nos
olhos e na boca de todos, lembrada nas memórias, falada nas
línguas, escrita nos anais, esculpida nos mármores e repetida
sonoramente sempre nos ecos e trombetas da mesma fama.
Em suma, a morte mata, ou apressa o fim do que
necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia,
escurece e faz abominável a um ser imortal, menos cruel e
mais piedosa se o puder matar.
136
A proteção do direito à honra, desde a Revolução Francesa, tornou-se uma
preocupação internacional. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de
136
CHAVES, Antonio. Prefácio. In: AMARANTE, Aparecida. Responsabilidade Civil por Dano à
Honra. 5
a
. edição. Belo Horizonte: Del Rey, 2001, p. 09.
10.12.1948, reafirmando, em seu preâmbulo, a preocupação com o reconhecimento
da dignidade inerente a todos os membros da família humana, proclamou em seu
artigo 12:
Ninguém será sujeito à interferência, na sua vida
privada, na de sua família, no seu lar ou na sua
correspondência, nem ataques à sua honra e reputação.
Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques.
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, aprovado pela Assembléia
Geral da ONU, em 16.12.1966, e ratificado pelo Brasil, em 24.01.1992, contém, em
seu artigo 17, reafirmação da proteção da honra, verbis:
§ 1
o
. Ninguém será objeto de imiscuições arbitrárias ou ilegais
na sua vida privada, da sua família, no seu domicílio ou na
sua correspondência nem de atentados ilegais à sua honra e
da sua reputação.
§ 2
o
. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
imiscuições ou de tais atentados.
Por sua vez, a Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos, realizada
em São José da Costa Rica em 22.11.1969, ratificada pelo Brasil em 25.09.1992, é
incisiva em seu artigo 11:
Proteção da honra e da dignidade
§1
o
.Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao
reconhecimento de sua dignidade.
§2
o
. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou
abusivas em sua vida privada, na sua família, em seu
domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais
à sua honra ou reputação.
§3
o
. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
ingerências ou tais ofensas.
Prevê, ademais, meios de proteção desse direito. É o que se extrai do seu artigo
14:
Direito de retificação ou resposta:
§1
o
.Toda pessoa atingida por informações inexatas ou
ofensivas emitidas em seu prejuízo por meios de difusão
legalmente regulamentados e que se dirijam ao público em
geral, tem direito a fazer, pelo mesmo órgão de difusão, sus
retificação ou resposta, nas condições que estabeleça a lei.
§2
o
. Em nenhum caso a retificação ou a resposta eximirão das
outras responsabilidades legais em que se houver.
§3
o
. Para a efetiva proteção da honra e da reputação, toda
publicação ou empresa jornalística, cinematográfica, de rádio
ou televisão deve ter uma pessoa responsável que não seja
protegida por imunidades nem goze de foro especial.
A honra consiste, então, na dignidade pessoal refletida na consideração dos
outros e no sentimento da própria pessoa. A intimidade, em sentido oposto, quer
justamente significar a subtração da consideração de terceiros, da publicidade e
permanência da tranqüilidade, ou seja, apresenta-se como o direito de impedir a
divulgação de certos acontecimentos, palavras, atos, escritos, pertencentes à esfera
privada ou íntima. Contrapondo um direito ao outro, assim tratou da matéria
Aparecida Amarante:
Na proteção da intimidade não se visa ao prejuízo moral ou à
indignidade de um ato levado a público, mas sim, a violação
da paz ou tranqüilidade da vida íntima. O ato ilícito, na
configuração da lesão à honra, não supõe que o mesmo
suceda mediante indiscrição ou intromissão na vida privada.
Com isto é fácil concluir, como fez Dotti, que o direito à
intimidade não constitui um gênero abrangedor do direito à
honra, nem mesmo se sobrepõe a este.
137
O Mestre Yussef Cahali entende que o direito à intimidade comporta o direito
de o homem subtrair-se à publicidade, de proteger os aspectos personalíssimos de sua
vida contra os olhos e ouvidos da curiosidade alheia, permitindo que este desenvolva
plenamente a sua personalidade com o mínimo de ingerências em sua vida privada.
Trata-se, destarte, de um direito essencial à própria dignidade humana.
Por último, temos o direito à imagem ou, como preferem alguns
doutrinadores, direito de respeito à imagem, que consiste no elo que junge a pessoa à
sua expressão externa, traduzindo a irradiação figurativa de cada um. Assim sendo,
também consiste em uma espécie do gênero “direito de personalidade” eis que revela
o corpo de alguém, sendo que a proteção jurídica direciona-se, não para o corpo
materialmente considerado, mas para o seu “Eu”, sede da personalidade.
Neste cenário, não é demais repisar que o direito à dignidade tem conexão
clara com os direitos da personalidade em geral, estando, portanto, visceralmente
ligado, especificamente no que se refere à integridade moral dos indivíduos, aos
direitos de intimidade, honra e imagem. Essa categoria de direitos, proclamada pelo
direito natural, é inerente à pessoa humana, estando a ela ligados de maneira
perpétua. A doutrina atual, no entanto, repudia essa concepção, afirmando que se
tratam de direitos subjetivos, aos quais corresponde o dever jurídico dos demais
137
AMARANTE, Aparecida. Responsabilidade Civil por Dano à Honra. 5
a
. edição. Belo Horizonte: Del
Rey, 2001, p.116.
indivíduos de respeitá-los. A Constituição Federal expressamente se refere aos
direitos da personalidade em seu art. 5
o
, inciso X, proclamando: “são invioláveis a
intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.” O Código
Civil, por sua vez, preceitua, em seu artigo 11: “Com exceção dos casos previstos em
lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo
o seu exercício sofrer limitação voluntária.”
Em torno do conceito de direito geral da personalidade, a doutrina jurídica
moderna vem buscando, não ainda em sede da disciplina dos meios de comunicação,
mas de forma geral, unificar a proteção da pessoa humana. Manuel da Costa
Andrade define o direito da personalidade como sendo um direito existente e
persistente para além dos direitos tipicamente reconhecidos por lei e correspondentes
a dimensões específicas da personalidade e, como tais, gozando da mesma e
consistente tutela jurídica.
No mesmo sentido, a conceituação de Sidney Guerra:
Por direitos da personalidade entendem-se aqueles direitos
subjetivos da pessoa de defender aquilo que lhe é próprio, ou
seja, a essência de sua personalidade, bem como as qualidades
que são inerentes a ela, compreendendo a integridade física,
intelectual e moral.
138
Sobre o surgimento dos direitos da personalidade, René Ariel Dotti:
A sua criação resultou de um esforço dos tribunais franceses
preocupados em amparar aquilo que estava latente nas
138
GUERRA, Sidney Cesar Silva. A liberdade de imprensa e o direito à imagem. Rio de Janeiro:
Renovar, 1999, p. 131.
aspirações comuns. Foram os juízes que se pronunciaram
sobre os atentados contra determinados bens pessoais
gravitando na órbita puramente moral e que, apesar dos
interesses e conflitos a movimentarem, não haviam recebido
um tratamento legislativo apropriado. Somente após lenta mas
persistente evolução pretoriana, o reconhecimento de tais
direitos foi-se impondo à consciência jurídica sob a
denominação ampla de “direitos da personalidade”.
139
Abordando especificamente a liberdade de informação jornalística, a doutrina
nacional a decompõe em duas partes: o direito de livre pesquisa e divulgação e o
direito da coletividade de receber notícias que correspondam a uma realidade fática.
Dessa decomposição, extrai-se que os órgãos de comunicação não estão obrigados a
apurar, em todos os casos, a veracidade dos fatos antes de torná-los públicos, o que
implicaria em privar a coletividade do direito à informação. Não obstante, por estar o
direito de livre pesquisa e publicidade constitucionalmente condicionado à
inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, sempre que o
primeiro extrapolar os seus limites, quer por sensacionalismo, quer por falta de
cuidado, surgirá o dever de indenizar. Não é por outra razão que a Lei de Imprensa
coíbe a prática de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento e
informação.
Na esteira desse raciocínio, Ingo Sarlet afirma que os direitos e garantias
fundamentais podem – em princípio e ainda que de modo e intensidade variáveis -,
ser reconduzidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana, já que
todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento de todas as pessoas. Assim
sendo, por mais que o princípio da dignidade da pessoa humana radique na base de
139
DOTTI, René Ariel. Proteção da vida privada e liberdade de informação: possibilidades e limites.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1980, p. 22-23.
todos os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, os graus de
vinculação dos diversos direitos àquele princípio são variados, de tal modo que
existem direitos que constituem explicitações em primeiro grau da idéia de dignidade
e outros que destes são decorrentes. A identificação dos graus de variação será de
suma importância para o intérprete no momento da ponderação, uma vez que, no
caso concreto, terá prevalência o direito que mais se aproximar da idéia de dignidade.
Inarredável a conclusão de que, no caso da Escola Base, uma gama de direitos
da personalidade foram extirpados em nome da liberdade de informação, o que é
inconcebível em um Estado Democrático e Social de Direito, onde devem prevalecer,
como bem precisou Sarlet, os direitos da personalidade – honra, imagem, intimidade,
que apresentam uma conexão intrínseca com a dignidade da pessoa humana. Não se
poderia sequer argumentar que havia um interesse público a justificar a divulgação
dos fatos eis que, como bem salientou Guilherme Döring: “o interesse público é o
interesse que, na órbita dos meios de comunicação e do seu papel na sociedade,
justifica a divulgação de fatos verdadeiros capazes de fazer diminuir a estima de
que uma pessoa desfruta (...)”.
140
In casu, a informação é desviada ao fim de
satisfazer instintos de baixa curiosidade do público ou de praticar a maledicência.
Ousaria, inclusive, ir além, afirmando que, em se tratando da violação de direitos da
personalidade, sequer o interesse público legitimaria a divulgação, na fase do
inquérito, da imagem e da identidade de possíveis ou prováveis réus.
Outro não foi o entendimento do Tribunal Constitucional Federal Alemão na
decisão que proferiu a respeito do caso “Lebach”. A decisão é usualmente
apresentada como modelo de adequada aplicação dos critérios que devem reger o
140
PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Op.cit., p. 112
balanceamento dos princípios constitucionais. A situação era a seguinte: um
programa de televisão anunciava a emissão de um documentário que narrava o
assassinato de um grupo de quatro soldados enquanto dormiam, responsáveis pela
guarda de um depósito de munições do Exército Federal da Alemanha. O crime
visava à subtração de armas, as quais foram utilizadas posteriormente em outros
delitos. Uma das pessoas que havia sido condenada por co-autoria neste crime e
estava a ponto de sair da prisão considerou que a emissão do filme violava seus
direitos de personalidade, principalmente prejudicando a sua ressocialização. A
sentença do Tribunal Constitucional entendeu tratar-se de um conflito dos valores
constitucionais liberdade de informação e proteção da personalidade, definindo que
deveria prevalecer o princípio da proteção da personalidade no caso concreto sob
apreciação, dadas as suas circunstâncias específicas. O Tribunal sentenciou que uma
informação televisiva que não responde a um interesse atual de informação sobre um
fato delitivo grave e que põe em perigo a ressocialização do autor não deve ser
transmitida.
Sérgio Cavalieri, ao estabelecer os limites necessários entre a liberdade de
expressão e os direitos de personalidade, transcreveu os comentários da jornalista
Mirian Leitão acerca do direito de informar, verbis:
“Nós, jornalistas, temos de pensar mais profundamente sobre como lidamos com
acusações. Temos o poder de destruir biografias. Por isso, os cuidados têm de ser
extremos. Na saudável competição entre os jornais, não se pode sacrificar os cuidados
mínimos estabelecidos pelo correto exercício da profissão. Assusta-me o poder que temos,
e como ele está sendo exercido. “Um dos defeitos comuns nas reportagens é que basta um
pequeno indício – ou nem isso, basta que alguém se refira ao nome de uma pessoa e ela
passa, nas reportagens seguintes, a ter seu nome associado à perigosa palavra ‘envolvido’.
Envolvido é outro dos truques da imprensa. Protege o jornalista e lança uma sombra sobre
a pessoa da qual se fala. ‘Envolvido’ embola culpados e inocentes, suspeitos e vítimas, na
mesma zona de sombras. Quem não leu o jornal anterior não saberá encontrar a fronteira
entre os dois grupos: todos passam a pertencer à categoria suspeitíssima de
‘envolvidos’”.
141
Os comentários da jornalista tratam de um truque que se repete
constantemente na cobertura de casos policiais e que pode ser concebido, dentre
outras adjetivações, como uma “injustiça na comunicação”
142
, pelo seu caráter
destruidor da confiança, sendo, no mínimo, temerário tolerar juridicamente uma
falsidade. A Lei de Imprensa prevê um tipo penal que consiste exatamente em
publicar ou divulgar notícias falsas ou fatos verdadeiros truncados ou deturpados,
que provoquem perturbação da ordem pública ou alarma social.
Dessa feita, é assente que, diante de fatos de cuja divulgação possa derivar
dano à honra de alguém, a cautela e prudência do veículo de informação devem ser
extremas. Em princípio, enquanto não suficientemente comprovados os fatos,
necessário prosseguir nas investigações antes de se realizar qualquer divulgação.
Acaso os elementos de prova não sejam aptos a gerar a convicção acerca do ocorrido,
imperioso que se mantenha a reserva sobre os mesmos.
Para encerrar esse subitem, afigura-se de fundamental importância alertar
para a imperiosa reformulação do art. 27, inciso VI, da Lei de Imprensa, que não se
coaduna com a proteção dos direitos da personalidade e, por conseguinte, com os
ditames constitucionais. Estabelece o referido dispositivo:
141
FILHO, Sérgio Cavalieri. Op.cit., p. 123-124.
142
PEREIRA, Guilherme Döring Cunha. Op.cit., p. 91.
VI – não constituem abuso no exercício da liberdade de manifestação do pensamento
e de informação a divulgação, a discussão e a crítica de atos e decisões do Poder
Executivo e de seus agentes, desde que não se trate de matéria de natureza reservada
ou sigilosa.
Extrai-se do artigo supratranscrito que a imprensa não comete
abuso, quando noticia com fidelidade a atuação regular da polícia civil.
Em função deste princípio, a reprodução pelos meios de comunicação
de afirmações de delegados de polícia ou investigadores no curso do
inquérito policial é amplamente aceita e estimulada. Ocorre que este é
um dos campos em que mais abusos se cometem e mais se fere o senso
comum de justiça, demandando uma análise mais consentânea com os
ditames constitucionais. Foi exatamente essa a hipótese do caso “Escola
Base”. O Delegado Edélson Lemos, afirmando a culpa dos criminosos,
extravasou de seus poderes que devem limitar-se ao levantamento de
provas e indiciamento de suspeitos. Os meios de comunicação, ao
reproduzirem como notícia a afirmação da autoridade, ancorados pelo
artigo 27, inciso VI, da Lei de Imprensa, tornaram-se cúmplices de um
abuso de poder.
CONCLUSÃO
O desvio do projeto da comunidade como defensora do
direito universal à vida decente e dignificada para o da
promoção do mercado como garantia suficiente da universal
oportunidade de auto-enriquecimento aprofunda mais o
sofrimento dos novos pobres, a seu mal acrescentando o
insulto, interpretando a pobreza com humilhação e com a
negação da liberdade do consumidor, agora identificada
com a humanidade.
143
As palavras de Zygmunt Bauman sintetizam a idéia de que a
cegueira desenfreada da competição do mercado culminou em uma
concessão imensurável de liberdade ao capital em detrimento de todas
as outras liberdades, despedaçando, inclusive, as redes de segurança,
outrora socialmente tecidas, e fragilizando, por derradeiro, os direitos
humanos. De fato, percebe-se uma íntima vinculação entre a tendência
universal de conceder uma radical liberdade ao mercado e o
progressivo desmantelamento do estado de bem-estar.
O caso da Escola Base revelou-se como o exemplo mais absurdo
do efeito nefasto que advém da desmesurada liberdade de imprensa e
do caráter lucrativo adquirido pela notícia-mercadoria. A matéria
jornalística envolvendo um crime de abusos sexuais de crianças
supostamente praticado por pessoas que deveriam zelar pela
integridade das mesmas exerceu um poder de sedução sobre os meios
143
BAUMAN, Zygmunt. O Mal-estar da Pós-modernidade, op.cit., p. 34.
de comunicação de tal monta que não encontrou limites em qualquer
valor fundamental.
A mídia comandou e ditou o ritmo das investigações policiais,
estigmatizando os indivíduos, identificando os desviantes, atribuindo-
lhes uma responsabilidade moral e desencadeando uma reação social
indignada, agressiva e vingativa. Houve, como conseqüência desse
processo, uma decisiva mudança na identidade social dos envolvidos;
tudo catalisado por uma imprensa-espetáculo, que cospe concepções
pré-fabricadas, nos retirando a consciência e nos empurrando a
acreditarmos sem pensar. A imprensa, mormente através de
manchetes impactantes e imagens espetaculares, tem o condão de
enunciar verdades absolutas, sendo responsável pela formação de
estereótipos dignos de perseguição. Referindo-se aos midiáticos, Guy
Debord já preconizava que a autoridade generalizada do espetáculo”
144
os impede de agirem conforme suas consciências, o que sugere um
mecanismo de produção/invenção de fatos delituosos que parece não
ter fim.
Todas essas conjecturas nos legitimam a afirmar que a mídia é
detentora de um poder punitivo que se manifesta tanto no trabalho dos
juízes e autoridades policiais que se orientam, não raras vezes, pelo
144
DEBORD, Guy. Op.cit., p.124.
trabalho dos jornalistas, quanto na produção de um alarde público
suficiente para consubstanciar prisões cautelares.
O medo e a aversão sociais, ao penetrarem de forma voraz no
imaginário coletivo, além de provocarem um isolamento e
distanciamento entre os indivíduos, justificam posturas autoritárias e
“imposturas éticas”
145
, tiranizando o espaço público e permitindo a
invasão do cotidiano da sexualidade pelos pais, pela intervenção
policial, pela ação judiciária e, mais do que nunca, pela histeria
jornalística. Tal qual ocorreu ao longo da história, o poder, agora dos
canais de comunicação, engendrado por um suposto interesse público,
lançou mão de verdades sobre o comportamento sexual dos indivíduos
para imprimir sua força, atraindo a atenção da massa, impondo
princípios de visão do mundo e incitando toda uma sociedade a
perseguir os monstros sexuais da Escola Base.
Conseqüência inarredável desta manifestação desenfreada do
poder punitivo e social da mídia foi a submissão dos indiciados a um
145
BUCCI, Eugênio; KEHL, Maria Rita. Videologias: ensaios sobre televisão, op.cit., p. 127.
julgamento público precoce, vilipendiando direitos fundamentais
consagrados na Carta Magna, como os direitos à imagem, à honra e à
intimidade, e desrespeitando o epicentro axiológico da ordem
constitucional – princípio da dignidade da pessoa humana – o qual
repudia a utilização do ser humano como meio para consecução de
qualquer fim. O Homem existe como um fim em si mesmo, não
podendo ser encarado como meio para o uso arbitrário de qualquer
vontade, mormente em se tratando da vontade do capital. A dignidade
da existência humana, que jamais poderia ser medida em termos
econômicos, adquire um preço, tornando-se mercadoria rentável para
praticamente todos os jornais, revistas e emissoras, cedendo, enfim,
face à tão propalada liberdade de imprensa.
Desta feita, a cobertura de fatos ocorridos no âmbito do Direito
Penal não pode ser encarada como um produto à venda,
preponderando sobre valores individuais, o que implicaria na
alienação da dignidade que necessariamente pertence a cada um e a
todos e na eliminação de limites que naturalmente devam ser
observados. Neste contexto, para que se viabilize condições para o
pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, impedindo
a vulneração de bens fundamentais, o princípio da dignidade da pessoa
humana deve ser o norte para a ponderação dos direitos
constitucionais em conflito no caso concreto, de modo a adotar-se a
solução mais consentânea com os valores humanitários que o próprio
princípio da dignidade promove.
No caso submetido à análise, indiscutível que a liberdade de
expressão deve ceder diante dos direitos da personalidade afrontados,
vez que é cediço que as liberdades referentes à comunicação estão
condicionadas constitucionalmente pelo respeito à intimidade, à honra
e à imagem dos sujeitos. Ademais, os direitos da personalidade
constituem, segundo a melhor doutrina, direitos subjetivos, aos quais
corresponde o dever jurídico dos demais indivíduos de respeitá-los, o
que se torna inviável diante da promessa de agilidade, transparência e
publicidade da mídia na solução dos fatos criminosos em contraposição
à morosidade característica e inerente à prática judiciária. Como
muito bem assinala Sylvia Moretzsohn: “E a realidade é que o tempo do
jornalismo sempre tendeu à celeridade, em contraposição ao tempo do
direito.”
146
Por derradeiro, legítimo afirmar que a ordem comunitária
(concebendo-se nesta definição o poder público, as instituições sociais e
os particulares) que atribua um valor estratosférico ao capital,
ignorando a dignidade da pessoa humana e, portanto, minimizando os
146
MORETZSOHN, Sylvia. Em nome da justiça, contra o direito: os escândalos do jornalismo nas
denúncias de pedofilia. Op. cit., p. 255.
direitos e valores fundamentais, jamais será verdadeiramente livre,
posto que a liberdade não tolera e não subsiste diante da aniquilação
do mais importante atributo da pessoa humana.
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