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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
SIMONNE PEREIRA DA SILVA RIBEIRO
A LAMENTAÇÃO COMO INTERFACE DA FEMINILIDADE:
ANÁLISE DO DISCURSO DE MULHERES DEPOENTES E
DE PROFESSORAS
Taubaté
2007
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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
SIMONNE PEREIRA DA SILVA RIBEIRO
A LAMENTAÇÃO COMO INTERFACE DA FEMINILIDADE:
ANÁLISE DO DISCURSO DE MULHERES DEPOENTES E
DE PROFESSORAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação da Universidade de Taubaté para
obtenção do título de Mestre em Lingüística
Aplicada sob a orientação da Professora Doutora
Elzira Yoko Uyeno.
Taubaté
2007
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UNIVERSIDADE DE TAUBATÉ
SIMONNE PEREIRA DA SILVA RIBEIRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
graduação da Universidade de Taubaté para
obtenção do título de Mestre em Lingüística
Aplicada.
Data: _________________________
Resultado:_____________________
Banca examinadora:
Profa. Dra. Beatriz Maria Eckert Hoff Universidade Estadual de Campinas
______________________________________________
Profa. Dra. Eliana Vianna Brito Universidade de Taubaté
______________________________________________
Profa. Dra. Elzira Yoko Uyeno Universidade de Taubaté
______________________________________________
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Com licença poética
Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
- Vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo.
Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo os reinos
(dor não é amargura).
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável.
Eu sou.
Adélia Prado
16
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
À Deus, fonte de luz, que concedeu-me coragem e perseverança para atingir meus
objetivos.
À Elzira Yoko Uyeno, orientadora e, acima de tudo, professora, por acreditar no
tema tratado nesta dissertação e por não me deixar calar ao me flagrar em silêncio. A você,
professora, exemplo de dedicação à docência, minha eterna gratidão.
Às professoras Beatriz Maria Eckert Hoff e Eliana Vianna Brito pelas excelentes
sugestões por ocasião do Exame de Qualificação, contribuição singular na realização desta
dissertação. E, novamente, por aceitarem integrar a atual Banca.
Ao Rodrigo, meu marido, pelo apoio incansável e inabalável, pelo dito e pelo não
dito, sabiamente. Agradeço-lhe pela paciência e compreensão reveladas ao longo destes
meses.
À Aline, minha irmã, pela contribuição singular no campo do Direito. Sem você,
certamente, a caminhada seria mais árdua.
Aos funcionários da UNITAU, em especial a Patrícia Dovigo, pelo auxílio e
amizade demonstrados ao longo dessa caminhada.
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AGRADECIMENTOS
Aos meus irmãos, Aline, Cristiane, Fausto e Gustavo, espelhos de mim, que em
todos os momentos estiveram ao meu lado me apoiando e incentivando, registro, aqui, a
minha gratidão e amizade. Vocês foram para mim coragem, sensibilidade, força e equilíbrio
em momentos difíceis. Em forma de agradecimento, meu amor a todos vocês.
Às minhas sobrinhas, Marina, Júlia e Beatriz, não por compreenderem, mas por
aceitarem a minha ausência.
Aos meus amigos e cunhados, Clayton e Janaíla, pela amizade e atenção na
impressão final da dissertação. Ainda aos cunhados Michel e Maria Izabel, Juliana e Sérgio
que tão bem souberam compreender meu distanciamento durante este tempo de luta.
Às minhas queridas primas, Claudinha, Jaqueline, Lorena, Luana e Mariana,
exemplos de amizade, que estiveram ao meu lado compreendendo as minhas aflições e
auxiliando-me, registro minha afeição e amor.
Aos meus tios Geraldo, Gilberto, Osvaldo, Fátima, Isalfa e Nenzinha, grandes
incentivadores desta conquista.
Ao José Renato e Patrícia pela confiança e apoio, uma constante em minha vida.
À estimada amiga Gisele Paz Nunes, maior incentivadora desse trabalho, sinônimo
de otimismo e amizade, pela interlocução acadêmica.
À Elisabeth França, madrinha, minha franca ternura.
Às amigas Ana D’Arc e Márcia Paula que cuidaram para o meu bem-estar e de
meus queridos familiares. Minha eterna gratidão!
Aos professores, aos colegas de trabalho, em especial Betânia Melo, que sempre se
dispuseram a preencher minhas ausências.
18
Aos amigos Roni Cândido, Dóbia Nascimento e Carol Chaud, por compartilharem
comigo as aflições acadêmicas.
Aos amigos Robson, Rúbia e Renam, fonte viva da verdadeira amizade.
Agradeço imensamente pelo incentivo e a confiança que depositaram em mim.
Aos funcionários da Delegacia de Defesa da Mulher que contribuíram
imensamente pelo desenvolvimento da pesquisa. Em especial, ao Drº Carlos Roberto
Teixeira, delegado regional da delegacia da Polícia Civil de Catalão. Ainda agradeço à
Sandra Primo Martins e Cláudia Cristina Ribeiro.
Às mulheres, docentes e depoentes, que permitiram a realização da pesquisa.
Enfim, a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que esse
trabalho se tornasse uma realidade
19
RESUMO
Como profissional, professora, é possível perceber em momentos vários que as professoras,
de modo geral, enunciam vários descontentamentos no seu fazer docente, o que as levam a
lamentar, no entanto não abandonam à carreira docente. Por outro lado, é um crescente no
Brasil o número de mulheres que lamentam por sofrerem violência doméstica. A partir dessas
lamentações, esta dissertação se propôs a analisar o discurso de professoras de nível de ensino
básico e de mulheres depoentes na Delegacia de defesa da mulher. A aparente desarticulação
entre os discursos a serem analisados torna-se compreensível se analisarmos esse ponto de
intersecção. A docência constituiu uma das primeiras conquistas da mulher no sentido de que,
pela primeira vez, deixa o espaço privado e se constitui como pessoa pública, a depoente
conquista o direito de trazer para o espaço público aquilo que se esconde no privado. Foi,
mais precisamente, a percepção assistemática da existência de um ponto de intersecção entre
os dizeres de professoras e de depoentes que motivou a presente pesquisa: ambas
apresentavam em comum um discurso de lamentação. Este estudo, assim, tem origem na
manifestação da inquietação que existe nas mulheres que as levam a lamentarem. A hipótese
para esse discurso pautado na lamentação é que as mulheres repetem um discurso histórico da
condição feminina. Estabelecida a hipótese inicial, este trabalho assumiu como objetivo
detectar, no discurso produzido por professoras e depoentes, o discurso comum que enunciam
uma determinação histórica da condição feminina. Os dispositivos da análise do discurso de
linha francesa constituíram os instrumentos para a análise do discurso produzidos nos dois
espaços em que se inserem essas mulheres: a sala de aula e a delegacia. Nesses espaços, é
possível visualizar a intersecção entre os espaços privados e públicos vivenciados e
estabelecidos pelas mulheres. A hipótese de que o discurso pautado na lamentação, presente
tanto no discurso de professoras como no discurso de depoentes, tinha origem na repetição de
um discurso histórico da condição feminina, de onde partiu este estudo, confirmou-se:
professoras e depoentes revelaram-se determinadas por um discurso histórico feminino,
segundo o qual lhes cabe abnegação e submissão. Para além dessa hipótese inicial, a análise,
permitiu a comprovação dos dispositivos de subjetivação de que fala Foucault. Ao se
apresentarem falando de si, reforçam a eficácia do dispositivo confessional postulado por
Foucault, revelando que a verdade sobre si se encontra não nas mulheres, mas no ato da
confissão que se realiza entre as mulheres e seus ouvintes. A verdade flui no momento em que
elas se apresentam falando de si, em virtude de a verdade estar não na materialidade
lingüística do enunciado das mulheres professoras e depoentes, mas no ato discursivo: a
verdade escapa-lhes no momento da enunciação. Se, por um lado, constituem-se como corpos
dóceis historicamente determinados para garantir o funcionamento das instituições escolar e
familiar em que elas se encontram inseridas, por outro lado, conhecem-se um pouco mais.
Palavras-chave: mulher, confissão, análise do discurso, o público e o privado.
20
ABSTRACT
Like professional, teacher, it is possible to constantly realize that the teachers, on the whole,
express several discontent on their teaching, leading them to lament, however didn’t leave the
teaching. In the other side, in Brazil is growing the number of women lamenting to suffer
domestic violence. Starting from these laments, this dissertation proposes to analyse the
speech of basic teaching theachers and women that gave a statement on police station defence
of woman. The apparent inatirculate among the speeches to be analysed becomes
comprehensible if we analyse this common point. The teaching formed one of the firsts
conquets of the woman in a sense, on the first time, leave the private space and turn a public
person, the woman that gave a statement conquer the right to bring for the public space what
she hides in the private. It was,more precisely, the fortutous perception of the existence of a
common point between the sayings of the teachers and the women that testify motivating this
research: both introduced a speech of lamentation in common. This study, therefore, has its
origin in the display of anxiety that existes in the women and take them to lament. The
hypothesis for that lamentation speech is a historical women’s speech about their condition.
Established the first hypothesis, this work take on objective detect, into the speech produced
by teachers and testify women, the common speech that express a historical determination
about female condition. The devices from analysis of the French line speech formed the
analysis instruments of the speech produced on two areas where those women are insert:
schoolroom and the police station. In those areas, it is possible to visualize the common point
among the private and public areas established and experient by women. The hypothesis of
the speech rule on lamentation,present as much into the speech of theachers as into the
speech of testify women, had origin on repetition by one historical speech from feminine
condition, from where breaked this study, confirmed: theachers and testify women turned
determined for a historical female speech, according whom is appropriated abnegation and
submission. Beyond of that initial hypothesis, the analysis, permited the evidence from
devices of subjectivity about what Foucault speaks. If thei present themselves, reinforced the
efficiency of the confessional device postulate for Foucault, revealling the truth of oneself
won’t be meeting only on the women, but on the spot of confession performed among the
women and their listeners. The truth flows at the moment when they present temselves talking
about themselves, by the reason of the truth not be only on linguistics materiality of the
enunciation from the womwn teachers and testify women, but red-handed discourse: the truth
escape at the moment of enunciation. If,on the one hand, they are constituted like docileis
bodies historically determined to assure the working of the scholastic and familiar institutions
where they are inserted, on the other hand, they know themselves a little bit more.
Key-words: woman, confession, speech analysis, the public and the private.
21
SUMÁRIO
RESUMO
ABSTRACT
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................12
PARTE I
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Capítulo 1 A mulher e a conquista da cidadania
1.1 Discriminação da
mulher....................................................................................................17
1.2 As conquistas
femininas......................................................................................................20
1.3 As lutas femininas: vitórias e obstáculos............................................................................22
1.4 Aspectos jurídicos do casamento........................................................................................26
Capítulo 2 A Mulher na/da história do Brasil
2.1 Imagens de
mulher..............................................................................................................31
2.2 Meretrício: lugar socialmente
constituído...........................................................................34
Capítulo 3 A mulher entre o espaço privado e o público
3.1 A feminilidade da docência.................................................................................................37
3.2
Delegacia de Polícia de Defesa à
Mulher...........................................................................46
22
3.3 O contexto social das mulheres violentadas.......................................................................48
Capítulo 4 Precursores da Análise do discurso
4.1 Análise do Discurso............................................................................................................52
4.2 A trajetória dos estudos da análise do discurso...................................................................54
4.3 Interdiscurso e Intradiscurso...............................................................................................56
4.4 Um olhar sobre o silêncio...................................................................................................59
4.5 Confissão: um discurso da verdade.....................................................................................63
PARTE II
ANÁLISE DOS CORPORA
Capítulo 1 Condições de produção do discurso....................................................................67
Capítulo 2 Análise do corpus: mulheres docentes
6.1 Balizamento entre a docência e o feminino........................................................................71
6.2 Docência: um discurso heterogêneo...................................................................................80
6.3 Educação como espaço de lamentação...............................................................................87
Capítulo 3 Análise do corpus: mulheres depoentes
7 .1 Rompimento do silêncio e silenciamento: o paradoxo decorrente da heterogeneidade
constitutiva................................................................................................................................97
7.2 Tomada de depoimento: a confissão e o auto-conhecimento...........................................108
7.3 O ritual do depoimento: espaço de lamentações...............................................................114
CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................128
23
INTRODUÇÃO
A mulher brasileira tem sido foco de diversas discussões em setores diferentes da
sociedade. É de conhecimento comum que as representações e identidades do sujeito feminino
entre os espaços públicos e privados se interpenetram.
Esta dissertação se propõe à análise do discurso de professoras de nível de ensino
básico e de mulheres depoentes na Delegacia de defesa da Mulher. A aparente absoluta
desconexão entre os discursos a serem analisados se desanuvia, se considerarmos que, se a
docência constituiu uma das primeiras conquistas da mulher, no sentido de que, para exercê-la
pela primeira vez na história, ela deixa o espaço privado e se constitui como pessoa pública e
a depoente denúncia em delegacia de mulher na conquista do direito de trazer para o espaço
público aquilo que se esconde no privado.
Nas instâncias privada e blica, observa-se que as mulheres depoentes de
delegacia da mulher, bem como as mulheres professoras circulavam entre esses espaços,
buscando tornar as esferas privadas públicas. Às professoras, a instância pública permitia-lhes
vislumbrar a possibilidade de se profissionalizarem e de terem acesso a um saber que
transpusesse os das esferas doméstica e religiosa. Às depoentes, a instância pública passou,
recentemente, a permitir-lhe manifestarem-se, sob forma de denúncia, de pedido de justiça
pelas ofensas que lhe são imputadas na esfera privada.
Como professora de Língua Portuguesa, percebia que as professoras lamentavam
freqüentemente, embora não deixassem de atuar na docência. Notei, também, que as mulheres
depoentes na Delegacia de Defesa da Mulher, igualmente lamentavam, mas continuavam com
seus maridos agressores.
É importante salientar que a Delegacia de Defesa da Mulher ocorreu-me como
possibilidade de espaço de lamentação, em razão de existirem vários casos de violência contra
24
a mulher sendo enfocados pela mídia local. Sendo natural da cidade de Catalão, julguei ser
oportuno que a pesquisa fosse realizada na Delegacia de Defesa da Mulher nessa cidade de
Catalão. Quanto às professoras, a percepção de freqüente lamentação se dava entre o grupo de
professoras, colegas do fazer docente.
Foi, assim, precisamente, a percepção assistemática da existência de um ponto de
intersecção entre os dizeres de professoras e de depoentes que motivou a presente pesquisa:
ambas apresentavam, em comum, um discurso desejante, no sentido de um discurso que
lamenta a incompletude. Este estudo, assim, teve origem na manifestação da inquietação
existente nas mulheres que as levava a lamentarem.
A hipótese para os discursos das professoras e depoentes femininas serem
pautados na lamentação é que essas mulheres reproduziam um discurso histórico da condição
feminina.
Estabelecida a hipótese de partida, este trabalho assumiu como objetivo detectar,
no discurso produzido por professoras e depoentes femininas, indícios de que enunciavam
uma determinação histórica da condição feminina. Objetiva, assim, discutir o discurso
feminino nos âmbitos escolar e jurídico na tentativa de identificar os aspectos sócio-político-
ideológicos que circundam a formação dos sujeitos discursivos professoras e depoentes.
Para atingir o objetivo a que se propôs, esta pesquisa norteou-se pelo
estabelecimento das seguintes perguntas de pesquisa: 1) Quais o as regularidades
discursivas presentes no discurso de professoras do nível de ensino fundamental? 2) Quais são
as regularidades discursivas presentes no discurso de depoentes em delegacias de mulheres?
Os corpora para estudo serão formados por um corpus constituído de respostas
dos questionários de professoras de língua portuguesa de nível de ensino fundamental e médio
e por um outro corpus constituído de depoimentos apresentados sob forma por das mulheres
depoentes, no âmbito da Delegacia de defesa da Mulher.
25
Esta dissertação apresenta-se dividida em duas partes. Na primeira, apresentam-se
os pressupostos teóricos que sustentam a análise dos corpora de pesquisa: uma breve história
da trajetória percorrida pela mulher, desde seu confinamento no espaço privado até sua
conquista do espaço público por meio da primeira atividade que lhe foi permitida, por meio da
docência e sua conquista do direito de denunciar a agressão sofrida no lar; por último,
apresentam-se os aportes teóricos da Análise do Discurso de perspectiva francesa que baliza
este estudo. Na segunda, apresentam-se as condições de produção do discurso das professoras
e das mulheres depoentes, a análise de um corpus composto do discurso de professoras de
Língua Portuguesa do nível de ensino fundamental e a análise de um corpus composto do
discurso de mulheres depoentes em Delegacia de Mulher. Finalmente, apresenta as
considerações finais.
26
PARTE I
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Tendo em vista as inquietações sobre a questão da mulher na sociedade
brasileira, inquietações estas que norteiam esta dissertação,
a Parte I que agora se inicia será
composta de 4 capítulos, assim dispostos:
No primeiro capítulo
,
“A mulher e a conquista da cidadania” seapresentado um
pouco da história da mulher, na sociedade brasileira, será exposto o percurso de embates pelos
quais a mulher tem passado nos últimos anos, desde a conquista do espaço público até a
legalização jurídica do casamento.
No segundo capítulo, “A mulher na/da história do Brasil” é constituído a partir
das representações da mulher na sociedade e as contravenções praticadas pelas mulheres ao
discurso religioso, com algumas possíveis conseqüências.
No terceiro capítulo desta parte
,
“A mulher entre o espaço privado e o público”,
tecem-se considerações sobre os objetos de análise desta dissertação: mulheres depoentes e
professoras. O capítulo se deterá a demonstrar os possíveis espaços em que as mulheres,
27
depoentes e professoras, circulam. Como primeiro espaço, tem-se escola, onde a mulher se
profissionaliza e como segundo espaço tem-se a Delegacia de Defesa da Mulher.
Por último, o capítulo cinco tem como finalidade apresentar os conceitos teóricos
que sustentam a análise do discurso das professoras e mulheres depoentes.
28
Capítulo 1 A mulher e a conquista da cidadania
Não se nasce mulher, torna-se mulher.
Simone de Beauvoir
A constituição deste capítulo fundamenta-se na máxima dos direitos humanos constante na
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988, artigo 5º, inciso I, aqui transcrita:
Art. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
I – Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
constituição.
Considerando-se que as mulheres representam cinqüenta por cento da população
humana, faz-se necessária a sua valorização, permitindo-lhes que possa educar-se, trabalhar,
viver dignamente e, sobretudo, em igualdade social, profissional e econômica. Elas
conseguiram muito, mas cada uma de suas conquistas era anteposta por uma grande batalha.
A inquestionabilidade de que ainda muitas batalhas a serem conquistadas reforça a
importância da constituição deste capítulo.
1.1 Discriminação da mulher
29
Muitas são as caracterizações que se fazem da mulher; dentre elas, há a de “rainha
do lar”. Desde o nascimento, as mulheres recebem treinamento para a sua missão de vida que
foi e ainda tem sido, ainda que com menos força, o casamento. Meninas brincam de mãe com
bonecas, na imitação do exercício de dedicação e cuidado com os filhos futuros; de casinha,
com panelinhas, na imitação do exercício da gestão do espaço doméstico, emulações que
propiciarão o desempenho do “reinado” posterior em sua vida.
Segundo o imaginário social, a mulher deve ser bela, suave, doce, sedutora, casta,
recatada e detentora do grande sonho: encontrar o príncipe encantado, para, então, poder se
casar e ser feliz para sempre. Para o momento do casamento, existe um ritual ainda seguido
em dias atuais que identifica as marcas do imaginário feminino sobre o casamento como: o
culto ao corpo, o vestido de noiva, o véu, a grinalda e a entrega da noiva pelo pai ao futuro
marido.
Terminado o ritual, eis o início do seu “reinado”, repleto de afazeres domésticos.
Conforme prescrevem os costumes sociais, cabe à “boa” esposa cuidar do marido e filhos;
cabe-lhe cuidar da educação dos filhos, da saúde não dos filhos, mas também dos demais
parentes doentes e idosos que necessitem de seu cuidado, tudo isto sem se descuidar do
marido. Fica, ainda, sob sua responsabilidade, a manutenção da casa: limpar, cozinhar, lavar,
costurar e fazer compras.
Mesmo desempenhando todas essas funções, as donas-de-casa não são
remuneradas, não gozam do direito de descanso semanal, muito menos do direito de férias e
de aposentadoria, prova de que o homem monopolizava o poder econômico e político (DIAS,
2004a). Por outro lado, enquanto os espaços tradicionais de expressão política se encontravam
fechados, elas se organizavam em formas alternativas de autuação muitas vezes em torno de
uma luta que as constituía enquanto sujeitos coletivos e políticos (MATOS, 1996, p.37).
30
Magalhães (2003), no que se refere à discriminação das mulheres, afirma que
[As] as mulheres exercem, hoje, funções que antes eram ocupadas apenas por
homens, no trabalho, na política, nos mais diversos domínios sociais. As mulheres,
portanto, adquiriram visibilidade no espaço social, o que não significa
necessariamente direitos iguais aos dos homens (MAGALHÃES, 2003, p.34).
Apesar do evidente monopólio masculino de poder, estudiosos defendem que a mulher
desempenha um papel fundamental para a subsistência da família e do Estado, pois ela é a
responsável pela procriação dos cidadãos futuros, que serão seus filhos os que garantirão a
continuidade da sociedade. A verdade é que o trabalho feminino doméstico não é valorizado.
Mesmo com todos os entraves, a mulher consegue inserir-se no mercado de
trabalho. Entretanto, com isso, passa a desempenhar dupla jornada, pois não se desvincula dos
trabalhos domésticos. Dividida, é inevitável que tenha menos disponibilidade para viagens,
estudos, cursos, deixando de qualificar-se; conseqüentemente, não lhe resta alternativa a não
ser limitar-se a receber baixos salários e a não se ascender profissionalmente. Essa sujeição,
por sua vez, acaba por justificar o salário mais baixo que o do homem. Matos (1996) afirma a
importância de a mulher ter adentrado na cena pública mesmo com papéis improvisados, pois
assim torna-se possível reconstruir a estrutura ocupacional feminina num meio urbano.
Segundo Dias (2004 a), hoje, “a rainha do lar”, apesar de estar inserida no mercado
de trabalho, ainda ocupa lugar de subordinação e submissão para com seu marido e senhor, a
quem deve obediência e sujeição.
Ainda segundo a autora, a mulher, inserida em uma sociedade de tradição
masculina de poderio nos campos sócio-econômico e político, continua ocupando papel
subalterno. Designada a cuidar da casa, tendo como missão a assistência da família, o zelo e a
administração do lar, o apoio ao marido e o cuidado com os filhos, a mulher demorou longos
anos para conseguir sua emancipação. Aos poucos, teve acesso à educação e ao mercado de
trabalho, embora, ainda hoje, receba em média 40% menos do valor do salário de um homem
31
para desempenhar funções idênticas. Essas distorções ainda persistem, apesar de a
Constituição Federal prescrever a igualdade entre homens e mulheres: “[H] homens e
mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” (Constituição
Federal, 1988, artigo 5º, inciso I).
Ainda que as mulheres tenham conseguido alguns avanços no que diz respeito a
direitos constitucionais, a igualdade ainda se encontra longe de ser atingida. Mesmo com a
conquista de espaço no âmbito profissional, as tarefas domésticas, o compromisso com os
filhos no desempenho de seu papel de e continuam sendo encargos exclusivamente
femininos. A esse acúmulo de funções atribuiu-se a nomenclatura dupla jornada, caso em que
a mulher, além de continuar com os encargos domésticos, passa a auxiliar no sustento da casa,
quando a casa não era mantida unicamente por ela. Pesquisas revelam que 23% das famílias
brasileiras são chefiadas por mulheres que assumem sozinhas o encargo de provedoras da
família (DIAS, 2004a).
1.2 As conquistas femininas
Cabe-nos destacar que o estudo sobre a mulher obteve avanço notório nas duas
últimas décadas.
No decorrer do século XX, a luta das mulheres por seus direitos, teve aspectos
de campanha militar. Com objetivos demarcados, as mulheres foram à luta, fazendo com que
seus objetivos fossem um a um conseguidos como batalhas em direção a uma grande vitória.
É fato que ainda muito pelo que lutar, mas, por outro lado, que se admitir que nenhuma
luta proposta para este século se assemelhará a importância das conquistas obtidas no decorrer
do século passado.
32
Segundo Dias (2004b), quando os homens partiram para a I Guerra Mundial, em
1914, as mulheres assumiram seus lugares nas indústrias e no comércio. A partir disso,
obtiveram a primeira grande conquista que era o trabalho fora dos limites do lar. Com isso,
conquistaram a independência financeira e o mercado de trabalho e de consumo se
modificaram com o emprego da mão-de-obra feminina. Após o prazer da independência
financeira, promoveram a luta pela cidadania.
Scavone (1999) afirma que, em 1893, a pioneira Nova Zelândia inaugurou o
voto feminino e, nas três primeiras décadas do século, grande parte dos países ocidentais
seguiu esse exemplo; no Brasil isso ocorreu em 1932. No setor esportivo, embora a
participação das mulheres tenha se tornado oficial em 1924, elas fizeram parte das Olimpíadas
de 1900, que era a segunda edição deste evento. A autora afirma, ainda, que o movimento
feminista, embora nunca tivesse se constituído como um movimento de massa, sempre foi um
fenômeno de grupos pequenos e isolados de mulheres que chamou a atenção das demais
mulheres.
Graças a essas feministas que tinham coragem de ir às ruas gritando palavras de
ordem é que hoje falamos em divórcio, contracepção e emancipação da mulher casada com
naturalidade, o que eram tabus no passado. Betty Friedman e Margaret Sanger, exemplos de
feministas ativistas, deixaram seus nomes gravados na história dos direitos civis, esta por ser
pioneira do movimento pelo controle da natalidade nos EUA, na segunda década deste século
e aquela por defender o direito de igualdade civil e jurídica.
Scavone (1999) explicita algumas conquistas obtidas ao longo dos últimos cem anos pela
mulher. Ela
passa a ter direito de votar, entra nas Olimpíadas e, com o decorrer do tempo,
aumenta sua participação na competição; entra maciçamente no mercado de
33
trabalho; pode ser eleita para o governo; não pode mais ser impedida de matricular-
se em cursos superiores; consegue apoio oficial para evitar a gravidez, inclusive
com a ajuda de médicos para receitar contraceptivos; aposenta o espartilho e as
cintas apertadas; passa a usar calças compridas; maquiar-se deixa de ser ato
reprovável; a mulher casada passa a ter os mesmos direitos do marido no mundo
civil - com isso não precisa mais de autorização por escrito dele para ser contratada
no emprego, matricular-se na faculdade, comprar e vender imóvel e dar queixa na
delegacia; não pode mais ser deserdada pelo pai por ter perdido a virgindade; acaba
o costume de manter a virgindade até a noite de núpcias; deixa de ser educada
apenas para casar e ter filhos; desaparece a figura do chefe da família - o homem
perde o poder legal de dar a última palavra dentro de casa; a mulher não pode mais
ser devolvida ao pai pelo marido que a acusa de tido relação sexual com outro; fica
livre para decidir se quer adotar o sobrenome do marido; a mulher passa a cobrar
fidelidade do marido e dar-se o direito de eventualmente trair; conquista o direito de
fazer aborto em diversos países; a justiça não aceita mais a tese da legítima defesa
da honra para inocentar homens que matam a mulher por ciúme ou traição; a mulher
pode fumar e beber - hábitos antes reservados aos homens, sem sofrer desaprovação
moral da sociedade; a mulher começa a exigir prazer nas relações sexuais; chega aos
cargos executivos nas grandes empresas e recebe salários mais próximos dos pagos
aos homens (SCAVONE, Revista Veja, 1999, p.22-25).
Embora se saiba que as representações, as imagens socialmente construídas da
mulher, variam em função da época, não é possível afirmar categoricamente que as
representações sobre a mulher sofreram mudanças através do tempo ou se várias
representações permaneceram coexistindo na sociedade contemporânea.
De acordo com Del Priore (2006), para algumas mulheres, o relacionamento
extraconjugal era percebido como um sintoma de que o casamento não estava bem, de que se
vivia uma crise que poderia ser superada ou que levaria à separação dos cônjuges. Para elas,
o natural e desejável era o relacionamento afetivo-sexual com um único homem, sendo o
relacionamento extraconjugal um obstáculo para a continuidade do casamento. Muitas vezes,
o relacionamento extraconjugal implica violência doméstica. Se a mulher é infiel, abre
possibilidades para o homem “lavar sua honra” com a violência doméstica; se é o homem
quem comete o adultério, e a mulher cobra-lhe fidelidade, estará sujeita a sofrer violência
doméstica por afrontar os desejos sexuais de seu companheiro.
De acordo com o Código Penal de 1890, a mulher era penalizada e punida por
adultério, com prisão celular de um a três anos. O homem era considerado adúltero
34
no caso de possuir concubina teúda e manteúda, e isso era considerado um assunto
privado (DEL PRIORE, 2006).
O corpus de análise deste estudo, em alguma medida, abrange os relacionamentos
extraconjugais, uma vez que possibilitam o desentendimento entre o casal que poderá decorrer
em violência doméstica.
1.3 As lutas femininas: vitórias e obstáculos
Na tentativa de constituir a identidade do sujeito feminino, fruto de suas relações e
manifestações no meio social, político, educacional e religioso, faz-se necessário retroceder
no percurso das mulheres na sociedade, marcado por muitos obstáculos que dificultaram sua
trajetória, mas não sobrepuseram as vitórias.
O surgimento do voto feminino, em 1932, coincide com o surgimento da
cidadania feminina. é possível falar desta última, em virtude do direito ao voto feminino.
Trinta anos depois, em 1962, embora capazes do
exercício da cidadania, ao se casarem, eram
assistidas pelos seus maridos; eram eles que as autorizavam ou não a trabalhar.
O Código Civil de 1916 retrata o perfil da sociedade da época, em que se
verifica com distinção os papéis dos homens e mulheres: a ela cabia cuidar do lar, e a ele,
sustentar a família. De acordo com o Código Civil de 1916, segundo o artigo 233, “[O] o
marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no
interesse comum do casal”.
Nessa época, a influência religiosa servia de sustentáculo ao modelo de família
ditado pelo Estado, uma vez que o casamento era uma instituição abençoada pelos laços do
matrimônio, e desobedecer ao marido significava desobedecer às normas religiosas. Isso
fortalecia a postura de poder do homem, exigindo cada vez mais a submissão da mulher e dos
filhos, reforçando o lugar do chefe de família a quem cabia, por conseguinte, tomar as
decisões e administrar o patrimônio. Ao marido, competia a administração dos bens comuns e
35
também a ele se outorgava a administração dos bens particulares da mulher, em virtude do
regime matrimonial adotado ou de pacto antenupcial (CÓDIGO CIVIL 1916, artigo 233,
inciso II).
Quanto aos filhos, eram sócio-economicamente convenientes, pois constituíam
força de trabalho para a sociedade da época, cuja estrutura era rural: se nascessem homens e
saudáveis, equivaliam à força de trabalho para o desempenho das atividades agropastoris. A
criação dos filhos e a constituição da família, enquanto instituição sagrada, cabiam à mulher
que tinha a função de fazer perpetuar o ciclo familiar com conceitos religiosos sobre família
os quais deveriam ser passados entre gerações. Segundo Dias (2004 a), a sacralização da
família interessava ao Estado que delegava à mulher a função de formar o cidadão do futuro.
Esse modelo familiar, após a Revolução Industrial, modificou-se quando as
mulheres foram chamadas ao mercado de trabalho. Elas descobriram o direito à liberdade,
reivindicando a igualdade prevista na lei e questionando a discriminação que elas
costumeiramente sofriam. Conforme Dias (2004a), o movimento que levava à frente esses
questionamentos era composto por mulheres ativistas que passaram a ser chamadas,
pejorativamente, de feministas, sendo-lhes atribuídas características de lésbicas ou mal-
amadas. Criou-se o estereótipo de que mulheres ativistas odiavam os homens e queriam seus
lugares; isso fez com que muitas mulheres desenvolvessem aversão ao movimento, levando-o
à marginalização.
Em meio a esse embate, surgiu o método contraceptivo como paliativo para que as
mulheres suportassem o caos. Não meramente aqui citado, o método contraceptivo equivalia à
descoberta do prazer feminino, quando as mulheres deixaram de ser aprisionadas pelo medo
da gravidez. A libertação da gravidez permitiu-lhes dirigir a atenção ao trabalho fora de casa,
constituindo mulheres mais confiantes em sua força do trabalho, ajudando a manter a família,
o que lhes trouxe independência; com isso, passaram a cobrar participação do homem nos
36
afazeres domésticos e no auxílio à criação dos filhos. Esse momento ficou marcado como
revolução feminina.
Mesmo com todos esses avanços, ressalta-se que ainda é forte a resistência social
aos novos papéis desempenhados por homens e mulheres, embora a Constituição Federal
afirme a igualdade de direitos entre os sexos. Isso não bastou para alcançar, segundo Dias
(2004a), a equivalência social e jurídica de homens e mulheres.
No Brasil, no século XXI, a mulher deixou de ser o sexo frágil, cuja virgindade
era símbolo de castidade, característica de sua pureza e honradez. Deixou de ser vista como
única responsável pela harmonia da família e realizada com os afazeres domésticos.
Conquistou espaço na educação, na profissionalização, não deixando, entretanto, de exercer o
seu papel de mãe e esposa. Essa conquista, assim, propiciou o acúmulo de trabalho,
duplicando a jornada de trabalho feminino.
Com a profissionalização feminina e posterior ingresso das mulheres no mercado de
trabalho, o homem deixou de exercer com exclusividade o papel de mantenedor da família e
passou a dividir esse papel com a mulher, embora não admitisse dividir o papel das
obrigações domésticas com a mulher. As mulheres contemporâneas conquistaram a liberdade
profissional; contudo tornou-se condicionada à dupla jornada de trabalho: a jornada da
profissão e a da administração do lar.
Embora as mulheres tenham invadido todas as profissões, estejam ocupando cada
vez mais espaço, e a validade desse processo seja inquestionável, essa conquista não eliminou
a violência.
Ao discorrer sobre as conquistas obtidas pelas mulheres ao longo deste século,
evidenciam-se outras realidades que perpassam todo o processo de conquista e sobressaem no
seio social. Inúmeras são as evidências de que a mulher é vítima da violência doméstica.
Segundo estatísticas (DIAS, 2004b), a violência doméstica é crime e é o mais cometido no
37
Brasil e no mundo, correspondendo a um terço dos delitos cometidos no mundo, e
constituindo o crime menos denunciado. Ainda segundo a autora, normalmente a violência
doméstica é um crime que não é punido. Assim, as vítimas são, na maioria das vezes, as
únicas que recebem a punição. Isso leva à conclusão de que ainda lhes resta um grito por
respeito à sua integridade física e psicológica, deixando de silenciar-se perante a violência
doméstica que se faz contínua na sociedade.
1.4 Aspectos jurídicos do casamento
É importante salientar os aspectos jurídicos do casamento ao se tratar da questão
do gênero feminino, uma vez que o modelo de família do século passado era constituída pelo
casamento heterossexual, que correspondia à submissão ao autoritarismo bem demarcado
pelos maridos.
Não é possível demarcar a data em que a mulher recebeu a posição de
inferioridade. À mulher, desde sempre, foram atribuídos os limites da família e do lar. Isso
cerceava os papéis sociais atribuídos aos sexos masculino e feminino: ele mantendo
economicamente a família, e ela cuidando do lar.
O sistema jurídico atual, embasado na Constituição Federal de 1988, apresenta
alterações significativas sobre as relações familiares. O conceito de família foi modificado,
podendo esta ser constituída por um dos pais com seus filhos, o que fez com que se afastasse
o pressuposto de que família é conseqüência de casamento. Deixou-se de se considerar a
exigência de um par, assim como o conceito inicial de casamento para reprodução. O conceito
de família é também estendido à união estável entre um homem e uma mulher, a qual pode
ocorrer também nos relacionamentos fora do casamento. Segundo Dias (2004 a), o casamento
38
deixou de ser o marco identificador da existência de uma família e o único sinalizador do
estado civil das pessoas.
Com todo esse ar de modernidade, ainda havia uma grande lacuna de direitos às
mulheres a ser preenchida. Apenas em 1994 e 1996, com a criação das leis que regularam a
união estável, é que houve a concessão de alimentos, o reconhecimento do direito à herança, à
habitação e do usufruto aos participantes dessas relações.
Muitas mudanças ocorreram, mas ainda se faz necessário o tratamento igualitário
no que diz respeito às questões de gênero por meio de “ações afirmativas que busquem o
estabelecimento da igualdade material por meio da igualdade de oportunidades” (DIAS,
2004b, p.38).
A trajetória da mulher é ainda fortemente condicionada à função reprodutora e não
se é possível promover um deslocamento nessa trajetória, uma vez que a função reprodutora
lhe é constitutiva. Chama-se, entretanto, a atenção para o comprometimento com os filhos que
lhe é imposto, o que a leva a abnegações rias, além de não lhe permitir um projeto de vida
particular que seja determinante de sua identidade e que lhe possibilite o acesso ao poder na
tentativa de que elas possam, conforme Dias (2004b), exercer o papel de agentes
modificadores dos padrões comportamentais vigorantes.
Esse imobilismo, à visão de Dias (2004a), é determinado pelo conservadorismo do
Poder judiciário. Maria Berenice Dias, magistrada há mais de 30 anos, foi a primeira mulher a
ingressar na magistratura do estado do Rio Grande do Sul. Feminista e ativista no
desempenho de sua atividade profissional buscou resgatar a cidadania feminina e trazer uma
nova visão às questões de gênero. Em suas próprias palavras,
[O] o poder judiciário ainda é uma instituição das mais conservadoras e sempre
manteve uma posição discriminatória nas questões de gênero. Com uma visão
estereotipada da mulher, exige-lhe uma atitude de recato e impõe, uma situação de
dependência (DIAS, 2004a, p.25).
39
Corroborando a asserção de Dias, Magalhães (2003) afirma que determinados
domínios sociais, como o jurídico, são ainda muito conservadores com relação à mulher.
Uma das discriminações diz respeito ao sobrenome. O Código Civil determinava a
obrigatoriedade de a mulher aglutinar ao seu nome, quando do casamento, o (s) sobrenome (s)
do marido, sobrenome esse que ela perdia no caso de ação de desquite e constituía a forma de
penalizá-la: “o cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o direito de
usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente
(CÓDIGO CIVIL 2002, artigo 1.578, p.413).
Com o advento da Lei do Divórcio
1
, em 1977, o acréscimo do sobrenome do
cônjuge tornou-se facultativo, podendo, também, a mulher decidir-se pela continuidade do
uso do nome de casada quando da separação judicial. Embora seja direito assegurado pela Lei
do Divórcio, não tem sido admitido, na prática, que ela continue a se utilizar do sobrenome do
cônjuge na sociedade contemporânea, como forma de punição à mulher.
Quanto à pensão alimentícia, o Código Civil estabelecia a obrigatoriedade de o
homem prestar manutenção à família, salientando-se que apenas as mulheres “inocentes” e
pobres tinham o direito à pensão alimentícia. Esse dever do homem era suspenso, no caso de a
mulher abandonar o lar sem motivo justificável.
Era esperado que a Lei do Divórcio promovesse objetividade jurídica para os
tribunais; no entanto ainda se percebe que as mulheres são julgadas também pela sua conduta:
após o divórcio, apenas uma mulher “honesta” terá o direito de ser assistida pelo ex-marido
com pensão alimentícia (DIAS, 2004b). Com a Lei do Divórcio, surgiram novos atributos
concernentes à liberdade e privacidade da mulher como a possibilidade de novo casamento e a
1
A Lei de número 6.515, de 26 de dezembro de 1977 regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do
casamento, seus efeitos e respectivos processos e dá outras providências. Apresentação da Lei na íntegra nos
anexos.
40
alteração do regime legal de bens para comunhão parcial, segundo o qual apenas os bens
adquiridos após o matrimônio seriam contabilizados no caso de separação. A alteração do
nome, em decorrência do casamento, passou a ser facultativa, e a condenação da mulher em
virtude de relações extra-matrimoniais amenizou-se, embora se mantivesse a ausência de
respaldo legal.
Com o surgimento de novos relacionamentos de pessoas que abandonaram suas
relações matrimonias legais primeiras, criaram-se, na sociedade, estruturas de convivência
sem uma terminologia adequada, ocasionando a ausência de papéis definidos por esses
indivíduos dentro da sociedade. É o caso da “companheira”.
O novo Código Civil, de 2002, respalda legalmente mudanças ocorridas na
sociedade, revogando o Código de 1916. Quanto ao “casamento ilegítimo”, para os casos de
união de homem e mulher que haviam sido casados anteriormente, até então era denominado
concubinato. Depois de 86 anos, com o novo Código Civil, a relação entre companheiros e
companheiras ganhou status de união estável. Embora esse tipo de relacionamento tenha se
configurado entre 1994 e 1996, apenas em 2002, estabeleceram-se direitos e deveres aos
conviventes.
Embora a união estável tenha sido mencionada no Constituição de 1988, sua
definição clara é apresentada apenas no novo Código Civil:
É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher,
configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o
objetivo de constituição de família (CÓDIGO CIVIL, 2002, artigo 1.723, p.431).
Os companheiros em união estável possuem direitos e deveres gerais iguais como:
lealdade, respeito, assistência e guarda, sustento e educação dos filhos, além do direito à
41
pensão alimentícia que inclui moradia, educação, vestuário e alimentação. No caso de
separação, a guarda dos filhos ficará com quem detiver melhores condições econômicas e
emocionais.
Nos idos de 1960, o termo concubinato se referia a qualquer relação fora do
casamento, pois os homens casados não poderiam, por lei, casarem-se novamente, e o
concubinato passou a ter a conotação de adultério, já que inexistia o divórcio. Normalmente, o
homem convivia com duas mulheres: a legítima e a concubina.
Os concubinos viviam em união estável por muitos anos, tinham filhos e
patrimônio em comum; viviam, entretanto, em insegurança, já que, se um deles abandonasse a
relação, nenhum direito sobre o patrimônio estava garantido, embora o patrimônio fosse fruto
do esforço da mulher também.
Depois de 1960, ocorreu a distinção entre o “concubinato adulterino” e o
“concubinato próprio”, este último estabelecido para as relações duradouras entre homem e
mulher desimpedidos para o casamento. Com a Lei do Divórcio, em 1977, muitos separados
puderam se casar novamente.
O novo Código Civil ainda mantém o impedimento de os concubinos se
casarem. A relação concubinária, embora não esteja protegida por lei, possui seus direitos
assegurados: alimentação, habitação, herança conforme dispostos nas leis de nº. 8.971 e
9.278.
Para as divergências dos veis de relacionamento, a justiça apresenta a seguinte
escala de beneficiados: cônjuges, companheiros, concubinos. Essa escala demonstra a
construção dos papéis que as mulheres foram adquirindo na sociedade, antes não nomeados.
As relações entre cônjuges, companheiros e concubinos estabelecem e nomeiam as
relações entre homem e mulher, relações essas que são, também, permeadas, em alguns casos,
de atos de violência doméstica. É na união entre homem e mulher, ou na ausência de
42
oficialização da mesma que surgem os conflitos diversos entre os casais, os quais podem
decorrer em violência doméstica. A violência doméstica ocorre não apenas nos aspectos
jurídicos do casamento, mas também nas relações que envolvem os sentimentos que o
indivíduo desprende, os quais balizam-se entre o amor e o ódio, oscilando entre outros vários
sentimentos que sucumbem a integridade do indivíduo agredido ou agressor. Nesse aspecto,
depara-se aqui com o objeto de análise desse estudo: a depoente na Delegacia de Defesa da
Mulher.
Capítulo 2 A mulher na/da história do Brasil
Os sofrimentos, as imoralidades, os males de todos os tipos, causados em inúmeros
casos de sujeição da mulher ao homem, são muito terríveis para serem esquecidos.
Stuart Mill
Objetivando traçar um percurso histórico dos acontecimentos e da atuação das
mulheres na sociedade brasileira, constitui-se este capítulo, apresentando-se a cronologia dos
fatos históricos que as envolveram.
2.1 Imagens de mulher
43
Em tempos passados, a posição da mulher no mundo era lamentável. No Oriente,
as casas não dispunham de janelas para que elas não olhassem o mundo exterior. Esperava-se
que ela fosse ignorante, se possível, que estivesse alheia aos acontecimentos mundiais. Sua
função social se constituía da criação dos filhos e da realização das tarefas do lar. O fato de a
mulher estudar, no Oriente, era tido (e ainda é em alguns países) como desobediência à
castidade que lhe era imposta. Ela apresentava-se, na maioria das vezes, como prisioneira do
lar. Certas tribos árabes contavam as mulheres juntamente com o rebanho. Fatos como esses
ocorriam ainda que as mulheres representassem cinqüenta por cento da população humana.
Por representarem tal porcentagem da população humana, esperava-se que as
mulheres tivessem a mesma oportunidade que os homens de se educarem, trabalharem e
participarem do meio em que se encontram inseridas. Tendo esse pressuposto de igualdade de
gêneros, far-se-á um breve percurso dos fatos históricos que envolveram as mulheres no
Brasil.
No período do Brasil Colônia, segundo Del Priore (2004), falar do sexo
feminino era estabelecer relação com a sexualidade do indivíduo, pois era grande o
conhecimento que se tinha das mulheres brasileiras desse período pelo uso luxurioso que elas
faziam de seus corpos.
Ainda segundo Del Priore (2004), de um lado, verificavam-se os corpos quentes
das escravas negras em constantes relacionamentos sexuais com seus senhores e, de outro
lado, os corpos brancos e frios das sinhás sem prazer. Os corpos femininos de cores e
situações sociais diferenciadas serviam ao prazer ou à constituição da prole dos homens do
Brasil colônia, esta última regida de acordo com os preceitos religiosos.
Mesmo num período determinado por conceitos machistas, era possível encontrar
mulheres que descumpriam os deveres do matrimônio, constituindo irregularidades para a
moral da época. Na tentativa de conter essas irregularidades, surgiu a voz da Igreja,
44
apresentando um discurso moralizador sobre o uso dos corpos. Era necessário estabelecer a
sexualidade apenas dentro do casamento, e com objetivo de procriação, pois a Igreja
objetivava fazer da família o foco de disseminação da moral cristã. Para isso, a Igreja
propagava preceitos como virgindade, casamento, monogamia, a exemplo dos prescritos na
Bíblia por I Pedro: 3,14, como se transcreve a seguir:
Vós, também, ó mulheres, sede submissas aos vossos maridos. Se alguns não
obedecem à palavra, serão conquistados, mesmo sem a palavra da pregação, pelo
simples procedimento de suas mulheres, ao observarem vossa vida casta e
reservada. Não seja o vosso adorno o que aparece externamente: cabelos trançados,
ornamentos de ouro, vestidos elegantes; mas tende aquele ornato interior e oculto do
coração, a pureza incorruptível de um espírito suave e pacífico, o que é tão precioso
aos olhos de Deus.
O discurso sobre o uso dos corpos femininos e seus prazeres fez emergir a
valorização da mulher para submetê-la aos objetivos apregoados pela Igreja. Esses objetivos
se revelaram em algumas instruções destinadas às mulheres. Na palavra bíblica, Tito: 2,4-6
propõe que as instruções se perpetuem por gerações e que as mulheres “saibam ensinar as
jovens a amarem seus maridos, a quererem bem seus filhos, a serem prudentes, castas,
cuidadosas da casa, bondosas, submissas aos seus maridos, para que a palavra de Deus não
seja desacreditada”.
Tempos depois, no período da Contra-Reforma Católica, a mulher tornou-se o alvo
preferido dos pregadores que a acusavam de luxúria. Era intuito maior da Igreja domesticar a
mulher dentro do casamento e, para isso, era necessário pregar como modelo feminino ideal o
de corpo obediente e recatado, o que lembra a docilização do corpo de que fala Foucault. A
inculcação desse modelo se valia da ameaça às mulheres que não obedecessem aos preceitos
da moral estabelecidos pela Igreja; no caso de desobedecerem a esses preceitos, elas ficavam
sujeitas aos castigos se não humanos, divinos.
45
A Igreja católica apresentava um sistema normativo na tentativa de garantir um
modelo ideal de mulher para implantar a família e a católica na colônia. Percebe-se a
pregação tendenciosa do modelo de mulher que se distanciava das mulatas e negras forras,
além das brancas empobrecidas - mulheres livres, a lutar contra as dificuldades do cotidiano.
Del Priore (2004) afirma que algumas mulheres surdas aos discursos da Igreja
respondiam com práticas tidas como desabusadas, resultantes de suas condições materiais de
vida. Em conseqüência dessas práticas, surgiam filhos fora do laço conjugal que,
independentemente do sexo, estavam fadados a serem castigados pelo ato de sua mãe e vistos
como transgressores do discurso religioso: se mulheres, prostituíam-se; se homens, viviam na
pobreza. Com isso, a maternidade
além de sentimento, cuidados com os filhos e trabalho de parto, era um laço que
unia mães e filhas num mesmo ofício: o da prostituição, com a benção da pobreza e
a conivência de pais e maridos (DEL PRIORE, 1992, p. 20).
Ao modelo ditado pela Igreja para o uso dos corpos e do amor matrimonial
exclusivo, algumas mulheres respondiam com adultérios que pontilhavam aqui e ali,
recorrendo, muitas vezes, ao tribunal eclesiástico para se separarem de seus maridos que, em
retaliação, agrediam-nas e seqüestravam os bens delas. Já nesse período histórico, tinha início
o que viria a constituir parte dos corpora de análise deste estudo: mulheres agredidas pelos
homens.
Vários motivos levavam as mulheres a serem agredidas. O meretrício serviu,
durante muitos anos, como escudo à violência doméstica, embora, muitas vezes, tornasse
parte de uma história que terminava com a morte de um dos cônjuges. Tanto as esposas que
cobravam uma postura fiel dos maridos, quando percebiam que os mesmos lhes eram infiéis,
46
quanto as meretrizes que se encontravam na instabilidade de proteção e de ligações
consensuais com os homens estavam sujeitas a serem agredidas pelos homens.
Del Priore (2006) frisa que nem sempre o indissolúvel vínculo do matrimônio
terminava com a morte natural dos cônjuges. Para as mulheres homicidas não havia a
possibilidade de serem desculpadas por matarem seus maridos, já, para os homens homicidas,
a justificativa da defesa da honra conseqüente do adultério feminino encontrava apoio nas
leis. É certamente essa tradição que se perpetuou até a história recente brasileira.
2.2 Meretrício: lugar socialmente constituído
No Brasil colonial, mesmo com a luta das autoridades civis e eclesiásticas para
transformar o casamento em única forma de sexo lícito, notava-se entre os discursos e as
práticas sobre o uso dos corpos uma distância muito grande. Isso favoreceu a construção do
oposto do modelo de mulher pura e recatada, identificada com a Virgem Maria, ocasionando
o distanciamento do padrão de mulher pregado pela Igreja, além do surgimento do adultério.
A Igreja, duplamente eficaz, não propunha o modelo de relações entre homens e mulheres,
como também estabelecia a punição aos infratores do modelo, além de cuidar de que a
punição fosse aplicada, conforme profetizava Deuteronômio, na Bíblia Sagrada, no capítulo
22 e versículo 22, como se observa na transcrição:
Se encontrar um homem dormindo com uma mulher casada, todos os dois deverão
morrer: o homem que dormiu com a mulher, e esta da mesma forma. Assim, tirarás
o mal do meio de ti.
47
Os relacionamentos extraconjugais comprometiam a ordem do Estado (entenda-se
Estado judaico-cristão), que ameaçava o equilíbrio da dominação colonial, além de
propiciar o crescimento do número de bastardos e mestiços. Na Bíblia, em Hebreus (13:4), há
a afirmação de que todos devem considerar o matrimônio com respeito, bem como conservar
o leito conjugal imaculado, porque Deus julgará os impuros e os adúlteros.
Mesmo com os ordenamentos civis e religiosos, os relacionamentos extraconjugais
perduravam fazendo com que recorrer ao meretrício fosse uma opção além do casamento.
Para os homens, estar na companhia de prostitutas significava ter um espaço alternativo à
sexualidade conjugal, dispondo, ainda, de outros aspectos de lazer como o jogo, a bebida, a
música e o entretenimento. Com isso, o prostíbulo deixava de ter a configuração inicial que se
lhe atribuía, para ganhar a de uma instituição bem comportada que visava à pacificação de
violências contra donzelas e esposas.
As mulheres meretrizes serviam como escudo à violência contra outras mulheres,
socialmente constituídas por senhoras e esposas. A sociedade em questão importava-se com a
violência apenas contra as senhoras e esposas; as demais encontravam-se disponíveis para o
lazer dos homens, de natureza sexual, ou seja, para aliviar seus mais perversos instintos. Essas
mulheres davam continuidade ao exercício da prostituição, mesmo sendo continuamente
apedrejadas pelas leis divinas, pois a Bíblia afirmava que “[T] toda mulher que se entregava à
devassidão era como o esterco que se pisava na estrada” (ECLESIÁSTICO 9,10).
Constata-se a distinção entre o meretrício e a prostituição; dessa distinção parece
partir a significação da prostituta carregada de preconceitos. Isso se deve à idéia imposta de
que existiam mulheres com permissão institucional para transgredir o discurso da época e
mulheres sem essa permissão. As meretrizes de bordel eram institucionalmente constituídas
para o exercício do meretrício; inicialmente, serviam como escudo à violência doméstica.
as mulheres da colônia eram impulsionadas à prostituição por razões de sobrevivência.
48
O meretrício serviu por algum tempo como escudo à violência doméstica e, com
isso, a concepção de união entre os homens e mulheres teve, por conseqüência, a coexistência
de dois tipos de conduta sexual: uma, conjugal, com a única finalidade de procriação; outra,
extraconjugal, caracterizada pela paixão amorosa e pela busca do prazer (DEL PRIORE,
2006). O meretrício propiciou a disseminação da idéia de discriminação da mulher, mulher
esta que não apenas sofria violências domésticas, mas que era alvo de discriminações diversas
no seio social.
Capítulo 3 A mulher entre o espaço privado e o público
Não nasci marcado para ser um professor assim (como sou). Vim me tornando desta
forma no corpo das tramas, na reflexão sobre a ação, na observação atenta a outras
práticas, na leitura persistente e crítica. Ninguém nasce feito. Vamos nos fazendo
aos poucos, na prática social de que tomamos parte.
Paulo Freire
49
3.1 A feminilidade da docência
O campo educacional é um âmbito ocupado predominantemente por mulheres. No
Brasil, com o intuito de apresentar o percurso percorrido pela mulher na docência, este
capítulo aborda as características do sujeito feminino envolvido com o fazer docente.
No século XIX, coexistiram, no Brasil, diferentes modelos de instrução e de formação,
mais especificamente, modelos de educação dentro e fora da família. É um período que
precede a implantação de diretrizes educacionais em todo o território nacional, extensivos à
maioria da população. Segundo Lacerda (2003), isso se consolida de fato, após a
Proclamação da República. Ainda segundo a autora,
esses modelos, em alguns contextos, sobrepunham-se, embora a legislação de 1827
apontasse para a consolidação do ensino público no Brasil, o que significa a
institucionalização de aparatos mínimos à regulamentação e ao funcionamento de
estabelecimentos de educação formal. Nesse cenário, os padres opunham-se aos
modelos de educação estrangeira; acirrava-se o debate em favor de uma educação
que preservasse os valores morais e católicos. Esse quadro diversificado revela
certas condições da história educacional brasileira, em particular os sistemas de
ensino público e privado, seus desafios e dilemas (LACERDA, 2003, p.296).
Em meados do século XIX, período do processo de emancipação da mulher
brasileira, a religião predominante era o catolicismo o que levava as mulheres a pensarem que
deveriam se espelhar na imagem de Virgem Maria. Esse símbolo mariano refletia tanto na
missão da maternidade quanto na conservação da estrutura familiar, o que fundamentava o
trabalho educativo estabelecido para o fazer docente feminino. Iniciava-se a feminilidade da
docência que ganhou forças com os processos de urbanização e industrialização que
aumentavam as oportunidades de trabalho para os homens. Nesse período, reforçava-se o
50
discurso de que a mulher exerceria a docência, baseando-se na extensão da maternidade, uma
vez que se defendia que o magistério era uma atividade para ser exercida com amor,
dedicação, doação e entrega. Louro (2004) resgata, em seus estudos, e a importância
historicamente atribuída ao magistério em ser representado como uma atividade de amor, de
entrega e doação, características tidas como femininas.
O exercício do magistério, assim, passa a deter algumas características que são
intrinsecamente femininas como afetividade, doação e paciência o que caracterizava a
profissão como sacerdócio, função que apresenta caráter nobre e venerável em razão do
devotamento que exige (HOUAISS, 2001). Imputar ao fazer docente o caráter de sacerdócio e
de vocação não deixava de ser uma maneira de induzir as mulheres a escolherem profissões
menos valorizadas socialmente. A essência feminina, nesse sentido, determinando uma
vocação natural, levou a mulher a assumir o magistério como profissão adequada, uma vez
que o papel que lhe era determinado na escola era idêntico ao que lhe era atribuído na família.
Isso foi conveniente para que se constituísse a imagem das professoras como trabalhadoras
dóceis, dedicadas e pouco reivindicadoras, o que serviria futuramente para lhes dificultar a
discussão de questões ligadas a salário, carreira e condições de trabalho (LOURO, 2004).
Embora o caráter de vocação e sacerdócio circundasse o fazer docente
peculiarmente feminino, esse modelo pedagógico legitimou a participação das mulheres na
esfera pública. Sarlo afirma que as mulheres professoras, ainda que subordinadas, constituíam
a
ligação entre a família e o Estado, entre as necessidades privadas ou individuais e
os empreendimentos coletivos, entre as instituições formais e informais, entre o
espaço altamente ritualizado da escola e a trama mais solta do agregado da
vizinhança ou das comunidades rurais (SARLO, 2005, p.177).
Outro motivo que levou as mulheres assumirem o fazer docente ocorreu no início
da industrialização, com a conseqüente entrada de imigrantes, que provocou a ampliação de
51
determinados setores das sociedades. Essas mudanças políticas e sociais aumentaram e
diversificaram as oportunidades
políticas e sociais aumentaram e diversificaram as oportunidades de trabalho para os
homens e apontaram para a necessidade de escolarização mais ampla da população.
Assim o crescente afastamento dos homens da área educacional e a necessidade de
expansão do ensino, coube às mulheres a função de ensinar (DINIZ, 2001, p.199)
Durante o século XX, as feministas exerceram papel fundamental no trabalho de
conscientização da importância de a mulher desenvolver trabalhos fora dos ambientes familiar
e religioso. Diante de tudo isso, permaneceu a concepção de que o exercício do magistério era
apropriado para mulheres, que as obrigações domésticas poderiam ser desenvolvidas
concomitantemente, por ser a docência trabalho realizável apenas em um turno.
Nesse momento histórico, as mulheres professoras, apesar de trabalharem fora do
âmbito religioso e familiar na execução da docência, subordinavam-se às regras impostas pelo
Aparelho Ideológico do Estado (ALTHUSSER, 2003). Segundo o autor, designa-se
Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE) um certo número de realidades que se apresentam ao
observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas, considerando
dentre os AIE as instituições religiosa, escolar, familiar, jurídico, político, sindical, cultural.
As mulheres professoras, subordinadas aos Aparelhos Ideológicos do Estado, eram
simultaneamente profissional e mãe, tendo como função cuidar para que houvesse disciplina,
ao mesmo tempo em que se submetia à dupla jornada de trabalho que se lhe impunha. De
acordo com Louro (2004), a professora é produzida em meio a aparentes paradoxos, já que ela
deve ser, ao mesmo tempo, dirigida e dirigente, profissional e mãe espiritual, disciplinada e
disciplinadora. Isso demonstra as “condições políticas do exercício dos Aparelhos Ideológicos
52
do Estado [...]; é neles que se desenvolve o papel da ideologia dominante a da classe
dominante, que detém o poder do Estado” (ALTHUSSER, 2003, p.74).
A professora é submetida aos Aparelhos Ideológicos do Estado, de que nos fala
Althusser (2003), que lhe impunham disciplinar os alunos de acordo com os preceitos
ideológicos e pedagógicos desejáveis. A professora também era disciplinada a exercer o fazer
pedagógico condizentemente aos anseios desse mesmo Aparelho Ideológico.
Michel Foucault, filósofo francês que muito contribuiu para as reflexões sobre o
homem e a sociedade, em seus estudos, trata das questões do poder em sua relação com o
homem e a sociedade. Segundo o pensamento foucaultiano (2005), o poder na sociedade atua
em todas as direções, isto é, o poder é relacional: o Estado por meio dos AIE, exerce poder
sobre o professor, o professor exerce o poder sobre os alunos, mas os alunos também exercem
um poder no sentido de resistir ao poder do professor; os pais dos alunos também resistem ao
poder do professor.
Para o senso-comum, desejante e eficaz seria que se estabelecesse uma relação
com o poder que descentralizasse o próprio poder e que fosse desenvolvido um trabalho
primordialmente ético. Esse senso-comum tem origem em um conceito de educação que se
baseava na aprendizagem por meio da assimilação de modelos ideais, constituídos de grandes
personagens da história do país. Esse conceito impunha o modelo de professora ideal: aquela
que servisse de modelo de moral, virtude e inteligência aos alunos. Com isso, as professoras,
para exercerem o papel de modelo para as crianças, viram-se obrigadas a um estrito controle
sobre seus desejos, suas falas, seus gestos e atitudes e tinham na comunidade o fiscal e censor
de suas ações (LOURO, 2004). Quanto ao fato de as professoras estarem imbuídas das
virtudes, qualidades e respeito de mães, entende-se que elas não somente educavam o
pensamento, mas
53
respondiam ao ideal de formação de caráter e disseminação de princípios morais.
Ensinavam-se às professoras práticas codificadas que elas repetiam aos alunos para
obter respostas e atitudes ideais. As professoras eram órgãos típicos de re-produção
de ideologia nacional (SARLO, 2005).
A mulher apropriou-se do espaço que a sociedade lhes oferecera para desenvolver o exercício
do magistério que a caracterizou e propiciou que outros setores sociais e profissionais fossem
conquistados por ela, apresentando-se na cena pública. Diniz pensamento acrescenta que
na perspectiva que considera a proximidade do trabalho em educação com o fato da
mulher ser mãe, o magistério é colocado na esfera do não trabalho, que é como se
qualifica a atividade da dona de casa e mãe; a diferença é que o exercício da
professora se na escola, na esfera do público e o da mãe no lar, na esfera do
privado (2001, p,199)
Tornando-se o fazer docente fato concreto no cenário da educação brasileira, surge
a preocupação elucidada por Louro (2004) de que o trabalho poderia ameaçá-las como
mulheres. Para que tal ameaça não se consolidasse, o trabalho deveria ser exercido de modo a
não afastá-las da vida familiar, dos deveres domésticos, da alegria da maternidade, da pureza
do lar. É, também, por essa razão que as jovens que se dedicavam ao fazer docente, por
necessidade de sobrevivência e por aspirarem a atravessar os tradicionais espaços sociais e
intelectuais, eram cercadas de cuidados para que o exercício do magistério não abalasse a sua
feminilidade: a mulher não poderia abandonar a verdadeira missão feminina de esposa e de
mãe. Esse discurso constitutivo da memória, herdeiro de uma tradição judaico-cristã,
impulsionava o discurso de que o exercício do magistério era específico para mulheres porque
era desempenhado em um único turno.
Segundo Guedes-Pinto (2002), o gênero feminino imprimiu marcas particulares na
constituição do “ser professora”. Ainda segundo a autora, ao se adentrar a discussão sobre os
entraves, dificuldades e desafios da profissional da educação,
54
é importante ter clareza de que os problemas existentes na profissão possuem uma
história, que não deve ser negligenciada. Não é novidade o fato de que a carreira
docente vem sofrendo um constante processo de desvalorização. O magistério, como
profissão, tem apresentado na sua história uma remuneração baixa e pouco rendosa
em relação às demais profissões que demandam trabalho intelectual. No Brasil, já
desde o século XIX, quando a instrução pública começou a consolidar-se no traçado
de sua política e de sua organização administrativa, o exercício do magistério não
assegurava uma boa remuneração. A profissão docente não representava uma opção
promissora no que se refere a fornecer uma perspectiva financeira atraente para
quem a escolhesse (GUEDES-PINTO, 2003, p.51).
Demartini e Antunes (1993, apud GUEDES-PINTO 2002, p.54) observam que um
dos fatores que levou o magistério primário a se firmar como uma profissão eminentemente
feminina foi o fato de a remuneração não ser suficiente para que os homens, por meio dela,
conseguissem oferecer condições de sobrevivência dignas para suas famílias. Em virtude
disso
os homens permaneciam por pouco tempo no exercício do magistério primário,
ocupando rapidamente os cargos de diretores, supervisores, inspetores e delegados
de ensino, visto que os salários eram maiores. O magistério transformava-se, assim,
no “passaporte” dos professores homens para uma ocupação mais rendosa e
promissora. Os que nele permaneciam, geralmente recebiam ajuda financeira da
família ou tinham a “infelicidade” de não encontrar profissão mais bem qualificada
(DEMARTINI e ANTUNES, 1993 apud GUEDES-PINTO, 2002, p.55).
Para Sarlo (2005), esse modelo pedagógico calcado no fazer feminino, embora
altamente controlado, encorajou as mulheres a começar a pensar que era possível cruzar a
fronteira entre a Escola como instituição e outras instituições da esfera pública.
As razões de ordem organizacional da sociedade conservadora e machista, que
acabaram influenciando e orientando os movimentos socioculturais, são relatados por
Zilberman (1999, apud GUEDES-PINTO, 2004), colocando em evidência as relações
históricas de poder e dominação entre o sistema econômico-político e a Educação. Em relação
à maioria feminina na docência, o que a autora chama de feminização do magistério, ela
ressalta que
55
trata-se de dispor um contingente de trabalhadores baratos para exercer a tarefa
pedagógica: a mulher parecia mais apta que o homem, porque não apenas
começava a lutar por sua emancipação e cabia achar um lugar para ela, mas
também porque ocuparia um espaço indesejado pelo homem,de modo que não
estabeleceria qualquer tipo de competição entre os dois sexos, um sendo
dominante, o outro, dominado (ZILBERMAN, 1999 apud GUEDES-PINTO, 2004,
p.56).
Compreende-se que o papel de professora seria a extensão de uma atividade que ocorria
dentro de casa: ela deveria ser afetiva, terna, paciente, sem deixar de ser severa e
disciplinadora, características peculiarmente femininas. A concepção de que seria natural para
a mulher o exercício da docência
parece ter sido um dos mecanismos mais eficientes para induzir as mulheres a
escolher o magistério como ocupação. Resignação, abnegação, renúncia, meiguice,
o sentido da educação promotora de tais virtudes é claramente o de formar um “ser
para o outro”, ou seja, desenvolver um projeto para outrem. Ela deverá ser filha,
mulher e mãe (GUEDES-PINTO, 2004, p.60).
De acordo com as reflexões de Nunes (2005), as docentes pertencem a uma
atividade social que é construída na e pela ação coletiva e individual. Refletem, portanto, a
cultura e os valores do meio social no qual se inserem como sujeitos, reproduzindo, criando e
recriando cultura. Isso leva à conclusão de que as professoras são sujeitos que se encontram
imersos em determinado lugar sócio-histórico de onde enunciam; atribuindo sentido ao seu
discurso de acordo com a posição em que se encontram, que, segundo Fernandes (2005, p.
27), de acordo com as posições dos sujeitos envolvidos, a enunciação tem um sentido e não
outro(s). Quanto à posição ou à atuação da professora, trata-se
56
de alguma coisa mais forte - que vem pela história, que não pede licença, que vem
pela memória, pelas filiações de sentidos constituídos em outros dizeres, em muitas
outras vozes, no jogo da língua, que vai-se historicizando aqui e ali,
indiferentemente, mas marcada pela ideologia e pelas posições relativas ao poder
(ORLANDI, 2005, p.32).
Segundo Nunes (2005, p.144), “a feminização do magistério associou-se à
desvalorização da profissão docente no aspecto socioeconômico e, também, no aspecto
cultural, dificultando a profissionalização docente”. As professoras, em lugar de aderirem às
lutas sindicalistas por melhores condições de trabalho e de salários, dedicaram-se a outras
atividades para sobreviverem como a de sacoleiras. Dada essa subserviência, disseminaram a
ideologia de que o magistério era um “sacerdócio”, embora o sentido do sacerdócio já
estivesse em sua origem: professor é aquele que professa a verdade (religiosa).
A sociedade, ao longo dos anos, impusera à mulher o papel de dona de casa e
mãe. Isso fez com que a professora interiorizasse a ideologia da submissão, impedindo-as de
assumirem uma postura independente em relação aos saberes e práticas pedagógicas
(NUNES, 2005).
A ideologia presente na feminização do magistério é um dos fatores que, de
acordo com Nunes (2005), dificulta a autonomia do trabalho docente. Seria necessário que as
mulheres exigissem reconhecimento do trabalho que exercem como profissão e não como
sacerdócio para que as implicações decorrentes dessa ideologia como baixa remuneração,
desqualificação profissional, dificuldade em reconhecer a necessidade de autonomia em
relação ao trabalho pedagógico, pudessem ser superadas para a construção do fazer docente
em que o “euprofissional e o “eu” individual se envolvessem no processo educacional não
apenas como de índices, mas como integrantes de um processo qualificado de sujeitos de
poder conscientes da necessidade de atuação ética e de cobrança de direitos e deveres
profissionais e pessoais enquanto sujeitos femininos.
57
Na relação entre o espaço público e o privado, a sociedade definiu como feminino
o espaço privado. Daí é o fazer docente feminino ter se dado de forma rigorosa e embasada
em critérios que ressaltavam a feminilidade como a continuidade da maternidade, a profissão
como sacerdócio, vocação, o trabalho de um turno, além das características que deveriam ser
aplicadas na profissão serem de cunho feminino: dedicação, minuciosidade, afetividade e
paciência.
No decorrer dos anos, as mulheres de diferentes setores da sociedade passaram a
transformar os assuntos privados em debates públicos, pois encontravam-se circulando entre
os espaços privados e públicos.
Cabe, entretanto às mulheres, professoras, o mérito por instituir a circulação
legitimada no âmbito público ao desempenharem o papel de docentes. Conforme afirma Sarlo
(2005), uma mulher poder adentrar a cena pública, enquanto mãe, e transformar o papel
privado de ser mãe em um símbolo público de sua definição ideológica, política e moral o que
inaugurou a emancipação feminina.
Da mesma forma ocorre com as mulheres, supostas vítimas de violência
masculina, as quais podem transpor os limites da vergonha e do sofrimento privados e tornar
pública a ofensa, reivindicando que seu pedido de justiça não limite à esfera privada. Aqui,
nota-se a imbricação do corpus de análise desse estudo: a mulher professora e a depoente da
delegacia de defesa da mulher, suposta vítima de violência doméstica, ambas resistindo ao
poder, para deixar o espaço privado e ter acesso ao espaço público.
Situações em que as mulheres circulam entre as esferas privadas e públicas
funcionaram como estopim para a organização e a participação das mulheres no seio público,
em primeiro lugar, como individuais, embora pudessem mais tarde
58
ser generalizadas e integradas em um coletivo. As mulheres são afetadas pela
violência ou indignidade na esfera privada, na qual as crenças tradicionais
originaram seus valores e significados; essa violência é sentida como uma ofensa
pessoal, mas, ao mesmo tempo, como uma ofensa que não pode ser compensada na
esfera em que foi produzida. O sentimento de injustiça constitui as mulheres como
atores públicos; a paixão que libera transforma um sofredor passivo em um sujeito
ativo (SARLO, 2005, p.190).
Dessa forma, verifica-se que as mulheres, embora sejam sujeitos marcados
primordialmente pela instância privada, têm a oportunidade de transcender essa esfera;
rompendo o discurso tradicional de que o lugar demarcado para o sujeito feminino seja o
âmbito privado. Percebe-se a instauração consciente ou inconsciente do discurso libertário, o
qual se espera que mova o sujeito feminino que se encontra na tensão de forças antagônicas
estabelecidas nas esferas públicas e privadas.
Na tentativa de remontar o discurso histórico da condição feminina, o capítulo que
se segue abordará as questões que caracterizam historicamente a mulher no Brasil.
3.2 Delegacia de Polícia de Defesa à Mulher
Durante muitos anos, os casos de violência doméstica e sexual de vítimas
femininas foram tratados com descaso pelo Poder Judiciário e pelos distritos policiais, ambos
de maioria masculina. Depois de um longo período de protestos dos movimentos feministas
criou-se a Delegacia de polícia de defesa da Mulher, comumente denominada Delegacia da
Mulher. Sousa (2004, p.166) afirma que em todas as sociedades modernas estão sempre
presentes as tentativas de se eliminar a violência, seja através de movimentos da sociedade
organizada, ou pelo próprio governo.
59
A delegacia da mulher, a primeira delegacia especializada do mundo, surgiu no
Brasil, na cidade de o Paulo em 1.985, cujo objetivo foi o combate e a prevenção à
violência contra a mulher, conforme o decreto de lei nº. 23.769/85 (CÓDIGO CIVIL, 2002).
No histórico na delegacia de polícia de defesa à Mulher, encontra-se o ponto de
intersecção entre a criação da delegacia e a história dos movimentos femininos pelo combate
à violência contra a mulher.
Em 1980, grupos feministas fundaram o SOS Mulher que prestava atendimento
jurídico, social e psicológico às mulheres vítimas de violência. Reconhecendo a importância
da ação política sobre a violência contra a mulher, o Conselho Estadual da Condição
Feminina do estado de São Paulo passou a priorizar essa temática. A partir disso, o Conselho
passou a propor políticas públicas que promovessem o atendimento de segurança pública,
assistência social e psicológica às vítimas de violência (www.cfemea.org.br).
O governo estadual de São Paulo Franco Montoro apresentou a idéia de uma
delegacia especializada em crimes contra a mulher, composta por policiais do sexo feminino
acatando os quesitos apresentados pelo Conselho Estadual da Condição Feminina de
assistência social e psicológica às vítimas de violência, além da segurança pública; no entanto
o Secretário de Segurança Pública Michel Temer restringiu o atendimento da delegacia da
mulher ao aspecto criminal da violência contra a mulher. Cinco anos mais tarde da criação do
SOS - Mulher e de muitas discussões e resistências, criou-se, em 1985, mediante o decreto nº.
23.769/85, a primeira Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher no Brasil e no mundo
(www.cfemea.org.br).
Com decreto nº. 23.769/85, criou-se a primeira delegacia da mulher na Secretaria
de Segurança Pública de São Paulo, estabelecendo-se a competência de delegacia
60
especializada para investigar e apurar delitos de lesão corporal, ameaça, constrangimento
ilegal, atentado violento ao pudor, adultério, entre outros. Salienta-se que, apenas em 1996, o
delito do homicídio foi incluído na competência da delegacia da mulher; as delegacias da
mulher, em sua maioria, não dispõem de prédio próprio (operam no prédio de um distrito
policial), cadeia e não realizam serviço de carceragem; ainda, desde 1985, não se ouve falar
de cursos de formação e capacitação das policiais titulares das delegacias sob a perspectiva de
gênero. Apesar dessas dificuldades, em 1989 ampliou-se a competência das delegacias da
mulher, incluindo-se os crimes contra honra (injúria, calúnia e difamação) e os crimes de
abandono material, de acordo com o decreto nº. 29.981/89.
Em 1996, a partir do decreto nº. 40.693/96, as atribuições das delegacias da mulher
expandiram-se recebendo novas competências: as delegacias passaram a investigar e a apurar
os delitos contra a criança e os adolescente, previstos no Estatuto da Criança e do
Adolescente; além da expansão dos crimes contra a mulher, atribuindo à delegacia da mulher
a apuração de homicídios ocorridos no âmbito doméstico e de autoria conhecida, crimes de
aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, aborto provocado por terceiro,
infanticídio, dentre outros crimes. Nesse aspecto, o decreto 23.769/85 que nomeia a primeira
delegacia de polícia de defesa da mulher perde a sua caracterização, pois, com a expansão das
atribuições das delegacias, em 1996, a mulher apresenta-se não apenas como vítima, mas
também como criminosa, não servindo a delegacia de defesa da mulher apenas como “defesa”
à mulher.
Em 1995, com a criação da lei nº. 9.099/95, foram criados os juizados especiais
cíveis e criminais, objetivando-se tornar a justiça mais ligeira e eficiente. No caso dos
juizados criminais, as infrações (crimes e contravenções com pena inferior a um ano de
detenção) penais de menor potencial ofensivo foram substituídas pelas penas alternativas
(compensações pecuniárias, serviços comunitários). Dessa forma, o inquérito policial foi
61
substituído por um “Termo Circunstanciado” que contém o resumo da ocorrência e o laudo
pericial; se necessário, esse termo é remetido ao Juizado para audiência de conciliação e
julgamento.
Em virtude da criação dos juizados especiais criminais, a delegacia de defesa da
mulher perdeu o papel de intermediar os conflitos que compunham as queixas das mulheres,
sendo que os crimes de delitos de lesão corporal de natureza leve e ameaça, cuja pena é
inferior a um ano, são, até hoje, os mais registrados na delegacia da mulher. Portanto, a maior
parte dos registros é encaminhada aos Juizados Especiais Criminais. Esse fato fez com que a
aplicação de penas alternativas pelos Juizados especiais criminais como distribuição de cestas
básicas e prestação de trabalhos comunitários propiciassem a banalização da violência
doméstica.
3.3 O contexto social das mulheres violentadas
Nas situações de violência doméstica em caráter generalizante, acredita-se nos
antigos e gastos ditos populares como “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”
ou ainda “Roupa suja se lava em casa”. Esses discursos propiciam o aumento do número de
vítimas de violência doméstica que se calam. Atentemos à afirmação de Dias (2004 b): “o
medo, a vergonha e o próprio discurso do casamento são agentes que propiciam a
continuidade da violência doméstica”. Para Sousa (2004), esses discursos tornam bastante
óbvios os silêncios da sociedade em geral e do Estado em particular .
Ao pensar a violência humana, deve-se, com certeza, refletir sobre cor, poder,
raça, opção sexual, tempo/espaço, gênero (SOUSA, 2004). Ainda segundo a autora, deve-se
pensar nas imposições da ciência, nos modelos de ser homem e ser mulher no mundo
62
ocidental. No que concerne à questão de gênero, sabe-se, segundo estatísticas da Delegacia de
Defesa da Mulher (DDM), que algumas mulheres denunciam seus agressores, outras não, e
que dentre as mulheres que denunciam, algumas retiram a denúncia ou não retornam a DDM.
A respeito da sujeição das mulheres aos maus tratos na vida privada Mill assevera:
Nunca houve reclamações de mulheres por estarem sendo insatisfatoriamente usadas
por seus maridos. (...) as esposas, mesmo nos casos mais extremos e prolongados de
danos físicos, quase nunca ousam se beneficiar das leis feitas para sua proteção; e se
o fazer, em momento de indignação irrepreensível, ou por interferência de vizinhos,
que as induzem a fazê-lo, seus esforços são para revelar o menos que puderem e
para implorar que seu tirano não tenha a punição merecida (2006, p.31).
A caracterização da violência doméstica é de uma roda viva: mulheres depoentes
se sentem desacreditadas pelo judiciário; judiciário espera postura diferente das mulheres
vítimas de violência (DIAS, 2004a). Esse desencontro revela que o crime da violência
doméstica é um problema desacreditado, já que, muitas vezes, quando os processos dão
prosseguimento, os agressores são absolvidos, mesmo tendo a culpa confirmada, justificados
pela função de mantenedor da família. Segundo Dias (2004a), geralmente, os agressores são
absolvidos por serem bons pais de família e em razão de as mulheres não corresponderem ao
papel de dona-de-casa. Com a absolvição do agressor, as mulheres caracterizam-se pelo alto
potencial de serem violentadas física e psicologicamente num processo contínuo, constitutivo
também da roda viva em que se inserem as mulheres de todos os tempos. Sobressai a essa
situação o discurso do casamento bem fundamentado pela Igreja desde os primórdios,
discurso que se faz presente em práticas que favorecem a manutenção do casamento mesmo
sobre ruínas.
A violência doméstica sempre foi cunhada de alguns preceitos morais que
circundam a sociedade, chegando-se à aceitação de que a infidelidade feminina denegria a
honra do homem. Esse preconceito moral e social, por muitas vezes, assinou a sentença de
morte de mulheres, pois autorizava os homens a matá-las como forma de manutenção dos
63
bons costumes sociais. Durante muito tempo, os agressores foram absolvidos jurídica e
socialmente, pois por terem sido desonrados, era-lhes permitido lavarem a honra com sangue,
esses estimulando outros homens à mesma prática, para se livrarem das ridicularizações no
seio social.
Consensos morais como esse retratam sentimentos de posse e de subordinação
aplicados à mulher, evidenciando que a conduta social do homem, no que diz respeito ao seu
comportamento sexual extraconjugal, não era questionado, que não afetava a sua própria
imagem, tampouco a honra de sua esposa, uma vez que cabia à mulher obediência e, a ele, a
responsabilidade da manutenção da estrutura familiar. Atualmente, mesmo com todas as
modificações acrescentadas ao sistema jurídico, ainda não se pode falar em igualdade como
princípio geral da ordem constitucional, uma vez que a violência doméstica ainda persiste. De
acordo com a autora,
[E] em nenhuma nação do planeta, as mulheres vivem em condições de igualdade
com o homem e as mulheres de todos os lugares do mundo que compõem dois
terços dos analfabetos são vítimas de violência doméstica, recebem remuneração
diferenciada e m dificuldade de acesso a determinados postos, o que leva-se a
afirmar que a miséria tem cara de mulher (DIASb, 2004, p.28).
Embora o crime de violência doméstica seja cometido em todo o mundo, no
Brasil, a situação é mais alarmante, pois, a cada quatro minutos, uma mulher é vítima de
agressão (DIAS, 2004a). Esse dado, se comparado às condenações para agressores de
mulheres, é estarrecedor, pois a absolvição se dá, em grande porcentagem, pelo judiciário, o
que impulsiona a violência e legitima a impunidade.
Quando o agressor busca, no ato de matar, quem lhe foi infiel, o resgate de sua
honra, tem-se o reconhecimento da legítima defesa da honra como excludente da
criminalidade, podendo, então, o crime ser tratado como passional. As racionalizações
acrescidas pelas contribuições de Dias (2004) tornam evidente a afirmação da autora de que
as mulheres são vítimas dos tribunais brasileiros, que os processos sofrem influência de
64
normas sociais permeadas de preconceito de gênero. Além das discriminações sócias, que
culturalmente construídos, o homem trabalhador, bom pai, bom marido e provedor correto é
comparado à mulher esposa, mãe, dona-de-casa, meiga, submissa.
Em referências aos padrões sociais estabelecidos, a autora afirma que
[A] aqueles que fogem ao paradigma correto m a repulsa da sociedade em geral,
inclusive dos vizinhos e parentes, e correm o risco de serem detidos pelo poder
judiciário (SOUSA, 2004, p.171)
A violência de gênero está escrita na história da sociedade brasileira e,
conseqüentemente, na história da cultura brasileira, criando justificativas aceitáveis para a
agressividade humana e disseminando a intolerância, possibilitando a coexistência de
explorados e dominados na disputa pelo poder e igualdade.
Capítulo 4 Precursores da Análise do Discurso
Não se trata ,aqui, de neutralizar o discurso, transformá-lo em signo de outra coisa e
atravessar-lhe a espessura para encontrar o que permanece silenciosamente aquém
dele, e sim, pelo contrário, mantê-lo em sua consistência, fazê-lo surgir na
complexidade que lhe é própria.
Michel Foucault
Este capítulo tem como finalidade apresentar os conceitos teóricos que norteiam a
análise do discurso produzidos por professoras de língua Portuguesa de nível de ensino
65
fundamental e médio em respostas pó escrito a um questionário e por depoentes femininas em
delegacia de defesa da mulher de forma oral.
4.1 Análise do Discurso
O ponto de partida deste estudo é a linguagem, objeto de estudo da lingüística que,
posta em acontecimento, fornece-nos uma vasta gama de possibilidades analíticas do
discurso: contexto cultural, ideológico, social, político e pedagógico.
Sob breve retomada lingüística e histórica, nota-se que Saussure apresentava a
língua como algo concreto, fruto da manifestação individual de cada falante, valorizando a
fala; o enunciado era um fato individual. Até então, os estudos giravam em torno da dicotomia
língua x fala.
Contrapondo-se a Saussure, Bakhtin (1992 apud Mussalin, 2004, p.25) parte do
princípio de que a língua é um fato social e sua existência se funda nas necessidades de
comunicação, atribuindo um lugar privilegiado à enunciação, enquanto realidade da
linguagem. Bakhtin assume como objeto de estudo da linguagem o enunciado, mais
especificamente, a situação de enunciação: estes são componentes necessários para a
compreensão e explicação da estrutura semântica do produto da comunicação verbal. Nos
estudos bakhtinianos, o interlocutor não é um elemento passivo na constituição do
significado; a linguagem passa a ser vista como interação social, sendo que o outro
desempenha papel fundamental na constituição do significado. Assim, verifica-se a ampliação
do ato de enunciação individual de Saussure para um contexto mais amplo, estabelecendo-se
relações entre o lingüístico e o social.
A necessidade de articulação entre o lingüístico e o social se justifica para que se
tenha acesso às relações que vinculam linguagem à ideologia.
66
Este estudo assume a ideologia enquanto constitutiva do sujeito discursivo que se
apresenta na Delegacia de Defesa da Mulher e das professoras questionadas sobre o fazer
docente. Pode-se “começar por dizer que a Ideologia faz parte, ou melhor, é a condição para a
constituição do sujeito e dos sentidos. O indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia
para que se produza o dizer.” (ORLANDI, 2005, p. 46).
Para Bakhtin (1992), a palavra é um signo, por excelência, ideológico: produto da
interação social e lugar privilegiado para a manifestação da ideologia retrata os diferentes
pontos de vista daqueles que a empregam. Assim, entendemos que a linguagem é o lugar em
que a ideologia se manifesta concretamente. Nos trabalhos de
Bakhtin e seu círculo não somente a palavra, mas também a linguagem em geral, é
concebida e tratada de uma outra forma, levando-se em conta sua história, sua
historicidade, ou seja, especialmente a linguagem em uso. Isso significa que, no
pensamento bakhtiniano, a palavra reposiciona-se em relação às concepções
tradicionais, passando a ser encarada como um elemento concreto de feitura
ideológica (STELLA, 2005 apud BRAIT, 2005, 178).
Como, para Bakhtin, a palavra é o signo ideológico, produto da interação social, a
palavra é também lugar para a manifestação da ideologia. Assim, a linguagem é o lugar em
que a ideologia se manifesta concretamente. A partir disso, verifica-se que entre a língua e a
fala há o discurso.
Segundo Brandão (2001), discurso é o ponto de
articulação de processos
ideológicos e dos fenômenos lingüísticos. Sendo objeto deste estudo a análise do discurso das
depoentes no âmbito na Delegacia de defesa da Mulher e a análise do discurso das
professoras, por meio de questionário, essa tarefa é possível por meio do discurso e pelo
discurso.
4.2
A trajetória dos estudos da Análise do Discurso
67
A Análise do Discurso surgiu no final dos anos 60, na França, quando reinava o
estruturalismo na lingüística, tendo como maior proponente Michel Pêcheux.
A análise do discurso originou-se do entrecruzamento de três áreas: materialismo histórico,
lingüística e a teoria de ordem psicanalítica, que traz o inconsciente para o interior das
reflexões (MUSSALIN, 2004).
O que fora e é chamado de três fases da análise do discurso de Michel Pêcheux é
um campo de construções e de retificações ao mesmo tempo em que se reconstrói o campo
teórico da Análise do Discurso Francesa que ficou conhecida como ADF. Todo o embate para
a formulação teórica da ADF gira em torno das discussões sobre a articulação entre o
discurso, a língua e o sujeito.
Falar sobre Pêcheux implica remeter-se ao livro Analyse Automatique du Discours
(AAD), objeto de tese defendida em 1968 que propunha a elaboração de uma análise
automática (técnica e informatizada) que chocou os estudiosos da época por ter lançado
questões singulares sobre o texto, a leitura e o sentido. Inicia-se com essa primeira obra de
Pêcheux, que passou a ser conhecida como AAD, publicada em 1969. Constituiu, portanto,
marco dos estudos que culminaram na ADF e trata-se de uma releitura de Saussure em que
analisa a dicotomia langue x parole, seus aspectos históricos que permeiam a langue e o
sujeito. Nessa fase, na concepção do objeto discursivo cruzam-se Saussure (relido por
Pêcheux), Marx (relido por Althusser) e Freud (relido por Lacan) que permearam a
construção do legado teórico (MUSSALIN, 2004).
AAD constituía um momento inaugural do caminho, quando, pela primeira vez,
ligavam-se todos os fios constitutivos de um objeto novo: o discurso. AAD, ‘a máquina
discursiva’, enquanto máquina, teve seu momento de fundação em 69; no entanto, foi
remodelada sem cessar, criticada, corrigida e, por fim, abandonada, mas sempre pressuposta.
68
Certamente, se não houvesse a tentativa de construção da máquina, não teríamos o arcabouço
teórico da ADF que hoje nos possibilita a análise discursiva com tanta precisão e eficácia.
Pêcheux (1969), fascinado pelas máquinas e pela política, propunha arrancar a
leitura da subjetividade. O livro AAD sugere uma teoria do discurso, ponto de partida da
teoria da produção dos efeitos de sentidos, que não substitui a teoria da ideologia, nem a
teoria do inconsciente, mas intervêm no campo dessas mesmas (GADET&HAK, 1990).
Finalmente, a ‘máquina discursiva’ é tida como lugar de aprendizagem do objeto
novo, sendo o objeto novo o processo discursivo equivalente ao processo de produção do
discurso. Pêcheux apresenta a teoria de um objeto novo e os meios de discerni-lo,
contribuindo com o lingüista J. Dubois para a fundação de uma nova disciplina: a AD
(Análise do Discurso).
O livro de Pêcheux, AAD é apenas o primeiro momento de um itinerário, onde
começa a teoria do discurso; no entanto, comporta sinais de fraqueza (MUSSALIN, 2004).
Verifica-se, a partir disso, que é preciso desconstruir a discursividade para tentar
apreendê-la. As últimas páginas da obra voltam à questão da leitura afirmando “o princípio da
dupla diferença”. Tem-se a idéia do não-dito constitutivo do discurso, quando se inicia a
descoberta de um conceito ausente até o momento, o conceito de interdiscurso. Pêcheux dirá
mais tarde que a obra AAD fora escrita na urgência teórica e sua conclusão é de estado
provisório.
A segunda fase da AD, em 1975, é um ciclo que se instaura com a publicação do
livro de Pêcheux Les Vérités de la Palice. Seguida de questionamentos sobre o sujeito do e no
discurso reabre as discussões e inaugura-se o segundo momento da AD. À noção de
interdicurso é acrescida a noção de “formação discursiva”. Fuchs e Pêcheux apontam seus
estudos para a conceituação, agora mais precisa, de condições de produção, além do estudo do
sujeito discursivo.
69
a terceira fase da AD, 1979, é marcada pelo reconhecimento da impossibilidade
de construção de um analisador sintático: a máquina. Deparam-se com as condições de
produção imersas em contextos sócio-históricos; assim, não seriam estáveis as condições de
produção. Passava a entender que para se analisar o discurso era necessária a sua
desconstrução. O aparecimento dos conceitos da dispersão e da heterogeneidade enunciativa
se deu para demonstrar o sujeito heterogêneo, constituinte do discurso.
A Análise do Discurso tem como objeto de estudo o discurso, considerando o seu
modo de enunciação. Assim, a AD se valerá sempre de outra(s) disciplina(s) para a análise as
das condições enunciativas em que se insere o discurso a ser analisado.
Apresentam-se, a seguir, dispositivos de análise que se revelaram pertinentes para
a análise do corpus composta.
4.3 Interdiscurso e Intradiscurso
Na visão de Orlandi (2005), os dizeres são efeitos de sentidos que são produzidos
em condições determinadas, sendo que as margens do dizer, do texto, também fazem parte
dele. As condições de produção do discurso compreendem, segundo Orlandi (2005), em
sentido estrito, o sujeito, a situação e a memória e, em sentido amplo, as condições de
produção que incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.
De acordo com as posições dos sujeitos, a enunciação tem um sentido e não
outro(s). O Lugar histórico-social em que os sujeitos enunciadores de determinado discurso se
encontram envolve o contexto e a situação e intervém a título de condições de produção do
discurso (FERNANDES, 2005, p.27).
Segundo Orlandi (2005), o dizer não é propriedade particular. As palavras não são
nossas. Elas significam pela história e pela língua. O que é dito em outro lugar também
70
significa nas “nossas” palavras. O sujeito diz, pensa que sabe o que diz, mas não tem acesso
ou controle sobre o modo pelo qual os sentidos se constituem nele, segundo Orlandi, que
afirma ainda: “[O] o fato de que um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo
dizer, é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua relação com os
sujeitos e com a ideologia (2005, p.32).
Para Foucault (2005), o já-dito não seria simplesmente uma frase pronunciada,
um texto já escrito, mas um “jamais-dito”; acrescenta ainda que o já-dito é
um discurso sem corpo, uma voz tão silenciosa quanto um sopro, uma escrita que
não é senão o vazio de seu próprio rastro. Supõe-se, assim, que tudo que o discurso
formula já se encontra articulado nesse meio-silêncio que lhe é prévio, que continua
a correr obstinadamente sob ele, mas que ele recobre e faz calar (FOUCAULT,
2005, p.28).
De acordo com Foucault (2005, p.28), o “não-dito seria uma vazio minando, do
interior, tudo que se diz”. Orlandi (2005) afirma que o que não é dito, o que é silenciado
constitui o sentido do que é dito, de acordo com a autora, as palavras se acompanham de
silêncio e são elas mesmas atravessadas de silêncio. Entre o dizer e o não-dizer “desenrola-se
todo um espaço de interpretação no qual o sujeito se move” (ORLANDI, 2005, p.85),
portanto o discurso “é o efeito de sentido entre os locutores”.
Com isso, deduz-se que existe uma relação entre o já-dito e o que se está dizendo.
Orlandi (2005) assevera que o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e
esquecidas que determinam o que dizemos. É preciso que o que foi dito por um sujeito
específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando por
“anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras (2005, p.34). Em síntese, Fernandes
(2005, p.61) a partir da leitura de Pechêux define interdiscurso como presença de diferentes
discursos, oriundos de diferentes momentos na história e de diferentes lugares sociais,
entrelaçados no interior de uma formação discursiva. Esses diferentes discursos entrecruzados
são constitutivos de uma formação discursiva dada (2005, p.61), Orlandi (2005, p.61), afirma
71
que o interdiscurso é da ordem do saber discursivo, memória afetada pelo esquecimento, ao
longo do dizer.
A distinção entre interdiscurso e intradiscurso é apresentada por Charaudeau &
Maingueneau (2004, p. 290) que afirmam que opõe-se o intradiscurso relações entre os
constituintes do mesmo discurso- a interdiscurso- relações desse discurso com outros
discurso.
Atentar-se-á na análise do corpus aos esquecimentos presentes nas relações
discursivas das mulheres professoras e depoentes, sujeitos de análise dessa dissertação.
Orlandi (2005), explica as duas formas de esquecimento no discurso propostas por
Pêcheux. Segundo a autora o esquecimento de número dois é da ordem da enunciação: ao
falarmos, fazemo-lo de uma maneira e não de outra; sendo que o dizer sempre podia ser outro.
Essa forma, maneira de falar, de acordo com Orlandi, significa em nosso dizer, e nem sempre
temos consciência disso. Esse esquecimento de número Dois “é um esquecimento parcial,
semi-consciente; é o chamado esquecimento enunciativo e que atesta que a sintaxe significa: o
modo de dizer não é indiferente aos sentidos” (op. cit.: p.35).
o esquecimento de número um, também chamado de esquecimento ideológico,
segundo Orlandi (2005, p.36), é o esquecimento “da instância do inconsciente e resulta do
modo pelo qual somos afetados pela ideologia”. Para Orlandi (op.cit.), no esquecimento de
número Um temos a ilusão de ser a origem do que dizemos quando, na realidade, retomamos
sentidos pré-existentes. Parafraseando a autora, no esquecimento de número Um os sentidos
representam-se como originando-se no sujeito discursivo, sendo os sentidos determinados
pela maneira como o sujeito discursivo se inscreve na língua e na história. “Os sujeitos
‘esquecem’ que já foi dito para, ao se identificarem com o que dizem, se constituírem em
sujeitos” (ORLANDI, 2005, p.36). Assim, as palavras adquirem sentidos e os sujeitos se
significam,
72
retomando palavras já existentes como se elas se originassem neles e é assim que
sentidos e sujeitos estão sempre em movimento, significando sempre de muitas e
variadas maneiras. Sempre as mesmas mas, ao mesmo tempo, sempre outras (op.
cit., p.37).
Os esquecimentos, assim, são necessários para que se produza a
intercompreensão.
4.4 Um olhar sobre o silêncio
Segundo Orlandi (2002), o homem, quando fala, fala-se; a linguagem é a
realidade imediata do pensamento e o pensamento alcança o seu conteúdo na linguagem. Um
pensamento fora da realidade ou anterior a ela seria impossível; o pensamento é um dizer
sobre alguma coisa qualquer - dizer na sua maior parte silencioso, mas nem por isso deixa de
ser um dizer. A atividade de pensar, não a faculdade do pensamento, é possível por meio
de uma linguagem.
Pensando o dispositivo teórico sobre o silêncio, fruto das reflexões de Orlandi
(2002), percebe-se que as palavras são atravessadas pelo silêncio e que o sentido pode sempre
ser outro. silêncio nas palavras, pois todo dizer é uma relação fundamental com o não-
dizer.
A concepção de que o silêncio significa em si mesmo, de que rege os processos de
significação, torna bastante complexa sua relação com a linguagem. Procurar entender essa
relação significa problematizar a questão da completude tanto do sujeito quanto da linguagem.
A idéia da falta, da falha, enfim, da incompletude do sentido e do sujeito é condição para a
pluralidade do sentido e do próprio sujeito (Orlandi, 2002).
73
É o silêncio que gera essa possibilidade; quanto mais silêncio se instala, mais
possibilidade de sentidos se apresenta. Envolvidos nessa relação do dizer com o não-dizer,
muitas vezes, falamos para silenciar. Ao dizermos algo, apagamos outras possibilidades do
dizer em dada situação. Segundo Orlandi (2002, 47), “[N] no apagamento é que entram tanto
as relações de poder, quanto as formas de resistência do próprio poder, que, por sua vez, se
faz necessariamente acompanhar do silêncio”.
Para a compreensão do dizer e o não-dizer é necessária uma análise, enfocando e
interpretando o silêncio não apenas como possibilidade de significação, mas como fonte de
sentido.
Em Análise do Discurso, pensa-se o sujeito discursivamente o indivíduo sendo
interpelado em sujeito pela ideologia como posição entre outros, assumindo o “seu lugar”
no processo discursivo. Nessa perspectiva, o sujeito está sempre preso a redes de sentidos: o
sujeito pensa, imagina deter papel ativo, determinante na formação dos sentidos, quando na
verdade, esse processo escapa ao seu controle consciente e às suas intenções (FERNANDES,
2005)
Em conformidade com o dispositivo teórico da AD, pensa-se que não sendo
transparente, a linguagem, nem o sentido evidente, interessa à organização textual, mas a
ordem do discurso em que o sujeito se define pela relação com um sistema significante. É o
discurso do sujeito histórico que interessa à AD. Esse sujeito é produzido entre diferentes
discursos em uma relação regrada com a memória do dizer - o interdiscurso pois “algo fala
antes, em outro lugar e independentemente” (PÊCHEUX, 1997, p.162).
O sujeito define-se em função de uma formação discursiva em relação com as
demais, constitui-se pela e na ideologia presente na formação discursiva na qual ele se
concretiza (ORLANDI, 1999).
74
Concebe-se a linguagem como a mediação necessária entre o homem e a realidade
natural e social (ORLANDI,1999, p.15 ), não se trabalhando a língua enquanto sistema
abstrato, mas em sua forma material: a ngua no mundo, significando, e o ser humano,
enquanto sujeito, produzindo sentidos, concretizando discursos.
No domínio desta dissertação, pensar a relação do sujeito com a sociedade e a
política é perceber que o estabelecimento e o deslocamento do sujeito correspondem ao
estabelecimento e ao deslocamento das formas de individualização do sujeito em relação ao
Estado.
Compreende-se dialogia em sua dimensão discursiva como a produção de efeitos
de sentido teórico mais forte da dialogia, o fato de que, na língua, sempre o Outro a
ideologia - condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. Nesses constantes diálogos
inscreve-se o silêncio, não como complemento das palavras, mas com o seu próprio modo de
significar pois “o silêncio, em sua relação com a linguagem, não necessita referir-se ao dizer
para significar, ele significa” (ORLANDI, 2002).
Ainda segundo a autora, o silêncio estabelece uma margem discursiva, um mundo
de vozes que não são ouvidas, e aquilo que não é ouvido passa a existir às margens do
discurso.
Essas margens discursivas estabelecidas pelo silêncio são constitutivas do texto.
Sendo os dizeres, efeitos de sentidos que são produzidos em condições determinadas e
materializadas no texto, esses sentidos relacionam-se não com o que é dito, mas também
com o que não é dito e com o que poderia ser dito e não foi.
As condições de produção, mostrando o contexto sócio-histórico-ideológico,
constituem o sentido do texto e estabelecem uma relação entre o já-dito e esquecido e aquilo
que estamos dizendo. O interdiscurso enquanto conjunto de formulações já feitas e esquecidas
75
determina o que dizemos, constituindo-nos como sujeito, sendo o indivíduo interpelado em
sujeito pela ideologia para que produza o dizer.
A análise do silêncio possibilita-nos averiguar como este instaura processos
significativos complexos que podem ser observados na materialidade discursiva, no caso o
depoimento das mulheres na Delegacia de Defesa da Mulher, objeto de análise desta
dissertação.
O discurso, na perspectiva da Análise do Discurso, é o lugar da materialidade das
formações ideológicas e estas são, por sua vez, particularizadas tanto pelas formações
discursivas, quanto pela autonomia relativa da língua. Já, o silêncio, neste contexto, seguindo
ainda as considerações de Orlandi (2002), não deixa marcas formais, apenas pistas, vestígios
que nos permitem apreender o seu sentido. É necessário, então, observá-lo indiretamente,
utilizando-se de: “métodos (discursivos) históricos, críticos, des-construtivistas” (op.cit,
2002,69).
Como a fala instaura o silêncio e este possibilita toda significação do dizer,
segundo Orlandi (2002, 2006), o silêncio pode-se constituir como silêncio fundador,
constitutivo do discurso e o silencimento.
O silêncio fundador, o silêncio constitutivo do discurso para a autora é o lugar que
permite à linguagem significar, não estando apenas entre as palavras, mas atravessando-as. “O
silêncio, como condição de significação, resulta que uma incompletude constitutiva da
linguagem quanto ao sentido” (ORLANDI, 2002, p.71). Nessa perspectiva, segundo a autora,
o sujeito tem necessidade de silêncio, pois quanto mais se diz, mais silêncio se instala, mais
os sentidos se tornam possíveis e mais se tem ainda a dizer. “O silêncio é contínuo e há
sempre ainda sentidos a dizer” (op. cit.: p.73). Nesse movimento de significação do dizer e do
silêncio significar por si mesmo torna-se possível a iminência do não-dito.
76
Na relação do dito com o não-dito, que é também a relação do “poder-dizer”
apresenta-se a distinção entre o silêncio fundador e o silenciamento. Didaticamente Orlandi
(2002, p.75) apresenta a diferença entre o silêncio fundador e a política do silêncio: “é que a
política do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o
silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo”.
O silêncio constitutivo, determinado pelo caráter fundador do silêncio, norteia
qualquer produção de linguagem, a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer
algo apagam-se outros sentidos possíveis, porém indesejáveis. É o não-dito excluído do
discurso que permite apagar os sentidos que se quer evitar. Nos deslocamentos de sentidos do
dizer, do silêncio fundador, do silenciamento as mulheres, sujeitos discursivos, no domínio
dessa dissertação, deixam pistas das formações discursivas em que elas se inscrevem.
4.5 Confissão: um discurso da verdade
Na teoria apresentada por Foucault (2005a), entendia-se por confissão todos os
procedimentos pelos quais se incitava o sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso
de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio sujeito. Essa prática existe desde a Idade
Média e possui como enunciador do discurso fundador a Igreja, fundamentando-se na
penitência e na indulgência. A confissão, característica da prática religiosa toma também a
conotação de extração da verdade e, conseqüentemente, de controle, funcionando como
exercício de poder sobre o indivíduo.
Os ocidentais, em sua relação com o cristianismo, eram levados a confessar, expor
seus prazeres. Nesse ínterim, o sujeito confessando produz um discurso sobre si, enquanto o
ouvinte interpreta o discurso podendo condenar ou não o confessando. A partir de então,
verifica-se a confissão como ponto de convergência para a extração da verdade, para a
77
produção de saberes. Segundo Foucault (2005a), a verdade era produzida por meio dos
discursos interpretativos da confissão.
A prática da confissão, imposta pela Igreja, adquire o espaço de aparelho produtor
de discursos verdadeiros, onde se desenvolveu o processo de dizer a verdade que, se não dita,
escapava do próprio sujeito. Para isso, foi preciso desenvolver a confissão como prática
terapêutica; era preciso falar. Esse falar não se tratava apenas de contar fatos diante de
autoridades constituídas para ouvir em escolas, igrejas, hospitais aquilo que se pretendia
revelar ou esconder, mas era preciso falar tudo, para que possibilitasse buscar a verdade nas
lacunas do que era dito, pois a verdade escapa aquele que confessa. Segundo Foucault
(2005a), o importante era que tenha sido construído, em torno do sexo e a propósito dele, um
imenso aparelho para produzir a verdade. Isto fez com que, ainda segundo o autor, a confissão
da verdade se inscrevesse no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder. Assim,
a confissão possibilitava verificar a verdade, um saber, sobre um determinado sujeito.
Ao analisar os blogs no trabalho intitulado: “Blog: O efeito Terapêutico como
Economia do Dispositivo Confessional”, Uyeno (2006) confirma o postulado foucaultiano de
que o discurso da verdade adquire efeito não em quem o recebe, mas sim naquele de quem ele
é extorquido. Nesse estudo, Uyeno (2006) busca no “dispositivo da confissão” foucaultiano
explicações para a confissão virtual. Com isso, ratifica a positividade do dispositivo
disciplinar, exposto por Foucault, ao verificar que o mesmo explora as potencialidades de
indivíduos transformando-os em sujeitos política e economicamente dóceis e produtivos,
produzindo, portanto, suas identidades. Ainda segundo a autora, o reconhecimento da
identidade é possível pelo e no discurso de ordem diversas: discurso pedagógico que constitui
a identidade do professor e do aluno, discurso confessional que constitui a identidade do
confessor e do confessando. Com isso, Uyeno (2006) confirma o postulado foucaultiano de
que a normalização da conduta se realiza por meio de técnicas disciplinares, das quais a
78
confissão se coloca entre os rituais mais importantes de que se espera a produção da verdade.
A autora comprova o dispositivo confessional foucaultiano e acrescenta que a confissão
passou a se constituir a tarefa de dizer, de se dizer a si mesmo e de dizer a outrem tudo sobre
si. Foucault (2005) afirma que a confissão antes prática sacramental cristã, com o passar dos
anos:
foi difundida como técnica, para a extração da verdade sendo utilizada em várias
instituições, essa prática se legitimou, por a verdade se mostrar não estar unicamente
no sujeito que a revelaria pronta e acabada ao confessá-la, mas se constituir na dupla
ação - na ação daquele que fala e na daquele que ouve. (FOUCAULT, 2005, p.104)
Confirmando o postulado foucaultiano, Uyeno (2006) ressalta que a verdade
apresenta-se incompleta em relação àquele que fala; a verdade se completa naquele que a
acolhe. A verdade emerge no próprio processo da confissão, o discurso da verdade adquire
efeito não em quem o recebe, mas sim naquele de quem ele é extorquido. Isso ocorre porque,
segundo a autora em confirmação ao postulado foucaultiano, a confissão implica o exame de
consciência do indivíduo, que se volta para si mesmo, para se tornar visível ao olhar
perscrutador da onipotência divina, além de o enunciado confessado transbordar a si e revelar
aspectos não pretendidos pelo confessando. Nesse contexto, a autora afirma ser possível
pensar que a confissão permite o acesso à própria subjetividade. Acrescentando ainda que ao
ser extorquida do confessando pelo confessor a verdade revela-se neste e, além de liberar
aquele, permite-lhe saber sobre si o que Uyeno (2006) conclui como a economia do
dispositivo da confissão.
79
PARTE II
ANÁLISE DOS CORPORA
Tendo por base as discussões e teorias da Análise do Discurso de linha Francesa a
Parte II, que ora se inicia, apresentará a análise dos corpora formados por um corpus
constituído de respostas dos questionários de professoras de língua portuguesa de nível de
ensino fundamental e médio e por um outro corpus constituído de depoimentos apresentados
sob forma oral por das mulheres depoentes, no âmbito da Delegacia de defesa da Mulher. Os
capítulos estarão assim dispostos: Capítulo1- Condições de produção do discurso das
mulheres; Capítulo2-Análise do corpus: professoras; Capítulo 3- Análise do corpus: mulheres
depoentes e Considerações finais.
80
Capítulo1 Condições de produção do discurso
suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que m por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.
Michel Foucault
Na análise dos corpora foi possível perceber que se produziram discursos cujos
sentidos não estão nas palavras, mas nas condições de produção que as originaram. Este
capítulo seguinte se aterá a explicitar sobre as condições de produção dos discursos de
professoras de Língua Portuguesa de nível fundamental de ensino e de mulheres depoentes em
Delegacia de Mulher.
Partindo do pressuposto discursivo de perspectiva francesa de que a língua não
pode ser estudada separadamente de suas condições de produção
,
por ser constituída por
aspectos históricos e sociais, e, também, por se fazerem imprescindíveis à análise discursiva a
ideologia e o discurso. Este se faz necessário
,
por ser o lugar social onde se inscreve o sujeito
e aquela
,
por emoldurar o discurso do indivíduo em um conjunto de preceitos o que
determinará o valor de verdade de acordo com a posição em que o sujeito enuncia. Daí a
importância da de se saber sobre a posição de onde o sujeito discursivo enuncia e em que
condições seu discurso foi produzido, uma vez que o sentido depreende relações entre o que
se fala, de onde se fala e para quem se fala.
O estabelecimento das condições de produção do discurso se faz necessário porque
[O] o gesto de interpretação é guiado pela tessitura teórica da Análise de Discurso
de linha Francesa, que envolve sujeito, discurso e sentido numa tessitura
atravessada pelas condições de produção, estabelecendo uma relação entre o
81
lingüístico, o histórico e o ideológico, no que diz respeito à constituição do sujeito e
de seu discurso (HOFF, 2001, p.87)
Uma das considerações que se faz necessária para a apresentação das condições de
produção dos discursos de professoras diz respeito à minha própria condição de professora de
Língua Portuguesa.
Aos 18 anos, entusiasmada, ingressei-me na faculdade Letras; convicta de que a
escolha fora acertada, dediquei-me aos estudos com afinco. No segundo ano da graduação
,
recebi o convite para exercer a docência em uma série (na nova nomenclatura ano) do
ensino fundamental I, que não foi o meu primeiro contato com o fazer docente, que desde
antes do ingresso na faculdade já havia realizado monitorias e substituições.
Ao longo de minha carreira e vida, fui percebendo que as colegas-professoras
lamentavam muito sobre aspectos diversos do universo escolar. Essa percepção assistemática
sobre as lamentações ganhou corpo, quando decidi fazer pós-graduação em Lingüística
Aplicada.
Outro fato que paralelamente me ocorrera e que me chamara a atenção foi a
violência doméstica que se evidenciava e ainda continua em crescimento em meu estado,
Goiás. A percepção desse tipo específico de violência certamente ocorreu em razão de fazer
parte do Conselho municipal dos direitos da Mulher.
Foram essas as razões que me levaram a unir e a verificar as marcas regulares da
minha área de atuação e as do outro lugar onde a mulher circulava. Assim ocorreu a
proposição da composição de dois grupos de mulheres para o procedimento da análise
discursiva de seus enunciados: os discursos de professoras e de mulheres depoentes. Dessa
forma, o corpora complexo desta pesquisa constituiu-se de um corpus composto de
depoimentos de professores de Língua Portuguesa dos níveis de ensino fundamental e médio
a um questionário e um segundo corpus composto de depoimentos de depoentes femininas em
Delegacias de mulher.
82
Para o levantamento dos discursos das professoras, elaborou-se um questionário
com as seguintes perguntas: 1) Por que escolheu a carreira docente? 2) Como se sente em
relação ao fazer docente? 3) Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?.
Os questionários foram atribuídos a professoras colegas que atuavam e ainda
atuam no nível de ensino fundamental II e médio. Os questionários foram entregues às
professoras no colégio em que somos colegas, preenchidos em casa e me devolvidos no
colégio.
Dessas várias professoras que responderam ao questionário, e das que
apresentaram regularidades discursivas no que dizia respeito à lamentação, elegeram-se três
para constituírem o corpus para efeito do relato desta pesquisa.
As três professoras são casadas, mas apenas duas delas possuem têm filhos; duas
professoras trabalham em mais de uma escola.
As três são graduadas em Letras e possuem especializações lato sensu; encontram-
se na faixa etária entre 29 a 39 anos. O tempo de trabalho de MP1 é de 15 anos de profissão,
já MP2 e MP3 têm,
em média
,
6 anos de profissão.
para efeito de composição do corpus constituído dos discursos das mulheres
depoentes, foram gravados os depoimentos na Delegacia de defesa da Mulher da cidade de
Catalão, estado de Goiás.
No momento em que elas chegavam a Delegacia
,
eu estava presente na sala,
juntamente com a escrivã
,
e, assim
,
procedia à gravação completa dos depoimentos.
Dos vários depoimentos colhidos e, desses, os que apresentavam a regularidade
discursiva que assistematicamente havia percebido, a saber, com relação à lamentação,
escolheram-se, para compor o relato de pesquisa que resultou nesta dissertação, três
depoimentos de três depoentes às quais se codificaram MD1, MD2 e MD3.
83
No que se refere a MD1, MD2 e MD3, tem-se o registro de que foram até a
delegacia a pé, de carona com a vizinha e de moto, respectivamente. As idades das mulheres
depoentes, cujos depoimentos foram objetos de análise desta dissertação, foram 26, 41 e 33
anos respectivamente.
As mulheres depoentes sentavam-se em uma cadeira de frente para a escrivã,
quando procediam à prestação do depoimento.
Esse segundo corpus de análise foi constituído de depoimentos orais que foram
gravados e transcritos literalmente, na maneira com que enunciaram mulheres depoentes e
escrivã em Delegacias de mulher.
84
Capítulo 2 Análise do corpus: professoras
Este capítulo da presente dissertação apresenta a análise do discurso das
professoras de Língua Portuguesa (Doravante MP)
2
, apresentado a um questionário que
focalizava o seu fazer docente. Mais especificamente, procedeu-se a um recorte do discurso,
isto é, à escolha determinada por uma regularidade discursiva, isto é, por um dizer que se
mostrou reiterado no discurso de várias professoras, como parcela do corpus de pesquisa.
Das regularidades apresentadas, escolheram-se, alguns excertos de respostas das
professoras de Língua Portuguesa (Doravante E)
3
apresentadas por escrito, para efeito de
relato da pesquisa e composição desta dissertação.
2.1 Balizamento entre a docência e o feminino
Analise-se o excerto 1 do discurso da mulher-professora1, transcrito a seguir:
E1
Por que escolheu a carreira docente?
M
P1: Desde criança sentia-me encantada com a arte de ensinar.
Adorava “dar aulinhas” para as bonecas e crianças, assim foi uma
escolha que ocorreu ao longo de minha formação e vida.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
2
MP: Mulher Professora
3
E: Exrcerto
85
P1: Gosto muito de ser professora, com o passar do tempo aprendi a
trabalhar, ou seja, aprendi a dominar os “saberes” necessários à
realização do meu trabalho.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P1: O que me motiva: as atividades de gestão de classe, o ato de
ensinar, o planejamento das aulas que favorece maior conhecimento
da minha disciplina, o gosto de trabalhar com jovens, a participação
na vida cotidiana da escola e dos colegas de trabalho e muito mais...
não deixando de dizer a respeito do gosto que tenho em fazer com
que meus alunos se interessem pela leitura.
O que me desmotiva: por trabalhar em escolas particulares, muitas
vezes desempenho meu papel de forma profissional, mas sem
conseguir ser autêntica. As famílias interferem na escola e não
respeitam os profissionais.
No discurso de MP1, verificam-se as marcas da feminilidade da docência, quando
demonstra o condicionamento e treinamento, desde criança, para o exercício do magistério.
Seu discurso converge com o discurso de que o exercício do magistério deveria ser realizado
com amor, dedicação e doação, conforme nos é revelado na demonstração de carinho com que
ela se refere ao fazer docente na utilização do diminutivo em “aulinhas”. Ao utilizar, em seu
discurso, o substantivo aula no grau diminutivo, MP1 valoriza afetivamente o ato de dar
aulas, o que corrobora com o preceito construído historicamente de que o fazer docente
demanda afetividade.
86
Embora afirme que a escolha ocorrera ao longo de sua formação e de sua vida,
MP1 revela que, desde a infância, ao brincar com bonecas, treinava o exercício do
magistério. Por meio de um discurso memorialista, relata que, na infância, ela praticava o
exercício do fazer docente, caracterizando o papel da mulher na docência como continuidade
da maternidade, realimentando o senso-comum de que os alunos de nível de ensino básico
requerem cuidados semelhantes aos que lhes são dedicados pelas mães. O magistério, como
revelado por MP1, está associado a traços femininos necessários como a paciência e a
afetividade para o exercício do que ela denomina arte de ensinar. Arte, segundo o dicionário
Houaiss (2001), consiste na habilidade ou disposição dirigida para a execução de uma
finalidade prática ou teórica, realizada de forma consciente, controlada e racional, segundo a
tradição que remonta o platonismo; acervo de normas e conhecimentos indispensáveis ao
exercício correto de uma atividade. Nessa acepção, entende-se que a arte de ensinar
mencionada por MP1 se refere às relações de poder e saber de que fala Foucault (2004),
segundo as quais, por meio da técnica de sujeição, um novo objeto vai-se formando e
substituindo o corpo mecânico, cuja imagem povoara os sonhos dos que objetivavam a
perfeição disciplinar. MP1 apresenta, em seu discurso, a concepção foucaultiana de que o
corpo, tornando-se alvo dos novos mecanismos do poder, oferece-se a novas formas do saber.
MP1 revela, em seu discurso, acreditar que o fazer docente é realizado de forma racional, bem
como a escolha da profissão docente também ocorrera de forma racional. MP1, sujeito
constituído historicamente, interpelado pela ideologia e atravessado pelo inconsciente,
apresenta em seu discurso o desejo da prática da arte de ensinar, desejo de perfeição
disciplinar que é determinado pelo Aparelho Ideológico do Estado (AIE), de que fala
Althusser, que impõe a ideologia do Estado sobre os indivíduos, produzindo-os como sujeitos
dóceis e úteis, apontado por Foucault. MP1, sujeito “assujeitado”, não tem a percepção de que
87
se submete ao AIE para ser produtivo, comprovando que “a disciplina fabrica assim corpos
submissos e exercitados, corpos dóceis” de que fala Foucault (op. cit., p.119).
MP1 denota discursivamente encontrar-se na zona de intersecção entre o discurso
feminino e o discurso de profissional, mostrando, também, traços de professora de língua,
uma vez que enuncia o interesse pela leitura.
Ao afirmar que com o passar do tempo aprendi a trabalhar”, MP1 faz-nos
pensar na docência enquanto sacerdócio o que contraria o discurso das feministas sobre a
importância de se desenvolverem atividades fora dos contextos familiares e religiosos e
reforça o discurso da abnegação. Seu discurso parece comprovar os dados históricos de que
um dos fatores que impulsionaram as mulheres ao exercício do magistério foi um discurso
familiar com ressonâncias do discurso religioso, sob a argumentação de que o magistério
poderia ser desenvolvido em apenas um turno, o que possibilita a manutenção e o
fortalecimento da família, além de, indubitavelmente, favorecer o discurso religioso.
O senso-comum da importância das mulheres no fazer docente se faz
perceptível na afirmação de MP1 de que Adorava “dar aulinhas” para as bonecas e
crianças”. Entende-se por essa afirmação que, desde criança, MP1 desenvolveu o treinamento
para o exercício do magistério. Ao enunciar encantar-se com o que ela denomina “arte” de
ensinar, mostra que as brincadeiras possam ter feito com que ela levasse adiante o desejo de
se profissionalizar como professora.
Seu discurso revela uma contradição de plano discursivo, estabelecida entre a
passagem em que afirma que desde criança sentia-[me] se encantada com a arte de ensinar e
a passagem em que afirma que a docência constitui uma escolha que ocorreu ao longo da
[minha] formação e da vida. Observe-se como ela enuncia sob a ilusão intradiscursiva:
embora afirme que a escolha tenha decorrido ao longo da formação e da vida, essa escolha
88
se revelava determinada desde sua primeira infância. Em outras palavras, essa escolha que
afirma ter sido feita ao longo da formação e da vida já estava lá.
MP1 comprova, ainda, agir sob um assujeitamento ideológico, quando afirma
adorar uma atividade lúdica tipicamente feminina que as meninas reproduzem, certamente,
induzidas pela família, pela escola, pela igreja. Em outras palavras, MP1 imagina, faz uma
ficção de si, rememorando a infância, uma vez que seria improvável que ela soubesse, na
primeira infância, que aquela atividade lúdica se tratava de uma arte de ensinar. A docência
como arte de ensinar é assim vista, hoje, quando ela exerce essa atividade profissional. Veja
outra evidência intradiscursiva, quando afirma: Adoro dar aulinhas para bonecas e crianças.
Dar aulinhas para bonecas, indubitavelmente, remete a, refere-se a um período da infância;
entretanto, quando continua essa elocução, adicionando, por meio da preposição “e”, o
elemento crianças, MP1 não se encontra mais na infância, mas na docência em si. Sua ficção
está em retroceder ao passado, vendo-se naquela época como é hoje.
MP1 não se conta de que está reproduzindo e perpetuando o discurso social de
que mulher deve dar aulas, por ser uma profissão que deve ser exercida com dedicação e
carinho, repetindo o ato também carinhoso de dar “aulinhas” às bonecas como treinamento do
exercício do magistério. Como se pode notar, características consideradas inerentes ao
magistério como paciência, afetividade, doação mostram-se começar a ser desenvolvidas
desde a infância por MP1, que brincar de boneca requer a manifestação dessas
características.
Em certa medida, é possível se afirmar que MP1, tendo imitado, na infância, um
fazer profissional docente embora julgasse que estivesse brincando e adorando é
responsável pela perpetuação do fazer docente como uma atividade tipicamente feminina. A
menção de MP1 a dar aulinhas para as bonecas mostra-nos que as atividades femininas são
“naturalmente” inculcadas desde a tenra infância, sem que as mulheres disso se dêem conta.
89
M P1 mostra-se fruto de um discurso subjacente à vida em sociedade o que faz
com que ela se constitua como sujeito discursivo determinado pelo interdiscurso. MP1
apresenta um discurso permeado de todos os outros discursos que repete, revelando-se
constituir um sujeito que enuncia sob a ilusão de que o dizer lhe pertence.
A análise do discurso de MP1 permite pensar que o fazer docente é
predominantemente feminino, porque já é dado como feminino por toda sociedade, e a
menina reproduz sob a ilusão de se tratar de uma atividade lúdica que atende à ludicidade
que lhe é inerente um discurso sócio-histórica, portanto, ideologicamente determinado de
que o fazer docente é tipicamente feminino, quando a história mostra que nasceu como um
fazer masculino e passou a se constituir um fazer feminino, quando foi permitida à mulher a
possibilidade de transpor os muros da casa, os limites da vida privada e ganhar o espaço
público. Essa anuência, como se poderia imaginar, fez-se sob determinações religiosa,
familiar e política, em outras palavras, quando passou a significar um labor missionário de
abnegação, extensivo do fazer materno e, uma vez que limitado por esses dois discursos, isto
é, complementar do fazer materno, tornou-se, economicamente, complementar do provento
principal. Em síntese, a docência passou a se constituir um fazer de interesse da Igreja, da
Família e do Estado.
Eis as razões por que o dizer e o fazer de criança (emulando os de mães) e os
de professoras se entrecruzam sem que ela se conta. As mulheres-professoras, como MP1,
ao exercerem a docência, revelam estarem impregnadas de características de es, o que
leva a entender o carinho com que MP1 trata a docência como à arte de ensinar. MP1, além de
educar o pensamento, responde ao ideal de formação do cidadão apregoado pelo Estado,
propiciando, assim, a disseminação dos valores considerados pela sociedade.
Analise-se como se manifesta esse dizer sócio, histórico e ideologicamente
determinado sobre a docência, no discurso de MP2, transcrito a seguir:
90
E2
Por que escolheu a carreira docente?
M
P2: Após o início do curso de graduação em Letras fui convidada a
ministrar aulas em um cursinho pré-vestibular o que motivou o meu
interesse pelo fazer docente. É bom salientar que este não era meu
interesse ao iniciar o curso, ou mesmo antes.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P2: Na maioria das vezes muito satisfeita e em algumas vezes
bastante frustrada.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P2: Vários são os fatores de motivação: a possibilidade de perceber
o crescimento intelectual e o amadurecimento dos alunos; vê-los
conseguir atingir suas metas; estimular o gosto pelo conhecimento e
pela crítica; a relação que se estabelece com os alunos; o desafio de
encontrar meios para a motivação do corpo discente; acompanhar e
participar do crescimento e os resultados do trabalho proposto.
Porém alguns fatores levam ao desestímulo temporário, como
principais posso citar: a falta de motivação governamental; a
burocracia pedagógica; a falta quase total de participação familiar
na escola e na vida dos alunos que acarreta vários problemas.
Note-se como MP2 não explicita, em seu discurso, os motivos que a levaram a se
tornar professora. Ao afirmar que não era de seu interesse o exercício do magistério, embora
91
cursasse Letras, ela revela o discurso constituído socialmente, ‘o já-dito’
,
no
estabelecimento do interdiscurso de que não vale a pena ser professora pelas condições
salariais e a desvalorização da classe. Possivelmente, os motivos que levaram MP2 à escolha
profissional compactua-se com as idéias apresentadas por Diniz (2001)
,
no que diz respeito à
falta de opção, por ser um curso mais fácil, porque é curso de mulher; por ser mais barato
mais barato, por não haver outro na cidade; por ideal e amor de que se reveste o trabalho do
magistério, por se trabalhar apenas meio horário e, com isso, ser possível conciliar com a vida
casada. MP2 demonstra desconhecer o processo por meio do qual ela se tornou professora, o
que parece comprovar que os aspectos profissionais e pessoais se fundem e se confundem,
conforme postula Diniz (2001). MP2, em seu discurso assevera: É bom salientar que este
não era meu interesse ao iniciar o curso, ou mesmo antes”. Nessa passagem do seu discurso,
MP2 revela que graduar-se em Letras não era o seu interesse, embora não explicite qual era o
seu interesse.
MP2 revela-se como sujeito assujeitado de que trata a perspectiva discursiva
francesa, sujeito que, no espaço da feminilidade do fazer docente
,
ocupa seu lugar, mas não se
conta de que está preenchendo os lugares sociais que lhe foram designados. MP2 fala de
um lugar que lhe é autorizado, que é também hierárquico, de onde ela constitui seu dizer
condizentemente com o lugar que ela ocupa. Os dizeres de MP2 são constituídos e
perpassados pelos aspectos sócio, político, ideológico, pedagógico e institucionais que
caracterizam e formam o sujeito assujeitado que é a mulher-professora, e são
,
nesses dizeres,
constitutivos do discurso da professora que escapa a si mesma no momento da enunciação
,
que permeiam o discurso da verdade e o atravessamento do sujeito discursivo.
Reitera-se, aqui, que o fazer docente se naturalizou como atividade feminina
interligada à prática da maternidade, que o ensino primário era entendido como
continuidade da formação moral que a criança recebia no lar.
92
Analise-se o excerto do discurso de MP3, transcrito a seguir, no que diz respeito a
sua determinação pela ocupação do lugar de docente:
E3
Por que escolheu a carreira docente?
M
P3: Sempre tive vontade de dar aula desde a minha infância e esse
interesse persistiu até o ensino médio então resolvi fazer faculdade
no intuito de realizar-me nesta carreira.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P3: Às vezes sinto-me satisfeita em outras ocasiões nem tanto, mas
tento dar o melhor que posso para ter um trabalho com qualidade,
sempre preocupando com o aluno em si e não pensando que estou ali
para ganhar meu salário e pronto.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P3: A motivação é muito importante não só para o aluno como
também para o professor, mas certos momentos percebo que este
deve cumprir o seu papel na sala e que deve respeitar todos na
escola (alunos, diretores, coordenadores) e além dos pais, porém
nem sempre é respeitado como um ser humano. Cobranças são
várias e elogios, incentivos são raros. Além do mais a disciplina nem
sempre é cobrada por parte de alguns, cabendo aquele professor que
gosta de mais organização em sala ser o chato. Acredito que poderia
ter mais consciência por parte de alguns que todos são seres
humanos merecedores de respeito, elogios e críticas, mas saber fazê-
93
los na medida certa. A satisfação é grande quando percebo que
posso contribuir no aprendizado de um aluno e quando consigo
aplicar aquela aula planejada com tanto carinho de uma forma
tranqüila e interessante aos alunos.
Assim como MP1, MP3 também demonstra o desejo de desempenhar o fazer
docente desde o magistério e reforça essa idéia
,
ao afirmar tratar-se de um desejo que fora
despertado na infância. Os traços do desejo em MP3 não se resumem ao exercício do fazer
docente e ampliam-se para o desejo de se realizar profissionalmente, como se pode perceber
em sua afirmação: resolvi fazer faculdade no intuito de realizar-me nesta carreira. MP3
revela acreditar no êxito profissional mesmo que
,
a seguir
,
discorra sobre uma séries de
fatores que lhe causa desmotivação.
A análise deste item de análise que se encerra leva à conclusão de que a cultura do
magistério é muito forte entre as mulheres-professoras, e à de que a identificação do
magistério com o gênero feminino é parte constitutiva da identidade feminina construída
historicamente, como se pode observar mais acentuadamente nos discursos de MP1 e MP3.
Revelam, também, que suas infâncias foram circundadas pela distribuição metódica dos
afazeres que competia ao homem e à mulher.
As mulheres-professoras revelaram em seus discursos que transitam entre os
domínios público e privado: é por essa razão que ao mesmo tempo em que enunciam
acreditarem estar realizando um fazer essencialmente feminino, enuniam o desejo de
realização profissional. MP1, MP2 e MP3 revelam que ainda hoje se encontram na zona de
intersecção entre os espaços público e o privado que lhes são constitutivos.
2.2 Docência: um discurso heterogêneo
94
O discurso de MP1 revela a constituição do sujeito que se encontra falando de
si. MP1 revela em seu discurso estar entre as esferas pública e privada, quando, ao
discursivisar, apresenta-se ora proferindo o discurso de mulher e ora, o de profissional
docente. As marcas do discurso docente entrelaçam-se com as marcas do discurso de
professora de língua quando ela demonstra seu interesse pela leitura. Nesse momento, MP1
revela enunciar sob o esquecimento número um ou ilusão interdiscursiva, que se constitui na
repetição do ‘já- dito’- sem que disso ela se conta. Essa ilusão leva MP1 a pensar que é
fonte do seu dizer, quando, na verdade, repete dizeres próprios do lugar de professora por ser
amaneirado pela língua e pela história o que nos faz compreender que ela é um sujeito
discursivo que funciona pelo inconsciente e pela ideologia, de que fala Orlandi (2005).
Assim, MP1 mostra-se ter “escollhido” a docência, determinada pelos vários
aparelhos ideológicos que compõem a sociedade. Uma vez integrada em uma das instâncias
do Aparelho Ideológico Escolar, enuncia sob o imaginário que lhe determina o modelo de
professor que se tem como ideal, bem como sob o esquecimento número um ou ilusão
interdiscursiva, pelo qual enuncia um pré-construído da ordem da memória discursiva ao
mesmo tempo em que contribui para a sua permanência - da necessidade da prática de
leitura em aulas de língua. A importância dessa prática de ensino se faz presente, no discurso
de MP1, em virtude da relação de sentido que o dizível ocupa em cada sujeito e, no caso de
MP1 que ocupa um lugar social e institucional de onde ela fala, restringe-se à relação do que
se fala, para quem se fala, do que se fala e de que lugar fala esse sujeito que se confessa,
demonstra-se afetada pelo esquecimento, uma vez que o interdiscurso é possível a partir da
relação de um discurso com outros discursos. Assim, ela revela ser acometida de
esquecimentos que a faz discursivisar desta e não de outra maneira.
95
Ocupando ainda o lugar de professor, MP1 profere o discurso profissional docente
que dela se espera, ao enunciar buscar técnicas e métodos que atendam às instâncias devidas
do Aparelho Ideológico Escolar, mesmo que, para isso, custe a sua “autenticidade”
profissional, como afirma.
Analisando-se o seu discurso mais pormenorizadamente, quando enuncia por
trabalhar em escolas particulares, muitas vezes desempenho meu papel docente de forma
profissional, mas sem conseguir ser autêntica, MP1 traz ao depoimento o procedimento
pedagógico de algumas escolhas particulares do professor. Pelo uso da conjunção
subordinativa adverbial causal por, MP1 atribui ao fato de trabalhar em escolas particulares
a causa para trabalhar de forma profissional, mas sem ser (leia-se sem poder ser) autêntica.
MP1 revela por seu discurso encontrar-se inserida em determinados contextos
sociais, políticos, ideológicos e pedagógicos que impulsionam, movem o sujeito que é a
professora, deixando, em seu discurso, todas essas marcas que lhe são imperceptíveis. Ao
dizer que, desde criança sonhava em dar aulinhas, MP1, no nível do esquecimento de número
UM, repete o discurso feminino, o qual revela que a docência era uma fazer de caráter
feminino pela divisão do tempo para criação dos filhos e por ser o magistério também o
exercício de ser mãe pela doação que se esperava das professoras. O lugar de onde MP1 fala é
constitutivo do que ela diz; ela enuncia determinada pela memória discursiva do que seja o
fazer docente, isto é, por uma relação imaginária de força e sentido, da qual é constituído o
dizer da professora.
O dizer de MP1 é heterogêneo, isto é, permeado interdiscursivamente pelo ‘já-
dito’, ‘já-construído’ sócio-historicamente determinante do papel da mulher docente e, ao
mesmo tempo, submetida ao Aparelho Ideológico do Estado que lhe impõe como ela deve
agir como profissional. Assim, a heterogeneidade constitutiva de MP1 se manifesta no seu
dizer; daí ela dizer ser materna e competente.
96
A circulação entre o público e o privado também é fator constitutivo desse sujeito
heterogêneo que a professora revela ser. Os lugares demarcados historicamente do que é ser
mulher e do que é ser professora constituem o seu discurso e confluem produzindo o seu
discurso pedagógico. Nesse contexto, percebe-se que MP1 como representante do discurso
feminino e docente encontra-se na roda viva do fazer docente de caráter feminino que é
constituído do discurso histórico do legado feminino e do discurso institucional determinado
pelas forças do Aparelho Ideológico do Estado de que nos fala Althusser (2003).
Analise-se, em seguida, o E2 de MP2, abaixo transcrito:
E2
Por que escolheu a carreira docente?
M
P2: Após o início do curso de graduação em Letras fui convidada a
ministrar aulas em um cursinho pré-vestibular o que motivou o meu
interesse pelo fazer docente. É bom salientar que este não era meu
interesse ao iniciar o curso, ou mesmo antes.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P2: Na maioria das vezes muito satisfeita e em algumas vezes
bastante frustrada.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P2: Vários são os fatores de motivação: a possibilidade de perceber
o crescimento intelectual e o amadurecimento dos alunos; vê-los
conseguir atingir suas metas; estimular o gosto pelo conhecimento e
pela crítica; a relação que se estabelece com os alunos; o desafio de
encontrar meios para a motivação do corpo discente; acompanhar e
97
participar do crescimento e os resultados do trabalho proposto.
Porém alguns fatores levam ao desestímulo temporário, como
principais posso citar: a falta de motivação governamental; a
burocracia pedagógica; a falta quase total de participação familiar
na escola e na vida dos alunos que acarreta vários problemas.
MP2 revela em seu discurso a heterogeneidade constitutiva por meio das marcas
de feminino e de profissional em seu discurso que se revela determinado pelo interdiscurso.
MP2, ao apresentar os fatores de sua motivação, explicita a heterogeneidade constitutiva de
seu discurso. Como fatores de motivação para o desempenho do fazer docente que marcam à
presença do discurso profissional, é possível elucidar com as seguintes passagens do discurso
de MP2: “a possibilidade de perceber o crescimento intelectual”, “estimular o gosto pelo
conhecimento e pela crítica” . Nesses excertos MP2 revela em seu discurso o desejo de
participar profissionalmente do um processo ensino-aprendizagem do aluno.
Em virtude de MP2 exercer o fazer docente profissionalmente é perceptível que a
memória discursiva a perpassa e a constitui como sujeito discursivo carregado de aspectos
sócio-político e ideológico do que é ser mulher e do que é ser professora. MP2 apresenta
resistência ao discurso de que o fazer pedagógico é secundário ao revelar que, na maioria das
vezes, ela se sente muito satisfeita. O aspecto de o fazer pedagógico ser secundário,
mencionado em seu discurso, ressoa esse dizer da memória discursiva que foi explicitado em
um determinado momento histórico, no Brasil, quando as professoras do Estado de São Paulo
reivindicaram melhores condições de trabalho e melhor remuneração e receberam do
governador em gestão na época a explicação de que se manifestavam porque eram mal
casadas. Nesse dizer, explicita-se o discurso governamental e político reduzindo o fazer
pedagógico. MP2, mulher pública, contemporânea apresenta como desestímulo “temporário”
a “falta de motivação governamental”, além da burocracia pedagógica. Esta última demonstra
98
a força do Aparelho Ideológico do Estado (AIE) que sobressalta no discurso de MP2 por meio
do interdiscurso, na repetição do já-dito que se remete ao discurso de que “dinheiro de mulher
é para batom”. MP2 não revela em seu discurso o descontentamento pelo descaso com que é
tratada.
Analise-se, em seguida, o E3 de MP3, abaixo transcrito:
E3
Por que escolheu a carreira docente?
M
P3: Sempre tive vontade de dar aula desde a minha infância e esse
interesse persistiu até o ensino médio então resolvi fazer faculdade
no intuito de realizar-me nesta carreira.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P3: Às vezes sinto-me satisfeita em outras ocasiões nem tanto, mas
tento dar o melhor que posso para ter um trabalho com qualidade,
sempre preocupando com o aluno em si e não pensando que estou ali
para ganhar meu salário e pronto.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P3: A motivação é muito importante não só para o aluno como
também para o professor, mas certos momentos percebo que este
deve cumprir o seu papel na sala e que deve respeitar todos na
escola (alunos, diretores, coordenadores) e além dos pais, porém
nem sempre é respeitado como um ser humano. Cobranças são
várias e elogios, incentivos são raros. Além do mais a disciplina nem
sempre é cobrada por parte de alguns, cabendo aquele professor que
99
gosta de mais organização em sala ser o chato. Acredito que poderia
ter mais consciência por parte de alguns que todos são seres
humanos merecedores de respeito, elogios e críticas, mas saber fazê-
los na medida certa. A satisfação é grande quando percebo que
posso contribuir no aprendizado de um aluno e quando consigo
aplicar aquela aula planejada com tanto carinho de uma forma
tranqüila e interessante aos alunos.
Entendendo-se a docência como um fazer que foi permitido às mulheres
,
é
possível verificar que as mulheres professoras enunciam um discurso heterogêneo que revela
a interpenetração de traços profissionais e femininos. Ao afirmar “Sempre tive vontade de dar
aula desde a minha infância...” MP3 enuncia acreditar que a sua profissão fora escolhida por
ela. Ela não tem a percepção de que a memória discursiva feminina que a perpassa a
constituiu enquanto sujeito feminino. Ela não percebe que a sua escolha profissional não se
desvincula dos fatores históricos que a constitui como sujeito discursivo. Isso não significa
que a docência tenha sido “imposta” a MP3, mas que, ao enunciar que o desejo de ser
professora existia desde a infância
,
revela que esse dizer faz parte da memória discursiva
que a constitui enquanto professora.
O verbo “dar” em “Sempre tive vontade de dar aula” e em “... mas tento dar o
melhor que posso para ter um trabalho com qualidade” revela o desejo de dar o melhor de si,
o desejo da doação que é de caráter peculiar ao sujeito feminino, de mãe. MP3, bem como
MP1 e MP2, apresentam características de aspecto feminino e profissional
;
esses aspectos se
misturam na formação do sujeito que exerce a docência. Daí, nas palavras de Diniz (2001)
,
a
relação com o aluno ser ambígua e misturada: ela age como mãe-professora.
100
No que tange às características de mãe
,
MP3 demonstra aspectos de doação e
carinho ao enunciar “...sempre preocupando com o aluno em si e não pensando que estou ali
para ganhar meu salário e pronto” , a preocupação de MP3 com o aluno em si revela a
preocupação do sujeito feminino
,
o que é reforçado quando ela afirmar que a sua preocupação
primeira no exercício do fazer docente não é a remuneração. No discurso MP3
,
as marcas do
discurso feminino se sobrepõem às marcas do discurso profissional.
MP3 revela
,
em seu discurso
,
aspectos de carinho na elaboração e na aplicação da
aula planejada o que reforça a memória discursiva do sujeito feminino que aproxima o fazer
docente das características femininas, quais sejam a de ser mulher e a de ser mãe. Seu
discurso oscila entre a ocupação, ora dos campos privados e ora dos públicos
,
uma vez que
ser mulher e ser mãe se realiza no espaço privado e ser professora
,
no espaço privado. Daí nos
dois espaços, privado e público, lar e escola, as características que o sujeito feminino julga
dever demonstrar são as mesmas: compreensão, afetividade, paciência, doação, dentre outras.
Deste item de análise que se encerra, concluiu-se que o discurso das professoras é
heterogêneo e remete à sua constituição: um sujeito heterogêneo que ora fala do lugar da
profissional e ora fala do lugar de mãe, revelando o primeiro como extensão do segundo.
Essas ocupações de lugar remetem à formação da profissão docente como
concessão de um momento sócio-histórico para que a mulher que desejasse transpor os limites
do âmbito privado, limitado ao fazer de esposa e de mãe, e almejasse atuar no âmbito público,
em um fazer que se justificava por constituir continuidade, prolongamento, do fazer de mãe.
Esse fazer passou a se constituir sócio-histórica e, portanto, ideologicamente como um fazer
tipicamente feminino.
2.3 A educação como espaço de lamentação
101
E1
Por que escolheu a carreira docente?
M
P1: Desde criança sentia-me encantada com a arte de ensinar.
Adorava “dar aulinhas” para as bonecas e crianças, assim foi uma
escolha que ocorreu ao longo de minha formação e vida.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P1: Gosto muito de ser professora, com o passar do tempo aprendi a
trabalhar, ou seja, aprendi a dominar os “saberes” necessários à
realização do meu trabalho.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P1: O que me motiva: as atividades de gestão de classe, o ato de
ensinar, o planejamento das aulas que favorece maior conhecimento
da minha disciplina, o gosto de trabalhar com jovens, a participação
na vida cotidiana da escola e dos colegas de trabalho e muito mais...
não deixando de dizer a respeito do gosto que tenho em fazer com
que meus alunos se interessem pela leitura.
O que me desmotiva: por trabalhar em escolas particulares, muitas
vezes desempenho meu papel de forma profissional, mas sem
conseguir ser autêntica. As famílias interferem na escola e não
respeitam os profissionais.
102
Este item de análise do discurso de MP1 focaliza outra regularidade discursiva que
se evidenciou nos discurso das professoras: a presença da lamentação, de um dizer resignado.
O que me desmotiva: por trabalhar em escolas particulares, muitas vezes
desempenho meu papel de forma profissional, mas sem conseguir ser autêntica. As famílias
interferem na escola e não respeitam os profissionais, MP1 repete um dizer da ordem da
lamentação que se constituiu uma regularidade discursiva, isto é, predominou nos discursos
das professoras de Língua Portuguesa. Tal como muitas de suas colegas lamentam sobre
algum aspecto do fazer docente, ela lamenta sobre a falta da liberdade de conduzir seu
trabalho. Ela menciona conseguir desempenhar o papel de professora, mas lamenta o fato de
não poder ser autêntica, isto é, de ser limitada pela instituição privada para a qual presta
serviços. Lamenta, em seguida, da interferência dos pais dos alunos em seu fazer pedagógico;
lamenta da falta de respeito dos pais dos alunos para com o seu trabalho, ao mencionar que
não respeitarem os profissionais.
Em síntese, MP1 lamenta o fato de não conseguir realizar seu trabalho com
autenticidade
,
ao afirmar que o obstáculo para a realização de seu trabalho se
,
em virtude
das várias interferências no seu fazer docente: do próprio sistema e da família. Essa
justificação permite a postulação de que o efeito de sentido da palavra autenticidade é
impossibilidade de conduzir o seu fazer pedagógico como ela desejaria.
Observe-se, também, como MP1 demonstra o reconhecimento de si, quando ela
revela que seu trabalho não é autêntico, parecendo comprovar o funcionamento da confissão,
postulado por Foucault (2005). No desejo pelo trabalho autêntico (leia-se livre das amarras do
sistema educacional para o qual presta serviços profissionais), MP1 revela reconhecer em seu
discurso que faz o que tem que fazer e não o que gostaria de fazer. Ela enuncia sua submissão
ao Aparelho Ideológico Escolar, de que nos fala Althusser (2003), já que o seu fazer docente é
realizado consoante com a instituição de ensino em que está inserida.
103
Seu enunciado permite a afirmação de que, nesse momento em que enuncia, MP1
se reconhece como um indivíduo singular que se analisa, ainda que atravessada pelos
discursos sociais, políticos e pedagógicos que permeiam a instituição de ensino o que é
proferido por ela na vontade de realizar o fazer docente com autenticidade.
Incitada a falar sobre si, a se confessar, MP1 parece ter tido acesso a aspectos que
lhe são singulares, como se a auto-narração lhe tivesse permitido conhecer-se um pouco mais,
como detectado no discurso de professoras em cursos de especialização por Uyeno (2006).
A professora, MP1, no E1, apresenta-se como sujeito enunciador falando de si; no
momento em que lhe é outorgada a palavra, a professora enunciadora marca sua posição
institucional e sua relação com um conhecimento prévio, o saber.
No estudo em questão, observa-se que MP1 apresenta-se falando de si como
sujeito enunciador inscrito em um determinado contexto sócio, político, ideológico que a
determina, além de estar especificado historicamente, validando a enunciação de MP1. As
imagens de MP1 do que seja professor lhe escapam no e pelo discurso, dando lugar à
construção de sua subjetividade.
É inegável que MP1 fala de uma determinada posição discursiva o que conduz à
análise das instâncias de vigilância e punição de que nos fala Foucault em Vigiar e Punir
(2004).
No campo de forças antagônicas entre o público e o privado, MP1 apresenta-se
como corpo dócil que pode e foi submetida às instâncias de docilização que são constitutivas
da Escola, sendo MP1 utilizada social e institucionalmente. O exercício de poder hierárquico
constante na instituição de ensino submete os indivíduos à disciplina, característica geral das
instituições de ensino, tornando-o cil para ser também útil à sociedade em que MP1 se
insere.
104
Nessa teia de vigilância a que se submete, MP1 afirma conseguir desempenhar as
funções pedagógicas que lhe compete, mas lamenta não poder ser autêntica, isto é livre,
revelando-se um sujeito desejoso de liberdade.
MP1 reproduz um discurso ‘já-dito’, enunciando um dizer invariavelmente
presente nos discursos de profissionais da educação e de professores que se caracteriza pela
lamentação da falta de algo (salário, condições de trabalho, respeito, disciplina, material
didático, dentre outros) não admitindo, entretanto, parte da culpa que possa lhe caber pela
falha no processo. Sendo o professor o profissional mediador das relações de ensino-
aprendizagem, e encontrando-se inserido em todo o processo pedagógico, cabe também a ele
a verificação e correção das possíveis falhas no processo em que ele se encontra inserido e
atuante. Isso se explica porque, se ele repete um dizer interdiscursivo e, como tal, sócio-
histórica e, portanto, ideologicamente determinado, silencia os outros dizeres.
Não se pode deixar de pensar que a lamentação ressoa a forma como o fazer
docente feminino se instituiu: passou a existir por uma necessidade da sociedade, quando as
meninas conquistaram o direito de estudar (até então privilégio reservado aos meninos), uma
vez que requeria uma professora e não um professor e, como às mulheres cabia a
responsabilidade de zelar pela prole e pela família, ser-lhe-ia permitido o exercício dessa
função, desde que conciliasse com as “obrigações de mulher”. A conseqüência imediata dessa
nova profissão com essa peculiaridade que lhe é inerente, somada ao fato de, historicamente,
não responder pela “manutenção da casa”, foi a remuneração igualmente desconsiderada.
A análise do discurso de MP1, que ora se completa, permite pensar que o fazer
docente é predominantemente feminino, porque é dado como feminino por toda sociedade,
e a menina reproduz – sob a ilusão de se tratar de uma atividade lúdica que atende à
ludicidade que lhe é inerente um discurso sócio-histórica, portanto, ideologicamente
determinado de que o fazer docente é tipicamente feminino, quando a história mostra que
105
nasceu como um fazer masculino e passou a se constituir um fazer feminino para atender a
um discurso religioso, familiar e econômico. Em outras palavras, a docência passou a se
constituir um fazer feminino, quando passou a significar um labor missionário de abnegação,
extensivo do fazer materno e, uma vez que limitado por esses dois discursos, isto é,
complementar do fazer materno, tornou-se, economicamente, complementar do provento
principal. Em síntese, a docência passou a se constituir um fazer de interesse da Igreja, da
Família e do Estado.
Analise-se o excerto de discurso da mulher-professora 2, abaixo transcrito
novamente:
E2
Por que escolheu a carreira docente?
M
P2: Após o início do curso de graduação em Letras fui convidada a
ministrar aulas em um cursinho pré-vestibular o que motivou o meu
interesse pelo fazer docente. É bom salientar que este não era meu
interesse ao iniciar o curso, ou mesmo antes.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P2: Na maioria das vezes muito satisfeita e em algumas vezes
bastante frustrada.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P2: Vários são os fatores de motivação: a possibilidade de perceber
o crescimento intelectual e o amadurecimento dos alunos; vê-los
conseguir atingir suas metas; estimular o gosto pelo conhecimento e
106
pela crítica; a relação que se estabelece com os alunos; o desafio de
encontrar meios para a motivação do corpo discente; acompanhar e
participar do crescimento e os resultados do trabalho proposto.
Porém alguns fatores levam ao desestímulo temporário, como
principais posso citar: a falta de motivação governamental; a
burocracia pedagógica; a falta quase total de participação familiar
na escola e na vida dos alunos que acarreta vários problemas.
As lamentações de MP2 revelam-se semelhantes às de MP1 e mostram-se
pertinentes ao desempenho do exercício do magistério: ambas gostariam de ser amparadas
para o melhor desempenho de suas profissões. Depreende-se, dessa enunciação, que a
lamentação tem origem na preocupação com alunos tanto para MP1 quanto para MP2 e essa
preocupação é a base de suas lamentações.
Como ocorre com MP1, MP2 lamenta a interferência da família em seu fazer
pedagógico. MP1 lamenta que, por trabalhar em escola particular, a interferência da família
na escola e o desrespeito aos professores; MP2, que trabalha em escola pública, lamenta a
falta
-
que ela frisa como quase total
-
da família na escola e na vida dos alunos.
M P2
,
em relação a MP1
,
acentua as lamentações que a afligem
:
se esta afirma
que as interferências causam-lhe desestímulo
,
aquela enumera que, além do problema da
ausência da família, ocorre o problema no que diz respeito à questão salarial que ela
denomina como motivação governamental e o relativo à burocracia pedagógica para referir-se
ao ‘já-dito’ das condições materiais e escolares da instituição.
107
E3
Por que escolheu a carreira docente?
M
P3: Sempre tive vontade de dar aula desde a minha infância e esse
interesse persistiu até o ensino médio então resolvi fazer faculdade
no intuito de realizar-me nesta carreira.
Como se sente em relação ao fazer docente?
M
P3: Às vezes sinto-me satisfeita em outras ocasiões nem tanto, mas
tento dar o melhor que posso para ter um trabalho com qualidade,
sempre preocupando com o aluno em si e não pensando que estou ali
para ganhar meu salário e pronto.
Em referência ao fazer docente: o que a motiva e o que a
desmotiva?
M
P3: A motivação é muito importante não só para o aluno como
também para o professor, mas certos momentos percebo que este
deve cumprir o seu papel na sala e que deve respeitar todos na
escola (alunos, diretores, coordenadores) e além dos pais, porém
nem sempre é respeitado como um ser humano. Cobranças são
várias e elogios, incentivos são raros. Além do mais a disciplina nem
sempre é cobrada por parte de alguns, cabendo aquele professor que
gosta de mais organização em sala ser o chato. Acredito que poderia
ter mais consciência por parte de alguns que todos são seres
humanos merecedores de respeito, elogios e críticas, mas saber fazê-
los na medida certa. A satisfação é grande quando percebo que
posso contribuir no aprendizado de um aluno e quando consigo
108
aplicar aquela aula planejada com tanto carinho de uma forma
tranqüila e interessante aos alunos.
MP3 revela tratar sobremaneira dos desestímulos ao seu fazer docente. MP3
enquanto sujeito enunciador, revela-se sentir desvalorizada e desrespeitada no âmbito escolar
o que a leva a lamentações.
MP3 transpõe os níveis de lamentação de MP1 e de MP2 e lamenta os tratamentos
que lhe são dispensados por diretores, alunos e pais de alunos, lamenta a falta de motivação
ao seu trabalho
,
demonstrando e enunciando o desejo de elogios e incentivos. A professora
lamenta que deve submissão a todos aqueles que lhe são superiores e também inferiores na
escala hierárquica de instância de vigilância da instituição, que menciona que é seu papel
dar aulas e respeitar a todos na escola (alunos, diretores, coordenadores, pais). Entende-se que
o respeito não é mútuo, apenas MP3 respeita aos demais e não é respeitada. A instância de
docilização foucaultiana a que MP3 se submeteu elucida a sujeição do sujeito discursivo,
caracterizando-se como sujeito que ocupa um determinado lugar de onde ele enuncia,
constituindo-se assujeitado.
M P3, ao falar de si, demonstra o que ela entende ser o seu lugar nas instâncias de
vigilância, de que nos fala Foucault, e, nesse momento em que enuncia, revela sentir-se
submetida à vigilância e punição de todos os que compõem a instituição escolar, queixando-se
por não ser respeitada humanamente. A menção do senso-comum da indisciplina dos alunos
também constitui o discurso de MP3
,
colocando-se numa posição a quem cabe a exigência
disciplinar, comportamental dos alunos. Isso para a professora agrava a sua postura frente aos
alunos ao ser denominada chata. MP3 apresenta o desejo de ser respeitada, elogiada e
criticada construtivamente, explicitando como satisfação do fazer docente o fato de contribuir
para a aprendizagem dos alunos.
109
No que diz respeito às lamentações
,
MP3 reforça o senso-comum de
lamentações constantes nos discursos dos professores contemporâneos como indisciplina,
falta de motivação, desvalorização, dentre outros. Essa lamentação de MP3, ao falar de si,
permite o acesso a sua subjetividade reconhecendo-se na confissão, ela parece refletir sobre o
papel que lhe é designado ao falar de uma determinada posição discursiva.
Este capítulo que se encerra neste ponto da dissertação leva à conclusão de que o
discurso das professoras apresenta-se fortemente marcado pela memória discursiva do que
seja mulher.
Essa memória discursiva determina a representação que fazem da docência como
uma extensão do fazer de mãe; o discurso das professoras, sob essa memória, ressoa as vozes
da Igreja e da sociedade: ser professora constitui uma fazer missionário e abnegado.
Revelando, ainda, os traços da trajetória por que passou o fazer docente, as
professoras enunciam um dizer heterogêneo que remetem a um sujeito heterogêneo, daí ora
falar como mãe e ora falar como professora.
Quanto às lamentações tão fortemente presentes no discurso das professoras que
comprovam o senso comum que assistematicamente se observara, revelam-se decorrentes da
memória discursiva do que seja professora: aquela a quem foi concedida a permissão para
deixar o âmbito privado para ocupar um espaço no âmbito público que requeria um fazer que
se caracterizava pela extensão do fazer de mãe, além de permitir a conciliação com o fazer
que lhe é inerente de mãe e esposa; esse fazer, uma vez que constituiu uma concessão, e ,
portanto, não era central no provento da família, justificou-se como uma atividade menos
remunerada.
A análise levou, assim, à conclusão de que as lamentações presentes no discurso
das professoras ressoam a memória discursiva do que seja professora: um dizer que ressoa os
determinantes sócio e histórico e, portanto, ideológico da constituição da docência feminina.
110
Capítulo 3 Análise do corpus: mulheres depoentes
A violência de nero está, portanto, escrita com fogo, sangue e veneno na cultura
brasileira que normatiza e estimula paradigmas do ser homem e ser mulher.
Vera Lúcia Puga de Sousa
Este capítulo procede à análise dos discursos das mulheres depoentes objetivando
encontrar indícios e que reproduz um discurso historicamente determinado da condição
feminina.
3 .1 Rompimento do silêncio e silenciamento: o paradoxo decorrente da
heterogeneidade constitutiva
Para o empreendimento da análise do discurso da mulher depoente na Delegacia
de Defesa da Mulher (Doravante DDM)
3
, será focalizada a contradição que se apresentou
como regularidade discursiva. Das inúmeras ocorrências de enunciados contraditórios,
escolheram-se algumas para se compreender o seu funcionamento e apresentar neste relato de
pesquisa.
Transcrevem-se excertos (doravante E)
4
de tomadas de depoimento das mulheres
depoentes (doravante MD)
5
pela escrivã (doravante ES)
6
na DDM, para o procedimento de
análise.
3
DDM: Delegacia de defesa da Mulher
4
E: Excerto
111
Neste momento em que se inicia a análise do corpus, cumpre explicitar que se
procedeu à divisão da análise com o objetivo apenas de facilitar a compreensão dos aspectos
que se evidenciaram.
E1
ES1: O que aconteceu? Você está machucada!
MD1: Pois é... eu tenho que agir agora - por isso que eu tô aqui.
ES1: Você tem testemunhas?
MD1: Como assim?
ES1: Alguém viu?
MD1: Ah não... tinha gente passano na rua, mas eu nem vi não.
ES1: Pode falar o que que foi!
MD1: Onti foi aniversário da minha irmã. Fui de noite leva uma
lembrança pra ela. Meu marido chegou em casa: ele tava trabaiano,
ele roda turno.Como eu num tava lá. Ele ficou ligano sem pará no
meu celular. eu falei pra ele que eu ia. Mas ele foi atrais de
mim. Me achou no caminho. Começo a fala que eu tava era cum
homi e me jogo no chão para me cherá e sabê se eu tinha ficado com
homi. Vê se podi?
ES1: Como? Ele te achou na rua e te jogou no chão?
5
MD: Mulheres Depoentes
6
ES: Escrivã
112
MD1: É... oia aqui pro ce vê. Ele me machucou tudo. Tô com a unha
quebrada. O braço tudim roxo, ce pode vê, e ainda cum galo na
cabeça.
ES1: O galo é porque você caiu?
MD1: Não ele me mandô... mandô o capacete na minha cabeça.
ES1: Então ele mandou o capacete na sua cabeça? Quantas vezes?
MD1: Ah... num sei não... ele ficou me socano lá no chão. Deu pra
conta não. Mas eu machucada. Pois é, agora eu to aqui porque eu
preciso agi. Deus me livre num aguento apanha de homi mais não.
No discurso da mulher depoente na DDM, -se descortinar a constituição do
sujeito que se encontra falando de si. No excerto acima, E1, MD1 inicia o depoimento
afirmando ter que agir: Pois é... eu tenho que agir agora - por isso que eu aqui. Essa
convicção é reforçada, quando ela reitera, no final do depoimento: Pois é, agora eu to aqui
porque eu preciso agi. Deus me livre num agüento apanha de homi mais não.
MD1 mostra-se revoltada e decidida a pôr fim ao histórico de violências, quando
afirma: Deus me livre num agüento apanha de homi mais não. O histórico de violência
doméstica é deduzido pela pressuposição de que MD1 tenha sido objeto de muitas outras
agressões, uma vez que o advérbio “mais” “exprime cessação ou limite, quando acompanhado
de negação” (HOUAISS, 2001). Nesse contexto, o advérbio de tempo “agora”, em Pois é...
eu tenho que agir agora por isso que eu aqui com que inicia o depoimento e em Pois é,
agora eu porque eu preciso agi, não tem o sentido de neste momento, mas adquire o
sentido de “desta vez”, isto é, como não ocorreu em outras vezes.
MD1 mostra a sua constituição como sujeito social por meio de seu discurso, uma
vez que a interação social do sujeito com o mundo sociocultural, em que se encontra esse
113
sujeito é revelada por sua enunciação. Assim, o discurso que é constitutivo do sujeito
depoente é caracterizado pelos aspectos sócio-político e histórico e, portanto, ideológico que
determinam a interação social dos sujeitos, em determinada condição de produção do
discurso. No caso em análise, a presença de MD1, na DDM e perante ES1, apresenta,
inicialmente, o desejo de modificar a situação em que ela se encontra, a qual a faz desvelar o
desejo de não mais ser vítima da violência doméstica.
Paradoxalmente, embora manifeste sua convicção em denunciar o companheiro
como agressor, MD1 não menciona a arbitrariedade da ação dele contra a sua pessoa.
Observe-se como, ao resgatar a circunstância da agressão, relatando Meu marido
chegou em casa, ele tava trabaiano, ele roda turno. Como eu num tava lá, ele ficou ligano
sem pará no meu celular. eu falei pra ele que eu ia, MD1 não justifica, argumenta ou
explica a razão pela qual não estava em casa: menciona apenas que lhe respondera que iria
para casa, revelando atribuir-lhe razão. Essa subserviência permite a atribuição de sentido a
sua menção de que o marido estivera trabalhando e a sua reiteração pela especificação do seu
regime de trabalho de que ela devesse estar em casa, devesse respeitar um marido que
trabalha, que sustenta economicamente a família, parecendo comprovar o senso-comum de
que muitas das agressões sofridas pelas mulheres são justificadas por elas, quando os
companheiros são os provedores da casa, senso-comum esse legitimado por suas raízes
históricas. Fica perceptível que, sob esse silêncio de MD1, perpassa uma memória discursiva
judaico-cristã e, posteriormente, discurso jurídico de que à mulher cabia a lealdade e a
fidelidade para com seu companheiro.
Culpa, submissão, obediência revelam-se constituir os fundamentos da
constituição de MD1, enquanto constituição histórica do sujeito social feminino, fonte de
representações ideológicas inerentes à constituição do sujeito social que é a mulher e,
conseqüentemente, à constituição do seu discurso.
114
Observe-se a contradição estabelecida no discurso de MD1: ela inicia o
depoimento pela denúncia; em seguida, no momento do relato da agressão motivadora de sua
denúncia, revela sua submissão, atenuando a ação do companheiro, chegando a ponto de
atribuir-lhe razão.
Entretanto, é, também, nesse momento em que depõe que conclui que não deve
mais continuar a ser objeto de agressão, ao encerrar o segmento de depoimento e afirmar:
Deus me livre num aguento apanha de homi mais não.
Essa seqüência discursiva permite a conclusão de que o discurso de MD1 é
heterogêneo, comportando um dizer interdiscursivamente determinado: um dizer sócio-
histórico e contemporâneo que a instiga a denunciar o marido agressor e um dizer
determinado pela memória discursiva que impõe sua subserviência ao marido.
Assim, sua denúncia revela-se, por um lado, determinada por um discurso sócio-
histórico e ideológico contemporâneo de que não se deve considerar que a agressão doméstica
seja do âmbito privado, constitutivo da vida familiar e, como tal, de domínio do casal e não do
Estado, o que a mobilizou a dirigir-se à Delegacia da Mulher e a denunciar o marido agressor.
É de conhecimento público que circula socialmente em propagandas televisivas e impressas,
governamentais ou não, bem como na Ordem dos Advogados do Brasil -OAB- o discurso
incentivador e encorajador de denúncia da violência doméstica. Prova disso é o lançamento da
campanha da OAB, com vistas à conscientização da sociedade, que enuncia “Ela queimou o
feijão e ele a mão dela”. São vários os discursos sociais que instigam a mulher a denunciar os
companheiros agressores na tentativa de contenção da violência doméstica. Essas campanhas
invariavelmente mencionam o silêncio, a abstenção da mulher agredida, a recusa dela em
denunciar o marido agressor.
Seu discurso, por um lado, revela-se determinado por uma memória discursiva,
isto é, por um conceito historicamente constituído do papel que cabe à mulher, quando, na
115
seqüência de seu depoimento, MD1 chega quase a justificar esse marido agressor a quem
denuncia: ao rememorar os fatos que culminaram com a agressão que sofrera para o
procedimento do depoimento, ela o justifica, reconhecendo que deveria estar em casa
enquanto ele trabalhava.
No desenrolar do discurso, MD1 assume várias posições discursivas,
apresentando-se, assim, como sujeito polifônico desvelando-se dialogicamente na construção
do discurso que lhe é pertinente, caracterizando o ‘já-dito’, o estabelecimento do
interdiscurso.
A análise de MD1 parece revelar que a contradição é produzida no próprio
processo que, em princípio, a protegeria: é no momento em que lhe é outorgada a palavra e
ela rompe o silêncio que se instaura o seu silenciamento determinado pela representação
histórica do que seja a mulher.
Analise-se, em seguida, o excerto de depoimento, na Delegacia da Mulher, da
depoente 2, transcrito a seguir:
E2
ES1: Pois não... Pode senta.
ES1: Qual seu estado civil?
MD2: Eu?
ES1: É... a senhora é casada?
MD2: Assim no papel não. Mais faiz mais de deis anu que eu moro
cum ele.
ES1: O quê que aconteceu?
MD2: É meu marido. Me bateu.
ES1: A senhora precisa me contar como que foi.
116
MD2: Ele bebe e fica nervoso. Cumigo num tem problema não, mais
ele foi na minha fia tamém dessa veis.
ES1: Ele sempre faz isso?
MD2: As veis.
MD2: Pois é... ele fez isso. Eu vim aqui te contei. E agora?
ES1: Você quer saber do procedimento?
MD2: É.
ES1: Eu vou chamar ele aqui...
MD2: Não!!
ES1: Eu tenho que chamar ele aqui para ouvir e montar o processo?
ES1: Pra falar com ele. Vou pegar o depoimento dele e depois
chamo a senhora de novo e marco lá no juiz.
MD2: Mais ele vai me matá hora que ele recebe a intimação.
ES1: A senhora liga pra polícia no 190.
ES1: Ele está violentando a senhora e uma menor que é a filha da
senhora, isso não pode... A senhora tem testemunhas?
MD2: É, pode faze, é mió que ele bate na minha fia.
MD2: Testemunhas? A minha vizinha ouviu.
ES1: A senhora acha que ela vem aqui testemunha?
MD2: Sei não... tem que pergunta pra ela.
ES1: A garota que a senhora tá se referindo é filha dele?
MD2: Não, por isso que ele vai em cima dela pra bate.
MD2: Os que é fio dele ele num bate não.Nem pra corrigi, pra
educação. Fica nas minhas costas.
117
Note-se, no E2, que, de forma semelhante ao que ocorreu no E1, é no momento
em que MD2 rompe o silêncio e denuncia o companheiro agressor que ela “se silencia”, o que
permite a afirmação de que se trata mais de um silenciamento promovido pela memória do
que seja mulher na relação familiar. Mais especificamente, verifica-se que é no processo do
depoimento que se segue à denúncia da violência doméstica que se instaura o “silêncio” da
depoente.
Essa trajetória do depoimento permite a postulação de que não se trata de
silêncio, mas de silenciamento, uma vez que é a instância institucional jurídica de tomada de
depoimento que faz com que a depoente ocupe a posição de concubina e de mãe solteira e se
silencie. Não se trata exatamente do silenciamento como postulado por Orlandi, segundo a
qual o silenciamento se faz pela interdição da fala, pelo impedimento de falar por alguém ou
instância de poder. Ela se revela silenciada por um discurso sócio-histórico de que a mulher
de direito é a que é legalmente casada. Como esse não é o seu caso, admite que possa ser
agredida.
O sujeito discursivo MD2 se constitui, também, no silêncio que é peculiar tanto ao
sujeito de direito do cotidiano quanto ao sujeito de direito Jurídico. Isso significa que se deve
compreender a relação entre a constituição e formulação do silêncio como parte constitutiva
do sujeito jurídico que é MD2.
No E2, aspectos de verdade do confessor e confessando confluem-se no ato da
confissão. No caso de MD2, é no momento da confissão (do depoimento na DDM) em que a
mulher se decide entre libertar-se, ainda que se justifique pela agressão a sua filha e não a si:
É, pode faze, é mió que ele bate na minha fia.
Tal como MD1, MD2 revela que a contradição em seu discurso tem origem na
hetrogeneidade que lhe é constitutiva. Por um lado, seu discurso se revela constituído das
vozes que a incitam a denunciar a agressão doméstica pelo companheiro retirando-a da
118
categoria de questiúnculas do âmbito privado e legitimando-a como um delito, como um
atentado ao direito civil, como um ato que contrapõe às regras de convívio do âmbito público.
Por outro, revela-se determinado pela memória discursiva, isto é, pela constituição histórica
do que seja o papel e, portanto, o fazer e o dizer, inerente ao elemento feminino da
constituição do casal: aquela que é economicamente sustentada pelo elemento masculino e,
por conseguinte, cabe-lhe respeito e submissão.
Analise-se, em seguida, o excerto do depoimento de denúncia de agressão pelo
marido prestado por MD3, nessa mesma delegacia e se transcreve a seguir:
E3
ES1: De novo?
MD3: Uai, oia aqui pro cê vê.
ES1: Já falei, que se não for pra pará de briga, é melhor largá. Você
tem que dar um jeito nisso. Não! Pára!
MD3: É fácil, né? Como que faiz com as minhas coisas, vou ficar
sem nada?Ele num sai da casa. Foi tudo eu que comprei
ES1: Mais assim também num tem jeito. Ocêis tem que sossegá.
MD3: Mais num é eu, não. Ele que num tira da cabeça que eu tenhu
outro. Agora além de me bate ele falou que vai manda me matá,
porque ele num vai suja as mão comigo não.E vai mandá matá meu
fie também que vem de ônibus da faculdade de noite.
ES1: Vai matá nada.Mais pur que que ele tá assim?
MD3: Purque ele quê que eu tiro uma moto pra ele na Honda, no
meu nome para ele fica passeano pra cima e pra baixo.
119
MD3: É, mais eu cum medo. Me que faiz quiço?Falou que se num
tirá a moto hoje até 5 hora, mata eu e meu fie.
ES1: Nem eu sei mais, porque ocê vem aqui a queixa, depois vem
pra retirá. Oia que agora, você sabe, não vai te como retirá mais
não. Agora se ocê assina o TCO oceis dois vai lá no juiz.
MD3: Mais aí ocê quê que ela manda mi matá mesmo!
ES1: Não.
MD3: Ele toma meu dinhero tudo, esses dia que num tinha dinhero
nem pro remedi e, ele bebeno pinga.
MD3: Ocê pudia falá cu’ele pra ele pará cum isso.
ES1: Eu falá, mas ocêis vai no juiz resolvê. Não chegá, essa
brigaiada doceis tem tempo demais. Espera aí pro ce assiná.
Depois eu vou mandar a carta pra ele e marco lá no juiz.
MD3, mulher depoente deste momento sócio-histórico, revela ter-se apresentado
na DDM, com o intuito de falar sobre si. Ao chegar à DDM
,
é questionada por ES1 pelo fato
de
,
mais uma vez
,
ela comparecer a DDM. A rememoração de outros conselhos oferecidos a
MD3 por ES1 leva à pressuposição de que é recorrente o fato de MD3 comparecer a
delegacia. Ela justifica para ES1 que a culpa por sua presença da DDM não é dela ao afirmar:
Mais num é eu, não.
MD3, sujeito social que se constitui por seu discurso
,
revela-se em sua
enunciação. Seu discurso revela a interação social que MD3 estabelece com os aspectos
socioculturais do espaço em que ela se insere. MD3 apresenta traços da mulher libertária que
circula entre os espaços público e privado e que pode adquirir, com o trabalho, os bens
móveis que possui em sua casa. Isso leva MD3 a questionar sobre o que fazer para que ele
120
saia de casa, que foi ela que adquirira os bens. Ela enuncia a dificuldade em conseguir
deixar a companhia do marido, que ele não sai de casa e ela não quer abrir mão do que
chama de coisas.
Isso nos leva a entender que MD3, mesmo sendo agredida, luta pelo direito de não
perder o que adquiriu no decorrer do casamento. Diferentemente de MD1 que não tem
argumentos que sustentem a acusação e, por essa razão, chega a quase justificar a agressão
sofrida e daí caracterizar como constitutivos de seu discurso a culpa, a submissão e a
obediência, MD3 não consegue romper os laços com o agressor, não por se sentir culpada,
mas por não conseguir enxergar meios legais que garantam o direito à parte dos bens que lhe
cabe.
Esse desconhecimento de que a ameaça já constitui um atentado ao direito civil, no
sentido do risco à integridade física, e, como tal, por si só, demandaria uma denúncia na
delegacia comum demonstra que ela ainda se determinada pela memória discursiva de que
cabe à mulher obediência.
Essa enunciação de MD3 permite a conclusão de que o seu discurso é heterogêneo,
apresentando um dizer sócio-histórico e contemporâneo que a instiga a denunciar o agressor e
um dizer determinado pela memória discursiva que determina a sujeição ao marido agressor.
MD3, ao ser agredida sai da formação discursiva doméstica, privada e passa a
inserir-se em outra formação discursiva, pública, a DDM. MD3, sujeito discursivo
caracteriza-se como sujeito de um determinado momento histórico, carregando características
de sujeito de seu próprio tempo. Por um lado, MD3 ao enunciar representa valores de uma
formação discursiva que preserva atributos” femininos, como continuar na companhia do
marido. Por outro lado, MD3 ao adentrar na esfera pública, em seu discurso, não demonstra
atenuar-se por culpa ou medo; ela diz continuar na companhia do marido agressor por julgar
impróprio ela deixar o lar e perder os bens móveis que ela afirma ter comprado.
121
Assim, esta seção de análise permite a conclusão de que a subjetividade de MD se
constitui pelo e no discurso: um sujeito dividido entre ser a mulher moderna e libertária
preconizada pelos discursos ideológicos que lhe determinam denunciar, isto é, considerar a
violência doméstica como crime, ganhando o espaço público e ser a mulher tradicional e
submissa – preconizada por toda história da civilização ocidental que lhe determinam calar-se,
isto é, considerar a violência doméstica como natural na relação conjugal, ordenando-se a se
limitar no espaço privado
.
3.2 Tomada de depoimento: a confissão e o auto-conhecimento
Como se pôde observar na seção de análise anterior, MD1 que representa uma
regularidade discursiva, isto é, um dizer que se apresentou de forma proeminente nos
discursos das depoentes apresenta um discurso polifônico de um sujeito heterogêneo que
comporta a voz de uma mulher moderna e a voz de uma mulher tradicional. A voz que rompe
o silêncio e denuncia a agressão do companheiro se faz sob o esquecimento número dois, de
ordem ideológica, de que é ela quem enuncia quando, na verdade, repete um discurso que
permeia a sociedade contemporânea; essa voz interdiscursiva resulta da assunção de MD2 do
lugar da mulher moderna que considera que a agressão do companheiro não é natural no
casamento, mas se trata de um crime e, como tal, deve ser denunciado. A voz que atenua essa
denúncia também se faz pelo esquecimento número 2, segundo o qual repete um discurso
histórico da memória do que seja esposa; essa voz é determinada pela ocupação do lugar da
mulher tradicional que se submete aos valores judaico-cristãos de tradição ocidental.
Além desse caráter heterogêneo de MD1 que se apresentou à análise de seu
discurso, é possível que se analise o seu discurso, sob o ponto de vista dos efeitos da
confissão apontados por Foucault (2005). A tomada de depoimento constitui uma das
instâncias da produção da verdade que se faz pela extração da confissão de um indivíduo por
122
um outro legitimado para tal procedimento: transpostos para os sujeitos do presente estudo,
constituem, respectivamente, a mulher depoente (MD) e a escrivã (ES).
Embora a contradição constitua o aspecto mais perceptível do discurso de MD1,
observe-se como ela é superada na conclusão de seu depoimento: Pois é, agora eu to aqui
porque eu preciso agi. Deus me livre num agüento mais apanha de homi mais não.
Ao finalizar o depoimento de que está na DDM porque precisa agir e que não
suporta mais ser surrada por seu companheiro, MD1 revela chegar a um auto-conhecimento
que lhe foi permitido exatamente pelo ritual legal da tomada de depoimento, o que comprova
o funcionamento do ritual da confissão, postulado por Foucault. Como Foucault descreve em
seus estudos genealógicos do poder, a confissão foi instituída como um instrumento do
exercício de poder da Igreja para efeito de controle da população, exercício de poder esse que
se fazia pela extração da verdade da população, com o objetivo de controlá-la, dando início à
bio-política, sito é, ao controle dos vivos. A especificidade encontrada por ele é que, por um
funcionamento próprio da confissão, aspectos que se escondiam ao confessor e ao
confessando afluíam no momento de sua realização. Em outras palavras, a conclusão a que
Foucault chega é que o exercício de poder sobre o confessando produz nele um saber sobre si.
A enunciação de MD1, no final da tomada de depoimento, de levar em frente a
denúncia, após a confissão, comprova esse funcionamento: é no momento em que depõe (leia-
se confessa) a ES1 que ela chega à conclusão de que não deve mais se submeter à ação do
marido contra si.
Passemos à análise do E2, recorte do depoimento de MD2, no que diz respeito ao
dispositivo da confissão.
MD2 inicia o ritual da tomada de depoimento, revelando ter comparecido à DDM
para denunciar uma agressão física perpetrada contra si pelo companheiro ao afirmar: É meu
marido. Me bateu. No decorrer do evento da tomada de depoimento, MD2 acentua o fato de o
123
marido ter-lhe surrado; entretanto, em seguida, atenua sua afirmação dirigindo sua denúncia
para o fato de, desta vez, o marido agressor ter agredido a sua filha, justificando ser este o
motivo de ela ter comparecido à DDM. MD2 passa a enfatizar em seu discurso o fato de o
agressor ter agredido sua filha e não mais direcionando o seu relato de forma a justificar a sua
primeira denúncia, qual seja a de que ela – MD2 – fora vítima de violência.
Na seqüência de interação verbal com ES1 que lhe solicita para que detalhe a
ocorrência específica que a levara até a DDM, MD2 revela ser vítima constante de agressões.
A constância se evidencia sob o tempo presente do indicativo, utilizado no relato – bebe e fica
que pressupõe ato que se repete e que é imutável: Ele bebe e fica nervoso. A repetição da
agressão se reforça pela expressão temporal dessa veis que é mencionada quando denuncia a
agressão contra a filha, já que pressupõe outras vezes.
Paradoxalmente, em seguida, ela afirma: Cumigo num tem problema não, mais
ele foi na minha fia tamém dessa veis.
Ora, se ela afirmara no começo do depoimento que estava porque o
companheiro a agredira, é estranho que diga Cumigo num tem problema não.
A partir desse momento, seu depoimento se dirige ao relato de que estava à
procura de proteção para sua filha, fruto de um relacionamento anterior a sua relação com o
marido agressor. MD2 demonstra não ter conhecimento dos procedimentos da DDM ao
perguntar: Pois é... ele fez isso. Eu vim aqui te contei. E agora? . MD2 revela buscar meios de
proteção para sua filha, mas não sabe como fazê-lo; mais precisamente, não sabe como se
dará o desenrolar do processo que é cabível à DDM.
MD2 revela saber que existem meios de se libertar dos atos violentos que lhe
ocorrem, mas não visualiza os procedimentos e métodos que serão utilizados pela DDM para
conter a violência doméstica. Certamente, sua ida à DDM é determinada pelo discurso que
incentiva as vítimas a se mobilizarem, discurso esse que se dissemina na sociedade por meio
124
dos mais diversos meios de comunicação e por iniciativa de diferentes instituições como as
jurídicas, as religiosas e mesmo as de iniciativa privada como as Organizações Não-
Governamentais. O desconhecimento do procedimento também se comprova com o diálogo
que estabelece com ES1: Eu vou chamar ele aqui... MD2: Não!! Nesse momento, MD2 se
mostra aflita, certamente em decorrência da percepção da possibilidade de retornar para casa,
o marido receber a intimação para comparecer a DDM e o ato contínuo da agressão ainda
mais intensa.
É oportuno ressaltar que esse temor de MD2 poderia ser sanado, se não
houvesse a falta de abrigo instituído oficialmente para que ela e seus filhos aguardassem o
andamento do processo sem estar em risco de ser agredida novamente.
Embora amedrontada, MD2 é convencida pela ES1 a dar continuidade ao processo
que acabara de se instaurar: Ele está violentando a senhora e uma menor que é a filha da
senhora, isso não pode... A senhora tem testemunhas?
Embora MD2 se revele decidida a proteger a filha, mostra-se perpassada pelo
discurso histórico mantenedor dos atos de violência.
Note-se como ela justifica a violência contra si, ao iniciar o relato do incidente
que a levou a procurar a DDM ao afirmar: Ele bebe e fica nervoso. Cumigo num tem
problema não. Sob a expressão Ele bebe e fica nervoso, entende-se que ele a agride apenas
quando bebe. Estarrecedora é a expressão que lhe segue Cumigo num tem problema não. Ela
revela que se submete à violência doméstica e que nunca o havia denunciado, confirmando a
hipótese das campanhas de que as vítimas não se revelam, não denunciam agressões
domésticas.
No caso de MD2, é possível afirmar que ela se sujeita às agressões, sem
denunciar, porque admite sua condição de merecedora dessa agressão por não ser legalmente
125
casada e por ter concebido a filha fora de relação formalizada: é a voz histórica da exclusão
do direito que a silencia.
Retornando-se ao início do depoimento de MD2, observa-se que ela revela a
importância do casamento ao afirmar não ser casada civilmente, mas salientando o tempo de
convívio com o agressor: Assim no papel não. Mais faiz mais de deis anu que eu moro cum
ele.
Não há como deixar de se pensar que MD2 tal como MD1 não se silencia, mas
é silenciada por um discurso histórico de que cabe à mulher a submissão. No seu caso, essa
sujeição se justifica pelo acréscimo de mais dois componentes históricos: a ausência da
formalização do casamento (leia-se: casamento não legal e casamento não abençoado) e a
concepção de uma filha fora de um casamento (leia-se: ato sexual imperdoável pela Lei e pela
Igreja).
Nos procedimentos jurídicos realizados na DDM
,
verifica-se a produção da
verdade no ato confessional da mulher depoente (MD) à escrivã (ES). MD2, sujeito
heterogêneo, apresenta um discurso polifônico permeado de forças antagônicas de circula na
zona de interseção entre o indivíduo tradicionalista e libertário proveniente da constituição de
MD2 interdiscursividade que lhe é peculiar.
MD2 revela encontrar-se na zona de interseção entre a necessidade de lutar por
seus direitos, revelando-se determinada pelo discurso ideológico do momento em que vive e o
reconhecimento de sua culpa pela sua condição de amásia ou concubina e de mãe solteira. É
possível pensar que ela seja vítima de uma cadeia de submissões: certamente submeteu-se à
condição de concubina por se sentir não merecedora de se casar por ter sido mãe solteira e ser
merecedora de agressões por não ser esposa legal.
126
Concernente ao fato de MD2 ter sofrido agressões outras vezes, ela é inquirida
pela ES1: Ele sempre faz isso? ; desvencilhando-se, porém, MD2 apenas responde: As veis,
não possibilitando que ES1 continue a inquiri-la sobre este aspecto.
Ao responder que as agressões contra ela eram ocasionais, não argumenta a sua
posição de denunciadora e, ao desviar a direção do depoimento para a denúncia da agressão à
filha fruto de outra relação, abandona a acusação primeira, da violência contra si; não se
revela colocar-se na posição de vítima das agressões sofridas anteriormente ou da agressão
que a levara à DDM, mas de denunciadora do fato inusitado da agressão à filha. Percebe-se
que, embora ES1 não apenas acolha a denúncia, mas estimula MD2 a argumentar, a sustentar
a sua denúncia e que MD2 tivesse a possibilidade de explicitar as ocorrências em que ela foi
agredida, o que poderia compor o relatório da DDM, ela se omite.
Se é, ao prestar o depoimento, que MD2 é silenciada por uma memória discursiva,
também é nesse momento de prestação de depoimento, isto é, no incitamento a rememorar e a
relatar (leia-se confessar) sobre o ato da agressão que MD2 demonstra refletir e decidir
continuar com o processo. Embora afirme não temer a violência contra si mesma, mas
pretender resguardar a filha que afirma não ser do marido, MD2 finaliza o depoimento
ratificando o desejo do prosseguimento da denúnica. Observe-se como ela parece estar se
decidindo a dar prosseguimento à denúncia no momento em que procede ao depoimento: ela
não responde exatamente à pergunta de ES1 se ela tinha testemunhas, mas afirma ser melhor
que se lavre a denúncia, porque o companheiro agredira a filha.
Tal qual MD1, MD2 comprova o funcionamento do dispositivo da confissão,
conhecendo-se um pouco mais, ao se confessar, mais especificamente, conhecendo sua
condição de companheira na relação de casal e, nesse ritual confessionário da prestação de
depoimento, legitimar seu direito civil de direito à integridade física e tirar a violência
doméstica do âmbito privado e passá-la para a condição de delito no âmbito público.
127
Inicie-se a análise do excerto de depoimento prestado por MD3 na Delegacia da
Mulher.
MD3
,
ao comparecer à DDM, diz: Foi tudo eu que comprei. Nesse momento
,
ela
comprova o postulado foucaultiano de que a verdade está entre o confessor e o confessando,
mais especificamente, no momento da realização da confissão. MD3 enuncia ter comprado os
bens de sua casa e reconhece que mantêm financeiramente o marido agressor, o que pode ser
confirmado na passagem do discurso de MD3: Purque ele quê que eu tiro uma moto pra ele
na Honda, no meu nome para ele fica passeano pra cima e pra baixo.E ainda: Ele toma
meu dinhero tudo, esses dia que num tinha dinhero nem pro remedia, ele bebeno pinga.
MD3, revela-se determinada pelo discurso ideológico do momento, a vontade de
lutar pelos seus direitos, e o reconhecimento de sua condição de mantenedora do marido
explorador. MD3 apresenta como ponto fundamental de seu depoimento o fato de o marido
extorquir-lhe dinheiro e não apenas a agressão em si.
Não como negar que, apesar de seu desconhecimento do direito civil da
integridade física e de sua evidente submissão ao marido, decorrente da determinação de seu
discurso pela memória discursiva, ao enunciar que teme pela consolidação da ameaça do
marido, com suas idas à DDM, tem se conhecido um pouco mais em sua condição de cidadã
e, como tal, de objeto de direitos, tirando a agressão física do âmbito privado para o público.
3.3 O ritual do depoimento: espaço de lamentações
Além da contradição e do auto-conhecimento que se revelaram na análise do
discurso de MD1, é muito evidente a lamentação sobre a sua condição de mulher agredida
pelo marido.
128
É inegável que o relato sobre o incidente da agressão mostrou-se constitutivo
do ritual jurídico da instância de constituição da verdade pela tomada de depoimentos. É
também constitutivo dessa instância que o reclamante argumente sua denúncia. Entretanto,
como se pode observar na repetição da transcrição de parte do depoimento de MD1 abaixo,
ocorre uma reiteração da descrição do estado em que se encontra:
MD1: É... oia aqui pro ce vê. Ele me machucou tudo. Tô com a unha
quebrada. O braço tudim roxo, ce pode vê, e ainda cum galo na
cabeça.
ES1: O galo é porque você caiu?
MD1: Não ele me mandô... mandô o capacete na minha cabeça.
ES1: Então ele mandou o capacete na sua cabeça? Quantas vezes?
MD1: Ah... num sei não... ele ficou me socano no chão. Deu pra
conta não. Mas eu machucada. Pois é, agora eu to aqui porque eu
preciso agi. Deus me livre num aguento apanha de homi mais não.
Como se pode observar, MD1 não se limita ao relato da agressão como requer
uma ocasião formal de tomada de depoimento e, ainda que faça parte do procedimento
jurídico do exame de corpo de delito, não é à escrivã que ela deveria mostrar as marcas da
agressão. Ela chama a oficial para que veja as marcas das agressões de que foi vítima e
descreve-as. Revela tomar ES1 como uma amiga a quem precisa relatar o ocorrido, em
detalhes.
129
O que se observa é que o depoimento prestado por DM1 a ES1 se configura como
lamentação, uma vez que ela se exprime por meio de lamentos, de lamúrias; ela diz com
mágoa; deplora, lastima, sentidos de lamentar que, etimologicamente, significa “queixar de
dor, lastimar, prantear, expressar sofrimento”. Observe-se a enumeração de lamentos: Como
eu num tava lá, ele ficou ligano sem pará no meu celular. Aí eu falei pra ele que eu já ia. Mas
ele foi atrais de mim. Me achou no caminho. Começo a fala que eu tava era cum homi e me
jogo no chão para me cherá e sabê se eu tinha ficado com homi. Vê se podi?
. Óia aqui pro ce vê. Ele me machucou tudo. Tô com a unha quebrada. O braço tudim
roxo, ce pode vê, e ainda cum galo na cabeça. ele ficou me socano no chão. Deu pra conta
não. Mas eu tô machucada. Deus me livre num agüento apanha de hômi mais não.
Essa lamentação, se analisada na situação da acusação formal de MD1, na
Delegacia da Mulher, se configura mais como fundamentação para o excesso na cobrança de
atitudes que lhe cabiam como mulher: como, porque, em razão de ela não ter-se mantido em
casa (como cabia à mulher), quando ele voltou do trabalho, ele tentou localizá-la pelo telefone
móvel e ela (na obediência que lhe cabia) respondeu-lhe que voltaria imediatamente para
casa; não satisfeito com a resposta, ele foi encontrá-la (leia-se: foi verificar a procedência de
sua resposta de que estava na casa da irmã); tendo encontrado a mulher no meio do caminho,
acusou-a de traição e tentou tirar provas dessa acusação e, em seguida agrediu-a fisicamente.
Não há, no discurso de MD1, uma fundamentação para a acusação, no sentido de que ela se
dissesse injustiçada, no sentido de que ela enunciasse que a agressão era incabível, de que o
direito civil de ir-e-vir, do livre acesso de todo cidadão a lugares públicos não deveria ser
cerceado.
Reconhecendo que deveria aguardá-lo em casa e não o fizera, parece ter origem
exatamente no fato de saber-se culpada e, daí, não fundamentar a acusação de agressão e
apenas lamentar. Assim agindo, MD1 mais justifica a agressão do marido do que o acusa.
130
Parece ser possível atribuir a essa lamentação uma memória discursiva do que seja
o papel da mulher no casamento, segundo o qual lhe cabe obediência.
Observe-se
,
na análise a seguir
,
como o procedimento de MD2, no momento da
prestação do depoimento de acusação de violência, é semelhante ao de MD1.
O discurso de MD2, como o de MD1, orienta-se para a lamentação proveniente da
violência doméstica sobre si, com o agravante de que
,
em seu caso
,
a agressão se estendera a
sua filha. A lamentação se acentua, quando MD2 depõe que o agressor havia agredido sua
filha.
MD2 revele ter sido vítima da violência doméstica em outros momentos
,
não
demonstra interesse em relatar essas ocorrências. No decorrer do depoimento, MD2 revela-se
preocupada pela integridade física de sua filha que também fora vítima de agressões, na
ocasião, sendo aconselhada por ES1 a manter a denúncia em proteção de sua filha conforme
repetição de transcrição para efeito de facilitar a análise:
ES1: Ele está violentando a senhora e uma menor que é a filha da
senhora, isso não pode... A senhora tem testemunhas?
MD2: É, pode faze, é mió que ele bate na minha fia].
Observe-se a enumeração de lamentos: É meu marido. Me bateu.
Ele bebe e fica nervoso. Cumigo num tem problema não, mais ele foi na minha fia
tamém dessa veis. Pois é... ele fez isso. Eu vim aqui te contei. E agora? Os que é fio dele ele
num bate não. Nem pra corrigi, pra dá educação. Fica nas minhas costas.
E2
131
ES1: O quê que aconteceu?
MD2: É meu marido. Me bateu.
ES1: A senhora precisa me contar como que foi.
MD2: Ele bebe e fica nervoso. Cumigo num tem problema não, mais
ele foi na minha fia tamém dessa veis.
ES1: Ele sempre faz isso?
MD2: As veis.
MD2: Pois é... ele fez isso. Eu vim aqui te contei. E agora?
MD2: Mais ele vai me matá hora que ele recebe a intimação.
ES1: A senhora liga pra polícia no 190.
ES1: Ele está violentando a senhora e uma menor que é a filha da
senhora, isso não pode... A senhora tem testemunhas?
ES1: A garota que a senhora tá se referindo é filha dele?
MD2: Não, por isso que ele vai em cima dela pra bate.
MD2: Os que é fio dele ele num bate não.Nem pra corrigi, pra
educação. Fica nas minhas costas.
Essa enumeração se configura como lamentação, se observarmos a sua afirmação
Eu vim aqui te contei e a sua exclamação Não!, quando ES1 lhe explicita os procedimentos
que se seguem à acusação formal por MD2: chamar o agressor para confirmação da infração à
lei. Ora, qual seria o procedimento se não este? Se ela recusa esse procedimento, seu
depoimento se constitui apenas como ela mesma disse a ES1 um relato, isto é, ela lhe contou
o sucedido.
132
A lamentação no discurso de MD2 revela ter origem no fato de ela não ser
formalmente casada com o marido agressor e no de a filha a quem ele estendera a agressão
não ser filha dele. Isentá-lo da agressão contra si, explicitado em Cumigo num tem problema
não, parece se justificar em razão de ela não ser casada assim no papel com ele; por isso que
(em razão de ela não ser filha dele) parece justificar que ele va[i] em cima dela pra bate.
As lamentações, assim, revelam substituir os argumentos para a acusação formal,
por MD2 ter sua constituição pautada na memória discursiva do que é o tratamento que cabe à
mulher legal; assim, à mulher não-legal resta a lamentação.
Insere-se aqui trecho do depoimento de MD3 para a facilitação da análise:
MD3: Mais num é eu, não. Ele que num tira da cabeça que eu tenhu
outro. Agora além de me bate ele falou que vai manda me matá,
porque ele num vai suja as mão comigo não.E vai mandá matá meu
fie também que vem de ônibus da faculdade de noite.
ES1: Vai matá nada.Mais pur que que ele tá assim?
MD3: Purque ele quê que eu tiro uma moto pra ele na Honda, no
meu nome para ele fica passeano pra cima e pra baixo.
De forma semelhante a MD2, MD3 lamenta a agressão do marido agressor. Inicia
seu depoimento lamentando o fato de o agressor ameaçá-la de morte. Quando ES1 questiona o
motivo da agressão, ela o apresenta como desconfiança. A lamentação de MD3 se desloca da
desconfiança para a extorsão de dinheiro, o que passará a ser o ponto máximo de sua
lamentação.
ES1: De novo?
133
ES1: Já falei, que se não for pra pará de briga, é melhor largá. Você
tem que dar um jeito nisso. Não! Pára!
ES1: Mais assim também num tem jeito. Ocêis tem que sossegá.
ES1: Vai matá nada.Mais pur que que ele tá assim?
ES1: Nem eu sei mais, porque ocê vem aqui a queixa, depois vem
pra retirá. Oia que agora, você sabe, não vai te como retirá mais
não. Agora se ocê assina o TCO oceis dois vai lá no juiz.
ES1: Eu vô falá, mas ocêis vai lá no juiz resolvê.
Não! chegá, essa brigaiada doceis tem tempo demais. Espera
pro ce assiná. Depois eu vou mandar a carta pra ele e marco no
juiz.
Nota-se que não MD3 é depoente quase sistemática dessa Delegacia da Mulher a
ponto de deixar ES1 impaciente com ela. A condição de lamentação do depoimento de MD3
se consolida quando ES1 afirma:Nem eu sei mais, porque ocê vem aqui a queixa, depois
vem pra retirá. Oia que agora, você sabe, não vai te como retirá mais não. Agora se ocê
assina o TCO oceis dois vai lá no juiz.
Depreende-se desse fechamento do discurso por ES1, que MD3 acusava e depois
retirava essa acusação o que configura mais como lamentação do que depoimento formal, de
força jurídica a que cabe o julgamento e as penas conseqüentes. A argumentação da
lamentação se reitera em sua afirmação Não! chegá, essa brigaiada doceis tem tempo
demais: as brigas terem tempo demais ratifica a argumentação de que não se tratava de
acusação formal, mas de lamentação MD3 que era habitual.
134
Deste item de análise, conclui-se que as prestações de depoimentos das mulheres
depoentes configuram muito mais como lamentações que se revelam determinadas pela
memória discursiva do que seja mulher.
A análise do discurso de MDs leva à conclusão de que elas se revelam investidas
do discurso libertário ao denunciar, mas são silenciadas por uma memória discursiva do que
seja mulher. Embora as suas atenuações se dêem certamente em virtude de sua memória
discursiva cristã que dita o que cabe à mulher, bem como em virtude do aparelho ideológico
familiar e religioso que pregam os modelos tradicionais, o funcionamento do dispositivo da
confissão postulado por Foucault revela-se ocorrer: é, na confissão, que MD tem acesso ao
conhecimento de si.
Mais pormenorizadamente, refaça-se o caminho percorrido pela MD na
constituição de si: determinada pelo discurso contemporâneo da necessidade da denúncia da
violência doméstica, MD procede a esse ritual juridicamente legitimado, dispositivo de
exercício de poder postulado por Foucault (987): ao efetivar a denúncia, enunciando o que lhe
ocorrera, MD tem acesso a aspectos que lhe são constitutivos e que se escondem a si, qual
seja de que é capaz de romper um discurso tradicional que a mantinha silenciada.
Da análise do corpus depreende-se a heterogeneidade constitutiva da mulher
depoente (MD) e de seu discurso.
Mais precisamente, a análise do corpus leva à conclusão de que o discurso de
MD é heterogêneo, polifônico, em virtude de abrigar um discurso tradicional que enuncia a
submissão e a resignação ao poder do companheiro, avalizado pela história, o qual silencia e
um discurso contemporâneo que enuncia a necessidade de denunciá-lo o qual a incita a falar.
135
O discurso da mulher depoente remete a sua subjetividade que a revela como
um sujeito constitutivamente heterogêneo, isto é, ao mesmo tempo tradicional e
contemporâneo.
Leva, ainda, à conclusão do papel fundamental das DDM na constituição da
subjetividade de MD: é no cumprimento do ritual institucional da efetivação da denúncia - o
qual se configura como um ritual de confissão - que a mulher depoente se conhece um pouco
mais, por essa instância de acolhimento da depoente exigir-lhe que fale sobre si, o que, por
sua vez, permite a afluência de aspectos que ela própria desconhecia.
A DDM, ainda, comprova-se como uma instância que acolhe as lamentações dessas
mulheres, lamentações essas que se revelam determinadas pela memória discursiva que deve
ser a mulher.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No domínio dessa dissertação que ora se encerra, partiu-se da hipótese inicial de
que os discursos das professoras e depoentes femininas eram pautados na lamentação e de que
essas mulheres reproduziam um discurso histórico da condição feminina.
Na busca pela confirmação dessa hipótese, este trabalho assumiu como objetivo
desmodular, no discurso produzido por professoras e depoentes femininas, as marcas de que
136
enunciavam uma determinação histórica da condição feminina. Para tanto, discutiu-se o
discurso feminino nos âmbitos escolar e jurídico na tentativa de identificar os aspectos sócio-
político-ideológicos que determinam a formação dos sujeitos discursivos professoras e
depoentes. Para tanto, utilizou-se das seguintes perguntas de pesquisa: 1) Quais são as
regularidades discursivas presentes no discurso de professoras do nível de ensino
fundamental? 2) Quais são as regularidades discursivas presentes no discurso de depoentes
em delegacias de mulheres?
Objetivando, então, analisar a lamentação como o ponto de intersecção existente entre
o discurso de professoras de língua portuguesa e o discurso de mulheres depoentes da
Delegacia da Mulher, este estudo se concluiu. Primordialmente, analisaram-se as
regularidades discursivas presentes no discurso de professoras de nível de ensino fundamental
e as regularidades discursivas presentes no discurso de depoentes em delegacias de mulheres.
A regularidade discursiva apresentou-se nos discursos heterogêneos que revelaram as
mulheres objeto de análise desse estudo como sujeitos heterogêneos. Determinadas pelo
discurso histórico e contemporâneo, depoentes e professoras descortinaram pela
interdiscursividade os lugares demarcados historicamente do que é ser mulher e do que é ser
professora. A hipótese de que o discurso pautado na lamentação, presente tanto no discurso de
professoras como no discurso de depoentes, tinha origem na repetição de um discurso
histórico da condição feminina, de onde partiu este estudo, confirmou-se: professoras e
depoentes revelaram-se determinadas por um discurso histórico feminino, segundo o qual
cabe-lhes abnegação e submissão.
Para além dessa hipótese inicial, a análise permitiu a comprovação dos
dispositivos de subjetivação de que fala Foucault.
Pormenorizando-se as conclusões da pesquisa empreendida, cabe explicitar que,
neste estudo que resultou no relato desta dissertação, o discurso feminino apresentou-se no
137
trânsito das esferas públicas e privadas a partir de dois corpora de análise: um corpus
constituído de discurso de professoras de Língua Portuguesa de nível fundamental e de
depoentes femininas de Delegacia de Mulher.
A análise do discurso de professoras e de depoentes femininas levou à conclusão
de que ambos apresentaram, em comum, contradições, quais sejam, respectivamente, de que
lamentam, mas continuam exercendo a profissão docente e de que formalizam a acusação,
mas, em seguida, retiram-na.
Ao contrário do que se imagina em termos de senso-comum, essas contradições
não têm uma conotação negativa, mas revelam-se constitutivas da condição feminina. Essa
contradição mostra-se constitutiva e se explica se admitirmos que, embora tenham,
inegavelmente, acumulado grandes conquistas, as mulheres professoras e depoentes ainda
transitam entre as esferas privadas e públicas. Os sujeitos discursivos, professora e mulher
depoente, assujeitam-se ao exercício de poder sobre si nos âmbitos escolar e jurídico e, ao
enunciar a partir de diferentes posições, público e privado, produzem sentidos vários que
resultam nas contradições que insurgem em seus discursos que decorrem, por sua vez, da
heterogeneidade que lhes é constitutiva. A evidência de que a contradição do discurso tem
origem na constituição heterogênea dos sujeitos professoras e depoentes femininas comprova
a postulação central da perspectiva francesa da análise do discurso da impossibilidade de se
separar o sujeito de seu discurso.
A análise permitiu comprovar que as mulheres docente e depoente são
atravessadas pelo discurso do outro. Ao falarem de si, as mulheres apresentam diferentes
vozes, de diferentes momentos históricos que constituem a memória discursiva do que seja
mulher que perpassa os sujeitos femininos objetos desta análise e determina as suas
enunciações. Embora as mulheres acreditem serem as fontes dos sentidos daquilo que elas
enunciam, ao falarem sobre si inscrevem-se ora em um determinado momento sócio-
138
histórico, ora em outro momento, o que permite a afirmação de que as mulheres
contemporâneas ainda mantêm representações históricas do que seja ser mulher, que
determinam as representações do que seja ser esposa e do que seja ser professora.
As mulheres professoras e depoentes femininas de delegacia de mulher, ao falarem
de si, tornam público aspectos privados de sua constituição: no caso das professoras, ao serem
estimuladas a falarem sobre si em respostas ao questionário, enunciaram lamentações que se
revelaram originárias da condição sócio-histórica e, portanto, ideologicamente constituída de
mulher; no caso das depoentes femininas, ao depuserem na delegacia, enunciaram
lamentações que também se revelaram originárias de sua condição sócio-histórica e, portanto,
ideologicamente constituída de mulher, daí suas lamentações.
Por outro lado, confirmando o postulado foucualtiano da confissão, colocando-se
num espaço de intersecção entre campos de forças antagônicas entre o público e o privado, as
docentes e as depoentes, embora se revelem, em seus discursos como corpos dóceis femininos
historicamente constituídos, ao serem incitadas a falarem sobre si, em instância institucional
escolar, no caso das professoras, e, em instância jurídica, no caso das depoentes, revelaram ter
acesso sobre aspectos que lhes eram constitutivos e se encontravam escondidos de si e se
comprovaram como dispositivo que lhes permitiu, ainda que não o percebessem, saber um
pouco sobre si.
Manifestando os embates femininos próprios das passagens dos espaços privados
para os públicos, professoras e mulheres depoentes apresentam-se neste estudo, ao falem de
si.
A história de embates das mulheres que deram início na conquista de seu espaço
na esfera pública, especificamente no início do século passado, para a realização do fazer
docente feminino e para a constituição das estatísticas de maioria feminina atuante há algumas
décadas no fazer docente, revelou-se, nesta pesquisa, ainda em curso: as professoras revelam-
139
se ainda em combate pelo reconhecimento de sua atividade como profissão independente de
seu papel feminino.
Também as mulheres depoentes revelam ainda em combate pela legitimação de seu
direito de tornar de âmbito público a violência doméstica que é considerada ocorrência de
âmbito privado.
Revelando-se, entretanto, determinadas pela memória discursiva do que seja mulher,
lamentam, sem chegarem a promover revoluções. Seus discursos revelam que suas
resistências ao poder são veladas pela memória de que, no caso das professoras, a docência
constituiu uma concessão do deslocamento do âmbito privado para o público, em razão de
constituir um fazer extensivo do papel de mãe; é certamente a condição de concessão que
justifica, ainda hoje, a remuneração das mulheres em relação à atribuída ao homem. No caso
das depoentes, também suas resistências ao poder são veladas pela memória discursiva do que
seja o papel da mulher e, daí, as suas lamentações: colocar em âmbito público o que se
delimita no âmbito privado ainda se encontra fortemente determinado pelo que se tem como o
que pode e o que não pode ser feito pela mulher. Essa determinação histórica parece constituir
o obstáculo para a consolidação dos efeitos pretendidos pela instituição das delegacias de
mulheres.
Nas instâncias privada e pública, verificou-se que as professoras bem como as
mulheres depoentes de delegacia da mulher circulavam entre esses espaços, buscando tornar
as esferas privadas públicas. Às professoras, a instância pública oferece a possibilidade de se
profissionalizarem e de poderem ultrapassar as esferas doméstica e religiosa; às depoentes, a
instância pública oferece o direito de denúncia, de pedido de justiça pelas ofensas que lhe são
imputadas na esfera privada.
Os sujeitos discursivos femininos, depoentes e professoras, demonstram em seus
enunciados a positividade dos postulados foucaultianos da extração da verdade por meio do
140
dispositivo confessional: a despeito do exercício de poder sobre o instituído para a extração da
verdade em nome da importância social da construção dos sujeitos dóceis e úteis, permite-lhes
se conhecerem.
O funcionamento desse dispositivo se verifica no fato de muitas depoentes que
inicialmente lamentam o fato da agressão comparecendo à Delegacia de defesa de Mulher,
embora permaneçam na companhia do agressor, conhecem-se um pouco mais, ao serem
instigadas a falar sobre si. De forma semelhante, depoentes em delegacias de mulher, embora
lamentem sobre os acontecimentos diversos do cotidiano escolar e continuem no exercício do
fazer docente, conhecem-se um pouco mais, ao falarem de si.
Ao se apresentarem falando de si, reforçam comprovam a eficácia do dispositivo
confessional postulado por Foucault, revelando que a verdade sobre si se encontra não nas
mulheres, mas no ato da confissão que se realiza entre as mulheres e seus ouvintes. A verdade
flui no momento em que elas se apresentam falando de si, em virtude de a verdade estar não
na materialidade lingüística do enunciado das mulheres professoras e depoentes, mas no
ato discursivo: a verdade escapa-lhes no momento da enunciação. Em outras palavras, a
análise do corpus revela a materialização do postulado do ato confessional: verificam-se que
as mulheres, ao falarem sobre si em instâncias institucionais (escolar ou delegacia), em rituais
que se realizam como um dispositivo de confissão, se, por um lado, constituem-se como
corpos dóceis historicamente determinados para garantir o funcionamento das instituições
(escolar e familiar) em que elas se encontram inseridas, por outro lado, conhecem-se um
pouco mais.
Para finalizar, esta dissertação espera ter contribuído para a promoção de reflexões
sobre aspectos constitutivos da produção da subjetividade de professoras e para a elucidação,
ainda que pequena, de parcelas do universo do fazer docente e, em específico, para a
elucidação da natureza das lamentações dos professores das quais se fala assistematicamente.
141
Espera, ainda, ter contribuído para a compreensão do universo da constituição da
subjetividade da mulher depoente e para a elucidação da natureza de sua contradição e de sua
lamentação.
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