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LÚCIO GARCIA DE OLIVEIRA
A
VALIAÇÃO DA CULTURA DO USO DE CRACK
APÓS UMA DÉCADA DE INTRODUÇÃO DA
DROGA NA CIDADE DE
S
ÃO
P
AULO
.
Tese apresentada à Universidade
Federal de São Paulo Escola
Paulista de Medicina, para a
obtenção do Título de Doutor em
Ciências.
São Paulo
2007
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LÚCIO GARCIA DE OLIVEIRA
A
VALIAÇÃO DA CULTURA DO USO DE CRACK
APÓS UMA DÉCADA DE INTRODUÇÃO DA
DROGA NA CIDADE DE
S
ÃO
P
AULO
.
Tese apresentada à Universidade
Federal de São Paulo Escola
Paulista de Medicina, para a
obtenção do Título de Doutor em
Ciências.
Orientadora: Prof
a
. Dr
a
. Solange Aparecida Nappo
São Paulo
2007
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OLIVEIRA, Lúcio Garcia de.
Avaliação da cultura do uso de crack após uma década de introdução da droga
na cidade de São Paulo/ Lúcio Garcia de Oliveira. -- São Paulo, 2007. xix, 330f.
Tese (Doutorado) - Universidade Federal de São Paulo. Escola Paulista de Medicina.
Programa de Pós-Graduação em Psicobiologia.
Crack cocaine culture evaluation a decade after its introduction in the city of São
Paulo.
1. Cocaína-crack. 2. Transtornos relacionados ao uso de substâncias/prevenção &
controle 3. Comportamento. 4. Pesquisa Qualitativa.
iii
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO
ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA
DEPARTAMENTO DE PSICOBIOLOGIA
Chefe do Departamento: Prof
a.
Dr
a.
Maria Lúcia O. Formigoni
Coordenadora do Curso de Pós-Graduação: Prof
a.
Dr
a.
Maria Lúcia O. Formigoni
iv
Esta tese foi realizada no Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São
Paulo (UNIFESP) e no Departamento de Antropologia Social e Cultural da Universidade
Autônoma de Barcelona (UAB), como cumprimento ao estágio de doutorado fornecido
pelo Programa de Doutorado no Brasil com Estágio no Exterior (PDEE) da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (Processo N BEX-1799/05-
3). Recebeu apoio financeiro da Associação Fundo de Incentivo à Psicofarmacologia
(AFIP), do Programa de Bolsas no País da CAPES e Auxílio Pesquisa da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) (Processo N 04/07153-8).
v
“Vencer a si próprio é a
maior das vitórias”.
(Platão)
vi
Á Deus, pela dádiva da vida e a
oportunidade de realização não de
um trabalho, mas de um sonho.
Aos amados pais, Leonor e Tibério, a
quem também agradeço pela vida. Em
especial à determinação, coragem e
paciência de minha mãe, que com
amor transformou os filhos em seu
único objetivo de vida. Agradeço por
mais essa conquista, não minha,
mas NOSSA!
Às amadas irmãs, Eliane e Eliete,
pela fé, ânimo e esperança de uma
vida melhor. Não obstáculo que o
amor e a união não vençam...
Aos meus irmãos Bruno e Dante. A
distância é apenas física, não
limites para a alma...
Aos meus sobrinhos Victor Henrique
e Lucas, a quem novamente desculpo-
me pelos momentos de ausência.
vii
À minha orientadora Solange
Aparecida Nappo. Nesse mundoo
há palavras que possam descrever a
imensidão de minha gratidão.
Agradeço não pela orientação e
pela concretização desse lindo
trabalho, mas pelos momentos de
apoio e conforto, pela palavra amiga,
pelo afago de mãe nos momentos de
crise e pelos puxões de orelha e
críticas sempre construtivos. Que vc
possa receber de volta toda a
realização pessoal e profissional que
me tem proporcionado...
viii
Ao pai, irmão e amigo Leonardo José Vaz.
Pensei muito e hoje consigo definir seu papel
em minha vida e sua participação nesse
trabalho com apenas uma única palavra:
IMPRESCINDÍVEL. Sem sua presença tudo
seria muito mais árduo. Obrigado pela força,
paciência, pelo ouvido atento e pela palavra
amiga e confortante das horas difíceis e pelo
sorriso dos momentos felizes. Que nosso
convívio seja eterno, senão por resgate, por
afinidade... Mil palavras são poucas para te
agradecer...
À irmã, amiga e psicóloga Adriana de Souza.
Feliz daquele que tem a ti no caminho. Seu
sorriso, sua risada, a conversa aberta, o amor
incondicional, a o que pune, mas que
também afaga... Que o plano possibilite que
continuemos trilhando, lado-a-lado, nessa
existência e nas muitas que hão de vir...
Ao Roberto, Patrícia e a toda família
Tsuchiya. Desculpo-me pela ausência e
agradeço a amizade, a preocupação,
compreensão, o amor fraterno. Não como
mensurar seu apoio em minha vida e
tampouco palavras para agradecer...
À Fabiany e família Botelho. Assim como o
título desse trabalho, já se passou mais de uma
década e nossa amizade continua verdadeira,
sólida e sincera. Que Deus permita que
continuemos assim por mais algumas
décadas...
ix
AGRADECIMENTOS
Acima de tudo, a Deus, por mais essa oportunidade de vida, por ter me incentivado ao bem
quando tudo parecia perdido e por ter colocado os melhores “mentores” em minha
caminhada...
À Prof
a.
Dr
a
Solange Aparecida Nappo, orientadora, mãe e amiga das horas de crise. Muito
agradeço pela oportunidade, pela confiança e por não medir esforços ao investir em meu
crescimento pessoal e profissional. Por ter me apresentado a fascinante área da
psicofarmacologia, do crack e da metodologia qualitativa, em que pretendo continuar
trilhando. Por ti tenho profunda admiração, contigo aprendi muito e para onde for levo-te
no coração.
Ao Prof. Elisaldo Carlini por possibilitar-me ingressar no CEBRID e desfrutar de
oportunidades e momentos incríveis. Agradeço pelo convívio e pelas lições de vida. Que a
bandeira de luta, mesmo quando a batalha parece perdida, tão característica de sua vida,
seja importante motivador a muitas gerações de pesquisadores que ainda há de formar...
Ao Prof. Dr. Orlando Amodeo Bueno, orientador de meu mestrado, agradeço pela acolhida
à pós-graduação, pela paciência e simpatia com que sempre me recebeu. Aproveito para
agradecer às inúmeras oportunidades de pesquisa, à boa vontade e solicitude, estando
sempre disposto a ajudar, faça sol ou faça chuva.
Ao Prof. Dr. Aurélio Díaz y Fernandez, do Departamento de Antropologia Social e
Cultural da Universidade Autônoma de Barcelona, quem me recebeu para a realização de
estágio de doutorado no exterior, possibilitando-me experiências tão extraordinárias e,
sobretudo inesquecíveis...
À Prf
a
. Dr
a
. Mariana da Silva Araújo, “tia Mariana”, do Departamento de Bioquímica da
UNIFESP, a quem devo meus primeiros passos em pesquisa científica.
x
Aos companheiros pós-graduandos, agradeço o convívio em período diário e integral,
durante o qual compartilhamos muitas de nossas alegrias e frustrações. Agradeço pelos
inúmeros momentos de descontração, principalmente as psicobaladas, sempre tão
irreverentes.
À Tatiana e Tereza, em especial à Akemi, pela força e determinação, conduzindo os
respectivos projetos científicos com admirável seriedade e responsabilidade. Aproveito
para dar as boas-vindas à Tharcila quem tem contribuído com muito bom-humor às
reuniões.
Aos companheiros do Grupo de Psicoepidemiologia, do CEBRID, que contribuíram com
críticas construtivas tanto ao planejamento quanto ao desenvolvimento dessa tese: Prof
a
.
Dr
a
. Ana Regina Noto, Prof. Dr. José Carlos Galduróz, Akemi, Arilton, Claudinha, Fábio,
Laura, Mileny, Murilo, Tatiana, Tereza, Tharcila, Yone e Zila.
Aos companheiros do Grupo Plantas, do CEBRID, sempre tão simpáticos e receptivos:
Prf
a
. Dr
a
. Eliana Rodrigues, Prf
a
. Dr
a
. Gina, Prof. Dr. Ricardo Tabach, Andréia, Bruno,
Daniel, Fúlvio, Júlia, Maurício e Perla.
Aos companheiros do grupo de Memória, em especial à Sabine Pompéia, Ana Maria
Nogueira Lemos, Vivian Maria Andrade e Flávia Heloísa.
Ao pessoal de suporte do CEBRID agradeço por ter sido sempre atendido com muita
atenção, paciência e dedicação: Aline, Clara, Cida, Cristiano, Elena, Filó, Herbert, Jane,
Júlia, Mara, Márcia, Marlene, Patrícia, Ritinha e Suely. Mesmo que não mais presentes,
agradeço os momentos convividos com os companheiros Adriano e Anuar.
Ao pessoal de suporte do Departamento de Psicobiologia, sempre dispostos a ajudar com
muita atenção e carinho: Andréia Vieira, Andressa, Gustavo, Léo (informática), Natália,
Nereide Garcia, Valéria e Thiago. Em especial ao Júlio César, Márcio Moraes e Vinícius
Bunscheit com quem dividi muitos momentos de amizade e descontração.
xi
À Nereide Lourdes Garcia, a “mãe dos pós-graduandos”. Obrigado pela paciência,
amabilidade, solicitude, disposição e pelo sorriso aberto ao informar e aconselhar.
À Maria Cristina Jorge, que sempre com bom-humor compreendeu o atraso na entrega dos
livros e teses e os inúmeros artigos copiados...
Às heroínas responsáveis pela limpeza e manutenção das dependências do Departamento
de Psicobiologia: Adriana, Cláudia, Dalva, Dora, Laura, Selma e Solange. Em especial à
Adriana e Selma. À Adriana pelo sorriso cativante, pela simpatia e pelo bom-humor
mesmo de manhã quando muitos ainda estão com cara de sono e emburrados. À Selma,
pela amizade, pelo amor com que sempre cuidou de nossas salas e mesas e pela voz
encantadora que tem iluminado nossos dias.
Ao Sr.João, Nelsão, Sebastião e Mané, da AFIP, que sempre me atenderam e receberam
com amabilidade mesmo que de final-de-semana ou de madrugada...
Ao Seu João da portaria do Edifício de Ciências Biomédicas. “É isso aí, CAMPEÃO!”
Aos companheiros da sala 18 de pós-graduação: Adriana de Souza, Ana Luiza, Leonardo,
Priscila, Samuel e Umberto. Agradeço em especial à Adriana de Souza e Leonardo pela
amizade e amor incondicionais. Pelas viagens, conversas, risadas, conselhos, pelo bate-
papo filosófico na madrugada, pelas sessões de cinema, pelos passeios no parque, pelos
inúmeros rodízios de pizza e pelo lanche da tarde na padaria... Que continuem
preenchendo minha vida de amor como têm feito até então. Muito obrigado!
Aos companheiros da turma de graduação, Bio 32, em especial ao Christian Grassl e Júlia
Cunha de quem tenho recordações muito felizes...
Aos amados amigos de mamadeira Débora Macedo Nobre e Rodrigo Giglio que mesmo
fisicamente distantes contribuíram ao meu equilíbrio em muitos dos momentos de crise e
angústia...
xii
Aos amados amigos Carlos e Patrícia que me receberam com tanto carinho na cidade de
Barcelona. Agradeço pela amizade que nem mesmo a distância física tem sido capaz de
abalar...
À Isaurinha e ao Leonel pelo amor, carinho e paciência. Estendo o agradecimento à
querida Sueli, dedicada companheira, sempre tão presente em minha vida. Que os “anjos”
também digam amém a esse trabalho...
Ao CEBRID, CAPES, FAPESP e AFIP por acreditarem e apoiarem financeiramente esse
projeto.
Em especial aos meus voluntários, pelas muitas horas de conversa e ensino. São vocês os
verdadeiros detentores desse conhecimento. Não pela importante contribuição à tese,
mas por me despertar à vida, fazendo com que encarasse os problemas pessoais com
menos seriedade e ansiedade...
Às minhas limitações, fraquezas e deficiências. Foi tentando superá-las que
definitivamente me venci!
Finalmente, a todos que de alguma maneira contribuíram para a realização dessa
conquista.
Que Deus permita que, a partir de hoje, possa dedicar-me e retribuir à sociedade o que
recebi até então...
xiii
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ix
SUMÁRIO xiii
LISTA DE FIGURAS xvii
RESUMO xviii
CONSIDERAÇÃO INICIAL 01
1. INTRODUÇÃO
1.1 Cocaína. 03
1.1.1 Conceituação Geral. 03
1.1.2 O uso da cocaína: de suas origens ao século XXI. 04
1.1.3 Formas de apresentação, vias de administração e aspectos farmacológicos. 13
1.1.3.1 Etapas de extração e formas de apresentação. 13
1.1.3.2 Vias de administração e diferenças farmacológicas associadas. 17
1.2 O Crack. 22
1.2.1 As origens do crack nos EUA. 22
1.2.2 O crack na Europa, na Espanha e na comunidade autonômica de Catalunya. 25
1.2.3 O crack no Brasil e na cidade de São Paulo. 27
1.3 Crack: Perfil do usuário e Padrão de uso. 29
1.3.1 O Crack na América do Norte. 29
1.3.2 O Crack no Brasil. 33
2. OBJETIVOS
2.1 Objetivos Gerais. 38
2.2 Objetivos Específicos. 38
3. METODOLOGIA
Consideração 40
3.1 As características gerais da Metodologia Qualitativa. 40
3.2 O método etnográfico ou etnografia. 43
3.3 As vantagens, críticas e limitações associadas à abordagem qualitativa. 45
3.3.1 As vantagens. 45
3.3.2 Desvantagens e Limitações. 46
3.4 Amostra. 48
3.4.1 Amostra Intencional (Purposeful sample). 48
3.4.2 Tamanho da Amostra. 49
3.4.3 Critérios de Inclusão. 49
3.4.4 Recrutamento da Amostra. 50
3.4.4.1 Informantes-chave. 50
3.4.4.2 Técnica de amostragem em cadeias com ênfase da técnica bola-de-neve. 50
3.4.5 Codificação da Amostra. 51
3.5 Instrumentos da Pesquisa. 51
3.5.1 Entrevistas. 52
3.5.2 Estudo de campo. 54
3.5.3 Critério de Classificação Socioeconômica Brasil (CCEB). 56
3.5.4 Critério de Abuso e Dependência do DSM-IV. 57
xiv
3.5.5 Outros instrumentos. 57
3.6 Análise dos dados. 57
3.6.1 Procedimentos de Análise. 57
3.6.2 Representação dos resultados. 60
3.7 Ética em Pesquisa. 62
SEÇÃO I: Dados específicos da cidade de São Paulo. 63
SEÇÃO II: Dados específicos da cidade de Barcelona. 69
4. RESULTADOS DA CIDADE DE SÃO PAULO – PARTE I
4.1 O usuário de crack. 80
4.1.1 Dados sócio-demográficos. 80
4.1.2 Histórico do consumo de drogas. 84
4.1.2.1 Histórico geral do consumo de drogas. 84
4.1.2.2 Primeira droga. 84
4.1.2.3 Uso de outras formas de apresentação da cocaína. 85
4.2 O crack. 89
4.2.1 Acessibilidade e distribuição. 89
4.2.1.1 Pontos de venda. 89
4.2.1.2 A hierarquia do tráfico e o traficante de crack. 91
4.2.2 Formas de apresentação. 95
4.2.3 O uso de crack. 99
4.2.3.1 Aparatos, ritual de preparo e uso de crack. 99
4.2.3.2 Formas de uso de crack. 105
4.2.3.3 Outras estratégias de uso. 110
4.2.4 Efeitos. 114
4.2.4.1 Diferenças de efeito entre o crack e os demais derivados da cocaína. 114
4.2.4.2 Os Efeitos de crack. 115
4.2.4.2.1 Os Efeitos psíquicos de crack. 116
4.2.4.2.2 Os Efeitos físicos de crack. 122
4.2.5 Padrão de uso. 123
4.2.5.1 O Uso Compulsivo. 123
4.2.5.2 O Uso Controlado. 127
4.2.5.3 Ex-usuários. 133
4.2.5.3.1 Estratégias para abstinência. 133
4.2.5.3.2 Consumo atual de outras drogas por ex-usuários. 135
4.2.6 Desenvolvimento de atividades ilegais ou atípicas. 135
4.2.7 Associação de crack a outras substâncias psicotrópicas. 148
4.2.8 Aumento e diminuição do uso de outras drogas. 155
4.2.9 Implicações decorrentes do uso de crack. 157
4.3 O crack e seu usuário conforme a percepção dos entrevistados. 161
4.4 Abuso e Dependência de crack. 164
5. RESULTADOS DA CIDADE DE BARCELONA – PARTE II
Consideração 169
5.1 O usuário de crack. 170
5.1.1 Dados sócio-demográficos. 170
5.1.2 Histórico do consumo de drogas. 172
5.1.2.1 Histórico geral do consumo de drogas. 172
xv
5.1.2.2 Uso de outras formas de apresentação da cocaína. 175
5.2 O uso de crack na cidade de Barcelona. 178
5.2.1 Acessibilidade e Distribuição. 178
5.2.2 Preparo de crack. 180
5.2.3 Formas de uso de crack. 184
5.2.3.1 Cachimbo de água. 184
5.2.3.2 Papel Alumínio. 191
5.2.3.3 Outras técnicas. 193
5.2.4 Padrão de uso. 195
5.2.5 Os Efeitos. 199
5.2.5.1 Os Efeitos Psíquicos. 199
5.2.5.2 Os Efeitos Físicos. 204
5.2.6 Atividades Atípicas. 205
5.2.7 Associação de crack a outras drogas. 211
5.2.8 Conseqüências decorrentes do uso de crack. 216
5.3 O crack e seu usuário conforme a percepção dos entrevistados. 219
5.3.1 O crack. 219
5.3.2 O usuário de crack. 221
6. DISCUSSÃO
6.1 O usuário de crack. 226
6.1.1 Características Gerais. 226
6.1.2 Histórico do consumo de drogas. 228
6.1.2.1 Uso Geral. 228
6.1.2.2 As diferentes formas de apresentação da cocaína e a transição de vias. 231
6.2 O uso de crack. 234
6.2.1 Acessibilidade e distribuição. 234
6.2.2 Formas de preparo e técnicas para o uso de crack. 241
6.2.3 Efeitos. 247
6.2.4 Padrão de uso. 252
6.2.5 Associação de crack a outras drogas. 256
6.2.6 Atividades Ilícitas. 266
7. CONCLUSÕES 273
CONSIDERAÇÃO FINAL 276
8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 278
ABSTRACT
ANEXOS
Anexo 1: Guia de entrevista da cidade de São Paulo.
Anexo 2: Guia de entrevista da cidade de Barcelona.
Anexo 3: Dados sócio-demogficos dos entrevistados da cidade de São Paulo.
xvi
Anexo 4: Dados sócio-demogficos dos entrevistados da cidade de Barcelona.
APÊNDICES
Apêndice 1: Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB).
Apêndice 2: Protocolo de Aprovação da Pesquisa Científica pelo Comitê de Ética em Pesquisa
(CEP) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Apêndice 3: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
xvii
LISTA DE FIGURAS
Figura 1: As pedras de crack. 95
Figura 2: O cachimbo artesanal de crack. 99
Figura 3: O uso de crack. 104
Figura 4: O cachimbo de água. 185
Figura 5: O cachimbo de água (2). 190
Figura 6: “Fumar un chino” ou “fumar en plata” ou “chasing the dragon”. 192
Figura 7: O “kit base”. 194
Figura 8: A sala de consumo higiênico Baluard. 202
Figura 9: A dependência de crack ilustrada. 224
xviii
RESUMO
Introdução: Apesar de todas as intervenções governamentais adotadas contra o uso de crack,
mesmo após 15 anos de sua introdução no Brasil, especificamente na cidade de São Paulo,
testemunha-se o aumento na prevalência de seu uso. A persistência de crack em contexto
brasileiro, dentro deste período, pode ser devida a dois possíveis fatores, ou seja, pela modificação
do perfil do usuário, de forma a não ser mais contemplado pelos programas de prevenção,
tratamento e redução de danos disponíveis até então ou pelo desenvolvimento de estratégias
especiais de consumo que possibilitaram ao usuário manter os vínculos sociais pré-existentes
(família, estudo e trabalho), tornando o uso de crack e uma vida social normalizada uma situação
possível e controlável, o que, a longo-prazo, poderia estimular ou disseminar seu uso. Objetivo:
Através da adoção de abordagem qualitativa, o propósito da presente pesquisa consistiu na
caracterização da cultura de crack, da cidade de São Paulo, de forma a identificar, entre outros
aspectos, o perfil do usuário de crack e o padrão de uso da droga. Como parte do estudo foi
conduzida na cidade de Barcelona, aproveitou-se para estabelecer um paralelo entre as culturas de
crack de ambas as cidades, de forma a identificar se as características abordadas são próprias à
cultura ou se dependeriam da influência do contexto sócio-cultural onde esteja inserida. Métodos:
A abordagem qualitativa de pesquisa, em especial a tradição etnográfica, é o melhor caminho para
o estudo de “populações escondidas”, monitorando as tendências no uso de drogas e identificando
práticas comportamentais emergentes e de relevância à saúde pública. No estudo, adotou-se uma
amostra intencional, selecionada por critérios, composta por usuários (N=65) e ex-usuários de
crack (N=27), totalizando a opinião de 92 sujeitos. Recrutada por intermédio de informantes-chave
e método de amostragem em cadeias, especialmente a técnica bola-de-neve (snowball), cada um
dos participantes foi submetido à entrevista semi-estruturada guiada por questionário, com duração
aproximada entre 45 e 150 minutos. Em paralelo, a fim de corroborar com os dados das entrevistas,
conduziu-se estudo de campo pelas regiões sabidamente influenciadas pelo comércio e uso de
crack, adotando-se o diário de campo como a forma mais básica de registro. Os dados, seja das
entrevistas ou do diário, foram submetidos a rigoroso procedimento de análise, de forma que os
resultados foram delineados e hipóteses e teorias puderam surgir. Resultados: Em sua maioria, o
usuário de crack é homem, jovem, de baixo poder aquisitivo, baixo nível de escolaridade e,
geralmente, sem vínculos empregatícios formais. As mulheres, assim como usuários de melhor
poder aquisitivo, existem na cultura, porém, em menor proporção. Geralmente de fácil acesso, o
crack é definido como a droga fim-de-linha. Possibilita duas classes de efeitos, os positivos, ou de
prazer, e os negativos ou desagraváveis. Quanto ao padrão de uso, em sua maioria, é do tipo
xix
“binge”, dando-se por horas e dias a fio, descontinuando quando o usuário não tem mais condições
físicas ou financeiras. Na falta de condições financeiras, o usuário dedica-se a atividades atípicas
ou ilegais, submetendo-se à severa degradação moral e social. Assim, relatam a venda de pertences
próprios e familiares, roubos, seqüestros, atividades ligadas ao tráfico e, finalmente, prostituição,
seja feminina ou masculina que, devido aos inúmeros parceiros sexuais e uso inconsistente de
preservativos tem exposto a cultura de crack a considerável risco de contágio por Doenças
Sexualmente Transmissíveis (DST’s) e HIV. O que piora a situação é que, embora tenha sido
identificado o uso exclusivo de crack, para modular seus efeitos, a maioria dos usuários tem o
associado a outras drogas, lícitas ou ilícitas, como álcool, maconha, cloridrato de cocaína, heroína
e metadona, caracterizando o usuário de crack, das cidades de São Paulo e Barcelona, como
politoxicômanos. Ainda quanto ao uso, identificou-se o padrão controlado ou esporádico, uma
forma de controle sobre o uso de crack, subordinando-o às exigências da vida diária, impedindo
que a vida do usuário seja completamente inundada pela droga. Consiste no uso não-diário,
racional e responsável de crack, mediado por fatores protetores individuais gerados intuitivamente.
Além de importantes como estratégia de redução de danos, entre os ex-usuários, não submetidos a
tratamento médico e tampouco religioso, foram ressaltados como importantes medidas para o
alcance do estado de abstinência. Finalmente, no que concerne às formas de uso, variações do
emprego inalado têm sido relatadas. Antes feito em cigarros de tabaco, de maconha e em
cachimbos, atualmente têm-se despontado novas técnicas, dentre elas o “shotgunning” e “dar-se a
segundinha”, que têm predisposto a cultura a consideráveis riscos de contágio por DST’s e HIV, já
que o usuário tem associado-as à atividade sexual freqüente e desprotegida. Conclusões:
Tomadas
em conjunto, percebe-se que na cidade de São Paulo, a cultura de crack tem sofrido profundas
modificações, o que poderia justificar a não-adesão dos usuários às medidas de intervenção
disponíveis. Quanto ao uso, embora ainda seja, em sua maioria, compulsivo e submetido a uma
série de riscos, tem sido identificado o padrão controlado, mediado por estratégias que poderiam
ser, satisfatoriamente, introduzidas como eficientes medidas de redução de danos, podendo, até
mesmo funcionar, a longo-prazo, como meios de atingir-se o estado de abstinência. Porém, o dado
mais intrigante refere-se à semelhança de uso entre as cidades de São Paulo e Barcelona, indicando
que, a cultura pareça ser mais um produto do crack em si que do contexto social em que esteja
inserido.
1
Consideração Inicial.
Antes de iniciar a tese, chamo a atenção do leitor à seguinte observação: o presente
estudo, destinado ao conhecimento da cultura de crack, em todas suas dimensões, foi
dividido em duas etapas. A princípio, entre os anos de 2004 e 2005, foi realizada a coleta
de dados na cidade de São Paulo. Do final de 2005 a meados de 2006 (período de outubro
a maio), com o propósito de completar estágio de doutorado no Exterior, oportunidade
oferecida pelo Programa de Doutorado no Brasil com Estágio no Exterior (PDEE) da
CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), foi realizada a
coleta de dados na cidade de Barcelona (Catalunya-Espanha), sob a orientação do Prof. Dr.
Aurélio Díaz y Fernandez do Departamento de Antropologia Social e Cultural da
Universidade Autônoma de Barcelona (UAB).
Levando-se isso em consideração, em todas as seções do estudo foram
mencionados dados a respeito da cultura de crack nas cidades de São Paulo e de
Barcelona, além de ressaltarem-se as suas origens nos EUA. Embora a seção de Introdução
tenha sido elaborada sem maiores distinções entre as cidades, a seção Resultados e
Metodologia foram divididas em dois tópicos, um referente a São Paulo e outro a
Barcelona, aproveitando-se para estabelecer a comparação entre elas na seção referente à
Discussão.
2
“Coca era uma jovem de pele cor de mel e lisa como uma fruta
que vivia na aldeia de Callasuyo. Era vaidosa, divertida e
egoísta. Não levava nada a sério, interessava-se apenas em se
divertir e dançar. Com notável alegria punha-se a cantar com os
pássaros desde o amanhecer, pousando flores silvestres sobre
seus cabelos negros como a noite sem Lua. Realizava todos os
deveres incumbidos, mas caçoava dos rapazes que a pediam em
casamento. As lamentações chegaram aos ouvidos do Imperador
Inca, que aturdido, consultou os sacerdotes e profetas que
ordenaram seu sacrifício, que era importante ameaça ao povo
e se não sacrificada o conduziria a catástrofes terríveis.
Entristecido, o Imperador sacrificou Coca durante o curso de
cerimônia solene. Seu corpo foi dividido em duas metades, de
cima abaixo, distribuídas aos cantos do Império em locais
indicados pelos sacerdotes. Não se tardou a observar que cada
um dos cantos foi tomado por um arbusto de lindas folhas
verdes, denominado Coca em recordação à jovem sacrificada”.
(Lenda Inca a respeito do aparecimento da planta de coca; La Parra, 1989).
Introduçã
o
o
3
1. Introdução
1.1 Cocaína.
1.1.1 Conceituação Geral.
A cocaína é um alcalóide extraído de folhas da planta de coca, conjunto de plantas
pertencentes à família das Erithroxilaceae e ao gênero Erythroxylum, composto de mais de
250 espécies, das quais mais de 200 são nativas dos trópicos americanos (Buhler, 1946;
Siegel, 1982; Bono, 1998). De vida média entre 40 e 50 anos e em forma de arbustos de
até 5 metros de altura, a planta floresceu nas florestas úmidas da América do Sul (Buhler,
1946), de tal forma que encontrou ótimas condições de vida junto às vertentes dos Andes
no Peru, Bolívia e Colômbia (denominados por yungas), regiões montanhosas
resguardadas, de clima suave e umidade regular (Buhler, 1946; Bono, 1998). A planta
desenvolve-se em regiões tropicais e de altitude oscilante entre 650 a 1700 metros, de tal
forma que não é encontrada nas altas e frias regiões dos Andes e tampouco em territórios
quentes e secos, a menos que possam ser irrigadas artificialmente (Buhler, 1946; Ferreira
& Martini, 2001). Em meados do século XIX tentou-se cultivar a planta de coca nas Índias
Ocidentais, no México, na Califórnia, na Austrália e no continente africano, porém não
foram obtidos resultados de importância. No sul e sudoeste da Ásia, nas províncias de
Ceilão, Madras e Málaca, o plantio da coca alcançou significância, mas foram as culturas
holandesas de Java e Madoera que ameaçaram seriamente a exportação sul-americana
(Buhler, 1946).
Em função da extensa área de cultivo e uso, muitos são os nomes empregados à
coca, muitos dos quais (coka, cochua, cuca) parecem ser derivados da palavra aimará
khoka, de significado “a árvore” (Buhler, 1946; Ferreira & Martini, 2001), embora a
origem de muitos outros seja desconhecida (hayo, hahiu, hibia, hibio), de tal forma que a
multiplicidade de denominações é considerada como prova dos muitos territórios de
origem do uso ou então de sua rápida difusão. Muitas tribos da Bacia Amazônica, na
região fronteiriça entre Venezuela, Colômbia e Brasil, mantêm o hábito de mascar as
folhas de coca, onde é denominada por epadú, ipadu ou ypatú (Buhler, 1946; Ferreira &
Martini, 2001).
4
No que tange às suas variedades, as mais comuns são a Erythroxylum coca
(denominada como coca boliviana ou coca huanuco variedade coca), Erytroxylum coca
(variedade epadu ou ipadu), Erytroxylum novogranatense (variedade novogranatense) e,
finalmente Erytroxylum novogranatense (variedade truxillense) (Siegel, 1982; La Parra,
1989; Bono, 1998).
Ainda que se tenha encontrado cocaína na casca das plantas de coca, somente suas
folhas têm sido utilizadas para obtenção do alcalóide, sendo que as maiores concentrações
estão presentes na variedade coca (Siegel, 1982), na concentração média de 0,7% de
cocaína por peso seco, variando dentro da faixa de 0,1 a 1,5% (Buhler, 1946; Bono, 1998),
tornando a variedade coca a mais frequentemente empregada na síntese da cocaína ilícita
(Bono, 1998). Além da cocaína, a folha de coca é constituída por, pelo menos, outros 14
alcalóides que correspondem a 0,25% a 2,25% do peso da folha (Siegel, 1982), entre eles a
nicotina, cafeína, morfina e em menores concentrações a tiamina, riboflavina e o ácido
ascórbico (Ferreira & Martini, 2001).
1.1.2 O uso da cocaína: de suas origens ao século XXI.
O envolvimento humano com substâncias psicoativas, em especial a cocaína,
retornam a um passado longínquo. O abuso de cocaína tem suas raízes nas grandes
civilizações pré-colombianas dos Andes que, mais de 4500 anos, já conheciam e
utilizavam a folha extraída da planta Erythroxylon coca, conforme indicado por
informes históricos e dados ministrados por escavações arqueológicas do Peru e Bolívia
(Siegel, 1982; Ferreira & Martini, 2001). No Peru, a coca era muito conhecida após a
conquista do país pelos quechuas. A partir de 1021, uma tribo dos quechuas, os incas,
conquistou o Peru, a Bolívia, o Equador e as atuais regiões da Colômbia, Chile e
Argentina, criando destarte o poderoso reino dos incas. Os incas não conheciam a coca até
a época de suas conquistas, mas sim os povos dominados, como os aimarás, de tal forma
que o conhecimento e uso da coca popularizaram-se entre os incas em fins do século XIV
(Buhler, 1946). Sob o domínio dos incas a droga se difundiu do istmo do Panamá às
regiões da Argentina, Chile e territórios limítrofes da bacia do Amazonas (Buhler, 1946).
5
Porém, fora das regiões montanhosas, o consumo da coca não remonta sempre à
época do domínio dos incas, como verificado à atual região da Colômbia, onde o uso era
realizado pelos chibcas. Antes dos chibcas, a tribo dos arhuacos habitava a Colômbia,
mas foram expulsos por esses que conheceram a cultura da coca dos arhuacos, aumentando
a possibilidade de que os aimarás e, sobretudo os quechuas não tivessem conhecido
primitivamente a coca, mas a adotassem de tribos que muito habitavam ali, no caso
os arhuacos (Buhler, 1946). Não obstante, os conquistadores europeus encontraram a
planta em todas as regiões da América do Sul, revelando que desempenhava papel
importantíssimo para muitas populações indígenas da região, conforme indicado pela
primeira vez pelo sacerdote espanhol Tomás Ortiz no ano de 1499 em carta direcionada a
seus superiores eclesiásticos. Porém, no Império Inca, os cocais, local onde a coca era
cultivada, era de privilégio apenas de nobres e padres, únicos que tinham o direito de
explorar a preciosa planta (Almeida, 1920; Buhler, 1946).
De forma geral, para sacar-lhe efeito, os indígenas tinham o hábito de mascar as
folhas de coca, porém, não se tratava da única forma de uso, desenvolvendo-se essa
conforme o meio geográfico dos territórios de consumo (Buhler, 1946). No que concerne
ao uso, mais que um procedimento, correspondia a um ritual, em que os indígenas
sacavam algumas folhas secas de dentro de uma bolsa que levavam consigo (bolsa de pele,
couro ou pano denominada por chuspa), levando-as à boca e triturando-as sem engolir
(Buhler, 1946; Siegel, 1982; La Parra, 1989; Díaz, 1998). Ao mastigá-las e misturá-las
com saliva, formavam uma bolinha, que moviam suavemente entre a bochecha e os dentes
de forma a extrair-lhe o suco, do qual a cocaína era absorvida. Entretanto, a eficiência do
processo foi aumentada através do emprego de substância alcalina, geralmente cal extinta
oriunda de conchas calcárias trituradas (Texidor, 1873; Buhler, 1946; Siegel, 1982; La
Parra, 1989; Díaz, 1998) que carregavam em pequenas cabaças, cujo emprego, além de
facilitar a absorção da cocaína, ocultava o sabor naturalmente amargo e adstringente das
folhas de coca (Siegel, 1982). O processo foi descrito detalhadamente em Buhler (1946):
Três vezes e, geralmente, quatro vezes ao dia, os índios descansam de seu trabalho para
mastigar a coca. Para isto, tiram cuidadosamente as folhas secas da bolsa, retiram as
nervuras das mesmas, introduzem a folha partida na boca e a mastigam até que a mesma
se transforme numa verdadeira bola (acullico) entre os molares. Depois se introduz na cal
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extinta o bastonete delgado e umedecido, o qual, com o da cal que lhe adere, é levado
à bola de coca que se formou na boca. Repete-se essa manobra algumas vezes até que se
obtenha um apetecido sabor. A abundante saliva secretada, de mistura com o suco verde
das folhas, parcialmente é cuspida, sendo a maior parte deglutida. Quando a bola
não desprende suco suficiente, retiram-na e substituem-na por outra. Vi com freqüência o
pai dar o acullico, quase esgotado de suco, ao filho menor, o qual o tomava avidamente
na boca e o mascava ainda por muito tempo.
O procedimento descrito não é o único adotado. Em algumas regiões, a cal é
substituída por uma substância denominada llipta ou tocra, pasta calcária dura e amarga
constituída pelas cinzas de plantas (ex.: espigas de milho debulhadas, de talos de banana,
de raízes, de cactos, cipós, etc) ou ossos, misturadas à água, água salgada ou urina, cuja
forma retangular se dava com os dedos e se secava ao Sol (Texidor, 1873; Buhler, 1946;
La Parra, 1989; Díaz, 1998). Para usá-la, se tirava um pequeno pedaço ou se raspava uma
pequena quantidade conforme preciso, juntando-a às folhas secas previamente mastigadas.
A “llipta” parecia ser um substituto da cal extinta, que conchas marinhas eram de difícil
acesso em regiões não litorâneas. Além dessas, conhece-se a forma de uso apenas das
folhas de coca, sem qualquer outro ingrediente, o ato de mastigá-las ou fumá-las
juntamente com folhas de tabaco, a inalação do das folhas e, finalmente, seu preparo
como infusão de folhas ou chás (Almeida, 1920; Buhler, 1946; Siegel, 1982).
Uma droga como a coca, de caráter estimulante, que dissipava a fome e a fadiga,
que proporcionava bem-estar e energia e que possui propriedades curativas era considerada
portadora de mágicas virtudes entre os indígenas, recebendo posição de destaque em sua
vida social e religiosa. Assim, o cultivo e colheita da coca, nos quais homens e mulheres
tinham papéis definidos, eram geralmente acompanhados de cerimônias religiosas (Buhler,
1946). Era comum que o líder religioso da tribo (xamã) passasse grande parte da noite
meditando e mascando coca, a fim de induzir o estado de transe, o que facilitava a
comunicação com as divindades e a convocação das forças da natureza em benefício
próprio ou da tribo. Para a comunicação ser bem-sucedida era comum que tivessem um
punhado de folhas de coca na boca e que fossem feitas oferendas, entre elas, da própria
coca (Siegel, 1982). Além de religioso, o uso de folhas de coca tinha um caráter místico,
sendo empregado para predizer o futuro e o desenlace da enfermidade ou a sorte de um
7
moribundo, para preservar os defuntos dos perigos do além-túmulo, para que colheitas e
trabalho em minas fossem bem-sucedidos, entre outros (Buhler, 1946).
Texidor (1873) e Almeida (1920) consideraram a importância do valor nutritivo da
coca aos indígenas, que possibilitava que permanecessem sem se alimentar por até 3 dias,
agüentando a realização de atividades laborais pesadas e caminhadas fatigantes. Segundo
palavras de Texidor (1873) (...) a substância torna o homem mais capaz de sofrer e
agüentar a abstinência (de alimentos), à intempérie e todas as causas alterantes e
destraidoras que sem cessar rodeiam e atacam sua débil organização.
As folhas de coca também eram artigos de desfrute, ou seja, em função de seu
efeito estimulante era consumida em festas e durante viagens, afugentando a fadiga e a
fome, reconstituindo o corpo e o espírito. Também era adotada como “moeda”, sendo
trocada por outras mercadorias nas regiões onde não era produzida (Texidor, 1873; Buhler,
1946). Porém, não menos importante, as folhas de coca também estavam associadas aos
mistérios sagrados da fertilidade, da sobrevivência e da morte, assim como à práticas
curativas (Ferreira & Martini, 2001).
Ao adentrar em território americano, os hispânicos não reconheceram
imediatamente o valor cultural do uso de coca e, em 1551, o Conselho Eclesiástico de
Lima declarou ser a coca uma planta enviada pelo demônio para destruir os nativos,
simbolizando forte obstáculo à difusão do cristianismo, o que explicava o insucesso de
muitas das campanhas de conversão (La Parra, 1989; Ferreira & Martini, 2001). A
proibição não durou muito tempo, pois os espanhóis constataram que os índios não
conseguiam fazer o trabalho pesado sem o uso de coca. Assim, no período colonial, ante a
necessidade dos espanhóis em contratar mão de obra barata e abundante, estimulou-se o
uso de folhas de coca entre os indígenas, aumentando sua produtividade e diminuindo suas
demandas alimentícias (Buhler, 1946; La Parra, 1989; Ferreira & Martini, 2001).
Conforme palavras de Texidor (1873) os índios da Bolívia e Peru podem agüentar uma
viagem de 4 dias sem tomar alimento, levando um saquito cheio de coca nas minas de
prata: os mineiros não poderiam resistir à influência combinada de um trabalho forte e de
péssima alimentação se lhes tirasse a ração diária de coca que recebem.
Assim, em 1569, o Rei Felipe II da Espanha declarou o ato de mascar coca como
um hábito essencial à saúde do índio (La Parra, 1989; Ferreira & Martini, 2001).
8
Paradoxalmente, no final do século XVI, a coca foi introduzida na Espanha pelos
conquistadores com fins medicinais e como suposto afrodisíaco (Ferreira & Martini,
2001), mas foi no início do século XVII, entre os anos de 1623 a 1628 que a tradição
indígena foi adotada pelos próprios religiosos espanhóis com a finalidade de alcançar um
estado místico (La Parra, 1989).
Embora antigo, o hábito de mascar folhas tem continuado por tribos indígenas da
Bacia Amazônica, na região fronteiriça entre a Venezuela, Colômbia e Brasil, buscando no
costume, além do valor nutritivo, o bem-estar e a ação euforizante (La Parra, 1989;
Ferreira & Martini, 2001). Díaz (1998), em estudo conduzido em Cochabamba, Bolívia,
observou que o uso das folhas de coca ainda está plenamente integrado à cultura
tradicional andina e ainda se caracteriza por uma rica e complexa variedade de conteúdos
simbólicos. Assim, ainda é empregada para aumentar o rendimento e produtividade no
trabalho, principalmente se fisicamente exigente (Díaz, 1998). O uso medicinal continua
vigente, estendendo-se para fins místicos, ajudando a encontrar objetos perdidos,
aconselhamento sobre viagens, negócios, decisões sentimentais, sendo considerado como
forte símbolo de identidade dentro da comunidade, de tal forma que quem não o realiza
recebe um apelido e é isolado do restante (Díaz, 1998). os índios peruanos têm
queimado as folhas como forma de assegurar uma boa colheita de batatas (Siegel, 1982).
Porém, atualmente, tem despontado um uso moderno, reivindicado por
profissionais qualificados e intelectuais pertencentes às classes médias urbanas e não
originários de etnias andinas, quechuas ou aimarás, que tem substituído o procedimento de
mascar as folhas por chás, infusões, cataplasmas ou outras bebidas que possam cumprir
com seus fins (Díaz, 1998).
No correr dos séculos XVII e XVIII estendeu-se cada vez mais a opinião de que a
coca possuía excelentes virtudes, chegando a crer que se descobriria um fortificante cujo
uso deveria ser propagado (Buhler, 1946). Até entrar o século XIX não tinham sido feitas
investigações sérias acerca da cultura e possibilidades de propagação da planta, tampouco
observações objetivas sobre a ação e as conseqüências do consumo da coca (Buhler, 1946).
Mais tarde, entre os anos de 1859 e 1860, o químico Albert Niemann isolou, pela primeira
vez, o alcalóide principal das folhas de coca, denominando-o por cocaína, sendo que em
1898 foi descoberta a fórmula exata de sua estrutura química (Texidor, 1873; Buhler,
9
1946; Ferreira & Martini, 2001). Em 1863, um químico da Córsega, Ângelo Mariani,
inventou uma mistura de folhas de coca com vinho, denominada de “Vin Mariani”, que se
tornou o tônico mais popular da época, de tal forma que foi usado por celebridades, poetas,
papas e presidentes (Karch, 1999; Ferreira & Martini, 2001). Entre os clientes mais ilustres
de Mariani destacaram-se o Papa Pio X e Leão XIII, quem lhe entregou uma medalha de
ouro pela invenção. Entusiasmado pela aceitação do vinho, Mariani produziu também o
elixir Mariani, a pasta Mariani (goma de mascar), a pílula Mariani (semi-sólido gelatinoso
com cocaína agregada) e o chá Mariani, cuja concentração do alcalóide seria oito vezes
superior a do vinho (La Parra, 1989; Bono, 1998).
Paralelamente ao êxito comercial dos produtos lançados por Mariani, expressavam-
se, na época, opiniões científicas que respaldavam as propriedades reforçadoras da droga.
O próprio Sigmund Freud converteu-se em um dos defensores mais entusiasmados da
cocaína, contribuindo de maneira decisiva à sua divulgação através da publicação, em
1884, do livro chamado Ueber coca (Sobre a coca), na qual esboçou algumas indicações
para o emprego terapêutico da nova droga (Buhler, 1946; Karch, 1999; Ferreira & Martini,
2001). Na maior parte de sua obra, Freud se ocupou do uso interno da cocaína e indicou
suas propriedades anestésicas sobre a pele e as mucosas. No todo, Freud considerava a
cocaína como um fármaco milagroso, recomendando-a a diversos fins, a citar: no
tratamento da melancolia; contra o esgotamento físico e psíquico; na convalescença e nas
caquexias graves; no tratamento de transtornos gástricos (dispepsia); na supressão de
graves contrações reflexas musculares, empregando-a, com tal fim, na cura de asma
brônquica, mal das alturas, vômitos da gravidez, náuseas e diversos sintomas
espasmódicos citados por outros autores (Texidor, 1873; Buhler, 1946; Ferreira & Martini,
2001). O próprio Freud utilizava cocaína em doses diárias de 200mg, recomendando doses
entre 50 a 100 mg como estimulante e euforizante em estados depressivos (Ferreira &
Martini, 2001). No Brasil, o trabalho de Texidor (1873), publicado na Gazeta Médica da
Bahia, recomendava a prescrição da cocaína com o dobro de açúcar e na dose diária de 10
a 12 gramas, seja na forma de infusão, tintura, elixir ou xarope.
Ainda no ano de 1884, Karl Koller descobriu que o olho humano tornava-se
insensível à dor com o uso da cocaína, representando o primeiro passo para seu emprego
como anestésico tópico, sendo então aproveitada na oftalmologia operatória, abrindo
10
caminho para seu uso corrente em todos os domínios da cirurgia e medicina (Buhler, 1946;
Karch, 1999; Ferreira & Martini, 2001). A exaltação da cocaína por Freud, associada à sua
introdução médica como anestésico, aumentou sua procura, incentivando fortemente a
produção e a exportação das folhas de coca a partir da América do Sul (Peru, Bolívia e
Colômbia), o que fez subir bruscamente o preço da coca durante algum tempo (Buhler,
1946).
Em 1886, em Atlanta, EUA, John Styth Pemberton, no frenesi da proibição do
consumo de álcool, logrou a idéia do vinho Mariani e utilizou a cocaína na fabricação da
Coca-cola, uma bebida gaseificada, isenta de álcool e preparada com extrato de nozes
africanas, usada como tônico para o cérebro e nervos (La Parra, 1989; Bono, 1998;
Ferreira & Martini, 2001). Outros empresários lançaram produtos similares, todos
igualmente ricos em cocaína. O baixo conteúdo de cocaína nos vinhos e tônicos tornava
seu uso benigno, já que não havia relatos de toxicidade (Karch, 1999), sendo que os
problemas passaram a surgir quando da produção da cocaína semi-refinada, o que gerou a
rápida explosão de fábricas de medicações utilizando a cocaína em diversos produtos.
Deu-se início à produção de cocaína semi-refinada pela indústria farmacêutica européia
Merck (Bono, 1998; Karch, 1999), mas foi a indústria Parke Davis que revolucionou o
processo, introduzindo um mecanismo de produção de cocaína semi-refinada in-situ, ou
seja, nos próprios países produtores da planta de coca (Karch, 1999). A partir daí, algumas
fábricas passaram a oferecer cocaína em até 15 formas diferentes, incluindo cigarros,
charutos, inalantes, cristais, licores e soluções (Ferreira & Martini, 2001).
Em virtude dessa produção, os padrões sociais do uso de cocaína mudaram
drasticamente e episódios de intoxicação, tolerância, dependência e morte tornaram-se
mais freqüentes (Bono, 1998; Ferreira & Martini, 2001). Em 1892, em virtude do emprego
imoderado das preparações de cocaína, Freud publicou a continuação de “Ueber Coca”,
modificando suas impressões iniciais acerca da inocuidade da droga (La Parra, 1989;
Ferreira & Martini, 2001). A situação se tornou ainda mais preocupante após a introdução
comercial de seringas hipodérmicas, que possibilitaram que a cocaína atingisse o cérebro
em maiores concentrações e em períodos de tempo cada vez menores (Karch, 1999;
Ferreira & Martini, 2001).
11
No Brasil e no mundo, a cocaína deixou rastros na literatura, na arte e nas diversas
condutas da moda. O romancista inglês Stevenson teria escrito “Dr. Jeckyll e Mr. Hyde”
sob efeito da droga. Sir Arthur Conan Doyle, autor do personagem Sherlock Holmes era
notório consumidor de cocaína, colocando-o em diversos momentos envolvido em
problemas decorrentes da droga (La Parra, 1989; Bono, 1998; Ferreira & Martini, 2001).
Assim, operando na ausência de leis ou regulamentos que limitassem a venda ou o
consumo, a cocaína tornou-se presente em farmácias, mercearias e bares (Ferreira &
Martini, 2001). A popularidade do alcalóide, em suas distintas formas, era tamanha que os
vendedores ambulantes ofereciam-na de porta em porta e nos bares os garçons dispunham
de pequenas doses para colocá-la em bebidas alcoólicas se o cliente assim o exigisse. No
Brasil, a cocaína era vendida livremente, de tal forma que certas farmácias chegavam a
entregá-la nos domicílios, sendo solicitada através de mensageiros ou até mesmo por
telefone (Almeida, 1920). Porém, foi a partir do conhecimento das propriedades negativas
da cocaína que a classe médica mudou seu ponto de vista a respeito da droga, perdendo o
entusiasmo e interesse vigente até então. Passou-se a exercer maior controle sobre seu uso
através do surgimento de regulamentações e leis restritivas. Em 1906, nos EUA, foi
decretado o Pure Food and Drug Act que impôs as primeiras restrições à importação das
folhas de coca. Em 1912 foi decretado o Tratado de Haia e em 1914 o Harrison Act que
estabeleceu o pagamento de impostos para aqueles que fabricavam ou distribuíam cocaína
ou opiáceos, exigindo-lhes registro em agência federal específica (La Parra, 1989; Ferreira
& Martini, 2001).
Em função do descobrimento dos efeitos deletérios do uso da cocaína nos EUA e
Europa e, considerando-se que os acontecimentos sociais que se desenvolveram no
Primeiro Mundo sempre tiveram grande repercussão no Brasil, no país foi estabelecido o
Decreto-Lei Federal n 4292 de 6 de julho de 1921, que estabelecia penalidades (multa e
prisão) para a contravenção na venda de cocaína e outras drogas, além de criar um
estabelecimento especial ao tratamento de dependentes, com 2 seções, uma para internados
judiciários e outra para internados voluntários (Congresso Nacional, 1921 apud Carlini et
al., 1993, p.127). Assim, nas duas primeiras décadas do século XX, o consumo de cocaína
diminuiu não apenas como resultado das medidas do tipo legal adotadas, mas à divulgação
e maior conhecimento da população a respeito dos efeitos nocivos decorrentes do uso
12
(Almeida, 1920), além do surgimento de outras drogas estimulantes, como as drogas
anfetamínicas, mais baratas e de efeitos mais duradouros, ganhando então a preferência de
muitos dos prévios usuários de cocaína (Ferreira & Martini, 2001). O artigo de Almeida
(1920) reflete, nos primeiros anos do século XX, em território brasileiro, a preocupação
quanto ao desenvolvimento da cocainomania, fornecendo informações acerca de seus
efeitos tóxicos e apontando à necessidade de repressão penal destinada ao livre comércio e
uso da cocaína.
nas décadas de 30 e 40 o mercado se manteve nos guetos e nos espaços boêmios
e musicais dos Estados Unidos e Europa (La Parra, 1989). A partir da Segunda Guerra
Mundial, o uso de drogas e estimulantes foi aperfeiçoando-se como uma grande ameaça
social, não apenas entre a população adulta, mas também entre os jovens, que estavam a
caminho de se tornar os protagonistas de profundas mudanças sociais sem nenhum
paralelo na história. Nas décadas de 60 e 70, milhares de jovens norte-americanos viajaram
aos países do sul como integrantes dos chamados Corpos de Paz. Muitos contataram as
culturas andinas, centro e sul-americanas, delas copiando seus costumes. De volta à casa,
esses jovens predicaram os encantos de seus descobrimentos e desmistificaram o uso de
cocaína, de tal forma a ressurgir como droga de escolha para um suposto uso recreativo,
colaborando para a crença de que a droga fosse segura e sem riscos de causar dependência
(Siegel, 1982). Na década de 70, o uso também surgiu como refúgio dos jovens após as
frustrações causadas pelo conflito do Vietnã e os temores da guerra, fazendo com que nela
descobrissem as fronteiras desconhecidas da imaginação e o grande sentido de liberdade
(La Parra, 1989). A partir dos anos 80, com o aumento da produção e desenvolvimento de
eficientes mecanismos de distribuição, houve o aumento da oferta da cocaína e
consequentemente expansão e diversificação do consumo, proporcionando aos jovens, a
vitalidade e energia necessárias para adaptação à sociedade altamente competitiva que até
então despontava (La Parra, 1989; Karch, 1999; Ferreira & Martini, 2001). Dados lançados
pelo governo dos EUA, em 1996, demonstraram que o preço da cocaína havia diminuído
em 75% nos últimos 15 anos em função da superprodução nos países sul-americanos
(Karch, 1999), fazendo com que a cocaína ressurgisse com significativa expressão, de tal
forma que seu uso abusivo constituiu-se em problema cada vez maior à sociedade.
13
Porém, foi em meados da década de 80, mais especificamente em 1985, que o
problema piorou após o advento de crack, forma de administração de cocaína que atinge
altas concentrações sangüíneas em breve período de tempo, causando alto potencial de
abuso e maiores índices de dependência, tornando mais severas as complicações
neuropsiquiátricas e cardiocirculatórias, assim como os transtornos sociocupacionais,
econômicos e legais associados ao uso de cocaína, fazendo com que o mundo
testemunhasse uma nova fase de sua história (Hatsukami & Fischman, 1996; Karch, 1999).
1.1.3 Formas de apresentação, vias de administração e aspectos farmacológicos.
1.1.3.1 Etapas de extração e formas de apresentação.
A qualidade da cocaína, assim como seu valor comercial, depende do tratamento
despendido às folhas de coca desde o momento da colheita até seu transporte (Buhler,
1946). Até 1885, as folhas de coca eram levadas da América do Sul a outros países onde
eram transformadas em produtos, mas perdia-se muito da concentração da cocaína nas
longas viagens, assim como depois de transcorrido largo período de armazenamento
(Buhler, 1946; Karch, 1999; Ferreira & Martini, 2001). Assim, no Peru, foram instaladas
as primeiras fábricas para a produção da cocaína bruta, exportando-se o artigo
intermediário em lugar das folhas (Buhler, 1946). Em 1885, a indústria farmacêutica Parke
Davis revolucionou a produção ao descobrir a maneira de produzir cocaína semi-refinada
nos próprios países produtores das folhas de coca, simplificando o procedimento de
produção, diminuindo o valor e aumentando substancialmente o consumo da cocaína
(Karch, 1999; Ferreira & Martini, 2001). Esse processo de produção da cocaína bruta foi
descrito, pela primeira vez, em 1912 na revista The Chemist and Druggist.
Conforme Bono (1998), atualmente, existem duas técnicas de extração da cocaína a
partir das folhas, ou seja, a técnica de extração por solvente e a de extração por ácido. A
extração por ácido é a técnica mais comum e vantajosa, pois emprega mínimo volume de
material e embora seja a mais trabalhosa, o custo do trabalho na Bolívia, o maior país
produtor de pasta de cocaína, é inferior quando comparado ao retorno financeiro
proporcionado. O método é descrito por Bono (1998), conforme segue: As folhas de coca
são depositadas na fossa de maceração (buraco cavado no chão) e cobertas com ácido
14
sulfúrico. As folhas são maceradas e pisoteadas por trabalhadores, os pisadores, podendo
o processo durar horas para certificar-se da máxima recuperação de cocaína das folhas
de coca. Esse procedimento possibilita que a cocaína-base seja retirada das folhas
formando uma solução aquosa de sulfato de cocaína. Essa solução é filtrada para a
remoção dos materiais insolúveis, incluindo os restos de planta. Mais ácido sulfúrico é
adicionado às folhas e a segunda ou, até mesmo, terceira extração são realizadas a fim de
possibilitar a recuperação máxima da cocaína. Feitas as extrações e filtrações, um
excesso de solução de carbonato é adicionado à solução acidificada a fim de neutralizar o
excesso de ácido, formando a pasta de coca crua. A pasta de coca é então recuperada
através de pequeno volume de querosene até que ocorra a separação da solução em duas
nítidas camadas. A querosene é removida através da adição de solução diluída de ácido
sulfúrico e logo após uma base inorgânica é adicionada para precipitar a pasta. Para
Díaz (1998) duas formas de pasta de cocaína, a lavada e a chicleteada. A pasta lavada
é adquirida através da adição de ácido clorídrico à pasta de coca, precipitando a substância
e confinando as impurezas à superfície da solução. É de cor branca e estima-se que
contenha 90% de sulfato de cocaína. A pasta chicleteada, de consistência semelhante a da
goma de mascar, obtém-se após queimar a pasta base. O óleo formado, quando ainda
quente, se mistura com água e solidifica-se tomando essa consistência particular.
Independente do tipo, a pasta de coca é um sal básico, composta por sulfato de
cocaína em concentrações que variam de 30 a 90%, pouco solúvel em água, de tal forma
que não é absorvida pelas mucosas. A pasta é eficientemente fumada, porém, como
contém elevado grau de impurezas residuais do processo de elaboração, quando inaladas,
produzem uma variedade de efeitos tóxicos (Siegel, 1982; Díaz, 1998).
O passo seguinte da extração consiste na dissolução da pasta base em acetona, éter
ou em uma mistura de ambas. Uma solução diluída de ácido clorídrico em acetona é
preparada. As duas soluções são misturadas e quase que imediatamente forma-se o
cloridrato de cocaína (COC.HCl) que precipita para o fundo do recipiente usado. A
solução é despejada sobre lençóis de tal forma que o cloridrato é filtrado do solvente. Os
lençóis são secos para eliminar o excesso de acetona e o cloridrato de cocaína de alta
qualidade é seco em forno microondas, sob lâmpadas aquecidas ou à luz solar e
empacotado para comércio. O cloridrato de cocaína, vulgarmente conhecido como pó de
15
cocaína, obtido pela primeira vez por Willstatt em 1902 (Buhler, 1946; Ferreira & Martini,
2001), é branco e cristalino, constituindo a composição da cocaína legal e geralmente
da ilícita.
No que tange à forma ilícita, para aumentar os lucros, traficantes de rua adulteram-
no com outros compostos, sejam substâncias inertes ou ativas, compondo a “droga de rua”.
Como é branco, geralmente são adicionados outros compostos inertes e brancos para
aumentar o volume, os diluentes, como talco, farinha, açúcares e sais como bicarbonato de
sódio e sulfato de magnésio. os adulterantes são drogas ativas, como anestésicos locais
(procaína, benzocaína, lidocaína ou tetracaína) ou estimulantes de baixo custo (epinefrina),
que podem potencializar os efeitos simpatomiméticos da cocaína, aumentando o risco da
toxicidade associado ao uso (Siegel, 1982; Chasin & Mídio, 1991; Bono, 1998; Weaver &
Schnoll, 1999). Por outro lado, a presença significativa de adulterantes e diluentes no
cloridrato acaba reduzindo os teores de cocaína a valores entre 15 a 90% da amostra, de tal
forma que os efeitos psicotrópicos podem ser induzidos pelos adulterantes ao invés da
própria cocaína. Observa-se que a lidocaína e epinefrina, por exemplo, podem ser fumadas
e são psicotrópicas, mimetizando os efeitos da cocaína (Siegel, 1982).
A forma de cloridrato de cocaína não se volatiliza e é termolábil, logo, se
decompõe rapidamente com o aumento da temperatura, não se prestando a fumar. Como é
hidrofílica, ou seja, solúvel em água, é comumente administrada por via intranasal
(aspiração nasal), por via oral e, finalmente, por via parenteral, intravenosa ou endovenosa
após dissolução em água (Chasin & Mídio, 1991 e 1997). relatos também do uso
intramuscular e absorção pela mucosa dos órgãos genitais (Díaz, 1998).
O crack (COC-base) é o termo usado para descrever a forma da cocaína-base que
foi convertida a partir do cloridrato de cocaína. Conforme Bono (1998), o cloridrato de
cocaína pode ser convertido em cocaína-base através de dois procedimentos. O primeiro
método envolve a dissolução do cloridrato de cocaína em água, adicionando-se à solução
bicarbonato de sódio ou amoníaco. Ferve-se a água por curto intervalo de tempo até que
todo o precipitado de cocaína-base seja transformado em óleo. Adiciona-se gelo ao
recipiente, geralmente uma tigela de vidro funda. Assim que a água esfria, os pedaços de
óleo solidificam-se e precipitam para o fundo do recipiente. Depois de formada toda a
cocaína-base e resfriado o recipiente, retira-se a água deixando apenas a cocaína-base.
16
Uma vez formada, a cocaína-base pode ser cortada com uma faca ou quebrada em pedras,
secas sob lâmpada aquecida ou em forno microondas. Não é incomum, ao se analisar tal
derivado de cocaína, encontrar-se a presença de bicarbonato sódico. Na verdade, é o som
resultante da queima do bicarbonato sódico das pedras, durante o procedimento de uso,
que originou a denominação crack a essa forma de apresentação da cocaína (Inciardi et al.,
1993).
O segundo método de produção da cocaína-base, a partir do cloridrato de cocaína,
envolve a dissolução do sal em água. O bicarbonato sódico ou amoníaco é adicionado à
mistura e agitado, seguido da inclusão de éter e nova agitação. Então, a mistura separa-se
em duas camadas, o éter decanta deixando a fase aquosa. Permite-se que o éter evapore,
formando cocaína de alta qualidade, a “freebase” ou base livre (Siegel, 1982).
Interessante notar que nenhum dos procedimentos altera a composição química da cocaína,
mas apenas muda a maneira com que é consumida.
Embora o crack e a “freebase” sejam cocaína no estado de base, livres do ácido
clorídrico (HCl) e tenham similitudes físico-químicas, o crack apresenta menor grau de
pureza, em função de carregar os adulterantes do cloridrato de cocaína, além dos produtos
resultantes e excedentes do processo de extração, de tal forma que sua porcentagem de
pureza reduz-se até a 40% (Siegel, 1982; Inciardi et al., 1993; Chasin & Mídio, 1997;
Bono, 1998; Díaz, 1998), o que o torna mais barato, contribuindo à opção do uso de crack
dentre outras formas de cocaína. Para Inciardi et al. (1993), a “freebase” é uma droga, um
produto da cocaína, convertido ao estado de base depois da remoção química dos
adulterantes presentes no cloridrato de cocaína, enquanto que o crack é convertido sem que
essa remoção seja realizada. Assim, crack e “freebase” são termos que designam formas de
apresentação da cocaína com graus distintos de pureza. Siegel (1982), ao descrever os
procedimentos de preparo da “freebase”, não conseguiu estabelecer a distinção entre tal e o
crack, porém, constatou que o processo de produção de “freebase” realmente possibilitaria
a eliminação das impurezas (diluentes e adulterantes) do cloridrato de cocaína.
Independente da forma e da presença ou não dos adulterantes, a cocaína-base é
substância cristalina, branca ou transparente, inodora, levemente volátil e com ponto de
fusão entre 96°C e 98°C (Bono, 1998). A “freebase” tem consistência granulosa e o crack
se solidifica em pequenas pedras. Embora ambos sejam de cor branca, o crack pode
17
adquirir tonalidade marrom conforme o processo de elaboração e as impurezas do
cloridrato de cocaína empregado (Díaz, 1998). Ambos são pouco solúveis em água, não
permitindo seu consumo intravenoso e tampouco sua absorção através das mucosas. Como
não se decompõe nas temperaturas requeridas à vaporização, presta-se a ser fumado
(Chasin & Mídio, 1991 e 1997; Díaz, 1998). Assim, a cocaína-base, seja como crack ou
“freebase”, é fumada em cachimbos de vidro ou de outros materiais (Siegel, 1982; Barrio
et al., 1998; Díaz, 1998; Nappo et al., 2003). Esse processo de inalar os vapores da
cocaína-base é denominado por baseballing (Siegel, 1982) ou freebasing (Inciardi et al.,
1993; Díaz, 1998), o que causa certa confusão de termos, pois geralmente os produtos são
confundidos com o método de consumo. Na Espanha, por exemplo, nos círculos de
consumo, utiliza-se o termo base, en base ou basuco para referir-se tanto ao método de
consumo como ao crack. A confusão é ainda maior ao dar-se conta que basuco ou basuca
é a denominação habitual da pasta de cocaína na Colômbia (Díaz, 1998).
Embora simples, o freebasing é procedimento perigoso quando empregado à
“freebase”, que quantidades residuais e significativas de éter, empregadas durante o
processo de extração, mantêm-se em sua composição, possibilitando o acontecimento de
ignições, causando incêndios acidentais e colocando sério risco à vida do usuário (Siegel,
1982; Inciardi et al., 1993; Bono, 1998; Díaz, 1998), fato que juntamente a outros
contribuiu para a adesão de usuários ao crack.
1.1.3.2 Vias de administração e diferenças farmacológicas associadas.
A cocaína, de nome químico benzoylmethylecgonina, é anestésico local com
propriedade simpatomimética, que produz resposta fisiológica estimulatória sobre o SNC
(Sistema Nervoso Central) pela qual é comumente empregada como fármaco de abuso ou
com fins recreativos (Stahl, 2002). A capacidade de produzir reforço positivo é atribuída à
ação sobre as vias dopaminérgicas mesocortical e mesolímbica, comumente envolvidas
nos mecanismos de euforia. Se aceita que seus efeitos sejam mediados pelo bloqueio dos
transportadores pré-sinápticos da dopamina, nas vias mencionadas, causando o acúmulo
do neurotransmissor na fenda sináptica e nos receptores pós-sinápticos, intensificando sua
atividade, justificando o característico comportamento compulsivo pela busca do fármaco
18
(Morris, 1998; Weaver & Schnoll, 1999; Dackis & O’Brien, 2001; Stahl, 2002). Além de
atuar na via de neurotransmissão dopaminérgica, parece atuar também na inibição da
recaptação de noradrenalina e serotonina, estimulando também a liberação de adrenalina
pelas glândulas adrenais (Kach, 1999). Embora tanto humanos quanto não-humanos
administrem-se cocaína de forma repetida, a magnitude e a rapidez de seus efeitos é
importante fator para o reforço do comportamento e para o potencial de abuso da droga.
Levando-se isso em consideração, a via de administração tem importante papel na rapidez
de início, na intensidade e duração dos efeitos da cocaína (Hatsukami & Fischman, 1996).
Conforme Díaz (1998), as vias de auto-administração de cocaína mais
frequentemente citadas são: (a) oral para as folhas de coca (acullico); (b) oral, (c)
intranasal e (d) intravenosa ao cloridrato de cocaína, (e) fumada à pasta de coca e (f) à
forma de cocaína-base, distintas entre si quanto à velocidade de absorção e concentração
plasmática máxima (Hatsukami & Fischman, 1996), cujas características são descritas
sucintamente abaixo:
(a) mastigar folhas de coca é prática relativamente segura, que contêm apenas de 0,5 a
1% de cocaína. Embora a absorção bucal seja inicialmente efetiva, o efeito vasoconstrictor
local da cocaína diminui a absorção, logo, o pico plasmático alcançado é relativamente
baixo. O tempo de início dos efeitos é de 5 a 10 minutos, com duração máxima entre 45 e
90 minutos. Ainda quanto às folhas de coca relatos de indígenas que as fumavam
juntamente com folhas de tabaco, atingindo efeitos semelhantes ao ato de mascá-las
(Buhler, 1946; Siegel, 1982);
(b) a administração oral do cloridrato de cocaína também resulta em baixos níveis
sanguíneos da droga. Entre 70 a 80% da dose é perdida como resultado do efeito de
primeira passagem hepático. O início da ação ocorre entre 10 a 30 minutos após ingestão e
o pico de efeito ocorre próximo a uma hora (Hatsukami & Fischman, 1996);
(c) a via intranasal (aspirada) é influenciada pelo efeito de vasoconstrição da cocaína sobre
a vascularização nasal, o que limita sua absorção. Depois de aplicada, o início da atividade
ocorre de dois a três minutos, atingindo seu máximo entre 15 a 20 minutos, sendo que a
19
duração total da ação é de 30 a 45 minutos (Hatsukami & Fischman, 1996). A
concentração plasmática da cocaína, administrada por via intranasal, condiciona-se a
determinados fatores, a citar: (1) características biológicas individuais no que se refere aos
níveis de vasoconstrição da mucosa frente à cocaína; (2) diferenças na efetividade da
técnica de aspiração do fármaco e (3) biotransformação vigente na própria mucosa (Chasin
& Mídio, 1997);
(d) dentre todas as vias, a intravenosa é a mais eficiente, de forma que 100% da dose
administrada atinge a corrente sanguínea. Após injeção, o início da ação dá-se entre 15 a
25 segundos e a duração total estende-se de 10 a 20 minutos. O efeito máximo dá-se entre
3 a 5 minutos. A rapidez de início, a curta duração dos efeitos e os maiores níveis
sanguíneos após a injeção, fazem com que essa via tenha potencial indutor de dependência
maior ao da via intranasal (Hatsukami & Fischman, 1996).
Embora o ponto de fusão do cloridrato de cocaína seja alto, pode ser fumado
quando inserido em cigarros de tabaco ou maconha, porém, a maioria da cocaína sofre
pirólise, restando pequena quantidade na forma intacta, proporcionando pouca ou nenhuma
intoxicação (Siegel, 1982);
(e) fumar pasta de coca causa efeito rápido e intenso, porém curto em duração. Os efeitos
iniciam entre 8 e 10 segundos e duram de 5 a 10 minutos, sendo que o efeito máximo
ocorre entre 1 e 5 minutos (Hatsukami & Fischman, 1996);
(f) finalmente, os efeitos de fumar-se cocaína-base acontecem rápida e intensamente
devido a quatro fatores (Chasin & Mídio, 1997): (1) a forma da cocaína-base necessita de
menor temperatura para sublimar em relação ao cloridrato de cocaína; (2) a ampla área de
superfície pulmonar possibilita rápido acesso da cocaína-base à corrente sanguínea; (3) a
curta distância que a cocaína-base precisa atravessar até o encéfalo, quando comparada à
longa distância para a via intravenosa, contribui para a rapidez de resposta; (4) a cocaína-
base é mais lipossolúvel que a forma cloridrato de cocaína, possibilitando rápida passagem
ao Sistema Nervoso Central (SNC).
20
O início de ação ocorre entre 8 a 10 segundos após inalação, mais rápido se
comparado aos 25 segundos necessários à via intravenosa. A duração do efeito da cocaína-
base é de 5 a 10 minutos, com pico máximo de 1 a 5 minutos, de tal forma que a
administração deve ser repetida a cada 20 minutos, a fim de manter o estado de euforia e
evitar a depressão pós-uso (Hatsukami & Fischman, 1996).
Porém, a eficiência do ato de fumar depende de alguns fatores, entre eles : (1)
porção do fármaco destruída por pirólise ; (2) temperatura aplicada para sublimar a
cocaína; (3) matriz utilizada para aquecimento da cocaína; (4) condensação da cocaína-
base nos dispositivos empregados pra fumar, entre outros (Chasin & Mídio, 1997).
Pelo acima mencionado, nota-se que de todas as vias, a oral alcança mais
lentamente a máxima concentração sanguínea em função de retardos de sua absorção.
Como a cocaína é absorvida na forma não-ionizada e como o meio ácido do estômago
propicia sua ionização, a absorção vem a ocorrer no meio menos ácido do intestino
delgado, retardando o processo como um todo (Chasin & Mídio, 1991). Já a via intranasal
é a mais comum, sendo o marco inicial do uso dos derivados de cocaína pela população
usuária (Siegel, 1982; Murphy et al., 1989; Du Pont, 1991; Cornish & O’Brien, 1996;
Hatsukami & Fischman, 1996; Barrio et al., 1998; Ferri & Gossop, 1999; Dunn &
Laranjeira, 1999; Weaver & Schnoll, 1999; Ferri et al., 2004), embora usuários de crack
pareçam iniciar tal histórico com o próprio crack (Guindalini et al., 2006).
Quando comparada às vias intravenosa e fumada, a via intranasal produz
concentrações plasmáticas menores que se estendem por prolongado período de tempo
(Chasin & Mídio, 1991). a via fumada resulta na maior rapidez de aparecimento e
intensidade dos efeitos, embora apresente velocidade de absorção e concentração
plasmática de pico semelhante à via intravenosa (Chasin & Mídio, 1991; Hatsukami &
Fischman, 1996; Díaz, 1998; Karch, 1999).
No que se refere aos padrões de uso da cocaína, conforme a via de administração,
parece acontecer uma mudança drástica nos últimos anos. Devido ao advento do crack, as
vias intranasal e intravenosa tem sido paulatinamente substituídas pela via fumada. Kandel
& Yamaguchi (1993) demonstraram que a chance de um usuário de cocaína passar da via
intranasal à fumada é três vezes maior que o recíproco, de tal forma que as razões parecem
21
embasar-se no alto potencial de abuso de crack (Chen & Anthony, 2004), associado
principalmente à rapidez de início e magnitude dos efeitos (Miller et al., 1989; Ringwalt &
Palmer, 1989; Du Pont, 1991; Hatsukami & Fischman, 1996). Porém, além dos aspectos
farmacocinéticos e farmacodinâmicos, fatores ambientais e sociais têm considerável
influência no poder de decisão e adesão do usuário ao crack (Brower & Anglin, 1987;
Smart et al., 1991; Inciardi et al., 1993; Hatsukami & Fischman, 1996; Chasin & Mídio,
1997; Díaz, 1998). Entre os fatores ambientais destaca-se a facilidade de acesso (em
termos de preço e distribuição) que possibilitou que pequenas quantidades de cocaína de
alta qualidade se tornassem disponíveis a pessoas de baixa condição socioeconômica e a
estudantes de ensino médio (Díaz, 1998). A facilidade de uso também deve ser
considerada. Como o crack é fumado em cachimbos ou cigarros (de maconha ou tabaco), o
uso da parafernália e da variedade de reagentes químicos então empregados ao uso de
injetáveis tornou-se desnecessária (Inciardi et al., 1993; Hatsukami & Fischman, 1996),
facilitando o uso e a adesão ao crack. Além disso, socialmente, o ato de fumar é
amplamente aceito e os riscos associados ao crack, no que concerne ao contágio e
transmissão por HIV, tem sido compreendidos como consideravelmente menores,
constatação que atualmente tem sofrido profundas modificações, principalmente após o
advento da forma injetável de crack (Hunter et al., 1995; Jacobs, 1999; Clatts et al., 2002;
Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006; Rhodes et al., 2006)
Embora o crack seja pouco solúvel em água, o uso injetável tem sido relatado na
Europa (Hunter et al., 1995; Rhodes et al., 2006) e nos EUA (Jacobs, 1999; Clatts et al.,
2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006). Quando se informa a respeito de seu
uso intravenoso, deve entender-se que previamente é quimicamente modificado. Para isso,
os consumidores o dissolvem em ácido (vinagre ou limão) e o convertem em um sal
solúvel, possivelmente revertendo-o ao cloridrato de cocaína ou qualquer outro sal. Às
vezes, o crack é dissolvido em álcool e aquecido em solução, de tal forma que o processo
produz uma substância viscosa que entope as agulhas das seringas habitualmente
utilizadas. Neste caso, costuma-se usar outro tipo de agulha, mais espessa e difícil de
obter-se, facilitando o compartilhamento com todos os riscos que acarreta (Hunter et al.,
1995). A prática geralmente se deve a mudanças na disponibilidade de cloridrato de
22
cocaína no mercado, indicando a preferência pela via endovenosa num setor da população
consumidora (Hunter et al., 1995).
Assim, o tulo de “droga segura” dado previamente a crack, tem caído por terra,
que a via intravenosa tem introduzido na cultura comportamentos de risco que até então
eram específicos à população de usuários de drogas injetáveis, a citar: (a) injeção diária;
(b) compartilhamento do equipamento necessário à injeção (seringas, colheres, algodão e
solventes necessários à dissolução da droga); (c) alguma vez na vida ter realizado o
“backloading” de seringas; (d) ter freqüentado uma “shooting gallerie”; (e) alguma vez ter
injetado com parceiros portadores de HIV ou Hepatite e, finalmente (f) ter desempenhado
sexo desprotegido ou ter trocado sexo por droga com usuários de drogas injetáveis (IDU’s)
(Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006).
1.2 O Crack.
1.2.1 As origens do crack nos EUA.
Em virtude do crack e da “freebase” tratarem-se de cocaína-base, porém distintas
quanto ao grau de pureza, e por serem administrados através da via fumada, suas origens
são largamente confundidas. Historicamente, ao se desconsiderar a forma de cloridrato, o
ato de fumar cocaína, nos EUA, teve início como “freebase”, mais especificamente na
Califórnia e no ano de 1974 (Siegel, 1982), podendo-se dizer que sua descoberta foi
acidental e causada por confusões etimológicas (Siegel, 1982).
No final dos anos 60 e início dos anos 70, traficantes de cloridrato de cocaína
presenciaram o ato de fumar pasta de coca ao visitarem países sul-americanos como Peru,
Colômbia e Equador. De volta aos EUA, frente aos efeitos altamente recompensadores da
pasta de coca, conhecida até então como pasta-base, alguns deles sentiram-se estimulados
a produzi-la, crendo tratar-se da forma da cocaína conhecida como “base”. Assim, ao
consultar o termo “base” (em referência à “freebase”) no Merck Index, químicos
preparavam a “freebase” a partir do cloridrato de cocaína, crendo tratar-se da pasta de
coca, fumando-a da mesma maneira e sob os mesmos padrões previamente observados na
América do Sul (Siegel, 1982). Embora alguns cressem novidade, o procedimento de
preparo da “freebase” era conhecido por alguns usuários de cocaína, adotando o
23
procedimento como forma de purificação do cloridrato vendido nas ruas, deste eliminando
os adulterantes e diluentes, de tal forma que o transformavam em “freebase” e novamente
em cloridrato de cocaína para uso aspirado ou endovenoso (Siegel, 1982).
Para o preparo da “freebase” era necessário ter equipamentos e reagentes
apropriados, conjunto comumente denominado por parafernália. Inicialmente, as lojas
destinadas à venda da parafernália consistiram no fator determinante à introdução e
divulgação do ato de fumar-se cocaína, na forma de “freebase”, nos EUA. Aliás, a
indústria da parafernália sempre foi o parâmetro das tendências quanto ao uso de drogas,
refletindo a necessidade social da procura de novas experiências psicoativas e efeitos
psicologicamente recompensadores (Siegel, 1982).
Nos anos 70, a parafernália era artesanalmente produzida e comercializada em
escala comunitária, a princípio confinada apenas ao Estado da Califórnia. O primeiro
cachimbo e o primeiro “kit” de reagentes tornaram-se disponíveis na Califórnia no ano de
1975, porém, foi no ano de 1978 que a distribuição dos cachimbos e kits espalhou-se,
atingindo, finalmente, quinze dos Estados Norte-americanos, de tal forma que, em 1980,
cerca de um milhão de pessoas haviam experimentado a “freebase (Siegel, 1982).
Assim, lojas em São Francisco, Los Angeles, Chicago, Nova Iorque e Miami relataram
dificuldades em manter o estoque para atender o aumento da demanda e mesmo as lojas
que o tinham obrigaram-se a permanecer abertas até as primeiras horas da madrugada para
atender aos usuários insones (Siegel, 1982).
A prosperidade dos negócios aumentou ainda mais após o desenvolvimento de
mídia especializada à divulgação da “freebase” e sua parafernália, sendo muitos os artigos
que ensinavam o procedimento a seu preparo e uso, ressaltando as virtudes e vantagens do
uso da “freebase”, assim como segue: Limpe seu (cloridrato de cocaína) e aproveite-o
ainda mais. Aprenda porque a “freebase” é o fenômeno da década. Uma vez que a boa
base é fumada, vc não larga mais (Siegel, 1982). Outro artigo fazia referência ao método
de “freebasing” como procedimento prazeroso, comparando-o a um “orgasmo cerebral”
(Siegel, 1982). Porém, foi a partir da década de 80 que a mídia passou a descrever o
outro lado da moeda, enfatizando os aspectos negativos associados ao uso de “freebase”, a
citar: (a) padrão compulsivo de uso (“binge”); (b) danos pessoais decorrentes do abuso; (c)
possível desenvolvimento de dependência, que até então não se acreditava que o uso de
24
“freebase” pudesse gerá-la e, finalmente (d) relato a respeito dos perigos de incêndio
decorrentes do emprego de éter e outros solventes inflamáveis no processo de preparo de
“freebase(Siegel, 1982). Esses acontecimentos, tomados em conjunto, fizeram com que a
indústria da parafernália substituísse o termo “freebase” por “alcalóide” ou “pasta
orgânica para que não interferisse em seu uso e consequentemente, em seu comércio
(Siegel, 1982).
Em termos científicos, o primeiro relato a respeito da “freebase” apareceu no ano
de 1972 através da publicação do livro The gourmet cokebook (Inciardi et al., 1993), que
abordava cada aspecto da cocaína, no que concerne a seu histórico e lendas, uso e
comércio, processo de extração, análise e, finalmente, efeitos e ramificações legais.
Curiosamente, o livro fez menção passageira à cocaína-base, definindo-a como a cocaína
reconstituída ao estado de base e na forma de pedra (Inciardi et al., 1993). Porém, foi
na década de 80 que o ato de “freebasing” alcançou audiência nacional através da
experiência quase-morte do ator Richard Pryor após ter sofrido uma explosão resultante do
uso de “freebase” (Siegel, 1982; Inciardi et al., 1993).
O termo crack não tinha sido mencionado até então (Inciardi et al., 1993), porém,
assim que foi desenvolvido tornou-se a forma mais popular da cocaína nos EUA (Smart,
1991). Em 1985, nas páginas do prestigiado “New York Times”, a história sobre um
programa de tratamento de dependência de drogas identificou o crack, pela primeira vez,
na imprensa escrita, como ilustrado na época: Nesse ano, três adolescentes procuraram
pelo tratamento para cocaína por causa de uma nova forma de uso denominada por crack
que são pedaços semelhantes a pedras de cocaína base-livre (Inciardi et al., 1993). Foi
então que, a partir do ano de 1986, a cobertura sobre crack foi intensa, de forma que
escritores e repórteres começaram a correr atrás das histórias e dos acontecimentos mais
recentes sobre a droga.
Embora crack e “freebase” sejam formas distintas da cocaína-base, o crack parece
ter surgido como a maneira de escapar-se dos incêndios acidentais causados até então pelo
emprego de solventes inflamáveis durante o processo de preparo da “freebase”, como o
éter, de tal forma a proporcionar o aparecimento de outras formas de apresentação da
cocaína (Siegel, 1982).
25
Para Inciardi (1987), o surgimento e o “boom” de crack nos EUA, na década de 80,
foi decorrente de questões político-econômicas associadas ao comércio internacional de
cocaína, como segue: A redescoberta do crack durante o início dos anos 80 aconteceu
simultaneamente nas costas Leste e Oeste dos EUA como o resultado da tentativa do
governo colombiano em reduzir a produção ilícita de cocaína em seus domínios ao
restringir a quantidade de éter disponível para a transformação da pasta em cloridrato de
cocaína. O resultado da estratégia consistiu na passagem da pasta-base da Colômbia
para o sul da Flórida, para conseqüente conversão em cloridrato de cocaína,
atravessando a América Central e Caribe. A passagem pelo Caribe fez com que a
população da ilha reconhecesse o procedimento de fumar-se pasta de coca, de tal forma
que desenvolveram o precursor do crack em 1980, sendo o protótipo um produto
composto de pasta de coca, bicarbonato sódico, água e rum.
Com a reputação do sul da Flórida como centro importador e distribuidor de
cloridrato de cocaína e crack, Miami, entre os grandes centros americanos, foi o mais
intimamente associado ao uso de crack, tendo sido detectado nas ruas da cidade no ano de
1982 e comercializado em muitas das “shooting galeries” a partir de 1981 (Inciardi &
Surrat, 2001). Ainda nos anos 80, as crack-houses proliferaram em Miami tornando-se, no
campo de drogas, o maior problema de saúde pública da cidade (Inciardi et al., 1993), o
que despertou e ainda desperta interesse sobre a cultura, orientando e justificando o
extenso número de artigos a respeito da droga, desde a época de seu aparecimento até os
dias de hoje.
1.2.2 O crack na Europa, na Espanha e na comunidade autonômica de Catalunya.
Na União Européia (UE) calcula-se que cerca de 10 milhões de indivíduos tenham
experimentado cocaína pelo menos uma vez na vida, o que equivale a mais de 3% da
população adulta. Os dados nacionais sobre o mencionado consumo variam entre 0,5% e
6%, de tal forma que a Espanha é um dos países no extremo superior deste intervalo de
variação (5,9%), acompanhada da Itália (4,6%) e Reino Unido (6,1%) (EMCDDA, 2006).
À semelhança de outras drogas ilegais, o uso na vida de cocaína é mais freqüente entre
adultos jovens, de faixa etária entre 15 e 34 anos, variando a prevalência de uso entre 1% e
26
10% (EMCDDA, 2006). Novamente, quando considerada a prevalência de uso dentro dessa
faixa etária, a Espanha desponta com um dos níveis mais elevados entre os países da União
Européia (UE), com 8,9% (EMCDDA, 2006).
Além do considerável uso no país, metade das apreensões e dos volumes
apreendidos de cocaína na UE, nos últimos cinco anos, tem sido feitos na Espanha,
podendo, juntamente com o elevado uso, serem justificados pelo ponto estratégico que o
país ocupa no tráfico da droga a partir dos países da América Latina como Colômbia, Peru
e Bolívia (EMCDDA, 2006). Soma-se a isso a constatação de que a Espanha é um dos
países onde são numerosos os pedidos de tratamento associados ao uso de cocaína, além de
ser o país com maior freqüência de urgências hospitalares implicadas ao uso dessa droga
(OEDT, 2001).
No que concerne ao crack, de forma geral, o uso parece ser relativamente baixo para
a população européia (EMCDDA, 2006). Especificamente na Espanha, quando se fala em
cocaína assume-se que se trata quase sempre da forma de cloridrato, já que o consumo de
crack ainda está pouco estendido (Anta, 1998; Barrio, 1998; Spanish National Report,
2005; EMCDDA, 2006). Em território espanhol, o uso de crack tem sido identificado entre
policonsumidores de drogas, sendo que o primeiro relato de seu uso deu-se em 1983 por
uma heroinômana na cidade de Sevilla, mas o uso regular foi registrado apenas no início da
década de 90 na comunidade autonômica de Andaluzia (Anta, 1998). Atualmente, na
Espanha, as evidências mostram que se está produzindo um fenômeno de difusão do uso de
crack entre os consumidores de heroína, na direção sudoeste a nordeste do país,
caminhando então da comunidade de Andaluzia à região central espanhola (Madrid) e,
finalmente, à região nordeste (Catalunya) (Anta, 1998; Barrio et al., 1998). Assim, entre a
população geral, de faixa etária entre 15 e 64 anos, a prevalência do uso na vida, de crack,
foi registrada em 0,5% e o uso no último ano é equivalente a 0,1% (Spanish National
Report, 2005; EMCDDA, 2006).
No que concerne especificamente à Catalunya, é uma das comunidades autonômicas
espanholas, da qual Barcelona é a capital, com cerca de 1.600.000 habitantes.
Especificamente quanto ao uso de drogas, na Catalunya, o uso na vida de cocaína é
equivalente a 5,9% entre os indivíduos de faixa etária entre 15 e 64 anos, consistindo na
segunda droga que mais estimula a busca de tratamento por dependentes de drogas (OTD,
27
2006). Quanto à via de administração da cocaína, a forma parenteral é a mais comum na
comunidade, acompanhando pari-passu a via de administração da heroína (Anta, 1998;
Barrio et al., 1998). Assim, como o uso de heroína fumada é pouco comum, o uso de
cocaína na forma de crack também o é (Anta, 1998; Barrio et al., 1998). De forma geral, na
comunidade de Catalunya a prevalência de uso na vida de crack tem sido registrada em
0,5%, diminuindo ao se considerar o uso no último ano (0,1%) e no último mês (0%)
(OTD, 2006).
Como o uso de cocaína tem aumentado consideravelmente na Europa,
especialmente na Espanha (EMCDDA, 2006) e como o uso de crack tem sido associado ao
consumo de outras drogas, esforços têm sido feitos na última década para o detalhamento
do uso e do perfil do usuário de cocaína e crack, não apenas a fim de desenvolver medidas
de controle, mas com fins de prevenção, tratamento e reinserção sócio-laboral do usuário
(Diaz et al., 1992; Bieleman et al., 1993; Diaz et al., 1998).
1.2.3 O crack no Brasil e na cidade de São Paulo.
o Brasil, em função de sua posição geográfica, tornou-se importante mercado ao
consumo de cocaína, assim como importante rota destinada a seu tráfico (EMCDDA,
2006). No que concerne ao crack, o primeiro relato de uso na cidade de São Paulo parece
ter sido feito depois do ano de 1989 (Dunn et al., 1996).
No final dos anos 70 e início dos anos 80, na cidade de São Paulo, percebeu-se que
a ingestão de cocaína por via intravenosa era comum e foi gradativamente substituída pelo
uso de crack (Inciardi, 1993; Ferri et al., 1997; Díaz, 1998, Nappo et al., 1999),
principalmente em decorrência da necessidade dos usuários em evitar o contágio por HIV
e outras doenças infecto-contagiosas transmitidas por contato sanguíneo. Aparte, tão
importante quanto ao aspecto de saúde, a transição de vias foi extensamente influenciada
pela visão econômica dos traficantes (Nappo, 1996), de tal forma que, a princípio, o uso de
crack foi “imposto” aos usuários, que na falta de outras opções, viram-se obrigados a
aderir ao crack. Logo, a intensa euforia dos efeitos de crack, de rápido início e curta-
duração, associados à sua fácil administração, uso compulsivo e rápida instalação de
28
dependência tornavam os usuários “fregueses por toda vida”, o que de fato correspondia
em vantagem econômica e lucro certo ao traficante (Nappo, 1996).
Em função dessa e outras possíveis estratégias, a prevalência do uso de crack
aumentou de 5,2% antes de 1989 a 65,1% no período entre 1995-1997 (Ferri et al., 1997;
Ferri & Gossop, 2004), em que, conforme notificações recebidas no Centro de Controle de
Intoxicações e Centro de Assistência Toxicológica da cidade de São Paulo, o crack e
outros derivados da cocaína tornaram-se as principais drogas ilícitas consumidas na cidade
(Gikas et al., 1997). Outro indicador epidemiológico a respeito do uso de crack na cidade
de São Paulo, na época de seu aparecimento, foi o número de apreensões da droga pela
polícia. A primeira apreensão de crack, com análise nos laboratórios do Serviço Técnico
de Toxicologia Forense (STTF), aconteceu no ano de 1991 (Inciardi, 1993). A partir daí, o
número de apreensões veio a aumentar, progredindo de 204 registros em 1993 para
1906 casos no ano de 1995 (Inciardi, 1993), apontando à popularização da droga em
território brasileiro, dado que levou a Organização Mundial de Saúde (OMS) a incluir o
Brasil na categoria de países em que o uso de cocaína e problemas dele decorrentes não
estão totalmente divulgados, mas causam preocupação crescente (WHO, 1992).
Desde o período de seu aparecimento, em virtude da disponibilidade e facilidades
associadas ao uso de crack, atualmente testemunha-se o crescimento de seu uso em
contexto brasileiro. Conforme o II Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas
psicotrópicas nas 108 maiores cidades brasileiras (CEBRID, 2005), a prevalência de uso
na vida de crack é de 0,7% da população brasileira, correspondendo, em termos numéricos,
a 381 mil pessoas, o dobro do valor referente aos 189 mil registrados em 2001 (Carlini et
al., 2001). Embora a prevalência de uso de crack pareça ter duplicado de um levantamento
a outro, deve-se ter cuidado ao se fazer inferências, já que em função da prevalência de uso
ser baixa em ambos os levantamentos, diminui-se a precisão do dado ao tentar extrapolá-la
ao valor da população estimada.
Dentre as regiões brasileiras, a região Sul é a de maior uso na vida de crack, com
prevalência de 1,1%, seguida imediatamente pela região Sudeste com 0,9% (CEBRID,
2005), ordem de prevalência já detectada em 2001 (Carlini et al., 2001).
Em contexto brasileiro, outros índices epidemiológicos específicos têm apontado
ao uso de crack, seja entre estudantes de ensino fundamental e médio da rede pública de
29
ensino (prevalência de 0,7%) (Galduróz et al., 2004) e por meninos e adolescentes em
situação de rua (prevalência de 15 a 26%) (Noto et al., 2003), apontando à popularização e
adesão de diferentes estratos socioeconômicos ao uso de crack.
1.3 Crack: Perfil do usuário e Padrão de uso.
1.3.1 O Crack na América do Norte.
Smart (1988), Ringwalt & Palmer (1989) e Lillie-Blanton et al. (1993), através de
estudos conduzidos na América do Norte, identificaram o usuário de crack como homem,
jovem, pertencente a grupos de baixo poder aquisitivo e ligado a atividades criminais.
Quanto à etnia, inicialmente o uso pareceu estar associado predominantemente à
população afro-americana (Siegel, 1982), disseminando-se às demais etnias com o passar
do tempo, mas havendo sempre maior número de negros e hispânicos que brancos
(Hatsukami & Fischman, 1996; Inciardi & Surrat, 2001), o que tem apontado que a
diferença de prevalência parece variar não apenas em função da etnia, mas sim do contexto
socioeconômico em que o uso esteja inserido (Murphy & Rosenbaum, 1992; Hatsukami &
Fischman, 1996; Magura & Rosenblaum,
2000; German & Sterk, 2002).
Independente do perfil sócio-demográfico do usuário, o potente efeito
recompensador de crack e sua curta duração funciona como poderoso estímulo à
administração repetida da droga, de tal forma que depois de dias ou meses de sua
experimentação deflagra-se o uso intenso, compulsivo ou disfuncional, em que o crack
passa a desempenhar papel central na vida do usuário, adquirindo prioridade em
detrimento de comportamentos que antes tinham relevância (Siegel, 1982; Carlson &
Siegal, 1991; Inciardi et al., 1993; Hatsukami & Fischman, 1996; Weaver & Schnoll,
1999). Caracteriza-se pela alta frequência e intensidade de uso, podendo ser diário, o que
produz graus variáveis de dependência no usuário, de tal forma que não consegue cessá-lo
sem que sinta desconforto psico ou fisiológico. A princípio, múltiplas motivações para
a continuação desses níveis de consumo, relacionando-se à necessidade de manter a
euforia, alívio de problemas pré-existentes ou desejo de manter certo grau de desempenho
em determinada atividade (Siegel, 1982). Em função da associação dessas motivações de
uso à fissura (desejo incontrolável de usar crack), é raro que os usuários consumam apenas
30
uma única vez, de tal forma que cada sessão de uso dura de 24 a 96 horas, sendo o crack
administrado a cada 5 ou 10 minutos, prolongando-se até o esgotamento físico, psíquico
ou financeiro do usuário, caracterizando os binges ou runs (Siegel, 1982; Inciardi et al.,
1993; Díaz, 1998; Weaver & Schnoll, 1999). Durante os binges, os pensamentos estão
focados no uso de crack, de tal forma que sono, alimentação, dinheiro, afetividade, senso
de responsabilidade e sobrevivência perdem totalmente o significado, comprometendo
seriamente a saúde física e mental dos usuários.
O uso compulsivo de crack interfere na dimensão individual do usuário,
comprometendo também seu funcionamento social, de forma que os vínculos sociais
estáveis e normalizados se fragilizam e rompem-se, o que acaba por marginalizá-lo
progressivamente, tanto no contexto microsocial (ex: redes de uso local) quanto
macrosocial (ex: comunidade e sistemas de serviço) (Clatts et al, 2002). Embora exista a
consciência subjetiva da incapacidade de controlá-lo, o uso de crack persiste, apesar da
evidência das consequências prejudiciais tanto na esfera biológica quanto psicossocial.
Uma das primeiras descrições do uso compulsivo foi feita por Siegel (1982) para a forma
de “freebase” ao descrever o comportamento de um usuário, aqui identificado pela letra P:
(...) P continuou o padrão binge, alternando o uso de “freebase” com períodos de colapso
ao ficar na cama por 4 a 5 dias. Durante o processo seu emagrecimento foi pronunciado,
o tema de sua conversa focava apenas a “freebase”, perdeu a maioria dos negócios, bateu
seus dois carros enquanto dirigia sob a influência de “freebase” e acidentalmente
incendiou a casa no final de um binge de seis dias. Porém, foi Sharpe (2001) que num
estudo conduzido com usuárias de crack capturou a essência do uso compulsivo: (...) uma
das maiores dificuldades dessas mulheres é focar-se em qualquer outra coisa que não seja
a necessidade imediata pela droga. Na ausência de crack ou qualquer outra dependência,
a dura realidade da pobreza faz com que os indivíduos devotem-se diariamente à
sobrevivência. O uso de crack tem exacerbado essa sobrevivência diária mudando o foco
à necessidade de sobrevivência momentânea.
A fissura, o alto poder indutor de dependência, a preocupação constante em obter-
se crack e o afastamento social fazem com que a maioria dos usuários esteja
desempregada, incentivando o desenvolvimento de atividades fora do mercado formal de
trabalho para o sustento do uso, a citar, envolvimento com tráfico, roubos e assaltos
31
(Siegal, 1982; Carlson & Siegal, 1991; Inciardi et al., 1993; Dudish & Hatsukami, 1996;
Hatsukami & Fischman, 1996; Sommers et al., 1996;
Grogger & Willis, 2000; Best et al.,
2001; Cross et al., 2001; Inciardi & Surrat, 2001; entre outros), participação que parece
diferir conforme o sexo do usuário (Dudish & Hatsukami, 1996; Cross et al., 2001).
As mulheres, até então ausentes, aderiram à cultura de crack, constituindo num
grupo de risco frente às DTS/AIDS, que muitas delas utilizavam a estratégia de venda
do corpo pela droga, derrubando por terra a “segurança” inicialmente associada ao uso de
crack. Em função dessa opção para obtenção da droga, disseminaram-se, nos EUA, as
crack-houses (Carlson & Siegal, 1991; Inciardi et al., 1993), onde além da disponibilidade
de crack, o operador da casa incentivava a prostituição, em que mulheres eram oferecidas
aos clientes, praticando qualquer variedade de sexo.
Desde 1986, a associação “troca de sexo por crack” veio a aumentar a incidência de
Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST’s), quando uma epidemia de sífilis ocorreu em
várias áreas dos EUA (Balshem et al., 1992). Entre 1985 e 1989, a incidência de sífilis
primária e secundária aumentou em 61%, refletindo uma modificação de seu padrão
epidemiológico, de tal forma que investigadores relacionaram a nova epidemia ao
comportamento sexual de risco dentro da cultura do uso de crack (Balshem et al., 1992). A
situação foi tornando-se cada vez pior, de tal forma que a prostituição feminina não mais
se restringia apenas às crack-houses, completando-se em qualquer ambiente, aumentando a
exposição da cultura de crack ao contágio por DST’s e AIDS (Carlson & Siegal, 1991;
Murphy & Rosenbaum, 1992; Inciardi et al., 1993; Baseman, 1999; Booth et al., 2000;
Hoffman et al., 2000; Logan & Leukefeld, 2000; Ward et al., 2000; Cross et al., 2001;
Sharpe, 2001; Miller & Neaigus, 2002; Timpson et al., 2003; Lejuez et al., 2005).
Com o tempo, o uso de crack forçou os usuários a usarem outras substâncias para
modificar seus efeitos. Assim, os usuários passaram a co-administrar outras drogas, lícitas
ou ilícitas, para modificar ou prolongar os efeitos de curta duração do crack e reduzir a
fissura e outros efeitos desagradáveis associados ao estado de abstinência. Embora pudesse
funcionar para modular a fissura e a falta de controle durante o uso, tal comportamento
tem funcionado como um gatilho para o uso pesado e crônico de outras drogas,
aumentando os riscos à integridade física e mental do usuário. Logo, qualquer combinação
tem sido possível, havendo relatos de associação com heroína (inalada e injetada ou como
32
“speedballing”), álcool, maconha, benzodiazepínicos e outras drogas (Siegel, 1982;
Wesson & Washburn, 1990; Carlson & Siegal, 1991; Grund et al., 1991; Gossop et al.,
1992; McBride et al, 1992; Grund et al, 1995; Hunter et al., 1995; Irwin et al., 1996;
Iguchi & Bux, 1997; Jacobs, 1999; Perlman et al., 1999), situação que vem se agravando
nos últimos anos (Booth et al., 2000; Magura & Rosenblum, 2000; Rasch et al., 2000;
Young et al., 2000; Best et al., 2001; Cross et al., 2001; Inciardi & Surrat, 2001; Gossop et
al., 2002; Ross et al., 2003; Lejuez et al., 2005; Gossop & Carroll, 2006;
Gossop et al.,
2006).
Outro agravante dessa tendência é o uso de crack entre pacientes submetidos à
terapia de substituição por metadona, prejudicando seriamente o objetivo do tratamento e a
interrupção do uso de drogas ilícitas (Avants et al., 1994; Darke et al., 1994; Grella et al.,
1995; Kerr et al., 2005).
De forma geral, a associação de crack a outras drogas, o engajamento do usuário
em atividades ilícitas e o aumento da incidência de comportamento sexual de risco fizeram
com que o crack fosse considerado um grave problema de saúde pública, exigindo o
desenvolvimento de medidas e programas que pudessem ao menos diminuir os danos
relacionados a seu uso.
Assim, após 20 anos de crack, por vigilância constante de vários órgãos norte-
americanos, entre eles o NIDA (National Institute on Drug Abuse), pôde-se identificar
mudanças no comportamento do usuário na cultura de uso. A baixa expectativa de vida do
usuário de crack fez com que buscasse fatores protetores, a fim de que o uso fosse
continuado sem que houvesse a exclusão da dimensão social, ou seja, da família, escola e
trabalho. Assim, German & Sterk (2002), identificaram, entre os norte-americanos,
usuários de crack de uso controlado, caracterizado pelo uso racional de crack, de baixa
freqüência e quantidade. Nesse padrão, o uso de crack parece não se tornar a razão da vida
do usuário, não lhe gerando nenhum tipo de problema, interrompendo-se frequentemente e
com relativa facilidade através da adoção de mecanismos de auto-regulação (Díaz, 1998).
German & Sterk (2002) identificaram que o uso controlado é mediado pela adoção
de estratégias específicas, entre elas: (a) não ter amigos usuários de drogas; (b) obrigar-se a
ficar mais tempo em casa com a família; (c) associar crack a outras drogas ou formas de
uso mais “relaxantes” que diminuam a “fissura” por crack, dentre outras possibilidades.
33
Essa busca de alternativas tem permitido ao usuário de crack não se afastar de suas
atividades cotidianas, modificando o seu perfil, inicialmente caracterizado como
improdutivo, agressivo e ligado a atividades marginais (Giannini et al., 1993).
Nos EUA, o uso controlado havia sido previamente detectado entre usuários de
cloridrato de cocaína (via intranasal) (Murphy et al., 1989; Díaz, 1998) e usuários de
“freebase (Siegel, 1982). Nos primórdios do aparecimento da “freebase”, Siegel (1982)
descreveu o uso “sócio-recreacional” entre amigos ou colegas, a fim de compartilhar uma
experiência prazerosa, além do uso “circunstancial-situacional” destinado ao bom
desempenho da realização de determinada tarefa ou com fins de lidar com dificuldades
emocionais específicas. Ainda conforme Siegel (1982), usuários controlados gastariam
cerca de 200 dólares mensais com “freebase” e manteriam vínculos empregatícios
regulares, enquanto que usuários compulsivos gastariam de 2 a 12 mil dólares semanais
com a droga, empenhando-se à realização de atividades ilícitas para cumprir com o uso.
Embora tenha modificado seu perfil, novos comportamentos de risco têm sido
identificados entre os usuários de crack norte-americanos. Um bom exemplo é o
desenvolvimento da estratégia de shotgunnig (Perlman, 1999), uma nova prática de uso
através da qual a fumaça de crack é exalada da boca do usuário à outra pessoa. Ainda
conforme Perlman (1999), a técnica facilitaria experiências eróticas e posterior contato
sexual. Porém, além do potencial gerador de práticas sexuais de risco, não se poderia
descartar a possibilidade de transferência de agentes patogênicos através de infecções da
via respiratória (Ettinger & Albin, 1989), o que pioraria o quadro sintomático de pacientes
portadores de HIV, de forma a exigir maior controle e estudo pelas organizações
responsáveis para que o uso de crack e seus problemas decorrentes fossem contornados.
1.3.2 O crack no Brasil.
No Brasil, inicialmente circunscrito à cidade de São Paulo, a primeira descrição do
usuário de crack, realizada conforme os princípios da metodologia qualitativa de pesquisa,
identificou um perfil semelhante ao vigente nos EUA, ou seja, o usuário de crack era
homem, jovem, de baixa escolaridade, desempregado e envolvido em atividades criminais
para sustentar o próprio uso (Nappo et al., 1996). Corroborando com tais dados,
34
indicadores epidemiológicos têm apontado insistentemente para a maior prevalência de
uso de crack entre homens, preferentemente entre jovens de faixa etária entre os 25 e 34
anos (Carlini et al., 2001). Galduróz et al. (2004) também observaram maior prevalência
de uso entre estudantes de ensino fundamental e médio do sexo masculino, de tal forma
que a participação das mulheres não tinha sido detectada, de forma satisfatória, por
nenhum indicador epidemiológico.
Quanto ao padrão de uso, Nappo (1996) descreveu três perfis possíveis aos
usuários de crack, de tal forma que todos tinham em comum o fato de estabelecerem um
consumo compulsivo e perigoso da droga, acarretando para si problemas de ordem física,
moral, econômica e social, ressaltando-se que as estratégias desenvolvidas para aquisição
da droga (ex.: assaltos, roubos, etc) expunham-nos a um risco ainda maior. Nos mesmos
moldes do padrão binge anteriormente descrito, na cidade de São Paulo as sessões de uso
de crack prolongavam-se por vários dias até que se consumisse toda a quantia disponível
da droga ou até que fosse atingido o limite da resistência física e psíquica do usuário
(Nappo, 1996; Díaz, 1998). Porém, diferentemente do usuário norte-americano, no início
do aparecimento do crack, na cidade de São Paulo, os usuários brasileiros não associavam
nenhuma outra droga ao crack, sendo caracterizados pelo uso exclusivo da droga, de tal
forma que a opção pela não associação jutificava-se pelo fato de que os efeitos de crack já
eram satisfatórios por si (Nappo et al., 1996). Assim, esse era o retrato do usuário de
crack da cidade de São Paulo, com poucas diferenças em relação ao usuário norte-
americano de época correspondente.
A persistência do crack por mais de 10 anos em contexto brasileiro, em despeito a
todos os esforços empregados à sua erradicação, fez acreditarmos que estivesse
acontecendo a mudança do perfil do usuário de crack associada ao desenvolvimento de
formas alternativas de uso. Conforme relatos informais, assim como nos EUA, essas
alterações parecem ter contribuído não apenas ao aumento dos riscos à integridade física e
moral do usuário, mas à integridade da sociedade como um todo, podendo dificultar ainda
mais a adesão do usuário aos programas de tratamento disponíveis, retardando sua
recuperação e conseqüente reinserção à sociedade.
De fato, algumas alterações têm sido detectadas em contexto brasileiro. A
presença de mulheres, até então não detectada por nenhum indicador epidemiológico, foi
35
desmistificada por Nappo et al. (2003). Além de identificá-las dentro da cultura de crack,
desenvolveram comportamento perigoso frente à droga, ou seja, passaram a trocar favores
sexuais por crack ou por dinheiro destinado à sua aquisição, culminando assim, no
desenvolvimento de considerável comportamento de risco frente às DST/AIDS (Nappo et
al., 2003). Mais especificamente quanto ao padrão de uso, Nappo et al (1999) e relatos
informais têm demonstrado que, a exemplo dos EUA, o uso exclusivo de crack caiu por
terra, de tal forma que o uso concomitante de outras drogas está incorporando-se à cultura,
principalmente com fins de alterar a intensidade de seus efeitos ou prolongá-los em termos
de duração. Embora a associação tenha sido citada, as drogas associadas, assim como os
propósitos específicos de associação, ainda não foram descritos em detalhes, tampouco a
extensão de suas conseqüências.
Ainda, assim como nos EUA, na cidade de São Paulo, a existência do uso
controlado já foi detectada entre usuários de cocaína aspirada (Nappo et al., 1999) e
cocaína injetável (Díaz, 1998), tendo sido definido como o uso recreacional, esporádico e
não-problemático, compatível à realização de atividades sociais como trabalho, estudo e
relações familiares. Para seu cumprimento, adotar-se-ia de uma série de estratégias, entre
elas o uso de cocaína em menores quantidades que a usual ou por menores períodos de
tempo e evitar-se o contexto de uso da droga, principalmente no que concerne aos locais e
colegas de uso (Nappo et al., 1999). Em contrapartida, o uso controlado não tem sido
identificado entre usuários de crack (Nappo et al., 1999). Ainda conforme esses autores,
embora promessas pessoais sejam feitas para cumpri-lo, em função do uso compulsivo e
da fissura, o controle sobre o uso de crack é dito inexistente, como ilustrado pelo seguinte
depoimento: (...) não usamos crack apenas aos fins-de-semana porque sempre aparece
alguém que te convida para usar e assim, vc acaba esquecendo da sua decisão.
Assim, verifica-se que o padrão compulsivo ainda parece ser a única alternativa ao
uso de crack, instalando-se em curto intervalo de tempo, de forma a rapidamente inserir os
usuários no contexto de deterioração física, moral e social. Assim, estudar-se a existência
do uso controlado de crack, assim como as estratégias para tal, é de considerável
relevância, apontando não apenas a seu uso racional, mas à possibilidade de resgatar tais
estratégias de controle como importante instrumento de redução de danos.
36
Melhor que isso seria demonstrar à sociedade que não existiria um único perfil de
usuário, desvinculando-o do estereótipo de criminoso e irresponsável, evitando que o
preconceito os rotulem e os marginalizem. Além disso, o conhecimento do usuário de
crack, como um todo, serviria como importante balizador quanto à conduta que vem sendo
adotada no combate ao seu uso no Brasil, podendo-se avaliar se tem contemplado ou não
as alterações identificadas ou ainda, se a mesma necessitaria de ajustes significativos
diante de tais mudanças.
Ainda, os resultados desse estudo possibilitariam o desenvolvimento de programas
de prevenção efetivos, ação que, em termos de custo-benefício, seria de extrema valia ao
Estado, já que o tratamento de comorbidades psiquiátricas, neurocognitivas e doenças
infecto-contagiosas associadas ao uso de crack, seria certamente, mais dispendiosas que o
investimento em eficientes programas de prevenção. É importante também que, através do
conhecimento do perfil do usuário de crack, fossem desenvolvidos programas de atenção
sócio-sanitária, tratamento, redução de danos e reinserção sócio-laboral específicos,
reintegrando e recuperando esses usuários à sociedade.
37
O que me dava prazer era a pedra. Ela era meu Sol e eu era
a sua Terra. Rotação, translação, todos os movimentos
foram ao redor dela (...)
(R24MU – São Paulo)
Objetivos
s
38
2. Objetivos.
2.1 Objetivos Gerais.
Investigar a cultura do uso de crack na cidade de São Paulo uma década após a
primeira descrição de seu uso na cidade, ressaltando-se os seguintes aspectos: (a) perfil
sócio-demográfico e socioeconômico do usuário de crack; (b) acessibilidade e distribuição
de crack; (c) padrão, formas e estratégias do uso de crack; (d) efeitos de crack com ênfase
nas drogas combinadas, com fins de modulá-los em intensidade ou duração; (e)
comportamento sexual ou outros comportamentos de risco sob fissura de crack; (f)
caracterização do estado de abuso ou dependência a crack; (g) percepção do usuário de
crack a respeito da droga e de si próprio; entre outros.
2.2 Objetivos específicos.
(a) No que concerne ao padrão de uso de crack, identificar a existência do uso dito
controlado. Se existente, ressaltar as estratégias empregadas à sua manutenção, assim
como a possibilidade de progressão a outros padrões de uso;
(b) Identificar mudanças na cultura do uso de crack, na cidade de São Paulo, por
intermédio da comparação dos dados do presente trabalho com os obtidos na primeira
descrição de seu uso, na cidade, há uma década atrás;
(c) Realizar a descrição da cultura de crack na cidade de Barcelona e, através da
comparação com os dados obtidos em São Paulo, identificar se os aspectos da cultura de
crack são específicos ao contexto ou se são resultantes da droga em si.
39
(...) depois que conheci o crack só foi essa lata na cabeça,
eu era casada com a lata, tudo era a lata. Dormia com a lata,
acordava para usar e dormia de novo quando não
agüentava mais (...)
(A36FU – São Paulo)
Metodologia
a
40
3. Metodologia
Consideração: Como o presente estudo devotou-se à investigação da cultura de crack nas
cidades de São Paulo e Barcelona, para isso adotando dos conceitos e métodos específicos
à metodologia qualitativa, muitas de suas características (no que concerne à metodologia)
serão abordadas de forma geral, em termos de definição, aplicabilidade, técnicas de
amostragem, instrumentos e análise dos dados coletados. Em contrapartida, alguns de seus
aspectos diferiram conforme o contexto social da cultura de crack, especialmente no que se
refere aos métodos de amostragem e instrumentos de pesquisa, a citar: (a) número e
origem dos informantes-chave; (b) número de perguntas do roteiro de entrevista, seus
temas e objetivos; (c) número, condições e procedimentos das entrevistas; (d) codificação
da amostra; (e) condições de realização do estudo de campo e, finalmente, (f) dificuldades
encontradas à realização da pesquisa.
Assim, esses tópicos, essenciais à compreensão do trabalho aqui apresentado,
foram separados conforme a cidade no item final da seção de Metodologia.
3.1 As características gerais da Metodologia Qualitativa.
O conhecimento científico é decorrente do estabelecimento de uma articulação
entre a teoria científica e a realidade empírica que se apresenta, de forma que o método
(ou metodologia) é o fio condutor dessa articulação (Minayo & Sanches, 1993). Conforme
ilustrado por essa afirmação, considera-se que a metodologia de um trabalho ou pesquisa
científica sempre deve ser apropriada ao objeto de estudo, oferecendo elementos teóricos
para a análise, além de ser operacionalmente exeqüível.
No que concerne especificamente ao campo das drogas ilícitas, novas tendências de
uso não têm sido satisfatoriamente identificadas por intermédio do emprego de técnicas de
caráter epidemiológico, de tal forma que os sistemas de saúde pública raramente têm sido
capazes de mobilizar programas de tratamento e prevenção (de cunho local, regional e
nacional) de forma rápida e eficiente, tornando-os difíceis e caros (Clatts, 2002). Assim,
considerando-se que a abordagem qualitativa é eficientemente aplicada ao estudo de
“populações escondidas” (Serrapioni, 2000), monitorando tendências no uso de drogas e
41
identificando práticas comportamentais emergentes e de relevância à saúde pública (Clatts,
2002), tornou-se a melhor opção metodológica no presente estudo.
Historicamente, a abordagem qualitativa surgiu como reação das ciências sociais ao
paradigma ou pressupostos epistemológicos positivistas, caracterizados pela visão
determinista da realidade, acreditando-a imutável e ordenada por leis simples e universais,
de forma que a descrição exata dos fenômenos (sejam físicos, biológicos, psicológicos ou
sociais) exigia a adoção de instrumentos metodológicos válidos, independentemente do
sujeito e do contexto social em que o fenômeno em estudo estivesse inserido (Madureira,
2000). Conforme o paradigma positivista, a “verdade científica” era considerada como
externa ao ser humano e o método, por si só, era o “caminho para que essa verdade fosse
atingida” (Madureira, 2000). Assim, em linhas gerais, o paradigma positivista conduzia à
visão essencialmente objetiva dos fenômenos, à sobreposição da observação sobre a
interpretação, pouco se atendo às suas relações de sentido ou significado, de forma a
subtrair-lhes o caráter científico (Minayo & Sanches, 1993; Turato, 2000; Carrillo, 2004).
Como os sociólogos, ao darem prioridade ao método positivista, sentiram privar-se
da própria essência das ciências sociais, principalmente no que concerne à análise da
estrutura motivacional da ação humana (Minayo & Sanches, 1993), a epistemologia
qualitativa surgiu como a compreensão da realidade em sua complexidade e não como o
simples produto das leis universais (Madureira, 2000).
Assim, a fim de compreender um pouco a respeito da abordagem qualitativa,
adotada como método científico no presente estudo, seus pressupostos gerais são
brevemente citados abaixo, como segue:
(a) Em metodologia qualitativa, o conhecimento científico é o produto de uma visão
construtiva-interpretativa” (Madureira, 2000; Carrillo, 2004), ou seja, não mais
representa a soma de constatações imediatas do momento empírico, mas de todo o
processo em si, penetrando na sua estrutura íntima e latente (Turato, 2000). Consiste numa
nova maneira de encarar o mundo empírico (Carrillo, 2004), sendo que os dados deixam
de “falar por si só”. Para tal, na metodologia qualitativa, a presença do investigador é
essencial que, mediado por sua intuição, questionamentos e pressupostos teóricos
consiste no intermediário à produção do conhecimento científico (Madureira, 2000);
42
(b) Caráter interativo do processo de produção do conhecimento: a relação que se
estabelece entre o investigador e o objeto de estudo é condição imprescindível à produção
de conhecimento (Madureira, 2000). Consiste numa tentativa de compreender, interpretar e
descrever os sentidos e significados do fenômeno, a partir dos valores, crenças,
representações, hábitos, atitudes e opiniões do indivíduo ou do grupo que os detenha
(Minayo & Sanches, 1993; Carrillo, 2004; Nogueira-Martins & Bógus, 2004),
identificando-os e mostrando como variam sob diferentes circunstâncias, ao invés de
simplesmente enumerá-los (Pope & Mays, 1995; Turato, 2000). O investigador constrói o
conhecimento a partir do outro, com ele estabelecendo uma relação comunicativa, que é
um sujeito que se expressa, pensa e se compromete afetivamente, de forma que uma
resposta é entendida como um processo de pensamento rico e abarcador, desenvolvendo-se
com o tempo (Rey, 1997).
Impregnada pelo contexto social, a “verdade científica” do fenômeno é estudada
em seu “setting natural” (Triviños, 1987; Marcus & Liehr, 2001; Turato, 2000 e 2003),
entendido não apenas como mero cenário, mas como parte constitutiva do recorte de
análise (Magnani, 2002), tendo valor essencial para alcançar dos sujeitos uma
compreensão mais clara de suas atividades, comportamentos e experiências (Triviños,
1987);
(c) E, finalmente, significação da singularidade como nível legítimo de produção do
conhecimento: a singularidade constitui-se como realidade diferenciada na história da
constituição subjetiva do indivíduo (Madureira, 2000). Ao buscar pela singularidade, a
abordagem qualitativa alcança a compreensão subjetiva da experiência humana (Minayo &
Sanches, 1993; Nogueira-Martins & Bógus, 2004), em nível profundo de entendimento, o
que lhe garante a denominação por estudo em profundidade e em detalhes (Carrillo,
2004).
A abordagem qualitativa resgata a “verdade” do fenômeno social no estudo do ser
humano como um todo, seja por seu comportamento, pelo sentido e significados atribuídos
às suas experiências e vivências, de tal forma a não mais compreender o fenômeno apenas
por medidas isoladas (Marcus & Liehr, 2001).
43
Embora tenha se originado das ciências humanas (a citar: sociologia, antropologia,
filosofia e psicologia), atualmente observa-se o crescente emprego da metodologia
qualitativa nas ciências da saúde (Britten, 1995; Pope & Mays, 1995), onde tem recebido a
denominação de pesquisa clínico-qualitativa (Turato, 2000), tendo sido conduzida no
“setting” dos cuidados com a saúde. Porém, independente da disciplina e da denominação
que lhe seja atribuída, a abordagem qualitativa consiste em mudança significativa do modo
de compreender o fenômeno em estudo, consistindo em importante desafio aos
profissionais da área de saúde, pois sua formação universitária, de cunho positivista,
conduz espontaneamente ao raciocínio automático das relações causa-efeito e não às
relações de significado como esperado a esse tipo de abordagem (Turato, 2000).
3.2 O Método Etnográfico ou Etnografia.
A abordagem qualitativa é um termo genérico que abrange uma multiplicidade de
suportes filosóficos e métodos de pesquisa, dentre os quais se destaca o método
etnográfico ou etnografia, aqui adotado para a compreensão da cultura de crack.
Originado da disciplina de Antropologia, o modelo etnográfico teve como pioneiro
o antropólogo Bronislaw Kasper Malinowski através da publicação do livro “Os
argonautas do Pacífico Ocidental”, em 1922, na qual despendeu significativos anos
convivendo com nativos da Oceania, então observando o que lá ocorria.
Quanto à definição, no geral, o modelo etnográfico consiste na descrição e
interpretação científica do modo de vida ou comportamento de uma determinada cultura,
subcultura ou de determinado fenômeno social (Triviños, 1987). Assim como em outros
métodos qualitativos, a descrição etnográfica é realizada de forma êmica, ou seja, a partir
da perspectiva do autor ou agente do fenômeno social sob investigação, utilizando de seus
significados e experiências (Minayo & Sanches, 1993; Creswell, 1998; Víctora et al.,
2000; Turato, 2003). Na verdade, a etnografia surgiu como o “resgate” do ator social, até
então esquecido, de forma a compreender o fenômeno na perspectiva de “perto” e “de
dentro pra fora” (Magnani, 2002).
Mais especificamente, em etnografia, a perspectiva do investigador é a de um
intérprete entrando num mundo estranho e tentando compreendê-lo a partir do ponto de
44
vista de alguém que dele faz parte, de tal forma a observar o que acontece, escutar o que é
dito, questionar e coletar os dados disponíveis (Marcus & Liehr, 2001), obrigando os
sujeitos e o investigador a uma participação ativa, onde compartilham informações e
modos culturais. A regra é que, na etnografia, o pesquisador tente não ficar de fora e
tampouco à margem da realidade do fenômeno social do qual procura captar e
compreender os significados (Triviños, 1987). Assim, o investigador, como etnógrafo,
envolve-se na vida do “pesquisado” em todos seus aspectos essenciais e acidentais, não
apenas o estudando, mas dele apreendendo e retirando sentidos e significados, o que não é
tarefa simples, que não existe nada mais complexo que desvendar os propósitos ocultos
ou manifestos do comportamento humano (Triviños, 1987).
Em etnografia, o valor científico dos achados dependerá, fundamentalmente, do
modo como é feita a descrição do fenômeno que se observa e do qual se vivencia para
retirar os significados de interesse. Levando-se isso em consideração, é impossível que um
cientista inicie um trabalho despojado de princípios e de idéias gerais a respeito do
fenômeno que estuda, que pertence a uma determinada cultura que, seguramente, será,
ou pode vir a ser, um obstáculo para compreender, em toda sua extensão, outra realidade
cultural (Triviños, 1987). Assim, aconselha-se que, ao iniciar qualquer tipo de busca, o
investigador dispa-se das próprias crenças, valores e tendências pessoais (as “teorias
nativas”), colocando-os entre parênteses ou à parte, permanecendo sempre verdadeiro aos
dados e reconhecendo qualquer tendência pessoal, de forma a refletir, com precisão, a
realidade do “pesquisado” (Marcus & Liehr, 2001). Conforme ilustrado por Carrilo (2004),
a teoria proporciona apenas um marco para dar sentido ao que se está produzindo, mas a
consistência do conhecimento está dentro da organização do sujeito e não dentro da
teoria. Então, o indivíduo entra com sua especificidade na construção teórica geral, no
processo de continuidade que a teoria tem.
Em contrapartida, como não como o investigador descartar-se de suas “teorias
nativas”, sua co-presença é que provoca a ambigüidade, a possibilidade de uma solução
não prevista, um olhar descentrado ou uma saída inesperada quanto ao fenômeno social em
estudo (Magnani, 2002).
Além disso, eventualmente pode ser necessário um retorno ao campo para
esclarecer dúvidas ou para recolher documentos ou coletar novas informações sobre
45
acontecimentos e circunstâncias relevantes que tenham sido pouco exploradas ou que
ainda não estejam satisfatoriamente esclarecidas (Marcus & Liehr, 2001; Duarte, 2002).
Assim, em linhas gerais, o método etnográfico, em si, é um processo de
transformação, em que o investigador não apenas apreende o significado dos arranjos do
“pesquisado”, mas, ao perceber esse significado e conseguir descrevê-lo, agora nos seus
termos, é capaz de atestar sua lógica e incorporá-la de acordo com seu sistema de valores
(Magnani, 2002).
3.3 As Vantagens, Críticas e Limitações associadas à Abordagem Qualitativa.
3.3.1 As Vantagens.
Como a abordagem qualitativa é eficientemente aplicada quando o fenômeno é
ainda desconhecido ou marginal, possibilitando sua compreensão por intermédio dos
comportamentos e opiniões a ele associados, sua adoção tornou-se de suma importância ao
presente estudo, destinado ao esclarecimento dos tópicos associados à cultura do uso de
crack.
Por sua capacidade de fazer emergir aspectos novos, de ir ao fundo do significado e
estar na perspectiva do sujeito, a abordagem qualitativa é apta para descobrir novos nexos
e explicar significados, ajudando na construção do fenômeno, facilitando na descoberta de
suas dimensões e, finalmente, permitindo a formulação e comprovação de novas hipóteses
(Serrapioni, 2000).
Ao passo que voz ao agente social, a abordagem qualitativa enriquece a
compreensão do fenômeno, possibilitando uma aproximação fundamental e de intimidade
entre o investigador e o ator social, voltando-se com empatia aos seus motivos, projetos,
angústias e ansiedades (Minayo & Sanches, 1993), alcançando áreas do conhecimento
inatingíveis por outros métodos (Pope & Mays, 1995).
Assim, a possibilidade do estudo de fatores “marginais” e, ainda, através da
perspectiva do próprio ator social, tornou a abordagem qualitativa a mais adequada para a
compreensão da cultura de crack em todas as suas dimensões. Soma-se à escolha o fato da
abordagem qualitativa ser dinâmica e flexível, permitindo o ajuste das técnicas e dos
46
instrumentos durante o desenvolvimento da pesquisa, principalmente quando considerada
a fase de coleta de dados (WHO, 1994).
3.3.2 Desvantagens e Limitações.
Os estudos qualitativos têm sua maior força na validade, isto é, focalizam as
particularidades do fenômeno, em contraste à força maior dos estudos quantitativos que se
encontra na confiabilidade ou reprodutibilidade, ou seja, no alcance para o qual a
medição produz a mesma resposta a cada vez que é empregada (Pope & Mays, 1995;
Serapioni, 2000; Carrillo, 2004). O fato de não ter reprodutibilidade é importante crítica à
metodologia qualitativa, mas é discutível, que os fenômenos das ciências humanas ou
sociais são experiências únicas e particulares, não se tornando cabível, nesse caso, essa
característica (Turato, 2000). De forma geral, o estudo qualitativo está mais preocupado
com a precisão da descrição da realidade objetiva que com a consistência dos dados, ou
seja, importa-se mais se a descrição é reconhecida como verdadeira pelos próprios atores
do fenômeno, pouco se importando com o fato dos mesmos dados serem alcançados por
diferentes autores ou pelo mesmo autor em diferentes períodos de tempo.
Porém, a limitação quanto à confiabilidade não é estanque, podendo ser contornada
através de estratégias como a de triangulação, quando se compara o mesmo fenômeno por
diferentes técnicas (Mays & Pope, 1995) ou por sua investigação por intermédio de
pesquisadores distintos (Amstrong et al., 1997; Pope et al., 2000), método denominado por
inter-rater reliability, em que se propõe que os relatos gravados e transcritos, assim como
os procedimentos adotados para coletá-los, estejam acessíveis a diferentes investigadores
que não participam da pesquisa em questão, para que cada um possa fazer sua própria
interpretação do conteúdo dos relatos colhidos e, dessa forma, auxiliar na validação dos
resultados apresentados (Amstrong et al., 1997).
A segunda importante crítica à abordagem qualitativa é que como é empregada ao
entendimento de comportamentos e processos sociais, não utiliza de conceitos estatísticos,
logo, a amostra não é representativa e seus achados não podem ser extrapolados a
populações maiores, ou seja, os resultados não são generalizáveis (Serrapione, 2000;
Victora et al, 2000). Assim, os métodos qualitativos produzem explicações contextuais
47
para um pequeno número de casos, de tal forma que seu foco de atenção é centralizado no
específico, no peculiar, buscando mais a compreensão do que a explicação do fenômeno,
deixando de se preocupar com generalizações populacionais, princípios ou leis (Mays &
Pope, 1995; Turato, 2000; Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
Finalmente, a terceira crítica consiste no fato de que, ao gerar grande quantidade de
informações, a abordagem qualitativa torna-se mais cara e demanda maior período de
tempo à sua realização, o que a torna, muitas vezes, impraticável (Pope & Mays, 1995).
Soma-se a isso, o fato de que a boa pesquisa qualitativa depende de um investigador
habilidoso, de tal forma que necessita ter treino e experiência no manuseio dos
instrumentos propostos, além de adaptação quanto à linguagem e ao “setting natural” da
população em estudo (WHO, 1994; Pope et al., 2000; Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
Além disso, o investigador também deve ter bom preparo emocional, sendo sensível às
angústias e ansiedades do “pesquisado” (Turato, 2000) e sendo capaz de manejar situações
tensas e estressantes, possibilitando a compreensão das mensagens explícitas e implícitas
fornecidas pelos sujeitos a respeito do fenômeno em estudo (Nogueira-Martins & Bógus,
2004). Tomadas em conjunto, tais constatações apontam para a maior dificuldade à
realização de estudos qualitativos em relação aos quantitativos, considerados como mais
rápidos e fáceis.
Embora muitas das limitações da abordagem qualitativa sejam contornadas pela
positivista e vice-versa, nenhuma é mais científica que a outra, tratando-se de duas
abordagens com características distintas (Minayo & Sanches, 1993), sugerindo-se que, ao
invés de excludentes, sejam complementares (Minayo & Sanches, 1993; Serapioni, 2000;
Pope et al., 2000; Carrillo, 2004). Uma das possibilidades de complementariedade é que a
abordagem qualitativa é importante ao acompanhamento e aprofundamento de problemas
levantados por estudos quantitativos ou, por outro lado, para abrir perspectivas e variáveis
a serem posteriormente empregadas em levantamentos estatísticos, entre muitos outros
aspectos (Minayo & Sanches, 1993; Serapioni, 2000; Pope et al., 2000).
48
3.4 Amostra.
3.4.1 Amostra Intencional (Purposeful sample).
No que concerne ao processo de amostragem, a abordagem qualitativa não
privilegia o critério numérico e tampouco busca por uma amostra estatisticamente
representativa (Mays & Pope, 1995; Pope et al., 2000). Em contrapartida, métodos
quantitativos de pesquisa, em função da busca por conclusões com validade geral,
baseados na estatística, empenham-se na busca da amostra dita aleatória, probabilística e
representativa (Triviños, 1987).
Como o método qualitativo consiste no estudo detalhado e em profundidade de
determinada cultura ou fenômeno social, ao invés da aleatoriedade, decide-se pela seleção
intencional da amostra (purposeful or intentional sampling) (Patton, 1990), escolhendo
por aqueles participantes que estejam vivenciando o fenômeno social sob estudo, os
denominados casos ricos em informação (Víctora et al., 2000), buscando-se, dentro da
amostra, a maior variedade possível de casos, de forma a contemplar as diferentes
perspectivas do fenômeno.
Em suma, Minayo (1994) ressalta que, para refletir a totalidade em suas múltiplas
dimensões, alguns cuidados devem ser tomados em pesquisa qualitativa durante o período
da amostragem, a citar:
(a) privilegiar a participação de sujeitos que detenham as informações e experiências do
fenômeno social que se deseja conhecer;
(b) escolher um conjunto de informantes que possibilite a apreensão de semelhanças e
diferenças quanto ao fenômeno social e, finalmente,
(c) considerar um número suficiente de participantes até que haja a reincidência das
informações.
49
3.4.2 Tamanho da amostra.
O tamanho da amostra, não-probabilística e tampouco definida por cálculo
amostral, deve ser condizente com a proposta da pesquisa, as questões específicas a serem
tratadas, a disposição de tempo e de recursos financeiros (WHO, 1994).
Como em metodologia qualitativa o tamanho da amostra não é determinado a
priori, ou seja, antes do início do estudo, os participantes são continuamente selecionados
até que se atinja o ponto de saturação teórica, momento em que as informações tornam-
se repetidas, redundantes ou recorrentes (WHO, 1994; Victora et al., 2000; Duarte, 2002).
Consiste no momento em que as idéias transmitidas por um participante foram
compartilhadas por outros e a inclusão de novos sujeitos não resulta em compreensões
originais ou pistas que possam indicar novas perspectivas do fenômeno, indicando então
que a seleção deve ser interrompida (Patton, 1990; WHO, 1994).
Embora a amostra não seja estatística e tampouco haja fórmulas à sua
determinação, não quer dizer que o processo de amostragem não seja sistemático (WHO,
1994), podendo ser definido através da adoção de técnicas especiais de amostragem
(Patton, 1990). Uma delas é a amostragem por critérios, quando a seleção é submetida a
fatores condizentes aos sujeitos que detêm o fenômeno social sob investigação, os
denominados critérios de inclusão, referentes, de forma geral, à faixa etária, gênero,
condição socioeconômica, religião, entre outros. Assim, por exemplo, se um trabalho
científico fizesse referência ao estudo das dúvidas de comportamento sexual entre homens
adolescentes, ser do sexo feminino e adulto não seriam fatores de inclusão, mas sim
fatores de exclusão da participação.
3.4.3 Critérios de inclusão.
Considerando-se que no presente trabalho o fenômeno social estudado é a cultura
de crack, em todas suas dimensões, fizeram parte da amostra todos os perfis encontrados
de usuários de crack. Como em algum momento da vida, ex-usuários também vivenciaram
todas as regras e rituais associados à cultura, decidiu-se por inseri-los como parte da
amostra.
50
Como usuário definiu-se o sujeito que tivesse feito, na vida, uso de crack por pelo
menos 25 vezes e vigente nos seis meses anteriores à entrevista, evitando-se assim, a
seleção de usuários experimentais ou iniciantes (Siegel, 1985), que ainda não tivessem
uma “história” com a droga, o que acabaria por gerar informações insuficientes e com viés
de iniciante. Em contrapartida, como ex-usuário definiu-se o sujeito que tivesse feito uso
de crack, na vida, por pelo menos 25 vezes e que estivesse em abstinência por período de,
no mínimo, seis meses antes da entrevista.
Para ambos os grupos, os participantes poderiam ser de ambos os sexos e de faixa
etária igual ou superior a 18 anos.
3.4.4 Recrutamento da amostra.
3.4.4.1 Informantes-Chave.
O primeiro passo para obtenção da amostra foi a realização de entrevistas não-
estruturadas ou informais com informantes-chave (“Key Informants”), pessoas que têm
ligação direta com a cultura em investigação, dela possuindo um conhecimento especial
(Díaz et al., 1992; WHO, 1994).
Além de possibilitar a aproximação do investigador à população-alvo, o
informante-chave auxilia na compreensão prévia da cultura ou fenômeno social sob
estudo, colocando o investigador frente aos tópicos relevantes sobre o tema (WHO, 1994).
3.4.4.2 Técnica de Amostragem em cadeias, com ênfase na técnica de bola-de-neve.
No presente estudo, uma vez acessada a população-alvo, o próximo passo à
obtenção da amostra consistiu na técnica de amostragem em cadeias (Diaz et al., 1992),
baseada na seleção de sujeitos que dividem características em comum entre si, aqui
especialmente consideradas como o uso, pretérito ou presente, de crack.
Dentro da amostragem por cadeias, um caso especial é a técnica de amostragem
bola-de-neve ou “snowball(Bienarck & Waldorf, 1981; Patton, 1990; Diaz et al., 1992).
Bienarck & Waldorf (1981) descreveram-na da seguinte maneira: a amostragem começa
com um indivíduo a quem é pedido que indique conhecidos para a pesquisa, os quais, por
51
sua vez tornam-se o segundo grupo de entrevistados, a quem é feita a mesma pergunta para
constituir o terceiro grupo de pesquisa e assim por diante, de tal forma que um entrevistado
cita outro para possível participação.
Como se pretendeu selecionar uma amostra composta por múltiplos perfis, os
membros constituintes de cadeias diferentes não mantiveram entre si nenhum tipo de
relacionamento ou vínculo, sendo provenientes de diferentes bairros da cidade, de tal
forma a manter as cadeias o mais heterogêneas possível.
3.4.5 Codificação da Amostra.
Os entrevistados, para fins desse trabalho, receberam um código alfanumérico
significando, pela ordem: inicial do nome do entrevistado; idade do entrevistado; inicial do
sexo do entrevistado (F ou M) e situação a respeito do uso de crack pelo participante no
momento da entrevista (U para usuário e E para ex-usuário).
Assim, a fins de exemplo, o código A56MU designaria a participação de um
usuário de crack (U), homem (M), de 56 anos (51) e chamado Antônio (A).
3.5 Instrumentos de pesquisa.
Os pressupostos epistemológicos positivistas supervalorizavam os métodos
científicos, tratando-os como uma espécie de “caixa de ferramentas” para o acesso das leis
que governassem os fenômenos (Madureira, 2000), conduzindo à concepção
instrumentalista da ciência, em que os instrumentos tinham os fins em si próprios (Rey,
1997; Carrillo, 2004). Assim, dentro dessa concepção, o método científico era considerado
de forma monolítica, ou seja, era sempre o mesmo para todas as ciências, variando-se
apenas os objetos ou fenômenos de estudo (Madureira, 2000).
Em contrapartida, a abordagem qualitativa, não mais entendida como uma mera
aplicação de métodos, ressalta que os instrumentos de pesquisa não podem mais ser
pensados isoladamente, adquirindo sentido dentro do amplo processo de construção do
conhecimento científico. Assim, os instrumentos de pesquisa são pensados como um
conjunto de procedimentos escolhido conforme a natureza do fenômeno investigado, fins
52
da pesquisa e pressupostos epistemológicos e teóricos do investigador (Víctora et al.,
2000), constituindo-se numa forma de apreensão, em profundidade, dos sentidos e
significados acerca do fenômeno (Magnani, 2002). Essa condição é claramente ilustrada
por Carrillo (2004), ao afirmar que em abordagem qualitativa, o instrumento serve para
entrar na lógica do sujeito e não para que o sujeito seja traduzido na lógica do
instrumento.
Em pesquisa qualitativa, a escolha raramente se reduz a um único instrumento ou
técnica, podendo servir-se de vários, porém, o principal instrumento sempre é o
investigador (Britten, 1995; Marcus & Liehr, 2001), que explora todas as dimensões da
singularidade humana, podendo, num dado momento, recorrer aos seus próprios
conhecimentos, experiências, conflitos e frustrações para a melhor compreensão do
fenômeno social (Turato, 2000), apenas tomando cuidado para não interferir em sua
estrutura. Seguindo essa linha de pensamento, poderíamos imaginar a abordagem
qualitativa como um “bricolage” e o pesquisador como um “bricoleur” (Denzin & Lincoln,
2005), coletando dados por diferentes técnicas e reorganizando aqueles percebidos como
fragmentários num novo arranjo que não é mais o nativo, embora dele tenha origem
(Magnani, 2002).
3.5.1 Entrevistas.
O recurso primordial em investigação qualitativa é o discurso. A fala é reveladora
de condições estruturais, de sistemas de valores, normas, símbolos (Minayo & Sanches,
1993), emoções, angústias e ansiedades (Turato, 2000), que considerados em conjunto
facilitam a compreensão do fenômeno social, revelando áreas e idéias inesperadas ou
desconhecidas até então (Britten, 1995). Como a fala é essencial, em pesquisa qualitativa,
a entrevista recebeu um espaço legítimo na produção de novos conhecimentos científicos
(Madureira, 2000).
A entrevista, enquanto instrumento metodológico, realizada “face-a-face”, consiste
numa ferramenta interativa em que o estabelecimento do vínculo investigador-pesquisado
cumpre uma função essencial na qualidade dos indicadores empíricos produzidos (Britten,
1995; Madureira, 2000; Carrillo, 2004; Nogueira-Martins & Bógus, 2004), devendo ser
53
sensível à linguagem, valores e conceitos da cultura investigada (Britten, 1995). A grande
vantagem da entrevista é que permite o acesso a sentimentos, pensamentos e intenções,
captando a informação desejada de maneira imediata e corrente, permitindo correções,
esclarecimentos e adaptações (Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
A fim de não interferir no fenômeno social, o entrevistador mantém-se o mais
neutro possível, evitando impor seus valores e pressuposições e mantendo-se sempre
aberto à possibilidade de que os conceitos e variáveis emergentes sejam diferentes dos
esperados (Britten, 1995). Assim, é vital que o entrevistador tenha se certificado a respeito
da compreensão do significado do respondente, em vez de basear-se em seus próprios
valores e conceitos, o que não lhe impede de voltar e esclarecer os pontos que
permaneceram pouco esclarecidos (Triviños, 1987).
Para Duarte (2002), além de manter-se neutro, a postura do entrevistador é
fundamental durante a entrevista, devendo encontrar a melhor maneira de formular as
perguntas, ser capaz de avaliar o grau de indução da resposta a cada questionamento e ter
controle sobre as próprias expressões corporais, evitando, ao máximo, gestos de
aprovação, rejeição, desconfiança, dúvida, entre outros. O pesquisador não pode se
esquecer do respeito pela cultura e valores do entrevistado e deve desenvolver uma grande
capacidade de ouvir atentamente e estimular o fluxo natural de informações por parte dos
entrevistados, de forma que ele se sinta à vontade para se expressar livremente (Nogueira-
Martins & Bógus, 2004).
Quanto à estrutura, a entrevista pode variar de estruturada a uma conversa informal
ou não-estruturada (Britten, 1995), cujo grau de formalidade varia conforme os fins da
pesquisa, o tema tratado e, principalmente daquilo que se considera como culturalmente
apropriado ao fenômeno social (Víctora et al., 2000). Diferentemente das entrevistas
estruturadas adotadas em pesquisas de cunho quantitativo, as pesquisas qualitativas
caracterizam-se pelo uso de entrevistas em profundidade, dentre elas a entrevista semi-
estruturada, adotada como o principal instrumento de coleta de dados no presente estudo
(Britten, 1995).
A entrevista semi-estruturada caracteriza-se por uma estrutura débil e é
direcionada por um roteiro ou questionário (em pesquisa etnográfica denominado por
Roteiro Etnográfico de Entrevista - REE) constituído exclusivamente por perguntas
54
abertas, que, a princípio, definem apenas a área a ser explorada. O número de perguntas
varia conforme a necessidade de compreensão sobre o fenômeno, não havendo uma ordem
pré-estabelecida entre as questões, tentando começar pelas mais fáceis, direcionando-se
para as de maior dificuldade ou de cunho pessoal e íntimo (Britten, 1995).
Esses questionamentos básicos ou fundamentais são resultado não da teoria que
alimenta a ação do investigador, mas também de toda a informação que ele já recolheu
sobre o fenômeno (Nogueira-Martins & Bógus, 2004), principalmente às advindas da
participação dos informantes-chave na pesquisa (WHO, 1994).
Durante o curso da entrevista, alguns tópicos são aprofundados para maior
detalhamento ou esclarecimento (Creswell, 1998; Patton, 1990; WHO, 1994), enquanto
que aqueles considerados como os mais polêmicos são reiterados ao longo do questionário,
permitindo ao entrevistador testar a confiabilidade das respostas fornecidas (Creswell,
1998). Além disso, algumas das perguntas do questionário são padronizadas, permitindo a
posterior comparabilidade de respostas entre os entrevistados (WHO, 1994).
No que concerne a possíveis problemas na constituição do roteiro, são facilmente
identificados durante a realização de pré-testes ou mesmo durante as entrevistas, por essa
razão, a característica mais marcante dos roteiros é a flexibilidade, ou seja, itens podem
ser retirados ou mesmo acrescentados, devendo o roteiro ser periodicamente revisado para
que se possa avaliar se ainda atende aos objetivos definidos à investigação (Britten, 1995).
Para finalizar, além de manter-se, a todo o momento, atento à escuta do que é dito,
refletindo a forma e conteúdo da fala do entrevistado, o investigador deve ater-se aos tons,
ritmos e expressões gestuais que a acompanham ou a substituem (Duarte, 2002). toda
uma gama de gestos, expressões, entonações, sinais não-verbais, hesitações, alterações de
ritmo, enfim, toda uma comunicação não-verbal cuja captação é importante para a
compreensão e validação do que foi dito (Carrillo, 2004; Nogueira-Martins & Bógus,
2004).
3.5.2 Estudo de Campo (EC).
Observar, em etnografia, significa examinar com todos os sentidos, um evento, um
indivíduo ou um grupo de pessoas dentro de um contexto social específico (Victora et al.,
55
2000), com o objetivo principal de gerar conhecimento científico sedimentado sobre a vida
humana na realidade do dia-a-dia (Nogueira-Martins & Bógus, 2004). O confronto da fala
e da prática social é tarefa complementar e concomitante em investigações qualitativas,
pois muitos elementos que não são apreendidos por intermédio da fala, de forma que o
estudo observacional fornece subsídios para a análise e compreensão dos dados coletados
por intermédio de outras técnicas (Víctora et al., 2000; Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
Conforme proposto pela Antropologia e descrito por Minayo & Sanches (1993), a
análise qualitativa interpreta o conteúdo dos discursos ou da fala quotidiana dentro de um
quadro de referência, onde a ação e a ação objetivada nas instituições permitem
ultrapassar a mensagem manifesta e atingir os significados latentes, idéia acertadamente
constatada por Whyte (1943 apud Díaz et al., 1992) ao afirmar que o que as pessoas me
disseram, ajudou-me a explicar o que havia acontecido e o que eu observei ajudou-me a
explicar o que as pessoas me disseram.
Quanto às condições do estudo de campo, o ambiente natural é o local apropriado à
sua execução, já que a configuração ambiental engloba e preserva a configuração das
incontáveis características do “pesquisado” (Turato, 2000), o que acaba por denominar, a
abordagem qualitativa, mais especificamente a etnografia, como um estudo naturalístico
(Turato, 2000). Durante o estudo de campo é importante que o investigador familiarize-se
ao máximo com o milieu do fenômeno social, além de testemunhar o maior número de
atividades possível, de forma a ser capaz de distinguir suas formas típicas e atípicas (Mays
& Pope, 1995).
Quanto à forma, vários tipos de registro (Nogueira-Martins & Bógus, 2004). Na
presente pesquisa optou-se pelas notas de campo como o instrumento mais básico de
registro. Trata-se do registro fiel, detalhado e cronológico de cada visita do investigador ao
campo (Víctora et al., 2000), cuja análise foi submetida a rigorosos procedimentos, em
semelhança ao realizado aos dados coletados durante as entrevistas, a serem descritos em
detalhes adiante.
Em função de, na época da coleta de dados, a Cracolândia, região de livre comércio
e uso de crack na cidade de São Paulo, estar passando por uma série de reestruturações, a
realização do estudo de campo não foi possível em tal cidade. Soma-se a isso, o fato de
que, durante as entrevistas, quando questionados a respeito da presença do investigador na
56
região da Cracolândia, os entrevistados acostumados a freqüentarem-na, além de
considerarem-na uma situação perigosa, não se dispuseram, em momento algum, a facilitar
a aproximação do investigador ao campo.
A fim de não se expor a um risco desnecessário, a falta do estudo de campo foi
compensada pelo aumento do número de entrevistas (de forma a abordar o fenômeno em
suas múltiplas dimensões), pela observação e vivência da cultura em serviços de
prevenção, redução de danos e tratamento disponíveis a usuários de drogas na cidade de
São Paulo.
Em contrapartida, na cidade de Barcelona, a situação foi um pouco diferente. O
estudo de campo foi conduzido de forma satisfatória, não apenas por intermédio da
observação e vivência do fenômeno em serviços especializados de intervenção (prevenção,
tratamento e redução de danos), mas também pela presença do investigador nas regiões da
cidade sabidamente envolvidas no comércio e uso de crack e de outras drogas em geral. O
número de visitas, horário e os locais onde o estudo de campo foi realizado são
sucintamente comentados no item específico da cidade de Barcelona no final da seção
referente à Metodologia.
3.5.3 Critério de Classificação Socioeconômica Brasil (CCEB).
O Critério de Classificação Socioeconômica Brasil (CCEB), comumente tratado
por Critério Brasil (ABEP, 2000)
(A
PÊNDICE
1), estima o poder de compra dos indivíduos
e das famílias urbanas com base no Levantamento Socioeconômico (LSE) do IBOPE,
classificando-os por classes econômicas. O critério apresenta um sistema de pontuação
socioeconômica que fornece estimativas eficientes a respeito do poder aquisitivo da
população. Consiste num bom indicador quando aplicado a trabalhos de comportamentos e
atitudes tão comuns a pesquisas qualitativas (ABEP, 2000) que, geralmente, dentre seus
instrumentos e procedimentos, empregam a entrevista em profundidade ou grupos focais.
57
3.5.4 Critério de Abuso e Dependência do DSM-IV.
Para identificar se a condição de uso de crack, entre os componentes da amostra,
era de abuso ou dependência, os critérios do Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders (APA, 1994) foram inseridos no roteiro de entrevista na forma de perguntas e
mesclados entre os demais tópicos.
3.5.5 Outros instrumentos.
Outras formas de contato podem integrar dados de relevância em abordagem
qualitativa, sejam conversas informais ou telefônicas, mensagens de correio eletrônico,
sites específicos da Internet, fotografias, notícias em jornais ou revistas, entre outros
(Duarte, 2002). Embora sejam importantes fontes de materiais complementares à pesquisa,
não se constituem no foco central da análise, mas dela participam ativamente (Duarte,
2002).
3.6 Análise dos dados.
3.6.1 Procedimentos de análise.
Estudos qualitativos produzem uma grande quantidade de dados, sejam anotações
de campo, transcrições de entrevistas, fotografias, etc. Como os dados são densos, a
análise é dita sistemática, rigorosa e intensiva (Pope et al., 2000; Duarte, 2002), já que o
investigador prossegue por vários níveis à medida que procura por sentidos e significados,
substituindo as correlações estatísticas por descrições e as conexões causais objetivas por
interpretações (Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
Em contrapartida, a análise é um processo dinâmico e flexível, iniciando
simultaneamente e dando forma à fase de coleta de dados, permitindo que perguntas
inicialmente formuladas possam ser enunciadas de outra maneira ou totalmente
substituídas à luz dos resultados e experiências que o investigador esteja configurando,
além de permitir que hipóteses sejam formuladas e reformuladas à medida que se realiza a
pesquisa (análise contínua) (Triviños, 1987). Essa circunstância permite que o investigador
58
esboce novas linhas de inquisição, vislumbrando outras perspectivas de análise e de
interpretação no aprofundamento do conhecimento acerca do fenômeno, além de permitir a
busca de casos negativos ou desviantes, ou seja, exemplos de discursos ou eventos
diferentes das proposições e hipóteses que o trabalho vem delineando (Pope et al., 2000;
Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
A análise contínua, característica que separa diametralmente a abordagem
qualitativa dos enfoques quantitativos e experimentais (Triviños, 1987), é quase inevitável,
já que o investigador, muitas vezes, está no campo coletando os dados, o que torna
impossível não pensar no que está sendo dito ou ouvido (Pope et al., 2000).
Além de contínua, a análise é fundamentalmente indutiva, ou seja, a teoria surge a
partir dos próprios dados, na direção do particular ao geral (Triviños, 1987; Turato, 2000)
e de dentro para fora (Marcus & Liehr, 2001). O investigador é orientado a descobrir
teorias, conceitos, hipóteses e proposições a partir dos próprios dados e não a priori, antes
do estudo, evitando a influência de pressupostos teóricos já existentes (Carrillo, 2004).
A tarefa de análise implica, num primeiro momento, a organização de todo o
material (Duarte, 2002; Franco, 2003; Bardin, 2004; Nogueira-Martins & Bógus, 2004),
dividindo-o em partes, de tal forma a relacioná-las, procurando identificar tendências e
padrões relevantes. Num segundo momento, essas tendências e padrões são reavaliados,
buscando-se relações e inferências num vel mais profundo de abstração (Bardin, 2004;
Nogueira-Martins & Bógus, 2004), correspondendo a um mergulho analítico destinado à
construção de hipóteses e reflexões, levantando dúvidas ou reafirmando convicções a
respeito do fenômeno em estudo (Duarte, 2002).
Na verdade, não fórmulas e tampouco regras para analisar e interpretar os dados
qualitativos. apenas sugestões de procedimentos, dependendo, em última instância, da
capacidade intelectual e do estilo do pesquisador, de tal forma a representar os dados da
forma mais fiel e real possível, revelando-os conforme os propósitos da pesquisa (Patton,
1990; Nogueira-Martins & Bógus, 2004).
Abaixo, descreve-se, em detalhes, o procedimento de organização e interpretação
dos dados conforme sugerido por Minayo (1993), Franco (2003) e Bardin (2004).
59
(I) Entrevistas: No que concerne às entrevistas (gravadas com a concordância prévia do
participante), cada fita foi devidamente registrada e deu-se início ao processo de
transcrição em que as informações verbais foram transformadas numa representação
escrita através do software Microsoft Word. Como as transcrições são dados brutos,
consistindo no registro descritivo da etnografia, não providenciam explicações, de tal
forma a necessitar, então, de procedimentos de preparo e interpretação. Logo, as
transcrições foram submetidas a um rigoroso processo de análise, obedecendo aos
seguintes passos:
(a) leituras flutuantes: cada uma das entrevistas foi lida e relida, permitindo ao
investigador entrar em contato com o material;
(b) procedimentos exploratórios, empregados de forma a permitir que hipóteses a respeito
do fenômeno começassem a surgir;
(c) preparação do material, etapa durante a qual as entrevistas foram divididas e
reagrupadas conforme as perguntas do roteiro. Durante esse processo, primeiramente, cada
entrevista foi codificada, ou seja, identificaram-se, na transcrição, as respostas referentes a
cada uma das perguntas do roteiro. Assim, cada entrevista transcrita foi desmembrada
conforme a questão do roteiro, sendo que uma mesma passagem pôde corresponder a
diferentes questões.
Posteriormente, foi criado um programa de computador específico para a inserção
dos dados, possibilitando obter relatórios tabulados por questão do roteiro, de tal forma
que as respostas do entrevistado A para a pergunta 1 foram agrupadas com as respostas do
entrevistado B para a mesma pergunta, gerando um relatório de respostas específico para a
questão 1. O mesmo procedimento foi repetido para as demais perguntas do roteiro.
Por exemplo, como na cidade de São Paulo, o roteiro de entrevista era constituído
por 118 perguntas, gerou-se 118 relatórios, dos quais três eram específicos a ex-usuários.
Assim, na cidade de São Paulo, foram gerados 118 relatórios ao grupo de ex-usuários (E) e
115 relatórios ao grupo de usuários (U). Como o roteiro da cidade de Barcelona era
constituído por 27 perguntas, foram gerados 27 relatórios a cada um dos grupos, de tal
60
forma a gerar, junto com os da cidade de São Paulo, um total de 145 relatórios a serem
analisados para o entendimento da cultura de crack em ambas as cidades pesquisadas;
(d) Posteriormente, os relatórios impressos foram avaliados individualmente e
transformados em tabelas temáticas, a fim de possibilitar o tratamento dos resultados. As
tabelas temáticas contêm o resumo das experiências e dos pontos de vista dos
entrevistados, possibilitando a abstração e a síntese dos dados.
Finalmente, por intermédio das tabelas temáticas definiram-se conceitos, mapeou-
se a natureza e a extensão do fenômeno, criaram-se tipologias e associações, de forma a
obter-se os resultados e hipóteses a respeito da cultura de crack. É importante ressaltar que
o processo de mapeamento e de interpretação foi influenciado pelos objetivos originais do
estudo, assim como pelos temas que emergiram do processo de análise.
(II) Notas de campo: As notas de campo foram submetidas aos mesmos
procedimentos de análise descritos em detalhes anteriormente.
3.6.2 Representação dos resultados.
Em pesquisa quantitativa é comum que os resultados sejam apresentados em
tabelas, onde são destacadas as relações estatísticas entre as variáveis. Em contrapartida,
em pesquisa qualitativa, como a descrição do fenômeno está impregnada de significados
subjetivos, os dados tendem a ser representados de forma essencialmente descritiva,
rejeitando toda e qualquer forma de expressão quantitativa ou numérica (Triviños, 1987;
Pope & Mays, 1995; Turato, 2003).
Em pesquisa qualitativa, expressar os resultados em termos de freqüências
absolutas e relativas, além de inadequado, tende a ser simplista e até errôneo (Pope et al.,
2000). Porém, como os dados são extensos, o que lhes dificulta uma descrição mais
objetiva, pode-se combinar a análise qualitativa a um resumo quantitativo dos resultados,
mas, neste caso, a quantificação é meramente usada para condensar os resultados,
61
tornando-os mais compreensíveis, de tal forma que a pesquisa continua, em natureza,
sendo qualitativa (Mays & Pope, 1995).
Na falta de representações quantitativas, os resultados são expressos por intermédio
de narrativas e a fim de dar-lhes fundamentação concreta e riqueza, são ilustrados com
fragmentos dos discursos dos entrevistados (Turato, 2000), além de serem
complementados, quando possível, da redação das observações emergentes do “setting”
(estudos de campo), de documentos pessoais, fotografias, entre outros que se façam
necessários (Triviños, 1987).
Para a melhor qualidade da narrativa e suavizar o conteúdo dos resultados, as
porcentagens são substituídas por expressões equivalentes, conforme proposto por Diaz et
al. (1992), demonstradas na escala abaixo:
Expressões Porcentagem
Todos 100
Quase todos 90-99
A maior parte 75-89
A maioria 55-74
Um pouco mais da metade 52-54
A metade 49-51
Um pouco menos da metade 46-48
Mais de um terço 36-45
Aproximadamente um terço 31-35
Mais da quarta parte 26-30
Aproximadamente a quarta parte 24-26
Menos da quarta parte 16-23
Uma minoria 15 ou menos
Somente alguns (...)
62
3.7 Ética em pesquisa.
A realização do projeto de pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) sob o protocolo n
0078⁄04 (A
PÊNDICE
2).
Previamente à entrevista, todos os participantes foram informados a respeito dos
objetivos da pesquisa, garantindo-se a confidência das informações e enfatizando-se que
respondessem o que lhes conviesse, de forma que pudessem recusar-se a responder
qualquer um dos tópicos. Todas as entrevistas foram gravadas com o consentimento oral
de participação do entrevistado (gravado em fita) e após ter aceitado as proposições
declaradas no
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
(A
PÊNDICE
3).
Cada entrevistado foi ressarcido pelos gastos de tempo e transporte até o local de
realização das entrevistas, de forma a obedecer aos princípios sugeridos na Resolução 196
do Ministério da Saúde que determina as normas de experimentação em humanos.
No que tange ao consentimento de participação consiste numa condição negociável,
já que no decorrer do estudo, o que no início parece agradável, posteriormente pode tornar-
se intromissão, podendo assumir posição inaceitável pelo participante. Assim, o
pesquisador sempre se manteve aberto à desistência de participação caso assim fosse
desejado e a qualquer momento. A oportunidade de renegociar o consentimento acaba por
estabelecer uma relação de confiança e respeito entre o investigador e o participante,
característica da conduta ética em pesquisa (Marcus & Liehr, 2001).
Ao estar aberto à possibilidade de desistência, no presente estudo, mais
especificamente na cidade de São Paulo, houve a desistência de participação de três dos
entrevistados e como se deram no decorrer da entrevista, seus dados foram
desconsiderados do processo de análise.
63
A seguir, alguns dos tópicos, referentes à metodologia, são apresentados separados
conforme a cidade do estudo.
Seção I – Dados específicos da cidade de São Paulo.
Informantes-chave.
Na cidade de São Paulo foram selecionados nove informantes-chave, entre eles,
profissionais de saúde (psiquiatras e psicólogos) e outros profissionais (redutores de
danos) que estabelecessem contato direto e/ou convivência com usuários ou ex-usuários de
crack. Para aprofundar e detalhar a compreensão do fenômeno, usuários e ex-usuários
também foram inseridos como informantes-chave. Abaixo, os informantes-chave foram
separados conforme a respectiva área de atuação:
(a) Profissionais da área de saúde
Foram entrevistados três médicos, especialistas em psiquiatria, oriundos de
instituições devotadas ao atendimento, tratamento e redução de danos a usuários de drogas,
atuantes na cidade de São Paulo, a citar: PROSAM – Associação Pró-Saúde Mental;
PROAD Programa de Orientação e Atendimento a Dependentes e, finalmente, UDED
Unidade de Dependência de Drogas.
Foram entrevistadas duas psicólogas, das quais uma é especialista em
Neuropsicologia e doutora em Ciências pela UNIAD (Unidade de Pesquisa em Álcool e
Drogas) e a outra coordenava o atendimento a usuários de crack provenientes da região da
Cracolândia, na sede da ONG “É de lei”, situada na região central da cidade de São Paulo.
(b) Outros profissionais
Foi entrevistada uma redutora de danos da ONG “É de lei”. A profissão de redutor
de danos devota-se à orientação de usuários de drogas (aqui especificado a usuários de
64
crack), não de forma a conduzi-los à abstinência, mas à redução de comportamentos que,
de certa forma, pudessem gerar algum tipo de dano ou prejuízo à sua saúde.
O redutor de danos entrevistado abordava o usuário de crack em campo, ou seja, na
região de uso, nesse caso especificamente na Cracolândia, podendo levá-lo ou não à ONG
para a melhor abordagem e aconselhamento a respeito do tema.
(c) Representantes da Amostra
Foi entrevistado um pastor protestante, ex-usuário de crack, dirigente de cultos e
grupos de ajuda na Igreja Bola-de-neve destinados ao tratamento de dependentes de crack
e outras drogas ilícitas.
Foram entrevistados dois usuários de crack, moradores e trabalhadores da Vila
Clementino, nas proximidades do Departamento de Psicobiologia da UNIFESP.
Tanto o ex-usuário como os usuários abordados mantinham ou mantiveram
envolvimento ativo e prolongado com a droga, participando intensamente da cultura, logo,
não se tratavam de usuários esporádicos ou experimentais de crack, fato que, além de
contribuir para a riqueza dos dados, assegurou a veracidade das informações que estavam
sendo prestadas, evitando também a participação de indivíduos com viés de iniciante.
Questionário ou roteiro de estudo etnográfico (REE).
Na cidade de São Paulo, o roteiro consistiu de 15 blocos de perguntas (A
NEXO
1),
resultantes da
combinação do formulário já padronizado da OMS para derivados da
cocaína (WHO, 1992
b
) com os temas abordados durante as entrevistas com os
informantes-chave, totalizando então 118 questões. Dessas, três questões foram específicas
aos ex-usuários, tratando das razões e motivações ao abandono do uso de crack.
Abaixo, são apresentados os tópicos abordados durante a entrevista, acompanhados
por uma breve descrição de seus objetivos. O número de perguntas variou entre os tópicos
conforme a necessidade de sua melhor compreensão, sendo ressaltada entre parênteses:
(a)
Dados sócio-demográficos
(8): Descrição das informações gerais sobre o entrevistado,
a citar: idade, estado civil, grau de escolaridade, situação de emprego, número de filhos,
65
crença e prática de religião e caracterização geral da moradia e do bairro em que
residissem.
(b)
Antecedentes pessoais
(12): Levantamento de informações quanto à estrutura da
família, tanto a de origem quanto a atual, ressaltando a relação do entrevistado com os
demais membros familiares e o histórico do uso de drogas lícitas e ilícitas pela família.
(c) Histórico do uso de drogas
(9): Levantamento das drogas lícitas e ilícitas já consumidas
na vida pelo entrevistado. Quando observado o uso de outros derivados da cocaína além do
crack, foram investigadas as possíveis diferenças de efeitos entre elas, a transição de vias e
as motivações subjacentes para tal.
(d)
Associação de crack a outras drogas
(4): Investigação da existência de combinações
específicas do uso de crack a outras drogas, identificando-se suas motivações. Verificou-se
se o uso de crack interferiu, de alguma maneira, sobre a progressão do uso das demais
drogas e se as drogas associadas interferiram reciprocamente sobre o uso de crack.
(e)
Acessibilidade e distribuição de crack
(4): Identificação dos locais de venda de crack,
assim como suas possíveis formas de apresentação, ressaltando, entre elas, diferenças de
preço e de efeitos.
(f)
Crack e atividades sociais (Atividades escolares e trabalho) (9): Caracterização da
relação do uso de crack à vida social do entrevistado, mais especificamente quanto ao
desenvolvimento de atividades relacionadas ao trabalho, estudo, família e círculo de
amizades.
(g)
Padrão do uso de crack
(23): Caracterização do padrão de consumo de crack,
acompanhando sua evolução desde a experimentação até o momento de consumo na época
da entrevista. Identificar a existência de controle sobre o consumo, assim como de suas
possíveis motivações e estratégias.
66
(h)
Estratégias e Ritual do uso de crack
(3): Identificação das diferentes estratégias
empregadas ao uso de crack, assim como do ritual envolvido em seu preparo e posterior
consumo.
(i)
Aparato
(5): Caracterização do aparato necessário ao uso de crack, ressaltando-se os
materiais com os quais pudesse ser manufaturado.
(j) Efeitos
(2): Identificação dos efeitos imediatos decorrentes do uso de crack,
investigando-se sua possível modificação conforme a progressão do consumo,
especialmente no que se refere aos efeitos de tolerância e sensibilização.
(k)
Atividades atípicas ou ilícitas
(5): Identificar se os usuários de crack desenvolvem
algum tipo de atividade ou comportamento ilícito destinado à obtenção de crack quando
sob sua fissura.
(l)
Conseqüências decorrentes do uso de crack (20): Investigação do impacto do uso de
crack na vida do usuário, de forma a identificar a ocorrência de alguma conseqüência, seja
moral, física ou socioeconômica que estivesse, de alguma maneira, associada ao consumo
de crack.
(m)
Percepção do uso e do usuário de crack
(4): Identificação da maneira pela qual os
entrevistados pensam a respeito do crack, sobre si e sobre outros usuários de drogas.
(n)
Motivações ao abandono do uso de crack: Aplicado apenas a ex-usuários de crack
possibilitou o esclarecimento dos motivos e das estratégias que contribuíram à interrupção
do uso de crack.
(o) Critérios do DSM-IV para abuso e dependência de drogas
(7): A fim de investigar o
estado de abuso ou dependência a crack, os critérios do DSM-IV foram inseridos no
roteiro na forma de perguntas e mesclados entre os demais tópicos.
67
Entrevistas.
Contatados os informantes-chave e continuando-se a seleção da amostra por
intermédio da técnica de bola-de-neve, foram construídas 15 cadeias de participantes, cujo
número de constituintes variou entre três e cinco elementos. Algumas das cadeias foram
iniciadas por indicação de psiquiatras, psicólogos, agentes redutores de danos e outros
profissionais envolvidos em clínicas médicas, comunidades terapêuticas ou centros de
redução de danos atuantes na cidade de São Paulo. Já outras cadeias tiveram início através
da indicação a partir do usuário e ex-usuários incluídos como informantes-chave na
pesquisa, de tal forma que representantes da amostra também foram recrutados da
comunidade, logo, a amostragem, em nenhum momento restrigiu-se apenas a sujeitos
submetidos a programas de saúde ou intervenção sobre o uso de drogas.
Na construção das cadeias, houve aquelas que iniciaram como ramificações de uma
cadeia pré-existente, por exemplo, um participante da cadeia A passou a ser informante da
cadeia B, entre elas não existindo nenhum tipo de ligação ou contato além da
mencionada.
Assim, ao total, na cidade de São Paulo foram recrutados 65 sujeitos. Como três
deles desistiram de participar da pesquisa, suas informações foram desconsideradas. Então,
no final, a amostra da cidade de São Paulo foi constituída pela opinião de 62 sujeitos,
divididos entre usuários (45) e ex-usuários de crack (17).
Abaixo segue a lista das instituições que contribuíram à seleção de participantes na
cidade de São Paulo:
C
OMUNIDADES TERAPÊUTICAS E CLÍNICAS MÉDICAS
A
SSOCIAÇÃO
P
ROMOCIONAL
O
RAÇÃO E
T
RABALHO
(APOT)
C
ASA DE
A
POIO
N
OMATA
C
LÍNICA
M
ÉDICA
M
ASTER
M
IND
C
OMUNIDADE
C
ASA
E
SPERANÇA E
V
IDA
(CEEV)
C
OMUNIDADE
R
ECANTO
T
ERAPÊUTICO
C
AMINHAR
C
OMUNIDADE
T
ERAPÊUTICA
P
ORTAL DA
L
UZ
68
C
OMUNIDADE
T
ERAPÊUTICA
S
ÃO
J
UDAS
T
ADEU
(I
NSTITUTO
T
HEODORE
R
ATISBONNE
)
P
ROJETOS E
P
ROGRAMAS DE
R
EDUÇÃO DE
D
ANOS
P
ROGRAMA DE
O
RIENTÃO E
A
TENDIMENTO A
D
EPENDENTES
(PROAD)
P
ROJETO
E
SPERANÇA
P
ROJETO
S
AMARITANO
É
DE
L
EI
Procedimento: As entrevistas foram conduzidas nas dependências do Departamento de
Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), em salas neutras e
seguras apropriadas a tal tipo de intervenção. Todos os participantes foram entrevistados
individualmente e por um único investigador, por período aproximado de 88 minutos,
variando sua duração dentro do intervalo de 45 e 150 minutos. As informações foram
gravadas em fita após o consentimento oral do pesquisado e aceitação do Termo de
Consentimento Livre e Esclarecido (A
PÊNDICE
3).
Codificação da amostra: Os participantes da amostra foram codificados conforme
o grupo a que pertenciam, conforme segue abaixo:
Ex-usuários: A31ME; A45ME; C25FE; DA27ME; E23ME; E26ME; F17FE; G28ME;
H33ME; L39ME; L45FE; M31ME; M39ME; N25FE; O23ME; SL35FE; V45ME.
Usuários: A25FU; A28MU; A30MU; A36FU; A50MU; C22MU; C32MU; D18FU;
D35MU; D36MU; E32MU; ED26MU; F17MU; F20MU; F26MU; F39MU; G23MU;
G36MU; J24MU; J26MU; J30MU; J39MU; J41MU; J53FU; JL27MU; JP26MU; K20FU;
L36MU; M22MU; M31MU; M33MU; M34MU; M36FU; N19MU; N35MU; NA35FU;
P29FU; P30MU; P50MU; PE29MU; R24MU; S17MU; S36FU; T23FU; T20MU.
69
Seção II – Dados específicos da cidade de Barcelona.
Informantes-chave.
Na cidade de Barcelona, como informantes-chave foram contatados profissionais
de serviços públicos de saúde, disponibilizados pelas autoridades governamentais (seja
pela Generalitat da Catalunya, Diputació ou Ajuntament de Barcelona) a usuários e ex-
usuários de drogas, tratando-se de serviços de prevenção, redução de danos e tratamento ao
uso de drogas. Aproveitou-se para estabelecer contato com instituições privadas associadas
ao tratamento da dependência de drogas e outras envolvidas no estudo epidemiológico do
consumo de drogas na cidade de Barcelona, todas listadas e descritas, em detalhes, abaixo:
(a) Centros de redução de danos e tratamento.
S
ALAS DE VENOPUNÇÃO ASSISTIDA OU
S
ALAS DE VENPOPUNÇÃO HIGIÊNICA
ou
vulgarmente N
ARCOSALAS
(
BALUARD E EL LOCAL
): Salas que oferecem um espaço seguro
ao uso de drogas endovenosas, com menos riscos e mais higiene, estabilizando e
promovendo a saúde dos usuários e reduzindo a morbi-mortalidade dessa população. Atua
de forma a reduzir, ao máximo, o consumo público de drogas e seus problemas associados,
freando e prevenindo o aumento da delinqüência associada, diminuindo, dessa maneira,
sua repercussão sobre a comunidade. Dispõem de programa sanitário aos usuários
(consultas médica e de enfermagem), além de programa de intercâmbio de seringas e
programas educativos. Oferecem um espaço alternativo denominado Calor i Café, dirigido
às pessoas consumidoras de drogas que estejam desvinculadas da rede de assistência social
e sanitária normalizada. Esse espaço contribui para a cobertura das necessidades mais
básicas do usuário (alimentação, higiene, socialização, etc), adoção de hábitos saudáveis,
modificação dos comportamentos de risco e fomento à responsabilidade, controle e
seguimento sanitário, facilitando o acesso do usuário à rede sócio-sanitária normalizada.
C
ENTROS DE ATENÇÃO AMBULATORIAL E SEGUIMENTO A DROGODEPENDENTES
(CAS): Serviço multidisciplinar destinado ao atendimento ambulatorial do dependente de
70
drogas, acompanhando-o a âmbito médico, psicológico e social. Tem como propósito o
diagnóstico e tratamento da dependência de drogas, assim como a redução dos danos
associados ao uso de drogas. Cada paciente é acompanhado, individualmente, por um
terapeuta (médico, psicólogo ou assistente social), que decide por quanto tempo será
realizado o atendimento. Dependendo da situação, o paciente pode ser dirigido ao hospital
para desintoxicação ou a tratamento em comunidade terapêutica. O CAS também oferece
acompanhamento psicoterapêutico aos familiares dos pacientes, informando-os quanto à
natureza das drogas e os riscos associados.
P
ROJETO
S
ITUA
T
: Projeto de integração sócio-laboral destinado a dependentes de
drogas submetidos a programa de tratamento ou redução de danos. Oferecem atividades
manuais e cursos de informação e motivação para conseqüente inserção ao mercado
laboral, atuando no reforço de habilidades sociais e resolução de problemas.
E
NERGY
C
ONTROL
: Coletivo de pessoas que se preocupa com o uso de drogas entre
jovens, mais especificamente, em ambientes de festas. Aborda o consumo desde uma
perspectiva de redução de danos, ou seja, para as pessoas que decidiram não consumir a
informação pretende reforçar sua posição e oferecer, em caso do consumo, guias para o
uso responsável. Para as pessoas que decidiram consumir, a informação pretende
proporcionar elementos úteis que favoreçam o uso de menor risco, assim como espaços de
informação e atenção. Dispõe de serviços de análise de amostras de drogas fornecidas por
usuários que estejam em dúvida sobre sua qualidade. Dispõe de Fórum de discussão aberto
a pessoas, usuárias ou não, que queiram discutir sobre drogas (www.energycontrol.org).
A
MBIT
P
REVENCIÓN
: Associação cujo objetivo principal é a prevenção, tratamento
e reinserção sócio-laboral a dependentes de drogas e portadores do vírus HIV, realizando
programas que permitam o contato direto com pessoas que sofram situações de exclusão e
marginalização. Atua na área de redução de danos, desenvolvendo programa de troca de
seringas, cursos de formação (injeção higiênica e sexo seguro) e cursos de redução de
danos na prisão (focados em overdose e infecções). Possui programas de rua em contato
71
direto com usuários de drogas, detectando suas necessidades e adaptando-os às
intervenções disponíveis.
S
POTT
: Centro Comunitário de Atenção a pessoas dependentes de drogas e seus
familiares, que tem por fim a prevenção e tratamento da dependência de drogas, além de
atuar na redução de danos e reinserção social de ex-usuários.
Centro de Saúde I
NSTITUTO
G
ENUS
: Atua no tratamento de transtornos e afecções
orgânicas. Na área de dependência de drogas atua no diagnóstico, tratamento
(ambulatorial, familiar e em grupo) e reabilitação de adultos dependentes de drogas,
dispondo de programas comunitários de prevenção. Na área de educação e formação
ministra conferências, cursos, seminários e grupos de trabalho sobre temas em saúde, além
de possibilitar assessoria a escolas, institutos e outras entidades. Atua também realizando
estudos e projetos relacionados com a educação sanitária e promoção da saúde.
Comunidade Terapêutica C
AN
C
OLL
: Associada à Fundação S
ALUD Y
C
OMUNIDAD
consiste em comunidade terapêutica privada que funciona sob as regras e controle do
Governo da Catalunya (Generalitat de Catalunya). Embora privada, recebe mensalmente
verba do governo a fim de que sejam mantidas parte das vagas ao atendimento de
pacientes de parcos recursos financeiros.
(b) Centros de estudo e investigação na área de psicofarmacologia e dependência de
drogas.
G
RUPO IGIA
: Associação de âmbito estatal que se propõe gerar, desde um âmbito
associativo, de caráter interdisciplinar, espaços de encontro e instrumentos para a reflexão
e debate a respeito dos diversos aspectos relacionados com o fenômeno da dependência de
drogas.
Centro de Saúde
INSTITUTO GENUS
(já citado acima).
72
Como extensão da compreensão da cultura de crack e não mais com o propósito de
selecionar informantes-chave, estabeleceu-se contato com centros de redução de danos
fora dos domínios da comunidade autonômica de Catalunya, ou seja, tanto em outras
comunidades espanholas (Valência e País Vasco) como em outros países (França: Paris), a
citar:
S
ALA DE CONSUMO SUPERVISIONADO DE BILBAO
(Responsável: Mikel Urquiola
Garcia): www.medicosdelmundo.org: [email protected]).
P
ROGRAMAS DE REDUCCIÓN DE DAÑOS DE LOS MÉDICOS DEL MUNDO
,
COMUNIDAD
VALENCIANA
(Responsável: Raúl Soriano Ocón).
A
SSOCIATION ESPOIR GOUTTE D
OR
(
CENTRE DE REDUCTION DE RISQUES
(Responsável: Lia Cavalcante).
Questionário ou roteiro de estudo etnográfico (REE).
O roteiro adotado à cidade de Barcelona foi adaptado do referente à cidade de São
Paulo, a fim de que comparações posteriores fossem possíveis. Porém, optou-se por um
questionário reduzido, em função de dispor-se de pouco tempo à compreensão do
fenômeno na cidade de Barcelona, além da necessidade de analisar os dados ainda em
território espanhol para apresentação à Generalitat de Catalunya como forma de prestação
de contas ao auxílio financeiro que foi prestado à pesquisa, no que tange especificamente
ao ressarcimento dos entrevistados. Assim, o roteiro de entrevista (A
NEXO
2) foi
constituído por 27 perguntas distribuídas em oito tópicos, abaixo apresentados,
acompanhados por uma breve descrição de seus objetivos. O número de perguntas variou
entre os blocos conforme a necessidade de sua compreensão, sendo ressaltado entre
parênteses conforme segue:
(a)
Dados sócio-demográficos
(6): Descrição das informações gerais sobre o entrevistado,
a citar: sexo, idade, estado civil, nacionalidade, grau de escolaridade e situação de
trabalho.
73
(b)
Antecedentes pessoais
(3): Levantamento de informações quanto ao relacionamento do
usuário com os familiares, uso de drogas lícitas e ilícitas dentro da família e, finalmente,
situação de atividades sociais, no que concerne especialmente a trabalho e atividades
escolares entre os entrevistados, ressaltando-se sua relação com o uso de crack e outras
drogas.
(c)
Histórico do uso de drogas
(4): Levantamento das drogas lícitas e ilícitas já consumidas
na vida pelo entrevistado. Quando observado o uso de outros derivados da cocaína, além
do crack, investigou-se as possíveis diferenças de efeitos entre elas, a transição de vias e as
motivações subjacentes. Aproveitou-se para investigar se o entrevistado, em algum
momento da vida, foi submetido a programas de redução de danos ou tratamento ao abuso
ou dependência de drogas.
(d)
Acessibilidade de crack (1): Identificar e caracterizar a acessibilidade e as formas
comercializadas de crack.
(e) Preparo e consumo de crack
(4): Como o preparo de crack é prática comum na cidade
de Barcelona, conforme os informantes-chave, abordou-se os procedimentos e os aparatos
necessários para tal. Enfatizou-se o padrão e as condições necessárias ao uso de crack,
tentando identificar-se a existência do uso controlado, assim como as motivações e
estratégias a ele subjacentes. Aproveitou-se para identificar e descrever os efeitos
decorrentes do uso de crack.
(f)
Associação de crack a outras drogas
(3): Investigação da existência de combinações
específicas do uso de crack a outras drogas, identificando-se as motivações a elas
subjacentes. Verificou-se se o uso de crack interferiu, de alguma maneira, sobre a
progressão do uso das demais drogas e se as drogas associadas interferiram reciprocamente
sobre o uso de crack.
74
(g)
Conseqüências decorrentes do uso de crack (4): Verificar o impacto do uso de crack na
vida do usuário, de forma a identificar a ocorrência de alguma conseqüência, seja moral,
física, financeira ou sexual associada ao consumo de crack. Aproveitou-se para identificar
se os usuários de crack desenvolviam algum tipo de atividade ou comportamento ilícito
destinado à obtenção de crack quando sob fissura.
(h)
Percepção do uso e do usuário de crack
(2): Identificar o que os entrevistados pensam a
respeito do crack, sobre si próprios e sobre outros usuários de drogas.
Entrevistas.
Uma vez contatados os informantes-chave deu-se continuidade à amostragem por
intermédio da técnica bola-de-neve. Assim, ao total, foram selecionados 30 participantes
(20 usuários e 10 ex-usuários de crack), distribuídos em sete cadeias diferentes, cujo
número de elementos variou entre três e quatro respondentes.
Assim como realizado na cidade de São Paulo, os entrevistados foram informados a
respeito dos objetivos da pesquisa, do sigilo das informações e da possibilidade de
desistência a qualquer momento, sendo a entrevista iniciada após o fornecimento do
consentimento oral de participação. As entrevistas foram individuais e conduzidas por um
único investigador, tendo duração variada dentro do período de 50 e 90 minutos.
Como não houve desistências de participação, o fenômeno da cultura de crack foi
compreendido, na cidade de São Paulo e Barcelona, através do relato de 92 respondentes,
divididos entre usuários (65) e ex-usuários (27).
Codificação da amostra: Os sujeitos da amostra foram codificados conforme o
grupo a que pertenciam, conforme segue abaixo.
Ex-usuários: A32ME; I40FE; J30ME; J43ME; J49ME; J39ME; N38FE; N45FE; S32ME;
V24FE.
75
Usuários: A24FU; A29MU; A37MU; AG37MU; C46MU; D24MU; F36MU; J24FU;
J43MU; JC40MU; JC45MU; JC46MU; L22MU; M23FU; M25MU; M28MU; R25FU;
R42MU; S27FU; Y33MU.
Estudo de campo (EC): Na cidade de Barcelona, ao total, foram realizadas 21
visitas a campo, seja a serviços de atendimento sócio-sanitário a usuários de drogas
(“Ambit Prevención” e “Spott”), a centros de redução de danos (Salas de venopunção
higiênica “Baluard” e “El Local”), de tratamento (“Comunidade Terapêutica Can Coll”) ou
serviços de reinserção sócio-laboral a usuários de drogas (“Projeto Situat”), todos descritos
em detalhes previamente. Além disso, visitas também foram realizadas nas regiões da
cidade de Barcelona sabidamente envolvidas com o consumo de crack e de outras drogas
como, por exemplo, aos bairros conhecidos como “Raval”, “Chino”, “Bairro de la Mina” e
“Zona Franca”.
As visitas estenderam-se do período de 17 de novembro de 2005 a 21 de fevereiro
de 2006, tendo sido realizadas preferentemente no período noturno (entre 20h e 22h),
horário de concentração de usuários nos centros de redução de danos, de atendimento
sócio-sanitário e nas vias públicas de livre uso. Em contrapartida, as visitas ao centro de
reinserção sócio-laboral (“Projeto Situat”) e de tratamento (Comunidade Terapêutica “Can
Coll”) ocorreram exclusivamente no período da manhã, seja por coincidir ao horário de
atendimento dos usuários ou ao horário de trabalho dos funcionários (assistentes e
educadores sociais, psicólogas, entre outros). É importante ressaltar que em todos os
trabalhos de campo o investigador estava acompanhado, seja pelos funcionários dos
centros visitados ou por informantes-chave provenientes de serviços de saúde que o
acompanharam às vias públicas de livre uso.
No que concerne aos dados resultantes das visitas a campo, são descritos, em
detalhes, na seção de Resultados (Seção II) e identificados pela sigla EC (Estudo de
Campo), acompanhados do local, data e horário de sua realização.
Dificuldades:
Embora a presente pesquisa tenha sido executada dentro do prazo estipulado, a
princípio, muitas foram as dificuldades à sua realização, principalmente no que concerne
76
ao idioma, tempo hábil, recrutamento dos entrevistados e local das entrevistas,
dificuldades individualmente detalhadas a seguir:
(a) Idioma: A primeira dificuldade foi quanto ao idioma. O idioma oficial da comunidade
autonômica de Catalunya, da qual Barcelona é a capital, é o catalão, sendo o castelhano a
segunda língua. Nos primeiros momentos, a habituação foi difícil que o catalão domina
os diversos setores sociais, no que concerne ao trato informal e formal entre os cidadãos,
os meios de informação e comunicação. Os livros didáticos disponíveis na Universidade
Autônoma de Barcelona (UAB) e nas bibliotecas públicas eram, em sua imensa maioria,
também em catalão. Tal dificuldade passou despercebida quando se tratou da adaptação
social e da cultura, porém, tornou-se mais séria no momento da realização das entrevistas.
Comumente, os nativos, de forma inconsciente, empregam palavras de ambos os
idiomas no tratamento informal, fato que a princípio dificultou um pouco a compreensão
das informações, porém, em nenhum momento impediu a coleta dos dados, tornando-a
apenas mais demorada e trabalhosa. Muitas vezes até o castelhano representou num
problema, já que assim como a cultura do uso de crack na cidade de São Paulo, há
expressões e gírias próprias da população usuária. Porém, com o passar do tempo, tais
expressões lingüísticas tornaram-se comuns, não mais representando em dificuldade à
compreensão das informações e tampouco ao sucesso das entrevistas.
(b) Local das entrevistas: Diferentemente do Departamento de Psicobiologia da
UNIFESP, infelizmente, a universidade de destino, Universidade Autônoma de Barcelona
(UAB), não dispunha de salas nas quais pudessem ser conduzidas as entrevistas. Assim,
frequentemente, foi necessário que pedisse autorização aos coordenadores dos centros de
redução de danos e de tratamento, nos quais recrutava os usuários e ex-usuários de crack,
para que pudesse realizar as entrevistas em suas dependências ou adjacências. Nem sempre
a sala fornecida era adaptada a tal tipo de intervenção, porém, de qualquer forma,
estabeleceu-se o vínculo de confiança entre o investigador e o entrevistado, possibilitando
a coleta das informações necessárias à compreensão do fenômeno.
Porém, houve ocasiões em que os entrevistados não estavam associados a nenhum
dos programas de tratamento ou redução de danos abordados. Nesses casos, elegi lugares
77
públicos onde as entrevistas pudessem ser conduzidas de forma segura e que propiciassem
a gravação das informações, de tal forma que estivessem audíveis no momento da
transcrição. Assim, foi comum realizar entrevistas em cafés, lanchonetes e restaurantes,
sendo eleitos locais sem música ambiente e onde o entrevistado se sentisse à vontade para
relatar suas experiências com a droga.
(c) Entrevistados: Muito mais que em relação ao idioma, a maior dificuldade do projeto,
no que concerne aos entrevistados, consistiu no fato de que muitos deles são ex-
dependentes de heroína, estando muitas vezes sob terapia de substituição por metadona.
Embora seu emprego seja nobre, como se trata de um opiáceo sintético acaba diminuindo a
atividade de muitos dos centros nervosos (papel depressor), logo, é comum o surgimento
de efeitos colaterais como sonolência excessiva, perda do tônus muscular e, por vezes,
confusão mental. Assim, não foi raro o entrevistado que dormiu durante a entrevista,
inviabilizando-a, de tal forma a ser desconsiderado da amostra. Estar sob a terapia de
substituição por metadona, aliado ao fato de muitos serem imigrantes, acabou por excluir
possíveis participantes da amostra, exigindo-me maior esforço para recrutamento de outras
pessoas que me auxiliassem na compreensão do fenômeno. Considera-se ainda que o uso e
a acessibilidade de crack, na cidade de Barcelona, são raros e que se tratando de
comportamento social pouco aceito, restringia-se a pequenos círculos sociais, em locais
escondidos, tornando o uso pouquíssimo divulgado, fato que dificultou ainda mais a
localização e o recrutamento dos participantes.
(d) Tempo: O fator tempo foi outra dificuldade de relevância à realização do projeto.
Compreender a realidade do uso de crack em período de tempo de seis meses não foi tarefa
fácil. Não se tratou apenas de realizar entrevistas, mas sim compreender um fenômeno em
todas suas vertentes, por isso da necessidade da realização de estudo de campo
concomitantemente às entrevistas.
E não se desconsidera que, previamente às entrevistas e ao estudo de campo, fez-se
necessária a identificação dos informantes-chave e a localização da população-alvo, que
possivelmente tenha sido a etapa mais árdua do projeto, tanto em termos de execução
quanto de tempo, que, conforme mencionado nos resultados, o tráfico, acessibilidade e o
78
uso de crack, na cidade de Barcelona, eram pouquíssimo citados. Além disso, fez-se
necessário o estudo de material didático concomitante à fase de coleta de dados a fim de
compreender os dados coletados e poder aprofundar tópicos que permanecessem de algum
modo pouco esclarecidos.
79
(...) com crack parecia que estava nas nuvens, pisando nas
nuvens ao lado de Deus, imagina a situação, usando
droga ao lado de Deus (...)
(F17FE – São Paulo)
Resultados
s
80
Resultados (I)
4. RESULTADOS da cidade de São Paulo.
4.1 O usuário de crack.
4.1.1 Dados sócio-demográficos.
Como os usuários e ex-usuários não diferiram quanto aos dados sócio-
demográficos, realizou-se uma descrição única e conjunta de ambos os grupos (A
NEXO
3),
abaixo detalhados. Para a melhor compreensão, tanto desse item quanto dos demais, os
dados são ilustrados com trechos das entrevistas, identificados pelo código alfanumérico
correspondente ao entrevistado em questão.
(a) Uso de crack: 45 dos entrevistados ainda faziam uso de crack no momento da
entrevista (os usuários: U), vigente por período de, em média, 7 anos (mínimo de 9 meses
a 21 anos). Os demais entrevistados (17) haviam abandonado o uso (os ex-usuários: E)
há, em média, 3,1 anos (mínimo de 6 meses a 8 anos), sendo que o período de uso havia de
dado por, em média, 5,3 anos (mínimo de 6 meses a 14 anos).
(b) Gênero: 46 dos entrevistados eram do sexo masculino, correspondendo a 74% da
amostra (16 mulheres).
(c) Faixa etária: A idade dos entrevistados variou dentro da faixa de 17 a 53 anos. A
maioria da amostra é jovem (45), concentrando-se dentro da faixa etária de 17 a 35 anos.
(d) Estado civil: Embora a distribuição quanto ao estado civil pareça homogênea, verifica-
se que a maior parte da amostra não mantinha vínculos matrimoniais formais, havendo
predominância de solteiros e separados em relação aos formalmente casados.
(e) Nível de escolaridade: Quase todos os participantes possuem baixo nível de
escolaridade, variando do analfabetismo ao ensino médio completo. No que concerne ao
ensino médio, alguns realizaram formação profissionalizante, a citar: técnico em
administração; técnico em contabilidade e auxiliar de enfermagem. Somente alguns
81
concluíram o ensino superior, destacando-se, entre eles, os cursos de graduação em
administração de empresas, jornalismo e medicina. Desses, quase todos completaram
cursos de pós-graduação: jornalista com especialização em fotografia; administrador de
empresas com MBA e Mestrado em Finanças e, finalmente, o médico que, embora
houvesse completado a residência, não quis identificar a especialidade.
(...) eu fui criado na roça, não estudei quase nada. Sei assinar o nome muito mal. Os
outros da minha família tudo estudou, eu nunca quis estudar, agora o arrependimento
bateu, mas fazer o quê (...) (A45ME)
Eu fiz 3 pós-graduações e mestrado e uso essa droga de pracinha (...) acontece com
qualquer um, comigo, com vc, com qualquer Zé, é só usar pra ver (...) (A36FU)
Entre os demais entrevistados são elevadas as taxas de repetência e desistência das
atividades escolares, atribuídas a razões diversas, a citar: desinteresse das atividades
escolares; dificuldade de aprendizagem; conflitos familiares ou perda de entes queridos;
situação financeira desfavorável, dificultando a conciliação de jornada dupla, ou seja,
trabalho + estudo; problemas de saúde; uso de drogas; entre muitos outros.
Desinteresse das atividades escolares.
(...) na época não era nem muito por causa de droga, eu ía na escola pra bagunçar,
faltava muito, então eu tava repetindo, até que chegou a hora que eu falei que não ia mais,
já tava ali no crime mesmo, usando droga, aí é que eu não fui mesmo (...) (DA27ME)
(...) porque eu não gosto, nunca gostei de estudo, não sei porque, nunca fui (...) nunca
gostei de escola não, xingava a professora, batia em professor e era expulso da escola (...)
(M34MU)
Família (perda de entes).
(...) eu parei depois que o meu pai morreu, eu fiquei meio desorientado, mas graças a
Deus eu aprendi a ler na rua, a rua é uma escola. Eu aprendi a ler, graças a Deus (...)
(F39MU)
Situação financeira desfavorável.
Porque eu cuidei muito cedo da minha família, então ou eu estudava ou eu tomava conta
dos meus irmãos (...) Quer dizer, eu abri mão do meu estudo porque tive que levar meus
irmãos na escola (...) minha mãe tinha que trabalhar, meu pai também, então eles saíam
muito cedo e eu tinha que ficar tomando conta deles (...) (C32MU)
82
Uso de drogas.
(...) não tinha como eu estudar e usar droga. Eu queria usar droga na época, eu era
fascinado por droga. Até tinha vontade de estudar, mas infelizmente a droga não deixava.
Não passava de vontade, planos que eu não conseguia colocar em prática. (A31ME)
(...) pelo consumo de drogas perdi o ano (...) na metade do ano eu estava perdido, não
conseguia me concentrar, faltava na escola, cabulava com vários amigos que também
faziam uso de droga e foi assim que perdi boa parte da vida (...) umas quatro vezes, perdi
quatro anos na escola (...) (G28ME)
(f) Nível socioeconômico: Através da aplicação do C
RITÉRIO DE CLASSIFICAÇÃO
ECONÔMICA
B
RASIL
(ABEP) (A
PÊNDICE
1), verificou-se que a maioria da amostra tem
parcos recursos econômicos, concentrando-se entre as categorias socioeconômicas C e E.
A maioria da amostra relatou viver com a família (pais ou parentes próximos: tios, avós e
cunhados) ou sozinhos, enquanto uma minoria são moradores de rua ou estavam de
passagem por clínicas médicas ou comunidades terapêuticas, nas quais estivessem
cumprindo parte do programa de tratamento. O bairro de moradia foi bastante
diversificado, estendendo-se de bairros de poucos recursos como Guaianazes e Ermelino
Matarazzo a bairros melhor situados dentro da cidade de São Paulo como Butantã, Bosque
da Saúde e Vila Clementino. Porém, frequentemente, o bairro foi caracterizado como
permissivo ao uso de drogas, submetido aos mandos e desmandos do tráfico e próximo a
favelas, a citar: favela Zachi Nachi, Cidade Azul, Morro do Piolho, Buraco Quente,
Cracolândia, Grajaú, Heliópolis, favela Noronha, entre muitas outras.
Permissividade do meio ao uso de drogas.
Lá, se vc pega uma pedra (de crack) e joga pra cima, vai cair na cabeça de quem já usou,
tá usando ou tá fazendo alguma coisa para ir buscar. É sério, é assim. (JL27MU)
Eu moro no Ipiranga e falo isso todo dia na minha casa “quando Deus fez o mundo, o
diabo falou, tudo seu, mas o Ipiranga é meu” (...) (NA35FU)
Existência de tráfico nas proximidades.
(...) bem próximo à minha casa existem pontos de tráfico onde milhares de jovens,
inclusive universitários, consomem diariamente vários tipos de drogas (...) (G28ME)
83
(...) cada vila tem um ponto. Se eu quisesse pegar, pertinho de casa mesmo tem três. As
pessoas são muito carentes, então o jeito que eles acham é esse. Eu vejo pessoas que
com o desespero começaram a traficar para manter a família e os filhos (...) (K20FU)
Embora o uso tenha sido identificado entre pessoas de baixo nível socioeconômico
e baixo vel de escolaridade, conforme os próprios entrevistados, o uso de crack parece
depender mais da afinidade da pessoa ao crack que de sua condição socioeconômica ou
escolar, de forma a já estar disseminado por todos os extratos socioeconômicos.
(...) eu conheço médicos e advogados que fumam também, não é da classe média, de
nível baixo não, tem pessoas de alto nível (...) na verdade, o crack está consumindo a
sociedade toda (...) (A30MU)
Se a pessoa estiver desesperada, tiver algum problema, ela pode se entregar ao crack,
então, o uso é feito por todas as classes, depende do desespero, do pânico da pessoa
(...)(J30MU)
(g) Trabalho: Quase todos os entrevistados relataram ter trabalhado alguma vez na vida,
enquanto que o restante não o fez por motivos diversos, sendo o desinteresse o mais
freqüente. No momento da entrevista, um pouco mais da metade dos entrevistados estava
desempregada, sendo que os demais desenvolviam alguma atividade remunerada que lhes
servisse de fonte de renda. Na maior parte dos casos, essas fontes tratavam-se de “bicos”,
atividades de pouco retorno financeiro que exigem pouca responsabilidade e esforço à sua
execução. Assim, relatam ser, frequentemente, guardadores de carros, carroceiros,
carregadores de caminhão, catadores de latinha de alumínio, entre outros.
Hoje eu olhando carro na rua, é a única maneira de eu sobreviver, de comprar pelo
menos uma roupa. Não é porque a gente na rua que pode se jogar às traças (...) quem
sabe um dia a porta não se abre de volta, né (...) (J26MU)
(...) eu cato papelão, latinha, passo o dia inteiro fazendo isso. Quando eu vejo ferro, pego
uma carroça e saio o dia inteiro. Pego e daquilo eu tiro 15, 20 reais, às vezes 30 e 40
reais, batalhando o dia inteiro (...)(J53FU)
(h) Religião: A maioria dos entrevistados crê em alguma religião, dentre as quais a
católica é a predominante, seguida pela evangélica-protestante. Mais da quarta parte dos
entrevistados não aderiu aos preceitos de alguma religião, não acreditando em seu poder e
tampouco na existência de um ser supremo. Se não fossem ateus, acreditavam na
existência do poder divino, mas não seguiam a doutrina imposta por uma religião. Menos
84
de uma quarta parte dos entrevistados crê e praticam uma religião, freqüentando os cultos
religiosos específicos com determinada periodicidade e ou participando das atividades das
instituições ou templos religiosos a elas correspondentes.
4.1.2 Histórico do consumo de drogas.
4.1.2.1 Histórico geral do consumo de drogas.
Relatou-se o uso de três a catorze substâncias psicotrópicas com fins de abuso
(média de 6,4 por entrevistado), dentre as quais as vias de administração de determinada
substância não foram consideradas como drogas diferentes. Como essas substâncias são
usadas simultaneamente a crack (não necessariamente no mesmo momento), tal uso acaba
por identificar o usuário de crack, da cidade de São Paulo, como um poliusuário de drogas.
Além das drogas comumente usadas (maconha, cloridrato de cocaína e seus derivados),
observou-se o uso recreacional de medicamentos (analgésicos, anorexígenos, ansiolíticos,
anticolinérgicos, anti-inflamatórios, antipiréticos, antitussígenos e neurolépticos), inalantes
(cola de sapateiro, lança-perfume, benzina, éter, thinner, esmalte e aguarás) e alucinógenos
(naturais: na forma de chás - cogumelo e lírio - e derivados do peyote; sintéticos: LSD e
êxtase), de tal forma que um mesmo entrevistado pôde combinar o uso dessas 3 categorias
de substâncias. Menos da quarta parte dos entrevistados relatou o uso de drogas injetáveis,
quase todos com cloridrato de cocaína, havendo somente alguns com heroína.
Eu catei os diazepam do meu padrasto, o meu padrasto ele sofre de arritmia, então ele
toma diazepam e gardenal, peguei dele, engoli um monte com bebida, fiquei bem
loque, doidão, travadão (...) (F26MU)
Meu pai trabalha em farmácia, nossa, coquetel, meu irmão, fazia coquetel com vários
comprimidos que eu nem sei o nome (...) (O23ME)
O diazepam eu sempre tive por receita médica. O que aconteceu é que com o uso da droga
eu acabava abusando da dosagem da medicação que eu tinha que tomar (...) (L45FE)
4.1.2.2 Primeira Droga.
Quase todos os entrevistados iniciaram o histórico do consumo de drogas com
substâncias lícitas, das quais as mais comumente citadas foram o álcool e cigarro,
destacando-se, em menor proporção, o uso de inalantes (cola de sapateiro e esmalte) e
85
benzodiazepínicos. Poucos foram os que iniciaram o histórico com drogas ilícitas,
destacando-se, entre elas, a maconha, cloridrato de cocaína e, até mesmo, crack.
Cigarro, de 7 para 8 anos (...) minha avó fumava e eu já acendia pra ela, comecei a fumar
dessa forma. (E23ME)
(...) na época meu pai tinha um bar. E como eu era bem jovenzinho, naquela época a gente
não tinha informação, eu ficava no bar tomando conta enquanto meu pai ia para casa
almoçar e foi dali que aprendi a fazer o consumo do álcool, o pessoal que freqüentava o
bar me ensinou a beber (...) de domingo fechava o bar pela tarde e eu ficava dentro
bebendo, saía de bêbado (...) um cara de oito anos (...) pra mim era uma aventura (...)
(M31ME)
(...) eu era pequenininha, eu saia bebendo os gargalos das garrafas (...) aí eu pegava as
garrafas vazias e ficava bebendo os restinhos. Uma vez eu fui parar no hospital, acho que
eu tinha uns dez anos pra menos. Eu tava bêbada porque tomei um copo de vinho, que
vergonha que eu passei (...) (K20FU)
Eu comecei com maconha por causa de uma fase bem difícil na minha vida, quando
depois eu entrei para o crack. Acho que uns 10 anos que eu comecei a usar, eu
experimentei um dia, depois mais um outro, eu continuei e comecei a usar (...)
(NA35FU)
4.1.2.3 Uso de outras formas de apresentação da cocaína.
Embora poucos tenham feito uso somente de crack (quando considerado o uso de
cocaína em suas variadas formas de apresentação), quase todos os entrevistados fizeram
uso de cloridrato de cocaína na vida, seja por via aspirada ou injetada. Para a maioria, o
cloridrato de cocaína, por via aspirada, foi a primeira forma de uso da cocaína, enquanto
que menos da quarta parte dos entrevistados fez o uso de cloridrato de cocaína por via
endovenosa. Abaixo ressalta-se os possíveis perfis de transição entre as diferentes vias de
administração da cocaína.
(a) Só fumada.
Eu nunca cheirei farinha (...) (P50MU)
Não, cocaína eu nunca experimentei, só crack. (J53FU)
(b) Aspirada-Fumada: A maioria dos entrevistados iniciou o uso de cocaína através da
via aspirada passando, posteriormente, à via fumada. A transição é estimulada por
inúmeros motivos, dentre os quais se destacam: tolerância aos efeitos de bem-estar
86
proporcionados pela via aspirada, após prolongado tempo de uso; desconforto físico
associado à via aspirada; maior intensidade e rapidez de início dos efeitos da via fumada
em relação à aspirada; percepção do desenvolvimento de forte dependência logo após o
momento de experimentação da via fumada e, finalmente, despreciação do uso da via
aspirada. Abaixo, cada uma das motivações à transição é ilustrada por citações dos
entrevistados:
Tolerância.
(...) a cocaína não estava mais me satisfazendo então o crack me dava uma loucura maior
(...) tinha que usar muito pra vc sentir alguma coisa, o crack não, o pouquinho que
usava já ficava bom (...) (M31MU)
Desconforto físico.
O problema da cocaína é que o dela fica no nariz, ela perfura o septo, então era
vantagem a mais para o crack. Eu tenho um colega que perdeu esse negocio do nariz,
aí eu já venho me afastando, perdi a influencia e passei mais para o crack. (J41MU)
Porque eu cheirava e o nariz zoava tudo, mas mesmo assim, eu estava cheirando.
depois que eu conheci o crack, aí eu parei de cheirar, eu fiquei com o crack.
(T23FU)
Rapidez de início dos efeitos.
Vc esquece a aspirada porque o crack é a cocaína potencializada. Não sei te dizer se é 10
ou 100 vezes mais forte, mas é uma coisa que depois que vc deu o primeiro pega acabou,
esquece! Vc não é mais vc mesmo, é como se outra pessoa tomasse conta do seu corpo (...)
(P30MU)
Porque o crack é mais rápido, é melhor, com a farinha eu vou ficar cheirando o maior
tempo pra sentir alguma coisa, já o crack não, o efeito é tiro e queda. (L39ME)
Percepção de dependência.
Quando não tinha cocaína substituía cocaína pelo crack, foi ficando difícil, eu fui me
afundando mais no crack, então eu esqueci de vez a cocaína e fiquei no crack (...) fui a
fundo mesmo no crack (...) (V45ME)
87
Depreciação do cloridrato de cocaína como droga.
(...) eu nunca gostei de cocaína, mas depois que eu descobri o crack aí foi paixão, casei né
(...) (N19MU)
Nessa transição, a ausência da via injetada deve-se ao fato de representar grave
risco à saúde do usuário, principalmente no que concerne à transmissão de agentes
patogênicos, entre eles, o vírus HIV, forçando a opção às vias aspirada e fumada,
consideradas como as mais seguras.
falando pra vc, os caras da minha época morreram porque eles começaram
primeiro que eu e os caras aplicava na veia. Ficava daquele jeito, muitos pegaram AIDS e
foram (...) porque eu vi um cara tirando a seringa do braço dele e colocando no braço
do outro sem trocar a seringa, Deus me livre (...) ao ver isso aí, eu falei “na veia não”,
porque ninguém te obriga, vc toma se quiser. (D36MU)
Em contraposição, somente alguns dos entrevistados relataram preferir a cocaína
(via aspirada) a crack, em função da discrição e controle sobre os efeitos. Outros poucos
relataram não ter preferência de uso entre as diferentes formas de apresentação da cocaína,
de tal forma que o uso dependeria da circunstância.
(...) cocaína é até melhor, pelo menos eu não vou fazer sujeira nenhuma e a reação não é
muito diferente da pedra (...) o problema da pedra é que se eu queimar uma agora dá mais
vontade de queimar outra em dois minutos. Aquilo ali vai chamando e vai dando apetite
de queimar mais, então, eu prefiro a cocaína porque com a cocaína eu cheiro menos (...)
(D36MU)
Vai um dia uma coisa, outro dia outra, depende da situação, do lugar que vc vai e com
quem vc está. (JL27MU)
(c) Aspirada-Fumada-Injetada: Assemelha-se à transição anterior pela substituição da
via aspirada pela fumada, porém, distingue-se pela inserção da via endovenosa. Houve
apenas um único relato a respeito, de tal forma que a entrevistada não gostava da via
aspirada e não encontrava mais o crack nos postos de venda, optando pela via endovenosa
que logo se tornou a preferida, substituíndo então a via fumada.
Porque o crack é uma coisa mais rápida, não incomoda tanto como a cocaína aspirada,
porque vc fica com o nariz tampado, fica meio doente, com sintomas de gripe. E o crack é
muito simples. eu abandonei a cocaína, não quis mais, só usava a pedra. E aí, teve uma
época em SP que não se achava crack em lugar nenhum (...) comecei a usar cocaína
88
injetável, o crack não era mais a minha droga de preferência, eu preferia tomar
cocaína injetável porque o barato era muito mais forte e foi que eu desandei mesmo,
porque só queria usar droga sozinha, minha vida era só em função da droga (...) eu deixei
de ter importância na vida, era tudo em função da droga. (L45FE)
(d) Fumada-Aspirada: Menos da quarta parte dos entrevistados relatou ter feito essa
transição, motivada pelos riscos e consequências associados ao uso de crack. Embora
tenha sido feita a transição, a maioria relatou ainda preferir crack em função da rapidez de
início e intensidade de seus efeitos, segurança do uso ou apenas por desgostar da via
aspirada.
Eu percebi que aquilo estava me acabando (crack)(...) que quanto mais eu fumava, mais
eu queria ter e mais eu gastava, mais dinheiro eu roubava da minha mãe, mais dinheiro eu
pegava do meu pai (...) aí eu percebi que o crack me deixou com uma fisionomia, com uma
aparência, então fui me destruindo rapidamente, pensei “se eu substituísse o crack por
cocaína não ia me prejudicar tanto quanto o crack estava fazendo” (...) (F17FU)
(e) Aspirada-Injetada-Fumada: A tolerância e o desconforto físico são importantes
motivações à transição da via aspirada, do cloridrato de cocaína, à injetada. Embora a
transição à via endovenosa pudesse ter sido facilitada pelo uso prévio de drogas injetáveis,
apenas um único entrevistado fez menção ao seu uso, especificamente de heroína. a
“relativa” segurança da via fumada, tanto por seus efeitos quanto pelo risco de contágio
por doenças infecto-contagiosas, facilita a transição a partir da via injetada.
Uma vez que eu tomei pico na minha vida porque meu nariz estava um caco, não
conseguia mais cheirar porque sangrava muito, aí, um dia que eu fui comprar, não sei
porquê me deu na telha, eu tinha inalado, tava naquele processo aceleradão, doidão
(...) eu fui até a farmácia, comprei uma seringa pra mim, fui pra casa, me tranquei e
com o papel que eu tinha eu tomei quatro picos naquela noite (...) (P30MU)
Eu achava mais legal usar crack, era mais rápido e a cocaína que usa na seringa demora
muito, vc tem que colocar a farinha pura na colher e deixar aquele líquido bem amarelo,
que daí era pura mesmo. eu não agüentava a loucura, era muito forte, daí eu comecei a
fazer a pedra e ela diminuiu um pouco a loucura (...) (M33MU)
(f) Injetada-Aspirada-Fumada: Tal transição foi observada para apenas um único
entrevistado que não apresentava histórico de uso de outras drogas injetáveis na vida,
desconhecendo-se assim, os motivos a ela subjacentes.
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Independentemente da transição de vias, a maioria dos entrevistados, após iniciado o uso
de crack, priorizou crack em detrimento do abandono ou drástica diminuição do uso de
outras drogas, de tal forma que passou a ocupar a posição de droga de escolha ou de
preferência. O cloridrato de cocaína (via aspirada) e a maconha são as drogas que sofreram
maior interferência, de forma que seu uso restringiu-se a situações ou com propósitos
específicos. Em contraposição, uma minoria dos entrevistados não identificou mudanças
no uso de outras drogas, enquanto que outros nem foram capazes de se questionar a
respeito do tema.
Praticamente esquecido, porque a sensação que o crack te as outras drogas ficam
jogadas de lado (...) não, isso aqui não presta, se eu tenho dinheiro pra comprar crack pra
que eu vou comprar cocaína se o crack me deixa mais louco, se a loucura do crack é
muito maior que da cocaína e da maconha? (E23ME)
(...) depois que eu optei na lata, acho que usei umas três vezes cocaína aspirada, porque
não tinha mais graça (...) não fumava mais maconha, não fumava mais mesclado, sabe
cara, não tinha mais graça essas drogas pra mim porque no momento que eu dava a
primeira paulada no crack não existia mais nada, não existia mais família, não existia
mais namorada, estava vivendo para o crack (...) (N19MU)
4.2 O Crack.
4.2.1 Acessibilidade e distribuição.
4.2.1.1 Pontos de venda.
Conforme os entrevistados, o crack é vendido pronto e sua aquisição é simples,
rápida e fácil e a venda é pública. Embora fácil, para alguns o acesso acontece sob
condições específicas, ou seja, apenas se o interessado tenha conhecidos do meio
(traficantes ou outros usuários de crack) ou se dote de boa condição financeira. Outros
entrevistados acreditam que a venda foi fácil, tendo sido atualmente dificultada pela
progressiva diminuição do número dos pontos de venda e distribuição.
Hoje é em qualquer esquina, até na viatura vc compra e fuma crack. O crack é a droga do
momento (...) (A30MU).
É mais fácil vc ir ao mercado e não encontrar arroz que não conseguir crack na rua (...)
(J39MU).
Agora nem tanto, mas não e impossível. Tudo é fácil com dinheiro. A pior droga do mundo
é o dinheiro. Com dinheiro vc tem tudo, tudo fica mais fácil. (E26ME)
90
Independentemente da facilidade de aquisição, o comércio de crack está disponível
através do tráfico de asfalto e das bocas de fumo, denominadas também por bocadas ou
biqueiras. O tráfico de asfalto consiste em pontos de venda de crack, e outras drogas,
presentes em regiões públicas e de livre acesso da cidade, seja em praças, esquinas,
pensões, campos de esporte, na porta de colégios, em regiões de prostituição, entre outros.
Diferem das bocas de fumo devido, principalmente, a seu caráter transitório, que, como
se dão em locais públicos é muito comum que sejam denunciados. Além disso consistem
em pontos de venda de menor porte, dispondo então de menor quantidade de drogas e
dinheiro.
Os caras ficam no campinho, fica numa rua, na esquina, num determinado lugar, num
ponto. Às vezes ficam andando de um lado a outro, passeando ali pela vila. É muito
fácil. Os caras ficavam até no meio do mato (...) (K20FU)
Existe, mas é muito temporário, principalmente em bar. Tem um campo de futebol que
rola um ponto de final de semana, mas logo tem a denúncia, então a coisa é temporária. É
coisa de dois meses daí a casa cai, os caras mudam, passa para outro lugar ou vai preso e
passa um tempo fora e depois volta, mas tem. (J30MU)
Já as bocas de fumo, embora comumente presentes dentro de favelas, também
seriam encontradas em bairros ou em regiões, da cidade de São Paulo, especializadas à
venda e uso de crack, a citar como exemplo a Cracolândia. As bocas, de ampla carga
horária (abertas 24h, 365 dias ao ano) e de conhecimento público (pouco discretas),
comercializam crack e outras drogas, não sendo passageiras e mantendo a mesma
localização por prolongado período de tempo. Porém, atualmente, tem havido relatos sobre
a existência de bocas destinadas à venda exclusiva de crack, de caráter efêmero, que o
usuário, em virtude de sua dependência, dedicar-se-ia ao roubo e violação dos arredores da
bocada, tornando-as vulneráveis à possíveis denúncias e fiscalização policial.
Vende, geralmente, eles vendem, é boca e vende de tudo. Tem uns que vendem crack,
tem uns que vendem fumo, tem outros que vendem cocaína, mas o mais comum é ter
as 3 na mesma boca (...) tem muitos lugares que só vendem crack, mas tem muito
problema porque arrasta muito nóia, sai muito problema. Os nóias começam a roubar
vizinho, aí começa a ficar muito visado. (D35MU)
(...) porque nóia não presta, faz volume e bagunça. É um entra e sai muito grande, um
traz tanquinho, o outro sacola de roupa da mãe, outro com botijão, enfim, faz muito
volume (...) (S36FU)
91
Além do tráfico de asfalto e das bocas, atualmente tem despontado uma nova forma
de comércio, o crack delivery. Através desse serviço, os traficantes distribuíriam números
de telefones, seja de suas residências, de celulares, ou das bocas sob sua responsabilidade,
através dos quais o usuário pudesse fazer o pedido da droga, a ser entregue pessoalmente
em sua casa como realizado por qualquer outro comércio que disponha do serviço de
“delivery”. Embora mais cômodo, não parece haver imposição de taxas sobre os serviços
prestados, de tal forma a não modificar o valor final da droga.
Hoje em dia droga é fácil e em qualquer lugar tem. Qualquer lugar vc acha. Eu, por um
período, eu ligava e traziam na minha casa (...) delivery é o que mais tem (...) eu acho que
é uma fonte de renda, alguém ganha muito lucro, ninguém quer que vc pare um negócio
desse porque é muito lucro para alguns (...) (A36FU)
(...) tem um motoboy ali no bairro que entrega pizza e tem um amigo que tem o telefone
dele. Ele falou que se eu quisesse traria a pedra até minha casa. O cara é motoboy e
também entrega a pedrinha para ganhar um extra, então, a droga tem em qualquer lugar.
(P30MU)
Na verdade, o tráfico de crack parece acontecer de forma tão livre e despreocupada
que não foram raros os relatos de entrevistados que durante o período de cumprimento de
pena, presenciaram e usufruíram do tráfico dentro da cadeia, não necessitando abandonar
o uso mesmo depois de iniciado o período de reclusão.
Eu usei crack no Carandiru, tinha muito e era barato. Dois maços de cigarro era uma
pedra, então lá eu usei muito. (A28MU)
fumei, quando eu tive uma passagem pela cadeia e tinha droga. Isso é óbvio que tem
e é tudo muito mais caro (...) a gente pegava a pedra, fazia um cigarro e chamava de
capetinha. (R24MU)
4.2.1.2 A hierarquia do tráfico e o traficante de crack.
Dentre as bocadas ou bocas de fumo especial destaque às de favela, em virtude
de sua organização, tanto em relação à hierarquia de seus funcionários quanto ao
procedimento de venda. Quanto à hierarquia, os funcionários distribuem-se nos seguintes
cargos: traficante, gerente, vapor, aviãozinho e olheiro ou campana. O traficante é o
cargo mais alto, correspondente ao dono da droga e da boca de fumo. Sua identidade é
secreta, que muitos dos funcionários não o conhecem. Dificilmente o traficante
92
encontra-se no ponto de venda, delegando-o ao gerente, que se responsabiliza pelo
empacotamento e venda da droga e, sobretudo, pela segurança do ponto. É o gerente que,
após o turno, presta contas do dia de venda ao traficante. Interessante notar que o traficante
pode, ainda, alugar o ponto da bocada a um terceiro que se encarrega tanto da droga como
do serviço, cabendo-lhe o pagamento apenas do aluguel. Não se trata mais do gerente, mas
do arredantário do ponto de venda, como se tratasse do próprio traficante. A mando do
gerente está o vapor, que fica no ponto, mantendo contato direto com os usuários e
passando-lhes a droga. O vapor é o funcionário que mais se expõe na negociação, sendo
assim denominado por abandonar o ponto e a droga no caso de uma batida policial. A
mando do gerente também estão o aviãozinho que passa a droga a usuários que não
estejam presentes na bocada e os olheiros ou campanas, que permanecem em pontos
estratégicos nos arredores da boca ou da favela, mantendo os demais funcionários
informados a respeito da aproximação policial ou de outros suspeitos.
As citações abaixo ilustram a hierarquia, facilitando sua compreensão:
Gerente.
(...) tinha mais moral com o traficante, ia para as festas, fazia a contagem do dinheiro (...)
eu era o gerente, eu fazia a contagem das drogas, embalava, empacotava, escolhia o que
eu queria pra trampar (...) eu ficava do meio-dia aàs seis da noite, eu trabalhava nesse
período e à noite entrava outro cara, das oito às seis da manhã (...) (S17MU)
Vapor.
Eu era “vapor”, aquele que vende, que fica arriscando a própria vida pra morrer pela
polícia ou na guerra de tráfico (...) é aquele que trafica, que fica ali segurando a droga,
que alguns falam que é o laranja (...) pra chegar o fim-de-semana eu pegar o dinheiro e
gastar tudo em droga (...) mas quando chegava o fim-de-semana eu quase não tinha nada
pra receber, porque eu já ía pegando todo dia um pouco (...) (DA27ME)
Olheiro ou campana.
(...) geralmente eles ficam em 4 ou em 2, mas quando ficam 2 é porque está mais calmo
por causa da polícia. Eu sei quem é o olheiro. Olheiro é aquele cara que fica olhando
pra ver se a pessoa parece com polícia ou se é realmente a polícia e daí ele avisa pelo
rádio, então, ele só informa. Eles ficam sempre numa viela ou num beco, então às vezes vc
chega e o olheiro já te fala onde a bocada está ou senão vc vai descendo (...) (P29FU)
Quando vem os “homens”, o que está olhando (olheiros) avisa (...)quando os caras surgia
na área era falar “olha a loira”, os “homens” não entendiam nada. Ficava na
93
cracolândia, ficava na esquina fumando e gritando a “loira”, eram os “homens”. É um
negócio tão do inferno que os caras estavam de um lado enquadrando e os caras do outro
lado fumando. (F26MU)
A carga horária dos funcionários da boca parece ser curta, de no máximo 6 horas,
havendo turnos de trabalho. Na verdade, a baixa carga horária é uma estratégia para que os
funcionários não criem nculos com os “clientes”, impedindo que se adotem atitudes de
“camaradagem”, entre elas o fiado e descontos sobre a venda. no que se refere ao
comércio em si, os entrevistados caracterizam-na como bastante organizada, relatando a
formação de filas na bocada que funcionam sob regras rígidas. Além de mulher ter
prioridade, as transações são rápidas, ou seja, se não há dinheiro ou não se aceita a
proposta de venda, atende-se o próximo “cliente” e assim por diante.
Na favela, pra quem não conhece é uma coisa absurda (...) sabe o que é fila de gente, 100
pessoas na fila pra pegar. De frente com a delegacia, na favela é fila, qualquer um que
chega lá, pega (...) é turno, vc vai de manhã tem os caras, de noite tem outros caras, é
uma empresa e muito bem organizada (...) (C22MU)
(...) mulher não pega fila, às vezes tem fila, então, quando tem mulher eles passam na
frente dos caras, que é uma lei, então homem nunca pega primeiro (...) (P29FU)
Ainda quanto ao tráfico, mais especificamente quanto ao traficante, sua imagem é
dúbia. Em respeito à venda do crack, em sua maioria, é considerado como intolerante, de
forma a não admitir dívidas, descontos, barganhas ou brindes, utilizando, muitas vezes, de
violência para a resolução dos problemas pendentes, não sendo raro o conhecimento de
usuários que pagaram suas dívidas com a própria vida.
Fiado, caixinha, brinde, essas coisas não tem não. Se quiser ótimo, mas se não quiser
vai tomando as pedras da mão porque já tem outro atrás na fila (...) (P50MU)
Matou porque pra ele não importa se é 5 ou 100 reais. Ele chega no outro dia pra pagar
cinco e ele fala: “não quero, vc tinha que ter vindo ontem pagar”. É bem assim, o crime é
podre e não admite falha, é um submundo, é a lei do cão mesmo. (C22MU)
A falta de tolerância do traficante parece associar-se ao ponto de vista que tem a
respeito do uso de crack e de seu usuário. Conforme os entrevistados, o uso de crack é
visto com bons olhos, pelo traficante, apenas como fonte de lucro.
94
O crack não é bem visto nem pelos caras que vendem, eles vendem porque dinheiro
(...) (M34MU)
o usuário de crack é encarado com preconceito, principalmente em decorrência
dos comportamentos e atitudes que assumem ao dar prioridade à droga. A maioria dos
entrevistados relatou ter sofrido preconceito pelo traficante no momento da compra,
como humilhação ou abuso, seja sexual ou moral. Não são raros os relatos de entrevistados
que, no momento de fissura, apanharam ou ofereceram sexo ao traficante em troca de
crack.
Que nem, eu fui buscar o meu brinco que tinha deixado outro dia na boca e a mulher de lá
falou pra mim “Vc está bonita hoje”, eu falei que tinha ido buscar meu brinquinho e
falei que ia me internar e não ia mais gerar dinheiro pra eles, daí ela respondeu “ah,
daqui a uma semana vc estará de volta” e outro cara ainda falou cuidado pra vc o
desandar o padre” (...) (A36FU)
Não tem papo, eles (traficantes) tratam vc super mal, vc pega e sai andando. Eles te zoam
lá dentro mesmo, tipo, fazem piadinha, enchem o saco (...) (M22MU)
Assim, como muitos dos entrevistados encaram o nculo com o traficante como
perigoso, tratam-no apenas como uma transação comercial, de forma a não aprofundá-lo.
(...) não se tem amigo nessas paradas, é tráfico, vc tem que pegar a sua droga e sair
fora. Os caras (traficantes) são todos “malandrões”, eles são muito folgados, vc tem
que dar uma de coitado pra conseguir a droga (...) (E32MU)
Em contrapartida ao ponto de vista negativo em relação ao traficante,
entrevistados que relataram a possibilidade de compra por fiado, assim como descontos
sobre o valor da droga conforme a quantia adquirida, variando a situação conforme a boca
contatada.
Se vc comprar 5 ele te dá uma a mais, a droga em quantidade sai mais barata. O
traficante geralmente compra um bloco, divide em tantos pedaços e vende por um preço
que ele vai ter tanto lucro, às vezes até o dobro. Então se vc comprar uma quantidade
maior, sai mais barato (...)(A28MU)
95
F
IGURA
1:
As p
edras de
crack. Drug Rehabilitation
and Addiction Treatment
Center California (janeiro
de 2007). Disponível em:
http/www.addictionca.com/
signs-of-crack-use.htm
4.2.2 Formas de apresentação.
Diferentemente da época de sua aparição na cidade de São Paulo, quando o usuário
de crack necessitava prepará-lo a partir do cloridrato de cocaína, de forma a obter a casca,
atualmente, relatos informais declaravam que o crack seria vendido pronto para uso e na
forma de pedras. Embora a prática ainda exista, a pedra tem sido progressivamente
substituída por nova forma de uso, o farelo ou de crack. Para sua melhor compreensão,
ambas as formas são descritas em detalhes e separadamente logo abaixo:
(a) P
EDRA
(F
IGURA
1): São vendidas conforme o tamanho e seu valor
varia dentro da faixa de 5 a 10 reais. Suas dimensões são pequenas,
semelhantes a um dado ou unha, e vêm diminuindo com o tempo, que,
como o preço tem se mantido constante, o traficante, para não ter
prejuízo, acaba por interferir em seu tamanho. Porém, o valor da pedra
também tem variado conforme a boca contatada. Embora haja relato de
valores acima da média, entre 10 e 20 reais, frequentemente encontra-se
crack por menos de 5 reais, até mesmo por 50 centavos. Nesses casos não
mais se trata da venda da pedra, mas de seus pedacinhos, os denominados
traguinhos ou peguinhas. Geralmente, não corresponde à iniciativa de
traficantes, de tal forma a ser concretizada por dependentes de crack que
ao comprar uma pedra, partem-na e vendem seus pedaços a outros
usuários que não tenham recursos financeiros suficientes para aquisição
de uma pedra inteira. Mais que uma atitude de solidariedade, fazem-no com fins lucrativos
visando à obtenção de pedras maiores ou maior quantidade de pedras que as de início.
Concentram-se nos arredores das bocas de fumo, principalmente na cracolândia,
abordando livremente os possíveis “clientes”.
(...) 10 reais é o preço normal da pedra. Tem de 10 reais, tem de 5 e tem de mais, mas a
que mais existe é a de 10 reais. Existem pedras gigantescas, é comprar, o preço
depende do tamanho (...) (F17MU)
Mas dependendo do lugar só vende de 10 ou vende de 5 e no centro da cidade tem de
qualquer preço. Lá vc não pega da mão do traficante vc pega da mão do viciado, então
o que o viciado faz, ele pega uma de dez e vai vendendo em pedacinhos de um real, dois
reais pra comprar duas ou três de dez. (A28MU)
96
Além do tamanho, o crack pode ser vendido por grama, sendo a quantia
determinada pelo “cliente”. Embora seja a forma de venda preferida, que o crack vem
empedrado e não esfarelado, acaba por restringir-se a usuários de melhor poder aquisitivo,
já que o valor da grama varia entre 10 e 30 reais. Interessante notar que o traficante oferece
pacotes já prontos de 5g vendidos pelo custo de 50 reais cada um.
Tem traficantes que vendem o crack em papelotes (...) papelotes de 5, de 10. Tem pessoas
que vendem por grama, que é no peso e eu preferia pegar no peso (...) comprar em
grama é a mesma coisa que comprar em pedaço, ele reparte na hora. Se, por exemplo, vc
pede 10 gramas, vem uma pedra do tamanho de uma caixa de fósforos. (N19MU)
Porém, independente de como seja vendida, a pedra tem perdido muito de sua
qualidade. São frequentes os relatos de mudanças quanto aos aspectos físicos da pedra de
crack e efeitos psíquicos decorrentes de seu uso. É interessante notar que, no caso da venda
por tamanho, as pedras acabam diferenciando-se também conforme a qualidade, de tal
forma que as mais baratas são geralmente as de pior qualidade.
Qualidade, perde a qualidade. Droga é que nem verdura, tem qualidade boa e qualidade
ruim. Batiza a pedra, põe meio quilo de bicarbonato, vc fuma e ela derrete todinha (...)
depois que vc fuma, em vez de derreter, ela cresce, parece pipoca (...) fica tudo branco, é
tudo bicarbonato, corrói vc por dentro todinho, mano (...) (M34MU)
Porque antes, quando começou, podia até falar que era um produto bom, hoje não, tem
veneno de rato, tem cerol de pipa, pedaço de pão, pêlo de cachorro, cocô de rato e tudo,
vc percebe que a droga é ruim. (E26ME)
As atuais modificações da forma de apresentacão da pedra tem sido notáveis.
Inicialmente, a pedra de coloração amarelada e rígida foi substituída pela pedra branca e
de aspecto pastoso que, atualmente disputa o mercado com a pedra cristal, transparente.
(...) quando eu comecei a usar crack ela tinha certa consistência, era uma pedra marrom,
meio café com leite (...) a composição foi mudando, chegou a ficar branca, chegou a
vir esfarelada, nem era mais pedra (...) (V45ME)
De custo e qualidade superiores à pedra branca, a cristal nem sempre é vendida
pelo traficante, de forma que os entrevistados relatam comprar a pedra branca e, por conta
própria, transformam-na em cristal, a ela fazendo referência como crack tirado ou crack
97
trabalhado. O processo de transformação, descrito abaixo, é simples e rápido, tratando-se
apenas da cocção da pedra branca em água.
Descrição: Pega-se a pedra branca, coloca-a em uma colher, adiciona-se água e
esquenta-se a colher por baixo, preferencialmente com um isqueiro. A pedra branca
derrete-se e resta uma substância gelatinosa e incolor que deve ser transferida a um papel
ou qualquer outra superfície secante. Após secar, basta colocá-la no cachimbo e fumá-la.
A cristal é transparente, não tem tanto aditivo, vc coloca e ela derrete na hora que vc
queima. A branca é mais dura, não derrete, fica um torrão preto em volta da pedra (...) vc
pode colocar a pedra branca numa colher com água e cozinhar ela. Os aditivos ficam na
água, vc bate a colher e ela fica no seu dedo, fica transparente. Aquilo que sair no seu
dedo é o bom e o que fica na colher é o ruim (...) vc tira ela com os dedos e coloca ela pra
secar (...) (D18FU)
Porque hoje o crack é misturado com muitas coisas e tem um jeito que vc pega, vc põe um
pouquinho de água na colher, vai esquentando ele na colher, vai esquentando e aí vc pega
e tira com o dedo (...) ele vai ficar grudado no seu dedo, vc pega e coloca em cima da
cinza (...) é o crack tirado (...) onde vc chega a retirar as substâncias que não são dele, os
resíduos que fazem com que o crack não seja o crack de verdade (...) vc vai tirando os
resíduos e ele se torna 100% e ele fica mais pequeno, e de uma pedra que vc daria 3
pauladas, depois de transformar, dá uma paulada só (...) (N19MU)
Ainda conforme a cor da pedra, o traficante passou a produzí-las em diferentes
tonalidades, ou seja, branca, transparente, amarela, laranja, vermelha, etc. Infelizmente,
ainda não se sabe se consiste em estratégia para diferenciar a qualidade entre as pedras,
que há relatos de usuários que sentem diferenças de efeitos entre elas, ou se trata apenas de
tentativa do traficante em atrair usuários cada vez mais jovens ao consumo de crack.
(b) Atualmente, a pedra tem sido progressivamente substituída nos postos de venda pelo
farelo ou de crack. Para muitos dos entrevistados o farelo teria a mesma composição
química que a da pedra, tratando-se apenas de sua sobra, que se desprenderia durante o
processo de prensa (produção), corte ou manuseio da pedra. Assim, uma analogia grosseira
seria comparar o farelo de crack às migalhas de pão que dele se desprendem, de tal forma
que consistiriam na mesma substância, mas em formas diferentes de apresentação, o que
não implicaria então, na diferença de efeitos.
98
O pessoal falava “vamos pegar uma pedra”, vc imagina uma pedra. Quando eu vi, eu
não acreditei porque não era uma pedra, só tinha farelo (...) (N25FE)
Que hoje em dia não tem mais aquela pedra, porque antes era um dado amarelo, vc
olhava e ficava impressionado. Hoje em dia é um papelzinho enrolado com um farelinho
dentro. Vc pode ir a qualquer lugar, pelo menos aqui em São Paulo, que é dessa forma
que tá rolando (...) (J30MU)
(...) o traficante recebe o crack como uma pedra, um tijolo que ele tem que cortar ou
quebrar (...) então o farelo é a mesma coisa que a pedra, mas é o resto da pedra que eles
cortam e fica o farelo, é que nem cortar queijo, depois eles juntam tudo e vende aquele
farelo também (J39MU)
(...) o farelo é o resto da prensa (...) a pedra é prensada sobra aquele farelo e para o
traficante não perder ele vende isso também. (S17MU)
Porém, outros crêem que a composição química do farelo seja distinta à da pedra,
consistindo numa estratégia de lucro ao traficante. Ao adicionar ao farelo substâncias
semelhantes tanto física (ex.: bicarbonato de sódio, de mármore, talco) quanto
farmacologicamente ao crack (ex.: lidocaína e xilocaína), o traficante aumentaria o volume
da droga a ser comercializada e consequentemente lucraria mais com a venda.
(...) quando ele não tem mais mercadoria pra trabalhar, ele pega, mistura e vende.
Primeiro vende, se acabou, se ele que não tem mais, pra ele não tomar prejuízo, ele
pega, mistura um pouco e daí vende (...) ele vai e compra cinqüenta gramas, cem gramas
de bicarbonato, quebra ela, mói, mistura tudo, faz o papel e vende (...) efeito vai dar, mas
não vai dar aquele efeito igual é, entendeu? (A30MU)
Mesmo que não haja alteração de sua composição química, o farelo representaria
uma forma mais rendosa ao traficante, que amassariam as pedras e passariam a vendê-
las na forma de farelo, garantindo que a quantia, antes referente à apenas uma pedra, fosse
distribuída a 2 ou mais papelotes, vendidos, cada um, pelo mesmo valor que o da pedra
inicial, atitude, que por si só, acaba por justificar o desaparecimento das pedras do
mercado como atualmente presenciado.
É o crack esfarelado que eles fazem pra vender mais. De vez pôr a pedra inteira, eles a
quebram pra fazer dois papéis pra dobrar a quantidade. (DA27ME)
Mas o farelo parece ainda não estar amplamente divulgado, que usuários que
nunca o viram e que tampouco presenciaram sua venda. outros que crêem que o farelo
99
seja apenas uma estratégia de divulgação gratuita do uso de crack entre não-usuários,
facilitando sua experimentação e consequente adesão. Poderia consistir também na
estratégia do traficante em apresentar o produto a novos “clientes”, atraindo-lhes da
freguesia de outras bocas ou traficantes.
O farelo de crack não se vende, eles dão, isso aí se chama experimentação. Vamos supor,
se o dono, o que abastece a boca chegou, trabalhando ali, quebrando, fazendo as
pedrinhas ali, sobra muito farelo. Aquele farelo ali, se a favela é muito quente, favela boa
que tem muito nóia, aquele farelo ele pega tudinho vai numa casa de uma pessoa
conhecida, mais usuário, “oh fulano de tal chega pra vc experimentar um barato”.
(PE29MU)
Em semelhança ao cloridrato de cocaína, o farelo é comercializado em saquinhos
de plástico ou pequenas bolsas de papel alumínio, as trouxinhas ou papelotes, cujo valor
variaria de 5 a 10 reais. A quantidade de farelo vendida parece ser pequena e inferior ao
que antes correspondia à uma pedra, conforme anteriormente mencionado. Quanto ao
custo, mais de um terço dos entrevistados acreditam que os papelotes de farelo sejam de
mesmo valor que os da pedra, enquanto outros crêem-no mais barato.
(...) um papelzinho com farelo não tem nada, podemos dizer que de 2 a 3 pitadas de sal.
Um papel dá pra vc usar 1 ou 2 vezes, depende da sua paranóia (...) (E26MU)
(...) o traficante vende mais ou menos numa quantidade igual, só que dá a impressão, para
o usuário, que tem uma quantidade boa, mas na hora que vc vai usar, vc percebe que a
pedra rende mais (...) (P29MU)
4.2.3 O uso de Crack.
4.2.3.1 Aparatos, Ritual de Preparo e Uso de Crack.
Na cidade de São Paulo, o ato de fumar-se a pedra
ou farelo de crack é vulgarmente referido como dar
uma pedrada, dar uma paulada, dar uma pipada
ou carburar o crack. Para propiciar os efeitos
psíquicos desejados, o crack deve atingir altas
temperaturas e, para que sublime, faz-se necessário
o uso de aparatos especiais, os cachimbos (F
IGURA
F
IGURA
2
:
O c
achimbo Artesanal de crack.
100
2). Logo, dar uma paulada é fumar crack em cachimbo. Foram identificados 2 tipos de
aparato ao uso de crack, o dito cachimbo convencional e o artesanal. O convencional,
raramente usado, é o cachimbo de madeira, atualmente distribuído pelo centro “É de lei”
como estratégia de redução de danos. o cachimbo artesanal (F
IGURA
1), conhecido
como cachimbo de alumínio, é facilmente improvisado no momento de uso, necessitando
apenas de uma tampa ou cobertura de alumínio, que pode fazer parte do recipiente ou
ser a ele adicionado através de pedaços de folha de papel alumínio. Assim, uma grande
variedade de recipientes empregados à confecção do cachimbo de alumínio, a citar: copo
de iogurte; copo de yakult; copo de água mineral; isqueiro; tampa e tubo de pasta de
dente e pomadas; tampas de garrafas de refrigerante e refrescos; cano cotovelo de PVC;
válvulas de televisores e computadores; lâmpadas; torneiras; caixas de fósforo;
aplicadores de plástico de broncodilatores usados no controle de asma, entre muitos
outros. Apesar da diversidade, na cidade de São Paulo, o cachimbo é frequentemente
confeccionado com latas de alumínio, seja de refrigerante, refrescos, bebidas alcoólicas
ou produtos alimentícios (ex.: achocolatados, leite condensado, entre outros), consistindo,
geralmente, no recipiente de preferência.
Depende, pode ser uma lata de alumínio, um copo de yakult, copo de iogurte, sendo um
pote que vc pode furar e ter um alumínio em cima, está valendo (...) até um copo desse
aqui (de plástico), vc forra ele com papel alumínio bem direitinho, faz alguns furinhos no
meio, fuma um cigarro primeiro para pôr a cinza do cigarro, faz um furo pra vc pôr a
boca e está feito. (C22MU)
(...) de isqueiro, outros de cano de PVC, fundo de torneira, antena de carro, qualquer
coisa está valendo desde que dê para encaixar o alumínio e furar (...) (S36FU)
Dentre os muito recipientes prefere-se a lata, pois seu uso é considerado discreto,
prático e rápido. É dito discreto, pois não deixa resquícios e é dito prático porque as latas
são facilmente encontradas, preparadas e descartadas.
Mesmo porque eu não tinha cachimbo porque eu achava que isso era um B.O. (boletim de
ocorrência). Se deixasse o cachimbo em casa e achassem, era, então eu comprava uma
lata de coca, nem tomava a coca, jogava fora, abria, furava e fumava (...) (P30MU)
(...) eu preferia a lata porque era mais rápido, furar e pronto (...) teve época que eu
andava com uma bolsa e 2 latas dentro (...) (F17FE)
101
No que concerne especificamente à discrição, observa-se que a dimensão dos
cachimbos vêm diminuindo consideravelmente, a fim de evitar-se a atenção de terceiros e
principalmente de policiais, facilitando o uso e o descarte sem que suspeitas sejam
despertadas. Assim, atualmente há o relato da existência de cachimbos tão pequenos
quanto tampas de tubo de pasta de dente, de medicamentos e de protetores labiais.
Embora geralmente preparados, relatos da venda de cachimbos por outros
usuários ou mesmo o fornecimento por traficantes no momento de compra.
(...) tem até uns cachimbos que são fabricados para venda, tem uns caras que vendem pela
rua, é lógico que não é fácil de achar, mas vc acha (...) (F17MU)
(...) estava sem nenhum cachimbo e estava difícil de achar um copinho de yakult e o
traficante falou “segura isso pra vc”, porque ele sempre tem, não falta pra ele
(...).(D36MU)
Interessante notar que usuários que fumaram em latas de alumínio e outros tipos
de cachimbo artesanal citam possíveis diferenças de efeito entre eles:
(...) eu sinto diferença porque se eu fumar a pedra no cachimbo o tuim dela é mais forte
do que na lata (...) na minha concepção a adrenalina no coração fica mais forte (...)
aquela sensação de medo e da paranóia fica muito mais louca do que fumar ela (pedra)
na lata. O cachimbo em si, por causa do caninho, a sensação é mais louca mesmo (...)
(A25FU)
Porque com o cachimbo vai direto para o pulmão, na lata a fumaça uma circulada,
então vem suavemente para dentro do seu corpo. No cachimbo o efeito seria mais forte e
bate mais rápido. Eu não gosto do cachimbo em hipótese nenhuma, mas fumei.
(M36FU)
O preparo da lata e dos demais recipientes são muito semelhantes, embora não
idênticos. De forma geral, durante o procedimento de preparo e consumo de crack não
pode faltar alumínio e tampouco cinzas de cigarro. O alumínio é o elemento que dá suporte
à pedra para que seja aquecida ou queimada. Porém, o alumínio deve sempre estar furado,
de tal forma a permitir que a fumaça resultante do aquecimento da pedra passe da
superfície externa à interna do cachimbo. Tendo-se isso em mente, o preparo das latas de
alumínio é o mais simples, de tal forma que basta amassá-las ao meio e furá-las com objeto
102
cortante para que a fumaça passe da superfície externa do cachimbo à abertura da lata, por
onde é comumente aspirada. Aos demais recipientes que não o contenham, é adicionado
através de pedaços de folhas de papel alumínio inseridas no bucal do recipiente. Como
perdem a abertura, através da qual pudesse haver a absorção da fumaça de crack, é
necessário adicionar tubo ou cano à sua parede lateral (ex.: tubo de caneta; antena de rádio,
TV ou carro), que conduza a fumaça do interior do cachimbo à boca do usuário, onde
então é inalada. A vedação da conexão entre os novos elementos e a parede do cachimbo é
de suma importância, que, se mal conectados, a fumaça pode escapar do interior do
cachimbo ao meio, representando assim, na perda da droga. Além do alumínio, outro
elemento de fundamental importância durante o consumo de crack são as cinzas de
cigarro. Conforme os entrevistados, não como fumar crack sem as cinzas. Assim, sobre
o suporte de alumínio, colocam-se as cinzas de cigarro e finalmente, o crack sobre as
cinzas. O procedimento de preparo do cachimbo, seja as latas de alumínio ou não, é
ilustrado abaixo:
Lata:
Pra mim era uma coisa muito importante, tinha que ser uma lata, podia até ser achada na
rua, mas ela tinha que ser lavada. E eu andava com uma agulha de tapeçaria para furar
essa lata. Então, ela tinha aquela coisa de simetria (...) tudo muito simétrico, bonitinho,
determinado número de furos, precisava ter o diâmetro certo. Eu colocava uma camada
de cinza, um pouquinho de crack, aí queimava um pouco e dai já derretia, daí eu colocava
uma outra camada de cinza e mais uma de crack (...) fazia 3 camadas até que em cima eu
colocava uma pedra e eu queimava aquilo, dava um tuim (...) então é um ritual (...)
ficava muito brava se alguém furava mais a minha lata. (L45ME)
Outros recipientes:
(...) um isqueiro de metal cortado ao meio. E sabe aquelas antenas que tem aquela coisa
de metal, aqueles caninhos (...) então, fura o isqueiro no meio e coloca um caninho de
metal e em cima o alumínio de marmitex, vc tampa e lacra o alumínio para não sair o
ar, para o ar ir diretamente para sua boca. Fura o alumínio com uma agulha pra ficar
fino e para a cinza não vazar pra baixo. Em cima dos furos do alumínio vc coloca as
cinzas de cigarro e em cima da cinza a pedra, aí vc queima a pedra (...) (D18FU)
Às cinzas atribuem-se as seguintes funções: (a) aquecer a pedra; (b) como, uma vez
aquecida, a pedra derrete, a cinza impede que a pedra derretida obstrua os furos do papel
alumínio. Mais que isso, a cinza impede que a pedra derretida escorra pelos furos para a
103
parte interna do cachimbo, funcionando então como anteparo ou filtro; (c) a cinza controla
e prolonga o tempo de sublimação da pedra. Sem cinzas, a sublimação ocorre de forma
mais rápida, finalizando rapidamente os efeitos; (d) a cinza aumenta a quantidade de
fumaça produzida durante o aquecimento da pedra, facilitando o processo de absorção.
A cinza vc usa pra ela estar segurando, aquecendo mais rápido a pedra porque ela é
muito difícil de pegar fogo, então, quando vc põe a cinza ela ajuda a esquentar mais a
pedra e pegar fogo mais rápido. Porque na hora que vc a paulada, vc puxa, a pedra
sente, entra em brasa e na hora que vc soltar ela apaga. É até por isso que a gente fala
paulada porque é uma puxada e apagou, era, vc vai ter que acender de novo
quando vc quiser fumar (...) é pouquíssima, é simplesmente para aquecer pra ela ficar
incandescente (...) (E23ME)
(...) a hora que vc esquenta, a pedra vai derretendo, então, se não tiver a cinza ela vai
tampar os buraquinhos e vai descer. A cinza do cigarro prende a pedra, começa a
derreter, daí gruda na cinza e não cai pra dentro da lata. (K20FU)
A cinza serve pra não gastar muito, ela conserva. Ela não gasta muito, ela vai
economizando. Se vc não e a cinza, vc puxa a fumaça e ela (pedra) desce toda, aí não
presta, então, põe a cinza pra ir economizando (...) a cinza não deixa derreter muito o,
deixa ela queimar e exalar fumaça (...) (F39MU)
Um dia eu até tentei sem a cinza e conforme vc aquece, aquilo derrete em cima do
alumínio, então não vai a fumaça dele completa, porque ela derrete e não faz aquela
fumaceira, então, eu acho que a cinza ajuda a fazer a fumaça e dissolver ele melhor (...)
(DA27ME)
Durante o processo de consumo não se usa sempre as mesmas cinzas. Depois de
aquecida, a pedra derrete e forma com as cinzas uma camada sólida e dura sobre os furos
do papel alumínio, mas uma vez endurecida, a cinza perde função, sendo necessária sua
substituição por cinzas novas. Assim, durante o uso de crack produz-se grande quantidade
de cinzas, necessidade que acaba por aumentar o uso de cigarro pelo usuário. Porém, a
necessidade por cinzas não lhes aumentou o uso de cigarro como droga, de tal forma que
os deixavam queimando apenas para a coleta.
Vc precisa da cinza do cigarro, põe a pedra em cima pra ela derreter e ela derrete na
cinza, dvc traga a fumaça e solta. Vc faz uso da cinza uma ou duas vezes, depois vc tira
aquela cinza e põe uma cinza nova (...) queimava e depois jogava a cinza fora porque
depois de muito uso a cinza não tem mais efeito, não mais o efeito da pedra, fica
ruim (...) (P30MU)
104
Interessante notar que houve entrevistados que nunca fizeram uso de cigarro na
vida, utilizando de muitas estratégias para conseguir as cinzas. outros substituem as
cinzas de cigarro por maconha, o que de maneira ou outra, como de se esperar, pode alterar
os efeitos produzidos.
(...) eu não fumo e cheguei a pagar para outros fumarem por causa das cinzas ou então eu
torrava ele todinho até fazer a cinza pra fumar, mas cigarro eu nunca fumei, eu não gosto
do cheiro (...) pra vc ver como o negócio é coisa do demônio (...) nunca fumei cigarro na
minha vida e fumo crack (...) (J39MU)
(...) eu mesmo não fumo com cinza, eu pego a lata, coloco a minha maconha, faço ela em
pó, ponho a pedra em cima da maconha e fumo (...) não uso cinza não (...) (A30MU)
Com o cachimbo e o crack em mãos dá-se início ao ritual de uso, ilustrado pela
descrição e pelas citações abaixo:
Descrição: Uma vez preparado o cachimbo, colocam-se
as cinzas sobre o papel alumínio (furado) e o crack sobre
as cinzas. Com um isqueiro ou fósforo aquecem-se as
cinzas e o crack. Aproxima-se a abertura do cachimbo à
boca e inspira-se o ar. Mantém-se o isqueiro próximo à
pedra e sempre aceso. A pedra derrete à medida que
entra em contato com o fogo do isqueiro e a fumaça,
resultante da sublimação do crack e do aquecimento
cinza, caminha pelo interior do cachimbo e é inalada
pelo usuário. Interessante notar que a fumaça não se
dissipa no ar e entra no cachimbo porque o usuário está
continuamente aspirando-a. A fumaça é tragada pelo
usuário e é mantida em seus pulmões. Mantém-se nos
pulmões a maior quantidade de ar possível e por
prolongado período de tempo, dando-se início aos
efeitos. Ao exalar a fumaça os efeitos continuam, porém,
com menor intensidade. Enquanto isso, a pedra derrete, envolve as cinzas circundantes e
forma uma camada dura. Mesmo após aquecimento, com o passar do tempo, o crack
sublima por completo e restam apenas as cinzas. Os efeitos desaparecem e indica-se o
momento de colocar-se pedra e cinzas novas, repetindo-se novamente o procedimento e
por inúmeras vezes consecutivas (F
IGURA
3).
Faz uns furinhos em cima do papel alumínio, pega a cinza de cigarro e põe em cima, põe
a pedra de crack sobre a cinza, põe o cachimbo na boca e pronto. vc pega o isqueiro e
puxa até derreter tudo, vc puxa aquela fumaça todinha pra dentro, segura e quando vc
soltar ela, vc a nóia (...) vc derrete a pedra, a fumaça se envolve no meio das cinzas,
desce, passa pelo canudinho e vai para o organismo (...) (PE29MU)
F
IGURA
3:
O
uso de crack. Drug
Rehabilitation and Addiction Treatment
Center California (janeiro de 2007).
Disponível em:
http/www.addictionca.com/signs-of-
crack-use.htm
105
Vamos supor, eu coloco a minha droga dentro da lata ou do cachimbo, queimo, coloco na
boca e vou queimando. Fico queimando, aí quando vejo que a pedra está meio derretida e
não tem mais como segurar, que estou perdendo o fôlego, eu solto a fumaça e não
queimo mais (...) (A25FU)
Conforme os entrevistados, o ritual de crack, por si só, ou apenas sua lembrança, já
induziria os efeitos esperados, mesmo que previamente ao uso da droga. Quanto à
periodicidade, parece acontecer frequentemente pelas noites, por motivos diversos, não
parecendo ser, necessariamente, uma característica associada à droga em si.
O ritual de fazer o cachimbo, ver a pedra derretendo, isso estimula o uso, a lembrança
gera euforia e já mexe com o organismo. (A28MU)
Acho que o efeito é tão potente que deixa vc com medo de sair na rua, de ver o dia. Então
tem gente que usa à noite e não quer usar de dia porque tem medo de usar de dia (...) o
efeito do crack é devastador (...) (J24MU)
É uma droga mais da noite, vc não acha tanto durante o dia, geralmente é mais de noite, a
partir de quando escurece (...) apesar de que tem alguns que consomem até durante o dia
(...) (P29FU)
4.2.3.2 Formas de uso de crack.
É fato que o crack seja vendido sob a forma de pedra ou farelo, porém mais de
uma maneira de consumí-lo, a mais comum seria fumando-o, seja no cachimbo (como
pedra ou farelo) ou associado a outra substância, como no cigarro de tabaco e maconha.
Em função de suas diferentes formas de apresentação, o crack pode ser fumado de até 7
maneiras distintas. Embora os entrevistados acreditem que os efeitos dependam mais da
qualidade da droga que de sua apresentação, parece haver uma sutil diferença de efeito
entre as formas mencionadas, embora haja relatos a respeito do contrário. Dentre os
entrevistados, apenas alguns relataram ter usado crack de apenas uma única maneira,
enquanto a maioria já fez uso de, pelo menos, 3 delas. Cada uma das formas de uso é
relatada, em detalhes, abaixo:
(a) Fumar o crack isolado: Consiste no uso de crack no cachimbo, referido no item
anterior como “dar uma paulada”. Conforme os entrevistados, a paulada” geraria efeitos
mais intensos e de início mais rápido em relação às demais formas, ainda a serem
mencionadas, tornando-a a de maior impacto. Entretanto, as mesmas características que a
106
elegem como a forma mais eficiente de uso, tornam-na a de maior fissura, paranóia e
compulsão (características em detalhes no item E
FEITOS
). Conforme alguns dos
entrevistados a intensidade da “paulada” estaria também associada à forma de
apresentação da droga, podendo variar se consumida como pedra (a1), farelo (a2), casca
(a3) ou borra (a4), definidas e detalhadas separadamente abaixo:
(a1) Pedra: No que concerne à forma de pedra, o crack pode ser encontrado na variedade
branca e cristal. Conforme os entrevistados, os efeitos possibilitados pela pedra cristal são
mais intensos que os da branca convencional, que, o tratamento de cocção, em água,
possibilitaria a “purificação” de parte dos diluentes e adulterantes presentes na pedra.
Tanto é que hoje em dia tem uma droga que é mais forte que o crack, aliás, é o haxixe do
crack (...) não tem o haxixe da maconha, então, agora tem a cristal que é o haxixe do
crack, que é mais forte que o crack. Esse é mais difícil de vc encontrar, mas tem em
São Paulo, já tem há bastante tempo. (E26ME)
(...) é o crack tirado (pedra cristal) (...) aquela paulada que vc ali é equivalente à
umas quatro pauladas que vc daria numa pedra normal (...) vc tirando os resíduos ele fica
100% (...) vc dá uma paulada, mas a loucura é 5 vezes maior (...) (N19MU)
(a2) Pedra e farelo: Entre os entrevistados que experimentaram crack de ambas as
formas, não um consenso se os efeitos produzidos seriam distintos entre si e tampouco
qual seria a forma mais intensa e de início mais rápido. Assim, aqueles que defendem
pela igualdade de efeitos, em contrapartida, aqueles que sugerem a existência de
diferença e maior intensidade de efeitos pela pedra, sendo o recíproco verdadeiro.
Igualdade de efeitos.
É crack do mesmo jeito, que é moído. Então é a mesma coisa que vc pegar uma pedra e
amassá-la, o efeito é o mesmo, a droga é a mesma. (A28MU)
Se ela estiver em pedra ou em farelo o efeito é o mesmo, em minha opinião, não muda em
nada. (DA27ME)
Os efeitos da pedra são mais intensos.
O farelo é muito ruim, a pedra é melhor. Acho que o farelo tem mais química porque vai
muito rápido, a pedra não, vc uma paulada violenta e fica vendo coisas que não
existem. (C32MU)
107
Quando eu usava o mais esfarelado, ele não dava o mesmo efeito que a pedra. Se tiver em
pedra é melhor, se tiver em pó é coisa ruim. (R24MU)
Os efeitos da pedra são menos intensos.
Não, pra mim é o mesmo efeito, é tudo pedra. Alguns farelos são mais fortes que as pedras
e algumas pedras são mais fortes que o farelo. (F26MU)
(a3) Pedra e casca: A minoria dos entrevistados relatou, na vida, o uso de crack na forma
de casca. A “casca” é preparada a partir do cloridrato de cocaína, misturando-o a
bicarbonato de sódio ou amoníaco, de forma semelhante ao procedimento empregado na
cidade de Barcelona, a ser detalhado em seção específica. A opinião sobre os efeitos
decorrentes da “casca” é dúbia, que alguns acreditam-na como a forma de crack de
efeitos mais intensos, enquanto outros crêem-na mais fraca que a pedra. Entre os que a
crêem como mais fraca, atribuem-no à qualidade do cloridrato de cocaína atualmente
disponível.
É pior ainda virando na colher (casca), aquela ali que é a forte. Essas pedras de hoje em
dia não matam ninguém não, o cara fuma cinqüenta pedras durante o dia e fica na nóia,
na rua, gasta todo o dinheiro e não faz nada. Antigamente fazia porque virava no
bicarbonato e na farinha (cloridrato de cocaína), mas hoje em dia a farinha não vira
mais, mas antigamente virava. Vc fumava e virava bicho. (A50MU)
Se vc usar a casca a loucura é menor, não é tanta loucura quanto à pedra mesmo.
Porque às vezes a casca que vc usa é o resto. Porque vc coloca o bicarbonato, tira a
pedra pura e fica o pozinho do bicarbonato e fica a casca que separa. Aquilo ali seca, vc
coloca no Sol, deixa uma quantidade de água bem pouquinha e pra vc fumar ela na
lata (...) mas o mais forte é a pedra (...) (M33MU)
(a4) Pedra e borra: Conforme os entrevistados, a fumaça liberada pela queima de crack
(independentemente de sua forma de apresentação) passaria pelo interior do cachimbo e
impregnar-se-ia em suas paredes internas, formando, a longo prazo, um sólido negro
denominado por borra, raspa, resíduo, resina ou sarro. Uma vez formada, relatam abrir
o cachimbo e remover a borra, colocando-a sobre as cinzas e fumando-a novamente,
afirmando tratar-se da forma mais potente de crack, de tal forma a apresentar efeitos mais
intensos que os da pedra, porém, em contrapartida, mais fissurantes e compulsivos.
108
Então, a borra (...) aliás, eu tinha falado que a pedra é a pior de todas, se tem uma coisa
que é pior que a pedra é a borra da pedra, porque vc fuma, fuma, fuma no mesmo
cachimbo por um bom tempo, depois vc desmonta e raspa ele. sai uma borra, marrom
escura, que é como se fosse uma pedra concentrada. Vc pega aquela borra, que fica um
pozinho, põe no cachimbo e fuma (...) se a pedra é a cocaína ampliada 10 vezes, a borra é
a pedra ampliada mais 10, entendeu? É uma paulada na cabeça que parece que o tampão
explode, vc escuta até um zumbido na orelha, é horrível, é deprimente. Antes eu achava
legal, achava o maior barato, hoje eu acho deprimente. (P30MU)
Tem o resíduo (...) raspar o cachimbo e fumar deixa o cara mais louco que fumar o crack,
nunca usei nada pior. O pessoal fuma, uma semana depois raspa o cachimbo, daquele
que sai, o pessoal põe o em cima da cinza e fuma de novo (...) nossa, vira super
homem, mulher maravilha, nem sei, é uma tristeza (...) (F26MU)
Os efeitos da raspa o três vezes maiores que os da pedra (...) vamos supor, se vc deu
uma paulada aqui tem um efeito, a raspa é três vezes maior que o da pedra. Se vc for dar
uma paulada na pedra vc vai ficar na nóia, mas o dia que vc for dar uma paulada na
raspa aquela nóia vai ser pior ainda, vai te dar ainda mais vontade de fumar (...)
(PE29MU)
O crack ainda pode ser fumado de outras 2 maneiras, misturado a outras
substâncias, seja no cigarro de tabaco ou maconha. Quando misturado a tabaco é referido
por capetinha, pitilho, cisclado ou mescladinho e quando com maconha é denominado
por mesclado ou melado. Cada uma das formas é descrita, em detalhes, abaixo:
(b) Capetinha, Pitilho, Cisclado ou Mescladinho: Para prepará-lo basta abrir um cigarro
de tabaco, misturar o crack esfarelado (proveniente da pedra ou do próprio farelo) e fechá-
lo ou preparar outro cigarro com papel de seda. Embora se acredite que os efeitos no
tabaco sejam mais fracos que os da “paulada”, são a ela semelhantes em virtude de
também serem instantâneos, breves e alucinantes. É comum que associem o uso ao
aparecimento de sintomas físicos como dores de cabeça, náuseas e vômitos. Porém, o que
mais desperta a atenção e incentiva seu uso é que é discreto, podendo ser consumido em
locais públicos, passando o uso despercebido.
Se é em lugar que não pra eu fumar na lata e nem no cachimbo porque tem que riscar
fósforo, riscar isqueiro, eu faço um cigarrinho e saio, quer dizer, mais chance pra
gente fumar, porque é mais escondido, tipo assim, eu com cigarro, vou ali acendo e
escondo na mão, agora já o cachimbo e a lata não, não tem como (...) (J53FU)
109
Com cigarro é brincadeira de criança (...) eu usava dentro do restaurante, a gente se
encontrava dentro da pizzaria e eu pegava a pedra de crack e colocava dentro do cigarro
e usava dentro do restaurante (...) (L45FE)
(c) Mesclado ou melado: O mesclado é a mistura de crack à maconha. É preparado em
semelhança ao cigarro de tabaco, mas no baseado de maconha. Segundo os entrevistados,
seus efeitos desenvolver-se-iam em 2 etapas, ou seja, primeiramente dar-se-iam os efeitos
típicos de crack sucedidos pelos efeitos da maconha. A continuidade com os efeitos
relaxantes da maconha representaria alguns benefícios, a citar: (c1) suavizaria a fissura de
crack, tornando o uso menos compulsivo e mais controlável; (c2) prolongaria a duração
dos efeitos positivos ou de prazer de crack e, finalmente, (c3) melhoraria a interação do
usuário com seu entorno social, diminuindo o aspecto antissocial associado ao uso de
crack. A longo-prazo, o conjunto dos benefícios pode incentivar a substituição progressiva
do uso da pedra de crack por mesclado, embora a transição contrária seja a mais
frequentemente citada.
Com a maconha, primeiro dava a brisa do crack, estalava e depois a maconha abaixava,
vc ficava mais relaxado, ia pra casa comer (...) a pedra no cachimbo, que o pessoal fala
que é a paulada, é instantâneo. Puf! No mesclado também é instantâneo porque primeiro
queima a pedra e depois vai queimando a maconha. A brisa da pedra é muito rápida,
depois vem a da maconha que dura um pouco mais, então, dá uma relaxada. (A31ME)
Sabe aquela história de fissura, de vc querer mais, então, vc fuma com a maconha e ela te
uma euforia, mas como ela é relaxante vc vai deixando meio que a fissura de lado.
Porque o efeito de crack é instantâneo, dura trinta segundos, um minuto no máximo e
depois vc esta alucinado querendo mais. Então, quando vc está com a maconha na
cabeça, que te relaxa, então vc deixa pra lá, deixa pra depois (...) (J30MU)
Assim, independentemente da forma de apresentação, considera-se que os efeitos
decorrentes do procedimento da “paulada” sejam os mais intensos. Não são raros os relatos
de que a mistura de crack a tabaco ou maconha seja apenas despercio de droga.
Porém, embora mais potente, a “paulada” torna o usuário mais rapidamente
dependente, além de submetê-lo a consideráveis riscos de saúde, que, sob altas
temperaturas, o cachimbo, geralmente na forma de latas de alumínio, induz o aparecimento
de queimaduras e feridas na boca do usuário, predispondo-lhe, de forma significativa, à
transmissão de doenças infecto-contagiosas quando em contato com a saliva e ou sangue
da boca de outro usuário com quem compartilhe o cachimbo.
110
Hoje, se eu fumar no cigarro ou no mesclado não vai dar que nem no cachimbo, é mais
fraco (...) no cachimbo ela vem pura, é ela e a fumaça dela, então ela acelera mais
rápido e o efeito é mais forte (...) parece que há uma perda da droga (...) (G28ME)
O mais notável de diferença é misturá-la com maconha, porque te uma ligada meia
boca. Mas vc estraga as 2 coisas, vc não vai ficar uma coisa e nem outra (...)
sinceramente eu não gosto de usar com cigarro e muito menos com maconha porque vc
vai estragar as 2 coisas (...) eu gosto de curtir cada um em sua hora e sou apaixonado por
maconha, então eu acho que qualquer coisa que vc ponha no meio vai estragar (...)
(JL27MU)
Eu não gastava a minha maconha pra misturar com crack e muito menos o meu crack
para misturá-lo à maconha, então, tinha que usar puro, eu sou a favor de usar puro. Se eu
tivesse chance eu só usava pura, não fumava com maconha e nem com cigarro. (R24MU)
4.2.3.3 Outras estratégias de uso.
Os entrevistados foram questionados a respeito da possibilidade de usar crack de
maneiras distintas às mencionadas. Embora
mais de um terço dos entrevistados
desconhecesse a existência de outras estratégias, a maioria relatou outras alternativas de
uso, descritas em detalhe a seguir:
(a) “Shotguning”: Já relatada por outros autores, foi mencionada por mais de um terço
dos entrevistados, que a praticaram ou apenas presenciaram seu uso. Como não
denominação específica em português, manteve-se o termo em inglês. A técnica,
desenvolvida sempre entre 2 pessoas, surge no momento em que não se dispõe mais de
crack, despontando como a possibilidade de compartilhá-lo e aproveitar ao máximo do que
ainda resta. Pode acontecer de apenas um dos envolvidos não ter crack, assim, para que
não seja dividida a droga em si, adota-se a estratégia como forma de solidarizar-se com a
necessidade de uso do companheiro. Embora empregada entre casais, relatos de uso
entre homens, não apresentando, necessariamente, conotação sexual.
(...) no sentido de economizar, de conseguir pegar um pouquinho do outro pelo menos.
Tem cara que faz, mas eu gostava de fazer com garota porque a boca ficava bem próxima
(...) era dividir mesmo. Tinha garota que eu não tinha nada com ela, era passar, não
pra uma curtição extra, não, vc está tão na nóia que vc nem quer outra coisa (...)
(M22MU)
(...) não é muito comum fazer isso, se vc estiver com muita fissura. Aí, pra não soltar a
fumaça no ar, então vou reaproveitar para o mano que está na fissura, ele vai aproveitar e
111
vai ver que isso que tem mesmo, vai se conformar e não vai sair por pra arrumar
mais (...) é homem com homem, homem com mulher, viado, travesti, não interessa o sexo.
(M34MU)
Na técnica, um dos usuários inala a fumaça de crack, prende-a nos pulmões por
alguns instantes e depois a transmite ao companheiro, de duas maneiras possíveis, seja
através do contato direto boca-a-boca (mais comum entre casais), seja por intermédio de
um tubo ou cano que ligue a boca de ambos os usuários.
É no beijo meu, um beijo. O cara um assopro devolvendo aquela fumaça para o
outro e o outro dá um assopro devolvendo aquela fumaça (...) (M33MU)
(...) é com pedaço de cano de PVC, vc um trago, eu chego e vou na sua boca e vc
fuma aquele resto meu, mas eu nunca gostei, o mesmo efeito, mas eu nunca gostei (...)
tem muito cara que fala que não acontece entre dois homens, mas acontece entre dois
homens frequentemente sim, pra economizar (...) (F26MU)
Considerando que boa parte da fumaça, logo, boa parte da cocaína, fica retida nos
pulmões do doador, ao receptor é fornecida pouca quantidade de fumaça, de tal forma que
se esperaria que o receptor desenvolvesse efeitos menos intensos aos observados no
doador, constatação corroborada pela maioria dos entrevistados ao afirmarem que nada
sentiram quando atuavam como receptores. Assim, muitos usuários não acreditam na
técnica, afirmando tratar-se apenas de uma forma de desperdiçar-se a droga. Outros ainda
afirmam que a técnica não condiz com o perfil do usuário de crack que, de caráter egoísta,
não se disporia a dividir a droga, atuando sempre em favor de proveito próprio.
Vai desperdiçar fumaça? Não mais brisa, mais nada, pelo contrário, vc acaba
perdendo, vc que soltou a fumaça vc perdeu um pouco da brisa porque vc soltou a fumaça
antes do tempo e a pessoa que puxou também não vai sentir muita brisa, porque tem
menos tóxico, a química ficou dentro da outra pessoa, vem bem pouquinha. (K20FU)
Não existe. O cara vai achar que ele está roubando a fumaça dele. “Pô, esse tanto de
fumaça, se eu passar pra ele, eu não vou me satisfazer”. Pode ser que ele passe pra tentar
dar uma loucura nos dois, mas é uma coisa que ele pensando: “filho da mãe, o cara
roubou o meu pega, que era só meu, ele pegou a fumaça” (...) (E26ME)
Não, porque o cara que usa, ele não quer dividir. Ele não quer puxar e soltar na boca de
ninguém, ele não quer, é pra ele. Ele vai puxar e não vai soltar, vai engolir pra ficar
mais louco, é difícil (...) o cara, quando ele usa, ele quer pra ele, não quer dividir com
ninguém não, não quer mesmo. (O23ME)
112
Porém, a técnica, assim como a intensidade dos efeitos para ambos os envolvidos,
ainda parece ser tema controverso, que usuários que garantem que sejam os mesmos
seja para doadores ou receptores. Assim, quando adotada, é comum que os usuários
prefiram atuar como doadores que receptores, mas a decisão não se deve apenas à
intensidade dos efeitos, mas também por acreditarem que a fumaça, proveniente
diretamente dos pulmões do doador, possa conter microorganismos patogênicos, o que os
predisporia ao contágio de doenças infecto-contagiosas, observação um tanto paradoxal,
que o usuário de crack, sob fissura, despe-se de qualquer preocupação ou valor moral para
dar continuidade ao uso, constatação a ser mencionada nesse trabalho e já demonstrada por
tantos outros autores.
(...) passava bastante, receber eu não recebia muito porque eu ficava receosa, tenho muito
medo de pegar certas coisas e não aceitava não (...) (D18FU)
(b) “Dar a segundinha”: Somente alguns dos entrevistados relataram-na como estratégia
de uso. É outra forma de compartilhamento de crack, porém, diferenciada da anterior pela
ausência de intermediários que pré-processem a fumaça. Ao fumar crack, seja na lata ou
cachimbo, nem toda a fumaça pode ser inalada de uma vez, de forma que sobra no
interior do cachimbo. Para compartilhá-la com o colega de uso, o doador, após aquecer a
pedra e dar a primeira tragada, tapa o bucal do cachimbo e o fornece ao receptor. Assim, a
fumaça conservada no interior do cachimbo é inalada pelo receptor. Denomina-se
segundinha, pois o doador (dono da droga) a primeira tragada (ou paulada) e o receptor
a segunda. Como não intermediários, espera-se que os efeitos, ao receptor e doador,
sejam exatamente os mesmos, como ilustrado pelos entrevistados:
A segundinha é vc dar a primeira paulada, que é vc acender o isqueiro na pedra e ela
queima, vc tampa o buraco da lata e fica aquela fumaça dentro (...) então se fica
muita fumaça dentro da lata, vc pega, pega a segundinha. vc pega, coloca outra
lasca e mete fogo de novo, aí vc dá outra segundinha para o outro cara e aí vai indo (...) a
gente faz isso pra não dar nóia na pessoa. Então, uma pessoa pega, dá uma isqueirada,
já dá uma segundinha para o cara, dá um trago ali pra ficar mais de boa (...) (N19MU)
(...) ao fumar na lata fica uma certa fumaça dentro, essa fumaça dois tragos, então, vc
fumou, sobrou a fumaça, tampou e deu para o outro, entendeu (...) se o cara tem, ele fuma,
mas se não tem ele fala: “deixa eu dá essa segunda aí”, às vezes eu deixo, mas às vezes eu
113
nego, como se diz isso é luxo, né? Então, se um cara que está sempre comigo, eu falo
“tó, vai aí, fuma” (...) vc vê cara chorando no bairro por causa disso (...) (S17MU)
Porém, essa não consiste na única maneira de “dar a segundinha”. Como
anteriormente mencionado, ao fumar-se crack, seja na lata ou no cachimbo, as cinzas
misturam-se à pedra derretida formando uma camada dura. Muitos são os usuários que
continuam aquecendo tal camada até que nenhuma nova sensação seja produzida. Então,
usuários que, ao solidarizarem-se com a necessidade de uso de colegas, passam-lhes o
cachimbo para que continuem aquecendo a camada (cinzas+crack), procurando pelos
efeitos desejados. Nem sempre consiste na segundinha, mas sim na divisão das sobras de
crack.
(...) às vezes vc fica isqueirando a cinza, mesmo se não tem nada, fantasiando que
tenha alguma coisa. Aquela cinza velha e preta (...) continuava dando isqueirada, não
acreditando que já havia terminado (...) (N19MU)
(...) vamos supor, eu coloco a minha droga dentro da lata ou do cachimbo e eu queimo
uma vez porque eu sinto prazer na primeira queimada, porque na segunda eu não
sinto nada (...) então eu fico queimando a pedra, aí, quando eu vejo que esta meio
derretida e eu não tenho mais como segurar com o fôlego, eu solto a fumaça e não
queimo mais. tem outras pessoas que pegam o meu cachimbo e querem fumar o resto
do meu, o que ainda fica. Eu tentei fazer o que eles fazem, mas eu não sinto nada (...) e
tem gente que sente prazer com o meu resto, eu acredito que seja mais uma fissura (...)
(A25FU)
(c) Aspirar crack pelo nariz: Somente alguns dos entrevistados relataram ter aspirado
ou deglutido farelos ou pedras esfareladas de crack. Além de ser pouco frequente, não
consenso a respeito de seus efeitos, de tal forma que usuários que declararam nada
sentir, enquanto outros crêem que se trate de forma mais intensa que a “paulada”.
Considerando-se que o crack é pouco solúvel em água e que não pode ser absorvido pela
mucosa nasal, desconfia-se que os efeitos não sejam gerados pelo crack, mas por
adulterantes adicionados à sua composição química.
Ah, dá pra cheirar, pra vc quebrar ela e cheirar, acho que é a mais forte que tem. É
mais forte que na lata. Eu fiz uma vez, pensei que era cocaína e não era. Eu passei tão
mal, mas tão mal (...) passei a noite inteira da brisa do negócio, deu 6 horas da manhã e
na mesma brisa, passando mal, desesperada pra fumar um cigarro. (K20FU)
114
(d) Fumar crack na folha de papel alumínio: Houve apenas um relato do uso de crack
na folha de papel alumínio na cidade de São Paulo, técnica comumente empregada em
Barcelona para o uso de heroína e descrita em detalhes em item específico. Nessa técnica,
denominada “chasing the dragon”, o cachimbo e a lata são substituídos por uma folha de
papel alumínio. O crack (em pedra ou farelo) é depositado sobre o alumínio e a folha é
aquecida por debaixo com isqueiro, de tal forma que a pedra aquece e sublima. Ao
sublimar, o crack desprende um vapor, a ser inalado pelo usuário através de um tubo de
caneta ou de qualquer outro material sustentado pela boca. Assim, o usuário, ao aquecer o
crack, acompanha seus vapores para inalá-los. Porém, comparado ao cachimbo, o uso em
folha de alumínio é desvantajoso, pois nem todos os vapores desprendidos do crack são
inalados, de tal forma que boa parte se perde na atmosfera.
Sem cinza, sem maconha, sem nada, porque é na folha de papel alumínio (...) vc pega um
caninho, põe na boca, esquenta por debaixo da folha de alumínio, vai derretendo e vai
puxando a fumaça, é só química. (A30MU)
(e) Passar a fumaça para o órgão genital feminino: Embora de significante conotação
sexual, apenas um dos entrevistados relatou exalar o vapor de crack no interior da vagina
de sua companheira, garantindo o desenvolvimento dos efeitos esperados.
Que tipo, vc puxa o crack e solta no órgão genital da mulher e parece que ela tem prazer
também (...) vc abre bem o órgão genital e joga a fumaça dentro, ela parece que tem
prazer (...) (F20MU)
4.2.4 Efeitos.
4.2.4.1 Diferenças de efeito entre o crack e os demais derivados da cocaína.
Quase todos os entrevistados afirmaram haver diferenças de efeito entre os
derivados da cocaína. Os efeitos associados à via aspirada são os mais suaves e
prolongados. Os efeitos de crack são ditos intensos, breves em duração e de rápido início,
no que diz respeito à via injetada, diz-se que seus efeitos são semelhantes a crack,
porém, mais duradouros.
Como mencionado no item
Histórico do consumo de drogas
é comum iniciar-se o
envolvimento com cocaína através do cloridrato, via aspirada. Tal via é dita ser
estimulante, sociável e controlável, de forma a incentivar a interação do usuário com seu
115
entorno social. O uso ainda é dito prático e discreto, podendo ser cumprido em qualquer
ambiente social. Assim, a princípio, o uso de cloridrato de cocaína, por via aspirada, é
associado apenas a aspectos positivos. Porém, a longo-prazo, os efeitos de euforia e prazer
diminuem em intensidade, enquanto que efeitos desagradáveis como fissura, ansiedade e
depressão aparecem e aumentam em intensidade com o tempo de uso, muitas vezes
substituindo os efeitos ditos positivos. Desiludido, o usuário faz a transição de vias, da
aspirada à injetada ou da aspirada à fumada, ao perceber que, de início, volta a sentir os
efeitos de recompensa esquecidos até então. A transição à via fumada é dita encantadora,
que os efeitos desagradáveis associados ao cloridrato desaparecem, acompanhados pelo
reaparecimento, potenzializado, dos efeitos de prazer. A transição é confirmada ao
perceberem que, para sentirem, através do emprego de cloridrato, os mesmos efeitos
possibilitados por crack, quantidade exorbitante de cocaína deveria ser empregada, o que
inviabiliza a continuidade de seu uso. Porém, isso não significa que, a longo prazo, os
efeitos positivos associados à via fumada ou injetada de cocaína não atinjam tolerância e
os efeitos desagradáveis sofram sensibilização.
Eu senti um efeito da cocaína potencializada. Eu gostei muito do aroma da droga, é muito
rápido. Eu lembro que com a cocaína eu tinha que cheirar umas quatro ou cinco carreiras
e com o crack na primeira pedra vinha aquele efeito de imediato, o que demorava um
tempo pra vir na cocaína vinha no crack potencializado. O efeito vinha de imediato,
mas era de curta duração, não durava muito. (G28FE)
4.2.4.2 Os Efeitos de Crack.
Os efeitos de crack são divididos em duas categorias, os efeitos psíquicos e os
efeitos físicos. Os efeitos psíquicos acontecem em duas etapas distintas e sempre na
mesma ordem ou sequência. Primeiramente, desenvolver-se-iam os efeitos ditos positivos
ou sensações de prazer, de início instantâneo, sucedidos pelos efeitos negativos ou
sensações desagradáveis. De forma geral, os efeitos psíquicos estendem-se por curto
intervalo de tempo, dos quais os positivos são os mais breves, durando de segundos a
poucos minutos. O que complica a situação é que, a longo-prazo, a diminuição da
intensidade dos efeitos positivos e intensificação dos negativos, cujo alívio leva o usuário a
aumentar a dose e frequência de uso, além de assumir comportamentos de risco destinados
116
à aquisição da droga. os efeitos físicos podem ser categorizados em motores
(estereotipia) e viscerais, sendo detalhados afrente.
Porque o efeito de crack é instantâneo, dura trinta segundos, 1 minuto no máximo e
depois vc está alucinado querendo mais (...) (J30MU)
Porque ela não é uma droga que te deixa louco por horas, é e puf. É uma droga que vc
deu uma paulada ali e é por minutos, então vc dá a primeira paulada e na sequência ja
outra, então vai usando (...) (N19MU)
4.2.4.2.1 Os Efeitos Psíquicos de Crack.
(a) Efeitos positivos ou de prazer: Os entrevistados fazem menção aos efeitos agradáveis
como a
BRISA DE CRACK
. A intensidade do prazer é tamanha que as sensações são
dificilmente descritíveis, sendo interpretadas de formas distintas por quem faz uso, o que
muitas vezes dificulta a compreensão. Frequentemente relatam-os como sensações de
desconexão do mundo real, de “abertura da mente” ou de um estado de ausência de
problemas, o que leva o usuário ao estado imediato de alívio e tranquilidade.
Parecia que eu estava nas nuvens, pisando nas nuvens ao lado de Deus. Imagina a
situação, usando droga ao lado de Deus. Parecia o paraíso, que estava tudo bem, que não
existia problemas (...) (F17FE)
Na hora que vc solta a fumaça é como se vc estivesse num campo de concentração, todo
mundo sendo torturado, câmara de gás, mas naquele momento tudo vira flores e rosas,
durante aquele 1 ou 2 minutos é isso (...) (R24MU)
Porém, nem sempre o bem-estar é um estado de tranquilidade, podendo ser uma
sensação de adrenalina e euforia, muitas vezes comparada ao orgasmo sexual.
(...) os efeitos agradáveis não pra descrever. É igual fazer sexo com a pessoa que vc
ama, ter aquele orgasmo e multiplicar por 10 (...) (R24MU)
É uma sensação que parece que vc está descendo a montanha russa do Playcenter, é
alegria. Sabe aquela hora que vc chegou no topo, a hora que vc desce, o coração está a
milhão. Chegou embaixo vc pergunta: “Putz, acabou, não pra ir de novo” (...)
(N25FE)
O estado de euforia parece aumentar a auto-estima e auto-confiança do usuário,
despertando-lhe sensações de poder, de tal forma que relatam sentir-se como reis e super-
117
heróis. Sentem-se corajosos e auto-suficientes ao ponto de assumirem comportamentos
ou atividades que antes não eram capazes de cumprir.
uma sensação muito gostosa na hora que vc está dando o trago. Me sentia auto-
suficiente, não precisava de nada e de ninguém, tudo ficava legal. Sentia um bem-estar
muito grande na hora, muito estranho. Na hora que passa, parece que alguém morreu,
que abriu um buraco no chão e vc está vendo o diabo ali, que vc vai cair, uma coisa
horrível. (K20FU)
A euforia também acaba por exacerbar os sentidos físicos (d), fazendo-os
perceber o entorno com mais detalhe e nitidez.
(...) o mundo pára pra vc, vc usa, a sensação é de que parou tudo (...) o crack aumenta de
100 a 1000% todos os seus sentidos (...) vc vira um vidente. Nossa, eu consigo ver, ouvir,
sentir o cheiro (...) vc começa a se mover devagar porque vc quer pegar tudo (...) vc
começa a ver a formiga andando na parede do outro lado da rua (...) (E26ME)
Melhora-se a socialização, porém, por breve período de tempo, já que a longo-
prazo o crack assume efeito antissocial na vida do usuário.
(...) o efeito na hora vontade de vc falar com todo mundo. Vc começa a falar de tudo,
os caras começam a falar mentira. Acho que a droga libera, vc fica com a mente aberta
para falar as coisas, isso durante o efeito. (C22MU)
Em pouquíssimos casos aumenta o desejo e o desempenho sexuais, de tal forma
que, quando possível, o usuário passa a usá-lo apenas com tais propósitos.
O crack é bom pra transar, excita pra caramba o bagulho, é um motivo a mais pra estar
correndo atrás. O tesão fica maior, onde vc encosta vc fica excitado (...) aumenta o
tempo da transa também, eu mesmo, quando estou ligado eu consigo segurar a maior
cara. De uns tempos pra cá o crack tem sido pra isso mesmo, só pra transar, pra nenhuma
outra finalidade. (G36MU)
Porém, parece não haver “brisa” tão intensa quanto à primeira tragada do dia, o
que leva os usuários a bucarem-na incessantemente. Como as tentativas acabam sendo
frustradas, que os efeitos não se repetem, sendo de menor intensidade, a busca acaba
apenas por contribuir ao desenvolvimento da compulsão de uso e da dependência.
(...) depois do primeiro pega nenhum é igual, a sensação não é a mesma. É por isso que a
gente fica tentando usar, para ter aquela mesma sensação do primeiro pega, mas é difícil,
a gente nunca consegue, chega uma hora que o organismo está saturado e vc está usando
118
e não está fazendo efeito e vc está ali porque a fissura é muito grande e o efeito passa
rápido (...) e como vc quer de novo aquela sensação vc passa uma, 2, 3 noites seguidas
buscando essa mesma sensação e não vai ter nunca (...) (P30MU)
(...) chega uma hora que vc fuma tanto que vc fuma só por fumar, seu estado não se altera.
Não era o efeito pretendido, era o efeito de nada, estava tão alterado que não tinha
mais o que ficar louco, mas isso acontecia (...) só pelo fato de usar, acho que a mente está
tão cansada, junto com o sono e o cansaço do corpo que não reage mais a mesma coisa
(...) continuava só pelo fato de fumar mesmo (...) (J24MU)
(b) Efeitos negativos ou desagradáveis: Os efeitos negativos são referidos como
LOUCURA
,
NÓIA
ou
PÂNICO DE CRACK
. Passados os poucos segundos de prazer, o usuário
é acometido, primeiramente, pelas alucinações, de caráter visual, auditivo e táctil.
Consistem, geralmente, em situações desagradáveis, de tal forma que é comum relatarem
ver, ouvir e sentir bichos, entre outras experiências terrificantes.
Tinha visões de coisas que não existiam. Vc está vendo a coisa ali que não existe, mas vc
como se existisse e escuta também (...) eu via umas árvores se transformando em
polícia ou em algum matador com a arma na mão, escutava até falando, tipo os caras
estavam escondidos ali atrás e falavam “Vamos invadir e matar eles”, então esse era meu
pensamento, isso era o que eu via. (DA27ME)
(...) eu tava vendo muito bicho. Eu via a minha mãe e de repente minha mãe estava
amarrada num cavalo e estava arrastando ela e eu escutava um barulho de metralhadora.
Minha família gritando e atrás o barulho de metralhadora. A minha família toda morta, aí
eu ficava doida e começava a quebrar as coisas, pensando no que “será que estava
acontecendo com a minha família”. Daí saía pra ver minha família e estava tudo bem, não
era nada daquilo. (SL35FE)
O crack é muito violento, é muito rápido. E eu vou te falar, a sensação não era boa,
parecia que tinha barata, se eu encucasse que tinha um bicho em mim, aí pronto. “Olha,
olha aqui. Tem, não tem”, era a coisa mais ridícula do mundo (...) era horrível porque
parece que a pele ficava mais sensível, vc vinha e passava a mão aqui e continuava com a
sensação do seu primeiro toque, então isso dava a impressão que era outra coisa que
estava ali (...) (A36FU)
As alucinações são seguidas ou acompanhadas de delírios persecutórios,
caracterizados pela falta de fundamento lógico, que conduzem os usuários à interpretação
distorcida da realidade. Assim, sentem-se constantemente observados e perseguidos, de tal
forma que tudo ou todos parecem conspirar contra eles. Na cadeia de delírios geralmente
estão envolvidos policiais ou familiares, em virtude, possivelmente, do caráter ilegal e da
pouca aceitação social associada ao uso de crack.
119
De vc escutar, tipo, vc está no mato, vc escuta uma folha caindo da árvore, vc está com
outro colega, vc rela nele e fala “Fica quieto, vem vindo alguém, abaixa, deita”, vc
que não é nada. vc vai, outra paulada servida mesmo, “nossa, vem vindo alguém,
abaixa”. Isso é a loucura de vc sentir isso, vc fica instigado, vc fica noiado, qualquer
barulhinho vc fica um bicho (...) (N19MU)
E depois vc começa a pensar que tudo vai acontecer, que tem alguém atrás de vc, que tem
um rato que vai morder seu a qualquer momento. No caso da rede de transmissão,
onde eu fazia o uso, pensava que ia cair um fio na minha cabeça ou que a polícia tava
pulando. A paranóia com a polícia é constante, se o cara respirou do seu lado, “polícia
fudeu, vamos correr”. (J30MU)
A intensidade dos delírios é tamanha que um usuário pode influenciar os colegas de
uso submetendo-os às mesmas sensações. Como é dito que a paranóia atrapalha as
sensações agradáveis de crack e como não se permitem vivenciar a paranóia alheia, os
usuários considerados como os mais paranóicos acabam sendo afastados do grupo.
Vc fumava na casa de umas pessoas e eles ficavam em pânico. Fechavam as cortinas e
começava “que luz é aquela, que barulhinho é esse”, as pessoas tinham um pânico que
invadia a casa, todo mundo ficava em pânico. (M22MU)
Eu tento sempre ter o controle, mas às vezes vc desanda, dependendo do parceiro com
quem está. Se vc está com um cara e ele fica de pra cá, vc fica igual a ele, vc fica na
nóia também, na mesma paranóia dele. (J26MU)
Como as alucinações e os delírios comumente relacionam-se a experiências
desagradáveis, causam medo ao usuário, o que lhes incentiva a adotar comportamentos
repetidos e atípicos, destinados, única e exclusivamente, ao alívio da sensação. São
comportamentos de fuga que, assim como os delírios, podem influenciar os colegas de uso,
desviando-lhes das sensações agradáveis. Assim, juntamente com os delírios, os
comportamentos atípicos são importantes motivos ao afastamento do grupo e consequente
isolamento do usuário, que, a longo-prazo, pode corresponder ao agravamento de seu
padrão de uso, principalmente no que diz respeito à frequência e quantidade empregada de
crack. Os comportamentos atípicos mais comumente citados são: (a) abrir e fechar portas e
janelas; (b) apagar e acender luzes; (c) passar prolongado período de tempo vigiando
portas ou janelas à espera de algo ou alguém; (d) buscar incessantemente por restos de
crack que possam ter caído no ambiente de uso, de tal forma que fumam qualquer pequeno
objeto, seja grão ou poeira, que seja fisicamente semelhante a crack; entre muitos outros.
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(...) o crack, ao fumar, quando vc segurou e soltou a fumaça vc já fica secado, com medo e
fica olhando “uma hora” pelo buraco da fechadura da sua casa, fica deitado no chão
olhando por baixo da porta pra ver se tem gente passando, coisas que te tiram do sério.
Um camarada entrou dentro do guarda roupa da minha casa, no maior sol, se cobriu e
depois pediu pra trancar e jogar a chave fora. Outro andou um quarteirão inteiro de
costas e olhando pra trás. Tinha outro que andava no meio da rua porque tinha medo de
rato e andava no meio da rua com a mão no pescoço olhando os bueiros (...) (ED26MU)
Quando acaba a droga vc fica procurando e se um negocinho logo acha que é a droga,
põe no cachimbo pra queimar e quando é um pedaço de plástico. Ou fica catando
aquelas cinzas que vc usou e fica tentando queimá-la de novo pra te dar um barato.
Todas as maneiras possíveis, vc tenta encontrar todas as saídas para sofrer menos. De
nóia, vc também fica atrás da porta pensando que a polícia estava na porta de casa (...)
ficar olhando, escutar um barulhinho de gato no telhado e trancar a casa inteira (...) essas
nóias são normais (...) (N19MU)
Ao fim da paranóia ou simultaneamente a ela, os usuários passam a sentir intensa
fissura, ou seja, o desejo, dito persistente e incontrolável, de continuar o uso. É situação
bastante ansiogênica que se desenvolve mesmo quando ainda tenham a droga. Não são
raros os relatos de usuários que, mesmo com uma ou mais pedras, já se põem tensos e
angustiados a respeito das maneiras através das quais possam arranjar mais dinheiro para
crack, tornando-se mais agitados, agressivos e tomados por maus pensamentos e intenções.
(...) é essa vontade constante que dá, que quanto mais vc usa mais vc quer usar, parece
que vc nunca se satisfaz, nem mesmo eu sei de onde vem tanta vontade (...) é uma coisa
muito forte, vc não consegue controlar, vc manipula 1000 coisas quando quer (...) acordo
com aquilo na cabeça e fico o dia inteiro, fica aquilo o tempo todo martelando até chegar
a hora de fumar (...) (S36FU)
O que tinha de ruim é quando ele (crack) estava acabando. Quando ele estava acabando
batia a nóia, vc perceber que tem mais 1 ou 2 pedras e vc está sem dinheiro. Vc sabe que
está acabando e vc não tem mais dinheiro pra pegar. “O que eu vou fazer pra pegar
mais” e começa a ficar daquele jeito, vai dando a nóia (...) “Preciso fazer alguma
coisa, tenho que pensar, tenho que roubar, eu tenho que fazer alguma coisa pra conseguir
de novo” (...) (N19MU)
Após a fissura, o usuário é invadido pela depressão e considerável sensação de
arrependimento, que se depara novamente com a realidade, com seus problemas, com
a recaída e, principalmente, com os comportamentos e atitudes que assumiu para a
aquisição de crack. Como não são sensações agradáveis, para seu alívio, administram nova
dose de crack ou partem para o uso de outras drogas.
121
(...) quando eu saía da nóia, logo de manhã, quase todas as vezes eu começava a chorar.
Ficava pensando na minha filha, na minha mãe, na minha família, o que eles estariam
pensando se me vissem ali. Eu me escondia atrás do muro pra ninguém me ver (...) daí,
pra eu não ficar depressiva, pensando naquilo, eu ia me esconder atrás da droga. A partir
do momento que eu dava uma paulada eu saía, eu não tinha preconceito, não tinha
porra nenhuma (...) (D18FU)
(...) é uma sensação de bem-estar muito boa, que depois quando passou o efeito (...)
falei que nunca mais ia fumar essa porcaria e estou fumando (...) mas toda vez que vc
vai fumar, vc paga pra ver, “vou fazer isso aí pelos 5 minutos de prazer” (...) muito prazer
na hora e daí vem a nóia depois. Quando vc chega em casa uma vontade de chorar,
“porque eu fiz isso” (...) (C22MU)
(...) o negócio não tem explicação, vai te dando uma nóia do caramba, vc começa a
ficar com depressão, baixa a auto-estima, porque no momento que vc deixa de usar os
problemas voltam de novo, tudo vem de novo e vc tem que encarar a realidade. (N19MU)
Assim como observado aos efeitos do cloridrato de cocaína (vias aspirada e
endovenosa), os efeitos de crack estão sujeitos a mudanças. A longo prazo diminuição
da intensidade dos efeitos agradáveis (tolerância) acompanhada pela intensificação dos
efeitos negativos (sensibilização). Assim, as alucinações, delírios, fissura, medo e os
comportamentos atípicos passam a iniciar cada vez mais rápido, tardando mais tempo para
desaparecer. Por vezes, diz-se que os efeitos negativos iniciam logo após a primeira
tragada, substituindo, a longo-prazo, os efeitos positivos.
Conforme meu uso passou a ser diário, aquela sensação gostosa, maravilhosa, a
adrenalina, foi substituída pelas paranóias, aquele medo (...) já paralisava em algum
lugar e ficava, não conseguia mais me movimentar, então, posso dizer que os efeitos
foram piorando (...) (A25FU)
Hoje, por final, nenhum efeito bom, mas no começo o efeito era aquela euforia, aquela
coisa diferente, não sei te explicar, era uma sensação única (...) vc fica eufórico, sai de si
(...) o efeito bom, hoje em dia, não tenho mais, não é como no começo, os efeitos ruins
se intensificaram, ficaram mais à flor da pele (...) (J24MU)
Como, a longo-prazo, os efeitos negativos substituem os positivos, iniciando logo
após a primeira tragada do dia, é comum que passem a ser interpretados como a
recompensa associada ao uso de crack, o que por muitas vezes, pode vir a complicar o
sucesso de uma possível intervenção terapêutica.
122
(...) daqui a pouco te uma sensação de medo muito grande, a sensação já não é mais
boa, se torna um sentimento ruim, te repreende, te machuca, mas vc não consegue viver
sem aquilo. Vc se habitua a sentir medo, se habitua a sentir aquela dor que muitas vezes
acredita ser prazer, vai poder falar que aquilo é dor quando consegue sair, mas
enquanto está fazendo uso aquilo simplesmente é prazer (...) (E23ME)
A nóia é negativa e ao mesmo tempo não, é tipo um masoquismo, ao mesmo tempo sente-
se medo e prazer. Ela tem medo do que está sentindo, mas tem prazer de sentir aquilo, é
masoquismo. O cara sentindo um medo daquilo, vai e fuma outro, é um papo meio
esquisito, fala a verdade (...) se não tiver paranóia o cara fica louco, “não tem
paranóia, pô, assim não dá”. (L39ME)
4.2.4.2.2 Os Efeitos Físicos de crack.
Os efeitos físicos poderiam ser categorizados em respostas motoras (estereotipia)
e viscerais. As respostas motoras correspondem à contrações musculares involuntárias
que, associam ao uso de crack, uma série de movimentos estereotipados. Comumente dos
músculos da face, as contrações são acompanhadas por considerável protrusão do globo
ocular, de forma a garantir, ao usuário de crack, marcante expressão de pânico, atuando
como um potente “identificador”, a exemplo do que ocorre com a hiperemia das
conjuntivas oculares associada ao uso de maconha. Porém, as contrações não se restringem
à face, havendo relatos do desenvolvimento de gagueira e movimentos típicos da cabeça e
das pernas, a última já relatada na literatura como “crack dance”.
Era incrível, antes de usar a primeira vez, de queimar a primeira pedra, eu falava assim
“vamos dar o último sorriso porque acabaram os sorrisos”, a transformação da
fisionomia era incrível, tudo se transforma (...) (J30MU)
(...) tem uns que começam a balançar o queixo e se transformam, fica muito feio. Tem um
camarada meu que se vc andar com ele, vc até se assusta, ele não consegue falar, não
conseguia nem se comunicar (...) (ED26MU)
É um pânico, parece que não tinha o controle da minha cabeça, ficava apavorado. Eu
achava que tinha alguém nas minhas costas e perguntava se tinha a cada 2 minutos. Eu
repito isso, sei lá, mais de 50 vezes quando estou usando. Minha cabeça, eu não consigo
controlar meu rosto. Eu tenho que ficar olhando pra tudo que é lado (...) (M22MU)
as respostas viscerais são manifestações involuntárias do sistema gastro-
intestinal, possivelmente devidas à ansiedade e fissura relacionadas ao uso de crack, como
flatulência, diarréias e vômitos que, conforme os entrevistados, são mediadas pela simples
recordação do momento de uso ou do crack em si.
123
(...) a memória gera euforia, mexe com o organismo. de pensar já da dor de barriga,
ânsia de vômito, é um negócio muito forte. Tem vez que só em pensar vomito tudo o que eu
tinha comido. cheguei a ir buscar a droga vomitando (...) de tanta pressa, de tão
desesperado pra fumar logo, perceber que eu vou evacuar na calça e não parar pra ir ao
banheiro pra fumar logo (...) (A28MU)
(...) de dar dor de barriga se souber que vai usar, sentia vontade de cagar (...) o
negócio é tão louco que mexe com seu intestino, vc pode ter acabado de cagar, é só
pensar no bagulho que vc vai cagar de novo. O negócio é tão louco que faz vc vomitar
de pensar (...) (ED26MU)
(...) com o cheiro vc sai se cagando, sai correndo direto para o banheiro. O cara
vomita e só de ver (crack), uns se peidava, outros se cagava, só de ver (...) (L39ME)
(...) eu ia pegar a droga e já me dava uma dor de barriga, uma ansiedade (...) eu tinha que
ir no banheiro, nem estava com vontade (...) usava qualquer banheiro, sentava em
qualquer privada (...) depois que dava a primeira, aquela ansiedade passava, mas até
então usava qualquer banheiro, não estava nem aí (...) (M31ME)
4.2.5 Padrão de Uso.
4.2.5.1 O Uso Compulsivo.
O uso de crack é comumente dito compulsivo. Define-se compulsivo o uso que
desempenha papel central no estilo de vida do usuário, constituindo-se em prioridade, em
detrimento de outros comportamentos que previamente tinham maior importância. Somado
aos efeitos recompensadores e gratificantes de crack, o desejo de uso é intenso (fissura) e
ao associar-se à incapacidade de controle sobre o mesmo, persiste apesar de suas
conseqüências prejudiciais. As sessões de uso costumam prolongar-se até o esgotamento
físico ou psíquico do usuário ou quando não mais tenha recursos financeiros para dar-lhe
continuidade. Assim, quase todos os entrevistados relataram, alguma vez na vida, ter
faltado com o cumprimento de suas próprias necessidades sócio-sanitárias como
alimentação, sono e higiene, relegando-as a segundo plano ou desempenhando-as apenas
com fins de dar continuidade ao uso. No final da sessão de uso, não são raros os usuários
que caem em fases de sono prolongado ou experimentam sensações intensas de fadiga.
Eu deixei de sair com os meus amigos, deixei de namorar, o lazer era fumar a pedra.
Lazer era o que dava prazer e o que me dava prazer era a pedra. Então, a pedra era o Sol
e eu a Terra. Rotação, Translação, todos os movimentos foram ao redor da pedra (...)
124
usava até que o corpo desabava porque não dava pra vc ficar só colocando óleo e
rodando, tem uma hora que o corpo desaba e dormia, passava 12 horas dormindo.
Acordava e o primeiro pensamento era “o que vou fumar hoje”? (R24MU)
(...) eu ficava de 7 dias a 2 semanas sem tomar banho, chegava a feder, parecia um
andarilho com a roupa toda suja e não me preocupava. Levantava e ia pra biqueira e
com a mesma roupa que levantava eu ia dormir e isso acontecia diariamente (...) não
conseguia mais me ver tomando banho, não penteava mais o cabelo e nem escovava os
dentes, não lavava o rosto, ficava aquela remeleira (...) aquele cara de antes estava
virando um bicho, apodrecendo por dentro, totalmente escravo, perdendo tudo de
vantagem que tinha construído na vida (...) (N19MU)
Vc ia comer quando não aguentava mais, senão vc dava uma paulada e dormia, na
verdade apagava, porque o corpo não aguentava mais. Depois de 48h ou 72h no ar tinha
hora que o corpo apagava. Aí, era quando vc acordava que ia comer, depois de 3 dias sem
comer, bebendo (...) bebendo líquido, água, cerveja, pinga, quando vc dava essa
apagada de ficar vários dias usando, vc dava uma alimentada, mas pensando em
usar (...) (ED26MU)
O uso compulsivo caracteriza-se pela administração repetida de crack, geralmente
diária, estendendo-se por dias consecutivos, havendo relatos de dois até nove dias
contínuos de uso. As quantidades empregadas são elevadas, variando do uso diário de até
quarenta pedras ao emprego de até 3000 reais por dia de uso. Por vezes é difícil estabelecer
a quantia exata, seja em função da freqüência de uso, seja pelo mesmo dar-se em grupo.
Como em grupo a droga é compartilhada, geralmente perde-se o poder sobre a quantidade
empregada.
O máximo que eu cheguei a fumar foram 40 pedras, vc pode não acreditar, mas é verdade.
Não foi um dia só, eu fiquei fora de casa uns 2 dias, mas em 48 horas eu fumei umas 40
pedras. Gastei 400 paus de uma vez só, tudo em pedra. Peguei um apartamento de um
amigo e me tranquei sozinho, não sei como não virei os olhos aquele dia, mas quando eu
fazia uso de crack nunca era pouco, sempre era coisa de 200 reais, ao redor de 20 pedras
por noite, sempre fumei bastante (...) (P30MU)
Nunca o cara fuma 10 pedras porque sempre tem gente junto. Esse é um negócio que vc
não pode nem falar quantas pedras são porque nunca vc está sozinho, sempre tem gente
junto fumando, então não tem como calcular quantas pedras eu fumava (...) (A50MU)
Eu nem cheguei a fazer a contagem porque era constante, todo dia eu fumava, então
muitas vezes emendava de dia e de noite, não dava pra contar, era constante (...)
(M39ME)
125
Essa cadeia de rupturas com a vida acaba por transformá-los fisicamente, sendo o
emagrecimento a característica mais pronunciada. O enfraquecimento e a perda dos dentes
é outro sinal marcante, podendo ser atribuído ao abandono do hábito de escová-los,
combinado à alimentação, à temperatura elevada do cachimbo e à composição química
corrosiva de crack, desconhecendo-se, dentre eles, o fator preponderante. A presença de
queimaduras nos lábios e nos dedos, assim como mãos e unhas enegrecidas pelo uso das
cinzas são, juntamente com os demais sinais citados e efeitos físicos, potentes
identificadores sociais do usuário de crack.
(...) o usuário de crack é diferente em todos os aspectos, não tenho nada contra mendigo
ou qualquer outro maltrapilho, mas quando vc vai na boca vc reconhece nitidamente (...) é
um cara magérrimo, maltrapilho e assustado, vc bate o do lado desse cara e ele corre
pra longe (...) (J30MU)
(...) a parte da frente é toda recriada, mal feita, mas recriada. Os meus dentes caíram por
2 motivos, primeiro porque tem o bicarbonato que dizem que o próprio negócio é
corrosivo e ainda ficava 3 dias na rua, sem tomar banho, sem escovar os dentes (...) eu
não sei se é por causa do cachimbo que usa, usei muita lata de alumínio, muito cotovelo
de cobre, eu sei que é venenoso se ingerir, não sei se esquentar o quanto que isso tem
efeito (...) (R24MU)
(...) olha a situação dos meus dentes, a poeira. Eu gasto não sei quanto com droga e
não tenho coragem de ir no dentista (...) os dentes foram apodrecendo e eu fui deixando,
aí fui relaxando (...) (G36MU)
(...) a mão sempre preta porque mexia com cinza de cigarro, então, encardia a mão que
não saía, nem lavando (...) a gordura que vinha da pedra junto com a cinza do cigarro,
aquilo encardia a mão e virava uma crosta que não conseguia tirar (...) (V45ME)
Embora significante, o uso compulsivo não compromete apenas o físico. A maior
parte dos entrevistados relatou a piora da qualidade de vida como um todo, deixando de se
preocuparem com a própria saúde e bem-estar para dar vazão apenas ao uso. É comum
relatarem que estão insatisfeitos consigo próprios, com familiares, amigos ou com o
entorno social como um todo.
Não sei, hoje eu não gosto mais de mim, não como eu me gostava antes. Eu tinha prazer
em estar sempre de bem comigo mesmo, de cuidar da minha aparência, hoje eu
desencanei (...) eu parei de malhar, de correr, de fazer esporte, fico quase o tempo todo
deitado na cama, só saio pra pegar droga e voltar pra minha casa (...) (M22MU)
126
A qualidade de vida piorou (...) eu andava de skate, fazia musculação, jogava bola,
andava de bike, fazia cursos, era uma pessoa que tinha a auto-estima lá em cima.
Conseguia catar a mulher que eu quisesse pelo fato de ser vocalista da minha banda,
então, no final do baile, se eu falasse que queria uma menina era com ela que eu ia sair,
que no final da minha ativa eu não estava saindo com ninguém, não tinha mais ereção,
não conseguia trocar uma idéia saudável com ninguém, falava de crack e não tinha
mais nada, o crack tinha sentido na minha vida (...) não me via mais como um ser
humano (...) (N19MU)
Outra característica da compulsão é que o uso, geralmente iniciado em grupo, a
longo-prazo passa a ser solitário. Primeiramente, fazem-no a sós para se protegerem, em
função da pouca aceitação social do uso, porém, com o passar do tempo, o uso isolado
passa a associar-se aos efeitos negativos de crack. A princípio, a fissura faz com que o
usuário assuma posição mais egoísta, de forma a priorizar a posse total da droga, negando-
se a dividi-la com colegas de uso ou se negando a desempenhar atividades ilícitas, como
roubos ou prostituição, em benefício do grupo.
(...) se vc está fumando crack vc quer mais, então é difícil dividir com alguém, vc vai
correr pra usar sozinho. Vc nunca quer dividir, então, se uma pessoa fizer uma proposta
pra vc, vc fala que não, a droga é o que vale pra vc naquele momento, vc fala que é
aquela pedrinha que vc quer e não larga de jeito nenhum (...) (O23ME)
(...) algumas vezes, quando a droga não era minha, o dono se distanciava, se isolava,
não queria mais contato com ninguém e assumia posição mais egoísta (...) (G28ME)
Posteriormente, os efeitos das alucinações e paranóias sobre o comportamento do
usuário causam-lhe receio do uso público ou em grupo, conduzindo-os ao uso isolado.
Independente das motivações subjacentes, o comportamento de isolamento faz com que o
crack seja diferente dos outros derivados da cocaína, merecendo a denominação de droga
anti-social.
Não é uma coisa que pra fazer e se manter na sociedade, não dá. O negócio traz uma
sensação de muito medo, tanto é que as pessoas ficam muito isoladas. Vc não tem como
ficar na sociedade, pelo menos eu acho que não tem, pela experiência que eu tive não
(...) (C22MU)
A tendência de qualquer adicto em crack é ficar num local usando. Ele não curte a
balada, ele não sai pra ficar usando na rua, ele fica fechado num local usando. Não
pra sair pra usar porque o delírio de perseguição é tanto que se vc sair na rua vc acaba
127
pirando, porque vc acha que todo mundo está te olhando, vc acha que estão te
perseguindo, vc acha que a polícia está atrás de vc e na verdade não é nada disso (...)
(M31ME)
4.2.5.2 O Uso Controlado.
Para quase todos os entrevistados o uso compulsivo instalou-se logo após a
experimentação de crack, de tal forma a existir, muitas vezes, como a única fase dentro do
padrão de uso. Porém, atualmente, tem-se observado que o uso compulsivo pode
intercalar-se com a fase de consumo dita controlada. Define-se como controlado, o uso
em que o crack não assume papel central no estilo de vida do usuário. Mantém-se o poder
sobre crack, conciliando-o às atividades pré-existentes, sejam sócio-sanitárias ou sociais
(família, amigos, trabalho e atividades escolares). Caracteriza-se pelo caráter esporádico,
de tal forma que a freqüência e a quantidade de uso são menores às vigentes no uso
compulsivo. Diz-se consumir crack na freqüência e quantidade possíveis, de tal forma que
o usuário não passa privações e tampouco se submete à realização de atividades, em troca
da droga, que não seja condizente aos seus princípios morais. Assim, relatos de uso aos
finais-de-semana, quinzenalmente, mensalmente e, com menor periodicidade.
Hoje o uso está muito devagar. Eu uso se eu tiver dinheiro, não faço como fazia antes.
Eu tenho experiência nesse bagulho, então eu não dou um passo maior que a perna, no
fato de que eu não vou ficar sem roupa limpa, não fico sem tomar banho, não deixo de
pagar minhas contas e comida que tem que ter. Se sobrar dinheiro pra crack, sobrou, se
eu não tenho eu não uso, na minha vida está sendo assim. (C32MU)
Acordava cedo todos os dias, ia trabalhar normalmente, fazia minhas atividades, corria
aos finais-de-semana, ia no baile com minha namorada, fazia um bocado de coisas.Quer
dizer, não era só em torno do crack, eu tinha outras coisas pra ocupar minha cabeça,
tinha um tempo pra minha namorada, meus amigos, então sobrava pouco tempo pra
pensar em crack (...) (JL27MU)
O uso controlado pode existir como a única fase dentro do padrão de uso, mesmo
após o emprego de crack a longo-prazo, não desencadeando e tampouco retornando da fase
compulsiva de uso. Porém, o padrão de uso parece ser um processo dinâmico em que as
fases compulsiva e controlada não existem de forma estática, mas sim, alternam-se
continuamente, gerando diferentes perfis de padrão, a citar: compulsivo; controlado a
128
compulsivo; compulsivo a controlado; controlado-compulsivo-controlado e,
finalmente, controlado. Menos da quarta parte dos entrevistados relatou realizar o uso
controlado de crack, dentre os quais poucos exerceram real “controle” sobre a droga, seja
nos dias de uso e nos dias de não-uso. O uso controlado, independente do dia de uso, foi
categorizado como exclusivamente controlado.
Eu uso esporadicamente. Eu pratico esportes e estudo, não vou deixar o crack e nenhuma
outra droga tomar conta da minha vida, isso não leva a nada. Procurar se informar e
fazer o uso com sabedoria, isso eu acho importante (...) ter auto-controle é primordial,
falar “eu não vou usar mais, chega, acabou por hoje” (...) eu sei que com o tempo os
efeitos vão diminuir e vão fazer com que eu use mais crack, mas é justamente isso que eu
quero evitar. Eu acho que se eu usar muito vai acontecer isso, por isso que eu me controlo
pra não usar muito. (F17MU)
Os demais, embora realizem o uso esporádico de crack, faziam-no de forma
desmedida nos dias de uso, existindo o controle apenas nos dias de não-uso, sendo então
categorizados como uso semi-controlado.
Mas eu não sou que nem esses caras que fumam todo dia, que não tem como sair da pedra
(...) do jeito que eu uso o careceu de internar porque era o seguinte, eu passo a semana
todinha trabalhando e uso de final-de-semana (...) eu trabalho direto, eu sou pedreiro e
pegava “bico” de 1000, 2000 reais e estourava tudo em pedra, final-de-semana inteiro
zoando, mas de segunda-feira eu não usava nada e ia trabalhar. (A50MU)
Eu conseguia usar de 15 em 15 dias, mas quando pegava era um rebento só. Tem cara que
usava um pouquinho todos os dias, eu não, eu esperava 2 semanas pra usar um monte.
Ficava 2 dias louco sem parar, daí dava um breque pra me recuperar (...) é que nem eu
falo, se vc tem um quilo vc vai parar quando acabar, ficava 3 dias, não importa, eu
usava tudo até acabar, por isso que eu falo que é um negócio louco (...) (O23ME)
A existência do uso “controlado” é corroborada por usuários compulsivos que
afirmam conhecer, dentro da própria rede social, pessoas que mantiveram o controle sobre
o uso, mantendo os vínculos sociais do período pré-crack e impedindo que a droga afetasse
seus comportamentos e atitudes.
Tem um amigo meu que usa esporadicamente, uso recreativo como diz o pessoal. O uso
recreativo não tem problema nenhum, talvez por meia hora fique aquele viciado tremendo,
mas depois volta ao normal. E tem o usuário dependente mesmo e para esses o retorno
para a sociedade é praticamente zero e a chance de perder o vício é mínima (...) (R24MU)
129
Eu conheço um cara que usa crack e tem carro, caminhão, casa, tem tudo. Ele usa, mas
ele tem cabeça, não gasta o dinheiro dele, usa 1 ou 2 pedras e vai embora (...) conheço um
monte que não é desandado, agora o desandado é outra coisa (...) (A50MU)
(...) na verdade, eu tenho um amigo que usa crack até hoje e acredite se quiser, tem
Ferrari, Porsche, muito chique, bonito, trabalha e tudo (...) (L45FE)
(...) conheço outras pessoas que usam, mas tem seu carro, seu trabalho e não viraram
indigentes (...) (P29FU)
Independentemente do padrão de uso, a necessidade de retomar o controle sobre
crack surge em função dos riscos, implicações e conseqüências associadas ao consumo,
tendo sido experienciados diretamente pelo usuário ou percebidos na vida de colegas, o
que, para este último caso, lhes acaba servindo de espelho, evitando passar o mesmo em
sua própria vida.
Controle por experiência própria.
Eu prefiro muito mais ficar fora do ar do que ficar careta, porque o tesão que o crack dá,
não tem igual. Eu lamento não poder, quer dizer, poder eu posso, que tenho que arcar
com as consequências e não estou mais disposto a isso (...) eu lembro do que já fiz, do que
passei e não é legal passar de novo, uma vez basta, errar 2 vezes é burrice. Tem
outra coisa, onde eu estou morando é minha última opção de lugar para morar. morei
com a minha mãe, com meu pai, com minha tia e agora caí com o meu tio. O lugar é
perfeito, condomínio lindo, piscina, sauna, mulher gostosa, tenho meu quartinho com
computador. Então eu tenho tudo agora, eu posso usar, que na moral, senão eu perco
tudo, daí eu não vou ter dinheiro nem pra comer, nem pra tomar cerveja, não vou ter pra
nada e pra morar na rua eu não tenho mais disposição (...) (R24MU)
Hoje o uso está bem mais moderado porque eu tenho consciência de tudo o que perdi, do
mal que tudo isso me fez. Sabendo que eu não quero mais isso pra minha vida, que não é
uma boa, uso menos apesar de não ter desvencilhado totalmente do vício e de ainda dar
umas fraquejadas (...) e aí, conforme vc usa vem toda aquela lembrança de quando vc era
um usuário mais frequente e deprime muito, ele acaba com vc por tudo o que ele te leva a
fazer, é cruel, é bem cruel (...) (J30MU)
Controle através da percepção das consequências e implicações do uso de
crack na vida de colegas.
Caras que começaram a roubar, a matar, eu sei de muitas histórias e através delas eu
faço uma base. Jamais eu quero isso pra mim, então eu pego e fico na minha. Vejo o que
acontece com os outros, faço tipo um xerox da vida dos outros pra eu ver e futuramente
não cair nas mesmas consequências. (A30MU)
130
(...) porque eu vi muita coisa ruim nesse mundo de crack. Tem muitos colegas meus
presos, tem muitos embaixo da terra que foram por dívida (...) o meu irmão morreu por
causa dessa confusão, então, eu vejo essas coisas e pra mim é um espelho. Hoje, eu estou
procurando um outro caminho e estou me afastando um pouco (...) (D36MU)
O respeito e o receio de afetar a estrutura e a harmonia familiares, assim como a
responsabilidade com o vínculo empregatício, quando existente, consistiram em outras
importantes motivações que despertaram a necessidade de controle sobre o uso de crack.
Controle em prol da família.
Hoje eu tenho uma família, a responsabilidade é outra. Não troco ela por nada desse
mundo, por isso parei de roubar, pra não deixar minha família porque tenho medo de ser
preso e ficar longe da minha mulher e do meu filho (...) meu filho também está com 4
anos, está crescendo e eu tenho que dar um bom exemplo, eu sempre cobrei meu pai
porque ele nunca soube ser um bom pai e eu quero ser para o meu filho. (ED26MU)
Eu ponho na minha cabeça que eu não posso, que drogas e filhos não combinam. Tenho
que estar sempre atenta quando meu filho está dormindo porque parece que ele tem um
sexto sentido, porque eu pego pra usar e ele acaba acordando. Às vezes eu fico nervosa
com ele porque eu quero usar e ele chorando (...) mas preciso melhorar, meu filho
precisa de mim (...) eu penso “ele dormindo, eu vou usar”, mas daí penso que não,
“por meu filho” (...) (NA35FU)
Controle através do respeito e cumprimento do vínculo empregatício.
Eu faço o possível pra não passar vontade de nada, por isso que eu falo que preciso estar
trabalhando direitinho, não posso dar mancada no trabalho porque é o que me garante
não passar vontade de nada (...) se eu gosto de fazer “porra-louquice”, eu tenho que
bancar isso e vou fazer isso trabalhando (...) trabalhando que nem gente, de maneira
decente e responsável (...) eu não vou roubar, não vou por minha avó pra dar a bunda na
avenida, não vou dar uma de cafetão, eu vou apenas trabalhar e direito (...) a partir do
momento que vc está deixando algumas responsabilidades pra trás para fazer isso, vc
está com merda na cabeça. (JL27MU)
Eu sabia que eu tinha que trabalhar porque eu não tinha dinheiro pra usar. Eu pensava
que minha mãe tinha dado o suor pra comprar a casa e como é que eu ia vender os
negócios dela pra fumar (...) não, vou trabalhar. Às vezes não sobrava nada, pegava o
dinheiro e torrava tudo, mas eu sabia que tinha que trabalhar pra passar 15 dias e ter o
meu vale, ter meu dinheiro e falar “agora eu vou descabelar” (...) (O23ME)
Embora uma minoria dos entrevistados tenha reduzido a freqüência e quantidade de
uso através de tratamento religioso, medicamentoso ou psicoterápico, quase todos os
demais alcançaram o uso controlado mediante adoção de estratégias ou técnicas
131
específicas, ditas de autocontrole ou auto-regulação. Consistem em estratégias
individuais e fatores de proteção internos desenvolvidos pelo próprio usuário ao se basear
nas suas próprias crenças e valores. Assim, como estratégias de autocontrole foram
citadas: (a) substituição da pedra de crack por formas “mais leves” de consumo (ex.:
pitilho ou mesclado) ou substituição por outras substâncias, sendo mencionado o uso de
álcool, maconha, tabaco e cloridrato de cocaína (via aspirada); (b) afastamento ou evitação
do contexto social de crack, seja de colegas de uso ou dos locais onde geralmente se dê.
Para atingir tal propósito, relatam passar maior período de tempo em casa, em companhia
dos pais ou familiares; (c) reprogramação de pensamentos e comportamentos, de forma
geral e, mais especificamente, no período de ócio. O tempo de ócio é preenchido através
da realização de atividades não ligadas a crack e tampouco ao uso de drogas. Dá-se
prioridade ao lazer e ao estabelecimento de novos relacionamentos sociais, dentre os quais,
namorar parece ser estratégia de considerável contribuição e, finalmente (d) diminuição do
uso de substâncias sabidamente interferentes sobre os efeitos e, sobretudo, sobre a
freqüência e quantidade de uso de crack, a citar o álcool. Cada uma das estratégias é
brevemente ilustrada abaixo:
Substituição da pedra de crack por formas mais leves de uso ou por outras
substâncias psicotrópicas.
Eu comecei a emagrecer muito, todo dia tinha que arrumar um jeitinho de conseguir.
Estava começando a ficar muito seco, passei a usar 2 ou 3 vezes na semana, mas pra
controlar eu compensava com bebida, foi que eu virei alcoólatra porque eu estava
compensando uma coisa com a outra pra tentar diminuir. (M22MU)
Porque eu não posso usar crack de 10 em 10 minutos (...) se eu acabei de usar e daqui a
pouco eu quero usar de novo, eu acendo um cigarro (...) eu transpirava demais, de
nervoso, eu começava a fumar cigarro, um atrás do outro, meu organismo começava a
sentir falta e eu ficava nervosa porque eu queria usar (...) (NA35FU)
O cigarro, na época do crack, eu fumava um maço por dia, hoje eu fumo 3 maços. Não
uso crack diariamente, faz 2 meses que estou praticamente sem usar (...) (R24MU)
Hoje eu fumo mesclado e toda semana eu fumo 1 ou 2. Pedra pura faz uns 3 meses que
não estou usando (...) (J24MU)
132
Afastamento ou evitação do contexto social de crack.
(...) eu evito ficar perto de usuário, evito passar em certas ruas que tem os caras que
usam. Vai aos poucos, vai parando, vai evitando os caras (...) ontem insistiram, eu fui
para o outro lado porque ninguém tem obrigação de fumar, a pessoa vai se quer (...)
(D36MU)
(...) porque eu não passo por lugares onde eu passava, eu evito as pessoas que fazem isso,
inclusive eu pedi para amigões meus que se afastassem porque eu precisava colocar a
minha vida em dia (...) (P30MU)
Fico mais em casa, fico nervosa, tudo que está na minha frente me irrita, brigo, fico
agressiva, mas vou me controlando (...) me tranco dentro de casa, não atendo e não quero
ver ninguém (...) (NA35FU)
Reprogramação de pensamentos e comportamentos, principalmente no
período de ócio.
Agora o crack está tomando um espaço menor na minha vida, me focalizo em outras
coisas e estou conseguindo ter momentos de lazer. Voltei a ter contato com o pessoal do
skate, vou na pista pelo menos 3, 4 vezes por semana, fico algumas horas treinando,
tentando umas manobras e me divertindo. tenho amizades, a gente sai pra tomar uma
cerveja, paquerar e dar muita risada. Agora eu também estou com uma namoradinha,
faz alguns dias (...) ontem à noite eu fui na igreja com ela (...) eu sei que eu vou superar
tudo isso aí (...) (A28MU)
(...) nesses últimos 5 meses tem semanas que eu não uso, tem semana que eu uso 3 vezes.
Depois que estou com minha namorada nunca cheguei a usar crack todos os dias (...) pelo
sentimento que eu tenho por minha namorada, ela está me fazendo muito bem, ela está
sendo o remédio, ela está sendo a balança que faz com que eu pese as coisas mais
serenamente. Eu comecei a pensar e não tem como colocar ela e o crack lado a lado,
juntos. Não tem como eu ser um viciado e toda hora querer minha namorada, então eu
optei por ela, por nós dois, e estou diminuindo (...) (J24MU)
Eu ponho atividades na minha frente pra não ficar pensando em crack (...) minha irmã
tem um escritório de despachante em frente de casa, às vezes eu fico no escritório dando
uma força pra ela, fico ajudando ela, então eu tenho coisas pra fazer e não ficar pensando
só naquilo (...) (G23FU)
Diminuição de drogas interferentes sobre os efeitos ou padrão de uso de crack.
Foi que eu diminui o álcool, porque o álcool aquela ansiedade de mexer com o
crack. E se vc não beber, não tem aquela vontade, não fica transtornado, não tinha
aquela ansiedade. É como o cigarro, se vc toma um golinho de café vontade de
fumar, então, se não tomar o café não tem vontade de fumar (...) (J41MU)
133
4.2.5.3 Ex-usuários.
4.2.5.3.1 Estratégias para abstinência.
Todos os ex-usuários, para alcançar o estado de abstinência, foram motivados pela
experiência (vivência) ou percepção, à distância, dos riscos, implicações e consequências
decorrentes do uso de crack, em combinação à diminuição ou perda das sensações de
recompensa no decorrer do tempo de uso.
O prazer foi se tornando dor. O prazer imediato de usar droga passou e eu fui usando e
sentindo uma dor imensa, não tinha mais aquele prazer, era mais a questão do vício
mesmo, porque o prazer foi se transformando em dor. Eu comecei a me perguntar porquê
usava, já que não me levava a lugar nenhum, estava emagrecendo, me destruindo e
perdendo um monte de coisas, foi daí que eu fui parando de usar (...) (F17FE)
(...) por me espelhar no caso de amigos que perderam a vida ou que foram tomando um
rumo horrível por causa de crack, que a família expulsou de casa e foi morar na rua,
então eu me espelhei nessas situações e resolvi parar se quisesse continuar mantendo uma
vida (...) o crack despertou essa visão, de eu presenciar e vivenciar a auto-destruição de
várias pessoas que estavam ligadas ao grupo (...) e também percebi que a sensação de ser
bem quisto pelo grupo não tinha nada a ver (...) (G28ME)
Embora todos tiveram êxito por mérito próprio, aproximadamente um terço dos ex-
usuários buscaram apoio de assistência espiritual, médica ou psicoterapêutica, a maioria
dos ex-usuários, para atingir o propósito de abstinência, adotaram de estratégias de
controle, também de caráter individual e internamente desenvolvidas, ou seja, não
externamente impostas. Tanto as motivações quanto as estratégias são semelhantes às já
relatadas por usuários de uso controlado, sugerindo que, a longo-prazo, tais medidas de
controle pudessem funcionar como importante meio de acesso à abstinência. Entre as
estratégias, foram citadas: (a) afastamento do contexto social de crack acompanhado por
período de isolamento na residência; (b) substituição do uso de crack por outra substância
psicotrópica; (c) reprogramação do pensamento e comportamento através, principalmente,
da ocupação do tempo de ócio com atividades de lazer. relatos da substituição do uso
de crack por comportamentos distintos do uso de drogas, mas também compulsivos em
natureza, como compulsão por alimentação e compras em excesso. Embora haja ex-
usuários que tenham adotado apenas uma única medida de controle, aqueles que
134
combinaram até 3 estratégias para atingir o estado de abstinência. Cada uma das
estratégias é ilustrada abaixo:
Atendimento a tratamento espiritual ou religioso.
Depois que eu conheci a recuperação, que eu vi que dava pra me ver livre disso, aí que eu
vim me pegar na religião (...) tenho que ser dependente de Deus, tenho que ter minha
espiritualidade, mas não posso me esquecer que eu sou um doente (...) não tem como vc
ter recuperação sem se pegar à uma religião, parar de usar droga não é suficiente, tem
que se converter, não importa qual seja a religião, mas tem que ter contato com Deus, vc
tem que ter uma mudança de vida. (A31ME)
(...) acredito que sem o poder superior não consegue sair dessa vida. Por nossas forças a
gente não consegue deixar a droga porque ela é maior que a gente. A droga é lixo e
Deus pra tirar a gente e nos devolver à vida novamente. Então, é em cima da religião e de
Deus que a gente trabalha, é em cima da credibilidade, acreditar naquilo que não se vê,
naquilo que muitas vezes não se sente. É muito mais prazeroso que a droga e nos uma
força maior para enxergar a vida e encarar todos os problemas que o mundo oferece e
lutar com dignidade. Recuperar a dignidade só com Deus, por Deus e por nós mesmos (...)
(E23ME)
Atendimento a tratamento terapêutico e medicamentoso.
Eu ia semanalmente no psiquiatra e ficava chumbada de remédio. Nessa época eu tomava
Rivotril e um monte de outras coisas (...) (L45FE)
Evitar o contexto do uso de crack.
Ah, sim, evitar as pessoas e principalmente os lugares. Sempre tem aqueles lugares
específicos, tipo o bar da esquina, a casa de fulano que era onde as pessoas se juntavam
(...) mas sim, eu evito até hoje (...) Eu encontro as pessoas na rua e é um “oi”, se eu
puder eu atravesso a rua. Se eu puder me esconder atrás do poste pra ninguém me ver, eu
me escondo, porque eu tenho a certeza do quanto eu sofri e do quanto a minha vida está
melhor hoje. (F17FE)
Quando eu vi que meus amigos começaram a ter problemas eu já me distanciei e me isolei
em casa por um período de um ano. Alguns ainda me chamavam pra sair ou telefonavam,
mas aí eu já não aceitava mais os convites e ficava mais em casa (...)(G28ME)
Substituição de crack por outras substâncias psicotrópicas.
O que me ajudou foi a cachaça, sempre me controlava. Manter um certo grau de álcool no
sangue pra não me instigar. Procura manter a mente ocupada com alguma coisa porque
nunca pode ficar parado nessa horas, se sua mente estiver ocupada vc não vai nem
lembrar (...) (L39ME)
135
Era sempre trocando uma pela outra, então tinha que cair bêbado pra não usar mais
crack. Mas sabia que beber não era legal, então tinha que usar muita maconha ou cheirar
muita farinha (cloridrato de cocaína) (...) (E26ME)
Reprogramação de pensamentos e comportamentos.
Vc vai se ocupando com outras coisas porque é psicológico também (...) levar os
pensamentos para outras coisas, abrir outro ângulo na mente (...) vc vai ao cinema, um
livro (...) sempre gostei de ir à livraria e ler um bom livro, vc vai abrindo a mente para
coisas de maior interesse, senão vc se fecha somente naquele ciclo. (M39ME)
Hoje eu me drogo com comida, tenho um prazer enorme em comer que é fora do comum
(...) além disso, eu sou compradora compulsiva, era algo que existia, mas ficou muito
pior depois que eu parei de usar droga. Eu compro muita coisa e nem tenho mais como
guardar dentro do guarda-roupa. A última vez que eu contei os meus sapatos tinha 160,
passei a fotografar os sapatos para saber qual ia usar no dia. Isso piorou muito e eu não
tenho controle com dinheiro (...) se eu entrar numa loja e gostar de uma blusa eu vou
levar todas que tiverem, uma de cada cor, então, chega a ser um absurdo. Uma amiga
minha, careta, entrou no meu banheiro e me disse “nossa, parece uma loja”, perfume
francês tem mais de 200, cosméticos, batons, tem de tudo (...) (L45FE)
4.2.5.3.2 Consumo Atual de Outras Drogas por Ex-usuários.
Como o uso de outras substâncias psicotrópicas é tido como estratégia de
abstinência, foi importante observar, entre os ex-usuários, qual a situação atual do
consumo de drogas. Assim, apenas um não usava drogas, enquanto quase todos os outros
ainda faziam uso de 1 a 4 drogas para suprir a falta de crack, dentre as quais o tabaco foi o
mais frequentemente mencionado.
Estou fumando muito. Se deixar eu acordo de noite e fumo um maço. Durante a noite eu
acordo, acendo um cigarro e pareço uma maria-fumaça, não sei, acho que é para
compensar alguma coisa que sinto falta no meu organismo (...) (L39ME)
Fumo cigarro e maconha, mas cocaína (cloridrato) não e o crack parei 4 anos.
Nunca mais usei e nem tenho mais vontade, porque o bagulho acaba com vc, acaba
mesmo. Agora só o “verdinho” (maconha), quase todos os dias eu fumo ele (...) (O23ME)
4.2.6 Desenvolvimento de atividades ilegais ou atípicas.
Com fins de aplacar os efeitos negativos de crack, na falta de recursos financeiros,
para dar continuidade ao consumo o usuário se obrigado a realizar atividades fora do
mercado legal de trabalho, as então denominadas atividades ilegais ou atípicas, expondo
136
sua liberdade e integridade física a consideráveis riscos. Quase todos os entrevistados
realizaram, na vida, pelo menos uma dessas atividades, embora somente alguns não as
tenham exercido, seja em função de assumirem padrão controlado de uso ou por
acreditarem que a realização da atividade violaria, de forma ou outra, seus príncipios
morais. Os usuários que as executam degradam-se moralmente em favor do uso, o que
parece acontecer de forma gradual quanto maior o envolvimento com crack.
(...) porque o crack é a doença do ainda, vc ainda não roubou sua mãe e seus irmãos (...)
por causa dele, se vc não tomar cuidado, se não vigiar, faz coisa até pior (...) (A31ME)
Vc passa, eu não sei se é o limite, acho que vc vai destruindo alguns princípios e alguns
valores, ela vem corroendo, vem arrancando, até ela te tomar por inteiro e quando vc vir,
vc não é mais nada, vc vira pracinha, aquele negócio horrível na rua e é onde ela vai te
levar (...) não tem outro caminho, esse é o caminho pra todo mundo enxergar (...) porque
vai destruindo os valores todinhos, vai destruindo tudo (...) (A36FU)
Referidas como fazer minhas correrias ou fazer os meus corre, são inúmeras as
atividades desenvolvidas, a citar: (a) troca ou venda de pertences pessoais ou de familiares;
(b) roubos e sequestros; (c) prostituição (feminina e masculina); (d) envolvimento com
atividades ligadas ao tráfico (comércio e distribuição); (e) manipular, enganar e mentir; (f)
endividar-se; (g) pedir esmola na rua; (h) entre outros comportamentos menos frequentes.
No final, ilustra-se o relato de 2 entrevistados que, ao manter o uso de crack sob controle,
não deixaram que interferisse sobre suas crenças, atitudes e comportamentos. Abaixo, cada
uma das atividades é descrita e ilustrada em detalhes.
(a) Troca ou venda de pertences pessoais ou de familiares: É o primeiro passo da
transformação moral, tendo sido mencionada pela maioria dos entrevistados. O usuário de
crack comumente inicia pela venda de pertences pessoais como cd’s, tênis, roupas e
pequenos aparelhos eletrônicos (relógios, walkman e cd players) até o ponto de entrarem
na “boca” (local de venda de crack e outras drogas) e deixarem a roupa do próprio corpo.
Finalizados os pertences pessoais passam a dispor dos bens comuns à família, ou seja,
eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos de grande porte (ex.: TVs; vídeos-cassete;
aparelhos de som e DVD) a fogões e geladeiras. Geralmente, as mercadorias são levadas
até a “boca”, onde é feita a troca. Quando realizada diretamente na “boca” a perda é
significativa, já que o traficante, sabendo que o usuário está sob “fissura” e
137
momentaneamente sem a capacidade de distinguir o real valor da mercadoria, não paga o
seu devido valor, não aceitando contra-ofertas, de forma a restar ao usuário aceitar ou não.
Como no momento o usuário está na “fissura”, acaba por aceitá-la, mas uma vez feita a
troca não há volta e tampouco arrependimento.
(...) fiz as coisas que todo mundo faz (...) primeiro foram os próprios pertences, o que
tinha em casa: roupa, cd player, cd, vídeo-game, foi tudo vendido, coisas que valiam 200
reais foram vendidas por 20 pra poder pegar 4 pedras (...) roupa e tênis eu entregava
direto na boca, conversava com o cara e era tudo uma negociação. Também levei
equipamento eletrônico na boca, porque às 4 horas da manhã não tinha loja pra comprar
(...) mas assim, cds geralmente levava nas lojas do centro de São Paulo, nos sebos, e
negociava por um preço melhor, mas levava pra boca também. Sempre tinha um amigo
esperto na hora e “estou sabendo que vc vai vender aquela blusa que eu sempre gostei, te
dou tanto”, o que aparecesse, eu não fazia distinção (...) (R24MU)
(...) eu dava o que eu tinha, chegava em casa de chinelo de dedo, de short, sem camiseta e
tinha saído bonitão e dava tudo. Dei meu tape de som, dei meu tape do carro, dei tudo
(...) até aliança do meu pai, ele é falecido, eu entreguei na biqueira por não ter mais
nada que entregar (...) minha mãe estranhava, chorava, porque minha mãe dava roupa
pra mim num dia e no outro não tinha mais roupa (...) eu vendia para os amigos ou na
própria biqueira onde eu tinha amizade com os caras (...) eu fiz uma limpa em casa
levando televisão, vídeo-cassete porque a gente tinha muitos eletrodomésticos em casa
pelo fato da gente ter bar, e eu não tinha culpa nisso aí, não conseguia me ver como
errado (...)(N19MU)
Embora a troca seja feita diretamente pela droga, relatos de troca por dinheiro,
mais rara. Como se trata de atitude corrente entre os usuários de crack, não é toda “boca”
que aceita a troca, de tal forma que acabam apelando a outros meios, relatando a venda a
particulares (dentro do círculo de amizades), a lojas, sebos ou a feiras de bairro
especializadas nesse tipo de comércio. Como estão sob “fissura”, mesmo a venda a
particulares representa possível prejuízo, que o valor de custo não é alcançado durante a
negociação, porém o impacto da perda é menor em comparação à troca diretamente na
“boca”.
(...) na boca é ruim porque vc pode levar uma coisa que vale mil reais, mas eles só trocam
por 1 pedra, porque o próprio cara que está traficando ele sabe que a fissura do cara é
tanta que só o fato de vc por na mão dele, ele pega e sai andando pra usar (...) (J30MU)
(...) os caras que vendiam droga, eles próprios se interessavam e já compravam (...)
vendia na própria boca ou nos bares dos arredores, barzinho normal. Quando os caras da
boca não queriam eu saía para os barzinhos, para outros colegas e vendia (...) (DA27ME)
138
Na baixada do Glicério e ali na estação da Luz tinha a feira do rolo, onde, por exemplo,
vc cata um aparelho de som da sua mãe e vende pra comprar droga. Vc vende ele lá, cata
uns 150 real e aí de lá fica mais fácil pra usar a droga (...) (SL35FE)
relatos de trocas surpreendentes que variam do botijão de gás a motos,
automóveis e jóias. No caso do automóvel, o entrevistado deixou um “Kadett”, com chave
e documentos e trocou-o por 10 pedras de crack. No dia seguinte, tentou desfazer a troca,
levando o valor equivalente às 10 pedras (100 reais), mas a mesma não foi desfeita.
(...) porque eu perdi tudo, cara, eu fiquei um tonto (...) até roupa minha eu troquei (...)
tênis, som, televisão, isso era o de menos (...) eu peguei um Kadett e dei na boca por 10
pedras, são cem contos hoje, era cinqüenta na época (...) eu fumei todo o carro, no outro
dia eu tava a pé, sem dinheiro, sem carro e sem nada. (U: informante-chave)
No caso da jóia, que se tratava de um anel de brilhante, a troca não foi realizada,
pois o traficante não acreditou tratar-se de uma pedra valiosa.
(...) na boca eu era tirada de nóia, então, eu lembro de ter levado um anel de brilhante
e esmeralda. O traficante falava “isso não é brilhante não, não quero”. Eu não acreditava
que os caras estavam deixando de pegar um anel de brilhante por 10 reais porque eles
não acreditavam em mim (...) (L45FE)
(b) Roubos: Como roubo considerou-se a posse de qualquer pertence alheio sem o prévio
consentimento de seu proprietário. Sua realização foi mencionada pela maioria dos
entrevistados, tratando-se do segundo comportamento mais frequente. Tem início dentro
de casa, ao se tomar dinheiro, cheques, cartões de crédito, vales-refeição e semelhantes de
pais e irmãos.
Dentro de casa não tinha pudor. O que tinha de valor, não importava de quem fosse,
passou da porta de casa pra dentro, seja de vizinho ou não, eu falava “é meu”. A própria
aposentadoria da minha avó, o cofrinho da minha irmã mais nova (...) eu fiquei muito mal
por isso, tinha mais de 100 reais, tudo em moedinha de 10, 50 centavos. A menina
guardava há 3 anos aquele negócio e eu usei pra fumar pedra (...) (R24MU)
Roubar da minha família, conseguia mais com cartão e roubando dinheiro da bolsa da
minha mãe. Conseguia muito dinheiro com cheque de primo meu, do meu padrasto, da
minha mãe (...) também pegava vale-refeição e trocava, cartão de posto principalmente
(...) gastava muito com esse dinheiro de posto porque não tem senha, então vc passa e vc
um dinheirinho para o cara. Pegava dinheiro da bolsa da minha mãe, do meu
padrasto. cheguei a pegar um talão inteiro, mais de quantrocentos contos de vale-
refeição do meu padrasto. (M22MU)
139
Do lar estende-se à comunidade, praticado à mão armada ou não. Fora do lar são
mais comuns entre homens que mulheres. Embora sejam em sua maioria furtos leves,
aqueles especializados e lucrativos, rendendo, ao usuário, considerável quantia em
dinheiro (ex.: furtos a carros, a agências bancárias, ao patrimônio público, etc).
(...) eu era o cavalo (...) o cavalo leva outras 2 pessoas pra roubar um carro, então eu
dirijo enquanto os outros 2 vão descer do carro e roubar outro. Enquanto eu vou
dirigindo a pessoa vai olhando outros carros (...) quando acharam, deixei eles e fiquei
meio olhando de longe, tinha uma mulher dirigindo e um cara do lado. Enquadraram, a
mulher se apavorou, eles atiraram nos 2. vi o sangue. Vi estourar o vidro da frente e
o sangue (...) Tudo por crack (...) (ED26MU)
Outro mais importante que eu fiz na rua, fui eu e um colega meu, roubamos uma carga de
cabos do Fura-Fila, deu 3 mil reais pra cada um, deu 9 mil reais a carga no total. Foram
46 pessoas presas por isso aí, seis deles estão soltos (...) a gente roubou a carga de
noite e vendemos, eu e mais 2, pra um ferro-velho, deu 3 mil pra cada um (...) fui na boca
que tinha no Bresser, fumei 20 pedras sozinho (...) depois de 4 dias eu estava sem nada, se
vc me virasse de cabeça pra baixo vc não achava nem moeda de um centavo (...) pra um
cara que tinha 3 mil reais no bolso (...) pra vc ver o que o crack não faz (...) (PE29MU)
Na categoria foram considerados os relatos de sequestro, geralmente planejados à
aquisição de dinheiro para crack. Um dos sequestros envolveu a formação de quadrilha e
permanência da vítima em cativeiro, sendo que os demais foram sequestros-relâmpago,
com abordagem das vítimas em carros ou em caixas eletrônicos, permanecendo em poder
do sequestrador até o resgate da quantia de dinheiro desejada.
Eu tinha uma faca daquelas do Rambo, com bússola e tudo. Vc acredita que eu meti a faca
na cintura, sentei no caixa eletrônico e fiquei esperando alguém fácil de roubar, entrou
um cara e foi ele mesmo. Entrei atrás com o capuz do moletom, encostei a bicuda nas
costas dele e falei “só quero cinquentinha, nem precisa tirar tudo” (...) (P30MU)
Roubar, fazer um sequestro relâmpago e pegar o dinheiro para o crack. Nesse tempo era
aquele que sacava o limite da pessoa antes da meia-noite, então, tinha vez que a gente
catava uma pessoa com vários cartões e sacava 3 mil antes da meia-noite e mais 3 mil
depois, ficava 3 ou 4 dias trancado fumando pedra (...) (ED26MU)
Afirmam que a fissura se trata de sensação tão intensa que relatos de furtos à
própria “boca” ou ao patrimônio de agentes policiais, o que implica considerável risco de
vida ao usuário.
140
Roubaram o pastor alemão do policial pra comprar pedra, pularam o muro da casa do
policial na maior ousadia. Pra vc ver como é o vício, venderam o cachorro de um policial
(...) (D36MU)
Pequenos furtos, furtar traficante, esconder a droga. Alguém me chamava pra ajudar a
fechar as drogas e eu estava fechando quando escondia algumas no peito (...) (K20FU)
(c) Prostituição: Na escala da degradação moral, a prostituição surge como a alternativa
de maior comprometimento, quando a dependência atingiu grau bastante elevado.
Metade das entrevistadas assumiu que, em algum momento da vida, se prostituiu por
crack, atividade distinta da realizada por profissionais do sexo. São as prostitutas de
crack. Não fazem pontos, trocam sexo por dinheiro ou crack e praticam uma prostituição
ativa e agressiva, ou seja, não esperam pacientemente pelo “cliente”, mas o buscam.
Geralmente concentram-se nas “bocas” ou em outros locais de uso e tem como “alvo” os
homens usuários de crack. Os “clientes” não passam por nenhum tipo de seleção, de tal
forma que o único critério é a posse de crack. A faixa etária dessas mulheres é ampla,
tendo sido relatada a participação de adolescentes com idade inferior a 12 anos. Quando
trocam sexo por dinheiro percebe-se que nem sempre há um valor pré-determinado,
cabendo ao “cliente” o poder de decisão. Logo, não são raros os relatos de prostituição por
quantias ínfimas como 5 ou 10 reais. Outras, fazem-no em troca da pedra ou apenas por
um “pega” ou “trago” no cachimbo do “cliente”.
Eu lembro que acabou o meu dinheiro e eu estava no desespero, não sabia o que fazer,
foi quando eu comecei a fazer as minhas correrias, me prostituí ou senão entrava com o
próprio traficante no hotel, usava e acabava ficando com eles (...) no início fazia
programas por no máximo 50 reais, mas chegou uma época que fazia por 10. Já cheguei a
ficar com os homens usando a quantidade que eles me davam. (A25FU)
(...) acho que mais de 5 parceiros por noite, mas os intervalos eram mínimos porque eu
estava na nóia (...) quando era traficante, o cara explorava mais, mas na nóia vc não quer
nem saber. Eu não pensava em mim, nunca pensei, se eu pensasse em mim não tinha feito
essas coisas (...) já fiz por 30, 20 ou 10 reais, nunca menos que isso (...) (D18FU)
Se oferecesse dinheiro eu ia embora, não queria saber não. Não quero saber se é feio. Se
for feio demais não estava nem aí, estava pensando na droga mesmo, não estava pensando
no cara. E se chega um cara todo sujo que tem a droga, vc vai em qualquer lugar, vc faz
qualquer coisa. Vc cata qualquer lixo, não quer nem saber (...) (SL35FE)
141
Muitos dos homens entrevistados conhecem essas prostitutas, afirmando que elas
fariam qualquer coisa por crack. Desses homens, a maioria relatou, alguma vez na vida, ter
disfrutado do “serviço”, contribuindo, de forma indireta, à continuidade da atividade.
Vc chega por e tem um monte de meninas viciadas (...) dar umas pedras pra elas e fazer
sexo com elas não me interessa. Eu não gosto disso. Mas cheio de menininha tudo na
perdição e elas fazem de tudo pra ganhar a pedra. Elas são viciadas e pra elas não vai
fazer diferença nenhuma, vc mostra uma pedrinha, ela vai com vc pra qualquer lugar.
Então essas meninas perdem o brilho, acaba dando por nada. Dá por um tiquinho de nada
porque está naquela paranóia e não consegue segurar (...) (M39ME)
Vc ouviu falar do treme-treme, vc entra ali e as putas vem te agarrando. Vc pega
uma nóia, vai para o quarto e a mina na maior nóia olhando para a janela (...) vc
come uma mina por uma pedrinha de crack, as menininha fica ali pra isso mesmo, as
viciadas (...) pior é que é tudo menina nova, entre 15 e 17 anos. (M34MU)
(...) comi muita menina por causa de droga, eu chegava e perguntava se ela queria usar
(...) aconteceu comigo várias vezes (...) eu via as meninas, muito gatinhas, nós usava, mas
era o seguinte, enquanto eu tinha a droga eu era o marido dela, acabava era eu e a
sorte (...) (F26MU)
Porém, há outros homens que contribuem diretamente como incentivadores da
prostituição feminina, desenvolvendo a prostituição dita compulsória. Ou seja, relatos
de maridos que “emprestam” suas esposas a traficantes e a outros usuários, em troca de
crack. O período e o número de pedras é combinado no momento da troca. Há homens que
levam suas mulheres à “boca”, fazem a negociação e deixam-na à disposição do
traficante, que decide a respeito de sua utilidade.
Alguns viciados que não tem condição de ter a droga acabam empenhando a própria
mulher. Um colega meu tinha mulher e empenhou pra ficar comigo pela droga durante
uns 3 ou 4 dias (...) (M33MU)
Eu vi o cara trocar mulher por crack, o cara falava “vc fica uma noite com ela e me dá
uma quota” e ela aceitar e ficar com o cara, era dar uma quota e a mulher ficava
(...) (L39ME)
Porém, a prostituição não é de exclusividade feminina, tendo sido praticada por
mais da quarta parte dos homens da amostra. São os homens de crack. A prostituição
masculina não acontece nos mesmos moldes da feminina. É uma atividade discreta, não
pontos e tampouco a abordagem agressiva ou ativa dos parceiros sexuais. Surge como
142
oportunidade de dinheiro a crack, no momento que são abordados pelo “cliente” nas ruas,
no entorno social ou entre colegas de uso. Não são homossexuais, mas quase todos
praticam-na com outros homens, embora haja relatos da prostituicão exclusiva com
mulheres. Como se trata de uma oportunidade, de tal forma que são “eleitos”, não possuem
critérios para a seleção dos possíveis “clientes”. Quando se relacionam com mulheres a
troca é feita por dinheiro, que não necessariamente sejam também usuárias de crack.
Entre homens há pagamento em dinheiro, mas é possível a troca de sexo por crack,
principalmente quando são colegas de uso. Assim, quando por dinheiro, não cobram um
valor fixo, fazendo-no pela quantia oferecida. No que concerne especificamente à
atividade, geralmente penetração anal, mas em sua ausência a prática de sexo oral
parece ser a mais comum, que essa opção, conforme os próprios entrevistados, é a que
menos comprometeria sua sexualidade.
O cara que é viciado faz de tudo (...) o cara chegou e disse que me dava 60 reais, eu
deixei (...) eu mesmo não fiz nada, o problema é dele, ele que é viado. Eu sou macho, eu
sei que eu sou homem, eu tenho uma filha de 3 anos (...) Mas, deixei o que ele queria,
problema dele, foi ele quem pagou 60 contos (...) eu falei para o cara que eu queria os 60
contos, mas que o negócio não estava agindo, mas daí ele falou que tinha um truquezinho
e me deu um negócio pra tomar. Primeiro ele macetou e jogou no guaraná e o outro ele
deu pra eu engolir, demorou um pouco, mas o negócio subiu com tudo (...) ele fez o que
quis, me deu os 60 reais, catou o carro dele e foi embora, enquanto que eu fui pra favela
usar e ponto (...) teve outras vezes, é foda. Houve outras vezes, os caras dão e eu mesmo
tenho nojo (...) um cara no Ibirapuera perguntou se eu curtia a brincadeira, disse que não,
mas aí o cara tirou quarentão do bolso, aí eu falei que curtia, “curto sim”. (F26MU)
(...) uma vez eu conheci uma pessoa indo comprar um negócio na boca, eu a vi no meio da
rua, era um travesti (...) pegou e veio conversar comigo (...) disse que eu era muito legal e
acabou me levando onde ela morava, num lugar invadido. A gente fumou junto e eu
comecei a andar sempre junto com aquele travesti. No final, ela pagava pra mim, eu fazia
minha representação, comia o travesti e tinha droga de graça. Outras vezes, poucas,
andando de madrugada aqui pela região da Santa Cruz e Vila Mariana, passava um
pessoal de carro procurando sempre homem (...) pelo crack fiz com o travesti, é o que
ela tinha, estava com o crack, mas se ela tivesse com dinheiro seria a mesma coisa. As
outras vezes que aconteceu foi por dinheiro. Eu estava na rua, de madrugada, louco pra
usar e aparecia “oh, gatinho, vem aqui que eu quero te chupar”, tem dinheiro, então
demorou (...) não fiz ponto, às vezes que aconteceram foram por sorte, parece que o
capeta aparece e fala “vc quer usar mais, então eu vou te mandar o carinha”. Olhava,
carro importado e pensava que dava pra pegar legal (...) (R24MU)
(...) nessas indas e vindas atrás da droga, um dia eu tava andando e um cara parou o
carro, fez uma proposta e saí com ele por causa da droga (...) na Vila Industrial tinha uma
143
fábrica abandonada, ali eu chegava e me internava dentro. dormia no meio dos
traficantes e das prostitutas (...) nesse mesmo lugar, que é uma fábrica com vários
andares, eu estava e tinha uma bicha, uma loira horrível (...) um cara veio e me falou
que a bicha tinha gostado de mim, pra eu subir que ela me dava a droga, peguei e fui.
Cheguei lá, a bicha começou a se esfregar em mim, enfim (...) não teve penetração e nada,
mas fez sexo oral e foi o suficiente (...) (A31ME)
(d) Envolvimento com tráfico: O envolvimento com atividades ligadas ao tráfico foi
mencionada pela quarta parte dos entrevistados. Embora pudessem ter se envolvido com
tráfico em virtude da condição financeira, a maioria o fez em troca de crack ou por
dinheiro destinado à sua compra. Os ganhos, seja em crack ou dinheiro, variam conforme a
“boca” e o cargo ocupado na rede de tráfico, como mencionado no item “Acessibilidade
e Distribuição de crack - A hierarquia do tráfico e o traficante de crack”. A fins de
exemplo, quando em troca da droga, um “aviãozinho” poderia ganhar 1 pedra ou 1
papelote de crack a cada 10 vendidos e, quando em troca de dinheiro, ganharia 2 reais a
cada papelote vendido. Considerando que “vapor” e “gerente”, dentro da rede de tráfico,
são postos mais arriscados, a contribuição, seja em dinheiro ou droga, é maior que a
anteriormente mencionada.
(...) chegou uma época que eu precisei traficar, a situação financeira estava mal, daí eu
fui traficar com o cara, só que isso piorou porque eu comecei a usar o dinheiro do lucro, o
que viria pra mim comecei a receber em droga porque estava usando (...) eu ganhava 2
reais para cada papel que eu vendia, vinte reais para 10 papéis. Se eu vendesse 10 pedras
eu tinha vinte reais, que naquele tempo, como eu era usuário, eu não tinha controle,
então vendia 10 papéis e fumava 2 pedras, então, os meus 20 começaram a ficar pra eles
(...) (J26MU)
Cheguei a traficar por causa de crack, porque a cada 10 papéis vendidos eu ganhava 1.
Eu vendia 10 papéis em 2 minutos, então eu guardava o meu (...) (V45ME)
Por crack, o envolvimento com o tráfico poderia acontecer de forma indireta. A
fim de facilitar o acesso a crack, mulheres envolvem-se sexualmente com traficantes, com
eles namorando ou a eles se prostituindo. Já entre os homens, quando a prostituição não é
possível, o estabelecimento de amizade ou camaradagem com traficantes pode baratear o
custo da droga ou facilitar a forma de pagamento.
E daí depois tudo se tornou mais fácil, porque eu nunca cheguei a me prostituir por causa
do crack, nem por droga nenhuma, mas depois eu comecei a namorar com um traficante,
daí ficou tudo mais fácil. eu não pensava em vender mais nada, não pensava em pegar
144
dinheiro da minha mãe porque tinha ali na mão, tinha pra dar e vender e usar o que eu
quisesse (...) (F17FE)
(e) Manipular, enganar ou mentir: Uma minoria dos entrevistados afirmou, alguma vez
na vida, ter enganado ou manipulado como estratégia para a aquisição de crack.
Geralmente iniciam no âmbito familiar, progredindo posteriormente à comunidade. Não
são raros os entrevistados que se fingiram sequestrados e exigiram o pagamento de resgate
pela família, atribuindo o sequestro a dívidas com o traficante. Marcam com os pais
próximo à entrada da favela, recolhem o dinheiro e dirigem-se à “boca” para comprar
crack, não retornando ou voltando com a droga e alegando o pagamento de dívidas que
nunca existiram.
(...) ligar para o meu pai, falar pra ele que estava devendo, pra ele me levar 80 reais “tô
devendo 80 reais e se eu não pagar, eles não vão deixar eu sair da favela”. Aí ele foi até a
porta da favela, deu os 80 reais, entrei e sumi (...) eu não tinha me endividado, eu fingi
que estava sequestrado para o meu próprio pai (...) (A28MU)
Outra forma de manipulação, no âmbito familiar, consiste na chantagem emocional
seguida de auto-flagelação, quando se cortam e ameaçam dar cabo da própria vida caso
não saciem a fissura por crack, o que faz com que os pais atendam o pedido e forneçam, ao
usuário, a quantia de dinheiro desejada.
(...) minha mãe não queria me dar mais dinheiro, que a droga me causava muita
depressão, eu ficava chorando o dia inteiro, vinha a baixo auto-estima e eu queria usar
de qualquer jeito (...) enquanto eu não usava eu não ficava bem, então ficava chorando,
fazendo teatro, tentava me matar, quebrava vidro com a mão, fazia de tudo pra conseguir
(...) (N19MU)
Os golpes atingem maior seriedade e severidade ao se estender do âmbito familiar à
comunidade. relatos de entrevistados que se caracterizavam para abordar pessoas na
rua, reclamando por dinheiro ou pela necessidade de bens, entre eles medicamentos, a si ou
parentes doentes.
(...) começo a refletir, a pensar a respeito do melhor lugar pra eu pedir dinheiro, passo
num restaurante e falo Vc pode me arrumar tanto, pq eu tô precisando ir pra casa”. Tem
vez que eu vou no terminal do Tietê ou da Barra Funda e começo a inventar coisa, tipo,
que minha mãe está em Campinas, que está doente e que estou precisando levar um
remédio pra ela e preciso dinheiro pra completar minha passagem, tem vez que em meia
hora eu arrumo 30 reais só pedindo (...) (A28MU).
145
Outros aplicam o golpe da gasolina, ou seja, param o automóvel na rua ou dentro
de estabelecimentos comerciais (ex.: hipermercados e shopping centers), pedindo auxílio
para a compra de combustível.
(...) foi que eu descobri novas formas de ganhar dinheiro. Eu me vestia muito bem,
tomava um banho, passava uma maquiagem, fazia questão de colocar uma jóia e ia pra
rua. Eu descobri que era muito fácil ganhar dinheiro na rua porque durante bastante
tempo eu conseguia 150 reais todos os dias e na rua. E muito rápido, eu não chegava a
ficar uma hora na rua pra levantar esses 50 reais. Era 50 de manhã, 50 à tarde e 50 à
noite (...) eu ia no shopping e começava a chorar dizendo que eu estava desesperada
porque tinha acabado a gasolina do meu carro e eu tinha aberto a bolsa e vi que estava
sem a carteira e que tinha ligado em casa e não tinha ninguém. Como estava bem vestida,
as pessoas falavam Nossa, eu vou te ajudar. Eu não tenho, mas vamos até ali no caixa
eletrônico que eu vou tirar”. Então era assim, tinha gente que me dava até 50 reais e
estava feito o meu período, eram 15 pedras por dia. eu comecei a fazer isso
diariamente, no shopping Ibirapuera, no Morumbi e num supermercado perto de casa, até
que começaram a me reconhecer, eu comecei a mudar os lugares, cheguei em farol, a
parar na rua (...) (L45FE)
Porém, formas ainda mais sérias de manipulação, podendo comprometer ou
colocar em risco a vida do próprio usuário ou de terceiros. relatos de entrevistados que
se fingiram de traficantes, passando, a outros usuários, papelotes que continham, em vez
de crack, pedras de cimento.
(...) um dia eu estava na esquina, no meu bairro com meu amigo. Estávamos trocando
idéia e pensando como que faríamos pra comprar crack e ali era um esquina e muitos
caras ficavam vendendo drogas. E no meio do quarteirão tinha uma casa e rolava
droga também, a gente fumava lá. eu peguei um monte de pedrinha do chão e enrolei
num saquinho. Um cara encostou pra comprar, eu peguei e vendi pra ele e depois a gente
sumiu e saiu pra comprar a droga. Depois esse cara voltou na casa, ele pensou que eu
estivesse (...) ele foi e deu 12 tiros na casa, as paredes ficaram cheia de buracos e um
tiro pegou de raspão na perna do filho da menina, daí eu já dei um tempo (...) (A31ME)
Outros, ao saber do alto poder aquisitivo de colegas, empenharam-se em
apresentar-lhe o crack, de forma a incentivar-lhe o início de uso e disfrutar, de alguma
maneira, do consumo.
(...) manipulei pessoas, eu tenho vergonha disso. Fazia a pessoa usar comigo pra que
sentisse vontade um dia e se eu, naquele dia, não tivesse dinheiro, aquela pessoa
comprasse (...) tenho vergonha disso, mas eu fiz, incentivava as pessoas a usar porque eu
sabia que ela tinha dinheiro e daí a droga não me faltaria (...) (K20FU)
146
(f) Endividar-se: Menos da quarta parte dos entrevistados relatou ter-se endividado para
dar continuidade ao uso de crack. Relatam ter gastado todo o salário, as economias, ter
passado cheques sem fundo, extrapolado o limite de cartões de crédito, de tal forma que
acabam com títulos protestados.
Me endividei com o banco. Foram mil cheques, cartões de crédito, prestações de carro,
tudo pelo crack abaixo. Deixei atrasar, deixei vencer, sujei o meu nome. Tenho nome sujo
no Serasa, cheque devolvido e uma prestação de carro pendente. Hoje em dia isso me
atrapalha muito, aliás, atrapalha qualquer pessoa, vc não ter crédito na praça é foda.
(J30MU)
Outros relatam ter endividado a família, principalmente como consequência dos
casos de manipulação, quando os pais pediram empréstimos para o pagamento das
“dívidas” de seus filhos. Além de se endividarem com o banco, com familiares e no
ambiente de trabalho, há muitos que o fazem com amigos e colegas, o que lhes reduz o
convívio social.
Pegar dinheiro emprestado e não pagar, coisa feia pra caramba. Tem uns lugares que vc
não pode ir porque pediu dinheiro pra fulano e não pagou, essas coisas que eu me
arrependo de ter feito e que não faria se não tivesse consumido. (C22MU)
outros que o fizeram com o próprio traficante, de tal forma que, além de se
endividarem acabaram por colocar a própria vida em risco.
Eu usei crack no Carandiru. Fiz vida, tive que ligar pra minha família, desesperado
para não me matarem dentro. Daí eu perdi o controle, tinha muito e os caras vinham
empurrando droga. Vc falava que ia pagar na visita e eles vão soltando. Eles querem ver
o circo pegar fogo, porque a monotonia da cadeia cansa e os caras estão tudo no ódio
dentro, principalmente quando o cara sabe que eu tenho só um aninho de cadeia e ele está
condenado à trinta. A inveja e a raiva pegam (...) então, os caras falam “vamos soltar a
droga pra esse cara, se ele não pagar eu já enfio a faca nele”. (A28MU)
(g) Pedir esmola na rua: Somente alguns relataram, na vida, ter pedido esmola.
Possivelmente consista no último passo da sequência da degradação moral a que o usuário
se submete por crack, após ter desenvolvido outras das atividades mencionadas. Ao
atingirem essa etapa, costumam caracterizar-se ou vivem como indigentes nos arredores
das “bocas”, afastando-se da família e do antigo entorno social.
147
(...) eu pedia esmola. Eu me enrolava num cobertor, rasgava a roupa, me despenteava e
jogava um pouco de barro no cabelo. as pessoas ficavam com de mim e falava
“coitada”, eu pedia dinheiro. Eu tirava o sapato, rasgava tudo, andava toda suja (...)
tinha dia que eu conseguia 50 reais, tinha dia que conseguia 100, mas era ganhando e
gastando, querendo usar mais crack (...) enquanto tivesse pessoas na rua eu não dormia,
se acabasse de passar só às 2 da manhã, era às 2 da manhã que eu ia dormir (...)
(SL35FE)
(...) eu estava que nem mendigo um tempo atrás. Cheguei a andar descalço, com o
imundo no centro de São Paulo, sem vergonha de nada, em plena luz do dia. Todo
mundo trabalhando de terno e gravata, mala na mão e eu descalço e pedindo esmola.
(A28MU)
aqueles que relatam pedir crack ao traficante, colocando a própria vida em
risco.
Chorar na frente do traficante, o cara enfiar o revólver na minha boca e eu implorar pra
ele por meia pedra. Então a gente faz qualquer negócio (...) (E23ME)
(h) Outras atividades: Por crack, o usuário pode atingir considerável nível de
agressividade e violência. Não são raros os relatos de pensamentos ou tentativas de
homicídio, estupros, agressões contra familiares (comumente a figura materna) ou atos de
violência a pessoas que não tenham condições de se defenderem, muitas vezes em
represália por terem dificultado o uso de crack ou os planos destinados à arrecadação de
meios à sua aquisição.
A pior coisa que eu fiz foi bater na minha mãe por causa do crack, é a coisa que mais me
machuca (...) uma vez eu cheguei muito louco, ela (mãe) pegou a minha droga, que eu
tinha em casa, e jogou fora. Eu, num surto muito forte, assim que acordei, eu vi ela
jogando a droga e não aguentei, eu bati nela, simplesmente pela necessidade da droga. Eu
não vi se era minha mãe, quem era, eu vi que era uma pessoa que estava jogando fora a
minha droga e eu precisava daquilo e eu bati nela e ela me pôs pra fora de casa (...)
também já atirei em pessoas, não matar, eu nunca matei ninguém, mas já atirei em
pessoas por causa do crack (...) (E23ME)
(...) pensei em matar ela (mãe) pra ficar com o resto das coisas que meu pai deixou e
queimar tudo na lata. Eu nunca tive coragem de falar isso pra ela, acho que nunca vou
falar, imagine na cabeça dela como não seria (...) mas esse pensamento vinha direto na
minha cabeça quando eu brigava com ela, quando tinha vontade de usar crack e não tinha
dinheiro. Vinha direto na minha cabeça, de matá-la e ver o que faria com o corpo pra
parecer um acidente, mas, ao mesmo tempo, agradeço a Deus por não ter feito isso, mas
eu estava a caminho. Cheguei a dar uma facada na mão dela, eu não estava mais ligando
pra nada (...) (N19MU)
148
Já obriguei pessoas a terem relação sexual comigo. As duas foram mulheres. Uma vez que
eu estava saindo da boca tinha uma mina, eu disse que se ela quisesse usar teria que dar
uma chupada. Esse tipo de violência (...) tomei de carinha fraquinho, aqueles que estão
todo ralado, machucado, que nem consegue nem falar direito (...) (R24MU)
(i) Padrão de uso controlado: Somente alguns dos entrevistados relataram não ter
deixado que o uso de crack interferisse sobre seus princípios morais ou entorno social, de
tal forma a não desempenhar nehuma das atividades acima mencionadas.
Sujo, cobertor nas costas, descalço (...) eu falei NÃO, pelo amor de Deus, isso eu não
quero, não chego a esse ponto não. E não chego mesmo, jamais vou vender minhas coisas,
tirar alguma coisa de mim pra fumar droga (...)(A30MU)
Eu ainda tinha força de vontade pra não fazer nada de errado, de roubar mãe, loja ou
amigo. Eu era uma pessoa que estava querendo parar, acho que isso que não deixava
eu fazer as coisas perigosas (...)(A45ME)
4.2.7 Associação de crack a outras substâncias psicotrópicas.
Embora ainda exista o uso exclusivo de crack, atualmente, tem sido
paulatinamente substituído pelo multiuso de drogas, caracterizando o usuário de crack, da
cidade de São Paulo, como um poliusuário de drogas.
Quase todos os entrevistados afirmaram combinar o uso de crack a outras
substâncias psicotrópicas, sejam citas ou ilícitas, visando, a princípio, modificar a
intensidade e o tempo de duração dos efeitos de crack, seja dos positivos ou negativos. Ao
modificar o tempo de ação dos efeitos, principalmente no que concerne aos negativos, ao
usuário dá-se a possibilidade de continuar o uso de crack de forma ininterrupta, ou seja,
por horas e dias a fio. Assim, para tais fins, um mesmo usuário pode vir a combinar até 4
drogas diferentes durante o uso de crack.
Embora as associações cumpram com os objetivos propostos, a longo-prazo
representam considerável entrave à vida do usuário, acarretando o desenvolvimento de
outras comorbidades à dependência de crack, ou seja, o abuso ou dependência a outras
drogas (dependências secundárias a crack) ou dificultando o sucesso de uma possível
abordagem terapêutica.
Abaixo são detalhadamente descritas e ilustradas cada uma das drogas de
associação, acompanhadas de seus respectivos propósitos.
149
(a) Álcool: A maioria dos entrevistados citou o emprego de álcool durante o uso de crack.
Destinar-se-ia, principalmente, à diminuição dos efeitos negativos de crack,
principalmente da fissura e das idéias paranóides. Na falta de recursos financeiros à
continuidade do uso de crack, o álcool surge como alternativa ao controle dos efeitos
negativos, de forma a reestabelecer o equilíbrio psíquico do usuário, permitindo seu
retorno à realidade e à realização das atividades rotineiras, além de tranquilizá-lo,
possibilitando-lhe relaxamento e sono. Outras vezes, embora ainda se tenha crack ou
recursos para tal, o álcool, através do mesmo mecanismo mencionado, surge como a
possibilidade de controlar o uso, interrompendo-o e permitindo ao usuário retomar suas
atividades. Tal estratégia é comumente empregada por usuários de uso controlado de
crack.
A gente tomava umas pinga pura pra dar uma melhorada. Tomava um trago porque
depois que terminava a droga sabia que tinha que ir embora pra casa, eu tomava umas
pra dar uma equilibrada, pra sair um pouco da paranóia e da vontade de usar mais (...)
controlava a fissura porque acabava o dinheiro e não tinha mais recurso nenhum,
então tomava alguma coisa pra dar uma melhorada. (M31MU)
Se eu não bebo me nervoso, se eu fumo e não bebo eu ando a cidade todinha, me
nervoso, eu tenho que estar preparado com uma bebida, porque senão ataca o meu
sistema nervoso, eu ando a cidade todinha até encontrar um lugar pra eu tomar uma (...) a
bebida me acalma pra eu não pensar em fumar, eu vou no bar e tomo uma cerveja,
escuto uma música, relaxo, aí quando eu vejo já esqueci (...) (J39MU)
A diminuição dos efeitos negativos, em contrapartida, pode incentivar o usuário a
continuar o uso de crack, que agora poderia fazê-lo de forma mais agradável, ou seja,
com fissura e paranóias diminuídas. Porém, essa estratégia acaba inserindo o usuário num
ciclo vicioso de uso de drogas, de tal forma que inicia com crack, passa ao álcool, reinia
crack, novamente álcool e assim por diante.
Eu usava o álcool pra curtir mais, para aproveitar mais o uso da droga, se ficar
usando crack chega uma hora em que vc começa a babar, sabe? Então vc toma um pouco
de álcool pra estabilizar um pouco o organismo porque o crack te estimula e o álcool te
acalma, vc usa um pouco de crack e depois um pouco de álcool, depois um pouco de
crack e um pouco de álcool, subindo e descendo (...) e assim vai a noite inteira até o dia
amanhecer (...) (F20MU)
150
(...) porque é o calmante, é aquela segurança (...) quando vc passando mal, pra vc
voltar a usar vc bebe, porque ela (bebida) te relaxa. A bebida te acalma porque senão vc
morre, vc sabe que vai morrer, daí vc bebe, se acalma e continua a usar. (E26MU)
Somente alguns entrevistados mencionaram o álcool como potencializador dos
efeitos positivos de crack, ou seja, da euforia e sensações de prazer, de forma a aumentar
sua intensidade ou tempo de ação. Dentre as interferências, essa seria a mais esperada,
que a combinação de álcool a cocaína (na forma de crack) geraria o aparecimento do
cocaetileno, metabólito de meia-vida superior à cocaína, cuja ação e efeitos são de maior
duração quando comparados a de seu precursor (cocaína).
(...) tomava conhaque por cima pra ligar mais (...) aí passei a tomar um litro de conhaque
(...) eu cansei de por álcool (de limpeza) no copo, um pouquinho de água, açúcar, mexia e
bebia assim, descia igual suco (...) (U; informante-chave)
Outro motivo citado à combinação álcool-crack é a necessidade de alívio aos
sintomas físicos associados ao uso de crack, como, por exemplo, dor e sensação de
garganta seca.
E uma secura na garganta, então parece que tem que beber pra dar uma aliviada (...)
(P29FU)
Aproximadamente um quarto dos entrevistados acredita que a relação entre os usos
de álcool e crack seja diretamente proporcional, ou seja, o uso de um estimula o uso de
outro e vice-versa.
E não é tanto a droga, mas é aquela coisa de vc estar fumando e beber, é uma puxando a
outra. Tem vez que o usuário de crack está sem querer fumar, mas ele chega no bar toma
uma cerveja e aquilo chama ele pra fumar. No que ele tomou aquela cerveja, ele
pensa “quer saber, vou lá na bocada fumar uma”. (A50MU)
Se eu acordo com vontade de fumar, mas eu não quero, eu vou tomar uma cerveja e
acabo criando coragem, então eu vou lá e fumo. (S36FU)
O mais interessante notar é a constatação de que não é apenas o álcool que interfere
sobre os efeitos de crack, de forma que o recíproco é verdadeiro, havendo relatos de que o
crack parece diminuir o estado de embriaguez do álcool.
151
Eu me sentia mais louca quando eu estava bêbada. Quando eu tava bêbada e dava uma
paulada, tirava um pouco da loucura do álcool de ficar mole, eu ficava mais alerta e
chapada, acabava falando mais (...) (D18FU)
Teve uma outra vez que tomei um pouco de cachaça e daí eu corri pra boca pra pegar
uma pedra para cortar o álcool. Eu estava caindo eu fui e dei uma paulada, quando
eu dei a segunda já estava mais aceso. (L39ME)
Embora muitas sejam as motivações subjacentes à combinação álcool-crack, entre
os entrevistados não houve consenso a respeito da ordem de administração das drogas, de
tal forma que se mencionou que o álcool poderia ser administrado antes, durante ou após
crack.
(b) Maconha: Mais de um terço dos entrevistados concordam que o efeito da maconha
diminui os efeitos negativos de crack, possibilitando ao usuário tranquilizar-se, dando
continuidade ao uso de crack ou animando-se para a retomada de suas atividades
rotineiras.
Eu fiquei um tempão usando o crack, que terminava o crack dava aquela depressão
(...) eu me sentia um fora-da-lei, uma pessoa totalmente baixa, uma pessoa bem horrível
mesmo. Aí depois, quando eu fumava com maconha, eu via que a maconha não me
deixava tão deprimido quando não tinha mais o crack, parecia que não tinha o crack, mas
ficava o efeito da maconha, então, vc não ficava tão deprimido (...) (G36MU)
Fumava maconha pra dar uma relaxada, dormir mais rápido e melhor. O crack é meio
rapidinho, então, eu não vou ficar a noite inteira fumando 1kg de crack, não vou, então,
eu gasto meus 10, 20 contos com crack e depois fumo um beck pra baixar a brisa (...) até
porque depois que vc acelerou, vc vai dar uma desacelerada pra chegar em casa e poder
comer alguma coisa, chegar com uma cara boa (...) (JL27MU)
Em contrapartida, não foi mencionada a potencialização dos efeitos positivos de
crack por intermédio do uso de maconha, de tal forma que pode, quando muito, prolongá-
los em duração. Para que a interferência de maconha sobre crack seja possível deve ser
administrada após (na forma de baseado) ou durante o uso de crack (na forma de
mesclado), havendo relatos da substituição das cinzas, no cachimbo, por maconha.
Não, com maconha prolonga mais, se antes era 5 minutos, com maconha passa a ser 10 e
vc fica mais louco, a boca seca, amarga, até o cheiro da coisa fica diferente (...) (F26MU)
152
Com maconha a tragada pra ser mais longa. Se vc coloca o crack, vc uma pipada e
a pedra queima rapidinho e vai embora, a maconha segura mais a brasinha, fica
queimando por mais tempo (...) (G36MU)
(c) Cloridrato de cocaína: Somente alguns dos entrevistados relataram combinar
cloridrato de cocaína (via aspirada) ao uso de crack. No que concerne aos efeitos positivos
de crack, ditos de euforia, além de potencializá-los, o cloridrato de cocaína aumentaria seu
tempo de duração.
A cocaína acelera mais e às vezes um medo porque vc se sente muito acelerado, vc tem
medo de te dar um treco (...) (P29FU)
quanto aos efeitos negativos de crack, principalmente em referência à depressão
e fissura, o uso de cloridrato os aliviaria, interrompendo ou possibilitando a continuidade
do uso de crack, conforme já mencionado às combinações com álcool e maconha.
Eu usava bastante pedra e quando acabava vc ficava com aquela sensação de querer mais
(fissura) e a cocaína uma baixada nisso, então, colocava cocaína junto (...) mais para
dar uma amenizada na sensação de crack, pra poder controlar mais a vontade, a nóia,
senão vc acaba fazendo besteira, então por isso que eu associo as duas drogas (...)
(M22MU)
E eu gostava sempre de deixar a cocaína por último (...) então, acabava o crack, que ia
passar rápido, ia ficar naquela depressão, naquela paranóia, eu usava cocaína pra
fugir disso (...) (DA27ME)
É consenso que, para que a interferência do cloridrato seja possível, deva ser
administrado após crack, que os efeitos do primeiro são menos intensos, podendo ser
suprimidos caso anteceda o uso de crack.
(...) então vc tem que fumar primeiro o barato vc fica loucão e vc cheira a cocaína,
vc fica loucão do mesmo jeito também, mas se vc cheirar e usar a pedra depois vc não fica
louco (...) (M34MU)
(d) Benzodiazepínicos ou inalantes: Somente alguns dos entrevistados citaram a
combinação de benzodiazepínicos ou inalantes ao uso de crack. São empregadores como
estabilizadores dos efeitos negativos, principalmente da fissura, paranóia e alucinações,
garantindo equilíbrio psíquico ao usuário. De volta à realidade, o usuário poderia
153
interromper ou dar continuidade ao uso de crack, seja até seu esgotamento físico, seja até a
depleção de seus recursos financeiros.
O diazepam eu sempre tive por receita médica. O que aconteceu é que com o uso da droga
eu acabava abusando da dosagem da medicação que eu tinha que tomar (...) a finalidade
era de baixar aquela onda forte que eu sentia com o baque de crack, o medo de morrer, na
verdade. Coisa insana, mas eu achava que com o diazepam o meu coração ia bater menos
e eu ia me acalmar e eu não ia morrer porque eu sempre achava que eu ia ter um treco
(...) (L45FE)
(...) mas tinha os benzodiazepínicos que me sedavam e me traziam um equilíbrio um pouco
melhor (...) não trazia, não voltava a estar num estado são, mas me traziam a um estado
que daria pra sair, que daria pra ir num bar, pra ir numa boate (...) (M31MU)
(...) mas depois de um tempinho, uma meia hora, usava cola, porque começava a esquecer
que tinha usado crack e tudo (...) (R24MU)
(e) Tabaco: Somente alguns dos entrevistados citaram-no como droga de associação, de
tal forma a ser empregado no controle da ansiedade e da depressão associadas ao pós-uso
(controle dos efeitos negativos de crack).
Cigarro de pacote. A gente comprava cigarro de pacote e isqueiro de cartela. (ED26MU)
(f) Triexifenidila ou Artane®: A triexifenidila (TEF), substância anticolinérgica sintética
reconhecida no Brasil principalmente pelo nome comercial Artane®, é medicamento
empregado no tratamento sintomático da moléstia de Parkinson e no controle dos sintomas
extrapiramidais secundários ao uso de drogas neurolépticas. A ação isolada da TEF sobre o
Sistema Nervoso Central possibilita efeitos psíquicos de importância como euforia e
intensificação das sensações físicas, seja audição, visão ou tato. Logo, era de se esperar
que o único entrevistado que a relatou como droga de associação, a tenha adotado com fins
de intensificar ou prolongar os efeitos positivos de crack, como realmente mencionado.
Porém, embora não tenha sido comentado pelo usuário em questão, acredita-se que o uso
de TEF também intensifique ou prolongue os efeitos negativos de crack, que seu uso
isolado sobre o SNC induz o aparecimento de alucinações e idéias paranóides.
Quando vc fumava o crack, que parava tudo, que vc via que aumentava os sentidos, aquilo
era parado e quando vc usava o Artane®, era parado, mas era colorido. O Artan vai te
deixando cada vez mais louco, aumenta mais do que a bebida porque a bebida aumenta e
abaixa e o Artane® aumenta cada vez mais (...) (E26MU)
154
(g) Uso indiscriminado: Somente alguns dos entrevistados mencionaram fazer o uso
indiscriminado de drogas com fins de aumentar a intensidade ou o tempo de ação dos
efeitos positivos de crack. No uso indiscriminado não uma droga específica de
associação, empregando-se qualquer substância que esteja disponível no momento de uso.
Daí a brisa foi diminuindo, o corpo estava acostumando, daí fui revezando (...) voltei a
cheirar, às vezes usava os dois juntos (cloridrato de cocaína e crack) e fazia aquele misto
de drogas. Fumava maconha, cheirava (cloridrato de cocaína), fumava pedra, cola, tudo
ao mesmo tempo (...) (K20FU)
Eu misturava tudo, crack, cola, maconha, cachaça (...) saía andando na rua que ela
parecia estreita pra mim. Eu ficava mais doido, com mais coragem, mas eu não quero
mais fazer isso (...) (F39MU)
(h) Uso
EXCLUSIVO
de crack: Embora quase todos os entrevistados tenham associado
crack a outras drogas, somente alguns afirmaram fazer o uso exclusivo de crack, cujas
razões subjacentes foram: (h1) por apreciação única das sensações de crack, fazendo uso
das demais drogas apenas como alternativas em sua ausência; (h2) por descrença de que
outras drogas pudessem, de alguma maneira, potencializar ou aumentar a duração dos
efeitos positivos de crack, ao mesmo tempo aliviando seus efeitos negativos. Nessa
categoria, inclui-se os usuários que acreditam que a associação pudesse gerar efeitos
distintos aos do uso isolado de crack, correspondendo no final-das-contas, em seu
desperdício; e, finalmente, (h3) por desconhecimento e temor das conseqüências
decorrentes de uma possível associação. Cada uma dessas motivações é ilustrada abaixo:
Por apreciar, unicamente, crack.
As pessoas falavam “vem cá, toma uma bebida com a gente, a sua brisa (de crack) vai
aumentar”, eu falava que não, que não queria que aumentasse, queria do jeito que
estava (...) eu não queria que aumentasse mais nada, eu queria consumir mais e mais
crack, era apenas eu e ele, eu não queria mais nada. Não porque não tinha, porque
sempre teve, mas eu não queria (...) (F17FE)
(...) o crack é um negócio meio estranho, vc não consegue associá-lo a nada, é ele e
mais nada, ele te derruba e te leva para o fundo do poço, mas é ele, não outra droga
junto, não tem como fazer isso (...) e depois que vc tem o efeito do crack vc não pensa em
nada, nenhum outro tipo de droga e bebida, só pensa nele mesmo, no crack (...) (V45ME)
155
Por descrença a respeito do poder de possíveis associações.
Eu acho o crack incompatível com outras drogas, acho o crack tão único (...) outra drogas
junto não aumenta, acaba uma batendo de frente com a outra. Qualquer outra droga,
estimulante ou depressiva, acho que bate de frente e não combina, acaba estragando a
viagem uma da outra. (R24MU)
(...) crack não, como é fumado, então eu acho que tem um efeito mais rápido que não
pra potencializar (...) (G28ME)
Por receio das implicações ou consequências de uma possível associação.
Não, eu uso o crack e só o crack, eu quero sentir o prazer daquela droga. Eu
apanhei por causa disso, então eu acho que misturando a pessoa fica louca, vai ofender,
vai xingar, vai maltratar as pessoas (...) não quero usar a droga pra maltratar ninguém
(...) (J53FU)
4.2.8 Aumento e diminuição do uso de outras drogas.
(a) Diminuição:
A maior parte dos entrevistados relatou ter diminuído o consumo de
outras drogas após iniciado o uso de crack. Com o tempo, os recursos financeiros passam a
ser empregados exclusivamente à aquisição e uso de crack, de tal forma que assume a
posição de droga de preferência ou escolha na vida do usuário. Embora diminua o uso de
outras drogas, não parece haver uma substituição completa por crack, de tal forma que, em
sua ausência e na possibilidade de, realizam o uso de outras substâncias psicotrópicas.
As outras drogas ficaram praticamente esquecidas porque a sensação que o crack te dá as
outras drogas ficam jogadas de lado. Se eu tenho dinheiro pra comprar crack, por que eu
vou comprar cocaína se o crack me deixa mais louco (...) então, a gente usa outros tipos
de drogas quando não outra alternativa e tem aquilo pra usar, porque se a gente
tem opção, a gente vai em busca daquilo que a gente está acostumado (...) então, o crack
não teve nenhum efeito pra aumentar as outras drogas, simplesmente teve o efeito dele
estar levando eu usar cada vez mais ele mesmo, mas as outras drogas não, pelo contrário,
vai inibindo as outras drogas, vc quer usar aquilo sempre (...) (E23ME)
(...) o crack me fez virar escravo dele e fez eu esquecer as outras drogas do meu passado e
virou minha droga de obsessão (...) tinha que ter crack 24 horas senão eu o estava feliz
(...) ele (crack) me fez encarar que ele era a droga e era melhor que todas, com isso as
outras drogas não tinham mais graça, os caras chegavam com maconha e cocaína, mas
não tinha mais graça (...) (N19MU)
A maioria dos entrevistados diminuiu o uso de cloridrato de cocaína (via aspirada)
(pelos mesmos motivos mencionados no item Histórico do Consumo de Drogas Uso
156
de outros derivados da cocaína), enquanto metade da amostra afirmou ter diminuído o uso
de maconha. Somente alguns dos entrevistados diminuíram o uso de inalantes, álcool e
tabaco.
Quando eu comecei a usar crack eu diminuí na farinha (cloridrato de cocaína) e hoje em
dia eu nem gosto de usar ela, pego se não tiver crack (...) a vontade que eu tinha por
ela eu não tenho mais, hoje eu tenho vontade pela pedra, sei lá, o crack tomou o lugar
da farinha no meu corpo (...) (PE29MU)
Vc quer crack. Uma vez passei 1 mês sem fumar maconha (...) e eu vejo que a maioria
do pessoal que usa crack não fuma tanta maconha porque o crack uma quebrada, não
sei explicar bem, mas ele tira um pouco as outras drogas do seu pensamento (...) se vc
está com 10 aqui, vc prefere pegar uma pedra, então vc esquece a maconha. (J26MU)
De forma geral, observa-se que quando se trata de diminuição são as drogas
ilícitas que sofrem modificação em seu padrão de consumo, não sendo tão frequentes os
relatos para as drogas ditas lícitas. Somente alguns entrevistados afirmaram não ter sentido
modificação quanto ao padrão de uso de outras drogas.
(b) Aumento: A maioria dos entrevistados afirmou ter aumentado o consumo de outras
drogas após iniciado o uso de crack. Mais de um terço deles aumentou o uso de álcool,
possivelmente em função de sua interferência sobre os efeitos de crack, ou seja, por seu
emprego como droga de associação. Até há relatos da substituição de crack por álcool, seja
pelo álcool consistir em alternativa de uso de menor custo ou pelo usuário não mais estar
disposto em lidar com as implicações e consequências decorrentes do uso de crack.
Nunca gostei de beber, mas no fim da minha drogadição eu estava bebendo muito porque
quanto mais a doença se agravava, mais eu ficava sujeito a fazer qualquer coisa pra ficar
louco, então, quando não tinha mais droga pra usar (crack) eu bebia álcool (...) (A31ME)
(...) antes eu bebia socialmente, não enchia a cara, não tomava pinga ou conhaque
puro, tomava uma cerveja. Depois que eu comecei a usar crack, comprava já a garrafa
e detonava no mesmo dia (...) (M22MU)
Álcool. Praticamente não usava antes. Não usava álcool. Hoje eu não sei sair do
Butantã e vir até o Hospital São Paulo sem parar no bar e tomar uma cerveja. (R24MU)
Aproximadamente quarta parte da amostra aumentou o uso de tabaco, justificado,
principalmente, pelo emprego de suas cinzas no ritual de consumo de crack.
157
(...) o problema foi o cigarro porque eu fumava crack e vinha aquela vontade de fumar
cigarro, quando vc fuma o crack o uso de cigarro é muito forte (...) pra quem fumava 10
cigarros por dia, passei a usar 40. Eu fumava duas carteiras por dia, essa foi a única
droga que o crack fez eu aumentar o uso. (J24MU)
Somente alguns entrevistados aumentaram o uso de maconha, inalantes ou
benzodiazepínicos.
Daí a hora que passava aquele efeito gostoso do crack, vc sentia aquela aceleração, não
tinha mais aquele prazer (...) vc tinha que cortar aquela nóia, aí eu ficava fumando
maconha até passar (...) comecei a fumar mais maconha para tirar a nóia, comecei a
fumar muito mais maconha (...) (K20FU)
Maconha, por exemplo, era uma droga que eu não usava e comecei a usar porque falavam
que baixava a bola, então eu comecei a usar drogas que eu não gostava. Eu nunca gostei
de maconha (...) (L45FE)
De forma geral e contrariamente ao item anterior, observa-se que quando se trata de
aumento são as drogas lícitas que sofrem modificação em seu padrão de uso. Somente
alguns dos entrevistados afirmaram não ter sentido modificação quanto ao padrão de uso
de outras drogas.
4.2.9 Implicações decorrentes do uso de crack.
Quando questionados se o uso de crack havia sido problemático, a maior parte dos
entrevistados afirmou que SIM, que o crack havia gerado muitas consequências negativas
em suas vidas, principalmente nos âmbitos pessoal (a), moral (b) e social (c). A seriedade
do comprometimento reflete-se na constatação de que a maioria dos entrevistados tenha
considerado o crack como a droga de maior impacto ou a mais marcante de suas vidas,
ponto de vista possivelmente decorrente do padrão compulsivo de uso de crack. Por
motivos diversos, que não merecem maior detalhamento, nem sempre o crack foi
considerado como a droga de maior impacto, cabendo tal papel a outras substâncias, a
citar: cloridrato de cocaína (via aspirada); maconha; alucinógenos; álcool e inalantes.
Muitos problemas, muitas perdas, muitas frustrações, tudo de ruim. Muitos foram os
problemas que agravaram minha vida por causa de crack (...) nesse mundo de crack é
fácil perder (...) (D18FU)
158
(...) o crack foi o que estragou tudo, parece uma coisa que me assalta espiritualmente (...)
o crack me infernizou, fui morar na rua, virei mendigo, fui preso por causa de crack (...)
foi o final de tudo, só faltou o caixão e o sarcófago (...) (F26MU)
Abaixo, descreve-se detalhadamente e ilustra-se cada um dos âmbitos de vida
influenciados negativamente pelo uso de crack.
(a) Pessoal: No âmbito pessoal, os entrevistados afirmaram que o uso de crack atrasou, ou
até mesmo impossibilitou a concretização das metas pessoais, seja em termos escolares,
profissionais ou mesmo quanto a relacionamentos amorosos e construção de uma família.
Como destinam suas energias a crack, perdem importantes oportunidades de vida,
postergando o cumprimento dos planos de vida.
Destruiu com tudo, o crack rouba tudo de vc. É a que te deixa completamente
desgovernada, vc perde a noção, é horrível (...) eu não consegui crescer em nada, eu
tenho 36 anos e estou atrasada não sei quantos anos na vida (...) era pra eu ter
terminado os estudos, ter uma vida estabilizada, hoje não tenho nada a não ser problemas
psicológicos, só isso (...) (S36FU)
Muitos problemas, por tudo que causou, por tudo que passamos, foram 8 anos perdidos.
Que hoje eu poderia estar numa faculdade, poderia estar numa banda legal, poderia estar
com uma vida estabilizada, cuidando das coisas que meu pai deixou, mas infelizmente esse
não foi meu futuro (...) o crack me segurava, não me deixava agir em nada, agia
quando tinha que arranjar dinheiro e comprar crack, aí eu era bom, mas pra progredir na
minha vida, não conseguia (...) (N19MU)
Porém, mais que relacionados ao padrão de uso, esse adiamento parece ser fruto
dos efeitos de anergia decorrente do uso crônico de crack.
(...) porque eu quero resolver minhas coisas e não tenho como, não tenho forças (...) pra
mim é esse o problema, porque às vezes eu quero fazer uma coisa e desanimo, não
vou resolver, já deixo pra lá e vai passando o tempo e não resolvo nada (...) (J53FU)
(...) de não ter objetivo para nada, vc joga um sabugo na água e onde ele for o usuário
vai, é a mesma coisa. Fiquei sem rumo, tanto faz ser sexta, sábado, domingo (...) (P50MU)
Além disso, o efeito de anedonia e a interferência negativa sobre a auto-estima
causam ao indivíduo uma série de limitações, atrapalhando seu relacionamento com o
159
entorno social, o enfrentamento da situação e, consequentemente, seu crescimento como
um todo.
Tenho vergonha de conhecer pessoas novas e rever as velhas. Outro dia fui fazer uma
entrevista de emprego, pensei que fosse cara-a-cara, como estamos aqui, mas tinha uma
dinâmica de grupo, quando o pessoal chamou para dinâmica, eu desci e fui embora. Parei
na esquina, dei uma respirada forte, acendi um cigarro e pensei que não tinha coragem de
participar daquilo. Não gostaria de encontrar os amigos antigos porque eles têm tanta
coisa boa pra falar e eu vou falar o que (...) eu sobrevivi, é bom, mas não construí nada e
dá uma vergonha (...) (R24MU)
(b) Moral: No âmbito moral, os entrevistados reconheceram que ao priorizarem o uso de
crack, perderam muito de sua dignidade e amor próprio, atingindo consideráveis níveis de
degradação moral, principalmente ao assumirem comportamentos ou atitudes que até então
não aceitavam. São conscientes do desmerecimento, desconfiança e humilhação por
familiares, amigos e, pela sociedade como um todo que, em geral, não aceita o uso de
crack.
Se eu falo alguma coisa ninguém acredita, porque eu sou taxada de nóia ou vagabunda de
rua. Ninguém me respeita porque eu sou usuária de crack, então, vc perde o valor para as
outras pessoas (...) (D18FU)
(...) perder a família, perder a dignidade, não ter mais o respeito das pessoas, andar na
rua e neguinho olhar para a sua cara e atravessar para o outro lado com medo de ser
roubado, então, isso te traz muita dor e sofrimento. (E23ME)
(c) Social: Como mencionado no item “Padrão de Uso Uso Compulsivo”, o crack é
uma droga anti-social e, sobretudo, marginalizante. Em termos de família, é comum que o
usuário se afaste dos familiares, modificando, através de suas atitudes e comportamentos,
não só a estrutura familiar, mas a harmonia e o relacionamento entre seus membros.
Foi problemático porque gerou feridas na família, que eu acho que não tem como ser
curada. Hoje eu me sinto culpada porque meu filho sofre de depressão, ele tem 13 anos e
está fazendo tratamento psiquiátrico (...) minha mãe se tornou uma pessoa louca, então,
ela drogas 24 horas por dia, drogado o tempo todo, ela sabe de tudo o que acontece
na “boca” perto de casa. No jornal ela aquilo que está envolvido com droga (...) o
meu relacionamento com meu pai piorou muito, hoje a gente conversa, eu vou na casa
dele, ele na minha, mas não tem beijo, não tem abraço, eu passei a ser uma pessoa
indiferente (...) (L45FE)
160
Em 1 ano e meio eu perdi a minha vida inteira, perdi as minhas filhas, minha mãe morreu,
meus irmãos se afastaram, minha irmã não fala mais olhando para a minha cara (...)
(D18FU)
Eu me afastei de todo mundo porque vc passa a não ter mais vida social, a sua vida é um
quarto, um micromundo, é a lata, é a droga (...) (A36FU)
No que concerne ao ciclo de amizades, o usuário restringe-se apenas aos colegas de
uso em função da proximidade e oportunidade de usar a droga, de tal forma a ser evidente
o afastamento dos amigos da época pré-crack.
Perdi muitas amizades pelo uso. Pessoas de confiança, pessoas que poderiam ser bem
mais úteis na minha vida do que essas que eu tenho hoje (...) eu acho que as pessoas
percebiam que eu estava indo para um lado ruim e foram se afastando de mim (...)
(J24MU)
Nessa hora a pessoa não tem amigo não, tem o parceiro de uso, mas amigo mesmo não
tem (...) já fumou naquela hora, deu um peguinha de mim, já era, já não é mais meu amigo
e quando eu olho pra trás já não vejo ninguém (...) (F39MU)
A droga é sempre a mais importante, ninguém é amigo de ninguém, fica junto em
função da droga, ninguém tem amizade com ninguém, só junta pra ver uma maneira de
arrumar a droga e usar. (S36FE)
Para dar vazão ao uso, é comum também que abandonem atividades sociais como
trabalho e escola, justificando os baixos níveis de escolaridade e desemprego entre os
representantes da amostra. Tais, por si só, acabam por interferir, de forma retroativa, no
âmbito pessoal e moral, sugerindo que as perdas são integradas, dificilmente atuando
apenas sobre um único aspecto da vida do usuário.
(d) Uso Não-problemático: Dentre os entrevistados, somente alguns acreditaram que o
uso de crack não fosse problemático e que tampouco tivesse gerado algum tipo de
consequência negativa ou perda significante em suas vidas. Essa percepção possivelmente
esteja associada ao uso consciente ou controlado de crack, de tal forma que, por intermédio
de estratégias ou medidas específicas, mencionadas anteriormente, não perdem o
controle sobre o uso, impedindo então que, o uso de crack inunde e dite as regras de suas
vidas.
161
Todo o crack que eu usei eu sabia o que estava fazendo, eu gastava porque queria gastar.
Agora vício mesmo, de fumar direto, isso não, não tenho condições de fumar direto.
Fumando direto não tem condições de trabalhar e nem de fazer nada (...) (A50MU)
Eu uso e eu posso falar pra vc, eu não saio muito com outros usuários porque eu sei que
eles gostam de arranjar briga, de ir muito atrás da droga, então eu me afasto disso. Eu
gosto de usar com pessoas que não fazem bagunça porque eu não vou ficar me
prejudicando à toa então eu procuro ficar afastada. E as pessoas que usam comigo são
todas casadas, todas tem marido (...) (NA35FU)
4.3 O Crack e seu usuário conforme a percepção dos entrevistados.
(a) Crack: Em virtude da série de implicações, conseqüências e perdas, era de se esperar
que o crack fosse percebido de forma negativa. Como o usuário, na maioria das vezes,
perde o poder de controle sobre crack, deixando que algo inanimado tome conta de suas
decisões e vida, a ele é comumente atribuído um poder místico ou sobrenatural, de tal
forma a ser reconhecido, geralmente, como a droga do capeta ou do demônio.
(...) o crack toma conta do seu corpo, do espírito e da alma (...) é coisa do inferno, é
espiritual, o sr” está com a sua caneta e que Deus te ajude a descobrir, porque isso é
o demônio na vida da pessoa, que quer ficar entocada fumando e mais nada (...)
(F26MU)
Assim, é comum que a palavra final sempre seja em favor ao uso de crack, o que
faz com que os usuários constantemente percebam-se como vítimas, julgando-se como
escravos ou fantoches de crack, como se não lhes coubesse qualquer poder de decisão ou
influência sobre o uso.
É como eu te falei, é o capetinha com os fiozinhos na mão e dizendo “Vai lá, agora vc é
escrava, está dominada, vai na boca agora, volta, agora briga aqui e volta lá” e é
assim (...) eu me vi impotente diante dessa droga, ela mandava, era uma pedra mandando
em mim (...) essa é a pedra do diabo e realmente tem que haver uma reprogramação (...)
(A36FU)
Hoje eu falo que eu nuca usei droga, eu fui usado por ela, eu fazia aquilo que a droga
queria, eu ia em busca dela e ela me transformava, eu dava vida a algo que não tem vida.
Eu buscava um prazer que na realidade não existe, onde esse prazer acaba com a minha
aparência, minha família, minha vida e destrói tudo o que tenho. E as conseqüências são
drásticas, vc perde tudo, desde saúde, aparência, trabalho, família, tudo. Todas as
pessoas que te amam se afastam (...) (E23ME)
162
Em contrapartida, os usuários que mantiveram o uso dito controlado, acreditam que
as conseqüências decorrentes do uso não sejam devidas, única e exclusivamente, às
propriedades farmacológicas de crack, cabendo boa parte da responsabilidade à índole e
instinto de quem faz o uso, que muitos buscariam na droga uma forma de extravasar os
maus pensamentos e intenções.
(...) é a índole da pessoa, ela que busca, vai da cabeça de cada um (...) quer usar, usa,
mas não deixe de ser vc. Quer ficar loucão, vai, mas pra mim o uso é desculpa para soltar
a má índole que anda dentro de vc e depois colocar a culpa na droga (...) (JL27MU)
Acho que influi também o instinto da pessoa, independente do crack a pessoa faz mesmo.
Eu acho que 50% das consequências são por causa do instinto da pessoa (...) (P50MU)
Porém, de forma geral, mantendo ou não controle sobre o uso, todos os
entrevistados reconhecem que o crack seja a última dentro da seqüência do histórico de
drogas, pois, além de impedir que o usuário construa uma história com outras drogas,
envolve-o na execução de atividades perigosas que possam a vir a diminuir seu período de
existência. Por tais, é comum referirem-se a crack como a droga fim de linha.
Eu acho o crack fim de carreira, não tem outra definição, ou o cara pára com a droga ou
a droga pára com o cara. Ou ele tem uma overdose ou fica devendo 5 paus na bocada e
por causa disso leva um tiro no meio da cara ou ele vai assaltar alguém e vai preso. Como
meu pai dizia tem 3 finais pra quem se mete com esse tipo de coisa, ou seja, é instituto
psiquiátrico, cemitério ou cadeia. Cadeia e instituto psiquiátrico eu já conheci e não achei
nem um pouquinho legal, o único lugar que eu não tive oportunidade de conhecer, graças
a Deus, foi o cemitério (...) (P30MU)
(b) O usuário de crack: De forma geral, assim como mencionado a crack, percebem o
usuário de forma negativa, seja em função do padrão compulsivo de uso, seja pelos efeitos
de crack. Quanto ao padrão de uso, acreditam que o usuário não tenha limites, nem físicos
e tampouco morais, submetendo-se a situações perigosas para priorizar o uso de crack,
podendo colocar a própria vida em risco, o que corrobora com a denominação de crack
como droga-fim-de-linha. Logo, acreditam que o usuário de crack seja uma pessoa
perigosa, agressiva, violenta e pouco confiável.
(...) o usuário de crack, se vc ficar marcando, ele vai te roubar, vai tentar tirar a sua vida
e o que tiver pela frente ele vai tentar vender pra consumir a droga (...) (A30MU)
163
(...) outros usuários não ficam nessa maldade de querer lesar e roubar outras pessoas (...)
o usuário, pra adquirir essa droga, passa a fazer qualquer coisa, é perigosíssimo, é um
perigo que nem a gente mesmo sabe mensurar (...) (A36FU)
É diferente porque o cara que usa crack, se ele tiver que matar a mãe por 1 real, eu acho
que ele mata, o cara que está no crack faz qualquer coisa (...) (L45FE)
Socialmente, em função do padrão de uso, acreditam que o usuário se marginalize,
sendo vítima de considerável preconceito social, seja da população não-usuária, da polícia,
do traficante, de usuários de outras drogas e, até mesmo, de outros usuários de crack. O
preconceito de que são alvo contribui para o aparecimento de apelidos pelo qual são
socialmente reconhecidos, dentre eles, o mais comum é a denominação nóia, originada da
palavra “paranóia”.
(...) pela polícia é o tipo de droga que quando eles pegam, eles acabam com vc, são mais
preconceituosos com usuários de crack que cocaína ou maconha (...) e é muito mais
truculenta a abordagem deles quando te pegam, eles escracham bem mais (...) (P29FU)
(...) até os traficantes têm discriminação com quem usa crack. Quem usa crack não presta,
perde a personalidade, faz mil e uma para poder fumar e eles não gostam (...) (S36FU)
(...) o usuário de cocaína falava “vc é um nóia, está fumando pedra, que nóia”. Na rua, as
pessoas, que me conheciam, perceberam que eu comecei a secar, já sabiam que eu estava
fumando pedra, então, os vizinhos foram virando a cara e um monte de gente parou de
falar comigo (...) (K20FU)
(...) eu não confio em nóia, eu nem sequer gosto de nóia porque os caras não fazem nada e
ficam na parasitação (...) (G28ME)
No que concerne aos efeitos, a situação é paradoxal. Em virtude das alucinações,
paranóias e do medo por elas gerado, o usuário é reconhecido como uma pessoa
desconfiada e medrosa, desaparecendo o risco potencial de violência e agressão, a eles
comumente associado, para dar vazão à fragilidade associada ao uso.
O crackeiro é mais amedrontado, assustado com o ambiente, com o movimento (...) é
desconfiado e deixa transparecer a situação (...) (M39ME)
Embora predominante, o ponto de vista negativo a respeito do usuário de crack não
é o único. Muitos dos entrevistados solidarizaram-se com o usuário de crack, percebendo-
164
os como timas, seja da dependência em si ou de uma vida de privações, pela ausência de
estrutura e apoio familiar ou falta de informações adequadas.
Eu acho que o usuário de crack sofre muito, torna-se um escravo da droga. Ele abandona
os sonhos, as prioridades, as coisas que ele gosta, o que almeja, a consideração pelos
entes queridos (...) na hora da fissura ele não consegue pensar em nada disso, mas na
hora que volta à realidade, enxerga o que fez, daí é doloroso porque ninguém quer mal à
mãe, ao pai ou a um filho, depois se arrepende, fica mal, mas na hora não consegue se
conter (...) (A28MU)
(...) é uma pessoa mal-informada, sem perspectiva de vida, vítima da falta de instrução, da
falta de amor, educação e principalmente de amor próprio (...) eu digo falta de amor
próprio e falta de alguém que dê um parâmetro, um apoio (...) (A31ME)
Semelhante ao ponto de vista de vítima, alguns entrevistados acreditam que o
usuário de crack não age por si, mas em função de seus fatores biológicos. Ou seja, a
compulsão do uso de crack e suas implicações são produtos da predisposição genética do
usuário, de tal forma que aconteceriam seja com crack ou com qualquer outra substância
psicotrópica.
(...) não é a estrutura familiar que leva a pessoa a usar porque tem usuários de todas as
estruturas familiares (...) o uso crônico tem a ver com a própria predisposição da pessoa,
pela própria patologia que ela tenha, a doença que ela tem (...) então, essas pessoas têm
predisposição a qualquer substância que altere humor, desde um café, cigarro ou álcool,
enfim elas têm uma predisposição genética (...) (M31MU)
De forma geral, é interessante notar que ao serem questionados a opinar sobre o
usuário de crack, os entrevistados acabaram expondo muito das crenças que têm a respeito
de si próprios.
Somos pessoas que estão nem aí para vida, que não dão valor a nada. (E32MU)
(...) é o pior usuário que tem, acho um ser desprezível, é a escória pra mim. Eu me sinto
um lixo, eu falaria que o usuário de crack é um perdedor e enquanto não largar vai
continuar sendo e é o que eu sou por enquanto (...) (M22MU)
4.4 Abuso e Dependência de Crack.
A fim de observar, entre os usuários e ex-usuários, a prevalência de abuso e
dependência de crack, os critérios do DSM-IV foram inseridos, na forma de perguntas,
165
como parte do questionário. Assim, abordaram-se os seguintes aspectos do uso de crack:
(a) tolerância; (b) abstinência; (c) fissura e dificuldade de controle sobre o uso; (d)
administração de crack por período ou quantidade maiores do que os realmente
pretendidos; (e) gasto de considerável período de tempo à aquisição ou uso de crack; (f)
prioridade do uso de crack em detrimento de outras atividades e obrigações, sejam sociais,
ocupacionais ou recreacionais; (g) uso persistente de crack independentemente de suas
consequências. Entre os usuários, para definição do estado de abuso e dependência, pediu-
se que considerassem o uso de crack dentro do período dos 12 meses prévios à entrevista.
Em contrapartida, entre os ex-usuários, como houve o relato da interrupção do uso por
períodos superiores a 4 anos, para definição do estado de abuso ou dependência, pediu-se
que considerassem os últimos 12 meses de uso de crack. Assim, aplicados e analisados os
critérios, observou-se que todos os ex-usuários e quase todos os usuários, no total 60 dos
entrevistados, preencheram pelo menos 3 dos 7 critérios mencionados, caracterizando o
estado de dependência a crack. Já os 2 entrevistados restantes preencheram apenas 2 dos
critérios, caracterizando apenas o abuso de crack. Interessante notar que ambos os usuários
cujo consumo foi caracterizado como abuso exerciam o uso controlado de crack, porém, os
demais usuários e ex-usuários que realizaram ou realizavam o uso semi-controlado ou
compulsivo de crack, foram categorizados como dependentes.
Embora os dados da entrevista e dos critérios do DSM-IV sejam condizentes entre
si, mais estudos são necessários para a melhor distinção e caracterização dos diferentes
padrões de uso de crack. Em função da densidade de informações, os critérios de abuso e
dependência não foram aplicados às demais drogas consumidas.
(a) Tolerância.
No começo, com uma pedra, eu sentia determinado efeito, depois, para sentir o mesmo
efeito, era na base de 2 ou mais pedras (...) geralmente, a necessidade é sempre de mais
para atingir o mesmo efeito e parece que vc nunca atinge o mesmo efeito daquela época
atrás (...) (A28MU)
Ah, o prazer de fumar não mudou, continuava o mesmo, mas a duração diminuiu e muito.
O meu corpo foi criando resistência, o que 2 pedras me deixava louco o dia inteiro, eu
passei a precisar de 30 pedras por dia para dar o mesmo efeito. Mas a loucura, a viagem
era a mesma, só mudou a quantidade necessária para dar o efeito (...) (R24MU)
166
(b) Abstinência.
Eu sentia como se as minhas tripas estivessem sendo torcidas, dor de cabeça, mal-estar, o
corpo esquentava e daqui a pouco eu sentia frio, alternando essas sensações a cada 5, 10
minutos (...) uma dor que eu não desejo a ninguém (...) quando eu estava sem eu era
extremamente nervoso, irritado e brigava muito (...) (P30MU)
Eu sentia muito frio, eu suava frio. Eu vomitava, eu chegava a chorar porque eu queria
usar e não tinha (...) eu fiquei numa depressão profunda, era cama o dia inteiro, não tinha
ânimo pra fazer absolutamente nada (...) chegava a puxar os cabelos porque eu sentia
muita dor de cabeça, então, eu puxava os cabelos pra ver se a dor passava (...) (F17FE)
(...) não comia e nem bebia, simplesmente não deixava ninguém dormir porque gritava, eu
sentia muita dor, muita caibrã, muita dor no estômago, gritava de dor e vontade de usar
(...) (E23ME)
(c) Fissura e dificuldade de controlar o uso de crack.
Eu sempre compro 5 de uma vez, depois volto e compro mais 3, acaba e eu falo “é a
última”, pego mais uma, mas não fica na última, 2 hs da manhã ainda é cedo, vou e
pego mais 3, mais 2 e é assim (...) é uma coisa que te faz pegar uma, mas nunca fica em
uma, vai mais uma e outra e outra (...) (M36FU)
Não adianta vc falar “ah, eu estou com 50 contos no bolso, vou pegar uma pedra pra
me dar prazer e pronto”, não adianta, vc vai pegar logo umas 4 ou 5, não tem jeito. Vc
pode ir lá na Espraiada pegar uma pedra, vir de lá pra cá no Detran e fumar ela, mas não
adianta, quando acabar, vc vai pegar o rumo de volta e vai porque ela está mandando
vc ir (...) (PE29MU)
(d) Administração de crack por período ou quantidade maiores do que os
realmente pretendidos.
(...) às vezes tem que usar contra a própria vontade, quantas e quantas vezes eu usei
chorando, as lágrimas descendo e eu falando que não ia usar (...) quantas vezes eu
guardei a minha droga no armário “amanhã eu uso esse tanto”, ia, pegava de novo,
não agüentava (...) (A25FU)
No final, depois que eu tinha 2 a 3 anos de uso, eu não queria mais usar. Eu ia
buscar a droga e voltava chorando, sabia que ia usar, vinha chorando porque sabia que
não queria mais fazer aquilo. Porque depois que usou a primeira, vai usar mais 20, 30 se
tiver, não importa o número, importa que vc tinha que usar e se vc tiver como buscar,
tiver como pegar, vc vai usar (...) (E23ME)
167
(e) Gasto de considerável período de tempo destinado à aquisição ou uso de crack.
(...) troca o dia pela noite, usa a droga a noite toda e durante o dia, que é o horário da
pessoa estar trabalhando, está lá dormindo para recuperar o corpo (...) (C22MU)
Eu uso um dia e pronto, volta tudo de novo, eu me sinto cansado por mais 3 dias (...)
(M22MU)
(...) na época da cracolândia era normal ficar um dia e uma noite fumando e dormir o
outro dia inteiro (...)(F26MU)
(f) Prioridade do uso de crack em detrimento de outras atividades ou obrigações.
(f1) Quanto à família:
Não curtia minha família, meus filhos, minha mulher, minha mãe (...) tem muitas fotos que
eu não estou, hoje eu faço questão de ser o primeiro, mas não tinha atividade nenhuma
com a família, deixei tudo de lado por causa da droga (...) eu vivi 13 anos na droga e meu
filho mais velho tem 13 anos. Eu não vi a infância dele, não vi ele crescer, nem o de 10
anos. O único que vi crescer foi o de 6 anos porque eu fiquei um ano na droga e faz 5 anos
que estou sóbrio (...) (V45ME)
(...) eu vivia totalmente isolado. Minha família entrava por uma porta e eu saia pela outra,
não tinha vida social nenhuma dentro da família, não frequentava nada com a família.
Era uma pessoa isolada de tudo (...) festas, essas coisas, eu não frequentava, ficava
sabendo depois que eles falavam que foram não sei onde, mas eu nunca ia a lugar nenhum
com eles (...) (M31ME)
(f2) Quanto às amizades.
Os verdadeiros amigos somem nessa hora, eles se afastam por ver que a gente está
fazendo uma coisa e não dá ouvido àquilo que eles têm pra falar pra gente, acaba
preferindo ir atrás da droga, preferia buscar aquilo que a droga me oferecia mesmo
sabendo que ia sofrer (...) (E23ME)
Minhas amizades foram destruídas porque eu pensei que as pessoas tinham se afastado de
mim. Aquela rodinha de meninas que brincava de boneca, que dormia uma na casa da
outra, foi destruída. Não foi elas que se afastaram de mim, fui eu que me afastei delas pra
poder usar e me misturar com outra turminha (...) (F17FE)
(g) Uso persistente de crack independentemente de suas consequências.
(...) eu fui acusada de ter abandonado os meus filhos e assinei o artigo 141, se não me
engano (...) dentro desse abandono fui condenada a 2 anos e pagamento de 2 salários
mínimos em regime de detenção fechado (...) (A25FU)
168
(...) fui preso. Quando eu tinha 18 anos, me pegaram com um pedacinho de crack e eu
assinei o artigo 16, nem paguei fiança, me liberaram (...) (A28MU)
Quando eu era pequeno fui preso por fumar crack, quando era maior fui por assalto
também por fumar crack. Duas vezes por causa de crack, uma vez de menor e outra de
maior (...) (F26MU)
169
Resultados (II)
5. RESULTADOS da cidade de Barcelona.
Consideração: Antes de iniciar a descrição dos resultados referentes à cidade de
Barcelona, é importante que seja feita uma consideração para sua melhor compreensão. O
uso de crack aumenta cada vez mais na Espanha e estende-se, lentamente, das
comunidades autonômicas da região sul (Andaluzia) ao nordeste do país (Catalunya).
Atualmente, o uso na cidade de Barcelona ainda não é muito comum, embora esteja em
silencioso crescimento. Assim, ao contatar os informantes-chave deparei-me com intenso
pessimismo quanto ao desenvolvimento do projeto científico, já que acreditavam que o uso
de crack não existia na região. Pouco depois, mais que em função da pouca acessibilidade
à droga em território espanhol, observei que o pessimismo era devido à confusão de
términos com que o crack é comumente reconhecido. Na cidade de Barcelona, a palavra
“crack” não designa a mesma droga que no Brasil. O crack brasileiro, correspondente à
cocaína-base, é reconhecido, na cidade de Barcelona, como basuco. A origem de “basuco”
é procedente da palavra base, fazendo referência à forma da cocaína-base, designando
então, a mesma droga referida por crack no Brasil.
Na Espanha, mais especificamente em Barcelona-Catalunya, o termo crack, em si,
denotaria outra droga, disponível apenas em território norte-americano, consistindo de uma
mescla indiscriminada de substâncias psicotrópicas, cuja dependência foi relatada como
ainda mais severa que a possibilitada por “basuco”. Assim, a confusão de términos foi
importante para sinalizar que, durante as entrevistas, não deveria ser feita menção ao termo
crack, mas sim a “basuco”. Porém, mesmo consciente da diferença, aos representantes da
amostra foi pedido que tentassem diferenciar uma coisa da outra, tentativa ilustrada abaixo
através de fragmentos dos depoimentos:
Crack é uma droga feita nos EUA que não tem nada a ver com basuco. São uns
pedacinhos que se partem e que são aspirados ou que são fumados por cachimbos. Tem
também uma parte de cocaína, mas não tem cocaína, mas outros componentes que o
tornam ainda mais perigoso. Tem heroína e também algo de ácido, de LSD. O crack tem
uma composição totalmente diferente da base ou do basuco. O crack é uma mistura de
muitas outras substâncias, que o fazem muitíssimo mais perigoso e potente (…) (J49ME)
170
A verdade é que basuco é basuco e crack é crack. Basuco nós mesmos o fazemos, o
crack dizem que é mais químico. Eu o usei crack, então não posso te falar nada. Crack
é a pedra, que creio que os conteúdos de amoníaco e produtos químicos sejam mais fortes,
pois produzem maior dependência e em seguida vc está dependente e consumindo. Em
contraposição, a base te deixa menos dependente e também te consome menos embora
acabe consumindo-a (...) (J39ME)
Porém, a confusão foi esclarecida ao se contatar Foros de discussão como os do
grupo de redução de danos Energy Control, que auxiliam os consumidores na
identificação da droga que estão fazendo uso. Através desse, verificamos que crack e
basuco, realmente, tratar-se-iam, da mesma coisa, como ilustrado abaixo:
(...) um dependente de crack ou basuco é um dependente à cocaína, pois o que está usando
é a cocaína numa forma de apresentação diferente, é uma forma diferente do cloridrato de
cocaína e por uma via de administração diferente da aspirada, mas é cocaína no final das
contas (...) (ENERGY CONTROL; www.energycontrol.org).
Assim, uma vez esclarecida a confusão de términos, chama-se a atenção que, nos
tópicos, nos fragmentos dos discursos dos entrevistados, seja feita referência ao crack
como basuco, base, cocaína-base ou pela própria denominação crack, lembrando-se que
todas fazem referência à mesma droga.
5.1. O usuário de crack.
5.1.1 Dados sócio-demográficos.
Assim como na cidade de São Paulo não houve diferença, entre usuários e ex-
usuários de crack, quanto às características sócio-demográficas, de tal forma que foram
descritas e ilustradas em conjunto. Como sintetizado no A
NEXO
4, a maioria dos
entrevistados é do sexo masculino, jovem, de baixa escolaridade e que, no momento da
entrevista, estava em situação de desemprego. Quanto à nacionalidade, a maioria da
amostra é espanhola, residente na comunidade de Catalunya e natural da cidade de
Barcelona, porém, somente alguns dos entrevistados eram imigrantes (ex.: italianos,
marroquinos, portugueses e brasileiros) que mantinham ou mantiveram, o uso de crack na
cidade. Abaixo cada uma das características sócio-demográficas é descrita em detalhes:
171
(a) Uso de crack: No que concerne ao uso de crack, no momento da entrevista, a maioria
dos entrevistados ainda era usuária (U), enquanto que apenas a terça parte da amostra era
ex-usuária (E). Entre os usuários, o tempo de uso variou de 6 meses a 24 anos. Já entre os
ex-usuários, o tempo de uso variou de 3 a 14 anos e o período de abstinência, até o
momento da entrevista, estendeu-se de 6 meses a 3 anos.
(b) Faixa Etária: Os entrevistados são jovens, com faixa etária variando dentro do
intervalo de 22 a 49 anos. Quando separadas em categorias, verifica-se que a distribuição
dos entrevistados é homogênea, não havendo a predominância de nenhuma das faixas
etárias.
(c) Estado Civil: Como observado à faixa etária, a distribuição dos entrevistados foi
homogênea entre as categorias, não havendo a predominância de nenhum dos estados
civis. Dentre os entrevistados “separados”, alguns atribuíram ao uso de crack o principal
motivo à ruptura do matrimônio.
(d) Escolaridade: A maior parte da amostra tem baixo nível de escolaridade, tendo, no
máximo, completado o ensino fundamental ou médio. Em contrapartida, somente alguns
dos entrevistados cursaram o terceiro grau, tendo sido mencionados os cursos de
graduação em teologia, geografia, física e desenho gráfico. Houve relatos de entrevistados
que iniciaram o curso universitário e logo desistiram, seja em função do uso geral de
drogas, não necessariamente de crack, ou não-adaptação ao curso escolhido.
(e) Trabalho: No momento da entrevista, a maior parte dos entrevistados estava
desempregada. Somente alguns mantinham algum vínculo empregatício ou tinham se
aposentado. Entre os desempregados, como complementação da renda, era comum o
desenvolvimento de atividades informais, os “bicos” (ex.: colheita de frutas e verduras;
apresentação de espetáculos de pirofagia e de flauta, etc), ou a participação remunerada em
projetos de reinserção sócio-laboral. Alguns dos entrevistados recebiam seguro
desemprego, pago como parte do sustento àqueles que pouco tempo tivessem cumprido
pena em prisão (o benefício era pago até 2 anos após a data de cumprimento da pena, o que
172
permitia que o ex-detento procurasse tranquilamente por nova fonte de renda dentro do
período mencionado).
(f) Moradia: Quanto à moradia, a maioria da amostra não tinha residência fixa e tampouco
própria, tratando-se de okupas, moradores de rua ou pessoas que viviam temporariamente
em pensões ou hotéis. Os “okupas” são pessoas de baixa classe socioeconômica,
imigrantes ou não, que como não tem condições financeiras suficientes para estabelecer
residência fixa, ocupam edifícios ou casas abandonadas. Fazem-no geralmente em grupos
(de até 13 pessoas), constituindo ambientes onde o uso de drogas acontece de forma livre e
desimpedida.
5.1.2 Histórico do consumo de drogas.
5.1.2.1 Histórico geral do consumo de drogas.
(a) Número de drogas consumidas: O número de drogas usadas com fins de abuso é
relativamente alto, havendo citações de até 11 por um mesmo entrevistado. Na contagem,
as diferentes vias de administração de uma mesma substância não foram consideradas
como drogas isoladas e a metadona, opiáceo sintético empregado no tratamento da
síndrome de abstinência à heroína, foi considerada como droga de abuso, que muitos
dos entrevistados usavam-na com fins paliativos aos efeitos de crack. Embora investigada
a seqüência de consumo, muitas das drogas são usadas simultaneamente, com fins
específicos, caracterizando o usuário de crack, da cidade de Barcelona, como um
P
OLIUSUÁRIO
, assim como feito à cidade de São Paulo.
(b) Primeira droga: Quase todos os entrevistados iniciaram o uso de drogas através do
cigarro ou álcool. Somente alguns relataram ter iniciado o histórico por intermédio do uso
de outras drogas, a citar, inalantes e heroína (via aspirada).
(c) Heroína: Diferentemente da cidade de São Paulo, em Barcelona, quase todos os
entrevistados citaram o uso, na vida, de heroína, dentre os quais, a metade o fez depois de
iniciado o uso de crack.
173
(d) Metadona: Em virtude do uso prévio de heroína, metade dos entrevistados, em algum
momento da vida, foi submetida à terapia de substituição por metadona. Como
anteriormente mencionado, a metadona é um opiáceo empregado como substituto no
tratamento da síndrome de abstinência à heroína. A dose máxima prescrita de metadona é
estabelecida conforme a dose diária de heroína ingerida pelo indivíduo, de tal forma que a
cada 50 mg de heroína é prescrita 1mg de metadona. Após iniciada a terapia com
metadona, o uso de heroína é descontinuado, de tal forma que, se detectado, por
intermédio de testes sanguíneos ou de urina, o tratamento é interrompido. Com o tempo de
uso, dá-se início ao processo de retirada da metadona, em que os pacientes são solicitados
a diminuir, de forma lenta e gradual, a dose diária do medicamento. Embora o processo
seja deixado a critério do paciente, recomenda-se que diminua 5 mg de metadona a cada
15 dias. Considerando-se que, por si , a metadona cause dependência, o processo de
retirada é árduo, pois, embora numericamente insignificante, a retirada quinzenal
proporciona consideráveis alterações físicas e emocionais ao paciente. Assim, pacientes
que estão sob terapia 20 anos, em função da dificuldade de descontinuá-la. Porém, tão
difícil quanto à interrupção do uso é a adaptação aos efeitos do medicamento. Tratando-se
de um opiáceo, é comum que o paciente sinta intensa sonolência diurna, o que impede o
desenvolvimento satisfatório de suas atividades diárias, interferindo, de forma geral, sobre
todos os aspectos de sua vida. Em virtude da dificuldade de adaptação ao medicamento e à
interrupção da terapia, era de se esperar que todos os entrevistados, que tivessem feito
uso de metadona na vida, demonstrassem ponto de vista negativo a respeito do
medicamento.
Comecei o tratamento com metadona para deixar a heroína, mas a metadona é um
engano, porque se soubesse o que era metadona, não me metia nisso. A metadona é 3 ou 4
vezes mais viciante” que a heroína e com a metadona eu fico todo o dia como um
“babaca”, toda hora com sono (...) (AG37MU)
A metadona é um “engana bobo” porque vc se vicia e pra sair precisa de 2 ou 3 anos
porque precisa tirá-la pouco a pouco, não pode tirá-la de imediato. E é um “engana
bobo” porque é como ter heroína, mas como líquido (...) (A32ME)
Deixei a metadona 2 anos e não quero mais saber de metadona na minha vida, é a pior
droga que inventaram. Não coisa pior que viciar uma pessoa e deixá-la dependente,
porque ao consumir metadona vc continua usando heroína (...) a metadona é o que o
Estado quer, porque assim sempre sabe onde vc está e tem como te controlar. (J24FU)
174
Além das dificuldades de adaptação e interrupção do uso, somente alguns dos
entrevistados relataram a intensificação do uso de outras drogas após iniciada a terapia
com metadona. Dentre as drogas, citam a estreita relação de uso entre metadona e cocaína
(seja na forma de cloridrato ou crack), já que o uso de cocaína é iniciado ou retomado após
o início da terapia, por 2 motivos especiais, a citar: (a) substituição da heroína como droga
de escolha e (b) desenvolvimento de manias, de fundo físico ou psíquico, como a
“agulhite”, na época de uso da heroína, ilustradas abaixo em detalhes.
Substituição da heroína como droga de escolha ou de preferência.
Sob a terapia de metadona, o uso recreacional de heroína é interrompido. Como,
entre os entrevistados, o histórico de uso de drogas é longo, é comum relatarem que, ao
descontinuarem o uso de heroína, sintam-se emocionalmente “vazios” quando “sóbrios”,
sensação que os incomoda, despertando-lhes a necessidade de consumir outra droga que
possibilite não apenas o alívio da sensação, mas fugir da realidade. Como não podem dar
continuidade ao uso de heroína, os recursos financeiros antigamente empregados à sua
aquisição são investidos na compra de outra droga, comumente a cocaína, seja na forma de
cloridrato ou crack.
Vc se sente à vontade com metadona. Não uso heroína porque tenho metadona, então
uso cocaína. O que está acontecendo agora é que todos que conheço, que tomam
metadona, usam cocaína fumada ou pela veia (…) com a metadona não precisa mais de
heroína, mas como vc gosta de se drogar, então começa a usar cocaína. Pra mim a
metadona é a pior coisa que poderia acontecer porque vc pára com o uso de heroína, mas
te leva ao vício de coca e é por isso que a metadona é inútil, é um jeito de te controlar,
mais nada (...) (J24FU)
Porém, entrevistados que passaram a usar cocaína ao perceberem que, o uso
continuado de heroína, após iniciada a terapia com metadona, não gerava os mesmos
efeitos de “bem-estar” que previamente. Como tem efeitos semelhantes, a metadona passa
a “mascarar” os efeitos da heroína, de forma que a dose de heroína devesse ser aumentada,
alternativa nem sempre viável, já que é alto o custo da droga na cidade de Barcelona.
Assim, a substituição de drogas é vista, nesse caso, como a melhor alternativa a ser
adotada.
175
(…) com heroína precisa usar uma quantidade que não te deixaria buscar a vida, porque
precisa usar mais heroína (que o normal) para tirar o efeito da metadona. Porém, com 1
grama de cocaína vc pode funcionar, vc percebe diferença, com heroína não. Comprei
10 mil pesetas de heroína, tomando metadona, e não me fez absolutamente nada.
Entretanto, se compro 10 euros de cocaína me faz (...) com cocaína eu percebia que me
“drogava” e com a heroína não (...) (J43ME)
Pra mim, começar com metadona foi sair de uma coisa para passar para outra (…) a
primeira coisa que te passa pela cabeça é que se compra um papel de heroína, como
toma metadona, acaba não sentindo nada, então o que fazer (…) vou usar cocaína (…) e é
simplesmente a cabeça (…) sempre que tem problemas acaba se refugiando na droga.
(V24FE)
Desenvolvimento de manias de fundo físico ou psíquico.
Somente alguns dos entrevistados faziam uso de heroína injetável e relataram ter
agujite (agulhite), ou seja, fixação à agulha, sensação que lhes proporciona prazer. Quando
submetidos à terapia de substituição por metadona, impossibilitados de continuar o uso de
heroína, passaram a injetar-se com outra droga que pudesse cumprir com a sensação
desejada. A cocaína é, geralmente, a droga de escolha que acaba possibilitando-lhes essa
satisfação, de tal forma então que seu uso é iniciado ou retomado.
Depois da metadona comecei, novamente, a injetar-me cocaína pelo vício à agulha. Faz 2
anos e meio que me inscrevi no programa de metadona e fazia 5 anos que estava
consumindo heroína injetada e nunca havia estado sem drogar-me (...) não soube resistir,
então tinha que usar alguma coisa (...) como não percebia os efeitos de heroína, comecei
de novo com cocaína. (L22MU)
5.1.2.2 Uso de outras formas de apresentação da cocaína.
Além de crack, todos os entrevistados fizeram, na vida, uso de outras formas de
apresentação da cocaína. A maior parte da amostra iniciou tal uso através do cloridrato de
cocaína (via aspirada), progredindo posteriormente às demais vias. As possíveis transições
de uso entre os derivados da cocaína são mencionadas, descritas e ilustradas a seguir:
(a) Aspirada à Fumada: Um terço dos entrevistados iniciou o uso de cocaína através do
cloridrato (via aspirada), progredindo imediatamente à via fumada (crack). Nesse caso,
nunca fizeram uso, na vida, de cloridrato por via endovenosa e tampouco o uso de drogas
injetáveis, seja por receio de agulha ou pelas complicações físicas e de saúde decorrentes
176
de seu emprego. Quanto à razão da transição, os relatos são unânimes ao especificar que, à
medida que o uso de cocaína intensifica-se, a diminuição dos efeitos agradáveis
(tolerância) associada à intensificação dos efeitos desagradáveis ou negativos
(sensibilização). Para compensar essa perda, é comum que aumentem a dose usada de
cocaína, de tal forma que, muitas vezes acabam por complicar a dependência sem,
necessariamente, resolver o problema. Assim, o crack surge como a alternativa para que o
uso de cocaína seja, novamente, associado ao “bem-estar”, não sendo mais cumprido
apenas como satisfação da dependência pela droga. Interessante notar que, após sua
experimentação, a via fumada torna-se a via de preferência em decorrência da maior
intensidade e rapidez de início dos efeitos de agradáveis ou de prazer, diminuindo ou
substituindo o uso pela via aspirada.
Provei cocaína com 18 anos e o fazia nos fins-de-semana. Era genial. Tirava-me o
cansaço, me sentia super aberta, me tirava a vergonha, falava com todo mundo, podia ir
até o fim do mundo. Como eu gostava tanto comecei a fazer com mais freqüência e chegou
um momento que usava diariamente, chegava no trabalho com cocaína até a cabeça. Até
que começou a fazer outro efeito, não notava mais nada de especial, fazia por rotina.
Era uma época muito ruim porque me sentia uma boneca, um robô, que fazia por sistema
e não me dava mais nada de bom. Chegou um momento que fazia mal, de não fazer bem
nem mal passou a fazer muito mal. Ficava ansiosa, meu coração ia a mil, uma sensação
de muita angústia. Então, um dia me deram a base para provar, provei-a, me senti bem e
habituei-me a fumá-la. Agora uso cocaína uma vez ou outra, mas prefiro fumá-la (...)
(M23FU)
(…) quando comecei a cheirar valia a pena, mas depois quando fui consumindo muito me
deu ansiedade porque quando acaba pensava que era o fim, que teria que fazer o que
fosse para conseguir mais. Então decidi começar a fumar basuco pra ver se a ansiedade
durava menos tempo (…) ficava menos tensa com o basuco do que cheirando. No final,
cheirando ficava nervosa, começava a ter paranóias e o basuco não tem feito nada disso
até o momento (...) com cocaína eu tenho sido paranóica e com basuco nunca (…)
(S27FU)
Outro inconveniente associado ao uso aspirado de cloridrato de cocaína é o fato de
que, a longo-prazo, gera uma série de complicações físicas ao usuário, entre elas,
irritações, sangramento da mucosa nasal e rompimento do septo que, juntamente às
motivações anteriores, acabam por incentivar a transição entre as vias.
(…) eu deixei a cocaína cheirada porque eu rompi o septo e não pude mais cheirar, pois
no final sangrava muito. (N45FE)
177
(b) Aspirada-fumada-injetada e Aspirada-injetada-fumada: Tais alternativas de
transição não são distintas em termos das motivações a elas subjacentes, porém, tem-se
claro que a inserção da via injetada, seja ela em que ordem for, está associada ao uso
prévio, na vida, de heroína injetada. Após a experimentação da via endovenosa (injetada),
a maioria dos entrevistados passa a preferi-la, por uma série de razões, a citar: (a) efeitos
agradáveis ou de prazer mais intensos, acompanhados de efeitos negativos mais brandos;
(b) comodidade de uso (não rituais específicos, tampouco árduos, para o preparo e
consumo da droga); (c) satisfação do prazer associado a manias, de fundo físico ou
psíquico (ex.: agulhite) e, finalmente (d) por tratar-se da melhor alternativa de uso caso o
emprego de crack seja impossibilitado, como acontece, por exemplo, na presença de
doenças pulmonares.
(…) eu me injetava, fazia a base vez ou outra, mas era mais injetada até que me vi
dependente da agulha e meu uso era habitual, 3 ou 4 gramas por dia de cocaína injetada
(…) sempre gostei muito da fumada porque evitava a violência da agulha, mas a
sensação, uma vez que prova a cocaína injetada, é maior quando se injeta. Se a cocaína
era boa preferia injetá-la. Estive muitos anos fumando a base, mas durante os poucos
meses que estive injetando-a, preferia injetá-la que fazer a base. O que sente é imediato,
muito mais potente e prazeroso (…) deixei de fazer base para somente injetá-la. (J39ME)
Depois da cocaína injetada eu fazia o uso de basuco de vez em quando, alguma vez que
vinha um amigo e pronto. Porque tem que preparar e tem que estar sozinho (…) e um pico
(ato de injetar-se) faz mais rápido que basuco, que não preciso estar com a colher
esquentando a cocaína para fazer basuco (...) com a injetada preparo rapidamente uma
dose e é mais rápido (...) (AG37MU)
Em contrapartida, entrevistados que apenas experimentaram a via endovenosa,
optando e substituindo-a por crack, seja pela intensidade e rapidez de início dos efeitos,
pelo controle sobre o uso ou pela segurança, em termos de saúde, do emprego da via
fumada.
(…) já as deixei (cocaína aspirada e injetada) porque a euforia que dava (com crack) era
mais rápida, era como uma bomba, é direto (…) a injetada é perigosa, porque além de te
contagiar pode te dar um “flash” muito forte no coração. A fumada vc controla mais
porque vai fumando pedrinha por pedrinha (...) (A32ME)
(…) eu deixei as outras. É claro que havia uma preferência por basuco porque a sensação
que dá, embora muito curta, é mais prazerosa (…) é uma sensação que vc gosta (...)
(C46MU)
178
(c) Há outras transições em que a participação da via aspirada, não acontecendo como a
primeira via de uso (injetada-fumada-aspirada e fumada-aspirada-injetada). Em
outras, a experimentação da via aspirada tampouco é relatada, sendo iniciado o uso pela
via fumada (fumada-injetada) ou injetada (injetada-fumada). A razão subjacente à
existência dessas 4 transições é difícil de ser compreendida, parecendo acontecer
aleatoriamente.
5.2 O uso de Crack na cidade de Barcelona.
5.2.1 Acessibilidade e Distribuição.
A maioria dos entrevistados desconhece pessoas ou lugares, na cidade de
Barcelona, que vendam o crack pronto para uso, admitindo que o próprio usuário necessite
prepará-lo.
Basuco pronto (…) aqui vc tem que prepará-lo. Aqui, pelo menos eu, não conheço
nenhum lugar que venda o basuco feito, precisa comprar cocaína e prepará-lo.
(C46MU)
(...) mas aqui em Barcelona não. Aqui vc precisa prepará-lo, não o vendem feito, a não ser
que seja um amigo seu que a tenha preparado e quisesse presenteá-lo, mas não se vende.
(N45FE)
Porém, como muitos dos entrevistados são naturais ou passaram por outras
comunidades espanholas, relataram a existência do tráfico de crack em regiões como
Valência, Madrid, Andaluzia e Ilhas Canárias. Nessas, o tráfico acontece sob os mesmos
moldes descritos à cidade de São Paulo, de tal forma que o crack seria comercializado
na forma de pedras e em papelotes ao custo aproximado de 5 a 10 euros (entre 13 e 26
reais). Destaca-se que em Madrid e Valência regiões destinadas ao livre comércio e uso
de drogas, não específicas a crack, denominadas, respectivamente por “Las Barranquillas”
e “Las Cañas”.
Em Valência um lugar chamado Las Cañas. Tem uns caras que te vendem as bolas já
prontas, de 5 e 10 euros (…) vc já as tem preparadas, de heroína, de coca, do que vc
quiser, a base pronta ou por fazer, depende de como vc a use. São pedras, mas vêm como
bolas. São 2 tragos e depois outro e depois se acaba. Se a coca é boa é preferível que
vc mesmo faça a base, mas muita gente que não quer fazê-la porque não sai legal ou
179
porque demora muito. Se a pessoa está ansiosa pra fumar, então acaba preferindo
comprá-la já pronta, por isso que há a moda de vendê-la (...) (A32ME)
Em Madrid os povoados das Barranquillas e outros povos ciganos e várias casas na
zona de Lavapies” e “Malasaña”. Em Madrid, compra-se em povoados e o gramo de
base te custa o mesmo que o gramo de cocaína em pó, ou seja, 50 euros, o que é muito
estranho porque no processo de preparo perde-se parte da substância, mas é assim (...)
(R25FU)
dois anos atrás, na cidade de Barcelona, existia “Can Tunis, região semelhante
às anteriormente mencionadas, que, por medida policial deixou de existir, de tal forma que
o tráfico que nela se concentrava se dispersou a outras regiões, entre elas a “Passeig de
Zona Franca”. Sabendo de sua existência, acompanhado de um ex-usuário de crack,
realizei trabalho de campo na região, no dia 19.01.06. Infelizmente, nada foi observado,
que, em decorrência da abertura de um quartel militar na região, houve forte repressão ao
tráfico, dispersando-se novamente para outras regiões que até então não eram totalmente
conhecidas. Abaixo, o encontro é ilustrado através de passagem específica do diário de
campo. Para manter em sigilo a identidade do ex-usuário que atuou como informante-
chave, a ele faço referência como F:
(EC – Passeig de Zona Franca: 19.01.2006 – 16h) Hoje agendei um encontro com F, que
me conduziu até a Passeig de Zona Franca, segundo ele, região de livre comércio e uso de
drogas, situada no centro da cidade de Barcelona. F trabalha como informante-chave para
o “Grupo Igia”, organização estatal destinada ao estudo e reflexão de temas ligados ao uso
de drogas psicotrópicas. Encontrei F em frente à sede do Grupo Igia e nos dirigimos até a
Passeig de Zona Franca. Ao chegarmos lá, eram 16h e não havia ninguém, as ruas que
conforme F eram repletas de pessoas, 24h ao dia, estavam vazias. Os apartamentos e
edifícios indicados como pontos de venda pareciam vazios, senão abandonados, e nem
sinal das filas que F mencionou que se formavam na frente desses pontos de venda por
usuários ávidos pela droga. Durante a caminhada pela região, que durou cerca de 2h,
encontramos portas fechadas e ruas desertas (...) segundo F, 3 meses, havia aberto um
quartel militar na região e com a repressão policial, o tráfico, pouco a pouco, foi migrando
para outras regiões da cidade (...) ao caminhar, aproveitei para procurar por resquícios do
uso de injetáveis ou de cachimbos de crack, mas, por incrível que pareça não havia
absolutamente nada (...) por termos caminhado por toda região e pela falta de movimento,
decidimos ir embora (...)
Embora incomum, entrevistados que presenciaram ou souberam a respeito da
venda de crack na cidade de Barcelona. A droga é comercializada em semelhança às
demais cidades espanholas, ou seja, em pedras (papelotes), porém, o custo é mais elevado,
180
de tal forma que cada papelote é comercializado por 5 a 50 euros (entre 13 e 130 reais).
Porém, o tráfico de crack ainda não acontece de forma explícita e tampouco em zonas
específicas da cidade de Barcelona, de tal forma que vem crescendo lenta e
silenciosamente, que muitos dos usuários ainda o desconhecem. Conforme os
entrevistados que já o presenciaram, o tráfico parece estar restrito, até o presente momento,
a pequenos apartamentos, as denominadas “casas baratas”, que funcionam como uma
“boca de fumo” específica a crack, de livre comércio e uso.
Eu nunca comprei a base feita, mas tenho conhecidos que entraram em apartamentos
onde a base já estava feita, só tinham que pagar, não sei se 6 ou 12 euros, então
colocavam a pedra pra eles e era só fumar (…) (J39ME)
Sim, posso encontrá-lo feito, mas é muito difícil (…) encontra-se como uma pedra
branca de 5 ou 10 euros, dependendo da medida (...) (M28MU)
5.2.2 Preparo de crack.
Como mencionado, poucos foram os entrevistados que presenciaram ou
soubessem a respeito da existência do tráfico de crack na cidade de Barcelona. Assim, para
cumprir com o uso, a maioria da amostra afirmou preparar a própria droga. O
procedimento é dito simples e parte sempre do cloridrato de cocaína (pó de coca) como
matéria-prima, dependendo seu sucesso da destreza manual do preparador, já que qualquer
descuido a inutiliza. Em uma colher ou qualquer outro objeto de metal apropriado,
adiciona-se o cloridrato de cocaína e água, seguido de amoníaco ou bicarbonato de sódio,
cuja escolha é feita pelos usuários, baseando-se, na maioria das vezes, em critérios
subjetivos. A mistura é aquecida até que se forme uma substância oleosa. É a partir desse
momento que a água é retirada, de tal forma que o material solidifica, tomando o aspecto
de pedra e, finalmente do crack em si. O preparo segue passos como se tratasse de uma
“receita de bolo”, tendo sido abertamente divulgada entre usuários, em foros de discussão
de grupos de redução de danos, como ilustrado abaixo:
Pra começar, pegamos uma colher e nela depositamos o pó branco (o cloridrato de
cocaína que, dependendo da pureza e do processo de elaboração, pode ser algo
amarelado). Por cada vez de uso, empregue no máximo 1 g de pó e no mínimo 0,5g. Se vai
utilizar amoníaco, adicione de 5 a 10 gotas sobre o pó (dependendo da quantidade) e caso
utilize bicarbonato de sódio, ponha aproximadamente a quinta ou sexta parte do volume
181
de cocaína que esteja na colher e adicione de 8 a 12 gotas de água. A partir daqui o
procedimento é igual para ambos os casos. Mantenha a colher no ar com a mão esquerda
enquanto que com a direita acenda o isqueiro abaixo dela para esquentá-la. Vc verá que
começará a esquentar e vai se formando uma gota de óleo no centro da colher. Se ferver
demais, apague o isqueiro, espere 5 ou 6 segundos e continue a operação até que a gota
esteja completamente formada. Melhor que passe alguns segundos do que impedir que a
coca cozinhe. Com extremo cuidado adicione água fresca à colher. Com a ponta de uma
faca mexa a gota de óleo que esteja no centro da colher, de tal forma que restem pequenas
gotas soltas. Ainda com a faca faça com que as pequenas gotas formem uma única gota.
Pouco a pouco verá que a gota vai se solidificando ao redor da ponta da faca. A água
pode ser tirada inclinando-se a colher sobre un pano ou papel. Uma vez solidificada, tire
toda a água da colher e verá que parte da cocaína cozida ficará grudada na faca e outra
parte na colher. Volte a tirar o excesso de água, trocando por água fresca, voltando a
molhar bem as pedras e retirando novamente a parte líquida. Repita a operação mais uma
par de vezes para que retire todos os resíduos de amoníaco caso tenha-o usado. Agora vc
tem a cocaína cozida, isso é a base. Precisa ter em teu poder uma ou várias pedras
brancas, de cor semelhante ao gesso, mas ainda mais duro. Se tem cor de osso ou
amarelada, não se preocupe, podem ser os aditivos que a cocaina leva consigo ou do
ácido usado no processo de elaboração de origem. Deixe as pedrinhas sobre um jornal ou
papel secante para que sequem por alguns segundos. (ENERGY CONTROL:
www.energycontrol.org)
Como já dito, o crack pode ser preparado através do uso de bicarbonato de sódio ou
amoníaco e a escolha do reagente depende, exclusivamente, de critérios subjetivos do
usuário. Dentre os que elegeram o bicarbonato de sódio basicamente uma razão
subjacente à escolha. O bicarbonato é dito o reagente mais limpo, não interferindo nos
efeitos psíquicos de crack e tampouco gerando problemas à saúde. Para esse grupo, o
amoníaco, por si só, geraria efeitos psíquicos, além de ser, potencialmente, pior ao estado
de saúde do usuário.
O bicarbonato é muito mais limpo. Com amoníaco vc precisa “limpar” a cocaína com
água e nem sempre vc faz isso e o amoníaco também te “droga” ao fumar a base. O gosto
com amoníaco também é diferente e o efeito te sobe mais à cabeça. Com o bicarbonato é
muito mais limpo, mais tranqüilo. Com o amoníaco vc acaba se estressando um pouco
porque vc tem a química do amoníaco na cabeça. Se vc está acostumado a cheirar esmalte
vc percebe que no final usar amoníaco é igual (...) com amoníaco rende mais, mas com
bicarbonato sai muito melhor. (D24MU)
Eu tenho feito sempre com bicarbonato e continuarei fazendo. O amoníaco me nojo
de sentir o cheiro. Quando vc fuma basuco é muito forte e o sabor vontade de
tossir, então imagino que com o amoníaco tenha que ser pior (...) e vc pensa que tudo isso
182
vai para seus pulmões, então, a longo-prazo, a cocaína feita com amoníaco destrói os
pulmões (...) (M23FU)
Em contrapartida, inúmeras são as razões à escolha do amoníaco como reagente,
dentre as quais se destacam: (a) uso mais rendoso: partindo-se de igual quantidade de
cloridrato de cocaína, o uso de amoníaco é considerado como mais rendoso que o de
bicarbonato, gerando maior quantidade de crack. Não foram especificados os motivos ou
meios através dos quais o bicarbonato “desperdiçaria” o cloridrato de cocaína; (b) preparo
rápido e fácil manejo: o uso de amoníaco é mais rápido e cômodo, que é difícil definir e
acertar a dose necessária de bicarbonato de sódio. Além disso, o manejo de bicarbonato é
mais árduo. Em seu emprego, na colher, formam-se várias gotas oleosas que devem ser
unidas uma-a-uma, já com amoníaco formar-se-ia uma única gota, de aspecto central,
dispensando esforços extras e, finalmente, (c) sabor agradável: diz-se que o crack
preparado com amoníaco tem sabor mais agradável que quando empregado o bicarbonato
de sódio.
Uso mais rendoso.
Com amoníaco sobra mais, “come” menos a cocaína. Com o bicarbonato te sobra menos
porque “come” mais a coca (...) se a cocaína é ruim te sobra pouco com os dois, se é boa,
melhor com amoníaco. (L22MU)
Com bicarbonato não sai igual (...) com amoníaco a base sai mais limpa, mais pura e sai
maior quantidade (...) durante o preparo o bicarbonato fica grudado na colher. Se não
tem amoníaco vc usa bicarbonato, mas eu prefiro amoníaco, é mais limpo e é melhor.
(AG37MU)
Preparo rápido e fácil manejo.
(…) eu sempre fiz com amoníaco porque era mais rápido (...) com bicarbonato vc
precisava juntar as gotinhas que se soltavam, que é a mesma coisa com amoníaco, mas é
uma gota grande, então com o bicarbonato vc ia deixando gotinhas por todas as partes e
por isso acabava demorando mais (...) com amoníaco fazia de imediato e com bicarbonato
demorava muito mais, gotinha a gotinha (...) (V24FE)
A princípio fazia com bicarbonato, mas depois passei para o amoníaco (...) porque o
amoníaco é mais cômodo, com bicarbonato vc tem que pesá-lo, tem que calcular a
quantidade exata de bicarbonato que põe e não pode passar (...) e com bicarbonato sai
pouca base, de 1g sai muito pouco (...) (N45FE)
183
Sabor agradável.
(…) eu usava mais amoníaco, o bicarbonato deixa um sabor que eu não gostava. Porque
uma das coisas que te vicia é o sabor que te deixa na boca, na garganta, é um sabor muito
especial ao que vc acaba se viciando (...) o gosto com amoníaco me encanta (…) (J30ME)
Ainda conforme os entrevistados, o preparo de crack a partir do cloridrato de
cocaína tratar-se-ia de um procedimento de purificação, que eliminaria do cloridrato parte
das impurezas adicionadas pelo traficante, de tal forma que 1 g de cloridrato de cocaína
não resultaria, necessariamente, em 1g de crack. Assim, não é rara a referência a crack
como a forma mais pura ou a pureza da cocaína”. O grau de pureza do crack é
entendido como o rendimento do processo, sendo mencionados rendimentos que variam
dentro da faixa de 20 até 97%, dependendo tal da qualidade do cloridrato de cocaína
empregado no início do procedimento. Esse ponto de vista é ilustrado tanto pelos discursos
dos entrevistados quanto por “receitas” disponíveis em foros de discussão em sites de
centros de redução de danos (Energy Control), como segue abaixo:
Pega-se uma colher sopeira e põe-se 1g exato de cloridrato de cocaína (para isso, vc
precisa de uma balança de precisão 0.0000, não vale uma balança comum). Depois de
adicionado o amoníaco, espera-se a mistura secar. O resultado se pesa. Por exemplo, se
partimos de 1000 mg de cloridrato de cocaína, depois de completamente seca, restam
870-900mg de base. Assim, é feita a conversão e se diz que a base tem, aproximadamente,
entre 85%-90% de pureza. Logicamente que não se tira todas as impurezas, mas
considerando-se que se trata de uma cocaína que passou pelas mãos de, pelo menos, 2
pessoas e como traz muitos aditivos do país de origem, esse valor está bastante
aproximado (...) (ENERGY CONTROL; www.energycontrol.org).
A base é a pureza da cocaína sem nenhum elemento adicionado. Ao prepará-la, ao fazê-la
com amoníaco, ao colocá-la no fogo, tudo o que tenham adicionado de adulterantes
desaparece. Se comprou 1g, te sobra a metade porque toda a porcaria que tenham
colocado desaparece, mas esse 0,5g que sobrou é puro (...) (J49ME)
(…) na verdade depende da cocaína. Se a coca é boa sai 0,9, se é ruim sai 0,4. Ou seja,
partindo de 1 g de cocaína boa vc pode tirar 0,9g de base. Não é que de 1g de cocaína
terá 1g de base. Tem cocaína de merda que sai só 0,5 g de base (...) (D24MU)
De forma geral, independentemente do reagente empregado e do rendimento, fica
claro que o preparo de crack, mais que um procedimento, é considerado como um ritual.
Muitos dos entrevistados relatam seguir sempre os mesmos passos, com o mínimo de
mudanças ou interferências. Conscientes de sua importância e do prazer a ele associado
184
dedicam longo período de tempo à sua execução. A satisfação associada ao ritual é tão
significante que deixa “marcas” na vida do usuário, de tal forma que, com o passar do
tempo, sua simples recordação, por si só, é capaz de evocar os efeitos de crack. Assim, se
considerados a longo-prazo, o ritual de uso e suas “pistas” correspondem a importante
obstáculo à recuperação do usuário de crack, dificultando o sucesso de uma possível
abordagem terapêutica ou de redução de danos.
(...) eu tinha o papelote de cocaína nas mãos, a preparava e com isso eu era feliz. Fazia
isso sozinho em casa, pegava um filme pornô, preparava todas as quantidades que ia usar
e começava, e nesses 40 minutos de preparo eu era feliz. Esse ritual também é complicado
de esquecer porque pra mim era um prazer (...) (J30ME)
Como dispunha de grandes quantidades de cocaína era um imenso prazer cozinhá-la, me
encantava cozinhar a cocaína. Encantava-me colocar-me em cima da mesa com minhas
colheres, facas e garfos para cozinhar a cocaína, fazer a base e fumá-la. Eu passava
horas, ficava deitado no chão com as pedras feitas e com a garrafa ia fumando (…)
(J39ME)
5.2.3 Formas de Uso de Crack.
5.2.3.1 Cachimbo de água.
Feito o crack, necessita-se de aparato especial para fumá-lo, que se trata,
geralmente, de cachimbos. Em semelhança à cidade de São Paulo, os cachimbos são
artesanalmente preparados, com exceção de alguns dos entrevistados que citaram o
emprego do cachimbo de vidro, vendido por lojas especializadas ou fornecido por centros
de redução de danos da cidade. Na cidade de Barcelona, quando artesanal, a principal
matéria-prima usada para confecção do cachimbo são garrafas de plástico, de água ou
refrescos, de tamanho grande ou pequeno. É também comum o emprego de outros
recipientes, geralmente os envoltórios de plástico de metadona e tranqüilizantes,
fornecidos gratuitamente pelos centros de saúde e redução de danos da cidade. Como os
usuários preenchem as garrafas e demais recipientes com água, o cachimbo, na cidade de
Barcelona, é referido por C
ACHIMBO DE
Á
GUA
(F
IGURAS
4
E
5). Como anteriormente
mencionado ao procedimento de preparo de crack, em foros de discussão disponíveis em
sites de grupos de redução de danos (Energy Control), encontrou-se receita empregada ao
preparo, passo-a-passo, do cachimbo artesanal, como segue abaixo:
185
Pega-se uma garrafa vazia e logo abaixo da tampa,
exatamente onde começa a estreitar-se, faz-se um
furo com um cigarro aceso. Rapidamente, introduz-
se um tubo nesse furo, podendo ser um cilindro de
plástico (como o da caneta BIC, por exemplo),
atravessando-o, de tal forma que o tubo fique
ajustado ao buraco. Para comprovar o ajuste feche a
boca da garrafa com uma mão e assopre dentro da
garrafa pelo tubo. Se escapar ar, o tubo deve ser
tirado e envolvido com papel ou plástico para que
seu diâmetro seja aumentado e a diferença quanto ao
diâmetro do furo seja diminuída. Encha a garrafa
com água até 1 ou 2 centímetros abaixo do nível do tubo. A garrafa precisa estar cheia de
água até a metade ou dois terços, dependendo de sua capacidade e forma. Corte um
pedaço de papel alumínio uns 4 centímetros maior que o diâmetro da boca da garrafa,
que deve ser colocado sobre sua abertura superior, apertando-o com um pedaço de
esparadrapo ou elástico. Se usado um elástico, deve ter-se a precaução de ajustá-lo, mas
sem pressioná-lo muito, pois o calor do isqueiro pode deformar o cachimbo. Com uma
agulha de costura faz-se furinhos sobre o papel de alumínio, não muito perto de sua
borda. Não faça poucos furos e tome cuidado para que o papel alumínio não se rasgue
(ENERGY CONTROL; www.energycontrol.org).
Assim como na receita acima mencionada, os mesmos passos são ilustrados
pelos discursos dos entrevistados:
(…) pegava uma garrafa de 1,5L, a enchia de água até meio litro e com um cigarro fazia
nela um buraco e nele colocava o tubo de uma caneta, o partia na metade e colocava nele
uma fita para encaixá-lo perfeitamente no buraco do cigarro pra não perder nada. Porque
se houver algum espacinho entre o tubo e o buraco do cigarro haverá perdas (se não está
muito bem vedado), então perderá muito da cocaína. Deve-se fechar bem a garrafa e
prender o papel alumínio com um elástico para que faça boa pressão. Com uma agulha de
costura furava o papel alumínio e por cima colocava as cinzas. Colocava sobre a cinza
um pedacinho de cocaína, queimava-o com isqueiro e absorvia a fumaça através do tubo
da caneta (...) garrafas pequenas, sem água, com tubo maior ou menor, depende muito
do usuário (...) a parte da garrafa em que não havia água se enchia com uma fumaça
branca e é isso que se fuma (...) é preciso trocar as cinzas também. Dá-se 2 ou 3 tragos e
depois troca-se as cinzas, joga-se fora as velhas e coloca novas (...) (J30ME)
Ao se ter o crack em mãos e preparado o cachimbo, dá-se início ao procedimento
de uso. Novamente, na Internet, nos foros de discussão, disponibilizou-se a usuários, que
nunca tivessem feito uso na vida de crack, uma receita, passo-a-passo, que os guiasse na
primeira vez de uso, conforme abaixo ilustrado:
F
IGURA
4:
O
cachimbo de água.
186
“Fumando pela primeira vez”: Quebre a pedra de crack até obter um pedaço do
tamanho de uma lentilha. Com um pedaço de papel pegue cinzas de cigarro limpas, dos
pedaços que caem inteiros, que não estejam sujas e tampouco aquelas enegrecidas de
quando se apaga o cigarro. Coloque-as sobre o papel alumínio, previamente furado, até
que seja feita uma camada de cinzas de aproximadamente 1 mm. Em cima dessa camada
coloque a pedra de basuco previamente preparada. Pegue a garrafa com a mão esquerda
e ponha o tubo na boca. Com a mão direita pegue o isqueiro e esquente a pedra. Ponha-o
ligeiramente inclinado, de ponta cabeça, de forma que não queime os dedos e aproxime-o
da pedrinha, para que o fogo toque-a. Comece a aspirar e verá como a câmara de ar do
cachimbo enche-se de uma fumaça espessa e branca. Apague o isqueiro quando vir que
não vai consumir e consuma a fumaça que resta na garrafa. Agora, segure a fumaça em
seus pulmões por alguns minutos, o máximo que possa, sem engasgar-se. Se a pedra o
foi consumida completamente, a próxima vez corte-a em pedaços ainda menores. Se, por
outro lado, a fumaça deixou de encher a garrafa muito antes de que sua capacidade
pulmonar fosse alcançada, tente uma garrafa maior. É importante trocar de cinzas e de
vez em quando passar um papel úmido sobre o alumínio para limpá-lo e comprovar que
os furinhos não estejam tampados. Ao aspirar a fumaça, ouve-se um "crack!". (ENERGY
CONTROL; www.energycontrol.org).
Como expresso nas receitas e depoimentos, percebe-se que se coloca a pedra de crack
sobre o papel alumínio, que se encontra na extremidade superior da garrafa e, com um
isqueiro, voltado com o fogo para baixo, a pedra é aquecida. Conforme os entrevistados,
quando aquecida, a pedra libera uma fumaça de odor característico, semelhante ao de
plástico queimado. Essa fumaça, constantemente inalada pelo usuário através de um tubo
plástico inserido na parede lateral do cachimbo, migra da superfície à região interna da
garrafa, passando pelo papel alumínio previamente furado. A fumaça, que entrou na
garrafa, fica retida sobre a superfície da água, preenchendo todo o espaço interno vazio.
Uma vez inalada, a fumaça é absorvida pelos pulmões do usuário, de tal forma a
possibilitar os efeitos, continuando até o momento em que é expelida. Embora o ritual seja
simples e rápido, nem sempre se compreende a função de cada um dos elementos
envolvidos, em especial no que concerne às cinzas e à água, cujas funções foram
insistentemente questionadas nas entrevistas. Assim, seus possíveis papéis são descritos,
em detalhes, e ilustrados pelos depoimentos dos entrevistados.
(a) Cinzas: A pedra de crack, quando aquecida, liquefaz-se, ou seja, retorna ao estado
líquido, tornando-se, novamente, a gota de aspecto oleoso que assumiu durante o processo
de preparo de crack. o papel alumínio, sobre a extremidade superior da garrafa, está
187
furado, permitindo que a fumaça resultante da queima da pedra caminhe ao interior da
garrafa, o que somente acontece sob constante sucção pelo usuário. Considerando-se que o
crack liquefaz-se durante o uso e que o papel alumínio está furado, é importante a
existência de algum material que separe a pedra de crack do papel alumínio. A construção
de uma camada de cinzas consistiu na alternativa de escolha que impedisse que a pedra de
crack se dirigisse ao interior do recipiente, de tal forma a poupar a droga. Considera-se
ainda que, na ausência das cinzas, a pedra liquefeita poderia obstruir os furos do papel
alumínio, impedindo que a fumaça se dirigisse da superfície ao interior da garrafa, o que
impossibilitaria o uso, que a fumaça de crack não seria inalada pelo usuário caso isso
ocorresse.
(...) pegava as cinzas, colocava-as sobre o papel alumínio, previamente furado, e fazia
com que ficassem compactas, nem pouca nem muita cinza, a quantidade exata para que o
basuco não caísse dentro da garrafa. Colocava a pedra sobre as cinzas, pegava o
isqueiro, de ponta-cabeça, acendia-o sobre a pedra e à medida que a pedra ia derretendo
voltava outra vez à forma quida, como óleo (...) guardava a fumaça dentro dos pulmões
até que chegava o momento do êxtase (...) (J39ME)
(...) as cinzas servem para que a base não escorra pelos buracos do papel alumínio.
Quando se põe fogo, a base fica líquida, então se junta com as cinzas e faz com que o
basuco não caia para dentro da garrafa, assim vc pode continuar fumando-a sem
desperdiçá-la. (J49ME)
Como as cinzas, ao juntarem-se com a pedra liquefeita, originam uma camada dura,
que poderia obstruir os furos do papel alumínio, são continuamente substituídas por cinzas
novas, fato que justifica o consumo de crack de pedaço em pedaço, que, possivelmente,
o uso em grandes quantidades e de uma só vez, obstruiria o papel alumínio e desperdiçaria
a droga. Durante o uso não se costuma empregar cinzas já enegrecidas e sim, cinzas novas,
recém coletadas, pois, diferentemente dessas, as cinzas enegrecidas não aquecem
novamente, impossibilitando a queima da pedra de crack. Assim, usuários que relatam
abandonar até dezenas de cigarros acesos durante o processo de preparo de crack para a
produção de cinzas a serem empregadas durante o uso.
(…) vc precisa trocar as cinzas, então, dá 2 ou 3 tragos e troca as cinzas, joga fora e pega
novas (...) (M23FU)
188
(b) Água: Boa parte do volume da garrafa plástica, de metade a dois terços, é preenchida
com água no momento de uso. Conforme os entrevistados, a água é importante à
diminuição do volume total da garrafa, pois quanto maior a quantidade de água, menor o
volume a ser preenchido pela fumaça advinda da queima de crack, facilitando sua inalação.
Se a água não existisse e considerando-se que geralmente empregam-se garrafas plásticas
de 1,5L, haveria significante entrave ao procedimento de inspiração, pois os entrevistados
relatam o aparecimento de consideráveis forças de resistência ao movimento. Na
impossibilidade de inalar toda a fumaça, as perdas são expressivas, que relatam seu
escape através do tubo (por onde o absorvem) ou pelas conexões, essencialmente
artesanais, entre o tubo e o cachimbo. Quando o uso é feito em grupo, as perdas geram
brigas, que o custo da grama (g) de cloridrato de cocaína é relativamente alto na cidade
de Barcelona (cerca de 80 a 130 reais por grama), de tal forma que a fumaça tem
considerável valor financeiro e até emocional.
(...) enche-se com água para que haja um pouco de ar porque se não tivesse, o ar chegaria
lá embaixo e custaria muito para que chegasse ao tubo (...) (AG37MU)
(…) para que quando absorvesse não me custasse tanto, por isso que colocava água (…)
se não houvesse água, a fumaça enchia toda a garrafa e não poderia absorvê-la (...)
(V24FE)
Até se imagina que esses problemas pudessem ser contornados mediante o
emprego de garrafas plásticas de menor volume, porém, independente do tamanho, a água
sempre é usada dentro da garrafa, indicando que, além de estar incorporada à cultura,
parece desempenhar outras funções. Uma delas é a de aumentar a concentração da cocaína
ao passo que diminui o volume de ar a ser inspirado. Considerando-se que a queima da
pedra acontece continuamente na superfície do cachimbo, a fumaça de crack acumular-se-
ia gradativamente em seu interior, aumentando a concentração de cocaína a ser
inspirada. Quanto maior a concentração de cocaína, maior a rapidez de início e a
intensidade dos efeitos de crack. Em contrapartida, na ausência de água, o volume da
garrafa seria maior e a cocaína se dispersaria. Como o volume de ar a ser inspirado pelo
organismo é pequeno, restaria fumaça na garrafa, a qual poderia ser perdida ao meio,
representando não só a perda da droga, mas também a perda de intensidade dos efeitos.
189
Quando se põe água o volume de ar que resta é menor (…) a fumaça se dispersa pela
garrafa e vc a chupa (...) com a água menos espaço e a fumaça se condensa mais,
então, maior a concentração de toxinas, maiores os efeitos (...) (J39ME)
Alguns dos entrevistados indicaram que outra função da água é suavizar os efeitos
físicos desagradáveis associados ao uso de crack. No interior do cachimbo, ao entrar em
contato com a água, diz-se que o vapor de crack é refrescado, de tal forma a aliviar as
irritações comumente associadas à sua passagem pelo trato respiratório.
Água, água. Como a garganta raspa muito, a água alivia um pouco. A fumaça, ao
passar pela água, vem mais fresca e não irrita tanto a garganta. (L22MU)
Somente alguns dos entrevistados relataram substituir a água por uísque ou rum, o
que interfere sobre os efeitos de crack, em função da formação do cocaetileno, em
semelhança à combinação de bebidas alcoólicas e crack observada na cidade de São Paulo.
Além da interferência sobre os efeitos, o sabor de crack, com álcool, parece melhorar,
tornando o uso mais agradável.
(…) colocava um pouquinho de água porque assim era mais fácil de agüentar a fumaça.
Fumava com uísque também, dava um efeito maior e dava outro sabor à cocaína (…)
(A37MU)
(…) na garrafa tinha uísque e a sensação era outra (…) o uísque ficava um tempo e
com o mesmo cachimbo fumava 1,5g de basuco (…) (J43ME)
Embora o preparo e uso de crack tenham sido esclarecidos mediante o depoimento
dos entrevistados, pude constatá-los através da realização de trabalho de campo pelas ruas
e praças da cidade de Barcelona, onde sabidamente era feito o uso de crack. Os fragmentos
do diário de campo que fazem menção ao preparo e uso de crack foram descritos abaixo (a
identidade dos funcionários envolvidos no trabalho de campo é preservada, citando-se
apenas a inicial de seus nomes):
190
(EC Raval e Ciutat Vella: 29.11.05 - 22h) Saí
com M, educador social da Prefeitura de Barcelona
(Ayuntamiento de Barcelona) para uma visita aos
bairros do Raval e Ciutat Vella, comumente
envolvidos no uso de drogas. Como educador social,
M solucionava, a curto-prazo, pequenos problemas
ou queixas comunitárias, de forma a atuar como o
intermediário entre a prefeitura e os cidadãos dos
bairros sob sua responsabilidade (no caso, Raval e
Ciutat Vella). Não trabalhava especificamente com
usuários de drogas ou crack, mas se presenciasse o
uso, tentava encaminhar o usuário à narcosala, aos
centros de redução de danos ou centros de acolhida
mais próximos. Como não tinha autoridade para interrompê-lo, caso o uso de drogas fosse
o motivo da queixa, apenas aconselhava o usuário a respeito da existência de locais
especializados ao uso e possível repressão policial caso fossem flagrados, seja na forma de
multa ou prisão. Conheci M através de um informante-chave, estabeleci contato e de
pronto convidou-me para acompanhá-lo numa de suas “rondas”. Assim, num dia de
inspeção de rotina pelo bairro do Raval, ao passarmos por detrás da Avenida Drassanes,
encontramos um jovem casal (ambos com idade aproximada á 35 anos) e uma garota (com
idade inferior a 20 anos) iniciando um episódio de uso de crack. Ao chegarmos, embora o
cachimbo estivesse preparado, ainda não dispunham da pedra de crack. O cachimbo era
uma garrafa de água pequena, preenchida até a metade com água. O gargalo estava
tampado com papel alumínio e inserido na parede lateral da garrafa, um pouco abaixo do
gargalo, havia um canudo de plástico (canudinho comum de bebidas). Estavam fumando
cigarros e depositando as cinzas sobre o papel alumínio. Creio que iniciariam o
procedimento de preparo de crack, já que a garota estava procurando por algo escondido
nas meias. Virou-se de um lado a outro, até que retirou um papelote da meia e entregou-o
ao rapaz, no qual creio que se encontrava o cloridrato de cocaína, que a venda de crack,
na cidade de Barcelona, é rara. Reparei que o rapaz manuseava uma moeda de 5 centavos,
a ser utilizada, possivelmente, na retirada da pedra de crack do recipiente que
empregassem ao preparo da droga, porém, não permaneci tempo suficiente para confirmar
o observado. Na verdade, nossa presença passou despercebida pelo casal, que
permaneceram cabisbaixos a todo o momento, dando continuidade ao procedimento.
Tampouco levantaram a cabeça para saber quem éramos. M prestava seu trabalho como
educador social, mas nem prestavam atenção no que dizia. Conforme M, o casal era
antigo conhecido dos assistentes sociais atuantes na área, sendo que todas as intervenções
realizadas em seu resgate não haviam sido bem-sucedidas. Não estavam interessados em
mudar de vida e, para manter o uso de crack, continuavam atuando como ladrões de
carteiras dentro das estações de metrô. Como tínhamos outras regiões a percorrer, não nos
atemos ao casal e continuamos caminhando pelo bairro (...) mais adiante, em frente à
catedral de Barcelona, na Via Laietana, encontramos um estacionamento no qual o uso de
injetáveis e crack era bastante comum. No chão havia envelopes de seringas e recipientes,
de água destilada, usados. As seringas usadas já haviam sido coletadas por algum grupo de
redução de danos, de tal forma a sobrar apenas os envelopes. Qual não foi minha surpresa
ao encontrar, em meio aos carros, um cachimbo de crack, uma pequena garrafa de plástico
preparada da maneira descrita pelo discurso dos entrevistados. Como não havia ninguém
F
IGURA
5:
O
cachimbo de água (2).
191
nas ruas, aproveitei para registrá-lo com a máquina digital que carregava comigo (Figura
5). Tirada a foto, como não havia mais nada, continuamos caminhando (...) como estava
muito frio e chovendo, a probabilidade de encontramos outros usuários nas ruas, além dos
citados, era muito remota, de tal forma que fizemos o restante da caminhada, nos
despedimos e fomos embora (...) vale ressaltar que, dias após, tentei visitar novamente o
estacionamento citado, mas, por intervenção da prefeitura local havia sido fechado (...)
5.2.3.2 Papel Alumínio.
Na cidade de Barcelona, depois do cachimbo de água, a forma mais comum de
fumar-se crack é através da técnica denominada por fumar-se un chino, fumar en plata
ou chasing the dragon. A técnica, bastante simples, é de origem chinesa, tendo sido
adaptada do uso de ópio e heroína fumada, dos domínios da China ao restante do mundo.
Para sua execução necessita-se de poucos materiais, ou seja, basta uma folha de papel
alumínio (a ser usada como suporte para crack) e um cilindro, seja de plástico (comumente
um tubo de caneta) ou do próprio papel alumínio (F
IGURA
6). Abaixo, a técnica é descrita
em detalhes:
Descrição: Se pega um pedaço de papel alumínio e sobre ele coloca-se a pedra de crack.
Se segura a folha com uma das mãos e sustenta-se um isqueiro com a outra. Com o
isqueiro se aquece a parte inferior do papel alumínio, com o propósito de aquecer a pedra
de crack sobre sua superfície. À medida que a pedra aquece, desprende-se uma fumaça, ou
vapor, a ser inalada pelo usuário através do cilindro, posicionado e sustentado por sua
boca. Como anteriormente mencionado, comumente emprega-se um cilindro de caneta
esferográfica ou tubo artesanalmente preparado, seja do próprio papel alumínio ou de outro
material. Uma vez aquecida, a pedra liquefaz-se e move-se pelo papel, exigindo destreza
(especificamente equilíbrio) e, sobretudo paciência, pois, para dar continuidade ao uso, o
usuário deve perseguir a pedra liquefeita por toda a extensão do papel alumínio, seja com o
isqueiro mantido sob a folha, seja com o cilindro posto à boca. É a partir da batalha
usuário-droga que teve origem a denominação “chasing the dragon”. Na verdade, uma vez
liquefeita, a droga movimentar-se-ia sobre o papel alumínio como o rabo de um dragão,
cabendo ao usuário persegui-lo para tirar proveito da droga. Com o passar do tempo, o
líquido evapora e diminui-se a quantidade de droga, até o ponto que se esgota. Em linhas
gerais, os princípios subjacentes a essa técnica são semelhantes aos do uso em cachimbo,
192
porém, um maior desperdício da droga, pois uma vez desprendida, a fumaça não se
dirige a um compartimento fechado, de tal forma que parte da droga, no caso da cocaína,
se perde na atmosfera. Assim, é comum que o usuário se aproxime da folha de alumínio,
de forma a minimizar tal perda. Embora seja pouco discreta, é mais simples que o uso do
cachimbo, pois sua execução dispensa o uso de cinzas e de água. A técnica é ilustrada
pelos depoimentos dos entrevistados e por trechos do diário de campo, conforme segue:
Simplesmente se pega o papel alumínio, põe-se a base em cima e o isqueiro aceso abaixo
do papel (...) então, com outro pedaço de papel alumínio faz-se um tubo, que vc precisa
para fumá-lo. Vc vai passando o isqueiro por baixo e com o tubo que fez, vai seguindo a
fumaça que a cocaína vai soltando (…) (S32ME)
(…) faz-se como se fosse um “chino” de heroína, para cima e para baixo (...) então, fica
uma gota de óleo que não desaparece, vai para cima e para baixo e não pára. Vc cansa da
gota que aos poucos vai diminuindo, mas muito lentamente, não é como a heroína (...)
(JC40MU)
(EC Estação Besós Mar: 18.12.2005 14h) Estava voltando do projeto de reinserção
sócio-laboral Situa’t onde havia realizado algumas entrevistas com usuários de crack. A
sede do projeto é localizada no Distrito de Sant Ádria de
Besós, antigo bairro da Mina que, na década de 70, era o
foco do comércio e uso livre de drogas dentro dos limites da
cidade de Barcelona. Decadente, o bairro passou por uma
série de estratégias de replanejamento e reestruturação nas
décadas subseqüentes. Embora amenizados, o abandono, o
livre comércio e uso de drogas ainda estavam fortemente
presentes na região. Próximo à sede, estava localizada a
estação Besós Mar da linha amarela do metrô. Sempre me
indignei, pois, em virtude dos assaltos na região, aquela era
a única estação do metrô, dentre as que conheci, que não
tinha bilheteria e tampouco policiamento. Sempre observei
que raramente os moradores da região usavam bilhetes ao
embarcar, sendo comum pularem a catraca, já que não havia
fiscalização. Nesse dia, ao descer até a linha do metrô,
debruçados sobre os bancos de espera, havia 2 homens
jovens fazendo uso de drogas. Ambos seguravam papel
alumínio e isqueiro, cada um numa das mãos e na boca
sustentavam um cilindro de alumínio. Conforme ilustrado durante as entrevistas, percebi
que estavam usando droga conforme a técnica de “fumar un chino” ou “fumar en plata”.
Embora realizada exatamente conforme o discurso dos entrevistados despertou-me atenção
o nítido desconforto dos usuários ao realizá-la, que mudavam constantemente de
posição, ora sentados ou agachados sobre o banco, ora em pé. Acredito que muito do
incômodo devia-se à corrente de ar que se formava dentro do metrô, principalmente pelo
dia frio que fazia, de tal forma que para eles, suponho que estivesse sendo difícil manter a
F
IGURA
6:
“Fumar un chino”
ou “fumar en plata” ou “chasing
the dragon”.
BBC News: Drugs
lessons for parents (janeiro de 2007).
Disponível em:
(http://news.bbc.co.uk/.../specials/drugs
/351624.stm)
193
chama do isqueiro acesa, sem falar na dificuldade de direcionar o vapor da droga à boca.
Como não havia fiscalização, realizavam a técnica de forma despreocupada. Não sabia se
tratava do uso de heroína ou cocaína, tampouco me atrevi a perguntar, que estavam
bastante compenetrados e, no final das contas, eu interessava-me apenas em constatar a
maneira com que era realizada. De longe, continuei discretamente observando. Nesse
exato momento chegou o vagão do metrô, esperei e peguei o próximo para observar um
pouco mais (...) ao embarcar percebi que continuavam o uso com a mesma tranqüilidade
com que o haviam iniciado (...)
5.2.3.3 Outras Técnicas.
(a) Latas: Somente alguns dos entrevistados citaram usar latas de alumínio (de refrescos,
refrigerantes ou bebidas alcoólicas) como cachimbos, a exemplo do uso de crack na cidade
de São Paulo. Porém, na cidade de Barcelona, latas são raramente usadas, já que a garrafa
de plástico é o recipiente de preferência.
O preparo e uso da lata são abaixo ilustrados por descrição fundamentada no
discurso dos entrevistados:
Descrição: Se pega a lata de alumínio e a amassa ao meio. Na região amassada, com
qualquer objeto cortante, fazem-se pequenos furos no alumínio. Sobre os furos deposita-se
uma camada de cinzas de cigarro e acima dela, posiciona-se a pedra de crack. Segurando a
lata com uma das mãos, com a outra se sustenta o isqueiro, de cabeça para baixo,
necessário para o aquecimento da pedra. A pedra, ao aquecer e queimar desprende uma
fumaça esbranquiçada que passa, da superfície à porção interna da lata através dos furos
feitos no alumínio, de tal forma a atingir sua abertura, por onde o usuário inala a fumaça.
Assim, a abertura da lata deve sempre estar voltada ao usuário, pois, é a partir daí que inala
a fumaça desprendida da pedra. As cinzas devem ser constantemente trocadas por novas,
pois com o tempo, ao se misturarem com a pedra liquefeita de crack, podem obstruir os
furos do alumínio, impossibilitando o consumo. Dentre todas as técnicas, talvez seja a
mais perigosa, pois sob altas temperaturas, o alumínio da lata esquenta e induz o
aparecimento de queimaduras e feridas na boca, rosto e dedos do usuário, aumentando-lhe
a probabilidade de contágio por doenças infecto-contagiosas ao compartilhar o cachimbo
com colegas de uso.
194
Se pega uma lata de coca-cola vazia, amassa-a, faz uns buraquinhos, coloca as cinzas e
pelo lado de beber absorve a fumaça e vai fumando. E põe-se um papel para que as cinzas
não entrem pela boca, um papel cartão aberto, então as cinzas não entram. vc fogo
e fuma (...) (JC40MU)
(b) Outros cachimbos: relatos do emprego de cachimbos de vidro ao uso de crack,
adaptados do uso de maconha. Na cidade de Barcelona e em outras cidades européias,
especialmente em Amsterdam, lojas especializadas na venda de aparatos destinados ao
uso seguro de drogas, de onde o cachimbo de vidro pode ser adquirido. Nessas lojas
impressiona a variedade de cachimbos, no que concerne à sua forma e cores, o que não
desperta a atenção e curiosidade do cliente, mas satisfaz aos mais variados gostos. O
cachimbo de vidro também tem sido distribuído gratuitamente por serviços de saúde, como
parte de kits à redução dos danos associados ao uso de crack, a citar o K
IT
B
ASE
fornecido
pela Associação Francesa E
SPOIR
G
OUTTE
D’
OR
(F
IGURA
7), localizada no centro de
Paris, França.
Conforme os entrevistados que já usaram o cachimbo de vidro, os efeitos de crack
são iguais a qualquer que seja o cachimbo empregado, importando a qualidade da droga e
não o material com que o cachimbo é confeccionado.
usei um cachimbo de vidro e te digo que é a mesma
coisa que quando se usa a garrafa menorzinha, ou seja,
põe-se a pedra e fuma-se a fumaça que sai da pedra.
Aspira-se até que não haja mais a pedra de cocaína (...)
(J39ME)
(c) Somente alguns dos entrevistados afirmaram não usar cachimbos ou qualquer outro
aparato para fumar crack. Assim, em semelhança à cidade de São Paulo, na cidade de
Barcelona alguns usuários usam crack misturado ao tabaco de cigarros. Para isso, abrem o
cigarro e misturam-no a crack, fechando-o novamente. Embora os efeitos sejam
semelhantes à forma convencional, trata-se de alternativa discreta, de tal forma que o uso
pode ser realizado publicamente, sem desconfortos ou receios de uma possível repressão
F
IGURA
7
:
O “kit base”.
195
policial. Também conforme citado à cidade de São Paulo, entrevistados que relatam
aspirar crack como se tratasse de cloridrato de cocaína, sendo que os efeitos gerados
parecem ser mais intensos aos associados ao uso convencional.
(…) o que vi na cadeia é usar a base pelo nariz, mas não gostei disso (...) faz-se como
fosse uma carreira de cocaína e os efeitos são mais fortes (…) e pelo cigarro também,
mistura-se o tabaco com a base, mas não se tem efeito, é mais o sabor (…) (J43MU)
5.2.4 Padrão de uso.
À semelhança da cidade de São Paulo, na cidade de Barcelona foram identificadas
2 fases de uso de crack que, intercaladas entre si, geram o padrão de uso de crack. A fase
dita compulsiva refere-se ao momento em que o usuário perde o poder de controle sobre o
uso, priorizando-o em detrimento de qualquer outra atividade, mesmo àquelas que lhe
proporcionassem algum tipo de prazer no período pré-crack. A freqüência e quantidade de
uso aumentam progressivamente, de tal forma que passam dias consecutivos em função de
crack, sem importar-se com alimentação ou higiene e tampouco com o cumprimento de
atividades sociais, seja em família, entre amigos, no trabalho ou escola (“padrão binge”). A
sessão de uso é finalizada quando não mais disponham de recursos financeiros ou
condições físicas para continuarem. Pela fissura se dizem capazes de tudo, comportamento
que lhes gera consideráveis implicações de vida, de ordem física, moral e social, nem
sempre reversíveis.
(…) vc não transa mais, não quer mais saber de mulher, deixa tudo de lado e se apaixona
da puta garrafa e da pedrinha. Vc se esquece de tudo isso, se esquece da família, da
namorada, o que quer é fumar, pensa em fumar e nada mais (...) apaixona-se por isso e
não mais nada (...) isso é muito guloso, quanto mais fuma mais quer e que ninguém te
roube a pedra porque vc pode matar pela merda de uma pedra. É triste (...) (A32ME)
(…) então consumia enquanto estava pra cima e pra baixo, mesmo quando estivesse
fazendo faxina ou mesmo comida (...) enquanto vai fazendo suas coisas, o que tenha que
fazer, vai fumando e colocando cocaína. Eu a colocava a cada 5 minutos, não demorava
muito mais que 10, até que acabasse. E quando acaba, como não quer deixar de sentir
essa sensação, faz 1001 para conseguir mais. Eu ficava assim 5 ou 6 dias sem parar. Ao
levantar-me estava usando e quando chegava a noite não dormia e chegava outro dia e
não tinha dormido. Lembro-me que um dia minha cabeça não coordenava meus
pensamentos, havia perdido a personalidade (...) (N38FE)
196
(...) era a cada dia e a cada momento, eu não deixava a garrafa, até ia ao banheiro com a
garrafa. Eu sempre estava com a garrafa, sempre. Tinhas as mãos negras de tanta cinza,
cheguei a metê-las até na pele. Eu não deixava a garrafa para nada, só a deixava quando
precisava trocá-la, quando precisava preparar outra garrafa, esse era o momento em que
parava ou quando precisasse preparar a base, só (...) (S32FE)
Em contrapartida, há a fase dita controlada ou esporádica, quando assumem
algum tipo de controle sobre o uso de crack, realizando-o em menor freqüência e
quantidade. A fase controlada desperta ao perceberem as conseqüências negativas de crack
na própria vida ou na vida de entes queridos. Também podem basear-se nas experiências
negativas vivenciadas por colegas de uso, tomando-as como lição moralizante, de forma a
evitá-las. Para exercerem controle sobre o uso adotam de estratégias de controle
internamente motivadas, semelhantes às mencionadas à cidade de São Paulo, a citar: (a)
afastamento do contexto do uso de crack, seja dos colegas ou dos locais de uso; (b)
substituição de crack por outras drogas; (c) diminuição do tempo de ócio através da
execução de atividades não-ligadas ao uso de drogas e tampouco ao uso de crack; (d)
substituição do uso isolado pelo uso em grupo e, finalmente, (e) não deslocar-se sozinhos
às regiões de tráfico. É interessante notar que, quando tomadas a longo-prazo, as
estratégias de controle podem causar a cessação do uso de crack, conforme admitido por
ex-usuários, em semelhança ao observado à cidade de São Paulo.
(...) parei o uso porque o basuco estava sendo meu dono e não gosto disso, sou eu o dono
de minhas decisões (...) comecei a fazer coisas só pra isso e já percebi que não estava bem
(...) sempre pensei que a droga não pode ser dona de uma pessoa, sempre pensei assim e
quando vi que isso estava passando a mim, fiquei muito nervoso comigo (...) o que não
gostava era isso, um pozinho de merda, um pozinho de 1g contra 100 kg de pessoa, não
chegava a compreender, não podia ser (...) eu me drogo porque eu gosto de drogar-me e
porque quero aproveitar. Então se para estar bem preciso brincar com minha cabeça,
não, isso não é meu plano, prefiro não o fazer (…) (D24MU)
Tenho muito medo da cocaína, o vício é muito mais forte, então tenho muito medo. Eu não
gostava do basuco e me vi viciada fumando 200 “basucos” por dia, então, tenho muito
medo e não posso permiti-lo (...) (J24FU)
O controle nem sempre é decorrente da própria volição, podendo ser externamente
dirigido, seja pela incidência de doenças pulmonares que incapacitam o uso de crack (de
197
tal forma a induzir a transição de vias entre os derivados de cocaína), seja pelo acatamento
de ordens jurídico-policiais tomadas como alternativa ao não-aprisionamento.
Ao final, me viciei pela via endovenosa (cloridrato de cocaína). Como meus pulmões
estavam fudidos, passei a injetar-me. Peguei uma pneumonia, fiquei com líquido nos
pulmões, a ponto de morrer, então não agüentava mais e comecei a injetar-me (…)
(A37MU)
Porque estava pagando uma medida alternativa de 3 anos por 2 roubos com intimidação.
Falaram com o juiz, fizeram uns relatórios e me disseram que a pagasse num centro de
reabilitação, que não consumisse e tampouco tivesse recaídas e que assim, poderia
cumprir os 3 anos na rua (...) hoje não tomo mais coca porque tenho que fazer exame de
sangue 2 vezes por semana, por isso que tenho me mantido à margem do uso (...) parei
porque iria cair de cabeça na prisão e tenho 2 filhos pra criar (...) (I40FE)
Assim, a combinação das fases compulsiva e controlada possibilita o
desenvolvimento dos seguintes padrões de uso: a) compulsivo; b) controlado-
compulsivo; c) compulsivo-controlado e, finalmente d) controlado-compulsivo-controlado.
Diferentemente da cidade de São Paulo, talvez em função do número reduzido da amostra,
na cidade de Barcelona não foi detectado o padrão essencialmente controlado de uso. Em
contrapartida, identificou-se o padrão dito semi-controlado, durante o qual o usuário
consegue manter controle sobre crack nos dias de não-uso, porém, atua de forma
compulsiva nos dias de uso, dedicando-se exclusivamente a crack. O único usuário de
padrão semi-controlado relatou usar crack apenas nos dias próximos ao pagamento,
empregando todo o dinheiro em 3 a 4 dias contínuos de uso, esquecendo-se, durante tal
período, dos nculos sociais, inclusive do próprio trabalho, fato que lhe causou grande
rotatividade de empregos durante a vida. Embora assumisse uso por 4 dias seguidos,
garantiu que não usava drogas, tampouco crack, nos 26 dias restantes do mês, controlando
a fissura e ansiedade por crack.
Meu uso passou a ser compulsivo, mas separado no tempo, não era diário. Porque eu
tenho trabalhado toda a minha vida, mas troquei muito de serviço por causa da droga,
porém sempre tentei cumprir com as minhas obrigações. No dia 3 ou 4, quando recebia,
gastava todo o salário em 4 dias, então tinha que esperar receber de novo e meu uso
era compulsivo, 20 ou 25 gramas por dia. Começava o dia que fosse, não tinha sábado
nem domingo, era o dia que recebia e os dias que poderia estar sozinho na minha casa. Se
pegava 15 ou 20 gramas, começava e, quando acabava, levava mais ou menos 2 dias
fumando, ao redor de 30h. Se não tivesse muito dinheiro pegava 10g, mas nunca foi um
198
uso de 0,5g, era usar até que “vou dormir porque não agüento mais” e logo meu corpo
não pedia em um determinado espaço de tempo, talvez por 2 semanas não tivesse nem a
menor necessidade. A partir da outra semana começava a me sentir melhor, pois
havia me recuperado e faltava pouco para receber, então planejava tudo, o dia e a que
horas. Então meu consumo tem sido assim, compulsivo, mas espaçado por 2 a 3 semanas.
Se tivesse dinheiro, certeza que meu uso seria diário, mas por questão de dinheiro,
necessitava ter maior espaçamento (...) (J30ME)
A metade dos entrevistados relatou consumir crack em grupo, seja em função dos
efeitos ou do receio de possíveis implicações negativas do uso. Quanto aos efeitos, aos
entrevistados não fazia sentido usar uma droga estimulante sem uma companhia, que o
crack é uma droga que, a princípio, incentiva a fala e a socialização entre os usuários.
Outros o fazem em grupo, pois receiam o acontecimento de uma overdose ou tentativas de
roubo ou homicídio por parte de outros usuários. Uma minoria relatou fazer o uso sozinho,
buscando por tranqüilidade. Em contrapartida, muitos dos usuários que faziam o uso de
crack em grupo passaram a fazê-lo isoladamente, priorizando a posse total da droga e de
forma a evitar o desenvolvimento de atividades ilícitas em benefício do grupo. O uso em
grupo passou a ser feito vez ou outra como alternativa para o arrecadamento de dinheiro
destinado à aquisição de crack. Desta forma, assim como na cidade de São Paulo, na
cidade de Barcelona observou-se que o uso de crack, a longo-prazo, torna-se isolado,
caracterizando a droga como anti-social.
(…) o basuco te anula socialmente, te afasta, te isola (...) vc perde os amigos, o trabalho,
perde tudo, mas não porque te recusam, mas porque vc se isola, é muito diferente (...)
(C46MU)
Em teoria, entre os toxicômanos, os consumidores de basuco são os mais marginalizados.
Todos somos escravos de uma substância, mas o basuco está um pouco mais (...) se
margina mais porque o consumo é menos sociável, aliás, o usuário se parece a uma
minhoca, que se isola e se enfia na terra (...) (J39ME)
(...) o usuário de crack vive num mundo aparte, o país do crack, ou seja, o país do mais
alheio (...) são mais marginalizados, até entre os próprios drogados (...) (JC45U)
199
5.2.5 Os Efeitos.
Como observado à cidade de São Paulo, os entrevistados da cidade de Barcelona
categorizaram os efeitos de crack em psíquicos e físicos, descritos em detalhes abaixo:
5.2.5.1 Os Efeitos Psíquicos.
Os efeitos psíquicos desenvolvem-se em duas fases distintas. A primeira fase, curta
em duração, é reconhecida como a fase de efeitos positivos ou agradáveis (“el subidón”),
dentre os quais se destacam a adrenalina e a euforia. É imediatamente seguida pela fase
negativa ou desagradável (“el bajón”), longa em duração e classificada como a pior fase
do consumo, sendo caracterizada pelo acontecimento de alucinações, paranóias
persecutórias, fissura, depressão e intensa sensação de arrependimento. Na fase positiva, o
usuário é tomado por sensações de prazer e bem-estar, durante a qual se sente estimulado a
socializar-se, desenvolvendo, com o máximo de rendimento, qualquer atividade física ou
mental que lhe seja proposta. É uma fase de desconexão, de ausência de problemas, em
que o usuário é tomado por intensa sensação de poder, não sendo raro que se sintam como
heróis, reis (rainhas), comparando-se inclusive a Deus. Uma vez finalizada a fase positiva,
dá-se início à fase negativa ou desagradável. Nessa, o usuário é acometido por alucinações
de caráter visual, auditivo e táctil. Simultaneamente, desenvolvem-se as paranóias, de tal
forma que o usuário passa a viver uma realidade que não existe. Tomado por pensamentos
obsessivos e infundados, seu comportamento, caracterizado pela irracionalidade e
repetição, destina-se, única e exclusivamente, ao alívio da paranóia. Comumente sentem-se
perseguidos ou observados, seja pela polícia, por familiares, amigos ou vizinhos. Para o
alívio da sensação e, certificar-se que não haja ninguém no recinto de uso, passam,
continuamente, a abrir e fechar portas e janelas, subir e descer escadas, acender e apagar
luzes, andar ininterruptamente por corredores, dentre outros muitos comportamentos. As
paranóias são semelhantes entre os usuários, de tal forma que se muda apenas o agente
causador do pensamento obsessivo, ou seja, enquanto um usuário torna-se angustiado por
se sentir perseguido pela polícia, outro desenvolve a mesma angústia, mas por se sentir
perseguido por familiares. Desenvolvida a paranóia, o usuário é tomado pela fissura,
200
sensação incontrolável de dar continuidade ao uso, é o “querer mais”. Somado à fissura
comumente se sentem deprimidos, pois, como realizam o uso com o propósito de fuga da
realidade, quando finalizados os efeitos positivos, deparam-se novamente com os
problemas que antes os afligiam. Soma-se a tudo, o arrependimento, pois, além de terem
recaído no uso, dão-se conta dos maus comportamentos e atitudes que possam ter
adquirido para cumprir com o uso de crack. De forma geral, em função do caráter
angustiante, o usuário de crack relata que a fase dos efeitos negativos é o pior momento
dentro do uso, pois, como anteriormente mencionado, são capazes de atitudes impensadas
para sentirem-se livres da sensação. Os efeitos positivos e negativos, acompanhados de
sua percepção pelo usuário, são ilustrados pelos depoimentos dos entrevistados conforme
segue:
(…) quando tinha a fumaça nos pulmões agüentava bastante a respiração com a fumaça
dentro e o que percebia era uma explosão de nervos, um estado de choque prazeroso, era
muito radical (...) me sentia enorme, grande, pensava que era Deus (...) e depois muito
suor, muitos nervos, não parava de andar da mesa à porta de casa, paranóias mentais,
pensando que sempre poderia vir alguém. E embora estivesse sozinho e não viesse
ninguém cheguei a fazer quilômetros e quilômetros no corredor de casa. E não parava de
fumar (...) depois o pior de tudo era a depressão quando a substância acabava e não tinha
mais, ficava nervoso, me sentia agoniado, ficava louco. Se tivesse dinheiro, chamava por
telefone para que me trouxessem ou mesmo iria buscar de cueca caso fosse preciso, seja o
que for, vc faz. E volta a cozinhá-la e volta a consumir, volta a sentir o sabor de
combustível na boca, chega a sentir o estado de nervosismo, a excitação em grau
superlativo e isso é um círculo vicioso. A fase de depressão é horrível, não quero
exagerar, mas posso te garantir que se tivesse a oportunidade de pegar dinheiro de
qualquer lugar, de fazer qualquer coisa, no estado depressivo, quando se acabou e quer
mais, faria qualquer coisa para conseguir dinheiro e ir comprar. (J39ME)
E à medida que vc vai soltando a fumaça vai sentindo as sensações. Conforme vai
soltando a fumaça vai sentindo tudo o que tem pra sentir e demora 3 ou 4 minutos para
deixar de sentir as sensações boas (...) te sensações que não são reais, vc as (...) te
abre o cérebro, vc a vida diferente, cor-de-rosa, nada se transforma em problema. Vc
fica mais inteligente, tudo muito mais claro, nunca está brava, nunca está de mau-
humor, isso não existe (...) a parte ruim é que, ao ter a depressão, tudo de bonito que vc
viu se converte em horroroso. que nunca vai conseguir trabalho e como está (...)
quando te a depressão é a sensação mais insuportável que possa ter, a boa é a melhor
e a ruim é a pior. A ruim é insuportável, é uma sensação de angústia, de desespero, por
isso que as pessoas roubam tanto, fazem tanto para se livrarem da sensação, porque a
sensação não é fácil de agüentá-la. Rouba-se mais, se faz mais coisas para tirar essa
sensação. É muito difícil (...) (N38FE)
201
E depois, quando ia dar o trago na coca, era uma sensação de desconexão (...) era uma
sensação muito curta, um bem-estar de 30 segundos, 1 minuto e depois passava a ver se
tinha mais (...) além de ser curta, depois a necessidade de ter mais é brutal, então é
contraditório, porque é mais curto, mas é mais intenso, então passava mal quando não
tinha mais (...) mas quando passa, faria o que fosse para conseguir mais (...) depois
entrava em paranóia, a história dos vizinhos que estão me olhando, criava minhas
próprias histórias, os barulhos (...) falo a vc que às vezes acabava com bolhas por subir e
descer as escadas. Morava numa casa e se estava no piso de cima, baixava até a garagem
e olhava se alguém estava no carro, voltava a subir, voltava a descer e dizia estou
perdendo tempo fazendo isso”, mas não passava mal, não ficava tenso ou nervoso,
fazia parte dos efeitos (...) (J30ME)
Ainda quanto aos efeitos negativos, paranóias típicas que acontecem
independentemente do contexto sócio-cultural em que o uso esteja inserido. Entre elas,
a crença de que, durante o uso, foram perdidos pedaços de crack, pensamento que faz com
que o usuário busque, de forma frenética e repetida, a droga pelo chão e pelos arredores do
local de uso, o que lhes leva a fumar restos de alimentos, pequenas pedras ou resíduos de
poeira, pensando tratar-se de crack.
Tive alguma paranóia, mas por pouco tempo. tive paranóias de procurar pelo chão, de
terminar de fumar e pensar que havia caído um pedacinho e com o isqueiro começar a
buscar pelo chão e era mentira, era imaginação e era isso que tinha de ruim (...)
(C46MU)
Em contrapartida, paranóias particulares. O poder da paranóia é tão significante
que usuários que relataram terem sido influenciados pela paranóia alheia, no
momento de uso, o que comumente os leva ao afastamento do grupo, realizando-o
isoladamente. Assim, a natureza contagiante e os tipos desagradáveis de paranóia que
desenvolvem, faz com que o usuário perceba a paranóia e o uso de crack de forma
negativa.
(...) pra mim me deu problema com o cabelo, comecei a arrancar um por um pra ver se
tinha piolho, me vergonha de te falar isso, mas é verdade (...) mas conheço muita gente
a quem dava paranóias horríveis, que não viviam, que eu dizia que não se drogassem com
“base” se não soubessem, que todo momento estavam naquele vai e vem, algo horroroso
(...) tenho visto casos horrorosos, mas de gente louca (...) isso é ruim, isso é não saber se
drogar (...) (N45FE)
Durante a realização do trabalho de campo ou mesmo durante as entrevistas, tive a
oportunidade de observar o acontecimento dos efeitos negativos associados ao uso de
202
crack e ao uso de cloridrato de cocaína por via endovenosa, que boa parte do projeto foi
conduzida nas dependências das narcosalas, locais onde é permitido o uso injetado de
drogas. Abaixo são transcritos fragmentos do diário de campo que fizeram menção aos
efeitos. A identidade dos funcionários envolvidos no trabalho de campo é preservada,
citando-se apenas a inicial de seus nomes:
(a) Paranóias e Alucinações.
(EC - Sala Baluard: 23/11/2005 19h): Agendei encontro com N, educador social da
narcosala Baluard, quando fui informado que ainda não havia chegado e que precisaria
esperá-lo. Sentei-me próximo à porta de entrada e comecei
a conversar com a funcionária que controlava o registro
dos usuários, assim como o fornecimento dos kits de uso, a
citar: seringas, agulhas, garrotes, papel alumínio, entre
outros. Próximo à porta havia um rapaz que,
insistentemente, baixava ao chão, pegava algo, colocava na
palma de uma das mãos e com a outra analisava o material
coletado, esmigalhando-o para saber de sua consistência e
de que se tratava. Sustentava um cigarro entre os dedos e
para que o conteúdo e tampouco o cigarro caíssem,
mantinha a mão entreaberta. Ao abri-la, observei que
mantinha muita sujeira (pequenos grãos) dentro da mão,
não os descartando. No momento pensei se tratar de
paranóia cocaínica, que os usuários, durante as
entrevistas, sempre relatavam a busca insistente pela droga,
coletando, muitas vezes, sujeiras para depois fumá-las,
pensando se tratar da cocaína (...) no mesmo dia, horas
mais tarde, observei outro comportamento estranho por
uma das usuárias da narcosala, decorrente de possível
alucinação auditiva ou visual que teria desenvolvido em
função do uso de cocaína. Após conversar com N, o
educador social, permaneci sentado, observando os
usuários que, no centro de convivência, alimentavam-se,
conversavam e aguardavam, em fila, a vez de uso da sala
de injeção. Chamou-me a atenção uma mulher, de uns 30
anos, a quem creio, pelas vestimentas, fosse de
descendência árabe. Estava acompanhada de um homem e
frequentemente, olhava para o lado e sussurrava algo. Com
o tempo, não mais sussurrava, mas, com o propósito de
insultar alguém, passou a gritar “assassino”. A princípio pensei que estivesse referindo-se
ao senhor que a acompanhava, mas, ao observá-la atentamente percebi que o insulto não se
dirigia a alguém. Frente àquela situação, A, outra educadora social, aproximou-se para lhes
prestar ajuda. Foi nesse momento que a mulher, dirigiu-lhe o insulto, chamando-lhe de
assassina e pedindo que não lhe tocasse as mãos. A situação foi alarmante e
constrangedora, pois a reação da mulher foi tão intensa que todos os funcionários da sala,
F
IGURA
8:
A
Sala de Consumo
Higiênico Baluard.
203
inclusive eu, que estava observando-a, deslocamos-nos até o centro de convivência para
prestarmos solidariedade à educadora. Acalmados os ânimos, a mulher foi-se embora,
porém, os insultos continuavam dirigidos a ninguém. Assim, de observação, acredito se
tratar de um caso de alucinação por cocaína, não sei se necessariamente decorrente do uso
de cocaína injetável, pois, em nenhum momento presenciei-a saindo da sala de injeção,
tendo chegado da rua naquele estado (...)
(EC - Sala Baluard: 29/11/2005 – 15h): Nesse dia, testemunhei o acontecimento de
paranóia decorrente do uso de cloridrato de cocaína por via endovenosa. Pela primeira vez,
tive o consentimento, pelo médico da sala Baluard, a entrar na sala de injeção. Ao entrar,
observei que o ambiente era muito pequeno, havendo 6 pequenas mesas, de uso individual,
destinadas aos usuários e separadas entre si por um pequeno corredor (4 mesas de um lado
e 2 do outro) (Figura 8). Ao lado da entrada da sala de injeção havia uma pequena mesa,
em frente às demais, correspondente ao lugar da enfermeira, de onde poderia monitorar a
higiene da sala, das mesas e controlar a entrada e saída dos usuários. No canto oposto
havia uma pequena pia, destinada à higienização dos usuários antes de iniciada a injeção.
Entrei no recinto bastante interessado, porém, receava sofrer algum tipo de reação, que
era o único desconhecido e estava invadindo o momento de privacidade e, acima de tudo,
de fraqueza dos usuários, pois ali se dedicavam a satisfazer sua dependência, por mais
problemas que pudesse gerar em suas vidas. A situação, de princípio ameaçante, passou a
ser angustiante. Ao entrar, deitado no corredor, havia um rapaz sob overdose de heroína.
Sobre ele, 2 educadores sociais e o enfermeiro que tentavam a reanimação. Para piorar a
situação, abaixo de uma das mesas e sentado no chão, havia outro rapaz que procurava por
algo. Parecia empenhado na tarefa, pois de um momento a outro, introduzia sua cabeça e
corpo abaixo da mesa vizinha, de tal forma que o colega, sob overdose, não lhe servia
como empecilho. Os funcionários, sabendo que se tratava de paranóia cocaínica, pediam
que o usuário abandonasse a sala, mas a situação era muito difícil, pois era como se não
ouvisse. Naquele momento, os funcionários (médico, enfermeiro e educadores sociais) não
poderiam fazer muita coisa, pois estavam ocupados socorrendo o usuário de heroína em
overdose. Depois de muitos pedidos, o rapaz em paranóia levantou-se e caminhou até a
porta. estava de saída quando se deu conta da existência do cesto de lixo. Ainda com a
sensação de que havia perdido algo e ainda empenhado em sua procura, enfiou as duas
mãos no cesto que estava repleto de papéis ensangüentados, utilizados na limpeza das
mesas e dos demais usuários. Tal foi a minha surpresa quando o vi apanhando cada um dos
papéis, desdobrando-os e desamassando-os pacientemente em busca da droga. Eu, sentado
na cadeira do enfermeiro, ao lado da porta, observava fixamente o usuário que estava ao
meu lado. O enfermeiro, que estava saindo da sala para preparar uma dose de naloxona ao
rapaz em overdose, com rigor, mas, de forma cautelosa e delicada, retirou-o da sala,
levando-o ao centro comunitário. Porém, o usuário de cocaína continuava em paranóia e
tentou entrar na sala novamente, tentativas frustradas. Seu estado não era animador, que
não havia higienizado a si (o braço estava ensangüentado) e tampouco a mesa. Resolvi sair
da sala de injeção, pois como o ambiente era muito pequeno e eu nada podia fazer para
aliviar aquela situação caótica em que todos estavam com os ânimos alterados. Ao sair,
percebi que o outro rapaz, sob overdose, recobrava os sentidos e as forças, sob constante
auxílio dos funcionários (...)
204
(b) Fissura.
(EC Ambit Prevención: 26/01/06 10h): Estava nas dependências do Ambit
Prevención, centro de acolhida a usuários de drogas, realizando a entrevista com o
participante de código F36MU. Fui autorizado a permanecer na sala da psicóloga e dos
assistentes sociais, uma sala de vidro, de comunicação direta ao centro de convivência
(Calor i café) onde os usuários alimentam-se e socializam-se com outros. Em determinado
momento, a psicóloga abriu a porta e disse-me que havia outro usuário de crack
interessado na entrevista, mas que não poderia aguardar muito tempo. Agradeci e pedi
desculpas, pois, além de ter iniciado aquela entrevista há pouquíssimo tempo, estava com
as fitas contadas para as entrevistas agendadas àquele dia. A psicóloga voltou ao centro e
comunicou o recado ao interessado, que não se contentou e veio a meu encontro na sala. A
ele repeti a mesma coisa que havia dito à psicóloga, mas não parecia compreender. Como
passei a ressarcir os voluntários, através de auxílio financeiro fornecido pela Generalitat da
Catalunya, disse-me necessitar do dinheiro e que precisava, sob qualquer custo, passar pela
entrevista. Além de exigir a participação, exigia que fosse rápida, necessitando do dinheiro
para crack. Novamente disse-lhe que não seria possível naquele momento e que
poderíamos agendar para outro dia. Foi quando começou a gritar energicamente e insultar-
me, afirmando que eu tinha preconceito contra árabes. Com a confusão, apareceram outros
funcionários e acompanharam-no novamente ao centro comunitário. Como medida de
precaução, a psicóloga deixou-nos com a chave da sala, pedindo que a trancássemos.
Como nem sabia que o rapaz era descendente de árabes, confesso que fiquei sem resposta.
Concentrei-me e continuei a entrevista, embora atormentado pelo acontecido (...)
É interessante notar que, com o transcorrer do tempo de uso, há mudança da
intensidade e duração dos efeitos psíquicos de crack, de tal forma que as sensações de
bem-estar tornam-se cada vez mais fracas e rápidas e a paranóia e fissura passam a durar
mais e com maior intensidade. Assim, a longo-prazo, na ausência de sensações de bem-
estar, a continuidade do uso dá-se para cumprir com a dependência ou para possibilitar
pequenos intervalos de fuga da realidade.
Quanto aos efeitos, de bom não nada, mas sempre o faço para me esquecer, para não
pensar, para me esquecer dos problemas que tenho, que se não consumo a cabeça
sempre está dando voltas (...) (AG37MU)
5.2.5.2 Os Efeitos Físicos.
Além dos efeitos psíquicos, o crack causa uma série de transformações físicas,
visualmente perceptíveis. Embora nada tenham falado a respeito dos efeitos viscerais,
assim como na cidade de São Paulo, relata-se intensa tensão muscular facial e protrusão do
205
globo ocular, o que garante ao usuário de crack, da cidade de Barcelona, considerável
expressão de pânico, “marca” que lhe distingue socialmente. Além de mencionados pelos
discursos dos entrevistados, os efeitos físicos foram observados durante a realização de
trabalho de campo, abaixo ilustrado:
(…) o basuco te uma ansiedade incrível (...) mas, uma vez que se acaba tem que ir
desesperado à rua procurar e vai como um louco e percebe-se por sua cara que vc vai
“drogadíssimo” e suponho que medo, porque agora, quando vou normal, vejo um
usuário e penso “mãe de Deus como está esse colega” (...) agora me dou conta “essa é a
cara que eu levava antes” (...) (A32ME)
(EC Praça Jaume I: 27.01.06 17h): Recebi um telefonema de um rapaz (código
AG37MU) que se interessou pela entrevista. Não pretendia o ressarcimento financeiro,
apenas lhe interessava relatar sua experiência com crack. Como não nos conhecíamos e
não pertencia aos centros de redução de danos ou de acolhida nos quais eu estava
desenvolvendo as atividades de estudo de campo, marcamos um encontro em um café na
Praça Jaume I, no centro de Barcelona. Descrevemos-nos fisicamente e também as roupas
que vestíamos, que o nome do café, por si só, não possibilitaria a plena identificação.
Esperei na frente do café, quando o vi chegar. Os olhos estavam arregalados e a tensão em
seu rosto era evidente. Cumprimentou-me com um aperto de mão e sentamos-nos à mesa
mais próxima da porta de entrada. Pedi um café e comecei a explicar os objetivos do
projeto para que houvesse pleno consentimento de participação. Percebi que o rapaz estava
inquieto e ansioso porque ao segurar a xícara tremia muito. Olhava a porta insistentemente
e passava as mãos pelo rosto. Foi quando confessou ter usado crack dentro da estação do
metrô, 5 minutos, justificando assim seu estado. Pediu licença para ir ao banheiro e
voltou mais tranqüilo. Começamos a entrevista e respondeu, pacientemente, a todas as
perguntas, embora hesitasse em algumas. Ao final, como morávamos em estações
próximas da linha amarela do metrô, ofereci-me a acompanhar-lhe. No trajeto, confessou-
me ter-se injetado cloridrato de cocaína no banheiro, no momento em que pediu permissão,
mostrando-me o estojo da seringa que carregava junto ao corpo, o que lhe possibilitou um
pouco mais de tranqüilidade durante a entrevista. Confesso que fiquei muito surpreso,
porém satisfeito por ter estabelecido um vínculo de confiança com o entrevistado,
possibilitando a maior veracidade das informações fornecidas (...).
5.2.6 Atividades Atípicas.
Não é apenas a aparência física que se deteriora à medida que o uso de crack torna-
se compulsivo. Percebe-se que a necessidade de dar continuidade ao uso, em função da
fissura, principalmente, faz com que, a longo-prazo, o usuário desconsidere muitos de seus
valores morais, de tal forma a sujeitarem-se à significativa degradação moral. Como a fase
dos efeitos negativos de crack (identificada pela fissura, sensação de depressão e
206
arrependimento) é referida como intensamente desagradável e angustiante, afirmam fazer
de tudo para aliviá-la. A primeira tentativa de escape é a readministração de crack, a fim
de que seus efeitos de bem-estar sejam revivenciados. Porém, a opção não é simples e
tampouco fácil, já que o valor da grama do cloridrato de cocaína, na cidade de Barcelona, é
relativamente alto, mencionado entre 40 e 60 euros (108 a 160 reais). Considerando-se que
o uso compulsivo de crack não lhes possibilita a execução responsável de atividade
legalmente remunerada, na falta de condições financeiras, acabam por desenvolver outras
estratégias para o arrecadamento de fundos, as denominadas atividades atípicas ou
ilícitas, uma forma de “buscar-se a vida”, conforme dito pelos próprios entrevistados.
Muitas vezes, a atividade não era tolerada pelo usuário no período pré-crack, mas, pela
fissura acabam realizando-a, de tal forma que o crack vai “atropelando” os valores morais
que encontra pela frente. Conforme o discurso dos entrevistados, as atividades mais
frequentemente citadas foram: (a) venda de pertences próprios e familiares; (b) furtos e
roubos; (c) prostituição; (d) atividades ligadas ao tráfico; (e) enganar, manipular e mentir;
(f) endividar-se; (g) pedir esmola; entre outros comportamentos menos freqüentes. Abaixo,
cada uma das atividades é brevemente descrita e ilustrada pelo discurso dos entrevistados e
por fragmentos do diário de campo, quando se faça necessário.
(a) Venda de pertences próprios e familiares: Nessa atividade, o usuário de crack inicia
pela venda dos próprios pertences, migrando à venda dos bens familiares de uso coletivo.
Como mencionado à cidade de São Paulo, os pertences são vendidos por valor inferior ao
preço de custo.
Eu tinha um Golf GTI que me custou mais de 6000 euros (...) te digo que o vendi por 300
euros por uma merda de um puto basuco. (AG37MU)
(…) vendia coisas, saía por aí, catava coisas e vendia (…) vendia o que tinha em casa, TV,
vídeo, de tudo (…) (V24FE)
As drogas te fazem roubar, vender suas coisas, suas roupas, os presentes que tenha
ganhado, o ouro, tudo (...) (Y33MU)
(b) Furtos e roubos: Iniciam por furtos no ambiente familiar, progredindo ao trabalho e,
finalmente, à sociedade. Ao atingir a comunidade, a severidade do crime intensifica-se,
207
assim como o comprometimento moral do usuário, não mais se tratando de simples furtos,
mas de roubos e crimes organizados.
1000 formas (...) a cocaína é uma substância muito cara. Trabalhando não podia,
porque o nível que eu tinha de consumo era muito grande pra poder trabalhar. gente
que rouba, outras que se prostituem, gente que assalta. Como não fazia danos a ninguém,
eu furtava. Metia-me num estabelecimento, pegava umas quantas colônias, voltava ao meu
bairro, as vendia e gastava em coca. Voltava ao mesmo estabelecimento e, novamente,
voltava carregada, não me dava vergonha de nada. Agora não o faria porque além de ter
mudado, minha cabeça não está mais para isso. Conseguia 50 mil pesetas (300 euros)
num único dia (…) (N38FE)
(…) roubar. Eu ia às lojas, colocava 2 calças Levis Strauss, tirava o alarme e ía até a
porta e saía com as duas calças e depois as vendia. Fui com uma garota, com uma
mochila, a mochila cheia de coisas para vender: camisa, calças, bermudas, sapatos, de
tudo (…) (J43ME)
(...) assaltar as lojas com uma pistola. Claro, viam a pistola e retiravam-se, assim eu tinha
o caixa para mim e levava tudo. Muitas vezes eu saía correndo e quase todas as moedas
caíam. As pessoas eu assaltava com uma faca, entrava num banco, via quem tirava mais
dinheiro e quando não vinha ninguém, roubava para coca. Fazia o que pudesse para tirar
dinheiro, roubava onde via que o dinheiro era fácil, podia ser lojas, bancos, o que fosse
(...) (AG37MU)
(c) Prostituição: É atividade desempenhada por mulheres e homens. Entre os homens, é
considerada como a atividade mais rendosa e fácil de arrecadar recursos a crack, de tal
forma que, trocam sexo por dinheiro e com outros homens, na maioria das vezes não se
tratando de sua opção sexual. Tópicos como o número de parceiros, valor do programa
sexual e uso de preservativos não foram abordados pela falta de tempo.
Tinha um amigo que vendia cocaína e como sabia que eu era dependente, então, o que
fazia, me dava a cocaína de graça (…) e como eu tinha esse amigo, entre parênteses, que
me “presenteava”, então não me faltava (...) cheguei a ir pra cama com ele, com um
homem de quase 70 anos, chorando, porque me sentia tão rasteira, tão nada como pessoa,
que ao mesmo tempo não podia deixar de tomar basuco, não podia, era impossível (…)
(S32ME)
(…) prostituição sim, para conseguir isso, muitas vezes (...) ia a um bar, que ainda existe,
onde havia senhores que falavam comigo e tinha que ir a um quartinho com eles, chupar-
lhes e deixar que fizessem o que quisessem com meu corpo em troca de 40 ou 50 euros, o
valor dependia do acordo que fazia (...) tinha que me foder e agüentar, mas me dava nojo
(...) eu me prostituía com homens, era de onde tirava o dinheiro. (A32ME)
208
(d) Atividades ligadas ao tráfico: O envolvimento com tráfico é outra possibilidade à
aquisição de crack. Diferentemente da cidade de São Paulo, como não tráfico de crack
na cidade de Barcelona, pelo menos não realizado de forma aberta e declarada, os lucros
da atividade são obtidos diretamente em dinheiro e não em troca pela droga, nem por crack
e tampouco por cloridrato de cocaína, já que, como antes mencionado, seu custo na cidade
é bastante alto.
Ao perder o trabalho, perdi a entrada de dinheiro e me meti em problemas, comecei a
trabalhar para um rapaz que vendia (...) um dia, um garoto, comprou de mim e trouxe a
polícia e tive que assinar que tinha vendido pra ele. Isso porque eu tinha presenteado o
cara e ele era meu amigo. Fiquei na prisão por 4 anos, 2 meses e 1 dia e isso acabou com
a minha vida (...) (JC46MU)
(...) pegaram-me com 2 quilos de cocaína, meu ex-marido era traficante de drogas, então
tive muitos problemas (...) fui presa por tráfico e contrabando, mas como fiquei muitos
anos na cadeia, não quis mais traficar (...) (N45FE)
(e) Enganar, Manipular, Mentir: Tem início no ambiente familiar migrando à sociedade.
Dentro do ambiente familiar, é comum que se mutilem em frente dos pais, sensibilizando-
os e deles conseguindo os recursos financeiros necessários para saciar a fissura por crack.
Socialmente são mais audaciosos, havendo relatos de falsificação de papel moeda,
contrabando e estelionato. Dentre os casos, o mais curioso foi o de um rapaz de 42 anos,
impossibilitado de andar como seqüela do contágio por poliomielite. Como se
movimentava com o auxílio de muletas, na fissura por crack, era incapaz de roubar ou
desempenhar qualquer outra atividade que dele exigisse resposta motora rápida. Assim,
passou a beneficiar-se da própria condição física para sanar a fissura por crack. Visitava
bares, lojas e casas dizendo arrecadar fundos para um projeto de instalação de leitos
hospitalares destinados ao atendimento de pessoas sob a mesma condição física que a sua,
portando em mãos o referido projeto e a folha de recolhimento de contribuição, a ser
preenchida e assinada pela pessoa abordada, o que tornava o golpe ainda mais verossímil.
Aos sensibilizados estipulava-se uma contribuição mínima, apenas em dinheiro, a ser
empregada em crack pelo entrevistado.
No final me dei conta que estava enganando a mim mesmo porque sempre queria mais. A
cocaína fazia com que tivesse muitas brigas em casa, cortei os braços para que me
209
dessem-na, para que fizessem caso e ficava louco (...) cortava os braços para que meu pai
desse a cocaína ou dinheiro para comprá-la (...) (A37MU)
Roubei muito, falsifiquei um monte de coisas, mas nunca fui preso. Falsifiquei até papel
moeda aqui da Espanha, quando era a peseta porque o euro agora é mais difícil, mas as
notas de antes eram mais fáceis de falsificar (...) (AG37MU)
(...) buscar-me a vida. Eu tinha um papel no qual dizia que eu tinha um projeto de instalar
12 camas a mais em um recinto para pessoas inválidas. Então, as pessoas compreendiam,
pegavam o papel, assinavam e me davam o dinheiro, 5 euros no mínimo e iam embora
contentes de ter ajudado. Assinavam e colocavam o número de identidade como se fosse
algo legal e não era. O mesmo papel eu apresentava em lojas, bares, o que fosse (...) mas
eu nunca roubei (...) (R42MU)
(f) Endividar-se: Inicia-se no ambiente familiar do usuário, atingindo seu entorno social,
o que lhe causa uma série de problemas e limitações, sejam pessoais ou de relacionamento.
Quando estávamos mal de dinheiro e precisávamos usar, então, a melhor alternativa foi
vender cocaína (...) então houve uma época em que vendíamos muito, mas também
usávamos muito, então tivemos muitos problemas porque não pagamos o fornecedor e
tínhamos uma dívida de milhares de euros. Então, houve uma época muito quando
decidi que não queria mais tê-la em casa, quando quisesse usar que a comprasse, se
tivesse dinheiro tudo bem, mas se não, então não se compraria (...) (M23FU)
(…) sou uma pessoa que nunca enganou ninguém (…) nunca tive nenhum problema, mas
chegou um momento em que devia um punhado de dinheiro e pouco a pouco estou
pagando, vou ver se termino de pagar a dívida (…) (R42MU)
(EC - Sala Baluard: 17/11/2005 20h) Uma das atividades desenvolvidas pela
“narcosala” Baluard, como medida de redução de danos, consiste na coleta de seringas
usadas e abandonadas de forma inapropriada em locais públicos. Tal atividade tem por fim
evitar que outras pessoas (adultos e crianças) firam-se com as seringas, impedindo também
que sejam reutilizadas por outros usuários, ambos considerados como riscos potenciais ao
contágio por doenças infecto-contagiosas. Nesse dia, fui à sala Baluard ao anoitecer e fui
convidado, pelos trabalhadores sociais N e A, a acompanhar-lhes na coleta das seringas.
Saímos da sala Baluard e caminhamos pelo Raval e Ciutat Vella, bairros de livre comércio
e uso de drogas, no centro da cidade de Barcelona. Além de coletar as seringas usadas, os
trabalhadores desenvolvem atividade de educação social, de tal forma que, se presenciam o
uso de drogas, alertam seus usuários a respeito do uso responsável, associado ao menor
número de riscos à saúde. Passamos pelas Muralhas de Drassanes e pelo Parque de Raval
onde iniciamos a coleta. Ao chegarmos à rua do Robador, deparei-me com uma situação
inusitada, ou seja, tratava-se de uma ruela, de passagem bastante estreita, cujas calçadas
estavam ocupadas por um mercado improvisado. Muitos vendedores, provavelmente
imigrantes, estendiam tecidos sobre as calçadas e sobre eles expunham suas mercadorias,
que pela pouca variedade, acreditei tratarem-se de pertences próprios que colocavam à
venda. Assim, numa das “barracas” havia um par de botas, 3 ou 4 pares de calças,
210
abajures, lâmpadas, entre outros poucos artigos, que me pareceram antigos e usados. A
princípio fiquei impressionado, pois o espaço era muito pequeno, a rua estava obstruída e
passávamos com dificuldade. Havia muitas “barracas” e muitas pessoas estavam
interessadas em comprar as mercadorias disponíveis, o que dificultava ainda mais a
passagem pela região. Segundo N, o mercado havia mudado de endereço inúmeras
vezes, em virtude de repressão policial, demonstrando tratar-se, realmente, de algo ilegal.
De repente, paramos e N começou a conversar com o dono de uma das “barracas”,
freqüentador da sala Baluard e usuário de crack. Fui apresentado ao rapaz e N comentou a
respeito do projeto científico que estava desenvolvendo. Como havia participado de
outras pesquisas, o rapaz aceitou tranquilamente e agendamos horário para o dia seguinte
na sala Baluard (a princípio desconfiei, mas o rapaz compareceu e é designado, na
amostra, pelo código Y33MU). Agendada a entrevista, continuamos a caminhada pela rua,
completamente obstruída. Mais à frente, na mesma rua, as “barracas” desapareceram, mas
agora, ambos os lados da calçada estavam ocupados por prostitutas, das quais muitas
estendiam as mãos, tentando conquistar a mim e a N como clientes. Possivelmente, a
grande maioria era imigrante, pois conversavam em língua distinta ao castelhano e catalão.
Entre as prostitutas, rapazes traficavam livremente, qual foi a minha surpresa quando fui
parado por um deles, perguntando-me se não estava interessado em comprar
tranqüilizantes. Ao perceber que estava com os educadores sociais, desviou-se e foi
embora, pois enquanto eu estava vestido de forma normal e corrente, N e A estavam com
coletes vermelhos que os distinguiam na multidão. Continuamos caminhando e percebi
que o número de prostitutas era consideravelmente grande. Terminada a rua Robador,
adentramos a Rua Sant Paul, de mesmo cenário que a anterior, ou seja, inúmeras
prostitutas em ambas as calçadas. Porém, chamou-me atenção a existência de uma fila de
pessoas em um dos lados da rua, como se tratasse de uma fila de espera a ônibus.
Perguntei a N o que era, dizendo-me ser a fila de espera pelo traficante. Como a lei
espanhola é severa com o tráfico, os traficantes, para não serem flagrados, não
permanecem no ponto, indo e voltando várias vezes ao dia. Àquele horário, pelo tamanho
da fila, deduzi que ainda não tivesse chegado. Como os compradores eram pessoas
humildes, inclusive de aspecto mal-cuidado, perguntei a N como poderiam pagar tão caro
pela droga (ao redor de 50 a 60 euros por grama), foi quando me disse que essas pessoas,
durante o dia, geralmente atuavam como ladrões de carteiras nas estações de metrô e nas
ruas de Barcelona, ou desenvolviam outras atividades ilícitas, a fim de dar continuidade ao
uso. Foi quando, imediatamente ao lado da fila, percebi um rapaz, de idade entre 20 e 30
anos, que suspendia em seus braços uma única calça jeans, mostrando-a e oferecendo-a aos
transeuntes. Conhecido dos educadores era um usuário de crack e freqüentador da sala
Baluard, pois também fazia uso de drogas injetáveis. No rapaz, chamou-me atenção a falta
de dentes, característica comum a usuários de crack. Fomos até ele, começamos a
conversar e o convidamos para participar do projeto. O desinteresse e o receio foram
nítidos, logo falou que não podia, afastou-se e foi embora. Em frente, naquela mesma rua,
não havia mais movimento, voltamos pelo mesmo caminho, deparando-nos com a mesma
situação e dando continuidade à coleta de seringas (...) mais tarde, voltamos à sala Baluard,
despedi-me e fui embora (...)
211
5.2.7 Associação de crack a outras drogas.
A maior parte dos entrevistados relatou que, mesmo após realizarem as atividades
ilícitas, não dispõem de condições físicas para dar continuidade ao uso de crack, de tal
forma que, para o alívio das sensações negativas, acabam por associar crack ao uso de
outras substâncias psicotrópicas, aqui mencionadas por drogas associadas. Um mesmo
usuário emprega até 4 drogas diferentes para uma mesma finalidade, sendo que, nesse
caso, as drogas associadas não são, necessariamente, usadas de forma simultânea, mas em
dias alternados e conforme sua disponibilidade. Entre os usuários que associavam crack a
outras drogas, a maioria relatou nunca ter feito o uso, na vida, da droga associada ou tê-lo
aumentado, de forma exponencial, após iniciado o uso de crack.
A maior parte da amostra afirmou que, depois de atingido o limite da resistência
física, o emprego da droga associada era imprescindível para seu relaxamento, permitindo-
lhes o retorno às atividades rotineiras ou a tranqüilidade e sono após dias ininterruptos de
uso de crack. Em contrapartida, somente alguns dos entrevistados relataram que a
associação era importante à continuidade do uso de crack, estabelecendo ciclos de uso, ou
seja, iniciavam com crack, partiam ao uso da droga associada, novamente crack e assim
sucessivamente.
Conforme os entrevistados, para atingir os propósitos esperados, a droga associada
deveria ser administrada após crack, porém, tal não consistiria numa regra, dependendo
muito da substância utilizada.
De forma geral, a princípio, o usuário nem sempre a droga associada com “bons
olhos”, mas, independente de seu grau de apreciação, a combinação, a longo-prazo, além
de aprofundar a dependência a crack, acaba por somar-lhe outras dependências. Em função
do aumento do envolvimento do usuário com a droga associada, seja por apreciação ou por
maior identificação a seu uso, pode vir a substituir o crack no posto de droga de escolha ou
preferência.
Como drogas associadas foram mencionadas: heroína (vias aspirada, fumada e
injetada), ansiolíticos, álcool, haxixe, maconha, ópio, metadona, ketamina e
antidepressivos. Abaixo, detalha-se e ilustra-se o uso de cada uma dessas substâncias como
droga associada.
212
(a) Heroína: A maior parte dos entrevistados empregava a heroína como droga associada,
seja na forma fumada, aspirada ou injetada. A metade desses entrevistados nunca havia
feito o uso na vida de heroína, enquanto que mais da quarta parte relatou retomar seu uso
após iniciado o uso de crack. Seja iniciado ou retomado, o uso de heroína instala-se como
paliativo aos efeitos negativos (fissura, ansiedade, alucinações e paranóias) ou para
amenizar a excitação e euforia (efeitos positivos), associadas ao uso de crack. A princípio,
a heroína é usada por determinada via, porém, com o passar do tempo, a transição de
vias, geralmente da fumada à injetada, indicando que o usuário não mais a como uma
droga associada, apreciando seus efeitos, desenvolvendo a ela um quadro de dependência.
Assim, o usuário, que antes realizava atividades ilícitas para a compra de crack, passa a
realizá-las para obtenção de ambas as drogas. Depois de instalada a síndrome de
abstinência à heroína (nos poucos momentos de não-uso), acaba por priorizá-la,
substituindo a preferência prévia que tinha por crack. Não são raros os usuários que não
toleravam ou tinham preconceito contra o uso de heroína, previamente ao início do uso de
crack, aderindo à heroína logo após sua experimentação, geralmente incentivada por
conhecidos ou amigos que ressaltavam seus efeitos benéficos como droga associada.
Abaixo, a associação crack-heroína é ilustrada através dos depoimentos dos entrevistados:
Para diminuir os efeitos, para tirar a ansiedade, procurei por algo e comecei com a
heroína (...) a cocaína me dava ansiedade e a heroína a baixava (...) tira a paranóia, faz
com que se sinta melhor, não pensa mais no que está te comendo a cabeça, não pensa
mais em alucinações, paranóias, não passa mais pela viagem, é a melhor coisa para
baixar o efeito. Comecei só para baixar a cocaína, depois, ao final, me viciei e passei só à
heroína (...) comecei com a heroína aspirada, depois fumada e logo a injetada, o mesmo
trajeto que a cocaína (...) no final quase todo mundo acaba assim. No começo, a maioria
das pessoas sempre diz que os que usam heroína são “younkies” e os que usam cocaína
não, mas no final, pelo menos as pessoas que conheço, acaba todo mundo igual, cedo ou
tarde. Porque no começo vc se diverte e depois quanto mais vc usa mais se fecha em si
próprio, é vc e já basta. (L22MU)
(…) não agüentava a excitação que me dava a cocaína, dava uma espécie de sensação de
euforia e isso não se pode agüentar. Depois te uma depressão que não se agüenta
porque é uma sensação de muita angústia. É o mesmo que ter muita felicidade e depois a
angústia é extrema, é uma sensação muito ruim. E a única maneira de tirá-la era tomando
heroína. Tomava heroína e então accedia a um nível que estava mais à vontade. Então,
comecei a tontear, tontear até que me vi dependente sem dar-me conta. Provei-a e disse:
“agora estou bem”. Para tirar aquela sensação, usava uma carreira de heroína. Então,
comecei a tontear e dentro de 5 ou 6 meses me vi envolvida nela, não podia deixá-la (...)
213
foi quando me acostumei, tornei-me viciada, foi quando a heroína já me gostava como
droga, não mais fazia apenas para baixar os efeitos da cocaína. A partir daí estava
viciada e gostava da sensação que pra mim era diferente. (N38FE)
(b) Ansiolíticos: A maioria dos entrevistados citou o uso de ansiolíticos como droga
associada. A princípio, os ansiolíticos são usados para diminuir os efeitos negativos de
crack, porém, não necessariamente são usados de forma isolada, havendo relatos de sua
combinação a álcool durante a sessão de uso de crack, não a fim de potencializar os
efeitos positivos de crack, mas para iniciá-los o mais rapidamente possível.
(…) e depois os tranqüilizantes que são para baixar os efeitos da cocaína. Quando acaba
ou vai pegar mais, vc abaixa com os tranqüilizantes. Quando via que não podia mais
buscar-me a vida, usava tranqüilizantes para baixar o basuco, para tirar-me a ansiedade
(...) tomava 1 ou 2 tranqüilizantes, tomava 1 ou 2 cervejas e sentia uma mudança radical,
estava todo eufórico e já ficava tranqüilo depois (...) (A32ME)
(…) quando vi que não podia mais, então tomava um tranqüilizante e me acalmava.
Cansava-me, pois estaria uns 3 dias sem dormir e depois ficava dormido mais uns 2
dias (...) (R42MU)
(c) Álcool: Mais da quarta parte da amostra afirmou usar álcool como droga associada.
Enquanto alguns empregam-no para diminuir os efeitos negativos de crack, de forma a
interromper o uso quando na falta de condições financeiras ou físicas para dar
continuidade, outros entrevistados, em contrapartida, relatam-no como importante
estratégia ao prolongamento do uso de crack por mais horas ou dias a fio. Antes do uso de
crack, o uso de álcool não é comum, tampouco é a droga de preferência do entrevistado, de
tal forma a aumentar consideravelmente após o início do uso de crack para amortizar seus
efeitos.
(…) para passar a depressão o que fazia era tomar muito álcool, sempre bebia uma
mesma marca de uísque, comprava as garrafas de 750mL e as tinha preparadas (...)
acabava esgotado e dormindo na cama e na manhã seguinte me levantava com ressaca e
com muitas bolhas do muito que havia andado dentro da minha própria casa (...) o uso de
álcool aumentou desaforadamente (...) quando acabava o álcool que tinha em casa
continuava com o estado de ansiedade e nervosismo provocados pela cocaína, não era
estranho que fosse fazer a rota dos bares, que era começar pelo primeiro bar mais
próximo de minha casa e acabar no último, sempre bebendo um copo ou dois (…)
(J39ME)
214
(d) Haxixe ou Maconha: Mais da quarta parte dos entrevistados citou o uso de haxixe
(raramente maconha) como droga associada. São empregados para diminuir os efeitos
negativos de crack (ex.: fissura), permitindo ao usuário descontinuar o uso, de forma a
tranqüilizar-se e retornar às suas atividades rotineiras. Assim como para outras drogas, não
é raro que substitua o crack como droga de preferência, consistindo, muitas vezes, em
estratégia de controle e, até mesmo, em medida de abstinência.
(…) fumava haxixe, me deixava tranqüilo (...) ia pra casa, tomava banho, colocava meu
pijama e ia pra cama (…) (A37MU)
(…) haxixe (…) eu troquei a base por haxixe, por desgraça. Digo por desgraça porque
ainda continuo fumando (...) (N45FE)
(e) Ópio: Somente alguns dos entrevistados citaram o ópio, seja ingerido ou fumado,
como droga associada. É utilizado com fins de amenizar os efeitos negativos de crack e, de
alguma forma, controlar seu uso.
(…) o uso de ópio não era comum antes do basuco. Mas prefiro injetar-me heroína a ópio
porque o ópio não te um flash, sobe depois de bastante tempo e não te a sensação
que estou procurando. E não se pode injetar porque é um produto sujo, como é recolhido
de uma planta, não é trabalhado e nem nada e não pode injetar porque faz muito dano (...)
então comia o ópio, às vezes fumava, mas fumado se desperdiça um monte (...) fumando te
sobe no mesmo instante, mas dura menos tempo, dura poucas horas (...) fuma com papel
alumínio como faz para heroína (...) (L22MU)
(f) Metadona: Somente alguns dos entrevistados citaram a metadona como droga
associada. Possibilita a diminuição dos efeitos negativos e o controle do excesso de euforia
decorrente de crack. Assim como as demais drogas empregadas com tais fins, possibilita a
interrupção momentânea do uso de crack, permitindo ao usuário tranqüilizar-se e retornar
às atividades cotidianas. Em contrapartida, possibilita também que o uso seja continuado
por maior período de tempo, cumprindo com o padrão “binge” de uso. De qualquer forma,
seu emprego como droga associada é, no mínimo, curioso, já que se trata de droga sintética
empregada à substituição do uso de heroína. Além de substituí-la, a terapia tem por fim a
cessação do uso de drogas, logo, o uso de metadona como droga associada é contra os
objetivos da terapia, colocando em risco seu sucesso. O mais interessante é notar que, na
cidade de Barcelona, o uso tem sido relatado por pessoas que não estão sob terapia e que,
215
tampouco, usaram heroína na vida, o que tem incentivado o desenvolvimento do tráfico da
substância na cidade, assim como mencionado e verificado, em trabalho de campo, aos
ansiolíticos.
A metadona te deixa tranqüilo, relaxado (…) quando vc usa cocaína, se tiver o corpo
habituado à metadona, o efeito, a sensação que vc tem é a mesma, mas a euforia de fundo
vc não sente, porque a metadona te deixa tranqüilo. Então, vc sabe que tem a metadona e
que depois da cocaína vc pode ficar tranqüilo, que depois do efeito da cocaína a
metadona vai te deixar tranqüilo (...) (C46MU)
(…) provei metadona, a bebi e fiquei 2 dias com sono (…) tomava-a frequentemente se
estava entediado ou algo (…) atualmente vc consegue em qualquer esquina (…) (o
entrevistado não estava sob terapia de substituição por metadona) (J43MU)
(g) Ketamina: Somente alguns entrevistados citaram a ketamina como droga associada.
Sua administração, seja por via aspirada ou intramuscular, tem por fim o controle dos
efeitos negativos (ex.: fissura), de forma a possibilitar o equilíbrio emocional do usuário
durante a sessão de uso de crack.
(…) a ketamina te ajuda a não ter essa idéia fixa, essa ansiedade, essa fixação (...) depois
do basuco fazia 2 carreiras a mais de ketamina que as de costume (aspirada)(…)
(D24MU)
(h) Uso indiscriminado: Somente um único entrevistado, com fins de aumentar a duração
e intensidade dos efeitos positivos de crack (euforia e prazer associado), relatou combinar
muitas drogas durante a sessão de uso de crack (ex.: speed, álcool e cloridrato de cocaína -
via aspirada), sem critérios e sem demonstrar preferência por nenhuma das drogas
associadas.
(...) beber e aspirar anfetaminas (speed). Pego anfetamina, esmago com um isqueiro e
faço raias como se fosse cocaína. Fumo o crack e cheiro anfetamina para ficar mais
louco, mais alucinado (...) o álcool á para potencializar, mas o álcool é uma coisa que
todos bebem, sempre têm (...) aqui (em Barcelona) eu não conheço as sensações do crack
porque misturam de tudo, porque vc fuma e também te dão speed, ou seja, o pessoal usa
speed ou cheira coca, então é uma droga eliminando a outra, misturando com a outra,
assim, ainda não sei qual a sensação exata de estar fumando. (JC45U)
(i) Uso exclusivo de crack: Somente alguns dos entrevistados relataram não combinar
crack a outras drogas durante a sessão de uso. Assim, passaram a desenvolver outras
216
estratégias destinadas à diminuição da intensidade e duração da fissura e dos demais
efeitos negativos de crack. A não adesão às associações é decorrente do receio que têm em
misturar drogas e porque acreditam que a combinação pudesse interferir sobre os efeitos de
bem-estar que buscavam com crack. Como na sessão de uso usam crack foram
considerados como usuários exclusivos.
Quando vc faz o uso de basuco, faz apenas o uso de basuco (...) como eu já te disse que eu
tinha alguém que me desse, então eu não parava, não dormia, não comia, era só fumar e
fumar (…) (S32ME)
(…) quando dava a depressão deitava na cama e me cobria até a boca, suava, olhava o
relógio até dormir e passava muito mal, mas tinha idéia de que quando acabasse, não
ia buscar (...) pra buscar a droga, a não sei que horas da noite e ainda drogado, não o
fazia (...) tinha muito medo de sair drogado na rua, me fechava em casa, no meu lugar,
com as minhas coisas e usava para não sair e quando acabava tinha muito claro que não
ia sair na rua, nem que tivesse muita vontade, mas por 0,5 g, nem pensar (...) e quando
tinha basuco era só basuco, nada mais (...) (J30ME)
5.2.8 Consequências decorrentes do uso de crack.
Quase todos os entrevistados, em algum momento da vida, sofreram alguma
conseqüência diretamente associada ao uso de crack, seja no âmbito social, físico, moral,
emocional ou cognitivo. Somente alguns afirmaram não ter sofrido qualquer inconveniente
em função do uso de crack, possivelmente por terem, há pouco tempo, iniciado seu
consumo.
Não tenho tido nenhum problema, me parece bem, me senta bem (…) de momento não,
quem sabe daqui a um ano eu não te diga outra coisa (...) eu não vejo nada de ruim (...) de
momento, a única coisa é que preciso de maior quantidade e isso é um problema (...) além
disso, o efeito é mais rápido, mas fora isso não vejo nada (…) (M23FU)
Atualmente não está me fazendo mal. Te digo que me fazia mais mal a aspirada
(cloridrato de cocaína) que a fumada. O único mal que a fumada faz é que me
ansiedade. Não tenho ataques sérios de ansiedade, pode ser que os tenha se continue
fumando, depende da pessoa, vc precisa saber seus limites também. Sim que tive crises de
paranóia, de gritar, de coisas brutais, mas com basuco não, nada (...) (S27FU)
Abaixo, são descritos cada um dos âmbitos de vida interferidos pelo uso de crack,
ilustrados pelos depoimentos dos entrevistados.
217
(a) Moral.
Como mencionado, para cumprir com o uso compulsivo de crack, o usuário
passa a adotar pensamentos e comportamentos que antes não condiziam com sua
personalidade, de tal forma a ocorrerem mudanças de seus valores morais e de sua
identidade como um todo.
(...) quando comecei a fumá-la destruiu-me como pessoa, me tirou a personalidade, aliás
foi o que me tirou tudo. Que comecei a fazer coisas mais graves, nada me importava.
Cheguei a assaltar, mas nunca fiz dano a ninguém (...) me destruiu como pessoa porque
eu não era assim, não estava dentro dos meus princípios, na minha personalidade e, de
repente, me vi envolvida em histórias incríveis e na cadeia. Veja, me deixou transtornada
porque é uma mudança muito grande de personalidade, converte-se em outra pessoa e
com atitudes de outras pessoas. Eu era uma garota normal e corrente e passei a viver num
mundo que nem sequer era meu, durante mais de anos (...) é que vc nem percebe (…)
(N38FE)
Somado a isso, são tomados por problemas de cunho emocional, caracterizados por
forte dissociação entre a razão e emoção (tornam-se frios, agressivos e irritadiços, o que os
predispõe a atitudes violentas) e problemas de auto-estima (perda de confiança e segurança
em si mesmos), marcas que nem sempre podem ser resolvidas por conta própria. Tais
mudanças são percebidas, em sua maioria, após o uso a longo-prazo, o que os faz se
questionarem a respeito da real importância da continuidade do uso de crack em suas
vidas.
Eu tenho meus sentimentos muito escondidos, comecei a chorar 2 semanas, não podia
nem chorar. Sou frio, muito egoísta, impulsivo, intolerante (...) o basuco destrói a vc e
seus valores pessoais (...) vc perde a realidade da vida, perde a si próprio, é um consumo
muito destrutivo, não me importava se morresse (...) se para mim queria a morte o que
não poderia fazer aos demais, é como estar morto em vida (...) (J30ME)
A personalidade. Agora sou mais fechado, antes era mais aberto, me divertia mais, agora
custa para divertir-me (...) não sou mais seguro de mim, tenho medo de fazer qualquer
coisa, de falar com uma garota ou de entrar em uma loja, tenho medo de agir, não sou
mais seguro do que faço (…) (L22MU)
(b) Físico e Cognitivo.
Além da transformação moral, o usuário passa por mudanças físicas e cognitivas de
relevância. Passam a se desinteressar pelo cumprimento das próprias necessidades sócio-
218
sanitárias (alimentação, sono e higiene), acarretando consideráveis mudanças físicas, como
intenso emagrecimento, enfraquecimento e queda dos dentes. Essa última parece ser
decorrente não apenas de influência comportamental, mas também do mecanismo de ação
da droga, em combinação com outros fatores já mencionados ao usuário de crack da cidade
de São Paulo.
Vc está sempre como um farrapo, não se enxerga e me parece que não passa nunca pelo
espelho. Vai ao banheiro, mas vc se levanta e nunca se olha no espelho. Me tocava e sabia
que estava magro e acabava ficando mais magro do que era. E os dentes também
modificam, têm afetado muito minha boca, aliás tanto a boca quanto os pulmões. Os
dentes foram caindo aos pedaços, o basuco fode os dentes (...) (AG37MU)
Além do físico, a esfera psicológica, especialmente no que concerne à capacidade
cognitiva, também sofre intensas alterações, dentre elas, a perda de memória.
(…) a cocaína é uma droga que no início vc ainda pode controlar, mas quando vc menos
espera, ela te domina e passa a te controlar. Penso que é a pior droga que existe, porque
os danos, a nível cerebral, são incríveis. Um dos problemas que tenho é a falha de
memória, não me lembro de muitas coisas que fiz (...) (F36MU)
(c) Âmbito Social.
Uma vez instalada a compulsão, dá-se prioridade apenas ao uso de crack, havendo
uma mudança radical do entorno social do usuário. A família e as amizades são
substituídas pelos colegas de consumo, que são as relações, que embora conflitivas (ex.:
brigam por pedaços de crack ou pela fumaça decorrente de sua queima), mais os
aproximam da droga, possibilitando seu uso. Assim, o afastamento da família, das antigas
amizades, de atividades de trabalho e escola é iminente. Os laços familiares e a
comunicação são rompidos, restando um ambiente familiar caracterizado por intenso
desgosto e desconfiança. Os desentendimentos em família são comuns, variando do
rompimento de comunicação à tomada, na justiça, da posse dos filhos do dependente.
(1) Família:
(…) perdi toda minha família e fiquei sozinho na vida. Tenho uma filha de 22 anos que
quase não fala comigo e tenho me empenhado pra que fale, mas parece que não quer me
perdoar, sente-se muito mal. Fora minha mãe, meus irmãos não querem nem saber de
mim, estou sozinho, perdi tudo (…) (JC46MU)
219
Penso que banquei a boba. Ninguém vai te dar nada, vc perde muitas coisas e não te traz
nada de bom (...) perdi os meus irmãos, perdi a minha liberdade, tive muitos problemas
com a justiça (...) romper com todos e com minha família tem me trazido muita amargura
(...) (V24FE)
(2) Amizades:
(…) vc esquece de tudo, só fica rodeado de gente que usa, que te quer por interesse, é tudo
uma falsidade e uma merda de vida (...) vc procura a quem roubar e te roubam (...) brigas
por causa de uma merda de pedra e assim por diante (...) (A32ME)
(…) com o basuco vc vai se fechando num mundo cada vez mais privado, vai rompendo as
relações à sua volta, com as pessoas que ama, até que vc vê que não há mundo, que não te
importa nada, nem o que passa no mundo, vc nem chega a se importar, a única coisa que
te importa é se vc está drogado com essa substância (…) (J39ME)
quanto ao trabalho, como a prioridade é o uso de crack, geralmente estão
desempregados ou apresentam grande rotatividade de empregos, que pra cumprir com o
uso, acabam por se ausentar do ambiente de trabalho ou realizar, neste, o uso de crack.
(…) não ia ao trabalho e quando ia, ia drogado e muito mal, ia embriagado porque
queria palear os efeitos da base, até que cheguei a usar dentro do trabalho com um
cachimbo, levei a base envolta num plástico de cigarro e a fumava escondido dentro do
banheiro e quase que fui despedido da empresa, do meu trabalho que tanto amo (...) me
levou a viver sozinho e como vc a estar preso num centro para tentar minha
reabilitação (...) (J39ME)
No Brasil sim, me deixou desnorteado (...) angustiado, uma sensação muito ruim, de falta
de definição das coisas (...) eu trabalhava como supervisor na Folha de São Paulo, deixei
de ir alguns dias e me disseram que não podia mais trabalhar lá (...) eu não estava me
sentindo capaz, teve alguns dias que eu não fui trabalhar. Às vezes eu fumava e no dia
seguinte não estava com capacidade cognitiva suficiente (...) (JC45U)
5.3 O Crack e seu usuário conforme a percepção dos entrevistados.
5.3.1 O Crack.
Quase todos os entrevistados acreditam que o uso de crack seja negativo, que a
compulsão pelo uso gera mudanças drásticas na personalidade e no estilo de vida do
usuário. Assim, o definem como destrutivo, pois vida e poder a algo inanimado (crack)
que controla o poder de decisão do usuário, tornando-o egoísta e alheio à realidade e a seu
entorno social. Entende-se o uso como um problema, nunca como solução, que muitos o
iniciam com o intuito de fugir da realidade.
220
Não é má, é malíssima, é o pior inimigo com que eu tive que lutar em toda minha vida,
porque tem destruído-me de dentro pra fora e perdi minha vida por completo (...) a base
acaba com a vontade de viver, vc se sente um inútil, sente que ninguém precisa de vc e não
tem vontade nem mais de respirar, acaba querendo tirar a própria vida (...) (J39ME)
Não resolve nenhum problema, ao contrário, acaba tendo mais problemas para buscar
sua vida, tem mais causas na justiça, vontade de se matar, vc não tem mais nada (...) é
mais um problema que vc tem, não te soluciona nenhum outro (...) (V24FE)
Abaixo, destacam-se 2 mensagens, retiradas do Fóro ENERGY CONTROL
(www.energycontrol.org) como resposta a P, uma garota que havia declarado, por prévia
mensagem, a curiosidade de iniciar o uso de crack, pedindo sugestões quanto à sua
possível experimentação. Esses depoimentos são aqui ilustrados pelo caráter negativo a
respeito do uso de crack.
Te recomendo vigiar muito a aficção que o tema te causa porque não conheço ninguém
que guarde boas lembranças de quando tomava crack. (ENERGY CONTROL;
www.energycontrol.org).
P, recomendo que vc não fume porque isso faz muito mal à saúde, não posso te mostrar
cientificamente, mas aqui na Argentina a base é usada com maconha (mesclado) e de
todas é a droga mais barata e a mais fácil de se conseguir nas "vilas", bairros de poucos
recursos. O nível de dependência é tremendo e o cérebro fica feito merda, os casos que
conheço de pessoas adictas ao “paco” (maconha com pasta base) estão muito mal,
problemas ao falar, com tiques nervosos e não podem conversar normalmente. Leve em
conta que é ainda mais aditivo que a cocaína, casos que passaram do recreativo à
necessidade (...) quanto ao paco”, tem sido um grande problema na Argentina, por ser o
mais barato, cada paco custa $1 = 0,27 (cada Paco/porro), o efeito dura muito pouco
(poucos minutos) e fuma-se vários ao dia e ao não se ter mais recursos e necessitá-lo
tanto, acaba relacionando-se muito à deliquência (...) (ENERGY CONTROL;
www.energycontrol.org).
Em contrapartida, somente alguns entrevistados mantêm um ponto de vista
positivo
a respeito do uso de crack, seja em função do pouco tempo de envolvimento com
a droga, o que não lhes gerou qualquer tipo de implicação ou conseqüência associada ao
crack (como mencionado no item anterior), ou por conseguirem extrair da experiência,
mesmo que negativa, uma lição ou a capacidade de resistir às intempestividades da vida.
(...) pra mim foi uma experiência, sempre gostei. Se tivesse que voltar atrás, creio que o
faria novamente, de verdade. Tem condicionado muito minha vida, mas me ajudou a
221
crescer de outra forma e ser mais objetivo e a não ter uma visão muito radical das coisas
(…) (F36MU)
(…) comecei a usar basuco porque me tirava o cansaço, podia agüentar mais (...) a vida
me fez sofrer demais (...) me fez muito resistente, por isso que agüentei tudo o que tenho
agüentado, tem sido graças à droga (...) (N45FE)
ainda um ponto de vista indiferente quanto ao uso de crack. Somente alguns
dos entrevistados acreditam que o crack não interfira na personalidade ou atitudes do
usuário, de tal forma que, caso venha a agir de fé, o usuário estaria expressando seu
verdadeiro EU, não consistindo, necessariamente, na projeção da interferência
farmacológica de crack. Assim, embora muitos dos usuários atribuam ao crack um poder
de destruição, “culpando-lhe” de muitas das conseqüências em suas vidas, outros
acreditam que, para que o crack tenha essa influência, seja necessário que o usuário seja
vulnerável ou predisposto a más intenções, o que daí sim viria a causar os problemas.
pessoas más e boas, mas isso não depende do basuco. Se o seu cérebro é mau, é vc
mesmo, a droga não pode aumentar isso. Por exemplo, eu nunca me prostituí e nunca
ameacei ninguém, então não acredito que o faça porque necessita, mas também porque
é mau em si mesmo, se age assim é porque é assim por dentro, a droga o muda (...)
(F36MU)
5.3.2 O usuário de crack.
Não existe ponto de vista positivo sobre o usuário de crack. Relatam que, em
função do uso compulsivo, tratar-se-iam de pessoas agressivas e perigosas, incapazes de
medir seus atos e tampouco as conseqüências deles advindas. A dedicação exclusiva à
satisfação da necessidade por crack, torná-los-ia alheios à realidade, introspectivos e anti-
sociais.
(…) são muito mais perigosos porque isso te cria uma ansiedade que vc não imagina e vc
tem que consegui-la por esforço próprio, vc acredita ser capaz de matar para consegui-lo,
é incrível a potência que isso tem. A ansiedade que te cria quando não tem (...) vc vai
como louco e não liga pra nada, vc faz o que seja pra conseguir 10 ou 20 euros. É
perigoso porque tudo tanto faz, vc está apaixonado por uma puta garrafa e não respeita
mais ninguém. Vc é meu amigo, mas se eu puder te roubar eu te roubo. É que não
respeita nem a Deus (...) (A32ME)
222
O afastamento do entorno social faz com que seja reconhecido, dentre os usuários
de drogas, como o mais marginalizado, conseqüência independente da classe
socioeconômica, que a evolução é a mesma, seja pobre ou rico. Entre os entrevistados
acredita-se que o crack não seja uma droga de marginalizados, mas sim, uma droga
marginalizante.
(…) o basuco é uma droga que está cada vez mais estabelecida em todos os níveis
socioeconômicos, mas acredito que continua sendo uma droga de marginais, de gente
mais pobre, de menos recursos. Mas também estou eu que sou uma pessoa de melhores
recursos, de classe média alta e que tenho passado para um nível marginalizado (...) sim,
os consumidores de basuco são mais marginalizados, mas também porque chegam à
marginalização (...) para o basuco é necessário ter dinheiro porque para essa droga 1g
não é nada e são necessários 5g por dia, então para manter esse nível de consumo é
necessário ter muito dinheiro, daí que vem a marginalização (…) (J30ME)
Associado à marginalização que se auto-impõem, são vitimas de forte preconceito
social, tanto pela comunidade não-usuária quanto por usuários de outras drogas. Dentre
eles, os usuários de cloridrato de cocaína (principalmente da via aspirada) são os mais
agressivos quanto ao preconceito, pois não aceitam a deterioração física, social e moral a
que chegam os usuários de crack, principalmente quando se considera que todos
consomem a mesma droga, ou seja, a cocaína.
Aqui na Espanha, pelo menos no meu círculo, a cocaína cheirada é droga de gente com
dinheiro, as pessoas vêem com bons olhos, é divertido e não acontece nada, vc cheira
cocaína porque vc é legal, não tem problema. Mas a fumada é mal vista, vc é visto como
um “yonkie”, um dependente jogado. As pessoas que cheiram consideram como
yonkies aqueles que fumam a base, então as pessoas que fumam não saem dizendo isso
por aí. A fumada é outra coisa. Eu tenho fumado com o círculo de amigos que também
fumam, mas os demais não sabem porque as pessoas falam demais. Nunca entendi, porque
é a mesma droga, mas usada de uma maneira diferente (...) (M23FU)
Por outro lado, alguns entrevistados acreditam que a dependência a crack seja uma
doença, decorrente de distúrbios biológicos ou psicológicos.
Particularmente, acho que são pessoas que estão emocionalmente infelizes, instáveis,
frágeis e que querem distanciar-se de si próprias (...) a sensação de fumar é angustiante e
quem o faz quer se distanciar da verdade (...) (JC45U)
223
(...) essa pessoa, pra mim, tem um problema de dependência, um problema de vida (...)
essa dependência é uma doença (...) eu me considerava uma pessoa doente que não estava
inserida na sociedade (...) essas pessoas estão isoladas do que é a vida real (...) (N38FE)
Penso que estão equivocadas, que não sabem onde se metem, que não estão se divertindo
e sim brincando com a própria vida, porque a vida é mais que ser um escravo (...)
considero que quem usa isso tenha um problema psicológico, como eu tive e ainda
tenho, por isso estou lutando contra ele, tem que se colocar nas mãos de especialistas
para que o ajudem a deixar a droga, porque senão acaba morrendo, se matando ou
fazendo com que te matem (…) (J39ME)
224
Para finalizar, é importante considerar que em sua maioria, nas cidades de São
Paulo e Barcelona, a dependência de crack é compreendida de forma negativa, uma vez
que o usuário atribui à droga o poder de controle, dirigindo sua vida à satisfação
do uso, o que acaba por lhe gerar implicações de inúmeras naturezas,
condição de submissão que é adequadamente ilustrada na
figura abaixo:
F
IGURA
9:
A dependência de crack ilustrada
(ilustração extraída do artigo científico de Siegel, 1982).
225
Quem não tem mente é caixão e
vela, o cara vira bicho até morrer (...)
(ED26MU – São Paulo)
Discussão
o
226
6. Discussão
Na presente seção, serão discutidos os tópicos considerados como os mais
relevantes para a cultura de crack. Em decorrência da semelhança de características entre
as culturas das cidades de São Paulo e Barcelona, os dados de ambas as cidades serão
discutidos juntos. Quando necessário, os resultados referentes à cidade de São Paulo serão
contrastados aos obtidos quando de sua primeira descrição na cidade quase 15 anos
atrás, para que mudanças sejam detectadas depois de transcorrido tal período de tempo.
6.1 O usuário de crack.
6.1.1 Características Gerais.
Conforme os resultados do presente trabalho, na cidade de São Paulo, a maioria dos
usuários de crack é constituída por homens, jovens, solteiros, de baixo nível
socioeconômico, baixo poder aquisitivo e sem vínculos empregatícios formais. Quanto à
escolaridade são raros os casos que atingiram formação universitária ou maior grau de
formação escolar, de tal forma que as taxas de repetência e desistência são significativas.
Comumente desempregados, dedicam-se a atividades do setor econômico informal
(“bicos”) ou a atividades criminais para manterem a si e ao uso de crack. Se comparadas à
primeira descrição da cultura na cidade (Nappo, 1996) e a estudos posteriores (Nappo et al,
1999; Sanchez & Nappo, 2002; Filho et al., 2003; Guindalini et al., 2006), poucas foram as
mudanças do perfil sócio-demográfico do usuário de crack, a não ser pelo fato de que
atualmente mulheres têm aderido à cultura (Nappo et al., 2003), assim como indivíduos de
melhor condição socioeconômica.
Porém, as características sócio-demográficas encontradas no presente estudo não
são exclusivas aos usuários de crack da cidade de São Paulo, sendo compartilhadas pela
cultura da cidade de Barcelona e por muitos outros estudos que adotaram o uso e o usuário
de crack como objetos de pesquisa (Smart, 1988; Ringwalt & Palmer, 1989; Lillie-Blanton
et al., 1993; Grund et al, 1995; Barrio et al., 1998; Ferri & Gossop, 1999; Timpson et al.,
2001; German & Sterk, 2002; Filho et al., 2003; Ross et al., 2003; Ferri et al., 2004;
Ribeiro et al., 2004; Fisher et al., 2006; Gossop et al., 2006; Guindalini et al., 2006). As
227
mesmas características têm sido descritas por estudos de diferentes épocas e culturas
apontando para o fato de que, além de não sofrer mudanças com o decorrer do tempo,
tampouco parecem ser influenciadas pelo contexto sócio-cultural de onde esteja inserida, o
que a sugere então como um produto direto dos aspectos farmacológicos do crack.
Como identificado no presente estudo, de forma geral, os usuários das cidades de
São Paulo e Barcelona pertencem a classes socioeconômicas desfavorecidas, comumente
habitando em favelas ou bairros de parcos recursos econômicos, havendo muitos que são
ou que já foram, na vida, moradores de rua ou viveram em casas abandonadas (os
“okupas” na cidade de Barcelona) ou em instituições assistenciais. Assim, tal achado nos
leva a pensar se o uso de crack seria específico a populações de determinada condição
socioeconômica ou se a droga, por si só, teria caráter marginalizante, igualando
socioeconomicamente os usuários após determinado tempo de uso.
Contribuindo com o ponto de vista de que o consumo de crack seja específico à
determinada condição socioeconômica, Murphy & Rosenbaum (1992) acreditam que
pertencer a segmentos sociais de parcos recursos financeiros (seja em decorrência da baixa
perspectiva de vida, seja pela proximidade geográfica a pontos de distribuição e consumo),
aumentaria exponencialmente a possibilidade do uso de crack. Em contrapartida, na cidade
de São Paulo, embora o uso de crack tenha sido mais prevalente entre as camadas
socioeconomicamente desfavorecidas, também foi identificado entre sujeitos de classes
socioeconômicas A e B (conforme os critérios de classificação da ABEP, 2000),
contrapondo o ponto de vista da restrição de crack a dada condição socioeconômica e, por
outro lado, sugerindo a disseminação social de seu uso. O que poderia acontecer, nesse
caso, conforme sugerido por Nappo et al. (1996), é a determinação de um “estado de vida”
específico ao usuário de crack, que após a ruptura dos vínculos empregatícios e sociais
alcançaria, mesmo que temporalmente, classes socioeconômicas inferiores às de origem.
Como a maioria dos consumidores está vulnerável às conseqüências negativas associadas
ao uso de crack, a longo-prazo, tornar-se-iam socioeconomicamente “iguais”, de tal forma
a parecer que fossem provenientes de uma mesma classe socioeconômica, como observado
pelos resultados do presente estudo. Logo, mais que uma droga de marginalizados, o crack
parece ser uma droga marginalizante, tornando iguais indivíduos originalmente diferentes.
228
A condição de droga marginalizante foi apontada por McBride (1992) ao
constatar que o padrão de uso de crack mantém relação inversa com o vínculo
empregatício do usuário, de tal forma que quanto mais freqüente fosse, menores as chances
do indivíduo estar empregado. Anos mais tarde, tal constatação foi corroborada por Cross
et al. (2001) ao observar que usuários de crack estariam afastados do setor formal da
economia, dedicando-se à realização de atividades informais, criminais e estando menos
propensos ao recebimento de auxílios financeiros governamentais. Na verdade, a
marginalidade chega a ponto tão crítico que Fisher et al. (2006) afirmaram que usuários de
crack são os mais socialmente marginais entre os usuários de drogas de rua.
Embora consista na situação mais prevalente, deve-se evitar a generalização da
categorização do crack como droga marginalizante, assim como a rotulação do usuário
como socialmente marginal e improdutivo (Giannini et al., 1993), já que na cidade de São
Paulo foram identificados usuários de crack com vínculo empregatício regularizado
(Azevedo et al., 2006) e usuários que, por intermédio de estratégias especiais de auto-
regulação, têm mantido os laços sociais pré-existentes, seja com trabalho, família e
amigos, de forma a evitar a marginalidade social, item a ser melhor discutido adiante.
6.1.2 Histórico do consumo de drogas.
6.1.2.1 Uso Geral.
Na cidade de São Paulo, conforme os resultados do presente estudo, usuários de
crack fizeram uso na vida de até 14 drogas diferentes, das quais muitas têm sido
empregadas simultaneamente a crack com fins de manipular a intensidade ou duração de
seus efeitos. Situação também vigente na cidade de Barcelona, fez com que o usuário de
crack, de ambas as cidades, fosse indubitavelmente considerado como um poliusuário de
drogas.
Tal categorização reflete importante mudança do perfil sócio-demográfico do
usuário quando relacionado à primeira descrição da cultura de crack na cidade de São
Paulo (Nappo, 1996). Em estudo qualitativo realizado no ano de 1992, Nappo (1996)
identificou que a maior parte da amostra entrevistada relatou fidelidade ao uso de crack,
afirmando usá-lo de forma isolada ou exclusiva, não sentindo vontade ou necessidade de
229
associá-lo a outras drogas. Em contrapartida, pequena parcela da amostra (Nappo, 1996)
relatou associar crack a outras drogas, comportamento cuja prevalência tem aumentado
nos dias atuais, conforme indicado não pelo presente estudo, mas por descrições
recentes (Nappo et al., 1999; Sanchez & Nappo, 2002; Filho et al., 2003; Guindalini et al.,
2006). Embora de menor prevalência, conforme demonstrado pelo presente trabalho, o uso
exclusivo de crack ainda existe na cidade de São Paulo, justificando-se pela satisfação dos
efeitos isolados ou pelo receio das implicações associadas a uma possível associação.
Em função de diferenças sócio-culturais e de disposição geográfica entre as cidades
de São Paulo e Barcelona, esperar-se-ia que o histórico de uso de drogas diferisse entre
ambas as cidades. Dentro do histórico, o uso de heroína, metadona e inalantes parece ser o
exemplo mais típico acerca da diferença.
No Brasil, o uso de heroína é insignificante, não tendo sido identificado no I
(Carlini et al., 2001) e nem no II Levantamento Domiciliar sobre o uso de drogas
psicotrópicas nas 108 maiores cidades do país (CEBRID, 2005)
e tampouco em
levantamentos específicos, seja entre crianças e adolescentes em situação de rua (Noto et
al., 2003) ou estudantes dos ensinos fundamental e médio da rede pública de ensino
(Galduróz et al., 2004). Já o uso de inalantes é bastante comum na cidade de São Paulo,
tanto pela população geral quanto por populações específicas (Carlini et al., 2001; Noto et
al., 2003; Galduróz et al., 2004; CEBRID, 2005).
Em contraposição, o uso de heroína é
bastante difundido na cidade de Barcelona (Anta, 1998; Barrio et al., 1998) e em outras
cidades européias, em virtude da proximidade aos países produtores do Oriente Médio e
Ásia ou por consistir em rota à sua distribuição, porém, o uso de inalantes é pouco
relatado, não tendo sido mencionado por nenhum dos integrantes da amostra de tal cidade.
No que concerne especificamente à seqüência ou progressão do uso de drogas, o
presente estudo identificou que cigarro e álcool são as primeiras drogas usadas na vida,
tanto entre os usuários da cidade de São Paulo quanto entre os de Barcelona, corroborando
outros dados da literatura (Kandel & Yamaguchi, 1993; Inicardi & Surrat, 2001; Sanchez
& Nappo, 2002; Filho et al., 2003; Tapia-Canyer et al., 2003). Assim, conforme Kandel &
Yamaguchi (1993),
o melhor modelo para a progressão do uso de drogas é aquele em que
o uso de álcool antecede o uso de maconha, o uso de cloridrato de cocaína (via aspirada)
após maconha e crack depois de cloridrato de cocaína (via aspirada). Já
Filho et al. (2003),
230
ao analisar a média de idade de início do uso de substâncias lícitas e ilícitas entre usuários
de cocaína internados, identificou um escalonamento no histórico de uso, iniciando por
drogas mais leves (cigarro) e migrando ao uso de drogas mais pesadas como o cloridrato
de cocaína (via aspirada). Ainda em termos de posição, Tapia-Canyer et al. (2003)
afirmaram que o cloridrato de cocaína (via aspirada) ocupe entre as posições de 6 a 9
dentro da cadeia de progressão do uso de drogas, exatamente as mesmas posições relatadas
por Sanchez & Nappo (2002) para o crack, variando essa conforme o contexto social de
uso, principalmente no que se refere à disponibilidade da droga.
Em função de seu alto potencial de abuso e dependência (Chen & Anthony, 2004) e
pelas conseqüências associadas ao seu uso, não é raro que o crack seja considerado como a
última droga da seqüência ou como a droga fim-de-linha dentro do histórico de uso de
substâncias psicotrópicas (Du Pont, 1991; Nappo et al., 1996; Sanchez & Nappo, 2002).
Corroborando com tais dados, no presente estudo identificou-se que a compulsão e a busca
frenética pelas sensações de crack fazem com que o uso das demais drogas seja
abandonado, entre elas a maconha e o cloridrato de cocaína (via aspirada), embora sejam
comumente relatadas como drogas de associação conforme discutido adiante. Tal
diminuição parece atribuir-se principalmente ao uso compulsivo de crack, que ao destinar
todos os recursos financeiros do usuário à sua aquisição, impede a continuidade de uso de
drogas antigas, além de frear a entrada de novas drogas, “aprisionando” o usuário ao crack.
Soma-se a isso o fato de que, na ausência de dinheiro, o usuário vê-se obrigado a dedicar-
se à criminalidade, submetendo-se a severo risco de vida e punição. Nesse respeito,
Ribeiro et al. (2006) afirmam que a taxa de mortalidade entre usuários de crack é maior
que para a população em geral, seja por desavenças com a polícia, brigas entre redes de
tráfico ou mesmo por dívidas do usuário com o traficante.
Assim, de forma geral, percebe-se que o uso de crack “encurta” a vida do usuário,
dificultando a construção de uma história com outras drogas, o que faz com que o crack
realmente mereça o título de droga “fim de linha”. Porém, ser “droga fim de linha” é um
termo mais frequentemente associado às implicações da droga na vida do usuário, não
significando que não existam casos em que o crack seja a primeira droga na vida de
indivíduos com pouca ou nenhuma experiência com outras drogas ilícitas (Nappo et al.,
1999; Inciardi & Surrat, 2001; Guindalini et al., 2006).
231
6.1.2.2 As diferentes formas de apresentação da cocaína e a transição de vias.
Especificamente quanto ao uso de derivados da cocaína, tanto na cidade de São
Paulo quanto em Barcelona, tem sido iniciado pela via aspirada, de tal forma que poucos
são os relatos sobre o início do envolvimento por intermédio de crack (Murphy et al.,
1989; Hatsukami & Fischman, 1996; Barrio et al., 1998; Dunn & Laranjeira, 1999; Ferri &
Gossop, 1999; Nappo et al., 1999; Inciardi & Surrat, 2001; Tapia-Canyer et al., 2003; Ferri
et al., 2004), embora tal situação tenha se tornado comum, principalmente depois da rápida
popularização da droga na década de 90 (Dunn & Laranjeira, 1999; Guindalini et al.,
2006). Conforme Guindalini et al. (2006) esse padrão é cada vez mais comum, ou seja,
enquanto usuários de cloridrato de cocaína, seja por via intranasal ou endovenosa,
geralmente iniciam esse histórico de uso através da via intranasal, a via fumada parece ser
a primeira entre os usuários de crack.
No que concerne à transição de vias, nas cidades de São Paulo e Barcelona, é
comum que os usuários que iniciaram pela via aspirada progridam à via fumada. Conforme
os entrevistados, a transição é comumente motivada pela tolerância e desconforto físico
associado à via aspirada (corizas, sangramento do nariz e conseqüente necrose e
rompimento do septo nasal) e, finalmente, pela brevidade e intensa sensação de
recompensa decorrente do emprego da via fumada. Padrão de transição descrito por
outros autores (Ferri & Gossop, 1999; Dunn & Laranjeira, 1999; Ferri et al., 2004), basear-
se-ia principalmente nas diferenças farmacocinéticas entre as diferentes vias de
administração da cocaína. Assim, o ato de fumá-la na forma de cocaína-base (crack)
ofereceria o meio mais rápido de penetração do fármaco na corrente sangnea e no
Sistema Nervoso Central (SNC), por intermédio da absorção pelos alvéolos pulmonares.
Soma-se à eficiência da via, o fato do fármaco não sofrer o efeito de primeira passagem
hepático comum às vias aspirada e endovenosa.
Em relação às demais vias, a única desvantagem da via fumada é em termos de
biodisponibilidade, que 26% da cocaína seria perdida antes de ser inalada, seja por
decomposição ou condensação no dispositivo empregado para fumar (Hatsukami &
Fischman, 1996; Chasin & Mídio, 1997), proporção que conforme Siegel (1982) seria bem
maior. Assim, a via respiratória resultaria na maior rapidez de aparecimento e intensidade
232
dos efeitos fisiológicos e subjetivos proporcionados pelo uso de cocaína, aumentando
consideravelmente o potencial de abuso e dependência a crack e estimulando ainda mais a
transição de vias (Cornish & O’Brien, 1996; Hatsukami & Fischman, 1996; Chasin &
Mídio, 1997; Chen & Anthony, 2004).
Deve-se considerar que o estímulo à transição e, consequentemente, o aumento do
uso de crack, não se deva apenas a fatores farmacocinéticos, mas a fatores supra-
individuais, de natureza social ou psicológica (Inciardi et al., 1993; Barrio et al., 1998;
Dunn & Ferri, 1998; Inciardi & Surrat, 2001), a citar: a) maior disponibilidade de crack,
principalmente no que concerne ao número e confiabilidade dos pontos de venda; b) baixo
custo do crack, por unidade de venda, em relação ao cloridrato de cocaína (pó); c)
facilidade de uso, não necessitando, por exemplo, da parafernália necessária às drogas
injetáveis; d) influência da rede social em que o usuário está imerso, principalmente
quanto ao círculo de amizades e, finalmente e) diminuição do risco de contágio por HIV
em relação à via injetada, conforme já mencionado por outros autores.
Na cidade de Barcelona também é comum que o uso seja iniciado pela via aspirada,
mas conforme Barrio et al. (1998) tem havido uma mudança radical desse perfil, de tal
forma que a proporção de usuários que iniciaram o uso de cocaína pela via pulmonar
aumentou progressivamente dos anos 70 aos 90, havendo uma diminuição da proporção
daqueles que iniciaram o uso pelas vias injetada e aspirada. Uma constatação peculiar às
cidades espanholas e de forma geral às cidades européias, é o fato de que a transição de
vias para cocaína, além de depender de fatores farmacocinéticos e sociais, tem sido
influenciada por fatores culturais, principalmente no que concerne ao uso de heroína
(Anta, 1998; Barrio et al., 1998). Assim, a transição de vias da cocaína acompanharia pari-
passu possíveis modificações quanto à transição de vias à heroína, de tal forma que
indivíduos que tenham trocado a via injetada pela fumada (heroína) aumentam o uso de
crack e diminuem a freqüência do uso injetado de cocaína, enquanto que os outros que
trocam a via fumada de heroína pela injetada, tendem a diminuir o uso de crack e aumentar
o uso endovenoso de cocaína, o que acontece especialmente em Barcelona (Anta, 1998;
Barrio et al., 1998), tendo sido o mesmo padrão descrito em Rotterdam, Holanda (Grund et
al., 1991).
233
Comparada à cidade de São Paulo, a transição do uso de cocaína da via aspirada à
injetada é mais comum na cidade de Barcelona, em função da experiência passada com
outras drogas injetáveis (heroína) ou relacionamento íntimo com usuários de drogas
injetáveis ou meios sociais permeados por tal comportamento (van Ameijden et al., 1994).
Embora culturalmente a cidade de Barcelona tenha maior convivência com drogas
injetáveis, poucos foram os relatos de início do uso de cocaína por tal via, situação ainda
mais rara na cidade de São Paulo. Na verdade, a transição da via aspirada ou fumada à
injetada tampouco era esperada na cidade de São Paulo, pois conforme o II Levantamento
Domiciliar Sobre o uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil (CEBRID, 2005), não há
nenhum relato a respeito do uso de drogas injetáveis na região Sudeste e tampouco nas
demais regiões brasileiras.
Interessante notar que nas cidades de São Paulo e Barcelona, independentemente da
progressão de vias para a cocaína, uma vez iniciado o uso de crack, geralmente torna-se a
via de preferência da cocaína. Em contrapartida, alguns entrevistados, depois de
experimentar a via endovenosa elegeram-na como a via de escolha, em virtude da maior
intensidade de seus efeitos, constatação pouco compreensível já que são inúmeros os
trabalhos que citam a semelhança entre as vias fumada e injetada, não apenas quanto a
aspectos farmacocinéticos, mas também quanto aos efeitos fisiológicos e subjetivos
gerados (Hatsukami & Fischman, 1996; Chasin & Mídio, 1997).
Mesmo considerando-se os dados anteriores é importante ressaltar que usar cocaína
não significa, necessariamente, fazer a transição entre suas vias de administração. Um bom
exemplo é que 2 dos entrevistados da cidade de São Paulo usaram apenas crack e não
experimentaram outros derivados de cocaína, apesar de que também deve ser considerado
que tenham iniciado pela forma de apresentação de maior potencial de abuso e
dependência, o que talvez justifique a ausência de transições. Tal dado é corroborado por
Murphy et al. (1989), que em estudo longitudinal conduzido com usuários de cocaína
aspirada, que não estavam em tratamento, afirmaram que poucos experimentaram crack ou
cocaína endovenosa, prevalecendo o uso da via aspirada, que possuíam informação de
que as demais vias estariam associadas ao uso de padrão compulsivo e descontrolado,
sendo, portanto, evitadas.
234
De forma geral, observa-se que, seja entre os derivados de cocaína ou não, o estudo
da história natural do uso de drogas é essencial, pois ao se contar com informações das
diferentes etapas da progressão de consumo de drogas, intervenções apropriadas de
prevenção e redução de danos podem ser planejadas, interrompendo a progressão ou
minimizando os problemas e implicações a ela associadas.
6.2 O uso de crack.
6.2.1 Acessibilidade e Distribuição.
A distribuição de crack é um processo dinâmico e em contínua transformação,
principalmente se consideradas as formas em que a droga tem sido comercializada. A
princípio, na cidade de São Paulo, o preparo de crack era um processo puramente
artesanal, obtido através da adição de bicarbonato sódico ou amoníaco ao cloridrato de
cocaína (pó) seguido de aquecimento até a formação de cristais, obtendo-se o que era
denominado por casca, como descrito por Nappo (1996) e a exemplo de como era
previamente feito nos EUA (Carlson & Siegel, 1991; Grund et al., 1991; Cornish &
O’Brien, 1996) e como ainda é realizado em Barcelona e em outras cidades européias
(Hunter et al., 1995; Barrio et al., 1998).
A princípio, como identificado no presente estudo à cidade de Barcelona, o
processo de preparo é encarado como um ritual, tornando-se parte integrante do uso e
consistindo, por si só, em efeito recompensador. Conforme os entrevistados, a seqüência
de preparo é desempenhada com precisão e delicadeza, não podendo ser interrompida, de
forma a possibilitar o controle, passo-a-passo, da qualidade da droga. Inicialmente
realizado dessa maneira na cidade de São Paulo, em função da forte repressão contra o
consumo de drogas, o processo de produção e distribuição de crack passou a ser
integralmente controlado pelo traficante, de tal forma que, conforme Nappo (1996), os
usuários aderiram facilmente a tal comércio e distribuição, que o processo de produção
sempre foi bastante laborioso, levando tempo e exigindo paciência, destreza e atenção,
virtudes que definitivamente não pareciam combinar à fissura e à ansiedade decorrente do
uso de tal droga. Além disso, o comércio tornou-se conveniente, que não era mais
necessário carregar a parafernália, tampouco os reagentes empregados à transformação do
235
cloridrato de cocaína em crack. Em mãos do traficante, o mercado desenvolveu-se de tal
forma que até hoje e desde sua aparição, na cidade de São Paulo, não houve dificuldades
em se encontrar o produto (Nappo et al., 1996 e 1999), desenvolvendo-se pontos
específicos de distribuição, que atualmente tem se tornado diversificados e amplamente
difundidos.
Na cidade de São Paulo, a facilidade de acesso a crack é tanta que houve períodos
em que era mais fácil obtê-lo que o próprio cloridrato de cocaína (Nappo et al., 1999). De
forma geral, o fácil acesso a crack deve-se à preferência dos traficantes por comercializá-
lo, que, como se trata de uma droga que gera muito lucro e a curto-prazo, ou seja, como
a dependência instala-se rapidamente (Chen & Anthony, 2004), o usuário torna-se um
comprador assíduo. Assim, o traficante aproveitou-se dessas características da droga para
facilitar a adesão do usuário, disponibilizando apenas crack nos pontos de venda e
sumindo com as demais drogas, de tal forma que por determinado período de tempo o
tráfico, na cidade de São Paulo, devotou-se integralmente à apresentação e atendimento da
demanda inicial por crack (Nappo, 1996). Com o aumento da oferta era de se esperar que a
procura também aumentasse, relação corroborada por outros autores no campo de drogas
(Barrio et al., 1998; Darke et al., 2002). Assim, para suprir a procura por crack, na cidade
de São Paulo, às biqueiras, bocadas ou bocas-de-fumo (pontos de distribuição), somou-se
o tráfico de asfalto, diferenciado por sua existência efêmera e por invadir, de forma
silenciosa e crescente, os espaços urbanos da cidade.
Com o tempo, a modernidade e a ousadia do comércio foram evidenciadas pelo
desenvolvimento de regiões específicas ao uso e livre comércio de crack. Atualmente, na
região central da cidade de São Paulo, nas proximidades da estação da Luz do metrô, a
Cracolândia (Silva, 2000; Capriglione & Gallo, 2006), região degradada da capital
paulistana, considerada área de utilidade pública pela Prefeitura de São Paulo, cujos
domínios tem se expandido. É o reduto do consumo de crack no coração da capital
paulistana, onde o uso, assim como o tráfico de crack, é feito a céu aberto. Infelizmente,
usuários e traficantes demarcaram a área, não havendo nenhum tipo de controle,
intervenção ou repressão policial (Capriglione & Gallo, 2006). Porém, a existência dessas
regiões de livre comércio e uso de crack não é de exclusividade paulistana. Em cidades
espanholas como Sevilla, Valência e Madrid existem regiões semelhantes à Cracolândia,
236
onde o crack é vendido pré-processado. Las Barranquillas, situada em Madrid, é,
recentemente, o maior hipermercado de tráfico de drogas, a pequena escala, não da
Espanha, mas de toda Europa. Consiste numa rua principal, das quais saem outras tantas,
nas quais o comércio de drogas acontece livremente e sem sofrer repressão policial, sendo
freqüentada, a cada dia, por 2000 a 3000 pessoas com distintos graus de dependência,
faturando-se, diariamente, cerca de 500 mil euros (Alvarez, 2005).
em Barcelona, diferentemente do observado à cidade de São Paulo, o uso de
crack continua artesanal, embora o tráfico tenha crescido silenciosa e progressivamente.
Atualmente, relatos a respeito da existência de apartamentos destinados ao comércio e
uso de crack, as casas baratas, em semelhança às “crack-houses” nos EUA (Inciardi et al.,
1993). Porém, ainda é desconhecido se as casas baratas têm as mesmas conotações que as
crack-houses, pois como extensivamente relatado, nos EUA, as “crack-houses”, além de
destinarem-se ao preparo, venda e consumo de crack, são locais em cujas dependências é
permitido prestar-se favores pessoais e serviços sexuais em troca de crack ou dinheiro para
tal (Inciardi et al., 1993), funcionando de forma semelhante às shooting galleries (Carlson
& Siegal, 1991).
Independentemente da localização geográfica ou do contexto sociocultural dos
pontos de distribuição, a forma de apresentação de crack é geralmente a mesma, ou seja,
em pedras, salvo os locais onde ainda é preparado artesanalmente a partir do cloridrato de
cocaína. Quanto à forma de apresentação, tem despertado a atenção o valor relativamente
baixo por unidade da droga. Na cidade de São Paulo, o crack tem sido comercializado por
tamanho ou por grama, variando o valor de custo conforme o ponto de venda contatado.
As pedras são mais baratas quando vendidas por tamanho, variando de 50 centavos de real
a 20 reais, já a venda por grama é mais cara, atingindo o valor de 30 reais a grama. Na
cidade de São Paulo, ambas as formas de comércio foram identificadas na época da
primeira descrição da cultura (Nappo, 1996). Anos mais tarde, no que concerne
especificamente ao tamanho das pedras, Dunn & Ferri (1998) identificaram a venda de
apenas 2 variedades, a pedra de 0,5g e 1g, cujos valores seriam de 5 e 10 reais
respectivamente. Embora não tenha transcorrido muito tempo dessa última descrição, a
situação atual parece diferir um pouco. Assim, tem-se identificado a venda de pedacinhos
de crack, os traguinhos ou peguinhas, mini-pedrinhas suficientes para apenas um tiro ou
237
tragada, comercializados por valores tão ínfimos quanto 1 real. Sua existência também foi
relatada mais recentemente por Capriglione & Gallo (2006), porém sob as denominações
de bilico-bico ou cocô de mosca, ao valor de 2 reais cada. Em semelhança ao encontrado
na cidade de São Paulo, nos EUA, relatou-se a venda de crack em tamanhos e preços
variados, tendo sido também relatada a venda por grama (Carlson & Siegel, 1991).
pra ter uma idéia, o custo de recipientes com 50 a 100 mg de crack varia entre 3 e 10
dólares (Cornish & O’Brien, 1996; Caulkins, 1997; Grogger & Willis, 2000), sendo
numericamente semelhante ao encontrado na cidade de São Paulo, embora um pouco mais
barato se consideradas as devidas proporções.
Embora o custo de crack pareça ser menor que o de cloridrato de cocaína, Caulkins
(1997) afirma que tal diferença não existe, podendo existir ao se considerar o uso a longo-
prazo ou por hora de intoxicação de ambos os derivados da cocaína, o que encareceria em
muito o uso de crack, dado corroborado por German & Sterk (2002). Além disso, não se
poderia considerar o custo de uma droga apenas por seu valor monetário, mas também pelo
inconveniente da procura, o risco de prisão e sanções pela posse, riscos de saúde agudos e
crônicos e, finalmente, riscos ao desenvolvimento de dependência (Caulkins, 1997; Miller
& Neaigus, 2002).
Na cidade de São Paulo, conforme o depoimento dos entrevistados, com o passar
do tempo as pedras têm sido amplamente substituídas por outra forma de apresentação, o
farelo, que parece tornar a atividade ainda mais rendosa ao traficante. Não tendo sido
identificada nas primeiras descrições da cultura de crack (Nappo, 1996), o que aponta à
importante mudança, o primeiro relato de sua existência foi feito na cidade de Rotterdam,
Holanda, onde o traficante tem transformado o cloridrato de cocaína em cocaína-base,
esmagando-o e dividindo-o em pequenas quantidades (o suficiente para se dar apenas um
trago), embalando-os individualmente em pequenos sacos plásticos, denominados little
balls (Grund et al., 1991), nos mesmos moldes aos descritos atualmente à cidade de São
Paulo. Assim, à semelhança do cloridrato de cocaína, o crack passou a ser vendido em
pequenos sacos plásticos ou papéis de alumínio contendo quantidades tão pequenas de
crack quanto uma “pitada de sal”, o denominado papel ou papelote. Além do papelote,
identificou-se, no presente trabalho, a existência das denominadas trouxinhas, que,
238
conforme Nappo et al. (1999) diferenciariam dos “papelotes” apenas pela quantidade de
crack comercializada.
Conforme os resultados do presente trabalho, o farelo é uma forma rendosa de
comércio, pois o volume correspondente a uma pedra passou a ser triturado e dividido em
mais papelotes, cada qual vendido pelo mesmo valor da antiga pedra. Como atualmente é
raro encontrar-se a pedra, de tal forma que muitos dos usuários desconhecem os porquês
de associar-se o crack a tal denominação (de pedra), o farelo remonta o momento da
primeira aparição do crack na cidade de São Paulo, quando para divulgá-lo o traficante
provocou a escassez de outras drogas nos pontos de distribuição levando o usuário a optar
por crack na inexistência de alternativa melhor (Nappo, 1996).
Outro ponto importante a considerar é que mesmo depois de quase 15 anos, o preço
de crack não varia, indicando que sua qualidade tem sofrido intensa transformação.
Conforme os entrevistados da cidade de São Paulo, a primeira pedra era escura, depois
passou a ser esbranquiçada e atualmente existem pedras de tonalidades diferentes,
variando do branco ao laranja, o que pode indicar a estratégia do traficante em atrair
populações cada vez mais jovens ao uso, despertando-lhes a curiosidade acerca da
diferença. De forma semelhante, Carlson & Siegal (1991) detectaram na cidade de Dayton,
EUA, a existência de 2 variedades de pedra, a amarela e a branca, das quais a amarela
proporcionava efeitos mais intensos que continha em sua composição, além de cocaína,
metanfetamina. Assim, a diferença de cor pode indicar diferença de composição química,
podendo causar efeitos de diferentes intensidades. Em contrapartida, a diferença de cor
pode não se tratar de nenhuma estratégia, refletindo apenas diferenças na composição
química da pedra no que concerne aos solventes empregados no procedimento de extração
(ex.: querosene, gasolina, metais pesados, éter, etc), adulterantes (ácido acetilsalicílico,
antidepressivos tricíclicos, anestésicos locais, cafeína, piracetam, etc) ou diluentes
(glicose, lactose, sacarose, bicarbonato sódico, amido, manitol, sulfato de magnésio, etc)
substâncias destinadas ao aumento do volume final da droga, possibilitando maior margem
de lucro aos traficantes (Siegel, 1982; Grund et al., 1991; Weaver & Schnoll, 1999;
German & Sterk, 2002).
Embora, geralmente, os diluentes e adulterantes compartilhem, com o crack,
semelhanças físico-químicas, Carlson & Siegal (1991) citam que nem sempre isso
239
aconteça, relatando-se o uso até de parafina no processo de preparo. Porém, é certo que
muitos dos adulterantes possam ser sublimados e ter ação psicotrópica, assim como crack,
mimetizando e interferindo sobre seus efeitos (Siegel, 1982). Na cidade de São Paulo,
conforme o depoimento dos entrevistados do presente trabalho, os diluentes usados pelo
traficante têm sido alarmantes, relatando-se o uso, até mesmo, de de vidro, de
mármore e fezes de animais.
Porém, a adição de diluentes ou adulterantes não é a única maneira de enganar-se o
cliente. Como descrito por German & Sterk (2002), alguns traficantes transformam
fisicamente a pedra, tratando-a em forno microondas, o que aumenta seu tamanho, dando a
impressão de ser melhor que outras de menores dimensões.
Assim, considerando-se todas essas informações, observa-se que, no final das
contas, a venda de crack realmente é bastante lucrativa, tendo até sido identificada, na
cidade de São Paulo, a abertura de bocas exclusivas à distribuição de crack, caracterizadas
principalmente por sua curta duração já que os usuários, em função de seu padrão
compulsivo de uso, acabam por torná-las vulneráveis à ação policial. Em contrapartida,
para facilitar o acesso e a adesão do cliente ao crack, o tráfico tem desenvolvido estratégias
ousadas, como o crack delivery, que consiste na entrega pessoal e a domicílio da droga.
Embora rapidamente descrita por Nappo et al. (1999), essa técnica parece ser uma
adaptação do que foi descrito para o comércio da cocaína em inícios do século XX, nas
cidades de São Paulo e Rio de Janeiro, conforme Almeida (1920): Outro comércio que
está se generalizando é o do mensageiro ou rápido chamado. A mulher telefona para o
mensageiro mais próximo, para o preferido ou mais conhecido (intermediário entre a
farmácia e a clientela) e pede a droga, daí momentos depois um próprio vai levá-la.
Porém, entre as novas estratégias de venda, o comércio da pedra cristal, nova
forma de apresentação de crack, tem despertado atenção na cidade de São Paulo. A pedra
cristal, de menor tamanho e mais cara que a pedra branca, aparentemente é mais pura e
livre de adulterantes, consistindo no produto da cocção, em água, da pedra branca. Hunter
et al. (1995) relataram que a cocção de pedras de crack em água transformar-nas-ia em sais
solúveis e injetáveis, porém, não parece consistir na pedra cristal citada em São Paulo,
que, conforme os entrevistados, a pedra cozida resultaria em produto gelatinoso que após
secagem solidificaria, podendo ser posteriormente fumada. A transformação em sais
240
solúveis parece exigir a mistura de crack a ácidos de diferentes natureza como suco de
limão e vinagre, habilitando-o a ser administrado endovenosamente (Hunter et al., 1995;
Jacobs, 1999; Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006; Rhodes et
al., 2006; Gossop et al., 2006).
Na verdade, o comércio do farelo e da pedra cristal é paradoxal, mas acredita-se
que simbolize a retratação do traficante com o usuário em função da qualidade do
crack. Com a retratação, o traficante atrairia novos adeptos e ganharia a confiança dos
clientes antigos, iniciando o ciclo novamente. Processo semelhante tem sucedido nos EUA
com a heroína e o crack (Jacobs, 1999). O traficante tem investido na heroína, melhorando
tanto sua qualidade quanto acessibilidade, o que tem despertado a atenção de usuários de
crack, que o têm substituído por heroína, em função da qualidade de crack, da
brevidade de seus efeitos, compulsão de uso e altos gastos com a droga. Essa mudança de
comportamento parece estar revivendo o uso de heroína, iniciando novo ciclo da droga nos
EUA (Jacobs, 1999). Em função de não existir uso de heroína no Brasil, tampouco na
cidade de São Paulo (CEBRID, 2005), a reestruturação parece estar acontecendo do crack
ao crack, necessitando-se de mais estudos para sua melhor compreensão.
Em vista da existência do farelo, de pedras de múltiplas dimensões e cores e das
estratégias desenvolvidas pelo traficante, o crack tem atingido número cada vez maior de
pessoas, inclusive de meninos, jovens e adultos de baixo poder aquisitivo ou em situação
de rua. Situação semelhante tem sido identificada ao comércio de cloridrato de cocaína na
cidade de Sidney, Austrália (Darke et al., 2002). Embora ainda pouco acessível na cidade
(Hando et al., 1997; Darke et al., 2002), estratégias de venda e formas de apresentação
mais baratas têm sido desenvolvidas para atender a necessidade de uso de todos os estratos
socioeconômicos, de tal forma a apresentá-lo à sociedade, possibilitando a rápida adesão
do consumidor a seu uso (Darke et al., 2002). Porém, como observado à cidade de São
Paulo, uma vez atraídos e desenvolvida a dependência, aplica-se a regra geral a todos os
usuários, ou seja, o traficante age com má fé, hostilidade e preconceito no atendimento dos
usuários e os casos mal resolvidos são tratados com violência. Não é raro o desfecho em
morte, que a característica principal da cultura de crack é o jogo de poder, em que
aquele que detém crack tem a habilidade de controlar e manipular a situação.
241
De forma geral, o conhecimento da acessibilidade, formas de apresentação e
composição química de crack são imprescindíveis às autoridades competentes,
estimulando-as ao desenvolvimento de eficientes políticas públicas no campo de
prevenção e tratamento do uso de drogas. Dentre tais aspectos, a composição química de
crack, assim como de outras drogas de rua, parece ser o que tem despertado maior
preocupação e que deveria ser considerado como problema de saúde pública, já que
possíveis interações farmacológicas entre os adulterantes ou diluentes e crack, além de
desconhecidas, são imprevisíveis. Tais interações podem modificar a intoxicação aguda de
crack, de forma a aumentar sua toxicidade, além de exacerbar os riscos à integridade física
e mental do usuário, apontando à necessidade de estudos específicos que possibilitem seu
melhor esclarecimento.
6.2.2 Formas de Preparo e Técnicas para o uso de crack.
Alguns anos atrás, nos EUA e atualmente na Europa, particularmente na cidade de
Barcelona, o crack é comumente preparado a partir do cloridrato de cocaína, removendo o
grupo HCl do composto através do emprego de substância alcalina, seja amoníaco ou
bicarbonato sódico (Carlson & Siegal, 1991; Grund et al., 1991; Cornish & O’Brien, 1996;
Bono, 1998; Barrio et al., 1998). Uma vez pronta, 2 formas de usar o crack sem
misturá-lo a outras drogas, técnicas respectivamente denominadas por freebasing ou
basing ou baseballing (Siegel, 1982; Grund et al., 1991; Barrio et al., 1998) e chinesing
ou chasing the dragon (Grund et al., 1991; Strang et al., 1997; Barrio et al., 1998). O
freebasing, estratégia de uso identificada nas cidades de São Paulo e Barcelona, refere-se
ao uso de crack em cachimbos artesanais, de variadas formas e tamanhos, dentro do qual
cada elemento tem uma razão de existir. Na cidade de São Paulo, conforme os
entrevistados do presente estudo, é impressionante a diversidade de materiais empregados
para a confecção dos cachimbos, aqui denominados por cachimbos de alumínio, dentre os
quais, as latas de alumínio são as mais comumente usadas, cujo ritual de preparo já foi
previamente mencionado por Nappo et al. (2003). Ainda na cidade de São Paulo, o que
tem sido observado é que o tamanho do cachimbo tem diminuído de forma significativa,
citando-se até o emprego de tampas de protetores labiais, reduzindo a parafernália
242
empregada ao uso e despertando menos atenção de terceiros, de tal forma a possibilitar o
uso público da droga. Em contrapartida, na cidade de Barcelona frequentemente usam-se
garrafas de plástico para a confecção dos cachimbos, preenchidas com água ou bebida
alcoólica e cobertas com papel alumínio, constituindo nos denominados cachimbos de
água. Siegel (1982) descreveu esses cachimbos de água para o uso de “freebase”, os
quais eram geralmente de vidro e comercialmente disponíveis, embora a maioria fosse
artesanalmente manufaturada.
Conforme mencionado na seção de resultados, independente da cidade, do tipo do
cachimbo (de alumínio ou de água) e de seu material, a presença do alumínio e das cinzas
de cigarro é obrigatória. O alumínio é o suporte para a pedra ou farelo de crack e as cinzas,
recém-colhidas, são imprescindíveis para o início de seu processo de combustão. O suporte
de alumínio (lata ou folha de papel alumínio) é frequentemente furado, a fim de permitir
que a cocaína sublimada, na forma de vapor, passe da superfície do cachimbo para seu
interior, sendo então succionada e inalada pelo usuário. Já a participação da água foi
predominantemente detectada em Barcelona e raramente citada em São Paulo. O uso do
cachimbo seco, na cidade de São Paulo, permite que o vapor de crack, super aquecido, seja
absorvido pelos pulmões, contribuindo para as queixas respiratórias associadas ao seu uso.
Assim, a água inserida no cachimbo, como feito em Barcelona, resfriaria o vapor e
diminuiria o volume do recipiente, permitindo inalações mais profundas e demoradas, que
no final das contas também contribuiria ao desenvolvimento de problemas respiratórios,
que maior quantidade de monóxido de carbono e partículas sólidas seria inalada (Siegel,
1982). Já o uso de bebida, em substituição da água, conforme mencionado pelos
entrevistados de Barcelona, representaria uma associação de drogas, ou seja, álcool-crack a
ser mencionada em detalhes no item Associação de crack a outras drogas.
Como relatado na literatura (Feeney & Brings, 1992; Ward et al., 2000; Nappo et
al., 2003), o uso de cachimbos gera o aparecimento de bolhas e feridas nos lábios, rosto e
nos dedos dos usuários, em função da alta temperatura requerida para a sublimação de
crack. Considerando-se que, na cidade de São Paulo, latas de alumínio são empregadas
para o uso de crack, as feridas tendem a agravar-se. Como o compartilhamento do
cachimbo é algo comum, tal prática facilitaria o contato de sangue entre usuários,
expondo-os a significativo risco de contágio por AIDS e outras doenças infecto-
243
contagiosas transmitidas através de contato com sangue, embora tal ponto de vista ainda
seja controverso. A exposição do usuário e sua situação de saúde agravam ainda mais
quando considerado que mulheres usuárias trocam sexo oral por crack, possibilitando o
contato sêmen-sangue e aumentando ainda mais o risco de contágio por DST-AIDS
(Nappo et al., 2003 e 2007), apontando à necessidade de programas eficientes de
orientação e redução de danos destinados a essa população.
Conforme os resultados do presente trabalho, na cidade de Barcelona, os métodos
de uso da cocaína tem sido influenciados pelas técnicas empregadas ao uso de heroína,
assim, além do “freebasing”, o crack poderia ser consumido através do procedimento de
“chinesing” ou “chasing the dragon”, já descrito por outros autores (Siegel, 1982; Strang et
al., 1997). Originada de Hong Kong, a técnica consiste no principal método de uso de
heroína nas regiões sudeste e sudoeste da Ásia e, recentemente, em muitos dos países do
oeste europeu. Envolve a inalação dos vapores produzidos pela droga quando aquecida até
seu ponto de sublimação, tipicamente alcançado pelo aquecimento de uma folha de papel
alumínio, contendo a droga sobre uma chama (Strang et al., 1997). Embora simples, de
poucos e pequenos aparatos, a técnica requer destreza pelo usuário, pois além de manter a
droga sob temperatura constante, necessita equilibrá-la sobre o alumínio.
Como se trata de técnica herdada da heroína, foram detectados usuários que
inalam heroína e crack simultaneamente, procedimento semelhante ao speedballing, mas
por outra via, que esse consiste na administração endovenosa e simultânea de cocaína e
heroína, embora o uso intercalado de heroína injetável e de crack (no cachimbo) também
seja considerado como tal (Siegel, 1982; Carlson & Siegal, 1991; Grund et al., 1991;
Perlman et al., 1999; Darke et al., 2002). É interessante notar que, na Espanha, o
aparecimento da técnica de “chasing the dragon” deu-se na década de 90 (Barrio et al.,
1998), acompanhada por aumento significativo do número de usuários de heroína, que a
existência de uma via não-injetável tornou possível o uso da droga por pessoas que até
então não a adotavam por desgostar de seringas e agulhas ou que receavam as
conseqüências de saúde advindas de sua adoção. Em contrapartida, na cidade de São Paulo
não foi citado o uso de crack pela técnica de “chasing the dragon”, em função
principalmente do não-envolvimento dos usuários de crack com a cultura subjacente ao
uso de heroína.
244
Mais especificamente quanto à eficiência das técnicas de “chinesing e
“freebasing”, Grund et al. (1991) afirmaram que o impacto produzido pela técnica de
“freebasing seria maior, constatação confirmada entre os entrevistados da cidade de
Barcelona, que o “freebasing” concentraria toda a droga no interior do cachimbo
enquanto que o “chinesing” desperdiçaria grande parte dos vapores à atmosfera.
Como identificado na seção dos resultados, outra forma de fumar-se crack é
associando-o a tabaco ou maconha, formas de uso respectivamente reconhecidas na cidade
de São Paulo como capetinha e mesclado, mencionados por outros autores (Siegel,
1977; Siegel, 1982; Carlson & Siegal, 1991; Barrio et al., 1998; Perlman et al., 1999) e
raramente empregadas na cidade de Barcelona. Desperta a atenção o fato de que o uso
associado descaracteriza, em parte, os efeitos decorrentes do uso isolado, porém cada qual
apresentaria função específica dentro da cultura. Enquanto a associação com tabaco
permite o uso público e social de crack, a maconha possibilita sua interrupção,
tranqüilizando o indivíduo e permitindo que retorne às suas atividades rotineiras e
cotidianas, funções detalhadas no item Associação de crack a outras drogas.
Outra inovação de crack que tem emergido e desperta preocupação é a borra que
consiste no resíduo impregnado nas paredes do cachimbo após sucessivos usos. Conforme
Siegel (1982), ao fumar-se “freebase”, cerca de 1 a 5% da cocaína permaneceria na forma
sublimada da droga, sendo que a maior parte (67 a 83%) mover-se-ia à região mais fria do
cachimbo, impregnando nas suas paredes e constituindo a “borra”. Assim, no final de uma
típica sessão de consumo, o resíduo poderia ser removido e novamente fumado, parecendo,
conforme os entrevistados, gerar efeitos ainda mais intensos que os da pedra. Porém, ainda
não se sabe se a maior intensidade dos efeitos dever-se-ia à maior concentração de cocaína
ou pela adição, ao resíduo, de substâncias inerentes ao cachimbo, também voláteis e de
possível ação psicotrópica. Apenas se sugere que haja considerável aumento dos riscos de
intoxicação e problemas de saúde associados a tal uso, de tal forma que o desenvolvimento
de novas estratégias ao uso de crack sirva de alerta às autoridades de saúde pública.
Ainda no que concerne às técnicas de uso, Siegel (1982) descreveu uma técnica
interessante em que, para maximizar a quantidade disponível de “freebase”, usuários
inalavam a fumaça e exalavam-na dentro de balões de borracha, reinalando-a
posteriormente. Em semelhança, entre os entrevistados da cidade de São Paulo, detectou-
245
se a existência do shotgunning, descrita nos EUA (Perlman et al., 1999). O
“shotgunning” consiste de uso de drogas ilícitas que envolveria a troca de fumaça entre
dois usuários. Como pode ser exercida com drogas fumáveis, sua prática tem
aumentado com o advento de crack, sendo a maconha a droga mais intimamente associada
à técnica, embora também tenha sido citada ao uso de tabaco, heroína e haxixe (Perlman
et al., 1999). Conforme os entrevistados da cidade de São Paulo, através dessa técnica, o
doador inala a fumaça do cachimbo, passando-a a boca do receptor, seja através do contato
direto entre as bocas ou por contato indireto através do uso de tubos (ex.: cilindros de
caneta), tendo sido empregada quando as reservas de crack são insuficientes, de tal forma
que a quantidade disponível da droga é compartilhada entre os colegas de uso. Porém,
além de motivos puramente econômicos, Perlman et al. (1999) afirmaram que a técnica
também seja empregada com fins sociais, seja em resposta à pressão do grupo (já que não
seria apropriado usar crack ao lado de colegas que não dispusessem da droga) ou à busca
de maior intimidade com outro usuário. Aparentemente inocente, a técnica aumenta o risco
de contágio por doenças infecto-contagiosas do trato respiratório, além de facilitar relações
sexuais desprotegidas em função do erotismo e apelo sexual gerados. Na cidade de São
Paulo, embora frequentemente realizada entre casais, não é raro empregar-se entre
homens, o que pode facilitar relações homossexuais. Em geral, como facilita o contato
sexual, seja homo ou heterossexual, a técnica expõe a cultura de crack a atividades sexuais
de risco, submetendo o usuário a considerável risco de transmissão de DST’s e AIDS.
Em contrapartida, o “shotgunning” está longe de ser a única técnica que mereça
atenção das autoridades de saúde pública. Na cidade de São Paulo, conforme mencionado
na seção de resultados, tem despontado a técnica de uso denominada por “dar a
segundinha”, de objetivo puramente social e econômico, mas que pode, conforme o
“shotgunning”, receber conotação sexual aumentando os riscos de contágio e transmissão
de DST e AIDS, apontando à necessidade de maior número de estudos que possam melhor
esclarecê-la.
Especificamente quanto ao comportamento de fumar, poucas modificações têm
acontecido desde suas primeiras descrições. Assim, atualmente, seu mecanismo pode ser
facilmente compreendido conforme palavras de Siegel (1982) quem descreveu o processo
em detalhes e passo-a-passo: O primeiro estímulo evidenciado pelo usuário é visual, a
246
fumaça por si só. Queimar a “freebase” produz uma fumaça branca que é praticamente
inodora. Ao inalá-la, a fumaça é sentida na boca e parte deposita-se nas membranas
mucosas da boca e nariz, onde é prontamente absorvida (...) à medida que o usuário inala
a fumaça para dentro dos pulmões, o epitélio pulmonar é revestido com pequenas
partículas (...) ao continuar aspirando-a, as partículas atingem os alvéolos e a respiração
é segurada por alguns segundos (...) a duração da inspiração provavelmente determina o
quanto da cocaína e outros constituintes da fumaça são absorvidos nos pulmões e na
circulação vascular durante cada respiração, de tal forma que o que não é aproveitado é
exalado pela boca e nariz.
Além do ato de fumar, outro uso que tem disseminado na cidade de São Paulo é o
de se aspirar crack. Seu mecanismo de ação é ainda pouco compreendido, já que,
sabendo-se que o crack é pouco solúvel em água (Hatsukami & Fischman, 1996; Chasin &
Mídio, 1997), pouco seria absorvido pela mucosa nasal, indicando que as sensações
decorrentes de seu uso estejam mais relacionadas às impurezas e adulterantes do crack que
dele em si. Outra forma de uso indicada pelos entrevistados da cidade de São Paulo é o de
soprar o vapor de crack à mucosa genital que, além de produzir os efeitos esperados,
intensificaria o clima erótico durante o uso, de forma a facilitar comportamentos sexuais
de risco.
Citado por muitos autores, tanto nos EUA quanto na Europa (Hunter et al., 1995;
Jacobs, 1999; Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005; Buchanan et al., 2006; Rhodes et
al., 2006; Gossop et al., 2006), foi detectado o uso injetável de crack. Embora não sido
mencionado no presente trabalho e tratando-se de técnica comum entre usuários de heroína
injetável (Hunter et al., 1995), acredita-se que sua administração reflita a via de
preferência de uso de drogas pelo indivíduo. Outros estudos têm sugerido que a técnica
seja empregada como substituto ao uso injetável de cloridrato de cocaína, indisponível em
determinadas regiões (Jacobs, 1999). Já que se trata de substância pouco solúvel em água,
o crack é submetido a uma série de tratamentos para alcançar a forma injetável, relatando-
se sua dissolução em água seguida de aquecimento ou através de sua dissolução em álcool
(Hunter et al., 1995). Outros autores (Jacobs, 1999; Clatts et al., 2002; Santibanez et al.,
2005; Buchanan et al., 2006; Rhodes et al., 2006) afirmam que a transformação de crack
em sais injetáveis é feita mediante o tratamento das pedras com ácido, seja acético ou
247
cítrico, obtido pelo uso de vinagre ou suco de limão, respectivamente. Qualquer que seja o
procedimento empregado, a dissolução forma uma substância viscosa, exigindo o uso de
agulhas de maior calibre, o que resulta em maiores complicações à saúde física do usuário,
pois maiores são as chances de danos teciduais e contaminação pelos adulterantes de
crack. Além disso, indivíduos que usam crack injetável são mais prováveis de compartilhar
o equipamento de injeção (Hunter et al., 1995; Clatts et al., 2002; Santibanez et al., 2005;
Buchanan et al., 2006; Rhodes et al., 2006), o que os submete a maior risco de contágio
por HIV, exigindo o desenvolvimento de intervenções de prevenção e tratamento
específicos a tal população.
Assim, de forma geral, independentemente da técnica empregada, observa-se que
todas aumentam, de forma direta ou indireta, o risco de contágio do indivíduo por doenças
infecto-contagiosas, transmitidas seja por contato respiratório, através do sangue ou sexo,
constatação que aponta à necessidade de mais estudos que auxiliem na compreensão das
“etiquetas” e da importância dessas técnicas no contexto de crack. É através de
informação sólida que será possível o desenvolvimento de programas de intervenção que
tenham por meta a redução dos danos associados a tais comportamentos.
6.2.3 Efeitos.
É consenso que os efeitos de crack, dentre os derivados da cocaína, sejam os mais
intensos, de início imediato e de breve duração, contribuindo em muito para o
desenvolvimento da compulsão de uso e ao considerável potencial de abuso e dependência
associados à droga (Hatsukami & Fischman, 1996; Chen & Anthony, 2004). Em
consonância com tais estudos, conforme os entrevistados das cidades de São Paulo e
Barcelona, os efeitos de crack são de curta duração, ocorrendo entre 1 e 2 minutos.
Basicamente, seriam divididos em duas categorias, os psíquicos (cognitivos ou
comportamentais) e os físicos. No que concerne aos efeitos psíquicos são classificados em
positivos (de prazer) e negativos (desagradáveis). Os efeitos positivos estão associados às
sensações de adrenalina e euforia de crack, comumente denominados por brisa ou “rush”
(Cohen, 1980; Siegel, 1982). São originados da ação da cocaína sobre a inibição da
recaptação de dopamina nas vias mesolímbica e mesocortical do Sistema Nervoso Central,
248
o que causaria seu acúmulo e conseqüente estimulação (Morris, 1998; Weaver & Schnoll,
1999; Dackis & O’Brien, 2001; Stahl, 2002). A princípio, conforme exposto nos
resultados, os efeitos positivos possibilitariam aumento da sociabilidade, coragem,
sensações de poder, autoconfiança e auto-suficiência, de tal forma que muitos declaram
sentir-se como Deus ou como super-heróis. Há também a exacerbação dos sentidos físicos,
principalmente no que se refere à visão, audição e tato. Porém, é consenso entre os
entrevistados das cidades de São Paulo e Barcelona, que os efeitos positivos sejam de
curtíssima duração, ou seja, durariam de segundos a pouquíssimos minutos,
desenvolvendo-se em toda sua plenitude apenas na primeira tragada, decaindo em
intensidade nas tragadas posteriores, que passam a ser tentativas repetidas e frustradas de
busca da primeira sensação de prazer do dia, conforme mencionado por outros autores
(Siegel, 1982; Carlson & Siegal, 1991; Nappo et al, 1996).
A agradabilidade e o sentido de recompensa dos efeitos positivos é tanta que
muitas vezes tornaram-se indescritíveis pelos usuários, impossibilitando a plena
compreensão por quem nunca fez o uso. De acordo com Cohen (1980), as sensações
positivas possibilitam experiências sedutoras, mágicas e místicas, enquanto outros
afirmam tratar-se da intensificação de todos os prazeres normais, um verdadeiro estado de
êxtase, que poderia, por si só, explicar a continuidade do uso, conforme também destacado
pelo presente estudo. Nappo et al. (1999) descreveram os efeitos positivos e a percepção
sonora de um “tween” que os precederia: é uma sensação indescritível que inicia na
barriga e sobe para a cabeça; quando essa onda chega aos ouvidos faz o som de um
“tween”, os demais sons do meio cessam e são sobrepostos por uma sensação
extremamente agradável. De acordo com Cohen (1980), faz vc sentir-se como Deus ou
Superman por 2 a 4 minutos. No momento do rush um desejo intenso de adentrar os
portões do céu onde o Sol brilha e a energia, por um momento, parece sem fim e ainda
quando vc menos espera um fenômeno maravilhoso começa a acontecer e o resultado é a
claridade. Na sua mente passam velhos sentimentos e experiências que ficaram detidas
por anos. Vc pega a si próprio falando de coisas que estavam guardadas e enterradas.
Essa claridade te permite que sentimentos, antes detidos, escondidos e enterrados,
desapareçam e junto vão-se as dores físicas, ou seja, qualquer dor física que armazene
uma experiência passada e desagradável. Assim, percebe-se que em termos de prazer, os
249
efeitos positivos consistem em sensações indescritíveis e extraordinárias, explicando o
significativo potencial de dependência associado ao crack.
Conforme os entrevistados, durante a sessão de uso, terminados os efeitos positivos
dá-se continuidade com os efeitos negativos reconhecidos por loucura, nóia, pânico ou
“crash” do crack, denominações referidas por outros estudos (Siegel, 1982; Carlson &
Siegal, 1991; Nappo et al., 1996 e 1999). O usuário é acometido por alucinações (visuais,
auditivas e tácteis), delírios persecutórios (paranóia), fissura, ansiedade, medo, angústia,
arrependimento e depressão, cujo conjunto pode levá-lo à realização de comportamentos
atípicos e infundados, desempenhados na tentativa de se livrarem das más sensações.
Assim, são descritos atos de abrir e fechar janelas, acender e apagar luzes, subir e descer
escadas, olhar insistentemente atrás de portas, dentro de guarda-roupas e assim por diante.
Dentre eles, o buscar por pedaços de crack no ambiente de uso é comportamento comum
entre os usuários, previamente destacado por Nappo et al. (1999) na cidade de São Paulo.
Em uma das primeiras descrições brasileiras e científicas a respeito dos efeitos
advindos do uso de cocaína, Almeida (1920) relatou, de maneira clara e sucinta, o
acontecimento das alucinações e delírios em usuários: (...) as alucinações atingem o tato, a
vista e o ouvido. Ao cocainômano parece que tem debaixo de sua pele corpos estranhos,
como cristais de cocaína, areia ou insetos que tentam sair e, às vezes, para lhes abrir
caminho perfuram a pele com alfinetes. As perturbações visuais também são
importantíssimas, tem a visão de sombras, de animais de formas bizarras e fantasmas. As
perturbações do ouvido traduzem-se pela audição de sons ilusórios, o cocainômano sente-
se perseguido por pessoas que o insultam, tem medo e esconde-se em lugares escuros e os
zumbidos auriculares são quase constantes.
No que concerne especificamente aos delírios persecutórios, caracterizam-se por
sua intensidade, de tal forma que durante o uso os indivíduos crêem-se perseguidos pela
polícia ou pelos pais, possivelmente em função da ilegalidade do consumo. O poder da
paranóia e das alucinações é tão forte que podem ser transmitidas de um usuário a outro,
ou seja, se uma pessoa, dentro do grupo e durante o uso, começa a agir de forma paranóica,
os demais tendem a seguir o mesmo comportamento, a não ser que dirijam sua atenção à
realização de outras atividades. Como a paranóia alheia, assim como qualquer outro ruído,
é dito atrapalhar a “brisa” de crack, muitos dos usuários afastam-se do grupo e passam a
250
realizar o uso isolado, por opção própria ou não (nesse caso, os usuários mais paranóicos
são afastados), o que culmina, a longo-prazo, na intensificação do uso e na marginalidade
social do usuário, conforme mencionado por outros autores (Siegel, 1982; Clatts et al.,
2002). Ainda quanto à paranóia, embora não tenha sido foco do presente estudo, a
intensidade da paranóia parece diferir conforme o gênero do usuário (Mooney et al., 2006),
refletindo possíveis diferenças farmacocinéticas da cocaína entre os sexos (Kaufman et al.,
2001; Adinoff et al., 2003).
Somado às alucinações e delírios a fissura ou craving, definida, conforme os
entrevistados, como a vontade irresistível e incontrolável de reviver as mesmas sensações
de prazer e também como uma força psicológica superior sobre a necessidade pela
substância, de tal forma que nunca se satisfazem. Conforme mencionado por Carlson &
Siegal (1991) uma analogia interessante para se compreender a fissura seria compará-la ao
impulso e desejo associados à necessidade de consumir uma sobremesa favorita,
desejando-a mais e cada vez mais. Na verdade, dentre todos os efeitos, a fissura parece ser
o mais agravante. Conforme Dackis & O’Brien (2001), a fissura é um estado desagradável
que pode ser imediatamente remediado pela administração repetida da droga, consistindo
então no reforçador negativo ao ciclo de dependência à cocaína. Corroborando com esse
ponto de vista, para os entrevistados, a fissura é o principal motivo ao uso compulsivo,
associação de crack a outras drogas e, finalmente, desenvolvimento de atividades ilícitas
destinadas à aquisição da droga ou dinheiro para tal, como prostituição, roubos e tráfico
(detalhadas no item Atividades Ilícitas). Esses comportamentos, tomados em conjunto e a
longo-prazo, intensificariam o comprometimento moral e social do usuário, além de
agravar o quadro de dependência, seja a crack ou às drogas associadas (detalhadas no item
Associação de drogas). Assim, considerando-se a seriedade da fissura e suas implicações,
mais estudos se fazem necessários para melhor esclarecê-la, aproveitando-se para buscar
possíveis alternativas destinadas ao seu controle.
Além da fissura, um dos grandes problemas associados ao uso de crack é o ciclo
vicioso que se instala na vida do usuário, ou seja, são poucos os momentos de sobriedade,
de tal forma que guiado pela fissura e disforia (ou depressão), se refugia na droga,
habitando uma dimensão paralela à realidade. Assim, com o uso, perdem-se no tempo e no
espaço.
251
Outro agravante é o fato de que a intensidade dos efeitos positivos tende a diminuir
com o tempo de uso, não apenas ao largo do dia, mas ao longo dos anos, dando vazão
apenas aos efeitos negativos. Paradoxalmente, conforme os entrevistados, a intensidade e a
duração dos efeitos negativos aumentam de forma proporcional ao tempo de uso, assim,
acredita-se que com o passar do tempo haja a tolerância aos efeitos positivos e
sensibilização aos efeitos negativos de crack. Logo, é comum que o prazer, inicialmente
associado ao uso, desapareça e seja substituído completamente pelos efeitos desagradáveis,
que aumentam tanto em duração quanto em intensidade com o período de uso. Não é raro
que o usuário passe a associar um prazer, que não mais existe, às sensações negativas de
crack, ou seja, passa a sentir-se confortado com a fissura, paranóia e demais efeitos
desagradáveis, o que dificulta seu despertar às implicações do uso, tornando a abordagem
de redução de danos e de tratamento bastante complicadas.
Ainda associado aos efeitos, outro problema de saúde pública é que a qualidade do
crack e do cloridrato de cocaína de rua tem diminuído significativamente, sendo muitos os
adulterantes adicionados à sua composição química. Considerando-se que muitos dos
adulterantes são voláteis e têm ação psicotrópica, tem sido difícil distinguir quais efeitos
são decorrentes de crack e qual sua verdadeira participação no quadro psiquiátrico e
sintomatológico desenvolvidos, necessitando de maiores estudos a respeito.
Conforme os entrevistados, além dos efeitos psíquicos os de natureza física,
subdivididos nas categorias motores e viscerais. Dentre os efeitos motores observa-se
intensa paralisia muscular e facial, protrusão do globo ocular (exoftalmia), cicloplegia e
tremores que, em conjunto, possibilitariam a fácil identificação social de usuários de crack,
como se fossem “marcas registradas”. Entre os efeitos viscerais são comuns os distúrbios
do sistema gastrintestinal, identificados como perda de apetite, náuseas, vômitos e
diarréias, que, conforme os entrevistados, seriam o produto da ação ansiogênica de crack,
já que, muitas vezes são desencadeados através da simples intenção de uso, em semelhança
ao já descrito por Noya (1978) entre bolivianos usuários de pasta de cocaína.
252
6.2.4 Padrão de uso.
Em função dos efeitos de crack serem de curta duração, variando entre 1 e 2
minutos, o que requer a utilização de novas quantidades para que se mantenha o estado de
intoxicação, usuários de crack passam a desenvolver um padrão peculiar de uso, o
denominado padrão compulsivo, detectado nas cidades de São Paulo e Barcelona, em
consonância ao que tem sido descrito na literatura (Siegel, 1982; Carlson & Siegal, 1991;
Inciardi et al., 1993; Das, 1994; Nappo et al., 1996; Díaz, 1998; Inciardi & Surrat, 2001).
Conforme mencionado na seção de resultados do presente estudo, no padrão compulsivo é
comum que os usuários percam o senso crítico e o poder de controle sobre suas próprias
vidas. Relegam a família, estudo, trabalho, atividades sócio-sanitárias, higiênicas e
satisfação pessoal a segundo plano, tornando-as imateriais, dedicando-se única e
exclusivamente à procura do prazer possibilitado por crack. O uso é diário, repetido a cada
5 ou 10 minutos, estendendo-se de 2 a 9 dias consecutivos (“binges”), sendo interrompido
quando não há mais recursos financeiros ou quando a resistência física e psíquica do
indivíduo não permitem mais a continuidade do uso. Em cada dia de uso são empregadas
quantidades significativas de crack ou dinheiro, relatando-se o uso de até 40 pedras diárias.
Em suma, no uso compulsivo o crack torna-se o centro da vida do usuário, seu uso é
primordial, é prioridade, de tal forma que necessitam sanar a fissura a cada momento
(Sharpe, 2001), não havendo outro plano ou preocupação com o futuro. Assim, o crack
transforma-se no refúgio da realidade frustrante e opressora.
Dado o uso em larga escala, as reservas econômicas esgotam-se rapidamente. A
falta de recursos financeiros, associada à fissura e às falsas sensações de auto-estima, auto-
suficiência e coragem impelem o usuário de crack a dedicar-se à realização de estratégias
ilícitas (prostituição, tráfico, assaltos, etc) para arrecadação de fundos, submetendo a
própria segurança e vida, além a de terceiros, a considerável risco, o que atribui ao uso de
crack, além de problemas pessoais, outros tantos de cunho social. Carlson & Siegal (1991)
descrevem esse comportamento como geeking, estado de transe em que os valores morais
são esquecidos e desrespeitados em favor do crack.
Conforme exposto na seção de resultados, o caráter anti-social é outra característica
inerente ao uso compulsivo, que usuários comumente iniciam-no em grupo e com o
253
transcorrer do tempo passam a realizá-lo a sós. Uma possível explicação, conforme Siegel
(1982) é que, em determinado instante, o uso em grupo passa a representar um fator
limitante ao uso, que os usuários tendem a disputar pelas quantidades disponíveis de
crack. Como o usuário passa a negar a divisão da droga ou a realização de atividades
ilícitas em benefício do grupo, dá continuidade sozinho, de forma a empregar maior
quantidade de droga que na situação em grupo, atingindo, dessa maneira, maiores níveis de
intoxicação. Assim, após o isolamento, o acesso ao indivíduo e sua recuperação tornam-se
ainda mais difíceis, apontando à necessidade de programas de prevenção, seja primária ou
secundária, que considerem tal problema, de forma a evitá-lo ou solucioná-lo.
Além do uso compulsivo, nas cidades de São Paulo e Barcelona, tem sido
identificado o padrão controlado de uso. Embora o uso controlado tivesse sido
detectado na cidade de São Paulo entre usuários de cocaína injetável (Díaz, 1998) e
cocaína aspirada (Nappo et al., 1999), usuários de crack não conseguiam mantê-lo, assim,
a identificação do uso controlado no presente estudo aponta à importante mudança na
cultura de crack desde suas primeiras descrições (Nappo et al., 1996 e 1999). Conforme o
depoimento de entrevistados da cidade de São Paulo, o padrão controlado é caracterizado
pelas menores freqüência e intensidade de uso e pelo fato do indivíduo não perder o poder
de decisão sobre sua vida, conciliando-o às atividades rotineiras do período pré-crack.
Diferencia-se do uso compulsivo justamente pela continuidade dos nculos de
responsabilidade, comprometimento e preocupação com a vida e futuro, conforme
relatado por outros estudos (Siegel, 1982; Murphy et al., 1989; Díaz, 1998; German &
Sterk, 2002). Como observado na seção de resultados, quando aplicável, os usuários
controlados estavam conscientes da importância do vínculo empregatício em suas vidas,
respeitando seus horários e afazeres, que sabiam de que sem atividade remunerada não
haveria recursos para crack, não se permitindo à realização de atividades ilícitas com tal
fim (item Atividades ilícitas), o que veio diminuir o impacto individual e social associados
ao uso de crack.
Porém, deve-se ater ao fato de que o padrão de uso não é um processo estático, de
tal forma que o uso compulsivo e controlado parecem atuar como fases ou pontos de uso
que se alternam continuamente, ou seja, o uso compulsivo pode se transformar em
controlado e vice-versa, existindo o padrão puramente compulsivo e o puramente
254
controlado. Assim, a combinação de ambas as fases gera o aparecimento de um continuum
de padrões de uso variando do controlado ao compulsivo, a citar: compulsivo;
controlado-compulsivo; compulsivo-controlado; controlado-compulsivo-controlado e,
finalmente, controlado. É comum que o uso seja iniciado como controlado e continue
como compulsivo, o que é de se esperar em virtude do alto potencial de abuso e
dependência de crack. Porém, relatos do uso controlado sem que progrida ou retorne do
uso compulsivo, cujo conhecimento é de grande valia à elaboração de estratégias de
prevenção e redução de danos a usuários de crack.
A transição do uso compulsivo a controlado geralmente dá-se após anos, no
momento em que o indivíduo conscientiza-se das implicações e das concessões feitas em
favor de sua continuidade. O fato de acreditarem não ter mais forças ou estrutura física,
psíquica ou moral para suportar e sustentar as implicações associadas ao uso de crack e a
observação das conseqüências e da vida desastrosa de colegas de uso, não desejando o
mesmo para si, são os principais motivos para o despertar do indivíduo à vida, dirigindo-o
ao uso controlado ou até mesmo à abstinência. Assim, a partir desse ponto, passam a
admitir estratégias subjetivas de controle, em semelhança ao descrito por outros autores
(Siegel, 1982; Murphy et al., 1989; Díaz, 1998; German & Sterk, 2002), a citar: a)
afastamento do contexto associado ao uso de crack, ou seja, tanto dos locais quanto dos
antigos companheiros de uso; b) substituição da pedra de crack por formas menos
compulsivas de uso (pitilho ou mesclado) ou substituição por outras drogas que não crack,
comumente álcool, maconha e cloridrato de cocaína (via aspirada); c) substituição de
pensamentos e comportamentos por novas atitudes, possíveis pela ocupação do tempo de
ócio com atividades não ligadas a droga e tampouco a crack e, finalmente d) forçar-se a
passar maior período de tempo no domicílio com os familiares.
Embora as estratégias de controle estejam em consonância com o exposto na
literatura, German & Sterk (2002) afirmam que as medidas de maior relevância sejam
aquelas que interfiram sobre a disponibilidade de crack, assim, o afastamento do contexto
de uso (locais, colegas e o ato de presenciar outras pessoas fumando) é imprescindível.
Conviver entre usuários de crack e traficantes, por exemplo, é tido como importante
motivador ao uso de crack, que a droga está disponível e as barreiras sociais contra seu
uso são nimas. Porém, nem sempre é simples alterar o contexto em que se está inserido,
255
assim, German & Sterk (2002) sugerem que o controle não dependa apenas da força de
vontade do usuário, mas também de sua condição psicológica e fatores externos ou
ambientais que por vezes não estão a seu alcance, como por exemplo, sua estrutura de vida
familiar e social. Em suma, quanto menos estável a vida do usuário, maior sua propensão
ao uso de crack, ou seja, pessoas que tenham residência própria e vínculo empregatício
fixo são menos prováveis de aumentar a freqüência e quantidade de uso em relação a
usuários desempregados ou moradores de rua.
Assim, sugere-se que o padrão de uso de crack não seja produto apenas da ação
farmacológica da droga, mas da combinação de suas propriedades farmacológicas a fatores
sociais, culturais e psicológicos (Siegel, 1982; Murphy et al., 1989; German & Sterk,
2002). É importante ressaltar que no uso controlado, as estratégias protetoras não são
usadas como motivadoras à abstinência, mas sim à continuidade do uso, de forma que
coexista aos aspectos de sua vida não-relacionados à droga. Atuam de forma a subordinar
o uso de crack às exigências da vida diária, ao invés de permitir que a vida seja inundada
pelo uso da droga, impedindo, dessa forma, que seja cumprido o comportamento
estereotipado comumente esperado ao usuário de crack, modificando o seu perfil inicial
caracterizado como improdutivo, agressivo e ligado a atividades marginais (Giannini et al.,
1993). É interessante notar a semelhança de estratégias de auto-regulação entre os
entrevistados das cidades de São Paulo e Barcelona. Embora na cidade de Barcelona não
tenha sido detectada a existência do uso puramente controlado, a transição compulsivo-
controlado e suas estratégias subjacentes foram identificadas e descritas.
No que concerne aos padrões de uso de crack, o que talvez mereça maior atenção e
destaque é que na cidade de São Paulo as estratégias de auto-regulação adotadas entre os
usuários controlados são as mesmas às relatadas por ex-usuários não-submetidos a nenhum
tipo de intervenção externa, seja tratamento médico convencional ou religioso. Como tais
estratégias foram adotadas por ex-usuários ainda no período de uso, sugere-se que as
medidas de auto-regulação, se tomadas a longo-prazo, poderiam funcionar como eficientes
medidas para o alcance do estado de abstinência. Ao partirem da perspectiva do próprio
usuário, faz-se necessário o estudo aprofundado a respeito do tema e de sua eficiência para
que sejam incorporadas em possíveis programas de prevenção, redução de danos e
tratamento. O achado aponta que o caminho para a redução de danos e possível abstinência
256
esteja centrado no próprio indivíduo, tornando-o menos dependente dos tratamentos
convencionais. No Brasil, a limitação de recursos financeiros destinados ao atendimento e
tratamento de usuários de crack, assim como ao desenvolvimento de programas voltados à
prevenção e redução de danos tem sido importante entrave ao combate da dependência,
logo, investir no desenvolvimento de “estratégias independentes” de tratamento seria de
suma importância. Por outro lado, o conhecimento aprofundado dessas técnicas poderia
melhorar, até mesmo, a adesão do paciente aos recursos já disponíveis.
Embora de relevância, alguns dos temas necessitam de maior estudo e
esclarecimento, entre eles, a técnica da substituição de crack por outras drogas. Embora
relatada por German & Sterk (2002), desconhece-se até que ponto possa ser benéfica como
estratégia de redução de danos, podendo adicionar uma outra dependência ao quadro
psiquiátrico já instalado. Outra observação importante é que a existência do uso controlado
aponta ao uso responsável de crack, diminuindo as implicações morais e sociais
comumente associadas ao uso compulsivo. Como o uso controlado permite que o usuário
continue com seus vínculos sociais (trabalho e escola) e afetivos, a marginalidade não é
mais uma conseqüência obrigatória ao uso de crack, desmistificando e destruindo o
estereótipo errôneo criado ao usuário, o que diminuiria o preconceito, afastamento social e
a negligência dirigida a essa população. Entretanto, a existência do uso controlado não
pode e nem deve ser assumida como uma apologia ao uso de crack e tampouco significa
que não haja riscos associados a seu uso, sendo apenas menores aos observados entre
usuários compulsivos e acontecendo, possivelmente, após maior período de tempo,
conforme previamente sugerido por Díaz (1998).
6.2.5 Associação de crack a outras drogas.
Atualmente, poucos são os usuários de drogas que usam apenas uma única
substância. O uso múltiplo de drogas é um tópico que merece maior estudo, pois como tem
envolvido o uso concorrente ou seqüencial de diferentes substâncias, tem tornado difícil a
conceituação e compreensão exata do termo dependência (Gossop, 2001).
O poliuso de drogas tem sido movido por razões essencialmente farmacológicas,
sendo que, no que concerne especificamente ao uso de crack, é empregado com o
257
propósito de intensificar ou prolongar seus efeitos ou sua substituição quando indisponível.
O poliuso de drogas foi identificado no presente trabalho entre os usuários das cidades de
São Paulo e Barcelona e tem sido extensivamente relatado por outros autores (Siegel,
1982; Carlson & Siegal, 1991; Grund et al., 1991; Gossop et al., 1992; McBride et al,
1992; Grund et al, 1995; Hunter et al., 1995; Iguchi & Bux, 1997; Barrio et al., 1998;
Dunn & Laranjeira, 1999; Ferri & Gossop, 1999; Jacobs, 1999; Perlman et al., 1999;
Bosch, 2000; Magura & Rosenblum, 2000; Inciardi & Surrat, 2001; German & Sterk,
2002; Gossop et al., 2002; Filho et al., 2003; Ferri et al., 2004; Gossop et al., 2006;
Guindalini et al., 2006; entre outros).
O comportamento de multi-uso tem aparecido na cidade de São Paulo, apontando
para significativa mudança da cultura do momento de sua primeira descrição
aproximadamente 15 anos atrás (Nappo et al., 1996). Ao descrever o comportamento do
usuário de crack, pela primeira vez, na cidade de São Paulo, Nappo et al. (1996)
observaram que o uso de crack era único e exclusivo para a maioria dos usuários, de tal
forma que não existia o uso de outras substâncias, atendo-se simplesmente aos efeitos de
crack. Embora esse perfil ainda exista, mediado pelas mesmas razões que as de
antigamente, o uso exclusivo tem sido paulatinamente substituído pelo poliuso de drogas.
Conforme depoimento dos entrevistados, o poliuso é geralmente bem
fundamentado, com o propósito de intensificar os efeitos positivos ou inibir os efeitos
negativos de crack, tentando garantir, de forma geral, a continuidade do uso por dias e
horas a fio ou simplesmente para interrompê-lo por alguns momentos. Poucos são os
relatos da existência de associação “indiscriminada” de crack a outras drogas, sem fins
concretamente determinados.
Na situação de poliuso, a associação é feita com inúmeras classes de drogas,
dependendo sua escolha de critérios subjetivos, podendo um mesmo indivíduo usar até 4
drogas diferentes com uma mesma finalidade, o que corrobora com os dados de Dunn &
Laranjeira (1999) que identificaram o uso de até 4,7 classes diferentes de drogas entre
usuários de crack da cidade de São Paulo. Interessante notar que, como identificado pelo
presente estudo, situações em que a droga de associação, no período pré-crack, não era
usada e tampouco tolerada pelo usuário, de tal forma que no período pós-crack tal uso não
passa a ser aceito como aumenta de forma exponencial. Pode aumentar em tal
258
proporção que a droga de associação pode vir a substituir o crack no posto da droga de
preferência, situação já sugerida por outros autores (Magura & Rosenblaum, 2000; Inciardi
& Surrat, 2001). Na cidade de São Paulo, após inciado o uso de crack, observou-se
significativo aumento do uso de drogas citas, preferentemente álcool, seguido de drogas
ilícitas como a maconha e o cloridrato de cocaína (via aspirada) (Nappo et al., 1996; Dunn
& Laranjeira, 1999; Ferri & Gossop, 1999; Filho et al., 2003; Ferri et al., 2004; Guindalini
et al., 2006), associações também sugeridas por outros estudos não-brasileiros (Carlson &
Siegal., 1991; McBride et Al., 1992; Magura & Rosenblaum, 2000; Inciardi & Surrat,
2001; German & Sterk, 2002; Gossop et al., 2002; Gossop et al., 2006).
Conforme os entrevistados da cidade de São Paulo, no que concerne à associação
com álcool, tem sido empregado para amenizar a ansiedade e a excitação exagerada
decorrente do uso de crack, possibilitando 2 alternativas ao usuário, a citar: a continuidade
do uso de crack mediante o estabelecimento de ciclos de uso, ora crack ora álcool,
estendendo o uso por horas ou dias, padrão que, no final das contas, caracteriza os
“binges” de uso de crack; ou permite que o usuário encerre o ciclo de uso de crack, seja
pela falta de recursos financeiros, seja quando o usuário não tenha mais condições físicas
ou psíquicas para dar continuidade ao uso, ponto de vista corroborado por outros estudos
(Magura & Rosenblaum, 2000; German & Sterk, 2002).
Na verdade, o emprego de álcool é dúbio, pois além de amenizar os efeitos
negativos de crack, de acordo com os entrevistados, é empregado para exacerbar a fase de
intoxicação, intensificando e prolongando os efeitos de euforia e prazer. Independente do
papel que assuma, a ação do álcool é possivelmente mediada pela produção do cocaetileno,
homólogo etílico da cocaína que compartilha muitas de suas ações farmacológicas
inclusive às relativas às suas ações centrais (Chasin & Mídio, 1997). Porém, para que a
formação do cocaetileno ocorra, tornando possível a interferência do álcool sobre crack, é
importante considerar-se a ordem de administração de ambas as drogas. Embora os
entrevistados acreditem que a interferência seja possível de qualquer maneira, seja o álcool
ingerido antes, durante ou após crack, estudos têm demonstrado que ocorra apenas quando
o álcool é ingerido antes ou durante o uso de crack (Pennings et al., 2002), que, sendo
substância de caráter vasoconstrictor, se administrada previamente, o crack diminuiria a
absorção de álcool, limitando a formação do cocaetileno e, consequentemente, a
259
interferência do álcool sobre os efeitos de crack. Dessa maneira, Gossop et al. (2006)
observaram que usuários de crack geralmente fumam-no antes de ingerir álcool, sugerindo
que os efeitos de interferência álcool-crack sejam menos intensos e recompensadores que
os identificados entre usuários de cloridrato de cocaína, que comumente aspiram-no
durante ou após álcool, de tal forma que sua absorção nem sempre é limitada pela ação
vasoconstrictora da cocaína.
Embora se busque pelos efeitos de álcool sobre crack, a relação é recíproca, que,
conforme os entrevistados, o crack inibe o estado ébrio resultante do uso de álcool, o que
pode vir a intensificar a associação e as implicações dela decorrentes. Seja como for,
Magura & Rosenblaum (2000) afirmam que com a associação, o usuário se enredado
num ciclo vicioso, no qual a fissura leva ao aumento do uso de crack que, por sua vez
aumenta o uso de álcool, que incentiva o uso de crack e assim sucessivamente. A relação
crack-cocaína-álcool é tão intensa que Tapia-Canyer et al. (2003) afirmaram que ao
considerar o histórico do uso de drogas, indivíduos que iniciaram o uso na vida com álcool
passaram ao uso de cocaína quase 2 vezes mais precocemente que aqueles que iniciaram o
histórico de drogas com maconha.
Depois do álcool, na cidade de São Paulo, a maconha é a segunda droga mais
frequentemente associada a crack, seqüência confirmada por outros estudos conduzidos
ou não na cidade (Nappo et al., 1999; Inciardi & Surrat, 2001; German & Sterk, 2002;
Ross et al., 2003; Ferri et al., 2004). A maconha, assim como o álcool, é usada com fins
paliativos aos efeitos negativos de crack, diminuindo a fissura, a ansiedade e a excitação
demasiada. É por tal efeito que Labigalini Jr. et al. (1999) indicaram o uso de maconha
como importante estratégia de redução de danos, podendo vir a modificar comportamentos
sociais e induzir o estado de abstinência entre usuários de crack. Em contrapartida,
conforme os entrevistados, a maconha também seria empregada para prolongar a duração
dos efeitos positivos de crack. Porém, independente do propósito com que seja
administrada, Odo et al. (2000) identificaram que o uso de maconha é significativo entre
dependentes de cocaína, o que dificultaria o sucesso de uma possível abordagem
terapêutica, já que poderia despertar pistas contextuais intrínsecas ao uso de cocaína,
incentivando seu uso. Tal ponto de vista é claramente contrário à perspectiva de adoção da
maconha como estratégia de redução de danos, apontando à controvérsia do assunto e à
260
necessidade de mais estudos para melhor esclarecê-lo. Seja como for, para cumprir com
ambos os fins é dito que a maconha deva ser administrada simultaneamente ou após crack,
seja na forma de mesclado ou não, já que se administrada antes a interferência seria
impossível.
Outra associação apontada entre os entrevistados da cidade de São Paulo é crack-
ansiolíticos, dos quais a classe dos benzodiazepínicos é a mais frequentemente citada. De
acordo com os entrevistados, tal associação, assim como relatado ao álcool e maconha,
tem como fins a diminuição da ansiedade, agitação psicomotora, depressão pós-uso e
demais efeitos negativos de crack, de tal forma que Ferri et al. (2004) indicaram-na como
uma tentativa de auto medicar-se das reações adversas decorrentes do uso de crack, a citar:
tremores incontroláveis, intenso rubor e sensação de mal-estar.
a associação crack-cloridrato de cocaína (via aspirada), assim como crack-
álcool, tem papel dúbio, exacerbando os efeitos positivos e inibindo os efeitos negativos de
crack. Conforme Gossop et al. (2006), o uso de cloridrato de cocaína entre usuários de
crack é tão intenso que chegaria a ultrapassar, em freqüência, o uso realizado por usuários
exclusivos de cocaína. Ainda conforme tal associação, Guindalini et al. (2006) sugerem
que os usuários acostumados a consumi-los juntos apresentam maiores riscos de vida,
iniciando o uso de cloridrato de cocaína mais precocemente na vida e apresentando
marcante histórico de envolvimento criminal.
Por último, na cidade de São Paulo, a associação crack-tabaco identificada por
prévios estudos (Dunn & Laranjeira, 1999; Filho et al., 2003), foi novamente mencionada
na seção de resultados do presente trabalho, tratando-se da associação mais antiga,
remontando contextos históricos em que tribos indígenas fumavam folhas de coca junto às
folhas de tabaco com fins religiosos, indicando que o tabaco já pudesse exercer algum tipo
de influência sobre os efeitos da cocaína (Buhler 1946; Siegel, 1982). Conforme os
entrevistados, o tabaco não intensificaria os efeitos positivos e tampouco amenizaria os
efeitos negativos de crack, mas, paradoxalmente, intensificaria os efeitos ansiogênicos e a
fissura decorrente do consumo. Na verdade, o papel do tabaco, a exemplo do uso do pitilho
(crack no cigarro), parece restringir-se principalmente a seu emprego como veículo ao uso
público de crack, sem despertar a atenção de terceiros. Embora se acredite que o uso de
261
pitilho seja importante estratégia de redução de danos (German & Sterk, 2002), a função
da associação crack-tabaco deve ser melhor estudada e compreendida.
Assim como identificado ao álcool, conforme os entrevistados, o uso de tabaco
aumentou no período pós-crack, porém, tal dado deve ser interpretado com cautela. Não
parece que o uso de crack estimule o uso de tabacocomo droga, na verdade, a confusão é
gerada porque as cinzas de cigarro são necessárias para iniciar a combustão da pedra de
crack durante a sessão de uso, de tal forma que quanto maior o uso de crack, maior seria o
uso de cigarro, não sendo raro que o usuário abandone muitos cigarros acesos para a
conseqüente coleta das cinzas, o que não significa que tenha aumentado o uso do cigarro
como droga.
Embora todas as associações sejam arriscadas, pois o uso contínuo de uma
substância pode somar outra dependência ao quadro psiquiátrico instalado, a associação
crack-álcool é a mais preocupante, pois com o tempo o álcool desperta o uso de crack e
vice-versa, de tal forma que ambos os consumos passam a caminhar pari-passu,
constatação previamente identificada para a associação cloridrato de cocaína-álcool
(Magura & Rosenblaum, 2000; Pennings et al., 2002; Filho et al., 2003). Além disso, a
associação crack-álcool aumenta comportamentos de risco e incidência de comorbidades
cognitivas e psiquiátricas. Assim, tem-se identificado que a associação com álcool, entre
usuários de crack, intensifica a irritabilidade e comportamentos violentos (ex.: ideações e
tentativas homicidas) (Pennings et al., 2002), ocorrência de distúrbios cardiovasculares
(Pennings et al., 2002), neuropsicológicos (Di Sclafani et al, 2002; Medina et al., 2006) e
comportamento sexual de risco, principalmente entre as mulheres (Rasch et al, 2000).
Soma-se a isso, o fato de que o cocaetileno, produto da ação farmacológica do álcool sobre
a cocaína, é mais tóxico que a cocaína em si, apresentando meia-vida de eliminação mais
longa que seu precursor, submetendo o usuário a seus efeitos por maior intervalo de tempo
(Cornish & O’Brien, 1996; Chasin & Mídio, 1997).
A severidade da associação crack-álcool pode ser tão marcante que o tratamento
destinado à dependência de álcool, mediante administração do fármaco dissulfiram, tem
diminuído a intensidade e freqüência do uso de cloridrato de cocaína (via aspirada),
melhorando a retenção de usuários ao tratamento terapêutico e aumentando, de forma
significativa, o período de abstinência (Gossop & Carroll, 2006). Porém, a eficiência do
262
dissulfiram sobre o uso de cocaína é limitada conforme o padrão de uso de álcool,
diminuindo com o aumento de sua freqüência e intensidade, de tal forma que melhores
resultados são esperados entre usuários de crack que realizam menor uso de álcool em
relação aos usuários de cloridrato de cocaína (Gossop et al., 2002; Gossop & Carroll,
2006; Gossop et al., 2006). Porém, ainda não se sabe se a interferência do dissulfiram
sobre o uso de cloridrato de cocaína se devido à ação direta do fármaco sobre a droga
ou indiretamente por intermédio do álcool.
Ainda a respeito da associação crack-álcool, como identificado entre os
entrevistados da cidade de São Paulo, não é raro que o álcool substitua o crack como a
droga de preferência, situação que tem sido sugerida como estratégia de redução de danos
(German & Sterk, 2002), cuja eficiência deve ser investigada, já que o uso e a dependência
de álcool também acarretam consideráveis danos à vida do usuário. Além disso, a
associação crack-álcool pode conduzir o usuário à situação de poli-dependência,
dificultando o sucesso de possíveis abordagens terapêuticas.
Conforme resultados do presente estudo, na cidade de Barcelona também se
observou o poliuso de substâncias entre usuários de crack, porém, em função de diferenças
culturais entre Barcelona e São Paulo, as substâncias associadas são diferentes. Na cidade
de Barcelona, o crack é frequentemente associado a substâncias de caráter sedativo como
heroína e ansiolíticos. Embora de risco à integridade física e psicológica do indivíduo, o
papel da associação crack-heroína-ansiolíticos é semelhante ao observado a crack-álcool
na cidade de São Paulo, ou seja, tem sido empregada com fins de suprimir a ansiedade,
agitação psicomotora, paranóia e outros efeitos negativos decorrentes do uso de crack,
propósitos previamente mencionados por outros autores (Wesson & Washburn, 1990;
Carlson & Siegal., 1991; Hunter et al., 1995; Jacobs, 1999; Fischer et al., 2006; Gossop et
al., 2006).
Embora na cidade de São Paulo, principalmente nos primórdios de seu
aparecimento, o crack tenha surgido como uma opção segura frente ao uso endovenoso de
cloridrato de cocaína (Nappo, 1996; Díaz et al., 1998), na América do Norte e EUA o uso
de crack não foi considerado como um substituto do uso de drogas injetáveis, estando
bastante disseminado entre usuários de heroína (Carlson & Siegal, 1991; Grund et al.,
1991; Gossop et al., 1992; McBride et al, 1992; Hunter et al., 1995; Iguchi & Bux, 1997;
263
Anta, 1998; Barrio et al., 1998; Jacobs, 1999; Perlman et al., 1999; Booth et al., 2000;
Magura & Rosenblaum, 2000; Young et al., 2000; Cross et al., 2001; Best et al., 2001;
Lejuez et al., 2005), o que disseminou, dentro da cultura de crack, a incidência de
comportamentos de risco típicos a usuários de drogas injetáveis, predispondo-a ao
contágio e transmissão de AIDS e outras doenças infecto-contagiosas.
Além da heroína e ansiolíticos, o álcool e derivados da Canabbis sativa (maconha e
haxixe) foram citados com fins de suprimir os efeitos negativos de crack. Embora pouco
citado, o uso de álcool desperta atenção, já que seu emprego é feito de forma indireta,
substituindo-se a água do cachimbo por uísque ou rum. Considerando-se que o álcool é
substância volátil e que o crack sublimado acumula-se no interior do cachimbo
(comumente a garrafa de plástico), sob altas temperaturas o álcool vaporiza juntando-se às
partículas de cocaína sublimadas, resultando então na associação crack-álcool-cocaína. Os
entrevistados que adicionam álcool ao cachimbo relatam a exacerbação da euforia induzida
por crack em relação à situação com apenas água, sugerindo a possível associação crack-
álcool, a princípio descrita por Siegel (1982), porém, em moldes bastante diferentes ao
identificados à cidade de São Paulo.
Dentre as associações citadas na cidade de Barcelona, a mais frequentemente
empregada com fins de exacerbar a euforia e demais efeitos positivos é a que faz
referência a crack-ketamina. A ketamina potencializaria a ação da cocaína em virtude da
similaridade de seus efeitos, que, em se tratando também de agente anestésico e pico,
bloquearia a neurotransmissão adrenérgica, exacerbando a função simpatomimética da
cocaína. Tal associação corresponderia a importante risco de vida ao usuário, uma vez que
poderia induzir colapso cardiovascular, podendo conduzir o usuário a óbito.
Embora a princípio sejam feitas de forma inocente e recreacional, a longo-prazo, a
associação de crack a outras drogas representa importante risco à integridade física e
mental do usuário. Como exemplo, cita-se a associação crack-heroína. Conforme
mencionado na seção dos resultados, na cidade de Barcelona, dentre os 21 entrevistados
que relataram combinar crack à heroína, 13 nunca haviam sequer experimentado-a,
enquanto os 8 entrevistados restantes readmitiram o uso em suas vidas. O problema está ao
se considerar o alto poder indutor de dependência e o desenvolvimento de possível
síndrome de abstinência à heroína, não sendo raro que venha substituir o crack como droga
264
de preferência. Jacobs (1999) afirma que tal substituição tem sido possível nos EUA,
principalmente após a mudança das condições de comércio da heroína, no que concerne
especialmente à pureza da droga, preço por unidade e padrão de consumo.
O que parece piorar a situação é a constatação de que pacientes submetidos à
terapia de metadona, opióide empregado como paliativo à síndrome de abstinência à
heroína, tem incentivado o uso de drogas estimulantes, comumente cloridrato de cocaína e
crack (Grund et al., 1991; Avants et al., 1994; Darke et al., 1994; Grella et al., 1995; Best
et al., 2001; Kerr et al., 2005). Conforme Best et al. (2001) uma relação direta entre a
dose prescrita de metadona e a freqüência de uso de crack, ou seja, quanto maior a dose de
metadona, mais freqüentes os episódios de uso de crack. Na cidade de Barcelona, o uso de
drogas estimulantes foi identificado entre tais pacientes, com o propósito de lidar com a
sobriedade e a sensação de vazio existencial decorrentes da interrupção do uso de heroína.
Porém, é interessante notar que o crack não é a única droga empregada com tais
fins, de tal forma que pacientes submetidos à terapia de metadona relatam o uso de até 3,2
classes diferentes de drogas (Darke et al., 1994; Hunter et al., 1995). Além disso,
associado ao poliuso de drogas, tem sido identificado que pacientes sob terapia de
metadona têm maiores chances de engajarem em comportamentos de risco, ou seja, de
injetarem-se drogas, compartilhando seringas, agulhas e outros equipamentos de injeção,
comportamento que acaba predispondo-os ao contágio por HIV e outras doenças infecto-
contagiosas (Darke et al., 1994).
No que concerne especificamente ao uso de crack, conforme presenciado na cidade
de Barcelona, a associação com metadona parece ser uma via de mão dupla. Embora
pacientes sob terapia de substituição por metadona busquem crack para amenizar
problemas existenciais, usuários de crack buscam por metadona como paliativo aos efeitos
negativos ou excesso de euforia. Assim, o uso de metadona tem disseminado entre
indivíduos que nunca fizeram uso na vida de heroína, o que tem incentivado o
desenvolvimento de mercado negro à sua aquisição, problema não apenas detectado na
cidade de Barcelona, mas mencionado à cidade de Londres (Hunter et al., 1995), onde o
uso de metadona aumentou no período entre 1990 e 1993, de tal forma que a maior parte
dos usuários a obtinha ilicitamente. Ao usar metadona o usuário de crack soma ao seu
quadro de dependência um fármaco de considerável potencial de abuso, o que dificulta
265
ainda mais seu funcionamento social, já que ao se tratar de substância sedativa, induziria
excessiva sonolência diurna, impedindo-o de realizar suas atividades rotineiras.
Se tomados em conjunto, os dados apontam ao desenvolvimento de novas medidas
de redução de danos ao uso de heroína, o fortalecimento de medidas de repressão contra o
tráfico de metadona, além da limitação da terapia e acompanhamento adequado àqueles
que dela realmente necessitem. A exemplo, atualmente as autoridades de Catalunya têm
desenvolvido medicamento oral, à base de heroína sintética, que substituirá a metadona no
tratamento da síndrome de abstinência à heroína, medida que ainda encontra-se em fase de
testes.
De forma geral, no que concerne à associação de drogas, considerados os dados de
São Paulo e Barcelona, observa-se que apesar do crack, por si só, representar importante
risco à vida do indivíduo, causando-lhe uma série de problemas e privações, seu uso pode
conduzi-lo a drogas ainda mais potentes, causando-lhe danos individuais e sociais ainda
mais severos. Assim, o poliuso de drogas senão representa importante risco de vida ao
usuário, que são inúmeras as reações tóxicas entre crack e as demais drogas associadas,
gera consideráveis danos à integridade física, moral, social, psicológica e neurocognitiva
do usuário, predispondo-lhe ao contágio por HIV, DST’s e outras doenças infecto-
contagiosas e envolvimento com atividades criminais destinadas à obtenção de recursos
financeiros a crack ou à droga associada. Aparte, o poliuso de substâncias dificultaria a
identificação da dependência de crack e de sua severidade, assim como a dependência às
drogas associadas, dificultando a adesão do usuário a programas de intervenção
(tratamento ou redução de danos) e apontando ao desenvolvimento de estratégias
específicas à cultura de crack que possam, de alguma maneira, impedir a progressão de
drogas na vida do usuário. Assim, acredita-se que o tratamento deva ser específico a
poliusuários, que, se alguma das dependências passa despercebida, é muito provável que
todo o ciclo de uso, inclusive o de crack, seja reiniciado, reinstalando a dependência e
tornando o tratamento em vão.
266
6.2.6 Atividades ilícitas.
A fissura gera uma urgência psicológica por crack que acaba por deflagrar o padrão
compulsivo de uso. Como o uso é, em sua maioria, diário e repetido, o usuário acaba
investindo muitos recursos financeiros em crack, causando sua rápida depleção. Nas
cidades de São Paulo e Barcelona constatou-se que, como muitos dos entrevistados têm
baixo poder aquisitivo, faltando-lhes uma profissão ou fonte de renda fixa que lhes
possibilite a continuidade do uso, é comum que abandonem o senso crítico, moral e de
auto-proteção, realizando trocas em suas vidas, ou seja, que na ausência de recursos
financeiros passem à prática de atividades ilícitas, destinadas única e exclusivamente à
aquisição de crack, seja em troca da droga ou dinheiro para tal, como previamente
mencionado por outros autores (Siegel, 1982; Carlson & Siegal, 1991; Murphy &
Rosenbaum, 1992; Hatsukami & Fischman, 1996; Nappo et al., 1996; Dunn & Laranjeira,
1999; Ferri & Gossop, 1999; Grogger & Willis, 2000; Hoffman et al., 2000; Logan &
Leukefeld, 2000; Best et al., 2001; Booth et al., 2000; Cross et al., 2001; Inciardi & Surrat,
2001; Sharpe, 2001; German & Sterk, 2002; Miller & Neaigus, 2002; Timpson et al.,
2003; Lejuez et al., 2005; Nappo et al., 2003 e 2007).
Assim, é comum que iniciem através da venda de pertences próprios e da família,
migrando à realização de atividades ligadas a tráfico e crimes (pequenos roubos, assaltos,
seqüestros, pensamentos e tentativas de homicídios), até que atinjam a prostituição.
Embora rápida, a transição parece acontecer em etapas. Primeiramente, uma quebra e
um distanciamento do usuário dos vínculos empregatícios formais, passando a dedicar-se a
estratégias de trabalho temporárias e itinerantes, o que causou, na cidade de São Paulo, a
realização dos “bicos” (como guardadores de carro, “flanelinhas”, carregadores de sacolas
e carrinhos de feira, entre outros) entre os representantes da cultura de crack, corroborando
com os dados da primeira descrição na cidade de São Paulo (Nappo et al., 1996). Porém,
como o crime é comum no contexto da cultura de crack, a continuidade do uso foi possível
mediante a execução de estratégias ilegais ou ilícitas, financeiramente atraentes e,
sobretudo rápidas, sanando com eficiência a fissura e o uso compulsivo da droga. O fato de
não exigir capacidade intelectual privilegiada e tampouco habilidades específicas tornou a
adesão às atividades ilícitas a decisão acertada e crescente. Nos EUA, o mesmo padrão de
267
comportamento foi descrito por Cross et al. (2001) ao afirmarem que o usuário de crack é
comumente excluído do setor formal da economia, sendo pouco provável que estabeleça
vínculos formais de trabalho ou receba auxílios de fundos de ajuda social, o que os conduz
à realização de trabalhos informais e atividades ilícitas.
Quanto à atividade desempenhada, parece haver uma distinção entre os sexos, ou
seja, enquanto mulheres dedicam-se à prostituição, os homens tendem a realizar pequenos
furtos, assaltos e atividades ligadas ao tráfico (Dudish & Hatsukami, 1996; Cross et al.,
2001). Embora esse padrão tenha sido identificado nas cidades de São Paulo e Barcelona,
parece atualmente estar sujeito a pequenas modificações.
Especificamente quanto ao papel da mulher na cultura de crack, tem-se observado
importante modificação em relação à primeira descrição do comportamento na cidade de
São Paulo (Nappo et al., 1996). A princípio, as mulheres não tinham sido detectadas na
cultura de crack, porém, depois de identificadas, constatou-se que o limitado acesso a
recursos financeiros e legais forçaram-nas à prostituição, seja por dinheiro ou em troca de
crack (Nappo et al., 2003). Tal padrão de comportamento, identificado também na cidade
de Barcelona e mencionado por muitos outros estudos (Carlson & Siegal, 1991; Murphy
& Rosenbaum, 1992; Ferri & Gossop, 1999; Booth et al., 2000; Hoffman et al., 2000;
Logan & Leukefeld, 2000; Cross et al., 2001; Inicardi & Surrat, 2001; Sharpe, 2001;
Miller & Neaigus, 2002; Timpson et al., 2003; Maranda et al., 2004; Lejuez et al., 2005;
Nappo et al., 2007), dentre muitos efeitos tem desequilibrado o poder entre os sexos dentro
da cultura. Conforme Carlson & Siegal (1991), a vida de crack é um jogo de relações de
poder no qual quem detém crack merece a habilidade de controlar e manipular outros. E é
nesse contexto de poder e manipulação que favores sexuais são trocados por crack. Como
geralmente são os homens quem detêm a posse de crack, têm o poder social de requisitar
sexo, sem estabelecer qualquer tipo de compromisso ou vínculo de responsabilidade e
respeito com a mulher usuária de crack. Assim, manipula-a, explora-a e humilha-a,
tornando-a dependente dessa relação. Para Murphy & Rosenbaum (1992), a figura
masculina é imprescindível ao início e continuidade da prostituição feminina. Como as
mulheres têm o corpo a vender, aceitam o papel inferior e secundário dessa transação
comercial, sendo pouco ressarcidas e podendo, até mesmo, não receber o valor estipulado
(Nappo et al., 2003 e 2007). Como se prostituem pela droga, muitas vezes apenas por um
268
trago (como mencionado na seção de resultados), é comum que as usuárias sejam
procuradas por homens que não pertençam à cultura de crack, mas que estejam à procura
de sexo de baixo custo (Carlson & Siegal, 1991; Sharpe, 2001).
A posse do poder é tão intensa que essas mulheres passaram a submeter-se a
situações constrangedoras por crack. Nos EUA, mulheres pagas para realizar sexo oral,
recebem pagamento extra se aceitam engolir o esperma do parceiro ou se o permitem
ejacular dentro de seus ouvidos (Carlson & Siegal, 1991). Na cidade de São Paulo,
conforme identificado no presente estudo, a humilhação tem atingido níveis indescritíveis
já que tem despontado uma nova forma de prostituição, dita compulsória, na qual homens,
usuários de crack, empregam a própria esposa a traficantes ou a outros usuários em troca
de crack ou de dinheiro, não representando, necessariamente, em vantagem de uso às
mulheres, na sua maioria também usuárias.
Além disso, ultimamente, a associação “mulher e troca de sexo por crack” é cada
vez mais intensa, que as mulheres têm-se tornado mais promíscuas, o que é constatado
pelo maior número de programas e parceiros sexuais (Carlson & Siegal, 1991; McBride et
al., 1992; Szwarrcwald et al., 1998; Booth et al., 2000; Hoffman et al., 2000; Logan &
Leukefeld, 2000; Inciardi & Surrat, 2001; Lejuez et al., 2005; Nappo et al., 2003 e 2007).
mulheres que relatam 100 parceiros sexuais mensais (Inciardi & Surrat, 2001),
enquanto outras atingem 30 programas sexuais diários (Carlson & Siegal, 1991). Tal
comportamento de risco tem piorado em função do aumento da freqüência do uso de crack
(McBride et al., 1992; Hoffman et al., 2000) e da associação de crack a outras drogas, seja
antes ou durante o ato sexual (Rasch et al., 2000). Por exemplo, estar sob efeito de crack
antes e durante o ato sexual, assim como de crack e álcool, é importante fator psicossocial
que tem influenciado no uso inconsistente de preservativo entre usuárias de crack (Logan
& Leukefeld, 2000; Timpson et al., 2003), embora a libido sexual e o oferecimento de
maior recompensa pelo programa sejam também fatores interferentes (Szwarcwald et al.,
1998; Miller & Neaigus, 2002). A esses, soma-se a constatação de que a adesão de
mulheres ao uso de preservativo é complexa e ocorre lentamente (Timpson et al., 2001),
principalmente no que diz respeito às práticas de sexo oral e anal (Carlson & Siegal, 1991;
McBride et al., 1992; Booth et al., 2000; Hoffman et al., 2000; Logan & Leukefeld, 2000;
Lejuez et al., 2005), submetendo-as a considerável risco de contágio por doenças
269
sexualmente transmissíveis (DST’s) como hepatite C, gonorréia e sífilis (Cornish &
O’Brien, 1996; Booth et al., 2000; Ward et al., 2000) e risco de contágio por HIV
(Szwarcwald et al., 1998; Booth et al., 2000; Hoffman et al., 2000; Rasch et al., 2000;
Timpson et al., 2003), fortalecendo cada vez mais a relação crack-HIV e submetendo a
cultura de crack a consideráveis riscos.
Embora a troca de sexo por crack seja atividade distinta da realizada por
profissionais do sexo (Szwarrcwald et al., 1998; Nappo et al., 2003 e 2007), parece
também atingi-las, de tal forma que prostitutas usuárias de crack engajam mais
frequentemente em atividades sexuais desprotegidas, começam a vida sexual mais
precocemente e ganham, em média, menos que prostitutas não-usuárias de crack na cidade
de São Paulo (Szwarrcwald et al., 1998). Entretanto, o que tem tornado a situação ainda
mais alarmante, exacerbando seu caráter como um problema de saúde pública, é o fato de
que a prostituição tem deixado de ser atividade feminina, tendo sido detectada entre
homens nas cidades de São Paulo e Barcelona. Conforme identificado e detalhado na seção
de resultados do presente estudo, a prostituição masculina é atividade distinta da feminina.
Não consiste na estratégia de escolha, sendo praticada apenas quando surge a
oportunidade, ou seja, não ponto, não procura pelo cliente e tampouco um valor pré-
definido ao programa. São comumente procurados por outros homens, seja ou não no
contexto do uso de crack, embora a procura por mulheres também seja relatada, mas em
menor proporção. Como geralmente a oferta não é condizente com sua opção sexual, os
homens não trocam sexo por valores irrisórios, tampouco por crack ou tragos. Quanto à
modalidade sexual, os entrevistados do presente estudo afirmam que o sexo oral é o mais
freqüente, não pela rapidez do ato como identificado entre as mulheres (Nappo et al.,
2003), mas em função da crença de que tal prática comprometeria menos sua sexualidade,
ou seja, que o sexo oral não os degradaria tanto quanto o sexo anal.
Na cidade de São Paulo, a prostituição masculina também foi recentemente
identificada por Azevedo et al (2006), representando, de forma geral, importante mudança
na cultura de crack desde sua primeira descrição (Nappo, 1996). Nos EUA, a prostituição
masculina também é assunto relativamente recente. Carlson & Siegal (1991) descreveram-
na em moldes diferentes aos relatados no presente trabalho, de tal forma que se restringiria
ao atendimento apenas de mulheres, dando-se prioridade ao sexo vaginal. Inciardi et al.
270
(1993) identificou a troca de sexo por crack, entre homens, no contexto das “crack-
houses”, comportamento atualmente disseminado a outros contextos sociais (Inciardi &
Surrat, 2001; Maranda et al., 2004). Finalizando, no que concerne à prostituição dentro da
cultura de crack, para Maranda et al. (2004) um importante diferenciador entre as
prostituições feminina e masculina consistiria no fato de que, entre as mulheres, a
atividade surgiria como a possibilidade de sanar a fissura por crack, enquanto que entre
homens seria decorrente do estímulo da libido sexual pela droga.
Embora a prostituição masculina exista, é quase consenso de que entre os homens a
participação em atividades de tráfico e crimes seja a primeira escolha (Dudish &
Hatsukami, 1996; Cross et al., 2001). Assim, conforme descrito no presente estudo,
iniciariam a carreira ilícita através da venda de pertences próprios e da família, de tal
forma que o comprometimento moral asseverar-se-ia com o tempo ao assumirem postos
diversificados dentro da rede de tráfico, passando posteriormente à realização de roubos de
grande porte, seqüestros e tentativas de homicídio, aumentando as taxas de violência e
criminalidade vigentes na cultura. A existência de relação direta entre o uso de crack e o
aumento da taxa de criminalidade e de violência geral já foi sugerida anteriormente
(Hatsukami & Fischman, 1996; Grogger & Willis, 2000; Best et al., 2001). Grogger &
Willis (2000), ao conduzirem uma investigação científica em 27 áreas metropolitanas dos
EUA, a fim de determinar o ano exato de aparição do crack no país, demonstraram que a
taxa de crime, principalmente atentados à propriedade privada, aumentou de forma
exponencial na transição dos anos 80 aos 90, coincidentemente a época de aparecimento
do crack, indicando a estreita relação entre a droga e a taxa de violência. Nos EUA, a
exemplo do identificado na cidade de São Paulo, a participação em atividades ligadas ao
tráfico surgiu como importante estratégia à arrecadação de fundos para crack (Hatsukami
& Fischman, 1996; Cross et al., 2001), alternativa que atualmente tem sofrido algumas
modificações.
Por serem considerados como pouco confiáveis, os usuários têm sido
estigmatizados e excluídos do ramo ilegal da economia, sendo baixa a probabilidade de
ocuparem cargos de confiança ou até mesmo de serem admitidos na rede de tráfico. Esse
“preconceito”, também observado na cidade de São Paulo, tem sido identificado porque
usuários de crack são pouco ressarcidos mesmo ao assumirem cargos de responsabilidade.
271
Assim sendo, a relação custo-benefício é baixíssima, que se expõem a consideráveis
risco de punição e prisão, participando das atividades de tráfico exclusivamente em função
da fissura por crack. Outro ponto de discussão é o fato de que embora se acredite que o
aumento da taxa de violência, na cultura de crack, seja exclusivamente decorrente da ação
farmacológica da droga, não se poderia excluir do processo a importância da índole do
indivíduo, já que houve casos, no presente estudo, de entrevistados que mesmo sob uso
compulsivo não se dedicaram a nenhuma atividade que os comprometesse moralmente.
Esse ponto de vista também é corroborado por Hatsukami & Fischman (1996), ao
sugerirem que o crack apenas aflore e intensifique a personalidade e o comportamento
criminoso do indivíduo, sendo comum que usuários de crack tenham passagem pela
polícia antes de iniciado o consumo.
Para finalizar, observa-se que o comportamento do usuário de crack frente à droga
é o mesmo independente do contexto sócio-cultural em que esteja inserido, sendo
geralmente caracterizado por marcante afastamento social e dedicação a atividades ilícitas.
Tal constatação corrobora com a sugestão inicial de que o crack seja uma droga
marginalizante e não de que o uso esteja restrito, necessariamente, a pessoas
marginalizadas. O envolvimento do usuário com crime e prostituição aponta à necessidade
das autoridades competentes considerarem a seriedade do uso de crack e implicações
associadas, que implica importante risco, senão individual, à sociedade como um todo.
É um problema de saúde pública de relevância, pois além de aumentar a incidência de
episódios de violência e criminalidade, aumenta a incidência de comportamentos sexuais
de risco, predispondo a cultura de crack ao contágio e transmissão de DST’s e HIV.
Considerando-se que o comportamento de risco dificilmente fica restrito à cultura,
disseminando-se para outros setores sociais, aumenta-se o impacto e a seriedade das
implicações associadas ao uso, dificultando ainda mais seu controle.
272
Eu falo para o meu marido, vc está falando na minha orelha e eu
nem estou te ouvindo porque o crack está me chamando e ele
me chama devagar, com carinho, não me chama gritando (...)
(NA35FU – São Paulo)
Conclusões
s
273
7. Conclusões
Em função da extensão dos resultados, as conclusões foram divididas em tópicos:
(a) Sugere-se que as características da cultura de uso de crack, salvo poucas diferenças,
seja independente do contexto sociocultural em que esteja inserida, sendo
predominantemente resultante das interferências farmacológicas e psicológicas da droga
em si. Especificamente à cultura de uso da cidade de São Paulo, na última década, tem
sofrido importantes modificações, contribuindo ao comprometimento físico, psicológico,
moral e social do usuário, além de expô-lo a consideráveis riscos de vida.
(b) Embora a participação feminina tenha sido extensivamente relatada na literatura, o
usuário de crack, em sua maioria, ainda é caracterizado como homem, jovem, de baixa
classe socioeconômica e nível de escolaridade e geralmente sem vínculos empregatícios,
desempenhando atividades pouco remuneradas e de baixa responsabilidade (bicos)
destinadas à sua subsistência ou à continuidade do uso. Em contrapartida, existe o usuário
de melhor poder aquisitivo e aquele que permanece vinculado à sociedade através da
continuidade das atividades sociais características do período pré-crack.
(c) Considerando que o usuário de crack é, em sua maioria, de baixa condição
socioeconômica e sem nculo empregatício, sob fissura e com fins de continuar o uso, é
comum que se dediquem à realização de atividades ilícitas de rápido retorno financeiro,
gerando, além de significativo comprometimento moral e social, importante risco à vida do
usuário. O comprometimento moral e social é graduado, iniciando pela venda de pertences
próprios e familiares e migrando à realização de pequenos furtos, roubos, seqüestros e
atividades ligadas à distribuição de crack e outras drogas. O ápice da degradação parece
ser o envolvimento com a prostituição, tanto feminina quanto masculina, que
desempenhada com grande número de parceiros e caracterizada pelo uso inconsistente de
preservativo, tem exposto a cultura à importante risco de contágio por DSTs e HIV.
274
(d) O uso de crack não parece ser exclusivo, de forma que o usuário fez ou faz uso de
outras drogas na vida, caracterizando o usuário como poliusuário de drogas. Sugere-se
que o crack seja a droga fim de linha, pois depois de iniciado, geralmente suspende-se o
uso de outras drogas ilícitas, dificilmente estabelecendo uma história de vida com drogas
nunca usadas.
(e) O crack é a droga de preferência dentre as formas de apresentação da cocaína, em
virtude, principalmente, da rapidez de início de seus efeitos psíquicos e da tolerância e
desconforto físico associado ao uso prévio de cloridrato de cocaína. clara transição
entre as vias de administração da cocaína, dentre as quais, geralmente, a via aspirada é a
primeira e a fumada (crack) é a última da seqüência.
(f) O crack é uma droga facilmente acessível. A qualidade de crack, suas formas de
apresentação e as estratégias de venda têm sofrido notáveis modificações. Na cidade de
São Paulo, no que concerne à forma de apresentação, antes preparado pelo próprio usuário
e referido por casca, o crack passou a ser comercializado pelo traficante na forma de
pedras, cada vez menores. As pedras têm sido paulatinamente substituídas pelo farelo,
forma mais rendosa ao traficante. Porém, independente da forma, o crack tem perdido em
qualidade em virtude dos diluentes e adulterantes adicionados à sua composição química.
Em contrapartida, relata-se o aparecimento de formas tratadas e mais puras de crack como
a pedra cristal. Já no que concerne ao traficante, tem interferido diretamente sobre a venda
de crack a fim de facilitar a adesão do usuário, relatando-se o desenvolvimento de regiões
ou bocas específicas à sua venda e estratégias como o crack delivery e o comércio de
pedras coloridas.
(g) As formas de uso também estão sujeitas a significativa mudança. Quando inalado, o
crack pode ser usado através de cachimbo ou em cigarros de tabaco ou maconha. O
cachimbo é de diversos materiais e suas dimensões são cada vez menores. Novas
estratégias de uso têm despontado e submetido a vida do usuário a importantes riscos, a
citar: o uso da borra, “shotgunning”, “dar a segundinha” e aspirar crack. Embora ainda não
citado na cidade de São Paulo, o uso intravenoso tem predisposto a cultura de crack, como
275
um todo, a consideráveis riscos, principalmente no que concerne ao contágio por DSTs e
HIV.
(h) No que concerne aos efeitos, ocorrem em 2 fases distintas. Primeiro, dá-se os efeitos
positivos ou de prazer seguidos pelos efeitos negativos ou desagradáveis. Dentre os efeitos
negativos, a fissura parece ser o de maior impacto. Mas, é o conjunto o responsável pelo
alto poder de dependência associado a crack, de tal forma que, na amostra da cidade de
São Paulo, quase a totalidade é ou foi dependente da droga. A necessidade de modular
ou intensificar os efeitos, sejam os positivos ou negativos, têm levado o usuário a associar
drogas lícitas e ilícitas a crack, conduzindo-o a somar outras dependências ao quadro
psiquiátrico, de forma a não comprometê-lo, mas dificultando o sucesso de uma
abordagem terapêutica ou de redução de danos a ele destinada.
(i) Finalmente, o padrão de uso de crack não parece ser um processo estático, mas um
continuum que varia da compulsão ao controle. Além da etapa compulsiva de uso, a mais
comum, tem sido relatada a existência do uso dito controlado, de menor comprometimento
à vida do usuário, mediada por uma série de estratégias, não impostas externamente, mas
desenvolvidas de forma intuitiva pelo próprio usuário. A principal característica do uso
controlado é que o crack é conciliado às atividades sociais vigentes no período pré-uso.
Embora haja comprometimento físico em função das implicações biológicas da droga, o
uso controlado não parece predispor o usuário a riscos significativos de vida como faz o
compulsivo. Longe de ser um incentivo ao uso de crack, o possível controle demonstra que
o usuário não é, necessariamente, o irresponsável e inconseqüente até então caracterizado
por outros estudos, de tal forma a diminuir o preconceito a ele associado, além da imagem
a ele estereotipada. Além disso, a existência do controle poderia servir como importante
estratégia de intervenção, principalmente no que concerne à redução de danos, apontando à
necessidade de aprofundamento de estudos a respeito.
276
Consideração Final
Em vista da natureza dos efeitos de crack é de se esperar que o usuário assuma um
padrão perigoso de consumo caracterizado por afastamento social, desenvolvimento de
atividades ilícitas e predisposição à dependência a outras drogas psicotrópicas,
comportamento que independe do contexto sócio-cultural e que vem tornando-se mais
severo na cidade de São Paulo. Tomados em conjunto, é quase certo que o uso gere
implicações de relevância à vida do usuário, não sendo raro culminar em sua
marginalidade social, prisão, incidência de doenças de difícil prognóstico e até morte.
Então, a percepção do usuário a respeito de crack e de si próprio é carregada de
negativismo. Não é raro que atribuam toda a responsabilidade à ação farmacológica da
droga. Embora importante, não se pode desconsiderar a contribuição da índole de quem faz
o uso, que pode ser decisiva ao processo. Assim, usuários de consumo controlado foram
identificados, cujas estratégias, se compreendidas em sua plenitude, poderiam funcionar
como importantes ferramentas de redução de danos. Embora ainda seja um perfil de baixa
prevalência, é essencial o desenvolvimento de estratégias de prevenção e tratamento pelas
autoridades competentes, de tal forma a serem incentivadas pelo presente estudo.
277
(...) o crack não é mal, é malíssimo, é o pior inimigo com quem
tive que lutar em toda minha vida, porque tem me destruído
de dentro pra fora e perdia cada vez mais um pouco
da minha vida até que ao final a
perdi por completo (...)
(JM39ME – Barcelona)
Referências Bibliográficas
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278
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ABSTRACT
Introduction: Despite of all government interventions adopted against crack-cocaine use, even after
15 years of crack-cocaine introduction in Brazil, specifically in the city of São Paulo, we have
witnessed an increasing in its prevalence of use. Its persistence in the Brazilian context, in this
period of time, may be due to 2 possible factors, i.e., or due to the modification of the crack-
cocaine user profile, not being contemplated by the available prevention, harm reduction and
treatment strategies or due to the development of especial strategies for crack-cocaine use, which
seem to keep the user social bonds (concerning especially on family, school and job activities),
making the crack-cocaine use and a normal social life a possible and controllable situation, which
in a long-term basis could stimulate or spread its use. Aim: Through a qualitative approach, this
research aimed to characterize the crack-cocaine culture in the city of São Paulo, Brazil,
identifying, among other issues, the crack-cocaine user profile and the crack-cocaine pattern of use.
As a piece of this research was also conducted in the city of Barcelona, Spain, it was made a
comparison between the crack-cocaine culture from both cities to verify if the characteristics
presented depend on the drug itself or if depend on the social-cultural context where it belongs.
Methods: Qualitative research, particularly the ethnography tradition, is the best way to study
“hidden populations”, monitoring drug use trends and identifying emerging behavioral practices of
relevance to public health. In this research, an intentional sample selected by criteria was adopted,
composed by crack-cocaine users (N=65) and ex-users (N=27), a total of 92 subjects. Recruited
through key-informants and snowball sampling method, each participant was submitted to a semi-
structured interview, guided by a questionnaire, which lasted between 60 and 150 minutes each
one. In order to compare to the interview generated data, a fieldwork was conducted at regions
where crack-cocaine use and trafficking were common, using a diary for field notes. For analysis,
data from both the fieldwork and interviews were submitted to a rigorous series of procedures,
allowing to the generation of the research results and hypotheses and theories to emerge. Results:
The majority of crack-cocaine use is performed by young men, characterized by low purchasing
power, low educational level and no formal work income activities. Women, as well as users of a
better purchasing power were also detected but in a lower prevalence. Generally easily accessible,
crack-cocaine is defined as an “end line” drug. Crack-cocaine makes possible two categories of
effects, the positive or pleasure ones and the negative or unpleasant ones. “Binging” is the most
common crack-cocaine pattern of use, which lasts for hours or days, till subject has no more
financial resources or physical conditions to go on it. When financial resources lack, crack-cocaine
users engage in atypical or illegal income generating activities, submitting themselves to severe
moral and social degradations. They report selling proper and family belongings, robberies,
kidnappings, activities related to drug and crack-cocaine trafficking and, finally, prostitution, either
among females and males. Due to the uncountable sexual partners and inconsistent condom use,
the crack-cocaine culture has been exposed to considerable risks concerning on SDT and HIV
transmission. It has been identified exclusive crack-cocaine users, but the majority of the users
report using other drugs, licit or illicit, to modulate crack-cocaine effects. So, it has been reported
the use of alcohol, marijuana (or haxixe), cocaine chloridrate, heroin and methadone, defining the
crack-cocaine user, from São Paulo and Barcelona cities, as polydrug users. Concerning on pattern
of crack-cocaine use, the controlled or sporadic one has been identified, reported as a way to
control crack-cocaine use, subordinating it to the exigencies of daily life rather than allowing user
lives to be completely overtaken by the drug. In fact, it is a long-term, responsible and non-daily
crack-cocaine use, mediated by individualized internal protective factors which stem from the
subjects’ self. Besides important for harm reduction, they were reported from ex-users, not
submitted to medical nor religious treatment, as important measures to reach the abstinence state.
Finally, concerning on the forms of crack-cocaine use, variations of the inhalation administration
have been reported. Previously made in tobacco cigarettes, marijuana joints and in crack-cocaine
pipes, nowadays, new techniques have been developed, among them “shotgunning” and “giving
the second one”, which have predisposed the crack-cocaine culture to considerable risks to STD
and HIV transmission, since user has associated them to the engagement on frequent and
unconcerned sexual activity. Conclusions: Considering these findings together, it is observed that
the crack-cocaine culture in the city of São Paulo has suffered profound modifications, which
could justify the reasons why crack-cocaine users have not been submitted to the available health
interventions. Concerning on crack-cocaine use, although still compulsive and submitted to
relevant health risks, it has been reported the controlled pattern of use, mediated by control
strategies that could be introduced as efficient measures of harm reduction, even being able to
function as abstinence measures when took in a long term-basis. However, the most intriguing data
has been about the similarity of the crack-cocaine culture between the cities of São Paulo and
Barcelona, pointing to the fact that its characteristics could be a function of the pharmacologic
crack-cocaine effects rather than the socio-cultural context where it belongs.
A
nexos
s
(...) você perde a realidad
e da vida, perde tudo, perde a si
próprio. É um consumo muito destrutivo, não me
importava mais se morresse. Se queria a morte
pra mim, o que ia querer para outras
pessoas? É como estar morto
em vida (...)
(J30MU – Barcelona)
Anexos
A
NEXO
1: Guia de entrevista da cidade de São Paulo.
A
VALIAÇÃO DO USO E DO USUÁRIO DE CRACK APÓS UMA DÉCADA DA INTRODUÇÃO DA
DROGA NA CIDADE DE
S
ÃO
P
AULO
O pesquisador deverá informar o entrevistado acerca dos objetivos e da metodologia
propostos ao projeto, ressaltando que as informações são sigilosas, de forma a respeitar,
a todo o momento, o anonimato do participante. O consentimento de participação e a
permissão da gravação das informações deverão ser registrados, em fita, pelo
pesquisador.
1. DADOS SÓCIO-DEMOGRÁFICOS
1.1 Sexo
1.2 Idade
1.3 Estado Civil? Já foi casado alguma vez?
1.4 Tem filhos? Quantos? Com quem moram?
1.5 Com quem vive atualmente? Sozinho (a), com os pais ou com companheiro (a)?
1.6 Em que bairro mora? Mora perto de favela ou não?
1.7 Caracterização da moradia (É barraco? Casa de alvenaria? Pensão? Cortiço?)
1.8 Crê em alguma religião? Qual? Pratica a religião?
1.9 Quanto tempo que vc fez ou faz uso abusivo de crack?
1.10 Quando foi a última vez que vc usou crack? (tentar dizer o dia da semana ou o
número de dias, semanas ou meses do último uso).
1.11 Hoje, vc faz uso abusivo de alguma droga lícita (cigarro/ álcool/medicamento)? E
ilícita (além do crack)?
2. ANTECEDENTES PESSOAIS
2.1 Família de Origem
2.1.1 Mora ou morou com os pais? Se não mora mais, dar o motivo e quanto tempo
saiu de casa.
2.1.2 Caracterizar a moradia dos pais (Moram perto de favela? É barraco? Quantos moram
na mesma casa?...) Se for a mesma casa que a atual, pular a pergunta.
2.1.3 Seus pais trabalhavam ou trabalham? Quais as atividades desenvolvidas por cada
um?
2.1.4 Como era o ambiente familiar? Era um ambiente harmonioso ou conflitivo? Se
conflitivo, dar o motivo e os membros da família responsáveis pela desarmonia.
2.1.5 Algum membro da família fez ou faz uso abusivo de drogas lícitas (cigarro, álcool e
medicamentos)?
2.1.6 Algum membro da família fez ou faz uso abusivo de drogas ilícitas (maconha,
cocaína, crack...)?
2.1.7 O consumo na família, se presente, influenciou o uso pelo participante em algum
momento?
2.1.8 Se não o uso pela família, qual a postura dos pais em relação ao uso de drogas
(lícitas e ilícitas)? Os pais faziam algum tipo de pressão para que o consumo fosse
abandonado?
2.1.9 Chegou a deixar de lado atividades em família em favor ao uso de crack?
2.1.10 O número de desentendimentos e/ou brigas, na família, aumentou após o inicio do
consumo de crack?
SE A FAMÍLIA ATUAL E A FAMÍLIA DE ORIGEM FOREM AS MESMAS, PULAR
AS PRÓXIMAS PERGUNTAS SOBRE A FAMÍLIA ATUAL.
2.2 Família Atual
2.2.1 É um ambiente harmonioso ou conflitivo? Se for desarmônico, citar o motivo e com
quem se dá o conflito.
2.2.2 Essas pessoas fazem uso de drogas lícitas (cigarro, álcool e/ou medicamentos)? E
drogas ilícitas?
2.2.3 Se o uso de drogas (lícitas e ilícitas) na família atual estiver presente, influenciou de
alguma maneira o seu consumo?
2.2.4 Se a família atual não faz uso de drogas, qual a postura em relação ao seu consumo?
Há algum tipo de pressão para que o consumo seja interrompido?
2.2.5 O número de desentendimentos e/ou brigas, na família, aumentou após o inicio do
consumo de crack?
3. CRACK & ATIVIDADES SOCIAIS
3.1 VIDA ESCOLAR
3.1.1 Vc estuda atualmente? Já estudou? Até que série estudou?
3.1.2 Chegou a repetir alguma série? Quantas vezes repetiu?
3.1.3 Parou de estudar? Quantas vezes?
3.1.4 Em geral, tinha dificuldades de aprendizagem? Freqüentou alguma classe especial de
ensino?
3.1.5 Sentiu que a repetência, a dificuldade de aprendizagem ou a desistência do estudo
estavam associadas ao uso de drogas ou ao uso específico de crack?
3.2. TRABALHO
3.2.1 Já trabalhou? Perguntar a respeito das atividades realizadas, ressaltando a
realização de bicos e vínculo empregatício formal (registrado).
3.2.2 Vc trabalha atualmente? Se estiver desempregado, verificar se a condição está
associada ao consumo de drogas em geral e/ou mais especificamente ao uso de crack.
Verificar se chegou a consumir crack durante o período de trabalho.
3.2.3 Vc acredita que o consumo de crack atrapalhou ou atrapalha sua relação com as
atividades do trabalho? Em caso negativo, questionar quais estratégias que utilizaria para
conciliar o consumo de crack à rotina de trabalho.
4. HISTÓRICO DO CONSUMO DE DROGAS
4.1 Qual a primeira droga consumida (seja ela licita ou ilícita)? Com que idade iniciou?
Por qual motivo? (Curiosidade?Pressão por parte de amigos? Influência familiar?)
4.2 fez uso, na vida, de álcool ou cigarro? E de medicamentos lícitos (anfetaminas,
benzodiazepinicos, opiaceos...)? E quais drogas ilícitas já consumiu?
4.3 Montar uma seqüência de drogas consumidas na vida, incluindo cigarro, álcool e
outros derivados da cocaína.
4.4 Se houver o consumo de outros derivados de cocaína, citar a razão da opção pelo
crack.
4.5 Dentre as drogas experimentadas, houve alguma droga de maior impacto (marcante),
seja esse positivo ou negativo? Por quê?
5. EVOLUÇÃO DO CONSUMO DE CRACK
5.1 Primeira Vez
5.1.1 Há quanto tempo vc consome ou consumiu crack?
5.1.2 Quantos anos vc tinha quando consumiu o crack pela primeira vez?
5.1.3 De que maneira conseguiu a droga nessa primeira vez (comprou, ganhou, achou...) ?
5.1.4 Onde estava nessa primeira vez (escola, trabalho...)? Estava sozinho ou
acompanhado (a)?
5.1.5 Se estava acompanhado, os outros sabiam que vc nunca tinha experimentado antes?
Eles influenciaram seu uso?
5.1.6 Nessa primeira vez, em que forma consumiu o crack? (pedra, farelo, mesclado...) E
em que quantidade consumiu (número de pedras, em gramas..)?
5.1.7 Já tinha estado em ambientes ou com pessoas que consumiam e mesmo assim não
consumiu?
5.1.8 Nessa época, vc tinha alguma informação sobre o crack? Em relação a seus
aspectos positivos (prazer) ou negativos (dependência)? Localizar a fonte de origem da
informação (mídia; amigos; pais; livros...).
5.1.9 O que te levou a consumir crack nessa primeira vez?
5.1.10 Quais foram os efeitos produzidos pelo crack nessa primeira vez? Vc sentiu a
mesma coisa que esperava sentir?
5.2 Etapa Habitual
5.2.1 Depois de quanto tempo da primeira vez, vc percebeu que o uso de crack passou a
ser habitual, realizado com certa periodicidade (em dias, semanas ou meses)?
5.2.2 Se o consumo passou a ser habitual, qual era a freqüência de consumo? (aos finais de
semana? Só durante a semana?)
5.2.3Como conseguia a droga? Chegou a se envolver em atividades que antes não tolerava
ou não aceitava para aquisição do crack? (Participou de assaltos? Roubava dinheiro em
casa ou mesmo na rua? Prestou serviços ao tráfico local? Chegou a fazer programas?)
5.2.4 Onde era feito o consumo? Era um uso isolado ou em grupo? O que interessava mais,
o consumo em grupo (social) ou a droga em si?
5.2.5 O crack passou a ser consumido em forma diferente da anterior? (pedra, farelo,
mesclado) Em que quantidade?
5.2.6 Os efeitos mudaram em relação à primeira vez ou continuaram sendo os mesmos?
5.2.7 Por quê o uso de crack passou a ser um hábito? Existia algum problema em sua
vida que despertava a necessidade de ficar sob o efeito constante do crack?
5.3 Etapa Intensiva
5.3.1 Alguma vez, dentro desse uso habitual, houve algum episódio que tenha
desencadeado um aumento do uso? (aumento da freqüência ou da quantidade?) Se sim,
qual foi esse episódio?
5.3.2 Chegou a determinar uma outra etapa de uso? Se sim, quanto tempo durou essa
nova etapa?
5.4 Situação Atual (PARA USUÁRIOS)
5.4.1 Quando vc consumiu o crack pela última vez? Atualmente, qual é a freqüência de
uso e a quantidade consumida?
5.4.2 O consumo é isolado ou em grupo?
5.4.3 Teve desejo persistente de consumir crack ou dificuldade de diminuir o consumo?
5.4.4 Tentou alguma vez interromper esse consumo? Como? Recebeu o apoio de
alguém?
(PARA EX-USUÁRIOS):
5.4.5 Vc fez uso de crack nos últimos 6 meses? Se não, quanto tempo não consome
mais crack?
5.4.6 Hoje vc faz uso de outras drogas ilícitas? E lícitas (medicamentos) ? Por que?.
5.4.7 Como conseguiu parar de usar crack? (Ex.: Adotou algum tipo de estratégia?
Recorreu a programas especializados de tratamento? Vinculou-se a atividades religiosas
e/ou sociais para se desvincular do consumo?) Recebeu o apoio de alguém?
6. POLICONSUMO DE CRACK E OUTRAS DROGAS
6.1 O consumo de crack é exclusivo ou acontece simultaneamente com outras drogas
(lícitas e ilícitas)? O crack despertou o uso de alguma outra droga que anteriormente não
era usada? Citar quais.
6.2 Pensando de forma contrária, o consumo de crack diminuiu o consumo de outra droga
que anteriormente vc consumia? Se sim, qual?
6.3 a combinação específica de alguma droga ao crack com o propósito de
AUMENTAR os efeitos agradáveis ou DIMINUIR os efeitos desagradáveis?
6.4 Se há associação, as drogas são consumidas misturadas ou o consumo é simultâneo? Se
houver associação, perguntar se a quantidade da droga lícita ou ilícita associada aumentou
após o início do consumo de crack.
7. EFEITOS IMEDIATOS DO CONSUMO DE CRACK
7.1 Quais os efeitos agradáveis decorrentes do consumo de crack? Esses efeitos mudaram
ao longo das etapas de consumo?
7.2 Quais os efeitos desagradáveis decorrentes do consumo de crack? Esses efeitos
mudaram ao longo das etapas de consumo?
7.3 Vc chegou a necessitar de maiores quantidades de crack para atingir os mesmos
efeitos que antes?
7.4 Gastou muito tempo se recuperando dos efeitos do crack ou comprando-o?
7.5 Já sentiu sintomas de abstinência quando os efeitos do crack passaram?
7.6 Consumiu crack em maior quantidade ou por mais tempo que realmente pretendia?
8. C
ARACTERIZAÇÃO DO APARTO NECESSÁRIO AO CONSUMO DE
CRACK (C
ACHIMBO
)
8.1 O uso de cachimbo é obrigatório para o consumo de crack ou existe algum outro tipo
de estratégia para o consumo (fora o cachimbo e mesclado)? De que material é feito o
cachimbo?
8.2 Quando um usuário está sem cachimbo, é comum o seu compartilhamento? Vc
compartilha? E esse compartilhamento tem um significado especial ou é pra dividir a
droga mesmo? Vc acredita que o compartilhamento gere algum problema de saúde ao
usuário?
8.3 Tem outra forma de compartilhar a droga sem ser pelo cachimbo? PERGUNTAR
SOBRE A ESTRATÉGIA DE SHOTGUN. SE EXISTIR, PROCURAR INVESTIGAR A
IMPORTÂNCIA DESSA PARA O AUMENTO DA SOCIABILIDADE E PRAZER DO
USO.
9. ACESSIBILIDADE E DISTRIBUIÇÃO DE CRACK
9.1 É fácil conseguir crack? Pedir para comparar com a obtenção de outras drogas.
9.2 Como (compra, ganha, obtém por trocas...) e onde vc consegue crack?
9.3 Em que forma obtém o crack? (em pedra?em farelo?) Por quanto compra a
unidade?
9.4 Se existem formas diferentes de consumo, diferença de preço entre elas? E os
efeitos, diferem de uma forma à outra?
9.5 Que tipo de relação mantém com as pessoas que te conseguem crack? (são amigos?
É uma relação apenas comercial? É um contato de confiança?) Essas pessoas vendem
também outras drogas ou só o crack?
9.6 Vc acredita que o consumo de crack tenha aumentado a sua rede social (número de
amigos)?
10. VANTAGENS E DESVANTAGENS ASSOCIADAS AO CONSUMO DE
CRACK
A partir desse momento, eu vou citar alguns aspectos de sua vida e vc vai me falar se o
consumo de CRACK gerou vantagens ou desvantagens quanto ao aspecto abordado. Citar
as vantagens e desvantagens em relação ao tema investigado. Se necessário, complementar
as respostas com outras perguntas.
10.1 Atividades Sociais
10.1.1 Chegou a deixar de lado atividades sociais como trabalho, escola, relacionamentos
com amigos e/ou familiares em favor do uso de crack?
10.1.2 Mesmo frente a esses problemas nos relacionamentos sociais (escola, trabalho,
familiares, amigos...) continuou usando crack?
10.2 Saúde e Auto-Estima
10.2.1 Vc tem algum tipo de problema de saúde? Atualmente, está tomando algum tipo de
medicamento?
10.2.2 Se presente, vc acha que esse comprometimento de saúde esteja associado ao uso de
drogas, em geral, ou mais especificamente, ao uso de crack?
10.2.3 Vc está satisfeito com sua aparência física? Tem se importado com sua aparência?
(se alimenta ou toma banho ou escova os dentes?) Vc acha que o consumo de crack
interferiu nesse aspecto de sua vida?
10.2.4 Vc acha que a sua qualidade de vida, em geral, piorou depois que iniciou o
consumo de crack? (Qualidade de vida: oportunidades de lazer; auto-estima; local de
moradia e condições de higiene adequadas; estabelecimento de vínculos sociais adequados,
seja com amigos e/ou familiares; satisfação quanto ao local de moradia e condições de
transporte; disponibilidade de serviços de saúde adequados; qualidade do sono, entre
outros...)
10.3 Quanto à mente e funções cognitivas
10.3.1 Alguma vez percebeu que vc estivesse com problemas de memória? Exemplificar a
situação.
10.3.2 Sentia dificuldades de tomar decisões, concentrar-se ou mesmo compreender o que
as pessoas falavam?
10.3.3 Essas sensações existiam antes do início do consumo de drogas em geral ou vc
acha que o consumo de crack esteja associado, de alguma maneira, a essas condições?
10.3.4 Após o início do consumo de crack essas situações vêm se agravando? Detém-se ao
momento do uso ou não?
10.4 Comorbidades psiquiátricas
10.4.1 Hoje, vc se sente triste ou deprimido?
10.4.3 Alguma vez vc já pensou em se matar? Já tentou?
10.4.4 Hoje, vc se sente ansioso ou angustiado?
10.4.5 Já tinha alguma dessas sensações antes de iniciar o uso de drogas em geral ou vc
acha que o consumo de crack esteja associado, de alguma maneira, a essas condições? Se
sim, sentiu que se agravou com após o início do consumo de crack?
10.5 Relações sexuais
10.5.1 O consumo de crack influenciou seu desempenho sexual de alguma maneira?
10.5.2 O número de parceiros sexuais aumentou ou não após o início do consumo de
crack? (Investigar se as relações eram homossexuais ou heterossexuais)
10.5.3 Vc se preocupa em usar camisinha nessas relações? (Investigar a preocupação do
usuário com o contágio por DST/AIDS)
10.5.4 Vc já se contagiou com alguma DST/AIDS?
10.6 Experiências traumáticas
10.6.1 Vc já chegou a sofrer algum tipo de acidente ou traumatismo que necessitassem de
internação? Estavam associadas ao consumo de crack?
10.6.2 Chegou a sofrer algum tipo de preconceito? Se sim, por parte de quem?
10.6.3 Vc tem presenciado situações de violência relacionadas ao consumo ou distribuição
de crack? Chegou a sofrer ameaças de violência por causa do consumo de crack? (por
parte da polícia, de traficantes ou mesmo por outros usuários de crack?)
10.6.4 E vc, passou a ser agressivo/irritado com outras pessoas após iniciar o consumo de
crack?
10.6.5 Envolveu-se em situações perigosas ou inseguras para consumir crack?
10.6.6 Chegou a ter problemas com a lei por causa do consumo de crack?
10.7 Quanto a questões financeiras
10.7.1 Chegou a se endividar por causa do crack? Se sim, com quem?
10.7.2 Era comum se endividar antes de iniciar o consumo de crack?
10.7.3 O que fez para contornar o problema? (perceber se a partir daí se o usuário passou a
se envolver com atividades ditas ilícitas)
11. PERCEPÇÃO DO CONSUMO E DO USUÁRIO DE CRACK
PARA USUÁRIOS:
11.1 Diante disso tudo, vc acredita que o seu consumo de crack seja problemático ou não?
11.2 Vc acha que quem consome crack comporta-se ou pensa da mesma maneira que os
outros usuários de drogas ou não? Em caso positivo, citar os motivos.
PARA EX-USUÁRIOS:
11.1 Se tinha problemas de saúde em geral, auto-estima ou mau funcionamento cognitivo,
esses problemas foram minimizados após a cessação do uso?
11.2 O que vc acha que leva uma pessoa a consumir crack?
11.3 Vc acha que quem consome crack comporta-se ou pensa da mesma maneira que os
outros usuários de drogas ou não? Em caso positivo, citar os motivos.
A
NEXO
2: Guia de entrevista da cidade de Barcelona.
EVALUACIÓN DEL COMPORTAMIENTO DEL CONSUMIDOR DE CRACK:
ESTUDIO COMPARATIVO BRASIL-ESPAÑA.
A. DATOS SOCIO-DEMOGRÁFICOS
1. Sexo
2. Edad
3. Estado Civil
4. Nacionalidad (Si no es español, preguntar sobre el país de origen, periodo de tiempo y
razones de la vinda a Barcelona).
5. Escolaridad
6. Trabajo
B. HISTÓRICO SOBRE EL CONSUMO DE DROGAS
1. Primera droga en la vida (alcohol y los cigarrillos incluidos).
2. Secuencia de las drogas en la vida (escalada del consumo de drogas). Si hubo el
consumo de heroína verificar si el usuario ya fue sometido a algún servicio de tratamiento
o reducción de danos (incluso sustitución por metadona).
3. Vías de consumo de cocaína (esnifada, fumada, inyectada). Verificar cual es la via
preferida y por cuales razones.
4. Verificar qué se sucedió con las demás vías de administración de cocaína después de
empezar la a fumada (para esclarecer la forma de cocaína fumada pasta base,
“freebase”, basuco o crack pedir para que o entrevistado describir el modo de preparo de
la droga).
C. PREPARO Y CONSUMO DE COCAINA FUMADA
1. Modo de preparo y consumo de la cocaína fumada (resaltar los aparatos usados para
consumo; verificar si hay otras maneras de consumir crack: inyectable y si presente
verificar las razones de ese uso).
2. Frecuencia del consumo y cuantidad de cocaína por vez de consumo. Caracterizar los
cambios del patrón de consumo con el paso del tiempo (verificar si el patrón de consumo
es semejante al patrón binge: atracones).
3. Caracterizar las condiciones de consumo (si en casa o en las calles; si lo hace solo o en
grupo; si puede usarlo controladamente de forma a mantener la vida social de antes, si
comparte los aparatos de consumo…)
4. Efectos positivos (de placer) y negativos (dañosos) del consumo.
D. ASOCIACIÓN DE LA COCAINA FUMADA A OTRAS DROGAS
1. El entrevistado es un poliusuario de drogas o consume solo cocaína fumada?
2. Asociación de la cocaína fumada a otras drogas. Citar los motivos de las asociaciones.
3. Verificar que sucedió con el consumo de las demás drogas después del consumo de
cocaína fumada.
E. ACESIBILIDAD Y DISTRIBUCIÓN DE COCAINA FUMADA
Verificar si hay tráfico de la forma fumada de la cocaína en Barcelona. Preguntar sobre los
precios de la cocaína fumada y compararlos a los del polvo. Verificar si hay un sitio
específico de tráfico y la posible relación con el traficante.
F. COCAINA FUMADA Y CONSECUENCIAS EN LA VIDA
1. Cambios en la vida por causa del consumo de cocaína fumada (en termos sociales,
legales, emocionales, cognitivos o psicológicos).
2. Desarrollo de actividades ilícitas para obtener cocaína fumada (robos, prostitución,
tráfico, entre otros).
3. Basuco y cambios sanitarios (verificar se el consumo de crack genero alguna alteración
sanitaria o psiquiatrita entre los consumidores: posible relación con el patrón de consumo;
hay relación con los atracones?).
4. Relación del consumo de crack a sexo, uso de preservativos y contagio por
enfermedades sexualmente transmisibles, incluso SIDA: preguntar se compartía
jeringuillas o los aparatos de consumo de crack o si alguna vez ya hizo la prueba de SIDA.
G. ACTIVIDADES SOCIALES (ESTUDIO, TRABAJO, FAMÍLIA)
1. Trabajo y estudios. Verificar la relación de la cocaína fumada con el desarrollo de las
actividades de estudio o trabajo.
2. Relación con la familia (antes e después de la cocaína fumada).
3. Família: consumo de drogas licitas y ilícitas por familiares.
H. PERCEPCIÓN DEL CONSUMO DE COCAINA FUMADA POR EL
ENTREVISTADO
1. Percepción de la cocaína fumada como droga.
2. Percepción del consumidor de cocaína fumada. (Verificar se el entrevistado cree que el
consumidor de cocaína fumada sea más marginalizado que los de las demás drogas.
Investigar la existência de consumidores exclusivos de cocaína fumada).
A
NEXO
3: Dados sócio-demográficos dos entrevistados da cidade de São Paulo.
VARIÁVEIS
Sexo
Homem
Mulher
N
46
16
Nível de escolaridade
B
Analfabeto
Primeiro Grau Incompleto
Primeiro Grau Completo
Segundo Grau Incompleto
Segundo Grau Completo
Superior Incompleto
Superior Completo
Pós-Graduação
N
3
20
6
9
18
2
1
3
Faixa etária
15 - 25
25 - 35
35 – 45
45 a mais
N
19
26
13
04
Religião
C
Ateu
Sem religião (crente)
Católica
Protestante
Espírita
Sincrético
N
3
13
23
16
5
2
Estado civil
A
Solteiro (a)
Casado (a)
Separado (a)
Viúvo (a)
N
24
14
23
1
Trabalha Atualmente
D
Sim
Não
N
29
33
A
Foram considerados como solteiros os entrevistados que não tivessem nenhum tipo de vínculo matrimonial,
formalizado ou não. Os separados romperam os vínculos por motivos diversos, entre eles o consumo de drogas, mas
não necessariamente em virtude do consumo de crack.
B
Quanto à pós-graduação temos: médico (a) com especialidade não revelada (1); jornalista com especialização em
fotografia (1); administrador (a) de empresas com MBA e Mestrado.
C
A
TEU
: pessoa sem religião e descrente na existência de Deus ou qualquer outro poder supremo; S
EM RELIGIÃO
(crente): entrevistados que acreditam na existência de uma divindade, mas que não crêem e tampouco praticam
alguma religião; Sincrético: pessoa que crê em mais de uma religião.
D
Foi considerado trabalho qualquer vínculo empregatício que demandasse responsabilidade e cumprimento de
horário pelo entrevistado. Poderiam ser bicos e/ou atividades trabalhistas oficialmente regulamentadas.
A
NEXO
4: Dados sócio-demográficos dos entrevistados da cidade de Barcelona.
VARIÁVEIS
Sexo
Homem
Mulher
N
20
10
Nível de escolaridade
B
Analfabeto
Primeiro Grau
Segundo Grau
Estudo Universitário
N
1
15
10
4
Faixa etária
(entre 22 e 49 anos)
20-30
30-40
Mais que 40
N
12
10
8
Nacionalidade
C
Espanhol
Italiano
Marroquino
Português
Brasileiro
N
21
5
2
1
1
Estado civil
A
Solteiro (a)
Separado (a)
Casado (a)
N
11
11
8
Trabalha Atualmente
Sim
Não
Aposentado
N
6
23
1
A
Foram considerados como solteiros, os entrevistados que não tivessem nenhum tipo de vínculo matrimonial,
formalizado ou não.
B
Importante ressaltar que dentro de cada nível foram considerados apenas estudos completos, ou seja, se algum dos
entrevistados não houvesse completado o estudo dentre de algum dos níveis, sua escolaridade foi considerada como
o nível imediatamente inferior e completo. Assim, dentre os que completaram os estudos secundários 2 que
começaram universidade e pararam por falta de identificação com o curso (Arte e Pintura; Historia da Arte – ambos
italianos). Dentre os que completaram curso universitário, temos: Teologia, Física, Geografia\Historia e Desenho
Gráfico).
C
Entre os espanhóis, a divisão conforme a comunidade autonômica de origem seria: Catalunya (17), Andaluzia (2),
Extremadura (1), Salamanca (1).
(...) porque o crack é a doença do
ainda
, vc ainda não roubou
sua mãe e seus irmãos (...) por causa dele, se vc não tomar
cuidado, se não vigiar, faz coisa até pior (...)
(A31ME – São Paulo)
A
pêndices
s
Apêndices
AP
ÊNDICE
1: Critério de classificação econômica Brasil (CCEB).
A
PÊNDICE
2: Protocolo de aprovação da pesquisa científica pelo Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
A
PÊNDICE
3: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
“COMPORTAMENTO DO USUÁRIO DE CRACK, EM SÃO PAULO, APÓS UMA
DÉCADA DE INTRODUÇÃO DA DROGA”
As informações expostas a seguir estão sendo fornecidas para a sua participação voluntária
nesse estudo, que visa identificar a possível mudança do comportamento do usuário de crack na
cidade de São Paulo, após uma cada de introdução da droga no contexto brasileiro. As
motivações, assim como as conseqüências (positivas ou negativas), advindas dessa mudança de
comportamento, serão profundamente investigadas por intermédio de entrevista direcionada por
questionário. A entrevista terá duração aproximada de 120 minutos e será gravada com
consentimento prévio do entrevistado. Abordará tópicos gerais acerca da vida do usuário de crack
e seu quotidiano, dos quais destacam-se: perfil sócio-demográfico; vínculo do usuário a estruturas
sociais como família, escola e trabalho; padrão e cultura do uso de crack; entre outros.
A fim de melhor compreendermos a interferência do consumo de crack sobre o desempenho de
funções cognitivas como atenção, memória e linguagem, os usuários de crack serão submetidos a
uma série de testes neuropsicológicos, detalhadamente descritos na Carta de Informação. A bateria
neuropsicológica será aplicada e interpretada por profissionais competentes da área, tendo duração
aproximada de 120 minutos. A bateria neuropsicológica e a entrevista inicial não serão realizadas
no mesmo dia, logo, o entrevistado precisará comparecer, pelo menos, 2 dias ao Departamento de
Psicobiologia da UNIFESP. O desempenho dos usuários de crack será comparado ao de sujeitos
saudáveis, sendo ambos os grupos pareados por sexo, idade, grau de escolaridade e nível
socioeconômico. A prevalência de comorbidades psiquiátricas (ansiedade e depressão) também
será investigada em ambos os grupos através da aplicação de escalas específicas (detalhamento
descritas na Carta de Informação).
Por fim, com o intuito de avaliarmos o comportamento de risco dos usuários de crack frente às
DST/AIDS, uma pequena amostra de sangue (10 mL) será coletada, sob seu prévio consentimento,
e posteriormente serão conduzidos testes sorológicos para HIV, Sífilis e Hepatite B e C,
detalhadamente descritos na Carta de Informação. A coleta de sangue e os exames sorológicos
serão realizados no próprio Departamento de Psicobiologia da UNIFESP.
Todos os procedimentos a serem adotados oferecem risco mínimo de desconforto ao participante,
não interferindo em sua integridade física, moral ou intelectual e tampouco gera benefício direto.
As informações coletadas em todas as fases do projeto são anônimas e serão divulgadas em
eventos científicos apenas sob consentimento prévio do participante.
É importante ressaltar que em qualquer etapa do estudo você terá acesso aos profissionais
responsáveis pela pesquisa para esclarecimento de eventuais dúvidas. O principal investigador é o
biomédico Lúcio Garcia de Oliveira, que pode ser encontrado no endereço Rua Napoleão de
Barros, 925 – Piso Térreo; tel: 5539-0155 ramal: 163 ou 119.
Se você tiver alguma dúvida ou consideração sobre a ética, entre em contato com o Comitê de
Ética em Pesquisa (CEP) Rua Botucatu, 572 andar cj. 14, tel: 5571-1062, FAX: 5539-
7162.
É garantida a liberdade de retirada de consentimento a qualquer momento e deixar de participar do
estudo, sem qualquer prejuízo à continuidade de seu tratamento na Instituição. As informações
obtidas serão analisadas em conjunto com outros participantes, não sendo divulgado a identificação
de nenhum desses. Você tem direito de ser mantido atualizado sobre os resultados parciais das
pesquisas, quando em estudos abertos ou de resultados que sejam do conhecimento dos
pesquisadores.
Não há despesas pessoais para o participante em qualquer fase do estudo. Da mesma forma, não há
compensação financeira relacionada à sua participação. Se existir qualquer despesa adicional, ela
será absorvida pelo orçamento da pesquisa.
Em caso de dano pessoal, diretamente causado pelos procedimentos ou tratamentos propostos neste
estudo (nexo casual comprovado), o participante tem direito a tratamento médico na Instituição,
bem como às indenizações legalmente estabelecidas.
O nosso compromisso é utilizar os dados coletados somente para essa pesquisa.
Acredito ter sido suficientemente informado a respeito das informações que li ou que foram lidas
para mim, descrevendo o estudo Comportamento do usuário de crack, em São Paulo, após
uma década de introdução da droga”.
Eu discuti com o biomédico Lúcio Garcia de Oliveira sobre a minha decisão em participar desse
estudo. Ficaram claros para mim quais os propósitos do estudo, os procedimentos a serem
realizados, seus desconfortos e riscos, as garantias de confidencialidade e de esclarecimentos
permanentes. Ficou claro também que minha participação é isenta de despesas e que tenho a
garantia de acesso ao tratamento hospitalar quando necessário. Concordo voluntariamente em
participar deste estudo e poderei retirar meu consentimento a qualquer momento, antes ou durante
o mesmo, sem penalidades ou prejuízo ou perda de qualquer benefício que eu possa ter adquirido,
no meu atendimento neste serviço.
___________________________________
Assinatura do participante/ representante Legal
Data: / /
____________________________________
Assinatura da testemunha
Data: / /
(Somente para o responsável do projeto)
Declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o Consentimento Livre e Esclarecido deste
paciente ou representante legal para a participação neste estudo.
_____________________________________
Assinatura do responsável pelo estudo
Data: / /
“Feliz aquele que transfere o que
sabe e aprende o que ensina”.
(Cora Coralina)
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