Download PDF
ads:
FACULDADE DE HISTÓRIA, DIREITO E
SERVIÇO SOCIAL
UNESP – CAMPUS DE FRANCA
LINDOMAR TEIXEIRA LUIZ
A CIDADANIA NO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO
FRANCA
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
LINDOMAR TEIXEIRA LUIZ
A CIDADANIA NO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO
Tese de doutorado apresentada à Faculdade de História,
Direito e Serviço Social da UNESP campus de
Franca, do Programa de Pós-Graduação em Serviço
Social. Linha de Pesquisa: Serviço Social: Mundo do
Trabalho, sob a orientação do Prof. Dr. Ubaldo Silveira.
FRANCA
2006
ads:
Luiz, Lindomar Teixeira
A cidadania no espaço público e privado / Lindomar Teixeira
Luiz. –Franca: UNESP, 2006
Tese – Doutorado – Serviço Social – Faculdade de História,
Direito e Serviço Social – UNESP.
1. Cidadania – História. 2. Cidadania – Brasil. 3. Família –
Classes populares.
CDD – 323.6
TERMO DE APROVAÇÃO
LINDOMAR TEIXEIRA LUIZ
A CIDADANIA NO ESPAÇO PÚBLICO E PRIVADO
Tese aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Serviço
Social, da Universidade Estadual Paulista, pela seguinte banca:
Orientador: 1-Prof. Dr. Ubaldo Silveira
Departamento de Serviço Social, UNESP.
2- Prof. Dr. Mário José Filho
Departamento de Serviço Social, UNESP.
3-Profª Drª Helen Barbosa Raiz Engler
Departamento de Serviço Social, UNESP.
4-Prof. Dr. Armando Pereira Antonio.
Universidade Oeste Paulista
5-Prof. Dr. Wlaumir Doniseti de Sousa.
Centro Universitário Barão de Mauá.
Franca, 7 de agosto de 2006.
Resultado: Aprovado
Dedico este trabalho de pesquisa à minha
esposa Magali e à nossa filha Beatriz
AGRADECIMENTOS
-Às pessoas que, gentilmente, se dispuseram a participar desta pesquisa através das
entrevistas que nos concederam.
-Ao orientador professor Dr. Ubaldo Silveira pela dedicação, incentivo e, sobretudo,
pelas fecundas e essenciais contribuições na feitura deste texto, seja através de pertinentes
críticas, seja pelas inúmeras sugestões.
-Ao programa de Pós-Graduação em Serviço Social desta instituição - UNESP Franca-
pela primorosa oportunidade de realizar um grande sonho almejado durante muitos anos.
-Ao professor Dr. Pe. Mário José Filho pelas contribuições e eminente apoio na
execução desta pesquisa.
-Aos professores da Pós-Graduação em Serviço Social pelos quais cursei disciplinas.
Agradeço as inegáveis contribuições junto ao presente estudo. São eles: Prof Dr. Pe. Mário
José Filho; Profª. Drª Neide de Souza; Profª Drª Mária Éster Braga; Prof.ª Drª Helen Barbosa
Raiz Engler e Profª. Drª Noêmia Pereira Neves.
-Aos exímios funcionários do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social desta
instituição: Regina (Gigi); Maísa Helena e Alan.
-Aos meus colegas que cursaram disciplinas neste programa de Pós-Graduação,
principalmente a Mariângela: jamais esquecerei o seu apoio.
-À psicóloga Cristina uma das responsáveis pelo nosso ingresso neste curso.
professora Drª Nilva Galli (UNOESTE) e ao Dr. Gerson Belaz (UNOESTE) pelo
incentivo e imenso apoio.
-Ao diretor da FAI (Faculdades Adamantinenses Integradas), Dr. Gilson Parisoto pelo
imenso incentivo.
-Aos companheiros e amigos da FAI (Faculdades Adamantinenses Integradas), seja
pelo incentivo, seja pela imensa amizade: Mariana; Lúcia; Sérgio Barbosa; Célia Borguetti;
Célia Duarte; Valdecir; Dirceu; Brito; José Aparecido; Maria Luiza; Francisco; Geraldo;
Seabra; Maria Vitória; Pracideles; Cassiano; Mara e Pedro Bilheiro.
professora Maria Helena Castilho pelas inúmeras contribuições relevantes e grande
incentivo.
-Ao meu irmão Fernando pela leitura do presente estudo, correções e sugestões.
professora de Língua Portuguesa Neusa (professora da FAI) pelas essenciais
correções e sugestões.
-Aos meus pais Manoel e Ana e aos meus sogros Karl e Dolores, pessoas maravilhosas
que sempre me apoiaram e pelas quais tenho um profundo respeito e eterno carinho.
-À minha querida esposa Magali, que sempre me apoiou e contribuiu em diversos
aspectos para a concretização desta pesquisa.
“O homem que é objeto da história, que se
ajusta e se adapta aos fatos dados, perde sua
transcendência. Está submerso no mundo e, em
conseqüência, perde seu poder para criticá-lo e
recriá-lo”.
Rubem Alves
Resumo
O estudo aqui apresentado é uma investigação a respeito da cidadania. Inicialmente
nossa análise se baseia num enfoque sócio-histórico-conceitual, uma vez que refletimos sobre
a origem e evolução da cidadania numa perspectiva histórica, tanto no âmbito mundial quanto
nacional. Ademais, apresentamos, laconicamente, alguns aspectos da cidade onde efetuamos o
trabalho de campo e posteriormente analisamos o conceito de cidadania. Em seguida, nossa
abordagem se consubstanciou em perquirir sobre as dificuldades e possibilidades de
existência da cidadania, no espaço público e privado, para famílias de classes populares. Para
tanto, baseamo-nos em depoimentos e nas condições sociais de seis famílias moradoras num
bairro periférico da cidade de Presidente Prudente. O presente estudo tem como fio condutor a
análise da ideologia relacional – que faz parte da cultura popular - e à sobrevivência material
dos sujeitos desta pesquisa. Assim, os principais empecilhos para existir cidadania, na
esfera privada, se devem à presença dominante da referida ideologia, juntamente com as
inúmeras privações de ordem material, às quais destacamos àquelas que se circunscrevem à
moradia e ao bairro periférico. No tocante às possibilidades de haver cidadania, no espaço
privado, enfoca o poder feminino, com a dimensão afetiva e a questão da solidariedade.
Contudo, a cidadania o é realizada em razão da unilateralidade do poder feminino; pelo
fato da esfera afetiva contribuir e reforçar tendências assimétricas em ambos os cônjuges e;
somente a solidariedade não é suficiente para se garantir cidadania. Com relação à cidadania
no espaço público, os obstáculos são infinitamente maiores do que as possibilidades para a
sua realização, seja pela cultura política do favor (que tem afinidade com a ideologia
relacional), seja pela presença marcante da ideologia relacional, da opressão e exploração no
espaço do trabalho.
Palavras-chave: Cidadania. Ideologia relacional. Ideologia individualista. Público e privado.
Família. Classes populares. Cultura popular.
Abstract
The study present here is an investigation about citizenship. Initially our analysis is
based on a social-historical-conceptual focus, since qe hare reflected on the origin and
evolution of the citizenship on a perspective, as on the word as on the national ambit.
Moreover, we present laconically some aspects of the city where we have performed the field
work and afterwards we have analyzed the citizenship concept.
Afterwards, our broach is consubstantiated on the analysis respecting the difficulties
and possibilities of the citizenship existence, at the public and private space, for the popular
class families.
For this, we have based on the declaration and the social conditions of six families
who live in the peripherical district in the city of Presidente Prudente. The present study has
as a conductor thread the analysis about the relational ideology- that is related to the popular
culture and the material survival of the subjects on this research. Thus, the main hindrances
to make citizenship exist on private sphere, is due to the dominant present of referred
ideology along with the numberless privations of material sort, which we emphasize the ones
that are encircled to the housing and the peripherical district.
Concerning the possibilities to have citizenship, on the private space, it is related whit
the feminine power, with the affective dimension and the matter of solidarity.
However, the citizenship isn’t performed in reason for the unilaterality of the feminine
power; for the fact of the affective sphere contribute and reinforce asymmetrical in both
married people and; only solidarith isn’t enough to guarantee citizenship.
Concerning the citizenship on the public space, the obstacles are infinitely bigger than
the possibilities for its relation, as for the political culture of the favor (that has affinity with
the relational ideology) as for the remarkable presence of the relational ideology, the
oppression and exploration on the work space.
Key Words: Citizenship. Relational ideology. Individualist ideology. Public and private.
Family. Popular classes. Popular culture.
SUMÁRIO
Introdução...................................................................................................................11
1-ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA CIDADANIA
Capítulo 1: A cidadania: origem evolução
1.1- A cidadania na Antigüidade greco-romana.........................................16
1.2- A cidadania na Idade Média..................................................................19
1.3- A cidadania no Renascimento e no capitalismo...................................23
1.4- A cidadania no século XX......................................................................30
Capítulo 2: A cidadania no Brasil
2.1- A cidadania e os primórdios da sociedade brasileira..........................36
2.2- A cidadania no limiar da sociedade industrial brasileira...................38
2.3- A cidadania na sociedade contemporânea brasileira..........................41
Capítulo 3: A cidade de Presidente Prudente e o conceito de cidadania
3.1- A cidade de Presidente Prudente...........................................................52
3.2- O conceito cidadania...............................................................................56
2-AS DIFICULDADES PARA A EXISTÊNCIA DE CIDADANIA NO ESPAÇO
PRIVADO DAS FAMÍLIAS DAS CLASSES POPULARES
Capítulo 4: A ideologia relacional e a dimensão sócio-econômica: dificuldades
para a cidadania
4.1-A ideologia relacional e a cultura popular............................................61
4.2-A Cidadania, a ideologia relacional e o espaço privado.......................71
Capítulo 5: A cidadania, o espaço da casa e do bairro
5.1-A questão da habitação............................................................................84
5.2-
Aspectos da casa e do bairro: limites para a cidadania na esfera
privada.......................................
.....................................................................94
3-AS POSSIBILIDADES PARA A EXISTÊNCIA DE CIDADANIA NO ESPAÇO
PRIVADO DAS FAMÍLIAS DAS CLASSES POPULARES
Capítulo 6: A ideologia relacional e a dimensão sócio-econômica: possibilidades
para a cidadania
6.1-A cidadania, o poder feminino e a afetividade....................................101
6.2 A cidadania e a solidariedade................................................................115
4-AS DIFICULDADES E POSSIBILIDADES PARA EXISTÊNCIA DE
CIDADANIA NO ESPAÇO PÚBLICO PARA AS FAMÍLIAS DAS CLASSES
POPULARES
Capítulo 7- O individualismo, a ideologia relacional e o trabalho: dificuldades e
possibilidades de existência de cidadania
7.1-A ideologia do individualismo e a ideologia relacional.......................121
7.2-A cidadania e o trabalho........................................................................132
Considerações finais.................................................................................................146
Referências bibliográficas.......................................................................................153
Anexos.......................................................................................................................161
Introdução
A presente tese objetiva cumprir uma exigência legal do programa de Pós-
Graduação em Serviço Social desta instituição, porém transcende tal exigência. Também
simboliza e materializa um longo percurso acadêmico, permeado de sacrifícios, muito
aprendizado e a enorme satisfação em concluir algo almejado durante muitos anos.
O presente estudo refere-se a uma reflexão a respeito da cidadania, tendo por principal
objetivo analisar, a partir de aspectos sócio-econômico-culturais, os limites e viabilidades da
existência de cidadania em famílias populares.
Esta pesquisa está dividida em quatro eixos analíticos. 1º. Aspectos sócio-históricos e
conceituais da cidadania. 2º. As dificuldades para a existência de cidadania no espaço privado
das famílias das classes populares. 3º. As possibilidades para a existência de cidadania no
espaço privado das famílias das classes populares. 4º. As dificuldades e possibilidades para
existência de cidadania no espaço público para as famílias das classes populares.
Estes eixos analíticos serão comentados detalhadamente a seguir.
O primeiro é constituído por reflexões teóricas atinentes ao conceito cidadania,
enquanto os demais eixos se baseiam, majoritariamente, nas análises de entrevistas que
realizamos com seis famílias populares sujeitos da pesquisa - moradoras de um bairro
periférico (Vila Aurélio) da cidade de Presidente Prudente. O critério para a escolha dos
entrevistados tem como ponto de partida o fato de morarem na Vila Aurélio, que é um bairro
periférico da referida cidade. Além disso, procuramos entrevistar famílias nucleares
(cônjuges) com filhos dependentes. Optamos, também, por entrevistar casais em que ambos
trabalhassem fora de casa. Todavia, dialogamos com casais em que o esposo se encontrava
desempregado. As entrevistas foram realizadas na casa das famílias durando em média duas
horas. Entretanto, voltamos algumas vezes para retomar determinado assunto visando
esclarecê-lo melhor. As entrevistas constam de duas partes. A primeira, referente aos dados
pessoais, profissão, rendimentos, escolaridade etc; enfim, investigamos as condições sócio-
econômicas dos entrevistados. A segunda parte, abordando questões semi-estruturadas
ligadas direta ou indiretamente à cidadania. Como nesta tese é imprescindível o diálogo com
os sujeitos da pesquisa (seis famílias), as entrevistas foram gravadas com a devida anuência
dos indivíduos. Utilizamos um mini-gravador, juntamente com um pequeno e discreto
microfone de lapela. Convém lembrar, que preservamos o anonimato dos entrevistados
adotando pseudônimos.
Procuramos, durante o processo de entrevista, observar atentamente as pessoas,
valorizando a forma de comunicação não apenas verbal, como gestos, entonação de voz e
procedimentos; contemplamos também os seus valores, as suas idéias e os aspectos de sua
subjetividade. Como veremos, nosso fio condutor para a análise da cidadania foi a ideologia
relacional - que pode ser definida como sendo um conjunto de determinados valores
tradicionais - e a esfera sócio-econômica. Outrossim, convém ressaltar, que o conceito de
espaço privado refere-se à vida familiar ocorrida no espaço da casa. o espaço público
concerne às instituições públicas e organizações privadas e ao espaço do trabalho dos
sujeitos da presente investigação.
A utilização do método etnográfico foi crucial para realizarmos o presente estudo, uma
vez que contempla os procedimentos acima citados (observação detalhada, postura dialógica e
valorização da visão de mundo dos entrevistados.) bem como, enfatiza a dimensão cultural
expressa através de aspectos subjetivos (valores e sentimentos) e simbólicos. Efetuamos,
porém, uma etnografia crítica, à medida que não enfocamos apenas questões do âmbito da
cultura. Destarte, priorizamos também além da abordagem sócio-histórica e conceitual -
suas conexões e implicações nas relações de poder, articuladas ao universo da sobrevivência
material (dimensão sócio-econômica) dos sujeitos da pesquisa.
O primeiro eixo analítico, intitulado: ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS E
CONCEITUAIS DA CIDADANIA”, é constituído por três capítulos (capítulos 1,2 e 3). No
capítulo 1- “A cidadania: origem e evolução”, executamos uma ampla reflexão sócio-
histórica acerca da origem e evolução da cidadania em âmbito mundial. Iniciamos a reflexão
abordando as sociedades greco-romanas, passando pelo feudalismo até a modernidade com o
advento do capitalismo, pontuando alguns elementos do capitalismo globalizado. Este
capítulo contém os seguintes itens:
1.1- A cidadania na Antigüidade greco-romana;
1.2- A cidadania na Idade Média;
1.3- A cidadania no Renascimento e no capitalismo;
1.4- A cidadania no século XX.
No capítulo 2- “A cidadania no Brasil”, fizemos uma reflexão sócio-histórica a
respeito da origem e evolução da cidadania no Brasil. Para tanto, baseamo-nos nas principais
atividades econômicas, articulando-as aos aspectos sociais e políticos que possam estar
relacionados direta ou indiretamente com a cidadania. Nesse capítulo a seguinte
subdivisão:
2.1- A cidadania e os primórdios da sociedade brasileira;
2.2- A cidadania no limiar da sociedade industrial brasileira;
2.3- A cidadania na sociedade contemporânea brasileira.
No capítulo 3- “A cidade de Presidente Prudente e o conceito de cidadania”,
realizamos uma breve exposição sobre a origem histórica da cidade de Presidente Prudente,
priorizando suas principais atividades econômicas, tendo como primado suas implicações para
a esfera política e para a cidadania. Esta abordagem se deve ao fato de termos efetuado as
entrevistas junto a seis famílias moradoras de um bairro periférico da referida cidade. Em
seguida, procuramos apresentar a definição do conceito cidadania a partir de várias vertentes,
enfatizando o seu caráter complexo e amplo. Este capítulo está subdividido da seguinte forma:
3.1- A cidade de Presidente Prudente;
3.2- O conceito cidadania.
O segundo eixo analítico, intitulado: AS DIFICULDADES PARA A EXISTÊNCIA
DE CIDADANIA NO ESPAÇO PRIVADO DAS FAMÍLIAS DAS CLASSES
POPULARES”, é constituído por 2 capítulos (capítulos 4 e 5). No capítulo 4- “A ideologia
relacional e a dimensão sócio-econômica: dificuldades para a cidadania”, efetuamos uma
análise sobre a ideologia relacional a partir da cultura popular. Procuramos demonstrar
quatro enfoques com referência a cultura popular: 1. abordagem que prioriza a questão da
tradição; 2. abordagem idealista-romântica; 3. abordagem de inspiração marxista e; 4.
abordagem que enfoca a identidade cultural. Apontamos, dessa forma, algumas implicações
políticas a respeito da cultura popular, a partir de determinadas reflexões baseadas nos estudos
de Gramsci. Examinamos as dificuldades para existência de cidadania, no espaço privado,
a partir da ideologia relacional. Para tanto, fundamentamo-nos em reflexões teóricas e em
entrevistas realizadas junto a seis famílias das classes populares moradoras num bairro
periférico da cidade de Presidente Prudente. Este capítulo contém os seguintes itens:
4.1-A ideologia relacional e a cultura popular;
4.2-A Cidadania, a ideologia relacional e o espaço privado.
No capítulo 5- “A cidadania, o espaço da casa e do bairro”, realizamos uma ampla
reflexão procurando elucidar por quais razões o acesso à habitação é um direito
extremamente difícil de ser conquistado pelas classes populares. Além disso, analisamos
algumas conseqüências sociais dessa inacessibilidade. Descrevemos as condições das
moradias dos entrevistados e relatamos alguns aspectos do bairro da Vila Aurélio. Este
capítulo está subdividido da seguinte forma:
5.1-A questão da habitação;
5.2-Aspectos da casa e do bairro: limites para a cidadania na esfera privada.
O terceiro eixo analítico, intitulado: “AS POSSIBILIDADES PARA A
EXISTÊNCIA DE CIDADANIA NO ESPAÇO PRIVADO DAS FAMÍLIAS DAS
CLASSES POPULARES”, contém o capítulo 6– “A ideologia relacional e a dimensão
sócio-econômica: possibilidades para a cidadania”. Neste capítulo, analisamos as
possibilidades de existência de cidadania, no espaço privado, para as famílias populares e
fundamentamo-nos nas entrevistas com os sujeitos da pesquisa. Efetuamos reflexões a partir
da ideologia relacional, destacando o poder feminino e a solidariedade presente no universo
privado. A abordagem concernente à sobrevivência material (dimensão sócio-econômica) é
igualmente contemplada, permeando, direta ou indiretamente, em quase todo o capítulo. Este
capítulo contém os seguintes itens:
6.1-A cidadania, o poder feminino e a afetividade;
6.2 A cidadania e a solidariedade.
O quarto eixo analítico, intitulado: AS DIFICULDADES E POSSIBILIDADES
PARA EXISTÊNCIA DE CIDADANIA NO ESPAÇO PÚBLICO PARA AS FAMÍLIAS
DAS CLASSES POPULARES”, contém, o capítulo 7- “O Individualismo, a Ideologia
relacional e o trabalho: dificuldades e possibilidades de existência de cidadania”.
Inicialmente, executamos uma reflexão sobre a ideologia do individualismo, investigamos
suas diferentes vertentes e motivações. Abordamos as implicações para a cidadania pela
presença da ideologia relacional no espaço blico. Nesse sentido, sublinhamos algumas
práticas políticas pertinentes à ideologia relacional: coronelismo, populismo, clientelismo e
patrimonialismo, enfatizando suas relações com a cidadania. Num segundo momento,
analisamos os obstáculos e viabilidades para existência de cidadania ligadas ao trabalho.
Pautamo-nos em depoimentos dos entrevistados, em suas condições sócio-econômicas e suas
articulações com o trabalho. Desta forma, ressaltamos haver, no espaço do trabalho, a
exploração, a opressão, a humilhação e a presença da ideologia relacional. Estes empecilhos
negadores de cidadania no espaço do trabalho (espaço público), acabam repercutindo e
impedindo a cidadania no espaço privado. Neste capítulo há a seguinte subdivisão:
7.1-A ideologia do individualismo e a ideologia relacional;
7.2-A cidadania e o trabalho.
Ao final da presente investigação, nas Considerações Finais, efetuamos comentários
acerca de cada capítulo desenvolvido, visando elucidar nossa intenção em cada um deles,
complementando as reflexões desenvolvidas no decorrer deste estudo. Além disso, reiteramos
os conteúdos consideramos essenciais e, concomitantemente, pontuamos alguns
procedimentos utilizados na elaboração dos sete capítulos.
Enfim, nosso propósito é investigar as possibilidades e dificuldades da existência de
cidadania para as famílias de classes populares, tendo por fio condutor a ideologia relacional
(valores tradicionais) e a dimensão sócio-econômica. Para tanto, dialogamos com vários
autores, que trabalham questões que fazem referência ao nosso objeto de estudo.
1- ASPECTOS SÓCIO-HISTÓRICOS E CONCEITUAIS DA CIDADANIA
Capítulo 1
A cidadania: origem e evolução
1.1- A cidadania na Antigüidade greco-romana
O conceito cidadania é crucial no presente estudo. Por isso, é mister que façamos uma
análise a respeito dos seus primórdios, que será efetuada à luz de contextos sociais,
econômicos e políticos. Procuraremos resgatar alguns aspectos da cidadania a partir do mundo
antigo: Grécia e Roma, passando pelo sistema feudal até a contemporaneidade da sociedade
capitalista européia. Posteriormente, faremos uma abordagem similar concernente à cidadania
no Brasil.
De acordo com Chauí (1993), os gregos, e depois os romanos, foram os primeiros a
descentralizar o exercício do poder que sempre existiu no mundo antigo. A grande diferença
entre o mundo greco-romano e as sociedades que o precederam é o modo pelo qual se exercia
o poder, identificado com um determinado indivíduo, que o era chefe da família, do clã ou da
aldeia (rei, faraó etc.), sendo legitimado pela dimensão sobrenatural e divina. Deste modo, o
sujeito individual detinha a prerrogativa de impor algo de acordo com a sua vontade, interesse
ou necessidade. Diz Chauí (1993):
Qual era a marca do poder nos grandes impérios antigos? A marca era a
identidade entre o poder e a figura do governante. O governante era a
encarnação do poder, ele como pessoa encarnava nela a autoridade inteira, o
poder inteiro. Ele era a autoridade da Lei, o autor da recompensa, o autor do
castigo, o autor da justiça, ou seja, a vontade do governante (a vontade
pessoal) era a única lei existente... (CHAUÍ, 1993, TV Cultura)
Assim, a vontade do governante era o parâmetro para a ocorrência da guerra, da paz,
da vida ou da morte, da justiça ou da injustiça. Esta prática política despótica existia, através
das realezas micênicas e cretenses, nos territórios onde posteriormente se formaria a Grécia; e
também onde viriam a se formar Roma, com as realezas etruscas, “assim como nos grandes
impérios orientais Pérsia, Egito, Babilônia, Índia, China vigorava o poder despótico ou
patriarcal”. (CHAUÍ, 1995, p.372). Enfim, o procedimento pelo qual se exercia o poder
antes do mundo greco-romano era centralizador e, por conseguinte, arbitrário.
Com o surgimento do mundo greco-romano houve uma substancial mudança
concernente ao poder, ou seja, os gregos e os romanos inventaram a política, e assim o poder
não se identificava mais com a vontade de um indivíduo, como ocorria no passado, mas se
efetuava a partir de decisões discutidas, deliberadas e votadas. Diz Chauí (1993):
O que fizeram os gregos e os romanos? Eles inventaram a política, ou seja,
eles criaram a idéia de um espaço, onde o poder existe através das leis, as
leis não se identificam com a vontade dos governantes, elas exprimem uma
vontade coletiva. Esta vontade coletiva se exprime em público nas
assembléias, através de deliberação, da discussão e do voto. Ou seja, os
gregos e os romanos submeteram o poder a um conjunto de instituições e de
práticas que fizeram dele algo público, que concernia à totalidade dos
cidadãos... e, portanto, eles criaram a esfera pública... Ou seja, ninguém se
identifica com o poder. A vontade de ninguém é lei e, portanto, a autoridade
é coletiva, pública é aquilo que constitui o cidadão. (CHAUÍ, 1993, TV
Cultura)
Portanto, a cidadania estava ligada ao direito do indivíduo de participar do poder
diretamente, procurando decidir e propor a resolução de conflitos de forma democrática. Sob
esta ótica, se no espaço privado
1
(vida familiar) imperava um poder despótico, ao da esfera
pública, o indivíduo exercia a cidadania por meio da sua participação política (ARENDT,
2000). Isto significa dizer que a cidadania entre os gregos se limita aos chamados direitos
políticos. Nas palavras de Coutinho (1999) sobre a cidadania grega:
Aristóteles definiu o cidadão: para ele, cidadão era todo aquele que tinha o
direito (e conseqüentemente, também o dever) de contribuir para a
formação do governo, participando ativamente das assembléias nas quais se
tomaram as decisões que envolviam a coletividade e exercendo os cargos
que executavam essas decisões (COUTINHO, 1999, p. 43).
A cidadania entre os gregos estava longe de ser universal. Ocorre que, a sociedade
grega onde se concretizou a cidadania, se circunscreve à cidade-estado (polis), como em
Atenas do século V e IV a.C. O cidadão se confunde com a cidade. Entretanto, nem todos os
indivíduos citadinos podem ser cidadãos no sentido literal. Aqueles que eram considerados
cidadãos possuíam riqueza material e eram proprietários de terras, as “famílias ricas tinham
suas terras trabalhadas por escravos, viviam na cidade, dedicando-se à política, à filosofia, à
ginástica” (FLORENZANO, 1989, p. 39).
Desta forma, na Grécia, as mulheres, os estrangeiros, os comerciantes, os artesões e os
escravos não eram considerados cidadãos. Entretanto, “em todas as épocas, a cidadania podia
1
Segundo ARENDT (2000), entre os gregos, a esfera blica é essencialmente constituída pela liberdade de
participação e pela igualdade entre os cidadãos. Na esfera privada - constituída pela vida familiar - impera uma
desigualdade entre os seus membros, bem como uma privação à liberdade e à cidadania. Ou seja, a vida privada,
para os gregos, concerne à privação ao espaço público; portanto, não se refere às relações de intimidade
efetuadas no seio da família. A vida privada, como sinônimo de intimidade, começa a ser gestada no universo
burguês. Uma das principais razões para a cisão entre o mundo público e o privado foi separação da vida
familiar com as atividades econômicas, isto é, “as relações internas da família burguesa eram consideradas fora
da jurisdição da sociedade. A família era um microcosmo privado... a privacidade da família burguesa,
entretanto, dependia da economia capitalista... Em busca do lucro, o burguês precisava se dedicar todas as sua
atenções aos assuntos econômicos... Os homens tinham que sair de seus lares e estabelecer locais separados e
funcionalmente diferenciados para os seus negócios...” (POSTER, 1979, p.188)
ser conferida individualmente, como homenagem a um personagem importante ou retribuição
a um favor prestado à coletividade.” (GUARRINELLO, 2003, p.35)
.
Em Roma, as mulheres
não eram excluídas da participação social, visto que assistiam jogos, espetáculos e
representações, o que não ocorria na sociedade grega. (FUNARI, 2003).
Uma característica importante da sociedade greco-romana foi a sua organização
comunitária, que ecoou na questão da cidadania. Por um lado, para os gregos aquele sujeito
que não nascia na cidade-estado (polis), não era tido como um cidadão, porque “A cidadania
antiga transmitia-se, idealmente, por vínculo de sangue passado de geração para geração”
(GUARINELLO, 2003, p. 34). Por outro lado, quando Roma se expandiu para a Itália antiga
- durante o século III a.C. -, os romanos concederam cidadania a outros povos com a
intenção de cooptá-los. Por esse motivo, “a concessão de cidadania a aliados era um fator
importante para a acomodação das elites nos territórios conquistados” (FUNARI, 2003, p.56).
Algo igualmente presente no universo greco-romano - que é intrínseco às sociedades
tradicionais – era a valorização do grupo e não do indivíduo (como acontece em nossa
sociedade). Desta maneira, o elo que une o indivíduo à sociedade é baseado naquilo que
Durkheim (1995) chamou de solidariedade mecânica, típica das sociedades tradicionais onde
o sujeito individual inexiste, em razão de que o sujeito coletivo ter um peso maior fazendo
com que o indivíduo se dissolva na coletividade. Nesse sentido, entendemos a razão pela qual
a cidadania greco-romana não contemplava nenhuma liberdade individual, não havendo
aquilo que conhecemos como vida privada.
Em contraste com essa pujança do status político, o indivíduo na civilização
greco-romana não gozava de nenhuma liberdade privada. Como salientou
Fustel de Coulanges em sua obra clássica, “o cidadão estava em todas as
coisas submetido, sem reserva alguma, à cidade; pertencia-lhe
inteiramente”, tanto na guerra quanto na paz. Não havia, praticamente, vida
privada. Muitas cidades gregas proibiam o celibato. Outras, o trabalho
manual, ou contraditoriamente, a ociosidade. Até a moda era objeto de
regulação pública: a legislação espartana determinava o penteado das
mulheres e a de Atenas proibia que elas levassem em viagem mais de três
vestidos. Em Rodes, a lei impedia os homens de se barbearem e em Esparta
eles eram obrigados a raspar o bigode. (COMPARATO, 1993, p. 87)
Em Roma, a participação do povo na atividade política não era tão expressiva quanto à
do povo ateniense, porém a sua atuação era eminentemente significativa. Por volta do século
VI e início do V a.C., após o domínio da realeza etrusca, surgiu a República oligárquica, que,
por um lado, era governada pelos grandes senhores de terras, os chamados patrícios e, por
outro, havia também a participação da plebe (que era constituído pelos não-proprietários ou
pobres). Num primeiro momento, somente os patrícios eram tidos como cidadãos com plenos
direitos, uma vez que, ao se constituírem numa oligarquia rural, “mantinham o monopólio de
cargos públicos e mesmo dos religiosos” (FUNARI, 2003, p.50). Um exemplo foi a
instituição política do Senado, que era formada pelo conselho de anciãos “compostos
originalmente pelos pais de família patrícios, os patres” assim, “eram os únicos que podiam
exercer a magistratura, como pretores, cônsules ou ditadores” (FANARI, 2003, p.51). Em que
sentido, então, Roma pode ser considerada uma República? Sob esta ótica, há
três motivos principais: 1. o governo está submetido às leis escritas
impessoais; 2. a res publica (coisa pública) é o solo público romano,
distribuído às famílias patrícias, mas pertencente legalmente à Roma; 3. o
governo administra os fundos públicos (recurso econômicos provenientes
de impostos, taxas e tributos), usando-os para a construção de estradas,
aquedutos, templos, monumentos e novas cidades, e para a manutenção dos
exércitos (CHAUI, 1995, p.385)
Segundo Funari (2003), a partir da República, por dois séculos (V e IV aC.) os plebeus
lutaram contra os patrícios visando assegurar igualdade de direitos. Os conflitos entre esses
dois segmentos ficaram acirrados em conseqüência dos romanos guerrearem em outras
cidades, devendo contar com os exércitos composto por plebeus. Com isto, os plebeus
conseguiram aumentar o seu poder de barganha. Nesse sentido, “em 494 aC., o povo
conseguiu que fosse instituído o Tribunal da Plebe, magistratura com o poder de veto às
decisões dos patrícios. Os plebeus puderam criar suas próprias reuniões, “os concílios da
plebe”... os plebiscitos” (FUNARI, 2003, p.53). Destarte, a participação política desses dois
segmentos sociais (patrícios e plebeus), aliada ao exercício do poder, passou a ser efetuada
através das instituições Senado e Povo Romano, que elegiam as figuras centrais do governo:
dois cônsules (CHAUÍ, 1995).
Enfim, o mundo antigo greco-romano nos legou os fundamentos acerca da cidadania,
criando instituições que contribuem para a sua construção, através das práticas democráticas
priorizando a participação de todos.
1.2- A cidadania na Idade Média
Na Idade Média, com advento do modo de produção feudal, a cidadania teve
dificuldades para existir, havendo inúmeros aspectos de ordem sócio-econômico-cultural que
inviabilizaram a sua existência.
A sociedade feudal era dividida entre sacerdotes, guerreiros (nobres) e camponeses. As
relações sociais existentes eram de servidão e de obrigações recíprocas. Do ponto de vista
econômico, a principal atividade era a agrícola, realizada em quase toda Europa ocidental e
central através de áreas produtivas chamadas de feudos. “Um feudo consistia apenas de uma
aldeia e várias centenas de acres de terra arável que a circundavam, e nas quais o povo da
aldeia trabalhava” (HUBERMAN, 1986, p.3). O clero oferecia proteção espiritual, em razão
de que a religiosidade nesse período era extremamente acentuada, seja pela presença marcante
da instituição igreja, seja pelas inúmeras dificuldades de sobrevivência da maioria do povo
que vivia em eminente pobreza. Desta forma,
sabe-se que o próprio Marx reconhecia, que na Idade Média a organização
da Igreja era tão forte, tão absoluta, que ela decidia até mesmo o
desenvolvimento da economia... em última instância, diria Marx que tudo é
econômico, mas de repente uma instância ideológica, no caso, que as
diretivas gerais, dentre as quais se desdobra a economia (BORNHEIM,
1993, TV CULTURA)
A proteção física era oferecida pelos nobres (os guerreiros), que se incumbiam em
assumir a atividade militar, considerada de enorme prestígio, juntamente com a religiosa. Por
fim, temos os camponeses que trabalhavam para produzir o necessário para a sobrevivência
material de todos, constituindo, entretanto o segmento mais pobre da sociedade feudal. Em
outras palavras, “o camponês vivia numa choça do tipo mais miserável. Trabalhava longa e
arduamente em suas faixas de terras espalhadas..., conseguia arrancar do solo o suficiente para
uma vida miserável” (HUBERMAN, 1986, p.5).
Pensaremos a cidadania pelo itinerário do poder, que naquela época o modelo de
cidadania era o da sociedade greco-romana.
Como sabemos, a estrutura de poder no feudalismo era gestada pela hegemônica
presença da cultura religiosa católica, que fora difundida pela instituição mais poderosa
daquele período: a igreja católica. Segundo Chauí (1995), ao desmoronar o império romano, o
poder da igreja se materializa, grosso modo, em três esferas: 1º) o poder de mediar os homens
com Deus; 2º) o poder econômico derivado das suas propriedades rurais; e 3º) o poder
intelectual de monopolizar o acesso às escrituras sagradas ou quaisquer outros textos. Em
razão disto, com a expressiva força da igreja, o poder presente no mundo feudal é de caráter
teológico, ou seja, todo e qualquer governante realiza a vontade de Deus, no instante em que
(segundo antigo testamento) “todo poder vem do alto / por mim reinam os reis e governam os
príncipes” (CHAUÍ, 1995, p. 389).
Nesse sentido, as inúmeras autoridades presentes na sociedade feudal foram
legitimadas para religiosidade católica. Desta forma, havia um pluralismo político: de um
lado, existia uma gama de agentes com poder, como as universidades, os reinos e o clero; de
outro, a unidade de produção era o feudo, considerando que o senhor feudal era quem detinha
o poder. Apesar do senhor feudal não possuir a propriedade privada da terra, e sim a sua
posse, exercia em seu feudo um poder quase que irrestrito. O exercício do seu poder ocorria
de forma hierárquica e inquestionável, ou seja, a distribuição desigual do poder era algo tão
natural quanto qualquer fenômeno da natureza. Esta hierarquia medieval se nutria de valores e
crenças de cunho religioso: para sermos mais precisos, ela era resultante - segundo a crença
dos medievais - da vontade de Deus.
Sob esta estrutura, como poderia existir cidadania? Impossível. Como vimos, entre os
gregos e os romanos a idéia de cidadania estava intensivamente ligada à liberdade para o
exercício da palavra e à deliberação para se resolver os conflitos. Com o poder teológico
inexiste esta prática da democracia. Nesta perspectiva, as “verdades” eram tidas como
oriundas de Deus (expressando a sua vontade), reveladas aos homens, o havendo a menor
possibilidade para a democracia (e para a cidadania) à medida que nada é discutido ou
deliberado. Sendo assim, era inquestionável o exercício do poder se este era legitimado por
Deus, favorecendo a concretização de interesses de uma minoria. Aliado a isto, a hierarquia
existente no mundo feudal, também confiscou a cidadania a partir do momento que a
igualdade não existia, nem como princípio, muito menos na prática. Tal igualdade fora negada
pela existência de uma sociedade estamental; e a hierarquia reforçada por fundamentos
religiosos, ou seja, “a hierarquia política e social é considerada ordenada por Deus é natural”
(
CHAUÍ
, 1995, p. 390)
Um outro elemento fundamental para refletirmos sobre o poder, é o fato deste possuir
referências do espaço privado. Segundo Chauí (1995), se no mundo antigo os gregos e os
romanos inventaram o espaço público (espaço singular para o exercício de cidadania), o
período medieval praticamente o pulverizou. A partir do momento que os agentes do poder
daquela sociedade se baseavam num universo simbólico, inerente ao espaço privado, não
havia nenhuma possibilidade de se estabelecer o exercício da cidadania: esta somente se
materializa pela existência de um espaço em que todos tivessem iguais possibilidades de
propor, discutir e deliberar os assuntos de interesse coletivo. Este espaço seria o espaço
público. Nas palavras de Chauí (1993):
O cristianismo vai criar um problema no campo da política, por que se para
os antigos era neste espaço público que a ética melhor se resultava, no
momento em que, com o cristianismo, o espaço púbico é recusado, em
nome do espaço privado. O que acontece no momento em que surge as
autoridades cristãs? Ou seja, como é que vai haver um espaço público
cristão; que a autoridade e a ética no mundo cristão são pensados de
maneira privada. Ou seja, Deus é o pai, Deus é o senhor, os cristãos são sua
família. Ele é o pastor de um só rebanho. Vejam, todas as palavras e
metáforas que indicam a autoridade no mundo cristão, pertencem ao espaço
privado: é o pai, é o senhor, o pastor, o rebanho. Como é que isto vai se
constituir como espaço público? Não como constituir como espaço
público. (CHAUÍ, 1993, TV Cultura).
Portanto, sem espaço público a cidadania é ausente.
Não obstante, é possível pensar a cidadania, na Idade Média, por um outro itinerário: o
da liberdade. A partir do século XI, houve um intenso impulso ao comércio com o advento
das cruzadas, que transformou significativamente as cidades medievais. As cruzadas foram
expedições que objetivaram, em tese, retirar de Jerusalém a ocupação muçulmana. Todavia,
não houve apenas motivações de cunho religioso, havia ainda interesses materiais. Deste
modo, “a igreja envolveu essas expedições de saque num manto de respeitabilidade, fazendo-
as parecer como se fossem guerras com o propósito de difundir o Evangelho ou exterminar os
pagãos, ou ainda defender a terra santa”. (HUBERMAN, 1986, p. 18).
Segundo Huberman (1986), após o século X, houve um aumento da população. Esta
percebeu que poderia obter êxito naquelas atividades comerciais desencadeadas pelas
cruzadas. Com a evolução do comércio, surgiu um grupo que se dedicou a tal atividade: os
mercadores. As cidades passam a ser os lugares mais propícios para o desenvolvimento das
atividades comerciais. Atrelado a isto, nas cidades havia uma maior liberdade, se comparado
com a vida que se tinha no feudo. “Toda a atmosfera do feudalismo era a da prisão, ao passo
que a atmosfera total da atividade comercial na cidade era a da liberdade” (HUBERMAN,
1986, p. 27).
Ocorre que, a cidade possibilitou a liberdade de duas formas. Em princípio, as
obrigações dos servos ao senhor feudal, que eram executadas no espaço do feudo, não se
efetuavam no espaço da cidade. Em segundo plano, os mercadores se inconformavam com
imposições e cobranças que o senhor feudal realizava igualmente nas cidades, pois, na sua
avaliação, não havia diferenças entre solo rural e o solo urbano, ou seja, se fosse explorado o
feudo, a terra urbana também deveria ser explorada. Enfim, os mercadores se organizavam
contra as limitações do senhor feudal, criando as “ligas” ou corporações”
2
com vistas a
garantir a liberdade que lhes vinha sendo tolhida. Portanto, a palavra cidadão ficou vinculada
à cidade e “a idéia força da cidadania diz respeito à idéia de liberdade-real ou ilusória de que
dispunha o habitante da cidade em comparação com o servo da gleba” (CASTILHO, 1998, p.
84)
2
Segundo HUBERMAN (1986), no período do Renascimento existiam também as corporações dos artesãos e,
posteriormente, as corporações de jornaleiros (trabalhadores), que eram associações semelhantes aos sindicatos
nos dias de hoje.
É nesse contexto que se inicia a decadência do feudalismo, o início do capitalismo por
volta do século XV e o surgimento do Renascimento, que veremos a seguir.
1.3- A cidadania no Renascimento e no capitalismo
Como sabemos, o período entre os séculos XIV e XVI ocorreu o Renascimento, que
foi um amplo movimento filosófico e artístico iniciado na região da Itália, expandindo-se
posteriormente para outros lugares da Europa.
A base material para o surgimento do Renascimento foi o desenvolvimento de
atividades comerciais nas cidades independentes, como Florença, Veneza, Milão entre outras.
Neste período, houve um profundo questionamento atinente à valorização do universo
teológico enaltecido pelos medievais, recuperando-se a cultura greco-romana. A idéia em
relação à cidadania foi retomada e, concomitantemente, iniciou-se a construção da concepção
moderna de cidadania, que se exprimiu a partir das revoluções burguesas, Revolução Inglesa
do século XVII e Revolução Francesa do século XVIII.
Nas cidades do período do Renascimento (Florença, Veneza etc), a burguesia
comercial nascente procurou defender os seus interesses contra a nobreza feudal. A própria
independência das cidades foi fruto de reivindicações políticas organizadas pela nascente
classe burguesa, uma vez que objetivavam total autonomia “em face de barões, reis e
imperadores” (CHAUI, 1995, p. 394). Assim, a cidadania preconizada pelos renascentistas
estava intrinsecamente ligada aos interesses da classe dominante, e baseava-se no modelo
clássico elaborado pelos romanos. (ZERON, 2003). Nesta perspectiva, o cidadão, do período
renascentista, era aquele que possuía o direito de decidir sobre as questões da cidade-estado.
Tal direito não se estendia a todo citadino, isto é, cidadania era um privilégio dos membros da
elite dominante. Um exemplo vem da cidade de Florença:
o governo de Florença sempre esteve nas mãos de uma elite restrita a
algumas dezenas de famílias e algumas centenas de indivíduos... os
mecanismos eleitorais e a legislação sobre as corporações e sobre a
cidadania operavam uma seleção draconiana daqueles que tinham direitos
políticos (ZERON, 2003, p.102)
Além do ressurgimento da cidadania, no Renascimento elaborou-se uma profunda
transformação na visão de mundo, até então predominantemente teológica. Uma das
características mais marcantes desse período foi o surgimento da concepção individualista em
referência ao homem. No mundo antigo e medieval, o sujeito individual não existia
praticamente, era subordinado à polis, ao clã, à aldeia ou, na Idade Média, como sendo um
servo obediente a Deus e submisso às regras do feudo. O Renascimento retratou a visão
burguesa, que iria repercutir na moderna concepção a respeito do homem. Com a cultura
burguesa, houve uma valorização do indivíduo (individualismo). Todo e qualquer aspecto
cultural, por exemplo, na Idade Média era motivado pela crença em Deus, ou seja, uma visão
predominantemente teocêntrica. Deus era o centro de toda e qualquer motivação filosófica,
artística (literatura, pintura, escultura, arquitetura) e política entre outras. Com o advento do
homem burguês, iniciado no Renascimento, Deus deixou de estar no centro das motivações
culturais para dar espaço ao homem. A visão predominante passou a ser antropocêntrica, o
homem como o centro de toda e qualquer motivação cultural. Segundo Bornheim (1993), o
exemplo mais explícito dessa nova postura antropocêntrica (individualista) se deu na filosofia
cartesiana. De acordo com a sua epistemologia, o conhecimento era uma experiência
individual do sujeito e, não mais, como na Idade Média, fruto de uma revelação divina.
A concepção individualista e antropocêntrica está presente no moderno conceito
acerca da cidadania o qual ressurge no universo liberal, que abordaremos mais adiante.
Portanto, o Renascimento foi duplamente importante para a cidadania. De um lado, ela é
retomada nas cidades comerciais e, de outro, elaboram-se princípios – individualistas e
antropocêntricos fundamentais para a sua construção na versão moderna surgida com as
revoluções burguesas -, propostas pela ideologia liberal. Entretanto, para a grande maioria da
população renascentista, a cidadania inexistiu em função da ausência de direitos políticos ou
pelas péssimas condições de sobrevivência do povo, resultado da generalizada falta de
trabalho ocorrida a partir do século XVI, das de inúmeras guerras religiosas, pelas oscilações
da produção, pela existência de baixos salários, entre outros. (SINGER, 2003).
Um outro itinerário, através do qual podemos refletir sobre a cidadania neste período,
é o da formação do Estado Moderno.
Nos primórdios do capitalismo, no século XV, na Europa ocidental, quando a classe
burguesa estava se formando, as condições sócio-econômicas não eram tão promissoras. A
principal atividade econômica desta classe, num primeiro momento, como vimos, era a
comercial. No início do capitalismo, havia entraves para a efetiva existência de referida
atividade econômica: ausência da utilização de uma única moeda para as transações
comerciais, inexistência de uma política para coibir saques e roubos, não havia
homogeneidade em termos de regras jurídicas, havia dificuldades para se trafegar em função
das péssimas condições das estradas, entre outros obstáculos. Enfim, esta situação era lesiva
para a atividade comercial e, por conseguinte, para os burgueses. Os referidos problemas, que
dificultaram a dinâmica do comércio, existiam em função da ausência de um poder
hegemônico na sociedade: o Estado. Na Idade Média, “a autoridade do rei existia
teoricamente, mas de fato era fraca. Os grandes barões feudais eram praticamente
independentes.” (HUBERMAN, 1986, p. 71).
Destarte, nos primórdios do capitalismo não havia um poder estatal forte o suficiente
para se viabilizar inúmeras transações comerciais. Por isso, por volta do século XV surgiu o
Estado-Absolutista (Absolutismo Monárquico), que foi fruto da aliança entre o rei
(monarquia) e a burguesia, e crucial para o desenvolvimento do comércio: criou-se uma
moeda para as transações comerciais, regras jurídicas, um corpo de funcionários para executar
inúmeras tarefas de ordem pública, como policiamento, melhoria de sistema viário entre
outras medidas. Toda esta atuação do Estado Absoluto fora financiada com os recursos da
classe burguesa, que pode implementar, através do Estado, os seus interesses. Nas palavras de
Huberman (1986):
O mais rico é quem mais se preocupa com o número de guardas que em
seu quarteirão. Os que se utilizam das estradas para enviar suas mercadorias
ou dinheiro para outros lugares são os que mais reclamam proteção contra
assaltos e isenção de taxas de pedágio. A confusão e a insegurança não são
boas para os negócios.
Para quem se poderia voltar?... Necessitava-se de uma autoridade central,
um Estado nacional... O rei fora um aliado forte das cidades na luta contra
os senhores. Tudo o que reduzisse a força dos barões fortalecia o poder real.
Em recompensa pela ajuda, os cidadãos estavam prontos a auxiliá-lo com
empréstimos em dinheiro. (HUBERMAN, 1986, pp.70-71)
Qual é a relação entre cidadania e Estado Absoluto ?
No absolutismo muito mais dificuldades para a existência de cidadania do que
possibilidades para torná-la real. Sob esta ótica, a principal contribuição foi o aparecimento
de uma das primeiras formas do Estado Moderno. Como sabemos, mesmo havendo resquícios
do Antigo Regime (existência de privilégios, legitimação pelo poder divino entre outros), no
Absolutismo “começam a surgir pistas para a separação entre a pessoa do monarca e o poder
político do Estado”, isto é, “começava a se estabelecer a diferença entre o que era público e o
que era privado(FERREIRA, 1993a, p.128). Ora, a existência de uma esfera pública em
sintonia com a cidadania, ocorreu porque essa se referia ao interesse geral, ou seja, aos
interesses dos cidadãos. Não obstante, a cidadania era quase que totalmente negada pelo
absolutismo por inúmeras razões: a) o sujeito era um súdito do rei, o que não lhe garantia
direito, apenas obrigação e respeito à autoridade; b) a participação política era inexeqüível em
função das decisões serem centralizadas na figura do rei, não havendo, com isso, democracia;
c) enfim, a cidadania teve inúmeras dificuldades de ser realizada, mesmo assim, num primeiro
momento a referida forma de Estado satisfez aos interesses das classes dominantes.
O Estado Absoluto, com o passar dos anos, prejudicou a classe burguesa no que tangia
à realização de seus projetos. Deste modo, o absolutismo não mais respondia de forma eficaz
aos anseios da burguesia, seja do ponto de vista ideológico, seja prático. O despotismo do rei
confiscou a liberdade individual do capitalista no instante em que realizou inúmeras restrições
político-econômicas, através de intervenções no mercado. Além disso, houve práticas
perdulárias do Estado Absolutista, que não conseguiu se desvincular totalmente de posturas
patrimonialistas, confundindo o que é público e privado. Um exemplo. Quando a nobreza
passou a empobrecer-se, em função da diminuta renda fundiária, muitos nobres se viram
obrigados a solicitar ajuda econômica ao rei. Este alocou vultuosa soma de recursos para
garantir não somente a sobrevivência desse grupo, mas para realizar o consumo excessivo de
luxo, que era a característica do nobre. O poder do absolutismo monárquico era legitimado
pelo viés teológico, ou seja, o direito divino dos reis ainda se fazia presente no Estado
Absoluto. Isto era algo absolutamente anacrônico, uma vez que o poder teocrático foi
característico, como já apontamos, da Idade Média, sendo incompatível com a moderna
sociedade capitalista.
Portanto, o burguês concebeu o poder do Estado Absoluto como injusto, irracional e
ilegítimo. Inconformada com tal situação, por financiar economicamente o Estado
Absolutista, a burguesia procurou criar mecanismos para que pudesse ter acesso ao poder
político. É nesse contexto que eclodiu a Revolução Inglesa (Revolução Gloriosa) de 1640 até
1688, que, como sabemos, foi uma revolução burguesa, visando a conquista do poder político
do Estado pelos burgueses. Diz Mondaini (2003)
O indiscutível ponto de partida para o desenvolvimento dos direitos de
cidadania tem sua localização no século XVII. Foi quando um país se
envolveu naquela que é considerada a primeira revolução burguesa da
história. Falamos aqui, é claro, da Revolução Inglesa. (MONDAINI, 2003,
p. 122)
A Revolução Francesa de 1789 teve, grosso modo, como objetivo principal a tomada
do poder político pela burguesia, instituindo um outro modelo de Estado: o Estado liberal.
Convém lembrar, que
havia, na realidade, duas revoluções em marcha. A da burguesia, em plena
ascensão...” e a outra “revolução era dos trabalhadores sem propriedade,
que viviam a beira do desemprego e da indigência. Estes almejavam não
os direitos políticos mas também sociais (SINGER, 2003, p.209)
Desta forma, juntamente com a Revolução Inglesa e Francesa, surgiu a concepção
moderna de cidadania, que, no universo liberal, passou a contemplar a liberdade e a
igualdade reivindicadas pela burguesia contra o Estado Absolutista, que representava os
resquícios do Antigo Regime. A burguesia também passou a temer o absolutismo, visto que
o indivíduo que se vê exposto ao poder arbitrário de um único homem que
tem cem mil outros a suas ordens encontra-se numa situação muita pior do
que aquele que está exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados
(LEBRUN, 1984, p. 62).
Nesse sentido, um dos marcantes argumentos da burguesia foi os direitos naturais
(direitos civis), que iam de encontro ao poder monárquico (e também religioso, porque a
monarquia se fundamenta no direito divino), porque “afirmava a liberdade individual contra
as pretensões despóticas do absolutismo e em que negava a desigualdade de direitos
sancionada pela organização hierárquica e estamental própria do feudalismo.” (COUTINHO,
1999, p. 44).
Os direitos naturais, de acordo com Locke, eram inerentes ao ser humano e, por isso,
fundamentais para a sua existência. Locke priorizou a propriedade privada como um direito
natural e o poder estatal com o dever de protegê-la. O governo representava os homens livres
e independentes, isto é, os proprietários que eram considerados cidadãos. Portanto, as
mulheres (dependentes) e os trabalhadores (não proprietários) não eram tidos como cidadãos,
significando dizer que a universalidade da cidadania, na ótica liberal, era apenas formal. Tal
exclusão era expressamente evidenciada no sufrágio universal: apenas os proprietários
podiam votar, o voto era censitário, ou seja, a partir de um censo, averiguava-se a condição
econômica do indivíduo, objetivando constatar se este tinha bens suficientes para que tivesse
direito ao voto.
Portanto, a cidadania surgida na Europa, no século XVIII, com a Revolução Francesa,
priorizava os chamados direitos civis (ou direitos naturais). Estes, por um lado, estavam em
sintonia com os princípios e interesses burgueses: individualismo, igualdade (formal) e
liberdade.
Por outro, os referidos direitos trouxeram contribuições que ultrapassaram os
interesses dos burgueses. Nesta ótica, a liberdade individual presente nos direitos civis,
contempla, segundo Marshall (1967), a liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa,
pensamento, direito à justiça, escolha de atividade e o lugar onde iria exercê-la (que era
negada pelo costume), mudança de trabalho servil para o livre etc. Além disso, a liberdade
formal,
serviu de moldura para centenas de lutas sociais que redundaram na efetiva
melhoria das condições da classe operária de desfrutar de fato seus direitos
civis e políticos... Sem a liberdade jurídica não liberdade substantiva. É
preciso partir da liberdade, no sentido jurídico, para chegarmos à liberdade
no sentido material. (ROUANET, 1994, p. 25)
Em fins do século XIX, na Europa, a cidadania passava a conter os chamados direitos
políticos. Estes albergavam o direito ao sufrágio universal, direito a formar organização
sindical ou partidária. Sabemos que os direitos políticos eram freqüentemente negados para a
grande maioria dos trabalhadores, à medida que o direito ao voto era facultado apenas aos
proprietários. Os sindicatos, nos governos liberais, eram proibidos e os partidos de massa não
legalizados. Desta forma, os direitos políticos eram o resultado de incessantes lutas das
classes trabalhadoras. Nas palavras de Coutinho (1999):
Na França, por exemplo, somente nos anos 70 do século XIX é que os
trabalhadores conseguiram revogar a Lei Le Chapellier... que proibia a
associação dos trabalhadores e as greves. Também uma outra forma básica
de organização na democracia moderna, o partido de massa, é uma invenção
da classe trabalhadora (COUTINHO, 1999, p. 49)
A terceira esfera dos direitos da cidadania diz respeito aos direitos sociais, que “são os
que permitem ao cidadão uma participação mínima na riqueza material e espiritual criada pela
coletividade” (COUTINHO, 1999, p. 50).
As reivindicações por direitos sociais se confundem com as contendas organizadas
pela classe operária: com o desenvolvimento do sistema capitalista as condições sub-humanas
de sobrevivência são uma constante. Por isso, a mobilização desta classe é quase que
inevitável. Todavia, os direitos sociais somente seriam garantidos juridicamente no século
XX. Obviamente que a sua garantia legal não necessariamente viabilizaria a sua plena
execução na prática. Por quais razões os direitos sociais foram (pelo menos parcialmente)
legalmente garantidos na Europa no século XX, dando origem ao Estado do Bem Estar Social
?. São vários motivos. Em primeiro lugar, “a força da classe trabalhadora, atestada por sua
organização e mobilização sindical, foi causa importante das primeiras leis do estado de bem
estar” (KING, 1998, p. 59).
Assim, “por volta de 1930, doze importantes países europeus haviam implementado
os elementos centrais do sistema de seguridade social: seguro contra acidente, auxílio-doença,
previdência para idosos e seguro desemprego” (KING, 1998, p. 59).
Doravante, os partidos social-democrata e trabalhista foram fortalecidos, em razão que
a sua base eleitoral concentrava-se no expressivo número de trabalhadores sindicalizados,
vindo contribuir na garantia de certos direitos. Um outro fator bastante significativo foi a
existência de um expressivo funcionalismo público, que em alguns países “as fontes de renda
pública ou salário social constituem mais de 50% de emprego e da renda” (KING, 1998, p.
54). O referido funcionalismo público, além de se interessar pelos programas sociais, era
constituído por em segmentos sociais com poder de pressão política sob determinados
governos, viabilizando a implementação dos referidos direitos sociais.
Em segundo lugar, houve um certo pânico da burguesia com o avanço das
mobilizações operárias e do perigo do socialismo. Deste modo, a fundação da organização
internacional do trabalho, a Comuna de Paris (1871), a Revolução Russa (1917) entre outros,
representavam uma eminente ameaça às estruturas da sociedade capitalista e, por conseguinte,
aos seus interesses. Por esse motivo, o remédio adotado pela classe dominante foi arrefecer
tais mobilizações através da concessão de alguns benefícios sociais. Convém lembrar que, se
as melhorias foram implementadas na Europa, com o Estado do Bem Estar Social, houve a
contra-partida, ou seja, a exploração mais violenta do trabalho pelo capital recaiu sobre as
costas dos trabalhadores do Terceiro Mundo”. (CHAUÍ, 1995, p. 434) Por essa razão, não foi
por acaso que o avanço da democracia nos países europeus, neste período, coincidiu com a
implantação de regimes políticos ditatoriais e autoritários em vários países do Terceiro
Mundo.
Em terceiro lugar, o contexto sócio-econômico-político condicionou uma outra
moldura para o Estado, dentro de favoráveis índices econômicos. Como sabemos, a tendência
do Estado liberal foi predominante no século XIX e início do XX. O referido Estado refletiu o
modelo econômico, então hegemônico, que era o liberalismo. Sob este paradigma, o
capitalismo vivenciou uma profunda depressão que culminou na crise de superprodução em
1929, gerando a falência de várias empresas. Nos EUA “5 mil estabelecimentos bancários e
32 mil casas comerciais fecharam suas portas em todo o país” (ARBEX, 1993, p.24); e o
profundo desemprego (12 milhões de desempregados, nos EUA). Foi nesse contexto que
surgiu uma nova tendência da atuação do Estado, seja em relação ao mercado, seja em relação
à sociedade civil. Nesse caso, a intervenção estatal foi quase que inevitável para salvar o
capitalismo. Nos EUA, em 1932, o presidente Roosevelt adotou uma política de intervenção
estatal, que ficou conhecida como New Deal (Novo Acordo). Este projeto de intervenção
3
do
Estado (fortemente influenciado pelo economista John Maynard Keynes) visava amenizar os
efeitos da crise, bem como defender o capitalismo, isso porque as reformas não colocavam em
xeque as suas estruturas. O novo paradigma, doravante, após a Guerra Mundial, deixou de
3
Um outro fator que condicionou a intervenção do Estado foi a 2ª Guerra Mundial, uma vez que esta instituição
deve coordenar, planejar e atuar de diversas formas para que se efetive o referido conflito em âmbito mundial.
ser o liberalismo cedendo espaço para o Estado do Bem-Estar Social, com forte presença das
idéias do inglês John Maynard Keynes (1883-1946).
1.4-A cidadania no século XX
Após a 2ª Guerra mundial, além da marcante presença do Estado do Bem Estar Social,
houve uma substancial multiplicação concernente aos direitos, que certamente iria ecoar na
concepção referente à cidadania. De acordo com Bobbio (1992), a multiplicação dos direitos
ocorreu a partir de três formas. Primeiro, a partir do momento que a sociedade criou novos
bens e serviços aumentaram quantitativamente os direitos. Nesta perspectiva, “ocorreu a
passagem dos direitos de liberdade – das chamadas liberdades negativas, de religião, de
opinião, de imprensa, etc. – para os direitos políticos e sociais, que requerem uma intervenção
direta do Estado” (BOBBIO, 1992, p. 69). Segundo, concomitante a multiplicação de direitos,
amplia-se “os diversos sujeitos do homem” (BOBBIO, 1992, p.68). Ou seja, se a cidadania no
universo liberal enfatiza o sujeito individual (ideologia do individualismo), doravante se
procura contemplar “sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e
religiosas, toda a humanidade em seu conjunto... “ (BOBBIO, 1992, p.69). Além disso,
surgem também direitos a “sujeitos diferentes dos homens” (BOBBIO, 1992, p.69), como
ocorre com os animais e com a natureza, no instante em que os movimentos ecológicos
preconizam a sua preservação ou conservação. Em outras palavras, procura-se contemplar
“um direito da natureza a ser respeitada ou não explorada...” (BOBBIO, 1992, p.69).
Terceiro, uma alteração a respeito do conceito sobre o homem, que deixa de ser genérico
para convergir a especificidades vinculadas à idade, ao gênero, e às condições físicas e
psicológicas. Com base nesta especificidade uma diferenciação em termos de direitos,
fazendo com que seja necessário um tratamento e uma proteção desigual. Nesse sentido, “a
mulher é diferente do homem; a criança do adulto; o adulto, do velho; o sadio, do doente; o
doente temporário, do doente crônico; o doente mental, dos outros doentes; os fisicamente
normais, dos deficientes etc.“ (BOBBIO, 1992, p.69). Tal especificidade se exprime nas
diferentes declarações que asseguram, no âmbito internacional, determinados direitos aos
indivíduos contemplando as suas particularidades. Portanto, “em 1952, a Convenção sobre os
Direitos Políticos da Mulher; em 1959, a Declaração da Criança; em 1971, a Declaração dos
Direitos do Deficiente Mental; em 1975, a Declaração dos Direitos dos Deficientes Físicos...
(BOBBIO, 1992, p.69). O autor acrescenta ainda, que esses direitos sociais e políticos são
efetivamente garantidos com a participação efetiva do Estado, diferentemente dos direitos
civis solicitados pela burguesia na luta contra a aristocracia, ou seja, “enquanto os direitos de
liberdade nascem contra o superpoder do Estado... os sociais exigem... a ampliação dos
poderes do Estado” (BOBBIO, 1992, p.72). Contudo, para a efetiva existência da cidadania é
imprescindível a atuação do Estado. Todavia, em função da existência de uma gama de
transformações na sociedade, fundamentalmente após a Guerra mundial, o Estado não é
totalmente capaz de satisfazer as infinitas demandas apresentadas, o que vai exigir o
aparecimento de novos atores sociais. É o que veremos a seguir com o surgimento dos novos
movimentos sociais.
Os novos movimentos sociais, grosso modo, levam esta denominação por se
diferenciarem dos movimentos tradicionais (movimento dos trabalhadores, seja sindical, seja
partidário) nos objetivos, nos procedimentos e na sua forma de organização. Além disso,
fazem parte de um outro contexto sócio-econômico-cultural. Nesses termos, as profundas
mudanças ocorridas na sociedade, pós guerra, condicionaram o surgimento dos referidos
movimentos sociais. Estes foram os principais agentes sociais que procuraram elaborar novos
procedimentos na luta por cidadania, assim como objetivaram responder às inúmeras
demandas surgidas no seio da sociedade. Algumas transformações ocorridas neste período
foram as seguintes: 1)Grande desenvolvimento de tecnologias que propiciando eminentes
aumentos de produtividade industrial e agrícola; 2)Crescimento expressivo, nas últimas
décadas, do setor de serviços; 3)Surgimento de novas profissões, e concomitantemente, de
uma nova classe média, composta, por exemplo, por publicitários, técnicos de informática,
executivos entre outros; 4)Expansão de meios de transportes; 5)Intensificação do processo de
urbanização, bem como o surgimento de metrópoles e de megalópoles; 6)Aparecimento da
cultura de massas e intensa conexão de diferentes lugares do mundo com o aparecimento da
televisão e, recentemente, a internet; 7)Enfraquecimento do sindicalismo a partir dos anos de
1970, com o desemprego industrial; 8)Corrida armamentista motivada pela guerra fria tendo
como corolário uma possível guerra nuclear; 9)Impossibilidade do Estado, sob o modelo
industrial (países capitalistas ou socialistas), em evitar os impactos ambientais: poluição de
rios, da atmosfera, desmatamento etc.; 10) Mudança nos costumes e valores: liberação sexual,
questionamento acerca dos dogmas religiosos, consumismo, individualismo etc.
Enfim, no século XX, estes e inúmeros outros fenômenos sociais, franqueiam o
aparecimento dos novos movimentos sociais que passarão a criar uma nova moldura do
espaço público. Segundo Vieira (1997), a partir da década de 1970 começa a emergir de
forma marcante a “esfera pública não-estatal, constituída pelos movimentos sociais, ONGs,
associações de cidadania etc” (VIEIRA, 1997, p. 69).
Portanto,
dessa esfera pública não-estatal estariam excluídos os partidos políticos,
que, embora formalmente possam ser considerados instituições da
sociedade civil, na prática se comportam como organizações pró-estatais.
Voltados para a luta pelo poder, os partidos acabam assumindo as “razões
de Estado”... “A construção dessa esfera social-pública enquanto
participação social e política dos cidadãos passa pela existência de
entidades e movimentos não-governamentais, o-mercantis, não
corporativos e não-partidários (VIEIRA, 1997, pp 64-65)
.
Os novos movimentos sociais procuram enfocar novos temas, fazendo com que a
cidadania tenha novos contornos: questões ligadas ao meio-ambiente; contra o racismo e
sexismo; a favor da paz, entre outros. Ademais, ainda os movimentos populares que têm
como pauta questões tradicionais atinentes à sobrevivência material, juntamente com àquelas
que procuram melhorar a qualidade de vida: educação, habitação, terra e muito mais.
Analisaremos, adiante, a relação entre a cidadania e o processo de globalização,
apontando algumas conseqüências prejudiciais à cidadania. No entanto, tal processo não pode
ser abordado de forma unilateral. Isto é, aspectos positivos da globalização à cidadania.
Nesse sentido, a profunda conexão entre a dimensão social, política e cultural, proporcionada
pela globalização, vem contribuindo no processo de construção de canais de luta, que
favorecem a cidadania em âmbito mundial. Desta maneira,
cresce a atuação da cidadania, através do aumento da participação do
número de organizações internacionais não-governamentais, constituindo
uma verdadeira e nova cultura cívica global. Hoje, existem mais de 20 mil
organizações no mundo inteiro, com múltiplas atividades internacionais,
repartindo poder de decisão com Estados e organismos internacionais
(BRIGAGÃO & RODRIGUES, 1998, p.49).
Nesta perspectiva, há um expressivo aumento das Organizações Não Governamentais
(ONG’s) atuando de forma articulada no âmbito local, regional, nacional e internacional. A
conexão da esfera local com a global, muitas vezes, é efetuada pela ligação das ONG’s em
redes, que não só ampliam a sua atuação mas as tornam mais eficazes. Diz Vieira (1997):
Em muitos países, as ONGs ajudam a formular as políticas públicas. Em
outros, seu papel é importante para fiscalizar projetos, bem como para
denunciar arbitrariedades do governo, desde de violações de direitos
humanos até omissão no cumprimento de compromissos públicos,
nacionais e internacionais (VIEIRA, 1997, p.68)
Enfim, inúmeros novos movimentos sociais que procuram encaminhar a luta pela
cidadania transcendendo as fronteiras geográficas. As ações em prol do cidadão, na era da
globalização, são realizadas contemplando uma articulação do local com o global. Há, além
disso, uma diversidade de questões visando pleitear direitos a partir de diferentes
procedimentos, tais como, a denúncia, o protesto, por meio de ações solidárias atinentes às
questões sociais, através da elaboração de projetos alternativos, entre outros. (WARREN,
1999).
Doravante, passamos a pensar alguns impactos negativos do processo de globalização
à cidadania.
A partir da década de 1970, o sistema capitalista começa a vivenciar uma profunda
crise. Segundo Gorender (1995), os detonadores da crise são os choques do petróleo que
ocorrem na década de 1970. Todavia, a expansão inflacionária nos EUA - com a guerra do
Vietnã - e crise fiscal dos Estados do Bem-Estar-Social são as causas da crise, que estão
ligadas ao esgotamento da organização do trabalho fordista
4
e ao aparato tecnológico. Com o
intuito de superar a crise do capitalismo, substitui-se o paradigma do fordismo pelo toyotismo.
Juntamente com o enxugamento de outros gastos, um expressivo aumento da concorrência
entre as empresas e uma profunda transformação no âmbito da tecnologia, com inovações na
informática, robótica, engenharia genética, biotecnologia etc.
Tais transformações são a base material para o surgimento da globalização, que visa
reestruturação do capitalismo para superar a crise da década de 1970. A globalização “pode
ser entendida como o resultado da multiplicação e da intensificação das relações que se
estabelecem entre os agentes econômicos situados nos mais diferentes pontos do espaço
mundial” (MARTINS, 1996, p.1). O processo de globalização tem como ponto de partida a
década de 1970, mas se aprofundou no final da década de 1980 com a crise do socialismo e
por meio de uma série de fenômenos sócio-econômicos. É importante lembrar, que nem todos
os países estão integrados na lógica do processo de globalização. O continente africano, por
exemplo, praticamente não está em sintonia com tal processo.
4
O fordismo é uma forma de organização do trabalho em que visa superar a produção artesanal, haja vista que
uma separação entre o trabalho intelectual (gerentes, engenheiros etc) e o trabalho material (operários).
Procura-se produzir em grande escala com um número expressivo de trabalhadores, cada trabalhador participa
de uma parte do processo produtivo. A intenção crucial do fordismo é eliminar os tempos mortos, ou seja,
racionalizando ao extremo o trabalho dos operários. Nessa ótica, de acordo com GORENDER (1997), nos
primórdios do século passado, Henry Ford, nos EUA, introduz, no processo produtivo, novos métodos que
racionalizam o trabalho. Todavia, o fordismo passa a expor seus problemas: desmotivação pelo trabalho;
alcoolismo; rotatividade do trabalho; existência de inúmeras peças defeituosas; custos adicionais em manutenção
e em reparos dos produtos; custos com estocagem de insumo etc. Ocorre que, o Japão, no pós-guerra, elabora um
paradigma de organização do trabalho diferente, chamado de Toyotismo. Neste, o processo produtivo é
composto por pequenas equipes, não se produz para a lógica da oferta e sim pela demanda; como o processo não
é fragmentado, todos os operários devem ser polivalentes, recebendo um treinamento constante. São motivados
para o trabalho (apesar de trabalharem mais e serem cobrados pelos próprios companheiros), recebem o salário
dependendo da equipe e do seu desempenho. Enfim, tal paradigma reduz custos: os produtos não saem
defeituosos, prescindindo de outros funcionários para os reparos. Além disso, não se gasta com supervisores,
pois a própria equipe controla a qualidade.
A globalização possui um aparato ideológico: o neoliberalismo. Tal ideologia irá
legitimar o processo de globalização, bem como contribuir para intensificá-lo. Essa ideologia
surge, num primeiro momento, com as críticas ao Estado intervencionista (Estado do Bem-
Estar); mas ganha força com a crise dos anos 1970 e com os governos - década de 1980 -
Reagan nos EUA e Tatcher na Inglaterra. Segundo os neoliberais, a liberdade dos agentes
econômicos é fundamental numa sociedade, gerando progresso e riqueza para todos.
Preconizam também a livre competição que ocorre na esfera do mercado, que deve ser livre
entre os países, visando fomentar a competição e, por conseguinte, a redução dos preços dos
produtos. Entretanto, para Singer (1997),
Em um país que abriu o seu mercado interno, os beneficiários supostos são
os consumidores que ganham acesso a produtos importados mais baratos
e/ou de melhor qualidade. Os que arcam com os custos o os empresários
que perdem mercado e os trabalhadores que perdem empregos. Como
empresários e trabalhadores também são consumidores, é possível afirmar
que “todos” ganham numa qualidade e perdem na outra. O que não é bem
verdade, pois os trabalhadores que ficam desempregados deixam de ser
consumidores (SINGER, 1997, p.41)
O neoliberalismo procura argumentar que é prejudicial a intervenção do Estado no
âmbito do mercado, enaltecendo a privatização e o chamado “Estado nimo”. Este, na visão
neoliberal, deve, além de garantir o funcionamento do mercado, atuar em políticas sociais
voltadas somente para os mais pobres, com o auxílio da sociedade civil. Isto significa dizer
que há uma negação à cidadania, uma vez que - entre outras razões - não contempla a
universalização dos direitos ao focalizá-los apenas aos pobres.
Ainda com relação ao Estado, há mudanças na sua atuação com a globalização, porque
“em todos os países, embora em alguns mais do que outros, o Estado vem perdendo poder,
recurso e funções” (MARTINS, 1996, p.17). Gorender (1997) afirma que ele continua sendo
fundamental para o capitalismo, assegurando os interesses do capital de várias formas. O
Estado será mais forte se o país for rico e vice-versa. Todavia, em alguns aspectos, todos os
Estados são vulneráveis ao processo de globalização, principalmente pelo poder econômico
do capital financeiro. O Brasil, por exemplo, em função de não ter poupança interna, vende
papéis no mercado para financiar dívidas. O capital financeiro não tem pátria, possui uma
soma expressiva de recursos através de fundos de pensão; grandes fortunas; investimentos de
bancos internacionais que ganham com juros altos, que são pagos pelo país, não sendo um
ganho no processo produtivo, mas via especulação. O ganho que é fruto da especulação é
igualmente nefasto em função de não ser investido no processo produtivo, não gerando
emprego e tornando inviável o investimento na produção, tendo, com isso, evidentes
conseqüências negativas para a cidadania.
Nessa linha de raciocínio, nosso país - e muitos outros - não tem uma total soberania,
em função de ficar a mercê dos especuladores e dos organismos internacionais, como FMI
(Fundo Monetário Internacional) e o BIRD (Banco Internacional para a Reconstrução e
Desenvolvimento), que condicionam determinadas políticas internas. Tal fato é um risco à
democracia, prejudicando a cidadania, ou seja, quem estabelece o poder de mando não são
necessariamente os governantes eleitos democraticamente, mas sim, os membros ou
representantes do capital financeiro. Ademais, segundo o Banco Mundial (SINGER, 1997),
inúmeros países diminuíram os gastos sociais (educação, saúde, etc) visando pagar os juros
para o capital especulativo, que, certamente, irá repercutir, de forma prejudicial nos direitos
sociais e, por conseguinte, à cidadania.
inúmeros outros aspectos negativos provocados pela globalização, que terão
conseqüências nefastas para a cidadania. O mais notório é o desemprego estrutural que,
segundo Gorender (1997), está ligado ao novo paradigma da organização do trabalho e com
as inovações da tecnologia; também as medidas para conter a inflação dificultam o
crescimento econômico afetando o mercado de trabalho. Além do desemprego, a
degradação das relações de trabalho com a terceirização, que não garante direitos sociais
trabalhistas; com o trabalho informal, que cresceu expressivamente na década de 1990 em
função do aumento do desemprego; e com a desregulamentação e flexibilização do mercado
de trabalho.
Enfim, por diversos aspectos, a nova ordem do capitalismo globalizado tende a causar
prejuízo à cidadania, seja pela profunda exclusão, típica do capitalismo; seja pela negação de
muitos direitos ou pela dificuldade de se lutar por eles.
Tratamos, neste capítulo, sobre os primórdios e desenvolvimento da cidadania em
âmbito mundial, que certamente repercute, sob diversos aspectos, em nosso país. Contudo, as
especificidades a respeito da origem e evolução sócio-histórica da cidadania no Brasil serão
abordadas no próximo capítulo.
Capítulo 2
A cidadania no Brasil
2.1- A cidadania e os primórdios da sociedade brasileira
O processo de colonização no Brasil, efetuado pela coroa portuguesa a partir de
1500, está inserido no bojo da dinâmica do capitalismo comercial da Europa. Destarte, a
colonização se processou não com vistas ao povoamento, mas com o interesse mercadológico
de exploração comercial. A idéia de povoação foi efetuada apenas com o objetivo de
organizar a produção local, que se restringiu nos primeiros 30 anos, ao extrativismo do pau-
brasil, utilizado para extrair corante para tintura. A mão-de-obra utilizada, na referida
atividade, foi a de comunidades indígenas, que aos poucos iria sofrer um extermínio, quase
que total, pelo colonizador.
Com a decadência do pau-brasil, a principal atividade econômica seguinte foi a da
cana-de-açucar. Esta atividade inaugurou-se a agricultura latifundiária monocultora e,
juntamente com ela, o trabalho escravo. Num primeiro momento, tentou-se utilizar o trabalho
do indígena, contudo a sua resistência ao trabalho, aliada às dificuldades para capturá-los na
imensa floresta, levou à opção pelo trabalho do escravo negro. O latifúndio monocultor e a
escravidão não proporcionaram a formação de cidadãos, tendo em vista que o escravo não
gozou de nenhum direito civil:
Os cidadãos não tinham direitos civis básicos à integridade física (podiam
ser espancados), à liberdade e, em casos extremos, à própria vida, que a
lei os considerava propriedade do senhor, equiparando-os a animais.
(CARVALHO, 2002, p.21).
Havia ainda pequenas comunidades de camponeses pobres que, apesar de serem livres,
estabeleciam relações de dependência e fidelidade aos senhores de engenho. Como não
tinham direitos e eram muito pobres, a estratégia de sobrevivência que utilizavam era o
vínculo fiel e subserviente ao latifundiário. Muitos camponeses pobres recorriam às relações
de compadrio, com o propósito de garantir um futuro promissor aos seus filhos. “Esta relação
vertical, mediante o qual o poderoso, o mais rico, apadrinha os subalternos, os mais pobres,
reproduziu-se desde os primórdios da nossa formação social até os dias atuais”.(SOUZA,
1981, p. 30)
O eixo econômico do século XVIII passou a ser a extração de metais preciosos em
Minas Gerais. A continuidade do trabalho escravo pode ser apontada como um dos traços
mais negativos à cidadania nesse período. Por este motivo, os negros foram os pioneiros na
luta por cidadania: os quilombos, que revelaram as primeiras formas de protesto contra a
dominação, exploração e opressão dos colonizadores. O período da escravidão contribuiu para
a construção de uma elite com uma mentalidade em que a hierarquia, a violência e o
autoritarismo foram bastante freqüentes. Um exemplo elucidativo era a
existência do chamado negrinho, companheiro nas brincadeiras e moleque-
pancada do menino branco...”. Suas funções eram como as de um boneco
comandado, manipulado à vontade de seu pequeno senhor, maltratado,
espancado, como se fosse feito de pano. (DAVEL & VASCONCELOS,
1997, p. 96).
Segundo Carvalho (2002), com a formação do Estado brasileiro, a partir de 1822, os
direitos políticos foram contemplados. O voto direto foi introduzido, mas, simultaneamente,
com ele, “a lei passava para 200 mil réis a exigência de renda, proibia o voto dos analfabetos
e tornava o voto facultativo”. (
CARVALHO,
2002, p. 38). Ademais, no instante em que se
mantém a estrutura sócio-econômica do passado, a cidadania está longe de ser realizada, visto
que existiam inúmeros entraves para a sua concretização. Dentre eles, temos: continuidade
da monarquia, que institucionalizava a desigualdade e o privilégio; 2º a manutenção da
escravidão, que, entre outras razões, à rigor, não reconhecia o escravo como um ser humano;
a grande propriedade rural viabilizava o poder e a opressão do Senhor de Engenho e; a
expressiva e eminente pobreza da maioria corroboraram para a inexistência de qualquer
possibilidade para haver cidadania.
Como sabemos, o Brasil, em novembro 1889, substituiu a monarquia pela república
através de um golpe organizado pelos militares, representados pelo Marechal Deodoro da
Fonseca. A forte influência da idéias positivistas de Augusto Comte foram marcantes no
ideário dos militares golpistas, por isso, preconizavam um poder centralizador e autocrático.
No entanto, o fato é que o movimento de 1889 jamais se concretizaria sem a base social
fornecida por um amplo setor da burguesia cafeeira de São Paulo, politicamente organizada
em torno do Partido Republicano Paulista” (BUENO, 1997, p.157). Deste modo, quem
realmente passou a deter o poder político, foi a oligarquia rural paulista, representada por
Prudente de Morais e Campos Sales, os dois primeiros presidentes civis da república
(BUENO, 1997). Enfim, com a Proclamação da República, em 1889, o brasileiro foi
juridicamente considerado cidadão. Mas quem era esse cidadão?
Os brasileiros tornados cidadãos pela Constituição eram as mesmas pessoas
que tinham vivido os três séculos de colonização nas condições que foram
descritas. Mais de 85% eram analfabetos, incapazes de ler um jornal... Mais
de 90% da população vivia em áreas rurais, sob o controle ou a influência
dos grandes proprietários. (CARVALHO, 2002, p.32).
A partir da formação da economia cafeeira no século XIX, houve importantes
modificações sócio-econômicas na sociedade brasileira, que desembocaram em modificações
no eixo econômico. Ocorre que o Ciclo do Açúcar e da Mineração aconteceu no período
colonial sob o regime da monarquia, concomitante ao trabalho escravo utilizado em grande
escala. Com a abolição da escravidão, em 1888, e sob a égide da economia cafeeira,
introduziu-se trabalho assalariado.
O trabalho remunerado permitiu a formação de um incipiente mercado consumidor
e, simultaneamente, “a nova população paulistana, constituída por fazendeiros e suas famílias,
passam a gastar na capital uma parte das rendas obtidas do café”. (SINGER, 1977, p. 37).
Desta forma, o processo de urbanização começou a evoluir com a economia cafeeira,
preparando terreno para o surgimento e desenvolvimento da industrialização, em razão de que
houve vários motivos a seu favor: existência, como vimos, do trabalho assalariado dos
imigrantes; expressiva mão de obra barata; 3°evolução de núcleos urbanos; construção
de estradas de ferro que permitiram a unificação dos mercados locais, entre outros.
Concentrada principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1920 as
indústrias dessas referidas cidades tinham, segundo Carvalho (2002), 275.512 operários. O
movimento operário brasileiro, no início do século XX, conseguiu uma grande pujança em
função da presença dos trabalhadores de origem italiana. Organizados sob os fundamentos
ideológicos do anarquismo, houve reivindicações e conquistas importantes concernentes à
cidadania:
o movimento operário significou um avanço inegável... aos direitos civis”.
“... lutaram também por uma legislação trabalhista que regulasse o horário
de trabalho, o descanso semanal, as férias e por direitos sociais como o
seguro de acidentes de trabalho e aposentadoria... (CARVALHO, 2002,
p.60)
2.2- A cidadania no limiar da sociedade industrial brasileira
A Revolução Industrial brasileira teve os seus primórdios nos anos de 1930. Para
tanto, a economia cafeeira gerou fatores positivos para o crescimento da atividade industrial
capitalista. Com a crise de 1929, limitou as importações de produtos industrializados no
instante em que o principal produto de exportações, o café, não tinha mercado externo para
que pudesse ser comercializado. Isto propiciou uma oportunidade de investimentos industriais
pela demanda interna, impedida pela referida crise - de adquirir produtos importados. A
conseqüência crucial da revolução de 1930, “que lhe confere uma importância extraordinária
no quadro da história econômica, política e social brasileira, é o de ter apeado do poder a
oligarquia agrário-comercial” (PEREIRA, 1983, p.35). Assim, o governo instalado a partir de
1930 estava em sintonia com a mudança política e econômica da sociedade brasileira, ou seja,
distanciou-se das oligarquias tradicionais e dos seus interesses. Diz Pereira (1983):
Com a Proclamação da República em 1889, Revolução de 30 foi, antes de
mais nada, uma revolução da classe média, mas, ao contrário daquela
primeira revolução, a de 30 foi uma revolução vitoriosa no tempo. Depois
dela, jamais a oligarquia agrário-comercial brasileira voltou a contar com
uma parcela sequer do poder que detivera durante séculos (PEREIRA,
1983, p.35)
Segundo Pereira (1983), o governo que se instaurou a partir de 1930 com Getúlio
Vargas, sofreu contestação das classes médias tradicionais e da aristocracia, que tentaram
reconquistar o poder com a Revolução de 1932. Houve, desta forma, um interesse de
conseguir apoio dos novos grupos sociais em ascensão - constituído pelo proletariado urbano -
que o governo Vargas “atendeu com uma extensa legislação trabalhista, na nova classe média,
à qual continuou a beneficiar com empregos públicos e na classe emergente dos empresários
industriais”. (PEREIRA, 1983, p.35). Nesse sentido, surgiu em 1943 a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT)
1
, garantindo direitos trabalhistas a todos aqueles que tinham vínculo
empregatício formal, denotando que tais direitos não eram para todos os cidadãos, ou seja,
excluía trabalhadores autônomos, domésticos e aqueles que atuavam no espaço rural. Mesmo
com tal limitação “para as classes populares a legislação do trabalho significará a primeira
forma através da qual elas verão definidas a sua cidadania, seus direitos de participação nos
assuntos do Estado” (WEFFORT, 1989, p. 66)
Em 1937, Vargas instaurou o Estado Novo, imperando assim uma ditadura em que
se mutilou a atuação política do povo, visto que “a liberdade começou a ser suprimida... com
a suspensão da Constituição”. Portanto, ”Vargas aboliu os partidos e o parlamento, prendeu
seus adversários e baixou uma nova Constituição... A Carta de 37 se baseava na Constituição
autoritária da Polônia” (BUENO, 1996, p.225 -229). Juntamente com a ditadura, tivemos a
presença marcante do populismo - através da figura de Vargas que, sensível às pressões
populares, procurava manipulá-las adotando condutas paternalistas. Um exemplo
significativo, desse período, foi a intervenção dos sindicatos que foram cooptados pelo
aparelho do Estado. Assim, todos os sindicatos deveriam ser reconhecidos pelo Ministério do
1
Segundo CARVALHO (2002), a ênfase à questão social no governo Vargas - também se deve à figura do
então ministro do trabalho Lindolfo Collor em função de sua influência positivista. Diz CARVALHO (2002):
“No que se refere à questão social, Comte dizia que o principal objetivo da política moderna era incorporar o
proletariado à sociedade por meio de medidas de proteção ao trabalhador e a sua família” (CARVALHO, 2002,
p. 111). Contudo, o “fato é que as reivindicações do movimento organizado tornaram-se objeto de normalização
e fiscalização por parte do Judiciário, processo que culminou com a aprovação da Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT), em 1943” (LUCA, 2003, p.478)
Trabalho, “ao qual os sindicatos deveriam enviar os seus estatutos e relação dos seus
associados” (CARVALHO, 2002, p.117)
Após o Estado Novo, os direitos políticos e civis voltaram com a Constituição de
1946. Os direitos sociais - garantidos na era Vargas - foram contemplados na nova carta e,
nesta época, houve um avanço significativo da democracia, estendendo-se até 1964. Deste
modo, ocorreram uma intensa mobilização política, liberdade de imprensa e eleições em todas
as esferas do Estado (CARVALHO, 2002).
Nos anos de 1950, Vargas voltou à cena política pelo voto. Seu estilo populista e
nacionalista teve apoio junto aos trabalhadores sindicalizados e de alguns nacionalistas do
Exército. O período entre 1956 e 1961, segundo Pereira (1983), foi marcado com um intenso
desenvolvimento econômico no país. O governo de Juscelino Kubstchek orquestrou tal
desenvolvimento, pelo motivo de que - além de ter apoio político - estava assessorado por
técnicos formados no exterior que ajudaram a criar, com o planejamento, condições para o
desenvolvimento do capitalismo industrial no Brasil. Segundo Pereira (1983),
Neste período o fenômeno econômico fundamental foi a implantação de
uma poderosa indústria automobilística no Brasil. Partindo praticamente da
estaca zero em 55, o Brasil em 60 já produzia 133.078 veículos, com um
índice de nacionalização superior a 90% A importância dessa indústria é
fundamental na explicação de seu desenvolvimento brasileiro nesse
período... (PEREIRA, 1983, p.48)
Foi nesta ótica que se elaborou o Plano de Metas, em que os objetivos fundamentais
eram investimentos maciços do Estado no aparato infra-estutural, aumentando a dívida
externa e estimulando investimentos nacionais e estrangeiros. Nesta época, anos 1950-1960,
começaram a acontecer as primeiras migrações
2
do campo para as cidades, eclodindo os
primórdios dos problemas ocasionados pelo processo de industrialização urbanização.
2
Convém lembrar, que o êxodo rural se acentua após a ditadura militar, iniciada em 1964, visto que uma
gama de fatores para que isto ocorra: 1.intensificação do desenvolvimento capitalista no campo; 2. apoio do
Estado aos grandes proprietários rurais, através dos subsídios; 3. aumento da concentração fundiária; 4. repressão
aos sindicatos e entidades organizadas, que defendiam os interesses dos trabalhadores rurais; aprovação do
Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) e o Estatuto da Terra (ET) em 1964 - pelos governos militares que não
lesam os interesses dos latifundiários, entre outros. (FIGUEIREDO, 1984). Segundo Silveira (2003), o Estatuto
do Trabalhador Rural (ETR) “é um conjunto sistematizado de normas para a proteção jurídica ao rurícola que
trabalha a terra de terceiros, na qualidade de empregado ou outras formas reconhecidas de assalariado pelo
Direito Brasileiro” (SILVEIRA, 2003, pp 23-24). Ademais, de acordo com o referido autor, grosso modo, “esse
estatuto apresentou-se como uma vitória do trabalhador rural, até então praticamente sem proteção” (SILVEIRA,
1003, p.25). Todavia, “frente às inúmeras manifestações dos trabalhadores do campo, os empregadores reagiram
violentamente ao ETR: negaram as novas obrigações patronais, expulsaram os trabalhadores das propriedades
rurais onde trabalhavam e moravam, aumentando, desta maneira a problemática social na cidade” (SILVEIRA,
1003, p.26). Concernente ao Estatuto da Terra (ET), para Silveira (2003), a sua elaboração está profundamente
atrelada aos interesses das classes dominantes, que são defendidos e representadas pelos governos militares.
Assim, o Estatuto da Terra, “não visava só a reforma agrária, mas, sobretudo a modernização da política agrícola
do país; por isso é um projeto de desenvolvimento rural” (SILVEIRA, 2003, p.35).
Assim, o problema da moradia ficou evidenciado com a visibilidade das favelas nas cidades
como Rio de Janeiro e São Paulo. Se no espaço urbano o problema da moradia denotava
ausência de direitos sociais, no campo a mobilização dos trabalhadores rurais com as Ligas
Camponesas, lideradas pelo deputado Francisco Julião, expressava a miséria e opressão do
latifúndio, assim
colocou-se em questão a condição de escravos a que os trabalhadores rurais
estavam submetidos. As ligas contestaram a dominação econômica e
política que os proprietários exerciam sobre o povo do campo; conseguiram
se organizar em vários estados do País e iniciou-se uma discussão sobre a
implementação da reforma agrária (SILVEIRA, 2003, p.19).
Portanto, os problemas derivados da estrutura fundiária, obviamente, tiveram
conseqüências sociais igualmente no urbano e, por conseguinte, à cidadania.
Os conflitos sociais “eram amortecidos pelas altas taxas de desenvolvimento
econômico, em torno de 7% ao ano, que distribuíam benefícios a todos (ou quase todos! -
observação nossa), operários e patrões, industriais nacionais e estrangeiros” (
CARVALHO,
2002, p. 133). Enfim, havia um clima de otimismo fortemente reforçado pela ideologia
desenvolvimentista, que não ocorre nos anos posteriores: é o que veremos a seguir.
2.3- A cidadania na sociedade contemporânea brasileira
Segundo Pereira (1983), a partir de 1961 a situação sócio-econômica da sociedade
brasileira foi se modificando, franqueando uma degringolagem do sentimento de otimismo
construído anteriormente. O pessimismo foi se instalando em função da conjuntura de crise
em que o país estava adentrando. Uma das evidências da crise foi a queda do consumo de
bens, atingindo diretamente a produção das empresas obrigadas a reduzir a produção,
afetando negativamente a população com o aumento do desemprego. As causas da crise foram
várias: a) política de arrocho salarial; b) restrição de investimentos internacionais por conta da
crise política; c) inexpressiva produção agrícola, incompatível com crescimento demográfico;
d) crise de superprodução, em que a produção excede o consumo.
Em 1960, foi eleito Jânio Quadros, porém o seu mandato foi curto pela sua renúncia.
João Goulart (1961-1964) assumiu a presidência num clima de intensas greves, mobilizações
e manifestações políticas de vários setores da sociedade: partidos políticos de esquerda, da
União Nacional dos Estudantes (UNE), da Central Geral dos Trabalhadores (CGT), das ligas
camponesas, de setores da Igreja Católica, de sindicatos entre outros. As reformas de base,
dentre elas a reforma agrária, contribuíram ainda mais para a efervescência político-
ideológica no país. O Comício da Central do Brasil, realizado no Rio de Janeiro, no dia 13 de
março de 1964, foi um fato eminentemente relevante para o país, quando João Goulart
“anunciou a assinatura de dois decretos. O primeiro... encampava as refinarias de petróleo
‘particulares’; o segundo, o da Superintendência da Reforma Agrária (SUPRA),
desapropriava terras improdutivas localizadas à beira de estradas e ferrovias” (BUENO, 1997,
p.250). Em contrapartida, a oposição conservadora organizou uma passeata em São Paulo,
liderada por grupos religiosos, com o tema Marcha da Família com Deus, denotando um
repúdio ao inimigo que o governo João Goulart representava: o comunismo.
Com o golpe militar de 1964, as reformas de base do governo Goulart foram
liquidadas, dando lugar ao regime ditatorial que duraria 20 anos. O período de “1964-1968
correspondeu ao governo do general Castelo Branco e primeiro ano do governo Costa e Silva”
(CARVALHO, 2002, p.157). Sob o regime militar, a cidadania foi profundamente
prejudicada em muitos aspectos.
Em primeiro lugar, instalou-se uma cruel e forte repressão que, pelos instrumentos
legais, eram efetuados com os Atos Institucionais, publicados pelos governos militares.
Alguns foram os seguintes: 1)AI-1 editado no ano de 1964 estabelecia a cassação de direitos
políticos, por um período de dez anos, de lideranças políticas, sindicalistas e intelectuais;
2)AI-2 editado no ano de 1965 vetou a eleição direta para presidente da República; proibiu a
existência de vários partidos políticos; elevou o poder do presidente, podendo dissolver o
congresso e demitir funcionários; reformou o judiciário; limitou o direito de opinião; juizes
militares começaram a julgar crimes políticos; 3)AI-3 editado no ano de 1966 preconizava
eleições indiretas também para governos dos estados; 4)AI-5 editado no ano de 1968
(considerado o mais nefasto de todos) o qual fechou o congresso e delegou plenos poderes
ditatoriais ao presidente, o general Costa e Silva. Enfim, inúmeros direitos políticos e civis
foram expressamente mutilados com os referidos instrumentos legais (Atos Institucionais)
utilizados pelos governos militares.
Em segundo lugar, organizou uma profunda e severa repressão aos movimentos
sociais, estudantes, entidades de classe, sindicatos ou a qualquer cidadão que protestasse ou
discordasse do regime ditatorial. Tal repressão teve amplo apoio dos meios de comunicação
de massas que foram atingidos pela censura, mas muitos, como a Rede Globo de Televisão,
apoiaram e exaltaram o referido regime. Nesse caso, “a Globo foi censurada como todos os
meios de comunicação do país. O que a Globo fez diferente dos outros meios de comunicação
é que ela encampou, ela defendeu o regime, ela exaltou o regime em vários momentos...”
(PRIOLLI, 1993, BBC). O autor citado ressaltou ainda, que após o regime militar a Rede
Globo foi favorecida, uma vez que procurou estabelecer harmoniosas relações com os
governos que estavam no poder e vice versa (convém lembrar, que ainda procuram manter
boas relações com os atuais governos). Em suas palavras:
Saem militares entram presidentes civis e a relação é exatamente a mesma.
A Globo não tem necessariamente uma vocação militarista, ditatorial... mas
ela tem uma vocação governista, onde tem governo está a Rede Globo, saiu
do governo já não interessa mais a ela. Ela é habilíssima de fazer um
casamento de interesse com o governo, e o governo também precisa, porque
qualquer governo num país de 150 milhões de habitantes, que tem quase
100 milhões de expectadores, precisa de 70% de audiência (PRIOLLI,
1993, BBC).
Em terceiro lugar, os governos militares orquestraram o chamado “milagre brasileiro”,
tendo como aspecto central a super exploração da força de trabalho. Para tanto, o
autoritarismo militar desarticulou, através da repressão e violência, os movimentos populares
ou entidades de classe que representavam os interesses das classes dominadas. Assim, o
Estado beneficiou acintosamente as classes dominantes através de empréstimos, subsídios,
incentivos fiscais e, sem dúvida, pelo tráfico de influência, que desembocou na conhecida
corrupção. Diz Buarque (1994):
Dos que necessitam dos serviços do Estado para os que deveriam pagar
impostos, graças a política de incentivos fiscais:Além de servirem como
redutor de impostos, os recursos são transferidos para financiar atividades
dos grupos privilegiados. Um dos exemplos disso é a política dos incentivos
fiscais. Os empresários deixam de pagar impostos e m acesso a
financiamentos com recurso que seriam públicos, usando-os para implantar
indústrias e hotéis que pouco ou nada beneficiam a maior parte da
população (BUARQUE, 1994, p.42)
Dentro desse quadro, segundo o autor citado, também na ditadura se construiu um
projeto extremamente elitista de sociedade, pois visaram concentrar os recursos objetivando
garantir o consumo do luxo por uma minoria, em detrimento das graves necessidades para a
grande maioria do povo. Nas palavras de Buarque (1994):
Para fazer funcionar, em um país-com-maioria-pobre, uma economia
voltada para a população consumista de bens característicos de países-com-
maioria-rica, o regime ditatorial tomou medidas concentradoras de renda,
dos recursos e dos benefícios. que a população era pobre para comprar o
luxo, fez-se uma minoria rica às custas do empobrecimento da maioria,
provocando uma desigualdade crescente. (BUARQUE, 1994, p. 39).
Paradoxalmente houve, segundo Carvalho (2002), uma medida compensatória por
parte dos governos militares. Se, por um lado, mutilou-se direitos políticos / civis e
aprofundou-se a expropriação econômica, por outro, procurou-se ampliar alguns benefícios
sociais, com a criação, em 1966, do Instituto Nacional de Previdência Social, que uniformizou
os serviços a todos que eram assegurados; e do FUNRURAL (Fundo de Assistência Rural),
que levou à previdência para os trabalhadores rurais e também foi ampliada para os
trabalhadores autônomos e domésticos.
Nesse contexto, os movimentos sociais que se destacaram foram o sindicalismo no
final da década de 1970, que procurava superar a tradição de tutela imposta pelo getulismo, e
os movimentos sociais liderados por grupos progressistas da Igreja Católica, ancorados nos
fundamentos da chamada Teologia da Libertação. Surgiram as Comunidades Eclesiais de
Base (CEBS), visando construir um espaço para organizarem e lutarem contra a opressão,
exploração e dominação, impostos sob a égide dos governos militares. Nesse sentido, segundo
Boff (1992), “o pobre emerge como sujeito de sua libertação e também da nova
evangelização. Ele é sujeito criador da igreja. As CEBS representam a obra dos próprios
oprimidos...” (BOFF, 1992, p. 35). As CEBS foram o ponto de partida para o surgimento do
maior movimento social do século XX: o Movimento dos Sem Terra (MST). Este movimento
social vem sendo composto por inúmeros trabalhadores das classes populares, sendo a
principal expressão de luta pela cidadania através da reforma agrária. Como sabemos, a
estratégia adotada é a ocupação de grandes latifúndios, visando pressionar o Estado a
desapropriar áreas para fins de assentamento rural. O MST é uma das poucas vozes
representativas dos segmentos menos favorecidos da sociedade, contribuindo para o
aperfeiçoamento da nossa democracia, que em muitos aspectos, existe apenas no plano
formal, ou seja, a luta pela terra não se circunscreve ao ganho com a conquista de direitos
sociais, mas socializa politicamente o exercício da prática participativa democrática, o que
tem a ver com a cidadania.
A década de 1980 - com a crise econômica - viu crescer as greves para recuperar o
poder de compra dos salários defasados com a inflação. O auge foi em março de 1989 em que,
sob nova liderança da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Central Geral dos
Trabalhadores (CGT), os trabalhadores foram convocados para uma greve geral. Esta foi a
primeira grande greve após a ditadura militar. De acordo com as fontes, ligadas às lideranças,
houve uma adesão de 80% dos trabalhadores, não obtendo o mesmo êxito em maio de 1991.
As conquistas sindicais e trabalhistas tiveram início em março de 1985, ainda no
governo Sarney, que revogou a legislação proibindo a formação das centrais. Nesse sentido,
houve algumas conquistas trabalhistas: foi aprovado o plano de custeio da previdência social,
que trouxe o pagamento do 13º para os aposentados; jornada de trabalho para 44 horas
semanais, férias, 13º e licença maternidade foram estendidos aos empregados domésticos,
entre outros. Ainda nos anos 1980, trouxe um crescimento das reivindicações de trabalhadores
rurais em função dos conflitos pela terra, eclodindo um aumento de assassinatos de posseiros
por grileiros de terras. O fortalecimento do Movimento dos Sem Terra (MST) acabou
orquestrando um dos maiores movimentos sociais do século XX.
Com o processo de redemocratização do país, recrudesceram as mobilizações políticas
de determinados grupos e classes sociais. Os sindicatos rurais, urbanos e as centrais sindicais
aumentam o seu poder como interlocutores, tanto junto ao governo quanto junto aos
empresários. O número de sindicatos teve um significativo crescimento no final dos anos de
1980, após a Constituição de 1988, que permitia a sindicalização do funcionalismo público.
Além disso, a Constituição de 1988 foi um marco importante em favor da cidadania no Brasil,
haja vista que “a garantia dos direitos do cidadão era preocupação central” (CARVALHO,
2002, p.200). Houve, nesse sentido, inovações nos direitos políticos, civis e sociais. Citemos
alguns deles: foi universalizado o direito ao voto, tornando-o facultativo aos maiores de 16
anos e para os analfabetos; a noção de democracia contemplada implica numa participação
ativa do cidadão; crime inafiançável a prática do racismo; uma igualdade jurídica
entre homens e mulheres, ou seja, ambos têm os mesmos direitos e obrigações, inclusive no
seio da família; 5º o Ministério Público passa a ter autonomia em relação ao poder executivo,
o que pode assegurar-lhes ações em defesa do patrimônio público, dos direitos sociais, do
meio ambiente, entre outras questões de interesse coletivo; amplia os direitos sociais:
abono de férias, licença à paternidade; as aposentadorias e pensões não podem ser menores
do que um salário mínimo entre outros. Ademais, importantes inovações no âmbito jurídico
foram criadas a partir da Constituição de 1988. Sendo assim, temos o Código do
Consumidor, publicado no ano de 1991, que ampara o consumidor no que tange os seus
direitos; o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), publicado no ano de 1990, que
“regulamentou conquistas presentes na Constituição, e sua implantação, mesmo que morosa,
dados os entraves e resistências de setores da sociedade brasileira, vem promovendo uma
revolução nas áreas jurídica, social e política” (LEAL, 2004, p.148); a Lei Orgânica de
Assistência Social (esta legislação regulamenta a Assistência Social, preconizada pela
Constituição), publicada no ano de 1993, que “expressa uma mudança fundamental na
concepção da Assistência Social que se afirma como um direito, como uma das políticas
estratégicas de combate à pobreza, à discriminação e a subalternidade em que vive grande
parte da população brasileira” (YASBEK, 1998, p.55). Enfim, estas e outras inovações no
âmbito legal denotam significativos avanços no processo de construção de cidadania em
nosso país. Todavia, como sabemos, a cidadania não é efetivamente realizada apenas com as
referidas mudanças na esfera jurídica, tendo em vista que,
poucos desses direitos estão sendo praticados ou ao menos regulamentados,
quando exigem regulamentação [...] o mais grave é que em nenhum
momento da República brasileira, os direitos sociais sofrem tão clara e
sinceramente ataques da classe dirigente do Estado e dos danos da vida em
geral, como depois de 1995” (VIEIRA
3
,1997, p.68 Apud por YASBEK,
1998, p.54)
.
Podemos citar como exemplo de redução de determinados direitos a
desregulamentação e flexibilização das relações de trabalho, que, em nosso país, ocorreu com
o governo Fernando Henrique Cardoso, à medida que
lançando mão de medidas provisórias, decretos e portarias propuseram uma
série de medidas de alteração a legislação trabalhista. Dentre as principais,
cabe destacar:... trabalho aos domingos no comércio varejista- MP 1.539-
34; Contrato de trabalho por tempo determinado Lei 9.601; Trabalho em
regime de tempo parcial MP 1.709; Suspensão temporária de contrato de
trabalho - MP 1.726... Flexibilização do artigo da Constituição Federal
possibilidade de a negociação coletiva flexibilizar a CLT (aprovada na
câmara dos deputados e se encontra no Senado Federal... (ALENCAR,
2004, p. 66).
Alguns índices do período de 1992-2002 revelam a evidente e persistente
disparidade social, expressa entre as classes sociais, entre as diferentes raças e entre algumas
regiões do país, como mostra a tabela 1 (ALMEIDA, 2004, p.12). Além disso, também no
referido período, houve índices sociais positivos, porém assaz modestos, como mostra a
tabela 2 (Almeida, 2004, p.11).
O fenômeno marcante nos anos 90, que iria ecoar direta e indiretamente à cidadania,
foi a aceleração do processo de globalização - iniciado nos anos 1970, como vimos
anteriormente - e a adoção de políticas neoliberais, iniciada no governo do presidente
Fernando Collor de Mello (1990-1992), através da abertura do mercado brasileiro e com
ácidas críticas à ineficácia do Estado, que deveria ser substituído pela eficiência do mercado,
isso porque a concorrência era a pedra de toque na melhoria dos preços e na qualidade,
iniciando-se com tal governo a era do neoliberalismo em nosso país. Também nesse governo
ocorreu um fato que denota bem o seu total desrespeito ao direito civil do cidadão: o confisco
de todo dinheiro de correntistas que estava depositado nos bancos e órgãos financeiros do
país. “Foi uma das mais brutais intervenções dos direitos civis dos brasileiros, quase tão
radical quanto as atitudes arbitrárias tomadas pelos militares” (BUENO, 1997, p.283).
Concomitante a isto, como é notório, tal governo foi protagonista de uma das piores páginas
3
VIEIRA, Evaldo Amaro. As políticas sociais e os direitos no Brasil. In: Serviço Social & Sociedade. S.P:
Cortez, n. 53, março de 1997.
da história do nosso país concernente à corrupção. Contudo, os governos subseqüentes, nesse
aspecto - principalmente o governo Lula - não ficaram atrás.
Sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (1994-2002), como
evidenciaremos nas tabelas 1 e 2, houve modestos avanços em alguns indicadores sociais. De
acordo com tais indicadores, somente o desemprego foi crescente. Com relação ao aumento
do desemprego, ele está, como vimos, ligado ao processo de reestruturação do capitalismo
globalizado. Todavia, seria um equívoco limitá-lo apenas à globalização. A eminente
desigualdade social que excluiu a maioria do povo da riqueza produzida, ainda contribui para
causar desemprego. Isto ocorre a partir do momento que as classes populares não conseguem
gerar emprego. Como? Ora, a limitação de recursos não possibilita a compra de inúmeros
serviços e bens de empresas, profissionais liberais ou de instituições. Por exemplo: a casa.
Sabemos que a maioria das classes populares apela para a autoconstrução impossibilitando,
por este motivo, a criação de trabalho para o construtor civil, para o engenheiro, para o
eletricista, para o encanador e outros profissionais. Evidentemente, isto não ocorre com
aqueles que possuem um ganho mais elevado, em razão de conseguirem comprar
determinados serviços e, por conseguinte, geram empregos para outros. Desse modo, temos
uma carência em termos de hospitais, escolas, casas, etc. e, paradoxalmente, uma
quantidade expressiva de pessoas sem trabalho.
O crescimento econômico é apontado como sendo fundamental para a geração de
emprego. Faríamos, desta maneira, o seguinte raciocínio: maior crescimento, mais empregos e
vice-versa. Não obstante, estudos demonstrando que nem sempre isto ocorre. Diz
Porchmann (1996):
O mercado de trabalho brasileiro tem um problema estrutural. Apesar do
desenvolvimento econômico durante o ciclo de desenvolvimento, nós
mantivemos os problemas tradicionais dos mercados de trabalho dos países
subdesenvolvidos, que são a baixa formalidade, os baixos salários e o
subemprego (PORCHMANN, 1996, p. 146)
Ocorre que, além do desemprego, a partir dos anos 90 cresceu, de forma expressiva, o
trabalho no setor informal que relacionado, entre outras coisas, com as transformações
estruturais do capitalismo, mencionadas anteriormente. O setor informal, segundo dados do
IBGE de 1998, em 1997 estaria ocupando 12,9 milhões de trabalhadores, contendo cerca de
9,5 milhões de empresas (CASTOR, 2000). A terceirização e desregulamentação das
relações de trabalho, como fizemos menção, são também uma afronta à cidadania. Ambas,
não garantem direitos sociais trabalhistas (descanso semanal, férias, etc.), que no Brasil
confundem-se com os próprios direitos sociais, isto é, não ter trabalho formal é o mesmo que
não ter acesso a determinados direitos. Nas palavras de Alencar (2004):
No Brasil, historicamente, o critério de inserção no mercado formal de
trabalho operou como mecanismo sico de definição de direitos sociais,
instituindo o que Santos (1979) denominou cidadania regulada. Nesta
predomina um sistema de proteção social de caráter contributivo e
compulsório, ainda que durante o regime militar tenham sido estendidos os
benefícios previdenciários aos trabalhadores rurais e aos autônomos
(ALENCAR, 2004, p.73)
É importante lembrar, que no governo de Cardoso surgiram programas de proteção e
assistência social, como “Bolsa-Escola, Erradicação do Trabalho Infantil, Bolsa-Alimentação,
Auxílio Gás, Agente-Jovem, Programa de Saúde da Família, Programa de Apoio à
Agricultura Familiar” (ALMEIDA, 2004, p.10).
Com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva para presidência, em 2003, denotou um
significativo avanço em relação à elite política do país, no instante em que, como sabemos,
tal político, juntamente com o PT, representava historicamente os movimentos sociais,
entidades de classe, sindicatos e segmentos sociais comprometidos com a construção de
cidadania para as classes populares. Ainda que o tenhamos um balanço geral da gestão do
governo Lula, por óbvias razões de não ter sido concluída, podemos comentar alguns
elementos relacionados à cidadania. De certo modo, o presente estudo pode fornecer alguns
pequenos indícios acerca da cidadania no governo Lula, uma vez que estamos discutindo a
cidadania sob a égide deste governo.
De acordo com Almeida (2004) a política social do governo Lula é uma miscelânea de
propostas, visto que, por um lado, continuidade a alguns projetos, e por outro, muda
algumas prioridades. Há dois importantes documentos balizadores da política social do
referido governo. O primeiro se refere ao “Projeto Fome Zero: uma proposta de política de
segurança alimentar para o Brasil”, que fora produzido por 45 pesquisadores do Instituto de
Cidadania coordenado por José Graziano da Silva. Em linhas gerais, “consistia numa
combinação de políticas assistenciais com ações mais abrangentes de incentivo à agricultura
familiar” (ALMEIDA, 2004, p.13). Assim, tal programa possuía as seguintes ações:1º
distribuir renda através do Cartão-Alimentação; distribuir cestas básicas e leite; 3ºconstruir
restaurantes populares; 4º comprar alimentos de pequenos agricultores; construir moradia
popular e poços artesianos e alfabetizar. Ocorre que, o “Fome Zero” partia de premissas
equivocadas, pois pressupunha-se que o problema crucial dos segmentos empobrecidos fosse
a alimentação, mas, como sabemos, o percentual de pessoas subnutridas e famintas não é
majoritário; além disso, o referido projeto (“Fome Zero”) “carecia de substância e objetivos
claramente definidos”(ALMEIDA, 2004, p.14)
O segundo documento do governo do PT intitula-se “Política econômica e reformas
estruturais”, que fora elaborado por economistas ancorados em pressupostos neoliberais e não
eram membros do PT. Neste documento estava explicitado os fundamentos que orientariam a
gestão do referido governo:
recompor o equilíbrio da previdência pública, garantindo sua solvência no
longo prazo; diminuir a pressão sobre os recursos, permitindo o resgate da
capacidade de gasto público; e aumentar a equidade, reduzindo as
distorções nas transferências de renda realizada pelo Estado (ALMEIDA,
2004, p.13)
É importante observar que nada disto foi realizado neste governo: ficou apenas no
plano do discurso.
Enfim, a cidadania nos últimos anos no Brasil pouco se avançou, em razão de que
existem inúmeros e graves problemas sociais que foram construídos historicamente e, além
disso, aparecem vários outros obstáculos para a existência de cidadania, o que significa que
ela deve ser construída a todo instante, por todos nós.
Neste capítulo, nosso propósito foi analisar, de um modo global, a origem e evolução
da cidadania no Brasil. No entanto, a nossa investigação também procura abordar a questão da
cidadania a partir da realidade cio-econômica de seis famílias populares de um bairro
periférico da cidade de Presidente Prudente. Por isso, é imprescindível elucidar alguns
aspectos sócio-históricos da referida cidade, que será o objeto de estudo do próximo capítulo.
Em seguida, faremos uma reflexão a respeito do conceito de cidadania, que é,
indubitavelmente, o tema central no presente estudo.
Tabela 1
Indicadores de desigualdade selecionados – Brasil – Período de 1992-2002
Anos
Indicadores
1992 2002
Razão de renda apropriada pelos 20 % mais
Ricos e 20% mais pobres
26,8 25,6
Taxa de analfabetismo (15 anos ou mais)
Brancos 10,6 7,7
Pretos e pardos 25,8 18,2
Média de anos de estudos
Brancos 5,9 7,0
Pretos e pardos 3,6 4,9
Taxa de desemprego
Brancos 6,0 8,2
Pretos e pardos 7,4 10,4
Taxa de desemprego
Homens 5,5 7,4
Mulheres 8,2 11,7
Proporção de pobres
1
(%)
Norte 52,8 45,2
Nordeste 65,7 56,5
Centro-Oeste 33,8 23,5
Sudeste 27,5 21,0
Sul 32,2 21,8
Fonte:IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNDA); elaboração: Instituto de Estudos
do Trabalho e Sociedade.
[1]Pessoas com rendimento abaixo da linha da pobreza (R$125, em reais de setembro de 2002.
Organizado por Almeida, 2004, p.12
Tabela 2- Indicadores sociais selecionados – Brasil – Período de 1992-2002
Anos
Indicadores
1992 2002
Taxa de analfabetismo (15 anos ou mais) 17,2 11,9
Taxa de analfabetismo infantil 12,4 3,86
Crianças (7 – 14 anos) na escola (%) 81,9 94,5
Defasagem média de anos de estudo (10 – 14 anos) 2,1 1,1
Crianças (10 – 14 anos) na escola com mais de dois
anos de atraso escolar (%)
37,3 16,1
Média de anos de estudos (25 anos ou mais) 4,9 6,1
Pessoas com oito anos de estudo ou mais (%) 28,6 39,6
Mortalidade infantil (em mil) 45,2 27,8
Taxa de desemprego (15 anos ou mais) 6,6 9,2
Proporção de pobres
1
(%) 40,8 32,9
Proporção de indigentes
2
(%) 19,3 13,4
Fonte:IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNDA); elaboração: Instituto de Estudos
do Trabalho e Sociedade.
[1]Pessoas com rendimento abaixo da linha da pobreza (R$125, em reais de setembro de 2002.
[2]Pessoas com rendimento abaixo da linha da indigência (R$ 62, em reais de setembro de 2002
Organizado por Almeida, 2004, p.11
Capítulo 3
A cidade de Presidente Prudente e o conceito de cidadania
Neste capítulo, na primeira parte, apresentaremos, alguns aspectos sócio-econômico-
políticos, bem como sobre a origem e evolução da cidade de Presidente Prudente. Tal
apresentação se faz necessária, como pano de fundo, para a análise que efetuamos sobre a
cidadania a partir de seis famílias moradoras em um bairro periférico desta cidade.
Posteriormente, nossa intenção é tecer algumas considerações com referência ao conceito
cidadania procurando refletir sobre a sua definição.
3.1- A cidade de Presidente Prudente
Presidente Prudente, situada no extremo oeste paulista, começou a surgir em meados
do século XIX. Em 1856, segundo Abreu (1972), o desbravador José Teodoro de Souza
registrou a posse perante o vigário de Botucatu, de uma gleba medindo 10 léguas entre os rios
Paranapanema e do Peixe e 25 léguas do Rio Turvo para oeste. O referido desbravador passou
a vender terras nesta região, juntamente com os chamados “grileiros”, que não se
preocupavam com a exploração do solo, procurando, tão somente, a sua comercialização
aqueles interessados em plantar ou criar animais. É importante ressaltar, que os “grileiros”
constantemente se envolviam em conflitos de terras com os índios ou posseiros, sendo estes
os primeiros ocupantes desta região.
Com a expansão da cultura do café para o oeste paulista, intensificaram-se as
pequenas propriedades além, é claro, da presença do latifúndio - com o intuito de
exploração do solo. Assim, Presidente Prudente surgiu a partir de dois colonizadores:
Francisco de Paula Goulart (Coronel Goulart) e José Soares Marcondes (Coronel Marcondes).
Por um lado, o coronel Goulart era proprietário da chamada Fazenda Pirapó Santo
Anastácio, onde cultivava café e comercializava parte da sua grande propriedade aos
interessados em atividades agrícolas. Desta forma, em 14 de setembro de 1917, nasceu a Vila
Goulart, que é hoje Presidente Prudente. .
Por outro lado, o coronel Marcondes não era apenas proprietário de terras, mas
possuía uma empresa colonizadora, intitulada: “Cia. Marcondes de Colonização Indústria e
Comércio”. Marcondes chegou na região em 1919, com o propósito de comercializar as terras
da fazenda Montalvão. A partir do momento que foram crescendo as vilas, formou-se um
pequeno núcleo urbano o qual recebeu o nome de estação ferroviária: Presidente Prudente. Do
ponto de vista legal, a cidade nasceu do Projeto 21/1921, sancionado pelo presidente
Washington Luiz. O município continha uma área de 20.000 km², num total de 8% do Estado
e sua área era percorrida pela estrada de ferro Sorocabana.
A principal atividade econômica da década de 1920 era a cultura do café. Em 1927,
estima-se que existiam cerca de 10 milhões de pés de café. Posteriormente, com as geadas,
esgotamento do solo e a crise do capitalismo em 1929, houve uma queda do cultivo do
referido produto.
O algodão foi o principal produto que substituiu o café, pois havia grande procura
em função da expansão da indústria têxtil brasileira. Nesse sentido, várias empresas nacionais
e estrangeiras (Matarazzo; Anderson Clayton etc) foram instaladas na cidade, que
comercializavam e financiavam o cultivo de pequenos agricultores, viabilizando o surgindo
de algumas indústrias nesse setor.
Além disso, a polarização regional e a pujança econômica está ligada à “posição
geográfica privilegiada, facilmente observada num mapa de Estado do São Paulo, em situação
estratégica no sudeste, lhe confere a proximidade com os estados do Paraná (80 km) e com o
Mato Grosso (90 Km)” (FERRARI, 1972, p.67).
Do ponto de vista político, até a década de 1930, a cidade era praticamente
governada pelos coronéis Goulart e Marcondes. A hegemonia política dos coronéis ocorria em
função da predominância da atividade rural, aliada ao poder econômico gerado pela
propriedade rural. A influência dos coronéis continua sendo bastante marcante na cidade,
podendo ser denotado pelo fato de que as duas principais avenidas, que cortam o centro da
cidade, carregam os seus nomes: Avenida Manoel Goulart e Avenida Marcondes. Diz Abreu
(1972):
O latifúndio suplantado a pequena propriedade... dava aos coronéis
latifundiários condições de manipularem politicamente uma população rural
incapaz de se fazer representar em virtude principalmente de sua fraqueza
econômica... (ABREU, 1972, p. 209)
Em 1932, segundo Abreu (1982), inaugurou-se uma nova era política para a cidade
com o populismo (no capítulo 7 voltaremos a discutir sobre este assunto), que se evidenciou
através do candidato Cerávolo, apoiado pelos dois coronéis. Destarte, uma evidente
continuidade na esfera política: as mesmas elites, de origem rural, detendo o poder político na
cidade. Diz Abreu (1982):
Cerávolo herdou o prestígio dos coronéis, ampliou-o seu esforço pessoal e
continuam a ação mediadora entre a população prudentina e os poderes
centrais... exerceu seu poder político ancorado nos grandes proprietários
rurais e nos grandes comerciantes urbanos. Nunca contestou seus princípios
básicos: a propriedade, a subordinação da mão de obra assalariada, o
respeito às autoridades constituídas (ABREU,1982, p. 309)
Na década de 1940, a cidade de Presidente Prudente possuía um pujante centro
comercial e de prestação de serviços. No espaço rural, predominava a grande propriedade.
Porém, era marcante a presença de inúmeras pequenas unidades produtivas. Segundo
Hespanhol (2002), a partir dos anos de 1950 as lavouras do município e da região passaram a
sofrer uma série de problemas:
a) Redução da fertilidade natural dos solos com a conseqüente diminuição
dos níveis de produtividade das lavouras;
b) Baixos preços dos produtos agrícolas; e
c) Aumento da incidência de pragas e doenças. Tais problemas aliados à
ausência de estímulos à agricultura por parte do poder público, acabaram
provocando a retração de atividade agrícola no município e na região.
(HESPANHOL, 2002, p. 37)
Nesse sentido, de acordo com o autor citado, as referidas dificuldades da agricultura
contribuíram para se redirecionar à pecuária a atividade predominante no campo. Todavia, o
incentivo para a execução desta nova atividade econômica não ocorreu somente pelos
inúmeros problemas vivenciados na agricultura, mas igualmente pela “ampliação de mercado
consumidor de carnes...bem como ”a instalação de modernos frigoríficos no município e na
região de Presidente Prudente, a partir dos anos 1950”. (HESPANHOL. 2002, p. 37).
Nesta perspectiva, a ampliação das pastagens ocorreu em detrimento das áreas
utilizadas para a agricultura. Em 1960, 46% dos estabelecimentos eram destinados à lavoura e
47,8% às pastagens; em 1995/96 as pastagens cobriam 84,7% de área total dos
estabelecimentos agropecuários; enquanto a área para as lavouras eram de 8,7% (Hespanhol,
2002). Juntamente com a pecuária de corte, a estrutura fundiária no município de Presidente
Prudente - por razões históricas, - expressou uma intensa concentração da propriedade da
terra, predominando o latifúndio em detrimento de pequenas e médias glebas.
Concernente à esfera política, as elites tradicionais sempre dominaram a cidade.
Como dissemos anteriormente, o candidato Cerávolo foi o pioneiro na cidade em inaugurar o
populismo como forma de atuação política, dando-lhe projeção para se tornar deputado
estadual em 1958. Cerávolo, porém, conseguiu fazer seu sucessor na política local, uma vez
que apoiou, o fazendeiro Antonio Sandoval Neto, que venceu as eleições, repetindo os
procedimentos dos políticos anteriores: assistencialismo, populismo e postura tuteladora para
com o povo.
Ocorre que, a partir da década de 1960/70 “há mudanças importantes na cidade, em
virtude do aumento de habitantes, de diferenciações no tipo de industrialização... e do
desenvolvimento de atividades terciárias” (SPÓSITO, 2002, p. 14). Além disso,
a divisão do Estado de São Paulo em regiões administrativas contemplou
Presidente Prudente como sede da 10ª região administrativa,... medida que
concentrou em Prudente várias repartições administrativas estaduais e
federais aumentando o número de funcionários públicos e de empregados e
empresas estaduais e de economia mista. (ABREU, 1982, p. 305)
As citadas mudanças enfraqueceram Cerávolo e Sandoval, herdeiros diretos do
coronelismo e do populismo. Com o surgimento de novas lideranças sindicais, ligadas ao
funcionalismo, lideranças estudantis ou de setor empresarial, passaram a prometer à
população “uma administração municipal e uma representação estadual mais condizente com
as modificações econômicas e sociais”. (ABREU, 1982, p.137). Assim sendo, os empresários
Walter Lemes e Paulo Constantino ganharam as eleições em Prudente (em 1973, Walter
Lemes e em 1977 Paulo Constantino) “inaugurando uma nova fase política prudentina, a dos
empresários, que implicam numa redimensão do poder político em Prudente”. (ABREU,
1982, p. 307). Portanto, ambos os prefeitos dão ao governo municipal um caráter empresarial.
Não obstante, o caráter elitista desses governos municipais, revelou um extremo
conservadorismo que se ligou diretamente às raízes latifundiárias presentes na cidade de
Prudente. Apenas nas eleições de 1982 e 1996 houve uma mudança no conservadorismo
predominante. O PMDB conseguiu eleger o prefeito Virgílio Tiezzi, que estimula a
organização de base por intermédio de comitês e associações de moradores. Entretanto, como
é notório na cidade, o referido partido tem práticas explicitamente clientelistas (voltaremos
comentar sobre o clientelismo). Em 1996, o ex-deputado Mauro Bragato (com o vice do PT)
realizou um trabalho que “pela primeira vez na história de Presidente Prudente, apresenta uma
plataforma baseada em estudos de realidade da cidade, cujas formas de atuação levam em
conta o papel do cidadão” (SPÓSITO, 2002, p. 14). Exceto estes momentos inusitados a
tendência de conservadorismo continua sendo bastante marcante, uma vez que os últimos
governantes da cidade além de utilizarem o poder econômico, evocaram práticas tradicionais,
populistas, ou clientelistas. Enfim, a cidade de Presidente Prudente é muito conservadora do
ponto de vista político, seja pelo seu passado histórico agrário tradicional, seja pelas práticas
políticas conservadoras da cidade, que ainda são predominantes: coronelismo, populismo e
clientelismo. Nesses termos, a ausência de condutas democráticas, aliado a freqüentes
posturas paternalistas, obstaculiza as práticas que estejam em sintonia com a cidadania. Aliás,
é o momento de efetuarmos uma definição mais rigorosa sobre o conceito de cidadania. O
que faremos a seguir.
3.2- O conceito cidadania
Como vimos, a concepção moderna de cidadania, surge no universo liberal com as
revoluções burguesas. A visão liberal prioriza, entre outras coisas, a igualdade formal, que é
contemplada no conceito da cidadania. Sob esta ótica, temos primeiramente a igualdade
perante a lei, que visa, como dissemos, acabar com privilégios da nobreza e do clero no
absolutismo monárquico. Em segundo plano, a igualdade de direito. Esta é “usada em
contraposição à igualdade de fato”. (BOBBIO, 1997, p. 29) Por exemplo, o direito à
propriedade é juridicamente igual para todos, o que é diferente de se garantir a todos o acesso
à propriedade. Assim, se tenho dinheiro a lei ampara o meu direito de ter propriedade, ou seja,
todos aqueles que têm dinheiro tem igual direito à propriedade. Deste modo, a igualdade não é
de fato, é apenas formal, à medida que a lei apenas legaliza uma desigualdade real. Por isso, a
igualdade de direito se configura numa igualdade apenas do ponto de vista formal.
É nesta perspectiva que os chamados direitos naturais (direito à propriedade, à
liberdade, à vida) são apenas formais para ampla maioria, isto é, não são direitos de fato, pelo
motivo de não permitirem a real liberdade ou condições de se adquirir a propriedade. Diz
Coutinho (1999):
Foi precisamente a natureza individual e privada desses direitos civis
modernos que induziu Marx, em sua obra juvenil sobre “A questão judaica”
(Marx, 1972), a caracterizá-los como meios de consolidação da sociedade
burguesa. (COUTINHO, 1999, p.46)
O conceito contemporâneo de cidadania procura transcender a limitação formal da
visão liberal. A própria luta, como vimos, para se obter direitos políticos e sociais é um
indício dessa restrição de cidadania liberal. Há, portanto, outros elementos que compõem a
idéia de igualdade, presente no conceito de cidadania.
Primeiro: igualdade de oportunidades. Segundo Bobbio (1997),
o princípio da igualdade de oportunidades, quando elevado ao princípio
geral, tem como objetivo colocar todos os membros daquela determinada
sociedade na condição de participar da competição pela vida, ou pela
conquista do que é vitalmente significativo, a partir de posições iguais
(BOBBIO, 1997, p. 31)
A igualdade de oportunidade produz uma inevitável desigualdade, mas em função
dos competidores terem tido as mesmas oportunidades, poder-se-ia garantir uma desigualdade
justa. Um exemplo: num determinado concurso para juiz de direito, temos um número
pequeno de vagas. No instante em que poucos forem aprovados, se estabelecerá uma
desigualdade, isso porque o padrão de vida, - em função do salário - dos aprovados será,
provavelmente (pelo menos do ponto de vista econômico) melhor do que os demais que não
conseguiram aprovação. Teríamos, nesta perspectiva, uma desigualdade que não fere a
cidadania no instante em que todos tiveram as mesmas oportunidades.
Todavia, a igualdade de oportunidades não é suscetível de anexar uma outra
igualdade: a igualdade de fato. Quando há, por exemplo, igualdade de todos os candidatos
para fazerem as provas do concurso para a magistratura; todos os candidatos possuem um
diploma de graduação, do curso de direito, que os igualam, ou melhor, os colocam em
igualdade de condições, visto que, pressupõe-se que tiveram igualdade de oportunidades.
Nada mais ilusório. No Brasil, pelo fato de uma quantidade expressiva de alunos terem tido
acesso a cursos superiores de faculdades privadas, não se pode afirmar que houve igualdade
de oportunidades, isto é, não houve igualdade de fato. Diante disto, sabemos que as
condições sócio-econômica e culturais dos alunos de determinados cursos (como direito) das
faculdades públicas são mais promissoras, fazendo com que haja uma desigualdade (essa
desigualdade existe, também, em termos da capacidade individual de cada um) quando
participarem de um determinado concurso. Nas palavras de Bobbio (1997):
O que se entende, genericamente, por igualdade de fato é bastante claro:
entende-se a igualdade com relação aos bens materiais, ou igualdade
econômica, que é assim diferenciada da igualdade formal ou jurídica e da
igualdade de oportunidades ou social. (BOBBIO, 1997, p. 32)
Com base nessas considerações, podemos dizer que o conceito de cidadania deve
transcender a igualdade formal. Destarte, podemos defini-la da seguinte maneira:
cidadania é a capacidade conquistada por alguns indivíduos, ou (no
caso de uma democracia efetiva) por todos os indivíduos, de se
apropriarem dos bens socialmente criados, de atualizarem todas as
potencialidades de realização humana abertas pela vida social em cada
contexto historicamente determinado (COUTINHO, 1999, p. 42).
Desta forma, é imprescindível para a existência da cidadania a igualdade de fato
(para a grande maioria da população), que se materializa no efetivo acesso à riqueza,
material e imaterial, produzida pela sociedade.
A questão da igualdade pode ainda ser pensada na qualidade das relações
estabelecidas entre os membros de uma sociedade. Em outras palavras, a forma de
tratamento, entre as pessoas, pode negar ou afirmar a cidadania. O respeito às diferenças
refere-se à prática democrática e cidadã. Mas o que isso realmente significa? Tal respeito está
ligado à ausência de preconceito, de discriminação e de intolerância. Quando se externa
preconceito de classe, raça, etnia, etc, não respeito com o outro, o que obviamente fere a
cidadania. Assim sendo, “o conjunto de cidadãos, assim, é um conjunto de unidades
teoricamente idênticas e absolutamente iguais e paralelas, como as listas da bandeira
americana”. (DA MATTA, 1986, p.45).
Nesta perspectiva, é possível um tratamento desigual que estejam em sintonia com a
cidadania? Não é possível como absolutamente necessário. Como vimos anteriormente -
com base na visão de Bobbio (1992) - a partir do momento em que há uma multiplicação de
direitos, com a ampliação de bens e serviços produzidos pela sociedade, a concepção acerca
do homem deixa de se abstrata para se convergir para especificidades do indivíduo: à idade,
sexo, condições físicas e psicológicas, condições sócio-econômicas etc. Neste caso, para
determinados indivíduos é imprescindível que se impere uma forma de tratamento desigual,
visando garantir-lhes o acesso efetivo a determinados direitos. Portanto, a igualdade de
tratamento em determinadas situações nega a existência de cidadania. Um exemplo: num
hospital não se pode utilizar igualdade de tratamento quando pacientes em estados
patológicos mais graves; ou seja, aqueles que se encontram em piores condições devem
receber um tratamento com mais urgência. Além disso, dependendo a doença que acomete o
sujeito, ele terá certos direitos exclusivos, podendo, com isso, minorar suas conseqüências
negativas.
Ocorre que, não podemos prescindir a presença do Estado para a existência da
cidadania, porque é por meio do aparato jurídico e pela prestação de inúmeros serviços
(saúde, educação, segurança pública etc.) que efetivamente pelo menos parcialmente se
garante cidadania, ou seja, os direitos civis, políticos e sociais são implementados, por um
lado, com a existência e efetiva atuação do Estado. Sabemos que, numa sociedade capitalista,
limites para a atuação do Estado no sentido de se garantir a cidadania plena. Em outras
palavras, há diversos obstáculos, inerentes às desigualdades sociais, emanados da estrutura do
sistema capitalista, que impedem a realização da cidadania. Estas desigualdades não se
limitam a iniqüidades apenas de cunho econômico. Juntamente com elas, emergem uma gama
de outros elementos que obstaculizam a existência de cidadania: inacessibilidade à educação
formal, ao direito à moradia, ao direito à saúde, existência de discriminação e preconceito aos
segmentos menos favorecidos, entre outros. Por outro lado, as disparidades sociais
construídas pelo capitalismo, estão intrinsecamente ligadas à determinada atuação do Estado,
que apenas ideologicamente se coloca acima das classes sociais visando o interesse geral, isto
é, através de inúmeros mecanismos (aparato jurídico, monopólio da força, implementando
infra-estrutura, políticas econômicas etc.) o Estado pode atuar prioritariamente no sentido de
viabilizar a reprodução do capital, tendo por corolário a exclusão social e, por conseguinte, a
negação de cidadania.
Um componente fundamental da cidadania é a prática democrática. Esta, além de
contemplar uma descentralização de poder - com a discussão, deliberação e o voto - deve
admitir as diferenças culturais, ideológicas e políticas, fazendo com que os conflitos, de
indivíduos ou grupos, sejam aceitos como legítimos. Isso significa dizer que a cidadania se
confunde com a prática democrática. Ora, a cidadania não pode ser apenas concebida como
algo concedido pelo Estado, ela é conquistada pelas classes, grupos ou indivíduos por
intermédio de rias formas de luta e de conflitos, que fazem parte das relações sociais,
quando necessárias. Assim, respeitar as diferenças e abordar o conflito como legítimo,
relaciona-se à cidadania. Um outro caminho para pensarmos esta questão, concerne em
admitir o direito à diferença, como ocorre, por exemplo, com os homossexuais. Estes
procuram exigir a sua inclusão na sociedade de forma que não sejam vítimas de preconceitos,
mesmo preservando a sua opção sexual.
Outrossim, a cidadania implica na efetiva existência de autonomia do indivíduo ou
do grupo, prescindindo de quaisquer postura em que se impera a tutela (prática comum em
qualquer forma de assistencialismo), ou seja, seria a
competência humana de fazer-se sujeito, para fazer história e
coletivamente organizada. Para o processo de formação dessa
competência são cruciais, como a educação, organização política,
identidade cultural, informação e comunicação, destacando-se, acima de
tudo, o processo emancipatório. (DEMO, 1995, p.1)
Enfim, a alienação e a passividade dos indivíduos negam a cidadania, pois esta
somente se efetiva numa postura dialógica (democrática), crítica e com vistas a intervir na
realidade. Para tanto, é imprescindível a educação formal - pautada em pressupostos
democráticos e éticos que possa contribuir para a construção do pensamento crítico,
suscetível a condutas que objetivam garantir a existência de cidadania. Por essa razão, a
educação é crucial, à medida que o “homem adquire certos conhecimentos, se instrui, se
educa, se modifica, vai além de si mesmo... podemos antecipar que o conhecimento
intelectual é um pressuposto na formação do cidadão” (FERREIRA, 1993, p.220)
Também é crucial ressaltar que determinadas relações sociais, gestadas no cotidiano,
podem confiscar a cidadania. Referimo-nos às relações de exploração, opressão - tão comuns
em nossa sociedade capitalista - ou permeadas por algum tipo violência, de natureza física
(materializada na agressão), ou psíquica-moral. Diz Yazbek (2003):
A alienação dos subalternos aparece como uma resultante do controle e da
subordinação do homem à trama de relações constitutivas da ordem
capitalista e se expressa no não reconhecimento dos indivíduos em um
mundo que eles mesmos criam. Assim sendo, reduz o indivíduo a um objeto
que confere a outros decisões sobre sua própria vida (YAZBEK, 2003,
p.80)
Enfim, todas as relações sociais em que o ser humano é tido como um objeto ou um
meio, para a realização de certos objetivos, temos uma ausência de cidadania, visto que o
indivíduo passa a ser reduzido a uma “coisa”, ou seja, ele passa a ser tratado de um modo tal,
que a sua humanidade é flagrantemente negada. Isto significa dizer que as relações sociais que
implicam a presença de cidadania, confundem-se com as posturas em que a ética é valorizada
e vivenciada por todos.
A elucidação, neste capítulo, sobre alguns aspectos sócio-econômicos da cidade de
Presidente Prudente, bem como sobre a definição acerca da cidadania, possibilita-nos
investigar, no capítulo seguinte, - a partir da ideologia relacional e de alguns fenômenos
sócio-econômicos - as dificuldades de existência de cidadania, no espaço privado, para seis
famílias de classes populares.
2-AS DIFICULDADES PARA A EXISTÊNCIA DE CIDADANIA NO ESPAÇO
PRIVADO DAS FAMÍLIAS DAS CLASSES POPULARES
Capítulo 4
A ideologia relacional e a dimensão sócio-econômica: dificuldades para a cidadania
4.1- A ideologia relacional e a cultura popular
Procuramos, neste capítulo, a partir da ideologia relacional e da dimensão sócio-
econômica refletir sobre as dificuldades para a existência de cidadania na esfera privada
(espaço da casa), das famílias das classes populares. A referida ideologia, como vimos, pode
ser definida como um conjunto de valores tradicionais de origem rural.
Em vários estudos etnográficos (Da Matta, 1986; Duarte, 1986, Sarti, 2003 entre
outros) é perceptível que as classes populares possuam uma visão de mundo alicerçada na
ideologia relacional. Da Matta (1986) ao fazer uma distinção entre a casa (privada) e a rua
(pública), afirma que em cada um desses espaços teríamos uma ideologia diferente: no espaço
privado a ideologia relacional, e no espaço público a ideologia do individualismo (conceito
que discutiremos posteriormente). Na ideologia relacional há uma hierarquia, isto é, o poder
é atribuído assimetricamente a certos membros da família (há autoridade dos mais velhos
sobre os mais novos e dos maridos sobre as esposas), bem como a subordinação a ele; há uma
diferença que se concretiza na execução de papéis existentes entre os membros da família; o
grupo se coloca acima do indivíduo, ou seja, a conduta do indivíduo é condicionada pelo
grupo (grupo familiar) o qual ele pertence; por último as relações entre as pessoas são
permeadas por uma dimensão afetiva, visto que as relações entre elas são de amizade ou
parentesco: “..laços de simpatia, lealdades pessoais, complementaridades, compensações e
bondades ou maldades: o espaço da casa!” (DA MATTA, 1986, p. 55). Portanto, a ideologia
relacional é constituída pelos valores tradicionais apontados acima, isto é, valorização da
hierarquia e diferença entre os membros da família; enaltecimento do grupo (grupo familiar)
e da dimensão afetiva.
A ideologia relacional faz parte da cultura popular. Por cultura popular
entendemos que é cultura produzida pelo povo. O conceito povo é polissêmico. Nesse
sentido, povo tanto pode fazer menção à população de um país, quanto às classes
dominadas. Por isso, cultura popular se refere à cultura da população do país
1
ou das classes
1
O antropólogo Roberto Da Matta (2004) fornece inúmeros exemplos para afirmarmos sobre a existência de uma
cultura essencialmente brasileira, isto é, a cultura elaborada pela população de um país. Em suas palavras: “Sei,
então, que sou brasileiro e não americano, porque gosto de comer feijoada e não de hambúrguer; porque sou
muito desconfiado de tudo o que vem do governo; porque vivo no rio de Janeiro e não em Nova York; porque
dominadas. Evidentemente, que ambas se confundem. Porém, a maneira como se exprimem
irá depender das condições sócio-econômicas e políticas de cada classe social (Santos, 1983),
ou seja, não havendo homogeneidade sócio-econômica na sociedade, emergirá formas
distintas de se expressar uma mesma cultura. Desta forma, é possível, também, falar de
cultura popular como sinônimo de cultura das classes dominadas.
Todas as nossas fontes bibliográficas enfatizam que a cultura popular abrange a classe
dominada. Deste modo, Rigol (1977) ressalta que “falar de cultura popular não significa falar
de “cultura da pobrezamas da cultura de uma pessoa livre” (RIGOL, 1977, p.85). Em outras
palavras, a cultura popular é conseqüência da vivência no cotidiano de forma espontânea. Para
o referido autor, a cultura popular é a cultura do povo, que é sinônimo de classe dominada.
Nesse sentido, temos uma cultura dominante e uma cultura dominada, que corresponde a
classes distintas. Nas palavras do autor: A justaposição cultural, o sincretismo e a
dominação sem erradicação (uma dominação que domina de todo) permitem à cultura popular
desenvolvendo, mesmo dentro da cultura dominante (grifo nosso), como protesto silencioso
... ” (RIGOL, 1977, p.86). Ora, se o referido autor afirma que a cultura popular evolui
inserida na cultura dominante, evidentemente que a cultura popular se refere à cultura
dominada. Esta, para este autor, tem um caráter emancipatório para o povo, à medida que “a
libertação é, pois, um processo complexo, econômico, político, cultural e psicológico, pelo
qual a sociedade extrojeta a última pegada da cultura dominante” (RIGOL, 1977, p.85). Para
Canclini (1982) (que será retomado mais à frente), a cultura popular se refere “as culturas das
classes populares como resultado da apropriação desigual do capital cultural...” (CANCLINI,
1982, p.12). Chauí (2001) diz ainda diz que a cultura do povo (cultura popular) concerne à
cultura das classes dominadas. Ressalta a autora, que o termo cultura do povo é mais
adequado do que cultura popular, haja vista que “considerar uma cultura como sendo do povo
permite assinalar que ela não pertence simplesmente ao povo, mas que é produzida por ele...”
(CHAUÍ, 2001, p.44 ). Chauí (2001) acrescenta ainda, que
a expressão “cultura do povo” teria ainda a vantagem de permitir uma
leitura da frase de Marx acerca das idéias dominantes, dando ênfase ao
termo “dominantes”, isto é, ao fato de que se as idéias dominantes são as da
classe que exerce e dominação, então seu contraditório certamente deve
existir, ou seja, as idéias dos dominados enquanto constituem determinações
de uma cultura dominada... Sendo cultura do povo, então sinônimo de
cultura dominada (grifo nosso) (CHAUI, 2001, p.44).
falo português em não inglês; porque, ouvindo música popular, distingo imediatamente um frevo de um samba;
porque para mim futebol é praticado com os pés e não com as mãos; porque vou à praia para conversar com os
amigos, ver as mulheres tomar sol, jamais para praticar um esporte; porque no carnaval trago à tona minhas
fantasias; porque diante de um pesado não pode burocrático, posso dar um “jeitinho” (DA MATTA, 2004, p.9)
Enfim, para os autores citados acima – e vários outros
2
- , a cultura popular, ou cultura
do povo, diz respeito à cultura das classes populares.
Diante do exposto, é comum nos depararmos com a seguinte afirmação: a cultura
erudita (científica, filosófica e artística) seria produzida e consumida pela elite (econômica,
intelectual e política), enquanto que a cultura popular seria produzida e consumida pelo povo
(classes populares). Esta afirmação é equivocada, porque não existe esta polarização: cultura
popular de um lado, cultura erudita de outro, ou seja, ambas se misturam de um modo
altamente complexo. um núcleo comum entre essas culturas em função das classes
dominantes e dominadas comungarem dos mesmos
3
processos sociais e históricos existentes
em nossa sociedade. Diz Santos (1983):
As classes dominadas existem em relação com as classes dominantes,
partilham um processo social comum (grifo nosso), do qual não detém o
controle. A produção cultural, toda a produção cultural, é o resultado dessa
existência comum, é um produto dessa história coletiva, embora seus
benefícios e seu controle se repartam desigualmente (SANTOS, 1983,
p.61).
Sendo assim, como se pode falar de uma cultura popular? Para Santos (1983), ainda
que os processos sociais sejam semelhantes para as classes dominantes e dominadas, as
condições sócio-econômicas e o poder não são homogêneos. Portanto, essas diferenças irão se
exprimir na esfera cultural. Nas palavras de Santos (1983):
Para tentar reter o que é popular na cultura, nós poderíamos procurar
entender quais são as expressões culturais dos processos sociais vividos
pelas classes dominadas. Mesmo com toda a falta de homogeneidade de que
falei, nós poderíamos considerar que essas populações têm algumas
características básicas derivadas de sua posição comum de inferioridade nas
relações de poder na sociedade. Ao falarmos então do popular na cultura
nós tentaríamos ver em que medida essas características se manifestam
culturalmente, ver enfim como a opressão e a luta para superá-la marcam a
esfera cultural.
Notem que isso é bem diferente de inventar uma cultura popular oposta a
uma cultura erudita. (SANTOS, 1983, pp.61-62).
Isto posto, apresentaremos, em linhas gerais, quatro abordagens acerca da cultura
popular (cultura do povo), porque entendemos ser importante para a análise da ideologia
relacional.
2
Além dos autores citados (Rigol, 1977; Canclini 1982; Chauí 2001); a produção de vários outros autores
corroboram com a idéia de que a cultura popular é a cultura da classe dominada, tais como Ayala & Ayala
(1995); Santos (1983); Arantes (1990) e Brandão (1984).
3
Este argumento é similar ao que proferimos anteriormente, quando dizemos que existe uma cultura da
população brasileira, a qual se exprime de formas diferentes em função das diferenças em termos de classes
sócias. Assim, faz sentido falarmos que a cultura popular é a cultura das classe dominadas.
A primeira abordagem, diz respeito à tradição. De acordo com tal enfoque a cultura
popular é fruto de uma ampla transmissão de valores, crenças, padrões de comportamento etc.
que ocorrem através das gerações. Deste modo, há a existência de certos padrões estéticos, de
valores, crenças, idéias etc., que foram construídas em épocas pretéritas de nossa sociedade de
origem rural e são preservadas de forma marcante na cultura popular. Isto significa dizer
que ideologia relacional não é algo exclusivo das classes populares, porém nestas classes ela
é hegemônica. Nesse sentido, afirma Da Matta (1986) que a ideologia relacional constituída
por valores tradicionais - é a visão inerente ao código da casa, é hegemônica entre as classes
populares:
Assim, qualquer evento pode ser sempre “lido” ou interpretado por meio do
código da casa e da família, que é avesso à mudança e à história, à
economia, ao individualismo e ao progresso; pelo código da rua, que está
aberto ao legalismo jurídico, ao mercado... um desses códigos pode ter
hegemonia sobre os outros, de acordo com o segmento ou categoria social a
que a pessoa pertence... no caso de nossa sociedade, as camadas
dominadas (grifo nosso), inferiorizadas ou “populares”, conforme
gostamos de dizer, as massas trabalhadoras, os migrantes da zona rural, os
empregados domésticos, os marginais do mercado de trabalho... tenderiam
a usar como fonte para sua visão de mundo a linguagem da casa (grifo
nosso)... (DA MATTA, 1991, p.54).
Sarti (2003) e Da Matta (1986) afirmam, como dissemos, que a ideologia relacional
está ligada aos valores tradicionais do universo rural, ou seja, ela é o resultado de processos
históricos inerentes à nossa sociedade tradicional de origem agrária. À medida que houve
uma intensa migração, das classes populares, do campo para as cidades, propiciadas pela
industrialização e urbanização, estas classes trouxeram toda uma gama de valores e ideais
inerentes à vida no campo. Diz Sarti (2003):
O trabalho de Durham (1978) contribui para analisar esta questão. A autora
mostrou como a migração, enquanto um processo de integração dos
trabalhadores rurais ao sistema urbano industrial, se deu pela mobilização
de recursos provenientes dos grupos de relações primárias do migrante,
particularmente o grupo doméstico e a família, esta última sendo a
instituição que se propõe interpretar e traduzir o mundo urbano para o
imigrante recém chegado... trazendo em sua bagagem traços rurais,
tradicionais, patriarcais (SARTI, 1995, p.57).
Entretanto, o fato de se preservar alguns atributos do passado, não significa que a
cultura popular é algo imutável, ou seja, que ela não se transforma. Ainda que alguns
elementos da cultura sejam semelhantes àqueles de épocas pretéritas, as transformações
ocorrem pelo fato da cultura popular estar presente na vida concreta das pessoas, significando
dizer que as condições sócio-econômicas, bem como as relações sociais corroboram para tais
transformações. Diz Canclini (1982)
a cultura popular não é um conjunto de tradições ou de essências ideais,
preservadas de modo etéreo: se toda produção cultural surge, como vimos, a
partir das condições materiais de vida e nelas está arraigada (CANCLINI,
1982, p. 42).
Portanto, ao se efetuar uma abordagem em que se enfatize a tradição, deve-se ter o
cuidado para não analisá-la utilizando-se de um itinerário romântico, isto é, que prescinda
uma abordagem das condições sócio-econômicas.
A segunda abordagem acerca da cultura popular é com um viés romântico. Este
enfoque procura se ancorar numa premissa de cunho filosófico idealista e,
concomitantemente, de natureza ideológica - analisada sob a ótica marxista - , no instante em
que determinada assertiva não contempla a base material, constituindo-se numa falsa
consciência, visto que a ideologia “é o não-saber do sujeito quanto à base material da
sociedade” (ROUANET, 1990, p.74). Esta abordagem concebe toda uma gama de aspectos
culturais das classes populares, de atributos inerentes ao próprio povo, ou seja, é como se a
cultura popular fosse a materialização da suposta essência do povo. Este enfoque é duramente
criticado pelo autor acima citado. Nas suas palavras:
a cultura popular não pode ser entendida como a “expressão” da
personalidade de um povo, à maneira do idealismo, porque tal
personalidade não existe como uma entidade a priori, metafísica, e sim
como um produto da interação das relações sociais” (CANCLINI, 1982,
p.43).
Sendo assim, tal abordagem prescinde de uma reflexão à dimensão sócio-econômica
articulada às relações sociais (que implicam relações de poder) que estão intrinsecamente
vinculadas à cultura popular (ou a quaisquer culturas).
A terceira abordagem é de inspiração marxista. Na visão de Canclini (1982), a cultura
popular expressa as desigualdades sociais emanadas da sociedade capitalista, visto que na
sociedade capitalista a expropriação da burguesia, sobre as classes trabalhadoras, faz com que
a riqueza produzida socialmente seja apropriada pela classe dominante. Tal riqueza não é
apenas atinente aos bens materiais, mas à cultura, de uma forma geral. Sob esta lógica, a
cultura popular é o resultado da inacessibilidade das classes populares à cultura erudita ou
sistematizada. Desta maneira, o primado da sobrevivência material, pelas classes populares,
obstaculiza a participarem da educação formal realizada pela escola, seja pelas precárias
condições de vida que possuem, seja pelos parcos recursos que disponibilizam para,
efetivamente, terem acesso à cultura erudita ou sistematizada. Diz Chauí (1986):
Num estudo sobre leituras feitas por operárias, Eclea Bosi verificou que a
maioria das mulheres casadas desejaria ler, mas que elas não podem realizar
esse desejo por absoluta falta de tempo, em decorrência da dupla jornada;
por fadiga, que as faz adormecerem sobre os livros e revistas; por
deficiência visual causada pelo cansaço e pela rotina do serviço fabril; pela
falta de recursos financeiros para comprar livros, revistas e jornais.
(CHAUI, 1986, p. 59)
Em face a esta questão, a sociedade não oferece condições para que as classes
populares possam compreender a cultura erudita, isto é, tal cultura pode estar formalmente
acessível ao povo se não totalmente, pelo menos parcialmente. Porém, a sociedade não lhes
fornece meios para que possam, realmente lhes ser acessível à referida cultura. Nas palavras
de Canclini (1982):
Os bens culturais acumulados na história de cada sociedade não pertencem
realmente a todos (ainda que formalmente sejam oferecidos a todos), mas
àqueles que dispões dos meios para apropriar-se deles. (CANCLINI, 1982,
p. 38)
Canclini (1982) afirma ainda que as relações sociais gestadas no cotidiano
4
das classes
populares acabam engendrando a produção e reprodução da cultura popular. Deste modo, a
cultura popular não deriva apenas do difícil acesso a outras manifestações culturais, mas
também, em razão do fato “de que o povo produz no trabalho e na vida formas específicas de
representação, reprodução e elaboração de suas relações sociais” (CANCLINI, 1982, p. 43).
Ressalta, além disso, que o povo efetua tal produção e reprodução, da cultura popular, dentro
da lógica do processo produtivo do sistema capitalista de produção, ou seja, compartilhando,
“as condições gerais de produção, circulação e consumo do sistema em que vive”
(CANCLINI, 1982, p. 43). Em suma, segundo Canclini (1982),
as culturas populares são elaborados a partir de dois espaços: a) as práticas
profissionais, familiares, comunicacionais e de todo tipo através dos quais o
sistemas capitalista organiza a vida de todos os seus membros; b) as práticas
e formas de pensamento que os setores populares criam para si próprios,
mediante os quais concebem e expressam a sua realidade, o seu lugar
subordinado na produção, na circulação e consumo (CANCLINI, 1982, p.
43).
O quarto enfoque para se analisar a cultura popular diz respeito à identidade cultural,
que é construída nas classes populares. Estas ao serem socializadas com a cultura popular
4
Este argumento de Canclini (1982) é similar ao de Rigol (1977), como apontamos anteriormente, ao
dizer que a cultura popular emerge de ações vividas espontaneamente no cotidiano.
criam uma identidade social. Ou seja, as classes populares se reconhecem naqueles atributos
culturais comuns em que compartilham, criando uma identidade por meio da cultura. Diz
Marcondes Filho (1993):
Tem-se identidade cultural quando se reconhece em objetos, em falas, em
histórias a presença de elementos que compõem uma totalidade intelectual,
espiritual e orgânica, produto de práticas sociais (MARCONDES FILHO,
1993, p. 31 )
Esta abordagem, que ressalta a questão da identidade, como condicionante da cultura
popular, expõe os limites da abordagem citada anteriormente (marxista), isto é, as reflexões
em que se enfatiza a esfera sócio-econômica, não contemplam questões de ordem subjetiva-
simbólica, que se associam com a identidade cultural. Em razão disto, as pessoas que foram
socializadas com uma forte tendência de valores e costumes das classes populares, mesmo ao
mudarem de classe social, continuam comungando do universo popular no qual foram
socializadas. Elas construíram a sua identidade a partir da cultura popular, equivalendo dizer
que a acessibilidade a outro universo cultural “esbarra” numa arraigada identidade da classe
que fora construída. Um exemplo: pessoas das classes média-altas, que são de origem menos
favorecida, jamais alijam o universo cultural popular o qual foram socializadas, em razão de
que construíram uma identidade de classe (identidade cultural) materializada nos seus valores
e costumes fortemente arraigados.
um outro elemento importante quando se fala em identidade cultural: a questão da
valorização dos atributos culturais das classes populares. Nessas classes, as pessoas procuram,
por um lado, construir ou reproduzir atributos – pelos quais valorizam - inerentes à sua
condição de classe, com vistas a sentirem moralmente enaltecidas. Procura-se valorizar a
força física, a “disposição” para o trabalho, a ausência de vaidade (que é tida como
individualismo), a masculinidade, a generosidade etc. Tudo aquilo que se identifica com a
classe popular em que o sujeito faz parte é motivo de orgulho, desprezando-se alguns
atributos que não se identificam com o seu grupo. Nas palavras de Oliveira (2000):
Numa pesquisa sobre as atividades profissionais masculinas... constataram
que o trabalho intelectual é visto como função emasculadora e efeminada
pelos homens que exercem atividades que demandam o uso da força física,
geralmente das classes menos favorecidas. Estes homens, engajados na
cultura masculina típica das classes trabalhadoras, enfatizam a percepção
“real work’ is physical (OLIVEIRA, 2000, p.106)
Em nossas entrevistas, junto aos segmentos populares, inúmeros depoimentos que
expressam a afirmação acima. Vejamos alguns:
O pobre supera o rico na força física... supera e muito (Marcos)
O rico é egoísta. Só quer tudo para eles, aí eles não quer nem saber. Eu vivo
isto no dia a dia [referindo-se à casa onde trabalha]. Passa uma pessoa
pedindo um pedaço de pão e diz que não tem. Lá dentro da vasilha tá cheio.
Eles preferem jogar fora do que dá. É mais fácil o pobre ajudar outro pobre
do que o rico (Cristina)
O pobre ganha do rico na honestidade, no jeito de ser (Felício)
O pobre tem mais amizade do que o rico. O pobre sai na rua, vai conversar
com o vizinho, eles não (Nara)
Portanto, atributos que compõem o seu universo de valores (generosidade,
honestidade entre outros) em que apontam não estarem presentes no ideário dos ricos,
enaltecendo-os do ponto de vista moral. Tal identidade cultural é realçada à medida que
procuram se sentir moralmente superiores aos ricos, em razão de que estes segundo os
entrevistados- não possuem tais valores ou características que enfatizam como sendo
positivos.
Por outro lado, a marcante presença de valores e práticas das classes populares pode
exprimir uma compensação dessas pessoas ante aquilo que não lhes é acessível. Um exemplo.
O homem da classe popular enaltece, em demasia, o fato de ser a provedor da casa, bem como
valoriza a hierarquia e o seu poder de mando. Estes valores estão em sintonia com a
exacerbação da masculinidade, hipervalorizada nas classes populares, pois o sujeito dessa
classe não tendo prestígio ou bens materiais, procura, desta forma, o reconhecimento naquilo
que está mais próximo: a masculinidade. Diz Oliveira (2000):
Nas camadas populares constata-se o orgulho pelo fato inclusive de se ter
de sofrer para ser homem. Encaram-se de maneira positiva mesmo os
“fardos da masculinidade” as responsabilidades tradicionalmente atribuídas
aos homens, com o papel de provedor” (OLIVEIRA, 2000, p.93).
Do ponto de vista da identidade masculina, é plausível sustentar que quanto
maior o poder de atuação e intervenção nas diversas esferas da vida social,
menor tende a ser a necessidade de afirmar tal identidade. (OLIVEIRA,
2000,102)
Se em muitos casos exacerbação da identidade masculina é reflexo de uma
necessidade de afirmação, no caso dos homens dos segmentos populares
frente aos demais grupos estaria em jogo uma estratégia compensatória
acionada para contrabalançar a falta de um maior poder de ação e
intervenção nas mais diferentes esferas sociais (OLIVEIRA, 2000, p 103)
Sob esta ótica, em certos aspectos, a cultura popular denuncia, de forma subjacente,
uma inacessibilidade das classes populares para obterem prestígio e reconhecimento com
atributos como: poder no espaço público, prestígio intelectual, posse de bens materiais entre
outros.
De acordo com as abordagens sobre a cultura popular, comentadas acima, subentende-
se que haja uma autonomia na cultura popular. Contudo, como dissemos anteriormente, não
há uma autonomia absoluta, mas sim relativa, ou seja, não há uma polarização entre a cultura
da classe dominante e a da classe dominada (cultura popular). Nesta ótica a cultura popular
“expressa as condições de existência e os pontos de vista e interesse das classes dominadas ao
mesmo tempo, porém, internaliza concepções das classes dominantes” (AYALA, 1987, p.57).
Para refletir sobre a questão da dominação ligada à cultura, Canclini (1982) faz
menção as reflexões de Gramsci, o qual parte de dois importantes conceitos para pensar a
cultura popular: o Estado e a Ideologia.
Segundo Rouanet (1978) na tradição marxista, por um lado, se concebe o Estado como
parte da superestrutura que está articulada à infra-estrutura de determinada sociedade. Por
outro lado, o Estado é uma instância crucial de coação e violência, sempre a serviço das
classes dominantes, isto é, “o Executivo do Estado moderno é apenas um comitê para gerir os
assuntos de toda a burguesia” (MARX
5
, apud, McLELLAN, 1975, p.70).
Gramsci altera esta concepção marxista do Estado. Segundo Gramsci o Estado passa a
ser entendido como sendo “todo o complexo de atividades práticas e teóricas com a quais a
classe dirigente justifica e mantém não só o seu domínio, mas consegue obter o consentimento
ativo dos governados“ (GRAMSCI, 1976, p.87). Nesta ótica, o referido autor faz uma
subdivisão do Estado em duas esferas: sociedade política, para a qual converge o poder de
repressão da classe dirigente (governo, tribunais e policia) e a sociedade civil, onde a classe
dominante consegue o consentimento dos dominados, que se obtém através da ideologia
(concepção de mundo). Esta ideologia é veiculada e imposta a todas as classes, por intermédio
das associações e instituições como igrejas, escolas, sindicatos, meios de comunicação e
outros setores da sociedade civil. Assim, quanto maior o poder da ideologia, mais expressivo
é o consentimento entre as classes dominadas, tornando desnecessário o poder de repressão e,
por conseguinte, o uso da violência, ou seja, “quanto maior o consenso, e menos necessária a
violência, mais estável será a dominação de classe” (ROUANET, 1978, p.73).
Juntamente com a ideologia, uma hegemonia, que é “um corpo de práticas e de
expectativas sobre o todo social existente e sobre toda a existência social” (CHAUI, 1986,
p.22). Enfim, através da ideologia incutida nos indivíduos, condiciona-os a captar o real de
determinadas maneiras, bem como fornece um código que os condiciona a certas práticas. Nas
palavras de Rouanet (1990) sobre Gramsci
5
Marx, Karl. & Engels, F. The Communist manifesto, ed. J. Taylor. Penguin, Londres, 1967.
O que pode ou não ser visto, pensando ou feito, é delimitado por um
horizonte de visibilidade, por uma estrutura lógica e por um código de ação
que derivam, em última instância, de um projeto hegemônico. Submetida,
desde a infância, a uma estrutura familiar que a socializa para o mundo do
trabalho, a um aparelho escolar que a qualifica profissionalmente e lhe
transmite os valores da classe dirigente e a meios de divulgação de massa
que a contornam na inalterabilidade e naturalidade da ordem existente, a
classe subalterna não tem outro recurso senão submeter-se às exigências do
senso comum, sedimentação banalizada dos elementos destacados da
ideologia hegemônica (...) “(ROUANET, 1990, p.107)
O conceito de ideologia na visão de Gramsci possui certas especificidades. Em
primeiro lugar, a ideologia é sinônimo de uma “concepção de mundo” (ou cultura), diferente
da visão de Marx que, a grosso modo, concebe a ideologia como falsa consciência, para
Gramsci a “concepção de mundo.... se manifesta implicitamente na arte, no direito, na
atividade econômica, em todas as manifestações de vida, individuais e coletivas”
(ROUANET, 1978 p. 54).
Em segundo lugar, a ideologia tem sempre em caráter político no instante em que é
instrumento de dominação da classe dirigente, por isso não pode simplesmente ser apenas
sinônimo de cultura, em razão de sempre expressar relações de poder. Destarte, pode “ser
instrumento de luta das classes subalternas, que tomam consciência por intermédio, de sua
existência coletiva e da própria realidade da dominação” (ROUANET, 1978, p. 54). Assim, é
possível a existência da contra ideologia, que pode ser construída no âmbito da cultura
popular.
Em terceiro e último lugar, a ideologia dominante não é difundida à população de
forma homogênea, mas através de níveis de hierarquia. No ápice, temos a ideologia por meio
da filosofia, que é a sua forma mais elaborada, porque é fruto de reflexões em que uma
coerência, rigor e sistematização. Para chegar as classes subalternas ela é filtrada,
transformando-se em senso comum. Por fim temos o folclore que é o
conjunto heterogêneo de várias concepções de mundo que se sucederam na
história, estratificação grosseira de fragmentos destacados da ideologia da
classe dominante, e de ideologias tradicionais, como a religião
(ROUANET, 1978,
p. 55).
Nesses termos, Canclini (1982) ao se apoiar nas reflexões de Gramsci, procura
contemplar, na cultura popular, a sua dimensão política. Em outras palavras, é imprescindível
articularmos a dimensão política com a cultura popular, porque a ideologia relacional – a qual
será nosso itinerário para a análise da cidadania sendo parte da cultura popular, também
expressa questões de caráter político.
De acordo com as características da ideologia relacional, que citamos anteriormente,
uma incompatibilidade em certos aspectos - entre cidadania e as relações sociais
vivenciadas entre os membros da família. Como vimos, a postura democrática e igualitária
está em sintonia com a cidadania, porém estes atributos da cidadania não compõem o universo
privado das classes populares. Estudos de Sarti (1995) sobre as famílias de classes populares
demonstram haver, com inúmeras evidências, a presença da ideologia relacional.
Enfim, a ideologia relacional, ao fazer parte do universo privado das classes populares
obstaculiza a prática da democracia, bem como o seu pressuposto fundamental que é a
igualdade.
4.2-A cidadania, a ideologia relacional e o espaço privado
A ideologia relacional, como vimos, é um conjunto de valores tradicionais, presente
no universo das classes populares. Essa ideologia se caracteriza pela existência de uma
hierarquia, ou seja, o poder é atribuído desigualmente entre os membros da família. Aliado a
tal poder, uma subordinação a ele. Existe uma diferença, que se materializa na execução
de papéis sociais entre os membros da família. O grupo se coloca acima do indivíduo, isto, é,
a conduta do indivíduo é condicionada pelo grupo (grupo familiar) ao qual pertence. Por
fim, as relações entre as pessoas, daquela família, são permeadas por uma dimensão afetiva,
assim, as relações entre os membros da família são de amizade ou parentesco.
De acordo com as características da ideologia citada acima, uma incompatibilidade
entre cidadania e as relações entre os membros da família. Como vimos, a postura
democrática e igualitária está em sintonia com a cidadania, porém estes atributos da
cidadania não compõem o universo privado das classes populares. Estudos de Sarti (1995), Da
Matta (1986), entre outros, evidenciam a presença da ideologia relacional no universo privado
das famílias populares. Diz Sarti (1995):
A família entre os pobres urbanos é estruturada como um grupo
hierárquico, seguindo um padrão de autoridade patriarcal, cujo
princípio básico é a precedência do homem sobre a mulher, dos pais
sobre os filhos e dos mais velhos sobre os mais novos. (SARTI, 1995,
p.136).
Com base nessas reflexões e a partir dos depoimentos dos entrevistados da Vila
Aurélio, da cidade de Presidente Prudente, procuraremos analisar as dificuldades de existência
de cidadania na esfera privada, tendo como fio condutor a ideologia relacional.
Nossa primeira entrevistada, cujo nome é Sandra, tem 27 anos, é empregada
doméstica e é casada com Dario, que tem 32 anos e efetua trabalho braçal de “saqueiro”.
Sandra demonstrou direta e indiretamente a presença majoritária do poder de seu esposo. São
várias evidências que corroboram a existência dessa assimetria de poder. Disse-nos que entre
a opinião divergente de ambos, sempre é ela quem cede, ressaltando que deveria existir uma
igualdade entre ambos. Enfim, relatou-nos não apenas a desigualdade do poder em sua casa,
mas, também, o seu inconformismo. Sandra acha inconcebível a disparidade do poder entre
ambos. Em suas palavras:
Os homens são machistas, ignorantes, eu mando mais, você menos. Os
homens mandam mais que as mulheres. Aqui em casa de primeiro era
assim... agora mudando mais, mas ainda é pouco. Eu acho que tinha que
ser os dois... só homem não é certo não (Sandra).
Ficou-nos patente que a relação dela com o esposo Dario era permeada por uma
submissão bastante motivada pelo medo a ele. Isto pôde ser captado analisando não somente o
seu depoimento, mas, sobretudo, sua conduta na entrevista. Deste modo, no início da
entrevista, pedimos para que seu esposo se ausentasse, para não interferir no diálogo com a
entrevistada. Com a ausência de seu esposo Dario, ela conversou conosco com desembaraço.
Porém, com a sua presença, quase não falava, demonstrando um certo desconforto expresso
nas poucas palavras e na rapidez com que as proferia, ou seja, não se sentia nada a vontade
com a presença do seu esposo. Um outro detalhe que reforça a submissão de Sandra, ocorreu
logo no início da entrevista. Ao sermos recebidos por Dario ele exprimiu duas posturas que
denotam o seu poder naquele espaço. Primeiramente, ele decidiu que seria a Sandra a primeira
a ser entrevistada, isto é, não a consultou, simplesmente mandou que desse o seu depoimento.
Em segundo lugar, a forma pela qual determinou com que Sandra viesse conversar conosco,
também foi reveladora: ao chamá-la, gritou rispidamente para que viesse logo participar da
entrevista. Em vários trechos do seu depoimento, portanto, expressam o poder desigual do
seu marido:
marido ruim é aquele machista... todo
o maior defeito dele é ser muito teimoso...você fala uma coisa... ele tem
esse defeito, você fala: ‘é isto’!, ele fala que não é, nem se ele tiver errado,
para ele tá certo
é o homem que é a cabeça do casal (Sandra)
A relação deste casal se enquadra no perfil da família das classes populares , com
marcantes traços tradicionais (ancorados na ideologia relacional) apontada por Sarti (2003).
Há, nesse sentido, uma explícita desigualdade no que concerne às relações de poder, ou seja, o
homem detém uma autoridade sobre a mulher, e os pais sobre os filhos. A referida autora
aponta, todavia, que o poder do homem pode se apresentar de forma subjacente, haja vista que
“o homem é autoridade em última instância; sua autoridade situa-se num plano mais elevado e
menos imediato (grifo nosso) (SARTI, 1995, p.136). Ocorre que, pelo que expusemos
acima, há explicitamente a presença do poder masculino, isto é, pouco recorremos da
interpretação para verificar a existência de tal poder, que se expressava diretamente nos
depoimentos da entrevistada. Em muitos depoimentos de outros casais entrevistados, que
veremos posteriormente, pudemos notar a nítida iniqüidade em termos de poder no espaço
privado (espaço da casa).
Cabe uma importante ressalva concernente à iniqüidade de poder relatada acima: sua
relação com a esfera material. Apontamos anteriormente que a ideologia relacional, que faz
parte da cultura popular, está intrinsecamente ligada, por um lado, com a inacessibilidade das
classes populares a um outro universo cultural, significando dizer que a ideologia relacional
denota tal limitação das referidas classes do ponto de vista sócio-econômico-cultural. Por
outro lado, nossa entrevistada Sandra é quase totalmente dependente, do ponto de vista
econômico ao seu esposo Dario, o que contribui muito para viabilizar a sua submissão e,
concomitantemente, a continuidade da assimetria de poder entre ambos. Sandra e Dario têm 3
filhos, ela recebe um irrisório salário de 220,00 reais por mês. Ocorre que, 2 filhos do casal
não são filhos biológicos de Dario, isto é, são filhos de Sandra do seu primeiro casamento.
Segundo Sandra, o pai biológico desses dois filhos não contribui em nada para o sustento
deles. Portanto, não tem mínimas condições de sustentar os filhos com o seu trabalho, ou seja,
à medida que não poder econômico quase que nenhum, tampouco há poder na sua relação
conjugal. Nesta ótica, um outro aspecto que reforça o poder do marido, bem como a sua
submissão: a responsabilidade e forte vínculo afetivo que ela tem aos seus filhos, relacionado
à ideologia relacional, que procura priorizar o grupo familiar em detrimento, às vezes, de si
própria. Assim, para que possa garantir o amparo aos filhos, fornecendo o que necessitam,
precisa do seu marido, mesmo que este tenha condutas autoritárias das quais discorda.
Evidentemente, a relação afetiva entre ambos também pode ajudar na preservação do
casamento, uma vez que
Hoje, a família recuperou a função que, por certo, esteve nas suas origens
mais remotas: a de grupo unido por desejos e laços afetivos (grifo nosso),
em comunhão com a vida (ZAMBERLAM , 2001, p.68)
Ainda com relação à assimetria de poder, há um casal em que nitidamente é a
mulher que se sobrepõe, em alguns aspectos, ao poder de mando: referimo-nos ao casal
Cristina e Ademir. A entrevistada, a jovem Cristina (casada com Ademir), de 22 anos
(empregada doméstica), expressou um perfil autoritário. Não apenas os conteúdos do
depoimento externam tal característica, mas a forma como fala e vive. depoimentos que
explicitam claramente a existência de seu poder no espaço privado:
Eu não deixo meu marido sair a noite, é só comigo
Ele é mais paciente que eu. Eu sou meio ‘enzicada’
Todos os homens querem ser ‘mandão’, são enzicados’. Com esse eu não
tenho problema (Cristina).
A postura autoritária de Cristina é confirmada por seu esposo Ademir. Em suas
palavras:
“[sobre o poder de Cristina] Eu tenho que aceitar, ela é uma pessoa que não
pode passar nervoso, mesmo não querendo eu tenho que aceitar”
[como que é a Cristina ?] Bem autoritária. Eu digo assim: ’eu vou para a
casa do meu avô!’ [ela responde] “Você não vai!”... “Se eu ‘largar’ lá...
quando eu chega a casa caí”
“Tanto elas falam do machismo.... de aceitá... só as idéias delas” (Ademir)
No depoimento de Cristina, notamos que falava com muita segurança, falava muito
e de forma rápida. Tal rapidez não exprimia nervosismo, mas sim um atributo da sua
personalidade. Também na entrevista com Cristina, pedimos para que seu marido se
ausentasse. Nas situações em que ele se aproximou dela, na entrevista, em nada se modificou
o seu comportamento: continuou falando com muita convicção, sem se sentir intimidada com
a presença de Ademir.
Portanto, algo marcante em Cristina diz respeito ao seu comportamento autoritário.
Somente tal comportamento não determina as relações de poder, mas, indubitavelmente,
contribui para que as relações entre os cônjuges tenham determinada configuração. Quais
seriam os outros atributos, existentes entre Cristina e Ademir, que atuam a favor do poder
feminino de forma mais acentuada ?. São, em linhas gerais, dois: o desemprego de Ademir e a
sua condição social.
Ademir estava desempregado há oito meses. A atividade que efetuava, quando
estava empregado, era de “ajudante de pedreiro”. Recebia parco salário e somente era
remunerado nos dias em que trabalhava. Por exemplo, em dias chuvosos ou quando faltam os
materiais de construção não trabalhava e, por conseguinte, ficava sem receber. Diz Ademir
sobre o poder de Cristina:
[Pergunta: Você acha que a sua mulher sente mais direito” de mandar
trabalhando fora?] Nem toca no assunto, ela fala quem trabalha sou eu,
‘tocá’ nesse assunto a casa caí, ela diz’quem manda sou eu, você não
palpite!’ (Ademir)
Ademais, seu trabalho era esporádico, pois após o término de uma obra ficava
desempregado. Ao conversar com Ademir ficou bem evidente o sentimento de vergonha por
não estar trabalhando, ou para ser mais preciso: sentia-se humilhado pelo fato de sua mulher
desempenhar o papel de provedor, que entendia ser exclusivamente seu. Sua esposa Cristina
também se sentia bastante incomodada com tal inversão de papéis (ela provedora e ele
cuidava da casa), o que reforçava sua postura ríspida e autoritária. Segundo Sarti (1995), o
poder masculino é abalado com o fato do sujeito não conseguir ser o provedor, mas não é
totalmente exterminado, ou seja, ele continua sendo importante fonte de respeito da família
para o mundo externo. Em suas palavras:
a autoridade masculina é seguramente abalada se o homem não garante o
teto e o alimento da família, funções masculinas, porque o papel de
provedor a reforça de maneira decisiva... mesmo nos casos em a mulher
assume o papel de provedora, a identificação do homem com a autoridade
moral, a que confere respeitabilidade à família, não necessariamente se
altera (SARTI, 2003, p.67)
Nesse sentido, o entrevistado Ademir, mesmo desempregado e com o seu poder
abalado, demonstrou tal poder. Isto pôde ser perceptível no primeiro dia em que efetuamos a
entrevista em sua casa. Quando chegamos, apesar de ambos os cônjuges estarem à frente da
casa, foi Ademir quem nos recebeu, significando que é ele o mediador (e por isso tem poder)
da “casa” para a “rua”. Outrossim, quando o entrevistávamos, ouvimos comentários
maliciosos de sua esposa Cristina com sua irmã: “Eu não sou gorda! Tenho excesso de
gostosura”. Ademir gritou rispidamente: “Olha essa conversa aí!”. Esta conduta de Ademir
expressou que o seu poder era para preservar o respeito da família para a esfera pública, o
qual nós representávamos. Ou seja, “o homem exerce sua autoridade, garantindo os recursos
materiais, o respeito e a proteção da família, enquanto provedor e mediador como mundo
externo... (SARTI, 2003, p.67).
Por um lado, Cristina sendo provedora deslegitima e enfraquece o poder de Ademir,
reforçando o seu autoritarismo; por outro, irrita-se por ser a provedora e por sofrer inúmeras
privações de ordem material. Nas palavras de Cristina:
Quem devia ser a cabeça do casal é o homem, não a mulher. A mulher não
casou para ser a cabeça do casal.
Concernente à conduta autoritária e explosiva de Cristina, um outro fato
importante que nos ajuda a compreender tal comportamento: sua situação sócio-econômica.
De todas as casas que visitamos, esta era a mais carente do ponto de vista material. Quando
fomos conversar no interior da casa (que é alugada), notamos que quase não tinham móveis;
localizava-se num terreno com várias casas (cortiço), umas próximas às outras, não
proporcionando nenhuma privacidade, nem tampouco conforto algum. Possuía apenas dois
cômodos de madeira e bastante precários; o terreno se limitava a um pequeno corredor, que
servia como passagem a todos os moradores daquelas casas, isto dificultava o cuidado com o
filho, que tinha acesso apenas ao espaço da casa. A precária condição deste casal era também
evidente pelo desemprego do esposo e pelo irrisório salário de 220,00 reais, que deveria
garantir a sobrevivência de todos, inclusive do seu filho de 2 anos de idade. Destarte, o
sofrimento alimentado pelas inúmeras privações de ordem material, contribuíam para a
existência de posturas explosivas e autoritárias de Cristina. As suas palavras expressam as
privações materiais e, concomitantemente, um rancor profundo:
[Qual a função da patroa ?] A função dela é dar um salário que para
levar o seu filho no lanche... não é o caso que é o meu. É a quantia de pagar
aluguél, uma água... já foi o dinheiro.... (Cristina)
Um outro detalhe importante foi relatado por Ademir, que nos confidenciou que não
se sentia no direito de mandar por estar desempregado; ademais procurava não discordar da
mulher em função do seu temperamento explosivo, ou seja, caso discordasse ela ficava mais
agressiva, o que o incomodava. Portanto, o remédio era a passividade quase que total.
mais dois entrevistados, Gildo e Afonso, que estão desempregados, mas o poder
de ambos é bastante perceptível. Gildo, que é açougueiro e tem 30 anos, estava desempregado
6 meses e atualmente faz “bicos” num lixão existente ali perto, ou seja, está
subempregado.. Notamos que o seu poder no espaço privado não é totalmente inexistente,
ainda que, possa estar abalado com o seu desemprego. Nesse sentido, algumas falas de sua
esposa Rose revelam uma redução do seu poder. Diz Rose:
“Quem é o chefe da casa?”, disse-nos: no momento está sendo eu, porque
ele está desempregado, então tá sendo eu.
Sente-se no direito de mandar, por estar trabalhando? Não é de eu mandar,
mas qualquer coisa que eu falo acha que é por que tô trabalhando... (Rose)
Segundo Rose, mesmo seu marido não sendo autoritário, ele possui um eminente
poder de mando. Desta forma, segundo a entrevistada, ela não impede o seu marido de fazer
alguma coisa, ou seja, tem maior liberdade na tomada de decisão. Porém, a recíproca não
existe, isto é, não tem como impedir o seu marido de fazer algo, apenas o aconselha. O
contrário não ocorre, porque ele tem o poder de veto em suas ações. Diz Rose: “Ele impede de
sair...ele não gosta não, ele é muito ciumento”. Diante disto, “a mulher se submete ao poder
do marido na esfera do amor e do ciúme”(WHITAKER, 1988, p.75). O próprio Gildo nos
disse que ambos mandam, mas o poder do homem está acima. Em suas palavras:
Chefe de casa sou eu. Ela aceita mais [Quem manda em casa?] Tem hora
que é o homem, tem hora que é a mulher. Quem manda mais é o homem. A
mulher se dedica mais ao lar, o homem nem tanto (Gildo)
Se, por um lado, o trecho acima expressa a sua autoridade, mesmo estando
desempregado, por outro, denota também a divisão do poder no seio da família, onde a casa
tem a ver com a autoridade feminina e a família está em sintonia como o poder do homem.
Segundo Sarti (2003), mesmo existindo tal divisão do poder a casa constitui o poder da
mulher, ao passo que a família congrega o do homem – a disparidade em termos de autoridade
permanece, uma vez que se reproduz a hierarquia, visto que a família é tida como mais
importante, o que significa dizer que o poder do homem está acima do da mulher. Em suas
palavras:
O fato de o homem ser identificado com a figura da autoridade, no entanto,
não significa que a mulher seja privada de autoridade. Existe uma divisão
complementar de autoridades entre o homem e a mulher na família que
corresponde à diferenciação entre casa e família. A casa é identificada com
a mulher e a família com o homem (Sarti, 2003, p.63)
A mulher tendo poder na casa é também um não poder do ponto de vista político, já
que o “poder político é exercido sobre pessoas e não sobre objetos”(WHITAKER, 1988,
p.75). Ademais, é evidente a autoridade da mulher sobre os filhos e este
poder...vai crescendo e solidificando através dos anos, à medida que os
filhos crescem e, massacrados pela gratidão, tornam-se definitivamente
servos dessa grande sacerdotisa do lar, que passou a vida a servir e de
repente pode até dominar (WHITAKER, 1988, p.76).
Não obstante, há outrossim, poder da mulher sobre o marido, sobre o qual
refletiremos mais adiante.
O outro entrevistado desempregado foi Afonso, que tem 43 anos e é motorista. Ficou
evidenciado, neste entrevistado - como nos demais que estão desempregados - , um
desconforto por não ser o provedor da sua família. Se os demais sujeitos da pesquisa
desempregados se abalaram no exercício do poder em casa, não foi isso que ocorreu com
Afonso. Não dúvida de que o desemprego o incomodava, porém não enfraqueceu o seu
poder em casa. Os depoimentos de Afonso, demonstram a solidez de sua autoridade. Em suas
palavras:
Se o homem não tá, a mulher é o chefe. Mas se o homem tá... nunca ela
toma a decisão...’ô, fulano de tal’... meu marido. [Toma decisão à revelia da
esposa?]: Eu tomo decisão sim, aquilo que eu acho que é certo, eu tomo
decisão sim. [Quem é o chefe de casa?] Evidentemente que sou eu! [Quem
que cede mais, você ou a sua esposa?] eu gosto de falar e gosto que ela me
‘ouve’...(
Afonso
)
A esposa de Afonso é a Bruna, que tem 38 anos e é empregada doméstica. Segundo
Bruna a autoridade do seu marido é bastante acentuada e é incontestável. Assim, além de nos
afirmar que possui um perfil autoritário (“mandão”), relatou-nos algo assaz significativo e que
reflete tal característica de Afonso: o fato de dois filhos não morarem com eles em função da
postura unilateral do marido.Diz Bruna:
Eu tenho dois ‘filho’ que mora com a minha mãe, não se dão com ele... um
tem 17 outro tem 15... ‘discute’ sabe!, às vezes quer sair e ele não gosta...
não quer certas coisas
[Como que é o
Afonso
?]É mandão, se ele ‘fala’ é... é, ele quer ser
machista, não tem jeito (Bruna)
Este fato revela o incipiente poder feminino, que fora abertamente falado por Bruna,
isto porque nem a intensa relação afetiva mãe-filho pôde gerar força suficiente para amenizar
o poderio masculino expresso por Afonso.
O casal, que comentaremos a seguir nos apresentou uma situação inusitada: há
poucas evidências de que haja iniqüidade entre o poder masculino e feminino. Diante disto, o
casal Marcos e Valma expressou em depoimentos e no comportamento, diminuta assimetria
em relação ao poder no espaço privado. Marcos, que tem 36 anos e é motorista, é um sujeito
parecido com a sua mulher, uma vez que ambos possuem uma tatuagem no corpo (a tatuagem
exprime uma certa autonomia em termos do corpo); são bastante cautelosos nas respostas e
muito seguros no que falam, com ou sem a presença do cônjuge. Ou seja, a presença ou
ausência do cônjuge não alterou o comportamento deles.
De acordo com os depoimentos este casal é que se aproxima mais da igualdade em
termos de autoridade. Em suas palavras:
[A mulher manda em casa ?] Em casa não manda não, ela manda nas coisas
que ela faz, na cozinha... numa coisa ali, ela sabe mais as coisas dentro de
casa do que o homem, não que ela manda. Em casa manda os dois...
(Marcos)
[A mulher se sente no direito de mandar quando trabalha fora ?] A mulher é
o seguinte, a mulher quando ela não tá trabalhando ela é uma coisa, quando
ela acha que é dona do próprio nariz, que tá trabalhando e não depende do
homem, ela já se transforma (Marcos)
No entanto, sua esposa, Valma de 34 anos, empregada doméstica, fornece
indicativas de que tal poder assimétrico do marido se faz presente. Diz a entrevistada:
[Quando jogo e novela no mesmo horário, quem assiste, você ou ele? ]
Ele assiste o jogo... por que ele acha que ele tem que assistir o jogo... e a
gente aceitar o que ele falar... Ele quer assistir o jogo, então tem que ser o
jogo.
Eu acho que todo homem é machista... (Valma)
Além disso, Marcos falou que conflito entre ambos quando ele vai jogar futebol,
mesmo assim ele sente autoridade de ir mesmo à revelia de sua mulher. Ocorre que o
contrário não acontece. Disse-nos que controla, de forma mais rigorosa, a saída de sua esposa.
Em outras palavras, apesar de Valma se incomodar com o fato de Marcos sair para jogar
futebol e beber com os amigos, ela não tem poder de veto nas suas ações; o esposo Marcos
tem um poder maior naquilo que ela faz, que fora motivado, segundo ele, pelo ciúme que
atribui ao “instinto” masculino.
O último casal que entrevistamos foi Felício e Nara. Ao contrário do casal anterior,
neste a disparidade é marcante e evidente. Felício tem 26 anos e é borracheiro. Ele fala com
bastante segurança e tem um comportamento autoritário. Logo que chegamos nos convidou
para que conversássemos dentro de sua casa. Quando conversávamos, efetuou dois
procedimentos que exprimiram o seu poder em casa: mandou num alto tom de voz e de forma
ríspida, que Nara, sua esposa, tirasse a sua filha de perto dele, visto que estava atrapalhando a
nossa conversa. Um outro detalhe, que nos chamou a atenção, foi quando mandou também
de forma ríspida - Nara trazer lhe uma cerveja. Nesse sentido, inúmeros trechos do
depoimento de Felício que corroboram para que evidencie a existência de uma disparidade
relativa ao poder no espaço de casa:
Em casa é a mulher quem manda, mas quem manda na mulher é o homem.
[Como são os homens ?] O homem quer ser tipo assim autoritário, nunca
errado, sempre tá certo. A mulher até baixa a cabeça,’não tô errada!’
Em minha casa eu sou um cara muito estourado, meio cabeça dura,
ignorante (Felício)
Nara tem 24 anos e trabalha em uma cooperativa, onde recicla objetos oriundos do
lixo. Como dissemos, externou uma submissão ao seu marido Felício, porém não se
incomodou muito com a postura dele. É como se fosse algo absolutamente “natural” a
disparidade de poder entre ambos. Diz Nara:
[Quem cede mais?] É eu. Ele é uma pessoa difícil de lidar.
Dentro de casa é a mulher que faz de tudo, mas mandar não manda não
(Nara)
Enfim, todos os nossos sujeitos da pesquisa, de forma explícita ou implícita,
externavam que a superioridade do poder do homem é algo que está presente no cotidiano
daquelas famílias. A situação inusitada foi com a entrevistada Cristina, que possui um
comportamento autoritário, mas assim mesmo o poder do seu esposo não está totalmente
inexistente. Mesmo que haja discordâncias, conflitos e até mesmo a presença da idéia de
“direitos iguais” (voltaremos, posteriormente, a discutir sobre este aspecto), podemos
asseverar que inexiste igualdade de poder. Todavia não podemos afirmar a inexistência do
poder feminino, não dúvida de que ele existe. Porém, faremos uma reflexão de tal poder
quando abordarmos sobre as possibilidades de existência de cidadania no espaço privado
(espaço da casa).
A hierarquia não apenas se limita pela disparidade do poder, mas em algo que é o
seu subproduto, que é o privilégio. Este é percebido e entendido tão somente como uma
vantagem obtida injustamente, ou seja, pelo simples fato de ser homem. São diversos
depoimentos em que aparecem claramente que o homem goza de vantagens. Quais vantagens?
Em primeiro lugar, apesar de a grande maioria dos esposos efetuarem atividades
domésticas, é bastante perceptível que os homens ajudam as mulheres, ou seja, não concebe
tais afazeres como dever seu, visto que não assumem responsabilidades pelas atividades da
casa. Da mesma forma, o seu dever é o de garantir o sustento da família, isto é, deve ser o
provedor. Deste modo, uma variedade de situações nessas famílias. aqueles maridos
que quase não ajudam, fazendo determinadas atividades esporadicamente quando necessárias.
Outros procuram se empenhar na execução de tais atividades, e também aqueles
desempregados em que o empenho é maior.
Temos, outrossim, um caso em que há quase total inversão de papéis: o marido
realiza mais intensamente as atividades acima citadas. É o que acontece com o Ademir, que se
encontra desempregado. Mesmo neste caso, segundo ambos os cônjuges (Ademir e Cristina),
as atividades por ele realizadas não excluem a participação feminina. Para a Cristina, o seu
esposo não efetua determinadas atividades de acordo com os seus critérios, isto é, as
atividades não estão bem feitas. Foi exatamente isto que constatamos nas suas inflamadas
palavras:
Eu “estoro” fácil. Quando eu arrumo a casa o “nêgo” vai e desarruma, eu
fico azeda com isso. [O seu marido não arruma?]. No final de semana eu
arrumo do jeito da gente... mulher tem o jeito mais profundo de limpar uma
casa, aquela faxina... homem dá uma lavadinha do jeito dele, tá bom.
(Cristina)
Façamos uma importante ressalva. Tão importante quanto os cônjuges terem iguais
responsabilidades para cuidarem de sua família, não podemos esquecer que as empresas ou
instituições empregadoras devem também reduzir a jornada de trabalho, para que ambos os
cônjuges, possam disponibilizar de maior tempo dedicado à família.
Em segundo lugar, um outro fato nos chamou a atenção: o vínculo acentuado de
filhos pequenos à sua mãe. Diante disto, as entrevistas com todas aquelas mulheres (Sandra,
Valma, Rose, Cristina e Nara) que são mães de crianças pequenas (aproximadamente até 3 ou
5 anos), a dificuldade foi maior. Isto porque tais crianças são muito mais apegadas às suas
mães do que aos seus pais, fazendo com que a atenção e o pouco tempo que tenham se
dediquem a elas. Nesse sentido, tais sujeitos da pesquisa encaram tal tarefa de forma
ambígua. Assim, realizam-se com a maternidade, porque para muitas a principal vantagem de
ser mulher é ser mãe. Porém, vêem como penosa a obrigação que devem executar, cuidando
dos filhos.
Deste modo, muitas mulheres falam abertamente desta vantagem dos homens não
cuidarem, como elas cuidam dos filhos. Vejamos, nesse sentido, alguns depoimentos:
[Quais as vantagens de ser mulher?] Eu não acho vantagem nenhuma não...
[Homem tem mais privilégio?]”. Ah! Tem, porque homem não tem filho,
homem não tem que ficar ali ó... cuidando de filho...Ah! não, homem tem
mais vantagem (Rose);
A vantagem de ser homem é que o homem fica menos em casa, cuida
menos das crianças, se preocupa menos... se preocupar assim não tem...
como é que fala é... a responsabilidade do homem mesmo é depois que ele
chega do serviço, a responsabilidade fica na mão das mulheres, eu acho que
é isso (Marcos).
Este último entrevistado, quando desenvolvíamos a entrevista com a sua esposa,
Valma, estava se preparando para ir jogar futebol. Ao término da entrevista, falou-nos do
privilégio do marido, afirmando que enquanto ele ia se divertir, ela ia trabalhar em casa.
Um outro entrevistado, Felício, quando se referia à sua filha, falava “filha da
mulher” e também sua mulher, Nara, falava: “minha filha”. Até chegamos a pensar que não
fosse filha de Felício, mas era. Nara falou-nos que tem mais “poder” sobre a filha do que o
esposo, ou seja, é como se a filha fosse “mais” dela do que do marido. Tudo isto significa que
os cônjuges não concebem a existência de uma igualdade neste aspecto, trazendo com isso
vantagens para o homem.
Por fim, em terceiro lugar, é perceptível uma maior liberdade do homem para
freqüentar certos espaços de lazer, como bares e campos de futebol. Neste bairro, no qual
realizamos o trabalho de campo, isto ficou muito visível com a existência de campo de futebol
e alguns bares. Em contrapartida, principalmente nos finais de semana, as mulheres se
incumbem de reorganizar as tarefas domésticas, que não dão conta durante a semana, por
também trabalharem fora. Ademais, ainda que tenham um tempo livre, elas não podem
freqüentar os espaços acima citados (bar-campo) por serem exclusivamente masculinos.
Assim, se, por exemplo, caso a família necessite de algum produto existente no bar-empório,
é preferencialmente o homem ou o filho que irá comprar, ou seja, somente na ausência de
ambos é que a esposa efetua a compra. Portanto, estes espaços são quase que exclusivamente
masculinos.
As palavras dos entrevistados, transcritas a seguir, elucidam perfeitamente tal
liberdade, explicitando as vantagens de ser homem.
Porque a vida do homem...você vai onde você quer, se você entrar você é o
mesmo homem. A mulher se entra no lugar errado...boteco mesmo, é
criticada (Dario). “Você pode fazer o que você quer. A mulher fala: você
não vai, você fala eu vou e acabou (Felício)
Portanto, uma maior liberdade do homem e, concomitantemente, inexiste uma
coerção social em relação aos lugares que freqüenta, o que não acontece com a mulher, que é
“policiada” pelo seu marido e por todos aqueles que ali residem. Isto não é evidenciado
através dos depoimentos, mas está em perfeita sintonia com a ideologia relacional a qual nos
referimos anteriormente. Segundo tal ideologia, não é o indivíduo a figura central nas relações
sociais, o grupo é mais importante que o indivíduo. Se tal premissa é muito explícita no seio
da família, à medida que aquilo que os membros do grupo fazem é orientado pelo grupo
familiar; nos bairros populares (como este que analisamos) os valores relacionais são muito
evidenciados.
Uma das características dos bairros ocupados por classes populares é a visível
presença dos moradores nas calçadas, ou em frente de suas casas, conversando seja com
familiares, seja com vizinhos. Não podemos desconsiderar também a privação a espaços para
lazer que está relacionado com sua condição da classe. Há, neste sentido, principalmente nos
finais de semana, uma ampliação do espaço privado, que se confunde com a frente da casa.
Nesses espaços (que são tidos como privados) a presença da mulher é aceita e não prejudica a
sua imagem. Em nossas visitas ao bairro pesquisado, tal fato pôde ser detectado de forma
muito clara. A freqüente presença dessas pessoas denota e, concomitantemente, materializa a
força coercitiva do grupo, do ponto de vista moral. Ou seja, ninguém pode fazer algo
moralmente inaceitável pelo grupo à medida que intensa “fiscalização” do próprio grupo.
Destarte, as vítimas podem ser homens e mulheres, mas a desmoralização e opressão maior é
com relação às mulheres.
Para os homens, o fato de não conseguirem manter materialmente a família é uma
das maiores vergonhas vivenciadas. Aquilo que desmoraliza a mulher é a sua infidelidade,
que é algo citado em inúmeros depoimentos e apontado como uma “falha” gravíssima. Não
que a infidelidade é permitida ao homem, mas esta é mais tolerada do que se ocorrer com a
mulher, fazendo com que haja uma maior coerção às mulheres com relação aos lugares onde
não é permitida a sua presença.
Enfim, ficou-nos evidenciado que no universo das classes populares uma
marcante presença da ideologia relacional na esfera privada. Nesse sentido, a referida
ideologia se expressa de várias formas: iniqüidade em termos de poder, tendo o homem uma
superioridade em relação à mulher; juntamente com tal disparidade maior liberdade do
homem, seja em relação ao seu corpo, seja em relação a freqüentar determinados espaços.
Percebemos também uma sobrecarga das mulheres, ou nas responsabilidades pelo serviço
doméstico ou no cuidado com as crianças, isto é, um explícito privilégio dos homens em
relação às suas mulheres. Portanto, é desnecessário afirmar que, à luz da ideologia relacional,
a cidadania está obliterada, uma vez que não igualdade entre os cônjuges, nem em relação
ao poder, nem na divisão do trabalho no espaço privado. Tampouco nimas posturas
dialógicas em sintonia com a democracia. Ademais, as condições sócio-econômicas dos
cônjuges dificultam também a existência de cidadania, seja pelo fato de problematizar ainda
mais o diálogo entre ambos, seja pelo fato de privá-los de direitos sociais que lhes são
inacessíveis. Convém lembrar, outrossim, que a extensa jornada de trabalho dos cônjuges
também é responsável pela sobrecarga de atividades injustamente imputada às mulheres, o
que significa dizer que as empresas e instituições empregadoras também contribuem para
concretizarem as dificuldades de existência da cidadania no espaço privado.
No capítulo seguinte, continuaremos analisando as dificuldades de haver cidadania
na esfera privada (espaço da casa). Contudo, enfatizaremos a questão da moradia atrelada à
dimensão sócio-econômica.
Capítulo 5
A cidadania, o espaço da casa e do bairro
5.1 – A questão da habitação
Como vimos, a presença marcante da ideologia relacional na esfera privada (espaço da
casa) contribui para que se dificulte a existência de cidadania. Ocorre que, além da referida
ideologia, há um eminente obstáculo para a realização da cidadania, junto às classes
populares, que está ligado à questão da moradia. Portanto, se a ideologia relacional nega a
cidadania no espaço da casa, certamente as dificuldades para obtê-la e a sua precariedade são
agentes inviabilizadores para a existência de cidadania. É o que veremos a seguir.
A moradia se constitui num direito fundamental para o cidadão, devendo contemplar
um espaço onde serão satisfeitas necessidades essenciais, sejam aquelas ligadas à
sobrevivência material (abrigo; higiene pessoal; espaço para o descanso etc.), sejam aquelas
vinculadas à dimensão espiritual (lazer; convivência com os membros da família; privacidade;
afetividade entre outras). Nesse sentido, o direito à habitação está incluído na Declaração
Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 25:
Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família, saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação
cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e direito à segurança
em caso de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice ou outros casos
de perda dos meios de subsistência em circunstâncias fora do seu controle...
(Apud VILLAÇA
1
, 1986, p. 11).
Entretanto, a moradia é um dos direitos sociais mais inacessíveis às classes populares,
porque existe uma gama de fatores que inviabilizam a efetiva implementação desse crucial
direito a determinados cidadãos. Procuraremos, a seguir, apresentar as razões que
obstaculizam o pleno direito à habitação.
Como sabemos, a sociedade capitalista na qual vivemos, estrutura-se a partir da
disparidade social gestada pelas várias formas de exploração do trabalho, que se concretiza e
se expressa na existência das classes dominantes e dominadas. Havendo tal iniqüidade entre
as classes sociais, o espaço urbano irá exprimi-la concretamente, isto é, na cidade
diferentes espaços, nos quais são produzidos e ocupados por membros de determinadas
classes sociais. A disparidade estrutural da sociedade capitalista se materializa na segregação
1
VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global, 1986.
sócio-espacial das cidades, ou seja, a diferença expressiva em termos de rendimento,
determina o padrão e lugar da moradia do sujeito. Diz Singer (1980):
Em última análise a cidade não tem lugar para os pobres. A propriedade
privada do solo urbano faz com que a posse de uma renda monetária seja
requisito indispensável para a ocupação do espaço urbano (...) Antes pelo
contrário, este funcionamento tende a manter uma parte da força de trabalho
em reserva, o que significa que uma parte corresponde da população não tem
meios para pagar pelo direito de ocupar um pedaço de solo urbano
(SINGER, 1980, p.11)
Todavia, existem inúmeros fatores intrínsecos à problemática da habitação, que
contribuem para dificultar, ainda mais, o acesso à moradia para as classes populares. Nesse
sentido, o espaço urbano na sociedade capitalista vem sendo produzido por vários agentes
sociais que, dependendo da atuação, podem tornar o direito à moradia mais difícil de ser
conquistado.
Sabemos que o modo de produção capitalista encontra no espaço urbano um conjunto
de condições favoráveis para (re) produção do capital. Dessa forma, as empresas capitalistas
sejam elas industriais, comerciais, financeiras ou do setor de serviços, conseguem realizar
seus interesses mercadológicos na cidade. Para tanto, o uso do solo urbano é indispensável
para efetuarem seus empreendimentos, ou seja, é preciso construir escritórios; prédios
comerciais; grandes salões para montarem fábricas; lojas; hipermercados; prédios para o
funcionamento de instituições educacionais privadas etc. Dependendo o local, a proporção e
o tipo de atividade explorada por determinada organização empresarial
2
, esta pode influenciar
o preço dos terrenos e edificações próximas a tal atividade. A valorização destas áreas, de
um lado, ”expulsa” algum morador da classe popular, e, de outro, obstaculiza ocupar a
referida área em função do elevado preço.
Podemos pensar a atuação dos capitalistas na questão da moradia de forma mais direta:
na produção de casas. Por que a casa não é produzida pelos capitalistas com intenções
mercadológicas? Por que o preço da moradia é bastante alto? São inúmeros os fatores e
elencaremos apenas alguns. A casa é uma mercadoria de difícil produção, à medida que não
pode ser produzida em série, como por exemplo, o automóvel. Ademais, houve várias
2
É importante lembrar, que a atuação de setores empresariais é quase sempre efetuada juntamente com
o apoio do poder público (Estado), seja através de financiamentos para a realização de determinados
investimentos, seja por intermédio em investimento em infra-estrutura, pois “no Brasil, a opção por
um modelo de oferta gerenciada pelo Estado... foi associada... a uma setorialização das políticas
públicas de infra-estrutura...” desta forma “as entidades estatais eram utilizadas em benefício de
grupos privados...” (SILVA, 1999, p. 26
).
inovações tecnológicas em termos de máquinas e equipamentos, pois não somente reduzem o
tempo de produção, mas também aperfeiçoam e padronizam as mercadorias confeccionadas.
Um outro importante atributo do processo produtivo capitalista se encontra na
concentração em determinados espaços para dinamização do processo produtivo. Ocorre que,
a produção de casas jamais pode ser realizada em espaços específicos, à medida que
a habitação está vinculada ao solo, está “amarrada” à terra. Isso impede que
ela... seja produzida em poucas localizações centralizadas e depois
distribuída aos consumidores... a vinculação territorial dificulta muito a
produção em larga escala... (VILLAÇA, 1986, p.16-17).
Assim, a habitação não sendo produzida num mesmo espaço - juntamente pelo
elevado preço da propriedade privada da terra - contribui para torná-la um bem de custo
elevado. no processo produtivo capitalista, a concentração da produção
3
, num determinado
espaço, facilita a divisão técnica do trabalho, bem como a sua especialização. Nada disso é
possível ser feito, quando se produz moradia: necessita-se de um espaço específico para a sua
construção, e dependendo a localização e sua topografia, podem encarecê-la ainda mais.
Um outro limite à produção mercadológica da casa tem a ver, outrossim, com a
dinâmica do processo produtivo do capitalismo. O sistema capitalista procura reduzir o
tempo de produção das mercadorias. Também um interesse para que o tempo de utilidade
dos produtos seja cada vez menor. Esta fugacidade do consumo não tem como ser efetuada
através da mercadoria habitação. Nas palavras de Villaça (1986):
Outra particularidade da habitação que dificulta sua transformação plena em
mercadoria, prende-se ao sue longo período de produção e consumo... a
natureza do produto habitação e a tecnologia desenvolvida para produzi-lo
levam a uma duração excepcionalmente longa do período de rotação do
capital... Esse período envolve tanto o tempo gasto na construção da casa
como o tempo gasto no seu total consumo... (VILLAÇA, 1986, p.17)
Enfim, as inovações introduzidas no processo produtivo, sob a égide do capitalismo,
fizeram com que houvesse uma redução dos preços dos produtos, porque a produção em
grande escala viabiliza tal redução. E a produção da casa, como ocorre? A casa é produzida de
maneira totalmente artesanal, do começo ao fim, tendo como conseqüência o seu
encarecimento. Destarte, parece estranho, mas um automóvel, por exemplo, que possui uma
infinidade de sofisticação tecnológica, é muito mais acessível do que uma casa, que contém
3
Convém lembrar, que na atual conjuntura, ainda que a produção de mercadorias no capitalismo
globalizado esteja desterritorializada, muitos procedimentos do processo produtivo ainda são
efetuados num determinado espaço específico.
poucas inovações tecnológicas, se comparada ao carro. A lógica da massificação do carro,
como apontamos acima, não pode ser introduzida na construção da casa.
A dificuldade à aquisição de moradia pelas classes populares também irá depender da
interferência do Estado, através de vários mecanismos. Nesse sentido, a atuação do Estado
pode ocorrer, de forma indireta, por meio da política social e econômica, visto que haverá um
impacto social, fazendo com que determinados grupos ou classes - principalmente classes
dominantes - possam se beneficiar tendo um efeito no espaço urbano: crescimento de favelas;
condomínios de luxo; cortiços etc. Ademais, o Estado
4
, no Brasil, vem atuando como
principal instituição de financiamento imobiliário ou construindo moradias populares,
através dos conjuntos habitacionais.
Há outros agentes sociais que interferem diretamente na questão da moradia, que são
as construtoras, incorporadoras, imobiliárias e proprietários fundiários, que procuram
efetuar interesses mercadológicos com os imóveis a partir da compra e venda de terrenos e
casas, utilizando-se da especulação imobiliária.
O incorporador é aquele que orquestra ações objetivando efetuar mudanças no uso do
solo, ou seja, tem a “função de coordenar o processo produtivo e assumir as responsabilidades
pela sua comercialização” (RIBEIRO, 1997, p. 92). Desta maneira, o incorporador (ou
promotor) pode ser o responsável pela criação de um loteamento, condomínio residencial,
construção de edifícios residenciais, etc. Ribeiro (1997), diz que três agentes realizadores
de um empreendimento imobiliário:
Agentes promotores são os que mobilizam e coordenam os fatores de
produção necessários à edificação do imóvel e à sua comercialização.
4
De acordo com Rodrigues (1989), na década de 1930, o Estado assume e se responsabiliza pela produção de
casas populares por intermédio das Carteiras Prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPS). A partir
da década de 1950, houve um declínio nas construções no instante em que a inflação reduziu o valor das
prestações, inviabilizando o surgimento de novos investimentos no setor. Além disso, o congelamento dos
aluguéis, com a lei do inquilinato; e a crise da previdência tornaram deficitários os conjuntos habitacionais. Em
maio de 1946, foi criada a Fundação da Casa Popular, considerada o primeiro órgão que contempla todo
território nacional. Em 1964, juntamente com a ditadura militar, surge o BNH (Banco Nacional de Habitação) e
o Sistema Financeiro da Habitação objetivando - além dos interesses políticos dos militares - orquestrar a
política habitacional dos setores públicos, bem como orientar e estimular a construção de moradias populares
pela iniciativa privada; financiar a obtenção da casa própria e melhorar o padrão das casas; erradicar as favelas;
fomentar investimentos da indústria de construção e estimular determinados investimentos. O BNH é que não
precisa de recursos do governo, utilizando-se de recursos privados: os das cadernetas de poupança e do FGTS
(Fundo de Garantia por Tempo de Serviço). Houve, por parte dos governos militares, uma acintosa tentativa de
arrefecer os conflitos sociais nas áreas urbanas. Com a extinção do BNH, em 1986, a Caixa Econômica Federal
assume seus recursos e atribuições. Desta forma, o financiamento imobiliário continua sendo feito pelo Estado,
através da Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. O que também permanece é a inacessibilidade da
moradia às classes populares, pois “a grande maioria da classe trabalhadora, porém, não tem condições de se
beneficiar de financiamento do Estado para a aquisição de habitação” (MAUTNER, 1999, p. 25).
Agentes financeiros são os que proporcionam o suporte financeiro às
operações de construção de compra e venda de imóveis, suporte originário
de recursos próprios ou de terceiros.
Agentes instrumentais são aqueles que proporcionam aos promotores os
meios necessários à produção das unidades (RIBEIRO, 1997, p..92)
Para que haja a existência de um loteamento, participam vários agentes, tais como, o
proprietário fundiário, o incorporador (juntamente com o corretor de imóveis), o morador
que é o comprador dos lotes - e o Estado, por intermédio do aparato legal e financeiro. Os
incorporadores (loteadores), às vezes, são os proprietários das glebas que serão loteadas,
tendo a obrigação de arcar com certos encargos de loteamento
5
(a aprovação do projeto,
abertura de vias, etc). Diante disto, o preço do lote tende a aumentar em função da
existência de inúmeros agentes que, evidentemente, deverão lucrar com o negócio:
proprietário de lote; incorporador e corretor de imóvel (este pode ou não ser autônomo), que
efetua a venda. Convém lembrar, que encargos com a escritura do imóvel, juntamente com
o imposto que é arrecadado pelo poder público municipal.
Uma outra forma das incorporadoras lucrarem é através da especulação imobiliária.
Comecemos pela palavra “especulação”. Esta vem do verbo “especular” que, entre outros
significados, segundo o dicionário Aurélio é “valer-se de certa posição, de circunstância, de
qualquer coisa, para auferir vantagens”. Portanto, vultuosos lucros auferidos pelas
incorporadoras (e outros agentes, evidentemente), que ocorrem pela especulação imobiliária,
através de diferentes procedimentos. Segundo Rodrigues (1989), o estratagema mais utilizado
para a especulação na criação de um loteamento é através da retenção intencional de
determinados lotes. Desta forma, inicialmente, vendem-se aqueles terrenos de pior localização
em relação aos serviços e infra-estrutura. Num segundo momento, colocam-se os demais lotes
à venda, que terão um preço mais elevado, no instante em que “a simples ocupação de alguns
faz aumentar o preço dos demais lotes” (RODRIGUES, 1989, p. 21). É também bastante
comum reservar lotes, em determinadas localizações, com vistas à implantação de
estabelecimentos comerciais. Indubitavelmente que o preço desses lotes serão maiores do que
aqueles para imóveis residenciais.
5
Há aqueles loteamentos que não estão adequados às exigências legais, estes são os chamados
loteamentos clandestinos, isso porque não cumprem as normas previstas na lei, isto é, o projeto que
deve ser previamente aprovado, pelo poder público, não está de acordo com o que prevê a lei.
Entretanto, os prejuízos dos loteamentos clandestinos tem sido imputados aos compradores /
moradores, visto que: “não podem aprovar a planta da casa, portanto a construção também é
clandestina e não podem ter a documentação da propriedade legalizada a escritura definitiva
mesmo tendo pago pela terra”. (RODRIGUES, 1989, p. 27)
A especulação imobiliária também ocorre quando a incorporadora realiza um
loteamento distante daqueles pré-existentes, isto é, procura-se deixar uma área vazia - que
será especulada - entre o loteamento existente e aquele que está em vias de implementação.
Estes são chamados os vazios urbanos”. A especulação imobiliária não é uma prerrogativa
exclusiva das incorporadoras, ela é efetuada por inúmeros outros agentes. Nesse sentido, a
aquisição de terrenos na malha urbana, visando investir determinados recursos, configura-se,
outrossim, na prática da especulação imobiliária. Por isso, tanto os membros da classe média,
quanto às classes abastadas, podem ser proprietários de terrenos baldios (ou edificações
residenciais ou comerciais) com intuito de auferir ganhos através da especulação. Enfim,
uma evidente conexão entre a especulação imobiliária com a inacessibilidade, para as classes
populares, na obtenção da moradia.
A inviabilidade para a aquisição da habitação acaba condicionando o surgimento de
inúmeras formas de moradias precárias. Destarte, temos os chamados cortiços, que são
“habitações coletivas, em imóveis com pouca ou nenhuma conservação... correspondem a
uma das mais antigas formas de habitação das classes populares...” (RODRIGUES, 1989, p.
46). Nos cortiços, uma quantidade expressiva de unidades habitacionais com uma enorme
ocupação dos cômodos. Estes são minúsculos cubículos alojando várias pessoas,
impossibilitando algum tipo de conforto, isso porque, além do tamanho inexpressivo, a
higiene também é precária, visto que os banheiros, tanques, chuveiros são todos utilizados
na maior parte das vezes - coletivamente. Os cômodos, em função das várias casas ao redor,
não possuem conforto térmico, uma vez que a ventilação é impedida pela existência de outras
casas ao redor. A privacidade pode ficar abalada, seja internamente pela limitação dos
cômodos, seja externamente pela presença dos vizinhos que moram próximos.
Concernente à privacidade, segundo Ferreira (2002), uma enorme vulnerabilidade,
do ponto de vista da segurança, àquelas que ocupam as referidas moradias. Diz Ferreira
(2002):
A moradia é um dos elementos que compõem a vulnerabilidade da
população dos bairros pobres. Os autos registram como os indivíduos se
organizam em habitações precárias em meio a um impressionante
adensamento populacional. Um dos modos mais comuns de moradia é o
quintal rodeado de pequenos cômodos, construídos para abrigar filhos que se
casam ou parentes migrantes.
(FERREIRA, 2002, p.168)
Um outro tipo de moradia precária é a favela, que pode ser caracterizada pela ausência
de infra-estrutura e em razão dos moradores não possuírem a posse legal (não possuem
escritura do imóvel) do imóvel ocupado, ou seja, ocupam terra alheia, pública ou privada. A
favela expressa a segregação sócio-espacial típica das cidades capitalistas. Não obstante, o
tamanho da cidade é uma variável importante para o seu surgimento, isto porque o preço do
solo urbano nas metrópoles é mais elevado, tornando mais inacessível à grande parte das
classes populares. Por isso, cerca de 80% da população favelada, segundo o IBGE, mora em
regiões metropolitanas,
25% da população de Belo Horizonte; 28% no Rio e em Fortaleza, 40% em
Recife, a terça parte dos habitantes de Salvador e a metade dos que moram
em Belém, sem falar das palafitas de Manaus ou dos barracos de madeira ou
casas de alvenaria presentes em boa parte das cidades médias e grandes,
muitas situados em área insalubres ou de risco.” (KOWARICK, 2002, p. 19).
Segundo Kowarick (2002), as favelas não são homogêneas, nem do ponto de vista do
padrão habitacional, nem da sua qualidade urbanística. Desse modo, se elas forem
comparadas a épocas anteriores, é perceptível algumas melhorias: padrão das casas (eram de
madeira, hoje são de alvenaria); há serviço de coleta de lixo e de redes de água.
Entretanto,
Habitar em favelas representa para a grande maioria viver em um ambiente
sujeito a altos índices de degradação e contaminação, haja vista o destino dos
dejetos, a baixa proporção de unidades habitacionais ligadas à rede de
esgotos, o grande número de aglomerados à margem de córregos ou em
áreas de acentuada declividade, sujeitas a inundações e erosões
(KOWARICK, 2002, p.20)
As favelas são ocupações típicas das periferias. Estas não necessariamente podem ser
áreas favelizadas, porque o proprietário pode ter a ocupação juridicamente legalizada.
Outrossim, com base nos escritos de Kowarick (1999), as periferias, no geral, freqüentemente
não possuem mínimas condições para se garantir cidadania aos moradores, ou melhor, lhes
garante, segundo o autor, a subcidadania: possuem problemas de transporte; não postos de
saúde; não área para prática do lazer; inúmeras áreas com terrenos baldios sem a devida
precaução da limpeza dos mesmos, podendo trazer transtornos com insetos como pernilongos,
baratas, aranhas, ou animais como: cobras, sapos ou ratos; são bairros distantes de
estabelecimentos comerciais para lhes servir e, quando tais estabelecimentos são pequenos
bares-empório que, por não terem grandes estoques de vendas, comercializam seus produtos
por preços mais elevados; a topografia desses bairros quase sempre é acidentada, o que
encarece a construção da moradia; são bairros com um índice de violência mais acentuado,
podendo colocar em risco a saúde e vida dos seus moradores; podem ser bairros onde a
presença do tráfico de drogas seja uma constante, causando preocupação e medo por parte dos
moradores. Há, portanto, uma gama de problemas nos bairros da periferia, denotando
ausência de inúmeros direitos nesses bairros. Ou seja, uma negação da cidadania aos seus
moradores.
Nesta perspectiva, a conquista da cidadania não se limita à obtenção da moradia, ou
seja, juntamente com a casa, é necessária a existência de uma série de condições infra-
estruturais no bairro, para se ter acesso a outros direitos. Sob esta ótica, “apenas quando essa
moradia está vinculada aos equipamentos e serviços urbanos é que se criam as condições
mínimas para alcançar a cidadania” (VERAS & BONDUKI, 1986, p. 44).
A maioria das casas da periferia são feitas através da autoconstrução, isto é, o próprio
morador, auxiliado pela família e por amigos, constrói a sua moradia. Diante disto,
é principalmente através da autoconstrução que a maioria da população
trabalhadora resolve seu problema de moradia”. “a construção é realizada
nos fins de semana em partes das férias. O ritmo da construção depende do
tempo livre”, do dinheiro disponível para compra do material de construção
e da contratação eventual de um trabalhador especializado para determinadas
etapas da “construção. ( RODRIGUES, 1989, pp. 30-31)
Pela citação acima é perceptível que a autoconstrução denota um aumento de jornada
de trabalho e, concomitantemente, uma redução do lazer e do descanso, que são direitos do
cidadão. De um lado, a autoconstrução é uma das únicas formas de que as classes populares
têm para conseguir o acesso à habitação, porque reduz custos quando o morador realiza a
mão-de-obra. De outro, contraditoriamente, contribui para que o custo da moradia quase não
seja computado na definição dos rendimentos salariais, significando dizer que acaba
sobrecarregando e explorando ainda mais a classe trabalhadora, isto é, “por ser uma fórmula
que exclui dos custos da habitação o valor da força de trabalho, constitui uma vigorosa fonte
para manter os salários permanentes deprimidos, à medida que barateia os custos de sua
reprodução” (KOWARICK, 1999, p.30).
A autoconstrução é um conceito ambíguo, não se referindo apenas àqueles que
constroem sua casa, ou seja, tem a ver, também, com uma forma de construção em regime de
mutirão, contemplando a construção de ruas, igrejas, escolas, etc. (Maricato, 1982) Nesse
sentido, a autoconstrução nos parece ligada à ideologia relacional. O fato de o morador se
preocupar com a construção de imóveis, tais como o da escola, da igreja, etc, significa, entre
outras coisas, que a sua ação é fortemente condicionado pela força do grupo, aliada à
eminente solidariedade.
Uma outra conseqüência emanada da dificuldade de acesso à moradia refere-se às
ocupações de terras, que começam a surgir no final da década de 1970 (RODRIGUES, 1989).
Trata-se de um outro procedimento das classes populares para tentar solucionar a questão da
moradia. As suas causas se confundem com as das favelas. No entanto, sua maior ocorrência
vem acontecendo nos últimos anos em função da quase total ocupação dos espaços nas
favelas e da maior organização (luta por cidadania) dos moradores das cidades. Tal
“mobilização e organização... correspondem aos movimentos reivindicativos urbanos”
(RODRIGUES, 1989, p. 42). A similitude das ocupações com as favelas ocorre, também, em
função da ilegalidade do ponto de vista jurídico, isso porque não são legalmente proprietários
da terra ocupada. A favela é caracterizada por uma ocupação individual, efetuando-se a partir
da procura do morador para se alojar com a sua família. Nas ocupações um conjunto de
famílias, que juntos instalam-se numa determinada área (pública ou privada). Tal ocupação é
efetuada de forma acintosa, ou seja, há um planejamento sobre o lugar e o dia para realizarem.
Um atributo marcante nas ocupações é o regime de “mutirão” para se erguerem os barracos,
exprimindo-se num valor, que, como vimos, é inerente à ideologia relacional: a solidariedade.
Diz Rodrigues (1989):
Solidariedade na procura de uma solução de moradia, solidariedade na
construção, que poderia ser chamada de mutirão – processo de trabalho
calcado na cooperação entre as pessoas, na troca de fatores, em
compromissos familiares, diferenciando-se, portanto, das relações
capitalistas de compra e venda da força de trabalho. (RODRIGUES, 1989, p.
45)
Por fim, temos aqueles imóveis em que o morador não é o seu proprietário: casas de
aluguel (podendo ser, como vimos, os cortiços da periferia); ou moradias em que o
proprietário (na maioria das vezes parente do morador) permite que utilizem do seu imóvel
sem interesse mercantil. Em outras palavras, são as casas cedidas provisoriamente
“emprestadas” – ou definitivamente – “doadas”.
Enfim, algumas questões emergem a partir das colocações efetuadas acima. Em
primeiro lugar, como vimos, a questão da moradia está profundamente vinculada à lógica
desigual da sociedade capitalista, ou seja, a inacessibilidade ou dificuldade para se obter a
casa, resulta da clássica lógica do capitalismo: a riqueza é produzida socialmente, mas
apropriada individualmente. Nesta perspectiva, a questão do “déficit” habitacional é um falso
problema, já que o “Brasil possui exatamente o número de habitações para o qual existe uma
demanda monetária” (VILLAÇA, 1986, p. 12)
Em segundo lugar, inúmeras conseqüências sociais para as classes populares em
função da problemática da habitação, como a maior dificuldade para garantir a sobrevivência
material, caso tenham que pagar aluguel. Há desconforto e risco em casas insalubres, como os
cortiços. ausência de privacidade. Falta de higiene e o tamanho inadequado dos imóveis.
Os bairros são distantes e sem infra-estrutura, entre outros.
Em terceiro lugar, além da ausência de condições infra-estruturais da periferia, o
simples fato do sujeito ser morador destes bairros pode “desqualificá-lo” do ponto de vista
social. Em outras palavras, preconceito e discriminação contra aqueles que ocupam
determinados bairros, isso porque morar nestes bairros passa a ser sinônimo de pobreza ou
“marginalidade”. O corolário disto é a explícita desigualdade de tratamento aos referidos
moradores, isto é, nega-se um tratamento igualitário com o preconceito e a discriminação, o
que revela uma evidente ausência de cidadania. Nas palavras de Kowarick (2000):
morar em favelas e cortiços representa, sem dúvida, marcante condição
discriminatória de existência. Dessa forma, talvez não seja descabível de que
esses locais de moradia constituem núcleos passíveis de dinamizar a
produção de percepções de caráter mais coletivo. Nesse sentido, se
relacionou o apoio a interpelações políticas de cunho autoritário moralista...
com formas de inserção urbana presentes em alguns bairros situados do
outro lado da cidade”. Trata-se de uma identidade social fortemente marcada
pelo ressentimento que advém de um traço inferiorizador de status
decorrente de uma residência “mal localizada” (KOWARICK, 2000, pp. 92-
93).
Tal desigualdade de tratamento aos moradores da periferia, não se apenas pelos
indivíduos, mas igualmente por empresas e instituições. Sabemos que empresas de ônibus
urbano que alocam carros em péssimo estado de conservação para os chamados bairros
populares. Há uma excessiva lotação dos mesmos, proporcionando grande desconforto, que se
estende pelo por horas em função das grandes distâncias de certos bairros. É também notório,
que a conduta dos policiais nestes bairros é extremamente violenta e preconceituosa. Sob esta
ótica, o indivíduo “suspeito” é simplesmente o membro da classe popular dos bairros
periféricos. Portanto, apenas morar nestes bairros pode subtrair algo fundamental da prática
da cidadania: a igualdade de tratamento.
As reflexões sobre a moradia e o bairro elaboradas nesta parte, serão articuladas com a
abordagem efetuada a seguir: procuraremos descrever os aspectos da casa e do bairro das seis
famílias pesquisadas.
5.2-Aspectos da casa e do bairro: limites para a cidadania na esfera privada.
Em todas as seis famílias pesquisadas, são perceptíveis os limites da cidadania, no
âmbito privado (espaço da casa), em função da habitação e do bairro onde moram. A afronta à
cidadania é visivelmente expressa pela precariedade de suas moradias, bem como do bairro
que moram, no qual efetuamos o presente estudo.
As seis famílias analisadas moram em habitações precárias, que estão intrinsecamente
ligadas à sua eminente pobreza, proporcionando inúmeros transtornos para as pessoas que ali
residem. Tais transtornos serão relatados, a seguir, partindo das famílias pesquisadas.
Família de Afonso e Bruna. Ambos relataram que a casa onde moram é muito pequena
pelo número de pessoas existentes na família. Esse casal possui 4 filhos, sendo que 2 não
moram com eles (como dissemos anteriormente). A ausência desses filhos é vivenciada de
forma ambivalente. Por um lado, sentem um desconforto de tais filhos não morarem com eles,
visto que na visão de ambos - é função dos pais criarem os filhos. Por outro lado, a
ausência dos 2 filhos (Cesar e Edvaldo), um de 17 outro de 15 anos, proporciona um certo
“alívio” para o casal, que dispõem apenas de 1 quarto para todos os filhos. Assim, quando os
filhos, Cesar e Edvaldo, estavam morando com eles, a filha Aline de 08 anos tinha que dormir
no quarto do casal. Com a ausência dos filhos (Cesar e Edvaldo), Aline passa a dormir com o
irmão de 10 anos, cujo nome é Lucas. Evidentemente, tal “solução” é provisória. Segundo o
casal, devem construir um quarto para Aline, isso porque quando ela deixar de ser criança não
tem como dividir o quarto com o seu irmão.
Além de pequena, a casa não está com a parte de acabamento concluída. Não
reboco nas paredes internas e externas, impossibilitando alguma pintura; o chão da casa não
está revestido por alguma cerâmica, existindo tão-somente uma cobertura de argamassa
derivada da mistura de areia e cimento. Não nenhum forro e a cobertura é com telhas de
amianto, que não proporciona nenhum conforto térmico, pois tal tipo de telha sobreaquece o
ambiente com a incidência do sol. Não tendo forro, a entrada de insetos é freqüente,
facilitadas pelas frestas presentes nas bordas do telhado; falta um muro nos fundos, tornando
um local propício a algum acidente, porque o terreno se localiza numa área onde há uma
declividade bastante acidentada. Não calçada ao redor da casa, o que prejudica sua
limpeza, principalmente nos dias chuvosos. Na frente o muro é parcial, o que pode favorecer
eventual roubo de objetos existentes no terreno. A referida moradia possui 8 anos de
existência, não foi ainda concluída sendo construída por Afonso, sua família e a ajuda de
amigos. Como vimos, a autoconstrução é uma prática bastante comum nos bairros periféricos,
em razão do baixo salário inviabiliza qualquer possibilidade de obtenção da moradia.
Cabe lembrar, que o fato desta construção não ser contínua, há um eminente transtorno
para os moradores, à medida que as obras não sujam, como desorganizam o interior das
casas. Isto é bastante problemático principalmente para as mulheres, que se identificam e se
vinculam mais intensamente ao espaço da casa.
Família de Ademir e Cristina. De todas as famílias pesquisadas, a moradia mais
precária que encontramos é desta família. A casa, além de ser alugada, possui inúmeros
atributos negativos.
A casa se limita a 2 pequenos cômodos de madeira. Segundo o casal (Ademir e
Cristina), quando chove sentem muito medo de ocorrer algum acidente, em razão de não
oferecer nenhuma segurança, seja pela frágil estrutura, seja pela quantidade de anos de sua
existência. Também nos dias chuvosos há a penetração de água pelo telhado e pela porta, pois
não há declividade suficiente para o escoamento da água. Esta casa faz parte de um cortiço: há
mais três imóveis, apenas em um terreno. A proximidade das casas não proporciona nenhuma
privacidade para a família; a inexpressiva ventilação é em função da existência de várias casas
próximas a esta, o que não oferece nenhum conforto térmico. Não espaço no terreno para
que seu filho, de 02 anos, possa brincar, outrossim não podem criar nenhum animal
doméstico, que é proibido segunda a proprietária do imóvel. rachaduras no chão da casa,
podendo propiciar o aparecimento de insetos nocivos à saúde dos membros da família,
inclusive para o filho de 02 anos O banheiro não possui revestimento de cerâmica, sendo
difícil a limpeza e higiene; ademais a sua localização é também problemática: está fora de
casa, o que traz transtornos para a família, principalmente nos dias chuvosos e durante a noite.
No interior da casa não porta em nenhum cômodo, dificultando as intimidades afetivo-
sexuais do casal, em função da presença do filho pequeno. Portanto, a precariedade desta
moradia não é apenas evidente é também estarrecedor. O sociólogo Kowarick afirma, como
vimos, a existência na periferia da subcidadania, constatamos também, nesta habitação, a
submoradia.
Notamos que, o fato desta família pagar aluguel da casa é algo que dificulta ainda mais
a sobrevivência material: 40% do seu rendimento utilizam para efetuarem pagamento do
aluguel. Assim, Cristina, que trabalha como doméstica, recebe R$ 250,00 reais por mês
(menos de 01 salário mínimo e sem registro em carteira), paga R$100,00 reais de aluguel. Seu
marido, como dissemos, está desempregado e realiza eventualmente “bicos” (trabalho
temporário e de pouquíssimo ganho).
Família de Gildo e Rose. Esta família tem algo em comum com a anteriormente
analisada: ambas pagam aluguel. Esta despesa equivale a 41% dos rendimentos da casa, isso
porque Rose recebe R$280,00 reais por mês trabalhando de empregada doméstica, seu marido
Gildo está sub-empregado, coletando objetos num depósito de lixo, ali próximo. Como este
casal tem três filhos, o rendimento per capita (por pessoa) é de R$ 74,00 reais por mês,
enquanto do casal anterior é de R$ 83,00 reais. Notamos que, este casal, o desemprego de
Gildo foi apenas de 06 meses se comparado com o de Ademir (entrevistado anterior), que é
de 1 ano e 2 meses e pelo fato de trabalhar registrado (era açougueiro) os seus rendimentos
eram maiores, bem como tinha direitos trabalhistas. Isto explica, parcialmente, por qual razão
a situação de pobreza do casal Ademir e Cristina era muito mais acentuada.
Com relação à precariedade da casa, as evidencias são inúmeras. Não está concluída a
parte de acabamento, isso porque não reboco nas paredes internas e externas. Não
revestimento de cerâmica no chão e sim uma argamassa de cimento e areia. A existência de
um forro de laje é uma vantagem, porém há rachaduras nas paredes e na própria laje,
proporcionando risco de um eventual acidente. Não nenhum muro no terreno, o que pode
facilitar possíveis roubos caso deixem algum objeto fora de casa Há um barranco ao fundo do
terreno, onde é visível o avanço da erosão, ocasionada água da chuva (erosão pluvial), em
direção ao imóvel o que, também, torna perigoso para os moradores, haja vista que não está
muito longe da casa, ou seja, a distância de 03 ou 04 metros. Portanto, a precariedade da casa
é bastante visível.
Família de Felício e Nara. Nesta família, algo de singular concernente à moradia:
ela é cedida. Segundo a entrevistada Nara, sua mãe é a proprietária da casa, que a cedeu por
não terem habitação própria e, sem dúvida, por conta da solidariedade .
Constatamos que a moradia é uma edícula situada num terreno com mais duas casas, o
que dificulta a privacidade da família. Esta casa é a única, das que realizamos o presente
estudo, em que a parte de acabamento está totalmente concluída. É bastante pequena, tendo
apenas três cômodos. Logo na entrada, percebemos a existência de uma escala muito íngreme,
resultado da topografia bastante acentuada do terreno. Ao fundo, percebe-se uma grande área
de mata, que - segundo os moradores - contribui para a proliferação de insetos, principalmente
pernilongos. Enfim, a precariedade do imóvel em si quase não há. Porém, incômodos
ligados ao terreno - como dissemos acima - e ao bairro, no qual falaremos mais adiante.
Família de Marcos e Valma. Também esta família não é proprietária do imóvel no
qual mora. De acordo com o casal, pagam R$ 180,00 reais de aluguel, isto equivale a 26% do
total de seus rendimentos. A precariedade da casa não é tão acentuada, porém existe. Esta
família é a uma das mais numerosas que pesquisamos: 04 filhos. Para o casal, o maior
problema da casa é o seu tamanho inexpressivo pelo número de pessoas da família. A parte de
acabamento está concluída; porém, não há forro e a cobertura é de telha de amianto, que,
como dissemos, proporciona maior elevação da temperatura na casa. No terreno uma
pequena calçada e um grande barranco com possibilidade de ceder com o aumento das
chuvas. Um dado marcante foi a elevada quantidade de pernilongos e aranhas, pois a casa se
localiza próximo ao fundo de um vale, onde uma intensa vegetação, juntamente com um
pequeno córrego. Por volta de 18:00 h, segundo Marcos, é necessário fechar toda a casa, uma
vez que uma expressiva quantidade de pernilongos pode invadir sua residência, provocando
óbvios transtornos. Ademais, comentou-nos também do profundo incômodo derivado de um
depósito de lixo próximo de sua casa. Ou seja, freqüentemente exala um odor desagradável
nocivo à saúde, e uma quantidade expressiva de moscas provenientes do referido depósito
de lixo. Este também exala uma insuportável fumaça derivada de queimadas ali efetuadas.
Portanto, quase sempre devem manter as portas de suas casas fechadas visando minimizar os
problemas apontados. Enfim, a precariedade da moradia não é tão expressiva, se comparada
aos problemas de cunho ambiental do bairro.
Família Dario e Sandra. Assim como a maioria das famílias entrevistadas, esta
também paga aluguel, tendo que gastar em torno de 35% dos seus rendimentos. O imóvel no
qual residem é uma casa do tipo edícula que, segundo os sujeitos da pesquisa, é muito
pequena. Não tem praticamente espaço do terreno, porque na frente existe uma casa do dono
do imóvel. A primeira vez que visitamos esta família, a encontramos na calçada, em frente a
sua casa próximo à rua, - estávamos convictos que a presença deles ali, naquele espaço,
como vimos, estava vinculada apenas pela ideologia relacional, que valoriza uma
aproximação e convívio mais acentuado com o grupo de vizinho. Contudo, notamos que não
espaço, quase que nenhum, no terreno de sua casa, por tratar-se de um cortiço, o que os
obrigava a permanecer na calçada em frente à casa. A parte de acabamento estava concluída.
Notamos que esta casa está no fundo do terreno, enquanto a frente há uma outra moradia.
Entre ambas um muro separando-as, o que dificulta a ventilação da casa, interrompida
também pela impossibilidade de acesso aos ventos do fundo, visto que é uma edícula que
ocupa todo o fundo do terreno. Enfim, o imóvel em si não oferece muitos problemas aos
moradores, restringindo-se ao seu tamanho e, obviamente, o aluguel que pagam.
Diferentemente de alguns imóveis relatados anteriormente, não problemas ambientais em
função da sua localização.
Podemos, por fim, fazer alguns comentários sobre as moradias analisadas. Todas têm
alguma precariedade: tamanho muito pequeno; não concluída a parte de acabamento;
desconfortável do ponto de vista térmico; problemas estruturais; ausência de privacidade entre
outros. Também constatamos que de 06 famílias, 04 pagam aluguel, 01 é proprietário e 01
mora em casa cedida por parente.
ainda, alguns problemas ligados ao bairro que se confundem com os da habitação.
Enfim, a negação da cidadania neste aspecto é evidente, seja pela precariedade da moradia,
seja pela sua inacessibilidade condicionada em grande parte pelos inexpressivos ganhos
salariais obtidos pelas classes populares.
O bairro periférico o qual pesquisamos, a Vila Aurélio, possui uma gama de atributos
negativos que contribuem para dificultar a existência de cidadania aos seus moradores. Desta
forma, muitos obstáculos à cidadania o qual encontramos no citado bairro, são bastante
comuns, como vimos na parte anterior, nos bairros ocupados (periferias) pelas classes
populares.
No bairro o qual efetuamos o presente estudo não há posto de saúde, e o mais próximo
localizam-se nos bairros Jardim Santana e Parque Alvorada. A distância, por um lado, de
acordo com os sujeitos da pesquisa, não é muito expressiva; por outro lado, o atendimento à
população reflete o notório descaso dos serviços médico-hospitalares às classes populares, à
medida que, segundo os seis sujeitos da pesquisa, há muita demora, os funcionários tratam de
forma ríspida aqueles que procuram atendimento, que são membros das classes populares;
quase sempre não um profissional (médico e enfermeiro) para prestar serviço à população
e, raramente, tem acesso aos medicamentos que necessitam. Em entrevista com a presidente
da Associação de moradores da Vila Aurélio, Srª Aparecida, disse-nos que uma das maiores
reclamações da população é com relação ao posto de saúde. Em suas palavras:
A gente tem posto de saúde no Santana e no Alvorada... reclamam da
demora para se agendar uma consulta, falta de vagas, dependendo a
especialidade você dorme lá... as vezes não consegue ainda porque tem
aquele limite de vagas (Qual a maior reivindicação dos moradores?) Por
incrível que pareça ainda é questão da creche. Na época, quando a
associação foi eleita pela primeira vez, a gente fez uma votação, o que as
pessoas gostariam que viesse primeiro... e eles determinaram que seria o
asfalto em primeiro e segundo a creche... (Aparecida).
Portanto, como fica explícito no trecho do depoimento de Aparecida, o bairro também
prescinde de uma creche. Todas as famílias entrevistadas necessitam da creche, porque
esposos e esposas trabalham fora de casa e tem filhos pequenos. Evidentemente, casos em
que o pai / marido, que está desempregado, cuida da criança (como é o caso de Afonso e
Ademir), porém, são situações indesejáveis e provisórias. Nas outras famílias, a ausência da
creche é “substituída” por algum membro da família ou por algum vizinho, que se predispõe
de cuidar da criança.
Neste bairro, o espaço para o lazer se limita ao bar-empório e a um campo de futebol.
Obviamente que os referidos espaços para o lazer são direcionados aos homens.
Curiosamente, na cidade de Presidente Prudente, uma enorme área de lazer, construída
pela prefeitura municipal, em que contém quadras poliesportivas; campos de futebol;
sanitários; espaço para ciclistas; esta área recebe o nome de “Parque do povo”. Todavia, os
seus usuários não são membros das classes populares, mas tão-somente membros das classes
médias e altas, que mesmo morando longe desta área, ela lhes é acessível, por possuírem
automóveis, o que faz encurtar as distâncias.
Além de alguns terrenos baldios não cuidados, comum em qualquer bairro, este é o
limite do perímetro urbano da cidade. Nesse sentido, uma extensa mata que se configura
numa área rural. O bairro estudado se localiza praticamente entre dois córregos. Em ambos
uma expressiva vegetação. Esta, segundo alguns sujeitos da pesquisa, causa transtorno no
instante em que viabiliza a proliferação de insetos (principalmente pernilongos) nocivos a
saúde. Também próximo ao bairro, uma área onde depositam o lixo municipal, que trazem
problemas ambientais causados à população: mal cheiro, aumento de moscas e a fumaça
oriunda de freqüentes queimadas neste lugar.
Estudos sobre a segregação sócio-espacial em Presidente Prudente, efetuados por
Spósito (1983), demonstram que a região leste - onde se localiza a Vila Aurélio - da cidade
foi ocupada pelas classes populares por duas por duas razões: a) topografia bastante
acidentada, que encarece a construção, por isso o preço é mais baixo e, b) por estarem abaixo
da linha férrea da Fepasa, ou seja, são áreas chamadas pejorativamente de “além linha”. Estes
dois atributos, além da distância e ausência de infra-estrutura, determinaram o baixo preço
dos terrenos, motivando a aquisição pelas classes populares.
A Vila Aurélio encontra-se longe dos estabelecimentos comerciais de porte médio ou
grande, como supermercados e hipermercados, o que torna difícil o acesso os seus moradores,
que não possuem automóveis, efetuarem suas compras nos referidos estabelecimentos. Assim,
segundo nossos entrevistados, por um lado, efetuam a compra nos bares / empórios existentes
no bairro. Neles os preços dos produtos são mais elevados, no instante em que os pequenos
estabelecimentos comerciais, não possuindo grandes estoques nem expressiva venda, não
podem oferecer os produtos com preços mais baixos. Ademais, com o pouco salário que
recebem devem se submeter a compras à prazo (o que chamam de “fiado”). Segundo a Anita,
proprietária de um bar – empório no citado bairro, quase 60% das vendas são à prazo.
Revelou-nos que muitos prejuízos com a inadimplência dos clientes, o que contribui para
aumentar os preços dos produtos. Por outro lado, um bairro próximo (Jardim Planalto) em
que mercados de porte médio. Aqui, o acesso para efetuarem a compra é vetado, visto que
não vendem à prazo e a razoável a distância de suas casas acaba sendo um outro empecilho.
Enfim, seja no espaço da casa, seja no espaço do bairro, a ausência de cidadania é evidente
em função dos inúmeros obstáculos que foram apresentados.
Ficou evidente, neste capítulo, que a problemática da habitação e do bairro periférico
contribuem para a inexistência de cidadania no espaço privado (espaço da casa). Quais as
possibilidades de haver cidadania no referido espaço, partindo da ideologia relacional e da
dimensão sócio-econômica? A resposta a esta pergunta é o objeto de estudo do próximo
capítulo, isto é, investigar se é viável a presença de cidadania no espaço privado.
3-AS POSSIBILIDADES PARA A EXISTÊNCIA DE CIDADANIA NO ESPAÇO
PRIVADO DAS FAMÍLIAS DAS CLASSES POPULARES
Capítulo 6
A ideologia relacional e a dimensão sócio-econômica: possibilidades para a cidadania
6.1-A cidadania, o poder feminino e a afetividade
Neste capítulo, procuraremos refletir sobre as possibilidades de existência de
cidadania, no espaço privado (espaço da casa), a partir da ideologia relacional e da
dimensão sócio-econômica..
Na esfera privada, como vimos anteriormente, a presença marcante da ideologia
relacional entre os cônjuges, que se exprime na evidente assimetria de poder: os homens sobre
as mulheres e os mais velhos sobre os mais novos. Apontamos também, no capítulo anterior,
que não uma homogeneidade entre famílias populares nas quais estudamos. Ou seja, há
situações entre o casal em que é visível o poder da mulher, já em outras, a iniqüidade de poder
é incipiente, não obstante, a maioria - dos entrevistados - externa uma tendência em que o
poder do homem é mais expressivo.
A partir das evidências expressas no trabalho de campo e com base em reflexões
efetuadas por outros autores, afirmamos que existe um poder feminino na esfera privada,
exprimindo-se em determinadas situações, sejam elas subjacentes ou não. Nossa reflexão será
pautada a partir da seguinte colocação: o poder do homem é majoritário no âmbito privado,
entretanto, ele não é absoluto, isto é, não impera em todas as situações ocorridas no seio do
espaço privado, denotando que em certas questões e situações evidências em que o poder
feminino impera. Por isso, as
relações de poder sempre implicam a clivagem entre um lado que mais
obedece e outro que mais manda... Mas a relação, observada dialeticamente,
não é linear, em absoluto. De certa maneira, quem manda precisa de quem é
mandado, o que permite a este certa margem de manobra e, em algumas
circunstâncias, virar o jogo... Não há propriamente poder tranqüilo...
Ao lado da grande trama do poder, temos sua microfísica, indicando que
prefere agir no pequeno, nas gretas, nas margens, para ser tanto menos
percebido e mais efetivo (DEMO, 2002, pp. 29-30-31)
Analisar o poder feminino, na esfera privada, inevitavelmente nos remete à questão da
emancipação da mulher. Em nossa sociedade, como sabemos, são inúmeros e complexos os
fatores que vêm contribuindo para a referida autonomia feminina, que ainda não é plena e
tampouco é homogênea, ficando à mercê da classe social, do nível de instrução, da atividade
profissional, dos valores culturais, entre outros. Destarte, também é notória a disseminação de
uma nova mentalidade que valoriza a igualdade entre os gêneros.
Em linhas gerais, o processo de construção da emancipação feminina, que ainda está
em curso, tem suas raízes a partir de três grandes fatores. Primeiro, a queda da fecundidade.
De acordo com Faria & Potter (2002), a partir da década de 1960, uma generalizada queda
da fecundidade no Brasil, derivada por uma multiplicidade de fatores. Nesse sentido, temos
uma expressiva utilização de procedimentos contraceptivos, desde do uso da pílula
anticoncepcional até a esterilização da mulher. Além disso, também mudanças no estilo de
vida que estão ligadas às transformações estruturais, como: a urbanização, industrialização,
aumento do trabalho assalariado, aumento da força de trabalho feminino, entre outros. Os
autores citados procuram enfatizar três cruciais elementos como condicionantes da redução da
natalidade. Em suas palavras:
Nossa ênfase recai entre outros importantes processos institucionais que
merecem especial atenção no caso brasileiro: instituições médicas, de
previdência social e mídia de massa (em particular a televisão). A expansão
da cobertura médica e a conseqüente medicalização do comportamento
sexual e reprodutivo; o aumento dos serviços públicos de previdência social
e a resultante no valor da prole como suporte para a velhice; e a crescente
exposição à mídia convergiram para institucionalizar e difundir novos
padrões de valores e regras de comportamento que levaram a uma mudança
generalizada no tamanho da famílias e uma crescente demanda por
regulação de fecundidade (FARIA & POTTER, 2002, p.22)
À medida que as famílias reduzem o número de filhos, a mulher consegue
compatibilizar as atividades ditas “femininas” - atividades domésticas e criação dos filhos -
com o trabalho extradoméstico
1
. Em outras palavras, antes da redução de fecundidade, o
tempo disponível para a mulher era ocupado, quase totalmente, na criação de inúmeros filhos,
uma vez que esta atividade era algo exclusivo das mulheres.
Segundo, uma mudança no aparato produtivo com o processo de urbanização–
industrialização, no instante em que “o desenvolvimento industrial e tecnológico e as
economias estatais propiciaram a criação de novos empregos no setor terciário que, aos
poucos, foram sendo considerados adequados às mulheres” (PINSK & PEDRO, 2003, p. 285).
Desse modo, a própria sociedade viabiliza o trabalho feminino (trabalho não doméstico) ao
criar determinadas atividades, que serão realizadas pelas mulheres. O trabalho da mulher
também está relacionado - principalmente nas classes populares - com as dificuldades de
1
A expressão “extradoméstico” refere-se ao trabalho que é realizado fora de casa. Contudo, paradoxalmente, o
fato de muitas mulheres trabalharem como empregadas domésticas, elas continuam executando as atividades
domésticas na casa de suas patroas.
sobrevivência material; seja pelo empobrecimento e o desemprego; seja pela responsabilidade
assumida pela mulher, quando separação ou divórcio, para criar sozinhas os filhos (isso
tem a ver com a ética de provedor, que faz parte da ideologia relacional); seja pelo anseio de
ter acesso ao consumo de produtos e serviços criados pela nossa sociedade capitalista, que
está relacionado com os valores do individualismo.
Em terceiro, a cultura de massas vem contribuindo para a emancipação feminina
através, entre outras coisas, da difusão de estilos de vida e de comportamentos que priorizam
os valores burgueses, quais sejam, o individualismo e uma maior igualdade entre as relações
de gênero. Ademais, “ao expor publicamente o que antes eram as esferas privadas de
autoridade masculina, a televisão destrói as hierarquias tradicionais”. (FARIA & POTTER,
2002, p. 31). Como sabemos, nossa sociedade vem sofrendo uma enorme influência dos
conteúdos veiculados pela televisão, principalmente pelas telenovelas que alcançam elevados
índices de audiência. Ocorre que, determinadas telenovelas contribuem, em alguns aspectos,
para modificar o papel da mulher em nossa sociedade, haja vista que propagam a
“idealização da autonomia feminina...”. ( FARIA & POTTER, 2002, p. 31). Nesta
perspectiva,
destacamos que a televisão (em especial as telenovelas) contém muito
material relevante quanto a estilos de vida, valores familiares, sexualidade e
comportamento reprodutivo e, mesmo que não intencionalmente, influencia
valores e atitudes de diversas maneiras
Num período de apenas duas a três décadas, a exposição à televisão passou
de praticamente zero para alcançar a quase totalidade das áreas urbanas...
(FARIA & POTTER, 2002, p.22 -23).
Podemos assegurar, que as relações entre os cônjuges, exibidas nas telenovelas, têm
uma tendência a acentuar os valores do individualismo, que contemplam uma maior
igualdade e autonomia, seja pelo homem, seja pela mulher. Paradoxalmente, sabemos que por
intermédio da televisão se difundem também, inúmeros preconceitos e estereótipos
falsificadores, inclusive contra a mulher. Enfim, na televisão - ainda que haja elementos que
obstaculizem a emancipação feminina - àqueles que são bastante positivos e, por
conseguinte, muito significativos nesse aspecto.
Antes de continuarmos convém, a priori, efetuarmos duas cruciais ressalvas. Em
primeiro lugar, segundo Singer (1980), as mulheres das classes populares sempre
desempenharam atividades além do labor doméstico, como agricultoras, operárias ou artesãs.
Portanto, são as mulheres das classes médias que ultimamente vêm procurando trabalhar em
atividades extradomésticas, porque “na classe média e alta a grande maioria das mulheres
estava restrita ao desempenho das funções essencialmente femininas de esposa e mãe “
(SINGER, 1980, p 111). Em segundo lugar, a emancipação feminina deve ser relativizada
quando se faz menção às mulheres das classes populares, visto que
o feminismo moderno encontra na situação da mulher que se emancipou,
graças às conquistas feminista, de geração anteriores, a sua motivação
original. É obvio, no entanto, que esta situação ainda é privilegiada em
comparação com as mulheres das classes trabalhadoras: a operária,
sobretudo casada e com filhos, a empregada doméstica, a dona de casa
pobre, sem falar das mulheres abandonadas pelo marido, das viúvas, das
prostitutas etc. ( SINGER, 1980, p. 119).
Enfim, a condição da mulher deve ser analisada, fundamentalmente, à luz da classe
social da qual faz parte, visto que a chamada emancipação feminina não é algo homogêneo.
Isto posto, analisaremos (baseando-nos essencialmente nos depoimentos coletados) as
relações de poder no espaço privado, bem como outras questões que o envolvem e tem a ver,
direta ou indiretamente, com a cidadania. .
Um pergunta crucial se impõe de antemão: o trabalho feminino, atividade
extradoméstica, tem algum impacto sobre as relações de poder no seio privado (espaço da
casa)? Como vimos, todas as mulheres entrevistadas no presente estudo estão empregadas.
Quase todas são empregadas domésticas, exceto uma entrevistada, cujo nome é Nara e que
trabalha como operária. O fato de estas mulheres trabalharem fora de casa não muda em nada
a sua relação com o esposo? Ou seja, o trabalho feminino não proporciona práticas
democráticas igualitárias, e, por conseguinte, em sintonia com a cidadania? Como sabemos,
o acesso das mulheres ao mercado de trabalho e a atividade remunerada fora
do lar garantiram-lhes uma recuperação da defasagem social... o acesso ao
salário no setor terciário e o exercício de uma atividade que se desenrola
fora do lar aumentaram consideravelmente sua autonomia (ZAMBERLAM,
2001, p.71)
Todavia, como dissemos anteriormente, não podemos prescindir qual a classe social
determinada mulher pertence, isto porque “o trabalho da mulher pobre não constitui uma
situação nova que forçosamente abale os fundamentos patriarcais da família pobre, porque
não desestrutura o lugar da autoridade do homem, que pode se manter” (SARTI, 2003, p.99).
Nesse sentido, como vimos, uma tendência para que o homem venha a exercer o poder de
mando. Contudo, inúmeros depoimentos expressando que o poder do homem não é
absoluto em função da mulher estar empregada. Vejamos as respostas de alguns sujeitos da
pesquisa à pergunta “Você acha que a sua mulher sente mais “direito” de mandar trabalhando
fora ?”
Nem toca no assunto, ela fala quem trabalha sou eu, ‘tocá’ nesse assunto a
casa caí, ela diz’quem manda sou eu, você não dá palpite!’ (Ademir)
A mulher é o seguinte, a mulher quando ela não trabalhando ela é uma
coisa, quando ela acha que é dona do próprio nariz, que tá trabalhando e não
depende do homem, ela já se transforma (Marcos)
Sente-se no direito de mandar, por estar trabalhando? Não é de eu mandar,
mas qualquer coisa que eu falo acha que é por que tô trabalhando... (Rose)
Às vezes cria um pouquinho de asa né... (risos), é “viche !” autoritária,
porque ainda mais quando o homem se sente às vezes deprimido..., por que
às vezes ele lutando mais não consegue, de repente ela sente... “eu ‘tô’
ajudando, eu tenho direito de falar !” (Afonso)
Inegavelmente que o trabalho feminino contribui para reduzir a desigualdade entre
homem e mulher. Evidentemente que isto não pode ser homogeneizado, à medida que em
cada família existem determinadas especificidades. Sob esta ótica, por exemplo, o
entrevistado Felício, ao ser submetido à pergunta: “Você acha que a sua mulher sente mais
“direito” de mandar trabalhando fora?” , respondeu: “Não, direito é igual!”. Existe uma
ambivalência nesta resposta, isto é, de um lado, diz que não o poder da mulher, de outro,
esta idéia é relativizada, a partir do momento em que afirma existir uma igualdade entre
ambos. Já o entrevistado Dario, ao responder a pergunta citada, diz o seguinte: “Tem, existe
assim... se o homem for vagabundo e a mulher ‘trabalhadeira’, a mulher vai mandar, vai
dominar”. Notamos que, segundo este sujeito da pesquisa, o poder da mulher somente
existirá caso o homem não esteja cumprindo o seu papel de provedor, o que, evidentemente,
não é o seu caso. Outro exemplo vem da entrevistada Cristina que, como vimos, externa um
evidente poder de mando não apenas pelo fato de trabalhar, mas também pelo seu
comportamento autoritário. Enfim, procuramos demonstrar com tais exemplos que não
uma homogeneidade entre os cônjuges, quando a mulher está trabalhando. Entretanto, existe a
seguinte tendência: quando a mulher trabalha fora de casa ela consegue estabelecer uma
igualdade com o seu marido, no plano do diálogo, em questões que envolvem a sobrevivência
material ou em algo que esteja ligado à esfera econômica. Em outras palavras, o trabalho
extradoméstico não aumenta o poder da mulher para com o marido, porém, faz com que
estabeleça uma postura dialógica mais acentuada em questões que estão relacionadas à
dimensão econômica. Destarte, os depoimentos expressam exatamente isso. O entrevistado
Felício diz, como vimos acima, que uma igualdade entre ambos a partir do trabalho da sua
mulher. Rose é mais direta no sentido de afirmar: Não de eu mandar (grifo nosso), mas
qualquer coisa que eu falo acha que é por que trabalhando...”, isto é, ela nada impõe ao
marido, mas tem a possibilidade de discutir e opinar sobre assuntos ligados à dimensão
econômica; o entrevistado Afonso no seu depoimento reforça também esta idéia, quando faz o
seguinte comentário de sua mulher, segundo este ela diz: “eu ‘tô’ ajudando, eu tenho direito
de falar! (grifo nosso)”.
Cabe refletir sobre uma outra questão levantada acima: a igualdade entre os cônjuges,
que é derivada do fato de estar empregada, está ligada àquelas situações em que envolvem
direta ou indiretamente os recursos financeiros, ou seja, estão relacionados à sobrevivência
material ou à aquisição de algum bem ou serviço. Assim, a manutenção das necessidades
básicas da família, como alimentação, vestuário, aluguel, transporte, lazer, etc. ou à aquisição
de algum móvel, eletrodoméstico etc. não são feitas à revelia da mulher, pois, quando ela
participa com o seu rendimento que em três famílias analisadas é a única fonte de renda
igualmente decide, em comum acordo com o seu marido, o que é prioritário ou necessário.
Portanto, se é evidente a existência de uma igualdade no que concerne às questões atreladas à
esfera material, em inúmeras outras questões prevalece, como vimos no capítulo anterior,
uma crassa iniqüidade, que não muda com o trabalho feminino realizado fora de casa: a
mulher se responsabiliza pela casa e pelo cuidado com os filhos; o marido impõe à sua esposa
o modo se vestir e tem privilégios nos finais de semana; o homem tem mais liberdade do que
a mulher, entre outros.
uma outra vantagem para a mulher que está empregada, que é a sua relativa
independência, em relação ao marido, no que concerne à aquisição de certos produtos e
serviços, que almeja consumir. Diz Sarti:
O trabalho pode trazer também à mulher a satisfação de ter algum
dinheirinho seu, parco que seja, afirmando em algum nível a sua
individualidade, mesmo que seus rendimentos não se destinem para si
mesma, uma vez que esta individualidade não deixa de ser referida à família
(SARTI, 2003,p.100)
Sob este aspecto, depoimentos que elucidam esta autonomia derivada do
rendimento que aufere a partir do trabalho efetuado fora de casa. Este trabalho contribui para
a mulher mudar e fazer o que quiser na sua casa, bem como adquirir algo paro o seu filho.
Obviamente que os parcos recursos aos quais possuem irão limitar muito tal autonomia.
Às vezes a gente trabalha não porque quer, mas porque precisa... a única
vantagem é que você trabalha e ganha dinheiro... pagar uma conta, comprar
o que precisa... (Valma)
Em tudo é bom, eu não dependo dele. Precisar, eu vou lá e compro. (Nara)
Um ajuda o outro... sem pedindo dinheiro para marido, eu acho chato,
não dá né, a mulher sempre que ter alguma coisinha a mais (Sandra)
Pelo que colocamos, é possível afirmar que o trabalho extradoméstico da mulher
contribui para a existência de cidadania? Em primeiro lugar, não uma igualdade entre os
cônjuges, mesmo a mulher trabalhando e sendo a única provedora. Exceto a figura de
Cristina, que detém grande poder, continua marcante a hierarquia e predominância do poder
masculino. Realmente, é perceptível que em questões que envolvem os recursos, a mulher
acaba recuperando um pouco tal igualdade. um discurso muito proferido entre todos os
casais acerca da importância e da necessidade da igualdade entre ambos. Entretanto, quando
ela existe efetivamente, ou seja, quando a mulher se sente no direito de expressar e interferir
nas decisões de igual para igual - em função do seu trabalho-, os homens toleram, mas no
fundo não aceitam. Os depoimentos expressam este desconforto. Quando o entrevistado
Afonso diz “Às vezes cria um pouquinho de asa”, revela que tal interferência feminina não é
“normal”, ou seja, o correto seria ele impor assimetricamente algo. Ademais, esta igualdade
parcial (ligada às questões do orçamento) conquistada pela mulher - a partir do seu trabalho
- é interpretada como um fracasso do homem, que deveria manter sozinho a casa com o seu
trabalho, deixando a mulher em casa cuidando dos filhos e do serviço doméstico. Desta
forma, a humilhação e o sentimento de fracasso são bem marcantes naqueles homens que
estão desempregados, mas estão presentes em todos eles e, outrossim, nas suas esposas, isso
porque, segundo seus depoimentos, se pudessem, suas esposas somente trabalhavam em suas
próprias casas. Esta visão hierárquica da divisão do trabalho: o homem provedor e mulher
dona de casa, é bastante motivada também pelo eminente sofrimento de suas esposas, que se
sobrecarregam em atividades de casa e são oprimidas e exploradas no seu trabalho. Em suas
palavras:
Tem mulher que quer trabalhar para ajudar o marido, mas eu não digo que é
função dela. É certo é ela ser rainha do lar . [Sobre o trabalho de sua esposa]
Do jeito que eu vejo, é um sofrimento danado ! (Ademir)
[Qual a função do marido e da esposa?] Eu acho assim... geralmente os
homens falam que isso não é para fazer. Em termos assim dentro de casa... é
a mulher. Nas responsabilidades é o homem (Cristina)
[Qual a função do marido e da esposa?] É cuidar da esposa, da família, né...
a esposa é cuidar do lar (Gildo)
Nesse sentido, diz Sarti (2003):
Se os direitos são iguais e a mulher hoje tem mais poder, isto é vivido de
forma ambivalente, não necessariamente como uma reversão de papéis
familiares, mas como uma reafirmação do fracasso masculino, diante das
dificuldades do homem de exercer um papel no qual estão depositadas as
expectativas familiares, seja por razões que lhe escapam, falta de trabalho,
ou por razões que lhes diz respeito. (SARTI, 2003, p.71)
Em segundo lugar, a atividade extradoméstica, realizada pelas mulheres, não lhes
garante cidadania por diversas razões, como: desgaste físico e psicológico, humilhação pelas
patroas, discriminação, preconceitos, exploração, entre outros. Estes elementos negadores de
cidadania, ligados ao trabalho, serão detalhados e discutidos no próximo capítulo deste
estudo.
Estamos argüindo, neste capítulo, que o poder masculino, no espaço privado, não é
absoluto. Desta forma, existem atribuições inerentes ao papel de mãe e esposa que, ao serem
realizadas, implicam na subordinação do esposo, em certas situações. Se ao homem é
essencial a obrigação de ser o provedor, à mulher cabe fundamentalmente o dever de cuidar
dos filhos e do marido. A mulher ao efetuar tais cuidados, é perceptível que, em certas
situações, consiga um poder sobre o seu marido e, é claro, sobre os seus filhos. É importante
fazermos duas ressalvas antes de argumentarmos sobre a afirmação acima. Primeiramente, a
prática de cuidar do outro é tida, em nossa sociedade, como essencialmente feminina, isto por
razões sócio-historicamente construídas. Todavia, suas explicações extrapolam os objetivos
do presente estudo. Por isso, não iremos abordá-las. Em segundo plano, quando a mulher se
incumbe de cuidar de membros da família, como os doentes e os mais velhos (ou até mesmo
os seus filhos) revela também uma ausência e precariedade de serviços públicos que deveriam
ser oferecidos pelo Estado, visto que “a importância da família para os pobres está relacionada
às características de nossas instituições públicas, incapazes de substituir as funções privadas
da família” (SARTI, 2003, p. 52). Isto posto, vamos abordar a questão do poder da mulher
pela via dos cuidados aos membros da família.
Como vimos, em quase todos os casais entrevistados, os filhos, por serem pequenos,
estão mais vinculados às suas mães, em que exercem-lhes grande poder. Diz Woortmann
(1987):
“família” é um conceito mulher-centrado, e que o mesmo pode ser
distinguido do grupo doméstico. Este último poderá ser chefiado pelo
homem, caso se trate de um “homem de recursos”, mas será sempre
gerenciado pela mulher, e é ela quem toma as decisões. Entre estas, aquelas
relacionadas aos filhos são as mais importantes (grifo nosso)
principalmente sobre o número de filhos e sobre sua educação
(WOORTMANN, 1987, p.100)
O poder que a mãe tem sobre o filho ecoa, em algumas circunstâncias, outrossim ao
marido. É perceptível, em alguns momentos, a presença marcante do poder feminino exercido
sobre o esposo em prol dos filhos. algumas evidências sobre tal afirmação. Na segunda
vez em que fomos entrevistar Dario e Sandra, tivemos uma situação inusitada em relação ao
poder desta entrevistada que, como vimos, expressou uma eminente submissão ao seu esposo.
Ao chegarmos à residência dos entrevistados na segunda visita, encontramos Sandra, em
frente à sua casa conversando com outras mulheres. Perguntamos a ela sobre o seu esposo
Dario. Disse-nos que havia chegado do seu trabalho (era um sábado à tarde), porém mandou-
lhe ir comprar um determinado remédio para a filha que não estava se sentindo muito bem.
Um outro exemplo vem da entrevistada Nara. Segundo esta - ainda que seu esposo seja
autoritário, como vimos – tudo que ela decidir fazer que entende ser o melhor para a filha, seu
esposo aceita, mesmo que às vezes seja à contra-gosto. Nesse sentido, um fato marcante
descreveremos à seguir. De acordo com Nara, um dia antes de nos dar este depoimento, o seu
esposo Felício estava preparado para levar a filha de ambos para efetuar um passeio na casa
de sua mãe, sogra de Nara. Nara vetou tal passeio, mesmo com a ira de Felício. Isto expressa
que ela exerceu o seu poder de mando sobre o seu marido Felício a partir da filha. Nas suas
palavras:
O seu poder é maior quando envolve a filha de vocês ? “Aí, o que eu falar
ele faz (grifo nosso), porque ele acha que é o melhor, porque ele acha que
eu sei mais que ele [Dê um exemplo ?] Tipo assim... na mãe dele, porque
eu não vou prá lá... Se eu falar que ele não vai levar ela, ela não vai [a filha
de ambos], pode brigar pode quebrar o pau, mais ele não leva.... não deixo,
quando eu falar que não vai, não vai. (grifo nosso) [Como ele reage?]
Ele fica quieto, emburrado, vai para lá para cá... (Nara)
O poder feminino não está apenas vinculado ao cuidado da mulher com os seus filhos,
mas se expressa em algumas situações em que o cuidado é efetuado com os seus maridos. Ao
entrevistarmos a Rose, falou-nos algo significativo sobre o seu poder sob o marido, Gildo, a
partir de certos cuidados, que possam lhes assegurar sua saúde. Desta forma, segundo a citada
entrevistada, o seu esposo se envolveu em uma briga vindo a ser atingido por um golpe de
faca. No dia seguinte, Gildo estava se preparando para ir trabalhar (nesta época estava
trabalhando no açougue), contudo Rose não permitiu, alegando que deveria repousar mais uns
dois dias. Notamos, que - afora o trágico fato de ter ocorrido tal conflito houve um
evidente poder de Rose sob o seu marido. Em suas palavras:
[O que a deixa nervosa?] Fazer alguma coisa que eu não gosto... Se eu pedir
para fazer alguma coisa e fizer mal feito. [O seu marido lhe deixou nervosa?
Conte algo] “Ah, o dia que ele levou a facada... eu fiquei nervosa, depois...
de manhã cedo ele queria trabalhar... ah, eu falei... você não vai o, ele
ficou ‘brabo’, mais eu num deixei ele ir não (Rose)
Portanto, naquelas situações do cotidiano ligadas ao cuidado dos seus filhos e de seus
maridos, é perceptível a presença marcante o poder feminino, com vistas à garantir o bem
estar dos membros da família. Em outras palavras, uma das obrigações da mulher (que está
em sintonia com a ideologia relacional) é cuidar dos membros da família, caso isto implique
na efetivação do seu poder. Certamente ela vai fazê-lo, mesmo que a revelia do esposo.
um outro caminho para pensarmos sobre o poder feminino no espaço privado: a
ligação majoritária da família nuclear (cônjuges e filhos) com a família de origem da esposa /
mãe. Num estudo de Woortmann (1987) sobre famílias populares, este autor parte da
premissa que “a adição de parentes da mulher à família conjugal é quatro vezes maior que a
adição de parentes do marido... o princípio geral do parentesco deve ser qualificado por uma
‘ênfase feminina’ ” (WOORTMANN, 1987, p.64)
Segundo os sujeitos da pesquisa, uma explícita tendência dos casais estarem mais
vinculados à família de origem da mulher e não a do homem, denotando a existência do poder
da mulher em âmbito privado. Destarte, mesmo que o esposo tenha boa relação com os
membros de sua família de origem (pais, irmãos ou avós) ele se submete a freqüentar e
conviver mais intensamente com os membros da família da esposa. Nesse sentido, quase
todos os entrevistados nos disseram que a sua família nuclear tem uma relação mais estreita
entre a família de origem da esposa.
Apenas o entrevistado Marcos e sua mulher Valma nos contaram que atualmente não
relação com nenhuma família de origem (nem de Marcos, nem de Valma) em função de
ambas morarem em outra cidade. Entretanto, quando moravam na cidade onde estão os seus
familiares (seja os de Marcos, seja os de Valma), a relação mais estreita ocorria com a família
de Valma.
A família de Afonso e Bruna, por razões comentadas, deixou na casa da mãe de Bruna
os outros dois filhos. Isto pode expressar, sob certas ressalvas, a influência maior dela.
Ademais, confirmaram que também há uma relação mais próxima com a família de origem da
esposa. Com relação à família de Cristina e Ademir, outrossim há uma proximidade à família
da esposa Cristina. Um fato elucida tal vínculo: quando se casaram (afora a evidente pobreza)
foram morar na casa de sua avó. A entrevistada Nara, a esposa de Felício, disse-nos que não
se bem com a família de seu esposo, e sua filha fica mais na casa de sua mãe. Além disso,
segundo Nara, a casa na qual moram é de propriedade de sua mãe. Dario e Sandra, falaram
que apesar dos parentes de ambos morarem longe, freqüentam festas e visitam mais a família
de Sandra. Rose, mulher de Gildo, assegurou-nos que a sua mãe visitava-os freqüentemente e
vice – versa. Enfim, temos várias evidencias de que uma tendência da família nuclear estar
mais vinculada à família de origem da mulher, o que demonstra uma interferência da mulher,
isto é, o poder feminino em certas questões da esfera privada.
É possível vislumbrar a existência de cidadania, no âmbito privado, a partir do poder
feminino? Como sabemos, as relações de poder, em sintonia com a cidadania, são àquelas em
que uma descentralização das decisões a partir do uso da palavra, ou seja, a prática da
democracia se confunde com a cidadania. Portanto, faz se necessário o uso irrestrito do
diálogo entre iguais para a resolução de algum eventual conflito e, por conseguinte, para a
tomada de alguma decisão. Desta forma, se por um lado, o poder do homem no espaço
privado - é unilateral em certos assuntos, a mulher repete tal unilateralidade à medida que se
sente com mais direitos que ele em determinadas questões.
Portanto, existe um poder majoritário do homem, que não é absoluto nem irrestrito.
Ou seja, tal poder é refutado pela mulher, que concebe certas situações e assuntos como de
sua exclusividade. Assim, a ponderação, mediada pelo acordo mútuo, parece-nos que é algo
esporádico, uma vez que a presença marcante no espaço privado é a da iniqïdade, seja do
homem para a mulher e vice-versa (em menor proporção que venha favorecer as mulheres),
seja dos pais para os filhos.
Se, como dissemos anteriormente, com o trabalho feminino, realizado fora de casa, o
poder deixa de ser um monopólio absoluto do homem, isto igualmente ocorre com as
atividades domésticas, que deixam de ser um monopólio das mulheres. Diante disto, quando
a mulher está empregada, não muito tempo para que faça as referidas atividades, o que
obriga ao homem também realizar certos serviços, bem como cuidar das crianças. É verdade,
como vimos, o homem não se sente responsável pela casa da mesma forma que a mulher, isto
é, ele apenas ajuda a mulher, fazendo tais atividades esporadicamente, como ficou explícito
no depoimento de alguns entrevistados. Na execução de tais atividades, outrossim, não
homogeneidade. Desse modo, os entrevistados Marcos e Dario realizam tais atividades
esporadicamente; enquanto Felício jamais as efetua. Ademir, Gildo e Afonso executam as
atividades domésticas – entre outros motivos - por estarem desempregados.
Portanto, a desigualdade de papéis e a hierarquia são apenas reduzidas, ou seja, a
ideologia relacional é visivelmente marcante entre os casais entrevistados. Segundo a
ideologia relacional, como vimos, uma disparidade, entre o grupo familiar, que se
materializa na execução de papéis sociais. Porém, em função da necessidade da mulher
trabalhar fora, não há como manter a rigor todos os atributos de tal divisão de papéis. Nesse
sentido, a ideologia relacional é algo ideal para as classes populares, entretanto a realidade em
que vivem, em certos aspectos, obstaculiza a total execução de tal ideologia. Nas palavras de
alguns sujeitos da pesquisa:
Qual a função do marido? Teria que ser assim, né, que hoje tá igual, se os
dois não trabalhar não vai, mais eu acho é o que o homem tinha que ter
assim... um serviço que ‘mantesse’ a família e que a mulher não
precisasse trabalhar tanto (Rose)
Qual a função da mulher? Ajudar o marido. Caso ele não trabalha e não
pode sustentar a casa, ela deve ajudar (Cristina )
Se pudesse deixaria de trabalhar fora? Com certeza. Se eu pudesse, eu
ficaria em casa cuidando da minha filha. Trabalho porque precisa (Nara)
Qual a função do marido? Trabalho né, não é mesmo... a mulher ficar em
casa cuidando dos filhos... [Se pudesse trabalharia ? ] Ah, eu não... uma
também que eu sou... ‘vichê’... com problema... eu não vejo a hora de
Deus dá um jeito nisso... por que nossa (Bruna)
Ocorre que, o trabalho da mulher é tido como algo inusitado, isto é, a situação ideal,
para os entrevistados, é que a mulher fique em casa cuidando dos filhos e efetuando as
atividades domésticas, por isso estaria em perfeita sintonia com a ideologia relacional, ou
seja, o homem provedor e a mulher dona de casa. Desta forma, as mulheres almejam
trabalhar somente em casa em função do real sacrifício que vivem: são exploradas,
humilhadas e oprimidas (voltaremos a abordar a questão do trabalho) pelas suas patroas e
pelo fato de não conseguirem cuidar dos seus filhos como gostariam, ou seja, segundo a
entrevistada Rose o seu trabalho estorva cuidar bem dos seus filhos:
Os meus filhos “fica” muito jogado, sempre ‘tô’ ausente, ausente, tem
festinha eu nunca posso ir, porque ‘tô’ trabalhando (Rose)
Ao discorrermos sobre à ideologia relacional afirmamos que a dimensão afetiva é um
atributo inerente à referida ideologia. Já vimos que a esfera afetiva pode reforçar uma
disparidade entre os cônjuges. Apontamos, nesse sentido, que o ciúme dos maridos limita a
liberdade das suas esposas. Não obstante, é possível que a esfera afetiva seja utilizada de um
modo tal, que possa contribuir para se reduzir a autoridade dos homens no seio da família.
Nesta ótica, Torres (2000) diz que Bourdieu aventa a possibilidade de haver relações mais
simétricas, entre os cônjuges, a partir do momento em que a esfera afetiva se faz presente.
Em suas palavras:
Ao abordar a problemática da dominação masculina, Bourdieu (1998)
interroga-se ... sobre a possibilidade de, no quadro da relação homem /
mulher, o amor funcionar como elemento de neutralização dessa
dominação. É possível que o amor tenha esse poder de suspender a
dominação masculina... A igualdade entre pares, no contexto da relação
amorosa, constitui assim peça fundamental para que o milagre que suspende
a dominação se concretize: O sujeito amoroso pode obter o
reconhecimento de um outro sujeito, mas que abdique, como ele próprio, da
intenção de dominar ( TORRES, 2000, p. 152)
Analisando alguns depoimentos coletados, notamos que a esfera afetiva - presente
entre os cônjuges - é também um elemento que contribui para reduzir a assimetria existente
entre o casal e reforça o poder da mãe sobre o filho. Em uma das visitas ao entrevistado
Dario, este nos confidenciou algo bastante significativo acerca da esfera afetiva relacionada
ao poder feminino. Como vimos, Dario exprimiu em várias situações um eminente poder
sobre a sua esposa Sandra. Entretanto, contou-nos que Sandra o obrigou a se mudar da cidade
de Euclides da Cunha para Presidente Prudente. Segundo Dario, quando moravam em
Euclides da Cunha eles viviam bem. Estavam bem empregados; possuíam vários amigos;
sentiam-se bem em morar em cidade pequena em função de conhecerem quase todos os
moradores etc. Ocorre que, Dario acabou tendo uma relação extra-conjugal com uma colega
de trabalho, vindo à engravidá-la. Por isso, ele foi coagido a contar para a sua esposa Sandra.
Esta, em meio à ira, ciúmes e profunda decepção, exigiu que mudassem da referida cidade.
Dario imensamente arrependido e com profundo sentimento de culpa não contra argumentou
diante da exigência de Sandra. Em suas palavras:
Eu fui trabalhar no clube como segurança. Teve uma desencontro com uma
mulher lá, ela perguntou se eu era casado: sou casado e tenho filho. Ela
pegou e falou: ‘tá bom gostei do seu jeito. Aí, com uma semana ela correu
atrás. Até hoje eu não ‘coisei’ minha vida ‘memo’, por causa da esposa.
E não senti bem ao lado de uma pessoa... que foi traído... não merecia...
não deixei a ‘peteca’ cair... sustentei a palavra... errrei, errei, mais nada
(Dario) .
Um outro sujeito da pesquisa, Ademir, nos relatou que se submetia ao poder de mando
de sua mulher em função - entre outros elementos já comentados - de evitar conflitos maiores
por ela, Cristina, ficar “nervosa”, ou seja, para evitar o seu “descontrole” resignava-se quase
totalmente. Nas palavras de Ademir sobre a autoridade de Cristina em casa:
Eu tenho que aceitar, ela é uma pessoa que não pode passar ‘nervoso’,
mesmo não querendo eu tenho que aceitar (Ademir)
Além disso, Ademir nos confidenciou que, pelo carinho a seu filho, ele continuava
tolerar os insultos de sua esposa Cristina. Neste casal, como vimos anteriormente, a privação
material é tal aguda, que pôde construir um clima de hostilidade entre os cônjuges, que vem
sendo tolerada por Ademir, principalmente, pelo fato de sentir-se sem muito poder por estar
desempregado. Todavia, sua submissão é reforçada em função de não querer o pior para o
seu filho, ou seja, aquilo que prejudica Cristina afeta direta ou indiretamente o seu filho.
Um exemplo muito parecido com o que citamos acima é o da entrevistada Nara. Como
vimos, ela diz em vários momentos que se sente com mais poder com relação à filha do que o
seu marido: “Eu acho assim... a filha é minha. Eu mando mais nela do que ele. Eu tenho mais
poder nela do que ele. Eu cuido mais... (Nara). Ora, a afetividade dela à sua filha lhe garante
um poder
Pelo que relatamos acima, a dimensão afetiva estaria predominantemente a favor do
poder feminino. Entretanto, é possível que haja - a partir da afetividade - também uma
igualdade entre os cônjuges, bem como o poder a favor do homem. Desse modo, a esfera
afetiva pode estar presente tanto na igualdade entre os cônjuges quanto na desigualdade, seja
em benefício da mulher, seja em benefício do homem. Em outras palavras, depende das
pessoas envolvidas, bem como as amplas e diferentes situações. Entretanto, partindo dos
depoimentos, das nossas observações, das reflexões consultadas sobre as classes populares e
pela marcante ideologia relacional é bem possível que impere, majoritariamente, uma
assimetria entre os cônjuges, favorecendo um deles. Esta afirmação é reforçada pela reflexão
de Gikovate (1989), que apresentaremos a seguir.
Gikovate (1989) elabora uma inusitada e provocante reflexão sobre as relações
assimétricas entre homens e mulheres. Argumentamos, em vários momentos, a existência do
poder majoritário no espaço privado - do homem sobre a mulher. Todavia, segundo
Gikovate (1989), o homem se sente inferior à mulher na esfera sentimental e,
fundamentalmente, na dimensão sexual, ou seja, “nos sentimos inferiores tanto do ponto de
vista sentimental como principalmente no plano sexual” (GIKOVATE, 1989, p.299). Em
outras palavras, ele deseja mais intensamente a mulher do que ela o deseja. Esta disparidade
afetivo-sexual, entre homens e mulheres tem, em linhas gerais, três conseqüências de acordo
com o autor citado. Em primeiro lugar, o homem se motiva para conquistar tudo aquilo que é
valorizado pela sociedade, visando chamar a atenção das mulheres o que compensaria a sua
desigualdade na esfera afetivo-sexual. Assim, “aumenta brutalmente a exigência dos homens
em relação a si mesmos, de modo a que eles tenham que tratar de se aprimorar o mais possível
para terem maior chance de acesso às mulheres...” (GIKOVATE, 1982, p.58). Em segundo
lugar, objetivando compensar a referida disparidade afetivo-sexual, o homem procura
construir idéias e valores que exaltam a superioridade masculina (machismo), quando, na
verdade, o homem se sente inferiorizado sob a ótica afetivo-sexual. Em terceiro e último
lugar, a mulher ao se conscientizar dessa crassa dependência do homem em relação a ela,
passa a dominá-lo e, por conseguinte, a impor os seus desejos, mesmo que a revelia do
homem. Nas palavras de Gikovate (1989):
A dependência emocional dele é, pois, enorme... Os homens gostariam
mesmo é de ser desejados, de ser “passivos”. Na mente masculina,
“passivo” é sinônimo de “superior” e “ativo” de “inferior”. O homem tem
que fazer alguma coisa para ser interessante; a mulher já o é.
A inveja toma conta de seu cérebro diante da constatação inevitável: o
homem é inferior à mulher do ponto de vista sexual! Não mais como
sustentar, a não ser nas aparências, a tese da superioridade. Não existe
inveja do superior pelo inferior. Não é o superior que faz de tudo para
rebaixar o inferior. Não é o superior que tem que oprimir o inferior. Não é o
superior que tem que reservar para si as áreas de atividades mais
“importantes” e rentáveis e afastar o inferior destes setores a qualquer
preço; é o inferior tentando se armar de alguns privilégios com o intuito de
melhorar um pouco a sua condição. Não é o superior que tem que fazer
discursos e escrever livros e teses “provando” a sua superioridade; a
superioridade se afirma por si mesma. (GIKOVATE, 1989, pp.297-298)
Enfim, na esfera afetivo-sexual, existe uma iniqüidade entre homens e mulheres que
pode desembocar e influenciar as relações de poder no espaço privado.
6.2 A cidadania e a solidariedade
um outro caminho para refletirmos sobre as possibilidades de cidadania no
universo privado: pela solidariedade. Constatamos, anteriormente, a existência de inúmeras
dificuldades e privações materiais, as quais são vivenciadas pelos membros das famílias aqui
estudadas. Indubitavelmente que os citados problemas ligados à sobrevivência material negam
a existência de cidadania. Entretanto, a forma como as pessoas se organizam para viver, bem
como para superar tais dificuldades, expressa um valor imprescindível para a efetivação da
cidadania, qual seja a solidariedade. Este valor é crucial, visto que
A vida cotidiana tem dimensões políticas econômicas, mas também
estéticas, religiosas, morais e políticas. Todo esse elenco precisa ser
considerado quando se enfoca a formação do cidadão, aquele que precisa
aprender a difícil arte de viver no espaço público, não fazendo dele o lócus
da violência... Com-viver, então, demanda reciprocidade, solidariedade. É
um péssimo cidadão aquele que não consegue ser generoso ao ponto de
limitar, minimamente que seja, seus próprios interesses diante de interesse
coletivos. (FERREIRA, 1993, p.220)
No espaço privado uma gama de atributos para que a solidariedade entre as
pessoas efetivamente ocorrer. Sabemos que a ideologia relacional, marcante nas classes
populares, prioriza o grupo ao invés do indivíduo e ressalta a dimensão afetiva entre as
pessoas. Nesse sentido, a solidariedade se confunde com a ideologia relacional, à medida que
o sujeito almeja quase sempre efetuar algo em prol da família. Um exemplo é o sentido de
trabalho nas classes populares:
O trabalho é o instrumento que viabiliza a vida familiar. Trabalho para si
aparece, tanto para o homem quanto para a mulher, como uma atividade
sem razão se ser. O trabalho para ambos, é concebido como parte
complementar das atribuições familiares (SARTI, 2003, p. 95)
Além disso, por várias razões, o espaço privado é susceptível para a marcante
presença da solidariedade. Segundo Woortmann (1987), há um pujante condicionamento
cultural principalmente nas classes populares que acaba motivando o sujeito a enxergar a
solidariedade a algum membro da família como uma irrefutável obrigação moral, uma vez
que há “um princípio nos laços de ‘sangue’ (WOORTMANN, 1987, p.195). Ademais,
segundo o autor, existe uma reciprocidade quando há a solidariedade, isto é, “quando se presta
um favor, ganha-se um crédito a ser utilizado quando necessário” (WOORTMANN, 1987,
p.195). Ressalta, ainda, que é comum entre os parentes próximos haver uma constante
solicitação de favores sem que haja reciprocidade, porém, no ideário popular, “pais idosos
têm o direito de ‘descansar’ em cima de um filho ou filha pelo tempo que precisarem, pois
foram eles que criaram os filhos; estes estariam tão somente retrucando diferidamente a um
benefício recebido anteriormente” (WOORTMANN, 1987, p.196)
Da Matta (2004) procura afirmar que o espaço da casa, no Brasil, vem carregado
simbolicamente de atributos que exprimem a inerente presença de solidariedade. Desse modo,
as relações pessoais do espaço da casa contrastam com a impessoalidade característica da
rua, que, segundo tal autor, refere-se ao espaço público, onde o sujeito não tem
reconhecimento e é tratado com base na sua capacidade de compra e no que representa em
termos de posição social. Em suas palavras:
A casa congrega uma rede complexa e fascinante de símbolos que são parte
da cosmologia brasileira. Ela recorta um espaço amoroso onde a harmonia
deve reinar sobre a confusão, a competição e a desordem... O mundo
exterior ou “público”, medido pela competição e pelo anonimato, onde as
coisas o imediatamente trocadas por dinheiro, é substituído por favores
cujo retorno chega a longo prazo e sem cobranças...
Em casa somos marcados por um supremo reconhecimento pessoal. Uma
espécie de “supercidadania” (grifo nosso) que contrasta com a ausência
de reconhecimento que existe na rua (DA MATTA, 2004, pp.15-16)
Entretanto, a visão de Da Matta (2004) sobre a casa e a rua jamais pode ser
generalizada. Se fizermos menção à realidade sócio-econômica de inúmeras famílias
populares, teremos uma visão nada romântica acerca do espaço da casa, isto é, a possibilidade
de solidariedade em muitos lares é quase inexistente, haja vista que a presença constante de
conflitos (que tem a ver com as carências materiais) entre os membros da família, bem como
o enfrentamento de uma gama de dificuldades ligadas - direta ou indiretamente - à
sobrevivência material, confiscam a possibilidade do espaço da casa contemplar alguma
congruência entre os membros da família. Além disso, nem sempre o espaço da rua pode ser
considerado pior que o espaço da casa, porque aquelas pessoas que deixam a casa para
morarem na rua têm, evidentemente, motivos que justifiquem tal “opção”. Diz Espinheira
(2004):
As histórias de vida de crianças e adolescentes mostram casas que
internalizam a violência, a perversão e a crueldade, que abrigam famílias
terríveis, pais e mães impiedosos, filhos e filhas malditos. crianças e
adolescentes que se exilaram nas ruas, que romperam com a casa.... A rua
é cheia de gente por isso é segura.
As precárias condições de vida da maioria da população brasileira têm
motivado a desestruturação de grupos básicos, sobretudo da família, e
imposto um padrão de competição que supera a solidariedade (grifo nosso)
ou qualquer outra forma de humanismo...
A casa é, muitas vezes, um inferno. O lugar do desespero, da brutalidade, da
loucura cotidiana. A violência sexual, a bebedeira, desencanto, o desamor...
(ESPINHEIRA, 2004, p.25)
Ocorre que a solidariedade das classes populares está profundamente ligada à sua
eminente condição de privação material, fazendo com a ajuda mútua seja um procedimento
prático para enfrentarem as inúmeras dificuldades, que estão direta ou indiretamente ligadas à
sobrevivência material. nas classes mais abastadas, é possível operacionalizarem condutas
mais em sintonia com o individualismo, que obviamente podem ser realizadas em função dos
melhores recursos econômicos. Assim, à medida que os recursos são escassos e inexiste uma
atuação eficaz do poder público para oferecer determinados serviços a tal população, a ajuda
recíproca é uma das únicas saídas encontradas para se satisfazer alguma necessidade, seja da
esfera material, seja da esfera imaterial. Nesse sentido,
Não sei se é solidariedade o sentimento que predomina, creio, porém, que
ele está mais próximo do conhecimento da verdadeira dimensão da
carência, ou seja, esses sentimentos, quaisquer que sejam os seus nomes,
são frutos de uma experiência real de ajuda. É importante levar em conta a
prática da ajuda mútua para não cairmos na armadilha da solidariedade
abstrata que idealizamos ou negamos que as classes populares possuam.. É
nascida da experiência comum de necessidades vitais minimamente
supridas. Não é sentimental, mas dura como a vida que levam. (MELLO,
1997, p.54)
Também é crucial fazermos menção sobre o uso indevido e ideológico da
solidariedade pelo universo neoliberal. Como sabemos, grosso modo, a ideologia neoliberal
(como vimos na primeira parte deste estudo) preconiza, por um lado, a atuação dos agentes
econômicos livres da interferência do Estado, visando dinamizar a economia através da
concorrência. Por outro lado, a retirada do Estado - segundo a visão neoliberal também
deve ocorrer na área social: a sua atuação “passa a ser um espaço para a defesa e atenção dos
interesses dos segmentos mais empobrecidos da sociedade” (YAZBEK, 1998, p. 55), isto é,
não se tem uma perspectiva universalista dos direitos sociais. Ademais, sob a égide do
discurso neoliberal, procura-se eximir o Estado de suas responsabilidades sociais. Para tanto,
apela-se para a participação da sociedade civil, visando a resolução de problemas sociais,
utilizando-se da retórica da solidariedade. Diz Alencar (2004):
Na ausência de direitos sociais, é na família que os indivíduos tendem a
buscar recursos para lidar com as circunstâncias adversas na família, como
responsabilidade de seus membros. Na maioria das vezes, a
responsabilidade recai sobre as mulheres, tornando-as responsáveis pelo
cuidado dos filhos menores, dos idosos, doentes e deficientes,
sobrecarregando-a ainda mais, considerando-se que grande parte das
famílias são chefiadas por mulheres.
Assim, na atual conjuntura, em que mais do que nunca o Estado tende a se
desobrigar da reprodução social, persiste a tendência de transferir quase que
exclusivamente para a família responsabilidades que, em nome da
solidariedade, da descentralização ou parceria, a sobrecarregam
(ALENCAR, 2004, p.63-64)
Enfim, ultimamente vem sendo perceptível a presença de um forte apelo à sociedade
civil para que contribua na resolução de problemas sociais através de condutas solitárias, seja
por intermédio de sujeitos individuais (trabalho voluntário), seja pelas ONG’s ou práticas de
grupos empresariais que visam atuar na esfera social. Convém lembrar, que a em nosso país a
filantropia é algo que se confunde com a nossa própria história, isto é, a prática, atualmente
propalada, sobre a solidariedade não está muito distante da nossa tradicional caridade, pois
ambas procuram preencher uma histórica lacuna presente em nossa sociedade: a ausência do
Estado. Ressaltamos ainda que, no capítulo seguinte, faremos uma relação entre a
solidariedade e o poder das classes dominantes.
Doravante, ancorados nas análises acima, procuraremos nos basear no universo
privado das famílias estudadas na presente pesquisa.
Em todas as famílias analisadas, inúmeras evidências de solidariedade entre os
seus membros: uma reciprocidade em termos de cuidado de um pelo outro. Aquilo que é
adquirido no espaço privado, é acessível a todos: alimentação, móveis e eletrodomésticos, os
parcos recursos etc.; todos os sujeitos da pesquisa se preocupam imensamente com os filhos,
ou melhor, é uma das maiores preocupações que os aflige; inúmeros sacrifícios
principalmente das mulheres para criarem os filhos. A ajuda de parentes é algo constante e
evidente. Esta solidariedade é perceptível, também, em relação aos moradores do bairro. Os
bairros da periferia, como este no qual analisamos (Vila Aurélio), são uma espécie de
extensão do espaço privado. Nesse sentido, por um lado, as relações de solidariedade entre
vizinhos também são freqüentes (isso não pode significar a inexistência de conflitos entre os
moradores): houve relatos de auxílio dos vizinhos para a autoconstrução. Os vizinhos, na
ausência do morador, podem, de certo modo, vigiar a casa; notamos que os vizinhos podem
auxiliar o cuidado com os filhos. Há intensa troca de informações. Um exemplo. Determinado
sujeito da pesquisa nos relatou que a casa alugada em que moram foi sugerida por um
vizinho. Enfim, existem inúmeras evidências que expressam a solidariedade entre os vizinhos,
uma vez que “parente é alguém em quem se confia, o vizinho é como um parente” (SARTI,
2003, p.115)
Por outro lado, as relações entre os pequenos comerciantes (que possuem
estabelecimentos no bairro estudado) e os clientes, expressam, outrossim, sob certas ressalvas,
uma explícita solidariedade. Como pudemos verificar, bares / empórios, no bairro
periférico aqui estudado, que funcionam a partir de relações pessoais semelhantes as do
espaço privado. Destarte, o procedimento para efetuarem vendas a prazo tem um componente
de fidelidade, porque o chamado “fiado” por caderneta é uma constante e não é efetuado a
partir de relações impessoais.
Além disso, um sujeito da pesquisa nos confidenciou que efetuava compras num
determinado empório, entre outras razões, pelo tratamento amigável (solidário) que construiu
com a proprietária do referido estabelecimento comercial.
É desnecessário dizer que tal procedimento de compras, bem como a própria
pequena atividade comercial dos bares / empórios, exprimem uma eminente carência material.
Num empório no qual visitamos, a proprietária Sra Antonia, contou-nos que o seu trabalho, no
referido local, visava contribuir para o sustento de dois netos. Segundo tal entrevistado, sua
nora separou-se do seu filho e este estava desempregado, por isso, não tendo condições de
sustentar os filhos, a responsabilidade foi assumida por ela, que é avó das crianças.
Enfim, é marcante e evidente a presença da solidariedade entre os membros da
família e no bairro periférico aqui estudado. Será que esta solidariedade revela existência de
cidadania? A partir do que analisamos entendemos que é remota tal possibilidade, ainda que a
cidadania para a sua realização - contemple este imprescindível valor. Ocorre que, não
podemos analisar a solidariedade de forma fragmentada, ou seja, faz-se necessário considerar
o contexto sócio-econômico em que as famílias estudadas estão vivendo, juntamente com as
condições do bairro em que moram (analisadas num capítulo anterior). Nesse sentido, a
presença da solidariedade entre os membros da família e entre os moradores denota uma
ausência de cidadania, haja vista que uma gama de aspectos que exprimem assimetria do
poder (ligados à ideologia relacional) e, fundamentalmente, inerentes as expressivas e
marcantes carências de inúmeros direitos sociais, que, ou são precários ou são inexistentes:
direito à saúde; moradia; lazer; trabalho; segurança etc.
Desse modo, como vimos, a solidariedade não é apenas o resultado das privações
materiais, ou seja, tal valor é inerente ao universo cultural e simbólico das classes populares.
Entretanto, as famílias aqui analisadas, as dificuldades de sobrevivência material são tão
acentuadas que é impossível a solidariedade aqui existente estar desvinculada dessa esfera
material. vários exemplos. Na família de Afonso e Bruna, dois filhos estão vivendo na
casa da mãe de Bruna, porque, com o desemprego de Afonso, aumentou não apenas as
dificuldades de sobrevivência material, mas também os conflitos entre os membros da família.
Na família de Felício e Nara, eles moram numa casa cedida pela mãe dessa entrevistada, à
medida que não conseguem adquirir a moradia com os seus irrisórios recursos. Na família de
Ademir e Cristina: foram morar na casa da avó de Cristina, quando eram recém-casados, que
demonstra também limitação em termos de recursos. Na família de Gildo e Rose: para que
possam trabalhar, deixam o filho na casa da mãe de Rose, que expressa, além da óbvia
ausência de uma creche (que é um dever do poder público construir), a inacessibilidade de
comprar os serviços de uma escola infantil para deixar o filho.
Portanto, somente a solidariedade - presente no âmbito familiar e no bairro - jamais
pode efetivamente assegurar e garantir cidadania. Para que tal valor tenha expressão e esteja
em sintonia com a cidadania, é necessário que o contexto tenha uma outra moldura. Diante
disto, é impossível ter cidadania garantida, no espaço privado, mesmo com relações
solidárias – com a existência do desemprego; da moradia precária ou inexistente (alugada); de
relações assimétricas entre os cônjuges; da inacessibilidade aos serviços de saúde; da falta de
lazer; com a opressão, discriminação e exploração no trabalho; com precariedade nos meios
de transportes entre outros.
Enfim, no presente capítulo analisamos as possibilidades de haver cidadania na
esfera privada, a partir da dimensão sócio-econômica e da ideologia relacional. As
viabilidades e obstáculos de existência de cidadania, para as famílias das classes populares,
no espaço público, serão abordados no próximo capítulo.
4-AS DIFICULDADES E POSSIBILIDADES DE EXISTÊNCIA DE
CIDADANIA NO ESPAÇO PÚBLICO PARA AS FAMÍLIAS DAS CLASSES
POPULARES
Capítulo 7
O individualismo, a ideologia relacional e o trabalho: possibilidades e dificuldades de
existência de cidadania.
Objetivamos, neste capítulo, analisar as dificuldades e possibilidades de existência de
cidadania no espaço público para os membros das famílias das classes populares. A priori,
devemos fazer alguns esclarecimentos importantes. Primeiro, neste capítulo a seguinte
subdivisão: na primeira parte configura-se uma reflexão teórica envolvendo a ideologia do
individualismo, a ideologia relacional e a cidadania. Ao passo que, na segunda, nossas
reflexões se baseiam, fundamentalmente, na realidade de seis famílias das classes populares,
nas quais efetuamos trabalho de campo. Segundo, como sabemos, se o conceito de espaço
privado faz menção tão-somente ao espaço da casa, o mesmo não ocorre com o espaço
público, que é infinitamente mais amplo e complexo. Em razão disso, nossa análise das seis
famílias populares circunscreve ao espaço do trabalho. Em outras palavras, o espaço público,
aqui estudado, limita-se ao espaço de trabalho, bem como faz menção a questões que
envolvem a cidadania, articuladas, direta ou indiretamente, à esfera do trabalho.
7.1 - A ideologia do individualismo e a ideologia relacional.
Ao abordarmos a origem da cidadania, na primeira parte desse estudo, alegamos que a
ideologia do individualismo é intrínseca ao universo cultural burguês, iniciando-se com o
surgimento do modo de produção capitalista. Como vimos, a cidadania que ressurge na
modernidade está profundamente vinculada ao ideário burguês liberal individualista,
valorizando a liberdade (autonomia) e a igualdade. Ainda que o individualismo tenha uma
relação direta com a cultura burguesa, não podemos afirmar que há, nesta ideologia, uma
homogeneidade em termos de propósitos. Segundo Rouanet (1994), o individualismo
moderno faz parte do projeto do iluminismo que “é a destilação teórica da corrente de idéias
que florescem no século XVIII em torno de filósofos enciclopedistas como Voltaire e Diderot,
e de “herdeiros” dessa corrente, como o liberalismo e o socialismo (ROUANET, 1994,
p.13). Portanto, o iluminismo é um amplo projeto que contempla o liberalismo, o socialismo
1
1
Segundo Rouanet (1993), o socialismo é também herdeiro do Iluminismo, visto que contempla as suas três
categorias básicas: a Universalidade, o Individualismo e ao Racionalismo. Nas palavras do autor: “o socialismo
insistia numa concretização ainda maior do conceito de universalidade... também o marxismo partia da
concepção de uma natureza humana universal a de ser um metabolismo... com a natureza, que em todo e
e a Ilustração, que pode ser definida “como o movimento de idéias que se cristalizam no
século XVIII, em torno dos chamados filósofos enciclopedistas.“ (ROUANET, 1994, p. 201).
Acompanhando as reflexões do autor acima citado, podemos dizer que o
individualismo gestado pela ilustração teve conseqüências bastante significativas. Nesse
sentido, “o indivíduo passa a ser titular de direitos e não apenas de obrigações, como nas
antigas éticas religiosas e comunitárias” (ROUANET, 1994, p. 16). Com isto, o indivíduo se
sobrepõe ao todo, sendo que a sua existência é para estar a serviço do indivíduo, e não o
contrário, ou seja, o indivíduo existir para o todo. Ademais, uma “posição de exterioridade
em relação ao mundo social, o que permite transformá-los em observadores e juízes de sua
própria sociedade” (ROUANET, 1994, p. 16). Para tanto, o racionalismo da Ilustração foi
imprescindível: proporcionava uma maior autonomia intelectual em relação às instituições e
grupos do antigo regime, que se legitimavam, fundamentalmente, a partir de ideário teológico.
Por isso, “o ideal de autonomia intelectual é o mais alto que nos levou a Ilustração “
(ROUANET, 1994, p. 16).
O individualismo, na vertente liberal, como sabemos, procurou construir uma
ideologia em que preconiza a liberdade dos agentes econômicos contra a intervenção
arbitrária do Estado. Com isso, os interesses mercadológicos das classes burguesas seriam
contemplados, porque a atuação intervencionista do Estado passou a ser prejudicial aos
interesses capitalistas da burguesia. Igualmente individualista é a visão do filósofo inglês
Locke, um dos grandes ideólogos do liberalismo. Como dissemos, um dos argumentos
cruciais, que o citado pensador elabora para legitimar a propriedade privada, vem do fato
desta ser conseguida pelo labor individual de seu proprietário, ou seja, “o indivíduo é
proprietário daquilo que consegue com o suor do seu rosto, com a arte das suas mãos, com a
força do seu trabalho” (FERREIRA, 1993, p. 73). Além disso, o Estado é o corolário da
associação de indivíduos interessados em assegurar a propriedade privada, que, no ideário
liberal, é um direito natural. Em outras palavras, o Estado, na ótica liberal, deve ser o guardião
da propriedade privada, por isso garante o interesse individual dos cidadãos, que são os
proprietários. Portanto, na “concepção individualista significa que primeiro vem o indivíduo
(o indivíduo singular, deve-se observar), que tem valor em si mesmo, e depois vem o Estado,
qualquer modo de produção produz e reproduz, pelo trabalho, suas condições materiais de existência...”
(ROUANET, 1993, p.28). O socialismo também contempla o individualismo. Diz Rouanet (1993): “Ao contrário
do que se poderia supor, os principais socialistas não foram antiindividualistas... para Jaurès o socialismo
completa o individualismo” (ROUANET, 1993, p.28). No tocante ao racionalismo, o citado autor afirma que o
socialismo tem, como pressuposto, os fundamentos do ideário racionalista do iluminismo, considerando que, “o
socialismo real tem pela ciência um temor reverencial puramente oitocentista, semelhante ao Marx...
(ROUANET, 1993, p.28).
e não o contrário, que o Estado é feito pelo indivíduo e este não é feito pelo Estado”
(BOBBIO, 1992, p.60)
Rouanet (1994) assevera que o individualismo da Ilustração tinha também uma
vertente democrática, representada de forma quase solitária por Rousseau. Este teoriza, de
maneira primorosa, a possibilidade da existência de uma sociedade em que a democracia e a
liberdade individual são contempladas. Portanto, a democracia expressa a vontade geral (ou
melhor, a vontade dos indivíduos), bem como pode fazer com que o próprio indivíduo venha a
integrar o governo . É nesse sentido que,
individualismo é a base filosófica da democracia: uma cabeça, um voto.
Como tal sempre se contrapôs (e sempre se contraporá) às concepções
holísticas da sociedade e da história, qualquer que seja a procedência das
mesmas, concepções que têm em comum o desprezo pela democracia,
entendida como aquela forma de governo na qual todos são livres para
tomar as decisões sobre o que lhes diz respeito, e têm o poder de fazê-lo.
(BOBBIO, 1992, p.61)
De acordo com Rouanet (1994), entre os principais pensadores do socialismo, não
uma crítica antiindividualista. Nesta perspectiva, quando Marx critica o individualismo
presente na Declaração dos Direitos do Homem, ele o faz não com intenção negar o
indivíduo, mas procura criticar a visão atomística que não contempla a totalidade de relações
sociais em que o indivíduo está inserido. Além disso, “não se trata... de dissolver o indivíduo
na sociedade, mas de dissolver uma certa sociedade para emancipar o indivíduo”
(ROUANET, 1994, p. 29).
O referido autor lembra ainda que houve no socialismo real uma evidente deturpação
concernente à individualização. Desta forma, nos países em que se adotou o socialismo
(socialismo real) o indivíduo era visivelmente mutilado pelo todo, uma vez que deveria se
submeter cegamente às diretrizes do coletivo, seja do partido (partido único), seja do Estado:
tudo em nome dos “interesses” do proletariado. Diz Rouanet (1994):
o ideal da individualização socialista foi profundamente deturpado pela
prática do socialismo real...
O antiindividualismo é um elemento importante da própria doutrina oficial.
Cada homem é membro da sua classe antes de ser um indivíduo; sua
vontade subordina-se à do partido e cada membro do partido é funcionário
do todo. O antiindividualismo é mobilizado para a disciplina do trabalho,
vista como indispensável à construção do socialismo. Há um bilhão de
formiguinhas azuis na China Popular marchando unidas contra o
individualismo burguês. (ROUANET, 1994, p.29)
Há um outro universo em que podemos pensar o individualismo: a sua vertente
possessiva e a vertente consumista. A primeira começa a ser gestada a partir do século XVIII,
configurando “numa apologia insensata do interesse pessoal, ignorando-se a utilidade
coletiva, e do prazer hedonístico, quaisquer que fossem suas conseqüências” (ROUANET,
1994, p. 16). O exemplo mais significativo deste individualismo possessivo é a existência de
grandes latifúndios rurais concentrados nas mãos de poucos proprietários e inúmeros imóveis
urbanos acessíveis também aos poucos indivíduos com vultuosos recursos.
A segunda vertente - individualismo consumista manifesta-se no consumismo, visto
que nele a “busca exclusiva da própria vantagem, na apatia mais completa com relação as
grandes questões de interesse comum” (ROUANET, 1994, p. 22). Paradoxalmente, no
universo do consumismo a individualidade é negada, pois o sujeito subordina-se quase
totalmente, via indústria cultural
2
, aos interesses mercadológicos do capitalismo. Sob esta
ótica, com consumismo
o resultado é a asfixia da individualidade..., seja de uma velha conhecida
dos liberais, ‘tirania da maioria’ (comprar o aparelho de som que todos
querem comprar), seja da identificação com o grupo. Sujeito a duas leis, ou
à lei da oferta e da procura ou à lei da tribo, o indivíduo morre duas vezes,
uma vez assassinado pela sociedade de consumo e outra por lealdades
coletivas (ROUANET, 1994, p.22)
Enfim, no consumismo uma espécie de individualismo em que prescinde o
indivíduo. Este não tem pensamento e vontade própria.
Portanto, não uma homogeneidade sobre o conceito de individualismo quanto as
suas motivações e conseqüências. Entretanto, evidentemente um aspecto em comum, qual
seja, partir do sujeito individual, procurando valorizá-lo de inúmeras formas.
Afirmamos, em vários momentos, que a ideologia relacional é hegemônica no espaço
privado das classes populares. Ora, se assim o for, subentende-se que no espaço público a
predominância é da ideologia individualista. Desse modo, o espaço público é a esfera do
indivíduo cidadão, porque
como cidadão eu pertenço a um espaço eminentemente público e defino o
meu ser em termos de um conjunto de direitos e deveres para com uma
outra entidade também universal, chamada “Nação”. A minha participação
nesta entidade, aliás, é concebida como estando fundada num
consentimento... Isso significa que são os indivíduos (grifo nosso) (=
cidadãos) que permitem a formação da autoridade pública (DA MATTA,
1986, p.40).
Sabemos que, em nossa sociedade capitalista, as instituições e organizações - tanto
públicas quanto privadas - incorporam uma gama de procedimentos racionais (modelo legal-
burocrático), visando maior eficácia e dominação, por isso, a “burocracia é identificada à
2
A negação da individualidade e suas implicações com a cultura de massas (indústria cultural) foram
analisadas, no livro Dialética do Esclarecimento (Ed. Jorge Zahar, 2ª ed., 1986), por dois grandes expoentes da
chamada Escola de Frankfurt: Theodor W. Adorno & Max Hokheimer.
racionalidade formal” (COVRE, 1991, p.19). Segundo Covre (1991), para Weber a
burocracia tem as seguintes características:
1-Atribuições de funcionários fixadas oficialmente por regras ou
disposições administrativas
2-Hierarquia de funções integradas em um sistema de mando, de tal modo
que, em todos os níveis, haja uma supervisão dos inferiores pelos
superiores.
3-Atividades administrativas se manifestam e se baseiam em documentos
escritos.
4-As funções pressupõem aprendizado profissional, com treinamento
especializado.
5-O trabalho do funcionário exige que ele se consagre inteiramente ao cargo
que ocupa (dedicação plena e tarefas específicas)
6-Acesso à profissão é ao mesmo tempo acesso a uma tecnologia particular
(jurisprudência, ciência comercial, ciência administrativa). (COVRE, 1991,
p.18)
Percebemos que no modelo burocrático, acima citado, há características
diametralmente opostas à ideologia relacional. A hierarquia se faz presente em ambos.
Entretanto, o que motiva a referida hierarquia é diferente. Na ideologia relacional, valores
morais que estão permeados na distribuição desigual das diferentes atividades exercidas.
Como vimos, nas relações sociais do espaço privado, a hierarquia e a distribuição desigual
das atividades possuem um forte condicionamento cultural (além os evidentes determinantes
ligados à sobrevivência material). Na lógica burocrática, a hierarquia ocorre a partir de
atribuições racionais, isto é, a distribuição do poder é baseada nas funções desempenhadas
pelos funcionários, que para exercê-las devem estar tecnicamente gabaritados para tanto.
Além disso, as condutas, no modelo burocrático, são motivadas por regras impessoais,
o que não ocorre na esfera privada - onde predomina a ideologia relacional -, haja vista que
nesta a ação do sujeito é permeada por um valor / dimensão afetiva e é determinada pelo
grupo familiar. Portanto, as diferenças entre o modelo burocrático e ideologia relacional são
mais do que evidentes. Podemos, nesse sentido, afirmar que a gica burocrática é
intrinsecamente vinculada à ideologia do individualismo. Em primeiro lugar, é o indivíduo
que exerce determinado cargo na burocracia. É ele que deve se responsabilizar pela sua
função desempenhada. É ele quem foi previamente selecionado e aprovado numa seleção em
que o mérito individual independe de qualquer relação. Em segundo lugar, a relação que
algum cidadão estabelece com a burocracia (modelo legal-burocrático) parte igualmente de
um pressuposto individualista, isto é, para a burocracia a relação de amizade, o grau de
parentesco, o grupo o qual o sujeito pertence não tem sentido. O que vale é o indivíduo
singular com nome, RG, CPF etc. Ademais, “os próprios atributos do individualismo, como a
igualdade e liberdade (BARBOSA, 1992, p.87) são inerentes ao espaço público, entendido
que todos são, como vimos, iguais perante a lei, bem como são formalmente livres. Nesse
sentido diz Barbosa (1992):
Temos aqui, sem dúvida alguma, o indivíduo (grifo nosso) como sujeito
normativo das instituições e figura paradigmática em muitos domínios em
diversos segmentos. Ele é o centro da instituição pública elaborada e
pensada a partir dele; o centro do nosso sistema legal e jurídico, o nosso
cidadão, a figura paradigmática do discurso dos segmentos médios e
intelectualizados; dos partidos políticos; dos sindicatos; personagem central
do sistema econômico enquanto representação (BARBOSA,1992, p.87)
Portanto, no espaço público, sob a égide da burocracia, teríamos a predominância da
ideologia do individualismo, juntamente com a impessoalidade e universalidade das leis. Na
ideologia relacional, as relações sociais estabelecidas são permeadas de valores morais e
afetivos, à medida que o parentesco e a amizade (membros da família, vizinhas e amigos) são
imprescindíveis. Como vimos, no início deste estudo, a idéia acerca da cidadania que ressurge
na modernidade, procura estar em sintonia com o universo legal–burocrático, presente no
Estado liberal. Por isso,
a idéia de cidadania como um papel universal de caráter político
contaminador de todas as outras identidades sociais abria caminho decisivo
para a possibilidade de liquidar com leis particulares, os privilégios, que
davam à nobreza e ao clero direitos de terem leis especiais”(DA MATTA,
1986, p.42)
Enfim, sob está ótica, teríamos no espaço público (instituições e organizações públicas
e privadas) uma estrutura legal-burocrática, que contempla a impessoalidade, o
individualismo, a universalidade e a igualdade, garantindo desta maneira a cidadania (se não
totalmente, pelo menos parcialmente). Porém, uma gama de obstáculos inviabilizadores
para a realização da cidadania no Brasil. Segundo Da Matta (1994;1986), por razões históricas
e culturais, a sociedade brasileira vive um “dilema”. Por um lado, possui valores culturais em
que se enaltece a ideologia relacional, que, como vimos, valoriza as relações de amizade e de
parentesco; por outro lado, também a presença da ideologia individualista, que representa
os valores de modernidade: impessoalidade, igualdade e universalidade. Para o referido autor,
o problema é que tais ideologias se apresentam, no cotidiano, de forma concomitante, tendo
por corolário uma série de contradições a respeito da cidadania, isto é, nega-se e afirma-se a
cidadania de forma contraditória. Diz Da Matta (1994) :
Quando vou em busca de uma carteira de motorista ou de um telefone, sou
particularista e tento, por meio do meu despachante, o “jeitinho”. Faço o
mesmo quando discuto com o guarda de trânsito, pois opto pelo “sabe com
quem está falando?!“ Mas quando se trata de comprar, vender, eleger ou ser
eleito, sou universalista e demando leis e instituições confiáveis. É como se
o universalismo moderno fosse demandado em público, mas o
particularismo continuasse a funcionar nos planos pessoal e privado. Daí as
nossas oscilações entre universalismo e particularismo, igualitarismo e
hierarquia, individualismo e holismo, que parecem estar no centro dos
paradoxos que enfrentamos (DA MATTA, 1994, p.160).
Nesse sentido, o sujeito apresenta-se como cidadão apenas em determinadas
situações, isso porque dependendo a situação a qual ele se encontra, ser cidadão pode lhe
prejudicar. Quando o sujeito é prejudicado pela universalidade e impessoalidade, ancora-se no
universo relacional, afirmando que possui vínculo de parentesco ou amizade de pessoas
influentes, visando, com isso, a resolução do seu problema, bem como almeja receber um
tratamento cordial, ou seja, - como diz Da Matta (1994) sendo uma pessoa e não um
indivíduo. Nas palavras de Da Matta (1994):
Se temos orgulho da cidadania no contexto de uma reunião pública, isso não
é verdade quando somos abordados na rua por um guarda de trânsito,
quando desejamos tirar uma carteira ou, pior ainda, quando temos “um
problema” com o imposto de renda... A impressão que temos é de que o
Estado deseja sempre nos punir, humilhar ou, o que é pior, nos assaltar.
Sabendo disso, evitamos esse papel universal quando vamos a certos
lugares, procurando nos apresentar não como “cidadão fulano” que tem
certos direitos impessoais... mas como primo, amigo, compadre ou irmão
esses papéis que conferem direito imediato à visada personalizada. (DA
MATTA, 1994, p.162-163)
Algo parecido ocorre com a visão de mundo das classes populares, à medida que ,
segundo Da Matta (1986) e Sarti (2003), procuram - além de se relacionar - interpretar a
esfera pública na mesma lógica do espaço privado, dificultando a realização da cidadania.
Nesse sentido, dizem Da Matta (1986) e Chauí (1986) respectivamente:
no caso de nossa sociedade, as camadas dominadas, inferiorizadas ou
populares... tenderiam a usar como fonte para sua visão de mundo a
linguagem da casa”. (DA MATTA, 1986, p. 54)
a família em geral, isto é, o casamento endogâmico (no interior da mesma
classe) e monogâmico (controle da sexualidade feminina) é incompatível
com a ideologia liberal do indivíduo-cidadão, uma vez que a família é um
sistema de dependências pessoais”. (CHAUI, 1986, p. 151)
Desta forma, a cidadania não seria efetuada no instante em que se mutila, com a
ideologia relacional, a igualdade, o universalismo e o individualismo, isto é, quando se instala
a hierarquia (tradicional), o particularismo, e as “relações” (de amizade, de parentesco etc.)
do espaço privado no espaço público. Nesta ótica, afirma Sarti (1995):
Num exemplar raciocínio relacional, reconhecer a sua “dignidade” significa
reconhecer que, embora numa posição subordinada, eles merecem
“respeito”, não podem ser “explorados” “A afirmação da dignidade torna-se
importante, na própria medida de sua subordinação social, porque é essa
noção que delimita o abuso de autoridade. Se o fundamento da dignidade
está longe de ser uma noção individualista-igualitária (grifo nosso) do
direito, tampouco se trata de uma noção do direito que reclama a proteção
paternalista dos ricos (ainda que essas noções possam existir), mas se
esboça uma noção de direito que delimita o exercício da autoridade legítima
dos hierarquicamente superiores... (SARTI, 1995, p. 141)
um exemplo bastante elucidativo do que afirmamos acima. Foi veiculado nos
telejornais, no ano de 2002, que um funcionário (operador de máquina) da prefeitura de
Osasco, recebeu uma ordem vinda da esfera legal-burocrática - para a demolição de uma
casa construída numa área ilegal. O referido funcionário, movido pela ideologia relacional
do espaço privado, não efetuou a derrubada da casa, pois os seus valores são
predominantemente alicerçados no espaço privado e não na ideologia individualista do espaço
público.
É importante ressaltar que (além do condicionamento cultural) a presença de práticas
em sintonia com a ideologia relacional (relações de amizade; jeitinho brasileiro etc) num
universo legal-burocrático individualista, está profundamente vinculado às condições sócio-
econômicas da maioria do povo e, simultaneamente, expressa a ausência do Estado em vários
setores – principalmente na esfera social. Um exemplo, nesse sentido. Num determinado
hospital público, regras que são iguais para todos os pacientes. Uma dessas regras é dar
prioridade ao atendimento das pessoas que foram as primeiras a agendarem a consulta. Não
obstante, um determinado indivíduo conseguiu burlar tal regra. Pelo fato de ter um amigo
trabalhando no hospital, ele conseguiu ser atendido antes das demais pessoas. Em outras
palavras: ele estabeleceu uma “relação” de amizade, e, a partir daí, a regra foi transgredida,
vindo a favorecê-lo.
Deste modo, o direito aos serviços dico-hospitalares (direto à saúde) é
conquistado por meios anticidadãos, tendo em vista que está relacionado à transgressão das
regras com desrespeito a ordem de chegada.
Portanto, a presença da ideologia relacional, no espaço público, expressa uma
estratégia para se conseguir ter acesso a determinados serviços oferecidos pelo Estado, que
são insuficientes - e precários - para garantir certos direitos à grande maioria da população.
Ademais, exprime a falta de recursos, da maioria do povo, para comprar determinados
serviços da iniciativa privada.
Convém lembrar, que no universo das classes populares também existe um valor
moral preconizador da igualdade entre todas as pessoas, independente de classe, raça, etnia
etc. Tal igualdade é fortemente condicionada pelos valores da religiosidade, porque no ideário
popular (e pela matriz cultural judaico-cristã), perante Deus, todos os seres humanos são
iguais. Nesse sentido, Da Matta (1986), assevera que existem três dimensões de realidade no
universo popular: a casa que tem a ver com a ideologia relacional; a rua que expressa a
ideologia individualista e o outro mundo, que é “o mundo dos mortos, fantasmas, espíritos,
espectros, almas, santos, anjos e demônios... esse outro mundo é também um espaço que
demarca uma zona de incrível igualdade moral... (grifo nosso).” (DA MATTA, 1986, p. 162)
Afirmamos anteriormente que as classes populares procuram enxergar as relações e
fenômenos sociais do espaço público, com a mesma lógica que a do espaço privado pela
hegemônica presença de ideologia relacional. Isto tem uma importante conseqüência para que
haja dificuldade de existência de cidadania no âmbito público: a marcante presença da cultura
política do favor, que é a antítese da cultura política por direitos. A primeira relaciona-se com
práticas políticas que a troca de favores e as relações pessoais são priorizadas, por isso ela
está intrinsecamente ligada à ideologia relacional. Já a segunda, está atrelada a procedimentos
políticos que implicam em relações impessoais priorizando o acesso à direitos que são tidos
como universais. Por isso esta postura está ligada à ideologia individualista. Para que
possamos esclarecer, um pouco melhor, as razões da marcante presença da “cultura do favor”
em nossa sociedade, é imprescindível fazermos menção, ainda que de forma bastante
lacônica, ao nosso passado histórico. É o que faremos a seguir.
Em linhas gerais, a sociedade brasileira se estruturou a partir de dois importantes
fenômenos sociais: o latifúndio e a escravidão. Como sabemos, a partir de 1532, com a
decadência do pau-brasil, a principal atividade econômica foi a cana-de-açúcar, que inaugura
o latifúndio monocultor juntamente com o trabalho escravo. Como vimos, na primeira parte
deste estudo, no instante em que surgem os latifúndios monocultores, simultaneamente
temos, grosso modo, três grupos sociais: os Senhores de Engenho (e, posteriormente, os
coronéis), uma expressiva quantidade de camponeses pobres e os escravos. O Senhor de
Engenho possui um eminente poder, prestígio e é bastante respeitado por todos, visto que a
violência e o poder despótico são a sua marca. Assim, “o ser Senhor de Engenho é o título a
que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado de muitos”
(ANTONIL
3
, 1982, p. 75 Apud SALES , 1994, p.28). Segundo Sales (1994), os Senhores de
Engenho externam um poder incontestável até o advento da República, controlando o poder
público municipal, o aparato da justiça, os delegados de policia, inexistindo quaisquer
3
ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil. 3ª ed. Edusp: Belo Horizonte; Itaiaia; São Paulo, 1982.
autoridades acima deles. Portanto, eles procuram amparar “o homem comum de todos esses
controles” (SALES, 1994, p. 28).Além disso, a inacessibilidade a um mínimo de direitos aos
camponeses pobres, tornava-os quase totalmente dependentes dos favores dos senhores das
terras. Diz Sales (1994):
Os direitos básicos à vida, à liberdade individual, à justiça, à propriedade,
ao trabalho, todos os direitos civis, enfim, para o nosso homem livre e pobre
que vivia na órbita do domínio territorial, eram direitos que lhe chegaram
como dádiva do senhor de terras (SALES, 1994, p.31)
Portanto, tais favores possuem a sua contrapartida. Em primeiro lugar, juntamente
com monopólio do poder de mando, uma profunda e cruel violência, seja aos escravos
“fazendo algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos “ (ANTONIL
4
,
1982, p. 91 Apud SALES, 1994, p.31), seja à população pobre que dependia dos favores. Em
segundo lugar, após a abolição da escravatura, tivemos o herdeiro direto do Senhor de
Engenho: o coronel. Este imprime a mesma relação assimétrica do Senhor de Engenho, qual
seja, está permeada de incomensurável fidelidade e subserviência do povo. Ou seja, a
submissão e fidelidade eram uma forma de agradecer os favores que o coronel oferecia aos
seus dependentes. Ocorre que, o coronel é visto pelo povo com olhares de respeito e gratidão,
mesmo com o exercício unilateral do poder e do castigo que eram aceitos e admitidos. Nas
palavras de Ferreira (1993):
o “coronel” aparece como um homem raivoso, de chibata na mão, açoitando
o povo. Se isso ocorria em alguns momentos, em outros ele era um homem
alegre, que promovia festas, acompanhava a procissão, oferecia recursos à
igreja, distribuía presentes. Como admiti-lo como inimigo, se era padrinho
do filho, conseguira escola para o menino, mandara buscar o médico para a
mulher?” (FERREIRA, 1993, p. 206).
Assim, a conduta generosa do coronel, juntamente com os seus favores aos
dependentes, acabava ofuscando sua opressão e exploração. Desta forma, o coronel é
identificado como o pai, aquele que é o provedor: pune, mas ajuda; é autoritário, porém é
generoso; explora, mas oferece emprego, etc.
Se a prática do coronelismo está permeada de relações em que envolvem o favor -do
coronel ao povo -, na atual conjuntura existem herdeiros diretos do coronelismo: é o
populismo e o clientelismo. Neste, os “cidadãos” são clientes daqueles políticos, em que
uma relação de fidelidade e subserviência em troca, é claro, de algum favor que venha a
beneficiar o sujeito. Desta forma, a igualdade, universalidade e individualismo caem por terra,
4
ANTONIL, Ibidem ,p. 91.
considerando que o clientelismo implica numa postura de favorecimento privilegiando
aqueles que se vinculam à determinados políticos ou partidos. Diz Ferreira (1993):
como o clientelismo representa, basicamente, os segmentos mais pobres da
população junto ao poder, apresenta-se junto a eles como a única alternativa
para se aproximar das instâncias difusas do aparelho de Estado... Trata-se de
um sistema eficiente. Ou melhor, um sistema que “torna eficiente” a
máquina do Estado. Mediante trocas de favores e dinheiro, consegue o que
o “mais correto cidadão” não consegue. Quem não ouviu falar de uma
carta que operou milagres - desde uma obra de saneamento, um emprego,
um empréstimo, vagas nas escolas, internações nos hospitais oficias? Para o
homem comum, o simples cidadão, não importa como ele obteve isso, mas
sim o fato de que conseguiu. Reforça assim a sua própria dependência,
tornando-se cúmplice do sistema (FERREIRA, 1993, pp. 213-214).
Com relação ao populismo, este também está permeado pela a cultura política do
favor. Como sabemos, trata-se de uma prática política em que o paternalismo é crucial, em
razão de que uma personificação acerca da figura do político, enaltecendo-o e
confundindo-o com a instituição Estado. Desta maneira, além da pseudo participação das
classes populares que se identificam com o líder uma acintosa manipulação as
referidas classes. Na ótica desses segmentos populares, a conduta do político deve
assemelhar-se a do pai, que de um lado, tem uma postura anti-democrática, mas, de outro,
ampara e concebe favores, conferindo fidelidade e subserviência de quem os recebe. Nas
palavras de Weffort (1989):
Entre as quais convém destacar, como componentes que virão a ser
fundamentais no populismo, a personalização do poder, a imagem (meio
real e meio mística) soberania do Estado sobre o conjunto da sociedade e a
necessidade da participação das massas populares urbanas... o chefe do
Estado assume a posição de árbitro e está uma das raízes de sua força
pessoal...
O líder será sempre alguém que já se encontra no controle de alguma função
pública... alguém que, por sua posição no sistema institucional de poder,
tem a possibilidade de “doar”, seja uma lei favorável às massas, seja um
aumento de salário, ou mesmo, uma esperança de dias melhores
(WEFFORT, 1989, pp. 69-73)
A cultura política do favor não se limita ao universo rural, muito pelo contrário: ela
se difundiu por toda a sociedade, à medida que tem a ver com a ideologia relacional. Ora, as
relações assimétricas e de favor estão em sintonia com o universo privado (cultura
tradicional), como vimos anteriormente. Ocorre que, além da presença hegemônica da
ideologia relacional, uma prática política que contribui para a disseminação da cultura
política do favor: o patrimonialismo. Este pode ser conceituado como sendo a “cultura de
apropriação daquilo que é público pelo privado” (MARTINS, 1997, p.171). Segundo Martins
(1993), na formação da sociedade brasileira período colonial havia uma nítida confusão
entre o que era de interesse e pertencia à coroa do que era exclusivamente do povo, ou seja,
não havia clareza entre o que se configurava público e o que efetivamente poderia ser
considerado privado, isso porque “não havia distinção entre o que hoje poderíamos chamar de
bens do Estado e bens do cidadão” (MARTINS, 1993, p.22). Ademais, as relações entre o
vassalo e o rei ocorriam como troca de favores” (MARTINS, 1993, p.23). Nesse sentido, a
própria formação do país foi suscetível ao patrimonialismo. Ocorre que as oligarquias agrárias
(coronéis) trataram de colaborar e reforçar tal tendência, mesmo no modelo legal-burocrático
do Estado. Nesta ótica, “a dominação política patrimonial, no Brasil, desde a proclamação da
República, pelo menos, depende de um revestimento moderno que lhe da uma fachada
burocrático-racional-legal” (MARTINS, 1993, p.20)
O patrimonialismo e a cultura política do favor são bem marcantes no poder público
local de cidades pequenas e médias, visto que a presença de políticos com o perfil de coronéis
/ populistas é bastante comum, assim como a prática do clientelismo, que vêm carregado de
subserviência dos “clientes”. Entretanto, tais posturas políticas são outrossim uma constante
nos grandes centros urbanos. Diz Martins (1993):
Mesmo onde o patrimônio já não tem presença visível na política, como
ocorre nas grandes cidades, a população, sobretudo migrantes de áreas
tradicionais e rurais, continua, de algum modo, se relacionando com a
política e com os políticos em termos de concepções tradicionais que não
separam o político do protetor e provedor (MARTINS, 1993, p.37)
A cultura política do favor, segundo o autor acima citado, não é uma prerrogativa
exclusiva das classes dominantes às classes menos favorecidas, mas ocorre no âmbito das
elites que se apropriavam do poder estatal, utilizando-o para a realização de interesses
puramente privados (patrimonialismo). Como? Através da troca de favores entre os membros
dessa elite, por intermédio do chamado tráfego de influência e da apropriação dos recursos
públicos pela via da corrupção. Paradoxalmente, como esclarece Martins (1993), a troca de
favores é tida como uma conduta ilícita e corrupta apenas aos olhos de setores letrados da
classe média. À medida que o código das classes populares converge para a ideologia
relacional, a troca de favor - utilizando-se ou não da coisa pública não é concebido como
um ato ilícito ou corrupto, entendido que tal fato é lido pelo víeis da ideologia relacional,
onde aponta que o favor deve ser retribuído a qualquer preço.
7.2- A cidadania e o trabalho
Doravante, procuraremos - a partir dos depoimentos obtidos no trabalho de campo -
analisar as possibilidades e dificuldades para existência de cidadania, que estejam vinculados
ao trabalho dos sujeitos da pesquisa, que são executados fora de casa.
Como vimos, quase todos os entrevistados estão empregados. Exceto três deles, que se
encontram desempregados e, por conseguinte, efetuam atividades esporádicas. Apesar dos
entrevistados estarem numa condição sócio-econômica similar, podemos diferenciá-los a
partir de três situações. A primeira é constituída por trabalhadores que exercem atividades no
setor formal, isto é, possuem o registro na carteira de trabalho. São eles, Dario, Marcos e
Felício. A segunda se refere àqueles trabalhadores subempregados, em razão de haver uma
eminente precariedade nas ocupações que exercem, bem como não possuem relação
contratual legal, ou seja, trabalham na informalidade, sem registro em carteira de trabalho.
São eles, Nara (que trabalha em uma cooperativa que recicla lixo) e Gildo, que recolhe
“produtos” em um depósito de lixo, próximo ao bairro onde mora. A terceira situação é a das
mulheres que são empregadas domésticas, que também não têm registro em carteira de
trabalho e constituem a maioria das entrevistadas. São elas: Cristina, Valma, Bruna, Sandra e
Rose. Os demais entrevistados estão totalmente desempregados.
Para abordarmos sobre a cidadania, no espaço do trabalho, é imprescindível fazermos
menção à exploração econômica derivada da clássica e contraditória relação entre o capital e
o trabalho. Nesse aspecto, dentro do universo marxista, em linhas gerais, toda e qualquer
relação contratual entre o capitalista e o proletário se expressa de forma assimétrica do ponto
de vista da apropriação desigual daquilo que é produzido. Como sabemos, a força de trabalho,
comprada pelo capitalista, é uma mercadoria “cuja propriedade é gerar valor, uma proporção
superior à dos bens necessários à reprodução do seu proprietário” (ROUANET, 1994, p.93).
A força de trabalho produz valor ao confeccionar mercadorias, isto é, o valor contido na
mercadoria é resultante do trabalho, seja pelo sujeito individual, seja pelo sujeito coletivo
(sociedade). Ademais, a força de trabalho se “transforma em valor excedente, em mais-valia
quando o trabalhador prolonga sua jornada de trabalho além do tempo necessário para a
produção do valor essencial à sua própria sobrevivência” (ROUANET,1994, p.93). Destarte,
o trabalho excedente, produzido pelo proletário, é apropriado pelo capitalista no instante em
que este vende a mercadoria (produzida pelo trabalho) e aufere lucro. Aparentemente o valor
de troca da mercadoria é gestado no espaço do consumo (mercado), isto ocorre à medida que
é nesta esfera que se materializa o ganho do capitalista através da sua lucratividade. Contudo,
é no espaço da produção - onde se realiza o trabalho - que o valor da mercadoria é criado,
que as mercadorias são produzidas em tal espaço. No processo produtivo do capitalismo
uma mistificação acerca do valor, porque
os produtores não entram em contato entre si durante o
processo de produção, o caráter especificamente social do seu
trabalho só se manifesta no ato do troca, e o valor dos produtos
trocados parece resultar do próprio intercâmbio das mercadorias
(ROUANET,1994, p.91).
Desse modo, quando se concebe o valor das mercadorias, a partir do espaço do
consumo, mistifica-se o seu real valor, tornando-a fetichizada. O fetichismo é o
processo pelo qual as relações sociais se projetam numa forma aparente, e
no caso de fetichismo da mercadoria, essa forma é a forma-mercadoria, que
estabelecendo uma relação entre mercadorias, traduz à sua moda..., à
realidade social do trabalho... É a estrutura básica do fetichismo: na forma-
mercadoria, uma configuração social caracterizada pela homogeneização do
trabalho... dissimula sua fórmula essencial – relação entre pessoas... O valor
reduz ao valor de troca... (ROUANET, 1994, p. 93).
Portanto, o valor da mercadoria é fruto do trabalho, do proletariado, que é executado
no âmbito do espaço da produção, mas o referido valor é mistificado no espaço do consumo,
criando uma ilusão de que as mercadorias teriam um valor em si, e não pelo trabalho nela
contido. Tal visão, que concebe a mercadoria como fetiche, irá camuflar a expropriação do
trabalho excedente: mais-valia.
Antes de prosseguirmos, faremos duas ressalvas. Primeiro, na atual conjuntura, a
extração de mais-valia deve ser também delegada ao Estado, visto que esta instituição
expropria uma vultuosa quantidade de recursos da sociedade civil, por meio de impostos,
taxas e multas. Ademais, sabemos que muitos desses recursos, auferidos pelo Estado, são
injustamente alocados às classes mais favorecidas, seja pelo pagamento de expressivos juros -
ao capital financeiro, por exemplo -, seja priorizando e favorecendo grupos e instituições que
representam as classes abastadas. Segundo, sabemos que a valorização de determinadas
mercadorias, no capitalismo atual, é também resultante de uma expressiva construção
imaginária-simbólica acerca da mercadoria, que é elaborada pelos meios de comunicação de
massas, isto é, o valor de um produto é refém da intensa e agressiva publicidade efetuada, que
cria uma valorização da mercadoria a partir de elementos puramente subjetivos, fazendo com
que a marca dos produtos seja muito mais importante que os próprios produtos. Essa
valorização da mercadoria pela marca está ligada diretamente à atuação do marketing.
Assim, a imagem e a marca de determinada mercadoria contribuem para lhe agregar valor.
Quando afirmávamos, anteriormente, que no espaço do trabalho existe assimetria entre
empregado e empregador, tal visão não é, obviamente, comungada pelos liberais. No ideário
liberal, a relação contratual entre o capitalista e o trabalhador é concebida de modo igualitário,
a partir da idéia de que ambos são livres. Nas palavras de Chauí (1987):
As pessoas são todas iguais porque todas o, pelo direito natural e pelo
direito civil, proprietárias de seu próprio corpo. É por isso que pode haver
contrato de trabalho, pois a relação se estabelece entre dois proprietários: o
proprietário de seu corpo ou de sua força de trabalho e o proprietário dos
meios para pagar o trabalho vendido.... A idéia de contrato entre pessoas
(proprietários), iguais e livres pelo direito natural e garantidas em sua
igualdade liberdade pelas leis de direito civil, forma a base de uma teoria
política nascida com a burguesia. Chama-se liberalismo ( CHAUI, 1987, p.
142)
Enfim, no espaço do trabalho, uma evidente relação assimétrica entre capitalistas e
trabalhadores do ponto de vista da apropriação desigual dos recursos. Analisando o trabalho
dos entrevistados Dario, Marcos e Felício, podemos afirmar a evidente iniqüidade entre eles
(trabalhadores) e os capitalistas pelos quais lhes empregam. O salário de Dario é de 388,00
reais; Marcos recebe 400,00 reais e Felício 450,00 reais. É desnecessário apontarmos as
privações materiais e as inúmeras dificuldades para a sobrevivência desses sujeitos da
pesquisa, assim como para os membros de suas famílias: precariedade da moradia; residência
em um bairro periférico; dificuldades de acesso aos serviços médico-hospitalares. Enfim,
existem inúmeros percalços ligadas à sobrevivência material em razão dos parcos salários que
recebem. Portanto, é evidente a impossibilidade de obterem, satisfação plena de suas
necessidades materiais, sendo por isso inadmissível afirmar que possa existir cidadania aos
referidos entrevistados, assim como para as suas famílias. Nesse aspecto, os entrevistados
sabem das iniqüidades entre eles (empregados) e os empregadores e expressam, verbalmente,
a inacessibilidade a bens e serviços a partir dos seus irrisórios salários e, é claro, pela
ineficácia do Estado no sentido de garantir determinados direitos sociais. Em suas palavras:
[Como é o seu patrão?] Ele é rico... vive muito bem. [Sobre a questão da
saúde] A saúde hoje em dia “braba”. [Teria diferença se tivesse
recursos?] Teria, eu teria um plano de saúde para mim e para a minha
família. Ia ser bem atendido. Tem convênio UNIMED, é rapidinho. Não
tem, então você espera ali. (Felício)
[Qual a diferença entre você e o seu patrão?] Ele tem mais dinheiro, né!
[Sobre a questão da saúde] Você vai ‘no’ médico, tem que ficar esperando.
Acho que não sou bem atendido.[Sobre o posto de saúde mais próximo,
como é?] É péssimo, não vale nada (Dario)
No hospital eu não sou bem atendida, porque eu quase morri quando fui
ganhar o meu filho naquele bendito HU [Hospital Universitário], quando eu
fui ganhar o meu filho lá...deixaram “resto” dentro de mim... deu começo de
trombose... eu nunca fui uma pessoa doente, sou saudável. Eles falaram que
se eu não tivesse satisfeita procurasse outro hospital (Valma)
Ocorre que, além dos poucos recursos que são recebidos pelos trabalhadores, uma
flagrante desigualdade que não se manifesta apenas na inacessibilidade a determinados bens e
serviços, mas numa explícita desigualdade no tratamento àqueles que possuem poucos
recursos, ou seja, é notório em inúmeras situações o descaso e o preconceito endereçados aos
membros das classes populares, que ficou evidenciado nos depoimentos citados anteriormente
e em muitos outros. Desta forma, se o conceito de cidadania implica numa relação de
igualdade de tratamento, o que acontece em inúmeras relações sociais em que envolvem os
membros das classes populares é exatamente o contrário. Diante disto, é desnecessário dizer
que isto nega a existência de cidadania. Entretanto, também evidências da presença do
preconceito e discriminação emanados das classes populares às classes médias, altas ou
àqueles (independente da classe o qual faz parte) que não comungam de determinado valores
nos quais as classes populares prezam: masculinidade, generosidade, disposição para o
trabalho etc. (SARTI, 2003). Além disso, em muitos trechos dos depoimentos, notamos,
juntamente com o preconceito, um discurso que procura valorizá-los e enaltecê-los, como
vimos no primeiro capítulo, do ponto de vista moral, o que também denota um a compensação
em virtude de inúmeras privações, que vêm acompanhadas por ausência de prestígio e
reconhecimento. Nas palavras dos sujeitos da pesquisa:
O pobre supera o rico na força física... supera e muito (Marcos)
O pobre ganha do rico na honestidade, no jeito de ser (Felício)
O pobre tem mais amizade do que o rico. O pobre sai na rua, vai conversar
com o vizinho, eles não (Nara)
[Quem não entraria na sua casa?] Quem usa brinco, tatuagem... se ‘pudé’
nem conhecer... O pobre ‘vévi’ ‘mió’ que o rico. Ele trabalhando,
ganhando pouco, chega em casa toma um banho, janta e dorme, não fica
preocupado com a conta. O rico eu acho que não dorme. Não pensa nem em
Deus (Dario)
Neste capítulo, estamos abordando a questão da cidadania no âmbito público do
espaço do trabalho. Entretanto, não uma dicotomia entre a esfera privada e a pública, ou
seja, por exemplo, a espoliação do trabalho ocorrida no espaço da empresa ecoa,
evidentemente, em vários outros espaços, tanto privados quanto públicos. Nesta perspectiva, a
cidadania quando é prejudicada - em função da exploração material -, ela inexiste em outros
locais freqüentados pelos entrevistados: na casa; no bairro; no local em que prestação de
serviços médico-hospitalares etc.
A exploração do trabalho é bastante visível junto às mulheres que são empregadas
domésticas: todas elas recebem menos de um salário mínimo. Tal espoliação possui, em
alguns aspectos, a mesma lógica do que acontece com os outros trabalhadores na sociedade
capitalista: sua total dependência econômica do trabalho e a existência de um grande
“exército de reserva” fazem com que “aceitem” tal situação. Todavia, a exploração às
trabalhadoras domésticas possui algumas especificidades, além dessas citadas com base na
abordagem marxista. Nesse sentido, faremos a priori alguns comentários que possam nos
auxiliar no encaminhamento de nossas reflexões. Nesta ótica, procuraremos a seguir, em
linhas gerais, comentar alguns motivos que explicam a desvalorização do trabalho doméstico.
Em primeiro lugar, esta questão nos remete a uma outra: a desvalorização do trabalho
manual, que igualmente ocorre com os outros trabalhadores abordados neste estudo.
De acordo com Da Matta (2001), a referida desvalorização está ligada
fundamentalmente – com o passado escravocrata da sociedade brasileira, bem como está
ligada a nossa matriz cultural predominante, que é de cunho católico. Esta, como sabemos, no
ideário medieval e romano tradicional, concebem o trabalho como se fosse uma maldição.
Comecemos pela palavra “trabalho”, que vem do latim (língua dos romanos) a partir do termo
tripaliare, que significa castigar com o tripaliu, instrumento que, na Roma antiga, era objeto
de tortura” (DA MATTA, 2001, p.31). Desta forma, o trabalho não é provido de nenhum
mérito, devendo ser realizado apenas para garantir a sobrevivência material, ou seja, ele não é
valorizado em si mesmo. No ideário católico, enaltece-se um estilo de vida em que tem como
primado a contemplação, a oração e, por conseguinte, a ociosidade. Essa visão negativa do
trabalho, como sabemos, foi profundamente alterada com a Reforma Protestante do século
XVI (Calvino e Lutero), uma vez que o trabalho é eminentemente valorizado. Nesses termos,
de acordo com o ideário protestante, por inúmeros aspectos, o trabalho é valorizado (Weber;
1981): 1) Ele é o remédio para se precaver contra as várias tentações mundanas; 2) Os
homens devem servir a Deus com suas obras resultantes do seu trabalho; 3) A crença na
predestinação tem um efeito psicológico: estimula o trabalho intenso resultando na
prosperidade, sendo esta um sinal de que o sujeito é um eleito por Deus e,
concomitantemente, será salvo.
Nesse sentido, podemos dizer que o trabalho manual no ideário católico é desprezado,
estando em sintonia com a visão dos primeiros colonizadores portugueses que aqui chegaram.
Desse modo,
fica compreensível que, para o povo português, jamais se tenha naturalizado
a religião do trabalho. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais
interessante do que a luta irrestrita pelo pão de cada dia. Enquanto os povos
protestantes exaltam o esforço manual (grifo nosso), o que é admirado pelo
português e, por conseguinte, pelo brasileiro é a vida do senhor (FREITAS,
1997, p.52)
Em segundo lugar, juntamente com o que colocamos acima, o outro elemento que
contribuiu para desprezar o trabalho manual, no Brasil, foi a existência de uma sociedade
escravocrata. À medida que o trabalho doméstico - ou qualquer outra atividade manual - vinha
sendo efetuada, num primeiro momento por escravos e num segundo momento pelas classes
populares, construiu-se um eminente preconceito acerca de tais atividades, fazendo com que
fossem desprezadas e desvalorizadas. Diz Freitas (1997):
Assim, já predispomos por um desprezo ao trabalho manual (grifo nosso),
o sistema escravocrata no Brasil reforçou tendências herdadas de nossos
colonizadores. Aqui o trabalho manual era tarefa exclusiva do escravo,
daquele que era visto como um animal para servir o senhor. Não é à toa que,
no Brasil, o trabalho manual esteve sempre associado a desqualificação
social (Da Matta, 1986). Enquanto nos países protestantes todos os
membros da família devem ajudar nas tarefas domiciliares, na família
brasileira tradicional este tipo de trabalho doméstico e manual é deixado
para a “empregada” (grifo nosso) ou para as mulheres (FREITAS, 1997,
p.53).
Em terceiro lugar, o trabalho doméstico feminino é equivocadamente concebido como
se fosse uma atividade visando complementar os recursos conquistados pelo homem /
provedor, porque como vimos é o homem, no ideário das classes populares, que deve ser
o responsável para prover a sua família. Desnecessário lembrar que em três famílias
abordadas neste estudo, as mulheres são as únicas provedoras em função do desemprego dos
seus cônjuges.
Em quarto lugar, o espaço do trabalho para aquelas entrevistadas que são empregadas
domésticas não se constitui como esfera pública, ou seja, é o espaço privado, o que viabiliza a
hiper-exploração da força de trabalho. Todas as mulheres nas quais entrevistamos recebem
menos de um salário mínimo e não possuem registro em carteira de trabalho, fazendo com
que deixem de receber todos os direitos trabalhistas (1/3 de férias; recolhimento junto ao
INSS e Fundo de Garantia de Tempo e Serviço; 13° salário, entre outros). Além disso, todas
elas nos disseram que quase sempre fazem “horas extras”, mas não são pagas, expressando
também uma enorme perda, já que o trabalho executado, além do horário expediente, deve ser
remunerado com acréscimo de 50%. Essas e muitas outras irregularidades, por ocorrerem no
espaço privado, são difíceis de serem flagradas pelas autoridades do Ministério do Trabalho.
Outrossim por serem efetuadas na esfera privada, as relações existentes entre patroas e
empregadas tem a ver com a ideologia relacional, visto que é evidente a hierarquia tradicional
(desigualdade de poder) juntamente com determinados valores morais: fidelidade,
generosidade, troca de favores entre outros.
Segundo Da Matta (2004), a existência de relações pessoais (ideologia relacional)
entre empregados e empregadores, dificulta ainda mais uma postura reivindicativa de direitos
por parte dos trabalhadores (domésticos ou não ) e, concomitantemente, contribui para
reforçar o poder do empregador e a submissão do empregado. Diz Da Matta (2004):
até hoje misturamos tarefa com amizade, o que confunde o empregado e
permite ao patrão exercer o duplo controle da situação. Ele tende a governar
o trabalho, pois é quem oferece emprego, e também pode controlar as
reivindicações dos empregados, pois apela para a moralidade das relações
pessoais que tendem a ofuscar a relação patrão-empregado. O caso mais
típico e mais claro dessa problemática é o das empregadas domésticas...
(grifo nosso) (DA MATTA, 2004, p.19)
Em alguns depoimentos das entrevistadas, empregadas domésticas, expressa-se a
exploração econômica, opressão, preconceito e situações de humilhação, vivenciados nas
casas onde trabalham. Nas palavras das entrevistadas:
[Aconteceu algo no serviço que você não gostou?] Acontece direto.
Quando eles não acham alguma coisa, ele de “veis” de vim perguntar, eles
falam:”olha, roubaram”... a conversa é esta.... Falta dinheiro desconta na
gente... grita com a gente...
As “louça” de outros dias eu vou lavar amanhã... eles não lavam um copo...
você chega e não sabe por onde você começa... a casa tem oito pessoas,
12 cômodos, 4 cachorros, então fica tudo para mim... você pode
morrendo que não ajudam a fazer nada (Rose)
Eu trabalho fazendo faxina... [Como é sua patroa?] É uma folgada... manda
eu lavar o cachorro, limpar o carro, limpar o dela, então eu faço, eu
preciso do serviço. Não sou registrada. Minha patroa é uma folgada, não faz
nada. Ainda quanto mais ela tiver que pisar em você, ela pisa. Eu cheguei a
chorar... tudo eu sou culpada. Vou relevando, fingo que não é comigo... não
respondo [Qual a função da patroa?] A função da patroa é ser mais
compreensiva com os empregados. Ninguém é cachorro de ninguém. Todo
mundo são ser humanos. A função dela é dar um salário honesto, registrar...
um salário que para levar o seu filho no lanche... não é o caso que é o
meu. que é assim, o meu filho ficou doente, quase foi internado duas
vezes, precisou de remédio, ela foi e comprou, eu pagando pro mês,
pouquinho por mês. Ela foi bem compreensível. Tem um lado ruim e um
lado bom (Cristina)
[Como é sua patroa, é uma boa patroa?]Pra mim é... [Você é
registrada?]Disse que ia me registrar, mas até hoje nada. Precisei da minha
carteira, peguei e ela perguntou:” Bruna ‘cê’ pegou sua carteira que eu não
achando. Ah! ‘cê’ vai me registrar. Ah! eu vou. Levou no escritório até
hoje, e diz que não pode isso né... faz um ano e cinco meses que eu tô lá, ela
me enrolando, enrolando... eu ganho 220,00... e se eu pagasse aluguel ?
(Bruna)
[Aconteceu algo no serviço que você não gostou?] Já... uma senhora que eu
trabalhava na casa dela, disse para uma amiga minha: ‘que eu tinha que
andar mais bem arrumada’, ela queria que eu fosse copiar ela (Sandra)
Enfim, é desnecessário mencionarmos a inexistência de cidadania para as entrevistadas
acima: são exploradas economicamente; não recebem os direitos trabalhistas por não terem
registro na carteira de trabalho; são humilhadas; são sobrecarregadas de trabalho; são vítimas
de preconceito e ameaçadas de demissão. Esta negação de cidadania, como vimos
anteriormente, também se estende para outras inúmeras situações ligadas aos parcos
rendimentos que auferem, assim como repercute no espaço privado e nas relações com os
membros da família. .
Sabemos que os sujeitos da pesquisa Dario, Marcos e Felício trabalham numa empresa
e possuem o registro em carteira. Dario é carregador de sacos de sementes numa determinada
empresa. Marcos é motorista numa madeireira e Felício é borracheiro e trabalha numa loja de
pneus. Evidentemente, o fato de trabalharem com o registro na carteira de trabalho é uma
grande vantagem, tendo em vista que garante acesso aos direitos trabalhistas: férias
remuneradas, 13º salário, contribuição junto ao INSS e o FGTS. Num estudo de Telles
(2001), baseado nos escritos de Wanderley Guilherme dos Santos, afirma-se que uma
sintonia entre a cidadania e o trabalho formal com registro em carteira. De acordo com Telles
(2001), uma proteção do Estado a todos aqueles que possuírem relação trabalhista, sob o
regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) vinculados a um sindicato, em razão de
que
é ele [sindicato] que tem a posse de diretos e é através dele que o
trabalhador reconhecido pelo seu vinculo legal a corporação profissional
pode ter acesso aos benefícios sociais garantidos pelo Estado...
desempregados, desocupados, subempregados, trabalhadores sem emprego
fixo ou ocupação definida são na prática transformados em pré-cidadãos
(grifo nosso) (TELLES, 2001, p. 23).
Nessa perspectiva, segundo a autora acima, a lei, no Brasil, tende-se a legitimar a
desigualdade, isto por que os direitos sociais (direitos trabalhistas) derivados do trabalho
formal (com registro em carteira) são inacessíveis à grande maioria, transformando-a em pré-
cidadãos, ou seja, o pressuposto da cidadania é o trabalho formal tendo registro na carteira de
trabalho. Por isso, não universalização dos direitos, pois a sua garantia está
intrinsecamente ligada ao grupo profissional (corporativismo) em que o sujeito pertence.
Outrossim, acrescenta a autora, que, para os pobres foi reservado o espaço da
assistência social, cujo objetivo não é elevar condições de vida mas minorar a desgraça e
ajudar a sobreviver na miséria... Esse é o lugar dos não-direitos e da não-cidadania”
(TELLES, 2001, p. 26).
As afirmações de Telles (2001), expostas acima, não podem ser generalizadas por
vários motivos. Em primeiro lugar, se é verdade que o trabalho formal assegura os direitos
trabalhistas, estes não necessariamente podem garantir cidadania plena. Os três entrevistados
Dario; Marcos e Felício possuem trabalho formal, com registro em carteira, porém, como
vimos, as condições sócio-econômicas em que vivem (assim como outros elementos) não
permitem a existência da cidadania nem para eles, nem para os membros de sua família.
Admitimos que aquelas famílias em que os cônjuges (esposo ou esposa) trabalham na
informalidade (sem registro na carteira de trabalho) realmente as condições de vida são mais
precárias pela óbvia razão de receberem rendimentos menores. Porém, a diferença não é tão
acentuada: moram num bairro periférico; tem problemas com a moradia (ou não a possuem,
pagando aluguel; ou moram “de favor”); são inacessíveis os serviços médico-hospitalares.
São vítimas de preconceitos, entre outros.
Em segundo lugar, Telles (2001) aponta que o cidadão “como indivíduo não tem
identidade e figuras próprias: a verdadeira figura do cidadão é o sindicato” (TELLES, 2001, p.
23). Esta afirmação também não pode ser generalizada. Primeiro, como sabemos, à medida
que cresce o desemprego, a atividade sindical arrefece profundamente. Segundo, a atuação do
sindicato vai depender da categoria profissional, bem como seu nível de mobilização e
articulação. Baseando-nos na cidade de Presidente Prudente, desconhecemos qualquer
mobilização de natureza sindical que possa ter expressividade, exceto o sindicato dos
bancários e o dos professores da rede pública do Estado de São Paulo (APEOESP) ou algum
outro, ligados ao funcionalismo público. Estes são pujantes, grosso modo, por dois motivos: o
nível de politização dos seus filiados e o fato de serem funcionários públicos (muitos destes
funcionários são estatutários, o que lhes garante estabilidade no serviço). Enfim, aqueles
sujeitos da pesquisa que trabalham no setor formal (Dario, Marcos e Felício) não
necessariamente tem sua cidadania assegurada, uma vez que, como vimos, uma série de
obstáculos, principalmente aqueles ligados aos irrisórios salários que recebem (juntamente
com outras dificuldades).
Um outro caminho para podermos refletir sobre a cidadania no espaço do trabalho é
através das relações de poder ocorridas no seio das empresas. Inúmeros autores
5
que vêm
5
A coletânea intitulada “Cultura Organizacional e Cultura Brasileira”, organizada por Motta e Caldas (Editora
Atlas 1997), traz vários artigos a respeito de procedimentos tradicionais de se administrar e, revela ainda, que
tal prática é dominante em nosso país.
refletindo sobre as relações de poder nas organizações, têm ressaltado a majoritária presença
de valores e procedimentos tradicionais no âmbito das organizações. Segundo os autores
Prates e Barros (1997), não uma dicotomia entre os valores e práticas dos empregadores /
empregados com os atributos tradicionais de nossa cultura (ideologia relacional). Os referidos
valores e práticas tradicionais, - que ocorrem no âmbito da empresa - são resultantes de
processos históricos ocorridos em nossa sociedade. Nestes, destaca-se, como vimos, a
marcante presença do poder despótico dos grandes proprietários rurais (Senhores de Engenho;
coronéis e muitos empregadores) que serão herdados pelos empregadores ou àqueles que
exercem alguma liderança na organização. Em tais práticas não se estabelecem limites entre o
público e o privado: o poder tradicional existente no espaço da casa ecoa nas instâncias
públicas (empresas, poder público etc). Destarte, Prates e Barros (1997), fundamentados nas
reflexões de Da Matta (1986) e a partir de pesquisa empírica (analisaram cerca de 520
empresas na região Sul e Sudeste), asseveram a presença marcante de atributos e valores
tradicionais nas organizações, que serão comentados à seguir. Em suas palavras (1997):
Na dimensão institucional, o que existe é a concentração de poder. A seu
lado, surge o extenso personalismo, presente na dimensão pessoal de nossa
sociedade. O terceiro elemento que surge, articulando essas duas dimensões
e que dá o perfil do estilo brasileiro de administrar, é o paternalismo.
Carregamos em nossa sociedade o valor de que o patriarca tudo pode e aos
membros do clã só cabe pedir e obedecer; caso contrário a rebeldia pode ser
premiada com sua exclusão do âmbito das relações. O patriarcalismo, a
face supridora e afetiva do pai, atendendo ao que dele esperam os membros
do clã...
Assim, nas sociedades em que o poder é distribuído de forma desigual,
como no Brasil, e em que tendem a permanecer nesta situação, ocorre um
fenômeno psicossocial de dependência continuada dos liderados pelos
líderes, aceito por ambos...
Nesta linha, podemos dizer que as sociedades e organizações serão
lideradas tão paternalisticamente quanto permitem seus membros...
(PRATES & BARROS, 1997, p. 60)
Os procedimentos e valores tradicionais, presentes nas organizações, têm a ver com a
ideologia relacional: o universo das empresas em função do que colocamos acima - quase
sempre expressa relações e valores inerentes ao universo privado. Desta forma, existe uma
legitimação do poder baseada numa hierarquia tradicional: uns mandam, outros obedecem”.
Esta hierarquia não se baseia em critérios de competência técnica, a distribuição desigual do
poder é efetuada pelo proprietário ou pelo chefe. Em ambos os casos, não uma
descentralização das decisões, nem tampouco a realização de práticas dialógicas que
caracterizam os procedimentos democráticos em sintonia com a cidadania. Ora, no instante
em que as relações entre os lideres e liderados são concebidos a partir da ideologia relacional,
inexiste um espaço para se efetivar um mínimo de igualdade e de liberdade para propor e se
discutir algo. Sob esta ótica, “as relações sociais do trabalho são concebidas conforme o
modelo familiar: na linguagem da empresa familiar, o patrão é o pai, e os operários os filhos,
na concepção de que o patrão deve assegurar o emprego aos operários...” (DAVEL &
VASCONCELOS, 1997, pp. 103-104).
Os autores citados acima lembram ainda que a figura do patrão é simbolizada com a
do pai, que é autoritária e generosa simultaneamente, pois se, no dia-a-dia, uma
unilateralidade do poder (ríspido e truculento), paradoxalmente exemplos de eminente
generosidade, seja no tratamento, seja nos favores concedidos. Enfim, um explícito
paternalismo daqueles que comandam a empresa. Diz Davel & Vasconcelos (1997):
A imagem da grande família remonta a figura do patrão que possuía ou
possui as virtudes da autoridade e da firmeza, combinadas às da
generosidade e da cordialidade. Este estilo paternalista tenta promover um
clima de camaradagem, cooperação e solidariedade próximo às
representações do universo familiar e opera por meio de uma troca: um
relacionamento direto e próximo dos patrões com os empregados, o que
inclui a distribuição de ajuda e de favores e a mediação nas situações
conflitivas, tendo como contrapartida sua lealdade e eterna gratidão
(DAVEL & VASCONCELOS, 1997, p. 105)
Analisando os depoimentos dos entrevistados Felício, Dario e Marcos (que trabalham
no setor formal) e com base no que comentamos acima, entendemos que inexistem práticas
democráticas no espaço do trabalho, ou melhor, em tal espaço “o patrão é quem manda”.
Todavia, este poder vem carregado de generosidade, ou seja, é perceptível a hierarquia
concomitante com a dimensão afetiva (ocorreu também com as empregadas domésticas), que
são próprias da ideologia relacional. Nas palavras dos sujeitos da pesquisa:
[sobre o patrão] É um cara sistemático. Tem dia que tá bom, tem dia que ta
ruim [você já deu alguma opinião na firma?] sim. Você falando ou não...
vai da cabeça dele. Você deu sua opinião, ele pergunta. ele faz do jeito
dele... ele é um cara estourado... ele fala alto”
“Na parte da doença assim... ele ajuda(grifo nosso). Nessa parte ele e um
cara 100%” (Felício).
“Ele não recebe opinião de ninguém. Ele é assim: pau é pau!”
[como é o patrão?] Boa gente. Estourado, só que precisou dele...” (Dario)
Portanto, a democracia está totalmente fora de cogitação nas organizações
freqüentadas pelos entrevistados, porque uma unilateralidade explícita por parte dos
empregadores. Nas empresas, a relação assimétrica é tão acentuada que pode desembocar em
posturas desumanas através da humilhação dos empregadores aos empregados. Segundo o
entrevistado Dario, no seu emprego anterior, foi demitido em função de ter externado uma
discordância com o patrão. O referido sujeito da pesquisa nos contou que presenciou o patrão
desqualificar aos gritos um dos seus colegas de trabalho; quando Dario foi reclamar sobre tal
procedimento, o patrão o demitiu. Nas palavras de Dario:
Eu tenho assim... por que ele (patrão) chegava as “veis” e quis criticar um
funcionário que “tava” fazendo o serviço, gritando com ele... eu acho isso
errado, eu cheguei no escritório dele e falei: Oh! Geninho quando a gente
tem um “pobrema”, chama o funcionário no escritório e “exprica” para ele...
eu falei para ele: Geninho cê” chama o funcionário no escritório e
“exprica” para ele. Você chama o funcionário no pátio, grita o funcionário,
você humilha o funcionário, e ninguém é palhaço teu, nós “somo”
empregado teu, nós “somo” empregado teu. Ele pegou e falou: você acha
que eu errado, vou mandar bater o teu aviso [aviso prévio, para a
dispensa do funcionário]... então senhor manda que eu tô indo embora
(Dario).
De acordo com Aguiar (2004), é freqüente a existência de maus tratos e humilhações
dos empregadores aos empregados no âmbito de certas empresas, no qual o citado autor
chama de assédio moral. Este pode ser definido como
Violência moral ou tortura psicológica... “surge e se propaga em relações
hierárquicas assimétricas, desumanas e sem ética, marcadas pelo abuso de
poder e manipulações perversas” ...”o poder é exercido por quem oferece
trabalho ao que está em relações de dependência e subordinação” A falta de
respeito aos semelhantes no local de trabalho é proveniente, na maioria das
vezes, da forte hierarquização organizacional: “podemos dizer que o assédio
moral se faz presente nos relacionamentos onde existe hierarquia de
poder”(AGUIAR, 2004, p.41)
Entretanto, somente no depoimento do entrevistado Dario, entre os homens, é que
ficou explícito o assédio moral, porém entre as mulheres que trabalham de empregadas
domésticas - em que comentamos anteriormente - o referido assédio é uma constante. Há
casos em que a humilhação relacionada ao trabalho deriva da própria atividade em si que
exercem, como ocorreu com Nara, que trabalha numa cooperativa de reciclagem de lixo, onde
sua função é recolher objetos do lixo nas ruas com vistas a reciclá-los. A referida entrevistada
nos confidenciou que sente o desprezo das pessoas ao exercer sua atividade, denotando que
no fundo concebe tal serviço como algo humilhante. Nas suas palavras:
[As pessoas desvalorizam o seu trabalho?] Com certeza. Eu achava que não,
mas depois que eu comecei a trabalhar nesse serviço, eu vi que sim. Tem
uns que o, outros acham que aquilo que você ta fazendo... por que é
lixeira (Nara)
Enfim, as dificuldades de existência de cidadania para os membros das classes
populares, aqui estudados, são infinitamente maiores do que as possibilidades. uma
inevitável exploração material juntamente com uma crassa disparidade em termos de relações
de poder no seio de determinadas empresas. A exploração econômica poderia ser minimizada
pela mobilização e articulação dos trabalhadores. Entretanto, tal procedimento é quase
impossível, uma vez que, -como observamos - não consciência política por parte dos
sujeitos da pesquisa, ou seja, sua visão de mundo é profundamente construída pela ideologia
relacional. Esta, ao fazer uma interpretação do espaço público com o código do espaço
privado (generosidade, relação pessoal, troca de favores etc), acaba despolitizando e
ocultando tanto a exploração quanto às relações de poder, tidas como naturais apesar dos
sujeitos da pesquisa não aceitarem o assédio moral. Por isso, a ideologia relacional
6
não pode
ser concebida como neutra, tendo em vista que alimenta e reproduz valores, procedimentos
nada afiados com a cidadania. Ademais, a condição social precária, a existência de altas taxas
de desemprego e a necessidade de prover a família (que é um valor moral e está ligado à
ideologia relacional) através do labor, impede qualquer postura recalcitrante no trabalho, pois
uma das formas mais pujantes para se estabelecer a dominação de classe é através da
manutenção do emprego. Por isso, principalmente para as mulheres que são empregadas
domésticas, a humilhação, opressão e preconceitos são “aceitos”, isto é, sua dependência
econômica é tão expressiva àquele determinado emprego (não têm recursos guardados para
eventual emergência e muitas mulheres são as principais provedoras) que se submetem a total
resignação diante de inúmeras violências que recebem. Notamos também que não
informações precisas sobre os seus direitos sociais (principalmente direitos trabalhistas), nem
como poderiam proceder para reivindicá-los. Tal desinformação é também alimentada pelo
excesso de trabalho que executam, haja vista que todas as mulheres entrevistadas mal
conseguem efetuar os inúmeros serviços impostos por suas patroas e aqueles que devem fazer
em suas casas. Observamos também que não um hiato entre a cidadania no espaço privado
e público: há uma profunda articulação, isto é, uma negação da cidadania no espaço do
trabalho - público (empresas) e privado do trabalho (empregadas domésticas)- que reflete,
outrossim, em outros espaços vivenciados pelas classes populares.
6
Afirmamos no início deste estudo, baseados em Gramsci, que a ideologia relacional difunde também valores
das classes dominantes.
Considerações Finais
Discutimos nesta pesquisa, a partir da ideologia relacional e de aspectos sócio-
econômicos, as possibilidades e dificuldades para a existência de cidadania, no espaço público
e privado, para seis famílias populares de um bairro periférico da cidade de Presidente
Prudente. Encerramos o presente estudo com breves e necessários comentários sobre os sete
capítulos desenvolvidos.
No capítulo 1, refletimos sobre a origem e evolução da cidadania a partir de alguns
importantes aspectos e fatos históricos em âmbito mundial. Para tanto, nos ancoramos numa
reflexão ampla, partindo do mundo antigo das sociedades greco-romanas, passando pela
sociedade feudal e pelo surgimento do capitalismo, pontuando, por fim, como as
transformações da sociedade contemporânea juntamente com o processo de globalização
vêm construindo uma nova moldura para a cidadania. Ficou-nos patente que cidadania não é
um conceito imutável. Nossa intenção foi demonstrar que em cada época histórica o seu
significado estava atrelado ao contexto sócio-econômico-político, expressando interesses de
classes e grupos sociais divergentes, bem como, vincula-se a um conjunto de transformações
presentes na sociedade, que, por sua vez, não amplia os direitos, mas, sobretudo, constrói
diferentes formas de exercício da cidadania.
No capítulo 2, nossa abordagem empenhou-se em analisar os primórdios e a evolução
da cidadania no Brasil, tendo como base alguns importantes aspectos sócio-econômicos e
políticos ocorridos no país. Assim, partimos desde o início do processo de ocupação,
mencionando os ciclos econômicos (Pau-brasil; Cana-de-açúcar; Mineração e Economia
Cafeeira), ressaltando alguns relevantes aspectos e fenômenos sócio-políticos presentes no
decorrer da história do Brasil. Objetivamos, com tal abordagem, contemplar uma visão global
acerca da cidadania no Brasil. Portanto, a partir desse trajeto histórico, podemos dizer que a
cidadania no Brasil, se comparada com épocas pretéritas, avançou muito. Todavia
principalmente -, as profundas desigualdades sociais, juntamente com os inúmeros problemas
emanados por ela, acabam fazendo com que a existência do cidadão se circunscreva, quase
totalmente, à dimensão formal, isto é, enquanto a elite tem inúmeros privilégios, estão vetados
à maioria do povo inúmeros direitos que possam lhe garantir cidadania plena.
No capítulo 3, efetuamos uma breve exposição sobre a história da cidade de Presidente
Prudente, ressaltando alguns de seus aspectos econômicos e políticos. Pudemos elucidar,
ainda que de forma bastante lacônica, que um eminente conservadorismo político, que é o
resultado direto da origem predominantemente agrária da cidade, expressando-se,
fundamentalmente, nos políticos eleitos para governarem a cidade. Sob esta ótica, o
coronelismo, o populismo e o clientelismo são práticas dominantes na referida cidade. Tais
procedimentos políticos têm uma vinculação com a ideologia relacional. Portanto, do ponto
de vista dos valores predominantes, a cidade alberga um clima cultural conservador, tendo
evidentes conseqüências para o exercício de práticas em sintonia com o espírito democrático
e, por conseguinte, para a cidadania.
Ainda neste capítulo 3, na segunda parte, evidenciamos que o conceito cidadania é
extremamente complexo. Refere-se a uma condição em que o sujeito tem garantido
legalmente, por intermédio da atuação do Estado, a existência de direitos sociais, civis e
políticos. Porém, a cidadania está longe de se limitar aos referidos direitos sancionados
juridicamente. Cidadania implica também em condutas em que prescindem o preconceito, a
discriminação, a intolerância, a exploração e a opressão. Contempla práticas éticas,
conscienciosas, críticas e dialógicas em sintonia como o espírito democrático. A
multiplicidade de atributos que lhes vem sendo concebida faz com que a cidadania seja um
elemento fundamental em nossa sociedade, porque a torna, suscetível de contemplar uma
infinidade de questões de ordem sócio-econômica, cultural e política. No instante em que a
cidadania contempla uma vasta gama de atributos, estando vinculada a diversos fatores
(social, econômico, cultural e político), isso tem implicações na sua realização plena: é algo -
pelo menos em nossa sociedade capitalista - utópico. Quando dizemos utópico, não é no
sentido ilusório do senso comum, que procura fugir da realidade ou concebê-la de forma
distorcida. Entendemos que a utopia contém um projeto de sociedade no qual todas as
potencialidades do homem podem ser expressas, prescindindo de práticas que venham a
desumanizá-lo por diversas formas. Em outras palavras, a utopia constitui uma alavanca
motivadora visando transformar, ininterruptamente, o real, procurando adequá-lo ao projeto
utópico. Por isso, a cidadania plena é parte desse projeto utópico, visto que implica
transformações profundas nas estruturas da sociedade, ecoando no espaço público e privado.
No capítulo 4, num primeiro momento, refletimos sobre a conexão entre a ideologia
relacional e a cultura popular. Demonstramos as diversas abordagens com referência à cultura
popular, ressaltando que, apesar de ser tida como a cultura das classes dominadas, ela é fruto
de uma mesma dinâmica social existente no país. Em razão disto, não procede a dicotomia
entre cultura erudita e cultura popular, significando dizer que a ideologia relacional permeia
toda a sociedade. Contudo, nas classes dominadas, tal ideologia é muito mais intensa.
Num segundo momento, nosso objetivo foi investigar como a ideologia relacional e
as questões ligadas à sobrevivência material (dimensão sócio-econômica) seriam obstáculos
para a existência da cidadania no espaço privado (espaço da casa). Nossa pesquisa etnográfica
com seis famílias populares e o fecundo diálogo com antropólogos (SARTI, 2003;
WOORTMANN, 1987 e DA MATTA; 1986), puderam confirmar a hegemonia da ideologia
relacional nas classes populares, ou seja, são bastante evidentes a hierarquia, a diferença
(materializada na diferenciação entre os papéis dos cônjuges e dos filhos), a força do grupo
(grupo familiar) e o enaltecimento da afetividade. Esforçamo-nos para elucidar que a pujante
presença dessa ideologia no espaço privado, juntamente com as dificuldades de sobrevivência
material - expressa, de forma marcante, na questão da moradia dificultam a presença de
cidadania no espaço da casa (espaço privado). Portanto, a cidadania poderá ser garantida
quando as questões atinentes à esfera material (moradia digna, ausência de exploração
material etc) forem supridas concomitantes com aspectos da ideologia relacional que a
dificultam. Isso significa que a existência da cidadania, na esfera privada, deve contemplar a
dimensão concernente à sobrevivência material. Porém necessita transcendê-la em muitos
aspectos. Ressaltamos um desses aspectos: a ideologia relacional, mas sabemos que
inúmeros outros que não pudemos contemplar neste estudo, até porque fugiriam do objetivo
desta investigação.
No capítulo 5, analisamos a cidadania a partir da problemática da habitação e do bairro
periférico. À medida que, um dos nossos propósitos, neste estudo, foi investigarmos a
cidadania na esfera privada, as questões circunscritas à moradia - juntamente com as do bairro
periférico – são imprescindíveis, uma vez que o universo privado refere-se ao espaço da casa.
Assim, refletimos sobre algumas causas (desigualdade social; custo elevado da moradia etc.)
que inviabilizam o acesso à moradia. Mencionamos também algumas conseqüências da
referida inacessibilidade (existência de favelas; cortiços etc.). Procuramos também descrever
e caracterizar a habitação de cada família entrevistada, onde evidenciamos a hegemônica
presença acerca da precariedade das casas e ausência de diversas melhorias no bairro. Sob
esta ótica argumentamos sobre os motivos que impedem a existência de cidadania. Todavia, é
possível efetuarmos uma outra leitura a partir do exposto acima: a luta pela cidadania, que
pode ocorrer a partir da própria inexistência de inúmeros direitos. Em outras palavras, se a
negação da cidadania é concretizada pelas precárias condições da casa e do bairro, isso não
significa dizer que a conquista por cidadania esteja totalmente mutilada. Nesse sentido, é que
“surgem os movimentos sociais urbanos, reivindicando melhorias nos setores de transporte,
da saúde, de habitação, de segurança etc” (SILVEIRA, p.233 1993). Enfim, a atuação de
grupos organizados não apenas exige direitos, mas, sobretudo, ajuda a politizar os seus
agentes no encaminhamento da luta, o que contribui para a construção de cidadania.
No capítulo 6, analisamos quais seriam as possibilidades de existência de cidadania,
no espaço privado, a partir da ideologia relacional e da sobrevivência material (esfera sócio-
econômica). Neste capítulo, também estabelecemos um diálogo com vários autores, assim
como nos apoiamos em nosso trabalho de campo. Para operacionalizarmos nossa reflexão,
priorizamos à análise a respeito do poder feminino, sobre a questão afetiva e no tocante à
solidariedade. Nesse sentido, procuramos demonstrar até que ponto, para as classes
populares, era verdadeira a idéia de que as relações entre os cônjuges deixam de ser
assimétricas em função do trabalho que a mulher realiza fora do lar. Como vimos, apesar da
heterogeneidade entre as famílias entrevistadas e a disparidade quase sempre favorecer o
homem, o trabalho da mulher apenas contribui para efetuar um diálogo nas questões que
envolvem a sobrevivência do grupo. A referida assimetria tem a ver com a ideologia
relacional. Contudo, gostaríamos de reiterar que os aspectos sócio-econômicos das famílias
entrevistadas têm um peso expressivo na presença de tal ideologia. Assim, não é somente pela
hegemônica
1
presença da ideologia relacional que a iniqüidade. Vimos que a maioria das
entrevistadas são empregadas domésticas, e que nesta atividade o rendimento é bastante
baixo, o que denota grande desprestigio. A execução desta atividade está ligada às suas
condições sócio-econômicas (principalmente no que tange à incipiente escolarização).
Havendo uma melhoria no tocante às referidas condições, ocorridas, fundamentalmente em
função de “melhores”
2
empregos que quase sempre são concomitantes a um maior grau
de escolaridade -, uma tendência de tais melhorias (melhor emprego, maior escolaridade
etc.) repercutirem nas relações entre os cônjuges, podendo ter pouco ou talvez nenhum espaço
para a presença hegemônica da ideologia relacional, como ocorre, sob certas ressalvas, em
segmentos sociais mais favorecidos.
Com relação à dimensão afetiva, nosso propósito foi o de verificar se ela não poderia
contribuir para a existência de relações igualitárias entre os cônjuges. A nossa maior
dificuldade, para refletirmos sob tal enfoque, foi a sua imensa complexidade e o fato de nos
exigir um imenso esforço interpretativo para darmos encaminhamento as reflexões. Algo que
nos chamou atenção, nesta abordagem, foi termos evidenciado que tanto nos homens, quanto
nas mulheres, houve a utilização da esfera afetiva para construírem relações desiguais. Por
1
Como pudemos verificar, a presença expressiva da ideologia relacional está intrinsecamente ligada às
condições sócio-econômicas das classes populares.
2
Optamos por colocar aspas nesta palavra (“melhores”) não por depreciarmos a atividade de empregada
doméstica, mas por sabermos que a sociedade concebe de um modo depreciativo, seja pelos parcos
rendimentos que lhes são pagos, seja pela total ausência de reconhecimento.
exemplo, os homens são muitas vezes autoritários em função do ciúme. Já as mulheres
impõem algo aos esposos em função do amor aos filhos. Estávamos esperando que a
afetividade estivesse apenas a serviço das mulheres. Isto denotou, simplesmente, um
preconceito (de nossa parte), visto que a figura da mulher, em nossa cultura, ainda é lembrada
fazendo menção aos atributos mais emotivos do que racionais
3
.
Quanto à solidariedade, procuramos perquirir que no espaço privado - a sua
existência por si jamais pode garantir cidadania plena. Na verdade, o que acontece na
esfera privada, de certa maneira, também revela o que ocorre na sociedade brasileira. Sob este
aspecto, é perceptível, na vida cotidiana e nos meios de comunicação de massas
4
, a presença
marcante de discursos que exaltam a importância e necessidade da solidariedade. Ocorre que
a manutenção de estruturas desiguais e opressoras da sociedade, materializadas nas profundas
desigualdades sociais, obstaculiza que somente pela a prática solidária venha surtir algum
significativo êxito para a grande maioria do povo.
No capítulo 7, inicialmente elaboramos uma reflexão a respeito da ideologia do
individualismo, objetivando entendê-la numa ótica global e esclarecer quais os seus nexos
com o conceito de espaço público. Além disso, procuramos pensar, a partir de elementos
históricos, por quais razões na sociedade brasileira a ideologia relacional, típica da esfera
privada, que tem a ver como coronelismo, populismo, clientelismo e patrimonialismo -
ocupa a esfera pública (típica da ideologia do individualismo), sem prescindir totalmente da
ideologia do individualismo. Quando há uma ocupação da esfera pública pela ideologia
relacional, temos como conseqüência a marcante presença da cultura política do favor em
detrimento da cultura política por direitos. Nessa linha de raciocínio, podemos dizer que a
presença da ideologia relacional, no espaço público, impede a existência de cidadania. Há,
contudo, uma outra possível leitura sobre a presença da ideologia relacional na esfera pública,
além, é claro, do que colocamos. Sabemos que a impessoalidade, predominante da
sociedade capitalista, na qual se materializa nas instâncias burocráticas (públicas ou privadas),
tende a desumanizar determinadas relações sociais. Será que a ideologia relacional, em certos
aspectos, ao priorizar as relações de amizade ou parentesco, não faz uma crítica subjacente a
determinadas relações desumanas e impessoalizadas típicas da nossa sociedade? Desta forma,
3
No livro “A cama na varanda” (LINS, 2000) a autora lembra que tanto os atributos emotivos ou racionais são
de ambos (homens e mulheres), porém a nossa cultura exalta que a educação feminina deve priorizar, com mais
intensidade, a fragilidade e docilidade feminina, como se fossem algo de sua própria natureza.
4
Recentemente vêm sendo veiculadas pelas emissoras de televisão (canal aberto) algumas propagandas que têm
como primado a valorização da solidariedade. Numa dessas propagandas uma senhora, com parcos recursos, não
consegue efetuar a compra da quantidade de pães desejados. Motivada pela solidariedade, a dona do
estabelecimento comercial doa outros pães à referida senhora. Ao final, o seguinte slogam: “solidariedade,
pratique esta idéia”.
mesmo que tal ideologia expresse tendências conservadoras, é possível, sob certas ressalvas,
que possa ser utilizada de um outro modo, não estando a serviço de procedimentos que
venham a negar a realização da cidadania.
Se no primeiro momento, a nossa abordagem procurou partir de reflexões teóricas
mais abrangentes, com o intuito de problematizar as dificuldades e possibilidades de
existência de cidadania, no espaço público, para as classes populares; no segundo momento
baseamo-nos, fundamentalmente, no trabalho de campo. Nosso propósito foi efetuar uma
análise dos obstáculos e viabilidades para a existência de cidadania no espaço público para as
famílias entrevistadas. Em razão do conceito de espaço público ser extremamente amplo e
complexo, procuramos limitá-lo ao espaço do trabalho. Esta abordagem merece um
esclarecimento. Ao analisarmos a cidadania no espaço privado (espaço da casa), para as
famílias pesquisadas, pudemos efetivamente operacionalizar o método etnográfico, isso
porque fizemos as entrevistas nas casas dos sujeitos da pesquisa, sendo viável uma
observação mais detalhada de inúmeros elementos considerados importantes. No que
concerne ao espaço público, ou seja, o espaço do trabalho, não foi possível a nossa presença.
Tal impossibilidade se deve, fundamentalmente, ao seguinte empecilho: como fazer uma
observação etnográfica no espaço do trabalho (que é, obviamente, uma residência) das
empregadas domésticas?. A mesma dificuldade se estende para o trabalho de coleta de lixo ou
de motorista. Por isso, nossas fontes são os depoimentos dos entrevistados e de algumas
pesquisas específicas sobre as relações sociais ocorridas no espaço do trabalho.
Como dissemos anteriormente, uma evidente negação de cidadania no espaço do
trabalho em razão da exploração, opressão e pela presença da ideologia relacional. Estes
obstáculos, que inviabilizam a cidadania no trabalho, repercutem em outros espaços,
principalmente no espaço privado; seja através dos parcos recursos, responsáveis diretos pela
dificuldade de sobrevivência material; seja pelo desgaste físico e psicológico, que trazem
conseqüências para o âmbito familiar. Gostaríamos de ressaltar que o enfoque, relatado acima,
que prioriza a análise da cidadania a partir da conexão entre a esfera pública e privada, foi em
boa parte viabilizado, considerando que a nossa concepção acerca de cidadania é complexa e
abrangente, não se limitando a preceitos puramente formais e jurídicos - como coloca a visão
liberal sobre a cidadania. Por isso, quando se fala sobre a cidadania, este conceito tem às
vezes significados diametralmente diferentes, visto que o seu conteúdo tem a ver com uma
visão de mundo a respeito do homem, da sociedade e das relações sociais. O sentido que
tentamos imprimir ao o conceito cidadania é àquele que se procura emancipar e humanizar as
relações sociais e a sociedade.
Enfim, a contribuição singular, neste estudo, é a de refletir sobre questões atinentes à
cidadania no universo público e privado, a partir de atributos culturais (ideologia relacional)
sem prescindir a dimensão material, seja ela política, social ou econômica.
Referências bibliográficas
ABREU, Dióres Santos. Formação histórica de uma cidade pioneira paulista: Presidente
prudente – SP. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Pres. Prudente. SP, 1972
Doutoramento.
___________. Poder político local no populismo Presidente Prudente SP. Instituto de
Pesquisas e Ciências Ambientais. UNESP – Pres. Prudente, 1982.
AGUIAR, André Luiz S. Assédio moral: fator de risco na relação de trabalho nas
organizações. Cadernos do CEAS, Salvador, nº 211, maio / junho de 2004, pp. 37-53.
ALENCAR, Mônica M. Torres. Transformações econômicas e sociais no Brasil dos anos
1990 e seu impacto no âmbito da família. In: Política Social, Família e Juventude. (orgs).
Sales, Mione Apolinário; Matos, Maurílio Castro de; Leal, Maria Cristina. São Paulo: Cortez,
2004.
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. A política social no governo Lula. Novos Estudos-
CEBRAP, nº 70, Novembro. 2004, pp. 7-17.
ARANTES, Antonio Augusto. Colcha de retalhos: estudos sobre a família no Brasil. ed.
Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. 14ª. São Paulo: Brasiliense, 1990.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de janeiro: Forense universitária, 2000.
ARBEX, José Jr. A outra América. São Paulo: Moderna, 1993.
AYALA, Marcos & AYALA, Ignez Novais. Cultura popular no Brasil. São Paulo: Ática,
1987.
BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro. 7ª Ed. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BILAC. E. D. Família de trabalhadores: estratégias de sobrevivência. São Paulo: Simbalo,
1978.
BOBBIL, Norberto. Igualdade e Liberdade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1997.
_______________ . A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
BOFF, Leonardo. América Latina: da conquista à nova evangelização. São Paulo: Ática,
1992
BORNHEIM, Gerd. Ética. TV Cultura, São Paulo: 1993.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Festim dos bruxos. Campinas: Ícone, 1984.
BRIGAGÃO, Clóvis & RODRIGUES, Gilberto. Globalização a olho nu. São Paulo:
Moderna, 1998.
BUENO, Eduardo. História do Brasil. São Paulo: Folha da manhã e Zero Hora, 1997.
BUARQUE, Cristovam. Os instrangeiros. Petrópolis – R.J: Garamond, 2002.
__________. A Revolução nas Prioridades. São Paulo: paz e Terra, 1994.
CANCLINI, Nestor Garcia. As culturas populares no capitalismo. São Paulo: Brasiliense,
1982.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002.
CASTILHO, José Roberto Fernandes. A Instituição da Cidadania. Revista da UNOESTE:
Questões de cidadania. São Paulo: Cliper, 1998.pp. 83-94.
CASTOR, Belmiro Valverde Jobim. O Brasil não é para amadores. Curitiba PR: IBQP,
2000.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo: Ática, 1995.
__________.Ética. São Paulo: TV Cultura, 1993.
__________. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 1986.
__________. Cultura do povo e autoritarismo das elites. In: A cultura do povo. . Edição.
(org). Edênio Vale e José Queiroz. São Paulo: Cortez, 1985.
__________. Repressão sexual. São Paulo: Brasiliense, 1987.
__________.Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. ed. São Paulo:
Moderna, 2001
COMPARATO, Fábio Konder. A nova cidadania. Revista política e cultura Lua Nova,
28/29, São Paulo: Marco Zero, 1993. pp. 85-106.
COVRE, Maria de Lourdes Manzini. O que é cidadania. ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1991.
__________. A formação e a ideologia do administrador de empresas. São Paulo: Cortez,
1991.
COUTINHO, Carlos Nelson. Democracia e Socialismo. São Paulo: Cortez,1992.
__________. Cidadania e Modernidade. São Paulo: Revista Perspectivas, 22, 1999, pp 41-
59.
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua. 3ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
___________. Conta de mentiroso - Sete ensaios de antropologia brasileira. Ed. Rio de
Janeiro: Rocco: 1994.
___________. O que é o Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
___________.O que faz o brasil, Brasil ?: Rio de Janeiro: Rocco, 2001
DAVEL, Eduardo Paes Barreto & VASCONCELOS, João Gualberto M. Gerência e
autoridade nas empresas brasileiras. In: Cultura organizacional e cultura brasileira. (org).
Mota, Fernando C. Prestes & Caldas, Miguel P. São Paulo: Altas, 1997.
DEMO, Pedro. Cidadania Tutelada e Cidadania Assistida. Campinas: Autores Associados,
1995.
__________. Conhecimento Moderno. Sobre Ética e Intervenção do Conhecimento.
Petrópolis: 1997.
__________. Pesquisa e informação qualitativa: aportes metodológicos. Campinas: Papirus:
2001.
__________. Cidadania Pequena. Campinas : Autores associados, 2001.
__________. Solidariedade como efeito de poder. São Paulo: Cortez, 2002.
DUMONT, L. O individualismo. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
DUARTE, Luiz Fernando. Da vida nervosa (nas classes trabalhadoras urbanas) RJ: Jorge
Zahar, 1986.
DURKHEIM, Émile. Sociologia. Org. José Albertino Rodrigues. São Paulo: Ática, 1995.
ESPINHEIRA, Gey. A casa e a rua. Cadernos do CEAS, n°144, Salvador, maio / junho de
2004, pp. 25-38.
FARIA, Vilmar & POTTER, Joseph. Televisão, telenovela e questão de fecundidade no
Nordeste. São Paulo: Revista Novos Estudos – CEBRAP, nº. 62, março de 2002, pp. 03-20.
FERREIRA, Maria Inês Caetano. Ronda da pobreza: violência e morte na solidariedade.
Revista Novos Estudos- CEBRAP – Julho de 2002. pp. 167-177.
FERRARI, José. A alta sorocabana e o espaço polarizado de Presidente Prudente PP: FAFI,
1972.
FERREIRA, Pedro Roberto. Política e sociedade: as formas do Estado. In: Iniciação à
sociologia. Coord. Nelson Dacio Tomazi. São Paulo: Atual, 1993a.
FERREIRA, Nilda Teves. Cidadania. Uma questão para a educação. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1993.
FREITAS, Alexandre Borges. Traços brasileiros para uma análise organizacional. In: Cultura
organizacional e cultura brasileira. (org). Mota, Fernando C. Prestes & Caldas, Miguel P.
São Paulo: Altas, 1997.
FIGUEIREDO, Vilma. Modernização sem reforma: uma solução precária para a questão
agrária no Brasil. In: Questão e reforma agrária nos anos 80. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
JOSÉ FILHO, Mário. A família como espaço privilegiado para a construção da cidadania
Tese de doutorado. Franca – SP: UNESP, 1996.
FLORENZANO, Maria Beatriz B. O mundo antigo: economia e sociedade. 4ª. Edição. São
Paulo: Brasiliense, 1989.
GIKOVATE, Flávio. Homem: o sexo frágil ? São Paulo: Editores associados ltda, 1989.
GORENDER, Jacob. Globalização, tecnologia e relações de trabalho. Revista da USP –
Estudos Avançados 11 (29) São Paulo: USP, 1997, pp. 311-349.
GRAMSCI, Antonio. A política e o Estado moderno. Trad. Luiz M.G. .2ª ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1976.
GUARINELLO, Luiz Norberto. Cidade-estado na antiguidade clássica. In: História da
cidadania. (orgs). Jayme Pinsky & Carla B. Pinsky. São Paulo: Contexto, 2003.
HESPANHOL, Antonio Nivaldo & HESPANHOL, Rosangela Aparecida. A agropecuária no
município. In: Conjuntura 2002. Presidente Prudente: UNESP, 2002.
HOBBES, Thomas. Os pensadores. Tradução de João P. M. e Maria Beatriz N. S. São Paulo:
Nova cultural, 1999.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21ª. Edição. Rio de Janeiro, 1986.
JOUCHELOVITCH, Sandra. Representações sociais e esfera pública. Petrópolis: Vozes,
2000.
JÚNIOR, Celso Azzan. Antropologia e interpretação. Campinas – SP: Unicamp, 1993.
KING, Desmond S. O Estado e as Estruturas Sociais de Bem-Estar em Democracias
Avançadas. Trad. Artur R. B.Parene. São Paulo: Novos Estudos- CEBRAP 22 Outubro
de 1998, pp 45-52.
KOWARICK, Lúcio. Escritos urbanos. São Paulo: 34, 2000.
_____________. Viver em risco Sobre a vulnerabilidade no Brasil urbano. Revista Novos
Estudos- CEBRAP – nº 63; julho 2002, pp. 167-177.
LAPLANTINE, François. Aprender antropologia. São Paulo: Brasiliense, 1989.
LEBRUM, Gerard. O que é poder. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.
LINS, Regina Navarro. A cama na varanda. Rio de Janeiro,: Rocco, 2000.
LUCA, Tânia Regina. Direitos sociais no Brasil. In: História da cidadania. (orgs). Jayme
Pinsky & Carla B. Pinsky. São Paulo: Contexto, 2003.
MAUTNER, Yvonne. A periferia como fronteira de expansão do capital.In: O processo de
urbanização no Brasil. Orgn. Csaba Deák & Sueli Ramos Shiffer. São Paulo: Edusp, 1999.
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão - A vida pelo vídeo. ed. São Paulo: Editora
Moderna, 1993.
McLELLAN, David. As idéias de Marx. São Paulo: Cultrix, 1975.
MARTINS, Humberto Falcão. A ética do patrimonialismo e a modernização da administração
pública brasileira. In: Cultura organizacional e cultura brasileira. (org). Mota, Fernando C.
Prestes & Caldas, Miguel P. São Paulo: Altas, 1997.
MARTINS, José de Souza. O poder do atraso. SP: Hucitec, 1992.
MARTINS, Carlos Estevam. Da globalização da economia à falência da democracia. Revista
Economia e Sociedade. Campinas: UNICAMP, 1996, pp. 1-23.
MARICATO, E. A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São
Paulo: Alfa-Ômega, 1982.
MARSHALL T.H. Cidadania, Classe Social e Status. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.
MELO, M. A.B.C. ”Classe, Burocracia e intermediação de Interesses n Formação da Política
de habitação. Revista Espaço e Debates. São Paulo, n° 25, 1989, pp. 75-85.
MELLO, Sylvia Leser de. Família: perspectiva teórica e observação factual. In: A família
contemporânea em debate. Org. Maria do Carmo Brant Carvalho. São Paulo: Cortez, 1997.
MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes,
1994.
OLIVEIRA, Pedro Paulo. Crises, valores e vivências da masculinidade. Revista Novos
Estudos- CEBRAP – nº 56; março de 2000, pp. 77-88
PRATES, Marco Aurélio Spyer & BARROS, Betânia Tanure. O estilo brasileiro de
administrar: sumário de um modelo de ação cultural brasileiro com base na gestão
empresarial. In: Cultura organizacional e cultura brasileira. (org). Mota, Fernando C. Prestes
& Caldas, Miguel P. São Paulo: Altas, 1997.
PEREIRA, L. C. Bresser. Desenvolvimento e crise no Brasil. 13ª. Edição. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
PINSKY, Carla Bassanezi & PEDRO, Joana Maria. Igualdade e especificidade In: História
da cidadania. (orgs). Jayme Pinsky & Carla B. Pinsky. São Paulo: Contexto, 2003.
PORCHMANN, Márcio. Globalização e emprego. Revista Novos Estudos. nº. 45.. São
Paulo: CEBRAP, 1996, pp. 133-149.
PRIOLLI, Gabriel. Para além do cidadão Kane. Documentário sobre a Rede Globo de
Televisão. Londres: BBC, 1993.
REIS, José Roberto Tozoni. Família, emoção e ideologia. In: Psicologia Social. Orgs. Lane,
S.T.M. & Codo, W. São Paulo: Brasiliense, 1989.
RIGOL, Pedro Negre. Sociologia do terceiro mundo. Petrópolis: vozes, 1977.
RIBEIRO, Luiz Cezar de Queiroz. Dos cortiços aos condôminos fechados. Rio de Janeiro:
Civilização brasileira, 1997.
RODRIGUES, Arlete Moyses. Moradia nas cidades brasileiras. São Paulo: Contexto, 1989.
ROUANET, Sérgio Paulo. A razão cativa. 3ª. Edição. São Paulo: Brasiliense, 1990.
__________. Mal-Estar na modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.
__________. Imaginário e dominação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
SARTI, Cyntia A. O valor da família para os pobres. In: Família em processos
contemporâneos: inovações culturais na sociedade brasileira. Org: Ribeiro, Ivete & Ribeiro,
Ana Clara T. São Paulo: Loyola, 1995.
__________. A família como espelho. São Paulo: Cortez, 2003.
SALES, Teresa. Raízes da desigualdade social na cultura política brasileira. Revista
Brasileira de Ciências Sociais. Nº 25; ano 9, junho de 1994, pp. 27-37..
SILVEIRA, Ricardo de Jesus. Os movimentos sociais. In:Iniciação à Sociologia. Org. Nelson
Dacio Tomazi. São Paulo: Atual, 1993.
SILVEIRA, Ubaldo. Reforma Agrária. A esperança dos “Sem-Terra”. Franca: Unesp -
Franca, 2003.
SAMARA, E. M. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1986.
SANTOS, José Luiz. O que é cultura. São Paulo: Brasiliense, 1983.
SINGER, Paul. Desenvolvimento econômico e evolução urbana. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1977.
__________. O uso do solo urbano na economia capitalista. In: Boletim paulista de
Geografia. São Paulo: AGB, 1980.
__________. A cidadania para todos. In: História da cidadania. (orgs). Jayme Pinsky & Carla
B. Pinsky. São Paulo: Contexto, 2003.
__________. O feminino e o feminismo. São Paulo: CEBRAP, maio 1981, pp.109-134.
__________.Globalização positiva e globalização negativa: a diferença é o Estado. Revista
Novos Estudos CEBRAP. Nº 48, julho de 1997, pp 29-38.
SILVA, Ricardo Toledo. A regulação e controle público da infra estrutura e dos serviços
urbanos no Brasil.In: O processo de urbanização no Brasil. Orgn. Csaba Deák & Sueli
Ramos Shiffer. São Paulo: Edusp, 1999.
SOUZA, Itamar de. O compadrio: da política ao sexo. Petrópolis – RJ: Vozes, 1981.
SPINK, M. J. P. (org.). A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São
Paulo: Cortez, 1994.
SPOSITO, Eliseu. A formação histórica. In: Conjuntura 2002. Presidente Prudente: UNESP,
2002.
SPOSITO, Maria Encarnação. O chão em Presidente Prudente: a lógica da expansão
territorial. Rio Claro: Unesp, 1983.
TELLES, Vera da Silva. Pobreza e cidadania. São Paulo: 34 LTDA, 2001.
TORRES, Anália. A individualização no feminino, o casamento e o amor. In: Família e
individualização. Organ. Clarice E. Peixoto; François de S. Vicenzo C. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000.
VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 1997.
VÉRAS, Maura Pardini & BONDUKI, Nabil Georges. Política habitacional e a luta pelo
direito à moradia. In: A cidadania que não temos. (orgs). Corre, Mária de Lourdes. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
VILLAÇA, Flávio. O que todo cidadão precisa saber sobre habitação. São Paulo: Global,
1986.
WARREN, Ilse Scherer. Cidadania sem fronteiras: ações coletivas na era da globalização.
São Paulo: Hucitec, 1999.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1981.
WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1989.
WOORTMANN, Klaas. A família das mulheres. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1987.
WHITAKER, Dulce. Mulher & homem O mito da desigualdade. São Paulo: Moderna,
1988.
YAZBEK, Maria Carmelita. Classes subalternas e assistência social.4ª. edição. São Paulo:
Cortez, 2003.
__________. Globalização, precarização das relações de trabalho e seguridade social. Revista
do Serviço Social & Sociedade n° 57. São Paulo: Cortez, 1998, pp. 50-59.
ZAMBERLAM, Cristina de Oliveira. Os novos paradigmas da família contemporânea. São
Paulo: Renovar, 2001.
ZERON, Carlos. A cidadania em Florença e Salamanca. In: História da cidadania. (orgs).
Jayme Pinsky & Carla B. Pinsky. São Paulo: Contexto, 2003.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo