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MARCO ALEXANDRE DE SOUZA SERRA
Economia política da pena
Dissertação apresentada perante o curso de
Pós-graduação em Direito da Faculdade de Di-
reito da Universidade Federal do Paraná, co-
mo requisito parcial para obtenção do grau de
Mestre.
Curitiba
2007
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ii
MARCO ALEXANDRE DE SOUZA SERRA
Economia política da pena
Dissertação aprovada como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre, no curso de
Pós-graduação em Direito da Faculdade de Di-
reito da Universidade Federal do Paraná, pela
comissão formada pelos professores:
Orientador: ____________________________________________
Prof Dr Juarez Cirino dos Santos
____________________________________________
Prof Dr Juarez Tavares
____________________________________________
Prof Dra Katie Silene Cáceres Arguello
Curitiba/PR, julho de 2007.
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iii
DEDICATÓRIA
Às mulheres da minha vida:
DALVINA, porque me apóia em qualquer circunstância;
FRANCISCA, porque reza por mim com uma sinceridade rara
em quem se dedica a estas coisas;
NICE, porque me ampara só por existir;
finalmente, ANA PAULA, porque é minha “parcera” de todos os momentos:
não fosse ela esta jornada não teria se finalizado, nem começado.
iv
AGRADECIMENTOS
Nada se faz sozinho, ainda que solitariamente. Todo trabalho, enquanto atuação hu-
mana junto à realidade, é um produto social para o qual incontáveis anônimos contribuem. A
todos eles o meu sincero agradecimento.
Mas há, dentre os que me ajudaram, aqueles que conheço e me recordo muito bem
dos nomes. Durante o período em que cursei meu mestrado em Curitiba eles foram simples-
mente extraordinários. Ao contrário do que ocorre com a dedicatória, são todos homens e, por
curiosidade, podem ser agrupados em duplas. O meu fraterno e profundo agradecimento a:
LINCOLN e ERNANI;
EVERALDO e MAICON;
EDNEY e ALYSSON.
Exemplos de generosidade e amizade.
Além deles, outros também me ajudaram diretamente.
Obrigado ao Professor JUAREZ CIRINO: mestre de sempre; austero nas convicções
e generoso e afável no trato pessoal.
Muito obrigado à Secretaria do PPGD, especialmente nas pessoas de LAURA e
SANDRA.
Por fim, à RITA da biblioteca, meu imenso obrigado.
v
RESUMO
Esta dissertação objetivou discutir as características do Estado capitalista, com ênfase ao pa-
pel reservado ao sistema punitivo, que é parte da sua atuação política integral, no seu concreto
funcionamento. Isto reclamou, inicialmente, a descrição e discussão das estruturas estatais
conhecidas, cuja origem remontam ao surgimento das relações sociais de tipo capitalista. O
Estado consiste na instância privilegiada para o exercício do poder punitivo, e as estratégias
de legitimação e de dominação política condicionam o seu funcionamento, de acordo com a
correlação de forças sociais vigente em determinado período histórico. A compreensão destas
questões exigiu percorrer a história do poder punitivo moderno. Pressupondo-se que o curso e
o desenvolvimento do sistema capitalista se diferencia segundo o lugar que ocupa no sistema
global, procedeu-se a uma abordagem similar quanto ao Brasil, na condição de país periférico
e de capitalismo dependente. Assim foi possível observar peculiaridades do padrão de funcio-
namento deste específico Estado, em especial, de seu poder punitivo. Conclui-se ser possível
estabelecer alguns vínculos que conectam os discursos legitimantes do poder punitivo, generi-
camente intituladas de teorias da pena à estrutura social para a qual ela se destina.
vi
ABSTRACT
This work objectified to argue the characteristics of the capitalist State, with emphasis to the
private paper to the punitive system that is part of its performance integral politics, in its con-
crete functioning. This complained, initially, the description and quarrel of the known state
structures, whose origin retraces to the sprouting of the social relations of capitalist type. The
State consists of the privileged instance for the exercise of the punitive power, and the domi-
nation and legitimating strategies politics condition its functioning, in accordance with the
correlation of social forces effective in determined historical period. The understanding of
these questions demanded to cover the history of the modern punitive power. Estimating itself
that the course and the development of the capitalist system if according to differentiate place
that occupies in the global system, it was proceeded a similar boarding how much to Brazil, in
the condition of peripheral country and dependent capitalism. Thus it was possible to observe
peculiarities of the standard of functioning of this specific State, in special, of its punitive
power. It is concluded to be possible to establish some bonds that connect the legitimates
speeches of the punitive power, generically entitled of theories of the punishment to the social
structure for which it destines itself.
vii
ÍNDICE
DEDICATÓRIA........................................................................................................................iii
AGRADECIMENTOS..............................................................................................................iv
RESUMO ..............................................................................................................................v
ABSTRACT .............................................................................................................................vi
ÍNDICE ............................................................................................................................vii
INTRODUÇÃO..........................................................................................................................1
CAPÍTULO I – O ESTADO MODERNO E SUAS RELAÇÕES PUNITIVAS.......................7
1. Estado moderno: tentativa de descrição. ........................................................................7
2. O poder punitivo e a dominação burocrática................................................................14
2.1 Controle social: uma noção problemática. .........................................................14
2.2 Poder legal e dominação legítima.......................................................................16
2.3 Poder disciplinar e razão de Estado....................................................................22
3. As estratégias de legitimação e as funções do Estado capitalista.................................27
3.1 Características da “mercadoria” força de trabalho .............................................33
3.2 A função precípua do Estado..............................................................................35
3.3 Crises econômicas e políticas: um teorema acerca da crise de legitimidade......37
3.4 Os limites da legitimação burocrática: seu reforço e seus sintomas...................40
4 A dominação política e o concreto funcionamento do sistema penal...........................45
CAPÍTULO II - A GESTÃO PUNITIVA DA FORÇA DE TRABALHO: UMA BREVE
PERIODIZAÇÃO...............................................................................................52
1. As condições sociais da Baixa Idade Média e a prisão pré-capitalista.........................54
2. A instituição da prisão como pena: o mercantilismo....................................................58
2.1 O papel da confissão religiosa............................................................................61
3. A consolidação da prisão como pena: a Revolução Industrial e o liberalismo
econômico.....................................................................................................................63
4. O Estado de bem-estar e sua reelaboração da estratégia punitiva. ...............................71
4.1 Readaptação de funções......................................................................................74
CAPÍTULO III - O CONTROLE SOCIAL PÓS-FORDISTA: A BIOPOLÍTICA
COMBINADA AO MASS INCARCERATION. .................................................80
1. Condições políticas e econômicas da Grande Transformação .....................................81
1.1 Menos uma contingência do que uma deliberação.............................................85
1.2 A informatização da produção e a reorganização produtiva pelo capital...........89
1.3 Da providência à penitência (e sua interpenetração)..........................................95
2. A re-privatização penitenciária.....................................................................................99
2.1 Breve história das prisões privadas: o surgimento da penitenciária.................101
2.2 Breve história das prisões privadas: seu ressurgimento. ..................................103
CAPÍTULO IV – O ESTADO DEPENDENTE E SUAS PRÁTICAS PUNITIVAS ...........107
1. Estado dependente e dominação política....................................................................111
2.1 Reminiscências medievais................................................................................121
2. Funções do Estado dependente e o sistema penal brasileiro. .....................................124
CAPÍTULO V – SISTEMAS PENAIS BRASILEIROS .......................................................131
1. O sistema colonial-mercantilista. ...............................................................................131
1.1 Controle social dos índios ................................................................................136
2. O sistema imperial-escravista.....................................................................................137
2.1 O controle social do império: o problema da mão-de-obra..............................142
2.2 A disciplina imperial-escravista: surgimento da penitenciária brasileira.........145
3. O sistema republicano-positivista...............................................................................152
3.1 O controle social da primeira República: o positivismo-criminológico...........157
viii
3.2 O Estado intervencionista-autoritário e o positivismo jurídico........................163
3.3 A industrialização e sua configuração político-penal.......................................172
3.4 A ditadura militar e a ideologia da segurança nacional....................................181
4. O sistema penal do capitalismo financeiro e dependente...........................................187
4.1 Da segurança nacional à segurança pública. ....................................................193
CAPÍTULO VII – MODELOS DE ESTADO E TEORIAS DA PENA................................200
1. Pena: uma confusão conceitual...................................................................................202
2. Teorias da pena...........................................................................................................207
2.1 A pena como retribuição...................................................................................207
2.2 A pena como prevenção especial......................................................................208
2.3 A pena como prevenção geral. .........................................................................211
3. Utilitarismo e razão de Estado....................................................................................213
CONCLUSÕES......................................................................................................................218
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................................222
INTRODUÇÃO
O problema da legitimidade do direito penal, enquanto discurso legitimante de uma
específica modalidade de controle social constitui o problema da legitimidade do próprio Es-
tado enquanto monopólio organizado do uso da força.
1
Daí resulta que a compreensão do fun-
cionamento do poder punitivo exercido pelo Estado exige analisá-lo à luz de sua própria es-
trutura. Numa sociedade dividida em classes, na qual uma detém a propriedade dos meios de
produção de riqueza social e outra a propriedade da força de trabalho (de que seu corpo é a
melhor e às vezes única expressão) também necessária à geração dessa riqueza, o Estado pos-
sui uma configuração específica. Esta configuração é quase sempre a referência necessária,
pois além de histórica é paradigmática; surgiu com a sociedade burguesa capitalista e repre-
senta uma de suas estruturas fundamentais. Por isso é pelo menos impreciso falar-se em Esta-
do antigo, medieval ou feudal.
2
Afinal, a primeira estrutura de poder centralizada o Estado
absolutista tem sua existência histórica registrada nos albores da generalização da sociedade
produtora de mercadorias, quando se anunciava a necessidade de acumulação de capitais
para a reprodução e aprofundamento das relações sociais baseadas na lei do valor. Era o tem-
po da chamada acumulação primitiva. Foi com a concentração dos meios de administração,
comunicação, transporte e, principalmente, policiamento e guerra, que o aparelho estatal co-
meçou a assumir um formato unitário. Por isso não é incorreto dizer que o primeiro Estado é o
absolutista.
Antes de referenciar o conteúdo da investigação aqui realizada, é necessário realizar
algumas precisões conceituais e outras opções interpretativas que caracterizam um referente
metodológico, mas que no fundo não deixa de ser político. A primeira destas opções repousa
sobre o tipo de abordagem acerca do Estado e das penas por ele aplicadas aqui adotado, que
genericamente se poderia intitular materialista. No interior desta abordagem, muitas vertentes
se abrem. Contudo delas interessam apenas alguns pontos convergentes, precisamente aqueles
que afastam qualquer simplificação quanto ao caráter de classe que o Estado capitalista neces-
sariamente assume. Com isso se tornará possível repelir qualquer teoria conspiratória e que
tende a tomar o Estado como mero reflexo superestrutural da base econômica ou simples ob-
jeto à disposição da burguesia. Isto implica a aceitação de certa autonomia da estrutura estatal
perante a forma social ou frente ao contexto das relações produtivas nas quais se inscreve.
1
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 231.
2
HIRSCH, Joachim. ¿Qué significado Estado? Reflexiones acerca de la teoría del Estado capitalista. In: Revis-
ta de Sociologia e Política, 24, Curitiba, jun/2005, p 165-175.
2
Inegavelmente também exprime um ganho metodológico que costuma se creditar a
POULANTZAS,
3
mas pode ser encontrado já em MARX, sobretudo no Dezoito Brumário de
Louis Bonaparte.
4
Certamente esta relativa autonomia se deve tributar à importância, no limi-
te até cognitiva, que a luta de classes realizada no interior do Estado. Ou, em outros termos, a
instância política requer toda a atenção para a análise de qualquer fenômeno histórico, como o
Estado e o seu funcionamento.
Estas considerações tendem a assumir uma importância decisiva, especialmente se se
atinar para o fato de que, dentro de uma tradição política que tem no funcionamento da eco-
nomia um de seus elementos centrais de análise,
5
os debates costumam se dar na disputa pela
primazia deste princípio metodológico. Na verdade questões como estas frequentemente têm
de ser enfrentadas. Na análise simultânea do controle punitivo realizado pelo Estado e a con-
formação das relações de produção que se pretende inventariar logo mais, serão recorrentes
discussões acerca da influência mais ou menos autônoma de fatores culturais, políticos, ideo-
lógicos enfim, sobre o desenvolvimento histórico desta instituição social que é a pena estatal.
Sem embargo, parece necessário desde logo tomar de empréstimo, para então deixar
fixada, a seguinte premissa, clássica e também por isso decisiva para análise de qualquer
sistema penal: “Todo sistema de produção tende a descobrir punições que correspondem às
suas relações de produção.”
6
Com isto estabelece-se o eixo metodológico fundamental deste
trabalho, o qual, sem ignorar os reflexos e projeções de instâncias ideológicas e culturais as
mais variadas (jurídicas, políticas, religiosas...) coloca o acento sobre a maneira pela qual os
3
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. 3 ed. São Paulo: Graal, 1990, p 103.
4
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Louis Bonaparte. 2 ed. São Paulo: Centauro, 2000. A este respeito, ver
CODATO, Adriano N. O 18 Brumário, política e pós-modernismo. Lua Nova, n 63. 2004, p 85-115. Nele o
autor, apesar de reconhecer a irredutibilidade da política à economia, interpreta o Dezoito Brumário de forma
contextualizada na obra de Marx e conclui que no seu sistema a primazia sempre recairá sobre a instância eco-
nômica. CODATO nos convida para interpretar os “escritos históricos” de MARX de que o Dezoito Brumário
é exemplo – a partir de seus trabalhos metodológicos – de que talvez o clássico Prefácio à contribuição à crítica
da economia política (encontrado em FERNANDES, Florestan (org). Marx/Engels História. 2 ed. São Paulo:
Ática, 1989, pg. 231-235) seja também o exemplo mais acabado. Isto evidentemente não implica a adoção de
uma única causa, antes define como princípio metodológico de sua teoria a prevalência, em última instância,
cognitiva das relações de produção, somente no interior das quais, aliás, é que se poderá falar em classes sociais:
“Por que não pensar, enfim, que a luta de classes é inexplicável sem referência às classes, e que as classes sim-
plesmente não existem fora das (ou anteriormente às) relações de produção?”
5
Neste contexto distinguem-se, por exemplo, análises intituladas derivacionistas das que acatam a indissociabi-
lidade que diferencia os contextos político e econômico. Nestas últimas inclui-se, por exemplo, POULANTZAS,
enquanto as primeiras que tendem a explicar o funcionamento do Estado capitalista segundo sua simbiose com
as crises de acumulação de capital parecem ser a opção adotada por JOACHIM HIRSCH. A respeito, ver
CARNOY, Martin. Estado e teoria política. 4 ed. Campina: Papirus, 1994, p 166 e segs.
6
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutural social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p.
18.
3
homens se relacionam para combater a escassez dos bens materiais necessários à sua sobrevi-
vência, ou seja, suas relações de produção.
uma interessante interpretação sobre este assunto, realizada principalmente à luz
do Prefácio à contribuição à crítica da economia política que MARX publicou em 1859;
apesar de referida especialmente ao direito, serve aqui de parâmetro: o papel exercido pela
base econômica mais se afeiçoa ao de uma dominância do que ao de uma determinação. O
direito, por exemplo, também influi sobre a base estrutural geral. Os modos de produção são
estados de uma estrutura social integrada por uma base econômica, mas também por formas
jurídico-políticas e ideológicas, que são como que estruturas regionais. Na estrutura global
uma das regionais domina as demais
7
. No capitalismo a estrutura econômica domina, assim
como na Idade Média dominava a ideológica (catolicismo). Cada modo de produção apresenta
regimes específicos de articulação entre as estruturas regionais. Cada uma dessas subestrutu-
ras tem relativa autonomia e exercem influência recíproca, o que não deixa de conduzir à pre-
valência, inclusive epistêmica, daquela econômica.
Na interpretação de EROS GRAU, o que a realidade material determina é qual das es-
truturas regionais será dominante. No capitalismo a economia ocupa o papel dominante da
estrutura global e concomitantemente ela determina essa dominação.
8
Mas isto não implica
que o direito e também a política não sejam um elemento constitutivo do modo de produção,
ao mesmo tempo por ele informado e determinado. Em suma, a tese da dominação em última
instância parece continuar sendo válida e se distingue da interpretação vulgar segundo a qual
as determinações materiais atuam mecanicamente inclusive sobre o pensamento.
Em função desta imbricada existência que designa o exercício de poder punitivo e a
instância política privilegiada para este exercício, uma periodização das formas de punição
adotadas na sociedade burguesa, aqui abstratamente considerada, não pode prescindir de uma
descrição, ainda que despretensiosa, das formas e estruturas que o Estado assumiu, enfim, das
estratégias de dominação política sobres as quais repousa sua legitimação. Para melhor com-
preensão desta problemática parece necessário que esta tentativa de descrição seja prévia à
consideração do desenvolvimento histórico das estratégias de punição adotadas e assumidas
7
GRAU, Eros. La doble desestructuración y la interpretación del derecho. Barcelona: Boschi, 1998, p 44.
8
GRAU. Ob citada, p. 46. Desta conclusão também comunga POULANTZAS, O Estado, o poder, o socialismo,
p. 100.
4
por este mesmo Estado, cuja forma essencial consiste na prisão. Desta descrição se ocupa o
primeiro capítulo, enquanto o segundo se detém sobre a história do poder punitivo moderno.
O momento atual do capitalismo pós-industrial, porém, dadas as peculiaridades que encerra,
forçou a uma análise mais aprofundada, o que conduziu, em virtude somente da expansão do
volume do texto, à criação de um capítulo em separado – o capítulo III.
Depois de percorrido este trajeto histórico no qual se tomou por objeto os aspectos e-
volutivos de um sistema penal, ao mesmo tempo genérico e próprio dos países centrais do
capitalismo mundial, definiu-se percorrer uma rota similar, porém paralela, porque traduzida
para as regiões periféricas deste mesmo sistema. As razões que conduziram a esta opção são
elementares: embora o desenvolvimento do capitalismo de determinado país ou região em
princípio obedeça às mesmas leis gerais e se submeta às mesmas categorias, seu curso e o
lugar que ocupa no sistema global, se diferencia segundo a posição econômica e política em
que ele se desenvolve. Este raciocínio é perfeitamente adaptável à análise dos sistemas penais,
certamente porque os aqui analisados são próprios do modo de produção e distribuição de
riqueza e poder a que já se fez alusão.
Daí que a mesma receita seja utilizada nos capítulos subseqüentes (IV e V), dedicados
ao Estado dependente e suas formas punitivas. O enfoque, porém, não setão genérico. A
reflexão não se ocupa de um Estado dependente arquetípico ou de um padronizado Estado
latino-americano, muito embora também enfatize as variáveis independentes que caracterizam
os países periféricos de nosso subcontinente. Mais precisamente, sobretudo quando intenta
fazer uma condensada historiografia dos sistemas penais, o texto toma por objeto aqueles que
vigoraram no Brasil. Disto resulta a ênfase em nossas peculiaridades, o que conduz implica
considerar as variáveis cuja conformação dependem, não apenas de nossa posição econômica
perenemente dependente, mas também de nossa cultura, de nossas permanências de matiz
tradicional. Por isso, alguma variação metodológica se fez necessária: para a compreensão das
especificidades do desenvolvimento do Estado brasileiro e as práticas punitivas que lhe cor-
respondem, é necessário entender um pouco mais das especificidades do seu padrão geral de
sociabilidade e de dominação política. Portanto, convém dedicar mais de atenção ao desen-
volvimento histórico de certas idéias e, talvez mais importante, às reminiscências que algumas
delas (ainda hoje) projetam em nosso imaginário.
5
Além disso, não seria conveniente concluir a investigação sem procurar estabelecer
alguns vínculos que conectam a forma jurídica à estrutura social para a qual ela se destina.
Mais precisamente, a pesquisa ficaria muito incompleta se não enfrentasse os discursos que se
orientam em legitimar o poder punitivo do Estado, comumente denominados teorias jurídicas
da pena. Isto pela singela constatação de que o discurso é necessário para o exercício do po-
der. Embora o exercício de poder que caracteriza o direito penal nem sempre se manifeste
amparado por um discurso, mesmo quando funciona à margem de seu principal vetor de legi-
timação que é a legalidade, ele frequentemente encontra um respaldo discursivo.
A partir destes vínculos é que transparece a característica comum a todas as teorias
preventivas, orientadas em sempre atribuir um fim ao poder punitivo para que não tenha que
abrir mão de utilizar do meio da pena. Este traço, para o qual todas convergem, parece estar
na racionalidade que as preside. Isto não significa dizer que a instância decisiva descansa no
nível da intenção dos sujeitos, o que seria compartilhar da suposição de que os atores huma-
nos, através de suas ações intencionais, configuram os elementos básicos da sociedade. Se o
eixo metodológico desta dissertação possui o perfil a que anteriormente aludi, assumir este
outro ponto de vista epistemológico traduziria um paradoxo insustentável. Tal paradoxo pode
ser desfeito a partir da ênfase dada às práticas humanas, que segundo um determinado esque-
ma conceitual, ocupam a posição de charneira entre o modo que os homens se organizam
para combater a escassez dos bens necessários à sua sobrevivência suas relações de produ-
ção e suas representações mentais. A resultante desta operação consiste em destronar o su-
jeito consciente do altar epistemológico, pois, segundo esta perspectiva, ele é menos produtor
do que produto destas práticas, que afinal são realizadas por estes sujeitos.
Finalmente, convém fazer uma explicitação semântica a respeito do título escolhido.
As escolhas terminológicas nunca são neutras, pois costumam traduzir uma tomada de posi-
ção em relação ao fenômeno que se propõe a estudar. Por isso, o sintagma economia política
da pena deve aqui conotar mais coisas que pode parecer à primeira vista: além de traduzir
uma opção pela abordagem materialista de fatos e estruturas históricas, a análise dos sistemas
de punição, em fases e estágios relacionados ao desenvolvimento das forças produtivas, cons-
titui uma tradição intelectual digna de registro.
9
Se analisado desde seu étimo o vocábulo
9
Além dos precursores RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punishment and social structure (trad. brasi-
leira, Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: Freitas Bastos/Instituto Carioca de Criminologia, 1999), pode-
se também aludir a outras obras também clássicas. Dentre as mais importantes certamente estão: MELOSSI,
6
economia também indica mais do que a ciência que trata dos fenômenos relativos à produ-
ção, distribuição e consumo de bens; designa também a organização dos diversos elementos
de um todo - talvez o significado mais próximo de oikonomia: a gestão da casa grega (oikos).
E mais: uma pesquisa aparentemente ainda por ser concluída acerca da genealogia do conceito
de oikonomia realizada pelo filósofo italiano GIORGIO AGAMBEN sugere, baseada na
complexidade da casa grega referida por ARISTÓTELES - por nela se entrelaçarem relações
heterogêneas, desde vínculos de parentesco, entre patrão-escravo, e até aqueles relativos à
gestão de uma empresa agrícola muitas vezes de ampla dimensões - que sua melhor tradução
moderna talvez seja management.
10
Isto possui um significado preciso e importante para este
trabalho, na medida em que um de seus pontos de apoio consiste na gestão política da oferta
de força de trabalho à disposição do processo de acumulação do capital, que segundo demons-
tra a história, foi usualmente realizada mediante o recurso à pena. A ênfase política decorre da
assunção do uso da pena como exercício de poder, puro e simples. Assim como sua distribui-
ção, o exercício do poder sempre será político, ainda mais quando se instaura no seio estrutu-
ral do Estado, também ele uma organização política por excelência. Enfim, o título traduz
tanto a tentativa de oferecer um princípio explicativo de todo um complexo sistema de domi-
nação, como aponta a necessidade de se fazer a crítica radical ao critério de racionalidade, ao
conceito histórico, numa palavra, à lógica que parece presidir tal sistema.
Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário. Rio de Janeiro: Re-
van/Instituto Carioca de Criminologia, 2006; CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed.
Curitiba: Lumen Juris/Instituto de Criminologia e Política Criminal, 2006; DE GIORGI, Alessandro. Il governo
dell’eccedenza (A miséria governada pelo sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006) e eu ousaria incluir até o
célebre Suveiller et punir de MICHEL FOUCAULT (1975).
10
Ver a entrevista concedida por AGAMBEN a Gianlucca Sacco na Rivista online, Scuola superiore
dell’economia e delle finanze, ano I, n 6/7, Giugno-Luglio 2004, reproduzida no Brasil pela Revista internacio-
nal interdisciplinar Interthesis. v 2, n 2, Florianópolis, jul-dez 2005.
7
CAPÍTULO I – O ESTADO MODERNO E SUAS RELAÇÕES PUNITIVAS
1. Estado moderno: tentativa de descrição.
Talvez a melhor descrição do funcionamento do Estado capitalista, de suas caracterís-
ticas constitutivas, de sua natureza imanente, seja aquela realizada por WEBER. Curiosamen-
te WEBER é um autor cujos princípios metodológicos não permite enquadrá-lo dentre as con-
cepções materialistas da análise dos processos históricos. Na verdade, uma característica que
parece permear sua obra seja justamente a de oferecer uma opção interpretativa às analises de
cunho marxista, algo que se nota especialmente pela omissão aparentemente deliberada da
obra de MARX em seus escritos.
11
Mais curiosa ainda, no entanto, é uma freqüente aceitação
da prevalência dos interesses econômicos, identificados com a burguesia, no desenvolvimento
do Estado moderno, e evidentemente, do capitalismo de um modo geral. Mas, ante a seriedade
de suas análises e da erudição raras vezes experimentada que as caracteriza, isto assinala me-
nos uma contradição do que uma constatação até empírica que WEBER seria incapaz de ocul-
tar. O que não parece possível concluir-se a respeito do pensamento de WEBER é a prevalên-
cia, ainda que em última instância, da base econômica como critério explicativo das institui-
ções e fenômenos sociais para os quais ele dedicou boa parte de sua obra. O que também não
significa dizer que não reconhecia a importância decisiva desta espécie de causa. Em suma, a
importância da idéia de causalidade, central em sua obra, caminha pari passu com a assunção
da multiplicidade destas mesmas causas.
Neste particular, difícil, senão impossível, será encontrar um esforço intelectual da es-
tatura do weberiano na tarefa de explicar e descrever os caracteres mais específicos do Estado
moderno, coetâneo ao processo de racionalização da vida social, da forma em detrimento de
conteúdos enfim, que designa o capitalismo. Neste contexto, aliás, o capitalismo na verdade
não é só uma forma específica de produção e distribuição de bens, tampouco de combate fren-
te a escassez de bens necessários à sobrevivência, mas uma precisa maneira de se estabelecer
relações sociais e, ainda mais importante, de reproduzi-las. Neste particular, restringir-se às
11
Se tomarmos como exemplo A ética protestante e o espírito do capitalismo, São Paulo: Companhia das Letras,
2004, pgs. 48, 68, será fácil notar a oposição frontal que ela pretende estabelecer frente ao materialismo históri-
co, embora a alusão a esta outra possibilidade interpretativa seja realizada apenas como crítica, nunca como
possibilidade de comparação ou confronto.
8
teses de WEBER talvez se demonstre insuficiente. Como assinalado, a perspectiva teórica
aqui adotada para a análise do Estado é menos pautada na prevalência da ação social e na mo-
tivação que ela necessariamente deve exprimir do que nas estruturas sobre as quais se erigiu e
continua a se reproduzir o Estado capitalista. Assim, ao lado de WEBER estarão teóricos que
comungam desta última abordagem metodológica, entre os quais destacam-se NICOS
POULANTZAS, CLAUS OFFE e JOACHIM HIRSCH.
É oportuno principiar pelas características assumidas pelo Estado moderno analisando-
as a partir das balizas que fixou a fim de permitir não o desenvolvimento, mas especial-
mente a capacidade de mutação de seu papel estratégico responsável pela perenização e apro-
fundamento da lógica de acumulação do capital. Como assinala CLAUS OFFE, “o capital é
incapaz de produzir as condições de sua existência.”
12
Daí que à estrutura estatal, na qualida-
de de gestora das relações de produção em vigor, se deve tributar a incrível capacidade de
reprodução e superação de crises que o capitalismo historicamente tem demonstrado. É recor-
rente no âmbito das interpretações marxistas, que o capitalismo se distingue por inúmeras
contradições, pelo caráter estrutural e até cíclico de suas crises, via de regra derivadas da bai-
xa tendencial da taxa de lucro diagnosticada por MARX no Capital. É nesta problemática
que parece se inscrever o núcleo da atuação do Estado. Para este trabalho, o tratamento (go-
verno político) dispensado à força de trabalho, radicada que é, no capitalismo, à forma-
mercadoria como significante fundamental, é assunto curial.
Desde WEBER constitui uma obviedade que o Estado moderno possui uma ligação in-
trínseca com a empresa capitalista, pois ambos se baseiam na previsibilidade e calculabilida-
de, signos de uma racionalidade de tipo formal. Na qualidade de exercente exclusivo da vio-
lência física, o Estado necessita da legitimação garantida pelo direito, que conseqüentemente
precisa se submeter também a este específico processo de racionalização. Simultânea e neces-
sariamente surge o aparelho judiciário, refletindo, nestes termos, o processo de burocratiza-
ção.
Mais especificamente em relação ao direito, sucede então um processo de positivação,
através do qual se busca eliminar outros ordenamentos jurídicos distintos do estatal. A estas
normas, agora provindas somente do Estado, se passa a impor critérios de generaliza-
12
OFFE, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 184.
9
ção/abstração e de sistematização, em conformidade com as exigências da vida econômica, a
reclamar pela proscrição do acaso e do imprevisto.
13
Isto correspondeu à estrutura mental
burguesa que se foi forjando e generalizando com o intuito de se distinguir claramente das
instituições e costumes do Ancien Régime, de modo especial no campo do direito. A estrutura
material a que esta compleição mental correspondia se designa por uma maneira própria das
pessoas se relacionarem para a produção de bens necessários à sua sobrevivência. Para o di-
reito, talvez ainda mais importante seja o modo de distribuição destes bens: a economia de
mercado. Para HESPANHA este dado é dos mais significativos: se na maneira anterior de
organizar a distribuição dos bens o indivíduo não desempenhava qualquer papel ativo, no sis-
tema próprio da economia de mercado o indivíduo surge como o começo absoluto. Sem muito
esforço se percebe aqui a característica mais marcante da filosofia moderna, seja ela raciona-
lista ou empirista: a consciência individual se torna a origem do conhecimento e da ação.
14
Correlativo à expansão deste novo tipo de vida econômica vai se imprimindo, nos indivíduos,
uma outra estrutura mental.
A forma jurídica própria para este período e para a estrutura mental coletiva que nele
vinha se desenvolvendo, é a figura do contrato, em função das amplíssimas possibilidades de
troca que ele proporciona. Isto exigirá que todo direito, do civil ao penal, o tome como fun-
damento.
A este processo de simultânea sistematização e generalização é que se costuma cha-
mar, desde WEBER, de racionalização do direito.
15
Elemento fundamental comum aos con-
ceitos de Estado e direito, é a existência de um aparato coativo, que garanta sua vigência.
Afinal, para que o direito racional, emanado do Estado, possa impor-se na qualidade de um
ordenamento, deve possuir um aparato de indivíduos capaz de punir a transgressão. O papel
da burocracia não se restringe ao exercício deste poder coativo, evidentemente. Na própria
idéia de burocracia está radicado um elemento talvez ainda mais importante: a separação
entre aquilo que é público e o que é privado; a simples existência de um quadro de funcioná-
13
HESPANHA, António Manuel. Prática social, ideologia e direito nos séculos XVII a XIX. Coimbra: Separata
de Vértices nº 340 e 341-342, 192, p. 10.
14
HESPANHA, Ob. citada, p. 7.
15
Cf. PACHUKANIS, Evgeny B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 92. “A
interpretação jurídica, isto é, racional do fenômeno do poder não se torna possível a não ser com o desenvolvi-
mento da economia monetária e do comércio. Apenas tais formas econômicas criam a oposição entre a vida
pública e a vida privada que, com o tempo, reveste um caráter ‘eterno’ e ‘natural’ e que constitui o fundamento
de toda a teoria jurídica do poder.”
10
rios, de um pessoal do Estado, diferencia a atividade pública da privada.
16
Sem querer por
hora reingressar no debate acerca da ordem temporal das causas, o fato é que WEBER enten-
de que a organização de uma economia monetária é primordial para a criação da administra-
ção burocrática. A contrario sensu, para ele o Estado moderno é totalmente dependente de
uma base burocrática, sendo essa dependência proporcional ao tamanho da potência que este
Estado tende a assumir.
17
Vê-se assim que a assimilação das características da economia capi-
talista pelo Estado ocorre quase simultaneamente ao desenvolvimento da burocracia em seu
seio, compondo ambas as coisas uma unidade necessária à sobrevivência delas mesmas. E-
xemplifica-o que desde o princípio à economia mercantil interessava que os negócios da ad-
ministração fossem feitos com base nesses princípios de impessoalidade e de especialização
de funções, presos apenas a considerações eminentemente objetivas. Foi portanto o funciona-
mento da burocracia que reclamou o estabelecimento de um direito racional e sistematizado,
cujas fontes foram encontradas nas leis criadas no período final do Império Romano, de gran-
de perfeição técnica.
18
WEBER observa que não foi a melhor adaptação do direito romano o
que decidiu sua vitória, mas sua forma racional e sobretudo a necessidade de depositar nas
mãos dos especialistas a realização dos processos judiciais. “A racionalização do direito ro-
mano, como sistema conceitual completo e cientificamente aplicável racionalização que
distingue este direito de todos os produtos do Oriente e também do helenismo tornou-se
perfeita somente na época da burocratização do Estado.”
19
Outra característica do sistema
burocrático é sua enorme capacidade de abafar contestações dirigidas à sua essência.
20
Num contexto análogo, o Estado de feições burocráticas é o mesmo que tornou possí-
vel ou até exigiu muitas distinções, que tiveram o efeito de cindir definitivamente várias insti-
tuições sociais, em princípio dificilmente indissociáveis, e foram responsáveis por forjar a
própria modalidade de socialização capitalista.
21
A primeira destas separações que valeria a
pena recobrar é análoga a uma que caracteriza a burocracia e segundo a qual o trabalho inte-
lectual e o trabalho manual são ontologicamente distintos. Esta separação corresponde àquela
pela qual um aparelho de Estado classifica-se segundo o fato de se basearem no princípio de
16
WEBER, Max. Ensaios de sociologia. 5 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S/A, 1982, p. 232.
17
Ob. citada, p. 240; também WEBER, Max. Economia e sociedade. v 2. Brasília: UnB/São Paulo: Imprensa
Oficial, 2004, p 205.
18
WEBER, Ob. citada, p. 251.
19
WEBER, Max. Economia e sociedade. v 2, p. 215.
20
OFFE, Claus. Reflexões e hipóteses em torno do problema da legitimação política. In: Problemas estruturais
do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 262-289.
21
HIRSCH, Joachim. ¿Qué significado Estado?, 2005, p 167.
11
que seus próprios quadros são separados dos meios de administração. Para WEBER, “esta
distinção é válida no mesmo sentido em que dizemos hoje que o empregado assalariado e o
proletário na empresa capitalista estão ‘separados’ dos meios materiais de produção. (...) No
Estado contemporâneo e isso é essencial ao conceito de Estado a ‘separação’ entre o qua-
dro administrativo, os funcionários administrativos e os trabalhadores, em relação aos meios
materiais de organização administrativa, é completa.”
22
Sua importância é decisiva.
23
POULANTZAS, por exemplo, afirma que o Estado encarna, em todos os seus aparelhos (ide-
ológicos, repressivos e econômicos) a separação entre trabalho intelectual e trabalho manu-
al.
24
A ela se segue, como desdobramento necessário, a separação decisiva entre economia e
Estado, e mais importante, a independência entre o aparato repressivo e os interesses da classe
dominante.
Para POULANTZAS a materialidade da ossatura institucional que distingue o Estado
capitalista deriva da separação (para ele relativa) entre o Estado e as relações de produção sob
o capitalismo. O fundamento desta separação consiste na especificidade das relações de pro-
dução capitalistas e na divisão social do trabalho a que induzem: separação radical do traba-
lhador direto de seus meios e objeto de trabalho.
25
Com isso quer POULANTZAS sublinhar
que o mais proeminente traço de distinção das relações produtivas capitalistas reside na abso-
luta separação do trabalhador de seus objetos de trabalho, inclusive no que se refere à posse.
Em sociedades pré-capitalistas o trabalhador também não detinha a propriedade dos meios de
produção. Até porque este instituto jurídico não continha qualquer importância. Mas a posse
sobre tais meios historicamente sempre foi possível. Esta relação, ao nível sensível é o que
decide sobre a espécie das relações de produção prevalecentes, pois reconfigura os espaços e
campos relativos ao Estado e à economia. Afinal, são as relações de produção que transfor-
mam a força de trabalho em mercadoria e o excesso deste trabalho em mais-valia, instituindo
um tipo de relação entre o Estado e a economia, de forma que cada um guarde uma relativa
autonomia.
26
22
WEBER, Max. A política como vocação. In: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 57.
23
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 104, dirá
que a condição primária do desenvolvimento do capitalismo como modo de produção de classes é a separação
trabalhador/meios de produção.
24
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo, p. 60.
25
POULANTZAS, Ob. citada, p. 56.
26
POULANTZAS, Ob. citada, p. 22.
12
O preciso significado desta constatação é o seguinte: a base social do capitalismo é a
separação (contraditória) entre capital e trabalho, tornada possível mediante a atuação do
Estado, que por sua vez realiza a separação entre sociedade e economia. Somente assim se
torna possível a expropriação, pela classe detentora do capital, da força de trabalho dos traba-
lhadores, sem exercer ela mesma a violência necessária para tanto.
27
Este conjunto de separa-
ções é decisivo: as condições capitalistas podem conformar-se em sua plenitude se a coa-
ção física experimenta uma institucionalização independente de todas as classes, inclusive da
dominante em termos econômicos.
28
O Estado surge como a estrutura histórica ideal para o
desempenho deste papel. Isto não significa que a violência desapareça. Pelo contrário, segue
atuando, mas de forma menos manifesta, mais silenciosa, cujo exemplo clássico é obrigando
os seres humanos à venda de sua força de trabalho.
29
Segundo HIRSCH, por haver assumido
esta configuração baseada na concentração no aparato burocrático estatal, o exercício da vio-
lência experimenta, sob a égide do Estado capitalista, uma eficácia ainda desconhecida na
história.
30
Ocorre então um simultâneo processo de expropriação: enquanto o capitalismo
consiste num processo de expropriação dos meios de produção, o Estado consiste num pro-
cesso de expropriação social do poder, com extraordinária capacidade de tornar anônimo
quem se beneficia desta usurpação.
Mas é preciso avançar no sentido de lançar luz sobre o seguinte problema: como com-
preender a atuação do Estado burguês, sua relativa autonomia, se ele tem se notabilizado por
regular a reprodução das relações sociais baseadas na exploração de classe? Deste questiona-
mento outro surge como decisivo: embora admita um embate político em seu seio, o que faz
deste Estado um Estado que parece ser apenas a expressão política da classe dominante, visto
que, em alguma medida, ele permite a ocorrência de lutas políticas em seu seio?
Ora não se pode deixar de considerar a estrutura deste Estado, sua composição institu-
cional, concebida para assimilar e dissimular toda e qualquer oposição à sua essência. Isto não
27
Ver o clássico PACHUKANIS, E.B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988, p. 98.
28
HIRSCH, Ob. citada, p. 167.
29
PACHUKANIS,. Ob. citada, p. 98 anota “A coação, enquanto imposição fundamentada na violência colocan-
do um individuo contra o outro, contradiz as premissas fundamentais das relações entre os proprietários de mer-
cadorias. (...) numa sociedade de proprietários de mercadorias e dentro dos limites do ato de troca, a função da
coação não pode parecer como uma função social, visto que ela não é abstrata e impessoal. (...) Ela deve apare-
cer antes como uma coação proveniente de uma pessoa coletiva abstrata e que é exercida não no interesse do
indivíduo donde provém (...). O poder de um homem sobre outro expressa-se na realidade como o poder do di-
reito, isto é, como o poder de uma norma objetiva imparcial.
30
HIRSCH, Ob. citada, p. 167.
13
conduz a que se lhe conceba como um complô de classe. Sem sê-lo, constitui a expressão po-
lítica da classe dominante. O próprio sistema democrático-representativo, tão caro ao tipo de
democracia adotado pelo Estado moderno ocidental, é de tal forma estruturado que não permi-
te que através deste sistema seja possível, por exemplo, atingir funções resguardadas para o
pessoal especializado da burocracia.
Por isso é necessário afirmar que o Estado não é mero instrumento da burguesia, mas
tem suas ações determinadas pelas condições impostas por uma sociedade de classes. Ele
não favorece interesses específicos da classe dominante, antes protege e sanciona instituições
e relações sociais que constituem o requisito institucional para a dominação de classes do
capital. Assim, não defende os interesses de uma classe, mas os interesses comuns de todos os
membros de uma sociedade de classes, que por ser capitalista, impõe a dominação econômica
de uma classe em particular.
31
De fato, embora o Estado permita, em maior ou menor medida - dependendo da articu-
lação das variáveis que conduzem, senão ao seu equilíbrio pelo menos à sua sobrevivência -
que as lutas entre as classes se exprimam até em sua espacialidade, sua própria constituição
impede que seus fundamentos sejam diretamente contestados. Pois, mesmo quando recebe sua
energia da capacidade de pressão dos trabalhadores, a atuação política do Estado dela se utili-
za sempre mediatizada segundo as estruturas internas do sistema político instituído.
32
A garantia de que a essência de uma sociedade de classes antagônicas não será colo-
cada em xeque, de que o Estado capitalista é expressão, exige explicar sua atuação concreta.
Reclama discutir as estratégias de que este aparelho, ao mesmo tempo abstrato e concreto (na
medida em que sua atividade se exerce inclusive sobre os corpos dos indivíduos), lança mão
para manter sua hegemonia. Em geral, pode-se dizer que o Estado, no exercício da domina-
ção, atua mediante duas ações complementares: hegemonia (consentimento) e repressão (co-
erção), ambas politicamente definidas. Mesmo sem a possibilidade de esgotá-las, estas estra-
tégias têm de ser enfrentadas.
31
OFFE, Claus; RONGE, Volker. Teses sobre a fundamentação do conceito de Estado capitalista e sobre a
pesquisa política de orientação materialista. In: Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro:
Tempo brasileiro, 1984, p 122-137.
32
Cf. OFFE, Claus; LENHARDT, Gero. Teoria do Estado e política social: tentativas de explicação político-
sociológica para as fundações e os processos inovadores da política social. In: Problemas estruturais do Estado
capitalista. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984. p 10-53.
14
2. O poder punitivo e a dominação burocrática
2.1 Controle social: uma noção problemática.
A instituição social que se pretende submeter à análise representa uma espécie de con-
trole social, de exercício de poder muito particular. Suas especificidades exigem, antes de
prosseguir, um prévio acordo semântico acerca da noção controle social. A noção controle
social ganhou foros sociológicos com DURKHEIM numa perspectiva de integração social.
Na verdade DURKHEIM procurava teorizar sobre os mecanismos que permitiam a constru-
ção de vínculos sociais duradouros capazes de definir as leis que presidem a solidariedade
social. Não é por outro motivo que para ele os benefícios materiais que a divisão social do
trabalho pode gerar são de reduzida importância se comparados aos vínculos de solidariedade
que lhe incumbe engendrar. Seu mais notável efeito não é aumentar o rendimento das funções
divididas, mas torná-las solidárias.
33
A unidade de análise de DURKHEIM, além de outros
autores do século XIX, era o conjunto da sociedade e procurava sua ordem de regulação por
meio de princípios morais. Nesta perspectiva o emprego da coerção é secundário. Em suma, o
controle social era semanticamente análogo à noção de cooperação social, cuja capacidade de
produzir integração era menos coercitiva do que voluntária e produzida pela própria socieda-
de.
34
Esta tradição logo foi desenvolvida nos Estados Unidos, quer em sua variante funciona-
lista quer naquela interacionista, gestadas sobretudo pela instituição que se convencionou cha-
mar de Escola de Chicago.
35
Nela prevaleceu, assim como em DURKHEIM, a perspectiva
microssociológica, na qual o papel do Estado era colocado de lado para a consecução da inte-
gração social. A Escola de Chicago elegeu como estratégia que o controle e a regulação das
relações sociais deveria se dar no nível inter-individual, nunca em vista de uma atividade ex-
terna aos indivíduos em presença. No início do século XX os Estados Unidos tiveram que se
defrontar com o grande afluxo de imigrantes que o seu descomunal processo de industrializa-
33
DURKHEIM, Emile. Da divisão social do trabalho. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 27.
34
ALVAREZ, Marcos César. Controle social: notas em torno de uma noção polêmica. São Paulo em perspecti-
va. Ano 18, v 1, 2004, p. 168-176.
35
Cf. relata FREITAS, Wagner Cinelli de Paula. Espaço urbano e criminalidade: lições da Escola de Chicago.
São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2002, p. 52 e segs, surgida em 1891, a Universidade de
Chicago foi a primeira instituição de ensino estadunidense a ter um departamento de sociologia, em 1892. As
investigações ali empreendidas centravam-se nos problemas urbanos que a intensificação da imigração começa-
va a pôr na ordem do dia nas grandes cidades norte-americanas.
15
ção exigiu. Impregnada pela ideologia WASP (white-anglosaxon-protestant), a idéia era for-
çar a assimilação, pelos imigrantes, de todos os componentes da cultura do país que os estava
recebendo.
36
Nesta perspectiva, a sociologia estadunidense, particularmente aquela de corte funcio-
nalista, ao mesmo tempo em que descrevia, prescrevia um modelo de socialização considera-
do “normal”. PARSONS, por exemplo, concebe um quadro estrutural de referência mediante
o qual descreve como os valores que constam do sistema cultural atravessam o sistema social,
tornando-se normas, até encontrar o sistema da personalidade individual. As normas devem
orientar a conduta do ator social, porque elas traduzem expectativas que determinam os papéis
sociais. Por isso que para PARSONS é o papel, e não o indivíduo, o que constitui a unidade
fundamental de um sistema social. É o desempenho dos papéis, pelos indivíduos, que o siste-
ma cultural lhes prescreve, que garante o equilíbrio e a coesão sociais.
37
PARSONS, como
sucessor teórico de DURKHEIM, retoma sua idéia da importância da definição de certos atos
como criminosos como mecanismo de reforço da coesão social. A pena teria, assim, a função
de exercitar o que PARSONS denominava sistema cultural e DURKHEIM chamava de cons-
ciência coletiva. Na qualidade de sanção negativa, a pena é essencial para assegurar a valida-
de das normas e, mais do que isso, a crença nessa validade.
38
Esta perspectiva microssocioló-
gica, a esta altura, já parece acatar que a integração dos papéis sociais não ocorre de forma tão
espontânea. Assim mais se aproxima do ponto de vista adotado nesta dissertação. Pois ao con-
junto de sanções positivas e negativas destinadas a garantir a conformidade do comportamen-
to com as normas, dá-se o nome de controle social.
A noção de controle social começa a tomar novos contornos teóricos após a Segunda
Guerra Mundial, recuperando questões macrossociológicas e por vezes reconduzindo o Estado
ao centro das análises. Assim, a coesão ou mais propriamente o controle social passa a ser
menos resultado da cooperação social do que de estratégias de dominação organizadas e ga-
rantidas pelo Estado.
39
Afinal, em sociedades livres de domínio aqui tomadas como resul-
36
Ver BERGALLI, Roberto. Relaciones entre control social y globalización: Fordismo y disciplina. Post-
fordismo y control punitivo. Revista Sociologias, ano 7, nº 13, jan/jun 2005, Porto Alegre, p. 180-211.
37
PARSONS, Talcott. Durkheim e a teoria da integração dos sistemas sociais. In COHN, Gabriel. Sociologia:
para ler os clássicos. Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1977, p 85-120.
38
PARSONS, Ob. citada, p. 34; do mesmo autor, PARSONS, Talcott. O conceito de sistemas sociais. In:
CARDOSO, Fernando Henrique; IANNI, Octavio (org.). Homem e sociedade: leituras básicas de sociologia
geral. 12 ed. São Paulo: Editora Nacional, 1980. p. 47-55.
39
Cf. ALVAREZ, Controle social: notas em torno de uma noção polêmica, p. 170.
16
tante do surgimento das classes e com a organização estatal da sociedade que se lhe seguiu – o
controle social não é repressivo, mas se dirige a reparação de eventuais danos, ao restabeleci-
mento do status quo, enfim, a limitação e pacificação do conflito.
40
O presente estudo lança mão desta perspectiva, mas uma outra distinção precisa ainda
ser feita. Apesar da posição de centralidade que determinados mecanismos que não apenas
controlam mas também produzem comportamentos considerados adequados pretende-se dis-
cutir aqui o poder ou o controle punitivo reunido nas mãos do Estado moderno desde seu sur-
gimento e segundo a exaustiva descrição de suas estruturas tão bem realizada por WEBER. O
foco eleito se concentra nas formas jurídicas ou formalizadas de controle e de punição, que
desde a emergência deste Estado, foram aplicadas a partir de seus aparelhos. Pois, consoante
observa HASSEMER, o sistema jurídico-penal é apenas uma das partes do controle social.
Porém, pode-se dizer que sua posição no âmbito integral do controle social ocupa o topo.
41
Isto não deixa de conduzir ao reconhecimento de formas punitivas que a rigor não constituem
propriamente uma pena jurídica. Em seu funcionamento concreto, a existência de interstícios
de suspensão da regulamentação legal parece ser constitutiva ao próprio Estado, mesmo que
seja considerado um Estado de direito.
A isto se segue, como necessidade impostergável, a consideração da natureza e das
formas de exercício de poder.
2.2 Poder legal e dominação legítima
Não se ignora que o poder não possui um lugar privilegiado, porque ele não é uma
propriedade mas algo que se exerce. Tampouco funciona apenas num registro negativo, por-
que não traduz apenas repressão. O poder é ainda imanente, na medida em que atravessa todas
as relações sociais, de maneira que ele se revela indissociável de qualquer prática social. Estas
conclusões se devem tributar especialmente à FOUCAULT.
40
É necessário apontar que esta perspectiva teórica, e a apropriação que ela faz da noção de controle social, cai
na vala comum da pressuposição da universalidade da pena. Nesse sentido, SCHEERER, Sebastian. ¿La pena
criminal como herencia de la humanidad? Revista Brasileira de Ciências Criminais. v 57, 2005, p. 107-119.
41
Para HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2005, p 415 e segs, o sistema jurídico-penal é apenas uma das partes do controle social. Porém,
continua o autor, pode-se dizer que sua posição no âmbito integral do controle social ocupa o topo. Daí que o
sistema penal seja um subsistema estruturalmente harmônico do sistema social integral, de forma que “não se
pode tratar os problemas da criminalidade se os outros processos de desenvolvimento de cultura pessoal e social
e a socialização não obtêm êxito.”
17
Para WEBER, o poder é compreendido, em consonância com seu método sociológico,
como produto da interação e da vontade dos próprios sujeitos. Isto expressa uma concepção
completamente distinta da de FOUCAULT, segundo a qual os sujeitos são menos responsá-
veis do que produtos do poder.
Antes de aprofundar estas distintas perspectivas acerca do poder, é necessário introdu-
zir a categoria weberiana da dominação legítima. Ela não será discutida com toda a amplitude
reclamada pela extensão do tratamento que a ela dedicou o autor. Apenas uma descrição de
seus contornos fundamentais parece bastar para o propósito deste texto. Sem isso se tornaria
difícil compreender as estratégias do Estado e o conjunto de seu funcionamento concreto, no
qual uma série de ambigüidades convive.
Para WEBER a dominação é um dos elementos mais importantes da ação social. Ela é
um caso especial de poder. A distinção que ele faz entre Macht (poder, força) e Herrschaft
(dominação, autoridade), aqui é central, à medida que, no seu sistema, a dominação não pres-
cinde de um determinado grau de aceitação expresso por uma tendência à obediência. No
sentido geral de poder, a dominação constitui a possibilidade de impor ao comportamento de
terceiros a vontade própria, com alguma aceitação. Nesse particular, a perspectiva weberiana
parece não se afastar daquela sustentada por HANNAH ARENDT,
42
segundo a qual a im-
prescindibilidade de algum grau de consentimento para o exercício do poder impede sua iden-
tificação com a violência. Para WEBER existem dois tipos radicalmente opostos de domina-
ção: em virtude de interesses econômicos e resultante de autoridade.
43
Toda forma de domi-
nação pode transformar-se, gradualmente, em autoritária. Mas em toda relação autoritária,
certo mínimo de interesse em obedecer continua sendo a força motriz da obediência. Os de-
tentores da dominação não visam, necessariamente, fins econômicos. Isto não significa que o
poder econômico não seja uma conseqüência importante da dominação. Na verdade, só muito
raramente a dominação é isenta de interesses ou de motivações materiais.
44
Pois não apenas as
trocas de mercado, mas também as relações de troca da vida social produzem dominação.
42
ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994.
43
WEBER, Economia e sociedade. v 2, p 188.
44
ARGUELLO, Katie. As aporias da democracia: uma (re)leitura possível a partir de Max Weber e Jürgen
Habermas. In: FONSECA, Ricardo Marcelo (org.). Repensando a teoria do Estado. Belo Horizonte: Fórum,
2004, p. 70-109.
18
Com isso pretendia WEBER marcar a especificidade da atividade política em relação
à economia, pelo que a distinção entre Macht e Herrschaft tem por fim evitar “a generalidade
de poder que não permite a especificação da esfera política em meio a um tecido de poderes
indiferenciados.”
45
O Estado também surge como forma de poder, ainda que fundamentado na força, dis-
tinta dos diversos núcleos beligerantes, que caracterizavam a fragmentação do poder na Idade
Média. Além disso, o Estado moderno constituiu-se como centro único da soberania jurídico-
política, que faz com que o uso da violência pelo Estado seja tomado por legítimo.
Hoje, porém, temos de dizer que o Estado é uma comunidade humana que pretende,
com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado
território. Note-se que território é uma das características do Estado. Especificamen-
te, no momento presente, o direito de usar a força física é atribuído a outras institui-
ções ou pessoas apenas na medida em que o Estado o permite. O Estado é conside-
rado como a única fonte do ‘direito’ de usar a violência.
46
Mas nem todo uso da força, só porque provém do Estado, é legítimo. Sua legitimidade
está radicada nos limites que a lei lhe impõe. Do contrário não haveria como diferenciar o
Estado de direito do seu contrário, o Estado de polícia, que se distingue pelo uso abusivo e
por isso arbitrário da força.
47
A lei permite o controle, a contenção do poder. O poder aprisio-
nado na armadura racional-legal weberiana, é mais controlável; radica no plano do direito não
no da política. Apesar de pressupor a existência de um aparato institucional para o exercício
da violência (potestas), encontra-se em estado de potentia. A concentração conduz à conten-
ção. A violência típica da dominação legal é energia imobilizada. É característico do Estado
moderno que boa parte de seu orçamento seja dedicado aos gastos militares. Isto se deve à
função cometida ao Estado de reprimir as ameaças às suas estruturas responsáveis pela manu-
tenção do modo de produção dominante. O monopólio da violência, que é também o monopó-
lio da guerra, atribui ao Estado a exclusividade de fazer a guerra, que não é mais que a possi-
bilidade de ativar esta extraordinária quantidade de energia repressiva imobilizada.
48
45
ARGUELLO, Ob. citada, p. 83.
46
WEBER, Max. A política como vocação. In: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1980, p. 55-89.
47
ADORNO, Sérgio. O monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea. In: MICELI, S.
(org.). O quer ler na ciência social brasileira. São Paulo: ANPOCS, 2002.
48
CAPELLA, Juan Ramón. Fruto proibido: uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Esta-
do. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 128.
19
Tem-se assim que a figura típica da dominação moderna, na qual legitimidade coinci-
de com legalidade, é a lei impessoal e abstrata, provinda do Estado. É nela que ele radica sua
legitimidade: o simples fato de emanar da autoridade do Estado, num esquema eminentemente
formal, faz da lei e da dominação que ela garante, legítima. Isto significa que para a consecu-
ção de sua legitimidade, a lei prescinde de recorrer ou revelar valores. “A legitimação racio-
nal-legal não exige a correção das decisões, mas somente o atendimento à sua competência
decisória”
49
Como visto, a lei constitui um elemento fundamental para a legitimação nestes termos,
emanada de uma estrutura que detém o monopólio da violência física. Por isso ela é parte in-
tegrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida pelo Estado.
50
Desfruta,
sem sombra de dúvidas de um papel central neste sistema de dominação. Porém não esgota
suas funções no papel repressivo, pois também atua como um dos fatores importantes da or-
ganização do consentimento das classes dominadas. Afinal, segundo o sistema weberiano, a
dominação deve produzir obediência, o que por sua vez supõe pelo menos uma dose de con-
sentimento que é produto da percepção íntima do dominado de que aquela ordem desfruta de
legitimidade. Todos os sistemas políticos, enquanto sistemas de dominação, têm necessidade
de legitimação para serem duráveis; por isso “é necessário dosar coerção e consentimento.”
51
Aqui a função ideológica, em termos estritos, também tem seu papel. Mas este papel específi-
co, não pode ser aqui objeto de detalhamento, até porque, segundo o ponto de vista sustenta-
do, é secundário.
Por ter à mão o instrumento da lei, pelo qual, por exemplo, os legisladores decidem o
que é crime e qual pena determinado crime merece, é que o exercício de poder pelo Estado
desfruta de uma importância central e muito mais relevante em relação aos seus análogos.
Afinal, embora não seja ele prévio a todas as outras manifestações de poder e de dominação
em vigor, sua existência, na forma como a percebemos, parece constituir uma condição de
como as demais relações de desigualdade e de força operam e funcionam.
49
OFFE, Claus. Reflexões e hipóteses em torno do problema da legitimação política. In: Problemas estruturais
do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 285.
50
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo, p. 86.
51
Cf. ARGUELLO, Ob. citada, p. 84, em clara alusão à consagrada fórmula gramsciana; ver GRAMSCI, Anto-
nio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p. 10-11.
20
Por estas razões a forma legal de exercício de um poder, tanto mais porque concentra-
do nas mãos do Estado, é inegavelmente política, em primeiro lugar. Quer porque se refere ao
Estado, quer porque pretende influir na distribuição desse poder.
52
Em segundo lugar, se ele
exprime uma assimetria fundamentada numa relação de desigualdade tal como tanto
WEBER quanto FOUCAULT concebem o poder - significa que pode ser imposto apesar das
resistências que se lhe opõem. Seu exercício então se caracteriza por ser contrário à vontade
sobre quem se realiza. Para vencer a resistência faz-se necessário alguma violência - espécie
de relação de força que muitas vezes se exterioriza pela forma física. A questão de sua legiti-
midade formal já foi enfrentada. Por agora é necessário fixar que o poder punitivo, que tem no
direito penal sua tentativa de racionalização, constitui uma forma de violência física mane-
jada pelo Estado. Afinal ninguém pode duvidar que a prisão representa uma forma de violên-
cia física, para muitos mais execrável que os suplícios pré-modernos. Até porque sua aplica-
ção continua a se dar no corpo, um dos únicos atributos encontrável em todas as pessoas.
É evidente que existe toda uma série de contradições e antagonismos sociais que não
se confundem com aquela clássica entre capital e trabalho assalariado. Várias delas inclusive
não operam diretamente vinculadas ou dependentes do poder exercido pelo Estado. O fato é
que por se distinguirem por sua assimetria e desigualdade e por deter o Estado o monopólio
da violência física ele necessariamente expressa relações sociais - que aliás lhe constituem
ao mesmo tempo que as sanciona. O próprio WEBER assinalou este aspecto: no quadro de
uma dominação de tipo racional-legal, o Estado reclama para si o monopólio da coação física
legítima e “todas as demais associações ou pessoas individuais somente se atribui o direito de
exercer coação física na medida em que o Estado o permita.”
53
. Não seria o caso de estabele-
cer uma ordem, muito menos uma hierarquia, entre este poder centralizado, na base do direito
de soberania e aqueles infinitesimais, onipresentes, sobre os quais se debruça FOUCAULT.
Mas parece possível, mesmo no interior do método de FOUCAULT, entrever que os poderes
microfísicos, em determinado nível se conjugam, e conjugados, constituem uma macrofísica
do poder. Como o próprio FOUCAULT parece consentir, para que o Estado funcione como
de fato funciona é necessário que haja relações de dominação bem específicas que têm sua
configuração própria e relativa autonomia. Sua constatação, a título de exemplo, de que, em
52
WEBER, Max. Economia e sociedade. v 2. Brasília: UnB/São Paulo: Imprensa Oficial, 2004, p 526.
53
WEBER, Ob citada, p 526. Para SABADELL, Ana Lúcia. Manual de sociologia jurídica. 2 ed. São Paulo:
RT, p. 140, “Criando e aplicando um sistema de normas jurídicas, o Estado concentra e monopoliza o poder
legítimo. Isto significa que não regula somente o próprio poder, mas também o espaço de atuação de outros po-
deres sociais.”
21
determinado momento histórico, a prisão e seu regimento disciplinar se expande e atravessa
também seu ambiente exterior, parece disso um sintoma.
54
Pois a prisão deve sua existência
ao Estado, sobretudo ao monopólio de seu uso, enquanto modalidade de violência física reali-
zada sobre os corpos dos indivíduos.
Na tarefa de exercer o monopólio da legítima violência física, o Estado moderno se
impõe como última instância coercitiva, sancionando as demais formas de violência que gras-
sam no seio da sociedade.
55
Dentre estas formas encontram-se, por exemplo, aquelas marca-
das pela opressão sexual ou de raça, religiosas ou regionais. Noutras palavras, a força estabili-
zadora que faz com que estas relações de violência, menos regulamentadas por assim dizer, a
par daquela que consiste na manutenção da propriedade privada dos meios de produção, con-
tinuem existindo, é exercida desde o aparelho estatal e segundo a correlação de forças sociais
experimentadas em determinado momento histórico.
56
Ao permitir mais ou menos espaço
para a superação destas cruentas assimetrias, o Estado atua como uma espécie de árbitro, as-
sim regulando as possibilidades de emancipação social reclamadas. Isto nem mesmo quer
dizer que sua atuação seja somente negativa, ou seja, que opere somente no registro do inter-
dito, de restrições e de censura.
57
Ao contrário, dependendo, dentre outras coisas, da dinâmica
política vivenciada para a qual tantas variáveis devem ser consideradas pode o Estado
atuar para aprofundar ou destruir estes tipos de relações, ou mesmo mostrar desinteresse por
elas.
58
Afinal, com a expropriação do poder, o Estado atraiu para si também o monopólio da
guerra, do qual a lei, como estrutura responsável por sua legitimação, não deixa de ser parte
54
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 16 ed. São Paulo: Vozes, 1997, p.
249.
55
HIRSCH, Joachim. ¿Qué significado Estado?, p 167.
56
Ver HIRSCH, Qué significado Estado?, p 171, mas sobretudo, POULANTZAS, O Estado, o poder, o socia-
lismo, p 82.
57
FOUCAULT dirá, na Microfísica do poder. 18 ed. São Paulo: Graal, 2003, p . 148, que se o poder atuasse
apenas à maneira de um superego seria muito frágil; se ele é forte é porque produz efeitos positivos, tais como
regulações do corpo social capazes da fabricação de uma corporalidade proletária ideal ao trabalho produtivo.
58
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo, et all. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003,
sem enfrentar a inter-relação entre os poderes, oferecem uma importante descrição da intervenção do Estado em
relações assimétricas que não lhe são propriamente interiores. Quando as agências políticas não podem ou não
querem dispor de medidas que efetivamente resolvam um conflito, lançam mão do que eles chamam de renor-
matização. Esta medida consiste na criminalização do comportamento de quem exerce de forma arbitrária o
poder, ao mesmo tempo em que reconhece o status de vítima do subjugado. Desta forma estabelece-se um meca-
nismo de realimentação e relegitimação do poder punitivo, baseado na quase pueril constatação, de grande a-
plauso popular, de que o estabelecimento de mais crimes e mais penas poderiam resolver a questão. Deste modo
apaziguam-se os ânimos, inclusive dos movimentos organizados, ao mesmo tempo em que se canaliza eventuais
impulsos vindicativos nas mãos do Estado, incrementado o seu poder.
22
integrante. O poder é guerra, e se assim o é, pelo menos no nível da intenção, o Estado mo-
derno exigiu para si o monopólio do próprio poder. Mas não visa o poder político justamente
pôr termo à guerra? Ocorre que a paz política necessariamente parte de uma relação de forças
determinável na e pela guerra. O efeito concreto da instauração do poder político não é sus-
pender os efeitos da guerra, mas justamente o de reinscrevê-la de forma perpétua, “através de
uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e nas desigualdades econômicas, na lingua-
gem e até no corpo dos indivíduos.”
59
Daí a inversão a que FOUCAULT submete o célebre
aforismo de CLAUSEWITZ: em vez de a guerra ser a continuação da política é a política que
é a continuação da guerra por outros meios.
60
Ora, quando a legitimidade parece se esgotar na legalidade, como se assinalou, sur-
ge um problema, observado na base da ausência de conteúdos normativos, que possam expri-
mir alguma justificação material. Isto torna intrinsecamente problemática a conquista da legi-
timação mediante um esquema puramente formal. É a esta altura que a variável repressiva
ganha importância, pois embora a política integral do Estado não se esgote no exercício de
sua função repressiva, esta última desfruta de uma posição de proeminência, capaz de decidir
sobre a política que o Estado adota em determinado contexto. Claro que nesse âmbito influem
a correlação de forças e as condições vivenciadas pelas bases de acumulação capitalistas. To-
do este arsenal é o que confere sentido à concreta atuação política estatal. Tais bases depen-
dem do estágio de desenvolvimento e progresso da ciência, quer dizer, das forças produtivas.
2.3 Poder disciplinar e razão de Estado
O aparelho de Estado não pode ser reduzido às relações que compõem a dominação
política. Ele possui uma ossatura material na terminologia de POULANTZAS que tem
59
FOUCAULT, Ob. citada, p . 176. E prossegue: “A política é a sanção e a reprodução do desequilíbrio das
forças manifestadas na guerra. (...) no interior da paz civil as lutas políticas, os confrontos a respeito do poder,
como o poder e pelo poder, as modificações das relações de forca em um sistema político, tudo isto pode vir
da guerra.”
60
Se a afirmação impressiona, no atual momento experimentado de globalização dos mercados, reclama ainda
mais cuidado. Num clima de ilegalidade global guerras o feitas a despeito das regras que visam lhe impor
limites. Os Estados estão sendo instrumentalizados cada vez mais abertamente, a fim de desenvolver guerras
externas e internas a serviço do capital sem-fronteiras e sem-pátria. Assim se dissolvem os vínculos entre a polí-
tica e o poder do Estado. ZYGMUNT BAUMAN em entrevista, O Estado de o Paulo, São Paulo, 12 de feve-
reiro de 2006. Cultura, p. 1 e 8, após sublinhar que cada vez mais a política tende a ser continuação da guerra,
dirá que não existem, e não podem existir, soluções locais para problemas globalmente originados: a ilegalidade
global e a violência armada se alimentam, se reforçam e revigoram mutuamente; como adverte um saber antigo –
inter arma silent lege (entre as armas, a lei silencia).”
23
entre suas principais características o uso freqüente do recurso à punição, quer como resposta
às crises quer como estabelecimento da regra de seu funcionamento. O aumento do recurso à
punição ou o seu estabelecimento como regra primeira de funcionamento do Estado é mais
evidenciado nos países periféricos, de nossa realidade marginal, como diria ZAFFARONI.
61
Por isso, a especificidade do funcionamento concreto do sistema penal nos países periféricos
impõe considerações próprias, da perspectiva do papel reservado aos países de baixa acumu-
lação no sistema global de reprodução capitalista.
Desta tentativa de descrição da dominação política moderna, uma lacuna parece aber-
ta: como, apesar de sua debilidade normativa, de a dominação legal-racional, com um su-
cesso considerável, manter incólume, pelo menos no nível de suas estruturas, sua estratégia de
integração social?
A resposta deve pressupor que, ao contrário do que manifesta quando se trata de suas
intervenções sobre o mercado, o uso da força do Estado sobre os indivíduos, não se revela tão
limitado por não prescindir da legalidade. o se pode perder de vista que boa parte do
reconhecimento exigido para a legitimação provém da atuação do Estado moderno no sentido
de forjar, nas mentes e nos corpos dos indivíduos, uma configuração de utilidade e docilida-
de,
62
na base da disciplina. Isto é notável sobretudo no capitalismo industrial. A importância
do dispositivo disciplinar assim, não pode ser negligenciada na conquista da obediência que o
rígido esquema de dominação racional-legal, surpreendentemente, conseguiu produzir. A pri-
são, como expressão do poder punitivo concentrado nas mãos do Estado, embora não isola-
damente, significou a instauração de uma nova economia do poder, ligada à transformação
dos indivíduos,
63
na constituição e desenvolvimento da sociedade produtora de mercadorias.
A FOUCAULT se deve atribuir o mérito de constatar que o direito, cristalizado na base do
princípio da soberania e na forma jurídica do contrato, na modernidade, sempre conviveu
tranquilamente com um sistema minucioso de coerções disciplinares que, funcionando no
registro contrário das ilegalidades, parece desempenhar o papel mais importante para a coesão
social.
64
61
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Buenos Aires: Ediar, 1998.
62
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 16 ed. São Paulo: Vozes, 1997.
63
FOUCAULT, Michel. , p. 131.
64
É FOUCAULT, Ob. citada, p. 189, quem observa com agudeza: “Este novo tipo de poder, que não pode mais
ser transcrito nos termos da soberania, é uma das grandes invenções da sociedade burguesa. Ele foi um instru-
mento fundamental, para a constituição do capitalismo industrial e do tipo de sociedade que lhe é corresponden-
24
Com efeito, isto significa que a forma de dominação tida por legal, tão cara ao direito
penal moderno, pelo menos em determinados regimes do exercício de poder, historicamente
também nutriu uma simpatia pela ilegalidade. Tal como uma moeda, o poder legal parece não
poder ostentar apenas uma de suas faces. A existência de uma supõe a necessária existência
da outra: daí a coexistência entre a regra (jurídica) e a norma (disciplinar).
65
Aquele estado de
onipresença, pelo menos virtual, da guerra, de que fala FOUCAULT parece se exprimir na
forma indeterminada
66
de manifestações de poder à margem do direito, o toleradas mas
constitutivas à própria ordem jurídica.
Este paradoxo pode ser descortinado no interior mesmo deste esquema: a regra da lei,
como pesquisas mais recentes têm indicado, guarda em sua essência o gérmen mesmo de sua
negação. Em sua ação concreta o Estado, frequentemente, age ou permite que se aja à margem
da ordem jurídica. Isto decorre de problemas que o Estado tem de enfrentar e que, se mantido
na camisa-de-força da legalidade, não seria capaz de superar: a isso se deve chamar “razão de
Estado, que significa que a legalidade é compensada por ‘apêndices’ de ilegalidade, e que a
ilegalidade do Estado está sempre inscrita na legalidade que a institui.”
67
Aqui é imprescindí-
vel tornar a recorrer a AGAMBEN, para quem esta dupla natureza do direito parece lhe ser
constitutiva. O estado de exceção, tradução de uma espécie de tendência incorrigível do Esta-
do moderno em fazer da exceção regra principalmente na forma da suspensão recorrente da
regra jurídica - é o locus onde esta espécie de ambigüidade vem à luz. É o próprio
AGAMBEN que faz questão de enfatizar que “o estado de exceção moderno é uma criação da
tradição democrático-revolucionária e não da tradição absolutista.”
68
Esta negação do direito
radicada na sua própria essência, corresponde ao deslocamento, no eixo da dominação, do
te; este poder não soberano, alheio à forma da soberania, é o poder disciplinar. Indescritível nos termos da teoria
da soberania, radicalmente heterogêneo, o poder disciplinar deveria ter causado o desaparecimento do grande
edifício jurídico daquela teoria. Mas, na verdade, a teoria da soberania continuou não existindo como uma
ideologia do direito como também organizando os códigos jurídicos inspirados nos códigos napoleônicos de que
a Europa se dotou no século XIX.”
65
FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 183, dirá que “enquanto os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito,
segundo normas universais, as disciplinas caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma
escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao
limite, desqualificam e invalidam. De qualquer modo, no espaço e durante o tempo em que exercem seu controle
e fazem funcionar as assimetrias de seu poder, elas efetuam uma suspensão, nunca total, mas também nunca
anulada, do direito. Por regular e institucional que seja, a disciplina, em seu mecanismo, é um ‘contradireito’.”
66
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p. 39, ao tentar decodificar a
estrutura topológica do estado de exceção moderno, fala que ele se inscreve numa posição de indiferenciação
entre fato e direito, em que dentro e fora não se excluem mas se indeterminam.
67
POULANTZAS. Ob. citada, p. 95.
68
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 16.
25
consentimento para a repressão. Se abriga numa tendência que AGAMBEN como moder-
na, de coincidência entre emergência político-militar e crise econômica.
69
Com base nestas conclusões, não seria ousado sustentar que a armadura legal tem ser-
vido para ocultar o exercício de um poder em grande parte ilegítimo, e que por sê-lo se traduz
em violência, quando pouco institucional. Pois “a reprodução das relações de classes, regidas
pela lei do valor, supõe então uma instância física de repressão formalmente exterior ao pro-
cesso de reprodução e das classes que nele agem.”
70
Portanto, a reprodução da dominação de
classe se realiza mediante a colaboração do Estado no sentido de naturalizar a imposição, por
parte dos que dispõem dos meios de produção, da obrigação, por parte daqueles que nada pos-
suem senão sua força de trabalho, a vendê-la. A forma encontrada para legitimar e ocultar esta
violência é a forma legal. Mas sua interiorização, ou seja, sua assunção como o modelo de
socialização quase inconsciente, não se realiza sem a contribuição decisiva do moderno dispo-
sitivo disciplinar, que se reduziria à mera picardia, não tivesse à sua disposição o recurso à
pena - privativo do Estado. Embora capaz de produzir até obediência – o que por si o afastaria
daquele tipo de controle social realizado a despeito da resistência do subjugado não se pode
ocultar o fato de que ele continue traduzindo uma violência. É inegável que o dispositivo dis-
ciplinar representa uma forma de poder. Se foi capaz de produzir consentimento, o conse-
guiu depois de enfrentar longas resistências, como será possível observar quando se fará a
periodização em estágios e fases da atuação do Estado na gestão da “mercadoria” força de
trabalho. A apreensão de um conceito de poder e, por conseguinte, de uso da violência, não se
realiza suficientemente se não se atina para a materialidade deste poder. Mesmo que não
transpareça no exercício cotidiano do poder, a violência física, como no passado, permanece
determinante.
71
Em suma, não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade
do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos. Nada é mais material, nada é
mais físico que o poder.
72
Por fim, a tese do papel sancionador do Estado o é infactível porque, mesmo sem
estar a serviço da classe dominante, é ele quem permite a reorganização da divisão social do
trabalho baseada na separação fundante entre os trabalhadores e os meios de que precisam
69
AGAMBEN, Ob. citada, p. 29.
70
HIRSCH, Joachim. Observações teóricas sobre o Estado burguês e sua crise. In: POULANTZAS, Nicos
(org.). O Estado em crise. Rio de Janeiro: Graal, 1977, p.85-113.
71
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo, p. 90.
72
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p. 146-147.
26
para a produção, enfim, suas relações de produção. Com isto parte-se do pressuposto, caro à
POULANTZAS, do primado das relações de produção sobre as forças produtivas.
73
O lugar
das classes nos diversos aparelhos e dispositivos de poder é distribuído segundo esta lógica,
modificável pela força das lutas que visem lhe opor resistência. Com isto se explica por
que as mulheres conseguiram, muitas vezes contra a demanda de mão-de-obra, conquistar
mais possibilidades de serem assimiladas pelo mercado de trabalho. Ao contrário, pode tam-
bém o Estado lançar mão de políticas que visem justamente manter a mulher em casa, como
forma de aplacar a oferta de mão-de-obra e permitir a reprodução de sua estratégia de sociali-
zação e legitimação. Além disso, foram leis nomeadamente burguesas, de que o Código Civil
brasileiro de 1916
74
(em vigor até o final do ano de 2002) é exemplo, que delimitaram os pa-
péis reservados aos homens e às mulheres na própria vida doméstica. Clássica, a este respeito,
era a concentração exclusiva do chamado pátrio poder nas mãos do marido. Por isso que a
razão pode estar com POULANTZAS, para quem “o privado é apenas a réplica do público,
pois se há desdobramento, inscrito no Estado epresente nas relações de produção e na divi-
são social do trabalho, é porque o Estado traça os contornos.”
75
Uma sociedade burguesa e produtora de mercadorias, em que talvez a principal forma
de exteriorização do poder se manifeste pelo menos sob o regime do capitalismo fabril
como produtora de indivíduos úteis e dóceis para a produção industrial, faz com que esta tec-
nologia do corpo tenha como base o quadro referencial da divisão social do trabalho, que por
sua vez, é condicionada pelas relações de produção. É portanto para o exercício da exploração
capitalista que o Estado, quando não executa diretamente, tolera ou endossa certas práticas
políticas (porque interferem na distribuição do poder), ainda que não as tenha todas regula-
mentadas em seu seio. Isto, em parte explica o reduzido espaço permitido à efetiva participa-
ção dos cidadãos.
76
Se o poder é força, é guerra prolongada por outros meios,
77
ele se realiza numa materi-
alidade, numa ossatura institucional que é a do Estado burguês. O fundamento dessa ossatura,
73
POULANTZAS, Ob. citada, p .31.
74
Dizia seu art 380, ao regulamentar o pátrio poder: “Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais,
exercendo-o o marido com a colaboração da mulher.” Somente com a Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (No-
vo Código Civil), que entrou em vigor somente em janeiro de 2003 é que se passou a regular o poder familiar,
exercidos por ambos os pais, no casamento ou na união estável (art 1.631).
75
POULANTZAS, Ob. citada, p. 80.
76
Ver SOUSA SANTOS, Boaventura. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. v. 1, 5
ed., São Paulo, Cortez, 2005, p. 113.
77
FOUCAULT, Ob. citada, p. 176.
27
segundo POULANTZAS, encontra-se nas relações de produção e na divisão social do traba-
lho. Portanto esta relação assimétrica e desigual está atravessada por uma configuração insti-
tucional e política que lhe sanciona, no sentido de (des)construir, permitir, omitir ou colaborar
na produção de seus efeitos. Determinante são as lutas travadas no cerne mesmo das rela-
ções de produção que atingem inclusive o aparelho de Estado, ao mesmo tempo em que são
por ele sancionadas, quer assimilando-as, quer instrumentalizando-as, quer mesmo interditan-
do-as. Conforme assinalou POULANTZAS:
O Estado tem um papel constitutivo nas relações de produção e nos poderes que elas
exercem, e no conjunto das ligações de poder em todos os níveis. Em contrapartida,
contrariamente a toda concepção estatal, desde Max Weber, que via nos apare-
lhos/instituições o lugar original e o campo primeiro de constituição das relações de
poder, até o caloroso momento atual, são as lutas, campo primeiro das relações de
poder, que sempre detêm a primazia sobre o Estado. Isso se refere não somente às
lutas econômicas como também ao conjunto das lutas e inclusive às lutas políticas e
ideológicas. É claro que nessas lutas as relações de produção têm o papel determi-
nante.
78
Desta maneira, embora sancionada pelo Estado, as relações de poder são constitutivas
da própria existência gregária ou social. O fato de elas estarem contidas numa sociedade divi-
dida em classes as faz assumir uma configuração própria, o que não significa que com a supe-
ração destas, aquelas venham desaparecer. As relações de poder são produto dos conflitos
sociais que não se identificam ao antagonismo de classe e constituem o motor da história.
3. As estratégias de legitimação e as funções do Estado capitalista.
Em teoria social é muito recorrente falar-se em legitimação material, na tentativa de
opor-se àquela de natureza formal que caracteriza a dominação burocrática. Diz-se que, sem o
recurso a justificações acerca do conteúdo das realizações do Estado, seria impossível levar
adiante a dominação. Como já se deixou registrado, no sentido weberiano dominação implica,
pelo menos em alguma medida, consentimento. Até aqui a resposta a este dilema caminhou
no sentido de fazer repousar a chave de sua compreensão sobre as relações de coação que
impregnam o tecido social. Daí a centralidade do dispositivo disciplinar e sua notável habili-
dade em funcionar à margem da legalidade sem assumir que assim procede. Nesta seção, para
78
POULANTZAS, Ob. citada, p. 52.
28
tentar isolar com maior precisão, principalmente para efeitos analíticos, as funções que o Es-
tado capitalista se encarrega de desempenhar dentro de determinado contexto sócio-político,
discute-se outras estratégias de que ele lança mão a fim de granjear consentimento, conse-
quentemente, legitimação. Estas estratégias não podem afastar-se ou entrar em conflito com
as funções específicas que o Estado capitalista deve desempenhar.
Pode-se afirmar que a política geral do Estado capitalista em sua forma pica e não
subdesenvolvida deve se encarregar da transformação permanente da força de trabalho em
trabalho assalariado. A partir desta política geral é que se determinam e se distribuem suas
funções.
79
O que de mais específico nas relações de produção capitalistas é a separação do
poder do sujeito sobre sua capacidade produtiva, conseqüência inevitável da separação radical
entre trabalhador e meios de produção. Seu fundamento repousa na especificidade dessas re-
lações ao repercutir na divisão social do trabalho.
A questão que cumpre agora enfrentar consiste na relação entre a necessidade de do-
minação, para a qual algum consentimento é imprescindível, e as estratégias de que o Estado
lança mão para desempenhar as funções que este quadro material lhe reclama. Mas há distin-
ções a fazer: se a dominação, enquanto tal e na forma concebida por WEBER, exige algum
grau de consentimento, nada diz que ela deva ser conquistada mediante algum benefício con-
creto, portador de algum valor de uso, aos, por assim dizer, dominados. Esta conclusão deve-
ria ter ficado clara, sobretudo depois que enfrentamos o dispositivo disciplinar. Mas a com-
preensão empírica do sucesso do Estado na tarefa de construção de uma relativa coesão social
deve agregar outra variável. Para tanto é necessário finalmente recorrer a uma outra importan-
te contribuição teórica. A dominação enquanto tal, para cuja conquista a disciplina é tão im-
portante, não coincide com aquilo que GRAMSCI denominou hegemonia. Todavia, também
esta noção, pelo menos para WEBER, reclama algum consenso, e segundo GRAMSCI seria a
razão estrutural pela qual determinadas formações sociais dispõem de maior legitimidade.
80
As linhas de definição entre Estado e sociedade civil, traçadas segundo a concepção de
GRAMSCI, são de difícil visualização. Por ela a própria noção de Estado se reporta a elemen-
tos da sociedade civil, de maneira que ambos tendem a constituir uma totalidade (compreen-
79
OFFE, Claus; LENHARDT, Gero. Teoria do Estado e política social, p. 15.
80
Cf. COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros ensaios. São Paulo:
Cortez, 1994, p. 117.
29
sível segundo a seguinte fórmula: Estado = sociedade política + sociedade civil, ou seja, é
hegemonia revestida de coerção).
81
No esquema conceitual de GRAMSCI, grande parte da
conquista da hegemonia é realizada pelos aparelhos ideológicos que, por sua vez, podem des-
frutar de boa parcela de autonomia frente ao Estado. Nesse sentido, “a hegemonia não é um
pólo de consentimento em contraste com outro pólo de coerção, mas é a síntese de consenti-
mento e repressão.”
82
Segundo a concepção ampliada de Estado de GRAMSCI, se a domina-
ção, mesmo que não isoladamente, é garantida pelos aparelhos coercitivos do Estado, ela está
contida na hegemonia. Todavia, o que a esta última estabilidade é sua extensão sobre o
campo das idéias e até da moral.
83
Só assim pode o grupo dominante fazer com que interesses
próprios sejam percebidos como interesses coletivos.
No entanto, a mim parece que esta noção de hegemonia e aquilo que, segundo o pró-
prio GRAMSCI, constituiria seu antídoto a contra-hegemonia baseada na construção de
novas instituições superestruturais, a cargo dos intelectuais orgânicos à “causa” - são de difícil
assimilação. O prova a dificuldade encontrada por todos quantos tentaram e ainda tentam in-
culcar nas classes “potencialmente revolucionárias” seu destino histórico de realizar a revolu-
ção.
Esta discussão, contudo, não vem ao caso. O que importa por agora é reconhecer, no
funcionamento do Estado capitalista, como se desenvolve sua atuação política estratégica,
inclusive em termos de conquista de legitimidade, quais as funções que concretamente ele
desempenha nessa atuação e qual o lugar reservado à instituição da pena nesta atividade mais
geral.
Para isso convém começar pela descrição da forma que o Estado organiza sua política
integral. Com efeito, a lei do valor, enquanto máxima do processo de reprodução do capital,
necessita que a submissão da força de trabalho à forma-mercadoria não seja deixada ao sabor
81
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989,
p. 10-11.
82
CARNOY, Martin. Estado e teoria política. 4 ed. Campinas: Papirus, 1994, p 99.
83
GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989,
p. 8-12. A inspiração em MARX é evidente, cf. MARX, Karl; ENGELS, Friederich. A ideologia alemã. 2 ed.
São Paulo: Martins Fontes, 1998, p 48, “Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as épocas,
os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe que é o poder material dominante numa determinada
sociedade é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos meios de produção dispõe também
dos meios de produção intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais o negados os meios de
produção intelectual está submetido também à classe dominante.”
30
da livre vontade dos indivíduos. Em vez de uma postura passiva, o Estado tem de tomar uma
atitude ativa na tarefa de proletarização, através da qual impede que os trabalhadores procu-
rem formas de subsistência distintas da alienação de sua força de trabalho. Conforme observa
OFFE,
84
apenas quando a escolha em se integrar ou não ao mercado de trabalho não couber
mais ao trabalhador, é que se pode contar com uma integração social confiável e permanente
da massa de trabalhadores. Para isso as decisões precisam ser reguladas politicamente. Entre
outras coisas, é preciso assegurar uma correspondência quantitativa aproximada entre o nú-
mero de indivíduos que se proletarizam de forma passiva e o número daqueles que, em vista
da demanda, podem encontrar ocupação. Para se solucionar estes problemas é necessário, por
um lado, vencer a resistência natural à socialização segundo o modelo da mercadoria. Para
tanto o Estado pode recorrer aos seus aparelhos ideológicos e repressivos. Dependendo do
contexto no qual sua atuação política ocorre, o acento recai mais sobre um destes aparelhos.
Dentro do desempenho deste plexo de funções o Estado também tende, por outro lado,
a cuidar de comprimir os salários. Deste modo, ao mesmo tempo em que tem de envolver uma
maior massa de trabalhadores nos processos produtivos, possibilitando a esta massa um in-
cremento da capacidade de consumo e permitindo, assim, a única possibilidade de existência
social plena que o capitalismo pode admitir (a existência na qualidade de consumidor), o Es-
tado capitalista não pode se desobrigar de sancionar políticas salariais que mantenham a ex-
tração de mais-valia em níveis interessantes. Por isso, enquanto limita a jornada de trabalho
para não permitir que o regime de trabalho degringole para a escravatura, o Estado atua, na
outra ponta, para que a massa de salários não inviabilize o processo de acumulação e reprodu-
ção do capital.
Esta estratégia de envolver um maior número de trabalhadores no processo de fruição
da riqueza social também produz um efeito social e político sem o qual a própria existência do
Estado capitalista e das relações de produção que lhe são próprias ficaria sob sérios riscos.
Ora, melhor do que através da introjeção de valores, as estratégias de legitimação do Estado
parecem melhor compreensíveis a partir de seu empenho em disponibilizar, desde que em
doses politicamente controladas, a fruição pelos indivíduos em geral, dos bens e riquezas por
eles próprios produzidos. Numa sociedade produtora de mercadorias, na qual vigora, sobran-
ceira, a livre circulação de bens regida pela troca equivalente, a principal maneira de o Estado
84
OFFE & LENHARDT, Teoria do Estado e política social, p. 18-21.
31
conquistar legitimidade é atuando em favor da assimilação, pelo mercado, do maior número
possível de pessoas. É assim que a figura do emprego, que traduz a venda da força de trabalho
pelo seu equivalente em dinheiro (salário), pode assumir uma dupla função: por um lado, ga-
rante a dominação e com algum grau de crença; por outro, assegura um mercado de consumo
para os bens que este mesmo mercado produz. A conquista da hegemonia pode se dar, pois,
mediante a submissão de quase toda a vida social aos mecanismos do mercado sem dele exigir
qualquer esforço.
Em resumo, a absorção de trabalhadores no mercado de trabalho, além de constituir
uma condição imprescindível para a realização do valor de troca, representa, ao mesmo tem-
po, uma das mais importantes estratégias de legitimação do Estado capitalista. Constitui sua
equação legitimadora capaz de realizar a exploração tornando anônimo o explorador. Desde
que vencida a resistência a se enquadrar no esquema de venda da força de trabalho pode o
Estado conciliar a existência de uma das necessidades constitutivas do capitalismo, que é a
extração de mais-valor, com o reforço de sua legitimidade.
Deste modo a totalidade das relações sociais tende a ser completamente regida segun-
do o mecanismo de produção e, mais importante, inclusive simbolicamente, de distribuição de
mercadorias. Como o valor só alcança sua realização quando da circulação do produto no qual
ele se incorpora, sua idéia implica, como necessidade lógica, a troca de equivalentes. A forma
mercantil é aquela regida pela ideologia do intercâmbio de equivalentes que tende a impreg-
nar a totalidade das relações sociais e a se refletir, entre outros inúmeros domínios, no direito.
“A idéia de equivalente, esta primeira idéia puramente jurídica, encontra novamente a sua
fonte na forma mercantil.”
85
Além de mediar as relações econômicas, faz o mesmo com as
relações jurídicas. Assim é que a pena, enquanto expressão da forma jurídica geral forjada
pela mentalidade burguesa, deve ser equivalente à gravidade da conduta que pretende punir. A
proporção entre o delito e a punição a que ele deve conduzir se reduz a uma relação de troca,
assim como aquela verificada entre o dano e sua reparação. Esta noção de equivalência ou de
igualdade, pelo menos no nível quantitativo, é o que fundamenta uma das mais caras estraté-
gias de legitimação do Estado.
85
PACHUKANIS, Teoria geral do direito e marxismo, p. 119.
32
Não dúvidas de que, embora o envolvimento de uma grande parcela da população
no mercado de trabalho e de consumo de bens produza legitimidade, no seu âmago a troca de
equivalentes constitui apenas uma ideologia. Afinal, não é o capitalismo, em si e por si, uma
forma de convivência social onde a desigualdade é imanente?
De fato, para além da forma, o que designa as relações de produção capitalistas é o re-
gistro da desigualdade nas quais elas operam. Esta por certo não é a única contradição lógica
intrínseca ao modo de produção capitalista. A mais-valia implica, por definição, que parte da
força de trabalho empregada pelo trabalhador não encontre no salário sua equivalência. O que
a forma permite é que, mesmo sem retribuição, a apropriação da mais-valia não viole a lei do
valor. A relação mercantil entre capital e força de trabalho assume o caráter de troca de equi-
valentes, pois o salário é o equivalente monetário do valor da força de trabalho. Ocorre que a
criação da mais-valia, para não perturbar esta relação, se realiza fora dela, ou seja, no proces-
so de uso produtivo da força de trabalho. Por outras palavras: na produção, não na circula-
ção.
86
Daí que sob a forma mercantil, que impera na esfera da circulação, a troca de equiva-
lentes vigora escondendo a realidade concretamente desigual na qual ela repousa seus funda-
mentos. A seguinte passagem de LAURINDO MINHOTO, para este efeito, é lapidar:
A forma jurídica revestida pela moderna pena privativa de liberdade enreda-se numa con-
tradição entre os pólos da retribuição (uma pena a ser imposta a partir de um exame estrita-
mente lógico-formal acerca da ilicitude da conduta e da culpabilidade do agente) e da re-
forma (um cálculo utilitário destinado a prevenir a criminalidade e a reabilitar o condena-
do). A contradição é ideológica no sentido enfático, na medida em que se assenta numa a-
parência socialmente necessária assumida pelas relações sociais capitalistas, que, por sua
vez, é transposta de modo peculiar para o discurso jurídico penal da modernidade. O princí-
pio da recompensa equivalente medeia ao mesmo tempo relações jurídicas e econômicas.
Ambas aparecem como relações que se travam num jogo de reciprocidade em que vontades
individuais supostamente autônomas exercem o seu livre-arbítrio. A privação da liberdade
juridicamente concebida como retribuição internaliza esse modo específico de aparecer que
informa a esfera da circulação da sociabilidade capitalista (o que a forma jurídica revela).
Porém, sob o fundo falso da reciprocidade, os institutos jurídicos e econômicos operam
concretamente à base de gritantes desigualdades sociais. O outro da penalidade moderna
pode ser identificado na instauração de um aparato técnico-disciplinar destinado ao controle
das ilegalidades da força de trabalho e ao aprendizado, no cárcere, dos reclamos disciplina-
res do capitalismo fabril (o que a forma jurídica esconde).
87
86
BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1999, p. 163: “À igual liberdade formal dos sujeitos no momento jurídico contratual da compra e venda da força
de trabalho se segue, no momento real da produção, ou seja, do consumo da força de trabalho, a subordinação e a
exploração do homem pelo homem.”
87
MINHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado. Lua Nova. n 55-56, 2002, p. 133-154.
33
Com efeito, uma série de contingências e também a própria natureza da força de traba-
lho, fazem com que a sua mercantilização assuma características específicas, que se traduzem
no seu valor. Estas especificidades recomendam um tratamento apartado do assunto.
3.1 Características da “mercadoria” força de trabalho
MARX dizia que uma das coisas que distingue o valor da “mercadoria” força de traba-
lho de todas as demais é o ingresso, em sua composição, do elemento histórico ou social, ao
lado do elemento puramente físico. Este último elemento determina a entrada do padrão de
vida tradicional de cada país, e acaba constituindo uma carga que pode se projetar e perpetuar
no curso da história, desde que a classe trabalhadora tenha “capital político” para mantê-la.
Por isso, apesar de histórico e social, “pode acentuar-se, ou debilitar-se e, até mesmo, extin-
guir-se de todo, de tal modo que fique de o limite físico.”
88
Além disso, a pressão reali-
zada pelas necessidades produtivas do capital também impele ao incremento dos salários. O
capital não costuma ter este nível de consciência. Por isso a intervenção política do Estado é
necessária. Finalmente e não menos importante, questões geopolíticas e de expansão do capi-
talismo em vel internacional também são decisivas, como se procurará deixar claro ao en-
frentar a tradução latino-americana do Estado moderno, forjado no interior de um capitalismo
de tipo dependente.
Como contrapartida em favor do capital, a “mercadoria” força de trabalho, por sua
própria constituição, tem sua venda determinada por contingências que lhe desfavorecem,
mesmo em termos de livre concorrência. Sua oferta no mercado não pode ser controlada estra-
tegicamente por quem dela dispõe. Ao contrário das demais mercadorias, a força de trabalho
não depende, tampouco é determinada, pelas expectativas de sua venda. Pois a elevação de
sua oferta é determinada por processos não-estratégicos, de ordem demográfica, por exemplo.
Por isso OFFE fala da desvantagem estrutural da força de trabalho.
89
Outro aspecto desta
desvantagem reside no fato de que a oferta da força de trabalho depende da oferta dos meios
necessários à sua subsistência. O fato de não controlar os meios de produção não permite que
a força de trabalho possa optar entre ser colocada à venda ou ser utilizada como meio de sub-
sistência, como é possível, por exemplo, com os produtos agrícolas. Com isso a demanda,
88
MARX, Karl. Salário, preço e lucro. In: Os Economistas. São Paulo: Nova cultural, 1996, p. 113.
89
OFFE, Claus. A economia política do mercado de trabalho. In: OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado. São
Paulo: Brasiliense, 1995, p. 26 e segs.
34
pelo lado do mercado de trabalho, fica favorecida, principalmente porque, ao contrário da
imobilidade que caracteriza a força de trabalho, o mercado atua segundo a liquidez e a liber-
dade de outra “mercadoria”, o capital. Todas estas desvantagens convergem numa inferiorida-
de fundamental: a redução do pagamento como compensação, ou seja, a redução do preço da
mercadoria força de trabalho no mercado de emprego.
Esta inferioridade por certo se reflete na acumulação de capital político pelos não-
detentores de capital monetário. Sem embargo, o proveito que a evolução das forças produti-
vas pode produzir tem, em alguma medida, sua direção definida segundo a correlação de for-
ças entre as classes em presença. Isto não quer dizer que se possa desprezar o padrão reprodu-
tivo adotado pelo capital.
90
Por isso esta tendência em manter o nível salarial próximo de sua
linha inferior pode ceder. Todavia não ocorrerá senão dentro dos limites impostos por sua
expansão, ou melhor dizendo, pelo padrão que o capital adota para tal.
No Estado de bem-estar, como se verá mais adiante, o conjunto de forças hegemônicas
que o domina, se mostra mais consciente das limitações que o padrão reprodutivo oferece. A
estratégia, para além de ampliar a absorção da força de trabalho, consequentemente, também a
massa de consumidores, consistiu em deslocar parte do pagamento pela venda da força de
trabalho para o Estado. Não é outra a interpretação que se pode dar aos benefícios sociais típi-
cos do Welfare State; sua funcionalidade vai além do mero atributo de inclusão social: o salá-
rio indireto produz ainda o efeito de aliviar o capital. Pois os benefícios concretos, na forma
de valor de uso, que ele proporciona (assistência de saúde, previdência social, educação, segu-
ro-desemprego ou seus análogos, etc...), se não concedidos pelo Estado, obrigaria o capitalista
a incrementar sua retribuição pela força de trabalho rumo ao seu nível equivalente.
Ocorre que estas “concessões”, além de permitir um certo nível de organização da
classe trabalhadora, tende a criar uma “lacuna” no âmbito de “vigência” da lei do valor. Deste
modo, por um lado pode o movimento operário, atingindo um nível de organização maior e
mais orgânico, projetar sobre o Estado a energia de suas reivindicações. Por outro, permite o
deslocamento da força de trabalho para fora dos setores produtores de valor de troca. Ainda
que funcionais em alguma medida, a assimilação da força de trabalho por estes setores, no
90
Mais adiante (Capítulo III, infra) ao enfrentarmos o período neoliberal e a função repressiva que lhe corres-
ponde, se procurará discutir a reorganização produtiva pelo capital e a alteração de seu padrão de produção ri-
queza.
35
limite põe em xeque a própria essência do capital. Deste ponto de vista, se a oferta, pelo Esta-
do, por um lado desonera o capital produtivo, por outro o sobrecarrega mediante o incremento
da carga fiscal que lhe é imanente.
91
Todas estas variáveis, não permitem que se compreenda
a função precípua do Estado sem recorrer a complexidades. No item subseqüente, procuro
reconhecer estas complexidades.
3.2 A função precípua do Estado
Como visto, grosso modo, duas são as estratégias principais de legitimação de que o
Estado capitalista costuma lançar mão: a oferta de emprego e a destinação, por este mesmo
Estado, de benefícios concretos aos quais os indivíduos, para ter acesso, não precisam recorrer
ao mercado. Poder-se-ia dizer que somente em função destas concessões o Estado conseguiu,
em determinados contextos econômicos e sociais, desfrutar de um nível substancial de legiti-
mação. HABERMAS reconhece que a percepção de legitimidade, mais do que a garantia de
democracia, necessita da distribuição de valores de uso
92
mediante políticas fiscais.
93
Compreende-se, assim, que o Estado, tal como ele é aqui concebido, depende, em
termos funcionais, do desempenho simultâneo de atividades que visam garantir tanto o pro-
cesso de acumulação quanto a manutenção de sua legitimidade. A chave interpretativa do
funcionamento do Estado reside em observar o nível de sua ingerência nas relações de produ-
ção e na divisão social do trabalho a que estas relações induzem. Assim, a partir de quando se
conta de que precisa envolver um maior número de pessoas no processo produtivo, as es-
tratégias de legitimação, enquanto variável da política social do Estado, se modificam.
Porém, para submeter sua legitimação à forma-mercadoria que é sua estrutura celu-
lar, o Estado tem à disposição um número limitado de estratégias. Segundo CLAUS OFFE
seus limites estão dados justamente pela rigidez da forma-mercadoria e da produção de valor
de troca. Ou seja, permitir que determinada parcela da força de trabalho seja consumida para a
91
OFFE, Relações de troca e legitimação política, p. 201.
92
OFFE, Ob. citada, p. 185, observa que, “do ponto de vista do capital individual, a gênese e a expansão do
trabalho ‘concreto’ ao lado do trabalho assalariado, isto é, a absorção de parcelas de valor favorecendo a receita
do Estado em vez de somar-se ao capital variável, e o trabalho consumidor de valor em vez de trabalho gerador
de valor, são uma fonte constante de irritação e aparecem como um desperdício parasitário.”
93
HABERMAS, Jürgen. Problemas de legitimación en el capitalismo tardio. Madrid: Cátedra, 1999, p. 106.
36
produção de valor de uso, no limite, põe em xeque a equação legitimadora referida.
94
Esta
rigidez, entretanto, não é de molde a impedir qualquer margem de manobra. Os espaços exis-
tentes correspondem às desvantagens que a força de trabalho experimenta no mercado de tra-
balho. Por isso que muitas vezes, e esta tende a ser a atuação do Estado, a introdução de ino-
vações institucionais em princípio incompatíveis com a acumulação capitalista nem por isso
deixam de atuar em favor do processo de valorização. Assim se dá, por exemplo, com a oferta
de serviços de saúde, de educação e, enfim, de toda infra-estrutura, normalmente a cargo do
Estado. Além disso, o deslocamento de parcelas da força de trabalho para a produção de bene-
fícios concretos serve como reforço das estratégias de legitimação resultantes da capacidade
de consumo que, se ficassem na dependência do mercado de trabalho assalariado, poderiam
não encontrar receptividade. Mesmo nestas condições os benefícios são maiores para o capi-
tal, considerado a nível global. Pois se enfrentadas por cada capitalista individual, estas estra-
tégias não poderiam ter êxito. Aqui a intervenção do Estado é curial, a partir de quando assu-
me e reconduz estas tarefas à centralidade de sua atuação político-administrativa.
A oferta de direitos sociais e de prestações assistenciais desfruta de uma posição de
importância nesse quadro. Ela também é dirigida politicamente, pois o poder administrativo
possui clara consciência das inter-relações das diversas políticas que compõem a política geral
do Estado, inclusive aquelas de corte político-repressivo.
95
Mas esta capacidade de integração
social varia na medida do sucesso da estratégia hegemônica. O dispositivo da disciplina e a
inculcação de valores, esta última deixada ordinariamente a cargo dos aparelhos ideológicos,
como se disse, revelaram não bastar para garantir a eficácia deste processo. Daí a oferta de
benefícios sociais na forma de salário indireto que veio a caracterizar o Estado de bem-estar.
Suas limitações se revelam pela possibilidade de adoção de um padrão reprodutivo para os
quais a conversão permanente do trabalho em trabalho abstrato e assalariado não seja tão im-
portante. Assim também a força política da classe trabalhadora pode perder importância, pois
sua possibilidade de existência está condicionada à permanência da necessidade desta mesma
classe para o processo acumulativo do capital. Uma alteração radical do padrão produtivo e de
acumulação, a ponto de tornar o trabalhador (pelo menos) em tese dispensável, conduzirá à
drástica redução de seu papel político e até à perda da importância de sua existência social.
94
OFFE, Claus. Relações de troca e legitimação política. A atualidade do problema da legitimação. In: Proble-
mas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 180-214.
95
OFFE & LENHARDT, Teoria do Estado e política social, p. 30. Por isso as atividades estatais não podem ser
definidas em função da competência dos diversos órgãos, mas segundo sua orientação funcional em relação ao
problema estrutural objetivo: a constituição e reprodução permanente da relação de trabalho assalariado.
37
Finalmente, o quadro referencial que se pretende esboçar não prescinde de um escor-
ço acerca do esquema geral das crises do sistema capitalista, como o que se pretende fazer
adiante.
3.3 Crises econômicas e políticas: um teorema acerca da crise de legitimidade.
Neste quadro pintado com várias cores, nos quais os matizes que compõem a aquare-
la conjuntural são tributários das mais variadas naturezas (econômica, política, social e até
tecnológica), uma aguda crise tende a se desenhar no horizonte. Seu contexto consiste na con-
solidação da expansão dos mercados capitalistas em nível mundial, com a tendência a concen-
tração dos setores produtivos em monopólios, a fusão de empresas em conglomerados, etc.
No microcosmo, é o tempo do fordismo enquanto regra de organização das relações de produ-
ção, cujo locus privilegiado é o “chão da fábrica”. Neste âmbito o trabalho produtivo industri-
al ainda era o fator determinante do nível de existência social dos indivíduos e compunha o
imaginário coletivo no interior do qual qualquer possibilidade de ruptura política ia deixando
de fazer sentido.
No entanto os custos de produção se tornam cada vez mais altos. Simultaneamente,
observa-se uma substancial alta dos preços que, por incrível que pareça, se faz acompanhar do
aumento do desemprego. A simples existência de um considerável exército industrial de re-
serva não cumpria sua função de regulador do nível dos salários a contento. Contra isto atuava
os benefícios concretos concedidos pelo Estado.
As estratégias adotadas pelo Estado de bem-estar continham em si o germe da politi-
zação, à medida que favoreceram o lado da oferta de força de trabalho frente ao mercado no
qual ocorre a sua compra. Com efeito, a nota de distinção do Welfare foi a reelaboração de
seu funcionamento político no sentido de acomodar, com mais “conforto”, a classe trabalha-
dora em seus mecanismos de mercado. Desta forma, além de garantir as bases futuras de sua
expansão, logrou-se reforçar o esquema de legitimação que a história revelou constituir a es-
tratégia decisiva para a manutenção da hegemonia burguesa: a concessão de benefícios con-
cretos, detentores de valores de uso, a par da capacidade de consumo que incrementa a esfera
da troca de mercadorias na qual o valor se realiza plenamente.
38
Entretanto, também não deixaram de revelar uma vez mais o núcleo de contradições
ao qual o desenvolvimento do capitalismo está atado. Num sentido mais preciso, o Welfare
propiciou o reforço do poder de barganha da classe trabalhadora, que afinal poderia até optar
em não vender sua força de trabalho já que o Estado lhe disponibilizaria inclusive uma presta-
ção econômica (substituta do salário), enquanto durasse a procura por um melhor enquadra-
mento no mercado. Ao mesmo tempo reduziu a eficácia da lei da troca de equivalentes, uma
vez que nem toda subsistência era condicionada à opção entre se submeter ou não ao processo
de proletarização. Pelo menos nos países centrais, este ganho político permitiu ao movimento
sindical agregar forças em torno de seu objetivo principal que é o aumento da contraprestação
pela venda da força dos trabalhadores.
À compreensão desta crise de natureza política deve corresponder a compreensão do
esquema geral das crises capitalistas em termos econômicos. Segundo o esquema geral, de
movimentos cíclicos e reiterados, tal conjuntura pode ser interpretada da seguinte forma: o
capitalismo é, por natureza, global. Expandir suas fronteiras constitui a intenção que o anima.
Simultaneamente, ele é preso às contradições que estão na sua raiz. A lei da queda tendencial
da taxa de lucro constitui a síntese destas contradições. Tal lei traduz uma inferência lógica
da teoria do valor, da teoria da mais-valia e da composição orgânica do capital - todas catego-
rias cunhadas por MARX n’ O Capital. Ora, o capital contém dois componentes distintos. O
capital constante representa o trabalho morto e coincide com os próprios meios de produção.
É constante porque no processo produtivo, seu valor se mantém inalterado, de modo que o
valor nele imobilizado transfere-se ao produto sem alteração quantitativa. O capital variável
corresponde aos salários, enquanto pagamento da compra da força de trabalho, e sua variação
corresponde à taxa de extração de mais-valia. É a valorização do capital variável que lugar
à valorização do capital em sua totalidade. A relação quantitativa entre capital constante e
capital variável é o que se denomina composição orgânica do capital: quanto maior é o coefi-
ciente do capital constante, maior é a composição orgânica do capital, e vice-versa.
96
Determinante para se aferir a dimensão quantitativa dos componentes do capital, por-
tanto, será sempre a mais-valia. A mais-valia, por sua vez, consiste no tempo a mais, se com-
parado com o tempo socialmente necessário, dedicado pela força de trabalho para a produção
96
MARX, Karl. O Capital. Livro I, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1996, Cap. VI.
39
da mercadoria. Ela implica a apropriação de uma parte da força de trabalho pelo capitalista,
que a compensação econômica (o salário), não chega a pagar. Ela pode ser absoluta, isto é,
variável na medida da jornada de trabalho: quanto maior a jornada, se o salário não a acompa-
nha, aumenta-se a taxa de mais-valia absoluta. A mais-valia pode também ser relativa, que
resulta do acúmulo de inovações técnicas que otimizam a produção elevando a produtividade,
ao mesmo tempo que reduz o valor dos bens de consumo e o tempo de trabalho socialmente
necessário para a produção dos mesmos.
O grau de exploração da força de trabalho, isto é, a taxa de mais-valia, resulta da re-
lação entre a mais-valia e o capital variável. Ela é diferente do lucro, que resulta da relação
entre mais-valia e capital individual total (constante + variável). A taxa de lucro indica a valo-
rização do capital enquanto tal, o que significa afirmar que é possível que coexistam altas taxa
de mais-valia (portanto, de exploração da força de trabalho) com baixo nível de acumulação,
quer dizer, com baixas taxas de lucro. Por outras palavras, embora o lucro deva ter como pa-
râmetro o capital global, ele é produzido pela mais-valia, que por sua vez decorre somente de
sua parte variável, isto é, da parte do capital empregada para o pagamento da força de traba-
lho. No entanto, a tendência expansionista do capital o impele a procurar o aumento de sua
composição orgânica, ou seja, da parte correspondente ao capital constante. Isto deflui de sua
necessidade de valorização e acumulação. Desta forma os produtos devem ter seus custos
reduzidos, pois o coeficiente de trabalho vivo consumido no processo produtivo também se
reduz, simultaneamente ao aumento do trabalho morto, que radica no valor dos meios de pro-
dução necessários. Assim se completa o esquema explicativo pelo qual, segundo a sua própria
natureza, o capital é autofágico. Em outras palavras, para reduzir seu custo operacional e au-
mentar a quantidade de valor concentrada no produto, o capital acaba atacando sua razão de
ser, a produção de lucro. Ocorre que a redução do custo produtivo deságua no incremento da
produção, que tende a não encontrar mercados suficientes para consumi-la. Por isso o capital
tende a ignorar fronteiras geopolíticas e a expandir-se. Para isso a acumulação de capitais,
através do seu redirecionamento, da atividade do consumo para a de poupança, é decisivo.
Enfim, para realizar a mais-valia gerada na produção e evitar a desvalorização resultante da
superprodução, o capital precisa expandir seus domínios.
Através de sua expansão, mediante a criação de novos mercados, consequentemente,
da submissão de contingentes cada vez maiores à forma de relações sociais que lhe constitui,
40
o capital encontra o antídoto para o veneno que ele próprio destila. Por isso as crises são taxa-
das de cíclicas, que se renovam através da sucessão de fases de depressão, reanimação e
auge econômicos, para então desaguar na crise seguinte. Desta forma, a acumulação do capi-
tal global tende a se cumprir através de sua acumulação e concentração. Daí ele precisar ser
reinvestido, o que lhe leva a empregar mais mão-de-obra. Logo surgirá um novo salto de de-
senvolvimento das forças produtivas (através do progresso tecnológico), que ensejará a pro-
dução de novo excedente de mão-de-obra... O que designa este padrão de funcionamento é a
renovação da necessidade de ser reinvestido. Isto significa que, para sua valorização, o capital
precisa tornar a investir nos processos produtivos; do contrário ele perderia sua base sensível
e tenderia a desfazer-se no ar.
À tal tentativa de explicação do esquema geral das crises econômicas cíclicas que
constitui o motor do sistema capitalista, deve seguir a compreensão de seus reflexos sobre as
estratégias de legitimação do Estado e as crises políticas que deste entrelaçamento podem
advir.
3.4 Os limites da legitimação burocrática: seu reforço e seus sintomas
Até aqui empenhei-me em descrever a forma de que como o Estado capitalista procu-
ra combinar o exercício de suas funções com a conquista de legitimação sem exagerar no re-
curso ao uso da violência. O recurso muito freqüente ao uso da força poderia revelar a debili-
dade de sua autoridade. Esta conformação, porém, não deixa de exprimir a violência que lhe
subjaz. O feito notável de fazer com que o estabelecimento da exploração da força de trabalho
como matriz das relações sociais seja percebido como legítimo não seria possível sem a exis-
tência da violência, ao mesmo tempo represada e diluída, que está na raiz de surgimento do
Estado. A ubiqüidade do poder é expressão do compartilhamento, pelo Estado, da violência
que lhe é exclusiva só realizada sob a condição de que seu exercício seja feito nos limites que
este mesmo Estado estabelece.
Nesta ordem de idéias, o Estado trata de fazer aquilo que o capital por si se reve-
lou incapaz. Assim é necessário, por um lado, manter no nível mais baixo possível o valor da
força de trabalho, enquanto, de outro, satisfazer a obrigação, comunicada pela pressão das
necessidades produtivas, de fazer com que as mercadorias se disseminem massivamente, a
41
fim de fabricar novas necessidades de consumo, o que termina por elevar o valor da força de
trabalho. Ao ser funcional ao desenvolvimento do capital, o Estado passa a comungar de suas
contradições. Tais contradições se refletem no seu dever de angariar alguma crença de legiti-
midade, que por sua vez se projeta na estrutura institucional estatal. A variável repressiva que
compõe seu funcionamento, tem seus movimentos de alguma maneira condicionados segundo
a perda desta crença. Os diques que mantém contida a violência possuem comportas cuja ma-
nipulação tende a se concentrar nas mãos das classes sociais que esta pax social beneficia. Daí
sua tendência em reforçar a dominação que a garante.
Por mais avançado que possa ser, o equilíbrio político que esta forma de organização
social permite, tem uma limitação evidente. Mesmo a conquista da hegemonia, que se projeta
no campo das idéias e também dos desejos; mesmo a partilha estratégica da fruição, direta ou
mediada pelas prestações do Estado, de uma parte limitada da riqueza socialmente produzida,
não poderiam evitar que as estruturas sociais baseadas na desigualdade fossem demolidas.
Embora menos visível, foi a violência física, de que a pena é expressão jurídica, que permitiu
a consolidação e a manutenção da hegemonia política e econômica das relações de produção
capitalistas, a despeito de sua tendência suicida. Para isso o Estado - principalmente aqueles
tomados individualmente frente às populações que controla - não poupou esforços.
A discussão que se procedeu acima contribui para comprovar esta hipótese. Ora, aos
refratários a se submeterem às modalidades de socialização prescritas sob o capitalismo, de
forma mais ou menos desabrida, sempre se reservou a pena. Assim se conseguiu reprimir mo-
dos de vida inadaptados à relação de trabalho assalariado, como o tratamento dispensado ao
lumpenproletariado, por exemplo.
As desvantagens que marcam a circulação da “mercadoria” força de trabalho tem
uma importância exponencial a partir de quando a repressão entra em cena. Para explicitar
esta circunstância, talvez uma alegoria possa ser esclarecedora. Se imaginássemos o Estado na
condição de “fornecedor” da “mercadoria” força de trabalho, seus esforços deveriam tender a
manter sempre disponível em seus estoques uma quantidade relativamente grande desta “mer-
cadoria”. Para isso parece evidente que ele atue para prender os “possuidores” numa pala-
vra, a população - desta mercadoria a limites espaciais correspondentes, no máximo, ao seu
42
território.
97
Deste modo ele pode garantir a existência de um exército industrial de reserva
cuja função é não permitir aumentos indesejados dos salários. Estes limites podem ser mais
reduzidos e não ultrapassarem o tamanho de uma penitenciária. Não assombra, pois, que se
ouse concluir que, se o exército industrial de reserva é o regular geral dos salários, o exérci-
to de encarcerados é o regulador geral do exército de reserva.
Não só a modulação e manipulação do tempo – que constitui o critério geral do valor
mas também a própria dimensão espacial, compõem a estrutura institucional do Estado se-
gundo a matriz burguesa. Daí a centralidade da disciplina: a disciplina é uma forma de con-
trole do espaço e do tempo; a sociedade burguesa é uma sociedade disciplinar.”
98
Qualquer
analogia com a Teoria Geral do Estado oficial não seria mera coincidência; tampouco só uma
analogia; quem sabe, antes, uma ascendência deste esquema sobre a disciplina acadêmica em
questão.
O discurso jurídico de justificação do poder punitivo não deixa de exprimir esta idéia
que, aliás, permeia toda a ciência jurídica burguesa: assim como o que determina a dimensão
do valor é o tempo socialmente necessário à produção da mercadoria o tempo médio de dis-
pêndio de energia produtiva, como lembra JUAREZ CIRINO
99
- a idéia de reparar o delito
“através de uma multa pela liberdade, para nascer, foi necessário que todas as formas concre-
tas da riqueza social tivessem sido reduzidas a mais abstrata e mais simples das formas, ao
trabalho humano medido pelo tempo.”
100
O tempo constitui assim, e ao mesmo tempo, o crité-
rio geral do valor e a medida da liberdade a ser suprimida pela pena.
Certamente por esta razão, é que POULANTZAS aponta que a atomização do corpo
dos indivíduos inscreve-se dentre aquilo que o Estado instaura e representa, cujo fundamento
encontra-se na especificidade das relações de produção capitalistas. O mesmo tratamento o
Estado dispensa à configuração do tempo (linear, seria e repetitivo) e também ao espaço. A
organização da divisão social do trabalho está determinada por estas grandezas, que o Estado
97
Até a emergência do capitalismo a fixação a um determinado território não era uma obviedade. Nunca se pere-
grinou tanto quanto na Idade Média. Segundo POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder e o socialismo, p. 116,
também esta matriz espacial decorre da separação fundante entre trabalhador e seus meios de produção.
98
MACHADO, Roberto. Introdução: por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel, Microfísica do
poder. 18 ed. São Paulo: Graal, 2003, p. XVII.
99
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba:
ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 23.
100
PACHUKANIS, Ob. citada, p. 130.
43
configura mediante a atuação de seus aparelhos. Assim pode o Estado fabricar essa individua-
lidade corpórea por um conjunto de técnicas de saber e de práticas de poder. A conclusão de
POULANTZAS parece certeira e até esclarecedora: a corporalidade capitalista não se baseia
sobre as relações mercantis, sobre o corpo-mercadoria, em suma, no fetichismo mercantil do
corpo. A tecnologia política do corpo tem como base primeira o quadro referencial das rela-
ções de produção e da divisão social do trabalho.
101
Para compreender melhor o momento e a medida da intervenção do poder punitivo
no exercício da dominação é mais uma vez necessário incluir um ingrediente, que censura
qualquer simplificação. É de acordo com o desenvolvimento das forças produtivas e segundo
as relações de força entre as classes, que o Estado modula sua atuação política, podendo osci-
lar, com maior ou menor ênfase, das políticas assistenciais às repressivas. O aumento do re-
curso ao poder punitivo pode assim ser percebido como sintoma da crise de legitimidade.
102
Uma das estratégias de legitimação mais caras à sobrevivência do Estado reside no
estímulo à assimilação, pelos mecanismos de mercado, de um maior contingente de trabalha-
dores, que assim se convertem em consumidores, mas que, ao fim e ao cabo, dada a nova ne-
cessidade de consumo a que esta estratégia induz, tende a desaguar no aumento da massa de
salários. Em virtude destas antinomias pode o Estado confrontar esta realidade e impor um
nível salarial mais “adequado”. Dada a materialidade das relações de produção nele existen-
tes, o ideal seria mantê-lo próximo do nível de subsistência. A própria constituição estrutural
do Estado o obriga a tomar esta direção. A contradição, no entanto, mais uma vez é evidente:
se um dos principais produtos de sua política geral consiste em seu esforço de impedir a “au-
tofagia” do capital mediante o incremento das possibilidades de consumo da classe trabalha-
dora, nesta mesma política o Estado tem de atuar, simultaneamente, para não deixar que a
recompensa pela venda da força de trabalho não se afaste muito de seu nível mínimo.
De forma mais ou menos complementar, não é incomum assistir-se à reproposição de
uma outra estratégia, esta marcadamente punitiva. As crises econômicas podem se converter
em crises políticas, sobretudo se forem capazes de aliar a redução da distribuição da riqueza
social com um razoável equilíbrio das forças políticas proletárias. As crises políticas, em ter-
101
POULANTZAS, Ob. citada, p. 70-74.
102
Para HABERMAS, Problemas de legitimación en el capitalismo tardio, p. 163, o desaparecimento da crença,
faz despertar a coação até então contida.
44
mos materiais, traduzem déficits de legitimação. Daí não ser propriamente inusitada a crimi-
nalização, pelo Estado, de toda atitude que reconheça a deslegitimação de seu poder.
103
É nes-
te mesmo clima que a propagação do medo e do alerta acerca da ferocidade do crime, também
encontra respaldo público e se traduz em reforço da legitimidade perdida. Não raro o discurso
jurídico lança mão deste raciocínio: a função da pena, seria, assim, reforçar ou reconquistar a
confiança da população, evidentemente aquela de “bem”, na vigência e na autoridade do direi-
to e do Estado que é seu provedor. Assim também se pode notar que o processo de criminali-
zação, porque produz delinqüência, fabrica ocasiões para a demonstração da força punitiva do
Estado, afinal necessária a uma estrutura institucional de parca autoridade. Também esta es-
tratégia é funcional, na medida em que, mesmo com limitações, reforça o poder do Estado. A
estratégia do medo assim se dissemina: deixa apenas de projetar-se sobre aquilo (ou aquele)
que é criminalizado e passa a se espelhar naquele que criminaliza.
Desta forma se torna possível concluir este tópico afirmando que, a existência do
crime, assim como do inimigo, constitui uma necessidade do Estado moderno. Do contrário
ele não teria razões “legítimas” para acionar a violência que ele mantém imobilizada. Assim
como o inimigo produz a guerra, o criminoso produz o sistema penal. A renovação do crime,
assim como os atos tomados como terroristas é o que justifica a utilização permanente da vio-
lência aprisionada pelos diques da racionalidade de tipo legal. Desta maneira o Estado intenta
manter sua base de legitimação, que é de natureza legal, sem abrir mão do freqüente uso da
força que ele fez privativa. Daí que desde seu estabelecimento, o Estado moderno, notada-
mente aquele que se diz democrático, frequentemente recorre à suspensão da regra jurídica
sem implicar a perda de sua vigência.
Descortina-se, assim, o caráter produtivo tanto da guerra quanto do crime no modo
de produção capitalista. Conforme registra com muita propriedade LAURINDO MINHOTO,
nos manuscritos conhecidos como Teorias da Mais-Valia, destinados à análise histórica da
teoria, MARX já assinalava este caráter com o qual, de resto, o capitalismo procura investir
toda relação social:
Um filósofo produz idéias, um poeta poemas, um pastor sermões, um professor tratados etc.
Um criminoso produz crimes (...) O criminoso não produz somente crimes, ele produz tam-
bém o Direito Penal e, em conseqüência, também o professor que produz cursos de Direito
103
Na verdade uma constante histórica, segundo ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Ale-
jandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 516.
45
Penal e, além disso, o inevitável tratado no qual este mesmo professor lança no mercado ge-
ral suas aulas como ‘mercadorias’. (...) O criminoso produz, além disso, toda a polícia e to-
da a justiça penal, os beleguins, juízes, carrascos, jurados etc. (...) Enquanto o crime retira
uma parte da população supérflua do mercado de trabalho e assim reduz a competição en-
tre os trabalhadores (...) a luta contra o crime absorve outra parcela dessa mesma popula-
ção (...) O crime, pelos meios sempre renovados de ataque à propriedade, origem a -
todos sempre renovados de defendê-la e, de imediato, sua influência na produção de máqui-
nas é tão produtiva quanto as greves.
104
4 A dominação política e o concreto funcionamento do sistema penal.
Tomar a dominação tida por legítima como uma específica manifestação de poder
impõe ainda discutir os efeitos concretamente produzidos pelo exercício do poder do Estado.
Isto concorre com a explicação já anunciada acerca da específica espécie de controle social de
que o sistema penal se encarrega de exercer. Sua manifestação essencialmente burguesa con-
siste na prisão como aparelho disciplinar exaustivo da sociedade capitalista.
105
Seu funciona-
mento concreto traz na raiz o gene da ilegalidade; sua ilegalidade então é congênita. Estas
características alcançaram o poder punitivo com o desenvolvimento do Estado moderno, em-
bora a história da pena preceda a história do direito moderno, consequentemente, também a
do conceito de delito.
106
A compreensão do sistema penal não pode se furtar de conhecê-lo empiricamente.
Este conhecimento impõe reconhecer sua tendência incorrigível em afastar-se das amarras do
direito. Há vários exemplos históricos desta constatação. Não são infreqüentes, particularmen-
te no Brasil, os momentos históricos nos quais o avanço legislativo é compensado ou mesmo
freado pelo recurso a discursos ultrapassados, atados a leis revogadas por exemplo; a mesma
coisa costuma acontecer no nível das práticas.
107
O mecanismo funciona mais ou menos do
seguinte modo: a uma incorporação de ideais republicanos na legislação, por exemplo, sucede
reelaborações ao nível dos saberes, mas sobretudo naquele das práticas, a fim de abrandar as
104
Apud MINHOTO, As prisões do mercado, p. 146.
105
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 489.
106
BARATTA, Alessandro. Vecchie e nuove strategie nella legittimazione del diritto penale. Dei delitti e delle
pene. Ano III, n° 2, 1985, p. 247-268.
107
Para recuperar um fato que nos é próximo e, mais do que isso, ainda repercute no Brasil, convém recordar as
circunstâncias da emergência do primeiro Código Penal republicano (1890). Apesar de ter instituído a igualdade
penal entre os cidadãos, o contexto histórico de então (caracterizado pelos efeitos da recém realizada abolição da
escravidão) exigiu que as elites recorressem a evasivas pouco ortodoxas, em especial mediante a recepção entu-
siástica de uma doutrina já em decadência lá onde havia abrolhado. Trata-se da absorção tardia, nos estertores do
século XIX, da criminologia positivista no Brasil. A respeito, com mais detalhe, ver Capítulo V, seção 3, infra.
46
mudanças introduzidas pela e na lei. Sua explicação exige recorrer mais uma vez a
FOUCAULT, pois sua conhecida articulação entre poder e saber tem neste caso uma aplica-
ção perfeita com base na seguinte premissa: as práticas sociais, enquanto maneiras prevale-
centes de exercício de poder, em suas relações, produz o saber, que por sua vez tende a repro-
duzir estas mesmas práticas.
108
Isto pode explicar como é possível a coexistência de coisas a
rigor excludentes: apesar da existência da regra da lei, a cristalização de práticas sociais reite-
radas e estandartizadas convergem na constituição de saberes que tendem a se objetivar e a
construir consensos assimilados e postos em prática pelas pessoas sem que elas se dêem con-
ta.
O que se deve sublinhar aqui é que é nesta problemática implicação entre o poder ju-
rídico (da regra) e o poder disciplinador (da norma) que se encontra a explicação teórica para
a verdadeira relação de complementaridade, entre o exercício destes poderes, tão característi-
co do funcionamento do sistema penal.
Em princípio, a consideração do sistema penal deveria induzir a tomá-lo como local
para o exercício de poder legítimo porque é pautado pela legalidade. Afinal, segundo o dis-
curso jurídico, o princípio da legalidade é a verdadeira espinha dorsal do direito penal. Entre-
tanto, o direito penal não funciona na medida estrita da planificação legal, tanto no nível da
definição das condutas criminosas quanto no nível da legalidade processual, pela qual as a-
gências do sistema penal atuariam segundo pautas detalhadamente explicitadas na lei, com
clara função de garantia. A renúncia à legalidade é a regra de funcionamento do sistema pe-
nal, onde sua constituição estrutural (seletiva) tende a conceder mais espaço ao estado de po-
lícia do que ao estado de direito. O estado de polícia é aquele no qual todos estão submetidos
ao poder dos que simplesmente mandam, sem qualquer mediação jurídica. Não estados de
direito perfeitos, mas apenas estados de direito que contêm (mais ou menos eficientemente) os
estados de polícia neles enclausurados.
109
108
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p. 27, observa que poder e saber estão diretamente implicados;
não relação de poder sem constituição correlata de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao
mesmo tempo relações de poder.
109
Ver ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo, et all. Direito penal brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan,
2003, p. 41 e segs.
47
O sistema penal se distingue então pela seletividade; não no nível da criminaliza-
ção primária, mas sobretudo no da criminalização secundária.
110
Numa sociedade capitalista,
ele é estruturado para recair sobre as classes que, por desfrutarem de uma condição econômica
e política mais débil, se encontram numa situação de objetiva vulnerabilidade social. Quanto
maior é esta fragilidade maior é a possibilidade de ser atingido pelo sistema penal, de ser cri-
minalizado. Uma perspectiva macrossociológica torna possível encontrar, por detrás do fenô-
meno da criminalização, os mesmos mecanismos que dão conta da desigual distribuição de
bens e de oportunidades entre os indivíduos no interior de uma estrutura social pautada pela
desigual apropriação privada dos meios de produção e da riqueza social que eles produzem.
111
Nestas condições, a interpretação não ficará completa se não responder à questão re-
lativa aos critérios e fatores que decidem sobre a suspensão da regra jurídica para permitir,
em seu lugar, a incidência da norma. A resposta, pelo menos conceitualmente,
112
mais uma
vez é oferecida por FOUCAULT, mediante o recurso ao conceito de gestão diferencial das
ilegalidades. Em Vigiar e punir FOUCAULT observa que no Antigo Regime os diferentes
estratos sociais desfrutavam de uma margem mais ou menos equivalente de ilegalidade tole-
rada. As infrações às leis, em alguma medida, eram permitidas pelo soberano. Nesta realidade
se erguia um dos mecanismos principais de legitimidade do rei: ao mostrar-se indulgente e
compreensivo, o rei dava mostras de sua superioridade, de sua piedade. Mesmo as camadas
mais vulneráveis, a despeito da inexistência dos privilégios dedicados somente aos estratos
dominantes, gozavam de margens de tolerância, que acabaram se tornando indispensáveis à
110
O processo de criminalização se divide em dois níveis: o primário corresponde à definição, efetuado por meio
da lei, das condutas proibidas mediante a ameaça de pena; o secundário é a ação punitiva exercida sobre as pes-
soas concretas pelos organismos que executam a política penal do Estado (Ministério Público, Poder Judiciário,
polícia, penitenciárias, etc.). Aludindo à questão da criminalização primária BAUMAN, Zygmunt. Globalização:
as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 131, representa esta característica original do
poder punitivo da seguinte maneira: “Roubar os recursos de nações inteiras é chamado de ‘promoção do livre
comércio’; roubar famílias e comunidades inteiras de seu meio de subsistência é chamado enxugamento ou
simplesmente ‘racionalização’. Nenhum desses feitos jamais foi incluído entre os atos criminosos passíveis de
punição.”
111
Cf. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 2 ed. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos, 1999, p. 106; também CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed. Curitiba:
ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 126, para quem, indo ainda mais longe, “o processo de criminalização (...) protege
seletivamente os interesses das classes dominantes, pré-seleciona os indivíduos estigmatizáveis distribuídos
pelas classes e categorias sociais subalternas e, portanto, administra a punição pela posição de classe do autor, a
variável independente que determina a imunidade das elites de poder econômico e político e a repressão das
massas miserabilizadas e sem poder das periferias urbanas, especialmente as camadas marginalizadas do merca-
do de trabalho, complementada pela variáveis intervenientes da posição precária no mercado de trabalho e da
subsocialização – fenômeno definido como administração diferencial da criminalidade.”
112
Antes de FOUCAULT, o trabalho pioneiro de RUSCHE & KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social.
1999, já relatava que no surgimento do capitalismo “o direito propiciou um vasto campo de imunidade para atos
que seriam punidos severamente se praticados por membros de classes inferiores.” (p . 29)
48
sua própria existência. Neste contexto histórico, tanto as ilegalidades de baixo quanto aquelas
permitidas para as classes altas conviviam numa relação quase de cumplicidade. Este jogo
recíproco fazia parte da vida política e econômica da sociedade.
113
Mas o século XVIII abre
uma crise das ilegalidades populares, na base de sua conversão, de uma ilegalidade de direitos
para uma ilegalidade de bens. A concentração da propriedade fundiária, assim como o surgi-
mento do novo regime de fruição desta propriedade, sucedido rapidamente pelo desenvolvi-
mento de portos, pelo aparecimento de grandes armazéns, vão tornando as pequenas ilegali-
dades intoleráveis.
114
Ao mesmo tempo em que passou a exigir dura repressão a qualquer ile-
galidade transformada de ilegalidade de direitos em ilegalidade de bens, a burguesia reservou
para si “o campo fecundo da ilegalidade de direitos.” De modo que, para FOUCAULT, “um
sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegali-
dades, não para suprimi-las todas.”
115
Nesta linha interpretativa, é possível avançar um pouco mais: talvez não seja propri-
amente a renúncia à legalidade o princípio fundamental do funcionamento concreto do siste-
ma penal, mas a desigualdade na distribuição dos espaços de ilegalidade, distribuição esta
pautada pela posição de classe
116
do agente criminalizado; definitivamente uma gestão dife-
rencial das ilegalidades.
É na ponta do sistema penal, onde as agências não-judiciais, notadamente a polícia,
que esta desigualdade de tratamento se manifesta da forma mais cruenta. Isto contudo não
significa que no nível do Poder Judiciário o fenômeno não ocorra. A seletividade do sistema
penal é estrutural e vigora em todos os seus níveis, de forma que não no mundo sistema
penal cuja regra geral não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade.
117
Além de serem as protagonistas do funcionamento subterrâneo do sistema penal, a polícia
113
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. 16 ed. São Paulo: Vozes, 1997, p
70-71.
114
FOUCAULT. Ob. citada, p. 73-74: “Com as novas formas de acumulação de capital, de relações de produção
e de estatuto jurídico da propriedade, todas as prática populares que se classificavam, seja numa forma silencio-
sa, cotidiana, tolerada, seja numa forma violenta, na ilegalidade dos direitos, são desviadas à força para a ilegali-
dade dos bens. (...) a economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista.
A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos. Divisão que corresponde a uma oposição de
classes, pois, de um lado, a ilegalidade das propriedades; de outro a burguesia, então se reservará a ilegalidade
dos direitos.”
115
FOUCAULT. Ob, citada, p. 75
116
A variável decisiva para CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed. Curitiba:
ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 75 e 127.
117
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal
brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 51.
49
desfruta de um destaque na seleção desigual dos criminalizados. Pouco poder de criminaliza-
ção secundária fica à disposição do poder jurídico, portanto. Na verdade, o sistema funciona
de forma inversa à sustentada pelo discurso jurídico, segundo o qual em primeiro lugar está o
legislador (responsável pela criminalização primária), depois o juiz e por último a polí-
cia.
118
Isto se explica, entre outras coisas, porque um dos fatores responsáveis pela vulnerabi-
lidade é a situação de visibilidade e a forma pouco elaborada de como as classes subalternas
cometem crimes. Tal não quer dizer que os pobres enquanto tais são incapazes de criar formas
mais ou menos polidas de atuação. Incide aqui, além de sua posição de classe, a atribuição de
estereótipos responsáveis pela ativação de preconceitos e outras idiossincrasias que tendem a
identificar a figura do delinqüente enquanto tal com uma determinada compleição física e
também com uma específica maneira de agir.
Daí ser possível compreender que o verdadeiro exercício do poder punitivo se con-
centra na sombra do sistema penal, lá onde quem determina a seleção é a polícia. A existência
da prisão compõe uma peça importante desta engrenagem punitiva. Afinal, o poder de encar-
ceramento chega a ser uma exclusividade policial. “Prisão e polícia formam um dispositivo
geminado; sozinhas elas realizam em todo o campo das ilegalidades a diferenciação, o isola-
mento e a utilização de uma delinqüência. (...) A vigilância policial fornece à prisão os infra-
tores que esta transforma em delinqüentes.”
119
O papel da justiça fica assim relegado a segun-
do plano, consequentemente, também a força do direito.
Não se pode finalizar esta parte sem se debruçar mais detidamente sobre o significa-
do histórico do aparelho policial. Desde seu surgimento, a polícia é imbuída de uma tática
voltada ao governo político das populações. Ela é caracterizada por uma racionalidade pró-
pria, cuja genealogia levou FOUCAULT a estudá-la muito antes do Iluminismo. Trata-se da
idéia de gerenciamento de rebanhos, de um exercício pastoral de poder, pico de sociedades
orientais antigas.
120
Foi, posteriormente, assimilado pela teologia cristã, mas eclodiu como
tecnologia de poder e estratégia de obediência apenas com o advento da modernidade. Para
118
ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP. 43.
nov/95, p. 45-63, chama a atenção para a preponderância da fase policial da persecução criminal, fora do contro-
le do Poder Judiciário, onde vigoram procedimentos de tipo inquisitorial, próprios de nossa herança ibérico-
medieval. Neles o poder conferido à polícia é acentuado e determinante ao processo de estigmatização que o
acusado irá vivenciar; na pesquisa por ele empreendida foi possível observar, por exemplo, que “a arbitrariedade
dos procedimentos desse tipo pesa com mais rigor sobre os réus negros do que sobre os réus brancos.”
119
FOUCAULT. Vigiar e punir, p. 234.
120
FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”: por uma crítica da “razão política”. Novos Estudos -
CEBRAP, nº 26, março de 1990, p. 77-99.
50
FOUCAULT, o que torna verdadeiramente demoníacas as sociedades modernas ocidentais e o
impressionante processo civilizatório (e também devastador) que elas impulsionaram é a
combinação das estratégias de dominação das cidades, tipicamente gregas, nas quais a lei des-
fruta de proeminência, e aquela próprias do poder pastoral, baseado no esquadrinhamento e na
individualização do rebanho, de governo dos indivíduos, segundo um tipo muito específico de
racionalidade. Esta racionalidade constitui a própria razão de Estado, que através da polícia e
no exercício da tecnologia de controle das populações, garante e realça o seu poderio.
121
A
polícia desfrutaria assim de um papel muito mais importante do que WEBER poderia supor
para a conquista da dominação. Pois conforme a tradição cristã, a obediência é uma virtude,
segundo a qual aquele que obedece exprime o acatamento de sua submissão pessoal à vontade
do pastor, pouco importa a lei. A questão resolve-se no nível pessoal, cujos laços em nada se
assemelham aqueles desenvolvidos no feudalismo.
122
Ao perscrutar a origem do direito na violência no ensaio intitulado Zur Kritik der
Gewalt, de 1921, WALTER BENJAMIN, após considerar que o direito tanto é instituído
quanto mantido pelo poder, enquanto manifestações de violência, na polícia uma institui-
ção privilegiada de expressão desta mesma violência que está na raiz do Estado moderno.
123
A
polícia seria a fratura essencial apontada por AGAMBEN
124
na qual o estado de exceção se
exterioriza, fazendo com que a aplicação da lei que traduz o poder mantenedor do direito -
seja suspensa sem perder sua vigência. Ela funciona naquele registro da lei que é sua negação
e constitui a maior degenerescência do poder.
125
121
FOUCAULT. Ob. citada, p. 90-94.
122
FOUCAULT. Ob. citada, p. 85-88.
123
BENJAMIN, Walter. Crítica da violência: crítica do poder. In: Documentos de cultura, documentos de bar-
bárie . São Paulo: Cultrix/USP, 1986, 160-175.
124
AGAMBEN, Estado de exceção, p. 48.
125
BENJAMIN, Ob. citada: “A infâmia dessa instituição sentida por poucos, porque raramente a competência
da polícia é suficiente para praticar intervenções mais grosseiras, podendo, no entanto, investir cegamente nas
áreas mais vulneráveis e contra os cidadãos sensatos, sob a alegação de que contra eles o Estado não é protegido
pelas leis consiste em que ali se encontra suspensa a separação entre poder instituinte e poder mantenedor do
direito. Do primeiro se exige a legitimidade pela vitória, do segundo, a restrição de não se proporem novos fins.
O poder da polícia se emancipou dessas duas condições. (...) A afirmação de que os fins do poder policial seriam
sempre idênticos aos do direito restante ou pelo menos ligados a eles, é falsa. Na verdade, o ‘direito’ da polícia é
o ponto em que o Estado ou por impotência ou devido às inter-relações imanentes a qualquer ordem judiciária
– não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço. (...)
Seu poder é amorfo, como é amorfa sua aparição espectral, inatacável e onipresente na vida dos países civiliza-
dos. E, apesar da polícia amiúde ter o mesmo aspecto em toda a parte, não se pode negar que seu espírito é me-
nos arrasador na monarquia absoluta – onde ela representa o poder do soberano, que reúne plenos poderes legis-
lativos e executivos do que nos regimes democráticos, onde sua existência, não sublimada por nenhuma rela-
ção desse tipo, testemunha a maior degenerescência imaginável do poder.”
51
Daí que para a polícia a população sempre foi vista como um inimigo a controlar; sua
existência se deve ao controle social extremo do povo, normalmente identificado às classes
subalternas. Isto talvez explique alguma parte do antagonismo que parece imanente à relação
problemática entre o povo e a instituição policial. Talvez aponte também um diagnóstico para
o fato contraditório segundo o qual esta oposição beligerante persiste, a despeito do recruta-
mento dos agentes policiais ser realizado justamente naqueles estratos sociais que ela visa
controlar e submeter.
Finalmente, isto também pode explicar porque é próprio aos Estados capitalistas que
em seu seio convivam estado de direito e estado de polícia, cada um exprimindo heranças
distintas: o primeiro devendo sua memória à antiguidade grega, o último à teologia cristã, que
lhe foi buscar na antigas sociedades orientais e lhe atribuiu feições completamente distintas,
culminando na verdadeira mutação que a modernidade capitalista veio lhe impor.
52
CAPÍTULO II - A GESTÃO PUNITIVA DA FORÇA DE TRABALHO: UMA BREVE
PERIODIZAÇÃO.
Na seqüência deste estudo, já pressuposta a prisão como modalidade essencial de pu-
nição das sociedades capitalistas, será necessário percorrer a história das estratégias penais a
partir da perspectiva do cárcere. Tal percurso não será extensivo, tampouco se reportará aos
textos legais que foram se sucedendo, porquanto a intenção se reduz a uma breve menção aos
estágios evolutivos do modo de produção capitalista e suas regiões de intersecção com as
formas de punição por ele adotadas, invariavelmente através dos aparelhos de Estado. A histó-
ria da prisão se confunde ou quase se identifica com a manifestação do poder punitivo através
dos aparelhos do Estado moderno. Se o Estado indica a concentração do poder político, o po-
der de punir desde a modernidade é eminentemente político, e nesta condição se inscreve nas
táticas do Estado para administrar a demanda de mão-de-obra numa sociedade produtora de
mercadorias. Nesta consideração também já está pressuposta que a forma jurídica do contrato,
como ideologia estruturante da legitimação burguesa, situa-se numa situação de correspon-
dência lógica com a instituição da forma-mercadoria e a troca de equivalentes. Tanto para a
administração da punição quanto para a assimilação econômica e política de maiores ou me-
nores contingentes de proprietários apenas de sua força de trabalho, estas categorias provindas
da crítica radical da economia política clássica são centrais.
Antes de se referir ao desenvolvimento histórico das idéias acerca da pena, nesta parte
se pretende analisar os diferentes métodos de punição que se foram sucedendo no desenvol-
vimento histórico experimentado pelos países capitalistas. Embora questões ideológicas
sobretudo religiosas evidentemente desfrutem de grande importância no que concerne à
alteração da percepção do papel da prisão como método punitivo
126
, a existência de uma ínti-
ma correspondência entre o desenvolvimento das forças produtivas e a adoção de específicas
táticas punitivas, é inegável, e constitui, desde a obra Punishment and social structure de
GEORG RUSCHE e OTTO KIRCHHEIMER, uma evidência empírica e teórica da qual não
se pode desdenhar. A estes dois autores se deve o surgimento desta tradição investigativa tor-
nada, no seio da criminologia crítica, um pressuposto do qual não se pode abrir mão. Nesta
linha, a historiografia da punição enquanto tal parece uma tarefa impossível, pois a punição
como tal não existe; o que existe são somente práticas punitivas específicas e historicamente
126
A este respeito, ver BÔDE DE MORAES, Pedro Rodolfo. Punição, encarceramento e construção de identi-
dade profissional entre os agentes penitenciários. São Paulo: IBCCrim, 2005, p. 130.
53
determinadas.
127
Esta hipótese tende a se opor embora não a excluir totalmente a uma ou-
tra linha interpretativa que entende possível percorrer as modificações operadas nas estraté-
gias punitivas a partir da idéia, aparentemente imemorial, da uma necessidade social sentida
pelas comunidades humanas desde seus primórdios. Não se nega, evidentemente, que a puni-
ção constitui um fenômeno social, na medida em que só se pode compreendê-la como resul-
tante da atividade humana coletiva. No entanto, por ser social, também é atravessada por fato-
res independentes da vontade consciente dos indivíduos em constante interação. Nela interfe-
rem grandezas culturais, também é certo, já que o próprio processo de privação e de limitação
instintiva experimentado no nível dos hábitos humanos constitui-lhe em alguma medida.
128
O
fato é que, sem embargo dos reflexos e projeções de todos estes fatores, neste trabalho a op-
ção metodológica baseada na predominância, inclusive cognitiva, do desenvolvimento das
relações de produção e de seus desdobramentos, impede tomar a pena, e sua forma eminente-
mente moderna, a prisão, como agente cultural, entendido aqui como instituição que agrega
as mais diversas perspectivas, para cujo desenvolvimento interferem inúmeras causas, mas
sobretudo aquelas baseadas no pensamento e na percepção íntima que do fenômeno possuem
os indivíduos. Isto não corresponde a uma simplificação, como poderia interpretar aquele que
concebe os fenômenos sociais como produto de complexa e intricada rede multicausal e pro-
dutora de sentido. Antes constitui uma abordagem que toma os fatos sociais e a percepção que
deles se nutre, como produto de uma contingência, ainda que em última instância, que provém
das relações de produção econômica, como vetor fundamental da reprodução de um tipo es-
pecífico de relações sociais.
A isto se deve agregar, ainda neste exercício de explicitação metodológica, que os dis-
cursos punitivos sempre ocultaram outras funções desempenhadas pelo sistema penal. Deter-
minados contextos históricos permitem vislumbrá-los com mais clareza; outros menos. Em
geral se pode dizer que e isto constitui um desenvolvimento importante que se deve tributar
à criminologia crítica – a função declarada consiste naquela desejada e admitida pelos partici-
pantes de um determinado sistema social; elas costumam ser vendidas como reais, embora
não o sejam propriamente, e assim são assimiladas coletivamente, com extraordinária eficácia
no vel discursivo, que afinal, não deixa de constituir a realidade. As funções latentes o
127
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e estrutura social. Rio de Janeiro: ICC/Freitas Bastos,
1999, p. 18.
128
A este respeito, ver ELIAS, Norbert. O processo civilizador: a história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1990.
54
aquelas que, a despeito de influírem no sistema social, não correspondem à vontade ou ao
discurso assumido e reproduzido pelas pessoas.
Estas discussões estão todas também contidas no substrato metodológico da crimino-
logia crítica. Em suma, embora não seja o momento para aprofundar este assunto, mas apenas
o de fixar com honestidade o “ponto final” que dará a chave interpretativa de todas as orações
que lhe antecedem, a relação entre estruturas materiais e aquelas culturais/ideológicas, deve
ser designada não por uma relação linear de causa e efeito, mas como uma relação dialética,
em cujo seio se estabelece um recíproco e constante jogo de influência recíproca.
129
1. As condições sociais da Baixa Idade Média e a prisão pré-capitalista.
Antes de se tornar a reguladora coativa do mercado de trabalho, a prisão possuía uma
outra configuração. Desde a Antiguidade, a prisão servia à custódia processual dos acusados
de delitos, em regra por um curto período de tempo, até o seu julgamento ou execução da pe-
na.
130
Não desempenhava um papel central nos sistemas de punição. Embora com algumas
mudanças, a prisão persistiu com estes contornos na Europa da Idade Média. Na Baixa Idade
Média as penas mais comuns eram a indenização e a fiança, enquanto modalidade punitiva
apropriada para regular relações entre iguais em status e bens.
131
As condições sociais das
camadas inferiores da população não podiam ser consideradas muito ruins, sobretudo em fun-
ção da grande disponibilidade de terra. Dela resultava possível uma ampla mobilidade espaci-
al, que fazia com que os senhores de terra dedicassem uma atenção especial aos seus servos;
do contrário eles poderiam migrar em busca de melhores condições de vida. Além da inexis-
tência de penas públicas, vale dizer, concentradas nas mãos de um aparelho separado da soci-
edade e da produção, o período caracterizava-se pelas relações baseadas na tradição. Em ter-
mos genéricos, portanto, a função do direito penal consistia na manutenção da paz, baseada na
preservação da hierarquia social.
129
Neste preciso sentido, explicitando teoricamente (e cognitiscivamente) a criminologia crítica, BARATTA,
Alessandro. Che cosa è la criminologia critica. Dei delliti e delle pene. v 1, 1991, p. 53-81.
130
WACQUANT, Loïc. The penalization of poverty and rise of neo-liberalism. Capítulo criminológico, v. 31, n
1, Maracaibo, jan/mar 2003, p. 7-22.
131
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Ob. citada, p. 21.
55
Entre meados do século XIV e o início do século XV, o decréscimo populacional pro-
vocado pela peste negra na Europa permitiu que as infrações das classes menos favorecidas
fossem assimiladas com alguma facilidade: por serem poucos, os trabalhadores eram mais
necessários. É no início dos 1500 que a coisa começa a mudar. A principal razão talvez resida
na alteração do regime de terras e o surgimento do instituto jurídico da propriedade, que pode-
ria até dispensar os senhores do exercício direto da própria posse. A implementação da agri-
cultura intensiva reclamou o avanço das cnicas, a fim de aumentar a produção. Disso tam-
bém decorreu a redundância de mão-de-obra, consequentemente, o despejamento dos traba-
lhadores nas cidades, completamente atordoados pelo rompimento dos laços de servidão que
garantiam sua subsistência. Aliada à recuperação populacional e ao aumento da demanda por-
tanto, os mercados estavam garantidos, e a agricultura se tornava um negócio lucrativo.
132
No
entanto as condições da produção não permitiam a absorção de toda mão-de-obra disponível,
particularmente a camponesa. Com isso engrossava-se a legião de errantes e andarilhos atrás
de condições de subsistência, pelos caminhos e estradas. Como não havia trabalho, o recurso
disponível consistiu na reunião em bandos de mercenários. Foi assim que, durante todo o sé-
culo XV a insatisfação e o ressentimento puderam começar a grassar por toda a sociedade.
É neste contexto que passa a vigorar a já mencionada “gestão diferencial das ilegali-
dades”; ou seja, simultaneamente à redução da tolerância até para os pequenos deslizes das
classes empobrecidas que àquela altura, em razão de seu volume, provocavam bastante
medo – incrementava-se a imunidade para os atos puníveis praticados pelas classes dirigentes.
Essa distinção de tratamento se manifestava sobretudo pelo rigor quanto aos delitos contra a
propriedade, de acordo com as exigências da burguesia, que experimentava o crescimento
vertiginoso de sua força política. É neste ambiente que se reclama a racionalização e a centra-
lização das atividades administrativas. Logo, a ideologia proto-burguesa impregnaria as leis, e
os castigos corporais se institucionalizariam, sistematicamente, como a forma punitiva por
excelência da Baixa Idade Média. A brutalidade em sua execução, seja pena de morte ou não,
começou a atingir níveis desconhecidos; é chegada a fase dos suplícios, tão bem descritos por
FOUCAULT, ao se referir à agonia de Damiens logo na introdução de Vigiar e punir.
Em suma, se pode designar a Baixa Idade Média como período no qual a oferta de for-
ça de trabalho não era problema, pelo menos para os proprietários dos meios de produção
132
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Ob. citada, p 24-5.
56
basicamente grandes extensões de terras. A abundância da oferta conduzia à desvalorização
da mercadoria força de trabalho, por conseguinte, à desvalorização da vida humana. Esta é
uma tendência incorrigível do capitalismo. De modo que “a luta renhida pela existência mol-
dou o sistema penal de tal forma que este constituiu-se num dos meios de prevenção de gran-
des crescimentos populacionais.”
133
Em princípio, o papel reservado à prisão neste período impõe a pressuposição de que
seu surgimento, antes de ganhar contornos punitivos/corretivos, deu-se a fim de permitir a
exploração racional da força de trabalho. Os desdobramentos desta hipótese serão recorrentes
daqui por diante. Nesta época, a composição orgânica do capital era reduzida, quer dizer, o
capital constante era sub-representado na sua relação com o capital variável. Isto significa
que, apesar de proto-capitalista, a produção de valor dependia exclusivamente da taxa de
mais-valia, ou seja, do grau de exploração econômica que não deixa de ser física, sobretudo
neste caso – imposto ao regime produtivo. O detalhe aqui é que a taxa de mais-valia era com-
posta majoritariamente pela mais-valia absoluta.
É de se notar, também, o forte papel desempenhado pela pena para a exploração nesse
contexto histórico, conhecido por acumulação primitiva. Seu alto grau de violência, para mui-
to além daquela coação econômica característica, não seria possível sem o recurso ao poder de
punir. Ainda que não possa ser considerado propriamente submetido à lei do valor como crité-
rio de acumulação de capital, consequentemente, como maneira típica de reprodução das rela-
ções sociais sob o capitalismo, o período da acumulação originária, para permitir a acumula-
ção de capital, em primeiro lugar, exagerava na utilização de privilégios; ao mesmo tempo
concentrava-se na exploração desumana da força de trabalho, da qual a escravidão é a expres-
são mais violenta, sempre através da utilização indispensável do poder punitivo,
134
esteja ele
ainda meio diluído entre as pessoas, como poder privado, esteja já concentrado nas mãos do
Estado; pouco importa. Para partilhar da perspectiva evolucionista que caracterizou também o
marxismo, vê-se que o período de acumulação primitiva permitiu a coexistência contraditória
de dois estágios excludentes entre si: o estabelecimento das relações sociais capitalistas e a
133
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Ob. citada, p 35.
134
Ver MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário. Rio de
Janeiro: Revan/Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 35; também DE GIORGI, Alessandro. A miséria
governada pelo sistema penal. Rio de Janeiro: Revan/ICC, 2006, p 42-43.
57
manutenção de um modo de produção que lhe era comparativamente retrógrado por constituir
uma etapa anterior.
Embora não seja o momento mais adequado, que sua discussão será feita mais à
frente quando se analisar as peculiaridades dos sistemas penais brasileiros, pode-se desde
registrar que, na periferia, o escravismo colonial teve sua existência histórica atada ao desen-
volvimento do modo de produção capitalista europeu, que à época praticamente coincidia com
o global. Aqui por certo pode se instaurar uma polêmica, na base da peremptória afirmação de
MARX de que o escravismo e o modo de produção capitalista são de todo incompatíveis. Esta
afirmação se funda na idéia de que a fase de acumulação primitiva não se regia propriamente
segundo a lei do valor. Realmente. Entretanto, o tráfego de africanos, a instauração do planta-
cionismo escravista nas Américas, ambos “necessários” ao comércio ultramarino, assim como
a expulsão dos camponeses dos campos na Europa e os verdadeiros massacres a eles impostos
pelo Estado sob o mercantilismo, menos que anomalias, se tornaram possíveis porque se
desenhava num horizonte não distante, com mais ou menos coerência, o que viria a ser o capi-
talismo em sua forma estrita com suas leis típicas de funcionamento e reprodução. De modo
que se pode afirmar que a coexistência destes fenômenos aparentemente contraditórios não
constituem um paradoxo histórico, mas pode ser explicada como opções estratégicas que fo-
ram eleitas pelos países que estavam à frente do processo colonial, para fixar as bases da su-
premacia burguesa que estava por se consolidar, então economicamente, mas logo politi-
camente. Um exemplo histórico que bem representa estas opções repousa sobre o fenômeno
da parcial substituição, nas políticas penal e colonial inglesa do final do século XVII, da pena
de degredo pela escravidão negra. Seu objetivo foi, em termos gerais, o de reduzir o nível das
condições de trabalho dos servos coloniais brancos, que eram “condenados” a trabalhar na
América. À determinada altura tal pena passou a ser percebida menos como uma sanção do
que um prêmio, que muitos dos deportados viviam como nunca chegaram a viver na In-
glaterra, tendo em vista a possibilidade de progresso econômico, inclusive se tornando inde-
pendentes depois de um certo período. Assim o afluxo de africanos, a fim de propiciar o au-
mento da oferta de trabalhadores, ainda mais com os menores custos imagináveis, aliviou
consideravelmente a demanda de trabalho na colônia.
O escravismo se estendeu muito mais do que os estágios de desenvolvimento abstra-
tamente previstos pelo marxismo podiam prever. No Brasil, por exemplo, durou até fins do
58
século XIX. De modo que se pode afirmar que “a produção escrava na América e o tráfico de
escravos africanos não foram meramente, ou mesmo predominantemente, uma transição para
o capitalismo. Foram um sustentáculo relativamente estável, um pedestal de superexploração
sobre o qual se ergueu o capitalismo europeu.”
135
Este dado é relevante, pois embora o desen-
volvimento do capitalismo possa obedecer às mesmas leis gerais e se submeta às mesmas ca-
tegorias, seu curso e o lugar que determinada região ocupa no sistema global, mesmo antes da
atual globalização, se diferencia segundo a posição política e econômica do país em que ele se
desenvolve. A acumulação originária constitui um ótimo exemplo desta constatação: se ela se
realizou a partir do feudalismo, determinará um percurso histórico, se a partir do escravismo,
terá outro.
136
Os desdobramentos destas especificidades vão longe e ainda hoje não param de
dar provas.
2. A instituição da prisão como pena: o mercantilismo.
O despejo dos trabalhadores imemorialmente atados a terra, produto da destruição das
relações de produção de tipo agrícola-artesanal, com a dissolução das relações de dominação
baseadas na tradição, se por um lado permitiu a libertação daqueles vínculos “retrógrados” da
servidão - sempre vangloriada pelos fisiocratas por outro, deixou os recém-libertos absolu-
tamente desamparados. Para as relações de produção que se iam introduzindo, eles ainda não
serviam, entretanto; não estavam adaptados. Simultaneamente ao crescimento de centros ur-
banos provocados pela imigração, nota-se, no final do século XVI, uma crescente demanda
por certos bens de consumo. Em alguma medida, a conquista das colônias contribui para esta
expansão dos mercados, que também demandava uma massa considerável de mercadorias.
Com o crescimento da manufatura, este contingente desamparado tendia então a ser assimila-
do pelas novas relações de produção. A desproporção das penas, que funcionava, inconscien-
temente ou não, como agente destruidor da mão-de-obra, começava então a ser colocada em
xeque. A questão então voltava-se para a construção de políticas que pudessem reduzir toda a
força de trabalho desperdiçada e diluída à forma capitalista de subordinação. Pois a grande
oferta de mão-de-obra não era canalizada para o trabalho produtivo, sobretudo em face da
135
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 139.
136
Mais à frente (Capítulo V), quando serão enfrentadas as peculiaridades do sistema punitivo de países periféri-
cos, o Brasil será tomado como referência; ali o tema aqui apenas esboçado será desenvolvido com mais detalhe.
59
resistência dos trabalhadores a se enquadrar neste regime de trabalho desconhecido. Preferiam
a mendicância, que do ponto de vista da ética eclesiástica católica, não era percebida negati-
vamente, pelo contrário. Uma maneira de se garantir aqui na vida mundana, o lugar para o
descanso eterno, certamente era através da caridade para os menos favorecidos.
A intervenção do Estado fez-se então necessária. Afinal, “a história da política pública
para mendigos e pobres somente pode ser compreendida se relacionarmos a caridade com o
direito penal.”
137
Os ociosos e vagabundos eram também os que praticavam os pequenos deli-
tos, basicamente contra a propriedade. Neste contexto surge provavelmente a primeira institu-
ição com o propósito de limpar a cidade de vagabundos e mendigos: o castelo de Bridewell,
instituído em Londres por ordem do rei da Inglaterra. O objetivo da instituição era reformar
os internos através do trabalho disciplinado e obrigatório. Logo se instituíram impostos visan-
do suprir financeiramente as poorhouses, baseadas no mesmo modelo da Bridewell, que espo-
cavam por toda a Inglaterra.
138
O regime interno destas instituições inglesas era rigoroso, so-
bretudo para quem se recusasse a enquadrar-se na rígida disciplina do trabalho. Mas este fato
tem uma explicação complementar: a partir do século XVI, particularmente na Inglaterra,
embora não nela, presencia-se uma redução da mão-de-obra disponível por conta de guer-
ras religiosas.
139
Nesta fase a intervenção do Estado voltou a ser reclamada, e se deu através
da formulação de uma legislação que impunha, dentre outras limitações, um teto salarial, aci-
ma do qual nenhuma contratação era permitida. Como se vê, a atuação do Estado num espaço
de tempo relativamente pequeno mudara de sinal: à medida que se aproxima o século XVII, o
capital nascente vai necessitar, em troca da imposição do terror e dos suplícios, de mecanis-
mos que lhe continuem garantindo os lucros altíssimos que a chamada “revolução dos preços”
do século XVI lhe proporcionou.
140
Aliada à regulamentação das contratações e dos valores
de salário, emergem políticas sociais de tratamento da pobreza, mediante as quais se buscava
inculcar o trabalho produtivo disciplinado. O preciso significado desta política estatal se atin-
ge quando se percebe que seu móvel consiste na criação da possibilidade de imposição de um
salário baixo, apesar da reduzida oferta de mão-de-obra. A simbiose crime-pobreza aqui deno-
tava-se apenas na percepção da recusa ao trabalho como um delito.
137
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Ob. citada, p 52.
138
MELOSSI & PAVARINI. rcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário, p. 36.
139
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Ob. citada, p 40.
140
MELOSSI & PAVARINI. Ob. citada, p. 38.
60
Apesar de seu surgimento na Inglaterra, é na Holanda que as poorhouses vão se dis-
seminar mais rapidamente e, mais importante, o deixar de lado os eufemismos e passam a
se assumir como verdadeiras workhouses. Ora, a Holanda era a nação capitalista modelo do
século XVII. Seu papel de destaque na cena do tráfico mercantil ultramarino permitiu-lhe um
desenvolvimento econômico invejável, incrementando sua demanda por força de trabalho.
Contudo, a oferta não era tão grande como, por exemplo, na Inglaterra. Surgem assim as
Rasp-huis. Seu nome decorre da atividade de trabalho para a qual elas foram inicialmente
concebidas, que consistia em raspar, com uma serra de várias lâminas um “certo tipo” de ma-
deira até reduzi-la a pó. Deste extraía-se um pigmento utilizado para tingir fios. Não será
coincidência, mas estes fatos dão conta de uma madeira natural da América do Sul. O tal
pigmento possuía uma coloração avermelhada e de seu nome deriva o de um país chamado
Brasil.
141
Pode-se entrever, assim, qual foi o lugar reservado ao Brasil na dinâmica da conso-
lidação do capitalismo global.
A existência das Rasp-huis era garantida por uma ativa intervenção estatal. Como ob-
servam MELOSSI e PAVARINI, ao aludir ao monopólio garantido às Rasp-huis, o decisivo
era a “relação particular que se instaura entre a escolha da técnica produtiva e a função e o
objetivo da casa de correção.” Afinal, o mesmo pigmento podia ser extraído mediante uma
técnica menos rude (com uma pedra de moinho e empregando menos mão-de-obra), e, princi-
palmente, com uma melhor qualidade. Estabelece-se aqui uma conhecida problemática entre
trabalho livre e trabalho forçado. A técnica mais elaborada era aplicada por quem desenvolvia
o trabalho livre, enquanto a mais atrasada, pelo poder público, que lhe garantia para si o mo-
nopólio. Isto é sintoma do papel que o Estado viria a desenvolver cada vez mais regularmente,
a fim de interferir na composição orgânica do capital. Em termos econômicos, a Rasp-huis
representa um modelo no qual a inversão de capital constante é a menor possível, algo muito
comum à manufatura na qual praticamente inexistem máquinas. Neste modelo o lucro tende
a ser obtido somente a partir da taxas extorsivas de sobretrabalho (mais-valia absoluta), medi-
ante baixíssimos salários evidentemente, só tornadas possíveis através de trabalho forçado.
142
Talvez esta seja a descrição do primeiro caso de concorrência desleal. A atuação do
Estado, ao manter o monopólio e não permitir que o “setor privado” em formação não lucras-
141
A hipótese é confirmada por BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999, p.118.
142
MELOSSI & PAVARINI, Ob. citada, p. 44.
61
se com aquela atividade fortemente regulamentada, implicava um desequilíbrio em termos
capitalistas. No entanto, os trabalhadores recebidos nestas instituições destinadas a pobres
eram sobretudo os menos preparados para o trabalho disciplinado. Ao contrário, por exemplo,
dos artesãos, eles se revelavam, mais do que despreparados, bastante refratários à assimilação
daquele tipo de trabalho. Assim, apesar das eventuais reclamações, a interpretação historica-
mente contextualizada do período dá conta de que, no processo de imposição de uma forma
específica de trabalho, a função do Estado foi preponderante para a constituição de uma cole-
tividade de trabalhadores adaptada à rígida disciplina fabril que começava a se insinuar. De
maneira que elas serviam menos para a produção propriamente dita do que para a produção de
trabalhadores disciplinados, aos quais FOUCAULT chamará de dóceis e úteis. A questão era
assimilar o trabalho produtivo como vocação.
2.1 O papel da confissão religiosa
Nos desdobramentos posteriores, mas também no surgimento destas instituições, a
confissão religiosa foi, senão determinante, pelo menos decisiva. O surgimento das poorhou-
ses, logo convertidas em workhouses, na verdade está intimamente vinculado à percepção que
os protestantes possuíam da pobreza.
143
Ao contrário da crença católica, para estes não havia
virtude no cuidado privado com os pobres, feito às próprias custas. Não era assim que se ante-
ciparia seu lugar no céu. O ócio e a mendicância, para Lutero por exemplo, deviam simples-
mente ser abolidos. Nesse sentido, a dissolução da dominação de tipo eclesiástica era funda-
mental para os reformadores, que visavam substituí-la. Era necessário descentralizar o senti-
mento religioso, até então sob o controle exclusivo do clero. Na base desta substituição está
menos o reconhecimento do excesso do controle de tipo eclesiástico do que na sua insuficiên-
cia. De modo que a incorporação da ascese protestante, calcada na ética do trabalho e da pro-
dução, viria atravessar todas as esferas da vida doméstica e pública, como uma carga quase
insuportável.
144
Aliás, não é no nível da imposição de uma determinada disciplina, de um
determinado espírito para o trabalho, que a ética protestante se manifesta neste contexto. Ela
explica, é verdade, em alguma medida o porquê de os protestantes sempre terem saído à frente
no que concerne à acumulação de bens e de capitais; quer se leve em conta os indivíduos que
143
Para MELOSSI & PAVARINI, Ob. citada, p. 63 e 67, estas instituições necessariamente se confundem, ten-
dência que se acentuará com a 1ª Revolução Industrial, já no século XIX.
144
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p.31.
62
coabitam um determinado território, quer entre os próprios territórios ou países, onde o de-
senvolvimento de relações sociais propriamente capitalistas antecedeu aos demais.
Não se enfrentará aqui a questão da multiplicidade ou mesmo da prevalência de de-
terminadas causas para a explicação de fenômenos sociais e históricos por demais complexos.
Para isso seria necessário enfrentar pelo menos as afirmações de WEBER na Ética protestante
e o espírito do capitalismo, obra em boa parte dedicada a estabelecer uma relação de oposição
ao esquema metodológico do materialismo histórico, ao qual, desde o princípio deste trabalho,
esclareci ter aderido. O fato é que a confissão religiosa é responsável por uma influência ex-
traordinária nos temas que aqui se enfrenta. Se o texto se debruçasse menos sobre os fatos
históricos do que sobre as idéias que prevaleceram em cada qual deles, tal influência certa-
mente emergiria ainda mais forte. Por agora convém apenas retomar a notável a predominân-
cia de protestantes entre os proprietários do capital, principalmente onde o desenvolvimento
do capitalismo pôde redistribuir a população em camadas sociais segundo suas necessidades.
Este fenômeno, em boa parte, tem raízes históricas, precisamente num passado que o perten-
cimento a certa confissão religiosa aparece como o próprio WEBER não pôde deixar de
notar - menos como causa do que como conseqüência de fenômenos econômicos.
145
Quer
dizer, foi nas regiões mais desenvolvidas economicamente que se estabeleceram as bases para
uma revolução na Igreja. Além disso, impõe destacar que a ascese protestante se mostrou im-
portante, por exemplo, para manter em baixos níveis os salários. Segundo WEBER, é herança
do calvinismo a contrapartida para se fazer frente ao aumento dos salários resultante da ado-
ção do pagamento por tarefa. Se a elevação da remuneração tinha o efeito de impelir o traba-
lhador a trabalhar mais e assim também incrementar seus ganhos, podia também encorajá-lo a
trabalhar menos para continuar ganhando o mesmo. Isto seria um típico sintoma daquele “tra-
dicionalismo” com o qual a ética reformada sempre tinha de se defrontar. A solução calvinista
foi a redução dos salários para fazer com que o trabalhador trabalhe mais para continuar a
ganhar o mesmo: o povo só trabalha porque é pobre e enquanto for pobre.
146
Esta asserção é
análoga e chega a ser uma outra versão de expressar a lógica que preside o chamado princípio
da less eligibility (menor elegibilidade); segundo este princípio, as condições sociais e eco-
nômicas das prisões devem sempre ser inferiores às encontradas do lado de fora; do contrário,
antes de representar um fator de inibição da criminalidade, a prisão traduziria um estímulo, e
145
WEBER, A ética protestante e o espírito do capitalismo, p. 31.
146
WEBER. Ob, citada, p 53 e 161.
63
se colocaria em xeque aquela função dissuasória da pena que o discurso jurídico costuma
chamar de prevenção geral negativa.
É inegável a importância da ascese intra-mundana para a verdadeira guinada cultural
que o trabalho disciplinado demandou para ser instaurado. Não dúvida que, na parte desti-
nada para a motivação psicológica, tão ao gosto de WEBER, a religião foi fundamental. Foi
ela que tornou possível interiorizar, tornar silenciosa a forma de violência que é constitutiva
ao capitalismo. No entanto, além de não se poder ver nela a fonte primeira, temporalmente
antecedente ao desenvolvimento de formas pouco elaboradas de acumulação capitalistas, a
religião por certo não oferece a chave-explicativa para a compreensão do movimento histórico
da prisão. Afinal, mesmo que com um atraso de quase dois séculos, também na França católi-
ca o confinamento de pobres e vagabundos se generalizou.
147
Disseminava-se assim, em mea-
dos do século XVII, os Hôpitaux généraux.
A despeito de algumas diferenças que se registravam entre Inglaterra e Holanda, e en-
tre estes dois países frente à França, além de muitas outras existentes com o restante dos paí-
ses da Europa, o fato é que, neste período de cerca de dois séculos (XV ao XVI), a oferta de
força de trabalho ainda não constituía a variável independente. Mesmo quando se verifica um
certo surplus, continua freqüente o recurso aos trabalhos forçados. Isto se explica em parte
pela dificuldade em se romper com o tradicionalismo contra o qual tanto investiu a ética pro-
testante. Noutras palavras, não poderia ser sem esforço, e também não sem um longo período
de tempo, que este novo regime de trabalho, esta nova matriz de reprodução social, fosse
assimilada, inclusive intimamente. É por isso que é legítima a conclusão de que, sob o mer-
cantilismo, a prisão funcionava especialmente para a adaptação dos trabalhadores às novas
condições produtivas que se anunciavam, como prenúncio da primeira Revolução Industrial.
3. A consolidação da prisão como pena: a Revolução Industrial e o liberalismo
econômico.
O mercantilismo pavimentou o trajeto percorrido pela prisão para se instituir como
forma regular de punição. Foi sob sua existência histórica que se foi forjando a idéia de que a
147
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Ob. citada, p 75.
64
imposição de pena não poderia vir dissociada de alguma utilidade, de algum benefício eco-
nômico. Foi também no mercantilismo que uma nova racionalidade começou a se generalizar,
não entre os capitalistas que tinham nesta nova lógica a força propulsora dos interesses
econômicos que os animava, mas também, embora em menor medida evidentemente, sobre as
classes dominadas. Era exatamente para isso que a prisão foi se consolidando, ao ponto de a
detenção ter servido tanto para a pobreza quanto para os criminosos: a questão era a aprendi-
zagem da forma de trabalho que os burgueses reservavam aos proletários, ainda que tivessem
que impô-la a fórceps, como de fato a impunha no interior destas instituições.
À consolidação da prisão se deveria seguir sua elaboração conceitual. A contrapartida
nos sistemas de pensamento, nas justificativas mais ou menos encobridoras, foi buscada nos
iluministas. Os principais princípios que postulam pela limitação do poder punitivo e pelo fim
das penas cruéis realizadas sobre os próprios corpos dos condenados invariavelmente devem
suas existências às idéias racionalistas e burguesas desenvolvidas a partir do final do século
XVI, mas que tiveram seu grande impulso apenas na segunda metade do século XVIII. Sua
consolidação, inclusive ao nível ideológico, ocorreu somente com a garantia de que também o
poder político se encontrava à disposição da classe burguesa. A instituição do princípio da
legalidade para a definição e punição de crimes, de procedimentos também legalmente previs-
tos para a apuração destes mesmos crimes e para a imposição e execução de suas penas, a
proporcionalidade entre o crime e a pena, enfim, traduzem todos elaborações conceituais rea-
lizadas por pensadores mais ou menos orgânicos à supremacia política recém-conquistada
pela burguesia. Seu significado para a época, para ser melhor compreendido, deve tomar em
conta que uma das principais armas de dominação da nobreza e do clero era justamente o ma-
nuseio do poder punitivo. Por isso era fundamental impor limites ao seu exercício. Desenham-
se também os contornos que deveria assumir o novo aparelho administrativo do Estado. É
importante retomar as incessantes reclamações por previsibilidade e calculabilidade que pre-
valeceram no ambiente intelectual da época. Estas necessidades também deviam se projetar
sobre o sistema punitivo, como exigência de provisão de segurança, principalmente para as
relações de troca mercantil que se aprofundavam e se generalizavam.
A consolidação do poder social nas mãos da burguesia opera uma espécie de reação
antiiluminista, primeiramente nas práticas mas logo nas construções doutrinárias do século
65
XIX.
148
As condições sociais da época, isto é, as condições do mercado de trabalho não eram
boas. De fato o século XVIII, o “século das luzes”, pode ser considerado também o século da
explosão demográfica na Europa. A situação mudara sensivelmente. As casas de correção
surgiram num contexto social relativamente favorável, do ponto de vista do mercado de traba-
lho. Não havia a produção de um excedente digno de registro. Tanto assim o é que, durante
mais de dois séculos, os eventuais excessos não foram capazes de determinar uma modifica-
ção incisiva da política social do Estado neste âmbito. Ao lado da explosão demográfica, a
introdução de máquinas a vapor produziu efeitos catastróficos, ao despejar nas ruas um gran-
de contingente de trabalhadores que foram por ela substituídos. Ao contrário de antes, a inter-
venção do Estado começava a ser objeto de constantes ataques. A burguesia clamava por li-
berdade para a indústria e para o comércio. A livre concorrência se convertia na garantia da
harmonia, de modo que o sistema de regulamentação estatal deveria ser proscrito. Em troca
entraria em cena a invisible hand do mercado. As relações de trabalho entre empregadores e
empregados sofrem assim forte mutação. O achatamento dos salários foi uma repercussão
natural, e os trabalhadores foram oprimidos como nunca. As classes dirigentes não necessita-
vam mais que medidas coercitivas fossem empregadas como substitutas da pressão econômica
sobre as classes trabalhadoras.
149
Segundo a formulação de MALTHUS, os salários deviam
permanecer no menor nível possível para a subsistência.
A idade de ouro do capitalismo é também o período mais escuro da história do proleta-
riado. Por isso que a política do Estado trocou de sinal: de responsável pela constituição de
um contingente de mão-de-obra capacitado para o emprego na manufatura, para instrumento
de terror, mediante o uso sistemático da tortura, da imposição do trabalho inútil, que a fun-
ção econômica da prisão, enquanto reguladora do nível dos salários, deixara, ainda que tem-
porariamente, de existir. “Em condições de força de trabalho excedente os custos de custódia
são superiores ao valor produzido pelo trabalho do preso e, por isso, o trabalho forçado deixa
de ser lucrativo.”
150
Se as políticas de acolhimento de pobres e vagabundos, a fim de iniciá-los no trabalho
disciplinado, eram percebidas até de maneira positiva, a partir de então seriam avaliadas pela
burguesia como responsáveis pelo incentivo ao ócio e pela elevação dos salários, consequen-
148
FERRAJOLI, Direito e razão, p. 244.
149
RUSCHE & KIRCHHEIMER. Punição e estrutura social, p 75.
150
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical, p. 67.
66
temente pela redução dos lucros. O reflexo imediato para as instituições detentivas, que até ali
constituíam um misto de assistência e capacitação profissional, foi o sensível rebaixamento
das condições de salubridade e de trabalho, enfim, de nível de vida. MASSIMO e PAVARINI
registram que, na Inglaterra do final do século XVIII a ideal workhouse era a house of terror.
Afinal as condições de vida e de trabalho nestas instituições deveriam ser tais que ninguém, a
não ser premido por uma extrema necessidade, aceitaria internar-se. Com isso forçava-se o
pobre a aceitar o trabalho que lhe fosse oferecido, quaisquer fossem as condições. Fora dessa
oferta regida pela mão invisível do mercado, apenas duas possibilidades se abriam: a fome ou
as casas de trabalho, cujas condições deveriam necessariamente ser inferiores às experimenta-
das do lado de fora. O princípio da less eligibility alcança aqui sua máxima eficácia: “era ne-
cessário que a vida na casa de trabalho oferecesse, sob qualquer aspecto, a começar, obvia-
mente pelo padrão de vida, menos do que o trabalhador livre do mais baixo estrato social pu-
desse obter.”
151
A esta altura talvez se pudesse perguntar: e a incidência de crimes, como se desenvol-
via na Revolução Industrial? Isto é importante para se procurar distinguir entre o encarcera-
mento punitivo propriamente dito, e a internação assistencial, dirigida aos pobres que não
haviam cometido qualquer delito. Insistir nessa distinção, porém, será em vão. A taxa de en-
carceramento, esta sim a variável mais importante, nunca varia na dependência da taxa de
crimes, ou mesmo da violência. Segundo a hipótese interpretativa fundada por RUSCHE e
KIRCHHEIMER - que não abarca (nem poderia) todas as vicissitudes que a instituição da
prisão experimenta em sua história - decisiva é oferta de força de trabalho. A isso se poderia
agregar, como forma de promover um avanço qualitativo nesta pressuposição, a concreta ne-
cessidade dessa força de trabalho pelo capital para reproduzir-se. Esta idéia não deve ser de-
senvolvida neste momento, pois um diagnóstico da interdependência entre as crises estruturais
do Estado capitalista e a taxa de acumulação (ou de lucro) está reservada para ser feita poste-
riormente, à maneira de uma verificação das hipóteses de alguma maneira assumidas neste
trabalho.
Os relatos do período confirmam o incremento massivo da taxa de encarceramento.
RUSCHE e KIRCHHEIMER também dão conta do aumento expressivo de crimes. Eles con-
centram sua atenção no século XIX e registram um aumento das condenações, o que é dife-
151
MELOSSI & PAVARINI, Ob. citada, p. 66.
67
rente da ocorrência de crimes. Portanto, pode-se duvidar que o aumento da pobreza tenha se
traduzido no aumento diretamente proporcional de crimes. Esta pretensa obviedade costuma
se traduzir numa forma míope que tende a fazer coincidir pobreza com crime. O que certa-
mente ocorre no período, ante o duvidoso crescimento proporcional entre pobreza e criminali-
dade, é a atitude dos aparelhos encarregados de definir os crimes e as pessoas sobretudo a
classe social destas últimas - que responderão pelos primeiros. Os mesmos RUSCHE e
KIRCHHEIMER abordam as alterações legislativas que se foram produzindo no período, o
que certamente possui o efeito de incrementar a massa de crimes. Para além disso, notam um
incremento da violência nas penas, inclusive na instância legislativa. Nos discursos jurídicos
mais autorizados, observa-se também um revigoramento das justificativas retributivas com
raízes na filosofia idealista alemã. Elas permitiam, melhor do que as concepções utilitaristas,
estabelecer um vínculo entre Estado de direito e um severo sistema punitivo.
152
Isso tornou
possível a coexistência da consolidação de princípios liberais com a instituição de penas mais
cruéis, o que no nível das práticas, mais uma vez dava azo à distinção concreta do tratamento
punitivo, segundo as distintas classes sociais.
Nesta função terrorista que as prisões assumiam no período da Revolução Industrial, o
trabalho ali realizado perde completamente sua utilidade. Não era inusual que os prisioneiros
carregassem pedras de um lugar a outro, e depois, traziam-nas de volta.
153
Esta disfuncionali-
dade pode ser explicada porque o trabalho produtivo no interior da prisão era então achacado
também pelas classes trabalhadoras. Afinal, o desenvolvimento da técnica, simbolizada pela
máquina a vapor, jogou por terra o valor do trabalho manual. Isso tendia a atingir níveis im-
pensáveis se esta forma de trabalho encontrasse no trabalho forçado da prisão um concorrente
no nível dos preços. O nível de salário estava sobre a linha mais baixa possível, entendida
pela economia política burguesa como aquele nível que possibilita somente o atendimento das
necessidades mais básicas à sobrevivência.
O crescente contingente de trabalhadores pobres e em vias de miserabilização absoluta
podia, além de todo o mais, se converter numa força política de respeito. O princípio da disci-
plina, através de suas diversas estratégias de transformação dos indivíduos, não é totalmente
relegado e aqui ele reencontra sua principal serventia que é a de submeter à total disposição
do consumidor a mercadoria força de trabalho. Com isso, quer dizer, com a redução a níveis
152
RUSCHE & KIRCHHEIMER, Ob. citada, p 134.
153
RUSCHE & KIRCHHEIMER, Ob. citada, p 149.
68
insignificantes de insurreição política, leva-se de brinde a possibilidade concreta de poder
extrair do trabalho humano aquele excedente, medido pelo tempo, que constituirá seu lucro,
sem lançar mão da coação física direta.
Para tal proeza duas forças são indispensáveis. Em primeiro lugar, a ficção jurídica do
contrato, da liberdade constitutiva entre sujeitos livres, capazes de trocar suas mercadorias,
pelo equivalente ao seu valor. O modelo de direito é do direito privado, entre sujeitos não
tutelados pelo Estado. O liberalismo político constitui a libertação deste Estado. Evidencia-se
assim a importância da forma jurídica como forma de naturalização de instituições e práticas
sociais que de naturais não têm nada. Esta naturalização, entretanto, justamente por não pres-
cindir de fazer natural aquilo que não é, não ocorre ao sabor dos fatos históricos, como se es-
tes se sucedessem segundo uma lei prévia de evolução. Eis o grande equívoco de muitas pers-
pectivas evolucionistas, que perpassa as ciências humanas de modo geral. Antes reclama uma
ativa postura do Estado. Isto significa que a pretendida substituição do Estado pela invisible
hand do mercado não pode ser levado muito a sério. Por certo que neste estágio as funções
propriamente econômicas do Estado foram bastante reduzidas. Mas a política do Estado, o
desempenho das diversas funções que ele assume no capitalismo, é complexa e por isso sofre
mutações à medida que atua para garantir a estratificação social característica de uma socie-
dade de classes econômicas antagônicas. Neste momento histórico, o sistema penal e o poder
que ele exerce com exclusividade precisam assumir uma conotação positiva, configuradora.
Apesar de liberal, é através do Estado que a prisão é oferecida como sucedâneo da recusa ao
trabalho na fábrica. É também o Estado absenteísta que irá mobilizar seu reservatório de vio-
lência represada o monopólio da guerra para reprimir as revoltas proletárias que ameaça-
vam levantar-se, e seu monopólio jurídico para submeter as tentativas de organização das
classes populares à ilegalidade e assim, fechar o ciclo, autorizando o uso da força física contra
estas manifestações que ele precisa tomar como ilícitas. Como visto, também o inimigo, elei-
ção arbitrária e constitutiva como se fosse sua força motriz - ao funcionamento concreto do
poder punitivo, sofre suas mutações: se antes ele podia ser caracterizado como indolente, o
vagabundo inadaptado ao trabalho disciplinado, agora ele vestia a roupagem do proletário
indócil, inadaptado às condições marcadamente exploratórias do trabalho fabril.
154
154
Esta constitui, segundo ZAFFARONI, E Raul. El enemigo en el derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2006,
uma tendência incorrigível dos sistemas punitivos: a eleição arbitrária de inimigos que lhe autoriza tomá-los
como não-pessoas.
69
De outra perspectiva, é necessário sublinhar a presença proeminente da ciência, ou
melhor dizendo, da conversão da ciência em força produtiva. Para a assimilação do dispositi-
vo disciplinar, que sob o liberalismo encontrava solo fértil para desenvolver-se e produzir
seus frutos, foi fundamental a assimilação dos avanços da técnica. Isto significa que os avan-
ços tecnológicos não serviram apenas para o incremento da produção simultaneamente à re-
dução da necessidade de mão-de-obra. Foram fundamentais para a instauração de uma nova
economia dos castigos, através da qual a execução da pena correspondia a uma verdadeira
linha de montagem de sujeitos adaptados às forças produtivas imperantes. O panóptico não é
mais que uma das manifestações desta intenção disciplinar. Animado pelo sentimento utilita-
rista, a intenção do panóptico, concebido por JEREMY BENTHAM, consistia em atingir o
máximo de resultados mediante o mínimo emprego possível de energias. Para isso lançou
mão de “técnicas científicas”, como por exemplo a arquitetônica. No nível da racionalidade,
como bem coloca BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS, a ciência acabou por colonizar
todas as manifestações de pensamento que em princípio lhe eram estranhas, tais como as ci-
ências sociais e humanas em geral, entre elas, com lugar de destaque, a ciência jurídica.
155
Este fenômeno não pode ser inteiramente compreendido, porém, se não for concebido no inte-
rior da divisão social do trabalho, como reflexo das relações de produção.
Ora, a introdução da máquina em lugar da ferramenta, em vez de traduzir uma melho-
ria nas condições de trabalho, foi implantada precisamente para baratear as mercadorias, “para
encurtar a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, para ampliar a
parte que ele dá gratuitamente ao capitalista.”
156
MELOSSI e PAVARINI observam que a
economia política do corpo a que FOUCAULT alude em Vigiar e punir não é outra, senão a
economia política tout court. A transformação burguesa do corpo necessita estruturá-lo como
máquina no interior da máquina produtiva. Na fábrica, a organização do trabalho não assume
o corpo como algo estranho, mas o incorpora. A máquina produtiva, concebida e criada pelo
avanço da técnica, é abrangente e encerra uma parte morta, inorgânica e fixa, e uma outra,
viva, orgânica e variável. Ambas devem ser conversíveis em capital, como acertou MARX ao
conceber a categoria composição orgânica do capital.
Falando-se de forma muito genérica, pode-se dizer que as ciências sicas e as mo-
rais, as ciências da natureza e as do espírito, entram numa relação biunívoca com as
155
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3 ed.
São Paulo: Cortez, 2001, p. 51-59.
156
MARX, Karl. O Capital. Livro I, Tomo I. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 424.
70
técnicas de formação, de exploração, de ‘reeducação’, do capital fixo (as máquinas
propriamente ditas) e da força de trabalho (o corpo, o homem, o espírito, etc).
157
Desde o opúsculo pioneiro de RUSCHE, Labor market and penal sanction: thougts on
the sociology of criminal justice, inicialmente publicado em 1931
158
, que a hipótese segundo a
qual o mercado de trabalho é o determinante do sistema de justiça criminal é conhecida. A
lógica que lhe subjaz se desdobra em dois movimentos complementares: se a força de traba-
lho é insuficiente para as necessidades do mercado, a punição assume a forma de trabalho
forçado, com finalidades produtivas e preservativas; se a força de trabalho é excedente, a pu-
nição assume a forma de penas corporais, com destruição da o-de-obra. Isto apenas porque
a reserva de mão-de-obra é percebida como inútil. A introdução da maquinaria, em vez de
traduzir uma melhoria nas condições de trabalho, redundou no barateamento das mercadorias,
encurtando a parte do dia de trabalho da qual precisa o trabalhador para si mesmo, ampliando
aquela que lhe confisca o capitalista. Ela conduziu ao aumento da composição orgânica do
capital, na medida em que incrementou o valor do capital constante, imobilizado nos meios de
produção. Para a mesma produção de valor, necessitava-se de menos força de trabalho (capital
variável). Ora, se aludiu, nessa dissertação, que o processo de produzir valor dura somente
até o ponto em que o valor da força de trabalho pago pelo capital é substituído por seu equiva-
lente.
159
Para além daí a produção de valor é valor excedente (mais-valia). O aumento da
composição orgânica reduz o tempo socialmente necessário para a produção da mercadoria, o
que, se por um lado incrementa a mais-valia (relativa), por outro, segundo esta lógica, desá-
gua na redução da utilidade da força de trabalho em termos quantitativos. Esta diminuição da
importância da força de trabalho decorrente do avanço da técnica envia para o sistema penal
gerido pelo Estado a mensagem da dispensabilidade de grandes reservas de força de trabalho,
ou, para continuar a utilizar a terminologia marxista, do exército industrial de reserva. É neste
contexto que mais uma vez a mais emblemática forma de produção de mais-valia reassume o
lugar que o “espírito” da economia política lhe reservou: a mais-valia relativa, dado que o
incremento da produtividade como conseqüência da evolução técnica, tende a economizar
força de trabalho, consequentemente, a torná-la mais dispensável. Isto tem um limite eviden-
temente, pois a extração do excedente pode surgir do capital variável. Aparentemente o
157
MELOSSI & PAVARINI, Ob. citada, p. 77.
158
RUSCHE, Georg. Labor market and penal sanction: thoughts on the sociology of criminal justice. Crime and
social justice, 1978, 10, p. 2-8, apud CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed. Curitiba:
ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 62.
159
MARX, Ob. citada, p. 220.
71
papel do Estado reduzia-se, pois não lhe incumbia mais a atuação ostensiva mediante a qual a
pena por ele manipulada constituía a força reguladora do mercado de trabalho. Em seu lugar,
a constituição de um exército industrial de reserva, como força de trabalho dispensável ao
processo de valorização do capital, lhe substituiria enquanto regulador geral dos salários.
Neste contexto, altas taxas de desemprego constituem uma necessidade para a reprodução das
relações capitalistas. Para além das aparências, entretanto, isto não pode significar que a atua-
ção do Estado se tenha tornado supérflua. A prisão, como modalidade punitiva capitalista es-
sencial, continua sendo funcional à gestão da força de trabalho. A característica fundamental
do período, dada a voracidade acumulativa até então desconhecida que designa o capitalismo
em sua fase concorrencial, talvez consista na atuação simultânea em todas as frentes: se de um
lado o aumento da oferta de mão-de-obra só por si comprime a massa de salários, a existência
da prisão como alternativa “piorada” à fome quase certa para quem não possuía trabalho se
sobrepõe, tornando compreensível a caracterização deste período como o período mais escuro
da história do proletariado.
Num cenário de crise, estas premissas são colocadas em causa. Aproxima-se, em ter-
mos históricos, de outro estágio do processo de reprodução capitalista, no interior do qual as
variáveis mercado de trabalho e taxa de encarceramento são redefinidas. Estas alterações são
objeto da próxima seção.
4. O Estado de bem-estar e sua reelaboração da estratégia punitiva.
No nível global o centro do poder, desde a Revolução Industrial, se desloca dos países
ibéricos para as potências do norte europeu, o que para muitos constituiu o fenômeno do neo-
colonialismo.
160
Logo se atingiria o período do imperialismo industrial, no entorno do qual se
160
Assim, por exemplo, a elegante contribuição de RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização. 4 ed. São
Paulo: Vozes, 1983, p 61 e segs; do mesmo autor, O processo civilizatório: estudos de antropologia da civiliza-
ção. São Paulo: Companhia das Letras/Publifolha, 2000, p. 133 e segs: “No desdobramento de suas potenciali-
dades, o primeiro processo civilizatório fundando na Revolução Industrial vai impondo tamanhas alterações nos
modos de ser das sociedades humanas que acaba por integrá-las todas num só sistema interativo e por configurar
uma nova formação sociocultural, também bipartida em dois complexos tecnologicamente defasados e economi-
camente contrapostos, mas complementares: o superior, constituído pela aceleração evolutiva de algumas nações
capitalistas mercantis à condição de centros de dominação imperialista industrial, e o inferior, constituído através
de movimentos de atualização histórica que provocam tanto a redistribuição de áreas coloniais entre as novas
potencias como o surgimento de uma nova forma de dependência: o neocolonialismo.”
72
formaram vastos impérios, cuja concorrência desembocou na guerra aberta pelos domínios
coloniais. Por isso a primeira Grande Guerra é considerada, em lugar da virada cronológica, o
divisor de águas entre o século XIX e o culo XX. É ela que instaura uma verdadeira ruptura
em termos políticos, pelo século XX, frente ao século XIX. É portanto após a Grande Guerra
que se devem fixar as modificações políticas e econômicas responsáveis pela reconfiguração
do papel do Estado e de sua atuação política. Logo após a Grande Guerra, pelo menos nas
metrópoles imperiais, o capitalismo concorrencial mostras de esgotamento. É evidente que
as modificações políticas, das quais o funcionamento do Estado é expressão, não decorreram
apenas da crise econômica. Não se pode incidir nesta derivação pura e simples. Adotar tal
perspectiva seria menosprezar, por exemplo, acontecimentos políticos da maior importância,
decorrentes das lutas populares, que foram capazes de enviar um agudo sinal aos centros de
poder hegemônico de então. Afinal, surgia a “questão social” e o conseqüente crescimento da
organização proletária, que passava a reivindicar direitos, como a redução da jornada de traba-
lho, por exemplo. Eventos históricos que bem simbolizam o aumento da temperatura neste
caldeirão político são os grandes movimentos de 1848, na França, e a Revolução de Outubro,
na Rússia. Esta última, certamente usufruiu de uma ressonância maior, porque dava a enten-
der que pretendia consolidar-se, ao contrário das insurreições francesas, logo abortadas por
um processo contra-revolucionário.
Sob este influxo, se instaura na Alemanha a República de Weimar, em situação precá-
ria devida à derrota na guerra. A idéia que lhe permeava era a de conter a ameaça revolucio-
nária mediante a concessão de subsídios sociais, o que a faria se converter numa espécie de
“laboratório” do que mais tarde seria o Welfare State.
161
É neste contexto que se descortina a Grande Depressão, como sintoma da incapacida-
de dos mercados em assegurar as bases futuras de sua reprodução. Compreendê-la melhor é
fundamental para observar a reconfiguração funcional que o Estado capitalista experimenta
neste período. Para isso impõe-se tentar esquadrinhar a natureza desta crise econômica e os
reflexos que produziu. Em termos econômicos, a grande depressão surge em meio à consoli-
dação da produção e do consumo de massa, o que viria a ser genericamente caracterizado co-
mo fordismo. Esta conformação econômica, que se acentuava desde a segunda metade do sé-
culo XIX, tende a provocar tanto a concentração de capitais, quanto a hipertrofia das grandes
161
CAPELLA, Juan Ramón. Fruto proibido: uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Es-
tado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 161.
73
corporações, reconduzindo-as ao monopólio. A grande depressão pode ser interpretada como
produto do excesso de produção, mas parece ser a falta de dinheiro e liquidez, derivada de
uma desmedida concentração de capital, o que determinou sua ocorrência.
É conhecida a teoria acerca da natureza cíclica das crises capitalistas. Por esta noção,
as crises se renovariam através da sucessão de fases de depressão, reanimação e auge econô-
micos, para então desaguar na crise seguinte. Isto porque se o desenvolvimento tecnológico
reduz a parcela de capital variável necessária à sua reprodução, logo ele se concentra, preci-
sando ser reinvestido, o que o conduz a empregar mão-de-obra; dum novo salto tecnológi-
co, que logo enseja nova produção de excedente de força de trabalho, e assim por diante.
No contexto da grande depressão, verifica-se um excesso de oferta de mercadorias,
que JOHN MAYNARD KEYNES interpretaria como correlativo a uma falta de demanda.
Aliada a esta noção, KEYNES introduz a do desemprego involuntário - expressão do desejo
de trabalhar por um salário inferior ao praticado, que a seu ver não poderia existir. Se, por um
lado, a evolução da cnica recoloca o exército industrial de reserva como o regulador do ní-
vel dos salários, por outro, também é capaz de redundar na redução da procura efetiva, enten-
dida, em termos keynesianos, como montante esperado de despesas, sobretudo com consumo.
A solução, pelo próprio KEYNES proposta, seria tratar de reduzir este exército industrial de
reserva, colocando-o a construir qualquer coisa, mesmo que sem utilidade.
162
A tradução deste contexto, nos termos propostos pela hipótese central de RUSCHE e
KIRCHHEIMER, não parece ter sido ainda desenvolvida. JUAREZ CIRINO aponta que os
capítulos finais de Punição e estrutura social, em sua abordagem das mudanças na estrutura
social do capitalismo monopolista, não são inteiramente satisfatórios. A conclusão de que a
força de trabalho excedente neste período não precisa ser obrigada a trabalhar, nem preserva-
da de destruição, através do que a prisão perderia sua centralidade, é inconveniente.
163
Uma
série de pesquisas posteriores quase sempre realizadas no interior da criminologia marxista
estadunidense procurando desenvolver a mesma hipótese, ampliaram seu horizonte de com-
preensão. A pressuposição básica continuava a ser que o crescimento do desemprego implica
o aumento do número de presos. Em 1977, IAN JANKOVIC tenta aplicar o paradigma à situ-
ação dos Estados Unidos, mediante a análise de um material empírico que se concentra entre
162
AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 2.
163
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 69.
74
os anos de 1926 e 1974. O resultado da pesquisa, através do confronto entre as taxas de encar-
ceramento e as condições sociais e econômicas, confirma a hipótese de que os baixos níveis
das últimas determinam o incremento das primeiras. O grande avanço proporcionado pela
pesquisa de JANKOVIC, porém, consiste na conclusão de que o aumento das taxas de encar-
ceramento independem do volume de crimes. Além disso seus estudos serviram à refutação
complementar mas não menos importante da tese da redução das penas de prisão no capi-
talismo monopolista.
164
Outra hipótese trabalhada na pesquisa, através da qual se pretendia
verificar se a pena de prisão atuava como reguladora do excesso da força de trabalho não foi
confirmada, nem afastada. Esta segunda hipótese, que segundo DE GIORGI, pretendia verifi-
car a “utilidade” da pena de prisão para reduzir o desemprego, é desenvolvida outras vezes,
também nos EUA, mas não encontraria base de apoio, pelo menos até a ruptura que daria fim
ao esquema fordista.
165
4.1 Readaptação de funções.
Para tentar avançar na leitura deste quadro histórico sob a perspectiva da economia po-
lítica da pena, é necessário compreender a completa readaptação que ele projeta sobre o Esta-
do. É momento de se confiar ao Estado uma diversidade de funções até então impensadas.
KEYNES propunha que o Estado deveria dedicar mais atenção às instituições sociais e políti-
cas, que afinal constituíam a expressão das forças econômicas em presença. Ao Estado deve-
ria incumbir, por exemplo, o controle do processo inflacionário, para tanto se utilizando da
seguinte fórmula, cara até os dias que correm: menos desemprego, um pouco mais de infla-
ção; menos inflação, um pouco mais de desemprego. Isto serviria como contrapeso à maior
aceitação de que a evolução da cnica conduzisse ao incremento dos salários ao mesmo tem-
po em que permitia a redução do preço dos bens de consumo. Afinal, o incremento da compo-
sição orgânica do capital reduz o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção
da mercadoria. Tal coisa era impensável para o período do Estado gendarme e do capitalismo
concorrencial. Imbuída de uma visão mais estratégica, a nova concepção acerca do papel do
Estado, em parte para prever as crises futuras, em parte em razão das reivindicações proletá-
rias, tratou de impor que o desenvolvimento da técnica tivesse uma conseqüência distinta.
164
JANKOVIC, Ian. Labor market and imprisonment. Crime and social justice, 1977, 8, p. 17-31, apud CIRINO
DOS SANTOS. Ob. citada, p. 70.
165
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada pelo sistema penal, p. 51.
75
Esta necessidade, após ter sido astutamente assimilada pelo Estado, impeliu-o à sua adminis-
tração política a fim de torná-la assimilável também para os detentores do capital.
Correlativo a esta nova forma de gestão econômica, empenhada em garantir as fontes
de reprodução do capital, surgem preocupações redistributivas. Embora não possam ser con-
cebidas como alheias ao jogo de forças disputado entre as classes sociais em presença, é ine-
gável que a política social do Estado intervencionista também traduz a conquista de uma mai-
or estabilidade política, ao mesmo tempo em que garante uma regularidade na produção e na
comercialização de bens de consumo. Assim se torna possível assegurar uma solução de con-
tinuidade para o processo de reprodução do capital, realizável mediante a ordenação com-
pleta de todas esferas sociais.
De fato, o capitalismo se transformara radicalmente. Os Estados Unidos, país no qual
a crise de superinvestimento capitalista e subconsumo proletário é declarada instalada (1929)
saiu à frente - e pela primeira vez - em termos políticos. Nesta época os Estados Unidos se
revelavam uma grande potência econômica, mas sua presença em termos políticos ainda não
era tão destacada. Talvez aqui o curso da história tenha alterado seu rumo em favor desta na-
ção. Surge, como resposta concreta à crise, o New Deal, na base da adoção de políticas de
corte keynesiano, que logo repercutiria por toda a Europa central. A partir de então, o Estado
seria “celebrado não apenas como mediador de conflitos, mas também como o motor do mo-
vimento social.”
166
As funções cometidas ao Estado se ampliam e se diferenciam. A função de regulação
da força de trabalho, se ocupa menos do excedente do que das condições para sua reprodução:
a administração da força de trabalho não se reduz mais ao mercado da mão-de-obra assalaria-
da, mas também se inscreve na conformação de um mercado de consumo relativamente está-
vel. Para garantir o atendimento a ambas necessidades, a escolha em se integrar ao mercado
de trabalho exige uma postura mais ativa, já que deveria depender cada vez menos da vontade
do trabalhador. O temor da falta de demanda efetiva impele a adoção de estratégias, que evi-
dentemente precisam ser reguladas politicamente. Daí ser preciso assegurar uma correspon-
dência quantitativa aproximada entre o número de indivíduos que se proletarizam e o número
daqueles que, em vista da demanda, podem encontrar ocupação. Por isso o Welfare State deve
166
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 263.
76
ser percebido menos como um Estado preocupado com as condições sociais dos trabalhadores
do que um Estado que passa a adotar uma postura mais ostensiva no nível econômico. As di-
ferenciadas e complexas funções que lhe são impostas, o são precisamente como respostas às
crises econômicas e políticas.
A política estatal, mesmo num nível genérico, neste contexto é mais econômica do que
social. Pois no “estágio do capitalismo concorrencial, e mesmo nas primeiras fases do capita-
lismo monopolista, as funções econômicas no sentido estrito, do Estado eram subordinadas às
suas funções repressivas e ideológicas.”
167
Definitivamente, parece que é a assunção de um
novo papel na economia pelo Estado o que vai definir sua atuação funcional. O que distingue
de maneira marcante o papel do Estado, a partir de então, é o nível de consciência com o qual
este se dedica à gestão da força de trabalho. Esta passa a ser a sua função econômica funda-
mental. Para isso conhece um alto nível de elaboração política, pois o Estado de Welfare leva
a cabo medidas essenciais em favor da acumulação do capital e as reelabora politicamente a
fim de que elas possam ser percebidas como concessões às classes dominadas. Tome-se o
exemplo dos benefícios aos desempregados: além de financiados por toda a sociedade através
dos tributos recolhidos, favorece o equilíbrio entre acumulação e consumo, na medida em que
permite a alguns trabalhadores ficar fora do mercado de trabalho e mesmo assim continuar a
consumir. Esta estratégia ainda oferece um aspecto repressivo complementar, que se traduz,
quer no controle das pessoas que se encontram nestes ambientes externos ao mercado de tra-
balho, quer na estigmatização social imposta aos beneficiários e da seletividade dos procedi-
mentos de acesso.
168
Para HARDT e NEGRI, o New Deal produziu a mais alta forma de governo discipli-
nar, na qual “toda a sociedade, com todas as suas articulações produtivas, é subordinada ao
comando do capital e do Estado.” Nele a “sociedade tende a ser governada apenas pelo crité-
rio da produção capitalista. Uma sociedade disciplinar é, portanto, uma sociedade-fábrica.”
169
Com isto as regras de subordinação e os regimes capitalistas disciplinares são estendidos a
toda existência pública ou privada. MARCUSE dirá, por mais paradoxal que possa parecer,
que a democracia consolida a dominação mais firmemente que o absolutismo.
170
A dissemi-
167
POULANTZAS, Nicos. O Estado, o poder, o socialismo. 3 ed. São Paulo: Graal, 1990, p 192.
168
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada pelo sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 51.
169
HARDT & NEGRI. Ob. citada, p. 264.
170
MARCUSE, Herbert. El hombre unidimensional. Barcelona: Planeta-Agostini, 1993.
77
nação do New Deal para todo o mundo, se não conduziu à Segunda Guerra Mundial, a partir
de seu fim projetou-se na cena do governo mundial. A oferta de um modelo de regulação e
controle por parte dos EUA jogou um papel importante para a consolidação da hegemonia
estadunidense que se seguiria. Não o dólar se convertera em rei,
171
como também o ameri-
can way of life se torna o arquétipo, em todos os níveis, de sociedade evoluída. Surge o Esta-
do social propriamente dito, ou mais apropriadamente, o “Estado disciplinador global.”
172
O poder punitivo é abarcado por toda esta nova estruturação totalizante do período
fordista. Afinal, ele se inscreve na política social do Estado. Sua utilização organizada, isto é,
mediante a aplicação de penas, notadamente a prisão, perde um pouco de importância. Não
quer isto dizer, entretanto, que a função repressiva do Estado tenha sido relegada para um
plano secundário. Ainda que de forma mais latente, ela continua em presença. Pois, assim
como as demais funções reclamadas pela complexidade de tarefas cometidas ao Estado, dilu-
ía-se e permeava a totalidade da política estatal. A política estatal passou a atuar em duas fren-
tes: tanto para a reprodução e conservação da força de trabalho, como para aliviar o capital e
não somente em termos financeiros. O controle quantitativo do processo de submissão à con-
versão da força de trabalho em mercadoria, é assumido inteiramente pelo Estado. A contrapar-
tida exigiu que as classes proprietárias acatassem abrir mão de seu importante meio de disci-
plina, que era a ameaça de desemprego. Tal controle definitivamente se tornou mais eficaz: a
mercadoria força de trabalho, ao contrário das demais, não pode ter sua existência fundamen-
tada em expectativas estratégicas de sua possibilidade de venda.
173
As flutuações de oferta e
procura, impõem um sistema social, fora do processo produtivo, destinado a recolher parcelas
redundantes, a fim de assegurar a reprodução da força de trabalho, mesmo quando não um
impacto direto sobre o processo de produção. O poder administrativo assim ganha clara cons-
ciência das inter-relações das diversas políticas sociais, inclusive aquelas de corte político-
repressivo.
171
Alude-se aqui ao abandono do padrão-ouro através dos acordos de Bretton Woods; por eles se reservava ao
dólar o papel de única moeda conversível no sistema internacional de pagamentos, inestimável para a valoriza-
ção do capital, dado que, pelo menos desde MARX se sabe que a mais-valia se realiza assumindo valor de
troca, quer dizer, pela circulação da mercadoria.
172
HARDT & NEGRI, Ob. citada, p. 269.
173
Para, OFFE, Claus; LENHARDT, Gero. Teoria do Estado e política social: tentativas de explicação político-
sociológica para as fundações e os processos inovadores da política social. In: Problemas estruturais do Estado
capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984. p 10-53, é também imprescindível a submissão da força de
trabalho a uma orientação que lhe é exterior. Daí a tendência em reprimir modos de vida que confrontem a rela-
ção de trabalho assalariado.
78
JUAREZ CIRINO acerta quando afirma que, neste contexto, a prisão deve ser perce-
bida como um capítulo particular mais geral de produção e reprodução da classe trabalhado-
ra.
174
Isto não conduz à desimportância da função repressiva do Estado, mas à sua reelabora-
ção estratégica. A inter-relação entre ciência e economia continua a produzir frutos, e alcança
níveis de ingerência em todas as esferas da vida social antes desconhecidos. Como conse-
qüência do intervencionismo econômico, assiste-se à vitória de uma lógica também eminen-
temente econômica, baseada no pragmatismo e no eficiente desempenho de funções. Qualquer
alusão à economia política clássica não será um despropósito. O dispositivo disciplinar parece
atingir seu auge, embora também comece a conhecer seus estertores. Sua consolidação produ-
ziu importantes reflexos no direito penal, quer no nível das leis, quer no dos discursos legiti-
mantes do poder punitivo. A esta altura, permite a reedição do positivismo criminológico com
sucesso nos países centrais. A institucionalização, por exemplo do esquema do duplo-binário,
composto pela combinação de penas retributivas (prisão) com medidas neutralizantes (medi-
das de segurança) é sintoma desta reedição. Também impregnadas com este “espírito científi-
co” da criminologia positivista, assiste-se ao reforço de doutrinas utilitaristas em detrimento
da retribuição. O reconhecimento da falha da prisão no seu projeto reeducativo chega perto da
unanimidade e enseja o sistema de progressão de regimes decidido a partir da avaliação da
conduta dos internos: um caso típico de sanção premial do Estado providência. Assiste-se,
também, a uma completa reorganização dos setores público e privado, cujas fronteiras tor-
nam-se mais porosas.
175
Pode-se assim pintar este período, que vai pelo menos até meados dos anos 70 do sé-
culo XX, como um quadro no qual a punição sofre um reordenamento funcional, que repercu-
tiu na adaptação do dispositivo disciplinar, baseado na remoção dos velhos limites liberais.
De fato, presencia-se um refluxo do Estado de direito simultâneo ao avanço do Estado social.
A sociedade industrial, apesar de acatar a redução da violência organizada, é totalitária. Uma
sociedade cada vez mais capaz de satisfazer as necessidades dos indivíduos pela forma em
que está organizada, cobra o alto preço da privação da independência, até de pensamento. A
prisão assim se reserva àqueles que ousam resistir a esta ordem sufocante, quer mediante a
recusa à socialização segundo o modelo da mercadoria (caso do lumpemproletariado), quer
174
CIRINO DOS SANTOS. A criminologia radical, p. 69.
175
MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de presídios e criminalidade: a gestão da violência no capitalismo
global. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 105.
79
por meio da oposição política.
176
Nestes termos, a reedição do positivismo criminológico,
hábil a perceber nesses insurretos uma espécie de inferioridade constitutiva, é bastante fun-
cional a esta configuração institucional com tendências totalitárias.
De fato, em alguma medida ocorre um desencarceramento, tributário da adoção de
novos substitutivos penais, tais como a suspensão condicional da pena e o livramento condi-
cional. Uma das hipóteses de compreensão da adoção destas alternativas desencarceradoras se
apóia na crise fiscal do Estado, explicada pela necessidade de deslocar seus recursos financei-
ros para setores que sua nova política reclamava com muito maior intensidade.
177
O controle social, para além da imposição de penas jurídicas pelo Estado, na fase da
sociedade disciplinar revelava-se eficiente por causa das estruturas, mesmo arquitetônicas,
das grandes instituições, mais ou menos totais, que lhe são características. Mas as grandes
indústrias logo entrarão em crise; com ela, também os dispositivos de controle, inclusive no
nível discursivo. A própria função da prisão, enfim, se modifica de forma acentuada. Os des-
dobramentos desta reorganização parte de transformações econômicas mais ou menos contro-
ladas pelos países dominantes. O entorno destas transformações parecem pôr de manifesto a
intensa cumplicidade que a política nutre por elas, como se tentará deixar claro a seguir.
176
OFFE e LENHARDT, Ob. citada, p 21.
177
Nesse sentido, MINHOTO, Ob. citada, p. 108; também CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal. Parte
geral. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2006, p. 601.
80
CAPÍTULO III - O CONTROLE SOCIAL PÓS-FORDISTA: A BIOPOLÍTICA
COMBINADA AO MASS INCARCERATION.
Do ponto de vista de sua lógica, a atual época vivenciada, na essência não se distingue
da que lhe precedeu. O caráter monopolista do capital se aprofundou e a relação de comple-
mentariedade entre políticas sociais e repressivas continuam a comandar a cena e a projetar
sobre o Estado suas necessidades. Esta projeção se traduz na forma de funções que, longe de
instaurar uma ruptura frente àquelas do Estado intervencionista, parecem apenas terem se rea-
comodado no seio desta nova configuração econômica e política com evidentes reflexos no
campo social. Na verdade, decisiva não foi a imposição de concepções econômicas ou políti-
cas radicalmente diferentes, mas o rescaldo daquela que pode sim ser considerada uma radical
transformação: a que se operou no plano técnico-produtivo. Não quer isto dizer que as mu-
danças políticas e econômicas - sobretudo no mundo do trabalho - foram poucas, mas apenas
que elas não estabeleceram qualquer ruptura com as práticas e estratégias que lhe precederam.
É evidente que elas não poderiam distinguir-se estruturalmente das anteriores, mas estas
mesmas estruturas dadas pelo modo capitalista de produção, não impediriam, necessariamen-
te, sua alteração mais radical. Mais notável nesta transformação talvez seja o abandono de
muitos eufemismos, a dispensa de discursos encobridores tipicamente keynesianos para evitar
que se descortine mais abertamente a lógica constitutiva deste tipo de reprodução das relações
sociais. Ela tem na utilidade econômica sua única preocupação imanente. Por isso a função de
gestão do estoque de força de trabalho, sob o neoliberalismo, talvez possa ser explicada pelo
seu desprendimento frente a prestações que a luta de classes lhe havia imposto. A lógica a
presidir este processo de fato não se modificou. Ela foi elaborada discursivamente pela pri-
meira vez pelos fisiocratas; contra ela, não MARX, mas também DURKHEIM e WEBER
se manifestaram.
178
Se a estes últimos faltou radicalidade, quiçá pelo temperamento, ao pri-
meiro não.
178
A Divisão do trabalho social de DURKHEIM, Emile. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pode ser inter-
pretada como alternativa à ideologia predominante sob a Revolução Industrial que ele viu eclodir, embora a
tenha legitimado tanto quanto a economia política de RICARDO, por exemplo. Pelo lado de WEBER, é percep-
tível como lhe incomodava acatar a justificação baseada pura e simplesmente na utilidade, mas parece certo que
toda sua fina elaboração intelectual se mostrou suscetível de ser apropriada pelos menos recatados pensamentos
economicistas.
81
A tradução dos conceitos estrutura social e pena estatal para o atual regime de repro-
dução capitalista poucas vezes foi intentado. Por isso a discussão das transformações ocorri-
das, seus reflexos sociais, particularmente perceptíveis no mercado de emprego, exige uma
reflexão um pouco mais detida. Desdobrar o corpo do texto, inclusive através do aumento de
seu volume, se torna então recomendável. Daí a necessidade de se dedicar um capítulo especí-
fico para a presente etapa. Outra ressalva impõe ser feita antes de prosseguir: assim como se
procedeu com relação aos demais estágios de desenvolvimento das relações de produção, a-
lém de genérica, a presente reflexão se deterá mais pelos acontecimentos que distinguem as
transformações nos países centrais. Geralmente elas tendem a ocorrer primeiro nos Estados
Unidos e depois passam por um processo de assimilação mais ou menos profundo nos demais
países centrais e, finalmente, também nos periféricos. Portanto, as conseqüências destas trans-
formações não serão, pelo menos por hora, traduzidas para o caso do Brasil.
1. Condições políticas e econômicas da Grande Transformação
Antes de se debruçar propriamente sobre os reflexos desta nova ordem acerca das op-
ções punitivas do Estado, convém descrever, ainda que em largas linhas, as condições políti-
cas e econômicas em que a Grande Transformação se operou. O sistema internacional de
produção capitalista, no final da década de 1960, se encontrava em crise.
179
Começou a
verificar-se uma acentuada apreciação dos preços (inflação crescente), a despeito de uma taxa
de desemprego também crescente e de decréscimo econômico. Surgia um novo período de
estagnação. Esta crise seria daquelas genuinamente capitalistas, compreendida na base da ine-
vitável tendência à queda da taxa média de lucros. Tal lei sintetiza a forma do movimento
cíclico inevitável do modo de produção capitalista, alternando períodos de prosperidade e de
depressão. De forma simplificada, para fugir das crises o capital deve se submeter a uma des-
valorização geral, que compreende um reajuste das relações de produção, para aliviar a pres-
são imposta sobre a taxa média de lucro. Esta pressão tem por origem a redução da taxa de
mais-valia, que pode ser obtida do capital variável, ou seja, pela própria força de trabalho.
Por isso é que a força de trabalho constitui a preocupação fundamental do poder estatal capita-
lista. Todas as suas energias naturalmente devem poder ser mobilizadas para o controle dos
179
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Michael. Império. 6 ed. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 282.
82
movimentos da força de trabalho; tanto mais quando ela demonstra se unir para fins políticos.
Esta é a função precípua da regulação política, que tem no poder punitivo organizado, repre-
sado ou em pleno movimento, a garantia da manutenção do tipo social que lhe é característi-
co.
Pode-se dizer que às crises cíclicas capitalistas correspondem a alternância entre teori-
as econômicas monetaristas e estatistas. A crise verificada no início dos anos 70 do século XX
voltou a deslocar o prestígio em termos de teoria econômica para os monetaristas. Para eles a
inflação constitui o inimigo público número um, e a alta dos preços é conseqüência inevitável
da apreciação dos salários. A avaliação dos economistas neoclássicos que retomaram seu
prestígio a partir deste novo cenário é conseqüência lógica deste postulado fundamental. Nes-
ta ordem de idéias, um dos fatores que levariam à crise do fordismo e do Estado de bem-estar
que lhe foi contemporâneo, residiriam justamente nas inovações institucionais que ele adota a
fim de garantir as condições de sua sobrevivência.
180
Os exemplos mais acabados destas ino-
vações consistem, por um lado, na manutenção de parte da força de trabalho fora do mercado;
por outro, na permissão da realização de algum trabalho concreto (produtor somente de valor
de uso)
181
também necessário para alimentar o capital. Exemplo deste último assenta-se na
pesquisa científica, nos serviços de distribuição de mercadorias, etc. Para além do incremento
do desemprego voluntário, estas estratégias institucionais trouxeram algumas conseqüências
indesejadas: do ponto de vista fiscal, por exemplo, o desvio de capital para investimentos por
parte do Estado. Isto explica o “peso financeiro” do Estado social e a alta carga tributária que
lhe é inerente. Como visto, a incapacidade eventualmente verificada, de assimilação de toda a
força de trabalho disponível, além de poder reduzir o consumo, impeliu o Estado a traçar ou-
tras estratégias de socialização não baseadas nas relações de troca equivalente, com o objetivo
de integrar os indivíduos supérfluos para a manutenção do sistema econômico dominante.
182
Esta interpretação é muito bem assimilada e elaborada pelos neoliberais: a coexistên-
cia contraditória, em termos keynesianos, de altas taxas de inflação e desemprego, resulta da
180
OFFE, Claus. Relações de troca e legitimação política. A atualidade do problema da legitimação. Rio de
Janeiro: Tempo brasileiro, 1984, p. 180-214.
181
Além da noção acerca dos ciclos evolutivos do capitalismo, é necessário compreender a diferença entre traba-
lho abstrato e trabalho concreto. Conforme observa KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada
do socialismo de caserna à crise da economia mundial. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 77, o dinheiro
“representa a abstração real social, é a encarnação do trabalho abstrato por excelência, totalmente desvinculado
do conteúdo concreto da produção.” Por isso a produção de mais-valia depende da participação da mercadoria no
mercado, do contrário ela não se realiza mediante a transformação do valor de uso em valor de troca.
182
OFFE, Ob. citada, p. 210.
83
substancial taxa de desemprego voluntário que as políticas sociais do Estado, mais que permi-
tir, encorajam. Afinal, não razões para se aceitar um salário inferior se, por um período
mais ou menos longo de tempo, os serviços sociais do Estado permitem ao trabalhador aguar-
dar o surgimento de um salário melhor. Por outras palavras: quem não tiver emprego pode
sempre encontrar um posto de trabalho, se aceitar um salário inferior. não aceita porque
pode permanecer sem emprego e continuar a procurar por outro posto de trabalho. Assim a
intervenção do Estado podia passar a ser percebida como negativa em sua função de contornar
as crises de reprodução capitalista. Este discurso produz um efeito ideológico não desprezível:
não seria portanto a verdadeira revolução tecnológica, convertida em força produtiva exclusi-
va do capital, o que estaria reduzindo os postos de trabalho, mas o poder de barganha demasi-
ado de que desfrutam os sindicatos, a legislação do salário nimo, a instituição de subsídios
de desemprego, etc.
183
Em síntese, sob o Welfare State o poder em optar em vender sua força
de trabalho foi sendo retomado pelo trabalhador, algo inadmissível desde Adam Smith, que
precisava recuperar a autoridade de suas idéias.
A economia política de raízes fisiocráticas começa a retomar a cena. As repercussões,
no entanto, não ficam reservadas às teorias econômicas, mas se espraiam por toda a ideologia
social e cultural, com importantes repercussões para a qualidade de vida das pessoas. A fun-
ção repressiva também é reelaborada segundo esta avaliação saudosista que reivindicava pelo
retorno do cetro do poder à conhecida mão invisível do mercado. A problemática da alta de
preços seria então resolvida como sempre: mediante as leis silenciosas da livre concorrência,
baseadas na oferta e na procura de trabalho. Logicamente que uma parcela da força de traba-
lho não deve encontrar ocupação, o que estabelece um limite para a massa de salários compa-
tível com a maximização dos ganhos.
O principal efeito político da economia política é naturalizar estes fenômenos. Se o
capitalismo é a civilização das desigualdades, os fisiocratas e seus seguidores foram muito
hábeis em naturalizar esta desigualdade e em identificar o natural com o justo. A economia
política portanto constitui a elaboração “científica” de que a inelutável natureza das coisas,
com suas leis de validade absoluta e universal, é o que explica a definitiva secessão da socie-
dade entre os vencedores, merecedores de todas as glórias, e os perdedores, a quem se deve
reservar a punição.
183
AVELÃS NUNES, António José. Neoliberalismo e Direitos Humanos. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 19.
84
É necessário dedicar algumas linhas para a compreensão da importância das lutas po-
pulares neste período histórico. Apesar de sua tendência autoritária, resultante do fato da in-
tromissão do Estado não nos domínios que tradicionalmente não lhe eram franqueados,
mas em todos os domínios da existência social, o Estado-providência também criou as bases
para um crescimento em importância das lutas políticas. Não só o poder dos sindicatos, mas a
própria organização de tipo fordista permitia uma interação mais orgânica e aproximada entre
as diversas células que compunham o organismo social. A conformação espacial favorecia
estas trocas, além de colaborar para a formação de um grande contingente de trabalhadores
com emprego relativamente certo. Além disso, o relativo equilíbrio da oferta de força de tra-
balho conquistado favorecia a mobilidade da mão-de-obra em busca de salários mais vantajo-
sos. Até então as empresas tendiam a se radicar num determinado local, num determinado
país, como se aguardassem uma corrida dos trabalhadores até seus postos de trabalho. Se a
definição por um local de instalação era em boa parte determinada pela oferta de força de tra-
balho, sua variação não repercutia diretamente no deslocamento. A constituição dos Estados
nacionais com fronteiras físicas e políticas rígidas, as políticas protetivas do mercado interno
utilizadas para o desenvolvimento de parques industriais domésticos, na base de substituição
de importações, entre outros fatores, inibiam mais a mobilidade de empresas do que de pesso-
as.
Para a compreensão do contexto de crise experimentado deve-se tomar não apenas a
queda da taxa de lucros, portanto de reprodução capitalista em termos ampliados. É necessário
também agregar que embora o valor do trabalho necessário apareça como uma quantidade
econômica objetiva ele é determinado socialmente. Em outras palavras, o preço da força de
trabalho embora compareça do ponto de vista gerencial do capitalista como um custo opera-
cional, ele constitui o índice de toda uma série de lutas sociais.
184
A estratégia de enfrenta-
mento da crise que se instalara sob o fordismo logicamente deveria se abater sobre aqueles
benefícios sociais conquistados que serviam de amparo ao poder de pressão e de barganha que
a organização dos trabalhadores havia conquistado.
É possível ousar, a partir destas premissas, um diagnóstico ou pelo menos uma descri-
ção da crise que acometeu os Estados de bem-estar centrais, a partir do início da década de
184
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 294.
85
1970. Segundo a teoria das crises cíclicas, a compressão da mais-valia tende a ser compensa-
da pelo incremento do capital constante. Sob o Welfare parece que o nível geral dos salários
cresceu mais do que o exército industrial de reserva poderia assimilar; no entanto as forças
produtivas estavam limitadas pela necessidade de força de trabalho em grandes quantidades,
sob o fordismo, o que incrementava o poder político dos trabalhadores. A situação se modifi-
ca com a verdadeira revolução que as forças produtivas experimentam, basicamente com o
surgimento da tecnologia da informação. Logo ela seria secundada pela radical transformação
do padrão de acumulação, baseada no deslocamento, tendencialmente progressivo, da inver-
são de capitais do setor produtivo para o setor eminentemente financeiro. Ora, o padrão de
expansão do capitalismo de tipo industrial e fordista caminhava na dependência da capacidade
de consumo das massas. Por isso ele precisava expandir-se, inclusive para o exterior. O pro-
blema – e talvez isso seja o traço fundamental do neoliberalismo e da vaga punitiva que veio a
seu reboque - é que o capital parece estar tomando consciência de que não precisa mais ex-
pandir-se, ou melhor, expandir seus mercados, para realizar-se.
A crise econômica, cujo sintoma é o indevido aumento dos salários, era capaz de
despertar o poder punitivo. No entanto, lhe impunha, ao mesmo tempo, algum comedimento.
Desde RUSCHE e KIRCHHEIMER constitui patrimônio intelectual da sociologia política da
pena que a força de trabalho deve ser preservada se estiver escassa no mercado. Com o “salto
quântico” dado pelas forças produtivas, aliado ao surto de financeirização assinalado, as ra-
zões para a preservação da força de trabalho parecem deixar de existir.
Em princípio, este ataque às estruturas do Estado-providência não poderia se dar im-
punemente. Toda a estrutura social estava amparada sobre este gigante; boa parte da ocupação
e da capacidade de consumo se ancorara sobre o aumento vertiginoso da burocracia, que con-
seguira aumentar sua importância econômica e política. Por isso, a redução do papel do Esta-
do não poderia ser percebida positivamente pelo seu pessoal.
1.1 Menos uma contingência do que uma deliberação
O atual regime de reprodução capitalista realmente é diferente dos que lhe antecede-
ram. Embora, como se disse, ele não possa ser designado por estabelecer qualquer ruptura,
principalmente frente às funções que competiam ao Estado, foi a recombinação destas fun-
86
ções, basicamente fundada na completa submissão dos poderes políticos em presença ao po-
der econômico das grandes e fluidas corporações internacionais verdadeiro soberano difuso
privado supra-estatal para CAPELLA
185
- que decidiu pela sua imposição. Em outros termos,
a importância das ousadas opções políticas tomadas, particularmente desde o aparelho de Es-
tado dos EUA, é que definiu o curso de fenômenos que, apesar de também determinantes para
este novo status quo, para existir dependem muito menos da percepção e das opções a seu
respeito que deles fazemos. Os aparelhos estatais, no desempenho das funções que lhe são
exigidas, não foram relegados ao ostracismo. Mesmo neste contexto não parece lícito afirmar
uma vitória do mercado sobre o Estado. O capitalismo desconhece esta possibilidade e não
pode alimentá-la.
186
Esta perspectiva possui a dupla qualidade de tomar em conta e ao mesmo tempo, tanto
o impressionante salto tecnológico propiciado pela revolução das comunicações e da informá-
tica, quanto as definições políticas de repercussão global sobre seu uso. Defrontamo-nos, atu-
almente, com a globalização financeira. Entretanto, o mundo pensado globalmente, como uma
totalidade submetida a determinado domínio, pelo menos desde o império romano, não é no-
vidade. Tampouco o são surtos de financeirização que marcaram desde os primórdios a histó-
ria do capitalismo.
187
Mesmo assim o momento experimentado é único. Do ponto de vista
cronológico as decisões econômicas, mas de acentuado conteúdo político, consideradas por
muitos analistas como decisivas, são anteriores à glorificação das novas tecnologias. A pri-
meira destas decisões ocorreu no ano de 1971, sob o governo estadunidense do presidente
NIXON que decidiu pela quebra da conversibilidade do dólar em ouro e pelo conseqüente
abandono do referente sensível das moedas, que a partir de então deveriam se reportar apenas
ao dólar e sobre as estimações sobre as próprias economias. Além disso, NIXON impôs uma
185
CAPELLA, Juan Ramón. Fruto proibido: uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Es-
tado, p. 229.
186
Cf. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 328 “A fase contemporânea não está, na realidade, ade-
quadamente caracterizada pela vitória das empresas capitalistas sobre o Estado. Apesar de as empresas transna-
cionais e de as redes globais de produção e circulação terem desgastado os poderes do Estado-nação, funções de
Estado e elementos constitucionais foram efetivamente deslocados para outros níveis e domínios. Precisamos
fazer um exame muito mais cauteloso das mudanças havidas na relação entre Estado e capital. (...) Governo e
política foram completamente integrados ao sistema de comando transnacional. Controles são articulados medi-
ante uma série de corpos e funções internacionais. Isto é verdade também para os mecanismos de mediação polí-
tica, que na realidade funcionam por meio das categorias de mediação burocrática e de sociologia gerencial, mais
do que por meio das categorias políticas tradicionais de mediação de conflitos e reconciliação de conflitos de
classe. A política não desaparece; o que desaparece é a noção de autonomia do político.”
187
ARRIGHI, Giovanni. O longo século XX: dinheiro, poder e as origens de nosso tempo. São Paulo: UNESP;
Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, os toma como recorrentes: as expansões financeiras seriam fases finais dos
grandes desenvolvimentos capitalistas. Entretanto o que ele descreve certamente é algo distinto do que se pre-
sencia na época atual.
87
taxa de dez por cento a todas as importações da Europa para os Estados Unidos. Com isso os
Estados Unidos assumiam unilateralmente a responsabilidade de manter a posição do dólar
como moeda-reserva. Tão ousada operação foi possível graças ao poder político e econô-
mico de que os Estados Unidos desfrutavam. O sistema de equilíbrios econômicos e políticos
instaurado por Bretton Woods já vinha mergulhado numa desordem. Esta abrupta alteração no
sistema de pagamentos exigiu uma “ampla reestruturação das relações econômicas e uma mu-
dança de paradigma na definição do comando mundial.”
O resultado é o fato nu e cru da he-
gemonia dos EUA.
188
Boa parte das injunções que desaguaram nesta deliberação também impulsionam o a-
contecimento que se generalizou com a crise do petróleo de 1973, cujo móvel consistiu no
aumento dos preços do barril, pelos principais produtores, sem a correspondente redução da
demanda ou do aumento do consumo. Outra deliberação política da maior importância eco-
nômica, que parece ter sido rapidamente assimilada pelos centros globais de poder, mais uma
vez, Estados Unidos à frente. Obviamente isto se deu dada a importância do tema, que tais
centros de poder são também os grandes consumidores do combustível que tem a peculiarida-
de de ser não-renovável. Em princípio o próprio modelo de sociedade produtora de mercado-
rias baseada no alto consumo de energia estaria em xeque. Isto deveria ter conduzido a uma
reavaliação total do modelo. Mas esta possibilidade, fundamentalmente assentada na completa
modificação dos padrões de produção, foi de plano descartada.
189
Logo uma ofensiva geopolí-
tica e posteriormente militar seria implementada, com o respaldo político do sentimento de
medo que contaminou as populações resultante do questionamento sobre os padrões de con-
sumo sobre os quais repousa o modelo de sociedade ocidental. É por isso que alguns analistas
econômicos avaliam a crise do petróleo de 1973, um acontecimento aparentemente exógeno
ao controle dos centros globais do poder, como um verdadeiro “golpe de gênio”.
190
Afinal, ele
desencadeou um reforço, por parte dos consumidores de petróleo pouco endinheirados, da
dependência dos ativos financeiros do Estados Unidos; ou seja, reafirmou sua hegemonia.
Pois à crise do petróleo sucedeu-se quase imediatamente uma crise financeira, donde o socor-
ro aos países importadores mais fracos por meio do sistema bancário internacional, desenhou
188
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império, p. 287.
189
MUZIO, Gabriele. A globalização como estágio de perfeição do paradigma moderno: uma estratégia possí-
vel para sobreviver à coerência do processo. In: OLIVEIRA, Francisco; PAOLI, Maria Célia (org.). Os sentidos
da democracia: políticas do dissenso e hegemonia global. São Paulo: Vozes, 1999, p. 113-161.
190
MUZIO, Ob. citada, p. 143.
88
“os parâmetros para a futura penetração das finanças nos processos de tomada de decisão e,
de modo geral, na esfera política, de todos os países que foram ‘socorridos’”.
191
O endividamento dos países periféricos que obviamente se seguiu e se multiplicou,
mais uma vez determinou um percurso distinto a ser atravessado. Para o momento, interessa
observar a notável transferência do poder dos Estados nacionais para as grandes corporações
que se tornaram suas maiores credoras. O aprofundamento da dependência que historicamente
caracterizava os países marginais, cria as condições para a sangria de seus capitais e a sin-
tomática e providencial descapitalização doméstica reforçando esta mesma dependência. As
políticas monetárias, além de enfatizadas como nunca, são severamente constrangidas pelos
mercados financeiros. A política fiscal torna mais escorchantes os níveis de carga tributária
impostos às populações, sem impedir o refluxo dos benefícios sociais que antes os justifica-
vam. A força dominante da economia global passa a se concentrar nos grandes investidores,
que definem um novo regime à reprodução capitalista, baseada principalmente na fluidez e na
completa pulverização das fronteiras para a mobilidade de títulos mobiliários, quer dizer, de
um capital financeiro sem qualquer compromisso com as relações de produção. A financeiri-
zação da economia capitalista, de fenômeno cíclico compreensível na base dos ciclos de des-
valorização do capital, se converte no seu padrão sistêmico de produção de riqueza.
192
A meu ver este fenômeno foi decisivo para a profunda alteração nos instrumentos e
práticas de produção da riqueza, mas também permitiu a absoluta precarização das formas
institucionalizadas de venda da força de trabalho, que repercutiu nas estratégias punitivas do
Estado. A hipótese central de RUSCHE e KIRCHHEIMER deve portanto ser atualizada, pois
o novo padrão sistêmico de reprodução do capital tende a não ver qualquer utilidade na manu-
tenção da equação oferta de trabalho abstrato X demanda das relações de produção. O empre-
go, a capacidade de consumo dos trabalhadores, enfim, a dialética que sempre esteve por trás
dos tênues momentos de legitimidade dos Estados capitalistas é estruturalmente questionada,
e a força de trabalho, enquanto grandeza decisiva para o funcionamento do sistema penal,
também deve assimilar estas transformações. Estas considerações reclamam, portanto, uma
análise à parte das transformações que se abatem sobre o mercado de trabalho e seus reflexos
191
MUZIO, Ob. citada, p. 145.
192
A respeito, ver os vários artigos da coletânea FIORI, JoLuís; TAVARES, Maria da Conceição (org.). Po-
der e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 1997, principalmente BELUZZO,
Luiz Gonzaga. Dinheiro e as transfigurações da riqueza, p. 151-193 e sobretudo BRAGA, José Carlos de Souza.
Financeirização global: o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo, p. 195-242.
89
para o exercício concreto do poder punitivo. Em suma, um modelo baseado apenas na repro-
dução do capital através do capital logo começaria a fazer água, não fosse sua estreita combi-
nação com uma revolução não menos importante no próprio setor produtivo do qual o tal mo-
delo em princípio poderia se descolar: a informatização da produção.
1.2 A informatização da produção e a reorganização produtiva pelo capital
O que mais caracteriza as transformações operadas nos regimes produtivos capitalistas
é o fator quantitativo, em termos de percentagem de população ocupada. Embora insuficiente
para explicar as alterações substanciais ocorridas nestes domínios, este fator não perde impor-
tância porque diz respeito à utilidade econômica das populações em geral. Segundo o ethos
que preside a racionalidade capitalista, qualquer elemento (vivo ou morto, com ou sem cons-
ciência, não importa) que componha o tecido social tem sua importância diretamente propor-
cional à utilidade para a realização do valor lei fundamental do modo de produção capitalis-
ta. A agricultura primeiro extensiva logo industrializada já conheceu seu apogeu; a indús-
tria e a fabricação massiva e planificada de bens de consumo também já esteve no domínio
dos sistemas produtivos. Presencia-se atualmente a supremacia do setor de serviços e da tec-
nologia da informação; eles constituem atualmente o eixo da produção econômica.
O paradigma da modernidade, através do processo de industrialização, exerceu uma
força conformadora de todo plano social. Ele determinava não o padrão de produção da
riqueza material, mas a produção das próprias relações sociais. A industrialização impôs uma
definição do tempo e do espaço que em alguma medida permitia uma convivência gregária e
um incremento dos fluxos interacionais entre as pessoas que a nova configuração destas tem-
poralidades, com reflexos no padrão produtivo, redefiniu completamente.
Planejado, o espaço moderno tinha que ser gido, sólido, permanente e inegociável.
Concreto e aço seriam sua carne, a malha de ferrovias e rodovias os seus vasos san-
guíneos. Os escritores das modernas utopias não se distinguiram entre a ordem soci-
al e a arquitetônica, entre as unidades e divisões sociais ou territoriais; para eles
assim como para seus contemporâneos encarregados da manutenção da ordem social
– a chave para uma sociedade ordeira devia ser procurada na organização do espaço.
A totalidade social devia ser uma hierarquia de localidades cada vez maiores e mais
inclusivas, como a autoridade supra-local do Estado empoleirada no topo, supervisi-
onando o todo e ao mesmo tempo protegida da vigilância cotidiana.
193
193
Ver BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.
24.
90
O novo padrão produtivo é determinado por grandezas sobre as quais a força de traba-
lho não possui qualquer influência. Tais grandezas se combinam a fim de tornar as condições
de trabalho ainda mais precárias. A grande mobilidade de capitais e até das empresas se con-
trasta com a imobilidade dos trabalhadores. A mobilidade de capitais faz com que os investi-
dores (a quem pertencem estas empresas)
194
se vejam livres de qualquer determinação espaci-
al. Ao mesmo tempo, as grandes corporações atualmente desconhecem fronteiras e procuram
se instalar onde o mercado de trabalho se encontra mais flexibilizado; qualquer alteração deste
quadro pode levar às populações locais ao arrependimento, pois segundo o interesse dos in-
vestidores “sem rosto”, a companhia pode se transferir para um novo eldorado da precariza-
ção, quando bem entender, deixando em seu rastro os despojos da absoluta falta de compro-
misso com as conseqüências de sua existência. O capital, de transnacional passa a global, seu
novo território, para utilizar o léxico de HARDT e NEGRI, é o Império, espaço liso no qual
circulam fluxos de dinheiro, força de trabalho e informação, sujeitos a regimes de controle
essencialmente diferenciados.
195
A produção se desterritorializa: a linha de montagem é substituída pela rede como
modelo organizacional, de forma que a cooperação e a eficiência produtivas deixam de de-
pender da proximidade entre os agentes.
196
O trabalho se desmaterializa: ele tende a abando-
nar sua relação com o produto determinado para se tornar um ato criativo, fundamentando-se
no manuseio de signos, de modo que “cria uma segunda natureza (a virtual) ao invés de limi-
tar-se a transformar o mundo natural.”
197
O trabalho com estas características, das quais a tecnologia da informação é a força
propulsora, implica a substancial redução da quantidade de trabalho socialmente necessária
para a reprodução do capital. Isto necessariamente repercute na perda de importância do tra-
balho vivo. Ao contrário do que acontecia, a reprodução do capital, nem a longo termo, não
criará emprego; tende a destruí-lo. O desemprego, que antes disso já era estrutural, passa a ser
permanente e alcança níveis inauditos. Parte das parcelas redundantes de trabalho vivo passa a
alimentar o mercado de subempregos; os vários nichos do setor terciário, também cada vez
194
BAUMAN. Ob. citada, p. 14.
195
DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada pelo sistema penal, p 65.
196
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. p. 316.
197
DE GIORGI, Ob. citada, p 71. Ainda a respeito do trabalho, NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Ob. citada,
p. 310; LAZZARATO, Maurizio; NEGRI, Antonio. Trabajo inmaterial: formas de vida y producción de subjeti-
vidad. Buenos Aires: DP&A, 2001.
91
mais caracterizados pela precariedade dos direitos, quando não pelo estabelecimento de rela-
ções de semi-escravidão
198
ou neo-servis.
199
O trabalho, despido das qualidades e da seguran-
ça do emprego fordista, deixa de ser socialmente reconhecido como condição suficiente para
se acessar uma existência social plena.
200
A drástica redução de emprego, em que pese apontar uma tendência mesmo de extin-
ção, não equivale sequer ao descenso do trabalho. Mesmo nas metrópoles e nos ramos indus-
triais avançados, onde a redução do tempo de trabalho necessário para a produção já parece se
consolidar, a necessidade de trabalho, ainda que não submetida à rígida fórmula da mercado-
ria é imprescindível. Ora, quanto mais desregulado e isso evidentemente vale para as fron-
teiras menos desenvolvidas em termos tecnológicos e de capacitação da mão-de-obra - for o
regime de exploração, mais trabalho haverá; o maior sintoma desta verdade é a imposição de
jornadas de trabalho que atingem até dezesseis horas diárias, sobretudo nos países periféricos.
As organizações de trabalho flexíveis estão à cata do menor preço da força de trabalho.
201
De
outro lado, ou seja, também mais ao norte, tanto a segmentação, a difusão de formas de traba-
lho para além da estrutura fabril, quanto a própria “compreensão científica do mundo, em
expansão, como a inovação tecnológica de base científica e a manutenção do grau elevado de
instrução em grupos sociais amplos exigem trabalho humano. Sem ele não existiriam.”
202
A questão nodal portanto consiste no fato de que, embora com eficácia produtiva, este
tipo de trabalho não atua na dependência do tempo por ele dedicado para introduzi-lo na pro-
dução. A conseqüência é drástica. Nestes termos o tempo de trabalho deixaria de constituir a
medida objetiva do valor. O trabalho vivo, do qual se extrai a mais-valia, em razão da apro-
priação do progresso da ciência pelo capital deixa de ser o produtor de riqueza por excelência.
Esta constatação constitui talvez a mais polêmica discussão teórica no interior do marxismo,
mas não nele. Até HABERMAS e JOSÉ ARTHUR GIANOTTI a enfrentaram, interpre-
198
CAPELLA, Juan Ramón. Fruto proibido: uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do Es-
tado, p. 247.
199
DE GIORGI. Ob. citada, p 67.
200
A modalidade de trabalho conhecida por emprego e que se distingue pela série de atributos adicionais que
possui, atravessa uma série de domínios da vida social (família, por exemplo) e permite a concepção de projetos,
de sonhos, enfim, de uma noção de futuro. O emprego foi típico das sociedades industriais que se mostraram
capazes de desenvolver um Estado de bem-estar bastante presente. A respeito, ver CASTELL, Robert. A meta-
morfose da questão social. Rio de Janeiro: Vozes, 1998, p. 515 e segs; também BODÊ DE MORAES, Pedro
Rodolfo. Punição, encarceramento e construção de identidade profissional entre os agentes penitenciários. São
Paulo: IBCCrim, 2005, p. 201.
201
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Império. p. 360.
202
CAPELLA, Fruto proibido, p. 250.
92
tando-a como não compreensível no quadro da lei do valor; e mais do que isso: para esta in-
terpretação a nova configuração do sistema produtor de mercadorias não caberia mais nos
limites da racionalidade do capital, abrindo uma fissura para o estabelecimento do fim das
relações antagônicas entre as classes.
203
Este descolamento da forma de sua matéria sensível
poderia fazer ruir as bases do próprio sistema produtor de mercadorias. Uma rápida olhada
para o mundo atual, no qual sequer de trabalho, quanto mais de trabalho abstrato, o capital
precisa para se reproduzir (o coetâneo fenômeno da financeirização permite que ele se auto-
valorize) parece mais do que suficiente para descartar esta hipótese.
Este dado não passou ao largo das reflexões de MARX, que nos escritos reunidos sob
o nome de Grundrisse, entreviu a possibilidade de produção de um valor para o qual não é
possível encontrar nenhum equivalente, surgindo na base de uma verdadeira transfiguração da
relação da ciência com a produção. Até então a realização do valor pressupunha, em primeiro
lugar e fundamentalmente, a produção de mercadoria mediante o não-pagamento, àquele que
a produziu, de uma parte do tempo necessário para produzi-la. A consumação do processo
exigia que a mercadoria fosse colocada em circulação. Para isso o controle do espaço, mas
principalmente do tempo produtivos sempre foi uma necessidade imanente ao capitalismo
industrial. A disciplina é seu dispositivo perfeito, uma vez que constitui a síntese da ingerên-
cia burguesa destinada a medir, através do tempo de trabalho, o espaço de desenvolvimento
humano onde se realiza a produção econômica. A impressionante revolução das forças produ-
tivas permitidas pela evolução da tecnologia, principalmente aquela responsável pela difusão
da informação, tende a tornar a criação da riqueza independente do tempo de trabalho nela
empregado. A revolução tecnológica reclama um específico conhecimento, um saber, para ser
aplicada à produção. O próprio saber se converte assim em força produtiva imediata, constitu-
indo aquilo que MARX denominou General Intellect.
204
Toda esta profecia induz a perguntar se realmente a lei do valor continua em vigor.
Não tenho a intenção de ingressar neste debate, apesar de sua fecundidade. Ele por certo con-
duziria ao desvio do percurso que este trabalho percorreu até aqui. No que interessa, a despei-
to de a reestruturação produtiva configurar ou não uma nova forma de produção da mercado-
203
A esta interpretação alude TEIXEIRA, Francisco José Soares. O capital e suas formas de produção de mer-
cadorias: rumo ao fim da economia política. Critica Marxista. n 10. São Paulo: Boitempo, 2000, p. 67-93.
204
MARX, Karl. The Grundrisse: foundations of the critique of political economy. Versão eletrônica (e-book), p.
450.
93
ria, não pode haver dúvidas de que a exploração ainda ocorra; que o trabalho efetuado produz
mais valor do que a recompensa que lhe é dada. Tampouco se concebe que a força de trabalho
social doravante estará livre do comando e do controle capitalistas.
205
Resta então analisar
quais serão as estratégias punitivas correspondentes.
O específico exercício de poder que o vocábulo controle exprime, mesmo após esta
radical reestruturação do espaço e do tempo produtivos, pode ainda ser considerado social,
mas assume outra significação. Seu foco se desloca do espaço fabril da produção para o espa-
ço virtual onde as informações circulam numa velocidade espantosa. Isto repercute na modu-
lação do próprio tempo, que perde aqueles caracteres considerados burgueses que o distinguia
(linear, serial e repetitivo), e que instauravam e definiam a forma de organização da divisão
social do trabalho. Ora, a reestruturação das forças produtivas, reclamou uma nova forma de
produção, apreensível sob a categoria de cooperação complexa.
206
Ela se distingue das formas
que tiveram lugar no passado (cooperação simples, manufatura e grande indústria) e se reflete
completamente sobre a divisão social do trabalho. Nesta condição também reclama uma for-
ma de controle da força de trabalho disponível, seja ela útil ou não. DE GIORGI dirá que esta
correspondente nova forma de controle deve se deter sobre as também inovadoras modalida-
des de trabalho (imaterial).
207
O mais importante, porém, reside no fato de que a reinvenção
dos processos de trabalho se reflete na redefinição da função repressiva em dois sentidos: por
um lado, um controle mais sub-reptício substituto dos dispositivos disciplinares e dirigido à
parcela – bastante reduzida da força de trabalho útil; de outro, um domínio absoluto que em
suma consiste em tirar de circulação os desnecessários à realização do valor; a estes últimos,
paralela e correspondentemente à reprodução das relações sociais essencialmente desiguais, a
prisão deve servir de morada ambas invenções características do modo de produção capita-
lista.
ALESSANDRO DE GIORGI após referir que o regime pós-fordista é o regime do ex-
cesso, desmembra este excesso em dois elementos: um negativo, constituído pelas parcelas
redundantes de um esquema de cidadania baseado no desenvolvimento de um trabalho produ-
tivo cada vez mais desnecessário; este excesso é constituído pelos inúteis para a reprodução
205
Neste sentido, DE GIORGI, Alessandro. A miséria governada pelo sistema penal, p. 76.
206
TEIXEIRA, Francisco José Soares. O capital e suas formas de produção de mercadorias: rumo ao fim da
economia política, p. 82.
207
DE GIORGI. Ob. citada, p. 76.
94
do capital, inclusive porque ele não precisa mais de sua capacidade de consumo. O excesso
positivo constitui aquela reduzida parcela de força de trabalho que potencialmente poderia
superar o comando e a própria organização capitalista do trabalho, sobretudo pela necessidade
de cooperação complexa para a produção mantida a seu cargo, mas que sofre um controle
difuso exercido desde fora, em substituição aos dispositivos disciplinares da fábrica. A estes
dispositivos se poderia dizer que FOUCAULT os denominaria biopoder; ao contrário das
técnicas de disciplina, os biopoderes também servem a estratégias capazes de submeter gran-
des contingentes de pessoas ao controle e à sujeição. Este específico exercício de poder, que
desde pelo menos o século XIX convive com o poder disciplinar, não tem por objeto a anato-
mia do corpo individual, mas a de todo corpo social: a população. FOUCAULT ainda dirá
que o governo das populações, que na sua época não tinha atingido os veis que hoje conhe-
cemos, surge juntamente com a economia política, instrumentaliza o saber econômico, e se
generaliza como dispositivos de segurança, a fim de gerir detalhadamente as populações. Isto
traduz a governamentalização do Estado, que se sobrepondo de forma recíproca às práticas
disciplinares, submete a totalidade da população ao controle.
208
Os dispositivos biopolíticos,
hoje parecem avançar sobre o espaço antes destinado aos disciplinares. A explicação para isto
certamente está na reestruturação produtiva, ou mais especificamente, sobre a re-divisão e
redistribuição social do trabalho, que perdeu a indústria como referente fundamental da distri-
buição de suas redes de controle e poder. Esta é a marca da passagem da sociedade disciplinar
para a sociedade de controle.
209
Para DE GIORGI, estratégias de controle típicas das redes de
produção de bens imateriais são os mecanismos de vigilância do ciberespaço, que tendem a
controlar a notável capacidade comunicativa que desenvolvem. Um exemplo um tanto carica-
to mas bastante real consiste na submissão do acesso aos serviços informáticos mediante a
utilização de uma senha individual, espécie de código de barras da personalidade.
210
211
A questão se torna mais complexa ao se confrontar, para utilizar a terminologia de DE
GIORGI, as estratégias adotadas para o excesso negativo, muito mais importante em termos
208
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, p 291 (aula de de fevereiro de 1978); também dele a aula de
17 de março de 1976, encontrada Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 287 e segs, além
de FOUCAULT, Michel. “Omnes et singulatim”: por uma crítica da “razão política”. Novos Estudos
CEBRAP, nº 26, março de 1990, p. 77-99.
209
A este respeito já é clássica a obra de DELEUZE, Giles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In:
DELEUZE. Conversações – 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992, p. 219-226.
210
DE GIORGI, Ob. citada, p. 107.
211
COSTA, Rogério da. Sociedade de controle. São Paulo em perspectiva. v 18, n 1, p 161-167, na estrada aber-
ta por DELEUZE aborda o desenvolvimento recente de tecnologias de controle do espaço cibernético, levadas à
frente sobretudo pelo governo norte-americano, tais como o Sistema Echelon (interceptação de mensagens) e o
TIA (Total Terrorism Information Awareness).
95
quantitativos e invariavelmente composto pela força de trabalho desqualificada, não assimilá-
vel pelas complexas redes de produção que tomaram o lugar das linhas de produção. DE
GIORGI as enfrenta enfatizando a racionalidade econômica que coopta os discursos crimino-
lógicos a fim de justificar a mudança de tratamento dispensada aos descartáveis. Segundo ele
seria uma racionalidade não de tipo gerencial, impregnada pela gica da economia políti-
ca, mas uma racionalidade própria do estágio evolutivo das forças produtivas que presencia-
mos, quer dizer, de tipo pós-fordista. Em vez de disciplinar, seria atuarial.
212
Os contornos
estabelecidos para este texto, no entanto, não permite ingressar neste debate. O objetivo pro-
posto, mais modestamente pretende tornar compreensível estes fenômenos “pós-modernos”
desde sua faceta mais visível e a partir do lugar de destaque que os aparelhos estatais assu-
mem frente ao surgimento de determinado regime produtivo e sua interpenetração com a ges-
tão do estoque da força de trabalho. Assim, menos do que nos discursos e apesar da importân-
cia deles, a seção seguinte se ocupa destas faces mais visíveis e de dentro dela procura extrair
alguma síntese.
1.3 Da providência à penitência (e sua interpenetração)
Mas afinal, para que serve a prisão do século XXI? O ciclo parece fechar-se com a re-
serva da prisão aos supranumerários, de inexistente utilidade produtiva e de reduzida capaci-
dade de consumo.
O laboratório desta tendência mais uma vez são os Estados Unidos, que foi logo sendo
assimilada por aqueles que lhe são mais próximos ideológica e politicamente, Grã-Bretanha à
frente, evidentemente. WACQUANT é certeiro ao dizer que a função moderna desempenhada
pela prisão é bifronte: por um lado escondendo, mediante a criminalização, a miséria; por
212
DE GIORGI, Ob. citada, p. 97. De fato este é um discurso bastante em voga no interior da criminologia con-
servadora; ele surge, quase como conseqüência do protagonismo estadunidense em termos econômicos e políti-
cos que se traduzem também em ideológicos, da nova direita americana, representado pelos think tanks institu-
tos de consultoria que analisam problemas e propõem soluções nas áreas militar, social e política. A respeito, ver
WACQUANT, Loïc. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 21. Sob este influxo surgem
inúmeras ideologias law & order, que entre seus sucedâneos, além do paradigma atuarial, tem a broken windows
theory, formulada por James Q. Wilson. Ambas se nutrem do mesmo móvel que é o medo das classes médias
normalmente mais suscetíveis aos pequenos crimes provocados pela pobreza nos grandes centros urbanos; sua
estratégia discursiva consiste na gestão preventiva de crimes, sobretudo mediante a intolerância a todo e qual-
quer deslize, ainda que de ofensividade imperceptível. O objeto da criminologia se desloca do indivíduo crimi-
noso para grupos mais ou menos homogêneos, mas sobretudo para o ambiente que estes grupos insistem em
freqüentar.
96
outro, normalizando o trabalho precário.
213
Isto comprova a solução de continuidade que as
funções sociais e punitivas assumem na política geral do Estado, tornando indispensável
compreender suas funções conexas e suas transformações. Um primeiro passo pode ser dado
ao se recordar da origem desta instituição total, que nos seus primórdios oscilava entre as po-
orhouses e workhouses. A tendência que presentemente se assinala portanto, desde os Estados
Unidos, é a substituição progressiva do Estado social pelo Estado penal.
Assim deve-se acatar a hipótese de que o encaminhamento rumo a uma gestão carcerá-
ria da pobreza é mais pronunciado quando a política econômica e social do país considerado é
fortemente inspirada nas teorias neoliberais, e o Estado do bem-estar em questão é pouco de-
senvolvido.
214
vários estudos empíricos confirmando-a. MICHAEL CAVADINO e
JAMES DIGNAN, num sugestivo artigo intitulado Penal policy and political economy
215
concluem, após analisar as diferentes políticas econômicas e a severidade punitiva de doze
países (Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Alemanha, Ho-
landa, França, Itália, Suécia, Finlândia e Japão), a partir das distintas taxas de encarceramento
neles encontrada, que um acentuado vínculo que une as últimas às primeiras segundo a
seguinte premissa: quanto menor a presença social do Estado maior o numero de pessoas no
interior de suas prisões.
216
Em que medida essa relação varia, ou em que intensidade o vínculo
se estabelece é um enigma que não cabe aqui tentar decifrar. Mas no nível das tendências,
213
WACQUANT, As prisões da miséria. p. 96: “Longe de contradizer o projeto neoliberal de desregulamentação
e falência do setor público, a irresistível ascensão do Estado penal americano é como se fora o negativo disso
no sentido avesso mas também revelador -, na medida em que traduz a implementação de uma política de crimi-
nalização da miséria que é complemento indispensável da imposição do trabalho assalariado precário e sub-
remunerado como obrigação cívica.”
214
WACQUANT, Loïc. A tentação penal na Europa. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 7. n
11. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 7-13. Este número da revista brasileira editada pelo Instituto Carioca de
Criminologia, do Rio de Janeiro, reproduziu o número 124 da revista francesa Actes de la Recherche en Sciences
Sociales intitulado De L’État social à L’État pénal, publicada em setembro de 1998, à época dirigida por Pierre
Bourdieu. No mesmo sentido, aplicando a hipótese para as unidades autônomas dentro dos Estados Unidos,ver
BECKETT, Katherine; WESTERN, Bruce. Governing social marginality: welfare, incarceration, and the trans-
formation of state policy. Punishment & Society. v 3, n 1, p. 43-59.
215
CAVADINO, Michael; DIGNAN, James. Penal policy and political economy. Criminology & Criminal Jus-
tice. v 6, n 5, 2006, p. 435-456.
216
A pesquisa qualifica os países investigados nos seguintes grupos: neoliberais (EUA, África do Sul, Nova
Zelândia, Grã-Bretanha e Austrália); corporativistas conservadores (Holanda, Itália, Alemanha, e França); social-
democratas (Suécia e Finlândia); finalmente, corporativismo oriental (Japão). No interior destes grupos, vislum-
bra-se, na ordem descrita, altas taxas de encarceramento entre os neoliberais, que decai entre os corporativistas
conservadores (Holanda: 123 para 100.000 habitantes) e assim sucessivamente, até culminar no Japão (58:
100.000). Estes resultados, principalmente os japoneses, impeliram os autores a apontar diversos fatores que
genericamente se poderiam intitular culturais que influem na questão. A maior proximidade das relações pesso-
ais baseadas num forte traço tradicionalista, do Japão, explicaria seu alto nível de inclusão social, consequente-
mente, a reduzida taxa de encarceramento. Os Estados Unidos, segundo os dados coletados nesta pesquisa, em
2003 já somavam a impressionante quantia de 714 presos para cada 100.000 habitantes.
97
um outro dado que chama a atenção e que consiste na abismal diferença de taxa de encarce-
ramento encontrada entre os Estados Unidos (650 para cada 100.000 habitantes - em fins dos
anos 1990) e Canadá (120 por 100.000 - no mesmo período). A interpretação é dada por NILS
CHRISTIE: “dois países limítrofes, que têm uma fronteira e uma língua comuns, a mesma
cultura, a mesma dia, a mesma relação com o dinheiro. Mas tendo, um deles, organização
administrativa semelhante à da Grã-Bretanha e um sistema de proteção social atuante, que não
deixa de vigorar.”
217
Com efeito, apesar da tendência de exportação da política penal estadunidense para a
Europa ocidental, por exemplo, parece ser a política estatal geral de cada país, com mais ou
menos presença no campo do amparo social, o que define pela maior ou menor receptividade
desta estratégia punitiva. As condições do mercado de trabalho certamente são decisivas, o
que tende a demonstrar que a velha hipótese da less eligibility continua em vigor. Uma outra
variável que seria importante, a taxa de desemprego, não pode ser utilizada em função da dis-
torção que o encarceramento em massa projeta sobre ela. É o que relata um estudo ao concluir
que a reduzida taxa de desemprego dos EUA comparada com a dos países europeus se
mantém em função da decisiva intervenção do Estado americano na área do emprego pelo
viés penal.
218
WACQUANT avança nesta interpretação: além do efeito de diminuir, no curto prazo,
a oferta de trabalho, no longo prazo a hipertrofia carcerária pode agravá-la, desaguando na
aceleração do trabalho assalariado de miséria, “produzindo incessantemente um grande con-
tingente de mão-de-obra submissa disponível: os antigos detentos não podem pretender senão
os empregos degradados e degradantes, em razão de seu status judicial infamante.”
219
As pri-
sões também constituem fábricas de miséria: o ingresso na prisão sempre vem acompanhado
da perda do emprego e, quando existentes, também dos benefícios sociais. A saída marca um
novo empobrecimento, pelas despesas que ocasiona e pelo incremento da já não reduzida difi-
culdade de enquadrar-se no mercado de trabalho. Assim a prisão contribui ativamente para
217
CHRISTIE, Nils. Elementos de geografia penal. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 7. n
11. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 93-107.
218
BECKETT, Katherine; HARDING, David; WESTERN, Bruce. Sistema penal e mercado de trabalho nos
Estados Unidos. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 7. n 11. Rio de Janeiro: Revan, 2002,
p.41-52.
219
WACQUANT, As prisões da miséria, p. 97.
98
precarizar as magras aquisições de uma boa parte da população carcerária e para consolidar
situações provisórias de pobreza.
220
um dado, enfim, que nenhuma pesquisa parece poder negar: com mais ou menos
intensidade, consideradas as peculiaridades culturais (mais ou menos individualismo, por e-
xemplo) e as diferentes atitudes com relação ao desvio (mais ou menos tolerantes),
221
222
existe
uma clara tendência de incremento massivo das taxas de encarceramento em todo o Ocidente,
sem sinais de que logo esmorecerá. A par deste dado, notam-se ainda sinais, mesmo nestes
países nos quais a presença caritativa do Estado é mais marcante (sobretudo Europa) em lugar
da progressiva substituição a que WACQUANT aludira, o fenômeno de complementação
mediante a ativação de políticas públicas de vigilância que associa o tratamento da inseguran-
ça social com o aumento da vigilância sobre os assistidos, na medida em que as diversas bu-
rocracias sistematizam sua coleta de informações, colocam seus bancos de dados em rede e
coordenam suas intervenções.
223
Em suma, esta imbricada relação entre políticas de corte social e políticas repressivas,
com a tendencial substituição das primeiras pelas últimas, desloca a prisão e altera seu perfil e
sua utilidade em termos de política social. O fato preponderante parece estar no desfazimento
do vínculo que unia a disciplina ascética e o sucesso mundano: “a sociedade continua a exigir
disciplina ascética aos seus membros, mas não pode mais assegurar o sucesso mundano.”
224
Isto quer dizer que os preceitos sinceros da ética do trabalho não se enquadram mais no regi-
me coercitivo das prisões. Não mais reabilitar ou capacitar, mas simplesmente conter. O cár-
cere deixa de ser uma escola para o emprego e passa a ser uma alternativa ao emprego, como
220
WACQUANT, Ob. citada, p. 145.
221
CAVADINO, Michael; DIGNAN, James. Penal policy and political economy. p. 448.
222
MELOSSI, Dario. The cultural embeddedness of social control: reflections on the comparison of Italian and
North-American cultures concerning punishment. Theoretical Criminology v. 5, n 4, 2001, p. 403-424, após
considerar, entre outras coisas, a história e as diferentes experiências religiosas entre os EUA e a Itália (rigoroso
protestantismo de um lado, paternalismo católico de outro), diz que as diferenças entre o histórico de aprisiona-
mento entre os dois países não podem ser compreendidas sem o recurso às diferentes concepções de punição que
os dois tiveram em sua história. Mas este dado nada explicaria senão somado às condições socioeconômicas e à
cultura política dos mesmos. De fato a Itália registrou, nos últimos dez anos, um crescimento até pequeno em sua
população carcerária, cerca de 40%, segundo DE GIORGI, A miséria governada pelo sistema penal, p. 96 (que
publicou a primeira edição de seu livro na Itália em 2002); em compensação Espanha e Países Baixos a teriam
aumentado em torno de 200%, no mesmo período.
223
WACQUANT. As prisões da miséria. p. 122; do mesmo autor e no mesmo sentido The penalization of po-
verty and the rise of neo-liberalism. Capítulo Criminológico. v 31, n 1, Bogotá, enero-março 2003, p. 7-22.
224
SANTORO, Emilio. Castigo e delito. Verba juris: anuário da pós-graduação em direito da UFPB. ano 01, n
01. João Pessoa, jan/dez 2002, p 29-116.
99
verdadeira técnica de confinamento espacial do refugo da globalização, nas fortes palavras de
BAUMAN.
225
Deve-se ainda deixar registrado que em nenhuma das pesquisas analisadas foi possível
apontar que o aumento da prisionização poderia estar associado ao aumento da “criminalida-
de”; pelo contrário, é recorrente a constatação de que índices constantes da ocorrência de cri-
mes não impedem o aumento do recurso à pena de prisão. Uma das fontes explicativas deste
aparente paradoxo, dentre as muitas registradas no decorrer deste trabalho, está a simbiose
estrutural entre o poder público e o capital privado na administração do sistema prisional.
Não se deter sobre este dado e sobre a sua mais proeminente manifestação institucional que
está por trás do mass incarceration, equivaleria a renunciar em terminar de pintar o quadro da
compreensão das atuais tendências que o poder punitivo vem assumindo, mais uma vez recor-
rendo à instituição da prisão.
2. A re-privatização penitenciária
Realmente esta tentativa de descrição não ficaria completa se não mencionasse o fe-
nômeno da privatização das prisões. Sua importância está dada pela perplexidade que engen-
dra a situação de indeterminação entre os espaços públicos e privados que insiste em permear
as estruturas mais fundas dos Estados capitalistas. Parecem formar elementos constitutivos
deste tipo de constituição estatal. Por este motivo, ao fenômeno contemporâneo de re-
privatização dos presídios, se dedicará uma seção especial. Numa perspectiva que privilegia
as estratégias mais ou menos confrontadas com o poder concentrado nas mãos do Estado, este
fenômeno precisa ser concebido nos termos da tradicional distinção entre os espaços público e
privado. Desde seu surgimento uma relação de ambigüidade também marcou a história das
prisões neste contexto institucional. Sob o capitalismo, do ponto de vista institucional a prisão
sempre se submeteu a mutações. Assim garantiu sobrevida. As considerações antecedentes
dão prova de que o isomorfismo reformista a que FOUCAULT faz alusão continua em voga.
O momento presente, ao contrário das ideologias penais do Welfare State, não se ocupa do
fracasso retumbante da prisão; atualmente, aos áulicos discursos do poder pouco importa o
225
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas, p. 121.
100
evidente paradoxo instaurado entre os efeitos que se projetam sobre a prisão e aqueles que ela
efetivamente produz. A privatização dos presídios, nesta perspectiva, contribui para a leitura e
a interpretação da atual hipertrofia do sistema carcerário, percebida como simultânea ao in-
cremento de outras formas menos ostensivas de domínio espacial. Na verdade, não há aqui,
como aliás antes também não havia, qualquer paradoxo: FOUCAULT deixou claro que o fra-
casso da prisão em reduzir os crimes sempre conviveu com seu sucesso em produzir delin-
qüência.
226
Talvez seja possível afirmar que a história da prisão está marcada pela utilidade
de seu fracasso. No desempenho de sua gestão diferencial das ilegalidades, a prisão nutre uma
certa simpatia por uma delinqüência que ela mesma estabelece, torna visível e a faz condensar
simbolicamente todas as outras formas de infração à lei. Isto traduz uma utilização política da
delinqüência que não está distante de significar uma estratégia de re-legitimação da prisão e,
em último termo, do próprio poder do Estado.
O novo sucesso experimentado pelo aparelho penitenciário em tempos de mundializa-
ção do capital, deve boa parte de sua existência à generosa possibilidade de lucros que dele se
pode extrair. A utilização da força de trabalho no interior das prisões sempre as acompanhou.
A prisão nasce de exigências do mercado de trabalho e funciona como dispositivo de poder
disciplinar capaz de arrebanhar a força de trabalho a fim de torná-la útil e aqui uma série de
variáveis podem atribuir sentidos diferentes a tal utilidade - à produção na fábrica.
227
Um olhar que privilegia o desenvolvimento em estágios mais ou menos definidos das
forças produtivas, torna possível observar que a configuração de uma prisão, seja ela física,
arquitetônica ou disciplinar, está condicionada pela utilidade pretendida em termos de utiliza-
ção racional da força de trabalho nela armazenada. Componentes morais ou religiosos tam-
bém podem interferir, embora tendam a traduzir formas mais ou menos dissimuladas de impor
uma particular ética a respeito do trabalho. Por isso é que para compreender o momento atu-
almente experimentado, no qual se observa uma tendência em se delegar o controle e a gestão
do sistema prisional para o setor privado, convém fazer um breve sumário da tipologia que
este aparelho historicamente assumiu.
226
FOUCAULT, Vigiar e punir, p. 226; também BARATTA, Criminologia crítica e crítica do direito penal, p.
190, para quem esta seria a função direta do sistema punitivo: alimentar uma zona de marginalizados criminais,
inseridos num verdadeiro mecanismo econômico e político.
227
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral, p. 492.
101
2.1 Breve história das prisões privadas: o surgimento da penitenciária.
JUAREZ CIRINO procede à descrição histórica da privatização das prisões tomando
para análise dois tipos ideais de penitenciárias
228
concebidos ali no laboratório das estratégias
de punição determinadas por alterações econômicas: os Estados Unidos e seus conhecidos
modelos de Filadélfia e de Auburn.
O modelo filadelfiano de penitenciária era caracterizado por forte inspiração religiosa
Quaker, para o qual se concebeu uma arquitetura disciplinar e uma nova pedagogia da cor-
reção. A estratégia se dava mediante isolamento celular, oração, silêncio absoluto e trabalho
forçado. Nele a força de trabalho era empregada para atender a demandas específicas do poder
público, que assim se beneficiava do reduzido custo da mão-de-obra, derivado de fatores co-
mo a grande disponibilidade de força de trabalho, portanto, baixos salários e não-incidência
de tributos. Em suma, tratava-se de uma empresa pública, cuja atividade era dirigida segundo
as necessidades de um Estado pouco empreendedor mas que concentrava em suas mãos as
poucas obras infra-estruturais exigidas por uma economia basicamente agrícola.
229
Realmente
a produção realizada nestas penitenciárias é típica do capitalismo primitivo, de pequeno capi-
tal fixo e reduzida produtividade.
230
Por isso não podia atrair investimentos de capital privado
já que estes podiam encontrar no mercado livre de mão-de-obra um campo mais profícuo.
231
Com o surto de industrialização que logo se abateu sobre os Estados Unidos na segun-
da metade do século XIX, o modelo de Filadélfia conheceria sua decadência. Pois apesar de
permitir a produção em seu interior, a rigor ele era anti-econômico: o isolamento e o trabalho
unicamente artesanal que nele se executava produzia menos finalidades econômicas do que
terapêuticas. Certamente daqui adveio a utilização do vocábulo penitenciária e seu marcado
conteúdo religioso.
A industrialização exige o trabalho coletivo e o emprego de um grande contingente de
força de trabalho. Um novo sistema penitenciário que atendesse a esta necessidade, permitiria
228
As penitenciárias são uma espécie de prisão normalmente destinadas ao cumprimento de penas em regime
fechado; é dentro destes estabelecimentos que as tentativas de exploração do trabalho carcerário costumam ocor-
rer.
229
MELOSSI, Dario; PAVARINI, Massimo. Cárcere e fábrica. p. 166 e segs.
230
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito penal: parte geral, p. 496.
231
MELOSSI & PAVARINI, Ob. citada, p. 186.
102
a permanência de apenas alguns dos traços impostos pela religiosidade protestante. Além da
prestação de trabalho compulsória, o silent system, como garantia da manutenção da discipli-
na, podia ser preservado. O isolamento, porém, poderia ser noturno. Afinal, o trabalho fa-
bril, além de coletivo, exige que sua organização se num espaço, que apesar de extrema-
mente controlado, seja comum. O novo sistema de Auburn permitiu a combinação de um soli-
tary confinement noturno com um common work diurno.
232
É nesta configuração que a ingerência de empresários privados se torna marcante. Da-
qui surgiram formas de exploração do trabalho carcerário típicas do conluio entre repressão
pública e capital privado.
233
Duas delas convém ser registradas: o contract, no qual a explora-
ção da força de trabalho é concedida ao capitalista, mas a disciplina e a segurança continuam
a cargo do poder público. É caracterizado pela alta competitividade dos preços dos produtos,
decorrente da baixa remuneração do trabalho inferior ao do mercado livre. Já no leasing a
submissão da instituição penitenciária ao empresário capitalista é total. Por esta modalidade
contratual ele tanto dirige a prisão quanto organiza a produção como bem entende, mediante
o pagamento de um preço fixo ao Estado.
Mesmo o sistema de Auburn e os benéficos efeitos que ele proporcionava tanto para o
poder público quanto para o empresário privado não demorou a conhecer seus estertores. A
dificuldade de introdução das inovações tecnológicas no interior da penitenciária, os protestos
humanitários contra a desmedida exploração da força de trabalho de quem sequer de tempo
próprio dispõe para colocar no mercado, mas principalmente a concorrência desleal que o
trabalho carcerário efetivamente representa, quer para os trabalhadores livres, quer para os
produtos das indústrias, tornaram impossível a conversão definitiva das penitenciárias em
empresas produtivas.
234
232
MELOSSI & PAVARINI, Ob. citada, p. 190.
233
CIRINO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 498.
234
Segundo MINHOTO, Laurindo Dias. Privatização de presídios e criminalidade: a gestão da violência no
capitalismo global. o Paulo: Max Limonad, 2000, p. 73, desde a Grande Depressão (1930) o comércio de
mercadorias produzidas por presos é proibido, algo que, segundo o autor, se deve compreender como importante
vitória do movimento sindical organizado.
103
2.2 Breve história das prisões privadas: seu ressurgimento.
O íntimo entendimento público/privado das prisões estadunidenses vigorou até 1925.
Viria a ressurgir em 1976, coincidência ou não, juntamente com o restabelecimento da pena
de morte. Desde então figura na linha de frente do processo de encarceramento de massa. A
retomada da delegação da execução penal para a iniciativa privada surge, simultaneamente,
como sintoma e causa da explosão prisional e da correlativa expansão de seus custos. para
se ter uma idéia, de 1950 a 1980 a população carcerária americana cresceu cerca de 190%.
Uma expansão não desprezível. Proporcionalmente maior, no entanto, é aquela observada
entre 1976 e 1986: 115%. Esta tendência de incremento, da taxa de encarceramento propor-
cional ao tempo, vem se confirmando a cada ano. Se em 1995 a população norte-americana
efetivamente encarcerada atingia a cifra de 313 para cada 100.000 habitantes
235
, atualmente
ela ultrapassa tranquilamente os 700 para cada 100.000
236
– desprezados aqueles submetidos a
outras espécies de controle penal (plea bargain, probation, etc.)
Neste contexto de superpopulação carcerária sustentada pelo poder público, portanto,
se instala a crise, sobretudo em decorrência do ônus fiscal que ele acarreta. Se a tendência de
crescimento se mostrava forte no início da década de 1970, com o retorno da privatização
ela se acentua ainda mais.
237
238
Por isso a compreensão do fenômeno do ressurgimento da
privatização de presídios, não se sem o confronto com outro acontecimento de dimensões
maiores no qual ele está inserido. Até aqui muito se falou acerca da grande transformação
provocada, entre outras coisas, pela impressionante evolução das forças produtivas gerida
desde os centros privados de poder em seu exclusivo favor. Para isso o Estado mais uma vez
contribuiu e continua atuando. A definição dos rumos, a eleição de caminhos, enfim, a forma
de se confrontar problemas, sobretudo aqueles de ordem sócio-econômica, se dá segundo uma
235
Todos os dados até aqui relacionados neste tópico foram extraídos de MINHOTO, Ob. citada, p. 50 e segs.
236
Cf. CAVADINO, Michael; DIGNAN, James. Penal policy and political economy. Criminology & Criminal
Justice. v 6, n 5, 2006, p. 435-456. Para o final de 2005, a taxa de encarceramento dos EUA era exatamente de
737 para cada 100.00 habitantes, segundo o Bureau of Justice Statistics do Department of Justice dos EUA.
237
MINHOTO, Ob. citada, p. 49 observa que entre 1960 e 1970 a população carcerária se reduziu em torno de
10%. A partir dnão deixou mais de crescer; em 1975 ela experimentaria um crescimento da ordem de 22%.
WACQUANT, Loïc A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade.
Ano 7. n 11, p. 13-39, anota que da 1980 assiste-se um crescimento de 31,3%, para então conhecer um incre-
mento de 47,9% entre 1980 e 1985. Deste ponto em diante se desvela a explosão: entre 1985 e 1990 o cresci-
mento atingiria a cifra de 55,4%, para então se estabilizar em torno de 5% a 6% ao ano até 1995, e daí em diante,
em torno de 3,3%.
238
Simultaneamente à ascensão das taxas, nota-se uma “migração” da população carcerária rumo às instituições
privadas. Os dados mais recentes disponíveis do Bureau of Justice Statistics do Departamento de Justiça dos
EUA, dão conta de um crescimento de 74,2%, tendo alcançado 7% do total em 2005.
104
avaliação política cujas condições de possibilidade é, quando pouco, sancionada pelo Estado.
A crise fiscal por certo permite argumentar que a concessão da administração das prisões ali-
viaria as despesas correntes do Estado. Desta forma recursos públicos deixariam de ser gastos
com criminosos e poderiam refluir para outros destinos, de acordo com o interesse “público”
daqueles que, afinal, não cometem crimes.
Ora, com a reconhecida eficiência administrativa do setor privado, seria de se estimar
que a privatização das prisões permitiria a redução de custos e o aperfeiçoamento dos servi-
ços. Tal eficiência também traduziria a desburocratização da gestão dos presídios, a redução
de encargos trabalhistas e, naturalmente, debilitaria o poder de barganha dos sindicatos envol-
vidos no sistema. LAURINDO MINHOTO observa, porém, que a experiência concreta de
países que estão na vanguarda deste processo, como Estados Unidos e Grã-Bretanha, não con-
firma este “retrato edulcorado”. Na verdade, a privatização dos presídios tem se realizado sob
uma cortina de fumaça que, em vez de revelar sua eficiência, tem produzido o efeito contrá-
rio: a avaliação de seus benefícios em prol do Estado não tem sido possível. Isto sem conside-
rar implicações jurídicas, éticas e até simbólicas. Mesmo do ponto de vista dos gastos corren-
tes do Estado, os benefícios financeiros não se confirmam; parecem até caminhar em sentido
contrário.
239
A tentativa de compreensão do fenômeno, no entanto, reclama conhecê-lo mais de
perto, especialmente no que se refere aos modelos utilizados; em linhas gerais são quatro: a)
financiamento da construção de novos estabelecimentos; b) administração do trabalho prisio-
nal (que implica a manutenção da segurança e da disciplina nas mãos do Estado); c) provisão
de serviços penitenciários, tais como saúde, vestuário, alimentação, educação, etc., e o modelo
mais controvertido; d) a administração total (full-scale management), realizada mediante os
DCFM contracts, isto é, contratos para desenho, construção, financiamento e administra-
ção.
240
Os financiamentos para construção rendem altos lucros para as empresas e na verdade
servem como forma de escapar ao controle jurídico e popular: a superpopulação dos presídios
em unidades confederativas dos EUA, muitas vezes acarreta intervenção judicial e imposição
de construção de novas unidades prisionais. Para isto os estados devem submeter este incre-
mento orçamentário inesperado ao crivo da população, que normalmente o rejeita. O leasing
das construções, assim, oferece a vantagem de prescindir da consulta popular que o paga-
239
MINHOTO, Ob. citada, p. 82.
240
MINHOTO, Ob. citada, p. 70.
105
mento à iniciativa privada, embora continue a ser feito com o dinheiro público, é diluído por
vários anos.
241
As ambigüidades permanecem no fato de que a privatização tem se privilegiado da
“ponta fraca” do sistema, de modo que ela tende a se concentrar em instituições diversas da-
quelas que constituem seu “núcleo duro”, nas quais estão trancafiados os homens adultos e
condenados, cujo estágio evolutivo “mais alto” assenta nas supermax. Estas instituições, que
atualmente tem se designado por uma organização física baseada no isolamento total e na
vigilância plena, abocanham uma parte considerável de recursos financeiros. Por isso, a com-
paração entre os custos da iniciativa privada e da atuação pública não revela quase nada da
realidade do sistema penitenciário estadunidense. Ao privilegiar instituições destinadas a ado-
lescentes infratores e imigrantes, a iniciativa privada tem assumido apenas a sua “melhor par-
te”. Nem por isso seus lucros se revelam modestos.
242
Nos Estados Unidos, boa parcela da explicação está na assunção da prisão como me-
dida contra todo e qualquer desvio, revigorados pelas palavras de ordem do zero tolerance e
seus congêneres. LOÏC WACQUANT observa, por exemplo, que contados dez anos desde
que Ronald Reagan chegou à Casa Branca, os montantes das fatias orçamentárias destinadas à
habitação e às instalações prisionais se inverteram. Daí sua conclusão: a construção de prisões
tornou-se o principal programa de habitação social do país.
243
O fato é que simultaneamente
às privatizações, os gastos com o sistema prisional, longe de uma redução, têm experimentado
vertiginosa expansão.
244
Assiste-se aqui à reprise de um filme bastante conhecido, cujo roteiro é adaptado do
célebre binômio cárcere/fábrica, inspirado na indiferenciação entre público e privado que de-
signa o funcionamento do Estado capitalista. Esta forma de relação, segundo JUAREZ
241
MINHOTO, Ob. citada, p. 71.
242
Num outro trabalho MINHOTO, L D. As prisões do mercado. Lua Nova. n 55-56, 2002, p. 133-154, anota
que as duas maiores companhias envolvidas no negócio das prisões, Corrections corporation of América CCA
e Wackenhut corrections corporation, detentoras de ¾ do mercado global, experimentaram, em 1996, uma
valorização de suas ações em Wall Street, da ordem de 100% e 155%, respectivamente. Também WACQUANT,
Loïc. A ascensão do Estado penal nos EUA. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Ano 7. n 11, p. 13-
39.
243
WACQUANT, Ob. citada, p. 26.
244
Cf. WACQUANT, Ob. citada, p. 29, o custo médio anual de um prisioneiro é estimado em 22.000 dólares, ou
seja, três vezes mais do que paga em impostos cada família média americana. A isto se devem acrescentar os
nunca contabilizados custos indiretos do aprisionamento, com produção e impostos perdidos, além das despesas
de manutenção dos filhos de detentos pelos serviços sociais, etc.
106
CIRINO, superou o patamar de mera relação e se converteu em verdadeira simbiose,
245
a
ponto de haver quem queira promover uma “fertilização cruzada”
246
entre os setores público e
privado ao status de protagonista da tragédia carcerária. Através disto se advoga a necessidade
de se estabelecer um aprendizado recíproco, por meio do qual cada setor pode aproveitar do
outro o que tem de melhor: se o setor público deveria aprender como se administra racional-
mente um empreendimento econômico, o seu par bem faria em deixar-se instruir pela experi-
ência em fazer úteis os descartáveis.
Assim, finalmente, o capital volátil pode recuperar a cômoda exploração do trabalho
humano em regime de escravidão com a aprovação do detentor do monopólio da força, sem se
deslocar para as inóspitas regiões, onde a “civilização” insiste em não chegar.
247
245
CIRINO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 503.
246
MINHOTO, Privatização de presídios e criminalidade, p.91.
247
ARGÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem. Disponível em:
http://www.cirino.com.br. Acesso em: 06 set. 2006.
107
CAPÍTULO IV – O ESTADO DEPENDENTE E SUAS PRÁTICAS PUNITIVAS
O presente capítulo intenta traduzir a discussão realizada até este momento para a rea-
lidade dos países periféricos, enquanto Estados que têm sua inserção e manutenção na ordem
global capitalista definida segundo os interesses exógenos dos países hegemônicos de cada
período histórico. Evidentemente que, em maior ou menor medida, todos os países do subcon-
tinente latino-americano se inserem neste quadro. Quer-se com isso assinalar que os países da
América Latina e outras ex-colônias do mundo, não só não ousaram optar por outro padrão de
reprodução da vida social; eles tampouco puderam definir, por si mesmos, a forma de como
desenvolveria seu próprio capitalismo, de maneira que seu dinamismo vem sendo determina-
do pelas necessidades e pelas opções político-estratégicas dos países centrais.
Muitas características dos Estados capitalistas da periferia são comuns. Porém, formas
de assimilação e adaptação produzidas por cada um que se encontra nesta condição são distin-
tas. Por isso, ao propor uma interpretação acerca da especificidade do funcionamento do Esta-
do capitalista periférico ou dependente, embora muitos dos traços possam ser percebidos co-
mo comuns, cumpre privilegiar as peculiaridades dos processos experimentados e desenvolvi-
dos no Brasil. Para isso alguma variação metodológica, frente àquela opção adotada nos capí-
tulos anteriores, será necessária. Pois, embora se tenha dedicado algumas poucas palavras aos
discursos e às práticas concretas dos sujeitos com que tais discursos se defrontam, até o mo-
mento isto ocorreu de uma forma um tanto quanto residual. Assim como se deixou registrado
na introdução desta dissertação , a compreensão das especificidades do desenvolvimento do
Estado brasileiro e das práticas punitivas correspondentes, é necessário entender um pouco
mais das especificidades do seu padrão geral de sociabilidade e de dominação política. Por-
tanto, convém dedicar um pouco mais de atenção ao desenvolvimento histórico de certas idéi-
as e, talvez mais importante, às permanências que estas idéias projetam no imaginário nacio-
nal. Como assinalou ZAFFARONI, em nossa região marginal formas de exercício de poder
nem sempre geram um saber que se explicita em um discurso elaborado ou qualificado de
teórico.
248
248
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Buenos Aires: Ediar, 1998, p. 78.
108
Esta certa alteração metodológica, porém, não implicará um demasiado distanciamen-
to do fio que nos conduziu até aqui. Com isto quero assinalar que não importará, por exemplo,
a adoção daquela perspectiva culturalista, que desfrutou e ainda goza de tanto prestígio no
pensamento social brasileiro. Sem embargo do respeito que merece e da importância que pro-
jeta, tal ponto de vista tende a se opor à interpretação que privilegia o desenvolvimento das
forças produtivas e, principalmente, do reflexo que produzem nas relações sociais que lhes
são afetas. Em suma, sem afastar-se demasiadamente do eixo ao qual esta investigação está
presa, o que a atividade de pensar a realidade brasileira parece exigir é o acréscimo de deter-
minados temperos nesse caldeirão investigativo, que, apesar de constarem na receita anteri-
or, na medida então utilizada não despertariam os aromas necessários a tornar inteligíveis seus
sabores mais particulares e, por isso mesmo, únicos. Todavia, parece possível isolar, em meio
a tantos aspectos estruturais e dinâmicos dos mais variados matizes, a base material do pro-
cesso de construção da existência brasileira e estabelecer, por meio das determinações que ele
evidencia, as estruturas, os dinamismos e funções da sociedade de classes constituída pelo
tipo de capitalismo dependente que nos é particular.
De qualquer forma, tal reavaliação de rota deve servir para marcar que o privilégio e-
pistêmico atribuído ao desenvolvimento das forças produtivas e às relações que lhe corres-
pondem nada tem de determinista. O que um olhar histórico que analisa os sistemas penais
como um todo o que lhe distingue radicalmente da mera recopilação de leis e códigos que
designa a historiografia jurídico-penal tradicional precisa propiciar é a compreensão mais
completa do conjunto coordenado das práticas que programam a criminalização e determinam
sua incidência, invariavelmente seletiva. A respeito das leis e códigos é importante ainda re-
gistrar que, em função do enfoque adotado, sua análise não constitui objeto desta dissertação.
Alguma referência, quando encontrada, será pontual e servirá para exemplificar ou traduzir o
argumento que se for desenvolvendo.
Talvez a melhor ferramenta conceitual para a compreensão do caráter dependente do
capitalismo periférico, conseqüentemente, de sua específica organização administrativo-
funcional, sejam as noções de atualização histórica e aceleração evolutiva, desenvolvidas
pela aguçada visão de DARCY RIBEIRO. Elas partem do pressuposto comum segundo o qual
o subdesenvolvimento econômico, social e político dos países periféricos é determinado pela
oposição da pujança dos países centrais nestes mesmos domínios, sobretudo no domínio eco-
109
nômico e em termos de acumulação e distribuição capitalistas. Quer isto significar, para atin-
girmos os níveis alcançados pelo centro, que não nos falta um melhor capitalismo ou a aplica-
ção mais eficaz de suas regras. Muito pelo contrário: enquanto sistema global, o capitalismo é
estruturado para distribuir os frutos de sua expansão com base na desigualdade.
249
Esta sua
característica constitutiva parece expressar-se mais nitidamente em tempos de globalização
econômica e de tendência à inferiorização dos Estados nacionais frente às grande corporações
capitalistas.
250
DARCY RIBEIRO define o conceito de aceleração evolutiva representando-o como
processos de desenvolvimento que renovam seu sistema produtivo e suas instituições sociais,
rumo a um modelo mais avançado de formação sócio-cultural, ou seja, como povos que exis-
tem para si mesmos”. Experimentam ou desenvolvem processos de atualização histórica os
povos que, em sua história, se desenvolvem na medida de seu engajamento compulsório em
sistemas mais evoluídos tecnologicamente, com evidente perda de autonomia, tendendo a
repercutir até mesmo em sua destruição como etnia.
251
Em suma, o decisivo é a forma mais ou
menos autárquica segundo a qual o ingresso no sistema capitalista global é definido. Para isso
não menos importante é a deliberação pela constituição de um mercado interno forte, no qual
a fruição da riqueza social não seja um sonho ao mesmo tempo etéreo e inalcançável na vida
terrena. Desta forma, a par das potencialidades naturais e étnicas, por conta sua inserção semi-
servil ao mercado mundial, o capitalismo brasileiro pode ser caracterizado como subdesen-
volvido porque sua passagem rumo a estágios não econômicos, mas sociais, culturais e
políticos a que a alta produtividade e a industrialização induzem, foi bloqueada. Esta forma
de inserção foi determinada pelo espoliativo processo de colonização e pelas diversas formas
249
Cf. RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. São Paulo: Companhia das Letras/Publifolha, 2000, p. 29: “os
povos desenvolvidos e subdesenvolvidos do mundo moderno não se explicam como representações de etapas
distintas e defasadas da evolução humana. Explicam-se, isto sim, como componentes interativos e mutuamente
complementares de amplos sistemas de dominação tendentes a perpetuar suas posições relativas e suas relações
simbióticas como pólos do atraso e do progresso de uma mesma civilização. No mundo contemporâneo são
desenvolvidas as sociedades que se integram autonomamente na civilização de base industrial por aceleração
evolutiva, e são subdesenvolvidas as que nela foram engajadas por incorporação histórica como ‘proletariados
externos’, destinados a preencher as condições de vida e de prosperidade dos povos desenvolvidos com os quais
se relacionam.”
250
ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas, p. 69-70. “nossa região latino-americana e seu controle social
são produto da transculturação protagonizada, primeiro, pela revolução mercantil e logo pela revolução industri-
al, que nos incorporou às suas respectivas civilizações universais ou planetárias, como também que agora nos
confrontamos frente a um terceiro momento a revolução tecno-científica cujas conseqüências podem ser tão
genocidas como as anteriores. Para nós, o genocídio em ato que implica o exercício de poder dos sistemas penais
de nossa região marginal já é parte desse processo.”
251
RIBEIRO, O processo civilizatório, p. 27 e segs; do mesmo autor, As Américas e a civilização. 4 ed. São
Paulo: Vozes, 1983, p 34 e segs.
110
de submissão a forças externas que lhe sucederam. Evidentemente, o peso do escravismo não
pode ser desdenhado, pois ele certamente constitui o elemento determinante da inserção do
Brasil na modernidade capitalista que já se anunciava quando aqui aportaram os europeus.
Mas não foram apenas os fatores externos de influência e de poder militar ou político
o que decidiu pelo bloqueio do desenvolvimento capitalista brasileiro. Aqui reside a impor-
tância de um estudo voltado ao funcionamento do Estado e das funções específicas que de-
terminado aparelho estatal se encarrega de cumprir. Poder-se-ia imaginar que, sem a decisiva
cooperação do Estado e, através dele, das elites políticas e econômicas que desfrutam de aces-
so privilegiado às suas estruturas, a contenção do desenvolvimento social, econômico e políti-
co brasileiros não teria acontecido. O traço mais indelével deste bloqueio - e por isso de um
poder simbólico não desdenhável - historicamente sempre consistiu nas altas taxas de explo-
ração da força de trabalho, a começar pela insistência da manutenção da escravidão a despei-
to da considerável dinamização que as forças produtivas foram experimentando.
Na parte que segue da dissertação, inicialmente, cumprirá explicitar as especificidades
do Estado capitalista de tipo periférico, para logo ingressar nas peculiaridades de seu funcio-
namento concreto e, de modo especial, no esquadrinhamento de sua faceta punitiva neste qua-
dro de heteronomia econômica e política. Em seguida, será momento de tomar individualmen-
te cada um daqueles que NILO BATISTA chamou de sistemas penais brasileiros. Se é possí-
vel separar em momentos distintos o desenvolvimento das práticas punitivas levadas a cabo
pelo ou com a permissão do Estado, por comodidade analítica, tal separação pode mais ou
menos coincidir com as transições políticas experimentadas pela história nacional. Daí a se-
guinte periodização dos sistemas penais brasileiros: colonial-mercantilista, imperial-
escravista, republicano-positivista e o atual, que NILO BATISTA denominou de sistema pe-
nal do capitalismo (periférico) tardio.
252
Este critério talvez não se afigure o mais exato, mas
fornece limites mais ou menos precisos que marcam momentos de transição também na “men-
talidade nacional” dominante, que por vezes resiste às modificações das forças produtivas e
dos avanços culturais experimentados.
252
BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. Revista da Faculdade de Direito Cândido Mendes. v 11. Ano
6, Rio de Janeiro, 2001, p. 163-178.
111
1. Estado dependente e dominação política
Em termos econômicos os Estados dependentes podem ser considerados os grandes
responsáveis pela acumulação originária do capital, a que corresponde, segundo a linha evolu-
tiva traçada por DARCY RIBEIRO, a Revolução Mercantil e o surgimento dos impérios mer-
cantis salvacionistas, na passagem do século XV ao XVI.
253
Contudo, os benefícios e efeitos
multiplicadores que as áreas coloniais desde então produzem, refluem quase que integralmen-
te para as economias centrais, “que funcionam como centros dinâmicos de apropriação das
maiores quotas do excedente econômico gerado.”
254
Com isso as interferências que o desen-
volvimento de um mercado capitalista necessariamente produz, sobretudo na estratificação
social e na distribuição de poder social, foram bloqueadas de forma, por assim dizer, contrária
à sua própria “natureza”. Desde a colônia, a coroa portuguesa estabelecia normas que não
permitiam que a produção colonial se subordinasse aos princípios de uma organização propri-
amente capitalista.
255
Para que isso se tornasse possível, foi necessária uma decisiva participa-
ção das elites dirigentes internas. A forma de desenvolvimento do capitalismo praticado no
Brasil e na maioria dos demais países subdesenvolvidos exige que se estabeleça uma divisão
dos frutos econômicos entre uma pequena e privilegiada franja da população autóctone e as
metrópoles do capitalismo hegemônico. Pouco ou quase nada resta, assim, para ser dividido
entre as classes subalternas, induzindo a uma sobre-apropriação e a uma sobre-exploração
capitalistas. Para isso as estruturas do capitalismo dependente devem ser preparadas, a partir
de dentro, para garantir as condições de repartição do excedente econômico e para renovar as
condições de reincorporação ao espaço econômico, social e político do lado de fora. Estabele-
ce-se, desta forma, um superprivilegiamento das frações que, na sua origem, correspondem
aos grandes proprietários de terras, cujos custos diretos e indiretos são suportados pelas clas-
ses de reduzido poder econômico e baixo capital político.
Neste contexto estrutural de unidade mercantil, conforma-se uma das deficiências
constitutivas do capitalismo dependente, compreensíveis mediante a capitalização das eco-
nomias centrais metropolitanas ao custo da descapitalização das colônias. Segundo CLÓVIS
253
Cf a conhecida terminologia de RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório, p. 110 e segs.
254
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar
editores, 1973, p. 30.
255
FERNANDES, Ob. citada, p. 48.
112
MOURA, a dificuldade de acumular capitais irá se refletir no modelo de nações que irão sur-
gindo nas regiões colonizadas que, por este mecanismo, se tornam carentes de um estoque de
capitais próprios para suas inversões. Isto irá igualmente determinar, em linhas gerais, o mo-
delo subseqüente de capitalismo dependente, bem como influirá na estruturação e na forma de
comportamento entre as classes, com evidentes reflexos sobre os padrões de dominação polí-
tica.
256
Em tais padrões, no Brasil de permanente capitalismo dependente, a dominação carece
completamente de legitimidade e o dispositivo da disciplina, embora continue a visar a docili-
zação dos sujeitos, se revela incapaz de cumprir seus desígnios. Por isso ele se desnatura e
passa a operar no registro da realização do extermínio, que se exprime como uma forma de
violência que não é econômica ou institucional, mas direta e física. Muito menos consenso
do que coerção, pois em vez de a política estatal se ocupar da gestão da força de trabalho, teve
sempre de dedicar maior atenção em cuidar da gestão da pobreza.
Explica-se assim, por exemplo, a persistência da escravidão no Brasil, a despeito da
considerável evolução nos campos das ciências e da tecnologia que ele também pôde experi-
mentar, ainda que de forma extremamente mal distribuída. A empresa colonial é em si desi-
gual e desequilibrada: por um lado ela baseia-se na caudalosa remessa de capitais para a me-
trópole, deixando aqui uma quantidade de capital insuficiente. Este restante, quando retornava
na forma de manufaturas, invariavelmente refluía para a metrópole na forma de capital.
257
Por
outro lado, era esta mesma metrópole quem determinava os preços dos produtos que compra-
va. Desta maneira, a renda dos senhores das plantagens, poderia advir do não-pagamento
da força de trabalho que empregavam. Não assombra, portanto, que o agente econômico mais
bem sucedido do escravismo colonial, pelo menos em sua primeira fase, fosse justamente o
traficante de escravos.
Não pode também assombrar que, enquanto as fases evolutivas determinadas pelo a-
vanço das forças produtivas vão se sucedendo, do mercantilismo à revolução industrial e as-
sim por diante, no Brasil remanesce o atraso econômico a se projetar nos domínios social,
cultural e político. Esta condição de esclerose, mais se aprofunda à medida que mais se dis-
tancia dos países que não padeceram com a escravidão moderna ou mesmo dos que não a
mantiveram por tanto tempo e de modo tão intenso. Assim, malgrado os resíduos da pujança
econômica européia, que no Brasil vão alcançando as maiores zonas urbanas (por exemplo,
256
MOURA, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983, p. 20-21.
257
IANNI, Octavio. Escravidão e racismo. São Paulo: Hucitec. 1978, p. 22.
113
desde o século XIX: iluminação a gás, bondes com tração animal, telefone, cabo submarino,
etc), estas modificações não se refletiam sobre o modo de produção mergulhado na contradi-
ção de ser a um tempo capitalista e escravista. O subdesenvolvimento se perpetuaria uma
vez que o atraso se torna estrutural. Assim, enquanto em Paris estoura a Comuna, aqui come-
morávamos a promulgação da Lei do Ventre Livre, ambas no ano de 1871; enquanto na Euro-
pa o capitalismo era essencialmente colocado sob questionamento, nosso parlamento se batia
para não aprovar a lei que extinguiu o tráfico de africanos.
258
Neste quadro estrutural, a evolução do capitalismo não pode levar, da dependência à
autonomização, à maneira de uma força centrífuga que dissemina, do centro para as margens,
seus frutos à medida que evolui. Antes conduz ao aperfeiçoamento de uma ordem que, mesmo
se tornando competitiva, deve combinar o controle totalitário do poder com a cruel exploração
da massa de trabalhadores e despossuídos de toda ordem.
259
Para isso ser possível é necessário
que a remuneração pela venda da força de trabalho se submeta a uma contenção repressiva
que tende a inviabilizar a constituição de um mercado interno dinâmico e auto-suficiente.
Mesmo a internalização e o próprio desenvolvimento de tecnologias produtivas é desviada de
seu curso previsível para não redundar no incremento da compensação econômica da classe
trabalhadora pela venda de sua força de trabalho. Assim podem coexistir altas taxas de produ-
tividade com baixa remuneração salarial. Desta forma o modelo parece se completar: os salá-
rios dos países do capitalismo dependente devem girar, no máximo, em torno do necessário à
subsistência. Assim talvez seja possível dizer-se que diferenças salariais e escoamento de flu-
xos de valor para países dominantes são manifestações de um mesmo fenômeno. Seria lícito
antecipar, portanto, que o nível dos salários não é ditado pelas leis do mercado, mas por deci-
sões políticas de um aparelho razoavelmente consciente da sua forma de inserção no mercado
mundial.
O modelo de desenvolvimento econômico a que esta descrição induz, baseia-se, gros-
so modo, na monocultura de produtos primários destinados à exportação. Surpreendentemen-
te, depois de atravessar mais de cinco séculos, continua em vigor e constitui o setor no qual o
avanço tecnológico, por conseqüência, as altas taxas de produtividade (muitas vezes as maio-
res do mundo), se estabeleceu como regra. Não é preciso ir longe para se entrever que este
notável “desenvolvimento” em termos de produtividade, além de consentido desde fora, sem-
258
MOURA, Ob. citada, p. 23.
259
FERNANDES, Ob. citada, p. 76.
114
pre se revelou funcional aos países do capitalismo central. Esta produtividade tende a se dis-
seminar nos setores econômicos pouco sofisticados, de reduzido potencial de valorização, que
por isso mesmo pagam menores salários. Estas circunstâncias também não impediram a ex-
pansão de outros setores da economia, inclusive da indústria. Mas suas limitações são muito
evidentes, e afora momentos de “desobediência política” de determinadas composições de
forças que alcançam o poder não constituíram uma regra ou uma política consciente de de-
senvolvimento econômico capaz, quer de espraiar seus efeitos para os setores mais sofistica-
dos da economia, ou mesmo de disseminá-los para os domínios sócio-cultural e político. Ao
contrário do que concluem CARDOSO e FALETTO,
260
enquanto regra, pelo menos no Bra-
sil, o fenômeno da (parcial) industrialização não pode ser percebido como um movimento
autárquico levado a efeito em benefício do desenvolvimento nacional como um todo. Parece
improvável que sua realização episódica e aparentemente controlada, tenha considerado a
força de trabalho também como parte integrante do mercado consumidor interno. Claro que
isto não significa que inexistiu certa diferenciação social, consequentemente, no século
XIX, o surgimento de alguns organismos financeiros e comerciais de caráter urbano. Diferen-
temente das “economias de enclave”, caracterizadas pelo controle externo direto sobre seu
setor produtivo, o Brasil faz tempo exerce a forma possível de controle de seu processo pro-
dutivo e experimenta crescimento econômico. Todavia, este crescimento orienta-se princi-
palmente para incrementar a fatuidade dos grupos dominantes, internos e externos. Ocorre
que as condições de preços e cotas do comércio internacional dependem dos países que con-
trolam o mercado internacional. O decisivo aqui é a opção por uma economia de base agro-
exportadora, que sequer foi combinada com uma política que permitisse a fixação de pelo
menos uma parte mais substancial do excedente econômico no âmbito interno. O surto de
industrialização mundial, levado a efeito primeiramente pela Inglaterra, por exemplo, inter-
namente não repercutiu na importação, desta mesma Inglaterra, dos capitais aqui tão escassos,
salvo na medida necessária para assegurar o abastecimento ininterrupto de bens primários.
A partir deste quadro de exploração econômica aparentemente paradoxal em termos
capitalistas, é que se pode compreender como o poder econômico se expressa como domina-
ção social,
261
e, enquanto poder político, pôde ele contingenciar e manipular os dinamismos
intrínsecos à evolução das forças produtivas. Por outras palavras, urge compreender as estra-
260
CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina. 2 ed.
Rio de Janeiro: Zahar editores, 1973.
261
Nesse sentido, CARDOSO & FALETTO, Ob. citada, p. 23.
115
tégias de dominação desenvolvidas e a importância decisiva reservada ao poder punitivo nos
países periféricos.
A partir daqui se dividem os espaços destinados aos usos privado e público da violên-
cia de que o Estado deveria ter o monopólio. A incorporação controlada da inserção do Brasil
no capitalismo global não poderia dar-se sem uma forte ordenação política, realizável des-
de os aparelhos do Estado. Isto é capaz de fixar os contornos de uma premissa cara à presente
investigação: o Estado brasileiro tem se distinguido por experimentar períodos de debilidade
política mais ou menos alternados por fases de extrema demonstração de força repressiva. Sua
regra de funcionamento, porém, se assenta na inequívoca tendência à utilização da violência
física direta, deixando entrever uma sintomática fragilidade institucional derivada da ausência
de legitimidade. Esta manifestação sintomática não é pouco freqüente em organizações políti-
cas cujo exercício da dominação não encontra na população que subjuga a percepção ou a
crença na legitimidade de sua existência: um capitalismo dependente gera, ao mesmo tempo,
um Estado que precisa demonstrar o que não é. Noutros termos, por não desfrutar de legitimi-
dade, um Estado com estas características necessita colocar em funcionamento com muito
mais freqüência, direta ou indiretamente, a violência física de que tem o monopólio. Assim
pensa conquistar autoridade, mas nem por isso consegue garantir este monopólio. Pois, outro
fenômeno característico de Estados com esta configuração repousa na repartição pouco crite-
riosa do exercício do poder punitivo que não é capaz de evitar. Isto pode ser interpretado, de
um ponto de vista institucional, como se o Estado não revelasse uma superioridade ética fren-
te às outras manifestações de violência que necessariamente permeiam a existência comum.
262
Isto não desloca o Estado do centro de nossas atenções. Aliás, o fato de não exercer com ex-
clusividade a violência, não traduz que o Estado consinta com esta expropriação, mas apenas
que não consegue desempenhar as tarefas que o quadro institucional burguês lhe reservou.
263
Normalmente isso deságua na expressão de uma violência, até gratuita mas não desnecessária,
que se insinua como regra de coesão social.
262
Consoante observa HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do Direito Penal. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p 400, “o Estado sancionador necessita da predominância moral em face do
delito, a justiça penal não se justifica através do terror aos delitos, senão através de sua capacidade de assegurar
os direitos dos participantes no conflito desviante.”
263
Segundo BENJAMIN, Walter. Crítica da violência: crítica do poder. In: Documentos de cultura, documentos
de barbárie . São Paulo: Cultrix/USP, 1986, p. 166, o ponto em que o Estado moderno exprime esta debilidade
que lhe é imanente, no qual ele não pode mais garantir, através da ordem jurídica, seus fins empíricos, é o do
“direito” da polícia.
116
Desta forma, a política criminal do Estado periférico tende a reduzir-se a mera política
penal, como assinala JUAREZ CIRINO DOS SANTOS. Ora, a política criminal, segundo
uma concepção que reconhece sua complexidade, não se reduz a um saber endereçado apenas
aos legisladores; senão constituiria apenas uma política legislativa ou legal. Além de ser um
ramo da ciência política, ela deve constituir a estratégia institucional e social do Estado para
fazer frente ao problema do crime e da criminalidade, inclusive mediante a redução das con-
dições sociais adversas que explicam boa parte de sua existência.
264
Se a associação entre e-
mergência político-militar e crise econômica é verdadeira
265
, a constituição institucional brasi-
leira constitui local apropriado para sua comprovação empírica.
O estabelecimento da violência física como regra de enfrentamento das resistências ao
desenvolvimento da dependência, que interessa a uma parcela da população numericamente
irrelevante, resulta, deste modo, como uma necessidade imprescindível: só o acesso privilegi-
ado às estruturas do Estado permitiria a perpetuação, ainda em vigor, deste esquema de domi-
nação política, a despeito dos períodos de ascensão de representantes mais organicamente
ligados às classes trabalhadoras ou despossuídas, ao governo. O problema é que alianças es-
tratégicas para as quais os grandes interesses privilegiados tivessem que ceder em alguma
medida, quando se revelou possível, logo teve que recuar em razão de represálias, corporifi-
cadas em armas ou não. As contradições que se formaram desde a colônia, cujo fundamento
econômico se baseou na apropriação de grandes áreas de terra e na abundância de mão-de-
obra gratuita, não puderam sequer ser amainadas, dada a resistência em se abrir mão dos pri-
vilégios. Ao Brasil parece realmente caber o vaticínio de que a conquista do governo, median-
te os mecanismos da democracia representativa, nem de longe traduz a conquista do poder do
Estado.
264
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial, p. 1, afirma que
“no Brasil e, de modo geral, nos países periféricos, a política criminal do Estado exclui políticas públicas de
emprego, salário, escolarização, moradia, saúde e outras medidas complementares, como programas oficiais
capazes de alterar ou de reduzir as condições sociais adversas da população marginalizada do mercado de traba-
lho e dos direitos de cidadania, definíveis como determinações estruturais do crime e da criminalidade; por isso,
o que deveria ser a política criminal do Estado existe, de fato, como simples política penal, instituída pelo Códi-
go Penal e leis complementares em última instância, a formulação legal do programa oficial de controle social
do crime e da criminalidade: a definição de crimes, a aplicação de penas e a execução penal, como níveis suces-
sivos da política penal do Estado, representam a única resposta oficial para a questão criminal”. Sobre o conceito
complexo de política criminal, vale a pena ver também ZAFFARONI; BATISTA, et. al. Direito penal brasileiro
I, 2003, p. 275 e HASSEMER, Introdução aos fundamentos do Direito Penal, p 415 e segs.
265
AGAMBEN, Estado de exceção, São Paulo: Boitempo editorial, 2004, p. 29.
117
Fica assim inadiável recorrer a um clássico do pensamento político brasileiro, sempre
empenhado em desmascarar a renitente conciliação bradada por quem diz almejar transforma-
ções: segundo RAYMUNDO FAORO o domínio político brasileiro é privativo de um esta-
mento burocrático.
266
O estamento, que tem origem na dominação tradicional de tipo patri-
monial, no Brasil revela toda sua plasticidade estrutural e burocratiza-se sem despatrimonia-
lizar-se. Assim parece tornar-se mais insidioso, uma vez que quem manipula o poder insinua-
se por entre os aparelhos do Estado e não deve contas a nenhum senhor personificado, apenas
ao “senhor” da perpetuidade de relações, cujos favores que presta, são devotados, não a de-
terminadas pessoas, mas a interesses que parecem ter vida própria, a despeito de quem deles
usufrui. O estamento burocrático a que alude FAORO não se confunde com as elites dirigen-
tes e parece pairar sobre as classes, embora, dentre estas, manifeste claramente suas preferên-
cias - uma camada social amorfa, “impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo
impermeável de comando”. Contraditoriamente, alia plasticidade a uma rigidez própria do que
se cristaliza e se faz duradouro. O resultado é uma impressionante autonomia frente aos con-
flitos e tensões da luta entre as classes, que elas parecem não lhe dizer respeito. Desta forma,
o estamento burocrático não é quem manipula o poder do Estado, porque com ele se confun-
de; pouco importa quem governe. Mais significante é que siga definindo a direção da política,
condicionando o funcionamento das instituições e, principalmente, da economia.
267
No Brasil
seu combustível está nos recursos financeiros que o Estado desvia ou reserva mediante sua
atuação fiscal concentradora de renda. O capitalismo aqui praticado, para FAORO, nunca foi
liberal porque é dirigido politicamente pelo estamento e sua pedra de toque, herança lusitana
das mais claras, é o comércio: “No molde comercial da atividade econômica se desenvolveu a
lavoura de exportação, da colônia à República, bem como a indústria, seja no manufaturismo
pombalino, no delírio do encilhamento, quer nas estufas criadas depois de 1930.”
FLORESTAN FERNANDES observa ainda a ocorrência de uma exacerbação das re-
lações de poder, a que corresponde um específico arranjo institucional, que combina padrões
democráticos com padrões autocráticos ou mesmo autoritários de comportamento político.
Desta maneira o Estado se converte na “instituição-chave de autodefesa das classes privilegi-
266
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. v 2. 3 ed, Porto Alegre:
Globo, 1976, p. 733 e segs.
267
FAORO, Ob. citada, p. 737: “A compatibilidade do moderno capitalismo com esse quadro tradicional, equi-
vocadamente identificado ao pré-capitalismo, é uma das chaves da compreensão do fenômeno histórico portu-
guês-brasileiro, ao longo de muitos séculos de assédio do núcleo ativo e expansivo da economia mundial, cen-
trado em mercados condutores, numa pressão de fora para dentro.”
118
adas e de controle da sociedade nacional pelas elites de classes.”
268
Quer isto dizer que a con-
tenção do dinamismo do sistema de poder é mais marcada do que aquela realizada no âmbito
da instauração da ordem competitiva. Mesmo a superação dos regimes estamental e de castas
não redundou na redução do espaço político usufruído para imposições autocráticas pelas eli-
tes dirigentes.
Isto constitui uma debilidade institucional que se exprime como uma incompatibilida-
de radical, entre o superprivilegiamento de classe e a adoção de sistemas políticos representa-
tivos, por exemplo. Conduziu igualmente a uma crise estrutural e crônica das instituições polí-
ticas e a carência de autoridade das mesmas. Para tanto, o enrijecimento dos mecanismos de
controle social, como forma de reação extrema de autodefesa, acabou se “institucionalizan-
do”. O rescaldo desta conformação político-institucional é o Estado tipicamente latino-
americano: um Estado forte que necessita dar demonstrações de força com demasiada fre-
qüência, porque não consegue, senão pela força, resolver as contradições de uma sociedade de
classes dependente e subdesenvolvida.
269
Num modelo de acumulação que FLORESTAN FERNANDES caracteriza como “du-
al e de apropriação repartida do excedente econômico” que realizado pelos interesses
privados externos e internos no interior do qual, ao mesmo tempo, a grande parcela da po-
pulação é excluída da fruição dos frutos que produz, o crescimento econômico planificado
nestes termos não pode abrir mão do patrocínio e do amparo direto do Estado. Através da atu-
ação do Estado é possível a reduzida fração da população privilegiada promover o desenvol-
vimento seletivo da economia privada através de meios públicos e oficiais.
Certamente em função destes elementos, o padrão de hegemonia burguesa que se ins-
taura e se reproduz, não responde a determinado estágio da evolução do capitalismo. No caso
brasileiro, estes resquícios sempre foram bastante estudados, por vezes até demasiadamente
enaltecidos. O fato, no entanto, é que deles não se pode abrir mão. Traduzem “permanências”
de um tipo de dominação patrimonialista, cujo mote assenta na preservação de privilégios a
atravessar todos os níveis da existência social. Mesmo quando deve expressar seu poder de
punir, o Estado tampouco deixa de manifestar predileções que afinal constituem sua estrutura.
Da passagem de um estágio a outro do avanço das forças produtivas e de rearranjo político, as
268
FERNANDES, Ob. citada, p. 103.
269
FERNANDES, Ob. citada, p. 105.
119
classes oligárquicas - cuja origem remontam à constituição das grandes propriedades rurais
descendentes das capitanias (depois sesmarias, grandes fazendas...) - à medida que sofrem os
efeitos das mutações econômicas, têm que se aliar aos novos grupos cuja ascensão era irresis-
tível.
270
De maneira que, apesar das fases de evolução que se vão sucedendo, o modelo de
hegemonia burguesa permanece monolítico e com grandes cargas de um tipo de dominação
que, à falta de uma melhor denominação, poder-se-ia genericamente chamar de “tradicional”.
Para ele alguns códigos são importantes, como por exemplo, o genético e aquele baseado na
dependência dos submetidos ao seu senhor. O modelo de integração ao capitalismo adotado
no Brasil precisa de uma “concertação” que lhe é muito própria, grosso modo baseada tanto
em mecanismos de estratificação de corte classista como naqueles estamentais de hierarquiza-
ção. Neste mal definido emaranhado, baseado em práticas políticas regidas pelo favor e pelo
privilégio, espécie de “parceria público-privada” que vigorou sobretudo no período imperial,
Estado e Casa-Grande nunca se contrapuseram em busca do monopólio do aparato patrimo-
nial da política, a não ser episodicamente.
Desenha-se, deste modo, um esquema de dominação que nada tem de legítimo. Antes
baseia-se na criação de um nculo de dependência entre despossuídos, mesmo livres, e seu
senhor. A dominação, quando não conquistada na base da violência direta, é conseguida atra-
vés da produção de comportamentos adequados por parte daqueles que se vêm em débito com
o bondoso senhor. Bondade que resulta da permissão a um pobre em ocupar um pequeno pe-
daço de sua grande propriedade de terras, para dali retirar sua subsistência. Um verdadeiro
favor. Sem direito a nada, é natural que qualquer benefício, qualquer esmola, torna quem a
recebe devedor. O direito garantido o faria, ao contrário, credor.
Ao descrever a forma típica de dominação patrimonial e patriarcal, WEBER observou
que, de modo geral, “ao lado da onipotência diante do indivíduo dependente existe a impotên-
cia perante o conjunto deles.”
271
A coisa parece mudar de figura quando se observa um avan-
çado processo de centralização de poder político, contraditoriamente simultâneo à perpetua-
ção do poder local pleno nas mãos do senhor de terras, pelo menos nos limites de sua propri-
edade. Para isso acontecer foi necessário que o Estado consentisse com esta ambivalência. O
270
CARDOSO & FALETTO, Dependência e desenvolvimento na América Latina, p. 15: “ainda quando a ‘soci-
edade tradicional’ haja transformado em grande medida sua face econômica, contudo, alguns de seus grupos não
perderam o controle do sistema de poder, apesar de terem sido obrigados a estabelecer um sistema complexo de
alianças com os novos grupos que surgiram.”
271
WEBER, Max. Economia e sociedade. v 2. Brasília: UnB/São Paulo: Imprensa Oficial, 2004, p. 239.
120
que caracteriza a dominação tipicamente brasileira, pois, é justamente esta justaposição entre
o poder central e as ilhas de poder locais, cuja existência, em determinados períodos da histó-
ria nacional, mais do que sancionada, foi consagrada pelo poder central. Por certo coisa seme-
lhante acontecia nos Estados absolutistas europeus. A diferença parece residir no regime de
dominação interno às ilhas de poder: além de total, ou baseava-se na força bruta e na expro-
priação absoluta da força de trabalho, ou na concessão de dádivas capazes de fazer daquele
que as recebe verdadeiro servo. Ainda que quem as seja o Estado. Em termos teóricos, o
traço mais notável do padrão de dominação nacional é seu sincretismo frente aos modelos
descritivos forjados desde as metrópoles. À dominação exercida no Brasil falta um requisito
fundamental: a legitimidade. Para tanto, mais do que em qualquer descrição ideal-típica, a
intervenção estatal se revela, de fato, como o motor da dominação burguesa, que têm conse-
guido manter o controle sobre as estruturas e funções do aparelho do Estado, mediante a con-
solidação de um Estado tecnocrático que tem experimentado sucesso na tarefa de manter-se
sob proteção dos débeis avanços conquistados pelas classes subalternizadas, por intermédio
de eleições, por exemplo.
A dominação brasileira, em sua configuração ideal-típica, quando não conquistada
mediante o exercício direto da violência física, constitui uma espécie de paz armada: a obedi-
ência só é possível porquanto os que obedecem sabem ser mais fracos e impotentes diante dos
mais fortes, por trás dos quais está o poder do Estado. A desobediência, portanto, implica ne-
cessariamente retaliação física. Por isso os elementos conceituais clássicos não parecem ade-
quados, pois o quadro referencial não permite vislumbrar a existência de perseguição a algum
interesse coletivo; a lógica da dominação é a subjugação pela violência ou pelo donativo, res-
guardando a cada um dos dominados um lugar bastante definido na hierarquia social. Seu
funcionamento baseia-se basicamente em dois dispositivos muito bem definidos por ANDREI
KOERNER: proximidade física e distância social, com suas respectivas faces complementa-
res de violência e benevolência.
272
Como corolário desta peculiaridade nacional, é marcante a ambigüidade no funciona-
mento do Estado periférico brasileiro, que resulta da definição pouca precisa entre as espacia-
lidades pública e privada. Tal indeterminação, herança inegável dos países colonizadores que
aqui primeiro aportaram, encontrou terreno fértil para se desenvolver em solo tropical. A am-
272
KOERNER, Andrei. Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920). São Paulo:
IBCCrim, 1999, p. 44.
121
bigüidade se exprime sobretudo na repartição seletiva, que o Estado chegou a consagrar em
leis (Código Criminal do Império de 1830, por exemplo), do exercício do poder punitivo que
deveria manter a seu cargo com exclusividade. E é seletiva porque fundamentada na absoluta
fratura social que dispunha, em estratos completamente separados, submetidos a regimes jurí-
dicos completamente diferentes, os brasileiros livres dos escravizados. Para isto todo um ar-
cabouço legal contraditório foi elaborado, tendo por principal objetivo a mais completa sub-
missão produtiva da força de trabalho escravizada. As relações sociais, mais ou menos com-
patíveis com as relações jurídicas, no escravismo, seja ele colonial ou imperial, sempre sofre-
ram uma diferenciação fundante, que se projetava também sobre o sistema penal. Dois siste-
mas penais deviam conviver, correlativos a duas ordens taxonômicas distintas de indivíduos e
a dois pólos de soberania: um público, garantido politicamente; outro doméstico, mantido pela
força bruta. A unidade escravista não era familiar, mas também produtiva, politicamente
autônoma e constituía uma verdadeira instituição total, cujo centro de gravidade era a senzala
na qual ficava armazenada sua principal força produtiva, seu motor: a força de trabalho escra-
va.
273
Talvez esta circunstância tenha se refletido na reduzida legitimidade angariada. De fa-
to, nota-se uma tendência a perenização a seu respeito, mesmo quando o Estado deixa de con-
sagrar a utilização da violência à margem de seu monopólio. Ainda que não a consagre, pare-
ce fazer vistas grossas para muitas de suas manifestações, o que poderia ensejar a compreen-
são de que, se não sanciona, pelo menos tolera, seletivamente, a quebra de sua exclusividade.
2.1 Reminiscências medievais
Sem embargo da presença pouco disfarçada ou até mesmo exacerbada da violência, a
reger continuamente o padrão de sociabilidade, um outro componente que não pode ser
desprezado por quem pretenda melhor compreender a história do comportamento político e
social brasileiro e seus desdobramentos: a metrópole colonial brasileira constituía um Estado
absolutista proto-capitalista que pode ser traduzido como o empreendimento decidido de ex-
273
Intentando descrever as “tecnologias políticas do corpo” da escravidão brasileira, KOERNER, Andrei. Puni-
ção, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX. Lua Nova. v 68. 2006, p. 205-242, observa que os
senhores de terras “utilizam uma ‘arte das sensações insuportáveis’ desde o momento em que adquirem os escra-
vos, a fim de demonstrar, pela mais brutal desproporção da relação de forças, a sujeição destes e obter a mais
completa destruição possível de sua identidade anterior. Ela também é utilizada como castigo contra toda e qual-
quer manifestação de insubordinação do escravo, às faltas na execução do trabalho ou ao desrespeito a quaisquer
regras do estabelecimento.”
122
pansão ultramarina de um país que havia centralizado o poder burocrático e engendrado
vastos sistemas mercantis.
274
A reconquista da península ibérica pelos reinos de Portugal e
Espanha, pelo seu sucesso, reforçou um discurso que do ponto de vista afetivo e religioso,
constituiu o móvel deste empreendimento. Este período se caracterizou pela volta do fervor
religioso, que missionariamente incumbiu os ibéricos da (re)conquista de territórios que deve-
riam estar a serviço da religião (católica) reputada única e inquestionável. Foi assim que, a-
companhada de um avanço absolutamente imprescindível à Revolução Industrial que se
seguiu e protagonizada por outros impérios europeus na navegação e nas armas, a Ibéria
lançou-se ao desconhecido, sob o influxo da explosão do capitalismo, ainda em sua fase mer-
cantilista. A empresa colonial, capitaneada pelos países ibéricos, foi incumbida de levar ao
mundo a salvação corporificada pelo ideal católico.
275
Desta forma a cultura política e jurídica nacional foi forjada em seus primórdios. Este
saber religioso, na verdade, teve de ocupar o vácuo deixado pela ausência de uma justificação
jurídica mais elaborada da escravidão. Conforme observa NILO BATISTA, do ponto de vista
estritamente jurídico o fundamento da escravidão era tratado vaga e apoditicamente, e quando
acionado, recorria ao velho jus gentium: “onde o mito da captura na guerra falhasse, a condi-
ção de estrangeiro supriria.”
276
Afora este argumento inadaptável, existiu uma “capilarizada
casuística” baseada em permissões régias sazonais. Estas autorizações régias tinham por fonte
justamente a incumbência missionária cometida pela igreja católica aos impérios salvacionis-
tas.
277
Daí que a mais importante matriz deste discurso tem raízes profundas e, segundo NILO
BATISTA, constitui a lógica que preside o sistema penal desde os primórdios: a moral esco-
lástica. A “mais silenciosa porém ao mesmo tempo a mais profunda influência sobre os sis-
temas penais contemporâneos de nossa ‘família’ jurídica.”
278
Neste sentido o saber-poder co-
lonial se reportava à uma concepção própria da Idade Média, que tinha por marca principal a
confusão ou representação de um Deus-juiz que julga desde os pecados/delitos de Adão e
Caim, e continuará julgando a todos os mortais, apresentando a conversão ao cristianismo
274
RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização, p 52.
275
SOUZA SERRA, Marco Alexandre de. Sistema penal e relações raciais: uma lei e dois códigos. mimeo,
2004.
276
BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. Arquivos do Ministério da Justiça. nº 190, ano 51, jul-dez/2006.
277
O mesmo NILO BATISTA recorda, Ob. citada, a bula papal Romanus Pontifex, pela qual Nicolau V autori-
zava, relativamente às conquistas lusitanas na África, o rei português Afonso V a ‘subjugar quaisquer sarracenos
e pagãos’ e ‘a todos reduzir à servidão’.
278
BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan/Instituto Carioca
de Criminologia, 2002, p 163.
123
colorida de tonalidades judiciais-penais, como seu mais poderoso instrumento.
279
Isto condu-
ziu, entre outras coisas, à absorção de um legado absolutista de controle absoluto sobre os
corpos da massa de trabalhadores, escrava ou não, que se amalgama como permanência cultu-
ral de longa duração, a dar suporte a uma prática jurídico-política e a uma afetividade absolu-
tista, que desafiam a racionalidade do capitalismo.
280
Com isto os despossuídos de toda ordem, cuja maior parte, a determinada altura da
história nacional, sequer foi diretamente aproveitada para o mercado de trabalho livre, tendem
a sempre ser percebidos como portadores de uma inferioridade constitutiva, quer cultural,
quer biológica. Representam, numa escala de crescente degeneração que vai do não-católico
(judeus, índios, etc.) ao africano, o emblema da desordem e do atraso, contrário à ordem jurí-
dica virtuosa da igreja que nos legou o Santo Ofício que por aqui andou em furtivas incursões.
A estes se devem reservar apenas a espada, ou menos metaforicamente, o direito penal.
A percepção de legitimidade da dominação, desta forma, perde sentido. À reduzida
franja de privilegiados, como frágil suporte quantitativo da perpetuação desta ordem a um
tempo tradicional e com um corte classista, se destina uma constante fabricação de medo, co-
mo dispositivo legitimador da atuação repressiva do Estado e de reforço de sua autoridade.
Estas particularidades brasileiras despontam à medida que se fixa no caráter que a a-
daptação das idéias e discursos exógenos sofrem ao atravessar nossas fronteiras culturais. As-
sim, se revela incapaz de determinar o cancelamento da continuidade das relações sociais e de
dominação existentes. Tais relações sociais são pautadas por uma carga tradicional hierarqui-
zante que, apesar de rígidas, demonstram notável plasticidade, e permanecem nesta condição
mesmo quando são forçadas a assimilar a ascensão econômica de algum sujeito não nascido
no estrato superior da hierarquia social. A estrutura hierárquica nacional tende a ceder apenas
na medida do indispensável para não se modificar profundamente. Esta rigidez permite ser
moldada segundo o interesse momentâneo da elite política que dispõe de canais privilegiados
de comunicação com o aparelho estatal. A eficácia de códigos estamentais ou baseados na cor
da pele, por exemplo, a despeito de seu anacronismo, continua a vigorar, juntamente com uma
279
BATISTA, Ob. citada, p 163.
280
Nesse sentido, enfatizando essa “fantasia absolutista”, ver NEDER, Gizlene. Absolutismo e punição. Discur-
sos Sediciosos, Ano 1, 1, 1996, p. 191-206; também dela e de CERQUEIRA FILHO, Gisálio. Criminologia e
poder político: sobre direitos, história e ideologia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 23.
124
tendência incorrigível de se pautar o usufruto do poder segundo o critério do dinheiro.
281
Dis-
to dão provas a impermeabilidade dos cargos representativos aos que dispõe de poucos recur-
sos econômicos, conseqüente ao sistema eleitoral que premia o candidato que mais gasta em
sua campanha, inclusive comprando votos.
Antes de prosseguir é possível ousar uma conclusão: o Estado periférico é muito
mais crucial a todo projeto de desenvolvimento (e subdesenvolvimento) na periferia do que o
Estado metropolitano o é para o desenvolvimento capitalista da metrópole. A conquista da
hegemonia, portanto, é conseguida menos pelos aparelhos ideológicos do que pela repressão.
Nestes termos, o Estado é o mecanismo pelo qual a burguesia local pode tornar disponível aos
capitalistas da metrópole a maior parte dos recursos econômicos da periferia.
282
2. Funções do Estado dependente e o sistema penal brasileiro.
Em seu princípio, conforme a clássica formulação que ZAFFARONI adaptou de
FOUCAULT, as colônias dos impérios do mercantilismo nasceram como instituições de se-
qüestro de imensas dimensões geográficas e humanas. A importância deste processo civiliza-
tório capitaneado pelos impérios ibéricos salvacionistas, de anexação e sangria dos territórios
conquistados, determinou o desenvolvimento subseqüente das nações então nascentes em to-
dos os domínios.
283
Afinal, constituiu um exercício de poder que privou da autodeterminação,
que assumiu o governo político, que submeteu os institucionalizados a um sistema produtivo
em benefício do colonizador, que impôs seu idioma, sua religião, seus valores, que destruiu as
relações comunitárias que lhe pareceu disfuncionais, que considerou seus habitantes sub-
humanos necessitados de tutela e que justifica como empresa piedosa qualquer violência ge-
nocida, com o argumento de que, ao final, redundará em benefício das próprias vítimas, con-
duzidas à verdade (teocrática ou científica).
284
281
Segundo FERNANDES, Ob. citada, p. 108, “a melhor palavra, de que se dispõe para designar essa conglome-
ração de posições, interesses, grupos e subgrupos, formas de solidariedade de classes e orientação básica no uso
do poder político não é oligarquia, mas plutocracia. Esta última palavra traduz, de modo imediato, o que é com-
partilhado em comum e se erige em base do superprivilegiamento de classe, que é o poder fundado na riqueza,
na disposição de bens e na capacidade de especular com o dinheiro (ou com o crédito).”
282
CARNOY, Estado e teoria política, p. 241.
283
RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização, 4 ed. São Paulo: Vozes, 1983.
284
ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas, p. 78.
125
Estados onde vigora o capitalismo de tipo dependente necessita, para garantir seu e-
quilíbrio econômico, de grandes parcelas de marginalizados. Assim pode manter os salários
em níveis impensáveis para uma economia capitalista mais autônoma. Por vezes, as camadas
marginalizadas podem até ser consideradas incapacitadas para o trabalho, mas servem para
estabelecer um mecanismo regulador do nível de retribuição pela venda de sua força de traba-
lho. Este grande contingente de mão-de-obra marginalizado - mais extenso e compacto do que
o exército industrial de reserva
285
- funciona como estratégia de controle social e político, cuja
manutenção reclama uma dominação altamente punitiva, para a qual o forte papel do Estado é
imprescindível, a fim de reprimir violentamente qualquer tentativa de insurgência das subs-
tanciosas frações de excluídos. Desenha-se assim uma dominação tipicamente periférica, que
nasce com o colonialismo, passa pela fase neocolonialista ou imperialista subseqüente, e con-
diciona, ainda hoje, a inserção dos países marginais no capitalismo da globalização. Seu traço
mais marcante consiste no menor nível de retribuição pela força de trabalho. A manutenção de
tais níveis extorsivos de exploração, é possível mediante a fabricação de uma legião de
desocupados superior àquela que constituiria o clássico exército industrial de reserva. Sua
utilidade social é essa; nada tem de produtiva. Portanto, mais do que a conversão perma-
nente de força de trabalho em trabalhado assalariado com remuneração aquém do nível equi-
valente, uma das funções precípuas do Estado capitalista dependente consiste em impelir os
salários ao nível mais achatado possível. Aqui, ao contrário da metrópole, a remuneração pela
venda da força de trabalho, longe de servir à constituição de um mercado dinâmico de consu-
midores, deve apenas prover a subsistência. É evidente que esta afirmação gira no nível das
tendências e, como tal, estipula uma regra que permite exceções. Mas esta regra é estrutural e
está atada à divisão social do trabalho e sua exteriorização além das fronteiras dos países cen-
trais, conhecida por divisão internacional do trabalho.
286
Tal estrutura cristalizou-se e não
perdeu vigor mesmo nos surtos mais ou menos contidos de industrialização e de tímida cons-
tituição de um mercado interno auto-suficiente. Por isso é que, ao analisar o contexto da for-
mação econômico-social da ditadura militar (1964-1979), JUAREZ CIRINO DOS SANTOS
pôde observar:
A lógica interna do modo capitalista é reproduzida em escala ampliada, na divisão interna-
cional do trabalho: a integração e exploração das economias subdesenvolvidas, no processo
285
MOURA, Ob. citada, p. 37.
286
Segundo CARNOY, Martin. Estado e teoria política. 1994, p. 238, “O Estado, nas economias do Terceiro
Mundo, é um instrumento essencial para a administração do papel dependente dessas economias na divisão in-
ternacional do trabalho e no processo capitalista mundial de acumulação de capital.”
126
de valorização do capital monopolista, é realizada pela transferência de valor dos países de-
senvolvidos para os países desenvolvidos, desenvolvendo o subdesenvolvimento das áreas
dependentes.
287
Estas características evidentemente se exteriorizam na ponta decisiva de qualquer sis-
tema de dominação que é o seu braço penal. Se recorrêssemos mais uma vez à fórmula
gramsciana de consenso mais coerção, no Brasil, assim como nos demais países periféricos
de capitalismo dependente, o acento se sobre a coerção. Certamente por isso, enquanto nas
metrópoles do capitalismo global o nível das prisões, embora tendencialmente inferior ao do
mais baixo estrato de trabalhadores livres em conformidade com o princípio do less eligibi-
lity - nunca atingiu os veis experimentados nas prisões brasileiras, que desde muito tem-
po têm sido consideradas verdadeiros concentration camps for the dispossessed.
288
No perío-
do do Império, por exemplo, quando instituições totais segundo o modelo teórico das peniten-
ciárias dos Estados Unidos começaram a ser construídas
289
, não havia razões para que tais
instituições fossem melhores que as senzalas. O que a triste “história carcerária” brasileira
demonstra, assim como aquela que envolve os demais países da América Latina, é que os pre-
sos, numa reedição carcerária da ambigüidade legalidade/ilegalidade que está na raiz do fun-
cionamento do direito burguês a que já se aludiu nesta dissertação, experimentam dois tipos
de penas: por um lado, uma pena de direito, exemplificadas pela pena privativa de liberdade,
como forma predominante de sancionar a criminalidade convencional e praticada pelas clas-
ses miserabilizadas, com a peculiaridade regional de serem menos uma sanção penal propria-
mente dita do que uma medida preventiva;
290
por outro, uma pena de fato, resultantes das pés-
simas condições de salubridade das prisões e do regime extralegal de imposição de sanções,
287
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Defesa social e desenvolvimento. Revista de Direito Penal. n 26, jul-
dez/1979, p. 19-32.
288
WACQUANT, Loïc. Toward a dictatorship over the poor? Notes on the penalization of poverty in Brazil.
Punishment & Society. v 5 (2), 2003, p. 197-205.
289
Cf. KOERNER, Ob. citada.
290
Isto constitui o que ZAFFARONI, Ob. citada, p. 32, chamou de distorção cronológica que resulta da conver-
são da prisão preventiva em pena propriamente dita uma constante na América Latina - inclusive com o bene-
plácito de leis desenganadamente inconstitucionais como são aquelas que proíbem a liberdade provisória de
acusados - “preso sin condena”- independentemente da caracterização da necessidade cautelar da prisão.
como reforço, cumpre registrar que segundo os dados mais recentes, o percentual de presos provisórios no Brasil
gira em torno de 35% de toda a população prisional (cf Relatório Nacional sobre Direitos Humanos no Brasil
(2002-2005), elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo e pela Comissão
Teotônio Vilela de Direitos Humanos; também o Censo Penitenciário de 2006, divulgado pelo Departamento
Penitenciário Nacional – DEPEN, do Ministério da Justiça.). A respeito, ver também CARRANZA, Elias;
HOUED, Mario; MORA, Luis Paulino; ZAFFARONI, E. Raúl. El ‘preso sin condena’ en América Latina y el
Caribe. Doctrina penal. nº 17 a 20, Ano 5, Buenos Aires: Depalma, 1982, p. 643-669.
127
realizado pelos próprios companheiros de reclusão ou pelos responsáveis por sua custódia,
ambas sem a interferência das agências judiciais.
291
No Brasil, este estrato social de miseráveis imanente ao seu modelo de
(sub)desenvolvimento econômico, sempre foi a clientela preferencial do sistema penal. Ele é
desconhecido dos países centrais, pelo menos até os padrões de produção e acumulação capi-
talistas serem radicalmente reconfigurados sob o neoliberalismo. Com razão, CLÓVIS
MOURA notou que esta franja marginal “praticamente seccionada do sistema produtivo”
constitui um estrato social inconfundível tanto com o exército industrial de reserva quanto
com o lumpemproletariado. No Brasil, em sua composição se sobrepõem hierarquias de clas-
se, mas sobretudo alusivos à cor da pele. Pois, depois da abolição, o negro foi descartado,
mesmo como operário. A instituição do trabalho juridicamente livre e assalariado, no Brasil,
teve seu gozo reservado àquele “trabalhador considerado ideal e que irá, também, correspon-
der ao tipo ideal de brasileiro que as classes dominantes escolheram como símbolo de superi-
oridade: o branco”.
292
Portanto, às limitações estruturais inerentes ao modelo de capitalismo
dependente, se deve juntar uma simbologia alienadora que coloca o negro como elemento
negativo da realidade.
293
Na formação histórica brasileira, as classes sociais se constituem a partir de grupos ra-
ciais diferenciados. Naturalmente, as relações raciais são um espaço privilegiado de manuten-
ção e reprodução das relações de poder capitalistas.
294
É justamente por isto que a temática do
negro, quando cotejada com o funcionamento concreto do sistema penal, possui relevância
marcante. O sistema penal e isso não é atributo exclusivo do periférico ou brasileiro elege
sua clientela preferencial dentre os grupos mais frágeis da sociedade. Os negros, mesmo nos
mais baixos estratos da hierarquia social brasileira, se situam em posição de desvantagem.
295
Assim, não bastasse o preconceito decorrente da classe, é o preconceito de cor que incide
mais traumaticamente, e opera, sobre o negro, como um acréscimo porque, “à crueza do trato
291
DEL OLMO, Rosa. ¿Por qué el actual silencio carcelario? In: BRICEÑO-LEÓN, Roberto. Violencia, socie-
dad y justicia en América Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2002, p. 369-381.
292
MOURA, Ob. citada, p. 37.
293
MOURA, Ob. citada, p. 38.
294
Nesse sentido, DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. Curitiba: Juruá, 2002, p. 83.
295
ADORNO, Sérgio. Discriminação racial e justiça criminal em São Paulo. Novos Estudos CEBRAP, 43,
p. 45-63.
128
desigualitário que suportam todos os pobres, se acrescentam formas sutis ou desabridas de
hostilidade.”
296
297
Com isto resta confirmada a premissa da seletividade estrutural do sistema penal em
todos os seus níveis. Conforme já se afirmou, não no mundo sistema penal cuja regra geral
não seja a criminalização secundária em razão da vulnerabilidade.
298
A seletividade exprime
uma distinção de tratamento, uma desigualdade na eleição das “preferências” do sistema pe-
nal. Estas “predileções” também se expressam na atividade policial. O sistema penal, enquan-
to subsistema social para o qual a desigualdade é padrão de funcionamento, encontra no país
da desigualdade seu “eldorado”. Na mesma ordem de idéias, se é na ponta do sistema penal,
onde, como também se afirmou, as agências não-judiciais estão no comando, que a desi-
gualdade de tratamento se manifesta de forma mais cruenta, é no Brasil que o genocídio em
ato é cotidianamente praticado pela burocracia policial. Inscrita numa tradição multissecular
de controle dos miseráveis pela força onipresente, oriunda sobretudo da escravidão, a polícia
brasileira ainda hoje é a recordista de mortes das Américas.
299
O exercício do controle social
diretamente sobre o corpo, com muita proximidade, sempre foi uma constante no Brasil. Ele
por certo traduz um resquício da ordem escravocrata onde os senhores de escravos dispunham
de todo o poder punitivo, com o endosso da coroa e dos governantes por ela enviados. Abso-
lutamente desregulamentado, este poder punitivo sempre exprimiu-se diretamente sobre os
corpos dos escravos, e também de indígenas e de outros despossuídos, embora não tão siste-
maticamente. Com o fim da escravidão e o derrame dos negros forros nos centros urbanos, tal
poder punitivo sem regras se desloca para os policiais verdadeiros herdeiros dos capitães-
do-mato - e parece ainda ressoar nas práticas policiais contemporâneas. Por isso, se pode dizer
296
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. 2 ed., São Paulo: Companhia das Letras, p 235.
297
LIMA, Sergio de; TEIXEIRA, Alessandra, et al. Mulheres negras: as mais punidas nos crimes de roubo.
Boletim do IBCCrim, Ano 11, 125, abril 2003, observam, num estudo empírico, que os resultados alcançados
coincidem com os dados do IBGE sobre a distribuição da população segundo a renda mensal: “a maior renda
média é obtida pelos homens brancos, seguidos, com relativa distância, das mulheres brancas. Os homens negros
aparecem em terceiro lugar e as mulheres negras recebem o pior rendimento médio, muito inferior àquele pri-
meiro.” Uma pesquisa do mesmo IBGE divulgada pela Folha de São Paulo de 5 de junho de 2004 (caderno Di-
nheiro, p B-1 e B-4) revela que o salário/hora do homem branco é de R$ 7,16 e da mulher branca R$ 5,69; do
homem negro é de R$ 3,45 e, por último, a mulher negra: R$ 2,78.
298
ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal
brasileiro I. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 51.
299
É WACQUANT, Toward a dictatorship over the poor?, que observa que só no Estado de São Paulo, em 1992
a polícia militar matou 1.470 civis, contra 24 mortos pela polícia de Nova Iorque. Os dados mais recentes dão
conta de que no ano de 2005 as polícias civil e militar do Rio de Janeiro mataram 1.098 civis, isto segundo os
dados repassados pela própria Secretaria de Segurança do Estado cf. Relatório Nacional sobre Direitos Hu-
manos no Brasil (2002-2005), elaborado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo
(NEV-USP) e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos (CTV).
129
que a régua para medir o tamanho do sistema penal brasileiro não pode ser a mesma utilizada
para os demais países razoavelmente desenvolvidos. Às taxas de encarceramento, normalmen-
te tomadas pelo número de presos para cada 100.000 habitantes, no Brasil, se deve somar a
quantidade de mortes produzidas pelo sistema penal, seja ele oficial ou subterrâneo, quer di-
zer, funcione ele à vista do aparato institucional ou sob sua sombra. Se somarmos, além das
chacinas produzidas pela polícia a pretexto de reprimir o crime, os assassinatos em série prati-
cados por matadores de aluguel, por grupos de extermínio, além de outras legiões paramilita-
res (nelas incluídas as empresas de vigilância privada), conclui-se que o “genocídio em ato” a
que ZAFFARONI se refere não traduz qualquer exagero. Da mesma forma que não é exage-
rado dizer que, no Brasil, o surgimento e o aparelhamento da polícia constitui uma atuação
deliberada do Estado para fazer o serviço sujo das elites, por vezes locais por vezes metropoli-
tanas. O papel desempenhado pela polícia, juntamente com o militarismo que, pelo menos
desde a proclamação da República, nos é tão presente, dada sua importância para os destinos
de nossa existência, provam a compulsão de que a formação social brasileira sempre se viu
imbuída, pelo uso generalizado da violência como meio para realizar os fins assumidos pelo
Estado.
300
É por isso que PAULO ARANTES acerta ao dizer que, mesmo nesta estrutura, à
normalidade institucional mais ou menos presente na história metropolitana, corresponde
complementarmente o estado de exceção permanente no qual se formou e reproduziu a perife-
ria colonial e pós-colonial.
301
Na mesma relação de complementaridade estariam vinculadas
as classes confortáveis do núcleo e as classes torturáveis nas zonas periféricas do sistema. Daí
que nos primeiros tempos do direito público europeu o Novo Mundo ser visto como um espa-
ço juridicamente vazio.
302
Quer isto dizer que, enquanto nos países do centro capitalista a
normalidade institucional, apenas esporadicamente tenha cedido espaço para a suspensão da
ordem jurídica, nos países que se encontram na periferia do capitalismo global a exceção
sempre foi a regra.
Nestas condições, as particularidades, inclusive étnicas do funcionamento concreto do
sistema penal brasileiro, talvez pudessem ser assim sintetizadas:
300
Sobre as características do militarismo e do aparelho policial, enquanto emblemas da violência que subjazem
o funcionamento dos Estados modernos, ver BENJAMIN, Walter. Crítica da violência: crítica do poder. In:
Documentos de cultura, documentos de barbárie . São Paulo: Cultrix/USP, 1986, 160-175.
301
ARANTES, Paulo. Exceção. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 163.
302
ARANTES, Ob. citada, p. 163.
130
Como demonstram as pesquisas, além da irregularidade na distribuição de bens de consumo
e também de outros bens sociais (como educação, fundamentalmente), se deve somar não só
a cor ou a raça dos indivíduos, mas inclusive o seu sexo ou gênero: a maior severidade do
tratamento dispensado pelas agências de controle social recaem preferencialmente sobre os
mais pobres, os mais negros e sobre as mulheres, num continuum de intensificação em dire-
ção ao fim da cadeia.
303
A discussão realizada até aqui procura traçar apenas os largos traços que definem o
funcionamento concreto do sistema penal de um país capitalista dependente com forte herança
do escravismo com o qual conviveu por quase quatrocentos anos. Outras peculiaridades do
funcionamento concreto do Estado e das estratégias de manutenção da hegemonia de classe
no Brasil, serão analisados no decorrer da periodização de seus específicos “sistemas penais”
que se fará a seguir.
303
SOUZA SERRA, Marco Alexandre de. Sistema penal e relações raciais: uma lei e dois códigos. mimeo,
2004.
131
CAPÍTULO V – SISTEMAS PENAIS BRASILEIROS
1. O sistema colonial-mercantilista.
Um sistema absolutamente desregulamentado e ambíguo, no qual vigorava a reparti-
ção do poder de punir entre a coroa portuguesa e os donatários de terra, para enviados a
fim de submeter índios e negros traficados da África a trabalho compulsório: este é, grosso
modo, o primeiro sistema penal que vigorou no Brasil. O exercício do poder punitivo pelos
senhores de terra, particularmente sobre os indivíduos reduzidos à escravidão que eram toma-
dos como propriedade, é o traço mais característico do escravismo brasileiro. Vai além da
Independência e remanesce até o fim da escravidão. Mesmo que Portugal tivesse, na época
da conquista, centralizado algum poder burocrático, o regime de exploração colonial adotado
não podia seguir a tendência de acumulação originária do poder punitivo que alguns estados
nacionais europeus vinham experimentando. O regime de capitanias hereditárias, dado os for-
tes resquícios feudais que lhe caracterizava, explica a delegação quase completa, inclusive
mediante normas expressas expedidas pelo poder régio, do poder punitivo aos donatários de
terras.
304
A opção pelo trabalho escravo na colônia impôs o poder punitivo doméstico. Por isso,
a subsistência em Portugal das penas de degredo, galés e de morte, realizada segundo a regu-
lamentação legal então em vigor (Ordenações Alfonsinas até 1521 e Ordenações Manuelinas
daí até o início do século XVII), pouco se exprimiu dentro do Brasil. A pena mais aplicada
destas, que de alguma forma ressoava por aqui, era a de degredo imposta desde Portugal, vi-
sando, invariavelmente, os inadaptados ao autoritarismo de corte tomista. Segundo esta ideo-
logia marcadamente religiosa, se previa, para cada indivíduo, seu lugar na estrutura social e
política, como é típico de sociedades fortemente hierarquizadas. Segundo GIZLENE NEDER
isto ocorria de forma independente de qualquer pressão econômica.
305
Entretanto, em função do modelo produtivo adotado, foi o poder punitivo privado, e-
xercido com expressa anuência da coroa, o que constituiu o padrão de funcionamento do sis-
304
BATISTA, Nilo; ZAFFARONI, Eugenio Raul; et al., Ob. citada, p. 414.
305
NEDER, Gizlene. Absolutismo e punição, p. 200.
132
tema de punições da colônia, sobretudo na fase que CLÓVIS MOURA intitula de escravismo
pleno.
306
Afinal, o controle social de tipo escravista, por sua própria constituição, tem de ser
executado dentro da própria unidade de produção. Este motivo preciso é o responsável pela
diferença fundamental entre as punições realizadas na colônia e nos estados nacionais coloni-
zadores. Embora as formas mais públicas ou centralizadas de punição tenham sido interiori-
zadas na colônia, elas não puderam rivalizar com a ampla discricionariedade desfrutada pelos
senhores de terras, seus feitores e capitães-do-mato, sobretudo no nível das atrocidades pro-
duzidas.
307
A flagelação dos açoites, as mutilações e marcações com ferro quente, a morte
aflitiva e exemplar, não só, mas principalmente sobre os corpos negros dos escravos, foi o
padrão de funcionamento do sistema penal do mercantilismo-escravocrata.
É efetivamente sobre os corpos dos africanos que os suplícios se imprimiam de forma
mais indelével. Para eles nunca houve aquela margem de ilegalidade tolerada, característica
do sistema penal do Ancien Regime. O escravismo por si descarta a necessidade de o rei se
mostrar indulgente e compreensivo, piedoso enfim, como estratégia de perpetuação da domi-
nação sobre a diversidade de poderes periféricos que vigoravam em seu seio, algo típico da
dominação do gênero tradicional. Para a funcionalidade deste esquema de dominação, o cará-
ter draconiano da legislação era decisivo para a conquista de legitimidade. Através dela podia
o poder régio demonstrar sua “superioridade ética” através do exercício da graça que lhe era
privativo.
308
Mas é o regime produtivo e a absoluta exploração escrava que lhe distingue, que se a-
figura o móvel e a principal permanência do regime de dominação política marcadamente
repressiva que se insinuará por toda a história brasileira. Ele foi determinado pelas injunções,
externas (no princípio da coroa portuguesa, logo da Inglaterra), o que deixa entrever as razões
efetivamente econômicas da adoção do trabalho escravo na colônia. Ora, no mercantilismo a
acumulação de capital se dava em função do lucro decorrente da compra de matéria-prima
barata da colônia e de sua venda no mercado europeu. O baixo preço da mercadoria deriva do
pequeno custo de produção dos itens comercializados. Desta forma, a conhecida acumulação
primitiva atingia a forma de capital através da pilhagem e da escravização imposta nas colô-
nias. Nas colônias apenas uma pequena parcela do excedente gerado pelas operações comer-
306
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1995, p 221.
307
BATISTA, Os sistemas penais brasileiros, p. 167.
308
NEDER, Gizlene. Absolutismo e punição, p. 201.
133
ciais permanecia, especialmente para a continuidade dos empreendimentos. O restante, quan-
do retornava na forma de manufaturas, invariavelmente refluía para a metrópole na forma de
capital, como já se registrou. De conseqüência, as condições econômicas, especialmente em
função da precariedade de mão-de-obra somada à abundância de terras devolutas ou desocu-
padas, “encorajavam” a escravidão como única maneira de levar à frente a produção destinada
ao comércio internacional. Por isso não parece desarrazoado concluir-se que os aspectos eco-
nômicos e políticos determinados desde a Europa, neles incluídas as formas de acumulação
capitalista do período mercantilista, são decisivos para a interpretação da herança da escrava-
tura para toda a história que sucedeu à chegada do europeu ao Novo Mundo.
309
A necessidade numérica de força de trabalho, nas débeis condições produtivas desen-
volvidas na colônia, era enorme. A este maciço recrutamento de escravos africanos sucedeu a
necessidade de controle social deste contingente considerável. Por isso, é que a baixa taxa de
acumulação de capital recaía sobre os negros como um duplo aviltamento, pois determinava
aos senhores de escravos que extraíssem dos mesmos o máximo de aproveitamento de sua
força de trabalho. Para não tornar tão onerosa a produção, que transcorria jungida às prescri-
ções da metrópole, que por sua vez definia, enquanto parte compradora, os preços de venda
dos produtos, necessário se fazia a superexploração, altíssima mesmo em termos de escravi-
dão. A extração deste sobre-trabalho escravo, por sua vez, era alimentada pelo fluxo perma-
nente do tráfico de africanos. No entanto, os preços dos escravos eram estabelecidos pelos
traficantes ou intermediários dos navios negreiros. Por isso o latifúndio de monocultura da
colônia era demasiadamente suscetível a intempéries sobres as quais não detinha a menor pos-
sibilidade de influência. A manutenção do sistema dependia exageradamente do equilíbrio
proporcionado pela substituição do escravo sobre-explorado por outro recém-trazido da Áfri-
ca: a prosperidade da colônia se devia exclusivamente à máxima extração possível da mais-
valia escrava. É a fase do escravismo onde se costuma mencionar que os negros escravos
eram os pés e as mãos dos senhores. Por isso essa é fase concebida por CLÓVIS MOURA de
consolidação do sistema escravista, por ele alcunhada de escravismo pleno.
310
309
IANNI, Ob. citada, p. 11, aponta duas questões relevantes para compreender as condições que reproduziram a
escravatura: em primeiro lugar, a enorme disponibilidade de terras que permitiria ao assalariado abandonar o
engenho e se tornar possuidor de um pedaço de chão suficiente à sua subsistência; de outro lado, as metrópoles
não dispunham de mão-de-obra para incrementar a produção de matérias-primas.
310
MOURA, Sociologia do negro brasileiro, p 221: “O sistema escravista consolida-se nessa fase. O número de
escravos cresce constantemente. A produção, através do trabalho escravo, cria um clima de fastígio da classe
senhorial e os negros passam a ser os pés e as mãos dos senhores na expressão de um dos cronistas da época.
Essa consolidação do trabalho escravo reflete-se, por outro lado, naquilo que determinará esse fausto da classe
134
A longevidade do escravo trazido ao Brasil era muito reduzida e a possibilidade de re-
produção vegetativa da população africana, pelo menos nesta fase, não foi incorporada eco-
nomicamente. Apesar de algumas exceções, enquanto tendência geral, o suprimento do mer-
cado de escravos se pautava sempre pelo fluxo do tráfico, pela oferta de novos escravos. Por
isso é que o Brasil (colonial e independente) foi o maior absorvedor de africanos escravizados
que já se conheceu.
311
As grandes propriedades de terras, é o primeiro “moinho de gastar gen-
te” brasileiro. O sistema das grandes plantagens foi um verdadeiro “devorador de terras e de
homens”.
312
As formas de resistência à escravidão também constituem um dos fatores a caracteri-
zar as regras do controle social vigente à época. Segundo MOURA, na fase do escravismo
pleno (que vai de 1550 a 1850) os escravos lutavam sozinhos, de forma ativa e radical. Isto foi
responsável por produzir uma verdadeira paranóia nos senhores, que por sua vez dava azo a
uma legislação violenta e sem apelação.
313
A síndrome do medo veio a desaguar num recru-
descimento ao ponto de se tornar comum e legalmente permitida a utilização de vários apara-
tos de tortura, tais como troncos, pelourinhos, máscara de flandres, grilhões, entre outras ma-
neiras de aviltamento físico. Outra questão influente dessa fase se prendia ao enorme número
de escravos, sendo relativamente comum regiões onde o contingente negro superava em nú-
mero a massa de brancos.
314
Clóvis Moura situa a síndrome do medo como um nível fundamental de desgaste do
sistema escravista, por ele designado como deterioração psicológica do regime. Este desgaste
foi capaz de acarretar uma deformação psicológica da classe senhorial, culminando por tradu-
zir um comportamento patológico de seus membros.
315
senhorial: a situação de total dominação econômica e extra-econômica sobre o elemento escravizado, as condi-
ções sub-humanas de tratamento, um sistema despótico de controle social e, finalmente, um aparelho de Estado
voltado fundamentalmente para defender os direitos dos senhores e seus privilégios. Esses senhores, donos de
escravos e de terras, são, ao mesmo tempo, exportadores de tudo ou de quase tudo o que se produzia no Brasil.”
311
GORENDER, Jacob. Liberalismo e escravidão. Entrevista a Estudos avançados. v 16. 46, 2002, p. 209-
222. O autor observa que para o Brasil vieram cerca de quatro milhões de africanos escravizados, cerca de 40%
do total trazido para as Américas.
312
KOERNER, Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920), p. 43.
313
Ob. citada, p 221.
314
MOURA Ob. citada, p 233: “A ndrome do medo das classes senhoriais tinha apoio material no grande nú-
mero de escravos negros e na possibilidade permanente da sua rebeldia. Refletia uma ansiedade contínua e, com
isto, a necessidade de um aparelho de controle social despótico, capaz de esmagar, ao primeiro sintoma de rebel-
dia, a possibilidade dessa mesma massa escrava se rebelar.”
315
SOUZA SERRA, Ob. citada.
135
O medo pode assim ser concebido como um dos fatores emocionais responsáveis pela
forma que a dominação se exprime no Brasil. Ao mesmo tempo em que funciona como refor-
ço do poder, ele se exprime como sua alavanca, que se traduz no estabelecimento da violência
física sem qualquer compromisso com a proporcionalidade. O medo, esta deformação psíqui-
ca e aparentemente genética das classes dominantes brasileiras, representa, desde então, o
mecanismo de justificação do uso e abuso do castigo no enfrentamento de contingências soci-
ais e políticas de toda ordem.
A violência radica no centro da vida social no Brasil escravista. A submissão nua e
crua dos cativos, africanos e indígenas, nunca foi acompanhada de qualquer estratégia de as-
similação ou integração social destas populações. Os conflitos entre escravos e senhores, dada
a banalização dos suplícios físicos, eram restritos à negociação acerca da moderação dos cas-
tigos, não de seu fim. Há inclusive quem sustente que uma das poucas, senão a única, possibi-
lidade de “integração social” dos africanos escravizados, capaz até de lhes conceder a liberda-
de, era a instrumentalização, pelos senhores, de sua capacidade de “fazer a guerra”, não rara-
mente contra os índios.
316
A propósito, convém registrar que a intolerância e a exploração praticada em níveis ex-
ponenciais também se exteriorizou sobre os índios, embora numa intensidade inferior. A es-
cravização dos gentios”, embora não possa ser descartada, encontrou muita resistência, prin-
cipalmente por parte dos jesuítas.
317
Mais se endereçava àqueles mais rebeldes e resistentes às
reduções catequizantes.
318
Por isso, embora em menores proporções e de forma menos siste-
316
LIMA, Carlos A. M. Escravos de peleja: a instrumentalização da violência escrava na América portuguesa
(1580-1850). Revista de Sociologia e Política. Ano 18, Curitiba, 2002, p. 131-152, refere que a violência escrava
instrumentalizada visou principalmente o enfrentamento de índios rebeldes, ou seja, não-aldeados nem escravi-
zados. Mas também serviu, talvez em menor medida, ao confrontamento com outras potências coloniais européi-
as, como por exemplo as incursões dos franceses no Rio de Janeiro em 1710 e 1711. O autor enfatiza que, mes-
mo quando a serviço do Estado lusitano, a mobilização era possível através dos senhores, que afinal eram os
proprietários de tal força de guerra.
317
Vários são os religiosos que não se dobraram à escravização dos índios, que embora tenha ocorrido na colô-
nia, em muito se distinguiu da imposta ao contingente africano, tanto quantitativa como qualitativamente. Dentre
eles podemos citar alguns reputados como defensores dos elementos fragilizados e subjugados da formação
social colonial: o frei Bartolomeu de Las Casas e o próprio Padre Antonio Vieira, que condescendiam com a
escravização dos negros.
318
Segundo BATISTA e ZAFFARONI, et al., Ob. citada, p. 416, o tratamento dispensado aos índios era contra-
ditório e se torna compreensível mediante a análise do “emaranhado aparentemente contraditório da legisla-
ção indigenista, essencialmente dividido em leis sobre os ‘índios amigos’e leis contra o ‘gentio bravio’: se para
os primeiros poderemos encontrar, nas missões setentrionais do século XVII, uma atenuação dos castigos
radicada no olhar medicinal-evalengelizador, que em certas aldeias extrairia as normas penais do Livro de Or-
136
mática, a espoliação desmedida de sua força de trabalho é um fato consumado: as reduções
indígenas que pretendiam apenas catequizá-los tiveram como principal papel a aculturação e
a preparação, por assim dizer, do terreno necessário ao cultivo de um regime despótico que
culminou por alienar também este segmento étnico de suas origens culturais, inclusive através
da sobre-exploração de sua força de trabalho.
319
1.1 Controle social dos índios
Ao contrário do que reservara aos africanos escravizados, a coroa portuguesa esboçou
algumas estratégias para assimilação cultural e social dos índios, particularmente no impulso
liberal intentado no período pombalino. Com o Diretório dos Índios, por exemplo, a América
lusitana procurou experimentar novas políticas a fim de reforçar sua soberania metropolitana.
Através destas políticas, a estratégia foi a de converter as reduções indígenas em povoamentos
civis, inclusive mediante a transmissão de algumas sesmarias aos novos aglomerados indíge-
nas. Sua eficácia, no entanto, foi bastante reduzida: logo despertou conflitos fundiários, tendo
como oponentes, é claro, os grandes proprietários de terras, que percebiam estas estratégias
como voltadas a reduzir sua soberania local, quer em face da apropriação de terras, quer em
razão da constituição de localidades não diretamente submetidas a este mesmo poder. Logo
uma Carta Régia, de 12 de maio 1798, revogaria a legislação pombalina.
320
dens, para os segundos, numa linha que estava explicitamente formulada no Regimento de Tode Souza, a
mais brutal escravização constitui o primeiro expediente jurídico do inexorável processo histórico de seu genocí-
dio.”
319
A atuação dos jesuítas durante a empresa colonial merece uma atenção que aqui não poderá ser dispensada.
Porém, parece necessário observar a dubiedade de seu papel: os jesuítas resistiam à escravização dos índios e
pregavam a moderação dos castigos contra os africanos. Segundo eles, somente com estas medidas é que a es-
cravidão poderia encontrar legitimidade aos olhos da igreja e quem sabe até de Deus. É por isso que se pode
dizer, conforme referi noutro trabalho SOUZA SERRA, Marco Alexandre de. Sistema penal e relações raciais:
uma lei e dois códigos. mimeo, 2004, “que a intenção jesuítica, quando muito, foi apenas de médio alcance. Por
isso que a mais marcante conseqüência da intenção catequizadora foi a aculturação/alienação suscitadas, pois
é sabido que a manutenção das reduções que pretendiam ‘educar’ os índios somente perdurou até o limite máxi-
mo de permissão da coroa portuguesa. Na realidade, era ínsito ao empreendimento cristianizador a não-colisão
com a coroa, que na visão jesuítica personificava o ideal cristão em sua máxima de conversões necessárias à
salvação do mundo. Portanto, a despeito da resistência e do considerável número de mortes de que a colônia se
viu poupada, o resultado final não pode ser percebido como benévolo, já que teve como principal efeito a facili-
tação da submissão indígena à espoliação de quem se via alienado de suas origens, distanciado do grupo em
que tivera plantadas suas raízes. Daí ao genocídio conhecido realmente não há muita distância.”
320
KANTOR, Íris. Legislação indigenista, reordenamento territorial e auto-representação das elites (1759-
1822). In: KOERNER, Andrei (org). História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBC-
Crim, 2006, p. 29-38: “O fracasso do diretório pode ser atribuído às tensões engendradas pelo controle da pro-
priedade fundiária e pelo modo de administrar a mão-de-obra indígena. Nesse aspecto, cabe destacar que a legis-
lação reformista procurara regular o acesso à mão-de-obra indígena sempre em articulação com a política negrei-
ra: os índios eram mão-de-obra ancilar do tráfico transatlântico.”
137
Sem embargo, não é possível concluir a descrição desta fase do sistema punitivo brasi-
leiro sem uma referência às visitas aqui realizadas pelo Santo Ofício. BATISTA e
ZAFFARONI relatam pelo menos três ocasiões onde o tribunal da inquisição esteve por aqui:
a primeira na Bahia (1591) e Pernambuco (1594); a segunda também na Bahia (1618), e a
terceira no Pará (1763). Outros países da região chegaram a sediar um tribunal da inquisição
(como Peru, México e Colômbia). Mesmo sem tê-lo recebido em caráter permanente, seu le-
gado “silente mas profuso”
321
, principalmente no campo das práticas processuais penais, é
marcante ainda hoje.
Nossa etapa colonial tardia conheceria ainda as Ordenações Filipinas (promulgadas
em 1603, pelo rei Felipe III, na época da união ibérica), que ao contrário das Afonsinas e das
Manuelinas, efetivamente constituíram o programa de criminalização de sua época. Isto não
implicou o fim da vigência do poder punitivo doméstico, embora tenha atuado para reduzi-lo
em alguma medida. A convivência deste programa e o poder senhorial foi longa e adentrou o
período imperial, que constitui o próximo sistema penal brasileiro.
2. O sistema imperial-escravista.
A independência do Brasil, em 1822, de fato inaugura um novo período da história na-
cional. Não se trata apenas de um divisor político, mas também da interiorização de novas
idéias, nomeadamente liberais. Ao contrário da, por assim dizer, linearidade que designou o
extenso período colonial (mais de três séculos), ao fim do século XVIII o Brasil experimenta-
va a intensificação de algumas reivindicações, inclusive por conta da crise econômica que
vinha se abatendo sobre seus principais produtos de exportação, cujos reflexos mais graves
foram sentidos principalmente nas áreas urbanas. É evidente que as discussões realizadas sob
a batuta das elites não tocavam temas profundos da estrutura social brasileira, cuja rigidez
legada por tanto tempo de escravismo colonial, dificilmente poderia ser abalada. As alterações
nos campos político e tecnológico, experimentadas na Europa, por exemplo, por aqui repercu-
tiam apenas de forma reflexa e seletiva.
321
BATISTA e ZAFFARONI, et al., Ob. citada, p. 420.
138
De fato, por força da conjuntura produtiva brasileira, da qual também decorre o con-
texto sócio-político de então, não se podia esperar que o país se engajasse de forma sobrancei-
ra nas radicais transformações que o mundo conhecia. A aparentemente definitiva posição de
subordinação na qual o Brasil foi integrado à ordem social e política global, tornava imprová-
vel que o avanço da técnica pudesse aqui repercutir e ensejar a constituição de um mercado
interno pujante, capaz de melhorar as condições de vida de sua população, inclusive daquela
trabalhadora. Que propiciasse, enfim, a inserção de um número maior das camadas popula-
cionais distintas da dos grandes senhores do setor agro-exportador, na fruição da riqueza na-
cional. A evolução da técnica, simbolizada pelo extraordinário incremento da capacidade pro-
dutiva do homem, tampouco implicou o progresso social esperado nos países centrais, como
revela o clássico exemplo da Inglaterra. Do baixo nível de desenvolvimento social europeu
em plena industrialização, dão conta os relatos sobre o grau de salubridade de suas prisões,
sobretudo em decorrência do excesso de mão-de-obra. No entanto, a existência de um comér-
cio interno suficientemente desenvolvido, de uma burguesia urbana e economicamente im-
portante, permitiram aos países centrais solapar as estruturas oligárquicas e fizeram com que a
revolução tecnológica em alguma medida se estendesse também para o campo da política. Isto
não ocorreu de forma linear em todos os países da Europa. Países que, como os ibéricos, eram
estruturados oligarquicamente, com rígido monopólio de terras e ordenações despóticas
modelo exportado para o Brasil – não experimentaram grandes acontecimentos.
322
No Brasil a classe politicamente mais relevante, os grandes senhores de terras, se
manifestava desejosa, desde pelo menos a metade do século XVIII, de pôr fim à colonização
portuguesa. Portugal era, já há algum tempo, um império decadente e se encontrava atrelado à
expansão da Inglaterra. Desta forma, também a produção da colônia se encontrava jungida aos
desejos ingleses. O papel da coroa portuguesa, portanto, restringia-se ao de um entreposto.
Isto implicava uma redução da retribuição pela produção colonial, que, como se assina-
lou, os preços das matérias-primas aqui produzidas eram determinados pelo consumidor, que
em última análise era a economia inglesa, em franca expansão. O papel de Portugal restringia-
se a transmitir a tabela de preços aos exportadores brasileiros, não sem antes incluir no cálcu-
lo sua parte enquanto intermediário dos negócios.
322
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório, p. 130.
139
Os grandes plantadores queriam, em lugar de uma peça da engrenagem política colo-
nial, um Estado que os representasse mais diretamente. Pode-se dizer que a independência não
tardou a acontecer no Brasil, pelo menos comparativamente aos demais países coloniais. Nos
demais países americanos em que ela tinha ocorrido, inclusive os Estados Unidos, a con-
quista da independência não ia longe. O mesmo não se pode dizer quanto à forma de organi-
zação econômica: o escravismo persistiu no Brasil, até os estertores do século XIX, malgrado
os avanços liberais que bem antes experimentou. Esta contradição tão recorrente, pode ser
observada pela persistência da escravidão, apesar da promulgação de uma Constituição (1824)
e de um Código Criminal (1830) razoavelmente liberais, exceção feita, quanto a este último,
no que concerne à consagração do direito privado de punir a quem detinha escravos. Do con-
fronto destes dois diplomas legislativos emerge uma incompatibilidade que a peculiaridade da
estrutura sócio-econômica brasileira costuma burlar: enquanto a Constituição vedava, expres-
samente os açoites (art 179, XIX)
323
, o Código Criminal os destinava aos escravos, em opção
à pena de morte e à de galés
324
. Assim como ocorre no campo das idéias, a conquista da inde-
pendência assume, no Brasil, uma configuração toda própria. É também reflexa e seletiva, o
que impediu que ensejasse um verdadeiro processo de descolonização. O principal motivo
parece ser justamente este apego a um modelo econômico retrógrado, cujos frutos, nem tão
vultuosos, que era capaz de manter internamente, eram apropriados por uma reduzida franja
da elite nacional.
De todo modo, as idéias econômicas de corte liberal, porque de alguma forma podia
interessar ao regime produtivo brasileiro, também foram sendo assimiladas. Ainda sob o do-
mínio da coroa portuguesa, os portos brasileiros são abertos ao mercado internacional, em
1808.
325
E a escravidão ainda persistiria, por mais 80 anos...
Como explicar este fato? Ora, o liberalismo econômico não era absolutamente contrá-
rio ao fim da escravidão. Na fase de acumulação primitiva, a escravidão foi necessária para a
política econômica inglesa. Somente através da importação barata de matérias-primas coloni-
323
Art. 179, inc. XIX: Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as mais
penas cruéis.
324
Cód. Criminal do Império, art 60: Se o réu for escravo, e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés,
será condenado na de açoutes, e, depois de os sofrer, será entregue a seu senhor, que se obrigará a trazê-lo com
um ferro pelo tempo e maneira que o juiz o designar. O número de açoites será fixado na sentença, e o escravo
não poderá levar por dia mais de cinqüenta.
325
E assim logrou-se aniquilar a primitiva indústria artesanal da colônia. PRADO JR, Caio. História econômica
do Brasil. 12 ed. São Paulo: Brasiliense, 1970, p. 257.
140
ais foi possível acumular capitais em níveis suficientes. Sem este excedente seria inviável
investir em inovações tecnológicas. Quando a Inglaterra determinou o fim do tráfico de escra-
vos, deixara vicejar, em seu interior, as idéias liberais, que do ponto de vista econômico
ainda acatariam a persistência da escravidão até pelo menos o final do século XVIII, desde
que apenas nas colônias. Talvez aquela percepção de que o mundo girava em torno de si tenha
contribuído, mas o fato é que, por ter tomado a frente do processo de expansão capitalista, era
“natural” que as colônias, cuja utilidade se resumia ao fornecimento barato de matérias-
primas para a manufatura européia, mantivesse sua força de trabalho cativa. Do contrário os
preços dos seus produtos de exportação não seriam tão atrativos. Portanto, tal “contradição”,
pelo menos até o momento em que os países metropolitanos acumularam capitais em quanti-
dades suficientes até para exportá-los, não parecia de todo maléfica aos países europeus em
vias de industrialização: trabalho livre na Europa, onde se deveria constituir os mercados con-
sumidores, e escravidão nas colônias americanas, tal era a ordenação segmentada imposta
pelo liberalismo.
No âmbito interno, além da solução de continuidade emprestada à contradição libera-
lismo/escravismo, se desenha, nos princípios do século XIX, um processo de condensação e
deslocamento político. Sob o império, a classe senhorial toma o Estado em suas mãos e se
torna, de fato, a força política e socialmente dominadora algo que a coroa portuguesa até
então tinha conseguido, com algum sucesso, impedir. A isto se pode chamar de condensação
do poder político. Seu deslocamento se em função da decadência econômica das culturas
de exportação até então prevalecentes: além do minério, açúcar e o algodão. A impossibilida-
de – aparentemente congênita - de voltar-se para a constituição de um mercado interno, sobre-
tudo resultante do reduzido progresso tecnológico - conseqüência da baixa complexidade da
economia doméstica - exigia que o Brasil descobrisse um outro produto de exportação que
desfrutasse de demanda e de melhores preços no mercado internacional. Logo ele seria encon-
trado, e o sudeste brasileiro passaria a ser, simultaneamente à expansão da agricultura cafeei-
ra, o novo centro de poder político do país.
326
Desde meados do século XVIII o progresso no campo das idéias se fazia sentir, mes-
mo no Brasil. De modo especial as projeções do iluminismo sobre o saber penal. A tais proje-
326
Nesse sentido, entre muitos outros clássicos, convém referir a FURTADO, Celso. Formação econômica do
Brasil. 13 ed. São Paulo: Cia Editora Nacional, 1975, p. 110 e segs; também PRADO JR, História econômica do
Brasil, p. 207 e segs; e ainda FAORO, Raymundo. Os donos do poder. v 2. 3 ed, 1976, p. 324 e segs.
141
ções se fez referência. Sua importância, definitiva, não pode ser aqui abordada. O que cabe
por agora assinalar é que, a despeito desta “injeção de ânimo” intelectual, o Brasil persistiu
atado à sua condição de atraso, determinada pela persistência do escravismo. Desta maneira,
embora as classes letradas brasileiras, em boa parte lapidadas na Europa, estarem em dia com
as novidades da época no campo das idéias, lamentavelmente, não desfrutavam da mesma
condição no campo das práticas. Assim, pode-se dizer que apesar de ter, em certa medida,
assimilado não as luzes liberais, mas também aquelas iluministas (inconfundíveis com as
primeiras, como costuma se esquecer), o Brasil decidiu, em vez de fazê-las refletir por toda a
sua ossatura institucional e econômica, focalizá-las em pontos bem limitados. Não faltaria luz
aos brancos, principalmente aqueles que habitavam o sudeste.
No campo propriamente político, a persistência da escravidão significa que o recém-
constituído Estado brasileiro não desfrutará de base popular sobre a qual poderia fundar sua
legitimidade. Na verdade ele consolida uma aliança de elites políticas regionais, funcionários
do Estado, alguns poucos comerciantes urbanos e grandes proprietários de terras. Todos em
redor de um pacto: a continuação do escravismo, como necessidade estratégica para a manu-
tenção do sistema de grande produtor de certas matérias-primas para o mercado internacional,
somente realizável mediante baixos custos produtivos. Deste modo, o padrão de dominação,
marcado pela “proximidade física e distância social” continuaria o mesmo, pelo menos na sua
essência. Ocorre que este déficit, observado pela incorporação de idéias e de algumas institui-
ções avançadas e as práticas pouco elaboradas de submissão produtiva escravocrata, e de des-
prezo pelos despossuídos de toda ordem, produziu verdadeiras deformidades no pensamento
político e jurídico que se foi produzindo, na inglória tarefa de conciliar componentes contradi-
tórios que o forjavam e assim justificar as práticas (políticas e judiciais) reclamadas.
327
Como estas alterações tão profundas, e as ambigüidades que ensejou, refletiram-se no
concreto funcionamento do sistema penal brasileiro? É certo que as repercussões estão atadas
às opções eleitas pelas elites dirigentes para conduzir a economia nacional na transição. A
partir desse quadro se redefine o lugar geopolítico brasileiro na ordem social global, no con-
texto da conquista da independência.
327
Nesse sentido, KOERNER, Andrei. Decisão judicial, instituições e estrutura socioeconômica. In:
KOERNER, Andrei (org). História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCrim, 2006,
p. 259-281.
142
Em primeiro lugar, por causa de sua forma de integração heterônoma, a transição ca-
minhou para um novo tipo de dominação externa que pode ser chamado de neocolonialismo,
tendo em vista a posição subalterna que mais uma vez o Brasil assumiu perante aquilo que
logo se transformaria no imperialismo industrial da Inglaterra.
Durante a Revolução Industrial inglesa, iniciada ainda no século XVIII, a prisão se
confirma como pena por excelência. Como já mencionado, o exemplo da Inglaterra revela que
seu papel na tarefa de manter baixo o nível de retribuição da força de trabalho era comple-
mentar à constituição do primeiro verdadeiro exército industrial de reserva. Isto porque lá
havia abundância de força de trabalho e trabalho assalariado, juridicamente livre. A estrutura
social brasileira era completamente distinta. Não havia como reproduzir por aqui o momento
histórico que acabou ficando conhecido como o pior da história do proletariado. Mas a novi-
dade das casas de detenção, longe de serem caritativas, instituídas também nos Estados
Unidos, chega ao Brasil, ainda que com atraso. Enquanto nos Estados Unidos o modelo fila-
delfiano vai sendo substituído pelo de Auburn, tendo em vista o surto de industrialização que
lhe acometeu na segunda metade do século XIX, no Brasil instituem-se as primeiras Casas de
Correção imperiais. Neste quadro, para não abandonar nosso referente, antes é necessário
refletir sobre as condições da força de trabalho neste período, mais precisamente sobre sua
disponibilidade numérica.
2.1 O controle social do império: o problema da mão-de-obra
Seria possível, através da experiência brasileira, que não o trabalho juridicamente
livre, mas também aquele compulsório, influísse nas práticas punitivas institucionalizadas
(públicas portanto) e, com lugar central, nas suas prisões? A resposta positiva a esta indaga-
ção exige que se detenha um pouco mais sobre a oferta de força de trabalho na conjuntura
histórica brasileira que se está a analisar, que assistia, de longe, a industrialização dos países
centrais. Ora o modelo produtivo brasileiro, imposto pelo desenho geopolítico europeu colo-
nialista, ancora-se, como assinalado por diversas vezes, em dois fatores: abundância de
terras e força de trabalho também abundante e barata. A modificação deste estado de coisas
seria realizável mediante uma consciente e corajosa política estatal, tendente, por exemplo, a
limitar a apropriação das terras disponíveis e a impor um regime de trabalho assalariado com
os indivíduos, que por vontade própria ou não, se encontravam radicados por aqui. Porque
143
o aparelho de Estado logo foi tomado pelas classes senhoriais, esta possibilidade foi de plano
descartada. Nestas condições, segundo o projeto de se valer de suas posições-chave no contro-
le da economia como fonte de manutenção do privilegiamento do poder senhorial, qualquer
intento de industrialização se revelaria inviável; não iria encontrar aqui mercados necessários
à sua subsistência. Exportar bens industrializados também não se afiguraria viável, pois a
classe senhorial haviam assimilado bem claramente qual tarefa estava reservada às colônias
americanas. A Inglaterra, por exemplo, não economizaria esforços para impedir a exportação
de qualquer máquina.
328
Restava apenas a possibilidade de incrementar as exportações de
produtos primários para produzir crescimento econômico.
Uma das explicações para a introdução do trabalho escravo na colônia reside na dimi-
nuta oferta metropolitana de mão-de-obra. Na transição que marca a entrada no século XIX, a
expansão da economia brasileira, ao contrário das economias européias que se industrializa-
vam, se dava em função do único fator, amplamente disponível, que era a terra.
329
Para isso
seria necessário incorporar mais força de trabalho. Se no período anterior, do escravismo ple-
no, ela abundava em virtude do volume do tráfico negreiro, a independência surge quando
começam as primeiras resistências contra a escravidão. Notável importância se deve atribuir
ao aumento do preço dos escravos, que apesar constituir uma fonte de mão-de-obra relativa-
mente barata, ainda assim correspondia à boa parcela do “custo operacional” das grandes fa-
zendas exportadoras. O tráfico negreiro, desde as expansões ultramarinas, era exclusividade
dos principais países colonialistas (além de Portugal, Holanda, Inglaterra, Dinamarca, Fran-
ça). Não impressiona, deste modo, que o modelo produtivo colonial brasileiro, cujo traço mais
marcante consiste no desgaste inacreditável de sua força de trabalho escrava, dada a crueldade
das condições de vida a que os africanos eram submetidos, no princípio não era mal visto pe-
las potências colonialistas. O tráfico negreiro constituiu, por longo tempo, uma das suas mais
importantes fontes de capitais. A Inglaterra logo seguiu a Holanda considerada a primeira
formação capitalista mercantil de respeito em virtude da eficiência capitalista revelada nas
operações do tráfico negreiro, com tendências ao monopólio.
CLÓVIS MOURA, com percuciência, observa que o tráfico de escravos desempenha-
va dupla função: internamente às colônias, manter o equilíbrio demográfico da estrutura, me-
diante a manutenção dos estoques de força de trabalho escrava; externamente, contribuir para
328
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil, p. 106.
329
FURTADO, Ob. citada, p. 120.
144
a acumulação capitalista metropolitana, em virtude dos rendimentos produzidos pelo comér-
cio de escravos. Isto podia ser conseguido mediante o que o autor chama de tráfico trian-
gular: aos países dominantes (primeiro os ibéricos, logo substituídos por Holanda, Inglaterra,
França) cabia o fornecimento das embarcações; à África da mercadoria humana, enquanto as
colônias americanas deviam se dedicar às matérias-primas a serem enviadas às metrópoles
para pagamento dos escravos. Assim fechava-se a triangulação.
330
Para que este comércio
triangular funcionasse bem, era necessário um mecanismo regulador indispensável: o mono-
pólio comercial. Com base neste empreendimento dinamiza-se a economia inglesa a de
maior sucesso nesta tendência monopolista a fim de suprir as necessidades do tráfico trian-
gular: além da produção de embarcações, munições de modo geral, artigos de ferro, sem des-
lembrar da importância do setor de tecidos, que logo seria o primeiro a experimentar as novi-
dades tecnológicas da produção em massa.
No entanto, a nova conjuntura produtiva imposta pela Revolução Industrial, provoca-
ria mutações no perfil do empresariado inglês. Se inicialmente eles atuavam como os antigos
mercadores exploração da usura, especulação comercial de produtos escassos, monopoliza-
ção de certas mercadorias justificada nos elevados riscos do comércio marítimo a transfor-
mação produtiva permitia-lhes se dedicar a novo setores, mais dinâmicos e menos arriscados.
Em suma esta nova oportunidade era representada pela aplicação de capitais em sistemas fa-
bris de produção, movidos pelas novas fontes de energia inanimada.
331
A expansão deste novo
modelo na metrópole inglesa, repercutiria numa profunda reordenação da estrutura social:
assim torna-se possível, e vantajoso, a conversão de toda mão-de-obra, inclusive a escrava,
em força de trabalho assalariado. Inclusive para elevar seu nível de produtividade e de con-
sumo com o objetivo de alargar o mercado para os produtos industriais. Esta é a explicação
conhecida e também a mais convincente para a mudança de postura da Inglaterra com relação
ao tráfico negreiro. Um sinal de sua exatidão está na simultaneidade entre os processos da
revolução produtiva em seu seio, e o da brusca alteração de sua política negreira, ambas a
partir do final do século XVIII.
Este registro mostrou-se necessário para compreender a última fase do escravismo
brasileiro. Esta compreensão, articulada com a disponibilidade de mão-de-obra, parece ofere-
cer um importante quadro interpretativo para as práticas punitivas que se vão adotando sob o
330
MOURA, Clóvis. Brasil: as raízes do protesto negro, p. 18.
331
RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório, p. 131.
145
império. As mutações que a economia punitiva brasileira experimenta parecem tentar concili-
ar a manutenção da escravidão com a escassez do principal “bem de produção” da empresa
colonial: o escravo. Tem-se, assim, a seguinte problemática: uma maior inserção no mercado
mundial saída vislumbrada para a estagnação econômica - reclamava o aumento da produ-
ção; a produção, por sua vez, estava atada à grande disponibilidade dos principais “bens de
produção” da economia agro-exportadora: terra e força de trabalho escrava. Sua competitivi-
dade decorria exclusivamente destes fatores. A isto se alia a necessidade que as elites nutriam
de dar continuidade às relações sociais existentes. Em torno desta cláusula é que se agrupam,
em comum acordo, os poderes locais e também o recém-instituído Estado brasileiro: a manu-
tenção da escravidão.
2.2 A disciplina imperial-escravista: surgimento da penitenciária brasileira.
A adoção de uma Constituição razoavelmente liberal e de um Código Criminal do
mesmo tipo, tendia a fazer centralizar nas mãos do Estado todo aquele poder punitivo que a
colônia diluiu entre os donatários de terras. Assim acompanhava a moderna tendência mundi-
al, cuja última novidade consistia na construção de prisões. Nos países em processo de indus-
trialização, a funcionalidade da prisão estava na eficiência de impor a disciplina do trabalho
ordenado e repetitivo, próprio do manuseio de máquinas industriais. A persistência do direito
de propriedade sobre os negros, todavia, impedia a acumulação total do poder punitivo nos
aparelhos de Estado. Isto conduzirá à manutenção, mais ou menos inalterada, daquela conhe-
cida ambivalência. Portanto, também aos escravos, ao lado dos demais criminalizados de ou-
tro estatuto jurídico e social (imigrantes pobres, mulatos, negros forros, etc), se destinava a
pena pública, sem que isto pudesse implicar o banimento dos castigos privados nas unidades
produtivas das plantagens.
Desta forma, o escravismo continua a viver suas contradições: enquanto reduzia-se o
número de escravos, sobretudo a partir da efetiva proibição do tráfico transatlântico em 1850,
seria de se esperar, na segura trilha traçada por RUSCHE e KIRCHHEIMER, que os suplícios
e a utilização da pena de morte, se reduziriam. Entretanto, uma outra necessidade, menos eco-
nômica do que ciopolítica, impunha suas injunções. Em seu fim, a importância da escravi-
146
dão devia-se mais à manutenção da base de um sistema regional de poder do que como forma
de organização da produção.
332
Conforme assinalou NILO BATISTA:
a inevitável corporalidade de suas intervenções penais (tronco, libambo, golilha, palmatória,
açoites, mutilações) tem o sentido geral de preservar a força de trabalho adquirida; mas o
lesa-majestade escravista, o atentado contra o senhor, seus familiares ou feitores, sugere o
desemprego pela morte, ainda que na razão direta da oferta disponível no mercado de es-
cravos.
333
O caráter de exemplaridade que uma punição deve assumir numa sociedade com lo-
cais tão bem definidos na estrutura social, com o reforço adicional do mecanismo do medo,
forçava a permanência das penas cruéis e corpóreas. No entanto, a conjuntura de escassez de
mão-de-obra reclamava economia na punição. Um dos papéis que o Estado se incumbiu foi o
de tentar impor a moderação.
334
A dialética entre as penas públicas e privadas, deste modo se
exprime num movimento pendular: para além da oscilação entre o poder punitivo oficial e o
privado, a execução penal imperial frequentemente transitava da destruição para a preserva-
ção dos corpos. Assim, por exemplo, explica-se a verdadeira ojeriza senhorial à pena de galés,
mais do que à de morte: a imposição de trabalhos forçados constituía, neste contexto, um ver-
dadeiro confisco da propriedade do senhor, pior do que sua destruição. Como observa NILO
BATISTA, isto era de tal maneira verdadeiro que não faltou deputado para assinalar que as
penas de galés “faziam sofrer mais ao senhor do que ao escravo.”
335
Mas nem sobre os escravos o poder punitivo imperial deixava suas marcas. Segun-
do ANDREI KOERNER, desde a colônia a estrutura social produzia continuamente uma par-
cela de indivíduos livres e pobres. As oscilações de preços e mercados internacionais redun-
davam em crises mais ou menos agudas. Um de seus efeitos consistia no empobrecimento de
proprietários que, sem recursos, alforriavam seus escravos e liberavam os demais que dele
dependiam. Desatados dos núcleos produtivos, estes “desclassificados” socialmente nem
senhor nem escravo engrossavam as legiões de desocupados urbanos, que criavam um pro-
blema para o exercício do controle social. Nossa débil economia não conseguia utilizá-los,
inclusive porque eles recusavam o trabalho contínuo e subordinado na agricultura; isso os
332
FURTADO, Ob. citada, p. 141.
333
BATISTA, Nilo. Pena pública e escravismo. Arquivos do Ministério da Justiça. nº 190, ano 51, jul-dez/2006.
334
Exemplifica esta circunstância o texto do já mencionado art 60 do Código Criminal de 1830, transcrito na
nota 320.
335
BATISTA, Ob. citada.
147
identificaria aos escravos.
336
O problema da escassez de mão-de-obra, que se ia acentuando à
medida que o século XIX vai ficando para trás, não podia ser resolvido por eles. Isto imprimiu
à mentalidade dominante a idéia de que essa mão-de-obra livre, que tendia a se dedicar à agri-
cultura rudimentar de subsistência, não servia para as grandes lavouras. Desta maneira, mos-
trava-se difícil a construção de uma política de recrutamento interno, que depois cederia seu
lugar ao fomento de uma corrente de imigração européia.
337
Além das aglomerações em cen-
tros urbanos, o deslocamento constante era outra particularidade deste grupo social. O deslo-
camento também era conseqüência da precariedade da posse das terras que podiam conquistar
na condição de agregados. Mediante um incessante ir-e-vir estes indivíduos livres e pobres
procuravam se subtrair às relações de dependência pessoal a que invariavelmente se viam
submetidos quando ocupavam áreas pertencentes aos grandes proprietários.
338
Com isto ia se
incrementando o exército de desocupados nas cidades e distritos, que logo alimentaria as pri-
meiras penitenciárias brasileiras.
O Código Criminal de 1830 introduz, em meio às penas tradicionais (morte, galés, de-
gredo, banimento, desterro, multa) a pena de prisão, simples ou com trabalho. Fiel aos princí-
pios iluministas que prevaleciam no período, tal legislação também se adequava à responsabi-
lidade individual, ao princípio da legalidade, além de ter abolido algumas penas cruéis, como
a de açoites. Claro que isto não vigorava para os escravos, pois estes não usufruíam propria-
mente da condição jurídica de pessoas. Aos escravos, além daquelas penas genéricas que to-
mavam os crimes, não os indivíduos, por referência, se devia acrescentar as penas por açoites,
além de trabalhos forçados nas fazendas de seus proprietários, presos a ferros.
Na colônia havia muitas cadeias. Todas elas, porém, ficavam a cargo das cidades e
costumava funcionar não como local para a execução das penas, senão como destino de vadi-
os, mendigos, negros sem dono; ou seja, não era local reservado para sentenciados, no máxi-
mo para quem aguardava sua sentença. Seria apenas em 1833 que o governo imperial definiria
pela construção da Casa de Correção do Rio de Janeiro, mediante a adoção de um projeto ao
estilo panóptico. Assim, a Casa de Correção deveria, antes de mais nada, ser provida de uma
estrutura arquitetônica adequada, na qual as atividades dos presos pudesse ser a todo tempo
acompanhada sem muito esforço. Como local de reforma moral, as condições sanitárias e de
336
KOERNER, Andrei. Habeas-corpus, prática judicial e controle social no Brasil (1841-1920), p. 28.
337
FURTADO, Formação econômica do Brasil, p. 122.
338
KOERNER, Ob. citada, p. 29.
148
trabalho deviam ser as melhores. Afinal estas eram as características do modelo em que ela
havia se inspirado, utilizados já em larga escala nos Estados Unidos e na Inglaterra.
Ocorre que os grandes muros destas modernas prisões não se revelaram suficientes pa-
rar impedir que as peculiaridades brasileiras nelas adentrasse. Assim, em vez de um lugar
reservado à execução da pena de trabalhos forçados, com rígida disciplina interna, as inúme-
ras Casas de Correção que foram surgindo assumiram características radicalmente diferentes.
Vários presos, condenados ou não, eram desviados para estas instituições. ANDREI
KOERNER, ao analisar os Relatórios da Comissão Inspetora das Casas de Correção da Cor-
te observa, por exemplo, que aquela construída no Rio de Janeiro sempre recebeu presos de
todo tipo.
339
No espaço interior de suas muralhas, em acréscimo ao prédio inaugural, que
não respeitava o projeto, foram-se acrescentando inúmeros outros destinados a receber os
mais variados prisioneiros: logo no interior dos muros da Casa de Correção do Rio de Janeiro
havia “dois calabouços para os condenados a galés, duas oficinas e, ainda, o calabouço para
escravos e um depósito de africanos livres, o colégio dos menores, uma seção dos bombeiros
e a casa da administração do presídio.”
340
Mas era no plano das condições de salubridade e higiene que a Casa de Correção do
Rio de Janeiro iria se mostrar mais distante de sua concepção original: a superlotação que
logo ela experimentaria, somado à má-ventilação das celas, além da inexistência de separação
entre presos sadios e enfermos, fariam com que uma condenação superior a dez anos equiva-
lesse a uma sentença de morte. Em meio a uma hesitação entre adotar um regime disciplinar
definido, segundo o modelo de Auburn ou de Filadélfia, por exemplo, a disciplina logo passa-
ria às mãos dos guardas internos, que a impunha com extrema violência e desproporção. O
controle das punições disciplinares, devidas ou não segundo a legislação da época, ficava dis-
tante da atuação dos aparelhos institucionais competentes. De modo que o regime disciplinar
era imposto à margem das limitações legais e segundo os (reduzidos) escrúpulos dos adminis-
tradores. Esta situação acaba por se agravar, em função da disfuncionalidade arquitetônica da
instituição: incapaz de propiciar os efeitos da máquina panóptica sobre o comportamento dos
condenados, a disciplina interna reclama a presença permanente e próxima dos guardas, a qual
é indissociável da exibição e utilização dos instrumentos de violência único meio de obter a
obediência.
339
KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX, p. 212.
340
KOERNER, Ob. citada, p 212.
149
Além disso, as condições das prisões tendiam a reproduzir as estruturas sociais em vi-
gor do lado de fora. Isto significa que aos escravos e africanos livres estavam destinados os
piores lugares. Desta forma, às categorias legais de hierarquia de crimes e penas, agrega-se
uma classificação segundo a posição do condenado na hierarquia social. Àqueles que não des-
frutavam do estatuto jurídico de homem livre, mesmo sem a prática de qualquer delito,
podia se reservar as condições de salubridade correspondentes, isto é, as mais inferiores exis-
tentes.
Além disso, as primeiras penitenciárias brasileiras também se deixavam invadir pelas
práticas engendradas pela sobreposição pouco definida entre os poderes punitivos público e
privado. Os calabouços destinavam-se à imposição de punições aos escravos definidas pelos
próprios senhores via de regra açoites. Constituía uma verdadeira execução pública de um
castigo privado.
341
Não era pública porque feita em praças, à vista de todos, como eram as
execuções penais dos pelourinhos. Os calabouços, a partir da constituição do Estado imperial,
lhes substituiriam. Esta estranha associação tem uma significação da maior importância, pois
se seria de se estranhar que o Estado anuísse com o exercício da violência fora de sua “ju-
risdição”, como se deve conceber a execução blica, feita pelos agentes do Estado, de um
castigo que não passa de uma vingança privada. Poucas devem ter sido as experiências nas
quais o privilégio e a distinção de tratamento por parte de um ente que se diz porta-voz de
todos, tenha se exprimido de forma tão notável. Por isso, mais do que nas outras formações
sociais capitalistas, onde as linhas de separação entre os espaços decisórios públicos e privado
são por natureza indefinidas, sob o escravismo brasileiro, a tendência de concentração do
poder punitivo, correlativa à constituição de um Estado nacional de que o império tinha se
incumbido, em vez de exprimir uma tendência em reequilibrar o peso político dos diversos
estratos sociais, traduz justamente o contrário. O primeiro Estado brasileiro, na verdade, é a
expressão mais acabada de como pode esta estrutura institucional burguesa ser apropriada por
interesses privados, e assim garantir, pelo uso da força física, o sucesso de seus empreendi-
mentos.
341
BATISTA, Pena pública e escravismo, observa que “para os senhores, a sentença era apenas sua vontade, e
no Calabouço, ‘ao preço de 100 réis cada 100 chicotadas’, o serviço público executava a pena privada; em 1826,
o preço já estava em ‘160 réis por centena de golpes, mais 40 réis por dia para cobrir os custos de subsistência’, e
naquele ano ‘1.786 escravos, entre os quais 262 mulheres, foram oitados no Calabouço a pedido de seus se-
nhores’. A tradição de agências públicas exercerem o poder punitivo privado pode mirar-se, na Curitiba de 1699,
na aquisição pela mara Municipal de um tronco: a comistura entre pena pública e vingança privada escravista
resulta numa pena escravista exercida como vingança pública.”
150
Do lado de fora das Casas de Correção do império, o poder punitivo também resistia à
uma regulamentação minimamente submetida à legalidade. Ora a legalidade ingressara, jun-
tamente com a igualdade, no sistema penal brasileiro por meio da Constituição de 1824, o que
foi confirmado pelo art do Código Criminal de 1830. Mas foi através do Código de Proces-
so, aprovado em 1832, que o projeto de um Estado de direito sucumbe definitivamente à rea-
lidade de um estado de polícia. A consagração do poder policial viria, mais precisamente, com
a reforma do diploma processual levada a efeito em 1841, a fim de transferir, dos juízes de
paz para as autoridades policiais, os poderes inclusive de julgar os crimes e contravenções
punidos com até 6 meses de prisão.
342
Ao incremento do poder das agências executivas de controle social se segue o estabe-
lecimento de sua principal função: a arregimentação de força de trabalho para as obras públi-
cas do Estado em formação. Como dissemos, o século XIX não vivencia um aproveitamen-
to do potencial de força de trabalho existente. Afora os escravos, que eram artigos privados
aos quais o Estado dificilmente teria acesso, à polícia se incumbiu a tarefa de angariar traba-
lhadores para os serviços públicos. Desta forma os indivíduos que vagavam desocupados,
sobretudo nas cidades, eram imediatamente detidos, sem qualquer acusação, e mantidos nas
prisões por prazo indeterminado para serem aproveitados como mão-de-obra gratuita. Desta
forma a estrutura social poderia resguardar um lugar específico em sua escala hierárquica para
estes sujeitos não-localizáveis. Ora, o fato de não serem nem proprietários nem propriedade
deslocalizava este sujeitos, que formavam uma massa de pobres livres desatados às relações
de dependência com os senhores de terras. Desta maneira estes indivíduos constituíam um
perigo para a ordem social em vigor. Na medida em que o poder social, mesmo condensado
nas mãos do Estado, o desfruta de qualquer crença de legitimidade perante aqueles a que
submete, a inexistência de um laço de dependência ao modo tradicional (patriarcal ou patri-
monial), por certo tornava estes sujeitos potenciais insurretos. Seria de se esperar alguma ati-
tude voltada a absorvê-los e fixá-los numa posição social particularizada e subalterna eviden-
temente. A isto ainda se acrescente que numa economia em que o trabalho organizado era
342
BATISTA, ZAFFARONI et al. Direito penal brasileiro I, p. 427. Segundo HOLLOWAY, Thomas H. Polícia
no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Var-
gas, 1997, p. 254, tal redistribuição de poder punitivo se deu mais em razão das condições da capital federal de
então, o Rio de Janeiro. Na visão das elites políticas, as instituições anteriores (juízes de paz e Guarda Nacional)
se mostraram incapazes de reduzir os maus-hábitos das populações de rua, daí que deveriam ceder espaço “sis-
tema especializado, profissionalizado e centralizado, tido como necessário ao policiamento eficiente, que entrou
definitivamente em vigor com a reforma judicial de 1841.”
151
reservado aos escravos, poucas possibilidades restavam àqueles que a estrutura social não
havia destinado um local.
As Casas de Correção da corte imperial, quer com seus desdobramentos internos
(dentro de seus muros), quer com aqueles produzidos para o lado de fora, constituem assim o
segundo moinho de gastar gente brasileiro. Ele agora insinuava que avançaria sobre outras
camadas de despossuídos, ainda que não submetidos ao trabalho compulsório do eito. Por
estar inserida numa sociedade escravocrata, os piores castigos tendem a recair sobre aqueles
que se encontram na sua base, os escravos. Eles eram, em sua quase totalidade, negros. Daí
que era aos africanos, mesmo livres, a quem se reservava os piores subprodutos de um sistema
punitivo estruturalmente incompatível com qualquer traço iluminista, apesar das intenções
legais.
Desta forma, se fosse lícito concluir que as condições das prisões tendem a reproduzir
a estruturação social vivenciada em seu entorno, não se pode esperar que, sob o escravismo,
as prisões se traduzam em melhoria das condições de vida das classes subalternas.
343
Um dado
estrutural das prisões atua para que o pêndulo punitivo imperial se aproxime do lado do suplí-
cio: se um prisioneiro nunca pode desfrutar de condição melhor do que aquela dos indivíduos
de sua mesma classe em liberdade, a instituição de penitenciárias inevitavelmente desaguaria
na opção entre a morte e a tortura.
344
É desta forma que, mesmo diante de um estoque de força
de trabalho reduzido em vista das várias demandas que surgem, o sistema penal brasileiro não
deixou de atuar para destruir esta força de trabalho. A única possibilidade de dominação que
seu desenvolvimento econômico subserviente lhe abriu exige a manutenção dos dispositivos
complementares de distância social e proximidade física, de que fala ANDREI KOERNER.
As condições das penitenciárias construídas pelo império, de tão desfavoráveis, tornava im-
possível que aqueles que resistissem ao enclausuramento, retornassem à condição de indiví-
duos capacitados para o trabalho. A pena por excelência num Estado do capitalismo depen-
dente e que mantém a escravidão, ainda não é a prisão, até porque não havia nenhuma revolu-
ção industrial: ainda que não formalmente imposta ou não deliberadamente executada, conti-
343
KOERNER, Andrei. Punição, disciplina e pensamento penal no Brasil do século XIX, p. 222.
344
Cf. BATISTA, Ob. citada: “quando a condição existencial do réu era a pior possível, privada do ‘estado de
liberdade’, e ainda lhe fôra imposta coercitivamente, constitui refinada arte a construção de uma teoria jurídica
da pena que evite o apocalipse econômico ou a catástrofe moral: a pena de morte ou um castigo físico
doloroso podem responder às infrações dos escravos. Ou morte, ou tortura, eis o dilema dos penalistas do escra-
vismo”
152
nua a ser a de morte. Assim se pode aliviar a caridade pública, pois a sobrevivência de egres-
sos das prisões, invariavelmente inválidos para qualquer atividade produtiva, por certo recla-
maria alguma assistência social. A estes indivíduos, principalmente escravos e ex-escravos,
continuava a se negar qualquer possibilidade de ascensão social. Sua localização definitiva
junto à franja de economicamente inúteis é que, logo, com a institucionalização do trabalho
assalariado, permitiria que no Brasil se continuasse a pagar as menores remunerações pela
venda do único bem a que muitos tem acesso: sua força de trabalho.
3. O sistema republicano-positivista.
Continuando com aquela perspectiva confortável de distinguir os sistemas penais bra-
sileiros segundo os momentos das transições políticas que o Brasil experimentou na sua histó-
ria, é chegado o momento de se analisar as características do sistema penal republicano. Em-
bora ele não abranja um período histórico muito extenso, guarda muitas particularidades. E-
xemplo disso são os vários diplomas penais essenciais, os Códigos, que vigoraram desde a
proclamação da República. Antes de prosseguir, porém, parece necessário reafirmar a valida-
de da opção de periodização aqui realizada: se optasse por tomar, como linhas divisoras dos
processos históricos, as mudanças produzidas pelo avanço das forças produtivas em vez da-
quelas operadas pelas rupturas políticas, tais linhas por certo não seriam tão visíveis. Esta
questão, que no fundo é metodológica, parece confirmar a prevalência dos acontecimentos
políticos, que têm nas relações de produção sua base, em face das forças produtivas. Reafir-
ma-se assim uma premissa metodológica que norteia toda esta dissertação. Esta prevalência,
porém, não é de molde a estabelecer uma supremacia cognitiva, especialmente no Brasil: a
abolição da escravatura, por exemplo, em boa medida, resulta da insustentabilidade de se
manter um regime de servidão num quadro econômico de desenvolvimento que, mesmo com
timidez, permitia alguma complexificação social, notadamente nas cidades que começavam
a incrementar seus contingentes populacionais. Neste contexto mais urbano começa a germi-
nar a indústria manufatureira; nela o emprego da mão-de-obra escrava não seria possível, em-
bora haja registros de que pelo menos para aquelas tarefas secundárias e acessórias ela tenha
sido utilizada.
345
Além disso, também aqui o Brasil se distingue pela solução de continuidade
345
PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil. 12 ed. São Paulo: Brasiliense, 1970, p. 175.
153
a que seus momentos de transição são atados. Esta contradição resulta da eficácia de um me-
canismo social que concentra a negociação e o embate político no topo da pirâmide social.
Pois bem, nesta mesma perspectiva política, a proclamação da República, em 1889,
sucede num momento de profunda conturbação social, mais ou menos sintomático das contra-
dições que o regime escravista produzia. A Abolição da escravidão ainda era muito recente
(1888) e resultou de um período de “maturação” política considerável. Mais uma vez a transi-
ção política no Brasil, ao contrário do que ocorre em muitos países, não se dava mediante
rupturas. A plasticidade das estruturas de dominação a que tenho aludido, imprime aos pro-
cessos políticos uma velocidade toda própria, cuja resultante é a manutenção, no topo da pi-
râmide social, das mesmas classes e no mesmo reduzido percentual numérico. Assim como a
Abolição foi conseguida por etapas (de pelo menos 1850 até 1888), a República, apesar de
surgir de nosso primeiro golpe militar, sugere uma impressionante capacidade de adaptação
daquela porção das elites brasileiras que manietava, a partir da aparelhagem do Estado, os
parcos dinamismos que o sistema produtivo ameaçava engendrar.
O balde transborda com a Guerra do Paraguai, que ao lançar mão de escravos, princi-
palmente, como não poderia deixar de ser, nos piores locais (fronts de batalha), precipita a
necessidade de se dar cabo da escravidão. Segundo CAIO PRADO, mesmo vencedor, o fato
de ter se valido de escravos para guerrear, fez com que o Brasil terminasse a guerra humilha-
do, quer frente seus aliados da ocasião, que perante os próprios vencidos paraguaios.
346
As
agitações e o medo de um levante do grande contingente populacional negro se aguçam e ape-
sar do apoio de Pedro II, os recalcitrantes escravistas, sobretudo coronéis do nordeste brasilei-
ro, em vez de abrir mãos apenas de seus anéis, perdem os dedos e também suas mãos e bra-
ços. Os senhores de engenho nordestinos perdem assim a guerra, que se iniciara quando do
incremento da imigração interna de escravos rumo aos centros cafeicultores do centro-sul,
cuja demanda de mão-de-obra era muito maior. O fato é que a Abolição teve mais um signifi-
cado político do que econômico.
347
Com ela uma transição seria inevitável, ainda que contro-
lada.
346
PRADO JR, Ob. citada, p. 178.
347
Cf. FURTADO, Formação econômica do Brasil, p. 141, “A escravidão tinha mais importância como base de
um sistema regional de poder que como forma de organização da produção. Abolido o trabalho escravo, prati-
camente em nenhuma parte houve modificações de real significação na forma de organização da produção e
mesmo na distribuição da renda. Sem embargo, havia-se eliminado uma das vigas básicas do sistema de poder
154
A República logo emerge como um golpe militar de fácil realização, produto de uma
tentativa inócua da administração imperial em tentar manter as aparências de uma domina-
ção política que ela não possuía. A tentativa de ocultar o deslocamento do cetro do poder
político para o sudeste cafeeiro era impossível. Talvez por isso o golpe prescindiu de qualquer
apoio popular para ocorrer. Introduzia-se assim a espada no palco político brasileiro e o poder
militar dará, daí por diante, recorrentes provas de sua força e de sua capacidade de interven-
ção. Como contrapeso, implementa-se uma política de descentralização administrativa de tipo
federalista, que logo facilitaria o surgimento de mecanismos de dominação distintos, baseados
no que se convencionou chamar, particularmente no Nordeste decadente, de coronelismo. Em
troca do apoio eleitoral do chefe local o poder central outorgava-lhes carta-branca e também
uma ampla autonomia administrativa: era a política dos governadores na qual o entrosamento
entre as oligarquias estaduais e as municipais, com a consolidação do golpe republicano, fe-
charia a concertação que lhe daria suporte.
348
Assim, em que pese a mencionada condensação
do poder político rumo ao centro-sul brasileiro, a contribuição dos chefes políticos locais, não
do Nordeste, foi operacionalizada mediante a devolução dos poderes locais que o império
havia subtraído. Assim, superado o momento do Governo Provisório, representado momenta-
neamente pelas Forças Armadas, “a tarefa estava definida: converter a opinião republicana,
até então largamente minoritária, na opinião dominante. Nada mais simples. Substituir-se-ia a
farsa eleitoral monárquica pela farsa eleitoral republicana, com a mesma unanimidade.” E
assim, as eleições logo se transformariam no argumento para legitimar o poder, não para ex-
primir a sincera vontade popular.
349
A aliança das elites se dera em torno da pujança econômica que o país experimentara
na segunda metade do século XIX, tendo como centro propulsor as culturas agro-
exportadoras, em especial o café. Para o sucesso econômico então experimentado, certamente
um dos mais proeminentes até hoje, convergiram fatores externos e internos, numa troca de
estímulos digna de registro. Do ponto de vista externo, a expansão do comércio internacional,
impulsionada pela vertiginosa transformação das forças produtivas que caracterizou a revolu-
ção industrial, desaguou no incremento da capacidade de consumo das populações européias e
formado na época colonial e que, ao perpetuar-se no século XIX, constituía um fator de entorpecimento do de-
senvolvimento econômico do país.”
348
A respeito, ver o clássico LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975;
também o não menos clássico FAORO, Os donos do poder. v 2, p. 620 e segs.
349
FAORO, Ob. citada, p. 623 e 629.
155
também dos Estados Unidos. Sob este influxo, a disseminação das idéias do liberalismo, a se
projetar de maneira preponderante sobre o livre fluxo de mercadorias e capitais, também foi
fator importante.
A perspectiva interna merece um pouco mais de cuidado. Para ser favorável, a conjun-
tura interior não teria outra escolha senão se socorrer, com a rapidez necessária para não per-
der o bonde do notável desenvolvimento econômico internacional, dos recursos que sua com-
pleição econômica, de capitalismo dependente e ainda incipiente, poderia proporcionar. O
potencial produtivo ainda se assentava no fator disponível que era a profusão de terras. Para
isso seria necessário incorporar mais mão-de-obra. Deste modo a chave de todo o problema
econômico estava na oferta de mão-de-obra.
350
Ocorre que o estágio alcançado pelas forças
produtivas já não podia tolerar a prestação de trabalho sem retribuição econômica.
Para aproveitar a conjuntura econômica favorável a questão da mão-de-obra exigia so-
lução imediata. Ela não viria através da assimilação da oferta interna, pelo contrário. Para isso
concorreu, em primeiro lugar, a percepção de que a mão-de-obra livre, constituída pelos ro-
ceiros que se dedicavam à economia de subsistência e pelos pobres que se acumulavam nas
grandes cidades sem ocupação produtiva digna de registro, eram inservíveis para a “grande
lavoura”. Seus hábitos de dispersão moral e pouca retidão produtiva os fariam inadaptáveis
para assumir aquele trabalho que até então era compulsório e desempenhado pelos escravos
no eito. De outro lado, e por motivo análogo, o imenso contingente de negros libertos pela
Abolição tampouco foi aproveitado. Preferiu-se, em troca do recrutamento interno, particu-
larmente para aprovisionar a região do interior paulista para onde a cultura do café rapida-
mente se expandia, pela importação de mão-de-obra européia, subvencionada pelo Estado.
351
Se no princípio a imigração era bancada pelos grandes fazendeiros, logo o Estado entraria em
350
FURTADO, Ob. citada, p. 120.
351
Convém registrar que esta não foi a única forma de incentivo à imigração praticada, mas foi a preferida. An-
tes dela intentou-se um recrutamento de europeus a fim de que eles se localizassem em pequenas propriedades de
terras agrupadas em núcleos e doadas pelo Estado. Formavam-se assim, verdadeiros núcleos povoadores, fixados
na terra e com ela identificados, em vez de populações flutuantes e desenraizadas. Prova-o os resultados da mai-
or aplicação deste sistema de colonização nos Estados do sul do Brasil, particularmente Santa Catarina e Rio
Grande do Sul. Os entusiastas desta alternativa, consoante registra CAIO PRADO, Ob. citada, p. 189, “nada
puderam contra o interesse poderoso dos proprietários necessitados de braços e que precisavam de uma solução
imediata para o problema premente de mão-de-obra que enfrentavam. Sobretudo nas regiões onde a grande la-
voura dominava de uma forma absoluta, particularmente em São Paulo, nunca se cuidará em escala apreciável da
organização de núcleos coloniais de pequenas propriedades. Os imigrantes que chegavam eram poucos para as
necessidades da lavoura cafeeira sempre em franco progresso, e a quase totalidade deles se fixarão nas fazendas
como simples assalariados.”
156
cena para colaborar. Desde 1870 ele encarrega-se de financiar os gastos das viagens dos imi-
grantes. As demais despesas eram adiantadas pelos fazendeiros, de modo que os imigrantes só
poderiam ver-se desatados dos vínculos que os unia ao senhor depois que quitassem suas dí-
vidas. Em suma: “O Estado financiava a operação, o colono hipotecava seu futuro e o de sua
família, e o fazendeiro ficava com todas as vantagens.”
352
O decisivo era que, na condição de única fonte de poder político, o senhor de terras
voltadas à exportação geria como bem lhe aprouvesse a transição para a República e para a
economia de trabalho assalariado. O desfecho poderia ser outro: além dos estoques decorren-
tes de pobres livres e negros forros, o reservatório substancial de mão-de-obra existente podia
ser reforçado com a volumosa corrente migratória nordestina que havia acorrido à região a-
mazônica. A economia desta região, desde o último quartel do culo XVIII, se encontrava
em estado de letargia, fruto da decadência de seus produtos extrativos. Isto sugere que, “se
não tivesse sido possível solucionar o problema da lavoura cafeeira com imigrantes europeus,
uma solução alternativa teria surgido dentro do próprio país.”
353
Trata-se de uma opção política tipicamente elitista, tomada por uma elite econômica e
política que se percebia como superior, inclusive do ponto de vista biológico. Esta política
redundaria na subutilização da reserva de mão-de-obra que se foi acumulando no país no pe-
ríodo anterior à expansão cafeeira. Assim esse setor pôde manter o mesmo salário real durante
toda a sua longa expansão. Bastava que seus salários fossem, em termos absolutos, um pouco
mais elevados do que aqueles pagos nos demais setores da economia, para que a força de tra-
balho tendesse a se deslocar na direção desse setor. Para isso a subutilização da força de traba-
lho interna foi fundamental: tudo leva a crer que se a expansão da economia cafeeira tivesse
dependido apenas da mão-de-obra imigrante, os salários não teriam seus veis controlados
tão facilmente. Tenderiam a se estabelecer em níveis mais altos, como aliás aconteceu na
Austrália e na Argentina.
Vê-se assim como esta parece ter sido uma política consciente de superprivilegiamen-
to das classes altas e dias em detrimento de toda aquela massa seccionada do sistema pro-
dutivo, constituída sobretudo de ex-escravos. A manipulação política dos sucessos experimen-
tados pela economia cafeeira era tamanha que, mesmo em condições de incremento da produ-
352
FURTADO, Ob. citada, p. 126.
353
FURTADO, Ob. citada, p. 131.
157
tividade e de alta de preços, uma esperada transferência de renda para as classes assalariadas
não se realizava. Toda a melhora de produtividade era revertida para o próprio fazendeiro,
dada a inexistência de qualquer pressão sobre a elevação dos salários. Além disso, a disponi-
bilidade de força de trabalho tampouco pressionaria o empresário da cafeicultura a substituí-la
por capital, ou seja, não lhe faria interessante aumentar a quantidade de capital por unidade de
mão-de-obra. A tendência seria a de sempre preferir a reversão dos capitais novos na expan-
são das plantações em detrimento da melhoria dos métodos de cultivo.
Para o sistema punitivo esta configuração econômica desfrutou de notável projeção,
particularmente para fazer frente à necessidade de controle social desta imensa massa de mar-
ginalizados que a economia nacional deveria permanentemente produzir mas nunca absorver.
Seus desdobramentos, quer no nível da legislação, quer naquele dos discursos e práticas que
vão se incorporando ao saber oficial da primeira República, merecem um tratamento indivi-
dualizado, como o que se pretende fazer na seção seguinte.
3.1 O controle social da primeira República: o positivismo-criminológico.
Com a proclamação da República, logo surge um novo Código penal (1890), que ape-
sar de ser uma reprodução pouca alterada de seu antecessor
354
, pelo menos abolira as penas de
açoites e deixara de consagrar abertamente o exercício doméstico do poder punitivo delegado
aos donos de escravos. Pode-se dizer, ademais, que sua faceta liberal, ainda que de forma tí-
mida, aprofundou-se. O cariz liberal do Código, logo reforçado pela Constituição de 1891 que
extinguiu, por exemplo, a pena de degredo, imporia uma demanda às elites.
355
É por isso que
se assiste a substituição, como padrão de funcionamento do sistema penal, da inferioridade
jurídica do escravismo por uma inferioridade biológica ou cultural. Esta inferioridade tribu-
tada à própria condição do sujeito, seria explicada menos em função de uma definição do po-
der do que através de uma demonstração científica, de preferência empiricamente demonstrá-
vel. Por isso que o positivismo criminológico, principalmente aquele que enfatiza traços bio-
lógicos, é efusivamente recepcionado no Brasil republicano.
356
354
Cf. BATISTA, ZAFFARONI et al. Direito penal brasileiro I, p. 446.
355
Constituição de 1891, Art 72, § 20. Fica abolida a pena de galés e a de banimento judicial.
356
A este respeito ver ALVAREZ, Marcos César Alvarez. A criminologia no Brasil ou como tratar desigual-
mente os desiguais. Dados Revista de Ciências Sociais, v 45, 4, 2002, p 677-704; também, do mesmo autor,
Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003.
158
Grosso modo, todo positivismo criminológico pode ser definido segundo sua tendên-
cia em procurar perceber em determinados indivíduos uma espécie de inferioridade constitu-
tiva. A natureza desta inferioridade pode estar associada ao desenvolvimento biológico ou
processo de assimilação de valores culturais, ou ainda, derivar de certos hábitos assimilados
através do ambiente social no qual estão inseridos. Nesta perspectiva, para se chegar ao ra-
cismo, é necessário menos do que um passo. A criminologia ganha contornos racistas logo
que surge. Desta maneira revela-se um discurso com aparência científica que serve às justifi-
cativas mais variadas. Se à burguesia, consolidada no poder desde os fins do século XVIII,
deixava de ser interessante o discurso racionalista da igualdade de todos perante a lei,
357
à
aristocracia decadente o discurso racista também se mostrava caudatário, à medida que lhe
permitia sustentar seus antigos privilégios, que para eles não eram outra coisa senão a com-
provação científica da desigualdade que a própria natureza estabelece.
358
A correta compreensão da introjeção dos saberes criminológicos nas fronteiras brasi-
leiras, porém, reclama mais algumas precisões. Ora, na percepção das elites a maior parte da
população brasileira não estava capacitada para contribuir com a constituição da nova ordem
política e social republicana. Desta forma era necessário um discurso apto a reconduzir as
classes subalternas ao local que a hierarquia social sempre lhe reservou. A situação mais se
agravava em função da considerável massa de negros libertos despejados, sem qualquer inde-
nização ou política de amparo, nas maiores cidades brasileiras, particularmente na capital na-
cional, o Rio de Janeiro. Na escala social anterior, forjada sob o escravismo, não havia um
degrau reservado aos negros. Eles estavam fora; a justificativa, embora pobre e lacunosa, era
jurídica. Com a assunção da igualdade jurídica, instituída pelo Código Penal republicano e
reforçada pela Constituição de 1891, o argumento teria que ser deslocado para o campo da
ciência, a quem passaria a incumbir a tarefa de apresentar os argumentos que assinalavam a
inferioridade daquela população tida por desordeira, incapaz para o trabalho e carregada de
vícios.
Este discurso racista ganha foros de legitimidade porque a República havia emergi-
do sem qualquer respaldo popular. Assim como em muitas outras ocasiões, cumpre enfatizar
mais uma vez, a transição para a primeira República deve ser percebida como realizada ape-
nas na medida necessária ao acomodamento das elites de sempre na nova configuração insti-
357
CF. ZAFFARONI, E Raul. Criminología: aproximación desde un margen. Bogotá: Themis, 1988, p 132.
358
Neste último sentido, LUCKÁCS, Georg. El asalto a la razón. México: Grijaldo, 1972, p 538.
159
tucional. Por isso, a rigor, foi incompleta e revelou mais uma vez a eficácia de mecanismos de
dominação difusos cuja vigência desconhece legitimidade e mesmo a forma legal. O que a
criminologia permitiu foi acrescentar, a estes mecanismos de ordem econômica, política e
jurídica, um ingrediente racial. Ainda que grosseiro, este discurso, que aliás já estava conhe-
cendo sua decadência na Europa, de onde o importamos, podia ser manejado com alguma
tranqüilidade em vista do reduzido interesse das elites dominantes em ampliar sua base de
legitimação, mediante, por exemplo, a expansão das garantias e direitos civis, políticos e soci-
ais.
359
Afinal, a opção eleita era outra. A fim de manter intocada a estrutura social legada da
colônia e, simultaneamente, concentrar os dividendos do modelo econômico em suas mãos,
seria de se esperar que em vez de promover uma integração de camadas sociais mais amplas,
as elites brasileiras continuassem a lançar mão das velhas estratégias de reforço dos mecanis-
mos aludidos. Estas estratégias, na qualidade de estrutura complementar da distância social
que aqueles mecanismos traduzem, continuam a basear-se na proximidade sica, portanto na
violência aberta contra movimentos populares – no interior dos quais os estrangeiros, particu-
larmente italianos, logo despontariam com suas idéias anarquistas - bem como na permanente
vigilância daquelas populações desocupadas que “poluíam” as cidades. Numa espécie de rea-
firmação do clima social já encontrado no império, o controle social se transmudava, do medo
de escravos revoltosos para o pavor advindo dos negros forros e outras categorias de pobres
livres, que lotavam os centros urbanos. Houve assim uma substituição da clientela preferenci-
al do controle punitivo: o escravo pelo pobre, ambos prevalentemente negros. Perigosas pas-
savam a ser aquelas classes que o sistema de produção não queria nem tinha a mínima inten-
ção de incorporar.
360
Deste ponto se torna mais compreensível o entusiasmo tardio que as idéias alimenta-
das pela criminologia etiológica de cariz biológico encontraram ao ingressar no Brasil. O ca-
ráter pragmático com o qual sua penetração foi revestida explica não o sentimento de arre-
batamento que tomou as elites, mas também o ecletismo aparentemente contraditório que lhe
distinguiu.
O surgimento do Código Penal liberal de 1890, nele embutida a igualdade jurídica, não po-
deria redundar na não consideração das particularidades raciais do país: é precisamente para
359
ALVAREZ, Marcos sar Alvarez. Bacharéis, criminologistas e juristas: saber jurídico e nova escola penal
no Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, p. 67.
360
Cf. SOUZA SERRA, Marco Alexandre. Sistema penal e relações raciais: uma lei e dois códigos. mimeo,
2004.
160
a manutenção da desigualdade que a recepção da antropologia criminal ganhou fôlego re-
novado ao chegar ao Brasil.
361
Daí que ao ingresso da antropologia criminal, que se distinguiu por ser a vertente mais
fortemente assimilada, se seguiu a aceitação quase conjunta, além da antropologia de
LOMBROSO, também da sociologia de FERRI e do etnocentrismo pouco elaborado de GA-
RÓFALO, que acabaram por encetar uma notável confusão de conceitos na utilização indis-
tinta de pressupostos, quaisquer que fossem eles. A percepção generalizada foi a de que as
estruturas legadas da Escola Clássica e consagradas no Código Penal não serviam às especifi-
cidades brasileiras. As transformações experimentadas pelas novas necessidades de controle
social colocadas pela nova configuração social, sobretudo urbana, demandavam novos sabe-
res, que deveriam se debruçar com mais propriedade sobre os atavismos de determinadas po-
pulações degeneradas.
Conforme pude assinalar, a esta recepção, ao nível dos saberes e num primeiro
momento, sucede uma radical postura, no nível das práticas, de não assimilação deliberada e
consciente dos parâmetros legais. Dizia-se, então, que as peculiaridades do povo, sobretudo
quanto à sua constituição fisiológica, exigia cuidados especiais. Deste modo ensejou-se uma
união um tanto quanto promíscua, conquanto estável, entre saberes médicos e jurídicos, cuja
prole conhecerá um pródigo futuro, infelizmente. A biologia, através da medicina e empu-
nhando o discurso da higiene social, toma assim o lugar antes ocupado pela teologia no altar
da intolerância que marca a genealogia das idéias penais no Brasil. O crime tende assim a ser
concebido como uma questão de saúde pública, conduzindo a uma forte intromissão da ciên-
cia médica no âmbito do controle do delito, a partir de quando se mostrou necessário “retirar
as diferenças humanas do reino incerto da cultura e alojá-las na moradia segura das ciências
naturais marcadas pelo determinismo”
362
O saber médico, enquanto tradução perfeita de “ci-
ência”, atropela as fronteiras judiciárias não para destroná-las, mas para lhes fornecer um dis-
curso que possibilite redobrar os cuidados com as populações degeneradas, que a tecnologia
de controle penal tradicional não poderia dar conta: “O discurso médico quer oferecer ao
Estado uma tecnologia de gestão e controle sobre as populações que não se dará pela re-
pressão, mas como complemento de programas de higienização e de saúde pública, ganhan-
361
.SOUZA SERRA, Ob. citada.
362
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil - 1870-
1930. São Paulo: Cia das Letras, 2000, p 64.
161
do caráter técnico-científico.”
363
Enfim, tendo em vista as emergências de uma elite incon-
formada com a incompatibilidade imanente que a igualdade republicana exprimia diante da
estrutura social brasileira, se logrou encontrar uma fórmula que não deixasse de assinalar as
desigualdades percebidas como constitutivas. Para isso a criminologia etiológica foi provi-
dencial. Pois ela vai “empreender uma crítica radical dos fundamentos do direito penal libe-
ral. Ela vai traçar uma história evolutiva segundo a qual o direito, a partir da criminologia,
pôde enfim tornar-se uma ciência, redefinindo retrospectivamente o passado como um passa-
do de erros.”
364
Logo este ponto de vista avançaria sobre as próprias leis, o que deu ensejo a uma pro-
fusão de leis especiais promulgadas a fim de diluir a força política da igualdade formal estabe-
lecida pelo Código de 1890 e pela Constituição que logo reafirmara tal postulado. O reconhe-
cimento de uma compilação cuidadosa, realizada com paciência beneditina, uma vez que pre-
servava a estrutura articulada do Código “enxertando-lhe os acréscimos e alterações”, confec-
cionada pelo Desembargador Vicente Piragibe e oficializada como Consolidação das Leis
Penais, seria o maior sintoma desta situação.
365
Mas não se pode esquecer o nível talvez mais
importante, que diz respeito àquele das práticas, no interior do qual se forjam reformas insti-
tucionais, mas sobretudo, se estabelecem dispositivos jurídico-penais que não são mais do
que uma das formas de expressão dessas práticas - condizentes com a percepção dominante da
elite republicana.
366
367
Uma pérola dos elementos que habitavam a representação social das
elites da época consta do seguinte trecho de uma obra do médico NINA RODRIGUES:
363
RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p 42.
364
RAUTER, Ob. citada, p 25.
365
BATISTA, ZAFFARONI et al. Direito penal brasileiro I, p. 456.
366
ALVAREZ, A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os desiguais, Ob citada, p. 696, “Tam-
bém nos tribunais, as concepções acerca do criminoso nato e seus desdobramentos se fizeram presentes durante
muito tempo no Brasil. Portanto, a incorporação das idéias da antropologia criminal ao debate jurídico local não
deixou de produzir efeitos concretos e duradouros, tanto no plano dos saberes como no das práticas penais. Em
todas essas discussões e ações, o grande desafio consistia em ‘tratar desigualmente os desiguais’ e não em esten-
der a igualdade de tratamento jurídico-penal para o conjunto da população. A introdução da criminologia no país
representava a possibilidade simultânea de compreender transformações pelas quais passava a sociedade, de
implementar estratégias específicas de controle social e de estabelecer formas diferenciadas de tratamento jurídi-
co-penal para determinados segmentos da população. Como um saber normalizador, capaz de identificar, quali-
ficar e hierarquizar os fatores naturais, sociais e individuais envolvidos na gênese do crime e na evolução da
criminalidade, a criminologia poderia transpor as dificuldades que as doutrinas clássicas de direito penal, basea-
das na igualdade ao menos formal dos indivíduos, não conseguiam enfrentar, ao estabelecer ainda os dispositivos
jurídico-penais condizentes com as condições tipicamente nacionais.”
367
A duração dos efeitos da eleição do saber criminológico positivista e causal difundiria-se por um período de
tempo considerável e muito provavelmente até hoje continua internalizada nas representações sociais dos opera-
dores jurídicos. Parecem -lo de manifesto a perpetuação de práticas judiciais de forte reminiscência medieval,
como a priorização da confissão no processo penal atual exemplifica. Até porque parece defeso negligenciar a
162
Posso iludir-me, mas estou profundamente convencido de que a adoção de um código único
para toda a república foi um erro grave que atentou grandemente contra os princípios mais
elementares da fisiologia humana.
Pela acentuada diferença da sua climatologia, pela conformação e aspecto físico do país, pe-
la diversidade étnica de sua população, tão pronunciado e que ameaça mais acentuar-se
ainda, o Brasil deve ser dividido, para os efeitos da legislação penal, pelo menos nas suas
quatro grandes divisões regionais, que, como demonstrei no capítulo quarto, são tão natural
e profundamente distintas
.
368
A importância, inclusive cognitiva das práticas humanas, é comprovada, entre outros
fatores, pelo fato de que elas constituem uma imagem do real acessível à percepção humana.
Esta dissertação assumiu como pressuposto norteador que o verdadeiro poder do exercício
punitivo se concentra na ponta do sistema penal, onde a polícia atua imune ao controle dos
aparatos do Estado de direito. É que se define o funcionamento do sistema penal - notada-
mente aqueles latino-americanos - pautado pela desigualdade e pela seletividade, nas suas
práticas concretas. Com o reforço dos discursos a que se acabou de aludir, disseminado inclu-
sive a partir de autoridades científicas e políticas, a polícia emerge como a instituição central
do controle punitivo das classes subalternas e condenadas ao sub-aproveitamento produtivo
pelo capitalismo dependente. Ela se obriga a tecer relações sociais complexas, mas que po-
dem, senão simplificadas, pelo menos ser sintetizadas: o fim da escravidão, a assunção da
igualdade perante a lei, além de outros postulados iluministas, tende a constituir uma outra
espacialidade, mais pública e impessoal, onde as relações sociais podem desenvolver-se com
mais liberdade; neste espaço também os conflitos podem se equacionar, mediados por meca-
nismos e institutos próprios ao Estado de direito. O papel delegado à polícia, a partir da urba-
nização brasileira, que na verdade se inicia desde a independência mas se reforça com a in-
cremento da complexidade urbana provocado pela Abolição, consiste em manter e garantir a
continuidade de relações hierárquicas tradicionais, estendendo-as ao espaço público impesso-
al. Isto é próprio da adaptação brasileira aos processos históricos, tornando-os descontínuos e
deixando vicejar uma série de permanências que lhe atribuem contornos e matizes particula-
res.
369
Desta maneira fechava-se o padrão de dominação, cuja moldura era também constituí-
da pelo mecanismo correlato de submissão tipicamente coronelista, reservado às populações
rurais.
influência que as práticas judiciais, no nível da produção do saber, possui na constituição da subjetividade. A
respeito, ver FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 1996.
368
NINA RODRIGUES, Raimundo. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Salvador: Livraria
Progresso, 1957, p. 225.
369
Cf. HOLLOWAY, Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, p. 23.
163
Desta maneira a eficácia do Código Penal terminaria reduzida. Fiel ao liberalismo, a
pena de prisão desfrutava, em sua estrutura, de proeminência. Até nos discursos de autori-
dades e juristas, ela seria decantada. Mas nas práticas, por conta desta hipertrofia policialesca,
o Estado de polícia toma quase todo o volume da forma do Estado de direito na qual está inse-
rido. O que se verifica são permanências do recurso fácil à intervenção corporal.
370
As institu-
ições policiais agiriam como verdadeira longa manus da classe senhorial - cuja boa parte
havia mudado suas famílias para as cidades - a fim de proceder à limpeza e mostrar quem
manda, para tanto perpetuando a lógica do castigo corporal como demonstração de autoridade
por parte de quem sequer a conhece. A atuação arbitrária das polícias nas cidades do início do
século XX, legitimadas pelo discurso penal do mais baixo nível, que é o racista, constituiria,
desta maneira, o terceiro moinho de gastar gente que nossa história conheceu.
A década de 30 do século XX estabelece uma verdadeira, talvez a única, ruptura da
histórica política e econômica nacional. A revolução comandada por Getúlio Vargas, pela
guinada que proporcionou à vida política brasileira, também repercutiu radicalmente no fun-
cionamento concreto do Estado, não obstante pareça ter deixado intocada suas estruturas mais
caras e decisivas. É evidente que o poder punitivo reflete estas mudanças. Até um Código
Penal foi sancionado, no interior do Estado Novo. Convém, portanto, que seus detalhes sejam
enfrentados em apartado.
3.2 O Estado intervencionista-autoritário e o positivismo jurídico.
A revolução de 1930 constitui o desfecho de uma ampla onda de insatisfação de outros
núcleos socialmente importantes perante o superprivilegiamento da economia cafeeira, que
levaria ao conluio entre os Estados de São Paulo e Minas Gerais. O século XX é o século do
imperalismo, e as condições econômicas e políticas experimentadas pelos países do capitalis-
mo dependente serão definidas, segundo expressem ou não adesão a esta tendência típica da
concentração de capital em um número reduzido de corporações. Na condição de país perifé-
rico de capitalismo dependente, no início do século o Brasil persistia em sua estratégia de
atar-se ao crescimento econômico mundial reagindo obedientemente à maneira planejada pe-
los países centrais, Inglaterra e Estados Unidos à frente. Apesar do reforço dos discursos libe-
370
BATISTA, ZAFFARONI et al. Direito penal brasileiro I, p. 448.
164
rais dos governantes, seu padrão de desenvolvimento econômico continua o mesmo: expansão
da exportação primária tendente à adoção de uma monocultura definida segundo sua posição
favorável no mercado mundial. De fato, com suas grandes áreas agricultáveis e abundante
mão-de-obra, além do clima e outros fatores favoráveis, o Brasil dominava o mercado mundi-
al de café. Mais da metade da produção mundial chega a concentrar-se em suas mãos. Nesta
condição, mesmo que não vertiginoso, algum incremento de produtividade, por unidade de
produção, ocorre. Também algumas indústrias surgem para atender às crescentes necessidades
de consumo nacionais. No entanto, a essência não se modificara: a expansão das exportações
induzia ao superávit da balança de pagamentos, o que deixava larga margem às importações,
tudo a convergir para a quase inanição da indústria nacional.
A fim de manter esta estratégia, que afinal permitia ao centro-sul brasileiro continuar a
dominar o cenário político, todos os esforços do aparelho estatal estavam concentrados em
manter a pujança da economia cafeeira, inclusive mediante manipulações de toda espécie dos
dispositivos monetários e cambiais. Ora, a política econômica era ditada pelos grandes cafei-
cultores, cujo poderio se reforçara com a nova configuração geopolítica descentralizadora
imposta pela República. Por seu turno, uma economia exageradamente suscetível às oscila-
ções dos preços no mercado mundial vê-se na constante contingência de criar mecanismos
para suportar estas crises mais ou menos cíclicas. A redução do preço internacional do café,
por certo repercutia de forma demasiadamente aguda na economia nacional. A saída imple-
mentada pela classe dirigente, para fazer frente às crises internacionais sobre as quais deti-
nham pouca influência, foi a constituição de um mecanismo de flutuação cambial. Nos tem-
pos de baixa de preços, ativava-se o mecanismo a fim de que também o valor externo da mo-
eda nacional baixasse. Com isso as exportações poderiam continuar à plena força, que o
aumento da taxa de câmbio mostrava-se extraordinariamente capaz de atenuar os prejuízos
dos exportadores provocados pela baixa dos preços internacionais. É claro que isto não tradu-
ziu apenas uma política deliberada de favorecimento de um único setor da economia. Ocorre
que, pela sua demasiada importância, toda a dinâmica dos demais campos da economia nacio-
nal dependia ao extremo do sucesso da economia cafeeira. Sua bancarrota implicaria o de-
semprego em massa e a falência de toda a débil economia restante, que não representava mais
de que seu apêndice.
165
No entanto, a depreciação da moeda nacional produzia um efeito colateral nada des-
prezível: com a perda de seu valor a capacidade de consumo das classes urbanas também se
deprimia, pois a grande parte de seus bens de consumo provinha de importações. “Desta ma-
neira o processo de correção do desequilíbrio externo significava, em última instância, uma
transferência de renda daqueles que pagavam as importações para aqueles que vendiam as
exportações.”
371
Com isso aumenta a insatisfação das populações urbanas, que se reforçará com o res-
caldo inflacionário também proveniente da ativação do mecanismo de depreciação cambial,
tudo convergindo para o aprofundamento deste processo de transferência de renda. Outros
mecanismos de defesa da economia cafeeira foram se sobrepondo a fim de transferir o peso
das quedas cíclicas dos preços internacionais para o conjunto da coletividade. Com os favore-
cimentos de toda ordem propulsionados pelo Estado, a produção aumentaria a tal ponto, que
logo não encontraria demanda, e o Estado passaria a comprar, mesmo que para posteriormente
destruir, os excedentes da produção, mantendo-se artificialmente os preços.
Neste clima de insatisfação é que desenha-se uma nova e ampla aliança política que
exclui os grandes exportadores rurais e integra a burguesia (industrial, mercantil e financeira)
e os trabalhadores urbanos e até os latifundiários decadentes de baixa produtividade. À frente
desta aliança está o gênio político de Getúlio Vargas, que logo redefiniria os contornos da
vida política e das estratégias de dominação nacionais. Para isto o Estado não perderá centra-
lidade, pelo contrário.
372
Definem-se ostensivas políticas de industrialização, com base no
esquema de substituição de importações, cujas iniciativas em boa parte tinha o Estado à fren-
te.
373
O Brasil então experimentaria, com tardio sabor de originalidade, uma definida política
de constituição do mercado interno e a primeira tentativa de se livrar do jugo da imprevisibili-
371
FURTADO, Formação econômica do Brasil, p. 165.
372
CARDOSO & FALETTO, Dependência e desenvolvimento na América Latina, p. 92, observam que “durante
esse processo acentua-se o papel do Estado e altera-se seu caráter; com efeito, se na etapa precedente o Estado
que expressava fundamentalmente os interesses exportadores e latifundiários – atuava como mediador da política
de financiamento de investimentos estrangeiros, agora por seu intermédio tomam-se as medidas necessárias para
a defesa do mercado interno através de tarifas alfandegárias, inicia-se o processo de transferência de rendas do
setor exportador para o setor interno e criam-se núcleos fundamentais de infra-estrutura para apoiar a industriali-
zação substitutiva de importações.”
373
FAORO, Ob. citada, p. 717: “No seio das tensões, entretanto, apesar do estímulo do governo ao setor expor-
tador, a dificuldade de importar reestimula, primeiro discretamente, depois com maior ímpeto, a produção manu-
fatureira, em breve protegida pelo governo, inclusive, mais tarde, por meio do subsídio alimentar, com o tabela-
mento dos gêneros agrícolas e a liberação dos preços industriais. As contradições conjunturais decantam, apesar
da linha política do governo, o rumo industrial, possível mediante a ruptura do dogma liberal. A presença do
aparelhamento estatal permite essas readaptações, em movimento acelerador da economia.”
166
dade dos mercados internacionais. Tal política de industrialização, além de antiliberal, deveria
ser capaz de desenvolver medidas econômicas capazes, tanto de erigir uma base econômica de
sustentação dos novos grupos da burguesia urbana, como fornecer oportunidades de inserção
econômica e social aos grupos populares numericamente importantes. Também de forma pio-
neira, enceta-se um esquema de dominação cuja autoridade será conquistada através da con-
secução de um consenso em torno de uma política industrial que prometia benefícios para
todos. Assim angariou boa legitimidade popular, sobretudo nos grandes centros urbanos, em
cuja cúspide repousava a figura carismática de Getúlio Vargas – o “pai dos pobres”.
O setor cafeeiro, embora desalojado do Estado, no entanto, não demoraria a se de-
monstrar forte demais para ser mantido fora da nova concertação sem riscos à ordem que ela
representava. Logo ele seria incorporado e o governo de Getúlio mostraria notável destreza
política, ao combinar a defesa dos preços internacionais do café com a expansão da industria-
lização e a conseqüente consolidação do mercado interno. Assim se daria continuidade à es-
tratégia de compra do excedente de café através do endividamento externo do Estado, proces-
so que se aprofunda, mediante mesmo a destruição deste excedente, para se fazer frente à
Grande Depressão. Assim logrou-se manter o nível de empregos, a despeito do alto desem-
prego que assolou os países centrais, sobretudo os Estados Unidos - o epicentro do crash.
Mediante a destruição de parte da produção, conseguia-se manter o preço do café, o nível do
emprego e de renda, consequentemente, a demanda e o aquecimento da economia.
374
Delineiam-se no Brasil, com impressionante traço de vanguarda, o que logo se conhe-
ceria como medidas econômicas de tipo keynesiano. O forte papel interventor do Estado ex-
prime-se inclusive através da concessão de benefícios sociais, como por exemplo o direito à
aposentadoria. Paralelamente logra-se manipular os meios de expressão política da classe tra-
balhadora mediante o paternalismo sindical, que a um tempo abria os canais reivindicató-
rios e os mantinha sob controle do Estado, por meio da novidade do Ministério do Traba-
lho.
375
Esta política de massas era a pedra de toque do novo esquema de poder. A aliança,
374
FURTADO, Ob. citada, p. 192, reputa que esta compatibilização entre a defesa da economia cafeeira e o
crescimento interno da economia foi inconsciente, apesar de seu retumbante sucesso. O fato é que, a manutenção
do mecanismo de depreciação cambial continuou a inibir importações, refletindo num estímulo para sua substitu-
ição; paralelamente, manteve-se o nível da demanda, quando as demais economias do mundo colhiam os frutos
amargos da superprodução industrial.
375
Cf. MINHOTO, Laurindo Dias. As prisões do mercado, p. 149, A mitigação da ‘questão social’ brasileira é
levada a efeito às expensas da independência dos sindicatos pela criação da ‘cidadania regulada’: cidadão é o
trabalhador cujo direito é reconhecido pelo Estado, desde que tenha uma ocupação legalmente regulamentada.
167
como um todo, porém, é muito mais estável porque mais ampla, embora tivesse limitações
bem nítidas. Assim, se por um lado, o controle político das massas se mantinha com um regi-
me de empregos que incorporasse os trabalhadores urbanos, de outro, os camponeses deveri-
am ficar de fora. Afinal, um componente importante da aliança liderada por Vargas consistia
na adesão de setores agrários decadentes (não-exportadores) cujo regime de poder (coronelis-
ta) baseava-se na manutenção de uma ordem que exclui a massa rural dos benefícios da parti-
cipação econômica, política e social. Desta forma, não se removeu o traço estrutural mais pro-
eminente da economia brasileira, que é a permanente produção de uma massa de trabalhado-
res seccionada do processo produtivo. Mesmo dinâmico, o sistema de expansão da economia
não suportaria a pressão salarial provocada pela incorporação, em condições também favorá-
veis, de amplos contingentes rurais.
O Brasil sempre se distinguiu pela impossibilidade, aparentemente constitutiva, de
conciliar interesses contrapostos dos diversos grupos que o habitam. A presidência de Getúlio
Vargas, porém, talvez seja o período mais longo em que esta impossibilidade ficou dormente.
Mesmo com limites visíveis, o regime de emprego adotado parecia satisfatório, e produzia
legitimidade de uma forma até então desconhecida da sociedade brasileira. A única via aberta
à sedição parecia estar junto aos camponeses esquecidos. Ela foi intentada, mas terminou fra-
cassada, para a angústia de Luiz Carlos Prestes. Por outro lado, a adoção de uma política con-
ciliatória entre as classes, necessariamente implicava o repúdio à linha contestatória dos mo-
vimentos operários, baseada no aprofundamento do antagonismo entre estas mesmas classes.
Em suma, o esquema de dominação implementado consistia no atendimento das reivindica-
ções dos trabalhadores e empresário urbanos: as dos primeiros, por serem pouco ousadas do
ponto de vista econômico, podiam ser atendidas sem muitos esforços; do ponto de vista polí-
tico também: já que se é o Estado quem lhe concede os benefícios concretos, seria natural que
houvesse uma pressão pelo reforço do poder deste mesmo Estado. Do lado dos empresários
urbanos, suas reivindicações foram também atendidas na medida em que o Estado cuidou de
solidificar a base econômica própria de que precisavam para ver seus negócios prosperar.
376
Aliada a esta conjuntura observa-se um incremento do poder do pessoal do Estado, na medida
Na conhecida formulação de Wanderley Guilherme dos Santos, a cidadania é banida da esfera dos valores e da
política e equiparada a um padrão corporativo de estratificação ocupacional.”
376
CARDOSO & FALETTO, Ob. citada, p. 106: “as reivindicações populares são relativamente débeis ao nível
econômico e, portanto, podem ser atendidas, e ao nível político na medida em que pressionam pelo fortaleci-
mento do Estado coincidem com os interesses dos grupos que chegaram ao poder sem uma sólida base econô-
mica própria, fator que também os faz favorecer um desenvolvimento de cunho estatal.”
168
em que o novo regime canalizou boa parte de suas forças para promover uma reconcentração
do poder político diluído pelo federalismo da primeira República. A burocracia termina assim
reforçada, principalmente em seu ramo militar, cujas demonstrações de força se tornariam
cada vez mais freqüentes.
Nem todos, como é curial, estavam satisfeitos, porém. Nem mesmo a desorganização
das camadas camponesas impediu o recrudescimento da insatisfação com esta política conci-
liatória imposta desde cima. Isto daria ensejo, após o recuo liberal da Constituição de 1934, à
implantação da ditadura do Estado Novo. O poder punitivo voltaria à centralidade de onde
ficara desalojado no período de plena simpatia que os setores patronais e operários, notada-
mente urbanos, nutriam pelo regime. Para tanto, se o núcleo da economia continuava o mes-
mo, a incorporar boa parcela da população economicamente relevante, não haveria razões
para a conservação ou destruição da mão-de-obra. Não ficava oneroso contentar estas massas
cuja pauta reivindicatória mostrava ser facilmente atendida. Deste modo, o papel do sistema
punitivo se desloca e se concentra para o reforço da legitimidade do esquema de dominação
vigente, abalado pela contestação radical de grevistas. A estratégia era a inoculação do medo
dos comunistas e dos estrangeiros, particularmente italianos com laivos anarquistas, e da elei-
ção dos mesmos como inimigos do Estado. Para isso chegou-se ao absurdo de forjar um plano
de insurreição comunista, na verdade inexistente, que ficou conhecido como Plano Cohen. A
estratégia, a par farsa do Plano Cohen, no fundo não era inovadora, antes se enquadrava na
constante histórica a que ZAFFARONI e BATISTA se referem, da criminalização da deslegi-
timação do poder do Estado.
377
Institui-se, assim, aquilo que ZAFFARONI denomina de sistema penal paralelo, desti-
nado aos inimigos do Estado, e a programação criminalizante da repressão política produziria
farta legislação de exceção consentânea com a vigência concomitante de um verdadeiro sub-
sistema policial no sistema constitucional. Assim, se no princípio o regime conviveria com a
normalidade constitucional, como aliás o permite a estrutura legal burguesa, a Constituição
logo cederia ao real e verdadeiro centro do poder político. Ainda em 1935 uma emenda cons-
titucional equipararia a “comoção intestina grave” ao “estado de guerra” e no ano seguinte
seria criado o Tribunal de Segurança Nacional, de triste memória e com todos os caracteres de
um tribunal de exceção. A hipertrofia do Estado de polícia, faria com que a suspensão da or-
377
BATISTA; ZAFFARONI et al. Direito penal brasileiro I, p. 516.
169
dem jurídica se travestisse de direito e culminaria na reinstitucionalização da pena de morte.
O processo criminal adotado perante o TSN seria seu principal sintoma, como lembra NILO
BATISTA na sua contribuição à obra lapidar de ZAFFARONI, ao aludir ao art do decreto-
lei 474 de 1838: “Considera-se provado, desde não eliminado por prova em contrário, o
que ficou apurado no inquérito.”
378
Surge assim nossa primeira Lei de Segurança Nacional
que desloca os crimes contra a segurança do Estado do corpo do Código Penal para leis extra-
vagantes, nas quais também as garantias individuais eram tidas como extravagantes.
O estado de exceção, com o aquecimento do ambiente político, não se contentaria em
ficar contido na armadura do estado do direito e acabaria se institucionalizando como regra.
Em vez de adequar as leis à Constituição, foi esta quem teve que ser modificada para adaptar-
se às necessidades do regime. Surgia, então, a Constituição “outorgada” de 1937, que desde
seu preâmbulo avisava a que veio.
379
Como é próprio do funcionamento do sistema penal, mormente daqueles que abando-
nam o apreço pela normalidade jurídico-constitucional, o substrato no qual o regime de exce-
ção esculpiria a figura do inimigo deveria ser moldável. Assim, como nota ARNO DAL RI
JR, se até o período que antecedeu a envolvimento brasileiro na Segunda Guerra, os inimigos
do regime eram italianos com tendências anarquistas, ao lado dos comunistas. Porém com a
inclusão do Brasil dentre os apoiadores dos aliados “essa construção simbólica passa por uma
sensível alteração”
380
, a fim de ampliar-se para incorporar o conjunto de homens e mulheres
estrangeiros, com qualquer tipo de envolvimento com as pátrias que a guerra demonstrara
serem inimigas do Brasil.
378
BATISTA; ZAFFARONI et al. Ob. citada, p. 469.
379
“O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, atendendo às legitimas aspirações do povo brasi-
leiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da cres-
cente agravação dos dissídios partidários, que uma notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta
de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se
em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; atendendo ao estado de apre-
ensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo
remédios, de caráter radical e permanente; atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Esta-
do de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; sem o apoio das
forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante
dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas
instituições civis e políticas; Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua indepen-
dência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao
seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o
País.”
380
DAL RI JÚNIOR, Arno. O Estado e seus inimigos. Rio de Janeiro: Revan, 2006, p. 277.
170
O subsistema penal reservado a uma subcategoria de indivíduo inimiga do regime, in-
suscetível de gozar das garantias do cidadão, não deixaria de encontrar o respaldo dos penalis-
tas de plantão. Para isso, tamanha foi a contribuição retórica e convincente de NELSON
HUNGRIA ao aderir abertamente ao Estado Novo. Também por intermédio de HUNGRIA o
positivismo criminológico e pessimista, daria lugar a outra espécie de positivismo, o jurídico,
que “isola o penalista numa torre de marfim”
381
e reduz o direito penal às leis e aos conceitos
que dela derivam. Um estudioso da obra de NELSON HUNGRIA dirá que com a consolida-
ção do Estado Novo seu pensamento “opera uma sensível mudança e assume uma perspectiva
mais hermética, dogmática e tecnicista”.
382
A partir daí, se necessário a liberdade deveria ce-
der ao princípio da autoridade do Estado, cujo interesse traduzia o interesse integral da Nação
em face dos interesses de certos indivíduos. Extremamente coerente e decidido, como era pe-
culiar ao seu temperamento, não demoraria para HUNGRIA se engajar na justificativa da a-
doção de pena de morte para crimes políticos.
383
Esta postura em parte era tributária dos influxos que o pensamento jurídico-penal re-
cebe do pensamento social engendrado neste clima de conciliação nacional que, a despeito de
ter revelado uma grande vontade de incorporação econômica, estava definitivamente decidido
a não permitir a incorporação de idéias políticas distintas. O pensamento social oficializa-se
mediante a construção do “mito fundador” da brasilidade, solvente apropriado à diluição de
quaisquer antagonismos. Apropriado pelo discurso oficial, é neste clima que a cordialidade
imanente ao brasileiro, de que falava SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA, se funde provi-
dencialmente com a interpretação culturalista e dulcificada que GILBERTO FREYRE daria,
com Casa Grande & Senzala (publicado em 1933), às diferenças raciais e sociais brasilei-
ras.
384
Todavia, o Código Penal deste regime, malgrado as influências fascistas e nazistas
sentidas por conta da adesão, pelo menos intelectual, do Estado Novo aos regimes igualmente
381
BATISTA, Os sistemas penais brasileiros, p. 173.
382
SERRA, Carlos Henrique Aguiar. O pensamento jurídico-penal de Roberto Lyra e Nelson Hungria nos anos
1937-1964: estilos e visões diferentes. In: KOERNER, Andrei (org). História da justiça penal no Brasil: pesqui-
sas e análises. São Paulo: IBCCrim, 2006, p. 153-177.
383
HUNGRIA, Nelson. O direito penal no Estado Novo. Revista Forense, v 38, 1941, p. 265-272: “A política do
Estado Novo não poderia deixar de refletir-se no direito penal. (...) o direito penal brasileiro remodelado não
podia ficar alheio ao princípio cardial do Estado Novo, isto é, de que o Estado deve ser forte e militante no senti-
do de assegurar o bem comum.”
384
Cf. SCHWARCZ, O espetáculo das raças, p 247, “um país racial e culturalmente miscigenado, passava a
vigorar como uma ideologia o oficial do Estado, mantida acima das clivagens de raça e classe e dos conflitos
sociais que se precipitam na época.”
171
de exceção que estas idéias corporificaram, saiu relativamente ileso deste panorama. Para
isso, justiça seja feita, a intervenção de HUNGRIA foi decisiva. A despeito de sua adesão ao
Estado Novo, encarregado de concluir o novo código baseando-se no Projeto Alcântara Ma-
chado de 1938, HUNGRIA logrou mantê-lo suficientemente distante das idéias vigentes, por
exemplo, na Alemanha de MEZGER. A resultante foi um Código Penal eclético, como denota
a clássica passagem de MAGALHÃES NORONHA: “[o Código] Acende uma vela a Carrara
e outra a Ferri. É, aliás, o caminho que tomam e devem tomar as legislações contemporâneas.
(...) Mérito seu, que deve ser ressaltado, é que, não obstante o regime político em que veio à
luz , é de orientação liberal.” Para NORONHA, imperfeições o Código tinha “pois é obra hu-
mana, mas suas virtudes pairam bem acima de seus pecados.”
385
A influência do positivismo
sociológico de FERRI expressar-se-ia na assunção do esquema do duplo-binário na aplicação
de medidas de segurança, mesmo para imputáveis, se constatada sua periculosidade (art 76).
O positivismo jurídico, por sua vez, remanescia na regra da aplicabilidade da lei vigente ao
tempo da execução da medida de segurança (art 75), diretamente importada do art 200 do
código Rocco
386
, codificação penal fascista da Itália de Mussolini. Esta mesma tradição, aliás,
contaminaria completamente o Código de Processo Penal, editado em 1941, cujo conteúdo
abertamente inquisitorial, ainda hoje revela não ter sido possível resguardá-lo do influxo das
sombrias idéias que povoavam a Europa.
O Código Penal de 1940 e a parte do sistema penal por ele iluminado, deixaria um le-
gado definitivo. Foi expressão do reforço do poder central do Estado, a fim de enfraquecer as
ilhas de poder coronelistas. Viu-se também na encruzilhada histórica a que foi jogado pelo
capitalismo dependente praticado no Brasil. O arroubo nacionalista de Vargas pretendeu a um
tempo induzir a industrialização e fornecer aos trabalhadores os benefícios próprios de um
Estado de bem-estar. Nesta conjunção de fases evolutivas que o capitalismo central mostrara
serem distintas, os discursos quanto às finalidades da prisão também exprimiam esta tensão:
“A privação de liberdade, como em toda sociedade industrial, é a pena por excelência, e o
mito da ressocialização para o trabalho edifica colônias agrícolas e estabelecimentos penais
industriais.”
387
Sem embargo do sistema paralelo que vigorou à sua sombra, o diploma man-
teve-se de pé. Graças a ele um plexo considerável de garantias individuais conheceu, ainda
que de forma errante, considerável eficácia, exceção feita, evidentemente, para os dissidentes,
385
MAGALHÃES NORONHA, Edgard de. Direito penal. v 1. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1963, p. 79.
386
BATISTA; ZAFFARONI et al. Ob. citada, p. 474.
387
BATISTA, Os sistemas penais brasileiros, p. 174.
172
internos e externos, para os quais o regime reservara, além do sistema paralelo, também um
sistema penal subterrâneo, que exprimia-se nas torturas ou mesmo na eliminação direta, apli-
cadas pelos órgãos da repressão política, sem qualquer processo legal.
A pedra do moinho punitivo brasileiro, neste período, como é peculiar ao Welfare Sta-
te a que o Estado Novo pareceu querer se filiar antes mesmo de seu surgimento, parece ter
sido, pelo menos no nível quantitativo, economizada. Mesmo que a polícia continuasse a tra-
tar as populações pobres como inimigas; mesmo que a suspensão do Estado de direito desse
mostras de pretender perenizar-se; mesmo que as populações pobres, sobretudo urbanas, con-
tinuassem a representar a escória de nossa complexa constituição racial, ao menos passaram a
ser encaradas de uma forma, conquanto encobridora, um pouco mais positiva: em vez de di-
zimadas, deveriam lhes ser reservadas possibilidades concretas de sair daquela situação de
atraso à qual estavam atadas, segundo o pensamento oficial otimista que se forja na ocasião.
3.3 A industrialização e sua configuração político-penal.
Talvez não seja equivocado supor que o primeiro governo de Getúlio Vargas con-
seguiu realizar a proeza de um desenvolvimento social e econômico relativamente autônomo,
porque as potências do capitalismo central estavam demasiado ocupadas em recolher e reor-
ganizar os despojos da Grande Depressão. Provavelmente por isso conseguiu promover um
crescimento econômico e uma incorporação também econômica dignas de registro, sem o
concurso direto dos grandes conglomerados estrangeiros que, sobretudo depois da primeira
Grande Guerra, vinham se instalando no Brasil.
388
Não que os investimentos estrangeiros
tenham deixado de ocorrer no período. O que se verifica é que as inversões vindas de fora se
deram mais na forma de financiamentos do que diretamente na instalação de subsidiárias vi-
sando, quer o mercado interno, quer o externo. A reequipação do parque industrial nacional,
além disso, logo encontraria um novo fator conjuntural para apoiar-se, que seria a segunda
Guerra Mundial. Esta linha desenvolvimentista ainda encontraria fôlego para perdurar durante
o governo de Eurico Gaspar Dutra (1946-50), e até pôde aprofundar-se durante o segundo
governo de Vargas (1950-54), no qual se expandiu a política de instalação de indústrias bási-
cas estimuladas por fortes investimentos públicos. Nesta última fase, o controle da situação
política, além de sustentado, parece ter até se facilitado, pelo menos enquanto os preços do
388
PRADO JR, Caio. História econômica do Brasil, p. 266.
173
café puderam ser mantidos num nível que não descontentasse o setor exportador. Do ponto de
vista da política econômica, a fórmula persistiu mais ou menos a mesma, e com sucesso: favo-
recer o mercado consumidor e o pátio industrial internos, inclusive motivando uma acentuada
acumulação de capitais de origem nacional.
389
A aliança varguista, porém, logo conheceria
seus estertores. Afinal sua política nacionalista tinha avançado demais na percepção dos cen-
tros do capitalismo hegemônico. A baixa que o café experimenta em 1954 fará com que o
setor agro-exportador se una à oposição da classe média urbana - insuflada pelo surto infla-
cionário não confrontado por uma política de liberalização de importações
390
- e ainda ganhe
o reforço dos grupos financeiros internacionais. O suicídio de Vargas, se no princípio conse-
gue suspender o avanço de forças que querem retomar o poder do Estado para rifá-lo junto do
capital monopolista, não seria capaz de evitar uma redefinição da relação centro-periferia do
capitalismo imperialista. Até foi possível restabelecer uma aliança desenvolvimentista esbo-
çada com Juscelino Kubitschek , mas que, na verdade, tinha um caráter completamente diver-
so. A esta altura, o desenvolvimento econômico nacional se alia, em submissa posição, ao
capital industrial monopolista.
Para entender esta redefinição da posição brasileira perante os mercados hegemônicos,
é necessário referenciar, ainda que brevemente, alguns traços do imperialismo a fim de com-
preender o que ele simboliza em termos de estágio evolutivo do sistema capitalista global, e
como ele redefine a posição dos países de capitalismo dependente, como o Brasil. A partir
desta despretensiosa análise, será possível encontrar as conexões, no nível político, que esta
estratégia global de dominação consegue estabelecer com os dispositivos de que o Estado
lança mão no âmbito interno para sustentar seu engajamento.
Pois bem. A necessidade de criação de um mercado mundial está incluída no próprio
conceito do capital. Para realizar a mais-valia gerada na produção, o valor incorporado à mer-
cadoria precisa circular, isto é, precisa descobrir novos mercados. A recuperação da economia
mundial no pós-guerra logo faria com que as grandes corporações lograssem capitalizar-se
efusivamente. As estratégias políticas que designam o Welfare State, engendradas na época,
389
FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil, p. 218.
390
Se por um lado, a política de mbio apreciado então adotada produzia efeitos positivos para a expansão do
setor industrial interno, dada a facilitação na aquisição de matérias-primas e bens de capital importados o que
era reforçado pelo controle rigoroso das importações de bens de consumo - não foi capaz de evitar, por outro, a
alta de preços de produtos que não encontravam concorrência de produtos importados. Este fenômeno, se não
penalizava os consumidores, pelo menos criava um fato político sobre o qual os oposicionistas podiam se ampa-
rar.
174
procuram justamente operacionalizar um mecanismo capaz de evitar a crise da superprodu-
ção, responsável pela quebra da década de 1930. Assim permite-se a expansão dos mercados e
da acumulação, mediante um processo de exportação de mercadorias e de capitais. Desta for-
ma é possível conciliar a expansão dos mercados internacionais, dos quais os frutos são usu-
fruídos principalmente pelos centros hegemônicos do poder mundial, com um mercado inter-
no que se enquadra nesta moldura, inclusive assimilando padrões de consumo impostos desde
fora: o mercado interno “internacionaliza-se”, mediante um processo no qual o que é exterior
ao capital monopolista é por ele internalizado.
391
Dependendo da situação política interna, o capital estrangeiro pode facilmente ajustar-
se aos interesses internos predominantes. É o que se observa no período, no qual se consegue
manter um padrão de incremento de seu parque industrial e de aumento da capacidade interna
de consumo, conseqüentemente, de crescimento econômico. Em sua fase monopolística, as
relações de produção capitalistas se difundem pelo mundo, consentindo, porque faz parte de
seu conceito, com a acumulação das regiões atrasadas. A condição de dependência, sem em-
bargo, permanece central para caracterizar esta nova fase de expansão dos mercados. Uma das
condições para o engajamento de uma economia no mercado internacional assenta na colabo-
ração do Estado que lhe define o funcionamento, quer mediante benefícios fiscais, quer medi-
ante investimentos em infra-estrutura. Assim, o capital exterioriza-se porque pode encontrar
taxas de rentabilidade sensivelmente maiores do que as que experimenta nos seus países de
origem. Para isso, precisa ainda ter acesso a um outro benefício fundamental que é o baixo
custo da força de trabalho. Também aqui a colaboração do Estado que administra as fronteiras
que o capital supera é decisiva.
Para melhor apreender esta nova configuração chamada desde Lênin de imperialista, é
necessário dar mais alguns passos atrás na linha da história, a fim de compreender que no de-
senvolvimento do sistema capitalista a relação entre países centrais e periféricos raramente se
modifica. A situação na qual o desenvolvimento dos últimos implica o subdesenvolvimento
dos primeiros, fora momentos de rebeldia política dificilmente mantidos, tende não a se
reproduzir, mas a acentuar-se, segundo os fluxos de comércio e de capitais que entre eles se
estabelecem. Se o período de constituição do capitalismo se distingue pela troca simples, rea-
391
Conforme observa, HARDT e NEGRI, Império, p. 246, “O que se exporta é uma relação, uma forma social
que gerará a si mesma, ou fará uma réplica de si mesma. Como um missionário ou um vampiro, o capital toca o
que é estrangeiro e o torna próprio.”
175
lizada pela importação, pelo centro, de produtos “de luxo”, tais como especiarias e artesana-
tos, no período da predominância do capital industrial, o comércio muda de função. Nesta fase
de desenvolvimento, o centro basicamente exporta produtos manufaturados de consumo cor-
rente e importa essencialmente produtos agrícolas, inclusive provenientes da agricultura de
elevada produtividade do Novo Mundo. O momento que ora se analisa representa a fase em
que as relações de troca se complexificam: até aqui as exportações de capitais, além de relati-
vamente tímidas, não se realizavam, como mencionado, diretamente na instalação de subsidi-
árias. É a partir da constituição dos monopólios, e o correspondente incremento de seu poten-
cial de inversões, que a exportação de capitais, juntamente com a de mercadorias, intensifica-
se. Paralelamente ocorre uma mutação na especialização da periferia condicionada pela divi-
são internacional do trabalho. As mercadorias exportadas já não são apenas os produtos agrí-
colas, muito menos aqueles provenientes da agricultura tradicional; antes inclui itens forneci-
dos por modernas empresas capitalistas.
392
Nesta nova modalidade de troca, bens de capital
transitam com mais facilidade rumo a periferia dado o incremento da industrialização.
Ocorre que a acumulação consentida e o progresso técnico que ela engendra deveriam
conduzir, pouco a pouco, a transformação das necessidades do proletariado. Isto tende a desa-
guar no aumento dos salários, que parte de sua composição é definida por um elemento
cultural constituído por estas necessidades, referidas aos padrões de consumo impostos. Por
conta disso, o valor da força de trabalho tende a aumentar, mesmo nas regiões periféricas do
capitalismo industrial, reduzindo as discrepâncias entre os salários pagos nos países centrais e
nos periféricos. Todavia, este movimento, tido como natural mesmo por MARX, historica-
mente não acontece. Falta então acrescentar algo que permita integrar a crescente disparidade
dos salários entre as diferentes regiões do sistema capitalista global.
Para evitar a confirmação da tendência é necessário organizar o excedente da força de
trabalho, através de medidas políticas, que procuram manter baixos os níveis salariais. É desta
função que se ocupa o Estado nos países do capitalismo dependente. Talvez esta seja a grande
diferença que remanesce entre as regiões do desenvolvimento capitalista, mesmo quando a-
quela periférica logra atingir níveis de produtividade semelhantes aos do centro. Este desnível
salarial leva ao aumento da taxa de lucros das mercadorias produzidas nas regiões dependen-
tes, via de regra, como já se deixou claro, por filiais das grandes corporações. Com os salários
392
AMIN, Samir. O comércio internacional e os fluxos internacionais de capitais. In: Imperialismo e comércio
internacional (a troca desigual). São Paulo: Global, 1981, p. 90-126.
176
inferiores, o custo produtivo, ou melhor, a composição orgânica do capital também se desni-
vela. Pois apesar de ser possível que os mesmos progressos tecnológicos sejam transferidos
aos países dependentes, o capital variável, composto pelo valor da força de trabalho fica sub-
representado na relação comparativa com a composição orgânica das economias centrais. Ao
se trocarem as mercadorias produzidas, verifica-se uma troca de uma menor quantidade de
trabalho de um país do centro do sistema capitalista, por uma quantidade maior de trabalho de
outro periférico. Isto porque a integração no sistema mundial de países de economia capitalis-
ta dependente ocorre para aprofundar esta dependência. Por isso se pode dizer que CAIO
PRADO não exagera ao afirmar que o objetivo do imperialismo não é outro senão “acaparar
em proveito próprio a mais-valia do trabalho brasileiro.”
393
Afinal, neste modelo tanto o fluxo
de capitais quanto as decisões sobre sua aplicação dependem cada vez mais de fatores exter-
nos. Mesmo que a produção e a comercialização de uma multinacional se realize no mercado
interno da economia dependente, os lucros que daí derivam, porque aumentam a massa de
capital disponível, têm seu destino definido pela matrizes, que dele dispõem como bem enten-
der; dependendo das circunstâncias, elas podem tanto reinvesti-los naquela economia onde os
capitais se formaram, como também remetê-los para as economias centrais ou ainda para ou-
tras economias periféricas distintas daquelas nas quais foram gerados.
Afora a discussão alusiva a quais fatores econômicos atuam para manter os salários es-
tagnados, próximos ao nível da subsistência, o certo é que as disparidades são um fato con-
sumado. Particularmente no Brasil, para além daquelas medidas estatais de corte econômico,
parece ser a permanente produção de uma subclasse não integrável ao processo produtivo o
que a nota do desenvolvimento e da massa salarial da economia. Esta perspectiva vai ao
encontro da tese esboçada quando a transição para uma economia de trabalho assalariado foi
enfrentada nesta dissertação, particularmente com o fim da escravidão.
A integração ao mercado mundial de mercadorias implica, além do bloqueio do de-
senvolvimento regional, a imposição, por parte do centro, da especialização produtiva, cuja
gestão é realizada desde fora. Por isso também acarreta a não-fixação dos capitais acumulados
nos limites territoriais. Na verdade, o que se verifica, por parte das filiais das grandes corpo-
rações, é a remessa dos extraordinários lucros amealhados para suas matrizes. Para consegui-
rem impor este regime produtivo, explicações baseadas nas leis do mercado são evidentemen-
393
PRADO JR, Ob. citada, p. 280.
177
te insuficientes. Em primeiro lugar porque a desigualdade da troca procede da desigualdade
dos participantes na troca; a capacidade de inversões por conta da acumulação, posições co-
merciais adquiridas, posição da moeda no cenário internacional e até o poderio militar – todos
fatores menos econômicos do que propriamente políticos - são variáveis mais importantes do
que relações entre oferta e procura. Em segundo lugar, o fato de que a interiorização de seto-
res altamente produtivos não tenha redundado, nos países periféricos como o Brasil, no au-
mento da taxa de ocupação da mão-de-obra, pode ser satisfatoriamente compreendido se-
gundo uma explicação igualmente política.
Para voltarmos ao contexto histórico enfrentado nesta parte da dissertação, é necessá-
rio ponderar que as alianças de poder que permitiram, inclusive um desenvolvimento econô-
mico mais autônomo, sempre tiveram por apoio a exclusão de setores numericamente impor-
tantes da integração produtiva. É justamente o inverso do que aconteceu nos países centrais,
principalmente com a adoção das políticas de tipo keynesiano. No Brasil, mesmo a aliança
liderada por Vargas a mais permanente e que demonstrou maior capacidade de conciliar, de
forma relativamente perene, interesses antagônicos - não deixou de colocar toda a massa de
trabalhadores rurais absolutamente à margem dos benefícios econômicos e sociais produzidos
pelo crescimento da economia.
394
Nem mesmo a possibilidade de aposentadoria foi prevista,
ao contrário do que se instituiu para os trabalhadores urbanos.
Estas circunstâncias históricas tendem a atestar a validade da tese segundo a qual é a
política geral do Estado, responsável pela gestão do processo de proletarização de sua força de
trabalho, quem define os rumos da economia nacional, mormente através do estabelecimento
das taxas de exploração implicadas pela venda de tal força de trabalho.
395
É nesta política in-
tegral que se inscreve, como foi possível deixar claro, as estratégias punitivas de que o Es-
394
Segundo CARDOSO & FALETTO, Ob. citada, p. 123, neste período “define-se uma pauta particular de in-
dustrialização: uma industrialização baseada em um mercado urbano restringido, mas suficientemente importan-
te, em termos de renda gerada, para permitir uma ‘indústria moderna’. Evidentemente, esse tipo de industrializa-
ção vai intensificar o padrão de ‘sistema social excludente’ que caracteriza o capitalismo nas economias periféri-
cas, mas nem por isso deixará de converter-se em uma possibilidade de desenvolvimento, ou seja, um desenvol-
vimento em termos de acumulação e transformação da estrutura produtiva para níveis de complexidade crescen-
te. Esta é simplesmente a forma que o capitalismo industrial adota no contexto de uma situação de dependência.”
395
É recorrente, cf, por exemplo, AMIN, Ob. citada, p. 118, na economia política marxista, a menção a um traba-
lho de GIOVANNI ARRIGHI sobre a história do desenvolvimento do mercado de trabalho na Rodésia (África).
Neste trabalho o autor demonstra que a abundância de oferta de mão-de-obra nos anos 1950-60 é mais importan-
te, em termos econômicos, do que aquela verificada no início da colonização (1896-1919). Para isto, foi funda-
mental a intervenção da política econômica do poder, implementada pelo Estado, sob a diretriz do capital inter-
nacional monopolista.
178
tado tem o monopólio. A maior distinção frente aos processos de proletarização de que o Es-
tado também se encarrega nos países centrais, é sua definição a partir de centros exógenos de
poder. O decisivo aqui é a capacidade de ingerência que os centros de poder centrais, que fa-
lam em nome das grandes corporações capitalistas, têm sobre o poder político local. Eles se
ajustam aos interesses internos para promover o bloqueio das economias dependentes e, con-
sequentemente, imprimir uma solução de continuidade ao desenvolvimento do subdesenvol-
vimento que lhes caracteriza. A continuidade da aliança desenvolvimentista experimentada
pelo Brasil após a Segunda Guerra não foge a esta regra, antes a aprofunda, inclusive median-
te o aumento do endividamento externo, se confrontada com aquela que lhe antecedeu.
* * *
O sistema paralelo da repressão política continuaria formalmente em vigor neste perí-
odo, mas sem muita aplicabilidade, até ser ressuscitado pelo golpe militar de 1964. A signifi-
cativa pluralidade acatada no nível político e institucional, faria com que a eficácia destas leis
de exceção se reduzisse acentuadamente. Na cada de 1950 o país experimenta um clima de
euforia e otimismo. O crescimento econômico mantivera-se juntamente com o incremento da
industrialização, que então demonstrava ter assumido a linha de ponta do avanço tecnológico;
disto dava conta a instalação de grandes montadoras de automóvel, por exemplo.
Mais importante neste período quanto ao funcionamento do sistema penal, no entanto,
é outro traço do exercício do poder punitivo, cuja motivação discursiva encaixa-se com a eu-
foria daqueles “anos dourados”. Este traço não compreende propriamente uma novidade, pelo
contrário. Entremostra-se no Brasil, como a história viria posteriormente confirmar, uma ten-
dência que o padrão de desenvolvimento adotado pela nova configuração das forças produti-
vas acabou por impor, inclusive nos países centrais, de criminalização da pobreza. Com efei-
to a concentração dos esforços de inclusão social nas zonas urbanas, aliada ao processo de
industrialização, havia ensejado um forte êxodo rural. Nem todo este fluxo com origem em
setores deliberadamente excluídos do progresso econômico, evidentemente, encontraria con-
dições de ser absorvido pela economia urbana. Assim, como ocorre desde o império, os po-
bres urbanos continuariam despertando a atenção do poder punitivo. Agora, porém, percebe-
se uma tendência, particularmente no discurso jurídico-penal dominante, em vislumbrar na
situação de pobreza as razões para o cometimento de crimes.
179
Do ponto de vista teórico, estes discursos parecem ter se nutrido de duas fontes; uma
interna e outra externa. Do lado interno esta perspectiva ainda corresponde ao clima de conci-
liação que se generalizou no pensamento social brasileiro, do qual a dulcificação das desi-
gualdades sociais e raciais (a democracia racial) é sua principal manifestação. Este discurso,
tido como otimista uma vez que se contrapõe àquele de matiz pessimista que designava o ra-
cismo com fundamentos biológicos, assim o é porque acata que o progresso econômico e o
desenvolvimento social por ele proporcionado constituem o antídoto para o veneno da pobre-
za, que é a criminalidade. Segundo esta interpretação, de raiz monogenista, que se opõe àque-
la poligenista, as diferenças entre as pessoas traduzem apenas diferenças de estágios de um
mesmo processo evolutivo. Assim, se os brancos civilizados estavam na cúspide desta escala
evolutiva, os negros e pobres de todo tipo deviam se empenhar em atingir tal estágio.
396
Am-
bas as vertentes porém conservam marcantes traços racistas e iriam se aglutinar sob o verda-
deiro “paradigma de época” em que a teoria da evolução das espécies de CHARLES
DARWIN se converteu.
397
Do ponto de vista externo, razões para afirmar que influxos
provindos da teoria sociológica estadunidense foram igualmente assimilados pelos pensamen-
tos social e jurídico-penal do período. Se nos Estados Unidos da cada de 1920 o objeto era
a desordem urbana provocada pela força de trabalho imigrante que enchia as cidades, no Bra-
sil dos anos 1950 as atenções do controle social recaíam sobretudo sobre os migrantes e reti-
rantes que tornavam igualmente caótica a ordem social urbana.
398
Assim como nos Estados
396
A origem da concepção racial monogenista remonta ao imperialismo neocolonial inglês, ao qual era organi-
camente ligada. É considerado otimista porque vislumbrava a possibilidade de avanço da humanidade. A bur-
guesia inglesa, à determinada altura de sua caminhada até o poder, teve no monogenismo uma ideologia funcio-
nal aos seus interesses. Assim pôde justificar sua ascensão ao poder pelo fato de que se mostrara mais evoluída e
adaptada do que os aristocratas para levar a Inglaterra à frente no seu projeto imperialista. Já a concepção poli-
genista via nas diferenças entres os seres humanos diferentes origens que determinavam o nível evolutivo alcan-
çado por cada uma das diferentes espécies. São estes os racistas que justificam a escravidão, uma vez que os
submetidos, por uma incapacidade constitutiva, seriam incapazes de atingir o grau de evolução daqueles situados
acima na escala social.
397
As idéias de Charles Darwin não transitaram somente pelas teorias biológicas e passaram a receber um reves-
timento de tonalidades sociais e culturais. Como observa SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças, p.
54, a partir da fantástica recepção de Darwin como um verdadeiro paradigma de época, a novidade não se esgo-
tava no fato de que ambas as tendências sabidamente antagonistas (poligenismo/monogenismo) passavam a
comungar do discurso evolucionista. Alcançava o nível segundo o qual as duas vertentes passam a assumir o
conceito de raça de uma forma que se desprendia um pouco da biologia e se tornava mais afeto a contornos polí-
ticos e culturais. As mensagens de Darwin assumiam, assim, contornos consensuais. De uma nova relação com a
natureza, o darwinismo se converteu numa ferramenta explicativa para ciências em princípio impensáveis, como
a antropologia e a sociologia, história e política, além da economia e também do direito. Mas ao adentrar recintos
inusuais, o darwinismo social e político conformou concepções bastante conservadoras. Não é incorreta a con-
clusão de que a noção de seleção natural foi a maior justificativa do imperialismo europeu.
398
Segundo observa ROLIM, Rivail Carvalho. Culpabilização da pobreza no pensamento jurídico-penal. In:
KOERNER, Andrei (org). História da justiça penal no Brasil: pesquisas e análises. São Paulo: IBCCrim, 2006,
p. 177-201, ao analisar o mesmo período histórico, no Brasil “as teorias referentes à marginalidade social parti-
180
Unidos o discurso praticado no Brasil percebia o crime como espécie de exteriorização da
incapacidade adaptativa do indivíduo ao novo estágio de desenvolvimento alcançando pelo
crescimento econômico. Ambas construções se revelaram conscientes dos laços estruturais
entre política econômica e política social e até penal, na medida em que procuraram aliar uma
política de redistribuição de renda com a perseguição de sujeitos considerados não-
integráveis, por isso, potenciais multiplicadores de desvios sociais.
Com relação ao Brasil, mais precisamente, observa-se uma tendência em deslocar a
análise do fato punível para a pessoa do delinqüente, seu ambiente social, suas heranças cultu-
rais. NELSON HUNGRIA, mais uma vez, desponta como o jurista orgânico da nova ordem
econômica e social. Para ele não era a raça em si mesma, mas os conflitos dos diversos pa-
drões, provenientes do atrito entre graus inferiores de cultura entre determinadas raças, o que
constituía importante fator criminógeno.
399
Segundo HUNGRIA, a situação a que os negros
foram por tanto tempo compelidos tornaram-nos “desajustados” às novas condições de vida
que o progresso lhes oferece. O alto grau de degradação que lhes foi imposto seria como um
mecanismo através do qual se determinou um retrocesso evolutivo, o que tornou certa popula-
ção culturalmente deficitária, tanto do ponto de vista moral quanto psíquico.
400
Em suma, os poucos dados disponibilizados pela literatura não permitem apontar em
que medida o recurso à pena de prisão foi utilizado no período. Suas condições econômicas,
sociais e políticas, porém, sugerem não ter ocorrido nem a perseguição de inimigos do Estado
nem um alto grau de encarceramento. Por outro lado, um traço cultural remanesce e assenta
na percepção de que muitos dos brasileiros não estavam adaptados para o desenvolvimento
que a industrialização trouxera ao Brasil. Esta incapacidade em adaptar-se aos novos tempos
devia ser tributada aos próprios indivíduos. O argumento não é novo, como se mencionou,
tampouco deixa de ser racista, ainda que com uma roupagem menos grosseira.
ram do pressuposto de que as cidades estavam sendo ocupadas por migrantes de regiões atrasadas e arcaicas que,
ao encontrarem dificuldades para se integrarem à nova sociedade, viviam em uma situação marginal.”
399
São deste período os seguintes trabalhos de HUNGRIA: A criminalidade dos homens de cor no Brasil. Revis-
ta Forense. v 134, 1951, p. 5-14 ; Um novo conceito de culpabilidade. Revista Forense. v 172, 1957, p. 5-9; A
classificação dos criminosos. Revista Forense. v 177, 1958, p.7-12.
400
HUNGRIA, A criminalidade dos homens de cor no Brasil, p. 10. Além disso, deixando bem clara sua posição
político-ideológica, tais negros tenderiam a servir de “lenha ao fogacho da propaganda comunista, pela qual
grande cópia deles se deixa facilmente aliciar, com a ingênua ilusão de que irão tomar o que é dos brancos.”
181
3.4 A ditadura militar e a ideologia da segurança nacional.
O período que antecede o golpe militar realizado no último dia de março de 1964 ca-
racteriza-se, primeiro, pela tentativa um tanto frustrada de incorporar socialmente os contin-
gentes populacionais rurais até então completamente excluídos da fruição do desenvolvimento
da economia nacional. Por outro lado, também se distingue pelo avanço do poder de influên-
cia das corporações internacionais nos rumos da vida política e econômica do país, uma vez
que tanto o aumento da dívida quanto a dependência das inversões provindas de fora, dada a
reduzida disponibilidade interna de capitais, necessariamente conduziram a esta situação, com
a aquiescência dos governantes ou não. A tentativa de João Goulart de livrar-se, pelo menos
em parte, desta situação de heteronomia que implicava inclusive a indisponibilidade dos apa-
relhos de Estado a que tinham acesso os representantes eleitos pelo povo, recrudesceria âni-
mos internos e externos, fazendo com que os grupos conspiratórios buscassem a reorganiza-
ção do regime político, inclusive “para permitir a centralização autoritária, que facilita a im-
plantação do modo capitalista de produção nas economias dependentes.”
401
Para chegar a tal
conclusão, os interesses externos de influência crescente se apercebem que, somente mediante
uma absoluta apropriação dos aparelhos do Estado, a formulação de um sistema político ade-
quado à sustentação de uma nova forma de desenvolvimento exclusivamente voltada aos inte-
resses corporativos, sem deixar espaço para políticas de transferência de renda efetuadas pelo
Estado, de que os pobres sempre dependeram, seria eficiente. Para isso os interesses externos
contaram com a decisiva colaboração de seus parceiros internos, basicamente aqueles que
formavam o setor industrial moderno, inconfundível mesmo com as antigas indústrias nacio-
nais da época da substituição de importações. Seu privilegiamento tornou supérflua a conquis-
ta de alguma legitimidade popular. A partir daí, para o centralismo autoritário se tornar o ca-
minho, nada faltava. A última colaboração advém das oligarquias agrárias em resposta às ten-
tativas de inclusão das massas camponesas intentada pela primeira vez com Goulart.
Por isso o militarismo recente pode ser interpretado como uma resposta ao risco, que
parecia ter na figura de Goulart um apoio, à ordem de exploração que o imperialismo econô-
mico e financeiro vinha conseguindo impor à economia nacional. Ele constitui a resposta,
avalizada pelos países centrais, às tentativas das classes subordinadas de se apropriar de al-
guma fração do excedente da produção (geralmente através de gastos públicos). Embora res-
401
CARDOSO & FALETTO, Ob. citada, p. 132.
182
pondendo menos a interesses internos do que externos, principalmente do novo setor econô-
mico das empresas monopolísticas internacionalizadas, a colaboração de algumas elites na-
cionais seria decisiva. Com ela arquiteta-se a estratégia de despolitização e deslocamento de
gastos sociais para a infra-estrutura a fim de privilegiar o investimento estrangeiro. Os que se
apropriam violentamente dos aparelhos do Estado, porém, não são determinados setores da
burguesia, nacional ou estrangeira, mas o exército e a burocracia pública. Esse movimento de
corte militarista, no qual prevaleceu a ideologia conservadora que vicejava na caserna, acaba
por assinalar a indispensabilidade mútua entre Estado burocrático autoritário e corporações
transnacionais.
402
A emergência do golpe também parece ter sido facilitada por uma inabilidade frente à
forte radicalização política que marcou o período. Mesmo nos setores populares irromperam
inúmeros protestos, com greves, movimentos de militares de baixa hierarquia (praças), agra-
vados pela queda do crescimento econômico e elevação da inflação. No cenário externo tam-
bém se acirravam as posições ideológicas em conflito na Guerra Fria. A todos esses fatores se
junta a ambigüidade do governo, não suficientemente respaldado popularmente para confron-
tar os fortes interesses que lhe eram contrários. A resoluta definição da maior parte da im-
prensa em prol das forças que se opunham ao governo constitucional acabou sendo a fagulha
que ativou um golpe que sequer enfrentou resistência.
O “milagre brasileiro” dos recordes de crescimento econômico (em torno de 10% ao
ano em média) viria a exprimir a hegemonia do capital industrial internacional, consolidando
a dependência econômica pela integração ao sistema imperialista. O que mais lhe designa é
sua ação concentradora. Em primeiro lugar a concentração da propriedade fundiária, que in-
crementa o êxodo rural e favorece a proliferação de favelas de desempregados e subemprega-
dos urbanos. A política industrial igualmente concentrou os mercados nas mãos de monopó-
lios, ampliou a dívida externa e acabou por empobrecer a população. No âmbito interno esta
configuração favorece um exercício de poder centralizado e autoritário, sob a forma militar-
tecnocrata. Ela é própria e atende as exigências que o imperialismo estabelece para as áreas
subdesenvolvidas: instrumentos de coesão social e de rigorosa ordem interna, a fim de repri-
402
CARNOY, Estado e teoria política, p. 256: “Poderíamos argumentar que a emergência do Estado autoritário-
empresarial corresponde à forma dominante da organização capitalista. Num sentido ideológico, o Estado buro-
crático-autoritário está muito mais adequado para ser o sócio local do capital transnacional do que o estão outras
formas do Estado burguês.”
183
mir iniciativas políticas populares e conter o processo organizativo das classes marginalizadas
do progresso econômico e do poder político. Para muitos boa parte do “milagre” se deveu à
ausência de democracia: a aprovação de várias reformas e medidas tendentes a impulsionar o
crescimento econômico segundo a receita dos interesses das grandes corporações evidente-
mente foi facilitada pelo controle do Congresso e pelo regime ditatorial.
Conforme assinala JUAREZ CIRINO, é nesse contexto que deve ser pensado o papel
do Estado como aparelho econômico e político no período histórico aqui enfrentado: no cam-
po econômico, disciplinando o conjunto dos processos produtivos, de maneira a favorecer a
revalorização do capital internacional; no campo político, estruturando as relações de produ-
ção e promovendo o controle punitivo segundo as demandas que tais relações exprimem.
403
Desta maneira, mais uma vez o Estado revela-se a estrutura preponderante, no interior do qual
as Forças Armadas fundem-se com a burocracia civil, colocando de manifesto a influência
política e o controle efetivo que exercem na vida do país. Este novo esquema de poder encon-
trará, pelo menos no princípio do regime (até 1968), pouca resistência. O notável crescimento
econômico, verificado pelo menos até a primeira crise do petróleo em 1973 curiosamente
ano no qual o país alcança tanto a culminância econômica (crescimento de 14% do PIB) como
o auge repressivo - facom que parte dos trabalhadores urbanos, principalmente setores da
classe média que dele se beneficiam não se oponham frontalmente. Embora o padrão de fun-
cionamento do sistema industrial moderno então aplicado tenda a incrementar o processo de
marginalização, a dispersão das massas e a divisão que opera por entre os setores assalariados,
diferenciando aqueles vinculados ao setor capitalista avançado dos demais, amortizam o po-
tencial reivindicatório, sobretudo no que respeita à adesão das massas numericamente impor-
tantes.
Entretanto, o potencial de valorização do capital, que invade as áreas subdesenvolvi-
das continua a depender, em boa medida, do baixo custo da força de trabalho. A nova dinâmi-
ca imposta por este capital monopolista redobra o processo de decomposição das relações de
produção arcaicas desaguando na ampliação da massa de desocupados, que o sistema produti-
vo não tem qualquer pretensão de incorporar integralmente. Com o tempo, e a despeito do
crescimento econômico invejável, o exército de excluídos não se reduz substancialmente. Para
isto contribuiu o abstencionismo estatal na redistribuição dos frutos, inclusive com baixíssimo
403
CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Defesa social e desenvolvimento. Revista de Direito Penal. n 26, jul-
dez/1979, p. 25.
184
investimento na área educacional, criando um verdadeiro fosso entre os setores privado e pú-
blico, especialmente no ensino não-superior. Desta forma o crescimento econômico concen-
trou sua prodigalidade nos trabalhadores mais qualificados, atingindo também comerciantes e
alguns outros setores populacionais urbanos.
Desta forma, a repressão à criminalidade tida por comum continua a recair preferenci-
almente sobre as classes mais fragilizadas, cada vez mais urbanas, não-integráveis ao sistema
produtivo. O controle punitivo, porque se encarrega de uma tarefa de maior complexidade
frente àquela desempenhada nos países que admitem uma maior assimilação social, se expri-
me exacerbando os deletérios efeitos de seu exercício. Desta forma, a consumação do proces-
so de expansão levado a cabo pelo capital na fase monopolista, porque repercute na centrali-
zação autoritária do poder político, agrega, à em si dramática repressão realizada sobre os
pobres, o reforço do poder das polícias, sobretudo aquela militar. A polícia militar, corporação
repressiva tipicamente brasileira
404
, sempre teve nos desviados de toda ordem, particularmen-
te camadas populacionais desocupadas ou submetidas a regimes de sub-ocupação, um inimigo
a ser combatido. O enfrentamento aos atos socialmente danosos, na percepção desta corpora-
ção, sempre foram tomados como um empreendimento bélico, por este motivo, quase sempre
com derramamento de sangue.
405
Esta atuação beligerante conhece um estímulo ideológico
importante no período ditatorial, ao sofrer a contaminação do sistema penal paralelo reservado
aos inimigos políticos do Estado.
Como é próprio dos estados autoritários, a força motriz de sua manutenção assenta-se
na escolha de um inimigo político. Assim, instilando o medo, é capaz de infundir terror mes-
mo naquelas camadas populacionais sobre as quais o poder punitivo nutre uma especial predi-
leção. As classes médias e altas, igualmente, para continuar a aceitar a realização da tortura
como meio probatório e a morte como pena, mesmo sobre alguns de seus filhos, deveriam
convencer-se de estarem travando uma verdadeira guerra. O Estado deveria representar este
anseio e operacionalizar esta necessidade de combater o inimigo, cuja simpatia pelo bloco
404
Segundo HOLLOWAY, Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX, p.
255-257, a Polícia Militar brasileira, que surge em 1831 como sucessora da Guarda Real, embora possua algu-
mas semelhanças com outras forças policiais militarizadas do mundo, tem características próprias que respon-
dem às condições locais de sua utilização: repressão física assimilada estruturalmente, para manter o comporta-
mento da população dentro de certos limites e infundir terror.
405
BATISTA, Nilo. Política criminal com derramamento de sangue. Discursos Sediciosos. v5/6, ano 3, 1998, p.
77-94, exemplifica esta situação tomando o combate às drogas como objeto de análise.
185
político oposto no quadro da Guerra Fria era expressão da intenção em “solapar as bases mo-
rais da civilização cristã ocidental” mediante uma guerra psicológica adversa.
406
A repressão legal dos crimes definidos como políticos, mais uma vez é realizada, pri-
meiramente, mediante o recurso a diplomas legais relativamente esquecidos, tão violentos
quanto imprecisos. Logo eles seriam substituídas pelo decreto-lei 314/1967, que tentaria,
em vão evidentemente, definir a ideologia da segurança nacional.
407
Seu conteúdo autoritário
conhece seu ápice com a instituição das penas perpétua e capital pelo decreto-lei 898/1969.
Sem embargo, pela própria feição que lhe foi atribuída, a segurança nacional não encontraria
definição precisa. Assim podia permitir o permanente recurso ao seu uso, tornando perenes
legislações retoricamente justificadas com base em emergências que não conheciam fim. A
invocação de expressões vagas e imprecisas seria o expediente funcional, vindo a repercutir
inclusive sobre a descrição das condutas incriminadas. Esta moldura legal vigeria até o adven-
to da lei 6.620/1978, que embora tenha atenuado algumas disposições da legislação anterior,
manteve vários de seus conceitos fundamentais, tais como “guerra psicológica adversa”, com
a equivocidade de sempre.
408
409
A ideologia da segurança nacional, além de intolerante e repressiva, foi o discurso ide-
al para realimentar o sistema penal subterrâneo da repressão política. Nesta medida, pretendeu
enquadrar todas as manifestações contrárias a situações de injustiça, tivessem elas contornos
políticos mais definidos ou não, como por exemplo, aqueles de reivindicação salarial.
410
406
Cf. IANNI, Octávio. A ditadura do grande capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, p. 156, “Foi
por dentro do aparelho ditatorial que se criou, ganhou força e generalizou um vasto processo de criminalização
de amplos setores da sociedade. (...) A ditadura instaurou a regra da suspeição geral e difusa, de modo a intimi-
dar todos, governar pelo medo, ao modo fascista. (...) A forma pela qual os governantes lidam com os problemas
do povo, do trabalhador, operário e camponês, implica a prática da violência policial como técnica principal de
administração e domínio.”
407
Decreto-lei 314/67, art 3º: A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preserva-
ção da segurança externa e interna, inclusive a prevenção da guerra psicológica adversa e da guerra revolucioná-
ria ou subversiva.
408
Lei 6.620/78, art 3º, § 2º: A guerra psicológica adversa é o emprego da propaganda, da contrapropaganda e de
ações nos campos políticos, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opi-
niões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a conse-
cução dos objetivos nacionais.
409
Ninguém desqualificou com mais propriedade as leis da segurança nacional do que HELENO CLÁUDIO
FRAGOSO. A este respeito parece fundamental recorrer a um manifesto por ele elaborado e adotado pela Ordem
dos Advogados do Brasil como pronunciamento oficial da entidade (Sobre a lei de segurança nacional. Revista
de Direito Penal. n 30, 1980, p. 5 a 10). Além de ter taxado a idéia de guerra adversa psicológica de “pueril e
ridícula”, FRAGOSO não evitou advertir que “estamos cansados de ouvir a referência hipócrita ao ‘comunismo
internacional’ e a ‘doutrinas alienígenas’, como justificação para o arbítrio, a opressão política e a tortura.”
410
Esta particularidade não passou ao largo da aguda reprovação de FRAGOSO, Ob. citada: “A lei que define
crimes políticos não pode ser instrumento para atemorizar e perseguir trabalhadores, nos conflitos resultantes de
186
Constituiu, conforme observou ZAFFARONI, uma tese conspirativa insensata, cumprindo
uma função política meramente discursiva, mas fundamental à sobrevivência do regime de
exceção.
411
De fato, a resistência se tornara mais visível a partir de 1968, quando alguns integran-
tes das classes médias, basicamente intelectuais e estudantes com perfil ideológico fortemente
identificável aos daqueles eleitos como inimigos do regime, começam a se socorrer das armas,
a praticar seqüestros, etc. A contrapartida foi imediata como indica os sucessivos atos institu-
cionais promulgados pelo regime militar. Seria então neste período que o sistema penal para-
lelo reservado aos inimigos do Estado mostraria sua face mais cruenta. A luta contra o terro-
rismo que o Estado dizia realizar se converte num verdadeiro terrorismo de Estado a pôr em
funcionamento também o sistema penal subterrâneo, responsável pela extinção física e pela
tortura de toda uma geração de dirigentes, atuais ou potenciais, quase inteiramente dizimada.
De fato a guerra seria declarada e as agências policiais, ao promover a criminalização secun-
dária, passam a exceder sistematicamente mesmo aquele programa criminalizante paralelo. O
subsistema penal DOPS/DOI-CODI
412
torturaria, mataria e ocultaria o cadáver de centenas de
pessoas. Como observou ZAFFARONI, o caráter diferencial de todos os regimes da seguran-
ça nacional foi a montagem do sistema penal subterrâneo, “sem precedentes quanto à cruel-
dade, complexidade, calculadíssima planificação e execução.”
413
As mortes praticadas quase
nunca se valeram da previsão formal, e a maioria das condenações eram impostas sem proces-
so.
Esta planificação, outro moinho de gastar gente implementado no Brasil, também
transbordaria para o sistema penal geral e, mesmo que menos sistemática, sobreviveria à pró-
reivindicações por melhores condições do contrato de trabalho. A vigente lei de segurança nacional tem servido
a essa finalidade, dando argumento aos que nela vêem meio natural de defesa eficaz da classe dominante, para
preservação de seus interesses com a dominação e a opressão do proletariado.(...) É ilegítimo e desleal escamo-
tear a límpida proteção dos interesses políticos do Estado, dando aos patrões argumento terrorista para submeter
e oprimir os trabalhadores. Este nos parece o aspecto mais grave da lei de segurança nacional vigente.(...) A
escandalosa e crescente desigualdade na distribuição da renda (...), tem sua origem especialmente num estilo de
crescimento capitalista que mantém larga proporção da força de trabalho em condições de subemprego, reduzi-
das taxas de produção e grave exploração. Isso se deve não só à estrutura agrária do país, mas também e particu-
larmente à frágil força de pressão da classe trabalhadora. Para isso tem sido essencial ao sistema dominante su-
primir a liberdade sindical e proscrever o direito de greve. A inclusão da greve pacífica na lei de segurança na-
cional constitui uma aberração que expressa, da forma mais brutal, o poder de dominar e controlar a classe traba-
lhadora, suprimindo-lhe o poder de pressão.
411
ZAFFARONI, En busca de las penas perdidas, p. 151.
412
Departamento de Ordem Política e Social - DOPS; Destacamento de Operações de Informações DOI; Cen-
tro de Operações de Defesa Interna – CODI.
413
ZAFFARONI, E Raul. El enemigo en el derecho penal. Buenos Aires: Ediar, 2006, p. 49.
187
pria Guerra Fria,
414
abandonando os inimigos políticos para continuar sua cruzada contra um
inimigo indefinido e moldável, que vai do pequeno traficante ao grande chefe do crime orga-
nizado, todos invariavelmente pobres.
4. O sistema penal do capitalismo financeiro e dependente.
O último sistema penal brasileiro tem na reforma da parte geral do Código Penal reali-
zada em 1984 um conveniente marco histórico. A ela se sucedeu a redemocratização do país
com a eleição, ainda indireta, para Presidente da República, que culminaria na promulgação
de uma nova Carta Constitucional em outubro de 1988. Ambas inovações legislativas são
responsáveis por notáveis avanços no campo das garantias individuais frente ao poder puniti-
vo do Estado. No entanto, mesmo na parte da política criminal dedicada à legislação esta am-
pliação das garantias logo retrocederia, ensejando uma tendência de desprezo aos limites mais
rudimentares que o iluminismo e o liberalismo políticos haviam legado. Na condição de repe-
tidor mais ou menos fiel dos discursos pronunciados nos países centrais do sistema capitalista,
o Brasil tem implementado uma absorção seletiva e um tanto quanto casuísta não destes
discursos mas também das práticas que neles se justificam. A debilidade do sistema político
de pouco conteúdo democrático, tem feito com que os agentes políticos, encarregados da for-
mulação e aprovação de propostas legislativas, tenham seu comportamento determinado pelos
interesses eleitorais cuja pauta é imposta pelos aparelhos midiáticos, que fazem da política
verdadeiro espetáculo. O panorama punitivo atual parece se designar, desta forma, pela sobre-
posição de duas variáveis principais: para além da interferência do poder da mídia, o novo
local destinado ao sistema produtivo nacional pelo capitalismo globalizado tem desfrutado de
ampla ressonância.
O fenômeno da globalização, mais econômica e particularmente financeira do que
qualquer outra, repercutiu intensamente dentro das fronteiras brasileiras, sobretudo a partir de
1990. Seus efeitos podem ser mais percebidos justamente no funcionamento do Estado, con-
sequentemente, nas estruturas que ele define e põe em movimento. Curioso, neste aspecto, é
que esta nova postura, mais absentencionista no plano econômico, mas sobretudo naquele
414
BATISTA, Política criminal com derramamento de sangue, p. 85.
188
social, colide frontalmente com os contornos dados a este mesmo Estado pela Constituição de
1988. Daí talvez se explique as inúmeras e exageradas emendas que se seguiram quase que
imediatamente à sua promulgação e que continuam lhes sendo imposta até os dias que correm.
Estas alterações foram decisivas para a postura assumida pelo Estado frente às demandas com
que se defronta, inclusive no campo da resposta e de combate ao crime, apesar do prodigioso
plexo de garantias individuais plasmado na Constituição continuar íntegro.
Estas alterações promovidas na estrutura e no funcionamento do Estado sofrem evi-
dente influxo das transformações operadas no nível global da economia de mercado. Elas se
distinguem, basicamente, pelo incremento substancial a) dos investimentos estrangeiros dire-
tos; b) do intercâmbio comercial, tornando quase inexistentes as fronteiras comerciais nacio-
nais, e; c) supremacia do capital financeiro frente ao capital produtivo. No âmbito interno esta
nova configuração repercutiu de modo considerável, determinando a completa abertura dos
mercados, a modernização das grandes empresas do capital monopolista, o incremento da
dependência econômica e financeira e a substituição do papel do Estado na economia (de em-
preendedor a regulador). Particularmente no Brasil, verifica-se ainda uma inaudita privatiza-
ção de serviços e empresas públicas, sobre as quais até hoje recaem suspeitas de favorecimen-
tos e até de doações mal-disfarçadas. Tais privatizações constituíram, conforme assinalou com
muita propriedade JUAREZ TAVARES, uma vultuosa transferência de poder.
415
Neste âmbito, é sempre relevante, para não se afastar do fio ao qual este trabalho se
prende, procurar perscrutar seus reflexos no mundo do emprego. Após um crescimento eco-
nômico considerável durante cerca de 50 anos, o Brasil desde a crise da dívida externa do
início dos anos 1980 (quando os mercados foram fechados para fora a fim de se tentar equili-
brar a balança de pagamentos), tem se revelado quase inerme na produção de postos de traba-
lho; sua economia tem se mostrado pródiga em reforçar a tendência histórica em retribuir,
pela venda da força de trabalho, muito aquém do equivalente.
416
De fato, a globalização da
economia e a supremacia do capital financeiro especulativo em detrimento daquele produtivo
415
Segundo TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas de segurança pública. Revista da Associação
Brasileira dos Professores de Ciências Penais ABPCP. v 0, 2004, p. 127-142, as “privatizações (...) não consti-
tuem fenômeno isolado desse contexto, mas o exaurimento do próprio processo, em que não só se cede a oportu-
nidade de gestão, como se vende por preços normalmente irrisórios (ou se entrega) a uma pequena parcela das
forças econômicas ativas aquilo que fora adquirido e gerido pelo Estado com recursos de toda a população e,
quase sempre, sem a participação dos compradores.”
416
Ver a respeito, POCHMANN, Marcio. O emprego na globalização. São Paulo: Boitempo, 2001, p. 110 e
segs.
189
têm implicado a desaceleração do crescimento econômico e a retração dos parques industriais.
Isto conduziu a uma sensível redução dos rendimentos dos trabalhadores, que vêm cada vez
mais distante a possibilidade de conseguir um emprego relativamente estável e com direitos
trabalhistas garantidos. Eis a forma que a precarização e a flexibilização do emprego assumi-
ram no Brasil. Juntamente com os processos de financeirização da economia capitalista e de
notável revolução produtiva proporcionada pelas novas tecnologias da informação, os países
de capitalismo dependente ingressam nesse novo estágio sofrendo uma forte terciarização de
sua economia doméstica. Por isso que à redução do crescimento econômico se deve agregar,
como um fator de contenção e concentração da renda, a continuidade do forte dinamismo do
setor primário (agropecuária), juntamente com o avanço do setor de serviços (nele incluído o
comércio, a intermediação financeira e a administração pública) - cuja fatia do Produto Inter-
no Bruto desfruta de ampla dianteira em relação aos demais – sobre os lugares antes ocupados
pelo setor industrial. Mesmo no interior do setor industrial nota-se uma concentração crescen-
te da participação da indústria menos sofisticada, de menor intensidade tecnológica. Os inves-
timentos, por conseguinte, os maiores índices de produtividade, igualmente confluem para os
setores de menor valor agregado. De modo geral e a despeito da completa revolução produtiva
protagonizada pela tecnologia da informação, a economia brasileira, mesmo superada as
“décadas perdidas” (1980-2000), continua semi-estagnada e a privilegiar a produção básica,
tanto agropecuária quanto industrial, destinada à exportação. Isto para fazer frente ao grande
fluxo de importados e tentar garantir nem sempre com sucesso saldo positivo na balança
de pagamentos.
417
No entanto, além de não se fechar, o ciclo é vicioso, pois a óbvia contrapar-
tida consiste na necessidade de cada vez mais se valer da importação de produtos mais elabo-
rados; culmina no aprofundamento da estagnação econômica, cujo consumo interno dificil-
mente se dinamiza. Mesmo mais recentemente, os avanços em ciência e tecnologia são pífios,
se é que tais setores não estão a regredir. Na era do conhecimento, enquanto o mundo acelera
na criação e no aprimoramento de sua tecnologia, o Brasil parece estar, mais uma vez, per-
dendo o bonde da história.
Este processo de desindustrialização, ainda em curso, confirma a tendência histórica
da reduzida retribuição pela venda da força de trabalho. Primeiro pela quase extinção da figu-
ra do emprego, mais característico de setores econômicos industrializados. Além do mais,
quando existente, o emprego se concentra num setor que, por não permitir uma acumulação
417
Segundo POCHMANN, Ob. citada, p. 115, boa parte da recente paralisia industrial brasileira se deve a uma
substituição de importações invertida, na qual a produção industrial é trocada pelos importados.
190
digna de registro em função do baixo valor agregado dos bens e serviços que põe em circula-
ção, não fornece benefícios (salário indireto), sobrecarregando o pouco que o Estado ainda
fornece. O Estado, por sua vez, tem seus gastos limitados pelo incremento de seu endivida-
mento, bem como pelos rigorosos ajustes fiscais que adotou, ou melhor, permitiu lhe fossem
impostos. Neste mesmo panorama macroeconômico nota-se a persistência da maior taxa de
juros real do mundo, brandida por tecnocratas, com postos cativos nos aparelhos de Estado
dependente, sob a justificativa de debelar o aparentemente não-superado trauma da hiperinfla-
ção - fantasma que castigou a economia nacional desde o início dos anos 1980. No entanto, a
fórmula permanece, a despeito de a inflação não ser mais um problema de envergadura em
nível mundial, além de ter sido aparentemente superada com o Plano Real de meados da dé-
cada de 1990. A persistência em atingir metas reduzidíssimas de inflação tem redundado na
redução da demanda, por conseguinte, na contração da renda, enfim, na pauperização do po-
vo. Outro traço, conquanto mais recente, nem por isso desmerecedor de registro, consiste no
altíssimo superávit primário que representa a diferença entre a arrecadação e as despesas
geralmente justificado com base na redução da relação entre a dívida do Estado e o PIB. Este
superávit, além de redundar, de um lado, no aumento vertiginoso da carga tributária, e de ou-
tro, na contenção dos gastos públicos de orientação social, não tem se mostrado suficiente
para reduzir o déficit nominal, que leva em conta a totalidade das despesas e das receitas. Isto
se explica porque, a despeito da diminuição de investimentos e verbas de corte social, para
aferição do déficit nominal deve-se também tomar os gastos com a dívida pública o chama-
do serviço da dívida - cujos custos são substancialmente constituídos pela alta taxa de juros já
mencionada.
Ao lado desta constatação é inescusável deixar de verificar que este cenário macroe-
conômico privilegia, através das transferências do Estado, além dos credores internacionais
que encarnam o capital financeiro globalizado, uma parcela da economia nacional que, embo-
ra muito restrita constitui um dos pontos de sustentação política do regime relativamente de-
mocrático que o Brasil experimenta desde a eleição de Fernando Collor de Mello. Não é por
outro motivo que os rentistas de todos os matizes, notadamente as instituições financeiras
nelas compreendidas os grandes grupos internacionais que não se restringem a promover a
intermediação financeira e também os grandes bancos que operam no país - devem sua maior
fonte de rendimento ao fato de que são os maiores credores do Estado, mediante os títulos da
dívida pública que lhe são frequentemente oferecidos. Compreende-se, desta forma, porque os
191
organismos financeiros nacionais e internacionais são os verdadeiros proprietários da dívida
pública brasileira, cuja economia paga os mais altos juros reais do mundo.
418
Com relação às
instituições sediadas internamente, esta é sua principal e mais caudalosa fonte de renda, o que
surpreendentemente as coloca dentre aquelas que mais lucram em todo o planeta. O reflexo
deste fator também é danoso em termos de crescimento econômico, pois implica a contenção
do crédito, que a maior parte do volume de capital disponibilizada é consumida pelo pró-
prio Estado para pagar o serviço da dívida. O ciclo se fecha desta forma ao mesmo tempo em
que o buraco, que constitui seu núcleo, vai se aprofundando quanto maior for o custo opera-
cional do aparelho estatal em comparação com seu entorno econômico. A situação ainda mais
se agrava em função da corrupção que se endemiza, certamente também em virtude da baixa
dinamicidade da economia, desprovida de condições de possibilitar fluxos suficientemente
importantes para contentar certas frações (elites) de classes convertidas em burocracias, nelas
incluídas os políticos “por vocação”, ávidas por enriquecimento.
Aliás, e este é um fenômeno bastante recente, os ajustes realizados sobre o setor públi-
co podem constituir poderosa ferramenta, tanto na “maquiagem” das taxas de desemprego,
419
como na construção do esquema de dominação política. Afinal, como já vaticinara FAORO, a
burocracia, verdadeiro estamento detentor do poder político brasileiro, é indispensável para
qualquer coalizão política que intente propor um projeto ou minimamente governar o país. O
governo de Luiz Inácio Lula da Silva, ciente deste traço da realidade política nacional, tem se
mostrado mais generoso com o pessoal do Estado, inclusive aumentando suas dimensões o
que tem servido inclusive como reforço de seu forte apelo eleitoral - após um período de agru-
ras experimentado durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, na perspectiva
da contenção dos gastos correntes.
É interessante ainda registrar que a política econômica mais recente, notadamente no
nível macroeconômico, designada pela combinação de altas taxas de juros e de câmbio, longe
de indicar que os fundamentos da economia brasileira serão modificados, traduz que os obje-
tivos apresentados para sua justificativa talvez nunca sejam alcançados. Para ajustar os inte-
resses das grandes corporações e suas imbricadas fontes de inversões produtivas e financeiras,
418
Cf. CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 250, os credores do Esta-
do, com privilegiado acesso à via fiscal de captação de recursos em tempos de globalização financeira, constitu-
em o arquétipo do rentista.
419
Cf. POCHMANN, Ob. citada, p. 115, o funcionalismo público constitui importante mecanismo de absorção
de mão-de-obra, assim atuando para reduzir o déficit do sistema econômico neste âmbito.
192
das quais depende excessivamente tendo em vista a permanente deficiência de acumulação da
economia nacional, aos de determinados grupos internos (nomeadamente exportadores, dentre
eles agropecuaristas de grande produtividade) que, bem ou mal, ainda são substancialmente
responsáveis pela dinâmica da economia e, consequentemente, pela manutenção do equilíbrio
da balança de pagamentos, o sistema de dominação atual encontra-se atado a estas contradi-
ções. Boa parte, senão a totalidade delas, são tributárias da posição periférica da economia
doméstica no cenário do capitalismo financeiro global que ora se vivencia. Por não poder
prescindir de capital externo, é necessário continuar a oferecer benefícios para este capital,
apesar de sua volatilidade, quer com altas taxas de rendimento, quer mesmo com a isenção de
tributos, uma e outra garantidas pelo Estado. De outro lado, mesmo os investimentos aplica-
dos no setor produtivo encontram aqui condições favoráveis, tendo em vista a grande oferta
de mão-de-obra a permitir altas taxas de lucro. Observada como um fenômeno global em fun-
ção da nova configuração da economia, nos países de capitalismo dependente esta tendência
se agrava tanto em função do baixo crescimento econômico como da política também econô-
mica mencionada. No entanto, a excessiva tributação, a onerar principalmente os empreen-
dimentos internos acaba por corroer tais lucros, mas continua providencial ao enriquecimento
dos credores do Estado. A situação não se modifica estruturalmente com o recente restabele-
cimento dos gastos públicos de orientação assistencial. Apesar de propiciar algum dinamismo,
principalmente nas regiões economicamente mais atrasadas como o Nordeste, os traços mais
proeminentes permanecem os mesmos.
De fato, o impressionante gigantismo que se abate sobre os grandes conglomerados in-
ternacionais, a um tempo industriais e financeiros, e as igualmente espantosas massas de
capital monetários por eles manipulados, muitas vezes superiores aos orçamentos de rios
Estados nacionais juntos, têm resultado na quase inanição política destes últimos. Isto se tra-
duz num reforço da atrofia dos canais políticos, principalmente daqueles que, mesmo fora das
estruturas partidárias, têm de necessariamente estabelecer conexões com a espacialidade pú-
blica que o Estado ainda parece monopolizar. Neste contexto, nem mesmo o poder expresso
pelo voto é capaz de superar a blindagem política de que desfrutam certos aparelhos de Estado
com considerável poder real nas mãos, como é o caso dos bancos centrais. Os desdobramen-
tos para o controle social e político dos cidadãos são evidentes, conforme se vê adiante.
193
4.1 Da segurança nacional à segurança pública.
Este novo modelo econômico, evidentemente, é também político e se projeta sobre o
campo do controle social. Nele a repressão continua a recair mais sobre os párias dos grandes
centros urbanos, sub-utilizados pelas forças produtivas e muitas vezes não alcançados pelos
benefícios assistenciais do governo. Para melhor compreender este microcosmo punitivo,
convém contextualizá-lo. Com efeito, o bloqueio dos canais de equacionamento dos conflitos
coletivos, que inibe inclusive as possibilidades de resolução de dilemas pessoais, mais e mais
agravados em razão do isolamento provocado pelo alheamento do Estado, no Brasil se expri-
me de forma ainda mais dramática, dado o reduzido patrimônio acumulado de respeito aos
direitos fundamentais.
420
Deste contexto emerge a matriz discursiva paradigmática da segu-
rança pública como resposta aos sentimentos de insegurança (subjetiva) e àqueles de abando-
no (objetivo)
421
, que funcionam como mecanismos de retroalimentação desta mesma diretriz
discursiva. Atualmente, ela constitui o sintoma mais importante da incapacidade da organiza-
ção social brasileira incorporar minimamente a maior parte de seu povo. Desta forma, o altar
antes reservado à segurança nacional e ao inimigo moral do poder punitivo, é apropriado pela
segurança pública e seu consorte, personificado pelo excluído, indivíduo dispensável pelo
sistema econômico e compulsoriamente dispensado do atendimento das políticas sociais pro-
vidas pelo Estado. Para aqueles ainda integráveis, a incerteza, catalisada pela deliberada dis-
seminação do medo, não é menor e lhes define igualmente o comportamento. Esta percepção
social, que é tradução da inviabilidade da ação política coletiva, envia a mensagem para o
poder punitivo da necessidade de se arranjar culpados.
422
Isto traduz uma incapacidade políti-
ca que revigora a obstrução dos canais apropriados para a resolução destas pendências exis-
tenciais. Assim o terreno social se torna fecundo para soluções não simbólicas, mas pura-
420
Segundo DIAS NETO, Theodomiro. Segurança urbana: o modelo da nova prevenção. São Paulo: Revista
dos Tribunais/Fundação Getúlio Vargas, 2005, p. 88, “Observa-se perda de centralidade da política relacionada à
redução da capacidade estatal de regular os processos macroeconômicos e de compensar, por meio de prestações
sociais, os prejuízos decorrentes do atual ciclo de reorganização dos processos de produção e das relações de
trabalho.”
421
Cf. BARATTA, Alessandro. Seguridad. In: Criminología y sistema penal (compilación in memoriam). Co-
lección Memoria Criminológica dirigida por Carlos Alberto Elbert. Buenos Aires: B de F, 2004, p. 199-220, é
necessário distinguir a segurança objetiva da subjetiva: a primeira se refere à satisfação das necessidades reco-
nhecidas como direitos, a segunda ao sentimento de segurança (ou insegurança) difuso ou dos distintos indiví-
duos. Outra distinção importante feita por BARATTA neste ensaio reside nas duas direções que uma política de
segurança pode adotar: pode orientar-se ao modelo do direito à segurança ou ao da segurança dos direitos. O
primeiro é o vigente nos EUA, na Europa e também no Brasil; o segundo, embora legítimo e possível, é impro-
vável.
422
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000, p. 15; no mesmo sentido, ver AR-
GÜELLO, Katie. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o discurso da ordem. Disponível em:
http://www.cirino.com.br. Acesso em: 06 set. 2006.
194
mente publicitárias de legitimação do poder a convergir para o reforço daquele punitivo.
423
Desta forma operacionaliza-se uma redução dos problemas sociais, políticos e até psíquicos a
uma questão penal. Por isso não deveria assombrar que os jornais televisivos e seus congêne-
res tenham se transmudado num pasquim de crônicas judiciárias, sobretudo policialescas.
424
Neste modelo os cidadãos, em vez de atores, são meros espectadores do espetáculo a que se
converteu a política.
Desta forma, assiste-se à hipertrofia da política penal no interior da política integral do
Estado, da qual ela deveria corresponder apenas a uma pequena e subsidiária parte.
425
Esta
premissa se projeta para o debate da segurança, que acaba se reduzindo à adoção de medidas
de repressão à criminalidade, repropondo a fantasia absolutista de controle total sobre o des-
vio. O debate, porém, não constitui um processo de reflexão coletiva enquanto expressão da
idéia de democracia.
426
É necessário distinguir-se, antes de mais nada, a opinião pública da
opinião publicada pelos meios de comunicação de massa os verdadeiros responsáveis pela
pauta político-criminal atualmente.
427
Eles constroem demandas populares sem qualquer subs-
trato legítimo ou científico e acabam por vendê-las aos legisladores, não sem antes inculcá-las
na população mediante repetidas invasões domiciliares sem autorização. Assim se vende a
falácia de que uma maior segurança contra os delitos comuns será obtida através da aprovação
423
Assim, por exemplo, TAVARES, A globalização e os problemas de segurança pública, p. 128; também,
ZAFFARONI, El enemigo en el derecho penal, p. 73.
424
WACQUANT, Loïc. Sobre a ‘janela quebrada’ e alguns outros contos sobre a segurança vindos da Améri-
ca. Revista Brasileira de Ciências Criminais. n 46, 2004, p. 228-251. No mesmo texto o autor registra: “A ence-
nação política da ‘segurançadoravante compreendida em sua estrita acepção criminal reduzindo-se o ‘crime’
propriamente dito somente à delinqüência de rua, ou seja, no fim das contas, às torpezas das classes populares -,
tem por primeira função permitir aos líderes, no exercício de seus encargos ou aspirantes, reafirmarem adequa-
damente a capacidade do Estado enquanto, abraçando os dogmas do neoliberalismo, pregam unanimemente sua
impotência em matéria econômica e social.”
425
BARATTA, Ob. citada, p. 204; do mesmo, ao propor uma política criminal alternativa, ver Criminologia
crítica e crítica do direito penal, p. 203-204. A respeito do caráter eminentemente penal da política do Estado,
ver mais uma vez, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial,
p. 1
426
Para tanto, seria necessário garantir a expressão não dos interesses de grupos de maior peso político, mas
de todas as demandas populares. Definitivamente, a expressão legítima da maioria não coincide com as decisões
de maiorias parlamentares de ocasião. Um processo de reflexão coletiva como expressão da idéia de democracia,
deve considerar que a discussão pública tende a evitar a cristalização de idéias. Esta reflexão deve tomar em
conta não somente os interesses de grupos que detém maior peso político; todas as demandas devem ser discuti-
das publicamente. Assim se atinge a imparcialidade. Além disso, não basta a possibilidade de expressar as de-
mandas, devem elas se enfrentar. Através da reflexão coletiva assegura-se não o tratamento de questões de
interesse geral, mas a própria resolução das mesmas. Ocorre que a obstrução dos canais adequados para o equa-
cionamento destas questões impede o funcionamento do circuito. É desta forma que a política é seqüestrada pela
racionalidade econômica, que aliás já havia cooptado a ciência.
427
BARATTA, Ob. citada, p. 213, registra que na verdade a opinião pública tem muito pouco de pública. Com-
preende apenas uma média das opiniões privadas, porque são expressadas não no exercício de um papel público,
senão na condição de espectador isolado.
195
de leis mais duras ou reforçando o arbítrio policial. O rescaldo é o estímulo, direto ou indireto,
a toda ordem de violências, sejam elas institucionais como resposta aos atos socialmente da-
nosos, ou individuais, enquanto exteriorização da condição de incômodo social a que os po-
bres são relegados.
428
O papel político desempenhado pela mídia neste processo efetivamente
é decisivo. Pois a mídia, conforme assinala NILO BATISTA, a partir de quando “deixa de ser
uma narrativa com pretensão de fidedignidade sobre a investigação de um crime ou sobre um
processo em curso, e assume diretamente a função investigatória ou promove uma reconstru-
ção dramatizada do caso de alcance e repercussão fantasticamente superiores à reconstrução
processual – passou a atuar politicamente.”
429
Os desdobramentos da ideologia da segurança pública para o plano legislativo, e o a-
cento penal da gestão da insegurança social que lhe é peculiar, são facilmente perceptíveis. A
política legislativa deste contexto pode ser caracterizada como prevalentemente repressiva.
Faz uma clara opção pela tentativa vã, conquanto funcional, de combate ao crime a fim de
garantir a segurança, em detrimento da alternativa da garantia de direitos. Seus emblemas
estão assentados na lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90) e naquela destinada ao combate
ao crime organizado (Lei 9.034/95), que grosso modo estabeleceram um verdadeiro retrocesso
frente às garantias liberais conquistadas com a reabertura democrática experimentada na se-
gunda metade dos anos 1980: novas modalidades de prisão cautelar, delação premiada, infil-
tração de investigadores autorizados a participar de crimes, aumento de penas, vedação à apli-
cação de substitutos às penas privativas de liberdade, entre outros. No plano simbólico, no
qual tem revelado grande desenvoltura, a mais importante inovação reside na figura do crime
organizado.
430
A seu respeito, talvez um só detalhe seja suficiente para perceber do que se está
falando: embora haja um consenso que o crime organizado, em sua essência, implica a cor-
rupção de agentes públicos,
431
aqueles que realmente desfrutam de acesso privilegiado às es-
428
Cf. ZAFFARONI, El enemigo en el derecho penal, p. 71: “Dado que el mensaje es fácilmente propagado: que
se facilita desde el exterior; que es rentable para los empresarios de la comunicación social; que es funcional
para el control de los excluidos; que tiene éxito entre ellos mismos; y que satisface a las clases medias en deca-
dencia; no es raro que los políticos se apoderen de él y hasta se lo disputen. Como el político que pretende con-
frontar con este discurso es descalificado y marginado de su propio partido, si no lo asume por cálculo electora-
lista lo hará por temor, y, de este modo, por oportunismo o por miedo, se impone el discurso único del nuevo
autoritarismo.”
429
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Revista Brasileira de Ciências Criminais, n 42,
p. 242-263.
430
A respeito, definitivas são as críticas tecidas por CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Crime organizado. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. n 42, 2003, p. 214-222 e por ZAFFARONI, E. Raul. Crime organizado: uma
categorização frustrada. Discursos Sediciosos. n 1, 1996, p. 45-67.
431
ZAFFARONI, Crime organizado, p. 47.
196
truturas estatais, frequentemente descobertos em seus empreendimentos, não puramente
ilícitos, mas que também podem se mesclar com atividades lícitas - como é da essência das
empresas capitalistas - não costumam ser enquadrados sob esta rubrica legal; tampouco so-
frem as violações de garantias que tal legislação prevê. Não na fantástica divulgação reali-
zada pelos meios de comunicação de massa, mas inclusive no enquadramento das condutas
investigadas, pelas autoridades encarregadas de levá-las adiante (polícias, Ministério Público,
etc.). Quer isto significar que, no Brasil, ao contrário do que ocorreu, por exemplo, nos Esta-
dos Unidos e na Itália, a assimilação desta categoria, a um tempo mítica, sem conteúdo e
desnecessária,
432
não tem priorizado as estruturas empresariais dedicadas à corrupção política,
ao jogo proibido, à manipulação de partidos, etc. Antes tem se distinguido pela confirmação
da predileção que o sistema punitivo brasileiro nutre por determinados grupos sociais, tanto
social mas sobretudo politicamente fragilizados.
Todo este contexto tem repercutido no Brasil de forma mais grave, ou seja, com mais
derramamento de sangue. Afinal, neste quadro de verdadeira guerra aberta, declarada pelo
próprio Estado, nota-se a exacerbação da criminalidade violenta como resposta às mortes rea-
lizadas pelas polícias, muitas vezes autorizadas ou até prestigiadas pelas autoridades públicas.
Desta maneira, ao dar continuidade ao seu padrão de funcionamento, mediante inequívoca
priorização do uso da violência física direta, tributária da incapacidade de legitimação perante
aqueles que exclui da fruição da riqueza social, o exercício do poder punitivo acaba se defron-
tando com um adversário de peso, espécie de poder punitivo paralelo que ele próprio constru-
iu. A isso se segue a quebra do monopólio do uso da força física sobre o qual este mesmo
Estado assenta sua fonte de legitimação. Completa-se, assim, o círculo vicioso de exacerbação
da violência, com a produção de mortes digna de uma guerra civil, cuja resultante, do ponto
de vista institucional, é o agravamento da fragilidade da autoridade do Estado. Ao travar sua
guerra contra o inimigo que o capitalismo neoliberal elegeu, o Estado brasileiro, em vez de
superioridade, tem se revelado portador de uma inferioridade ética, uma verdadeira covardia,
frente às outras formas de violência que diz combater.
A par desta quebra do monopólio, outra forma de manifestação deste mesmo fenôme-
no tem conseguido se expressar. Como a outra ela constitui tanto um sintoma como uma cau-
sa da perda da legitimidade do Estado. Trata-se da privatização do exercício da força física,
432
CIRINO DOS SANTOS, Crime organizado
197
sobretudo através da disseminação sem critério das empresas de segurança.
433
Isto sem falar
das milícias que se arvoram em substitutas do Estado no papel de provedor de segurança para
as populações pobres, horrorizadas tanto pela atuação policial como pela violenta resposta dos
perseguidos, principalmente traficantes de drogas ilícitas, a esta atuação.
434
Na condição a que foi relegado no quadro geopolítico global do capitalismo financei-
ro, o Estado brasileiro simplesmente não consegue deixar, senão de promover, pelo menos de
ser complacente com a eliminação sistemática de sujeitos fragilizados. Uma das expressões
desta calamidade reside no aumento do número da população carcerária, fenômeno acentuado
sobretudo no Estado de São Paulo,
435
onde o parque industrial sempre foi mais desenvolvido,
o que também constituiu um dos grandes motivos para que as correntes migratórias acorres-
sem em sua direção.
De fato a situação carcerária constitui um dos importantes termômetros do nível de
degradação que a situação social brasileira continua a ter. À constância desta tragédia se deve
agora agregar o incremento do recurso à prisão como sucedâneo das políticas assistenciais,
ambas substitutas da incapacidade de incorporação de nossas forças econômicas. Mais uma
vez os discursos brandidos desde os países centrais, tais como zero tolerance e assemelhados,
são rapidamente assimilados e adaptados a pouco modificada realidade nacional, sempre co-
mo forma de manutenção da violência como regra de dominação e que, infelizmente, parece
estar se insinuando por entre as relações interpessoais. Os subprodutos destas estratégias o
infelizmente conhecidos por muitos, especialmente daqueles habitantes dos grandes centros
urbanos, como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Vitória, entre tantos outros. A prisão come-
ça a se tornar um destino quase certo para aqueles que - feliz ou infelizmente, não se pode
afirmar categoricamente - não morrem antes. Sem embargo, o fato de estar preso não exclui a
433
BARATTA, Ob. citada, p. 215, refere que está-se na presença de uma renúncia do Estado à função que deve-
ria legitimar-lo, sobre a base do pacto social moderno: o monopólio da violência.
434
Ver ADORNO, Sérgio. O monopólio estatal da violência na sociedade brasileira contemporânea. In:
MICELI, S. (org.). O quer ler na ciência social brasileira. São Paulo: ANPOCS, 2002.
435
A despeito dos altos investimentos realizados para o aumento das vagas de seu sistema carcerário, tão ao
estilo estadunidense, o ficit entre o número de presos e o de vagas do Estado de São Paulo continua a aumen-
tar. Embora de 2002 a 2005 o número de vagas tenha aumentado em torno de 26% (de 70.487 para 88.992) o
déficit registrou um crescimento de cerca de 36%. Para se ter uma idéia, convém mencionar que o número de
presos por cada 100 mil habitantes de São Paulo continua entre os mais altos do Brasil (341,51 presos/100 mil
habitantes em 2005), ficando atrás de Estados como Acre (382,99/100 mil), Mato Grosso do Sul (383,89/100
mil) e do Distrito Federal (317,73/100 mil), de populações ínfimas, se comparadas com a do Estado mais popu-
loso do país. Fonte: Relatório sobre Direitos Humanos no Brasil (2002-2005), elaborado pelo NEV-USP e
pela CTT, divulgado no início de 2007, p. 562 e segs.
198
possibilidade de ser morto; pelo contrário. Dentro das superlotadas penitenciárias brasileiras,
execuções, fugas e torturas são evidências estruturais da impossibilidade de gestão de um sis-
tema minimamente preocupado com o respeito aos Direitos Humanos. O incremento da su-
perpopulação carcerária acaba por expandir o poder e o controle de grupos de criminosos que,
apesar de encarcerados, vêm suas forças transbordar os muros das penitenciárias. A fim de
granjear as posições mais altas desta escala de poder, cuja medida é a violência exacerbada,
demonstrações de crueldade são freqüentes. Quem é introduzido numa destas instituições não
pode optar por aderir ou não ao jugo destes grupos. Não escolha a quem não pretenda ser-
vir de objeto de demonstração de força de alguns a fim de inibir os demais. A situação mais se
agrava tendo em vista o bloqueio dos caminhos que levam as súplicas de presos provisórios e
condenados ao Poder Judiciário.
436
A negação dos direitos fundamentais é sistemática, dentre
eles o acesso à jurisdição, para vítimas de crimes e seus familiares, mas nada comparável à
situação a que as populações carcerárias são relegadas. Neste sentido, é emblemática a oposi-
ção que se estabelece entre as direções assumidas pelo desenvolvimento de instituições como
a Defensoria Pública e aquelas mais empenhadas na repressão aos crimes do que na garantia
dos direitos fundamentais de todos, tenham ou não cometido crimes.
437
Aquela singularidade
brasileira a que já se fez alusão nesta dissertação, consistente na conversão da prisão provisó-
ria (antes de decisão judicial condenatória irrecorrível), numa pena propriamente dita, conti-
nua presente.
438
436
Neste sentido caminha o alerta feito no 3º Relatório sobre Direitos Humanos no Brasil, p 15 e segs: “O con-
trole das unidades do sistema penitenciário por grupos criminosos dissemina a corrupção e deixa os presos co-
muns sob o poder de presos associados a grupos criminosos. (...) Se o acesso à justiça é difícil para as vítimas e
familiares de vítimas de crimes, é ainda mais difícil para presos provisórios e condenados, na sua maioria sem
acesso a serviços de assistência judiciária. O descumprimento da Lei de Execuções Penais, particularmente no
que diz respeito à assistência judiciária e aos benefícios a que os presosm direito no cumprimento da pena, e à
precariedade da assistência médica, é causa de rebeliões no sistema penitenciário ao lado dos conflitos entre
grupos criminosos e destes com agentes e gestores do sistema penitenciário.”
437
Ver, nesse sentido, o II Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil, realizado pelo Ministério da Justiça em
2006. Embora perceba uma tendência de aumento dos gastos orçamentários nos últimos anos, o estudo relata que
“os Estados gastam, em média, R$ 85,80 por habitante com 3 instituições do Sistema de Justiça: 71,3% são des-
tinados ao Poder Judiciário, 25,4% ao Ministério Público e 3,3% do total é gasto com a Defensoria Pública, valor
claramente insuficiente diante da amplitude de seu público alvo, que corresponde a 70,86% da população total
do país;” (p. 107)
438
Os dados disponibilizados pela página do Departamento Penitenciário Nacional DEPEN, não bastasse se
restringir ao período de 2000 a 2006, não permitem um levantamento preciso do percentual de presos provisórios
dentre toda a população carcerária, esteja ela alojada no sistema penitenciário ou nas delegacias e cadeias públi-
cas dos Estados. As estatísticas ora incluem os submetidos ao regime aberto (que não ficam reclusos), ora distin-
gue entre aqueles que experimentam medida de segurança com internação ou somente mediante tratamento am-
bulatorial. Para se ter um levantamento real seria necessário dispor de todos estes dados em todos os anos, ou
pelo menos contemplar, juntamente com os números relativos aos regimes fechado, semi-aberto e de presos
provisórios, os submetidos a internação decorrente de medida de segurança. A soma destes daria o montante de
todos os efetivamente reclusos. Assim os sujeitos ao regime aberto e às medidas de segurança ambulatoriais,
ficariam de fora. Mesmo assim é possível observar que os dados dão conta de uma permanência, até 2002. A
199
A percepção de insegurança, que se descola da realidade porque muitas vezes cidades
com índices de homicídios muito próximos traduzem um desconforto existencial e sentimen-
tos tão spares, é agravada pela violência perpetrada pelos aparelhos do Estado, sobretudo as
polícias. Para isto as políticas de segurança pública adotadas, mais ou menos impregnadas
pelo discurso beligerante, a nível local (competência dos Estados), têm repercutido sensivel-
mente. Além destas mortes, a adoção da violência fatal como modo de resolução de conflitos
interpessoais por certo contribui para o incremento da tragédia, além de continuar a nutrir suas
preferências.
439
O atual aumento da violência, conquanto mais percebido do que empiricamente obser-
vado, é um fato inegável. Grosso modo ele não é muito mais que a expressão de um tipo de
organização social e econômica que, por não prescindir da violência para continuar a existir,
tem produzido indivíduos que, entre outras coisas, não nutrem qualquer deferência pelo seme-
lhante.
partir daí, a falta de clareza quanto à situação dos presos fora do sistema penitenciário, ou seja, em cadeias ou
delegacias de polícia, impede que se arrisque este cálculo.
439
Cf. o Relatório sobre Direitos Humanos no Brasil (2002-2005), p 13, “Nas áreas urbanas, a violência fatal
continua a atingir de forma intensa e desproporcional os jovens do sexo masculino, moradores das áreas carentes
das grandes cidades e regiões metropolitanas. De 2000 para 2004, as mortes por homicídio por 100 mil habitan-
tes entre jovens de 15 a 24 anos aumentaram 1,10%, de 26,71 para 27,01. Apesar de uma redução de 12,20% na
Região sudeste, a taxas de homicídio por 100 mil habitantes entre jovens de 15 a 24 anos aumentaram nas regi-
ões Sul (33,6%), Nordeste (19,9%), Norte (21,8%) e Centro-Oeste (1,4%). Rondônia (38,0/100 mil), Pernambu-
co (50,7/100 mil), Mato Grosso (31,6/100 mil), Espírito Santo (49,1/100 mil) e Rio de Janeiro (49,1/100 mil), e
Paraná (28,0/100 mil) são os estados com as taxas mais altas em cada região.”
200
CAPÍTULO VII – MODELOS DE ESTADO E TEORIAS DA PENA
Apesar dos juízos e interpretações diluídos por toda a descrição histórica realizada
nesta dissertação, antes de concluí-la parece ainda necessário acrescentar outras considerações
acerca das conexões que as variáveis abordadas projetam sobre o exercício do poder punitivo
do Estado, principalmente sobre os modelos estatais concebidos em cada estágio evolutivo
das forças produtivas e dos rearranjos institucionais que elas condicionam. Isto se traduz em
atribuir o devido relevo à correlação entre os desenvolvimentos político-institucionais da or-
ganização estatal e aqueles referidos às teorias formuladas acerca da pena.
440
Esta conclusão,
conquanto aparentemente óbvia é frequentemente ignorada pelos manuais de direito penal. De
fato ela compreende uma qualidade positiva de poucas obras jurídicas, sobretudo brasileiras.
Tudo estaria perfeito se esta dissertação não se prendesse a uma abordagem radicalmente di-
versa acerca das estruturas do Estado, segundo a qual as instituições erigidas pelo Estado bur-
guês compreendem apenas uma pequena parte de suas fundas estruturas, por conta das quais a
funcionalidade concreta do Estado não encontra completa ressonância nos discursos jurídicos,
políticos e até filosóficos a seu respeito. O aparente paradoxo, todavia, será apenas superficial,
pois a discussão pretendida neste capítulo derradeiro não se distanciará do eixo metodológico
da dissertação, embora pretenda abordar, sem qualquer pretensão de profundidade, as teorias
penais tradicionais, algumas mais outras menos liberais. Isto, contudo, exige melhor delimitar
o recorte: as ideologias penais conhecidas, grosso modo divididas entre absolutas e relativas,
são encontradas muito antes da constituição do Estado que este trabalho procurou de alguma
forma analisar. Isto vale mesmo para as teorias relativas ou preventivas, frequentemente vin-
culadas à noção de utilidade e discursivamente mais desenvolvidas após o Iluminismo.
441
O
que a modernidade parece ter agregado a estes discursos de longa memória foi sobretudo uma
forma típica de racionalidade por detrás das justificativas comumente endereçadas à legitima-
440
A respeito, ver MAURACH, Reinhart; ZIPF, Heinz (atualizador). Derecho penal: parte general. v I. Buenos
Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo Depalma, 1994, p. 92 e segs. Também RODRIGUES, Anabela. A
determinação da pena privativa de liberdade. Coimbra: Coimbra editora, 1995, p. 180; MIR PUIG, Santiago.
Función de la pena y teoría del delito en el Estado democrático de derecho. 2 ed. Barcelona: Bosch, 1982, p. 15.
441
Segundo uma compreensão bastante corrente, SENECA, que viveu no início da era cristã, tomou de PRO-
TÁGORAS uma concepção preventiva de pena até hoje tida por moderna: nemo prudens punit quia peccatum
est sed ne peccetur (nenhum indivíduo racional pune pelo pecado cometido, mas para que futuramente não mais
peque). Nesse sentido, entre tantos outros, HASSEMER, Winfred. Introdução aos fundamentos do Direito Pe-
nal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2005, p 369; também CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Teoria
da pena: fundamentos políticos e aplicação judicial. Curitiba: ICPC/Lumen Juris, 2005, p. 4.
201
ção do poder do Estado de punir, inclusive conceitualizando-o, mais do que como uma pro-
priedade, como um seu direito subjetivo (jus puniendi).
Da correlação mencionada resulta que a função atribuída à pena deve corresponder,
em última análise, aos fins que o Estado diz perseguir. Pois se o Estado é quem detém a ex-
clusividade para o uso legítimo da força, sua exteriorização deve voltar-se a estes objetivos.
Isto, contudo, não encerra a inquietação sobre a legitimidade deste exercício de poder tão gra-
ve. Num Estado cujas estruturas são moldadas segundo os interesses que nele se projetam por
uma sociedade de classes sociais antagônicas, a legitimidade por ele conquistada nunca pode-
refletir, em condições de igualdade, as demandas de todas as classes que convivem sob seu
domínio. Justamente para este efeito é que a estratégia de legitimação por ele assumida não
dispõe, em seu conteúdo, de justificativas materiais capazes de garantir uma equilibrada dis-
tribuição de vantagens e de riquezas entre os participantes. Como se sabe, assim como ocor-
reu com o direito em geral, o advento do Estado moderno fez com que o poder punitivo do
qual ele reivindicou o monopólio também viesse a fundamentar sua legitimidade (formal) na
legalidade. Ocorre, como referi anteriormente, que a despeito desta constatação, o poder
punitivo, em boa parte continua a desenvolver-se à margem da história do direito penal. Daí
que o princípio da legalidade tem se manifestado menos como um princípio real de funciona-
mento do que como uma instância ideológica de legitimação. Pois na realidade tal princípio
não corresponde, senão parcialmente e de maneira contingente, ao funcionamento concreto do
sistema penal. Isto é verdade não quanto ao sistema penal em toda sua extensão o que
exigiria incluir suas manifestações extralegais ou subterrâneas mas também quando se toma
apenas a parte regida pela legalidade.
442
A intenção deste capítulo é procurar demonstrar, mesmo no interior do discurso que se
opõe à abordagem que norteia esta dissertação, que é possível explicitar alguns vínculos que
conectam a forma jurídica à estrutura social para a qual ela se destina. Esta perspectiva evi-
dentemente contrasta com aquela que se satisfaz em tornar compatíveis os objetivos cometi-
dos ao Estado e as prescrições do ordenamento jurídico. Não obstante, não incorrerá no equí-
voco de deixar de fazer a devida referência às principais teorias jurídicas da pena. Agir desta
maneira poderia se traduzir numa alienação: estas construções discursivas, particularmente
aquelas de feição preventiva, constituem, sem sombra de dúvidas, o substrato comum do dis-
442
BARATTA, Alessandro. Vecchie e nuove strategie nella legittimazione del diritto penale. Dei delitti e delle
pene. Ano III, n° 2, 1985, p. 247-268.
202
curso hegemônico construído em torno do fenômeno da criminalização, quer para reforçar
quer mesmo para reduzir o poder punitivo.
443
1. Pena: uma confusão conceitual.
Via de regra a reflexão jurídica sobre a pena criminal comunga de uma imprecisão
semântico-conceitual digna de registro. Esta incongruência constitui um defeito grave porque
a precisão de conceitos deve sempre ser buscada. Ainda que tal exatidão seja fadada ao fra-
casso, merecem censura determinadas concepções que se furtam em marcar as diferenças da-
quilo que é distinguível. Tal imprecisão refere-se à colocação, sob um mesmo rótulo, de fun-
ções e finalidades da pena, e pior, também de suas justificativas.
444
De um modo geral, tais teorias podem dividir-se em duas grandes tradições, geralmen-
te identificáveis mediante o recurso a clássica formulação de SÊNECA: de um lado alinham-
se as concepções que pretendem justificar a pena através do quia peccatum est (pune-se por-
que pecou) e consideram o mal cometido, por isso mesmo referido ao passado; de outro se
unem aquelas que têm em vista o futuro na base do ne peccetur (pune-se para que não peque).
A partir desta bipartição as teorias acerca da pena se desdobram nas teorias absolutas, afina-
das com a idéia de punição em função do crime praticado, portanto como retribuição, e nas
teorias relativas ou da prevenção; segundo esta última concepção, a justificativa da pena
pode se realizar com base nos fins utilitários, voltados ao futuro, que lhe é possível atribuir.
Em termos gerais, os discursos que estão por trás das teorias absolutas, porque não
concebem que a pena deva se justificar em função dos fins que atinge ou afirma visar, nada
tem a ver com suas finalidades. Nesta perspectiva, a pena basta por si mesma. De outro lado,
mesmo quando apelam às finalidades que a pena deve concretizar, as teorias relativas se ocu-
pam menos dos fins efetivos que ela produz do que de sua justificação. Não raro, a justifica-
443
É por isso que, com razão, ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Culpabilidade por vulnerabilidade. Discursos sedi-
ciosos: crime, direito e sociedade. Ano 9. n 14, p. 31-48, observa que entre a teoria da pena e toda teoria do direi-
to penal, e como parte dela, também a teoria do delito, deve sempre existir uma conexão punitiva.
444
Nesse sentido, RODRIGUES, Anabela Miranda. A determinação da medida da pena privativa de liberdade.
Coimbra: Coimbra Ed. 1995, p 152 e segs; também FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo
penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p 171.
203
ção não considera minimamente os efeitos concretos provocados pela pena na realidade soci-
al.
445
O acento, portanto, recai sobre a justificação; mesmo o problema dos fins, e somente
para as concepções relativas, constitui uma questão quase que residual ou secundária.
Segundo FERRAJOLI a questão da justificativa da pena constitui a abordagem exter-
na da legitimação, referida a valores que transcendem o direito positivo. É filosófica, portanto.
De uma perspectiva interna, isto é, que toma em conta não o problema ético-político da justiça
mas o jurídico da legalidade, a pena deve refletir o que prescreve o direito positivo. A rigor, a
pena toma assim um sentido prescritivo, que designa as finalidades que deve perseguir. Mas
pode ela também contemplar as finalidades que de fato a pena persegue. FERRAJOLI toma
por função este último significado, enquanto ao primeiro chamará fins.
446
A despeito destas
distinções, cuja importância não pode ser negligenciada, todas estas noções compõem as teo-
rias da pena, muitas vezes assimiladas a teorias penais, para as quais, segundo se afirmou,
correspondem determinadas concepções de Estado.
Para esta dissertação as distinções apontadas acima são tomadas como importantes. A
utilização de um instrumental semântico mais preciso e que se inscreve na tradição de crítica à
dissonância perceptível do confronto entre os fins assumidos e aqueles ocultos que a pena
efetivamente realiza, a bem da verdade, é imprescindível. Tal abordagem convocará à utiliza-
ção do vocábulo função, é verdade. Mas também exigirá agregar a distinção entre função ma-
nifesta (que FERRAJOLI identifica aos fins) e função latente (simplesmente função para
FERRAJOLI). Esta distinção, reelaborada pela criminologia crítica
447
tem raízes na teoria
sociológica
448
e acabou por se revelar fonte de inesgotável desenvolvimento deste conjunto de
saberes.
445
Para isso normalmente se costuma lançar mão da Lei de Hume: não se pode derivar logicamente conclusões
prescritivas ou morais de premissas descritivas ou fáticas, e vice-versa. Nesse sentido, FERRAJOLI, Ob citada, p
193, nota 15.
446
FERRAJOLI, Ob citada, p 170.
447
Cf. CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 4: “a análise da pena criminal não pode se limitar ao estudo
das funções atribuídas pelo discurso oficial, definidas como funções declaradas ou manifestas da pena criminal;
ao contrário, esse estudo deve rasgar o u da aparência das funções declaradas ou manifestas da ideologia
jurídica oficial, para identificar as funções reais ou latentes da pena criminal, que podem explicar sua existência,
aplicação e execução nas sociedades divididas em classes sociais antagônicas, fundadas na relação capi-
tal/trabalho assalariado, que define a separação força de trabalho/meios de produção das sociedades capitalistas
contemporâneas.”
448
A título de exemplo, ver, extensivamente, MERTON, Robert K. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo:
Mestre Jou, 1970, p. 85 e segs.
204
Convém registrar, porém, que a utilização do conceito função não significa adotar uma
perspectiva funcionalista. Esta tende a perceber as funções que determinados instituições e-
xercem na sociedade sempre de forma positiva, isto é, descrevendo como a sociedade funcio-
na ou deveria funcionar. Uma análise funcional pode, no entanto, não ser funcionalista no
sentido acima descrito. Afinal, como a distinção entre funções manifesta e latente pretende
demarcar, neste âmbito é possível descrever também como a sociedade não funciona ou como
ela funciona negativamente.
449
Esta distinção conceitual entre funções manifestas e latentes remonta à tradição fun-
cionalista, mas foi apropriada por certa reflexão criminológica que não comunga dos pressu-
postos epistemológicos e muito menos dos políticos do funcionalismo.
450
Por função declara-
da deve-se entender aquelas desejadas e admitidas pelos participantes de um sistema social. Já
as latentes ou ocultas são aquelas que, a despeito de influírem no sistema social, não corres-
pondem à vontade ou ao discurso assumido pelas pessoas.
451
Como visto, nem toda análise funcional ou que se utiliza do conceito de função precisa
ser funcionalista. A questão, facilmente suscetível a críticas, está em confundir uma análise
funcional com funcionalismo, isto é, como teoria social global, como filosofia social. Proce-
der a uma análise funcional, nestes termos, não significa partilhar dos mesmos pressupostos
epistemológicos ou cognitivos do funcionalismo. Afinal, a utilização do conceito de função
permite investigar não os efeitos positivos que determinada instituição social produz, mas
também eventuais repercussões negativas que ela engendra. Através dele é possível também
se concentrar na complexidade e nos conflitos constitutivos da sociedade. Isto implica admi-
tir, por exemplo, que o direito nem sempre cumpre funções positivas, isto é, que colaboram
para atingir ou para manter o equilíbrio social. Admite também eventuais disfunções. Exem-
plo emblemático no qual a utilização da distinção entre funções manifestas e ocultas goza de
validade científica inegável é o da reflexão sobre o controle social efetuado pelo sistema pe-
nal.
449
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Introdução à análise sociológica dos sistemas jurídi-
cos. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p 142.
450
Na perspectiva crítica e/ou radical, a distinção entre as funções manifestas e latentes é velha conhecida. As-
sim, por todos, CIRINO DOS SANTOS, Juarez. A criminologia radical. 2 ed. Curitiba: ICPC/Lumen Juris,
2006.
451
ARNAUD, André-Jean; DULCE, Maria José Fariñas. Ob citada, p 142; também, SABADELL, Ana Lucia.
Manual de sociologia jurídica: introdução a uma leitura externa do direito. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribu-
nais, 2002, p 151.
205
Nesta perspectiva, uma crítica das teorias penais realizada do ponto de vista da estru-
tura estatal tipicamente capitalista, além de lançar mão das noções de função manifesta e fun-
ção latente, deve tomar em conta que os fins assumidos por determinado Estado tendem a se
identificar às funções manifestas ou declaradas atribuídas à pena. assim a correlação entre
um modelo abstrato de Estado pode encontrar sua interface penalógica. A questão nodal, po-
rém, está em identificar os nexos que unem determinado perfil jurídico e institucional aos
discursos que se orientam para legitimá-lo, com o específico momento evolutivo do sistema
capitalista. Isto obrigará a concentrar as atenções às formações capitalistas típicas dos países
centrais, o que não significa dizer que uma precisa formação histórica deverá servir de para-
digma. As condições históricas e políticas específicas de um Estado devem ceder espaço às
linhas mais ou menos comuns. Afinal, na perspectiva de uma economia política da pena esta-
tal capitalista, os países que por ela foram influenciados, o foram na condição de uma peça de
uma engrenagem que, embora muito maior, é única e corresponde ao modo de produção do-
minante no sistema mundial.
Antes de passar ao próximo tópico alguns pressupostos devem deve ser fixados, a fim
de delimitar o caminho a ser percorrido adiante: primeiro, nem sempre os discursos ou cons-
truções doutrinárias acerca do poder punitivo revelam muito. Por isso é imprescindível se
debruçar sobre a função latente. A razão de Estado, segundo a qual a pena simplesmente se
volta a realizar a vontade do poder raramente é assumida. Na verdade, ela é muito mais prati-
cada do que teorizada. Por isso poucas são as teorias que assumem na linha de um
MAQUIAVEL ou de um CARL SCHMITT - a inspiração da máxima os fins justificam os
meios.” Em segundo lugar, a discussão ou mesmo a oposição entre as teorias concernentes
aos fins da pena ou mesmo do direito penal é improdutiva se estas manifestações não forem
vistas dentro de suas relações históricas. Isto não traduz que sua análise deva seguir por um
retilíneo fio cronológico, antes deve considerar o contexto sócio-histórico, mas sobretudo po-
lítico, envolvido. Tampouco quer dizer que o propósito deste capítulo é discuti-las com toda a
amplitude, o que obrigaria a buscar suas longínquas raízes, quase todas precedentes ao ilumi-
nismo, que melhor as lapidou. Assim, por exemplo, muito embora as doutrinas preventivas ou
utilitaristas sejam indicadas desde PLATÃO na história do pensamento jurídico-filosófico, foi
somente no final do século XVIII que elas se diferenciam entre si, sobretudo em razão da es-
206
pecífica finalidade preventiva escolhida por cada uma.
452
Este ponto de vista também não
implica assumir como possível identificar, com a precisão típica das concepções economicis-
tas ou deterministas de tipo materialista (cuja vulgaridade foi bastante proclamada), cada
discurso legitimante da pena com determinada fase de desenvolvimento das forças produtivas
e das relações a que tais forças materiais de alguma maneira induzem.
Sem embargo, assim como toda a discussão realizada nesta dissertação foi historica-
mente delimitada pelo surgimento do Estado moderno, notadamente em sua forma burguesa
pós-absolutista, também este tópico terá por recorte o processo evolutivo que se desencadeia a
partir daquilo que a crítica da economia política denominou acumulação primitiva. Seu signi-
ficado é duplamente importante para este trabalho, uma vez que a etapa que ela retrata traduz
tanto a acumulação primitiva de capitais quanto de poder sob a égide de um ente anônimo e
aparentemente separado das relações de produção e das demais relações sociais que compõem
a vida em comum. Por último, as teorias abordadas, que praticamente esgotam as justificati-
vas usuais dadas ao “direito” de punir do Estado, são mais ou menos contemporâneas ao sur-
gimento da prisão como pena essencial e praticamente exaustiva do sistema social ainda em
vigor.
Um patrimônio comum reivindicado por todas as teorias penais consiste na sua racio-
nalidade, desligada de explicações sobrenaturais, e empenhadas em impor limites ao poder
punitivo arbitrário e cruel, pelo qual o absolutismo havia se distinguido. A esta altura da in-
vestigação, enfim, o propósito é iniciar o percurso a partir do acontecimento cultural conheci-
do por Ilustração (século XVIII), momento histórico em que a modernidade se torna mais
propriamente burguesa, que é nele que esta classe social passa a assegurar a hegemonia,
também no plano político.
452
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed., p. 245.
207
2. Teorias da pena
2.1 A pena como retribuição.
A pena como retribuição corresponde à justificação absoluta do direito de punir, cuja
necessidade adveio com a sua concentração nas mãos do Estado. Segundo esta perspectiva o
sentido da pena resulta da necessidade de se compensar a culpabilidade do autor mediante a
imposição de mal equivalente, embora qualitativamente distinto, àquele produzido pelo crime.
Através dela não se depreende qualquer finalidade a ser alcançada, mas apenas a realização de
uma idéia: a justiça. Suas raízes na confissão religiosa, da tradição judaico-cristã, são eviden-
tes,
453
e se expressam sobretudo no talião como medida da pena.
No entanto, suas formulações mais conhecidas são modernas e racionalistas. A primei-
ra figura de destaque é KANT: para ele a pena, por sua própria natureza, não pode ser outra
coisa, senão retribuição. Com KANT o racionalismo ilustrado adquire um caráter absoluto e o
direito traduz, enquanto dever individual de consciência, um imperativo categórico. A pena,
como resposta à negação desse dever, é um fim em si mesmo sem referência a nenhum outro
como objetivamente necessário. Daí deriva sua advertência moral fundamental: jamais um
homem pode ser tomado como instrumento dos desígnios de outro, pois ele é fim em si mes-
mo. Se a imposição de pena produz efeitos preventivos, para KANT isto carece de interesse.
A conhecida formulação de HEGEL significa, por outros caminhos, praticamente o
mesmo: para HEGEL, o crime é a negação direito; a pena a negação do crime, portanto, a
afirmação do direito. Como KANT, filiado à filosofia idealista alemã, HEGEL toma o homem
como fim, porque ele é racional. De modo que não se pode tratá-lo como objeto da ameaça, a
fim de intimidar os demais, como quisera FEUERBACH. Entusiasta da figura do Estado, que
para ele é a mais perfeita expressão da razão, a imposição da pena resulta logicamente da le-
são ao direito.
454
453
No sentido do texto, ver CIRINO DOS SANTOS, Teoria da pena, p. 4 e segs; também ROXIN, Claus. Senti-
do e limites da pena estatal. In: Problemas fundamentais de Direito Penal. 2 ed. Lisboa: Vega, 1993, p. 15-47.
454
HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p.
84 e segs.
208
Esta oposição que ambas os filósofos idealistas representam ao utilitarismo, não era
ignorada. KANT pretende superar o utilitarismo que prevalecia em sua época. MAURACH
& ZIPF observam que, pelo fato de encontrar-se entre dois mundos, KANT consegue fazer
comunicar entre si duas épocas: o jusnaturalismo do século XVII e as teorias absolutas que
prevaleceriam no século XIX. Para estes autores foi a literalidade de seu princípio, o talião, o
que impediu que a teoria penal de KANT se impusesse diretamente.
455
Sua tese seria relança-
da com retumbante sucesso, no século XIX. Assim ele constrói a primeira versão de retribui-
ção jurídica e laica, que se transformou na base do direito penal do Estado liberal tipicamente
burguês.
Com a consolidação do poder político em suas mãos, a burguesia tratou de se utilizar
de sua posição para abandonar o direito natural da Ilustração, que era essencialmente revolu-
cionário. A classe vencedora não requer uma idéia, ela necessita da lei. Afinal, tendo nas
mãos o Estado, tratava-se de tornar eficaz seu princípio de vigência: justamente a lei emanada
do Estado. A este objetivo nenhuma filosofia serviria melhor do que a de HEGEL: para ele o
Estado é a personificação da razão, a idéia absoluta. Daí que à mudança de postura em relação
o Estado segue-se uma mudança na fundamentação da pena.
A conexão da pena absoluta com o período do liberalismo e do capitalismo concorren-
cial que lhe correspondeu é inevitável. Por isso não parece arriscado estabelecer um nexo en-
tre esta justificativa penal com a conclusão, cara a RUSCHE e KIRCHHEIMER, de que a
abundância de força de trabalho experimentada no período, de vertiginoso desenvolvimento
das técnicas produtivas, conduziu à percepção de sua desnecessidade para a reprodução do
capital: a retribuição se amolda a esta conjuntura porque justifica a destruição de força de tra-
balho. O grande respeito pela dignidade humana do período liberal não evitaria, pelo con-
trário, a extrema crueldade da pena. Afinal, a pena seria um direito do delinqüente, enquanto
ser racional que precisa reconhecer seu direito à liberdade.
456
2.2 A pena como prevenção especial.
A prevenção especial exprime a justificativa à existência da pena como meio para a-
tingir o fim de prevenir novos delitos do seu próprio autor. Ela pode pretender neutralizar o
455
MAURACH/ZIPF, Ob. citada, p. 93.
456
HEGEL, Ob. citada, p. 89.
209
criminoso, tornando-o inofensivo mediante a privação de sua liberdade; desta maneira ela
assumiria um sentido negativo (inocuização). Pode também objetivar visar corrigi-lo, median-
te sua ressocialização, o que lhe daria um sentido positivo. Ainda que remontem aos primór-
dios do pensamento filosófico-penal, estas doutrinas conheceram um próspero desenvolvi-
mento no final do século XIX e se tornou hegemônica por todo o século XX.
457
Sua formula-
ção moderna efetivamente é tributária do Iluminismo, mas acabou por retroceder no decorrer
do século XIX ante a teoria da retribuição.
Com base na prevenção especial, várias teorias penais, provindas dos mais variados
países, surgiram enquanto justificativas da pena como meio para se atingir o fim de transfor-
mar o desviante a fim de adequá-lo aos padrões e valores dominantes, mediante uma verda-
deira ortopedia moral.
As vertentes da prevenção especial se desenvolvem paralelamente à difusão de con-
cepções cientificistas da sociedade e do dispositivo disciplinar. Sobre suas bases desenvolve-
se o projeto de uma sociedade orgânica e integrada submetida menos ao controle moral da
retribuição do que ao controle científico. Daí que o crime seja interpretado como uma patolo-
gia e o criminoso como seu portador; como doente. A pena é o tratamento que a ciência re-
comenda. Desta forma o delito e a pena deveriam ser explicados como pertencentes e atribuí-
veis a cada indivíduo em particular. O cometimento de um crime exprimia sua inadequação à
ordem social em que estava inserido. Nesta ordem de idéias, a conotação positiva ou negativa
que a prevenção especial assume depende da possibilidade de se alcançar a cura.
O grande responsável pelo ressurgimento da prevenção especial, conforme observa
ROXIN, seu discípulo, é FRANZ VON LISZT.
458
Seu Programa de Marburgo (1882),
459
condensa as várias possibilidades fornecidas pela prevenção especial. Ao sujeitos insuscetí-
veis de emenda: prevenção especial negativa ou neutralização; àqueles que revelassem possi-
bilidades de reforma: prevenção especial positiva ou ressocialização. Ainda para os ocasio-
nais, ou que não precisam de correção, ela poderia servir de meio intimidatório. Tudo depende
da forma de ser e da prognose que os “ortopedistas da moral” fizerem sobre o autor. O pres-
457
No sentido do texto, CIRINO DOS SANTOS, Ob. citada, p. 6; FERRAJOLI, Ob. citada, p. 246, entre tantos
outros.
458
ROXIN, Ob. citada, p. 20.
459
Cujo título original foi Teoria do fim no direito penal (Der Zweckgedanken im Strafecht); a tradução aqui
consultada foi a italiana La teoria dello scopo nel diritto penale. Milano: Giuffre, 1962.
210
suposto disto é a classificação dos delinqüentes segundo os objetivos pretendidos pela aplica-
ção da pena, tarefa da qual, aliás, LISZT entende caber à ciência sociológica.
460
Não se pode deixar de registrar que nem LISZT representou toda esta vasta cons-
trução teórica. De seus fundamentos também comungaram os adeptos da Escola Positiva (de
ENRICO FERRI e RAFALE GAROFALO) e a Défense Sociale Nouvelle (MARC ANCEL),
cuja influência para a literatura penal brasileira é mais perceptível do que a do próprio v.
LISZT.
461
Do ponto de vista filosófico esta justificação do poder punitivo do Estado é nitidamen-
te frágil. Na verdade, e ela não parece esconder isso, é menos condicionada por pressupostos
axiológicos do que por sociológicos ou científicos. É através da porta aberta pela procura de
um fim para justificar o meio da pena que a ciência, a reboque do positivismo determinista, do
correcionalismo, se assenhoreou do campo da justificação jurídica.
Sem embargo de suas raízes, em sua formulação mais difundida a prevenção especial,
diferentemente das teorias contratualistas e jusnaturalistas, que expressavam o apelo revolu-
cionário da tutela do indivíduo contra o Estado absolutista, reflete a vocação autoritária do
Estado liberal, mas sobretudo aquela totalitária que emerge de sua crise. FERRAJOLI até não
a considera de origem iluminista; seria muito mais ligada às tradições hebraico-cristã, platôni-
ca e medieval do que à cultura iluminista propriamente dita.
462
Não por coincidência a preten-
são de prevenção especial emerge no contexto de questionamento da concepção de Estado até
então existente: no fim do século XIX, a Alemanha de v. LISZT questionava se o Estado libe-
ral não havia se tornado obsoleto em função dos câmbios que a estrutura social experimenta-
va. A percepção era de que industrialização promovera um sensível incremento de crimes, e a
pena, puramente retributiva, revela-se ineficiente para lhe fazer frente. Começam a surgir sú-
plicas de substituição do Estado liberal por outro de cariz social, com marcadas tarefas de
bem-estar e de prevenção. Assim ele poderia desfrutar de maiores direitos de intervenção na
esfera privada dos indivíduos.
463
460
MAURACH/ZIPF, Ob. citada, p. 98.
461
Conforme observa ROXIN, Ob. citada, p. 20, a prevenção especial logo voltaria a retroceder, de maneira que
sua ampla difusão se deve mais ao movimento internacional da defesa social.
462
FERRAJOLI, Ob. citada, p. 246.
463
MAURACH/ZIPF, Ob. citada, p. 97; também MIR PUIG, Función de la pena y teoría del delito en el Estado
democrático de derecho, p. 28.
211
Na verdade, segundo FERRAJOLI um insuspeito adepto do positivismo jurídico - o
que a teoria da finalidade penal reflete é o projeto autoritário de um liberalismo conservador
que identifica a defesa penal da ordem com a estrutura de classes existente, pouco importa as
justificativas dos pontos de vista axiológico, naturalístico ou mesmo apenas teleológico.
464
Daí a se tomar o delinqüente irrecuperável ou habitual como manifestação patológica típica de
setores da sociedade comumente agrupados sob o rótulo de proletariado, não qualquer
distância. Se a ressocialização serve à reforma moral para que o indivíduo assuma o seu desti-
no de submeter-se à disciplina da fábrica e aos valores da sociedade de consumo de massa, a
neutralização não pode divorciar-se da obrigação de trabalhar, inclusive coletivamente. A
prisão celular, uma vez experimentada a produção em massas a exigir o trabalho coletivo,
deveria ser introduzida apenas como sanção disciplinar.
2.3 A pena como prevenção geral.
Do ponto de vista da prevenção geral a pena tem por destinatário não aquele que co-
meteu o crime, mas os demais que ainda não o fizeram. Conforme ela se orienta para intimi-
dar, mediante a demonstração de força, de que o Estado não tolera nenhum lesão à ordem
jurídica,
465
ela será negativa. Se orientar-se a reafirmar a validade dos valores jurídicos que
fundamentam a ordem social, a justificativa da pena será, além de geral, positiva.
A simples menção, não importa quão despretensiosa, da prevenção geral negativa não
pode furtar-se de fazer justiça a FEUERBACH. Talvez seja ele quem fundou o direito penal
moderno, com as características mais positivas que conhecemos. Um iluminista convicto e
crente do inalienável papel de garantia que o princípio da legalidade representa. Para
FEUERBACH, ao lado da coação física de que o Estado de direito dispõe deve se acrescentar
outra espécie de coação que se antecipe à consumação da lesão jurídica. Só assim a pena seria
eficazmente preventiva. Esta coação, de natureza psicológica, exerce-se a fim de intimidar e
dissuadir, mediante uma ameaça, a coletividade não-desviante: o mal produzido pela pena
será tal que o desgosto provocado pela insatisfação de um impulso agressivo será preferí-
vel.
466
464
FERRAJOLI, Ob. citada, p. 250.
465
Assim, FEUERBACH, Anselm v. Tratado de derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 51.
466
FEUERBACH, Ob. citada, p. 52.
212
Muitos foram os adeptos desta concepção, tida como a mais liberal e deferente às ga-
rantias legadas pelo Iluminismo. Suas crítica tampouco são desconhecidas, com destaque para
aquelas que apontam sua tendência em degringolar para um terrorismo penal, além de não ser
capaz de escapar da objeção kantiana de que nenhuma pessoa pode ser tratada como meio
para se atingir um fim que lhe é estranho.
A prevenção geral positiva visa, através da imposição do mal da pena, que a coletivi-
dade perceba a autoridade da ordem normativa em vigor. A única coisa comum que existe
entre todo tipo de ordem é que a pena é sempre a reação ante a infração de uma norma.
467
Ela
pode ser considerada a mais recente teoria da pena, embora seus fundamentos não sejam mui-
to originais. Ela deve boa parte de sua formulação à tradição teórica funcionalista. Tal tradi-
ção conservadora visa à manutenção, e mais do que isso, ao reforço de uma determinada or-
dem social, cuja definição provém puramente da vontade do poder. Por ela sequer se visa a
diminuição dos crimes, porque se o reforço da autoridade da norma se dá mediante a imposi-
ção da pena, o crime deve sempre ocorrer. Basta ser disfuncional ao equilíbrio social para um
comportamento ser rebaixado à categoria de delito.
Por ser, entre as penas preventivas, a mais idônea a atender aos princípios que delimi-
tam o poder punitivo do Estado, a teoria da prevenção geral negativa de FEUERBACH não
encontrou o entusiasmo do poder do Estado. Sua principal obra, o Código Penal bávaro de
1813, fracassa dada sua incompatibilidade prática, baseada na atribuição de um fim à pena,
ante o direito penal do Estado liberal, ao qual a teoria absoluta servia muito mais adequada-
mente.
468
A prevenção geral positiva, que parece desfrutar do auge de seu prestígio, tem sua
emergência motivada pela crise da ideologia do tratamento, expressão da prevenção especial
positiva. Sua razão estrutural radica no declínio do Estado de bem-estar.
469
É própria de uma
ordem social de reduzida legitimidade, cuja reconquista, aliás, não lhe esacessível ou se-
quer lhe interessa. Este status quo, devido ao alto grau de injustiça distributiva, à seletividade
do poder, à constante e exponencial reprodução de sujeitos descartáveis pelo atual estágio
467
JAKOBS, Günther. Derecho penal: parte general. 2 ed. Madrid: Marcial Pons, 1997, p. 8.
468
MAURACH/ZIPF, Ob. citada, p. 94.
469
BARATTA, Alessandro. Vecchie e nuove strategie nella legittimazione del diritto penale. Dei delitti e delle
pene. Ano III, n° 2, 1985, p. 257.
213
evolutivo do modo de produção, exige cada vez mais frequentemente uma confirmação da
validade da norma jurídica como modelo de orientação social. Assim sobrecarrega-se o papel
reservado à lei, enquanto sintoma da debilidade dos demais institutos responsáveis pela inte-
gração social. Por ter se desocupado das demais estratégias idôneas para sua legitimação, a
ordem em vigor reclama um discurso que privilegie a produção de efeitos meramente simbó-
licos para que o sistema continue a funcionar apesar do evidente e crescente desequilíbrio que
lhe acomete.
3. Utilitarismo e razão de Estado.
As observações realizadas acerca das teorias da pena, além de bastante simplificadas,
já vieram acompanhadas de algumas considerações de ordem pessoal; isto não só na descrição
de nexos estruturais existentes entre os discursos que servem de respaldo a estas teorias, mas
também quanto ao seu significado para o objeto de estudo desta dissertação. Antes do fecho
deste capítulo, algumas outras reflexões genéricas acerca de todas estas teorias legitimatórias,
notadamente daquelas de feição utilitária, precisam ainda ser feitas.
A insistência em se atribuir uma utilidade, um fim ao castigo, à pena, é antiga; muito
anterior, até, ao Iluminismo e mesmo aos seus pilares fundamentais, tal como o direito natu-
ral. É recorrente, na literatura, quem aponte que PLATÃO, ao se reportar a PROTÁGORAS,
foi o primeiro a registrá-la. As idéias iluministas, enquanto tais, tomavam a utilidade ou a
atribuição de um fim à pena, na perspectiva de impôr limites ao poder do Estado. Seria assim
uma espécie de contra-poder, fundamentado na limitação ofertada pela lei.
A partir de quando absorve os influxos do utilitarismo, em vez de limitar, a lei (inclu-
sive a penal) se converte em autorização do poder de punir. O poder punitivo concentrado nas
mãos do Estado deixou entrever seu caráter ilegítimo quando expressou que a retribuição da
pena devia ser equivalente ao dano provocado pelo crime. Isto não foi com KANT como pode
parecer à primeira vista. Surge com maior nitidez quando o castigo implicado na pena aban-
dona o corpo do criminoso e investe na sua disposição de tempo e de liberdade. A partir daí os
fins reais são admitidos: eles são econômicos e correspondem ao período histórico em que a
214
burguesia sentiu-se segura de que realmente havia conquistado a soberania que o Estado mo-
derno encarna. A partir daí a política integral do Estado, inclusive sua política criminal, pas-
sou a ser atravessada pelos interesses econômicos que decidem sobre as relações sociais que
se produzem numa estratificação social que o Estado visa manter.
As teorias utilitárias justificam a pena pressupondo que pena é prisão. Dque suas
justificativas dirijam-se menos à pena em si do que à pena privativa de liberdade. Conforme já
se mencionou, as ideologias da prevenção especial são as que conheceram maior difusão e
ascendência sobre os discursos jurídicos, desde seu surgimento, quando da crise do Estado
liberal. A ressocialização e a neutralização sempre se enunciaram como justificativas para a
prisão, mas pretendem ser acatadas como justificativas da pena. Se a prevenção geral não par-
te tão abertamente deste patamar, tampouco recusa a aplicação da prisão ou mesmo lhe nega
legitimidade. Neste aspecto a prevenção especial negativa se destaca pois é a única que deixa
manifesta sua função latente: isolar, quando não eliminar, mediante a privação de liberdade e
de tempo.
Estas considerações conduzem a reflexão acerca da racionalidade que preside as ideo-
logias penais de cunho utilitário. Talvez neste âmbito descanse a prova teórica de que o mó-
vel, a força que as anima já foi esquadrinhada e, mais que isso, criticada.
BARATTA aponta que quando se intentou preencher de conteúdo a justificativa do
poder punitivo, o utilitarismo floresceu. A partir deste momento, quando se procurou dar o
estatuto de cientificidade, mediante a intenção de atribuir um caráter instrumental é que se
desenvolveram as teorias relativas ou utilitárias da pena.
470
Na sua concepção primordial o
direito racional-burguês prescinde destes elementos. Esta estrutura não tardaria a se dar conta
de suas limitações. A crise do modelo produtivo do capitalismo concorrencial talvez seja o
evento que pôs de manifesto estas limitações; a ele correspondeu a crise do Estado liberal,
momento no qual a armadura legal na qual o poder estava contido revelou-se insuficiente para
atender os desígnios do poder. Para isto a ciência foi convocada. Sem a força coercitiva do
direito, porém, sua realização não seria factível.
470
BARATTA, Ob. citada, p. 254.
215
De fato o direito passa a ocupar uma posição central, na medida em que foi chamado a
atuar como aquela força que BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS reconhece como gestora
dos déficits e excessos produzidos pela incapacidade estrutural do capitalismo em cumprir as
promessas da modernidade. Se tal gestão reconstrutiva ficou a cargo da ciência, ao direito
passou a incumbir o papel de integração normativa tendente a evitar eventuais oposições.
471
Isto se deu a partir de quando os critérios científicos de eficiência se tornaram hegemônicos.
Daí que as teorias jurídicas passam a ser avaliadas segundo sua capacidade de gestão científi-
ca da sociedade.
472
Especificamente no campo das finalidades da pena, todo este fenômeno desencadeou,
para utilizar conhecida terminologia habermasiana, a colonização da racionalidade jurídica
pela racionalidade sociológica, que por sua vez emerge, no século XIX, como uma espécie de
apêndice das ciências naturais. Isto significou, por conta da reconhecida permeabilidade do
saber sociológico aos critérios científicos já aludidos - que com a modernidade se transforma-
ram em hegemônicos - a subseqüente colonização da racionalidade referida a valores, típica
do direito (Wertrationalität) por aquela que se ocupa apenas dos fins, tipicamente científica
(Zweckrationalität) segundo a paradigmática dicotomia legada por WEBER.
473
A moderni-
dade capitalista também foi responsável pela conversão da ciência na principal força produti-
va. A fase pós-industrial de desenvolvimento do modo de produção capitalista veio confirmar
definitivamente esta premissa. Este fenômeno foi apontado, tomando-se por objeto o direito
em geral, tanto por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS quanto por HABERMAS
474
; cada
um a seu modo. Segundo esta compreensão, opera-se uma redução - encabeçada pelo meca-
nismo de mercado, descoberto e analisado pela economia política - do direito ao papel com-
plementar desta força gestora dos déficits e excessos produzidos pela incapacidade estrutural
do capitalismo em cumprir suas promessas. Esta redução é correlata a uma outra, frequente-
mente mencionada pela teoria jurídica, que se traduz na redução sociológica do direito, com
471
SOUSA SANTOS, Boaventura de. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 3 ed.
São Paulo: Cortez, 2001, p 52.
472
SOUSA SANTOS, Ob. citada, p. 51.
473
WEBER, Max. Economia e sociedade. v 1. 3 ed. Brasília: UnB, 1994, p.15.
474
HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v I. 2 ed. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003, p 67 e segs. do mesmo Teoría de la acción comunicativa I. Madrid: Taurus, 1999, p. 316 e
segs.
216
perda de importância para os valores propriamente normativos, sejam eles internos ou superi-
ores ao plano do direito positivo.
475
Segundo esta perspectiva, a racionalidade prática-material à qual o direito natural nu-
tria simpatia, por exemplo, se converte numa técnica, num modelo operatório de engenharia
social, na qual o fator determinante não é a validade axiológica do direito, mas a decisão óti-
ma em dadas condições. Assim, se a prevenção especial visava a transformação do homem
numa peça da engrenagem produtiva necessária à reprodução do capital, o retorno da preven-
ção geral positiva responde à radical transformação do modelo de acumulação legado pela
tecnologia da informação, que pensa poder dispensar a força de trabalho humana.
A inutilidade da pessoa contrasta com o princípio jurídico que louva sua dignidade, o
qual, apesar de constar em praticamente todas as constituições, se revela incapaz de impedir a
tragédia.
Para além da produção, a funcionalidade das teorias preventivas da pena também se
revela ante a necessidade do reforço da ordem, para tanto relegitimando e autorizando a utili-
zação da energia represada nas estruturas estatais. Para isso, enquanto a prevenção geral, as-
sim como os funcionalismos de todos os matizes, servem para reafirmar a ideologia e os valo-
res que correspondem aos interesses da classe detentora do capital, o sistema penal continua
reproduzindo o material de que ele próprio se alimenta: o crime. E a prisão persiste como pe-
na essencial do modo de produção capitalista. Os fins atribuídos são tantos que o objetivo
parece ser sempre buscar novos para se manter com os mesmos meios.
Mas uma qualidade deve ser reconhecida às teorias preventivas: o retumbante sucesso
que obtiveram em ocultar a essência violenta do castigo de que a pena estatal não é mais do
que a forma moderna.
Para se apreender a origem de uma coisa, segundo NIETZSCHE, não se pode ir direto
à sua finalidade: “a causa e o surgimento de uma coisa e sua utilidade final, seu emprego e
475
O rechaço ao reducionismo sociológico, porém, não traduz que o direito possa ser concebido alheio ao pro-
cesso social de produção de sentido que lhe constitui, enquanto produto de uma prática social discursiva que é
mais do que palavras, pois inclui comportamentos, símbolos, conhecimentos. Assim, CARCOVA, Carlos Maria.
Los jueces en la encrucijada: entre el decisionismo y la hermeneutica controlada. In: Derecho, política y magis-
tratura. Buenos Aires: Biblos, 1996.
217
ordenação de fato em um sistema de fins, estão toto coelo um fora do outro; que algo de exis-
tente, algo que de algum modo se instituiu, é sempre interpretado outra vez por uma potência
que lhe é superior para novos propósitos, requisitado de modo novo, transformado e transpos-
to para uma nova utilidade.”
476
As teorias preventivas têm obtido sucesso porque conseguem,
valendo-se de fragmentos clássicos e iluministas, decidir o conteúdo manifesto dos fins do
poder, ocultando seu sentido genético.
477
Todos os fins, todas as utilidades, são apenas sinais de que uma vontade de potência se tor-
nou senhora de algo menos poderoso e, a partir de si, imprimiu-lhe o sentido de uma fun-
ção.
478
476
NIETZSCHE, Friederich. Para a genealogia da moral. In: Obras completas (Coleção Os Pensadores). 2 ed.
São Paulo: Abril Cultural, 1978, p. 295-325.
477
Aqui valeria mencionar a certeira ponderação que ZAFFARONI tomou de TOBIAS BARRETO: “quem
procura o fundamento jurídico da pena deve também procurar, se é que não encontrou, o fundamento jurídico
da guerra.” Assim, ver BARRETO, Tobias. Fundamentos do direito de punir. In: Estudos de direito. Rio de
Janeiro: Laemmert & C., 1892, p. 161-179. ZAFFARONI, E Raúl. En busca de las penas perdidas. Buenos
Aires: Ediar, 1998, p. 210l; ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo, et all. Direito penal brasileiro - I. , p
95 e segs; CARVALHO, Salo de. Pena e garantias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 146.
478
NIETZSCHE, Ob. citada, p. 308.
218
CONCLUSÕES
Segundo uma generalizada concepção, a conclusão de uma investigação como a que
esta dissertação pretendeu desenvolver deve condensá-la, de modo que quem a leia não preci-
se recorrer todo o texto para apreender toda a idéia do autor. Embora não possua tal capacida-
de de síntese, as proposições seguintes, se bem não são conclusões propriamente ditas, perse-
guem esta intenção de condensar os assuntos expostos nesta dissertação.
1 O capitalismo consiste num processo de expropriação dos meios de produção e sepa-
ração radical de quem produz riqueza dos meios e objetos necessários para tanto. O Estado
consiste num processo de expropriação social do poder, com extraordinária capacidade de
tornar anônimo quem se beneficia desta usurpação.
2 Nem por isso o Estado é mero instrumento da burguesia. Ele tem, antes, suas ações
determinadas pelas condições impostas por uma sociedade de classes. Ele não favorece inte-
resses específicos da classe dominante, antes protege e sanciona instituições e relações sociais
que constituem o requisito institucional para a dominação de classes do capital.
3 Esta estrutura estatal se autonomiza relativamente da base material e assim pode tor-
nar-se consciente das funções que necessita desempenhar para a reprodução das relações de
produção que vigoram em seu seio. O desempenho destas funções constituem sua atuação
política integral.
4 A política integral do Estado capitalista tem clara preocupação econômica. Pelo menos
em sua forma típica e não-subdesenvolvida, ela deve se encarregar da transformação perma-
nente da força de trabalho em trabalho assalariado. A partir desta política geral é que se de-
terminam e se distribuem suas funções.
Deste postulado decorrem as formas de socialização e de integração social que o Esta-
do prescreve aos indivíduos. Nelas está contida a função de naturalizar a imposição da obriga-
ção, por parte daqueles que nada possuem, senão sua força de trabalho, a vendê-la.
219
5 A presença ativa do Estado sempre foi decisiva, mesmo em tempos de laissez-faire ou
de seu sucedâneo, o neoliberalismo. A desregulamentação do mercado de trabalho, avalizada
pelo Estado e sua legislação, não pode ser compreendia à parte de suas estratégias punitivas,
que afinal constituem a política geral do Estado.
6 A forma encontrada para legitimar e ocultar a violência que a dominação de uma soci-
edade de classes traduz é a forma legal. Mas sua interiorização, ou seja, sua assunção como
modelo de socialização quase inconsciente, não se realizaria se o Estado não dispusesse do
recurso da pena.
7 A legitimação de tipo legal-racional limita a violência represada na estrutura estatal.
Por isso não raramente o Estado tem de ignorá-la, e quando o faz, externaliza a razão que o
anima na forma de um estado de exceção.
8 Na tarefa de exercer o monopólio da legítima violência física, o Estado moderno se
impõe como última instância coercitiva, sancionando as demais formas de violência e poder
que grassam no seio da sociedade.
9 A dominação que vigora na estruturação social da sociedade capitalista constitui uma
modalidade de exercício de poder que, embora possa conquistar algum nível de obediência,
não prescinde da violência física no seu cotidiano. Não é o consenso que faz surgir o corpo
social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o próprio corpo dos indivíduos.
A dominação quando conduz à hegemonia, é capaz de submeter toda a vida social aos
mecanismos do mercado sem dele exigir qualquer esforço.
10 Os maiores níveis de legitimação que o Estado conhece provém dos benefícios concre-
tos, detentores de valor de uso, aos quais os indivíduos tem acesso sem precisar recorrer ao
mercado.
11 Em termos econômicos, num Estado capitalista de tipo dependente, a dificuldade de
acumular capital influi na estruturação e na forma de comportamento entre as classes, com
reflexos nos padrões de dominação política. Um dos seus traços mais característicos assenta
220
na produção de um enorme contingente de força de trabalho marginalizada, que não se con-
funde com o exército industrial de reserva, e que funciona como estratégia de controle social e
político. Sua manutenção reclama uma dominação altamente punitiva, a fim de impedir vio-
lentamente qualquer tentativa de insurgência das substanciosas frações de excluídos.
Por isso à normalidade institucional mais ou menos presente na história dos países
centrais corresponde o estado de exceção permanente no qual se formou e reproduziu o Esta-
do periférico.
12 O verdadeiro exercício do poder punitivo se concentra na sombra do sistema penal,
onde quem determina a seleção é a polícia. A polícia fornece à prisão os infratores que esta
transforma em delinqüência. Por isso a pena não serve para evitar crimes. Ela antes se destina
a produzir o material de que o Estado se alimenta, a delinqüência, para continuar acionando
sua energia punitiva.
13 Desde a obra Punishment and social structure de RUSCHE e KIRCHHEIMER consti-
tui patrimônio teórico da economia política da pena que o mercado de força de trabalho é a
grandeza decisiva do funcionamento do sistema penal.
O novo padrão sistêmico de reprodução do capital, fundado na financeirização da eco-
nomia capitalista e na revolução da tecnologia da informação conduziu à convicção da inutili-
dade dos indivíduos para o processo valorização, o que modificou substancialmente a função
real da pena, particularmente a de prisão.
Uma das mais importantes estratégias de legitimação de que o Estado capitalista se
vale, baseada na retribuição formalmente equivalente pela venda da força de trabalho, cami-
nha para a inanição. As conseqüências são dantescas. A exploração da força de trabalho im-
plica uma dialética: sem explorado não há explorador. Num quadro de absoluta exclusão soci-
al, a dialética desvanece: o incluído, não precisa do excluído, ele não lhe é útil; pelo contrário,
ele perturba, ele agride.
14 A política do Estado, particularmente desde o surgimento da prisão, tende a ser regida
por uma ideologia que visa justificar a desigualdade inerente ao capitalismo. Por meio desta
221
ideologia a razão de Estado converte-se numa estratégia de gerenciamento de suas popula-
ções, com lugar especial para a força de trabalho. A crítica a esta razão de Estado, portanto,
deve se reportar à crítica da economia política burguesa. A crítica das teorias da pena, particu-
larmente das preventivas, pode ser realizada a partir deste ponto de vista.
222
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