Download PDF
ads:
EDSON GALDINO VILELA DE SOUZA
PANORAMA ATUAL DO COOPERATIVISMO
DE CRÉDITO NO BRASIL:
GLOBALIZAÇÃO, ESTADO E CIDADANIA
Dissertação apresentada como
requisito parcial à obtenção do grau de
Mestre em Direito Cooperativo e
Cidadania. Programa de Pós-
Graduação em Direito, Setor de
Ciências Jurídicas, Universidade
Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Abili
Lázaro Castro de Lima.
Curitiba, Paraná
Janeiro de 2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
II
PANORAMA ATUAL DO COOPERATIVISMO
DE CRÉDITO NO BRASIL:
GLOBALIZAÇÃO, ESTADO E CIDADANIA
por
EDSON GALDINO VILELA DE SOUZA
Dissertação aprovada como requisito parcial à obtenção do grau de Mestre em
Direito Cooperativo e Cidadania do Programa de Pós-Graduação em Direito da
Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná UFPR, pela banca
examinadora composta pelos seguintes membros:
Orientador
Prof. Dr. Abili Lázaro Castro de Lima ..................................................
Prof. Dr. ...............................................................................................
Prof. Dr. ...............................................................................................
Curitiba, Paraná
Janeiro de 2007
ads:
III
Lembro-me de quando era criança e via, como hoje
não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela não
raiava para mim, mas para a vida. Porque então eu,
(não sendo consciente), eu era a vida. E via a manhã
e tinha alegria. Hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e
fico triste. Eu vejo como via, mas por trás dos olhos
vejo-me vendo. E só com isso, se obscurece o sol, o
verde das árvores é velho e as flores murcham antes
de apreciadas. (Fernando Pessoa; 1.888:1.935)
1
.
1
PESSOA. Fernando, Livro do desassossego. Companhia das Letras. 1ª ed. São Paulo: 1999.
IV
Ao meu pai, João, (em memória), a minha mãe,
Rosa, e à minha companheira e testemunha: Elietti
de Souza Vilela, com amor.
V
AGRADECIMENTOS
Contei com colegas de mestrado com os quais tive a honra de
compartilhar um convívio intelectualmente enriquecedor. Contei, igualmente,
com o apoio dos meus colegas, João Gonçalves e Tarso Violin, na Secretaria
de Estado do Trabalho, Emprego e Promoção Social do Estado do Paraná.
Tive acesso a um amplo acervo consubstanciado em atas notariais,
lavradas por Ângelo Volpi, titular do 7º Ofício de Curitiba, por indicação do meu
irmão, o advogado Edilson Galdino.
O interesse pelo tema abordado nesta dissertação, ganhou intensidade a
partir do ano 2000, quando - como cidadão participei de uma audiência
pública na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado da República e ali
percebi perplexidades e indignações sinceras, (assim estou convencido), de três
senadores: Roberto Requião, do Paraná; Roberto Saturnino Braga, do Rio de
Janeiro e Pedro Simon, do Rio Grande de Sul. Nos anos subseqüentes, entre
2001 e 2003, mantive contatos com o então deputado federal Rubens Bueno,
do Paraná que apresentou proposta de CPI sobre Serasa e fez alguns
requerimentos. Como resultado desses requerimentos tive acesso a relevantes
informações e documentos. No início de 2003, (por intermédio de Rubens
Bueno), iniciei contatos com o deputado federal Fernando Giacobo, também do
Paraná, que propôs e presidiu, em 2003, a CPI da Serasa. Durante o ano de
2003, participei de duas audiências públicas naquela CPI e acompanhei, à
distância, o seu desenrolar opaco - sem interesse da mídia - que culminou com
a entrega, em plenário, de uma pizza sob a justificativa da deputada federal
Perpétua Almeida, do Acre, de que “não existe nada que expresse melhor o
final desta CPI
2
.
Nesses anos, vivenciei esperanças e frustrações que foram um estorvo,
na minha vida familiar. Compartilhei alegrias e desabafos com algumas pessoas
que me são caras: Eládio; Leonardo; Eugênio; Almir; Anélio; Tata; Elizeu; Eliani,
mas, de todas essas pessoas, creio que a principal vítima das minhas
inquietações tem sido a minha companheira Elietti.
2
>http://www.informes.org.br/pagina-interna.asp?NumeroMateria=6016< acesso em 25/11/2006.
Obtive, em 2005, apoio do então Secretário de Estado do Trabalho do
Paraná, Pe. Roque Zimmermann, que ao convidar-me para assumir a
coordenação da assessoria jurídica, teve a dimensão do grave problema que a
negativação causa à massa dos trabalhadores e, por conseqüência disto,
formulou representação dirigida ao Ministério Público do Trabalho, no Paraná.
Para investigar os meandros que envolvem o tema Serasa, resolvi
acalentar a idéia de transformá-la em objeto de estudo que iniciei, com a ajuda
do colega Sandro Lunard, entre o ano de 2004 e 2005, e agora, neste início de
2007, tenho a oportunidade de defender a presente dissertação.
A equipe de coordenação do Programa de Pós-Graduação em Direito,
Mestrado, Doutorado e Pós-doutorado, sob a liderança da Profa. Doutora
Aldacy Coutinho representou e representa o porto seguro para todos nós.
Durante três semestres, iniciados em 2005, cumpri, com imensa
satisfação, a programação de mestrado e tive, - a partir dos ensinamentos dos
professores doutores do mestrado, - a excepcional oportunidade de organizar
alguns conhecimentos que tentei transpor para este trabalho acadêmico.
O apoio do Professor Doutor GEDIEL foi fundamental, desde os passos
iniciais e, também, com a sugestão e agendamento do primeiro contato com o
meu orientador.
O trabalho de orientação do Professor Doutor ABILI, para mim, foi
impecável e, seguramente, evitou muitos erros que, como orientado, procurei,
dentro das minhas limitações, corrigir, embora, como se verá, nem sempre
alcancei êxito.
Desejo, nesta oportunidade, consignar os meus agradecimentos e a
minha gratidão a todos que contribuíram, diretamente ou indiretamente, para a
realização deste estudo.
VII
S U M Á R I O
RESUMO....................................................................................................................................IX
SUMMARY..................................................................................................................................X
INTRODUÇÃO........................................................................................................................... 11
PARTE I GLOBALIZAÇÃO...................................................................................................... 20
CAPÍTULO 1 FINANÇAS......................................................................................................... 23
SEÇÃO 1 A LINGUAGEM DO MERCADO E DO DINHEIRO............................................................... 26
SEÇÃO 2 PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES............................................................................... 38
SEÇÃO 3 CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA: FLUXO LIVRE DAS TRANSAÇÕES FINANCEIRAS................... 44
CAPÍTULO 2 ESTADOS-NAÇÃO ............................................................................................ 47
SEÇÃO 1 SÍNDICOS DA MISÉRIA?........................................................................................... 48
SEÇÃO 2 OS CIDADÃOS MISERÁVEIS E O APRISIONAMENTO DO ESTADO-NAÇÃO ............................ 54
SEÇÃO 3 UM ESTADO DE CONSUMO: DISCRIMINAÇÃO, CONTROLE E PUNIÇÃO............................... 56
CAPÍTULO 3 SOCIEDADE ...................................................................................................... 63
SEÇÃO 1 CONCENTRAÇÃO DA POBREZA................................................................................. 67
SEÇÃO 2 OS ECONOMICAMENTE DISPENSÁVEIS: FLUXO DE PESSOAS.......................................... 70
SEÇÃO 3 PROLETARIADO, MULTIDÃO OU COLAPSO NA PRODUÇÃO.............................................. 71
PARTE II CIDADANIA............................................................................................................. 79
CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS DA CIDADANIA....................................................................... 82
SEÇÃO 1 DIREITOS FUNDAMENTAIS DO HOMEM E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA ......................... 89
SEÇÃO 2 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA , COMO PODER-DEVER DO ESTADO ............................... 93
SEÇÃO 3 NEGATIVAÇÃO E A CONDIÇÃO SUB-HUMANA DOS NEGATIVADOS..................................... 95
CAPÍTULO 2 ACESSO AO CRÉDITO.....................................................................................104
SEÇÃO 1 POLÍTICA DE CRÉDITO: FAT, BNDES, BANCOS OFICIAIS ...........................................106
SEÇÃO 2 PERFIL DA SERASA S/A E PERFIL DOS CIDADÃOS NEGATIVADOS PELA SERASA ...............113
SEÇÃO 3 RELATÓRIO DO BID, 2005: LIBERTAR O CRÉDITO......................................................119
CAPÍTULO 3 PARADIGMA SERASA E DIREITOS CONSTITUCIONAIS..................................122
SEÇÃO 1 EVIDÊNCIAS DE ESGOTAMENTO DO VELHO PARADIGMA DA SERASA...............................127
SEÇÃO 2 CPI DA SERASA E SEU RELATÓRIO FINAL ...............................................................131
SEÇÃO 3 40 MILHÕES DE NEGATIVADOS: O IMPASSE DO ESTADO-NAÇÃO? .................................135
PARTE III COOPERATIVISMO ...............................................................................................143
CAPÍTULO 1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA..............................................................................146
SEÇÃO 1 ORIGEM E RAÍZES .................................................................................................148
SEÇÃO 2 PRINCÍPIOS DO COOPERATIVISMO............................................................................151
SEÇÃO 3 FEUDALISMO; CAPITALISMO; COOPERATIVISMO.........................................................154
CAPÍTULO 2 CRÉDITO E COOPERATIVISMO DE CRÉDITO, NO BRASIL .............................166
VIII
SEÇÃO 1 CRÉDITO PESSOAL: SOLUÇÃO OU PROBLEMA?...........................................................170
SEÇÃO 2 PLANEJAMENTO DE ESTADO E POLÍTICA DE CRÉDITO ..................................................175
SEÇÃO 3 COOPERATIVISMO DE CRÉDITO: ASPECTOS HISTÓRICOS..............................................180
CAPÍTULO 3 PERSPECTIVAS DO COOPERATIVISMO DE CRÉDITO ....................................184
SEÇÃO 1 COOPERATIVISMO DE CRÉDITO E DESENVOLVIMENTO LOCAL........................................190
SEÇÃO 2 IGUALDADE: ACESSO AO CRÉDITO, POR INTERESSE PÚBLICO........................................194
SEÇÃO 3 NECESSIDADE DE REVISÃO CONSTITUCIONAL E NORMATIVA? .......................................200
CONCLUSÃO...........................................................................................................................203
REFERÊNCIAS ........................................................................................................................208
FONTES CONSULTADAS NA INTERNET .................................................................................213
ANEXOS ..................................................................................................................................214
ANEXO 1 - OFÍCIO FEBRABAN PEDINDO DADOS À SRF: PARA OS BANCOS...................................215
ANEXO 2 RESUMO DO CONVÊNIO ENTRE UNIÃO, FEBRABAN E SERASA ...................................218
ANEXO 3 - SRF PRESENTE EM TODA CONSULTA FEITA À SERASA.................................................220
ANEXO 4 ATA NOTARIAL: MAIS DE 116 MILHÕES DE CIDADÃOS NA SERASA .................................222
ANEXO 5 ATA NOTARIAL: QUALQUER CIDADÃO É PASSÍVEL DE NEGATIVAÇÃO...............................224
ANEXO 6 PERFIL DOS CIDADÃOS NEGATIVADOS PELA SERASA...................................................226
IX
RESUMO
Esta dissertação
3
- centrada na releitura de temas relevantes para a
compreensão sobre o panorama atual do cooperativismo de crédito no
Brasil, - está estruturada em três blocos conceituais: no primeiro,
relativamente ao contexto mundial, parte I, aborda-se a globalização como
uma corrente preponderante que dita aos Estados-nação e neste caso, ao
Brasil, uma forma peculiar de atuação institucional em detrimento da
soberania e por, efeito reflexo, da cidadania; na parte II, resgata-se o seu
conceito e origem história da cidadania a partir das revoluções inglesa,
americana e francesa e discute-se os efeitos destrutivos da atuação do
Estado-nação na formação de uma verdadeira multidão
4
que - sem outra
saída e, literalmente encurralada em territórios vazios de poder, - pede,
implora e, efetivamente, depende de uma pseudoproteção que lhe assegure
a perpetuação da pobreza e da dependência, suprimindo-lhe, como se
pretende demonstrar, a condição de exercício da cidadania em um projeto
de nação que sequer chega a ser apresentado, como evidência da perda de
soberania e de autodeterminação; na parte III, discute-se o cooperativismo
e, especialmente, o cooperativismo de crédito, como uma ágora, no sentido
proposto por BAUMAN
5
, na reconstrução de responsabilidade política, que,
sem o uso de força, (ilusório pensar-se em força), poderia ensejar a
formação de grupos autogestionários, com resgate, concomitante, do
primado do trabalho e da dignidade da pessoa humana, respectivamente,
base da ordem social e fundamento do Estado-nação, como fixado pela
Constituição Federal propensa a ser proclamada como mito e como
instrumento retórico de dominação
6
.
Palavras-chave: cooperativismo, crédito, globalização, Estado-nação,
dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais do homem, cidadania,
ágora, serasa, negativação.
3
LEITE. Eduardo de Oliveira, A monografia jurídica. 6ª ed. Ed. RT. São Paulo: 2003. p. 31: Dissertação
... É estudo recapitulativo, analítico, interpretativo a respeito de tema bem específico e delimitado.
4
HARDT. Michael e NEGRI. Antônio, Império. Tradução Berilo Vargas. 6ª edição. Ed. Record. Rio de
Janeiro. São Paulo: 2004. p. 365: Essa mudança desmistifica e destrói a moderna idéia circular da
legitimidade do poder pela qual o poder constrói a partir da multidão um único sujeito que pode, então, por
sua vez, legitimar esse mesmo poder.
5
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2.000. p. 11: ... “ágora um espaço nem público nem privado, porém mais precisamente público e privado
ao mesmo tempo. [...] espaço em que as idéias podem nascer e tomar forma como ‘bem público’,
‘sociedade justa’ ou ‘valores partilhados’”.
6
GRAU. Eros R. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. Malheiros. 6ª ed. 2001. p. 24: A
Constituição formal, em especial enquanto concebida como meramente programática continente de
normas que não são normas jurídicas, na medida em que define direitos que não garante, na medida em
que esses direitos só assumem eficácia plena quando implementados pelo legislador ordinário ou por ato
do Executivo - consubstancia um instrumento retórico de dominação. Porque esse o seu perfil, ela se
transforma em mito.
X
SUMMARY
This dissertation centered in the rereading of relevant subjects to
understand the current view of credit cooperativism in Brazil, - is structured in
three conceptual blocks: in the first one, relative to the world context, part I, it
approaches globalization as a preponderant chain that dictates to state-
nations and in this case to Brazil, a special form of institutional action to the
detriment of the sovereignty and with a reflexive effect, to citizenship; in part
II, its concept and origin history of citizenship from the English, American and
French revolutions onwards and discusses the destructive effects of the
acting state-nation in the formation of real multitudes that without any other
alternative and literally hemmed in powerless territories, - ask, implore and
effectively depend on a pseudoprotection that assures the perpetuation of the
poverty and dependence, suppressing, as it is intended to be shown, the
condition of practice of citizenship in a project of nation that is to be
presented, like the evidence of the loss of sovereignty and self-determination;
in part III, cooperativism and especially, credit cooperativism, as an “ágora”
(public market), in the sense that is proposed by BAUMAN
7
, in the
reconstruction of political responsibility which, without the use of vigor
(illusory to think about vigor), could try the formation of self-managed groups,
with redemption, concomitant, of the primary work and the dignity of the
human being, respectively, based on the social order and basis of the state-
nation, as fixed by the Federal Constitution being proclaimed like a myth and
rhetorical instrument of domination
8
.
Key words: cooperativism, credit, globalization, state-nation, dignity of the
human being, fundamental human rights, citizenship, public market (“ágora”),
serasa, negativation
7
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Translation by Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2.000. p. 11: ... ágora a space that is neither public nor private, however, more precisely public
and private at the same time. [...] space in which ideas can grow and turn into “quite public”, “fair society”
or “shared values””.
8
GRAU. Eros R. The economic order in the constitution of 1988. Malheiros. 6th ed. 2001. p. 24.
11
INTRODUÇÃO
Nos dias atuais, a perspectiva de crise é quase uma obstinação: é a vala-
a-céu-aberto, é o lugar-comum aonde se depositam as perplexidades, os medos,
as inseguranças, as incertezas individuais e coletivas. Nos dias atuais, há uma
persistente sensação de que o debate, a comunicação e a capacidade de pensar
estão se tornando infrutíferos. Nada ou quase nada se altera nesse fluxo: o
conhecimento está centrado na ciência; a liberdade está centrada no
individualismo. Há desagregação familiar, social e produtiva que, conjugada com
a impotência política, é causa e conseqüência de desalento dos cidadãos que
formam - segundo a tese do direito constitucional - a base, o substrato, a razão de
ser do Estado-nação
9
.
O efeito reflexo do desalento dos cidadãos e da descrença na política se
faz sentir em três frentes de problemas que se interligam e que serão abordados
transversalmente neste estudo: o esvaziamento da soberania do Estado-nação
que perde a conexão necessária com a defesa dos interesses do povo; a
ausência de um projeto de nação, autônomo e soberano, definido pelo direito
internacional como autodeterminação dos povos; a exacerbação do imediatismo e
do individualismo em uma espécie de jogo degradante do salve-se-quem-puder
que a sociedade civil e a ciência, com igual perplexidade, tendem a assumir como
impotência política e como irracionalidades produzidas conjuntamente pela
ciência e pela razão, como se pode perceber a partir de SANTOS
10
:
“Estamos de novo regressados à necessidade de perguntar pelas relações
entre a ciência e a virtude, pelo valor do conhecimento dito ordinário ou
vulgar que nós, sujeitos individuais e coletivos, criamos e usamos para dar
sentido às nossas práticas e que a ciência teima em considerar irrelevante,
ilusório e falso; e temos finalmente de perguntar pelo papel de todo o
conhecimento científico acumulado no enriquecimento ou no
empobrecimento prático das nossas vidas, ou seja, no contributo positivo
ou negativo da ciência para a nossa felicidade.”
9
SILVA. J. A. Curso de Direito Constitucional Positivo. 12ª ed. Malheiros. São Paulo: 1966. p. 330/331:
Cidadania, (...) qualifica os participantes da vida do Estado, é atributo das pessoas integradas na sociedade
estatal, atributo político decorrente do direito de participar no governo e direito de ser ouvido pela
representação política.
10
SANTOS. Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo. Cortês: 2005. p. 18.
12
A necessidade de revisão dos pressupostos sobre os quais se assenta a
sociedade atual é, também, objeto da reflexão de BAUMAN:
11
“Mais fácil falar do que fazer, para ser franco. Atacar a insegurança na
fonte é uma tarefa assustadora, que requer nada menos que repensar e
renegociar algumas das suposições mais fundamentais do tipo de
sociedade atualmente existente suposições que se arraigam tanto mais
rápido por serem tácitas, invisíveis ou indizíveis, para além de qualquer
discussão ou disputa. Como colocou o falecido Cornelius Cartoriadis, o
problema da nossa sociedade é que ela parou de se questionar. Nenhuma
sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que esta arte caia
em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas que a
afligem certamente não antes que seja tarde demais e quando as
respostas, ainda que corretas, já não são mais relevantes.”
Por outro lado, o debate e a implementação de experiências socialistas, a
partir do pensamento de Karl Marx, (1818:1883) parece estar em desuso ou,
mesmo, ter-se esgotado ou apresentar-se sem outras alternativas, sobretudo
após as fracassadas experiências do marxismo real. Durante esse período o
sistema capitalista avançou - destrutivo e implacável - sobre todos os Estados-
nação periféricos. O proletariado deixou de ser uma expressão de força e de luta
da classe trabalhadora em oposição ao capital. A concentração de indústrias deu
lugar a uma dispersão produtiva por todo o planeta e o proletariado que se
organizava em função da concentração geográfica, ficou disperso, fragmentado,
esvaziado de força, poder e ideologia. Em lugar do proletariado surge uma
verdadeira multidão formada por autômatos. É a vez do homem modulado
12
formatado para adaptar-se a realidades diversas e, também, modulares. Em
nenhum grupo ao qual pertença-se, pertence-se, por inteiro. Em nenhum grupo o
homem modular sente-se inteiramente à vontade. A tribo, totalizante, foi
substituída por uma multiplicidade de tribos, formatadas em rede, (multiredes que
se entrecruzam), formadas por homens e mulheres polivalentes que - assim como
a mobília modulada - não têm formato certo, predeterminado, mas um conjunto
infinito de possibilidades.
A era da razão, a era da ciência, produziu, também, instabilidades,
irracionalidades, brutalidades e ignorâncias. A ciência moderna venerada como a
estrela-guia que conduziria a humanidade do caminho das trevas, à luz,
11
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 14.
12
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 160/5.
13
desenvolveu-se pela especialização. O conhecimento, sob o prisma da ciência
moderna passou a ser considerado mais rigoroso quanto mais restrito seu objeto
de estudo; mais preciso, quanto mais impessoal; mais puro, quanto mais
depurado de subjetivismo e de senso comum. Assim, especializado, racional,
restrito, puro e profundo, o conhecimento cientifico e disciplinar, perdeu
abrangência, ficou vertical e dissociado do homem-comum e passou a ser,
também, segregador, excludente, dominador. É, certamente, daí que surge o
cientista, o sábio de um saber único e parcelado: um saber enclausurado,
arrogante e fragmentado que SANTOS designa por ignorante especializado
13
:
“Sabemos hoje que a ciência moderna nos ensina pouco sobre a nossa
maneira de estar no mundo e que esse pouco, por mais que se amplie,
será sempre exíguo porque a exigüidade está escrita na forma de
conhecimento que se constitui. A ciência moderna produz conhecimentos e
desconhecimentos. Se faz do cientista um ignorante especializado, faz do
cidadão um ignorante generalizado. [...]
É certo que o conhecimento do senso comum tende a ser um
conhecimento mistificado e mistificador mas, apesar disso e apesar de ser
conservador, tem uma dimensão utópica e libertadora que pode ser
ampliada através do diálogo com o conhecimento científico. Essa
dimensão aflora em algumas das características do conhecimento do
senso comum.
O senso comum faz coincidir causa e interação; subjaz-lhe uma visão do
mundo assente na ação e no princípio da criatividade e da
responsabilidade individuais. O senso comum é prático e pragmático;
reproduz-se colado às trajetórias e às experiências de vida de um grupo
social e nesta correspondência se afirma viável e securizante. O senso
comum é transparente e evidente; desconfia da opacidade dos objetivos
tecnológicos e do esoterismo do conhecimento em nome do princípio da
igualdade do acesso ao discurso, à competência cognitiva e à competência
lingüística. O senso comum é superficial porque desdenha das estruturas
que estão para além da consciência, mas, por isso mesmo, é exímio em
captar a profundidade horizontal das relações conscientes entre pessoas e
entre pessoas e coisas.”
No contexto da ciência, do parcelamento excessivo do conhecimento, das
técnicas de gestão da produção e de gestão pública, criou-se a ilusão de
eficiência e de desenvolvimento. O espaço político da participação e o espaço da
linguagem emancipatória foram paulatinamente, sendo ocupados pelo poder da
ciência, (o saber científico) e a eficiência passou a justificar a linguagem
monetária como mensuração de valor social. Uma sociedade meramente contábil
13
SANTOS. Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Op. Cit. p. 88.
14
de demonstrativos de eficiência e de balanços sociais, absolutamente inóspitos à
participação e, por isto, cada vez mais qualitativamente degradados. No vácuo
produzido e deixado pela desconstituição da consciência; da alienação e do
esvaziamento da cidadania, constitui-se o espaço para o poder da comunicação
institucional que entrelaça de forma indissociável e coerente, dominantes,
dominados e Estados-nação periféricos, com uma única bandeira ideológica rota,
desgastada, despida de participação e de cidadania, erguida em nome e em
defesa do mercado, pelo poder avassalador da indústria da comunicação, à
semelhança do que percebem HARDT e NEGRI
14
:
“O que as teorias de poder da modernidade foram forçadas a considerar
transcendentais, quer dizer, exterior às relações produtivas e sociais, é
aqui formado no interior imanente às relações produtivas e sociais. A
mediação é absorvida dentro da máquina produtiva. A síntese política de
espaço social é fixada no espaço de comunicação. É por isso que as
indústrias de comunicação assumem posição tão central. Elas não apenas
organizam a produção numa nova escala e impõem uma nova estrutura
adequada ao espaço global, mas tornam imanente sua justificação. O
poder, enquanto produz, organiza; enquanto organiza, fala e se expressa
como autoridade. A linguagem à medida que comunica, produz
mercadorias, mas, além disso, cria subjetividades, põe umas em relação
às outras, e ordena-as. As indústrias de comunicação integram o
imaginário e o simbólico dentro do tecido biopolítico, não simplesmente
colocando-os a serviço do poder mas integrando-os em seu próprio
funcionamento.”
O poder da comunicação massifica comportamentos, desejos, afeições,
ódios, medos e, por isto mesmo, substituí o processo de formação lenta de
consciência e de tomadas de decisões por impulsos e modismos. Neste ponto é
ilustrativa a síntese apresentada por BONAVIDES
15
, relativamente ao processo
histórico de construção da sociedade de massas:
“As transformações econômicas, políticas e sociais ocorridas em meados
do século abalaram sobretudo alguns conceitos da Ciência Política, sendo
o de opinião pública dos mais afetados.
Filha do racionalismo, essa idéia nova se apresenta politizada desde o
século XVIII e fora uma idéia-força da doutrina liberal. Operou a laicização
da palavra divina nos assuntos político-sociais, mediante a máxima vox
populi vox dei.
14
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 51/2.
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Malheiros. 6ª ed. São Paulo: 1996. p. 457/8.
15
Com as sociedades de massa do século XX toma a opinião pública no
entanto configuração inteiramente distinta. [...]
A opinião pública, deixando de ser espontânea (ou livre) e racional, para
ser artificial e irracional, assinala assim em seu curso histórico duas
distintas fases de “politização” intensiva: a do Estado liberal e do Estado
Social (democrático-ocidental ou autocrático oriental de cunho marxista;
num e noutro sempre o Estado da sociedade de massa).”
Essa preponderância da sociedade de massa se sedimenta a partir da
precarização do processo produtivo e da relevância do capital sobre a força de
trabalho. Certamente, trabalho, consciência e cidadania constituem-se em valores
ou categorias que formam a base de uma sociedade participativa, forte,
propositiva: o trabalho, como fonte permanente de construção e reconstrução da
subjetividade e da auto-estima; a consciência, como produto e como resultado
das relações sociais de produção; a cidadania, como capacidade de agir,
transferir, influir e constituir o poder soberano do Estado-nação. O ataque - a um
ou a todos estes pilares: trabalho, consciência e cidadania - influi na
desconstituição da nação que passa a ser cada vez mais dissociada das
instâncias de poder, teoricamente geradas a partir do povo e da nação
16
:
“Em vez de cerrar fileiras na guerra contra a incerteza, praticamente todos
os agentes institucionalizados eficientes de ação coletiva juntam-se ao
coro neoliberal para louvar como ‘estado natural da humanidade’ as ‘forças
livres do mercado’ e o livre comércio, fontes primordiais de incerteza
existencial e insistem na mensagem de que deixar livres as finanças e o
capital, abandonando todas as tentativas de freiar ou regular os
movimentos, não é uma opção política dentre outras mas um ditame da
razão e uma necessidade. [...]
O mais profundo impacto sociopsicológico da flexibilidade consiste em
tornar precária a posição daqueles que são afetados e mantê-la precária.
Medidas como a substituição de contratos permanentes e legalmente
protegidos por empregos ou serviços temporários que permitem demissão
incontinenti, contratos rotativos e o tipo de emprego que solapa o princípio
do aumento da competência através da permanente avaliação de
desempenho, fazendo a remuneração de cada empregado depender dos
resultados obtidos por cada um no momento, assim como a indução à
competição entre setores e departamentos da mesma empresa, o que
torna completamente irracional uma posição unificada dos empregados
tudo isso produz uma situação de incerteza endêmica e permanente.”
16
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 35/6
16
Diante da flexibilidade, tolerância e perplexidade dos sujeitos que
constituem a cidadania, (sociedade política) e da precariedade da força de
trabalho, pode-se perceber que o papel institucional do Estado-nação mudou. O
capitalismo e mais acentuadamente o capitalismo financeiro, parasitário,
especulativo e volátil, forçou essa mudança. A linguagem destrutiva do dinheiro e
do consumismo não encontra barreiras políticas, éticas ou morais, para fazer
circular, segundo LIMA
17
, “nos mercados de câmbio [...] a assombrosa soma de
1,2 trilhões de dólares por dia mais do que cinqüenta vezes o nível do comércio
mundial. Cerca de 95 por cento dessas transações são especulativas” [...]. A
linguagem universal do dinheiro é clara e afrontosa: tem sentido meramente
especulativo com a função de espoliar riquezas dos Estado-nação periféricos.
Esta é a fase do capitalismo que HARDT e NEGRI
18
evidenciam utilizando para
tanto a análise de Rosa Luxemburgo, (1.870: 1.919):
“O capital, assegura-nos Rosa Luxemburgo, “saqueia o mundo todo, obtém
seus meios de produção de todos os cantos da terra, tomando-os, se
preciso à força, de todos os níveis de civilização e de todas as formas de
sociedade [...] Torna-se necessário que o capital gradualmente disponha
cada vez mais de todo o globo, para dispor de uma escolha ilimitada de
meios de produção, com relação tanto à qualidade quanto à quantidade,
de modo a encontrar uma aplicação produtiva para a mais-valia que ele
realizou”. Na aquisição dos meios adicionais de produção, o capital
relaciona-se com seu ambiente não capitalista e nele confia, mas não
internaliza esse ambiente ou melhor não o torna necessariamente
capitalista. O exterior continua fora.”
A forma de dominação pelo dinheiro, (como linguagem mundial) corrompe
o processo de tomada de consciência, participação, linguagem, enfim, atrofia o
processo de formação política
19
. Os blocos históricos são atravessados por
correntes especulativas, em permanente jogo de desmonte de estruturas que
antes de romperem-se por maturação, rompem-se, precocemente, pela absorção
de valores culturais e ideológicos exógenos que se incorporam à superestrutura,
17
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito. Sérgio Antônio Fabris Editor,
Porto Alegre. 2002. p. 142
18
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 245
19
COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. Ed. Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro: 1999. p. 90/1. Na acepção ampla, política em Gramsci é sinônimo de ‘catarse’ (...)
passagem do momento meramente econômico (...) para o momento ético-político, ou seja, a elaboração
superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Isto significa também a passagem do
‘objetivo’ ao ‘subjetivo’ e da ‘necessidade à liberdade’. A estrutura de força exterior que esmaga o homem,
17
no interior do bloco histórico e, assim corrompe a sociedade civil e a sociedade
política, substituindo experiências, conceitos, práticas, por modelos prontos sem
correlação com a sociedade que adota esses receituários. É o rompimento
artificial do bloco histórico: o processo histórico é abortado e substituído por
artifícios e modismos. O resultado deste descompasso entre o mundo real vivido
e o mundo de aparências e de artificialidades é visível também nos alicerces, na
base, na origem e na transmissão do poder, como demonstram HARDT e
NEGRI
20
:
“O próprio conceito de soberania nacional libertadora é ambíguo, se não
for totalmente contraditório. Enquanto esse nacionalismo busca libertar a
multidão da dominação estrangeira ergue estruturas domésticas de
dominação igualmente severas. A posição do novo Estado-nação
soberano não pode ser compreendida quando vista em termos do róseo
imaginário da ONU, de um concerto de sujeitos nacionais iguais e
autônomos. O Estado-nação pós-colonial funciona como elemento
essencial e subordinado na organização global capitalista. [...]
Toda a cadeia lógica de representação pode ser assim resumida: o povo
representando a multidão, a nação representando o povo, o Estado
representando a nação. Cada elo é uma tentativa de manter em suspenso
a crise da modernidade. A representação, em cada caso, significa um novo
passo de abstração e controle.”
No processo de abertura, de integração, de globalização os Estados-
nação, periféricos ao capitalismo financeiro, tornam-se caudatários ou afluentes
dos Estados-nação hegemônicos, como se fossem rios que correm para o mar da
dominação econômica e do alinhamento a discursos retóricos, consubstanciados
em sistemas jurídicos dissociados da realidade vivida.
Esse mar, no entanto, é um mar sem lugar, está por toda a parte e resulta
da apropriação de riquezas de todos os Estados-nação periféricos que lhe são
afluentes, transferindo riqueza e constituindo, (estes Estados, periféricos),
gradativa e irremediavelmente em síndicos da miséria com soberania secundária
apenas para reprimir, controlar e punir os cidadãos, induzidos a serem cada vez
menos cidadãos e cada vez mais consumidores em nome da harmonia, da
normalidade e do bem-estar prometidos pelo consumismo desmedido.
que o assimila a si, que o torna passivo, transforma-se em meio de liberdade, em instrumento para criar uma
nova forma ético-política, em origem de novas iniciativas.
20
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 151/2.
18
O alinhamento forçado ou conveniente dos Estados-nação ao capitalismo
financeiro, especulativo, parasitário, subtrai a soberania que, por efeito reflexo,
subtrai a cidadania e por último, subtraí a própria consciência, pela substituição
da linguagem como instrumento de libertação, (do rebanho) pela espoliação de
riquezas produzidas nos territórios invadidos pelo poder do capital financeiro que
vulnera e aniquila resistências e defesas, sem uso de força física, bélica ou
militar, a partir de discursos elaborados pelos Estados-nação hegemônicos, como
assinalada VIOLIN
21
:
“Desde a década de 80 há uma crise de reformismo, pois seus
pressupostos foram postos em causa com o capitalismo global e o seu
braço político, o Consenso de Washington, que fez emergir o Estado fraco
só ao nível das estratégias de hegemonia e de confiança pois ao nível da
estratégia de acumulação é mais forte do que nunca, uma vez que passa a
competir a ele gerir e legitimar no espaço nacional as exigências do
capitalismo global.”
O que se pretende deixar demonstrado, no decorrer deste estudo, é que a
sucessão de crises remonta a uma única causa: o desmonte do sistema
produtivo; o esfacelamento do modo social de produção sem a imprescindível
visão de um projeto de nação que se afirme pela autodeterminação, sempre
relegada à adesão fácil às idéias prontas e requentadas defendidas por lobbies e
por grupos de pressão que se incrustam nas estruturas de poder como seres
parasitários, predatórios, destrutivos e, por isto mesmo, carecedores de
legitimidade ética, moral ou política.
Daí decorre, no contexto atual, a oportunidade de repensar sobre esta
seara formada pela globalização econômica, que envolve e atrofia o Estado-
nação e a cidadania, para enfim compreender a relevância política e social
representada pelo cooperativismo de crédito como uma construção teoricamente
possível, (inserido em um processo produtivo mais amplo e complexo), de
fortalecimento da cidadania e do desenvolvimento sócio-econômico - como uma
ágora ou uma espécie de ponte institucional entre o público e o privado - mesmo
tendo-se presente uma persistente sensação de que tudo que deveria ser feito
em prol da dignidade da pessoa humana e da cidadania, no Brasil, vem sendo
21
VIOLIN. Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias com a Administração Pública: uma análise crítica.
Ed. Fórum. Belo Horizonte: 2006. p. 30
19
indefinidamente preterido por razões bem mais amplas do que as que se
apresentam nesta pesquisa limitada a uma dissertação de mestrado.
20
PARTE I GLOBALIZAÇÃO
Nesta primeira parte, sobre a globalização, pretende-se abordar o contexto
atual do capitalismo financeiro, especulativo, parasitário e volátil, sob três
aspectos: finanças; Estados-nação e sociedade. De fato, a globalização
econômica assumiu, nos últimos anos, uma forma parasitária, sem precedentes.
O volume de transações puramente especulativas, realizadas por meio das
bolsas de valores, em tempo real, apesar de invisíveis, tem efeitos concretos
sobre os Estados-nação e sobre as populações que habitam territórios que
compõem Estados-nação ditos soberanos, cada vez mais vazios de poder e de
riqueza, transformados em síndicos da miséria ou em distritos policiais locais com
a função de controlar o fluxo de mercadorias e de pessoas, culpabilizar os
consumidores frustrados e distribuir migalhas aos miseráveis.
Ao final desta abordagem pretende-se deixar demonstrado, em linhas
gerais, o papel das finanças como linguagem de dominação de povos e de
sociedades inteiras que ficam reféns de uma ilusão com relação ao ingresso de
capitais internacionais que, rigorosamente, saqueiam as sociedades por onde
passam, e, sem qualquer segredo, demonstram aos Estados-nação periféricos e
aos seus governos o seu poderio devastador, na criação de uma rede de
dominação econômica, social e cultural, expropriando riquezas e produzindo
desejos, medos, necessidades, enfim: subjetividades.
Esses sujeitos, cada vez mais consumidores e cada vez menos cidadãos
estão sendo gestados por uma sociedade que se autolimita em suas
possibilidades de pensar e de agir em nome da coletividade, em um atrofiamento
permanente configurado pelo individualismo exacerbado, como bem assinala
LIMA
22
:
“Dentro da perspectiva da globalização, cada vez mais podemos constatar,
na medida em que o espaço político local vai se desvanecendo e dando
lugar as decisões em plano transnacional, que a participação política vai se
dissipando. Paralelamente, as decisões políticas vão sendo tomadas por
um poder sem legitimidade, representado pelos interesses de capital que
atravessa o mundo. Como conseqüência, podemos constatar que os
governos deixam de governar para a sociedade passando a governar para
o mercado. Nesta medida, o espaço político deixa de ser o locus de
conquista e defesa dos direitos da coletividade, passando a tornar-se numa
seara de poder e de manutenção de interesses do capital globalizado. O
22
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 27/8.
21
Estado passaria a mero “agenciador” de negócios no mercado
internacional. O Direito, nesta perspectiva, teria o papel de instrumentalizar
e dar amparo legal a esses interesses.”
Aprisionado ao papel de agenciador, o Estado-nação busca outras formas
de afirmação e de justificação da sua existência e, de fato, encontra - na margem
de poder que ainda lhe resta - sem enfrentamentos, sem desgastes com os
centros de dominação e, sobretudo, marcado pela incapacidade de empolgar os
cidadãos com um projeto de nação viável, alternativo, lúcido, socorrer os feridos e
os necessitados, perdedores da guerra financeira na qual o Estado-nação se
estabelece com uma dupla missão: a de presa inevitável e de aliado de ocasião,
em permanente escamoteamento e afrouxamento da inter-relação e da
cumplicidade necessárias entre Estado e cidadania; entre nação e povo. Para
acentuar essa percepção de afrouxamento dos laços comuns de união e de
solidariedade caracterizadores da nação, torna-se oportuno revisitar
AZAMBUJA
23
:
“Mancini, professor de direito internacional em Turim, propôs, em 1851,
uma definição que ficou célebre: Nação é uma sociedade natural de
homens na qual a unidade de território, de origem, de costumes, de língua
e a comunhão de vida criam a consciência social.
Padrier-Fodéré traduziu e ampliou esta definição: Nação é a reunião em
sociedade dos habitantes de um mesmo país, tendo a mesma língua,
regido pelas mesmas leis, unidos pela identidade de origem, de
conformação física e de disposições morais produzida por uma longa
continuidade de interesses e de sentimentos e pela comunhão de vida no
decurso de séculos.
Essas definições, aparentemente exatas, pecam pela inclusão de
elementos que não se encontram em todas as nações, pois muitas têm
origem e línguas diferentes. A raça, a língua, a submissão ao mesmo
Estado não bastam por si só para formar uma nação. Quando um, ou
algum desses elementos, aliados a identidade de história, de interesses e
de aspirações, consegue criar uma consciência, uma alma coletiva, essa
unidade moral se traduz pela vontade de viver em comum, pela aceitação
do mesmo destino, pelo sentimento profundo de solidariedade entre os
filhos da mesma nação e de diferença das demais nações.
Ao conjunto de todos esses traços morais, que dão uma fisionomia peculiar
a cada nação, chama-se nacionalidade; a esse amálgama indefinível de
sentimentos de simpatia recíproca, de amor às mesmas tradições, de
aspirações de grandeza futura, de unidade e permanência, de uma
personalidade coletiva, denomina-se, patriotismo. De Pátria deu Rui
Barbosa uma definição que com justiça a identifica à nação: Pátria não é
23
AZAMBUJA. Darcy, Teoria Geral do Estado. 44ª ed. Globo. São Paulo: 2003. p. 22/23.
22
um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nenhuma forma de
governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço
dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da
liberdade.
A nação, pois, não é apenas o presente mas também as gerações
passadas e as vindouras, a herança de umas e o porvir de outras, uma
corrente ininterrupta de sentimentos que une os destinos cumpridos aos
destinos a cumprir."
Nesta perspectiva, deve-se reavivar o sentido ético da formação e da
constituição do Estado-nação que pode ser resumido na expressão lapidar que a
Constituição Federal consagra como promoção do bem-comum, sem
discriminação
24
. Essa razão de ser do Estado, que se pretende profunda, está
sendo dissolvida, por políticas esporádicas, superficiais que ressaltam, quando
muito, o caráter de eficiência na gestão de algo tão transitório que se inicia e se
esgota em uma política de governo, e, portanto, está bem aquém de uma política
de Estado e, sequer, representa os resquícios, os traços, o semblante de um
projeto de nação. Tudo, aparentemente, resolve-se pelo discurso da gestão ou
pelo choque de gestão, como se a gestão, (que é meio), representasse um fim
em si mesma. Gestão de que? Eficiência em que? Para onde a sociedade e o
Estado-nação estão sendo conduzidos por esse discurso da “gestão”? Basta ver
o recente desmonte do Estado com a privatização de ativos públicos
considerados estratégicos.
A gestão pública para ser eficiente precisa estar permanentemente
justificada e qualificada, no Estado Democrático de Direito, pela busca do bem-
comum, sem discriminação, como sentido ético inafastável, (art. 3º, IV, CF),
submetida, sempre, (a gestão pública) aos princípios consubstanciados na
Constituição Federal (art. 37, caput): legalidade, moralidade, publicidade, etc.
24
Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação, (CF/88, art. 3º, inciso
IV).
23
CAPÍTULO 1 FINANÇAS
A denominada gestão pública, sem submeter-se aos preceitos de ordem e
de interesse público, sem o respaldo de um projeto de nação apresentado,
discutido e implementado - com respeito ao discurso ético que o qualificou, como
um projeto aceito democraticamente - a gestão e as metas de eficiência, ao que
parece, traduzem-se em uma escalada cega, acrítica, rumo ao precipício da
globalização, sem território, sem pátria, sem consciência coletiva, em uma
degradação perceptível do rebanho
25
.
Tendo-se presente que a globalização econômica está irreversivelmente
marcada pela acumulação financeira, o que se pretende neste capítulo é
sintonizar a denominada gestão pública ou gestão de políticas públicas, (como
um meio), aos fins do Estado-nação, imerso no mundo das finanças. Neste
sentido, inicia-se o capítulo com algo consistentemente situado: uma matéria de
governo, com contornos bem definidos do que se poderia denominar gestão por
metas, tendo como objetivo o combate à pobreza.
Em matéria publicada pela Revista do Terceiro Setor
26
, sob o título em
busca de metas, Luísa Gockel procura relatar o esforço recente do Brasil no
combate à pobreza. Desta matéria extraem-se alguns dados relevantes: a) O
Fome Zero, concebido como Política Pública Federal de enfrentamento à
pobreza, envolve 11 ministérios e tem 31 ações e programas; b) O orçamento do
Fome Zero, em 2005, foi de R$ 12,3 bilhões; c) Existem regiões onde as
transferências propiciadas pelo Fome Zero eqüivalem a 70% da arrecadação
anual do município; d) O número de pessoas em risco alimentar com que o
governo trabalha é de 44 milhões.
Como se percebe, o que está na base dessa matéria é uma postura de
Governo, consubstanciada em políticas públicas de inclusão social de duvidosa
sustentabilidade como política de Estado, exatamente por desconsiderar a
possibilidade de inclusão produtiva tendo como base o modo social de produção.
Essa política de governo, transitória por natureza, é preponderantemente
transferência de renda sem correlata produção de riqueza. Nesta percepção
imediatista, a pobreza é analisada de forma dissociada das suas causas e, em
25
Rebanho: na expressão de MARX e ENGELS ao definir a função da linguagem como produto social. A
ideologia alemã. Tradução Frank Müller. Ed. Martin Claret. São Paulo: 2004. p. 53
24
decorrência disto, os remédios para o seu enfrentamento são aplicados sobre as
conseqüências visíveis.
A pobreza, subjacente a esses mecanismos de combate, vai se
consolidando como algo que extrapola ao projeto político de nação, ao projeto de
Estado e fica circunscrito aos indivíduos: os inaptos são pobres; os aptos são
ricos. Diante deste pressuposto, adotado pelo Estado-nação é recomendável
refletir-se sobre o fenômeno de concentração de riqueza e as suas
conseqüências para milhões de pessoas aptas para o trabalho que, embora
possam participar do processo produtivo e portanto, da geração de riqueza, estão
cada vez mais distantes da inclusão produtiva que lhes assegure voz, como
cidadãos, que constituem o Estado
27
. A questão básica, portanto, do ponto de
vista econômico, consiste em saber de onde este Estado-provedor,
aparentemente milagroso, vai tirar riqueza para sustentar, como um peso morto, o
crescente contingente de miseráveis, negando-lhe, ao mesmo tempo, existência
digna, mediante inclusão produtiva.
A partir do Relatório da ONU
28
, pode-se asseverar que a proliferação das
causas da pobreza e os efeitos sociais dela decorrentes tendem a ser
devastadores para a humanidade. Da população mundial, estimada para fevereiro
de 2006, em 6,5 bilhões de pessoas
29
, 16%, ou seja, aproximadamente 1,1
bilhões de pessoas detêm 80% do PIB mundial, enquanto 5,2 bilhões de pessoas
ficam com a migalha de 20% do PIB mundial. Os dados de crescimento
vegetativo apontam para uma distribuição da pobreza entre a população mais
pobre, (com maior vocação reprodutiva) e uma concentração da riqueza entre a
população mais rica, pelo motivo inverso. Em outras palavras, enquanto os ricos
tendem a se proliferarem menos os pobres cada vez mais se multiplicam, por
diversos motivos que não nos convém investigar nos limites desta dissertação.
26
GOCKEL. Luísa, >http://www4.fgv.br/cps/simulador/impacto_2006/ic010.pdf < Acesso 02/10/2006
27
DALLARI. Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado. 24ª ed. Saraiva. São Paulo. 2003. p.
99: No Estado Moderno todo indivíduo submetido a ele é, por isso mesmo, reconhecido como pessoa. E
aqueles que, estando submetidos ao Estado, participam ao mesmo tempo da sua constituição, exercendo
funções como sujeitos, sendo, pois, titulares de direitos públicos subjetivos.
28
ONU >http://www.onu-brasil.org.br/impressao_news.php?id=2795< 16% da população tem 80% do PIB
mundial. Acesso em 06/09/2006
29
População mundial: >http://www.census.gov< Acesso em 05/02/2006
25
No Relatório da ONU noticia que “quase um quarto dos trabalhadores do
mundo inteiro não ganha o suficiente para conseguir ultrapassar o limiar de
pobreza de um dólar por dia e melhorar a situação da sua família.”
30
No Brasil, segundo o IBGE
31
, a população total, em 2005, estava estimada
em 179,5 milhões de pessoas. Desta população pode-se destacar, grosso modo,
três grandes contingentes que se intercalam: cerca de 23 milhões de inativos,
aposentados e pensionistas que, mediante um sistema contributivo prévio, são
mantidos pelo INSS
32
; o público-alvo do Fome Zero estimado em 56 milhões
33
de
famintos, além dos indivíduos com idade entre 0 e 17 anos, estimados em 60,2
milhões
34
.
Sobretudo a população atendida pelo Fome Zero, forma um contraste entre
a pobreza extrema e os fluxos monetários especulativos que se entrecruzam nos
mesmos territórios locais esvaziados de poder e de riqueza. O capitalismo
monetário de tão líquido é chamado de volátil: é a predominância da linguagem
do mercado e do dinheiro, sobre os interesses dos cidadãos restritos, quando
muito, à participação política local, como acentua BAUMAN
35
:
“A política hoje se tornou um cabo-de-guerra entre a velocidade com que o
capital pode se mover e as capacidades cada vez mais lentas dos poderes
locais, e são as instituições locais que com mais freqüência se lançam
numa batalha que não podem vencer. Um governo dedicado ao bem-estar
de seus cidadãos tem pouca escolha além de implorar e adular, e não
pode forçar o capital a vir e, uma vez dentro, a construir arranha-céus para
seus escritórios em vez de ficar em quartos de hotel alugados por dia. E
isso pode ser feito ou tentado (para usar o jargão comum à política da era
do livre comércio) criando melhores condições para a livre empresa, o que
significa ajustar o jogo político às regras da livre empresa isto é, usando
todo o poder regulador à disposição do governo a serviço da desregulação,
do desmantelamento e destruição das leis e estatutos restritivos às
empresas, de modo a dar credibilidade e poder de persuasão à promessa
do governo de que seus poderes reguladores não são utilizados para
restringir as liberdades do capital; evitando qualquer movimento que possa
dar a impressão de que o território politicamente administrado pelo governo
é pouco hospitaleiro com os usos, expectativas e todas as realizações
futuras do capital que pensa e age globalmente, ou menos hospitaleiro que
30
Relatório da ONU >http://www.onu-brasil.org.br/impressao_news.php?id=2795< Acesso em 08/08/2006
31
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: >www.ibge.gov.br< Acesso 05/02/06
>ftp://ftp.ibge.gov.br/Indicadores_Sociais/Criancas_e_Adolescentes/1997/Caracteristicas_Gerais<
32
INSS Instituto Nacional de Seguridade Social.
33
Estimativa da Fundação Getúlio Vargas FGV, para 2004, segundo a matéria referida na nota 3.
34
IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística: fonte >www.ibge.gov.br< Op. Cit.
35
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Jorge Zahar. RJ: 2001. p. 72/3.
26
as terras administradas pelos vizinhos mais próximos. Na prática, isso
significa baixos impostos, menos regras e, acima de tudo, um mercado de
trabalho flexível. Em termos mais gerais significa uma população dócil,
incapaz ou não-desejosa de oferecer resistência organizada a qualquer
decisão que o capital venha a tomar. Paradoxalmente, os governos podem
ter esperança de manter o capital em seu lugar apenas se o convencerem
de que ele está livre para ir embora com ou sem aviso prévio.”
A linguagem do mercado e do dinheiro se impõe como uma linguagem que
deve ser falada e repetida com naturalidade e é exatamente isto o que acontece,
basta assistir, diariamente os noticiários locais sobre economia e sobre bolsa de
valores para ouvir expressões que já se transformaram chavões: volatilidade; bom
ou mau-humor (do mercado) e o que é mais comum chamar os especuladores
financeiros de investidores. Esse linguajar repetitivo já faz parte do charme dos
comentaristas do mercado financeiro que cumprem à perfeição o papel vexatório
que lhes é reservado pela grande mídia associada ao mercado financeiro:
bonecos de ventríloquos.
Seção 1 A linguagem do mercado e do dinheiro
Em todo processo de interação, debate e enfrentamento, na história da
humanidade, sobreleva-se a necessidade da comunicação. Como perceberam
MARX e ENGELS: “a linguagem é tão antiga quanto a consciência a linguagem
é a consciência real, [...]; e a linguagem surge como consciência da incompletude,
da necessidade dos intercâmbios com os outros homens”.
36
Para a teoria marxista, o pressuposto lógico da consciência é a existência
ou, melhor dito, as condições objetivas de existência, de sobrevivência, de
trabalho, de interação na busca de superação das necessidades cotidianas a que
todos os seres humanos estão sujeitos, historicamente, como bem acentuam
MARX e ENGELS
37
.
“Mas, para viver, é preciso, antes de tudo comer, beber, ter moradia, vestir-
se e algumas coisas mais. O primeiro fato histórico é, portanto, a produção
dos meios que permitam que haja a satisfação dessas necessidades, a
produção da própria vida material e de fato esse é um ato histórico, uma
exigência fundamental de toda a história, que tanto hoje como há milênios
36
MARX e ENGELS. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 56
37
MARX e ENGELS. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 53
27
deve ser cumprido cotidianamente e a toda a hora, para manter os homens
com vida.”
A produção e, essencialmente, a forma como ela (produção) se opera pela
detenção dos meios de produzir, de viver e de sobreviver, produz, na
superestrutura, a linguagem, como um ícone de libertação. A linguagem
emancipatória é falada e entendida por iguais que, independente das suas
divergências e disputas internas, defendem-se do agressor externo mediante o
uso da linguagem, da comunicação. A expressão da consciência é, portanto,
histórica e consubstancia-se em linguagem como meio necessário de
comunicação. A formação da consciência está, permanentemente, referendada
pela forma de como os seres humanos se relacionam entre si, nos embates
mediados pela linguagem. Assim entendem MARX e ENGELS:
38
“A consciência, conseqüentemente, desde o início é um produto social, e o
continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é, antes de
tudo, mera consciência do meio sensível mais próximo e consciência de
uma interdependência limitada com as demais pessoas e coisas que estão
situadas fora do indivíduo [...] como uma força completamente estranha,
onipresente, inexpurgável, com a qual os homens se relacionam de forma
puramente animal e diante da qual se deixam impressionar como se
fossem um rebanho.”
O que se percebe é que desde tempos remotos e em áreas geográficas
relativamente fechadas e isoladas, há algo comum a todos os povos: a
linguagem. Essa necessidade fez nascer uma infinidade de línguas que, nos dias
atuais, e, pelo processo inverso de abertura, integração, globalização, superação
de fronteiras geográficas, por certo, observa-se um fenômeno do
desaparecimento e da morte das línguas faladas com o enfraquecimento
correlato da comunicação libertadora que, a cada dia, cede espaço ante o
inevitável e inexorável surgimento de uma outra forma de comunicação
comandada pelo mercado, pelo consumo: o dinheiro, como instrumento de
acumulação de poder e de dominação.
A morte das línguas ou das formas internas de comunicação e de
entendimento tem, no entanto, um significado mais denso. Ao extermínio das
línguas originais e genuínas, (nascidas das relações específicas, históricas,
38
MARX e ENGELS. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 56/7
28
orgânicas entre estrutura e superestrutura), que nos identificam como rebanhos,
sucedem culturas e povos destroçados que vagam, sem poder de reação e de
reorganização, em espaços territoriais delimitados por uma soberania retórica
assegurada, por poderes externos, a Estados-nação de fachada, síndicos da
miséria, que não precisam ser invadidos, como outrora, por forças militares, para
serem expropriados em suas riquezas. Sobre este processo de destruição e de
desmonte crescente e em curso acelerado cabe lembrar a lição de SANTOS
39
:
“O domínio global da ciência moderna como conhecimento-regulação
acarretou consigo a destruição de muitas formas de saber sobretudo
daquelas que eram próprias dos povos que foram objeto do colonialismo
ocidental. Tal destruição produziu silêncios que tornaram impronunciáveis
as necessidades e as aspirações dos povos ou grupos sociais cujas
formas de saber foram objeto de destruição. Não esqueçamos que sob a
capa dos valores universais autorizados pela razão foi de fato imposta a
razão de uma “raça” de um sexo e de uma classe social. A questão é, pois:
Como realizar um diálogo multicultural quando algumas culturas foram
reduzidas ao silêncio e as suas formas de ver e conhecer o mundo se
tornaram impronunciáveis? Por outras palavras, como fazer falar o silêncio
sem que ele fale necessariamente a linguagem hegemônica que o
pretende fazer falar? Estas perguntas constituem um grande desafio ao
diálogo multicultural. Os silêncios, as necessidades e as aspirações
impronunciáveis só são captáveis por uma sociologia das ausências que
proceda pela comparação entre os discursos disponíveis, hegemônicos e
contra hegemônicos, e pela análise das hierarquias entre eles e dos vazios
que tais hierarquias produzem. O silêncio é, pois, uma construção que se
afirma como sintoma de um bloqueio, de uma potencialidade que não pode
ser desenvolvida.”
Esse vazio de linguagem emancipatória, (como é da sua função social e
histórica), esse silêncio referido por Boaventura, resulta da interrupção de um
longo processo de existência, luta pela sobrevivência, interação produtiva e
linguagem. Onde havia uma civilização, com linguagem, (tendente à
emancipação), um povo, uma nação, - um rebanho que tem ou teve na linguagem
a forma de expressão da sua consciência social e coletiva - capta-se o silêncio.
Como fazer falar os povos dominados? Como fazer falar esses povos, essas
nações arrebatadas por uma outra linguagem, (de dominação), que não lhes
pertence e que não advém do sistema de produção, ou, em outras palavras, do
processo histórico de relação social de produção: a linguagem hegemônica e
39
SANTOS. Boaventura de Sousa, A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Cortez
29
globalizante do dinheiro? Esta é, certamente, uma oportunidade para revisitar
HABERMAS
40
:
“Na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que
todo poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O
exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos
criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada
discursivamente. Quando se considera essa prática como um processo
destinado a resolver problemas, descobre-se que ela deve a sua força
legitimadora a um processo democrático destinado a garantir um tratamento
racional de questões políticas. A aceitabilidade racional dos resultados obtidos
em conformidade com o processo explica-se pela institucionalização de
formas de comunicação interligadas que garantem de modo ideal que todas
as questões relevantes, temas e contribuições, sejam tematizados e
elaborados em discursos e negociações, na base das melhores informações e
argumentos possíveis. Esta institucionalização jurídica de determinados
processos e condições da comunicação tornam possível um emprego efetivo
de liberdades comunicativas iguais e simultaneamente estimula para o uso
pragmático, ético e moral da razão prática, ou seja, para a compreensão
eqüitativa de interesses. Além disso, o princípio da soberania do povo pode
ser considerado diretamente sobre o aspecto do poder. A partir deste ângulo
ele exige a transmissão da competência legislativa para a totalidade dos
cidadãos que são os únicos capazes de gerar, a partir do seu meio o poder
comunicativo de convicções comuns. Ora, a decisão fundamental e
obrigatória sobre políticas e leis exige, de um lado, consultas e tomadas de
decisão face to face. De outro lado, nem todos os cidadãos podem “unir-se”
no nível de interação simples e direta, para uma tal prática exercitada em
comum.”
Talvez se devesse formular algumas perguntas a HABERMAS. Que povo?
Que poder comunicativo? Que cidadãos? Que todo o poder político? Que leis que
os cidadãos criam? Que formas de comunicação interligadas? No caso do Brasil,
essas respostas estão bem assentadas na Constituição Formal que fixa a origem
do poder exercido pelo Estado-nação em benefício do bem comum: todo o poder
emana do povo
41
.
Diante do contexto de retórica no qual parece estar enredado o Estado e,
sobretudo, o direito constitucional que lhe dá sustentação formal, cumpre
evidenciar uma questão prática dissociada de qualquer elucubração rebuscada:
quem garante as garantias constitucionais? A resposta imediata parece óbvia: o
Editora. 5ª ed. São Paulo: 2005. p. 30.
40
HABERMAS. Jürgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e a validade I, Tempo Brasileiro. Rio de
Janeiro: 2003. p. 213.
41
Todo o poder emana do povo: Art. 1º, parágrafo único, da CF - Constituição Federal
30
povo. Ou seja, retoma-se ao enredo do direito para justificar o direito, o discurso
para justificar o discurso vazio de conteúdo e dissociado do mundo real existente,
porque o conceito de participação e legitimação do direito tendo como base o
povo, nada mais é do que uma convenção jurídica. Esse formalismo de produção
do direito pelo direito, está eivado de retórica. A característica intrínseca dessa
comunicação merece uma análise mais profunda, ou seja, é conveniente
perceber as bases dessa soberania mistificada
42
.
“O elo entre o conceito de nação e o conceito de povo foi, de fato, uma
poderosa inovação e constituiu o centro da sensibilidade jacobina, assim
como de outros grupos revolucionários. O que parece revolucionário e
libertador nessa noção de soberania nacional e popular, entretanto, nada
mais é do que outra volta no parafuso, mais uma ampliação da subjugação
e dominação que o conceito moderno de soberania traz consigo desde o
início. O precário poder da soberania como solução para a crise da
modernidade foi primeiro citado como apoio à nação, e quando a nação
também se revelou uma solução precária, foi aplicado ao povo. Em outras
palavras, assim como o conceito de nação completa a noção de soberania,
o conceito de povo completa o de nação mediante outra regressão lógica
simulada. Cada recuo lógico funciona para solidificar o poder da soberania
pela mistificação de sua base, ou seja, assentando-se na naturalidade do
conceito. A identidade da nação e mais ainda a identidade do povo, tem de
parecer natural e originária.”
Torna-se oportuno verificar-se como foi construída, historicamente, a
linguagem do dinheiro como linguagem mundial de dominação e submissão de
povos e nações transformadas em fronteiras abertas para a circulação, primeiro
de mercadorias (bens físicos), e depois de espoliação mediante a circulação de
capital financeiro volátil, especulativo, parasitário com a única função de apropriar
riquezas. Sobre o dinheiro e sobre a função do dinheiro nos primórdios do
sistema capitalista mercantil , veja-se, inicialmente, o que diz MARX
43
:
“Abstraiamos o conteúdo material da circulação de mercadorias, o
intercâmbio dos diferentes valores de uso e consideremos apenas as
formas econômicas engendradas por esse processo, então encontraremos
como seu produto último: o dinheiro. Esse produto último das circulações
das mercadorias é a primeira forma de apropriação do capital.
Historicamente, o capital se defronta com a propriedade fundiária, no início,
em todo lugar, sobre a forma de dinheiro, capital comercial e capital
usurário. No entanto, não se precisa remontar à história da formação do
42
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 119/120
43
MARX. Karl, O Capital: crítica da economia política. Ed. Vitor Civita. São Paulo: 1983. p. 124.
31
capital para reconhecer o dinheiro como a sua primeira forma de aparição.
A mesma história se desenrola diariamente ante nossos olhos. Cada novo
capital pisa em primeira instância o palco, isto é, o mercado, mercado de
mercadorias, mercado de trabalho ou mercado de dinheiro, sempre ainda
como dinheiro, dinheiro que deve transformar-se em capital por meio de
determinados processos. Dinheiro como dinheiro e dinheiro como capital
diferenciam-se primeiro por sua forma diferente de circulação.”
Da mesma forma como não se precisa remontar à história da formação do
capital para reconhecer o dinheiro como a sua primeira forma de aparição, pode-
se ver, igualmente desenrolar-se diante dos nos olhos, os vícios no processo
legislativo marcado pela atuação de lobbies como acentua MARINONI
44
:
“[...] à época do Estado liberal a lei era considerada fruto da vontade de um
Parlamento habitado apenas por representantes da burguesia, no qual não
havia confronto ideológico. [...] logo as Casas legislativas deixaram de ser
o lugar da uniformidade; com o passar do tempo o Parlamento tornou local
de divergência, em que diferentes idéias acerca do papel do direito e do
Estado passaram a se confrontar. Aí, [...] não há mais uma vontade geral,
podendo se falar de uma ‘vontade política’, ou melhor na vontade do grupo
mais forte dentro do Parlamento, importando apenas se a lei foi produzida
em processo regular, e não o seu conteúdo, o que contribui para o
surgimento de um direito formalizado. Atualmente, porém, a lei não é nem
mais a expressão de uma vontade política, uma vez que determinados
membros do Parlamento sequer conhecem as suas próprias vontades.
Nessa linha, a vontade da lei seria, na verdade, uma ‘ausência de vontade’
o que poderia, a partir de um ângulo, representar uma vontade. Mas, a
ausência de vontade é certamente a presença da vontade de um outro,
vale dizer, a presença da vontade de alguém que está por trás do
Parlamento.”
A linguagem mundial verbalizada pelo capital financeiro, (detentor do meio
circulante, e, portanto, do dinheiro), tem, atualmente, mais do que nunca, um
sentido prático e paira como uma nuvem de ameaça sobre os territórios nacionais
e sobre as populações de miseráveis indefesos, submetidos ao controle e à
repressão do Estado-nação, este, em perfeito alinhamento com o mercado
internacional e suas grandes corporações e empresas transnacionais que
segundo HARDT e NEGRI “tendem a fazer dos Estados-nação meramente
44
MARINONI. Luiz Guilherme - A jurisdição no estado constitucional: Estudos em homenagem ao prof.
Egas Moniz de Aragão., São Paulo: RT, 2005. p. 19
32
instrumentos de registro de fluxo de mercadorias, dinheiro e populações que
põem em movimento.”
45
Se, como parece, a linguagem mundial utilizada como instrumento de
dominação é preponderantemente monetária. Como está a formação da
consciência dos cidadãos (miseráveis) que não falam esta língua, ou, de forma
ainda mais abrangente, como os Estados-nação que tem a atribuição de controlar
e freiar os contingentes de miseráveis que habitam em seus territórios falam entre
si? Veja-se BAUMAN:
46
“Parece haver pouca esperança de resgatar os serviços de certeza,
segurança e garantias do Estado. A liberdade da política do Estado é
incansavelmente erodida pelos novos poderes globais providos das
terríveis armas da extraterritorialidede, velocidade e capacidade de evasão
e fuga; a retribuição pela violação do novo estatuto global é rápida e
impiedosa. [...]. Governos insubordinados, culpados de políticas
protecionistas ou provisões públicas generosas para os setores
‘economicamente dispensáveis’ de suas populações e de não deixar o país
à mercê dos ‘mercados financeiros globais’ e do ‘livre comércio global’ têm
seus empréstimos recusados e negada a redução das suas dívidas; as
moedas locais são transformadas em leprosas globais, pressionadas à
desvalorização e sofrem ataques especulativos; as ações locais caem nas
bolsas globais; o país é isolado por sanções econômicas e passa a ser
tratado [...] como pária global.”
Essa é uma realidade mundial: a linguagem monetária, como instrumento
de dominação, é uma linguagem difundida, traduzida e incrustada que envolve,
emoldura e submete os cidadãos e os Estados-nação periféricos, obrigadas a
falar, entre si, e a ensinar internamente a necessária e natural dissociação entre o
mundo da política e o mundo da economia, porque ...
47
No cabaré da Globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final
do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder
de repressão. Com sua base material destruída, sua soberania e
independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado
torna-se um mero serviço de segurança para as mega-empresas ... Os
novos senhores do mundo não têm necessidade de governar diretamente.
Os governos nacionais são encarregados da tarefa de administrar os
negócios em nome deles.
45
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 51
46
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Op. cit. p. 212/3.
33
O potencial desse strip-tease que “subjuga” os Estados “soberanos”
(contradição em termos), pode ser avaliado pelo volume de recursos
especulativos e voláteis que circulam, no mundo, através, principalmente, das
“bolsas-de-valores”. O efeito para a sociedade civil, para a cidadania e para a
subsistência das populações empobrecidas e isoladas em seus territórios locais é
percebido e acentuado por BAUMAN
48
:
“As viagens globais dos recursos financeiros são talvez tão imateriais
quanto a rede eletrônica que percorrem, mas os vestígios locais de sua
jornada são dolorosamente palpáveis e reais: o despovoamento
qualitativo’, a destruição de economias locais outrora capazes de sustentar
seus habitantes, a exclusão de milhões impossíveis de serem absorvidos
pela nova economia global.”
O cenário mundial de concentração de riqueza e de alienação dos valores
humanos pode ser aquilatado a partir do Relatório da Organização das Nações
Unidas ONU. O teor do relatório veiculado pela ONU-Brasil, em agosto de
2005
49
, traz alguns indicativos relevantes para o tema deste estudo, vejam-se:
“O desemprego continua a ser elevado em muitos contextos e as taxas
de desemprego dos jovens são particularmente altas. A probabilidade de
os jovens estarem desempregados é duas a três vezes superior à dos
adultos, e os jovens constituem atualmente 47% do total dos 186 milhões
de desempregados do mundo. [...]. A incapacidade dos países para
integrarem os trabalhadores mais jovens na economia formal tem
profundas repercussões, que vão desde o crescimento rápido da
economia informal ao aumento da instabilidade nacional.
A grande maioria dos trabalhadores pobres faz parte do setor informal. A
evolução dos mercados de trabalho e o aumento da concorrência
mundial provocaram uma enorme expansão da economia informal e a
deterioração dos salários, prestações sociais e condições de trabalho,
sobretudo nos países em desenvolvimento.”
O resultado do esvaziamento dos Estados-nação, periféricos, e das suas
debilitadas soberanias fundadas em uma multidão de cidadãos miseráveis
50
, em
47
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Tradução Marcos Penchel. Ed.
Jorge Zahar. Rio de Janeiro: 1999. p. 74.
48
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 35.
49
ONU-Brasil: link >http://www.onu-brasil.org.br/impressao_news.php?id=2795< acesso em 08/10/2005
50
Dados de primeira aproximação. Brasil: população total, em 2005, 179,5 milhões de pessoas (IBGE); 56,4
milhões abaixo da linha da pobreza (FGV); 60,4 menores de 17 anos (IPEA).
34
condições precárias de trabalho e, por isto mesmo, sem possibilidades objetivas
de participação política, tende a ser catastrófico, pois, na precisa lição de LIMA
51
.
“[...] os cidadãos ficam impedidos de definirem os rumos da sociedade,
esvaziando a sua participação política, peculiaridades que expressam o
esvaziamento do poder local, representado pelo retraimento da esfera
pública cedendo espaço à esfera privada identificada com o mercado,
colocando em risco o futuro da política, da democracia e da
solidariedade, ensejando desestruturação e fragmentação social.
A conseqüência nefasta desse panorama é que os cidadãos, na medida
em que dele se conscientizem, cada vez mais perceberiam que seria
estéril o debate e a tomada de decisões políticas no âmbito local, seja ele
um país, uma província, uma cidade. O centro das decisões estaria longe
e os cidadãos sentiriam cada vez mais que sua vida está interditada no
plano político-participativo.”
A situação concreta imposta pela globalização econômica, pela crescente
desterritorialização, pelo despovoamento qualitativo é perceptível e inquietante
para todos que vislumbram e sonham com um projeto de nação, porque a
construção da cidadania e o próprio conceito de cidadania se sustenta na
participação, na linguagem comum, no senso de pertencimento, daí a inquietante
indagação proposta por LIMA
52
: “Será que haverá lugar para cidadãos num
mundo globalizado?” A resposta a essa questão requer reflexão, sobretudo para
aferir o grau de verdade ou de ilusão que reside na linguagem do dinheiro e do
direito, como instrumentos públicos de dominação.
Vejam-se, sobre a linguagem do dinheiro, no Brasil, breves e relevantes
extratos da comunicação consubstanciada pelo Estado, através dos seus
dirigentes, em busca de legitimidade dos cidadãos reforçados pela retórica
constitucional de que todo o poder emana do povo
53
.
Pode-se, detectar, pela Carta Testamento deixada por Getúlio Vargas em
1953, alguns sinais de agudização da crise do Estado-nação:
54
“Sigo o destino que me é imposto. Depois de decênios de domínio e
espoliação dos grupos econômicos e financeiros internacionais, fiz-me
chefe de uma revolução e venci. Iniciei o trabalho de libertação e instaurei
o regime de liberdade social. Tive de renunciar. Voltei ao governo nos
51
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 236/7
52
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 237.
53
Todo o poder emana do povo .... (artigo 1º, parágrafo único, CF)
54
> http://pt.wikipedia.org/wiki/Carta_Testamento_de_Get%C3%BAlio_Vargas< Acesso em 20/11/2006.
35
braços do povo. A campanha subterrânea dos grupos internacionais aliou-
se à dos grupos nacionais revoltados contra o regime de garantia do
trabalho. A lei de lucros extraordinários foi detida no Congresso. [..]. Os
lucros das empresas estrangeiras alcançavam até 500% ao ano. Nas
declarações de valores do que importávamos existiam fraudes constatadas
de mais de 100 milhões de dólares por ano. Veio a crise do café, valorizou-
se o nosso produto. Tentamos defender seu preço e a resposta foi uma
violenta pressão sobre a nossa economia, a ponto de sermos obrigados a
ceder.” (Sem grifos no original)
Em 1961, a Carta Renúncia de Jânio Quadros, parece demonstrar uma
reação a interesses contrários à nação:
55
“Desejei um Brasil para os brasileiros, afrontando, nesse sonho, a
corrupção, a mentira e a covardia que subordinam os interesses gerais aos
apetites e às ambições de grupos ou de indivíduos, inclusive do exterior.
Sinto-me, porém, esmagado. Forças terríveis levantam-se contra mim e me
intrigam ou infamam, até com a desculpa de colaboração.”
A forma de comunicação que traumatizou o povo brasileiro e os
governantes, antes do período autoritário, (1964: 1986), é coisa do passado ou
daquilo que, no jargão médico, poderia ser chamada de fase aguda. Certamente
o avanço tecnológico que permite operações especulativas em volume
equivalente a 1,2 trilhões de dólares por dia de capital financeiro especulativo
superou a fase aguda e está agora na sua fase crônica, absorvida como cultura
em uma espécie de mundo natural, onde, como assinala BAUMAN
56
,
“[...] praticamente todos os agentes institucionalizados eficientes de ação
coletiva juntam-se ao coro neoliberal para louvar como ‘estado natural da
humanidade’ as forças livres do mercado’ e o livre comércio, fontes
primordiais de incerteza existencial e insistem na mensagem de que deixar
livres as finanças e o capital, [...] não é uma opção política [...] mais um
ditame da razão e uma necessidade.”
Fazendo uma breve digressão histórica, pode-se perceber que, mesmo
após a fase de redemocratização, iniciada em 1986, o discurso continua sem
justifica-se com o Estado e o Estado continua sem justifica-se com a ética. Há, ao
contrário, uma completa desconexão entre a realidade vivida e a aparência do
55
>http://pt.wikipedia.org/wiki/J%C3%A2nio_Quadros< Acesso em 20/11/2006
56
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 35
36
real, representada pelo Estado. Vejam-se, primeiro, trechos do discurso de posse
do presidente do Brasil, em janeiro de 2003:
57
“Mudança. Esta é a palavra-chave, esta foi a grande mensagem da
sociedade brasileira nas eleições de outubro: a esperança finalmente
venceu o medo e a sociedade decidiu que estava na hora de trilhar novos
caminhos.
Diante do esgotamento de um modelo que, em vez de gerar crescimento,
produziu estagnação, desemprego e fome; diante do fracasso de uma
cultura do individualismo, do egoísmo, da indiferença perante o próximo,
da desintegração das famílias e das comunidades. Diante das ameaças à
soberania nacional, da precariedade avassaladora da segurança pública,
do desrespeito aos mais velhos e do desalento dos mais jovens; diante do
impasse econômico, social e moral do País, a sociedade brasileira
escolheu mudar e começou, ela mesma, a promover a mudança
necessária.
Foi para isso que o povo brasileiro me elegeu Presidente da República:
para mudar. Este foi o sentido de cada voto dado a mim e ao meu bravo
companheiro [...] E eu estou aqui, neste dia sonhado por tantas gerações
de lutadores que vieram antes de nós, para reafirmar os meus
compromissos mais profundos e essenciais, para reiterar a todo cidadão e
cidadã do meu País o significado de cada palavra dita na campanha, para
imprimir à mudança um caráter de intensidade prática, para dizer que
chegou a hora de transformar o Brasil naquela nação com a qual a
gente sempre sonhou: uma nação soberana, digna, consciente da própria
importância no cenário internacional e, ao mesmo tempo, capaz de abrigar,
acolher e tratar com justiça todos os seus filhos.” (Sem grifos no original).
A notícia, a seguir transcrita, veiculada na Internet,
58
em 2005, parece
contrariar frontalmente o discurso oficial, quanto a pretendida mudança, pelo
menos se se esperava um enfrentamento do Estado-nação em relação ao lucro
dos bancos que sufoca os setores produtivos:
“No primeiro semestre de 2005, os três grandes bancos privados, que
divulgaram os balanços na semana passada, registraram lucro líquido de
R$ 5,95 bilhões, com um aumento de 62,8% em relação ao mesmo
período de 2004. O lucro líquido do Bradesco foi de R$ 2,6 bilhões, com
crescimento de 109,7% em relação ao primeiro semestre de 2004; o Itaú
lucrou R$ 2,47 bilhões, com avanço de 35,6%; e o Unibanco teve lucro
líquido de R$ 854,2 milhões, crescendo 47,1%.”
57
Luiz Inácio Lula da Silva. Discurso de posse como Presidência da República. Período de 01/01/2003 a
31/12/2005. >http://www.estadao.com.br/ultimas/nacional/noticias/2007/jan/01/153.htm< Acesso em 20/11/2006
58
Acesso público em 13/04/06.>http://www.correiodoestado.com.br/exibir.asp?chave=109491,1,2,14-08-2005<
37
Ao que parece, o dinheiro é uma forma eficaz de linguagem e de
dominação. A construção e a integração do mercado mundial de especulação
financeira, estão fundadas, acima de tudo, na dissolução de regimes nacionais e
no enfraquecimento dos Estados-nação periféricos, tendo como resultado
permanente o despovoamento qualitativo associado à crescente perda de
soberania. Pode-se ver, a partir dessas soberanias secundárias, a sombra da
cidadania, combalida pela comunicação retórica que Habermas tenta ressuscitar
a partir da superestrutura, rodando em círculos dentro da mesma superestrutura:
o “agir comunicativo” está aparentemente sustentado pelo direito e o direito
sustentado pelo “agir comunicativo” sem fundamento e sem correlação com a
estrutura econômica, ou seja, a vida real vivenciada por milhões de cidadãos de
todo o mundo parece não conferir aptidão para a comunicação proposta por
HABERMAS.
Certamente o processo eleitoral e de participação dos cidadãos nos
ambientes decisórios, postos em prática no Brasil, são insuficientes para
configurar poder comunicativo legitimador das leis e da própria Constituição
Formal que a despeito de qualquer consulta ampla ou restrita, tem suas fontes de
inspiração em interesses quase sempre conflitantes com os discursos éticos
contidos na própria Constituição.
Restaria, em um último esforço - para apreender validamente a teoria da
comunicação - formular uma questão a HABERMAS: qual o significado das
condições ideais de fala” para os povos, nações e raças, silenciados pela força
avassaladora da linguagem monetária? Quem fará falar esses povos silenciados,
senão os próprios dominadores que destróem, dizimam e, ao mesmo tempo,
escrevem ou, pior ainda, ditam a história que, oficialmente se escreve, enquanto o
mundo dos dominados vivencia, silencioso e agonizante, a sua insignificância, a
sua impotência, a sua rendição?
Cabe residualmente, - a esses Estados-nação dominados - a condição de
síndicos da miséria com a única função de freiar os fluxos migratórios formados
por excedentes populacionais, economicamente dispensáveis: sem-ocupação,
sem-trabalho, sem-renda, sem-terra, vagando pelo mundo, como destacam
HARDT e NEGRI
59
:
59
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 233.
38
“Um espectro persegue o mundo, o espectro da migração. Todos os
poderes estão aliados numa impiedosa operação contra ela, mas o
movimento é irresistível. Junto com a fuga do chamado Terceiro Mundo,
existe um fluxo de refugiados políticos e a transferência de força de
trabalho intelectual, além dos movimentos em massa do proletariado
agrícola, industrial e de serviços. Os movimentos legais e com documentos
são esmagados pelas migrações clandestinas: as fronteiras de soberania
são peneiras, e toda tentativa de regulamentação completa sofre violenta
pressão.”
Certamente, seria incompreensível atribuir a essa multidão flutuante, as
denominadas condições ideais de fala. Esses sujeitos que constituem os
processos migratórios estão se formando a partir do esvaziamento dos territórios
dos Estados-nação que perdem poder e riqueza, no precário arranjo internacional
que os reconhece, em tese, com condição para exercer o poder de
autodeterminação dos povos
60
.
A essa multidão flutuante deve-se ainda acrescentar os excluídos que - por
completa impossibilidade objetiva, material ou psicológica ficam estacionados
aonde estão, indefinidamente, em um processo degradante de autodestruição,
imóveis, inertes, apáticos, pois seria impossível imaginar-se um fluxo migratório
constituído, no Brasil, por um contingente estimado em 2004, pela Fundação
Getúlio Vargas
61
, em 56 milhões de miseráveis.
Seção 2 Produção de subjetividades
O modo social de produção gera a imensa coleção de mercadorias
62
e
produz, também, sujeitos, isto é, modula as pessoas que se inter-relacionam com
outras pessoas a partir desse modo social de produção. É relevante entender por
que países, como o Brasil, com a sua tão decantada vocação natural para o
desenvolvimento e para a acumulação de riqueza, exatamente por possuir vastas
extensões de terra; longa costa marítima navegável; abundância de água potável;
potencial energético; imensa área sob insolação para a produção de biomassa;
60
Constituição Federal, artigo 4º, inciso III.
61
Revista do Terceiro Setor. Op. Cit.
62
MARX. Karl, O Capital Critica da economia política: Livro I Tomo 1; Coordenação e Revisão de Paul
Singer. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe São Paulo : Abril Cultural, 1983. p. 45: “A riqueza
das sociedades em domina o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de
mercadorias’ e a mercadoria individual como sua forma elementar. [...]. A mercadoria é, antes de tudo, um
objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie.
A natureza dessas necessidades, se elas se originam do estômago ou da fantasia, não altera nada na coisa.”
39
detentor do maior rebanho bovino do mundo; etc., etc., etc., permanece à
margem do desenvolvimento.
A resposta a esta questão parece estar na teoria do valor. Adam Smith,
(1.723: 1.790), foi o primeiro a estudar o trabalho e a especialização do trabalho
como fonte de produção de valor e de acumulação de riqueza. Veja-se SMITH:
63
“A divisão do trabalho, na medida em que pode ser introduzida, gera, em
cada ofício um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. A
diferenciação das ocupações e empregos parece haver-se efetuado em
decorrência dessa vantagem. Essa diferenciação, aliás, geralmente atinge o
máximo nos países que se caracterizam pelo mais alto grau da evolução, no
tocante ao trabalho e aprimoramento; o que em uma sociedade em estágio
primitivo, é o trabalho de uma única pessoa, é o de várias em uma
sociedade mais evoluída.”
Com efeito, a divisão do trabalho e a sucessiva especialização do trabalho,
foram conduzindo os próprios trabalhadores, pela observação cotidiana, a
incorporar, inovações técnicas e máquinas por eles mesmos aprimoradas, ao
processo produtivo, com o intenção de reduzir o tempo socialmente necessário e
potencializar o esforço despendido pelo homem. Esta busca de aperfeiçoamento
e de substituição do trabalho humano (capital variável) pela máquina (capital fixo)
foi, também, progressivamente, sendo objeto da divisão e da especialização do
trabalho. A observação de SMITH
64
, em 1.776, é reveladora:
“Contudo, nem todos os aperfeiçoamentos introduzidos em máquinas
representam invenções por parte daqueles que utilizam essas máquinas.
Muitas delas foram efetuadas pelo engenho dos fabricantes das máquinas,
quando a fabricação de máquinas passou a constituir uma profissão
específica; alguns desses aperfeiçoamentos foram obra de pessoas
denominadas filósofos ou pesquisadores, cujo ofício não é fazer as coisas,
mas observar cada coisa, e que, por essa razão, muitas vezes são capazes
de combinar entre si as forças e poderes dos objetos mais distantes e
diferentes. Com o progresso da sociedade, a filosofia ou pesquisa torna-se,
como qualquer ofício, a ocupação principal ou exclusiva de uma categoria
específica de pessoas. Como qualquer outro ofício, também esse está
subdividido em um grande número de setores ou áreas diferentes, cada uma
das quais oferece trabalho a uma categoria especial de filósofos; e essa
subdivisão do trabalho filosófico, da mesma forma como em qualquer outra
ocupação, melhora e aperfeiçoa a destreza e proporciona economia de
tempo.”
63
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Ed. Vitor Civita. São Paulo: 1983. p. 41/42.
64
SMITH. Adam, Op. Cit. p. 41/2.
40
A combinação da máquina (capital fixo), com o trabalho humano (capital
variável) pareceu a Adam Smith o melhor-dos-mundos e, naquela época, após a
recém derrocada do sistema feudal, (que durou toda era medieval, isto é, do
século V ao século XV), era, efetivamente, o melhor dos mundos. Estabelecia-se,
ali, uma sociedade livre, com um novo paradigma, desatrelado da propriedade da
terra, e, portanto, do sistema feudal de produção. Certamente, por isso, conclui
SMITH, em 1.776: “Assim sendo, todo homem subsiste por meio da troca,
tornando-se de certo modo comerciante; e assim é que a própria sociedade se
transforma naquilo que adequadamente se denomina sociedade comercial.”
65
A especialização do trabalho, a divisão do trabalho em etapas sucessivas
parece ser a chave para entender a produção de mercadorias e para entender a
produção de subjetividades porque o processo de produção, reproduz as
condições sob as quais os próprios sujeitos (pessoas de carne e osso), que são
também produzidas, são forjadas no processo de produção de outras
mercadorias destinadas ao mercado de trabalho: as pessoas, como sujeitos
condicionados ao modo de produção vigente. Como percebem MARX e
ENGELS
66
:
“[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de
toda a história, é que todos os homens devem estar em condições de viver
para poder “fazer história”. [...]. O segundo ponto é que, satisfeita essa
primeira necessidade, a ação de satisfazê-la e o instrumento de satisfação
já adquirido conduzem a novas necessidades a produção de novas
necessidades é o primeiro ato histórico. [...]. A terceira relação que
intervém no desenvolvimento histórico é que os homens, que
cotidianamente renovam sua vida, passam a criar outros homens, a se
reproduzir: é a relação entre homem e mulher, entre pais e filhos, a
família.”
É exatamente ai, onde se desejava chegar, nesta seção: o modo de
produção produz mercadorias e produz subjetividades: produz pessoas que se
inter-relacionam no seio da sociedade a partir do que fazem, a partir do que
herdam das gerações passadas. Há portanto uma desigualdade material,
histórica que se reproduz e que conduz alguns milhares de cidadãos iguais - em
dignidade e em direitos, segundo a tese da legislação programática a serem
materialmente desiguais, com uma flagrante incapacidade de exercer alguma
65
SMITH. Adam,. Op. Cit. p. 57.
66
MARX. Karl, e ENGELS. Friedrich. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 53/4
41
influencia no cenário político do Estado. Milhares desses sujeitos vivem em
situações sub-humanas e, portanto, reproduzem a condição sub-humana em que
vivem: subnutrição, déficit intelectual, analfabetismo, enfim ausência objetiva de
participação como sujeitos coletivos, com capacidade de “fazer história” que se
poderia denominar como povo excluído do povo. Esse povo (excluído do povo),
passa pela vida de forma indelével, frágil, quase imperceptível, captado, quando
muito, pelas estatísticas da miséria. São os sujeitos distantes do exercício
autônomo e consciente dos direitos que lhe reservam, em tese, as constituições,
tal como entende CANOTILHO
67
.
“Na atualidade, o que é que se passa? Como diz o notável livro de
Friederich Müller, sobre o que é o povo (traduzido e editado no Brasil), o
povo é uma grandeza real que engloba, afinal de contas, todas as
pessoas, inclusive aquelas que estão excluídas do povo, que nem sequer
têm consciência política, que não participam na dinamização democrática.
Isso leva também a minorar ou a atenuar a idéia de sujeito histórico que
nada tem a ver com estas filosofias da subjetividade. Tem a ver, sim, com
esquemas modernos do sujeito. O sujeito transformador, o sujeito
conquistador, tem a ver com o espírito moderno, do sujeito que domina a
natureza, que assume este projeto, este processo, ou seja, o processo
histórico, como um processo factível e configurável pelos próprios homens.
É esse, no fundo, o sujeito que tem estado presente nos problemas
constitucionais. É este o sujeito a que me referi quando disse que a
Constituição dirigente está bastante localizada no sujeito.”
Os sujeitos (cidadãos) que constituem o Estado moldam, modulam,
influem, tanto positiva como negativamente, no processo histórico-social do
território em que vivem. Nem se poderia intuir, validamente, que uma norma por
mais elevada que possa ser, em algum sistema jurídico, tivesse a força de alterar
as condições materiais em que se assenta essa norma que se pretende
iluminada. Ela nada mais é do que um elo na formação da superestrutura em
permanente relação dialética e de tensão com a base ou a estrutura que lhe dá
sustentação no processo histórico. De fato, como se extrai da lição de SILVA os
limites normativos estarão sempre limitados pelas condições materiais de
existência:
68
67
Canotilho e a constituição dirigente 2ª ed. / Organizador Jacinto Nelson Miranda Coutinho: participantes
Agostinho Ramalho Marques Neto e outros. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 25/6.
68
SILVA, José Afonso da. Garantias econômicas, políticas e jurídicas da eficácia dos Direitos Sociais.
>http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=207< Acesso em 10/11/2006
42
“A Constituição declara que a ordem econômica, fundada na valorização
do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos
existência digna, conforme os ditames da justiça social e os princípios que
indica, entre os quais a função social da propriedade, a defesa do
consumidor, a redução das desigualdades sociais, a busca do pleno
emprego. Tudo, como se vê, voltado à realização dos direitos sociais do
homem. Mas a verdade é que a existência digna aí prometida não será
autêntica e real, enquanto não se construírem as condições econômicas
que assegurem a efetividade desses direitos. É difícil admitir a dignidade
da pessoa humana num País de grandes misérias, mormente quando este
país é um dos principais produtores de alimentos do mundo, país em que
os 10% mais ricos se apropriam da metade da renda nacional, os 50%
mais pobres ficam com apenas 13,6% dessa riqueza, 1%, os ricos tem
participação praticamente igual (13,13%), onde 65% vivem na pobreza ou
miséria, dos quais 54% são crianças, 24 milhões de crianças vivem na
miséria, 23 milhões na pobreza, 33% das famílias ganham menos que um
salário mínimo, e este fica ao nível da ridícula quantia de 60 dólares
mensais, país em que a mortalidade infantil aumenta na razão direta da
queda dos salários, do desemprego em massa: na década de 80 eram 100
por 1000, hoje a taxa atinge a cerca 170 mortes para cada 1000 nascidos
vivos.”
A força de trabalho produz riqueza e a força de trabalho é, ao mesmo
tempo, mercadoria que precisa ser reproduzida pelo trabalhador, ou seja, a
reprodução da espécie humana está permanentemente desafiada pela
necessidade de aprimoramento. O trabalhador precisa ser preparado para
superar desafios. Mas, ao que parece, a necessidade imperiosa de
aprimoramento está, ela mesma, subjugada ao controle da comunicação de
massa que forja a consciência dos trabalhadores e fabrica, assim, subjetividades:
desejos, modas, forma de ser e de agir. A questão imediata é, como sair dessa
ciranda que desafia a criatividade e perpetua - em sentido exatamente oposto - a
massificação econômica e cultural, gerando, em escala crescente autônomatos.
Seres humanos facilmente adaptáveis ou, como prefere BAUMAN, o homem
modulado
69
: O homem modulado é antes e acima de tudo, um homem sem
essência.
A (in)responsabilidade social torna-se, neste contexto, um imperativo da
ordem capitalista que se instala como algo natural. A alienação permanente,
(histórica), dos valores do trabalho como força produtiva da imensa coleção de
mercadorias que se constituem na base da economia mundial e definem o jogo
de dominação econômica entre os Estados-nação, forjam, também, as bases
69
BAUMAN. Zygmunt,.Em Busca da Política. Op. Cit. p. 161.
43
para a produção dos sujeitos e a qualidade que esses sujeitos terão como atores
ativos no processo de construção ou de desconstrução do Estado.
Esse espaço de desconstrução conjuga-se, à perfeição, segundo os
interesses mercantis e do capital financeiro que comandam e dominam o Estado,
com o espaço complementar da denominada responsabilidade social como
porções homeopaticamente ministradas, em consonância com o calendário civil
mais apropriado, servido em fatias de “generosidade”; “benevolência”; “caridade”;
“criança esperança”; “boas-vontades”; “fome zero”, “inclusão bancária”, etc., etc.,
etc., que conduzem a sensação de que se vive, em uma sociedade imediatista
voltada ao consumo, sem projeto político, sem história, sem cidadãos. Uma
sociedade de desconstituição de subjetividades e da destruição da auto-estima,
na mesma linha do que foi percebido por BAUMAN:
70
“Se os nossos ancestrais filósofos, poetas e pregadores morais refletiram
se o homem trabalha para viver ou vive para trabalhar, o dilema sobre o
qual mais se cogita hoje em dia é se é necessário consumir para viver ou
se o homem vive para poder consumir. Isto é, se ainda somos capazes e
sentimos a necessidade de distinguir aquele que vive daquele que
consome.”
Este espaço de conversão do cidadão, (como sujeito necessário ao
aprimoramento do Estado), em consumidor (como sujeito dependente da
proteção do Estado) está cada vez mais institucionalizado pela indústria da
comunicação que dita os padrões de consumo e controla a forma de ser, agir,
pensar, como advertem HARDT e NEGRI
71
:
“As grandes potências industriais e financeiras produzem, [...], não apenas
mercadorias, mas também subjetividades. Produzem subjetividades
agenciais dentro do contexto biopolítico: produzem necessidades, relações
sociais, corpos e mentes ou seja, produzem produtores. Na esfera
biopolítica, a vida é levada a trabalhar para a produção e a produção é
levada a trabalhar para a vida. [...]. O desenvolvimento de redes que se
comunicam tem uma relação orgânica com a emergência de uma nova
ordem mundial é, em outras palavras, efeito e causa, produto e produtor.
A comunicação não apenas expressa mas também organiza o movimento
de globalização. Organiza o movimento multiplicando e estruturando
interconexões por intermédio de redes. Expressa o movimento e controla o
70
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Op. Cit. p. 88/9
71
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 51
44
sentido de direção do imaginário que percorre essas conexões
comunicativas; em outras palavras, o imaginário é guiado e canalizado
dentro da máquina de comunicação.”
Neste processo, aparentemente involutivo, os Estados-nação tornam-se
caudatários ou afluentes como se fossem rios que correm para o mar da
globalização. Nesse mar não há um opressor individual, (preciso, determinado),
há um sistema de opressão, no qual todos têm atribuições exercidas de forma
inconseqüente e mecânica, culturalmente assimilada. Esse mar, no entanto, é um
mar sem espaço definido, sem lugar, está por toda parte e resulta da apropriação
de riquezas de todos os Estado-nação que lhe são afluentes. Esse sistema de
opressão, potencializado pela globalização econômica subtrai a “soberania” dos
Estados periféricos e, por efeito reflexo, inverso, subtrai a “cidadania” e, por
último, subtraí a própria “consciência”, como perda de referencia da subjetividade
dos indivíduos e dos povos.
Seção 3 Concentração de riqueza: fluxo livre das transações financeiras
A exploração e a apropriação da riqueza conta, cada vez mais e
acentuadamente, com o papel que as superpotências definem para os Estados-
nação periféricos, restritos às suas soberanias secundárias, inteiramente
compatível com a qualidade dos sujeitos que constituem o Estado, cada vez
menos cidadãos e cada vez mais consumidores, como entende BAUMAN:
72
“Quando o Estado reconhece a prioridade e superioridade das leis do
mercado sobre as leis da pólis, o cidadão transforma-se em consumidor
e o consumidor demanda mais e mais proteção enquanto aceita cada vez
menos a necessidade de participar no governo do Estado. O resultado
global são as atuais condições fluídas de anomia generalizada e rejeição
das normas em todas as suas versões. Aumenta, em vez de diminuir, a
distância entre o ideal de democracia liberal e sua versão real, de fato
existente.”
Os efeitos do ataque especulativo do capital financeiro, fluído, parasitário
podem ser sentidos no desalento dos cidadãos em decorrência do
despovoamento qualitativo e, igualmente, na queda das oportunidades de
45
trabalho, emprego e renda, como decorrência da perda de relevância do capital
produtivo local e da massa de trabalhadores, forçados, ambos, a transferir riqueza
ao capital financeiro, mediante elevadas taxas de juros e altas taxas de
administração praticadas, em cartel, pela rede de bancos. Essa operação
sistemática causa danos perceptíveis e irreparáveis ao Estado-nação e à
cidadania.
Ao lado - e como conseqüência do esvaziamento da riqueza e da
especulação financeira a que os Estados-nação periféricos estão subjugados, por
interesse das superpotências - cresce a população de excluídos, miseráveis,
economicamente dispensável, constituída por cidadãos esvaziados de poder
político, ainda que as Cartas Políticas, em todo o mundo, insistam em dizer, como
no caso do Brasil, que todo o poder emana do povo
73
. Ao que parece o Estado
está, regressivamente, sendo convertido em um grande condomínio de interesses
privados onde prepondera a linguagem do mercado financeiro e o cidadão é
intencionalmente tratado não como um indivíduo que participa, mas como um
consumidor que pede e depende de proteção. Como percebem HARDT e
NEGRI:
74
“As corporações transnacionais distribuem diretamente a força de trabalho
pelos mercados, alocam recursos funcionalmente e organizam
hierarquicamente os diversos setores mundiais da produção. O complexo
aparelho que seleciona investimentos e dirige manobras financeiras e
monetárias determina uma nova geografia do mercado mundial, [...] A mais
completa figura em nosso mundo é apresentado da perspectiva monetária.
[...]
o existe nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum panorama exterior,
que possa ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada
escapa do dinheiro. A produção e a reprodução são vestidos de trajes
monetários.”
A economia, na globalização, precisa ser isentada do controle político para
que se tornem efetivas as regras de livre mercado e a livre movimentação do
capital e das finanças, com efeito diz BAUMAN
75
“o significado primordial do
termo economia é o de área não política. O sentido e a importância desta
imposição é que o Estado “não deve tocar em coisa alguma relacionada à vida
72
BAUMAN. Zygmunt, Em busca da política. Op. Cit. p. 159
73
Conforme parágrafo único, artigo 1º da CF
74
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 50/1
75
BAUMAN. Zygmunt,. Globalização: as conseqüências humanas. Op. cit. p. 74/5
46
econômica: qualquer tentativa nesse sentido enfrentaria imediata e furiosa
punição dos mercados mundiais”. E continua BAUMAN:
76
“A única tarefa econômica permitida ao Estado e que se espera que ele
assuma é a de garantir um “orçamento equilibrado”, policiando e controlando
as pressões locais por intervenções estatais mais rigorosas na direção dos
negócios e em defesa da população face às conseqüências mais sinistras da
anarquia de mercado. - continua Bauman, citando Jean-Paul Fitoussi - Tal
programa, no entanto, não pode ser executado a não ser que a economia,
de uma maneira ou de outra, seja retirada do campo da política. Certamente
um Ministério da Fazenda continua sendo um mal necessário, mas
idealmente se poderia ter um Ministro de Assuntos Econômicos (isto é, que
governasse a economia). Em outras palavras, o governo deveria ser
despojado de sua responsabilidade pela política macroeconômica. [...]. A
corrida para criar novas e cada vez mais fracas entidades territoriais
“ploiticamente independentes” não vai contra a natureza das tendências
econômicas globalizantes; a fragmentação política não uma “trava na roda”
da “sociedade mundial” emergente, unida pela livre circulação de
informação. Ao contrário, parece haver uma íntima afinidade, mútuo
condicionamento e esforço entre “globalização” de todos os aspectos da
economia e a renovada ênfase do princípio territorial.”
Certamente, o ideário que inspira a formação dos Estados-nação é contrário
a esse alinhamento cego comandado pelos interesses imediatos de consumo
ditados pela globalização econômica, pois o Estado Democrático de Direito, tal
como instituìdo pela Constituição Federal, tem sua fundamentação centrada na
valorização do homem em sociedade: razão de ser do Estado.
76
BAUMAN. Zygmunt,. Globalização: as conseqüências humanas. Op. cit. p. 75/6
47
CAPÍTULO 2 ESTADOS-NAÇÃO
Para dar início a este capítulo pode-se, inicialmente, revisitar a tradicional
Teoria Geral do Estado, partindo-se da lição de DALLARI:
77
“O Estado Democrático moderno nasceu das lutas contra o absolutismo,
sobretudo através da afirmação dos direitos naturais da pessoa humana.
Daí a grande influencia dos jusnaturalistas, como LOCKE e ROUSSEAU,
embora estes não tivessem chegado a propor a adoção de governos
democráticos, tendo mesmo ROUSSEAU externado seu descrédito neles.
[...]
É através de três grandes movimentos político-sociais que se transpõem
do plano teórico para o prático os princípios que iriam conduzir ao Estado
Democrático: o primeiro desses movimentos foi o que muitos denominam
de Revolução Inglesa, fortemente influenciada por LOCKE e que teve sua
expressão mais significativa no Bill of Rigths, de 1689; o segundo foi a
Revolução Americana, cujos princípios foram expressos na Declaração da
Independência das treze colônias americanas, em 1776; o terceiro foi a
Revolução Francesa, que teve sobre os demais a virtude de dar
universalidade aos seus princípios, os quais foram expressos na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, sendo evidente
nesta a influência direta de ROUSSEAU.”
A revolução francesa sobretudo com o ideário da liberdade, igualdade e
fraternidade, difunde e universaliza uma aspiração que passa a ser
consubstanciada em diversas constituições como uma garantia ao cidadão oposta
ao Estado. Certamente a igualdade, frente ao regime democrático, representa
uma aspiração ao acesso aos bens materiais: acesso à riqueza; acesso a
condições dignas de existência. Mas, esta aspiração tem sido postergada. Os
interesses de classe são mais fortes que as postulações que se consubstanciam
em normas. A lição de SILVA
78
é neste sentido:
“O direito à igualdade não tem merecido tantos discursos como a
liberdade. As discussões, os debates doutrinários e até as lutas em torno
desta obnubilaram aquela. É que a igualdade constitui o signo fundamental
da democracia. Não admite privilégios e distinções que um regime
simplesmente liberal consagra. Por isso é a que a burguesia , cônscia do
seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto
quanto reivindica o de liberdade. É que um regime de igualdade contraria
interesses e dá à liberdade sentido material que não se harmoniza com o
domínio de classe em que se assenta a democracia liberal burguesa.
77
DALLARI. Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado. 24ª ed. São Paulo. Saraiva. 2003. p. 147
78
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 206/7
48
As constituições só têm reconhecido a igualdade no seu sentido jurídico-
formal: igualdade perante a lei. A Constituição de 1988 abre o capítulo dos
direitos individuais com o princípio de que todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput). Reforça o princípio com
muitas outras normas sobre a igualdade ou buscando a igualização dos
desiguais pela outorga de direitos sociais substanciais. Assim é que, já no
artigo 5º, I, destaca que homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações. Depois, no art. 7º, XXX e XXXI, vêm regras de igualdade
material, regras que proíbem distinções funcionais em certos fatores, ao
vedarem diferença de salários, de exercício de funções e de critérios de
admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer outra
forma de discriminação no tocante a salários e a critérios de admissão do
trabalhador portador de deficiência. A previsão, ainda que programática, de
que a República Federativa do Brasil tem como um de seus objetivos
fundamentais reduzir as desigualdades sociais e regionais, (art. 3º, III), a
veemente repulsa a qualquer forma de discriminação (art. 3º, IV), a
universalidade da seguridade social, a garantia ao direito à saúde, à
educação baseada em princípios democráticos e de igualdade de
condições de acesso e de permanência na escola, enfim a preocupação
com a justiça social como objetivo das ordens econômicas e sociais (arts.
170. 193, 196 e 205) constituem reais promessas de busca da igualdade
material.”
Embora a ilusão da igualdade esteja restrita apenas ao sentido jurídico-
formal: igualdade perante a lei, afigura-se inadmissível diante de tantos ditames
constitucionais sobre igualdade (formal, é certo), que o Estado-nação possa, em
detrimento da cidadania, da dignidade da pessoa humana, da soberania atuar tão
prontamente em defesa de uma casta de privilegiados, escudado em uma
racionalidade que produz concentração de riqueza e uma multidão de miseráveis
inaptos para o exercício de cidadania e cada vez mais dependentes de políticas
emergenciais, precárias, transitórias, circunstanciais, ministradas por Estados que
mais se assemelham a síndicos da miséria.
Seção 1 Síndicos da miséria?
Os Estados-nação periféricos, ao sistema financeiro global, estão sendo
levados a restringirem-se, com suas soberanias formais, à condição de síndicos
da miséria. A equação de distribuição da riqueza, no mundo, parece deixar isto
evidente: 16% da população tem 80% do PIB mundial, eis o título do relatório da
ONU
79
, divulgado em Nova York, em 25 de agosto de 2005. Este relatório informa
79
Organização das Nações Unidas: ONU-Brasil >http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=2795<
49
que “quase um quarto dos trabalhadores do mundo inteiro não ganha o suficiente
para conseguir ultrapassar o limiar de pobreza de um dólar por dia e melhorar a
situação da sua família.”
Consultando-se o ranking elaborado pelo Banco Mundial
80
, pode-se
constatar que muitos Estados-nação periféricos, ao sistema financeiro global,
simplesmente, não participam do PIB mundial, embora, é claro, possuam um
território, uma população, um governo independente
81
e sejam, portanto, sob o
ponto de vista do direito, tidos e havidos, como Estados soberanos: são, no
entanto, ao contrário do que repetem através das suas constituições formais,
Estados-vazios, Estados-fracos, quase-Estados, distritos policiais locais, tal como
descrito por BAUMAN
82
“Pode-se dizer que todos têm interesses adquiridos nos Estados fracos
isto é, nos Estados que são fracos mas mesmo assim continuam sendo
Estados. Deliberada ou subconscientemente, esses interEstados,
instituições supralocais que foram trazidas à luz e têm permissão de agir
com o consentimento do capital mundial, exercem pressões coordenadas
sobre todos os Estados membros ou independentes para sistematicamente
destruírem tudo que possa deter ou limitar o livre movimento de capitais e
restringir a liberdade de mercado. Abrir de par a par os portões e
abandonar qualquer política econômica autônoma é a condição preliminar,
docilmente obedecida, para receber assistência econômica dos bancos
mundiais e fundos monetários internacionais. Estados fracos são
precisamente o que a Nova Ordem Mundial [...] precisa para sustentar-se e
reproduzir-se. Quase-Estados, Estados fracos podem ser facilmente
reduzidos ao (útil) papel de distritos policiais locais que garantem o nível
médio de ordem necessário para a realização de negócios, mas não
precisam ser temidos como freios efetivos às liberdades das empresas
globais.”
Cabe asseverar que existe, subjacente ao ranking elaborado pelo Banco
Mundial, um processo histórico de hegemonias. Primeiro, a hegemonia iniciada
no período de colonização e de extração de riqueza mineral, sobretudo ouro e
prata, das Américas, para financiar o reluzente padrão monetário da libra esterlina
que impulsionou a Revolução Industrial, na Europa
83
, a partir da Inglaterra
84
,
80
Banco de dados dos Indicadores do Desenvolvimento Mundial, Banco Mundial, julho de 2006, acesso
público em >http://www.obancomundial.org/index.php/content/view_document/2349.html<
81
AZAMBUJA. Darcy, Op. Cit. p. 18
82
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Op. Cit. p. 75/6
83
HARDT. Michael e NEGRI. Antônio, Império. Op. Cit. p. 278: Os tesouros capturados fora da Europa por
pilhagem, escravidão e assassinato, escreve Marx, desaguaram na pátria-mãe e lá foram transformados em
Capital.
50
agora, o processo hegemônico de dominação financeira é de cunho especulativo
e está sob o comando de outro padrão monetário, o dólar dos EEUU, (uma
moeda de curso internacional, sem lastro), que exaure os Estados-nação
periféricos em dois sentidos de sórdida coerência: como síndicos da miséria, (na
função de distritos policiais locais), e como áreas de livre comércio dos países
desenvolvidos, (na função de mercados consumidores). Este poder global é
sintetizado por HARDT e NEGRI
85
, como uma estrutura piramidal sob o comando
do capital financeiro, em termos elucidativos:
“Quando analisamos as configurações do poder global com seus diversos
corpos e organizações, podemos reconhecer uma estrutura piramidal,
composta de três camadas, cada qual mais larga do que a outra, e
contendo diversos níveis.
No cume da pirâmide está a única superpotência, os Estados Unidos, que
detém a hegemonia sobre o uso global da força - uma superpotência que
pode agir sozinha mas prefere fazê-lo em colaboração com outros, debaixo
do guarda-chuva das Nações Unidas. Este status único foi estabelecido
definitivamente com o fim da guerra fria e confirmado pela primeira vez na
Guerra do Golfo. Num segundo nível, ainda nesta primeira camada, [...] um
grupo de Estados-nação controla os instrumentos monetários globais e
com isso é capaz de regular as trocas internacionais. Estes Estados-nação
são atrelados entre si numa série de organismos G7, os Clubes de
Londres e de Paris, Davos e assim por diante. [...] num terceiro nível da
primeira camada, um conjunto hegemônico de associações, [...] demonstra
poder cultural e biopolítico em nível global.”
O Brasil, com a 5ª maior população mundial - periférico, em relação ao
capital financeiro global - caiu, em 08 anos, (1998:2006), da posição de 8ª para a
14ª economia do mundo
86
. De fato, a concentração de riqueza pode ser
constatada por fatos simples que fazem parte do cotidiano: o Brasil, através de
alguns dos seus ministérios, em especial do MDS
87
, passou a produzir e indicar
receitas de alimentos elaborados com talos, cascas, bagaços, restos, etc. Em
uma sinfonia da miséria que diz em linhas claras: “o que costuma ir para o lixo
pode, muito bem, ter lugar de honra na mesa do trabalhador. Pode significar
84
FURTADO. Celso, Formação Econômica do Brasil. 32ª ed. Companhia Editora Nacional. São Paulo:
2003. p. 41: “Para a Inglaterra o ciclo do ouro brasileiro trouxe um forte estímulo ao desenvolvimento
manufatureiro, uma grande flexibilidade à sua capacidade para importar e permitiu uma concentração de
reservas que fizeram do sistema bancário inglês o principal centro financeiro da Europa.”
85
HARDT. Michael e NEGRI. Antônio, Império. Op. Cit. p. 330/331.
86
Banco de dados dos Indicadores do Desenvolvimento Mundial, Banco Mundial, julho de 2006. Op. Cit.
87
MDS - Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome
51
saúde e economia, num cenário em que 11,2 milhões de famílias vivem abaixo da
linha de pobreza
88
. Essas receitas são revestidas com a fantasia de educação
alimentar e outras invencionices que pretendem disfarçar o indisfarçável: cabe ao
Estado-nação controlar; freiar, coibir o impulso dos miseráveis, com programas de
combate à fome e seus similares, já que o espaço de defesa da soberania lhe é
tolhido pelo capital financeiro
89
:
“O poder do capital perde cada vez mais a sua materialidade, torna-se
cada vez mais ‘irreal’ quando visto a partir do significado que a realidade
tem para as pessoas que não integram a elite global e têm pouca chance
de juntar-se a ela.”
Esse poder do capital de que fala BAUMAN, mal-disfarçado pelo
malabarismo político, resulta em algo natural e aceitável, alguma coisa que soa
como um dever-de-Estado, quando legitimado por um Governo, (e este é o caso
do Brasil), surgido das massas populares sob o comando do Partido dos
Trabalhadores no papel de educador alimentar forjando receitas a partir de talos,
cascas, bagaços, restos que costumam ir para o lixo mas que podem servir de
alimento para a honra de 11,2 milhões de famílias de trabalhadores que estão
submetidos à soberania do mesmo Estado-nação, (mesmo território, mesma
população, mesmo governo), em que a imprensa anuncia, em um tom entre
pitoresco e jocoso: Bancos devem duplicar lucros no Governo Lula:
90
“Os três maiores bancos privados nacionais, Bradesco, Itaú e Unibanco,
caminham neste ano para mais do que duplicar os seus lucros desde o
início do Governo Lula. Segundo estimativas do CS First Boston (CSFB), o
lucro conjunto dos três bancos deve atingir R$ 12,5 bilhões em 2005 (R$
5,4 bilhões do Bradesco, R$ 5,3 bilhões do Itaú e R$ 1,86 bilhão do
Unibanco). Em 2002, último ano antes do Governo Lula, a soma dos lucros
do Bradesco, Itaú e Unibanco atingiu R$ 5,4 bilhões. Em termos nominais,
o aumento seria de 131%, caso a estimativa esteja correta. Descontando-
se a inflação de 24% no período, isto significaria 87% a mais de ganhos.”
Esta é uma realidade perceptível: a massa de trabalhadores e o capital
produtivo nacional cedem, a cada dia, mais renda e riqueza ao capital financeiro,
88
MDS >http://www.mds.gov.br/noticias_antigas/noticia242.htm/?searchterm=receitas< Acesso 25/06/2006
89
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p.128.
90
>http://www.correiodoestado.com.br/exibir.asp?chave=109491,1,2,14-08-2005< .
52
especulativo e parasitário. Exatamente, por isso os intelectuais orgânicos
91
,
precisam - antes de aceitar essa racionalidade produzida por lobbies considerar
que a intolerância do capitalismo financeiro quanto ao strip-tease que subjuga o
Estado soberano” tem razões práticas na defesa de interesses do capital
financeiro internacional, que circula, no mundo, através, principalmente, das
‘bolsas-de-valores’, como pontua LIMA
92
“[...] as transações nos mercados de câmbio atingiram agora a assombrosa
soma de 1,2 trilhões de dólares por dia - mais do que cinqüenta vezes o
nível do comércio mundial. Cerca de 95 por cento dessas transações são
especulativas por natureza, muitas utilizando instrumentos financeiros
complexos recentemente desenvolvidos, e baseados em mercados futuros
de ações. De acordo com Michel Albert, “o volume diário de transações
nos mercados de câmbio do mundo totaliza algo em torno de 900 bilhões
de dólares mais do que o total das reservas em moeda estrangeira dos
bancos centrais do mundo”. Esta economia financeira virtual tem um
terrível potencial para esboroar a subjacente economia real [...].
Juntamente com o acelerado desenvolvimento dos mercados de capital
globais nos quais se apoia, a economia virtual é um fenômeno
desconhecido na história da economia mundial. [...]”
Diante da concentração de riqueza e de poder - prenunciando o fracasso
dos Estados-nação periféricos - tendentes à condição de síndicos da miséria
pode-se constatar a coincidência histórica de dois movimentos, aparentemente
isolados e contraditórios, no contexto dos Estados-nação: um, na área do Direito,
buscando socorrer o que resta da função de Estado, mediante a
constitucionalização dos direitos fundamentais com realce para a dignidade da
pessoa humana e, um outro, bem mais pragmático, tendente a banalizar o Estado
contando, para esse fim, com o discurso de efetividade econômica,
aparentemente soberano em relação aos direitos fundamentais, à dignidade da
pessoa humana e ao próprio Estado que, nessa visão pragmática, é necessário
como uma instância de poder, endógeno e homologatório, a serviço do grande
capital financeiro, interno e/ou externo, tal como percebido por BAUMAN
93
:
91
FOUCAULT. Michel, Em Defesa da Sociedade. Tradução Maria Ermantina Galvão. São Paulo. Martins
Fontes, 1999. p. 132: Antonio Gramsci cunhou o termo ‘intelectuais orgânicos’ para definir os membros da
classe culta que se incumbiam de esclarecer as autênticas, supostas ou postuladas tarefas e perspectivas de
amplos setores da população dessa maneira ajudando na elevação de uma ou outra. (...) com uma vocação
missionária peculiar, uma espécie de metaclasse ou ‘classe produtora de classe
92
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 142
93
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 36.
53
“O discurso neoliberal fica ainda mais ‘forte’ à medida que prossegue a
desregulamentação, enfraquecendo as instituições políticas que poderiam
em princípio tomar posição contra a liberdade do capital e da
movimentação financeira. Outro passo fundamental rumo ao domínio
inconteste do neoliberalismo, foi dado com a recente assinatura do Acordo
Multilateral de Investimentos, que para todos os efeitos amarra as mãos
dos governos nacionais e desamarra as das empresas extraterritoriais.”
Essa contradição ou essa disputa entre o socorrer (teórico, retórico,
fragmentário, residual) e o banalizar (concreto, pragmático, efetivo,
preponderante), seria risível, se não fosse algo brutalmente trágico - para as
populações de miseráveis encurralados em territórios inteiramente hostis à
dignidade da pessoa humana.
Nesta dissertação, procura-se indicar os componentes deste enredo
anunciado, ante a irracionalidade produzida pela razão, nestes tempos de pós-
modernidade, marcado pelo parcelamento do conhecimento, (René Decartes:
1.637), que redundou no ignorante especializado
94
e na apropriação do Estado-
nação por seres parasitários que vivem da política
95
Essa dicotomia entre o socorrer e o banalizar deve ser enfrentada no
campo da política, onde, teoricamente, se resolvem, pacificamente, as questões
de poder ou de origem do poder. Neste sentido, o presente trabalho, aponta o
cooperativismo e, especialmente, o cooperativismo de crédito como a ágora em
que se tratam - historicamente e em quase todo o mundo - das questões
relacionadas à vida, ao trabalho, à dignidade sob uma ótica de participação,
organização e formação política. Parece claro, no entanto, que o Estado-nação
está aprisionado por uma degradação da consciência, da participação e da
cidadania, e, que, qualquer solução que se vislumbre dependeria de um poder de
organização absolutamente ausente nas camadas sociais que poderiam, em tese,
promover qualquer mudança.
94
SANTOS. Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Op. Cit. p. 74: “É hoje reconhecido que a
excessiva parcelização e disciplinarização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado e
que isso acarreta efeitos negativos”.
95
WEBER. Max, Ciência e política: duas vocações. Ed Cultrix. São Paulo: 2002. p. 65: Daquele que vê na
política uma permanente fonte de renda, dizemos que vive da política.
54
Nesse passo o Brasil, como assegura o relatório do BID Banco
Interamericado de Desenvolvimento
96
, referindo-se à América Latina e ao Caribe,
sem a presença de mercados de crédito profundos e estáveis terá dificuldade em
promover taxas de crescimento altas e sustentáveis como forma de combater a
pobreza. Para se ter a demissão dessa defasagem pode-se verificar que em 46
anos (desde 1960 até 2006) a média de crédito concedido para o setor privado no
Leste da Ásia saiu de 15% e, atualmente ultrapassa 70% do PIB, enquanto, no
Brasil, no mesmo período, o patamar inicial de, iguais, 15% subiu, em 46 anos,
para 28% do PIB
97
.
Seção 2 Os cidadãos miseráveis e o aprisionamento do Estado-nação
O Estado moderno refundado a partir da Lei Magna, Lei Máxima ou
Constituição, o denominado Estado Democrático de Direito tem sua base de
poder no povo. Neste sentido, diz a Constituição Federal do Brasil: todo o poder
emana do povo. De fato o Estado para ser democrático deve basear-se em
sufrágio universal, seria, inadmissível excluir da participação na construção do
Estado “democrático” os eleitores que, historicamente são discriminados do
acesso às condições materiais de existência e, por isto mesmo, em tese,
careceriam de condições objetivas para discernir e participar como sujeitos que
efetivamente tenham consciência política e capacidade de dinamização
democrática.
O conceito e a prática da democracia deve, portanto, ser amplo e geral e,
neste sentido, o Estado Democrático deve entrelaçar os destinos de todos os
cidadãos que participam, por ação ou por omissão, do projeto de nação. Essa
aspiração, mesmo que, deliberada e conscientemente, fosse a aspiração do
Estado-nação e da sociedade civil orientada pelo sentido ético do bem-comum,
encontraria barreiras para se estabelecer na nova (des)ordem mundial, como
alertam HARDT e NEGRI
98
96
BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito: Como aprofundar e estabilizar o
financiamento bancário; tradução Cecília Camargo Bartalotti, Donaldson Garschagen e Pedro Medeiros.
Elsevier. Rio de Janeiro: 2005. p. V.
97
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 6
98
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 367
55
“O império é definido aqui em ultima instância como o “não-lugar” da vida,
ou, em outras palavras, como a capacidade absoluta de destruição. O
Império é a forma suprema de biopoder na medida em que é a inversão
absoluta do poder da vida.
O dinheiro é o segundo meio global de controle absoluto. A construção do
mercado mundial constituiu, acima de tudo, na desconstrução monetária
dos mercados nacionais, na dissolução de regimes nacionais e/ou
regionais de regulamentação monetária, e na subordinação desses
mercados às necessidades das potências financeiras. Como estruturas
monetárias nacionais tendem a perder qualquer característica de
soberania, podemos ver emergir delas as sombras de uma nova
reterritorialização monetária unilateral, concentrada nos centros políticos e
financeiros do Império, as cidades globais.
Assim como a ameaça nuclear autoriza o poder generalizado da polícia, da
mesma forma o árbitro monetário está continuamente articulado em
relação às funções produtivas, medidas de valor e alocações de riqueza
que constituem o mercado mundial.”
A margem de atuação político-social é, como se pode perceber, pequena e
tende a reduzir-se quando se constata que grande parte dos cidadãos aptos, em
tese, para o sufrágio universal do voto encontra-se interditada por ausência de
condições objetivas mínimas de participar, qualitativamente, da vida política da
nação. Esta é uma experiência concreta de aprisionamento do Estado-nação que
se constrói a partir de um exército de miseráveis, marcado pelo medo, pela
incerteza e pela insegurança, a exemplo do que pontua BAUMAN
99
:
“[...] a presença de um vasto exército de miseráveis e a ampla notoriedade
de sua situação são um fator contrapontístico de grande importância na
ordem atual. Sua importância está em compensar os efeitos de outros
modos revoltantes e repulsivos da vida que se leva à sombra da incerteza
perpétua. Quanto mais destituídos e desumanizados se mostrarem e forem
vistos os pobres do mundo e os da rua ao lado, melhor desempenharão
seu papel num drama que não escreveram nem para o qual fizeram teste.
Houve uma época em que as pessoas eram induzidas a suportar
humildemente a sua sina, por mais dura que fosse, com a exibição de
quadros que pintavam vivamente o inferno pronto para engolir todos os
que rebelassem. Como todas as coisas eternas e do outro mundo, o
mundo inferior também foi trazido agora à terra, para produzir efeito
semelhante e colocado firmemente nos confins da vida terrestre sob uma
forma pronta para o consumo. Os pobres são o Outro dos assustados
consumidores o Outro que de uma vez por todas mostra clara e
verdadeiramente o inferno. Num sentido vital, os pobres são o que os não-
pobres gostariam muitíssimo de ser (embora não ousem tentar): são livres
99
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 179/180
56
da incerteza. Mas a incerteza que receberam em troca vem sob a forma de
doença (se vivem em Washington) ou de uma morte lenta por desnutrição
(se vivem no Sudão). A lição que se aprende ao ouvir falar dos pobres é
que a certeza deve certamente ser temida mais do que a detestada
incerteza; e que a punição da rebelião contra os desconfortos da incerteza
cotidiana é rápida e impiedosa.”
Sem dúvida, o quadro sócio-econômico é desalentador quando se constata
que, segundo dados do IPEA
100
, em 2004, mais de 59,4 milhões de pessoas, no
Brasil, viviam abaixo da linha pobreza. Esse contingente de miseráveis
representava, em 2004, segundo o IPEA
101
, quase 33,6 % da população total.
A este contingente de cidadãos miseráveis está sendo agregado, com a
participação do Estado-nação e por ação direta do sistema de proteção ao
crédito, (preponderante a Serasa S/A), um contingente de, como se verá
oportunamente, outros 40 milhões de cidadãos aptos e produtivos, excluídos da
vida social e econômica por serem cidadãos negativados, mediante critério de
mercado e, nesta condição, excluídos de todas as políticas públicas de acesso ao
crédito que visariam a, por princípio, propiciar inclusão social produtiva.
O Estado-nação, convertido convenientemente em mercado, perde a
função principal de assegurar a todos o bem-comum, abre-se espaço para o
alinhamento global, cego, inconseqüente, destrutivo. Constitui-se com a
participação efetiva do Estado a sociedade de consumo onde tudo ou quase tudo
se transforma em bem de comércio, inclusive os direitos inalienáveis da
cidadania.
Seção 3 Um Estado de consumo: discriminação, controle e punição
O consumismo traduz-se em uma espécie de extrativismo predatório,
destrutivo, de terra-arrasada
102
. A sociedade deve ser exaurida até às últimas
conseqüências, sem por em risco os extrativistas, exploradores, oportunistas,
sem território e sem pátria. Neste painel de amplas possibilidades a propaganda
induz o consumo desenfreado, impulsivo, imprevidente: tem-se que extrair o
100
IPEA IPEADATA, acesso público em: >http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?701951093<
101
IPEA. Link: >http://www.ipeadata.gov.br/ipeaweb.dll/ipeadata?701951093<
102
Terra arrasada: Tática da qual os russos se valeram contra a incursão napoleônica e hitlerista em seu
território, que consistia basicamente em avançar para o interior do país e, ao mesmo tempo, destruir tudo:
alimentos; acomodações deixando os invasores em condições as mais precárias.
57
máximo de todos os lugares, com indiferença e distanciamento. Veja-se, neste
sentido, inicialmente, a lição de BAUMAN
103
:
“Os operadores de capital de nossa época têm notável semelhança com os
proprietários de terras pré-modernos que viviam longe de suas
propriedades. Sua ligação com as localidades das quais retiram o
excedente de produção é, no entanto, ainda mais tênue do que os laços
que uniam aqueles proprietários fundiários e suas terras distantes. [...].
O poder do capital perde cada vez mais a sua materialidade, torna-se cada
vez mais ‘irreal’ quando visto a partir do significado que a realidade tem
para as pessoas que não integram a elite global e têm pouca chance de
juntar-se a ela. Uma nova habilidade para evitar, elidir e escapar substituiu
o engajamento da vigilância, treinamento e administração como recurso
primordial e essencial de poder. [...]. O custeio do controle do tipo
panóptipo é hoje considerado um gasto desnecessário e injustificável,
irracional mesmo, a ser descartado ou, melhor ainda, eliminado.”
Para essas sociedades de consumo, o Estado se confunde com o
mercado. E o mercado precisa de proteção do Estado, porque o consumidor
torna-se essencial ao mercado e ao Estado. O Estado, tal como o mercado,
também está em busca de metas: metas de inflação; metas de emprego; metas
de investimentos; metas de exportação; metas de ensino. O mercado e o Estado
reproduzem a busca de eficiência contábil. O balanço contábil do Estado, no
entanto, pouco revela sobre o desmonte das estruturas produtivas cada vez mais
inviabilizadas para suportar a continuidade desse extrativismo predatório,
destrutivo que se pretende duradouro. É necessário é imprescindível ao mercado
e ao Estado agir coordenadamente contra os consumidores indesejáveis: criam-
se os controles e com os controles as punições. Vejam-se, primeiro, os modos de
controle para depois, oportunamente, tratarem-se das punições. Enfim um elogio
ao Brasil, (será um elogio ou constatação de cooptação?!), vindo exatamente do
BID
104
:
“Os países latino-americanos em melhor situação são o Brasil, o Chile, a
Argentina e o Peru. O Brasil tem um registro de crédito solidamente
estabelecido, de que participa a maioria dos bancos. A empresa brasileira
Serasa é de longe o maior registro de crédito da América Latina, com
vendas anuais que atingem aproximadamente US$ 150 milhões. Além do
Serasa, o amplo sistema de associações comerciais do Brasil administra
um registro de crédito e uma lista de cheques sem fundos em cada Estado.
[...].
103
BAUMAN. Em busca da política. Op. Cit. p. 127/9.
104
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 180/9
58
É possível reduzir as assimetrias de informações mediante o
desenvolvimento dos serviços de consulta de crédito. Entretanto, para
poder garantir seu funcionamento é também necessário assegurar que as
informações neles contidas sejam confiáveis.”
Do ponto de vista do controle e da punição aos consumidores
insubordinados e indesejáveis, certamente, o BID, a FEBRABAN Federação
Brasileira dos Bancos, a Serasa e, de resto, o mercado financeiro, têm razão de
sobra para elogiar o Brasil. Tudo propicia, tudo converge, tudo conspira para um
sistema comercial coerente. O Brasil parece um grande mercado: em lugar de
cidadãos, postulando participação; consumidores, pedindo proteção. O ciclo da
exaustão se repete, indefinidamente, (ou pelo menos assim esperam os
defensores do consumismo): propaganda, consumo, miséria; propaganda,
consumo, miséria; propaganda, consumo, miséria. O controle, no entanto é
rigoroso, firme e forte, e conta com a participação decidida do Estado, através da
Secretaria da Receita Federal, tanto que na percepção de muitos cidadãos o
Estado, a Secretaria da Receita Federal e a Serasa, se confundem, como já
constatou o Ministério Público Federal
105
:
“O serviço CONFIRMEI nada mais é do que uma pesquisa nos bancos de
dados da Receita Federal do nome do portador de um determinado
número de CPF ou CNPJ. Fornecendo-se o número de CPF ou CNPF, o
banco de dados em poder da SERASA, devolve ao interessado a situação
cadastral e o nome da pessoa ou da empresa correspondente ao
documento fornecido. Todas essas informações, note-se, são
disponibilizadas através do convênio.
Já o produto IDENTIFICA realiza busca nos bancos de dados fornecidos
pela Receita Federal e mostra o número do documento correspondente ao
nome fornecido, da pessoa ou da empresa, além de outras informações
cadastrais.
Posto isto, torna-se evidente que o “IDENTIFICA” e o “CONFIRMEI
destinam-se, única e exclusivamente, a divulgar a terceiros, à título
oneroso, informações que a FEBRABAN arrecada junto ao Ministério da
Fazenda, sob compromisso de nunca divulgá-las a instituições financeiras
que não pertençam à rede bancária.
Cabe esclarecer bem que QUALQUER PESSOA JURÍDICA pode ter
acesso a tais informações, desde que esteja disposta a pagar o preço
pedido pelo SERASA.” (Sem grifos no original).
105
MPF/SP Sigilo Fiscal > http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < p. 5 e 6
59
A partir daí, como decorrência, vem a punição do Estado/mercado ou do
mercado/Estado. Como se depreende da resposta encaminha à CPI da
Serasa
106
, pelo Ministério do Trabalho, cuja transcrição parcial se reproduz
abaixo:
“Sendo assim, visando garantir a sustentabilidade de seus Programas de
Geração de Emprego e Renda e conseqüentemente minimizar seus riscos
de crédito, com vista a assegurar a viabilidade econômico-financeira do
FAT, este Ministério e as instituições financeiras federais buscaram os
serviços da SERASA que vem contribuindo não só nas informações
seguras de forma rápida e barata na análise de concessão de crédito,
mais, também, na criação de cadastro da grande maioria das micro,
pequenas e médias empresas que tinham na ausência desse instrumento
um fator histórico impeditivo de acesso ao crédito. Como resultado, ao
tomar crédito, essas empresas contam com maior rapidez e custos
menores, abrindo espaço para o crescimento do negócio e a geração de
empregos.
Em síntese, a observância de restrições cadastrais na entidade SERASA
pelas instituições financeiras tornou-se uma medida preventiva no estudo e
concessão do crédito, haja vista o risco de inadimplemento ou não retorno
dos capitais financiados ser exclusivamente dos Bancos.
No que se refere à flexibilização de se considerar essas restrições
impeditivas para a concessão dos financiamentos dos Programas de
Governo manifestamo-nos pela manutenção da exigência, pois anotações
cadastrais impeditivas já é um sinalizador da capacidade de honra dos
pagamentos dos financiamentos por parte dos beneficiários.
Pelas razões acima expostas, entendemos não haver nenhum
impedimento legal das instituições financeiras em considerar em suas
análises de concessão ao crédito o cadastro e as restrições da SERASA
S/A. Essa consulta tornou-se fundamental na liberação de financiamentos,
uma vez que minimiza o risco financeiro, avalia a capacidade de
pagamento dos mutuários, contribuindo para o efetivo apoio aos novos
empreendimentos, aumentando o impacto dos Programas no conjunto das
políticas sócio-econômicas do Governo Federal de combate ao
desemprego e estímulo à geração de Renda.”
Na seqüência, vem a avaliação consubstanciada no relatório final da CPI
da Serasa quanto à resposta que lhe foi solenemente encaminhada pelo
Ministério. A partir do comentário, pode-se compreender a convergência e a
coerência do Estado-nação com o mercado financeiro. Diante de tais evidências
parece elementar concluir que o resultado a que se chegará, sem dúvida, é
buscado, é pretendido, é desejado. Fecha-se o ciclo do Estado, consciente do
106
Câmara: >http://www2.camara.gov.br/comissoes/temporarias/cpi/encerradas.html/cpiserasa/relatoriofinal.html<
60
seu papel em face do mercado, agindo como agente de punição contra os
interesses da massa de trabalhadores. Depois da transcrição, retoma-se ao teor
do Relatório Final da CPI Serasa, aprovado pelos deputados federais:
“A manifestação do Ministério do Trabalho e Emprego destaca o que a Lei
n.º 8.352/91 prescreve, que os recursos do FAT se destinam
especialmente ao custeio do Seguro Desemprego e do Abono Salarial e
que os recursos aplicados pelos bancos são provenientes do depósito dos
recursos excedentes da Reserva Mínima de Liquidez. Como o risco de
crédito é todo das instituições financeiras, é razoável que as aplicações
sejam feitas obedecendo às cautelas bancárias de praxe, entre elas a
consulta aos cadastros de inadimplentes. A manutenção da observância é
defendida pelo Ministério do Trabalho e Emprego como forma de reduzir o
risco de inadimplemento e garantir o retorno dos capitais financiados.
Essas restrições estão expressas em resoluções do Conselho Deliberativo
do Fundo de Amparo do Trabalhador-CODEFAT, que regulam os
empréstimos no âmbito de diversos programas de geração de renda e
emprego.”
Essa postura institucional, (é postura do Estado), e como tal perpassa toda
a sua estrutura. De fato e de direito, portanto, todos os programas de inclusão
social, sem exceção, implementados com recursos do FAT, na área de crédito e
de microcrédito seguem o mesmo padrão de coerência institucional mediante
exclusão prévia dos cidadãos negativados pela Serasa. Esta é uma espécie de
cartilha do Estado-nação: espera-se, seja, em algum momento, explicitada e
compartilhada, com a sociedade da qual o Estado se nutre e tem o poder-dever
de assegurar, a todos, sem qualquer espécie de discriminação, o bem-comum
107
.
Veja-se neste sentido o que o Estado-nação, através do Ministério do
Trabalho e Emprego
108
, dita que, no caso do Programa PROGER - novo
empreendedor - financiado com recursos do FAT, SEBRAE deve desclassificar
“automaticamente” o empreendedor que mesmo tendo “possibilidades de
empreender” bem assim tendo “concepção de negócio” esteja negativado pela
Serasa.
Esta postura institucional destoa, completamente, do que se extrai do
discurso ético fixado pela Constituição Federal ao Estado-nação, especialmente,
no que se refere à ordem econômica e financeira disciplinada pelo artigo 170,
Relatório Final da CPI Serasa, acesso em 23/11/2006, p. 38/9
107
Em sentido idêntico: artigo 3º, IV, CF
108
MTE >http://www.mte.gov.br/trabalhador/fat/codefat/resolucoes/textos/res275.asp<
61
segundo o qual a ordem econômica está fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tendo por fim assegurar, a todos, existência digna,
conforme os ditames da justiça social, e - completa ainda a Constituição Federal
observados alguns princípios, dentre eles livre concorrência. Sobre estes temas,
vejam-se os comentários de SILVA
109
:
“A Constituição declara que a ordem econômica é fundada na valorização
do trabalho humano e na iniciativa privada. Que significa isso? Em
primeiro lugar quer dizer precisamente que a Constituição consagra uma
economia de mercado, de natureza capitalista, pois a iniciativa privada é
um princípio básico da ordem capitalista. Em segundo lugar, significa que,
embora capitalista, a ordem econômica dá prioridade aos valores do
trabalho humano sobre todos os demais valores da economia de mercado.
Conquanto se trate de declaração de princípio, essa prioridade tem o
sentido de orientar a intervenção do Estado, na economia, a fim de fazer
valer os valores sociais do trabalho que, ao lado da iniciativa privada,
constituem o fundamento não só da ordem econômica, mas da própria
República Federativa do Brasil (art. 1º, IV).”
Quanto ao princípio constitucional da livre concorrencia que, se fosse
acatado, impediria a contratação da Serasa, ensina SILVA:
110
“A livre concorrência está configurada no art. 170, IV, como um dos
princípios da ordem econômica. Ele é uma manifestação da liberdade de
iniciativa e, para garanti-la, a Constituição estatui que a lei reprimirá o
abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à
eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. (art. 173. §
4º). Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam
tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre
concorrência contra a tendência açambarcadora da concentração
capitalista.“
Para tentar uma arremate doutrinário, ainda sobre o tema, veja-se, a lição
de SILVA
111
A Constituição não é favorável aos monopólios. Certamente que o
monopólio privado, assim como os oligopólios e outras formas de
concentração de atividade econômica privada, é proibido, pois está
previsto que a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à
dominação dos mercados.
109
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 720
110
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 726/7
111
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 736
62
Sem embargo, quanto à lição de José Afonso da Silva, acima transcrita,
deve-se acrescentar, aqui, alguns elementos de pesquisa a serem detalhados,
oportunamente, em outras seções. A Serasa S/A é empresa oligopolista,
beneficiária do Estado: a) na transferência de dados sigilosos, (art. 5º, XII, CF), de
mais de 116 milhões de cidadãos; b) A Serasa é a maior empresa da América
Latina, com, 60% do mercado onde atua e, mesmo assim, todos os entes
públicos contratam-na, sem licitação; c) quase 40 milhões de cidadãos sujos ou
negativados estão impedidos pela Serasa/SPC de ter acesso a políticas de
crédito e de microcrédito que visam a, em tese, beneficiar toda a sociedade,
mediante a inclusão social produtiva de uma crescente massa de cidadãos aptos
para o trabalho, sem oportunidade de emprego formal.
Deve-se asseverar que o direito constitucional, no Brasil, garante que todos
são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ... (art. 5º, caput). A
efetiva divisão e discriminação entre cidadãos limpos e cidadãos sujos (ou
negativados) afronta a ordem democrático-constitucional. SILVA
112
:
“[...] a democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser
um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária
(art.3º,I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito
do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art.1º, parágrafo
único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no
processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque
respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o
diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de
convivências de formas de organização e interesses diferentes da
sociedade; a de ser um processo de libertação da pessoa humana das
formas de opressão que não dependem apenas do reconhecimento formal
de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da
vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno
exercício [...]”
A aspiração dos cidadãos inscreve-se na construção de uma sociedade
mais justa, mais solidária, com possibilidade efetiva de converter-se em uma
sociedade de promoção do bem-comum à semelhança do que a Constituição e a
doutrina desenham como um sonho e, assim espera-se, algum dia, será o sonho
de muitos.
112
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p.120
63
CAPÍTULO 3 SOCIEDADE
O termo sociedade é complexo e histórico, existe mesmo uma divergência
conceitual entre dois pensadores que lhe dedicaram atenção, (Karl Marx e
Antonio Gramsci), que poderia ser assim resumida: “enquanto Marx identifica
sociedade civil com base material, com infra-estrutura econômica; a sociedade
civil em Gramsci não pertence ao momento da estrutura, mas ao da
superestrutura”
113
.
Para efeitos deste estudo, no entanto, o termo sociedade tem a conotação
de organização social como substrato ou base e, ao mesmo tempo, destinatária
ou fim do Estado. Sociedade e Estado, neste sentido, estão em relação dialética
de permanente tensão: a sociedade reproduz o Estado e o Estado reproduz a
sociedade. Veja-se, neste sentido, a lição de AZAMBUJA
114
:
“No mundo moderno, o homem, desde que nasce e durante toda a
existência, faz parte, simultânea ou sucessivamente, de diversas
instituições ou sociedades, formadas por indivíduos ligados pelo
parentesco, por interesses materiais ou por objetivos espirituais. Eles têm
por fim assegurar ao homem o desenvolvimento das suas aptidões físicas,
morais e intelectuais, e para isso lhe impõem certas normas, sancionadas
pelo costume, a moral ou a lei.
A primeira em importância, a sociedade natural por excelência, é a família,
que o alimenta, protege e educa. As sociedades de natureza religiosa, ou
Igrejas, a escola, a Universidade, são tantas instituições em que ele
ingressa; depois de adulto, passa ainda a fazer parte de outras
organizações, algumas criadas por ele mesmo, com fins econômicos,
profissionais ou simplesmente morais: empresas comerciais, institutos
científicos, sindicatos, clubes, etc. O conjunto desses grupos sociais forma
a sociedade propriamente dita. Mas, ainda tomando neste sentido geral, a
extensão e a compreensão do termo sociedade variam, podendo abranger
os grupos de uma cidade, de um país ou de todos os países, e, neste
caso, é a sociedade humana, a humanidade.
Além dessas, há uma sociedade mais vasta do que a família, menos
extensa do que as diversas igrejas e a humanidade, mas tendo sobre as
outras uma proeminência que decorre da obrigatoriedade dos laços com
que envolve o indivíduo; é a sociedade política, o Estado.”
113
COUTINHO. Carlos Nelson, GRAMSCI. Um estudo sobre o pensamento político. Civilização Brasileira.
Rio de Janeiro: 1999. p. 121/2.
114
AZAMBUJA. Darcy, Op. Cit. p. 1/2.
64
A sociedade, organização social, estruturada na forma de Estado está em
condições, assim pressupõe-se, de apoiar os indivíduos que a compõem na
busca de objetivos comuns. Esses objetivos comuns devem ser explicitados,
percebidos e perseguidos pela sociedade. Claro, deve existir uma gama de
objetivos a serem atingidos por todas as sociedades, dentre esses objetivos deve
haver, como elemento básico, o sentido de preservação da própria sociedade que
se organiza e se estrutura, senão, nem haveria sentido falar-se em sociedade,
falar-se em Estado. Veja-se o pensamento de MARX e ENGELS
115
:
“A sociedade civil abrange toda troca material dos indivíduos dentro de
uma determinada fase de desenvolvimento das forças produtivas. Abrange
todo o comércio e indústria de uma determinada fase e, por isso, é mais
ampla que o Estado e a nação, se bem que, por outro lado, é necessário,
frete ao exterior, afirmar-se como nacionalidade e organizar-se no interior
como Estado. O termo sociedade civil apareceu durante o século XVIII,
quando as relações de propriedade não correspondiam mais à comunidade
antiga e medieval. A sociedade civil, como tal, só pode se desenvolver com
a burguesia; no entanto, a organização social que se desenvolve
imediatamente a partir da produção e do intercâmbio e que forma em todos
os tempos a base do Estado e do resto da superestrutura idealista, sempre
tem sido indicada por este mesmo nome.”
O Estado, em relação à sociedade, é um ente histórico, temporário,
precário. O Estado deve organizar-se como estrutura de poder com legitimidade e
força tendo em vista perseguir e alcançar os objetivos comuns da sociedade, esta
sim, mais perene e tendente à estabilidade, em processo lento de mudanças,
mesmo tendo-se presente uma sensação de instabilidade, uma certa falta de
chão, de solo firme, como registra SANTOS
116
:
“Há um desassossego no ar. [...]. Pode-se pensar que este desassossego
é típico dos tempos de passagem de século e, sobretudo, de passagem de
milênio, sendo por isso um fenômeno superficial e passageiro. A tese deste
livro é que, pelo contrário, o desassossego que experimentamos nada tem
a ver com lógicas de calendário. Não é o calendário que nos empurra para
a orla do tempo, e sim a desorientação dos mapas cognitivos, interacionais
e societais em que até agora temos confiado. Os mapas que nos são
familiares deixaram de ser confiáveis. Os novos mapas são, por agora,
linhas tênues, pouco menos que indecifráveis. Nesta dupla
desfamiliarização está a origem do nosso desassossego.
115
MARX. Karl, e ENGELS. Friedrich. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 63/4.
116
SANTOS. Boaventura de Sousa, A crítica da razão indolente. Op. Cit. 41
65
Vivemos, pois numa sociedade intervalar, uma sociedade de transição
pragmática. Esta condição e os desafios que nos coloca fazem apelo a
uma racionalidade ativa, porque em trânsito, tolerante, porque desinstalada
de certezas paradigmáticas, inquieta, porque movida pelo desassossego
que deve, ela própria, potenciar.”
Esse desassossego captado por SANTOS, parece estar relacionado à
denominada desterritorialização. De fato a perda de poder local gera uma
confusão generalizada: nos mapas cognitivos, já que o saber e a ciência parecem
insuficientes para dar respostas às inquietações; nos mapas políticos e neste
ponto há uma clara percepção da perda de poder local que BAUMAN designa por
desterritorialização qualitativa; nos mapas éticos e neste ponto específico a
situação tende à calamidade com a exacerbação do individualismo que gera um
jogo degradante do salve-se-quem-puder que afeta o sentimento de grupo, de
nação e de sociedade humana, permanentemente precarizadas por interesses
imperialistas que, segundo asseveram HARDT e NEGRI
117
, seria ingénuo tentar
deter ou enfrentar:
“Se o capitalismo e o imperialismo estão essencialmente relacionados, diz
a lógica, então toda luta contra o imperialismo (e contra as guerras, a
miséria, o empobrecimento e a escravização resultantes) precisa ser
também uma luta frontal contra o capitalismo. Qualquer estratégia política
destinada a reformar a configuração moderna do capitalismo para torná-lo
não imperialista é inútil e ingênua, porque o âmago da reprodução e da
acumulação capitalistas implica, necessariamente, a expansão imperialista.
[...] Os males do imperialismo não podem ser enfrentados a não ser pela
destruição do próprio capitalismo.”
Mas, a causa remota do desassossego tem a ver com a maneira peculiar
de estruturarem-se os Estados: são os denominados Estados Democráticos de
Direito criados a partir de Constituições formais. É necessário voltar ao
materialismo histórico ao menos para empreender uma análise cuja chave está,
assim parece, na função dialética tencionada, historicamente entre a base
produtiva (estrutura) e o aparato ideológico (superestrutura). Existe aí, nessa
relação dialética, uma grotesca ruptura quando se importam e se absorvem
internamente, em sociedades díspares, a mesma forma de cultura, hábitos,
saberes, ideologias. A cópia pela cópia, sem transferência da essência, do
substrato econômico, representada por estruturas produtivas que não se
66
conectam com a superestrutura. Pelo seu caráter histórico e pela sua excelência,
retome-se ao pensamento de Marx, sobre o tema:
118
“O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu de guia
para os meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim: na
produção social da própria existência, os homens entram em relações
determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; estas relações
de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção
constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se
eleva a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas
sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida
material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário é o seu ser
social que determina a sua consciência. Em certa etapa do seu
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em
contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais
do que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio
das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas
das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em
entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social. A transformação
que se produz na base econômica transforma mais ou menos lenta ou
rapidamente toda a colossal superestrutura. Quando se consideram tais
transformações, convém distinguir sempre a transformação material das
condições econômicas de produção que podem ser verificadas fielmente
com a ajuda das ciências físicas e naturais e as formas jurídicas,
políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas
ideológicas sob as quais os homens adquirem consciência desse conflito e
o levam até ao fim. Do mesmo modo que não se julga o indivíduo pela
idéia que faz de si mesmo, tampouco se pode julgar uma tal época de
transformação pela consciência que ela tem de si mesma. É preciso, ao
contrário, explicar esta consciência pelas contradições da vida material,
pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de
produção. Uma sociedade jamais desaparece antes que estejam
desenvolvidas todas as forças produtivas que possa conter, e as relações
de produção novas e superiores não tomam jamais seu lugar antes que as
condições materiais de existência dessas relações tenham sido incubadas
no próprio seio da velha sociedade. Eis porque a humanidade não se
propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois,
aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se
apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão
em vias de existir.”
Essa tensão permanente entre a superestrutura e a base, empresta à
superestrutura a legitimidade requerida para manter uma relação de interação
117
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 248
67
como causa e efeito no sentido estrutura/superestrutura e vice-versa. O
rompimento dessa tensão, ao que parece, tem sido motivado pela importação de
modelos prontos da qual a legislação é o principal exemplo. Mas, o rompimento
da tensão é algo perverso para a sociedade que passa a guiar-se por valores que
não são os seus e por culturas que não são as suas. A Constituição Federal é,
certamente, um primor de concepção em muitos aspectos, porém está desprovida
de história e, por isto mesmo está distante da sociedade e é vista com
desconfiança tantas são as suas dádivas, tantas são as suas promessas.
Seção 1 Concentração da pobreza
As marchas e contramarchas que beiram a sensação de involução social e
cultural, permitem perceber o desalento do cidadão cada vez menos predisposto
e menos apto a participar do Governo e do Estado e cada vez mais instado, pelo
próprio Estado, a converter-se em consumidor através de uma agenda econômica
mundial que faz dos Estados-nação, periféricos, verdadeiros síndicos da miséria
com o conseqüente declínio das suas soberanias que têm como sustentação
constitucional todo o poder que emana do povo
119
, de fato, cidadãos sem poder
de participação, quase sempre alienados ao papel de consumidores, efetivos ou
frustrados.
É o exercício de uma alternativa social bitolada pelo interesse do
mercado, cada vez mais limitante, como entende BAUMAN:
120
“O tradicional papel de agendador desempenhado pelo Estado político
volta-se atualmente de maneira cada vez mais estreita para o ‘controle
direto’ de certas categorias sociais [...] sobretudo, os pobres pós-
modernos, redefinidos como ‘consumidores frustrados’ e de maneira geral
todos as classes perigosas (potencialmente criminosas) que, não tendo
conseguido entrar na agenda do mercado, são suspeitas de estar loucas
para recorrer a alternativas que essa agenda deixou de fora. [...]
Os critérios da razão e da racionalidade da ação, adotados no passado
para guiar a atividade agendadora das modernas instituições políticas, não
se aplicam pois à agenda criada pelo jogo das forças de mercado. [...]
Esse código fez ver o mundo primordialmente como um conjunto de
objetos de consumo em potencial, seguindo o princípio do consumo,
estimula a busca de satisfação; e, seguindo o princípio da sociedade de
118
MARX, Karl. Prefácio’ a ‘Contribuição à Critica da Economia Política’, in MARX, K. e ENGELS, F.
História. (org. Florestan Fernandes). São Paulo: Ática, 1984. p. 233.
119
Artigo 1º, parágrafo único da CF/88: “todo o poder emana do povo ...”
120
BAUMAN, Zygmunt Em busca da política, p. 80
68
consumo, induz os indivíduos a ver o despertar dos desejos que clamam
por satisfação como a regra diretriz da vida de quem opta e como critério
de uma vida de sucesso, que valha a pena.”
Essa sociedade de consumo. Esse mercado confunde-se com o papel de
Estado, e, tal como percebe BAUMAN, o Estado, também no caso do Brasil, está
considerando os consumidores frustrados como potencialmente criminosos. Mas
esses consumidores frustrados, essas pessoas potencialmente criminosas são as
mesmas pessoas, são os mesmos cidadãos que legitimam o Estado, fazem parte
da organização social que é, por sua vez, a base da sociedade e do Estado e
com as quais, (pessoas/cidadãos) o Estado deve (poder-dever) exercer o objetivo
fundamental de garantir o desenvolvimento nacional, sem discriminação, [...] (art.
1º, III, CF).
A sofisticação da riqueza representada pela imensa coleção de
mercadorias, produzida a partir do capital fixo, transformou em párias quase
800.000 (oitocentos milhões) de pessoas encurraladas em bolsões de miséria em
todo o mundo. Segundo Vieira Liszt, citado por LIMA:
121
“Em 1990, 20 milhões de pessoas no mundo morreram por causa da
desnutrição. Quase 800 milhões de pessoas passaram fome no mundo, e
a cada minuto nascem na pobreza 47 bebês. [...] No Brasil, mais de meio
milhão de crianças de 5 a 9 anos trabalham praticamente de graça.”
Diante dessa encruzilhada, (entre consumidor frustrado e cidadão apático),
o trabalhador passou a ser considerado, individualmente, como o único
responsável pelo seu sucesso ou pelo seu insucesso. À multidão de 800 milhões
de excluídos da vida econômica, ‘os economicamente dispensáveis’, é também, e
sobretudo, negado o acesso a informação e ao conhecimento que lhes
possibilitaria a superação da condição indigna de existência.
BAUMAN registra:
122
“Como definiu recentemente Manuel Castells, o mundo se une hoje numa
série de redes superpostas: de bolsas de valores, canais de televisão,
computadores e Estados. As redes são locais de “fluxo” - de poder, capital
e informação um processo não mais essencialmente sujeito a coerções
espaciais e temporais. A experiência dos usuários da Internet dá a essa
definição o arcabouço cognitivo essencial.”
121
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 132
122
BAUMAN, Zygmunt Em busca da política, p. 57.
69
Para os Estados-nação e para as suas soberanias derivadas de uma
sociedade em camadas, a globalização “nada mais é que a extensão totalitária de
sua lógica a todos os aspectos da vida. Os Estados não têm recursos suficientes
nem liberdade de manobra para suportar a pressão”. (BAUMAN
123
). Resta à
democracia e à sociedade essa sensação de devaneio, entre uma ordem que
assegura direitos e uma desordem que a nega. Veja, no mesmo sentido, o alerta
de BAUMAN:
124
“Podemos também falar da democracia liberal que de fato existe, que
sempre estará aquém do ideal utópico e exibe característica que são
difíceis de ser assimiladas na noção de uma boa sociedade ou mesmo
características que tornam mais do que difícil transformar essa utopia em
realidade. Quer falemos de suas formas utópicas ou reais, podemos dizer
que a democracia liberal é uma ousada tentativa de realizar um equilíbrio
excessivamente difícil, tarefa que poucas sociedades assumiram em outros
tempos e lugares e que nenhuma conseguiu de fato materializar, quanto
mais tornar seus resultados seguros e duradouros.
A democracia liberal, tanto na sua versão visionária quanto na sua versão
prática, é uma tentativa de manter a eficiência política do Estado no seu
papel de guardião da paz e de mediador entre os interesses de grupo e
dos indivíduos, permitindo a livre formação do estilo de vida que quiserem
seguir. Na maior parte da história e na maioria das regiões do planeta,
sabe-se que esses dois objetivos estiveram em geral em total oposição.
Reconcilia-los não é façanha menor. Mesmo nas melhores condições.”
Se, como parece, os interesses do mercado, nos Estados liberais,
sobrepõem-se aos demais, é necessário antever o papel a ser desempenhado
nas economias em relação às populações e ao território dos países que estão
sendo forçados ao grande alinhamento político que transforma o fluxo de capital
em necessidade e justifica essa lógica de submissão:
125
:
“É verdade que muitos trabalhadores do mundo estão sujeitos a
migrações forçadas em circunstâncias terríveis que, em si mesmas,
dificilmente são libertadoras. [...].
Trabalhadores que fogem do Terceiro Mundo para o Primeiro em busca de
trabalho ou riqueza contribuem para prejudicar as fronteiras entre os dois
mundos. O Terceiro Mundo não desaparece, mas entra no Primeiro,
estabelece no seu coração como um gueto, comunidade de barracos,
favelas, continuamente produzido e reproduzido. Por sua vez, o Primeiro
Mundo é transferido para o Terceiro em forma de bolsas de valores e
123
BAUMAN, Zygmunt Globalização: as consequencias humanas. Op. Cit. 73
124
BAUMAN, Zygmunt Em busca da política, p. 157.
125
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 274/5.
70
bancos, corporações transacionais e tristes arranha-céus de dinheiro e
comando.”
Os processos migratórios, as correntes de imigrantes furando fronteiras
transpõe o capital humano mais apto para os centros de poder, literalmente
invadidos. Mas os consumidores impossibilitados de constituir os processos
migratórios permanecem em seus territórios por medo ou mesmo por
impossibilidade objetiva de furar as fronteiras. O fluxo é necessariamente restrito.
Seção 2 Os economicamente dispensáveis: fluxo de pessoas
A população economicamente dispensável está alijada do processo
produtivo e do mercado de consumo. Ela é formada por cidadãos esvaziados de
poder político, ainda que as Cartas Políticas, em todo o mundo, insistam em dizer,
como no caso do Brasil, que todo o poder emana do povo.
126
O Estado está,
regressivamente, sendo convertido em um grande condomínio de interesses
privados onde prepondera a linguagem do mercado financeiro e o cidadão é,
intencionalmente, tratado não como um indivíduo que participa, exige e denuncia,
(cidadão), mas como um consumidor que pede e depende de proteção. Nada
escapa da conversibilidade em dinheiro, como entendem HARDT e NEGRI:
127
“As grandes corporações [...] tendem a fazer dos Estados-nação
meramente instrumentos de registro de fluxo de mercadorias, dinheiro e
populações que põem em movimento. [...] A mais completa figura em
nosso mundo é apresentado da perspectiva monetária. [...] Não existe
nada, nenhuma ‘vida nua e crua’, nenhum panorama exterior, que possa
ser proposto fora desse campo permeado pelo dinheiro; nada escapa do
dinheiro. A produção e a reprodução são vestidos de trajes monetários.”
A economia, na globalização, precisa ser isentada do controle político
para que se tornem efetivas as regras de livre mercado e a livre movimentação do
capital e das finanças, com efeito diz BAUMAN “o significado primordial do
termo ‘economia’ é o de ‘área não política’”. O sentido e a importância desta
imposição é que o Estado continua BAUMAN - “não deve tocar em coisa
126
Conforme parágrafo único, artigo 1º, CF
127
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 51
71
alguma relacionada à vida econômica: qualquer tentativa nesse sentido
enfrentaria imediata e furiosa punição dos mercados mundiais.”
Enquanto o fluxo de riqueza é livre, o fluxo de pessoas é restrito e cabe
aos Estados-nação desempenhar o papel de síndico da miséria, controlando e
reprimindo o excedente populacional transformado em párias, encurralados em
bolsões de miséria dentro dos territórios submetidos à soberania dos Estados-
nação fracos, quase-Estados, síndicos da miséria. A partir dessa condição
imposta ao Estado-nação pelo capitalismo produtivo leve e pelo capitalismo
financeiro volátil, (em sórdida combinação), o trabalhador passou a ser
considerado, individualmente, como o único responsável pelo seu sucesso ou
pelo seu fracasso.
Para a multidão de 800 milhões de excluídos da vida econômica, no
mundo inteiro, é também, e sobretudo, negado o acesso à formação, à
informação e ao conhecimento que lhes possibilitaria, em tese, a superação da
condição indigna de existência.
Para dar um arremate parcial ao papel dos Estados-nação no resgate do
emprego e na construção da dignidade da classe trabalhadora ou, da multidão,
formada pelos economicamente dispensáveis, que passa a habitar o território sob
o qual constitui-se a soberania secundária e retórica dos Estados periféricos, é
preciso refletir sobre o jogo especulativo que assombra os poderes políticos
desses Estados-nação, a exemplo dos países do Hemisfério Sul.
Neste contexto parece relevante analisar a contribuição da universidade na
formação de atores socais e na difusão de novas culturas, autogestionárias,
autônomas ainda que residuais para desvendar realidades cada vez mais
complexas. A universidade pode legitimar-se perante a sociedade na medida em
que o conhecimento por ela produzido dirija-se à resolução de problemas
econômicos e sociais presentes.
Seção 3 Proletariado, multidão ou colapso na produção
Os sujeitos que estão na base do processo produtivo, as pessoas que
compõem a denominada estrutura ou base social produtiva constituem, ao
mesmo tempo, fatores de produção e mercado ao qual a produção da imensa
coleção de mercadorias que representa essa riqueza é destinada, para, em
72
etapas sucessivas, satisfazer a necessidade do sistema capitalista de encontrar
uma aplicação produtiva para a mais mais-valia que realizou, ou seja, transformar
os ganhos crescentes em novo capital a ser reinvestido, para repetir o ciclo de
acumulação, indefinidamente.
Portanto, a análise que aqui se pretende sintetizar visa ao encontro ou à
confrontação de dois conceitos captados da base no sistema capitalista de
produção: o conceito de proletariado, formulado essencialmente por MARX e
ENGELS, no início da revolução industrial que marcou a transição do regime
feudal para o sistema capitalista e o conceito de multidão, nesta fase do
capitalismo financeiro (que se caracteriza pela liquidez monetária) proposto por
HARDT e NEGRI, como uma força produtiva fluida, sem base territorial, em
permanente confronto com as barreiras físicas de controle de fluxo migratório: as
fronteiras.
A essência desta análise tende a captar o poder de influencia política e
social do proletariado que teria, segundo Marx, poder de arregimentação como
uma classe social emancipatória: proletários de todo o mundo uní-vos; ou,
segundo a tese atual que indica a multidão como sujeito político, na perspectiva
analisada por HARDT e NEGRI:
128
“precisamos investigar especificamente como
a multidão pode tornar-se sujeito político no contexto do Império”.
Sobre a força política como sujeito da história de emancipação ou sobre a
possibilidade de sujeito político hegemônico atribuído à classe proletária, (final do
regime feudal ao capitalismo mercantil) pode-se transcrever o seguinte texto
ilustrativo do pensamento de MARX
129
:
“Desintegrada a velha sociedade, de alto a baixo, por esse processo de
transformação, convertidos os trabalhadores em proletários e suas
condições de trabalho em capital, posto o modo capitalista de produção a
andar com seus próprios pés, passa a desdobrar-se outra etapa em que
prosseguem, sob nova forma, a socialização do trabalho, a conversão do
solo e de outros meio de produção em meios de produção coletivamente
empregados, e, conseqüentemente, a expropriação dos proprietários
particulares. O que tem que ser expropriado agora não é mais aquele
trabalhador independente, e sim o capitalista que explora muitos
trabalhadores.
128
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 418.
129
MARX. Karl, O Capital Critica da economia política: Livro I v. 2. Tradução Reginaldo Sant’Anna. Ed.
Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2003. p. 876/7
73
Essa expropriação se opera pela ação das leis imanentes a própria
produção capitalista, pela centralização dos capitais. Cada capitalista
elimina outro capitalista. Ao lado desta centralização ou da expropriação de
muitos capitalistas por poucos, desenvolvem-se, cada vez mais, a forma
cooperativa do processo de trabalho, a aplicação consciente da ciência ao
progresso tecnológico, a exploração planejada do solo, a transformação
dos meios de trabalho em meios que só podem ser utilizados em comum, o
emprego econômico de todos os meios de produção manejados pelo
trabalho combinado, social, o envolvimento de todos os povos na rede do
mercado mundial e, com isso, o caráter internacional do regime capitalista.
A medida que diminui o número dos magnatas capitalistas que usurpam e
monopolizam todas as vantagens deste processo de produção, aumentam
a miséria, a opressão, a escravização, a degradação, a exploração; mas
cresce também a revolta da classe trabalhadora, cada vez mais numerosa,
disciplinada, unida e organizada pelo mecanismo do próprio processo
capitalista de produção. O monopólio do capital passa a entravar o modo
de produção que floresceu com ele e sob ele. A centralização dos meios
de produção e a socialização do trabalho alcançam um ponto em que se
tornam incompatíveis com o invólucro capitalista. O invólucro rompe-se.
Soa a hora final da propriedade capitalista os expropriadores são
expropriados.
O modo capitalista de apropriar-se dos bens, decorrentes do modo
capitalista de produção, ou seja, a propriedade privada capitalista, é a
primeira negação da propriedade privada individual, baseada no trabalho
próprio. Mas a produção capitalista gera sua própria negação, com a
fatalidade de um processo natural. É a negação da negação. Essa
segunda negação não restabelece a propriedade privada, mas a
propriedade individual tendo por fundamento a conquista da era capitalista:
a cooperação e a posse comum do solo e dos meios de produção gerado
pelo próprio trabalho. [...]
Antes, houve a expropriação da massa do povo por poucos usurpadores;
hoje, trata-se da expropriação de poucos usurpadores pela massa do
povo.”
Esse é, ressalte-se, um pensamento maduro sob o qual MARX, ao atuar,
politicamente, certamente, teria refletido, em 1848, juntamente com ENGELS ao
escreverem o manifesto comunista com mensagem de exortação ao proletariado,
do qual se extraem alguns trechos, necessários à análise que aqui se
empreende:
130
“[...]. Ser capitalista significa ocupar não somente uma posição pessoal,
mas também uma posição social na produção. O capital é um produto
coletivo: só pode ser posto em movimento pelos esforços combinados de
muitos membros da sociedade, e mesmo, em última instância, pelos
esforços combinados de todos os membros da sociedade. O capital não é,
130
Manifesto Comunista: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/manifestocomunista.pdf
74
pois, uma força pessoal; é uma força social. Assim, quando o capital é
transformado em propriedade comum, pertencente a todos os membros da
sociedade, não é uma propriedade pessoal que se transforma em
propriedade social. O que se transformou foi apenas o caráter social da
propriedade. Esta perde seu caráter de classe. [...]
E vossa educação não é também determinada pela sociedade, pelas
condições sociais em que educais vossos filhos, pela intervenção direta ou
indireta da sociedade, do meio de vossas escolas etc.? Os comunistas não
inventaram essa intromissão da sociedade na educação, apenas mudam
seu caráter e arrancam a educação da influência da classe dominante.
As declamações burguesas sobre a família e a educação, sobre os doces
laços que unem a criança aos pais, tornam-se cada vez mais repugnantes
à medida que a grande indústria destrói todos os laços familiares do
proletário e transforma as crianças em simples objetos de comércio, em
simples instrumentos de trabalho. [...]
Os operários não têm pátria. Não se lhes pode tirar aquilo que não
possuem. Como, porém, o proletariado tem por objetivo conquistar o poder
político e erigir-se em classe dirigente da nação, tornar-se ele mesmo a
nação, ele é, nessa medida, nacional, embora de nenhum modo no sentido
burguês da palavra. [...]
O proletariado utilizará sua supremacia política para arrancar pouco a
pouco todo capital à burguesia, para centralizar todos os instrumentos de
produção nas mãos do Estado, isto é, do proletariado organizado em
classe dominante e para aumentar, o mais rapidamente possível, o total
das forças produtivas. [...]
Em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos
de classes, surge uma associação onde o livre desenvolvimento de cada
um é a condição do livre desenvolvimento de todos. [...]
Os proletários nada têm a perder a não ser suas algemas. Têm um mundo
a ganhar. PROLETÁRIOS DE TODO O MUNDO, UNI-VOS!”
A força política do proletariado no contexto do capitalismo industrial estava,
sobretudo, baseada na pesada infra-estrutura das fábricas e das denominadas
cidades industriais que se formavam. É preciso compreender que o momento
histórico vivenciado por MARX e ENGELS, na época do capitalismo industrial
está esgotado.
A denominada indústria pesada, (cidades industriais e complexos fabris)
está sendo substituída pela indústria leve, (formado por linhas de montagem). O
sistema capitalista de produção de mercadorias, hoje, está disperso
geograficamente. Além dessa dispersão geográfica o próprio capitalismo
industrial, de base produtiva, perde força para o capitalismo financeiro, de base
especulativa. Essa trajetória pode ser ilustrada, em breves linhas, a partir da
75
releitura que se faz, primeiro a partir de HARDT e NEGRI
131
, nos seguintes
trechos extraídos de IMPÉRIO:
Indústria pesada
132
:
“Os processos de modernização e a transição para o paradigma industrial
provocaram a intensa agregação de forças produtivas e de migrações em
massa de força de trabalho para centros que se tornaram cidades fabris,
como Manchester, Osaka e Detroit. A eficiência da produção industrial em
massa dependia da concentração e da proximidade de elementos a fim de
criar o local da fabrica e de facilitar os transportes e as comunicações.”
Indústria leve
133
:
“Na transição para a economia informacional, a linha de montagem foi
substituída pela rede como modelo de organização da produção,
alternando as formas de cooperação e comunicação dentro de cada lugar
que produz e entre os lugares de produção. [...].
As redes de informação também liberam a produção das coações
territoriais, na medida em que tendem a por o produtor em contato direto
com o consumidor, independente de distancia entre eles. Bill Gates, co-
fundador da Microsoft Corporation, leva esta tendência ao extremo quando
prevê um futuro no qual as redes vão superar inteiramente as barreiras à
circulação e permitir o surgimento de um capitalismo ideal, ‘livre de atritos’;
‘A superestrada da informação ampliará o mercado eletrônico e fará dele o
intermediário definitivo, o revendedor universal’.”
Capitalismo financeiro: fluidez.
O capitalismo financeiro é a nova fase do processo de acumulação do
capital. O dinheiro, o capital financeiro, deixa o seu posto de intermediário dos
meios de intercambio, como meio de troca, e, ele próprio, o dinheiro, passa a ser
mercadoria, em um processo de ataque a mercados externos que BAUMAN
134
classifica como uma praga:
“Vitor Hugo faz uma de suas personagens, Enjolras, exclamar com tristeza
pouco antes de morrer numa das muitas barricadas do século XIX: “O
século XX será feliz”. Sucedeu, comenta Renet Passat, que “as mesmas
tecnologias imateriais que sustentaram essa promessa implicam
simultaneamente a sua negação”, em especial quando “combinadas com a
frenética liberalização planetária das trocas e movimentos de capital”.
131
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império.
132
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 315
133
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 316/7
134
BAUMAN, Zygmunt. Globalização: As conseqüências humanas. Op. Cit. p. 52/53
76
Tecnologias que efetivamente livram do tempo e do espaço precisam de
pouco para despir e empobrecer o espaço. Elas tornam o capital
verdadeiramente global; fazem com que todos aqueles que não podem
acompanhar nem deter os novos hábitos nômades do capital observem
impotentes e se indaguem de onde surgiu a praga.” (sem grifos no
original).
Essa praga, (o capitalismo financeiro, predatório e parasitário), está, no
entanto, em companhia de outras pragas que formam o cassino global
eletrônico” estruturado em uma série de “redes superpostas: de bolsas de
valores, canais de televisão, computadores e Estados” (BAUMAN: 2000). Essas
redes superpostas, dão sustentação umas às outras como locais de fluxo - de
poder, capital e informação repartido dividendos econômicos e políticos entre si.
Chega-se, assim, ao momento de apresentar uma síntese do pensamento
de HARDT e NEGRI, relativamente à possibilidade de o poder ser assumido por
um novo sujeito político, em lugar do proletariado: a cidadania global seria
assumida pela multidão, ao desenhar uma nova cartografia:
135
“A tarefa da multidão, entretanto, embora seja clara no nível conceitual,
continua muito abstrata. Que práticas específicas e concretas estimularão
esse projeto político? A esta altura, não saberíamos dizer. O que podemos
ver, todavia, é o primeiro elemento do programa político para a multidão
global, uma primeira demanda política: cidadania global. (sem grifo no
original).
Durante as manifestações de 1966 pelos sans papiers, os estrangeiros
sem documentação exigiam que residiam na França exigiam “papiers pour
tuos!” Documentos de residência para todos significa, em primeiro lugar,
que todos deveriam ter direitos plenos de cidadania no país onde vivem e
trabalham. Não se trata de demanda política utópica ou irrealista. A
demanda é simplesmente que o status jurídico da população seja
reformado, para acompanhar as reais transformações econômicas dos
últimos anos. O próprio capital tem exigido a mobilidade crescente a força
de trabalho, e migrações contínuas através de fronteiras nacionais. A
produção capitalista nas regiões dominantes (Europa, Estados Unidos e
Japão, além de Cingapura, Arábia Saudita e outros lugares) é assaz
dependente do fluxo de trabalhadores das regiões subordinadas do
mundo. Por isso a demanda política exige que o fato da produção
capitalista seja reconhecido juridicamente e que todos os trabalhadores
recebam plenos direitos de cidadania. Com efeito, essa demanda política
insiste na pós-modernidade do princípio constitucional fundamentalmente
moderno que vincula direito e trabalho, e por isso contempla com a
cidadania o trabalhador que cria o capital. [...]
135
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 423/4
77
Se num primeiro momento a multidão requer que cada estado reconheça
juridicamente as migrações necessárias ao capital, num segundo momento
ela precisa exigir o controle sobre os próprios movimentos. As massas
precisam ser capazes de decidir se, quando e para onde se movem.
Precisam ter o direito, também, de ficar parada e apreciar um lugar, em vez
de ser forçadas a viver permanentemente em marcha. O direito geral de
controlar seu próprio movimento é a demanda definitiva da cidadania
global. Essa demanda é radical na medida em que desafia o aparato
básico de controle imperial sobre o rendimento e a vida da multidão.
Cidadania global é o poder do povo de se reapropriar do controle sobre o
espaço e, assim, de desenhar a nova cartografia.”
O processo de reprodução da multidão, (como sujeito político), no entanto,
encerra, assim parece, um subproduto indesejável e indesejado ao gerar
excedentes populacionais fixos, economicamente desnecessários, como na
fase agonizante do feudalismo. Pode-se ver, nos dias atuais, a produção de um
excedente populacional local que se torna um estorvo ao sistema produtivo
vigente. Disso resulta degradação social, ambiental e cultural já que esse
excedente populacional é formado por consumidores frustrados submersos na
cultura capitalista financeira, (arrogante e predatória), no comando de redes de
dominação de povos inteiros que aspiram por dignidade e por cidadania como as
grandes promessas da pós-modernidade.
Ao que parece, nem o proletariado teve o poder emancipatório, nem a
multidão o terá. A emancipação deve dar-se pelo colapso do sistema capitalista
por exaurimento, (esgotamento por inanição), do capital produtivo literalmente
sugado pelo capital financeiro - especulativo e parasitário - que, à semelhança da
Igreja Católica Romana, no Sistema Feudal agonizante, prega o ócio e amealha,
(sem nada produzir) a riqueza gerada por todo o mundo a partir de um processo
especulativo que está apenas em expansão, tendo por mecanismo expropriatório
o dinheiro cada vez mais líquido, (fluído) movimentado em volumes que LIMA
136
classifica como uma soma “assombrosa” de 1,2 trilhões de dólares por dia, e que
- segundo o mesmo autor - esse volume de transação meramente financeira,
ultrapassa as transações físicas, ou seja, o fluxo físico comercial, em “mais de
cinqüenta vezes”.
136
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 142
78
Este processo especulativo tende a exaurir-se porque é improdutivo e
parasitário. O ser parasitário que nada produz, mas que suga o outro ser
produtivo - tende a matar o seu hospedeiro. Essa é uma questão para outro
momento, cabe, aqui, por enquanto, deixar evidente a contradição interna em
gestação ou, como entendem HARDT e NEGRI
137
, uma metamorfose:
“O espaço da comunicação está completamente desterritorializado. É
absolutamente outro com relação aos espaços residuais que analisamos
em termos de monopólio de força física e da definição de medida
monetária. Eis aqui uma questão não de resíduo mas de metamorfose:
uma metamorfose de todos os elementos de economia política e teoria de
Estado. Comunicação é a forma de produção capitalista na qual o capital
teve êxito em submeter a sociedade inteira e globalmente ao seu regime,
suprimindo todas as alternativas. Se algum dia alguma alternativa puder
ser proposta, ela terá de surgir de dentro da sociedade da submissão real
e demonstrar todas as contradições que existem no coração dela.”
Este é um tema que merecerá reflexão e aprofundamento para tentar-se
vislumbrar o que está em vias de gestação, qual a tendência e a amplitude dessa
metamorfose como uma alternativa emancipatória, antes do proletariado,
(MARX), agora da multidão (HARDT e NEGRI), ou uma terceira via. Qual?. Um
colapso do sistema produtivo, em decorrência do previsível exaurimento pela
ação parasitária do capitalismo financeiro que apenas apropria riqueza, sem nada
produzir?
137
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 368.
79
PARTE II CIDADANIA
Tal como a dignidade da pessoa humana, a cidadania é um dos
fundamentos sob o qual se assenta o Estado Democrático de Direito. A
Constituição, (art. 3º, II), expressamente consagra como um dos fundamentos da
República Federativa do Brasil, a cidadania.
Do ponto de vista do Direito positivo atual, entende-se cidadania como a
condição da pessoa natural que como membro do Estado-nação, encontra-se no
gozo dos direitos e, portanto, em condições de participar da vida política, votando
ou sendo votado. Os direitos de cidadania são designados por direitos políticos,
como assinala SILVA
138
:
“[...] o direito democrático de participação do povo no governo, por seus
representantes, acabara exigindo a forma de um conjunto de normas legais
permanentes, que recebera a denominação de direitos políticos.
A Constituição traz um capítulo sobre esses direitos, no sentido indicado
acima, como conjunto de normas que regula a atuação da soberania
popular (art. 14 a 16). Tais normas constituem os desdobramentos do
princípio democrático inscrito no art. 1º, parágrafo único, quando diz que o
poder emana do povo, que o exerce por meio dos seus representes eleitos
ou diretamente.”
Essa racionalização do direito ao associar poder (todo o poder), com povo
e com participação do povo desconsidera os saltos conceituais que estão
embutidos nessa formulação. Esse jogo de palavras carece de sentido prático se
se considerar que o poder revelado pelo povo, ainda que coativamente
consultado, (no Brasil, o voto é obrigatório), está permanentemente mesclado por
interesses de grupos hegemônicos que controlam a comunicação de massa e
ditam a vontade do povo. Por outro lado, mesmo esse poder intermediado pelo
povo, contém sérios lapsos, pois os representantes eleitos pelo povo agem, no
processo de formação da vontade do povo, mediante as leis que elaboram e
essas leis estão repletas de interesses de grupos hegemônicos que atuam a partir
de lobbies diretamente nas casas parlamentares. Essa constatação conduziu ao
que se convencionou denominar de constitucionalização dos direitos, como
ensina MARINONI
139
:
138
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 139
139
MARINONI. Luiz Guilherme. Op. Cit. pp. 21 e 22
80
“[...] a própria história se encarregou de mostrar a arbitrariedade,
brutalidade e discriminação procedidas por leis formalmente perfeitas. [...]
De modo que se tornou necessário resgatar a substância da lei e, mais do
que isso, encontrar instrumentos capazes de permitir a sua limitação e
conformação aos princípios de justiça. Tal substância e esses princípios
tinham que ser colocados em uma posição superior e, assim, foram
infiltrados nas Constituições. [...] A assunção do Estado constitucional, se
ainda permite falar de princípio de legalidade, exige que a ele se dê uma
nova feição, compreendendo-se que, se antes esse princípio era formal,
agora ele tem conteúdo substancial, pois requer a conformação da lei com
a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais.”
Outra modalidade permanente de influencia na vontade popular é a que os
grupos hegemônicos sedimentam na sociedade a partir de redes de influencia
global que assumem e tutelam, inclusive Estados, conforme se vislumbra na
descrição de BAUMAN
140
.
“Os mecanismos por traz da fabricação da incerteza e da insegurança são
amplamente globalizados, estando portanto fora do alcance das
autoridades estadias eleitas. Como definiu recentemente Manuel Castells,
o mundo se une hoje numa série de redes superpostas: de bolsas de
valores, canais de televisão, computadores e Estados. As redes são locais
de fluxo - de poder, capital e informação um processo não mais
essencialmente sujeito a coerções espaciais e temporais. [...]. Vivemos, diz
Castells, numa sociedade de classes sem classes, num “cassino eletrônico
global” no qual o capital e o poder escapam para o hiperespaço da pura
circulação e já não estão incorporados às classes capitalista e dirigente. A
política, por seu lado, continua sendo, como antes, um assunto
essencialmente local - e uma vez que a linguagem da política é a única
em que podemos falar de curas e remédios para as misérias e
preocupações comuns, a tendência natural da classe política é buscar
explicações e tratamento numa área próxima ao território domestico da
experiência cotidiana.”
Os lapsos conceituais, encerrados na expressão poder do povo, enfrentam
ainda alguns obstáculos que foram captados por HABERMAS
141
:
“Os direitos humanos e o princípio da soberania do povo formam idéias em
cuja luz ainda é possível justificar o direito moderno; e isso não é mera
casualidade. Pois a essas idéias vêm somar-se os conteúdos que
sobrevivem, de certa forma, depois que a substancia normativa de um
ethos ancorado em tradições metafísicas e religiosas e passa pelo crivo de
fundamentações pós-tradicionais. Na medida em que as questões morais e
140
BAUMAN, Zygmunt Em busca da política. Op. Cit. p. 57
141
HABERMAS. Jürgen. Op. Cit. p. 133
81
éticas se diferenciam entre si, a substancia normativa, filtrada
discursivamente, encontra a sua expressão na dimensão da
autodeterminação e da auto-realização. Certamente os direitos e a
soberania do povo não se deixam subordinar linearmente a essas duas
dimensões. Entretanto, existem afinidades entre esses dois pares de
conceitos, que podem ser acentuadas de modo mais ou menos intenso. As
tradições políticas surgidas nos Estados Unidos e caracterizadas como
liberais e republicanos interpretam os direitos humanos como expressão de
uma autodeterminação moral e a soberania do povo como expressão da
auto-realização ética. Nessa perspectiva, os direitos humanos e a
soberania do povo não se apresentam como elementos complementares, e
sim, concorrentes.”
Deve-se acrescentar ainda que, na hora da execução, a vontade da lei,
inicialmente, vontade do povo - captada pelos representantes do povo de onde
todo o poder emana ainda sofre déficit’s que recomendam o retorno à aplicação
dos direitos mínimos assegurados pela Constituição. Em suma: a conquista de
direitos políticos, direitos de cidadania, portanto, está na raiz de muitas lutas e
passou, como toda conquista por direitos, por um processo histórico lento e
penoso. Para fugir dos engodos plantados na legislação ordinária, sob aberta e
permanente influencia de grupos e lobbies, é necessário centrar a atenção nos
direitos de cidadania, constitucionalizados, como forma de tornar exigíveis de
alguma forma direitos conquistados através da história da humanidade.
82
CAPÍTULO 1 FUNDAMENTOS DA CIDADANIA
As conquistas humanas, ao longo de séculos, relativamente aos
denominados direitos de cidadania, estão em xeque. Nesta seção, busca-se
resgatar, em breve síntese, os elementos constitutivos da crise atual e da
trajetória histórica de tudo que foi construído e que, atualmente está sob ameaça
de destruição. Uma destruição rápida e avassaladora. Inicia-se pela a advertência
de SINGER:
142
“A polarização e extorsão econômicas, típicas da economia mundial
contemporânea, pôs em questão, no final do século XX, o direito à
autodeterminação nacional universalmente admitido depois da Segunda
Guerra Mundial, levando países e subcontinentes inteiros ao limiar da
dissolução nacional. Um quarto de século de “neoliberalismo” destruiu
conquistas sociais a uma suposta (e quase nunca verificada) “eficiência
econômica”. O século que concluiu acabou pondo a cidadania efetiva, e a
autodeterminação nacional, diante de uma alternativa cada vez mais clara:
sua destruição, ou sua vigência apenas formal, no quadro do regime social
existente; ou sua vigência e desenvolvimento efetivos num regime social
completamente diverso, baseado em uma total reorganização econômica
em favor e realizada pelos trabalhadores e as minorias populares do
mundo.”
Por tudo o que se tem coletado e apresentado, no âmbito deste estudo,
pode-se perceber que a destruição opera-se a passos largos, perceptíveis, e, em
grande medida por ação deliberada do Estado.
Neste sentido - como já se tem registrado - os recursos do Fundo de
Amparo ao Trabalhador, no valor de 116 bilhões de reais, em 2005, estão sendo
usados de forma especulativa em benefício de grupos de interesse incrustados e
alojados no Estado, como seres predatórios que se organizam para formatar e
oferecer produtos”, mercadorias, bens de comércio que têm como insumo os
dados sigilosos (art. 5º, XII, da CF) confiados por todos os cidadãos brasileiros ao
Estado, sob guarda e proteção da Secretaria da Receita Federal.
O êxito na produção, exposição, propaganda massiva, comercialização e
venda em larga escala - 3,5 milhões de negócios por dia, de produtos constituídos
por dados sigilosos, (art. 5º, XII, da CF) de todos os cidadãos - alastra-se por
práticas atribuídas ao Estado, como as diversas resoluções do CODEFAT, tendo,
83
dentre outros beneficiários, a Serasa S/A, no papel de instância de julgamento,
condenação e execução, sem direito de defesa, com possibilidade concreta de
acompanhar, aferir e deliberar, em tempo real, sobre a honra, a imagem, o nome,
a conduta pessoal de mais 116 milhões de cidadãos. Como se pode inferir a partir
do MPF no Estado de São Paulo: a cidadania, no Brasil, transformou-se, com
efetiva participação do Estado, em bem de comércio, lucrativo e próspero:
143
“Em suma, a SERASA oferece, a qualquer pessoa jurídica interessada,
informações que a Receita Federal disponibilizou sob condição de sigilo.
Mais ainda, viola o convênio de forma deliberada e consciente, visando
unicamente os vultosos lucros provenientes da venda das informações.”
Como já se teve oportunidade de deixar registrado, ao longo deste estudo,
todos os cidadãos brasileiros fazem parte do cadastro de dados da Serasa,
embora não sejam seus consumidores. A Serasa, simplesmente, não tem
contrato com pessoa natural, os contratos que faz são com entidades públicas e
privadas, como o Ministério Público Federal de São Paulo, deixou evidenciado em
Ação Civil Pública:
144
“Cabe esclarecer bem que QUALQUER PESSOA JURÍDICA pode ter
acesso a tais informações, desde que esteja disposta a pagar o preço
pedido pelo SERASA.
É isso o que anuncia a SERASA na Internet e em seu material publicitário,
muito embora tente dar impressão em contrário. Informa, através de
publicidade do tipo “perguntas e respostas”, que:
Qualquer pessoa pode comprar os serviços da SERASA?
Não. A SERASA relaciona-se comercialmente apenas com instituições
financeiras, Empresas e Entidades de Classe, ou seja, pessoas jurídicas
de todos os segmentos de atuação. (www.serasa.com.br).” (Com grifos no
original).
Os documentos constantes do anexo servem para, diante de outros
elementos constantes desta pesquisa, ordenar algumas informações relativas ao
roteiro de violação dos diretos do universo de cidadãos brasileiros: 1) A
FEBRABAN pede, por ofício, dirigido à SRF, datado de 20 de março de 1998, “em
142
SINGER. Paul, in PINSKY Jaime e PINSKY Carla Bass, (orgs.) História da Cidadania. Contexto. 3ªed.
São Paulo: 2005. p. 339
143
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso em 26/11/2006. p. 6
144
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso em 26/11/2006. p. 6
84
prosseguimento aos entendimentos” os dados sigilosos, tendo como justificativa
possibilitar aos bancos o cumprimento ao que determinado pela resolução nº
2025 de 24.11.93, do Conselho Monetário Nacional”; 2) A SRF, mediante
convênio, libera o universo dos dados sigilosos solicitados; 3) A Serasa passa a
vender informações cadastrais de mais de 116 de cidadãos brasileiros, por ela
denominados consumidores; 4) Para completar o quadro de desordem e violação
explicita, o imaginário coletivo do Leão do Imposto de Renda é utilizado pela
Serasa, como idéia-força:
145
“[...] em toda a consulta, é efetuada a confirmação da Razão Social ou do
nome correspondente ao documento consultado, por meio do CADASTRO
SERASA DE CONFIRMAÇÃO DE DOCUMENTOS, composto pelo
CADASTRO FORNECIDO À PELA SERASA PELA RECEITA FEDERAL.”
Como é fácil perceber, os clientes da Serasa são pessoas jurídicas que
compram dados sigilosos referentes aos cidadãos. Os dados sigilosos dos
cidadãos são mercadorias vendidas e compradas como bens de comércio. Neste
sentido, registre-se uma das argumentações dentre muitas outras expostas pelo
Ministério Público Federal no Estado de São Paulo, em Ação Civil Pública:
146
“Em suma, as informações que são entregues à Receita Federal, com a
finalidade de coibir a fraude tributária e a sonegação fiscal não podem ser
vendidas a terceiros, como vem ocorrendo através da comercialização das
informações sigilosas recebidas da Receita pela FEBRABAN e SERASA.
Em se divulgando tais dados, estar-se-á violando princípios fundamentais
da dignidade e da personalidade humana, gerando graves danos de ordem
material e moral, sem mencionar, é claro, o grande risco em que se coloca
o cidadão comum, que pode ter informações de ordem privada livremente
acessadas por oportunistas ou até mesmo criminosos.”
A partir de agora, quando já se deixou consignado, a violação de direitos
de cidadania do universo de cidadãos brasileiros, parte-se para a releitura, (em
síntese), quanto ao processo histórico da sua construção. De fato, a elaboração
do conceito de cidadania, bem assim o reconhecimento de direitos de cidadania,
foi um longo percurso histórico. MONDAINI:
147
145
Ata notarial, anexo 3 SRF presente em toda consulta feita à Serasa
146
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso em 26/11/2006. p. 10.
147
MONDAINI. Marco, in História da Cidadania. Op. Cit. p. 115
85
“Acompanhando a transição do feudalismo ao capitalismo na Europa
centro-ocidental, uma nova visão de mundo se impôs de forma
progressiva. Os processos de secularização, racionalização e
individualização foram jogando por terra o tradicionalismo embutido na
milenar percepção teológica das coisas, alimentada pela Igreja Católica
Romana. A partir de então, a legitimidade de uma sociedade hierarquizada
fundada em privilégios de nascença perdeu força. [...]
A decadência da noção de predestinação orientou, em grande medida, o
avanço irresistível da modernidade, emoldurada pelos acontecimentos que
se desenrolaram entre a crise da sociedade feudal no século XIV e as
revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. O primado resignado da fé
recuou diante da força crítica e otimista do saber científico. [...]
Tal projeto civilizatório não podia ser conivente com um corpo ético que, de
uma parte, recomendava aos trabalhadores pobres do campo a aceitação
passiva do sofrimento, uma vez que este trazia a purificação e o caminho
seguro para os céus, e que, de outro lado, tranqüilizava a consciência dos
nobres (e do próprio clero) ao fomentar a mais profunda ociosidade.”
Com o colapso do sistema feudal e com a formação da classe burguesa,
(cidade) em substituição à nobreza, formada por senhores feudais, (campo)
surgem, historicamente, os elementos que se constituiriam no combustível social
a ser utilizado, nos movimentos liberatórios designados por Revoluções de onde
se originaram as conquistas de direitos aos cidadãos.
Esses direitos de cidadania, embora tenham sido conquistados a partir de
disputas, lutas, conflitos que atravessaram séculos, são, hoje, reconhecidos,
pacificamente, como direitos fundamentais da humanidade e são, portanto, na
sua essência, um legado, uma herança que está sendo dilapidada pela onda
avassaladora do Estado neoliberal orientado para satisfazer os caprichos
insaciáveis do mercado.
Essas revoluções das quais resultaram conquistas, para toda a
humanidade e que são hoje reconhecidas, mansa e pacificamente, pelas
Constituições de diversos países, inclusive do Brasil, são demarcadas, via de
regra, por convulsões sociais. Na lição de MONDAINI
148
:
“A história do desenvolvimento dos direitos do citadino, a evolução da
cidadania na Europa centro-ocidental, transcorre há pelo menos séculos
de acirrados conflitos sociais -, relacionada à conquista de três conteúdos
de direitos, diversos entre si: os direitos civis, no século XVIII; os direitos
políticos, no século XIX; e os direitos sociais, no século XX.
148
MONDAINI. Marco, in História da Cidadania. Op. Cit. p. 116
86
Junto a tais direitos, novas formas de Estado também foram se
constituindo nesses três séculos, novas funções estatais indicadoras de
uma relação dinâmica entre indivíduos, sociedade e aparelho estatal.”
O tema é vasto e profundo, mas faz-se necessário abordar em breves
linhas os três movimentos históricos de conquistas de direitos de cidadania: a
Revolução Inglesa; a Revolução Americana; a Revolução Francesa.
A Revolução Inglesa, tendo à frente dois grandes filósofos: Thomas
Hobbes e John Locke. Em Hobbes, as teorias que sustentavam a idéia do direito
divino transferido diretamente aos monarcas, (segundo o clero, representante de
Deus, na terra), perdem força e são substituídas por uma outra idéia de cunho
imanente: o contrato social. Segundo a lição de MONDAINI
149
“O caráter absolutista do contratualismo hobbesiano torna-se explicito à
medida que caracteriza o seu “estado da natureza” como uma situação
marcada pela existência de homens livres e iguais, mas tão livres e iguais
que não possuem freios às suas ações, dando assim forma a um conflito
generalizado, “uma guerra de todos os homens contra todos os homens”,
onde “um é o lobo do outro”.
Com suas vidas permanente ameaçadas, os homens tomam a decisão de
firmar um pacto que preservasse o “direito à vida” em troca da liberdade
individual. Os homens abrem mão da sua individualidade, colocando-a
plenamente nas mãos de um terceiro o Estado-Leviatã que passa a ter
a única obrigação de protegê-los.”
A teorização de Hobbes, foi publicada em 1651 e representa, no campo
das idéias, a superação do poder originário de Deus que era transmitido, pela
Igreja, aos reis; pelo poder originário do povo, mas, igualmente, transmitido ao
Rei, mediante um pacto de submissão.
O passo seguinte, foi a obra de Locke, ao transformar conceitualmente o
pacto de submissão em pacto de consentimento e, com este passo decisivo,
crava no coração do Estado, a era dos Direitos Humanos, ao substituir o
argumento vigente, (desde à Idade Média até Hobbes) de poder divino, pelo
poder do povo. Veja-se, neste sentido, a análise de MONDAINI
150
149
MONDAINI, Marco. in História da Cidadania. Op. Cit. p. 129/130.
150
MONDAINI, Marco. in História da Cidadania. Op. Cit. p. 130.
87
Foi precisamente na ultrapassagem dessa fronteira que se constituíram os
primeiros passos daquilo que chamamos comumente hoje de “direitos
humanos”. Uma fronteira ultrapassada exatamente em meio ao
revolucionário século XVII inglês. Uma fronteira que, ultrapassada, nos
abriu a possibilidade histórica de um Estado de direito, um Estado de
cidadãos, regido não mais pois um poder absoluto, mas sim por uma Carta
de Direitos, um Bill of Rights. Uma nova era descortina-se, então, para a
humanidade uma era de Direitos.”
Com a Revolução Americana, (tendo como referencia o ano de 1776), é
dado mais um novo passo histórico em prol do fortalecimento dos direitos
humanos consubstanciados como direito de participação na formação do Estado.
Os direitos de cidadania conquistados através da Revolução Americana são
direitos de proteção do cidadão em oposição ao Estado, tendo como bases: o
pensamento de Locke sobre o poder do povo e a necessidade de resistência
contra as “iniqüidades” do novo Estado, que então se formava, e que deveria
orientar-se pelas garantias de igualdade na aspiração dos direitos inalienáveis à
vida, à liberdade e à felicidade que se articulam com a necessidade de defesa,
(atribuída ao Estado), dos interesses internos, comerciais, opostos à Europa
excessivamente dividida e em guerras freqüentes. Como registra KARNAL
151
“Se Locke foi o pano de fundo intelectual do movimento, o panfleto de
incendiário de Thomas Paine foi o produto de maior difusão. No texto ele
consagra uma visão de que o Estado não deve ser confundido com a
sociedade e que o Estado nasce da iniqüidade. Reafirma o mesmo dado
de Locke: os governos foram fundados para o estabelecimento da
felicidade comum. Diante das observações de que a Inglaterra seja a
Pátria Mãe, ele afirma que isso torna suas atitudes repressoras com as 13
colônias ainda piores. [...].
Por fim, reforçando um traço do chamado excepcionalismo americano,
afirma que a Europa está excessivamente dividida e as guerras freqüentes
acabam prejudicando o comércio com as colônias.[...].
Os documentos fundadores da nova nação são amplos e generosos. A
Declaração da Independência afirma que todos os homens foram criados
iguais e dotados pelo Criador de direitos inalienáveis, como vida, liberdade,
busca de felicidade. [...].
O caráter da Constituição está ligado à luta contra a Inglaterra na Guerra
da Independência. Se aplicarmos a teoria do especialista Thomas Janoski
sobre cidadania, podemos concluir que se trata, antes de mais nada, de
garantir a esfera do direito privado como espaço do cidadão, em
detrimento da tirania externa. Porém, há também o risco de tirania interna
151
KARNAL. Leandro. in História da Cidadania. Op. Cit. p. 141/2
88
e este risco deve ser afastado pela perfeita harmonia e limites dos poderes
instituídos. O traço da Constituição que mais se opõe à tradição ibero-
americana é a desconfiança que se tem do poder político e a valorização
do indivíduo.”
A Revolução Americana, pelos seus ingredientes internos e externos,
resultou na formação de um conceito de cidadania preventivo às arbitrariedades
do Estado, para resguardar os cidadãos, mediante mecanismos de defesa, os
excessos da interferência estatal. Neste sentido é a lição de KARNAL
152
:
“[...] a construção dos conceitos de liberdade e de cidadania norte-
americanos teve várias origens: as condições específicas da colonização,
o discurso religioso, a influência de outros pensadores e a luta contra a
Inglaterra. A legislação do novo país traz a marca de desconfiança do
Estado e reforça a crença no indivíduo. Todas as expressões da Bill of
Rights indicam um mecanismo de defesa contra o Estado e contra a
interferência estatal na vida do cidadão.”
Com efeito, os cidadãos norte-americanos souberam conciliar nas
reivindicações e na construção dos Direitos Humanos, a tradição protestante com
o movimento da independência.
A denominada Revolução Francesa, (século XVIII), foi precedida de fatos
históricos relevantes que guardam estreita correlação com as revoluções inglesa
e americana que já haviam estabelecido direitos de cidadania aceitos e difundidos
como aspirações da humanidade. Foi, no entanto, com o avanço tecnológico
propiciado pelo início da Revolução industrial que a sociedade começou a aspirar
outras conquistas.
Assim, além da origem do poder do Estado, reconhecido ao povo, (poder
imanente), em lugar do poder de Deus, (Hobbes: 1651); além da substituição do
pacto de submissão pelo pacto de consentimento, (Locke: 1689); além da
proteção do cidadão contra o Estado nascido da iniqüidade, (Thomas Paine:
1776), surge, na França, a aspiração da felicidade, (diversos filósofos, cientistas e
pensadores: século XVIII), como um projeto coletivo.
A busca concreta pela realização do projeto de felicidade como projeto
social e coletivo é visto como um projeto possível em decorrência dos avanços do
capitalismo industrial, especialmente a partir da Revolução Industrial, como uma
152
KARNAL. Leandro. in História da Cidadania. Op. Cit. p. 145
89
aspiração de assegurar, a todos, condições materiais de existência tendentes a
reduzir a pobreza e as desigualdades sociais. Veja-se, neste sentido, a lição de
ODALIA:
153
“É ainda no século XVIII que a idéia de felicidade nasce, não como uma
conquista individual, mas como uma meta a ser alcançada coletivamente.
O homem só pôde pensar na felicidade como um projeto de sociedade, isto
é, como uma possibilidade para todos os que nela vivem, quando criou os
meios de fazer com que a educação, a produção de alimentos, a
fabricação das coisas de que precisava tecidos, roupas, máquinas, etc.
aumentassem a tal nível que deixassem de ser um privilégio de poucos
para ser uma possibilidade de todos. [...]
A convicção de que era possível constituir-se uma sociedade de
abundância levou os filósofos, cientistas e pensadores do século XVIII a
imaginar uma sociedade igualitária, em que as diferenças entre os homens
fossem progressivamente desaparecendo, seria também viável. E, em
conseqüência, a pensar que num futuro não tão remoto, o homem pudesse
almejar e conquista a felicidade , sendo um dos suportes a igualdade, e
dela fazer objetivo central da organização social. Imaginaram que a
organização política da sociedade deveria ser construída tendo por alicerce
este desejo.”
A breve síntese que se procurou apresentar, marca o percurso histórico da
humanidade na conquista de direitos de cidadania. Neste percurso histórico, há
uma presença marcante de países europeus e dos Estados Unidos, como um
novo Estado-nação.
Seção 1 Direitos fundamentais do homem e dignidade da pessoa humana
A constitucionalização de direitos que caracterizam avanços reconhecidos
pela humanidade, tem a função, dentre outras, de conferir à sociedade que os
adota a forma de uma sociedade civilizada. De fato, seria constrangedor até
mesmo para os interesses do comércio internacional, atribuir-se, a um
determinado Estado, a pecha de violação a Direitos Humanos Fundamentais.
Com efeito, são muitos dentre os principais países importadores que erguem as
denominadas barreiras não-alfandegárias, (barreiras sociais), para restringir o
comércio com os países que desrespeitam direitos que, para toda a humanidade,
já são considerados direitos materiais mínimos, direitos elementares. Essas
153
ODALIA. Nilo, in História da Cidadania. Op. Cit. p. 160/1
90
barreiras sociais, impostas a países exportadores, como é o caso do Brasil, força-
os ao reconhecimento e à adoção formal de Direitos Humanos Fundamentais,
dentre os quais pode-se enumerar, a partir da lição de SILVA:
154
“Como entendemos esses direitos do ponto de vista positivo, a classificação
que deles se faça há que conformar-se ao ordenamento jurídico particular
ou internacional de que se cogita. Assim, por exemplo a Constituição italiana
reconhece quatro classes desses direitos, agrupados segundo o tipo de
relação que fundamentam: a) direitos que estabelecem relações civis,
correspondentes basicamente aos nossos direitos individuais; b) direitos que
fundamentam relações ético-sociais; c) direitos prevendo relação
econômicas; d) direitos fundamentando relações políticas.
A classificação que decorre do nosso Direito Constitucional é aquela que os
agrupa com base no seu conteúdo, que, ao mesmo tempo, se refere à
natureza do bem protegido e do objetivo de tutela. De acordo com esse
critério, teremos: a) direitos fundamentais do homem-indivíduo, que são
aqueles que reconhecem autonomia aos particulares garantindo iniciativa e
independência aos indivíduos diante dos demais membros da sociedade
política e do próprio Estado; por isso são reconhecidos como direitos
individuais, como é a tradição do Direito Constitucional brasileiro (art. 5º), e
ainda por liberdades civis e liberdades-autonomia (França); b) direitos
fundamentais do homem-membro de uma coletividade, que a Constituição
adotou como direitos-coletivos (art. 5º) [...]; c) direitos fundamentais do
homem-social , que constituem os direitos assegurados ao homem nas suas
relações sociais e culturais (art. 6º); d) direitos fundamentais do homem-
nacional, que são os que têm conteúdo e objetivo a definição da
nacionalidade e das suas faculdades; e) direitos fundamentais do homem-
cidadão, que são direitos políticos (art. 14), chamados também direitos
democráticos ou direitos de participação política e, ainda, inadequadamente,
liberdades políticas (ou liberdades-participação), pois estas constituem
apenas aspectos dos direitos políticos.”
Esse rol de direitos se traduz em uma expressão: direitos fundamentais do
homem e é fruto de uma outra dimensão histórica na conquista de direitos. De
fato, o patamar a que chegou a conquista de direitos conferidos ao cidadão, - por
todo o período das denominadas revoluções: inglesa, americana e francesa, -
deixou fortemente consolidado na humanidade a possibilidade de igualdade,
liberdade e fraternidade. Essa convicção foi mais arraigada, foi mais ampla, do
que se pode supor. A construção filosófica veio junto com a construção da base
material, da base econômica. Desta forma toda a convicção política, ética, que
dava sustentação aos direitos tem, também, um outro lastro: o substrato da teoria
econômica construída a partir da vida real existente, do homem-real, a partir das
154
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 180/1.
91
suas relações sociais de produção. Sobre essa visão, a lição de SILVA torna-se,
igualmente, oportuna:
155
“A doutrina francesa indica o pensamento cristão e a concepção dos
direitos naturais como as principais fontes de inspiração das declarações
de direitos. Fundada na insuficiente e restrita concepção das liberdades
públicas, não atina com a necessidade de envolver nessa problemática
também os direitos econômicos , sociais e culturais, aos quais chama
brevemente de direitos sociais.
Temos, pois, que ampliar nossa visão do problema para admitir outras
fontes de inspiração das declarações de direitos, sem deixar de reconhecer
que as primeiras abeberaram no cristianismo e no jusnaturalismo sua idéia
de homem abstrato. Mas não é uma observação correta esta de atribuir, ao
surgimento de uma nova idéia de direito, tão profundamente revolucionária,
inspiração de natureza basicamente ideal, sem levar em conta as
condições históricas objetivas, que, na verdade, constituem a sua
fundamentação primeira. As doutrinas e concepções filosóficas têm
relevância enorme do processo. Mas elas próprias são condicionadas por
aquelas condições materiais.”
Com efeito, sabe-se que, segundo o materialismo dialético, a relação entre
a estrutura e a superestrutura é uma relação de tensão permanente. A
superestrutura, na qual está o campo das idéias, (ideologia) nasce da percepção
que os homens têm do seu modo de viver e de se relacionar: “Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário é o seu ser social
que determina a sua consciência.” (MARX: 1848). Pode-se, portanto, evidenciar,
ainda com o apoio de SILVA
156
que as bases econômicas, também existiam e,
portanto, a aspiração social tem o seu lastro na realidade do mundo percebida por
diversos atores com atuação histórica relevante:
“Todos esses fundamentos foram sendo superados pelo processo
histórico-dialético das condições econômicas, que deram nascimento a
novas relações objetivas com o desenvolvimento da indústria e o
aparecimento de um proletariado amplo sujeito ao domínio da burguesia
capitalista. Essas novas condições materiais da sociedade teriam que
fundamentar a origem de outros direitos fundamentais - os direitos
econômicos e sociais e concomitantemente a transformação do conteúdo
dos que serviam à burguesia em sua luta contra o absolutismo. Daí
também sobreviriam novas doutrinas sociais, postulando a transformação
da sociedade no sentido da realização ampla e concreta desses direitos.
Essas novas fontes de inspiração dos direitos fundamentais são: 1) o
Manifesto Comunista e as doutrinas marxistas, com sua crítica ao
155
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 202
156
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 173
92
capitalismo burguês e ao sentido puramente formal dos direitos do homem
proclamados no século XVIII, postulando liberdade e igualdade materiais
num regime socialista; 2) a doutrina social da Igreja, a partir do Papa Leão
XIII, que teve especialmente o sentido de fundamentar uma ordem social
justa, mas ainda dentro do regime capitalista, evoluindo, no entanto, mais
recentemente, para uma Igreja dos podres que aceita os postulados
sociais socialistas; 3) o intervencionismo estatal, que estabelece que o
Estado deve atuar no meio econômico e social, a fim de cumprir uma
missão protetora das classes menos favorecidas, mediante prestações
positivas, o que é ainda manter-se no campo capitalista com sua inerente
ideologia de desigualdade, injustiças e até crueldades.”
Portanto, estes direitos que se designam como Direitos Fundamentais do
Homem, como prefere a maioria dos doutrinadores, são direitos que se
impuseram como necessários, mínimos, fundamentais à continuidade da vida
humana. Sem esses direitos a vida humana estaria - como está - em risco. O
mesmo combustível que alimentou as revoluções, parece estar sendo
realimentado, com a permanente protelação e efetivo desrespeito aos cidadãos.
Os fluxos migratórios estão carregados de tensão, medo, opressão. Os fluxos
migratórios são gerados pela desarticulação produtiva. A ausência de condições
materiais de vida tende a agravar-se por ação deliberadamente inconstitucional
praticada reiteradamente pelo Estado que mesmo a atuação do Ministério Público
Federal no Brasil, não tem sido capaz de estancar.
Para os fins deste estudo, cabe, ainda anotar o papel do sistema financeiro
nacional em uma ordem econômica que deve orientar-se pela justiça social e pela
construção de uma vida digna, (art. 170, CF), para concordar com a lição de
SILVA:
157
“Assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
não será tarefa fácil num sistema de base capitalista, e, pois,
essencialmente individualista. É que a justiça social só se realiza mediante
eqüitativa distribuição de riqueza. Um regime de acumulação ou de
concentração do capital e da renda nacional, que resulta da apropriação
dos meios de produção, não propicia efetiva justiça social, porque nele
sempre se manifesta grande diversidade de classe social, com amplas
camadas de população carente ao lado de minoria afortunada. A história
mostra que a injustiça é inerente ao modo de produção capitalista,
mormente do capitalismo periférico. Algumas providências constitucionais
foram agora um conjunto de de direitos sociais com mecanismos de
concreção que devidamente utilizados podem tornar menos abstrata a
promessa de justiça social.”
157
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 721
93
A postura do Estado - para seguir e cumprir o que dita a Constituição -
deve ser de atenção aos direitos fundamentais do homem. Negar os direitos
fundamentais do homem, como acontece no Estado-nação brasileiro, significa
negar a ordem constitucional vigente.
Seção 2 Dignidade da pessoa humana, como poder-dever do Estado
Para dar início a esta seção, relembrem-se os artigos 1º, inciso III e 170 da
Constituição da República Federativa do Brasil, que fixam, respectivamente, o
como um dos fundamentos do Estado a “dignidade da pessoa humana” e como
fim da ordem econômica “assegurar a todos existência digna” para, a partir daí,
avaliar a percepção da doutrina sobre este tema. Inicia-se, este percurso, pela
lição SARLET
158
“O princípio da dignidade da pessoa humana impõe limites à atuação
estatal, objetivando impedir que o poder público venha a violar a dignidade
pessoal, mas também implica (numa perspectiva que se poderia designar
de programática ou impositiva, mas nem por isso destituída de plena
eficácia) que o Estado deverá ter como meta permanente a proteção,
promoção e realização concreta de uma vida com dignidade para todos,
podendo-se sustentar, na esteira luminosa proposta de Clèmerson Clève, a
necessidade de uma política da dignidade da pessoa humana e dos
direitos fundamentais. Com efeito, de acordo com a lição de Pérez Luño, “a
dignidade da pessoa humana constitui não apenas uma garantia negativa
de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica
também, num sentido positivo, o pleno direito desenvolvimento da
personalidade de cada indivíduo.”
Neste contexto, não restam dúvidas de que todos os órgãos, funções e
atividades estatais encontram-se vinculadas ao princípio da dignidade da
pessoa humana, impondo-se-lhes um dever de respeito e proteção, que se
exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de
ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal,
quanto no dever de protege-la (a dignidade pessoal de todos os indivíduos)
contra agressões oriundas de terceiros, seja qual for a procedência., vale
dizer, inclusive contra agressões oriundas de outros particulares,
especialmente mas não exclusivamente dos assim denominados
poderes sociais (ou poderes privados). Assim percebe-se desde logo, que
a dignidade da pessoa humana não apenas impõe um dever de abstenção
(respeito), mas também condutas positivas tendentes a efetivar e proteger
a dignidade dos indivíduos. Nesta linha de raciocínio, sustenta-se, com
158
SARLET. Igno Walfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Livraria do Advogado.
Porto Alegre: 2006 p. 110/1
94
razão que a caracterização do programa normativo do princípio da
dignidade da pessoa humana incumbe aos órgãos estatais, especialmente,
contudo ao legislador, encarregado de edificar uma ordem jurídica que
atenda às exigências do princípio. Em outras palavras aqui considerando
a dignidade como tarefa -, o princípio da dignidade da pessoa humana
impõe ao Estado, além do dever de respeito e proteção, a obrigação de
promover as condições que viabilizem e removam toda a sorte de
obstáculos que estejam a impedir as pessoas de viverem com dignidade.”
A lição precedente evoca a promessa que se gostaria de ver cumprida.
Caberia ao Estado ajustar o seu poder-dever à sua ação concreta. Se algum
poder efetivamente emana do povo, esse poder precisa reverter-se ao povo como
beneficiário, sob pena das promessas converterem em engodo cada vez mais
perceptível e daí sobrevem o desalento. A lição de SARLET capta a base
conceitual para a sustentação da estrutura do Estado tendo como um dos pilares
a dignidade da pessoa humana. O grau de banalização adotado pelo Estado,
relativamente ao seu dever de proteção (contra agressões) e de promoção (dever
de atuação) tendo em vista evitar humilhações e indignidade precisa sair do
campo conceitual para o campo pragmático. O discurso jurídico carece de
justificação com a realidade. Cabe ao Estado, precaver-se do uso excessivo do
discurso constitucional ou tornar efetivo o discurso que adota, como acentua
HABERMAS:
159
“O discurso filosófico sobre a justiça não faz jus à dimensão institucional,
que constitui o objeto primordial do discurso jurídico. E, sem a visão do
direito como sistema empírico de ações, os conceitos filosóficos ficam
vazios. Entretanto, na medida em que a sociologia do direito se empertiga
num olhar objetivador lançado a partir de fora o insensível ao sentido da
dimensão simbólica que só pode ser aberta a partir de dentro, a própria
contemplação sociológica corre o risco de ficar cega. Contra esse perigo
armaram-se princípios, especialmente os de inspiração neokantiana, que
operam com a seguinte idéia: nas ordens sociais há uma interpenetração
de idéias e interesses (M Weber), ou de valores culturais e motivos
(Parsons).”
Que poder qualificado pela vontade do povo, (todo o poder emana do
povo
160
), o Estado julga estar exercendo ao firmar um convênio tendo como
parceiro o sistema financeiro? O Estado para atingir o seu poder-dever com
relação à dignidade da pessoa humana precisa da ajuda desta parceria? Essa
159
HABERMAS. Jürgen. Op. Cit. p. 94.
95
ajuda tem justificação em alguma norma constitucional equivalente e compatível
com o princípio da dignidade da pessoa humana, como significado e essência do
próprio Estado? Que políticas, que leis, que interesses podem se opor, em nome
do povo e do Estado, à dignidade da pessoa humana? Há coerência entre o
convênio (União, Febraban e Serasa) em relação aos direitos de cidadania?
Essas questões afiguram-se confrontar com as lições de HABERMAS
161
:
“A formação política da vontade culmina em decisões sobre políticas e leis,
que precisam ser formuladas na linguagem do direito. Isso implica, no final
de contas, um controle das normas, quando se examina a possibilidade de
os novos programas se encaixarem no sistema jurídico vigente. O
legislador político só pode utilizar suas autorizações de normatização
jurídica para a fundamentação de programas de leis compatíveis com o
sistema de direitos e acopláveis ao corpus das leis vigentes. Sob esse
aspecto jurídico, todas as resoluções têm que ser submetidas a um exame
de coerência.”
É conveniente apreender estes conceitos para aquilatar-se a gravidade da
conduta adotada reiteradamente pelo Estado ao acolher tão cegamente o
paradigma ditado pela Serasa e pela FEBRABAN relativamente à negativação de
cidadãos que ficam interditados à condição de uma vida digna em um Estado
Democrático de Direito que, por todos os títulos, tem o poder-dever de omitir-se
da prática e, mais ainda, impedir a agressão à dignidade da pessoa humana.
Seção 3 Negativação e a condição sub-humana dos negativados
Cabe aqui assentar alguns pontos de referencia visando a uma
conceituação daquilo que no linguajar coloquial e até no campo específico da
“justiça brasileira” se costuma designar por sujar” ou “negativar nome”, bem
assim do serviço que tem se constituído em seu remédio popular (genérico),
acessível aos cidadãos negativados, os serviços da indústria brasileira virtual:
limpe-seu-nome” com a função extrajudicial de limpar o nome dos cidadãos
lesados pela Serasa.
Parte-se, para este fim, das sínteses apresentadas a seguir, extraídas de
duas sentenças prolatadas, pela Justiça Federal, tendo como réus, dentre outros,
160
Nos termos do art. 1º, parágrafo único da CF Constituição Federal
96
a Serasa. O trecho a seguir transcrito foi extraído da sentença prolatada pelo Juiz
Federal no Estado de São Paulo, Luciano GODOY
162
:
“A existência do registro de débito em um cadastro é uma ameaça, uma
coação, para que se pague sem questionar, sem até refletir, porque haverá
inúmeras restrições na sua vida diária, quotidiana, econômica ou não.
Todos sabem, constitui fato público e notório, que há constrangimento no
fato de existir a dita negativação do nome de uma pessoa.”
Outra síntese, igualmente relevante, extrai-se da sentença proferida pelo,
Juiz Federal no Estado de São Paulo, Fernando Sebastião GOMES, citada pelo
Ministério Público Federal no Distrito Federal, em Ação Civil Pública
163
, tendo
como ré a Serasa:
“As expressões “negativar” e “negativação” correspondem as velhas marcas
de iniqüidade que existiam desde o início dos tempos. Em certas
sociedades os iníquos eram punidos com a perda do nariz, como acontecia
entre os assírios. Na França do Rei Luiz XIII as prostitutas eram marcadas
com uma flor de Liz, com ferro em brasa. Na sociedade de hoje, os
devedores são marcados com ferramentas mais eficientes, dada a
qualidade e eficiência dos meios de comunicação. Esse ato de negativar,
esse juízo inflexível sob a natureza humana, deve comportar algum tipo de
temperamento, alguma forma de limitação, em uma sociedade democrática.
Foi, certamente esse espírito que conduziu o legislador a essa garantia aos
devedores, frente a órgãos que a si irrogam e atribuem o direito de dizer
quem é honesto, quem é desonesto, quem pode comerciar e quem não
pode, quem terá acesso ao mercado de crédito e quem dele está excluído.”
Pode-se entender a partir destas duas sínteses, bem assim considerado os
demais elementos consubstanciados ao longo desta pesquisa, que sujar ou
negativar o nome de alguém tem a marca inconfundível do interesse comercial
comandado, preponderantemente pela Serasa, para discriminar e excluir da vida
social e econômica, como caloteiro e mau pagador qualquer um dos mais de 116
milhões de cidadãos brasileiros que confiaram os seus dados sigilosos ao Estado,
através da Secretaria da Receita Federal. O cidadão estará, a partir desta marca
de iniqüidade: cidadão negativado, sob ameaça, coação e constrangimento até
que pague o que lhe é imputado como débito, seja ou não devedor.
161
HABERMAS. Jürgen. Op. Cit. p. 210
162
GODOY. Luciano. >http://br.geocities.com/cpi_serasa/LucianoGodoy.pdf< Acesso em 15/06/2006
163
GOMES. Fernando Sebastião, citado em ACP autoria do MPF/DF, Acesso em 22/11/2006. Disponível
em: >http://www.mpdft.gov.br/Orgaos/PromoJ/Prodecon2/acoes/bancos_de_dados/acao%20coletiva%20-%20SERASA.html<
97
A negativação visa a - mediante um procedimento eficiente e de baixo
custo, acessível on-line, 24 horas por dia - expor o cidadão negativado à vexação
pública. De fato, o poder da Serasa ao submeter qualquer cidadão à negativação
tem a força arrebatadora de vexação pública porque irradia-se, imediatamente,
por toda a esfera privada (bancos, comércio, emprego) bem assim por toda a
esfera pública onde quer que se implementem as denominadas políticas públicas
de crédito ou microcrédito, isto é, em todas as instituições integrantes do sistema
financeiro público: BNDES, BNB, BASA, Banco do Brasil, Caixa Econômica
Federal, Banco Popular do Brasil, Caixa Aqui, Bancos do Povo e Bancos Sociais.
Ao ser informado que está sob esta marca de iniqüidade, qualquer cidadão
negativado, independente de saber-se inocente, independente de estar ou não
devendo, providenciará o pagamento que lhe é exigido. Isso implica uma
permanente agressão ao Estado Democrático de Direito, com graves danos na
esfera moral e patrimonial da vítima que, mesmo tendo disposição para postular
eventual reparação judicial, logo perceberá a insuficiência dos seus argumentos
perante uma cultura arraigada que contraria, dentre outros direitos
constitucionais, a presunção de inocência que pode ser obstada por juízo
subjetivo, sem direito de defesa, exercido por pessoas naturais anônimas sob o
manto de contratos de prestação de serviço, com o poder público, (neste caso,
feitos sem licitação), ou com uma das mais de 300 mil empresas-cliente que
demandam, por dia, mais de 3,5 milhões de consultas à Serasa.
A negativação de cidadãos é a forma discriminatória, abusiva e intolerável,
sob o ponto de vista do Estado Democrático de Direito e da Constituição formal,
que se caracteriza como derrogação de toda a história da humanidade
relativamente à conquista de direitos fundamentais do homem assegurados,
como se constata, (apenas formalmente), em um rol de direitos: individuais (art.
5º); coletivos (art. 6º); sociais (art. 6º e 193 e ss); de nacionalidade (art. 12); e
políticos (arts. 14 a 17), mas que, à medida que a atuação da justiça (Estado-juiz)
é residual, quase imperceptível, e que há, por outro lado, uma atuação deliberada
do Poder Executivo, através de vários órgãos e entidades de governo em sentido
diametralmente oposto ao seu poder-dever, resta aos cidadãos negativados a
alternativa desesperada - individual, silenciosa, tímida - de socorrerem-se de algo
tão abusivo quanto a negativação: a industria virtual do limpe-seu-nome que
98
surgiu como irmã gêmea, obscura, negada e rejeitada, da sua outra face, a
Serasa S/A.
Corroborando o conceito acima apresentado, reúnem-se, a seguir, alguns
dos elementos que lhe dão sustentação fática, no âmbito desta pesquisa, sem
prejuízo de informações esparsas, apresentadas em outras seções:
Segundo informação extraída do seu endereço eletrônico na Internet, a
Serasa está...
164
:
“Presente em todas as capitais e principais cidades do País, totalizando
115 pontos estratégicos, a Serasa conta com um quadro de pessoal com
mais de 2.000 profissionais e a retaguarda de um amplo centro de
telemática. Como maior banco de dados da América Latina sobre
consumidores, empresas e grupos econômicos, a Serasa participa da
maioria das decisões de crédito e de negócios tomadas no Brasil,
respondendo on-line/real-time, a 3,5 milhões de consultas por dia,
demandadas por mais de 300 mil clientes diretos e indiretos.”
Segundo se constata a Serasa detém o maior banco de dados da América
Latina sobre consumidores. No mesmo texto, acima transcrito, há um indicativo
do perfil dos demandantes dos seus serviços: 300 mil clientes diretos e indiretos
que compram, por dia, 3,5 milhões de consultas. Isto, porém, é uma informação
parcial que indica uma demanda elevada feita por uma clientela concentrada. Em
outro texto do seu marketing a Serasa complementa esta indicação
165
:
“Empresas de todos os portes e ramos de atividade consultam a Serasa
para agilizar a concessão de crédito, reduzir riscos e ampliar suas
possibilidades de negócios. As consultas dão acesso a informações e
análises imediatas e atualizadas de pessoas, empresas, grupos
econômicos e setores da economia para administrar o risco de crédito em
suas transações com empresas e consumidores.”
Ou seja, a Serasa vende informações para empresas de todos os portes e
ramos de atividade. Os demandantes dos serviços da Serasa, são empresas.
Que produto a Serasa vende a estas empresas-cliente? Informações sobre
pessoas. Que pessoas são essas? Que pessoas teriam passado os seus dados
sigilosos à Serasa para que ela os transforme em bens de comércio? As
164
Serasa: >http://www.serasa.com.br/empresa/serasa/index.htm< Acesso em 06/12/2006
165
Serasa: >http://www.serasa.com.br/solucoes/index.htm< Acesso em 06/12/2006
99
respostas a estas perguntas encontram-se em Ação Civil Pública proposta pelo
Ministério Público Federal no Estado de São Paulo
166
:
“As informações disponibilizadas pela União à FEBRABAN e à SERASA
são informações que os cidadãos confiam à Receita Federal e instituições
financeiras imbuídos da certeza de que serão mantidos sob absoluto sigilo.
Comunicam seus endereços, suas rendas, o endereço de suas empresas,
dados sobre suas atividades econômicas, nomes de pai e mãe, tudo isso
com a mais plena certeza de que somente o Estado, no interesse da
administração da coisa pública, deles terá conhecimento e acesso.
Ademais, sabe o cidadão que o uso, por parte do agente público, de tais
informações para fins privados será duramente punido por meio do recurso
às sanções penais e mesmo cíveis mencionadas na Lei de Improbidade
Administrativa (lei 8429/92).
Mas não é isso o que vem ocorrendo.
Como resultado do convênio em tela, potencialmente qualquer pessoa que
tenha acesso aos serviços da SERASA poderá obter informações sobre,
literalmente, qualquer pessoa física ou jurídica que seja contribuinte do
Fisco.”
As pessoas sobre as quais a Serasa vende informações (dados sigilosos)
não são seus consumidores. Os dados sigilosos que a Serasa vende como
seus produtos, como suas mercadorias, como bens de comércio - a preços
módicos até porque os recebeu de graça são dados sigilosos que podem ser
comprados por qualquer pessoa jurídica, pública ou privada, para qualquer fim,
inclusive para facilitar a tarefa de criminosos que queiram vascular informações
sigilosas, basta que esteja disposto a pagar pelos serviços da Serasa. Veja-se,
outro trecho da ACP de autoria do Ministério Público Federal no Estado de São
Paulo
167
:
“De posse de informações como Situação Cadastral, Número de Inscrição
CGC/MF, Endereço Completo, Endereço no Exterior, Atividade Econômica,
Número de Inscrição CPF, Nome Completo, Nome da Mãe, Data de
Nascimento, dentre outras, torna-se por demais facilitada a tarefa de
criminosos que, vasculhando informações de natureza privada, sondam
facilmente quais seriam as presas mais valiosas para atos como extorsões,
extorsões mediante seqüestros, roubos, e inúmeros outros atos ilícitos
somente viabilizados pelo eficiente conhecimento de fatos atinentes à vida
pessoal da vítima. [...]” (Sem grifos no original).
166
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso público, em 26/10/2006. p. 6/7
100
Por seu turno, pode-se constatar que a justificativa apresentada pela
FEBRABAN, em ofício datado de 20 de março de 1998, ao solicitar os dados
sigilosos dos cidadãos brasileiros tem outra justificativa. Diz a Federação
Brasileira dos Bancos - FEBRABAN
168
:
“Os dados serão disponibilizados por esta Federação à rede bancária
através de conexão com a Serasa, a fim de possibilitar aos bancos o
cumprimento ao que determinado pela resolução nº 2025 de 24.11.93, do
Conselho Monetário Nacional.” (Sem grifos no original).
Veja-se que essa justificativa está fundamentada em uma resolução e visa
a exercer o controle na abertura de contas. Afigura-se estranho que o Estado
libere dados sigilosos de todos os cidadãos sob a falsa alegação de conferencia
destes dados para a abertura de contas bancárias, quando se sabe, (e a
FEBRABAN melhor que ninguém deve saber), que o universo de mais de 116
milhões de dados sigilosos jamais seria usado para o fim justificado, como
realmente nunca foi e isto pode ser constatado por informações divulgadas pela
Serasa, via Internet, devidamente registradas em ata notarial, elaborada pelo 7º
Tabelião, Ângelo Volpi
169
:
“Agora, sua empresa tem disponíveis informações cadastrais e
comportamentais dos consumidores, como compromissos já assumidos no
mercado e hábitos de pagamento, incluindo também registros negativos do
maior banco de dados do gênero, para fornecer subsídio na concessão de
crédito.
Reunindo informações sobre mais de 116 milhões de consumidores, o
CREDIT BUREAU dispõe, ainda, das mais avançadas tecnologias de
Credit Scoring para minimizar os riscos e otimizar oportunidades, com
custos reduzidos.” (Sem grifos no original).
Por este histórico pode-se concluir que as informações que a Serasa
comercializa como produtos, mercadorias, bens de livre comércio, são dados que
a Constituição Federal diz serem sigilosos (art. 5º, XII). O resultado prático
alcançado pelo Estado-nação ao firmar o convênio
170
com a FEBRABAN e a
Serasa parece desvirtuar inteiramente o dever constitucional de promoção dos
167
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso público, em 25/10/2006. p. 10
168
Anexo 1 - Ofício FEBRABAN pedindo dados sigilosos à SRF: para bancos
169
Anexo 4 Ata notarial: Mais de 116 milhões de cidadãos na Serasa
170
Anexo 2 - Convênio entre União, FEBRABAN e Serasa
101
direitos fundamentais do homem, pois, como acentua o Ministério Público Federal
no Estado de São Paulo
171
:
“Em suma, a “negativização” do seu nome acaba ocasionando uma
autêntica exclusão do consumidor do tráfego econômico, obstando-lhe
toda e qualquer forma de crédito, reduzindo-o a uma condição quase
sub-humana, com efeitos graves sobre sua pessoa, quer na esfera
patrimonial, quer na moral.” (Sem grifos no original)
O dano moral e patrimonial e, sobretudo a condição quase sub-humana
a que alude o MPF, no Estado de São Paulo, ultrapassa a esfera individual do
cidadão lesado e passa à esfera coletiva se se considerar que esta violação,
reiterada e injustificável, atinge em cheio ao Estado Democrático Brasileiro com
graves repercussões para a credibilidade das instituições democráticas, a cada
dia mais submetidas aos interesses de grupos em detrimento do interesse
comum. Neste mesmo sentido pode-se constatar os termos da Ação Civil Pública
de autoria do MPF/DF
172
, tendo como um dos réus a Serasa:
“A SERASA, todavia, ainda utiliza-se de uma terceira fonte de informação
cuja ilegalidade será exaustivamente demonstrada na presente ação civil
pública: trata-se das informações coletadas dos inúmeros cartórios de
distribuição do Poder Judiciário e dos cartórios de protestos.
A partir de diversas reclamações de consumidores, bem como de remessa
de peças de processos encaminhadas pelo próprio Poder Judiciário, o
Ministério Público do Distrito Federal, por intermédio de sua 2ª Promotoria
de Justiça de Defesa do Consumidor (Procedimento de Investigação
Preliminar N. 08190.015876/01-72), constatou tal fato. A ré, entre dezenas
de outras entidades que atuam na área de tratamento de informações de
proteção ao crédito, é a única que divulga informações coletadas
diretamente dos cartórios de protestos e cartórios de distribuição. As
informações referem-se às ações de execução, busca e apreensão,
processos falimentares e títulos protestados.”
Estas denominadas parcerias de órgãos e entidades públicas com a
Serasa e, no caso acima referido, o envolvendo do próprio poder judiciário, causa
aos cidadãos negativados a firme convicção que só lhes resta recorrer aos
serviços dos escritórios virtuais: limpe-seu-nome. Sobre este procedimento,
171
MPF/SP > http://br.geocities.com/cpi_serasa/SERASA-PR2.pdf < p.3. Acesso em 25/10/2006
172
MPF/DF >http://www.mpdft.gov.br/Orgaos/PromoJ/Prodecon2/acoes/bancos_de_dados/acao%20coletiva%20-
%20SERASA.html< Acesso em 22/11/2006
102
transcreve-se o seguinte trecho da ACP movida pelo MPF no Estado de São
Paulo:
173
“A gravidade da situação chegou ao tal ponto que o setor assistiu à
absurda proliferação de um novo tipo de empresas interessadas nesse
mercado emergente: trata-se do surgimento de empresas e escritórios
especializados, única e exclusivamente, em obter a exclusão do nome do
devedor nos cadastros da SERASA e SPC (Sistema de Proteção ao
Crédito) a preços abusivos, como o demonstram reportagens publicadas
no Jornal da Tarde nos dias, respectivamente, 15.09.97 e 10.05.99:
LIMPAR NOME DÁ LUCRO. [...]. Muita gente procura empresas para
recuperar crédito. [...]. O crescimento da inadimplência pode ser ruim para
os empresários, que não recebem o pagamento pelo que venderam, mas é
um bom negócio para os escritórios que se dedicam a “limpar o nome” de
quem entra na lista do Serviço de Proteção do Crédito. Cheque sem fundo,
título protestado em cartório ou mesmo uma prestação atrasada por mais
de 30 dias podem levar o consumidor a figurar na lista de devedores do
SPC e do Banco Central e ter seu crédito bloqueado. Sem disposição para
enfrentar a burocracia, milhares de pessoas recorrem às empresas de
reabilitação de crédito, que cobram caro para colocar o devedor entre os
consumidores aptos a se endividar novamente.”
A atuação do Estado-juiz, no contexto de violação de direito fundamentais
do homem, relativamente ao tema da negativação pela Serasa, é residual por
muitas razões, dentre as quais pode-se enumerar: 1) a morosidade da justiça; 2)
a impossibilidade de documentar o ato de negativação; 3) o constrangimento do
cidadão que se sente sob uma marca de iniqüidade e tem dificuldade em
compartilhar essa condição; 4) a cultura arraiga de que a Serasa S/A tem
legitimidade e legalidade para expor qualquer cidadão à vexação pública,
mediante a negativação do seu nome e levá-lo ao constrangimento de ser
considerado mau pagador, em momentos e situações as mais adversas e
inesperadas.
Ao que parece nem mesmo a atuação do Ministério Público Federal, com
algumas Ações Civis Públicas, já ajuizadas, quase que exclusivamente, no
Estado de São Paulo, têm sido suficientes para dar visibilidade ao tema.
Por seu turno, a CPI da Serasa passou inteiramente despercebida pela
imprensa e findou por demonstrar a inoperância do poder legislativo em assuntos
173
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SERASA-PR2.pdf.< p. 4. Acesso em 22/09/2005
103
que exigem enfrentamento republicano e democrático dos interesses do capital
financeiro.
104
CAPÍTULO 2 ACESSO AO CRÉDITO
O Estado brasileiro, sob a denominação de República Federativa do Brasil,
tem como um dos seus objetivos fundamentais erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais, (art. 3º, III, da CF), este
objetivo articula-se com uma das competências privativas da União, para definir a
política de crédito fixada no inciso VII, artigo 22, da Constituição Federal.
Para correlacionar o objetivo fundamental de erradicar a pobreza ou, mais
modestamente, reduzir a pobreza tendo como instrumento o crédito pretende-se
adentrar uma situação que chega a ser patética e que é objeto de apresentação
neste capítulo. Como já foi dito na introdução o crédito fornecido pelo setor
bancário para as empresas e para as famílias na América Latina e no Caribe é
escasso, caro e volátil.
Esse desempenho pode ser atribuído à União, como ente federativo, com
competência para legislar privativamente sobre política de crédito que, em
resumo, resulta no seguinte quadro, segundo o BID
174
: o crédito mais escasso,
(28% do PIB, vis-à-vis aos 84% do PIB, dos países desenvolvidos); o crédito mais
caro (27,2%, o spread mais elevado do mundo); o crédito mais volátil, (28%,
superando em mais de 4 vezes os 6% de volatilidade dos países desenvolvidos).
Vejam-se, na seqüência, alguns dos componentes deste trágico desempenho,
que envolve, certamente, alguns elementos culturais, antropológicos, sociais que
escapam inteiramente ao objeto desta dissertação.
Apesar de a Constituição Federal estabelecer a competência privativa da
União para legislar sobre a política de crédito esta competência é exercida, por
resoluções a exemplo do Conselho Monetário Nacional CMN e do Conselho
Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador CODEFAT. No caso
específico do CMN pode-se ver o seguinte, a partir da edição da Lei 9.069/95
175
.
“O Conselho Monetário Nacional (CMN) é o órgão deliberativo máximo do
Sistema Financeiro Nacional. Ao CMN compete: estabelecer as diretrizes
gerais das políticas monetária, cambial e creditícia; regular as condições
de constituição, funcionamento e fiscalização das instituições financeiras e
disciplinar os instrumentos de política monetária e cambial.
174
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito.
175
Informações CMN: >http://www.fazenda.gov.br/portugues/orgaos/cmn/cmn.asp< Acesso 21/09/2006
105
O CMN é constituído pelo Ministro de Estado da Fazenda (Presidente),
pelo Ministro de Estado do Planejamento e Orçamento e pelo Presidente
do Banco Central do Brasil (Bacen). Os serviços de secretaria do CMN são
exercidos pelo Bacen.”
Isto significa que, na prática, o Congresso Nacional, como instância
democrática no exercício do poder (todo o poder que emana do povo), com
delegação política, conferida por milhões de eleitores, para a função específica de
legislar sobre política de crédito, abdica essa função que é delegada a três
pessoas: O Ministro da Fazenda; o Ministro do Planejamento e o Presidente do
Banco Central do Brasil. O vazio institucional e o déficit de Estado, relativamente
à política de crédito passam, a partir dessa omissão do Congresso Nacional, a ser
objeto de deliberações apoiadas em resoluções, notas técnicas, portaria e todo
entulho, lixo e excrescência que se possa produzir para beneficiar o sistema
financeiro.
A insuficiência do quadro institucional, relativamente à política de crédito é
expressamente reconhecida pelo BNDES
176
:
“A indústria de microfinanças no Brasil ainda encontra-se num estágio
embrionário, mesmo possuindo um histórico de mais de duas décadas em
microfinanças. O país apresenta uma série de condições favoráveis ao seu
desenvolvimento, como uma grande quantidade de clientes potenciais -
70% da população brasileira está excluída do sistema financeiro -, um
setor bancário que não tem demonstrado interesse em atender às classes
mais pobres e instituições com crescente experiência em
microfinanciamento.”
De fato, o acesso ao crédito é fundamental para a construção da cidadania
e serve como lastro ao desenvolvimento social e econômico. Neste sentido é
ilustrativo observar o entendimento do BNDES, consubstanciado em coletânea
didático-pedagógica, publicada em 1996, especialmente por reconhecer e
declarar o crédito como um direito de cidadania
177
:
“O papel que os micronegócios desempenham na melhoria da qualidade
de vida dessas famílias pode ser ampliado se as mesmas tiverem acesso a
um dos ingredientes necessários à consolidação e crescimento dessas
empresas o crédito.
176
BNDES >http://www.bndes.gov.br/programas/sociais/microcredito_historico.asp< Acesso em 26/11/2005.
177
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social Formação de agentes de crédito,
manual do facilitador, Brasília, 1996, volume 1, p. 37.
106
Apesar da importância sócio-econômica dos micronegócios, o crédito - um
direito de cidadania não lhes tem sido viabilizado [...]
As instituições bancárias, pelo fato de apenas visarem o lucro, priorizam
operações de grande vulto. Além disso, as exigências de documentação e
garantias, os trâmites burocráticos, os juros excessivos e a terminologia
utilizada são fatores por demais complicados, contrangedores de alto
custo.”
A sensibilidade do BNDES, sobre o microcrédito, finda-se com este
diagnóstico. A implementação do programa que deveria destinar-se ao
fortalecimento da cidadania e à estruturação produtiva vai, nos anos
subseqüentes, servir a outros interesses como se verá.
Deve-se levar em conta que a política de crédito de cunho geral, por ser
ineficiente, como parece demonstrado, justificaria uma política pública de crédito
direcionada, focada no segmento que o Estado deve ter como público-alvo
prioritário. Esse público como aduz o BNDES, ao dar início à denominada política
de microcrédito é a massa trabalhadora que mereceu a atenção particular do
Poder Legislativo ao conceber e instituir o Fundo Amparo ao Trabalhador FAT e
o Conselho do Fundo de Amparo ao Trabalhador CODEFAT, colocando toda
essa estrutura operacional e financeira sob o comando especial e especializado
do Ministério do Emprego e do Trabalho tendo sob o seu comando e sua
articulação, na implementação dessa política todas as Secretaria de Estado do
Trabalho, seus correlatos Conselhos Estaduais do Trabalho e mais de 5.000 mil
conselhos municipais do trabalho.
Seção 1 Política de Crédito: FAT, BNDES, Bancos Oficiais
Primeiro é preciso entender o que é o FAT, o CODEFAT, a sua política de
crédito e, sobretudo, é imprescindível entender a engrenagem que movimenta o
volume de recursos direcionados a estas instituições públicas, (BNDES e Bancos
Oficiais) às quais compete finalizar a política de crédito implementada com
recursos do FAT.
A Constituição Federal estabeleceu as bases para a construção de um
sistema público de emprego no país. O inciso II do art. 7º da CF assegura como
direito dos trabalhadores urbanos e rurais o seguro-desemprego, em caso de
desemprego involuntário. O artigo 239 da CF redireciona as arrecadações do Programa
107
de Integração Social - PIS (instituído pela Lei Complementar nº 7/1970) e do Programa
de Formação do Patrimônio do Servidor Público Pasep, (instituído pela Lei
Complementar nº 8/1970), ambos de direito individual, passam para direito coletivo,
dando origem ao FAT Fundo de Amparo ao Trabalhador e, o mesmo artigo, institui o
abono salarial aos trabalhadores com renda até dois salários mínimos, mensais, aos
contribuintes do PIS/Pasep.
Dois anos após a promulgação da Constituição Federal, em janeiro de
1990, mediante a Lei 7.998, foram regulamentados o seguro-desemprego e o
abono salarial e foi instituído o FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador. O FAT é
um fundo contábil, de natureza financeira, subordinando-se, no que couber, à
legislação vigente. O FAT (art. 10, lei 7.998) é vinculado ao Ministério do
Trabalho.
Na mesma Lei 7.998 foi instituído o CODEFAT com a missão contribuir
para sustentabilidade das políticas públicas de emprego zelando pelas aplicações
do FAT. Por meio do artigo 18 desta mesma Lei, abriu-se à participação da
FEBRABAN e, a partir daí surgem as resoluções do CODEFAT, beneficiando
explicitamente a Serasa, mediante a exigência de consulta cadastral em todas as
operações de crédito a serem financiadas com recursos do FAT.
De fato e de direito a União - representada no CODEFAT
178
por diversos
Ministérios; BNDES e Bancos Oficiais compartilha fraternalmente (ou
paternalisticamente) com a FEBRABAN relevantes decisões consubstanciadas
em atos públicos de gestão do FAT que detinha, em 2005, recursos da ordem de
R$ 116.000.000.000,00 (cento e dezesseis bilhões de reais).
A existência deste volume de recursos, (R$ 116 bilhões), é, certamente, o
motivo da participação da Confederação Nacional das Instituições Financeiras
CNF (leia-se FEBRABAN e Serasa S.A), na composição legal do CODEFAT.
Estes recursos do FAT representam quase 10 vezes o fantástico, o
monumental, o insuperável volume de R$ 12,3 bilhões que, segundo matéria de
Luísa Gockel
179
, foram destinados pelo Governo Lula, ao FOME ZERO que é um
programa que, pela influência eleitoral, tende a converter em programa de
Estado, com relevantes configurações éticas, políticas, sociais, podendo-se
destacar, segundo essa matéria, as seguintes avaliações de Governo:
178
Artigo 10, Lei 7.998 e artigo 1º do Decreto 3.101/99.
179
Revista do Terceiro Setor. Op. Cit.
108
“O programa Fome Zero, carro-chefe do governo de Luiz Inácio Lula da
Silva, não foi o primeiro, mas certamente o mais ambicioso. Levou,
portanto, os louros, principalmente no cenário internacional, e as críticas,
que o apontam como assistencialista e eleitoreiro. [...].
O Fome Zero envolve 11 ministérios e tem 31 ações e programas que
formam seus quatro eixos articuladores: ampliação do acesso à
alimentação, fortalecimento da agricultura familiar, promoção de processos
de geração de renda e mobilização e controle social. [...].
Existem regiões onde esse dinheiro representa 70% da arrecadação anual
do município. O Bolsa Família tem um grande impacto na economia local.”
Voltando-se ao FAT, cumpre evidenciar alguns ingredientes do seu
(aparentemente) intricado funcionamento. Primeiro, o volume de recursos do FAT
está distribuído por diversas instituições financeiras que têm atribuição de
implementar políticas públicas, diversificadas em mais de uma dezena de
programas, (como se verá, oportunamente). Segundo, essas políticas públicas
são instituídas pelo CODEFAT, com a participação da FEBRABAN, para
beneficiar a Serasa e aos Bancos Oficiais. Beneficia-se a Serasa mediante
consulta cadastral que inicialmente é exigida por sucessivas resoluções do
CODEFAT, no efetivo exercício de concepção de política de crédito
180
de
competência privativa da União, e, neste sentido, o CODEFAT legisla, executa e
fiscaliza em substituição ao poder legislativo, ao poder executivo e ao Tribunal de
Contas da União. O benefício direto aos Bancos Oficiais é propiciado pela
rentabilidade dos recursos financeiros que saem do FAT sem a devida aplicação
social. Esses recursos captados para implementar políticas de emprego, trabalho
e renda, (amparo ao trabalhador), ficam retidos nos Bancos Oficiais que se
beneficiam pela ineficiência ao não disponibilizá-los ao público-alvo.
Assim pode-se afirmar, sem sombras de dúvidas, que os Bancos Oficiais
beneficiam-se dos recursos do FAT pela ineficiência. Esse mecanismo nefasto e
discriminatório, gerou, no período de 2000 a 2005, depósitos de R$
502.948.800.000,00 (ou seja, mais de quinhentos bilhões de reais) no BNDES e
nos Bancos Oficiais. No mesmo período, os créditos concedidos atingiram o
volume total de R$ 59.536.785.187,00 (ou seja menos de sessenta bilhões de
reais) o que significa 11,8% dos recursos transferidos, pelo CODEFAT, às
instituições oficiais de crédito.
180
Política de Crédito: artigo 22, VII, da Constituição Federal.
109
Para justificar a retenção especulativa de recursos financeiros da ordem de
88% do valor transferido pelo FAT, mediante a recusa de crédito, basta aos
Bancos Oficiais firmar contratos, sem licitação, com a Serasa como,
exemplificativamente, acontece com o BNB Banco do Nordeste Brasileiro
181
:
“Processo: 2005/0109, de 17/01/2005; Objeto: Contratação de prestação
de serviços de informações de pessoas físicas e jurídicas, referente aos
produtos CONCENTRE, CREDIT BUREAU, COLLECTION SERASA
RELATO, CREDIT RATING, SINALIZA e RELATÓRIOS
INTERNACIONAIS para os anos de 2005/2006; Fornecedor: SERASA S/A;
Prazo de vigência: 01/02/2005 a 31/01/2007; Valor total: R$ 10.478.376,96;
Fundamento legal: Art. 25, caput da Lei 8.666/93; Autorização: Diretoria,
em 25/01/2005; Ratificação: Roberto Smith, Presidente, em 25/01/2005.”
A mera consulta à Serasa cumpre o papel desejado pelo Estado através
dos seus agentes financeiros, (BNDES e Bancos Oficiais). A justificativa é a
impossibilidade de emprestar aos cidadãos negativados os recursos do FAT que
passam assim a alimentar o mercado financeiro.
Com este procedimento os Bancos Oficiais detinham, apenas no ano de
2005, quase R$ 117 bilhões (cento e dezessete bilhões de reais) em depósitos
com pagamento, ao longo do período que vai do ano de 2000 a 2005, ao FAT, de
R$ 53,3 bilhões, a título de juros e, por outro lado, empréstimos aos beneficiários
finais, no mesmo período, em torno de R$ 59,5 bilhões.
Algumas indagações ficaram sem resposta, no decorrer desta pesquisa,
por absoluta limitação de tempo e de fonte de pesquisa: que aplicação financeira
os bancos oficiais estão fazendo com os recursos do FAT, que lhes são
destinados, que justifique o pagamento de juros em percentual tão próximo ao
volume de empréstimo alocado em “programas sociais”? Os bancos oficiais
estariam destinando os recursos ociosos, para outros fins? Que fins seriam
esses? Esses outros fins são financeiramente rentáveis a ponto de justificar a
retenção de recursos ociosos? O interesse público está sendo atendido? O
Ministério Público da União tem conhecimento dessa situação? O Tribunal de
Contas da União e o Ministério do Trabalho estão fiscalizando as ações do
181
BNB Banco do Nordeste do Brasil: >http://www.bnb.gov.br < Acesso em 26/11/2006. Link:
>http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/fornecedores/editais_publicados/editais/dispensa_inex_jan_2005.htm<
110
CODEFAT e dos Bancos Oficiais? O Congresso Nacional tem acompanhamento
dessas ações?
Sobre os juros - tido pelo CODEFAT como satisfatório - mesmo recebendo
um percentual de 6% ao ano e mesmo sem o atendimento social a que o FAT se
destina, o relatório do Ministério do Planejamento, disponível na Internet, informa
que:
182
“Esses déficit’s vem sendo cobertos por outras receitas do FAT , cuja
totalidade é constituída de receitas financeiras provenientes de aplicações
das disponibilidades financeiras do fundo e dos juros pagos pelo BNDES
como remuneração dos empréstimos constitucionais concedidos àquele
banco. [...]
A estimativa dessa receita é baseada no cálculo de juros sobre o montante
de recursos emprestados ao BNDES, sendo os juros remunerados a taxa
de 6% ao ano [...].”
Relembrem-se, aqui, alguns pontos essenciais sobre a engrenagem
montada através do CODEFAT, pelos arautos da moralidade que se arvoram a
julgar a honra do povo brasileiro, FEBRABAN e Serasa: a) repasse de recursos
que ficarão retidos nos bancos oficiais; b) pagamento de juros pelos bancos
oficiais a taxas simbólicas ao FAT; c) contratação obrigatória e por dispensa de
licitação da Serasa por todos os agentes públicos operadores das políticas de
crédito e de microcrédito; d) como o número de trabalhadores negativados está
em torno de 40 milhões, algo equivalente a 57% da PEA Urbana, os empréstimos
são convenientemente inviabilizados e os recursos - propositalmente ociosos
ficam a disposição do BNDES e dos Bancos Oficiais que dispõem de recursos
captados a custo baixíssimo e sem recolhimento de depósito compulsório.
O arranjo institucional patrocinado pelo Estado-nação, (no caso concreto, o
Brasil) fica assim: o FAT recebe juros pagos pelos bancos oficiais em decorrência
de valores retidos; os bancos oficiais utilizam esses recursos como bem
entendem; a Serasa dita ao Estado-nação quem pode e quem não pode ser
beneficiário da política pública de crédito e de microcrédito.
182
> http://www.planejamento.gov.br/arquivos_down/sof/orcamento_2007/anexos/Anexo_IV.9.pdf< Acesso
em 23/10/2006
111
Deve-se asseverar que essa política pública de crédito (e microcrédito) já
é, ela própria, residual, feita para atender aos setores marginalizados pela política
econômica como reconheceu o BNDES
183
, ao implementar o microcrédito:
“As dificuldades econômico-sociais geradas pelo desemprego e pela
concentração de renda têm desafiado os governantes no sentido de
ampliar as oportunidades de novos empregos/ocupações.
Na tentativa de obter renda para si e seus familiares, muitos chefes de
famílias entre estes grande incidência de mulheres iniciam uma
atividade econômica por contra própria, a partir do que “sabem fazer”.
Muitos investem o que não possuem, na esperança de proporcionar
“melhores dias aos seus”. Canalizam a totalidade de suas energias e
esperanças para criar, manter e fazer crescer sua empresa com a ajuda da
família que é, na realidade uma “famiempresa”. Carecem de tecnologia, de
recursos financeiros, de capacidade administrativa, mas são impulsionados
pela necessidade de sobrevivência da família e pela vontade de viver
honestamente, vetores que geram energia imensurável e tem construído
muitas histórias exemplares, verdadeiras lições de auto-ajuda e de
dignidade.
Por menores que sejam, estes negócios podem ser reconhecidos como
empresas, visto que investem, correm riscos e visam lucro.”
Apesar do aparente discurso ético, o que prevalece é o mecanismo que
impede a disponibilização dos recursos do FAT, ao trabalhador, em uma
triangulação que demonstra uma coordenação perfeita de interesses da
FEBRABAN, da Serasa e dos Bancos Oficiais, vejam-se, neste sentido, algumas
decisões do CODEFAT, em nome do Estado-nação:
PROGER Novo Empreendedor
184
Art.1º Instituir a linha de crédito especial denominada PROGER Novo
empreendedor, no âmbito do Programa de Geração de Emprego e Renda -
PROGER Urbano, para a concessão dos financiamentos de que trata o
Programa de Crédito Orientado para Novos Empreendedores objeto do
Termo de Cooperação Técnica MTE/CODEFAT nº 01/2001 - BB/SEBRAE.
X - INSCRIÇÃO E SELEÇÃO: a [...]
b) seleção: os inscritos passarão por um processo de seleção e entrevista
pelo SEBRAE, onde serão avaliadas suas possibilidades de empreender,
sua concepção de negócio e sua situação cadastral e dos demais sócios,
183
BNDES - Formação de agentes de crédito, manual do facilitador Volume 1 - Op. Cit. p. 37.
184
MTE > http://www.mte.gov.br/trabalhador/fat/codefat/resolucoes/textos/res275.asp< Acesso 10/07/2006
112
se for o caso, junto ao [...] SERASA e CCF - em caso de restrição o
candidato estará automaticamente desclassificado.”
PROGER - Profissional liberal
185
FINALIDADE: Apoio financeiro, mediante abertura de crédito fixo,
objetivando o aumento da produtividade, a manutenção/geração de
emprego e renda e fixação dos profissionais liberais em suas regiões de
origem.
BENEFICIÁRIOS: Profissionais liberais de nível médio e superior, desde
que não inseridos no [...] SERASA.”
FAT Habitação
186
Art. 5º As bases operacionais gerais do FAT-HABITAÇÃO são as
seguintes:
I - Prazo de amortização: até 180 meses, sem carência;
II - Limite máximo de avaliação do imóvel: R$ 300 mil;
III - Itens financiáveis: terreno e insumos de produção, considerando como
limite o valor de avaliação do imóvel quando pronto, pela instituição
financeira;
IV - Itens não financiáveis: Infra-estrutura externa;
V - Restrições: aos impedidos de operar pelo Banco Central do Brasil -
BACEN e aos negativados no [...] SERASA e CCF; e
FAT Exportar
187
Art. 2º As linhas do Programa FAT-EXPORTAR terão as seguintes bases
operacionais: [...].
I
I
FINALIDADE: Financiamento ao exportador, na fase
pré-embarque, da produção de bens que apresentem índice de
nacionalização, em valor, igual ou superior a 60% (sessenta por cento); [...]
II BENEFICIÁRIOS: micro, pequenas, médias e grandes empresas;VIII
IMPEDIMENTOS: inadimplentes perante a Administração Pública Federal,
os impedidos de operar pelo BACEN e negativados no [...] SERASA e
CCF;”
185
MTE >http://www.mte.gov.br/empregador/proger/proger/agentesbancobrasil/profissionalliberal.asp<Acesso
10/07/2006
186
MTE >http://www.mte.gov.br/trabalhador/fat/conteudo/fathabitacao.asp< Acesso 10/07/2006
187
MTE > http://www.mte.gov.br/trabalhador/fat/codefat/resolucoes/conteudo/1808.asp< Acesso 10/07/2006
113
Cooperativas e associações de produção
188
FINALIDADE: apoio a investimento fixo e de capital de giro para
empreendimentos de cooperativas e associações, exceto as de crédito,
que visem a geração de emprego e renda.
BENEFICIÁRIOS: [...] Obs.: desde que não inseridas no [...] SERASA.
PROGER - Setor Informal
189
FINALIDADE: [...] Apoio financeiro, mediante abertura de crédito fixo ao
setor informal da economia, objetivando sua integração ao setor produtivo
formal da economia e a geração de emprego e renda. [...]
BENEFICIÁRIOS: Pessoas físicas que atuam no setor informal da
economia (empreendimentos de caráter Domiciliar, artesãos e outros que
comprovadamente assim sejam caracterizados), desde que não inseridos
no [...] SERASA, observadas as normas gerais.” de concessão de crédito do
Banco do Brasil.
Na mesma linha, adotada historicamente pelo CODEFAT - através das
decisões acima apresentadas, em um ato de demonstração do perfeito
entrosamento a União (em comunhão com tudo o que precedeu), instituiu por
Medida Provisória nº 226/04 convertida na Lei 1.110/05, a obrigatoriedade de
informação cadastral.
Esta providência do Poder Legislativo, (Lei), por iniciativa do Poder
Executivo, (Medida Provisória), é o coroamento da política de crédito
implementada pelo CODEFAT que, a rigor, capta recursos do setor produtivo
(PIS/PASEP, preponderantemente) para transferir aos Bancos Oficiais que
passam a obter lucros a partir da ineficiência no cumprimento de uma
pseudopolítica de apoio ao desenvolvimento, concentrando poder em dois
segmentos do mercado financeiro: os Bancos Oficiais; FEBRABAN e Serasa.
Seção 2 Perfil da Serasa S/A e perfil dos cidadãos negativados pela Serasa
A Serasa segundo ela mesma disponibiliza no seu endereço na Internet de
acesso público
190
:
188
MTE > http://www.mte.gov.br/empregador/proger/proger/agentesbancobrasil/cooperativas.asp<
189
MTE >http://www.mte.gov.br/empregador/proger/proger/agentesbancobrasil/setorinformal.asp< Acesso 10/07/2006
190
Serasa > http://www.serasa.com.br/empresa/serasa/index.htm< Acesso 15/08/2006
114
“A Serasa, uma das maiores empresas do mundo em análises e
informações para decisões de crédito e apoio a negócios, atua com
completa cobertura nacional e internacional, por meio de acordos com as
principais empresas de informações de todos os continentes.
Presente em todas as capitais e principais cidades do País, totalizando 115
pontos estratégicos, a Serasa conta com um quadro de pessoal com mais
de 2.000 profissionais e a retaguarda de um amplo centro de telemática.
Como maior banco de dados da América Latina sobre consumidores,
empresas e grupos econômicos, a Serasa participa da maioria das
decisões de crédito e de negócios tomadas no Brasil, respondendo on-
line/real-time, a 3,5 milhões de consultas por dia, demandadas por mais de
300 mil clientes diretos e indiretos.”
Segundo se extraí do relatório final da CPI Serasa:
191
“A Serasa foi criada em 1968 de uma ação cooperada entre bancos, com o
objetivo de centralizar os serviços de confecção de ficha cadastral única,
compartilhada por todos os bancos associados. Na década de 90, a
empresa começou a expandir sua atuação, passando a fornecer
informações e análise para todos os segmentos da economia e para
empresas de todos os portes. [...]
A Serasa S.A. é uma sociedade anônima de capital fechado, controlada
por instituições financeiras, com um capital social de R$123.200.000,00
(cento e vinte e três milhões e duzentos mil reais), com matriz na cidade de
São Paulo.”
No ano de 2003, a Serasa, (oligopolista), detentora de 60% do mercado
aonde atua
192
, contava em seus registros com quase 23 milhões de cidadãos
negativados, segundo consta no mesmo relatório:
193
“Somente junto a empresa Serasa, que forneceu dados sobre
inadimplência em resposta ao Requerimento nº 8/2003 do nobre Deputado
Luiz Alberto, estão inscritos com anotações negativas quase 23 milhões de
consumidores.”
O perfil da Serasa pode ser aferido, também, pelo que apresenta o
Ministério Público Federal no Estado de São Paulo em, até o momento, quatro
Ações Civis Públicas ajuizadas tendo sempre como réu, dentre outros a Serasa.
191
CPI SERASA. Relatório Final. Op. Cit. p. 8/10
192
CPI SERASA. Relatório Final. Op. Cit. p. 10
193
CPI SERASA. Relatório Final. Op. Cit. p. 5
115
Vejam-se, na seqüência alguns trechos extraídos de algumas dessas
Ações (ACP):
194
“Quando tem seus dados sigilosos amplamente divulgados, os cidadãos
têm feridos vários dos mais preciosos valores inerentes à cidadania e a à
individualidade. O sentimento de confiança que mantêm, e devem
manter, em face do Estado é ferido de morte, eis que justamente quem
deveria proteger a privacidade e a intimidade de seus cidadãos, delas se
desfaz, no mais das vezes, em troca de dinheiro.
Além disso, o sentimento de segurança é também gravemente atingido.
Como, aliás, poderá um cidadão ter o sentimento de segurança sabendo-
se que qualquer indivíduo poderá ter acesso a informações suas
extremamente pessoais? Informações que, em poder de inescrupulosos,
podem perfeitamente ser usadas como motivo de pressões e ameaças. Daí
a insegurança coletiva.”
Em outra Ação Civil Pública tendo por objeto impugnar um “produto” da
Serasa denominado PEFIN em face da Serasa e do Banco Central do Brasil,
assevera o MPF/SP
195
:
“O produto, que tem uma aparência de banco de dados de inadimplentes,
é, na realidade, um forte instrumento de cobrança, utilizado para causar
constrangimento aos consumidores com débitos em atraso.
Além disso, o cadastro de consumidores denominado PEFIN possui dados
cuja veracidade não é verificada pela SERASA.”
Nesta mesma ACP, destinada a atacar o PEFIN, o Ministério Público
Federal, no Estado de São Paulo, esclarece mais um ponto relevante para os fins
deste estudo, relativamente ao perfil da Serasa, como instrumento material de
vexação pública dos devedores:
196
“A SERASA funciona como um mero órgão de divulgação, exatamente
como um jornal ou uma revista, que age como se não possuísse qualquer
vinculação com o conteúdo das matérias, mas leva ao conhecimento do
público as informações que lhe são encaminhadas. [...].
Na verdade, a Serasa simplesmente fornece o instrumento material para a
VEXAÇÃO PÚBLICA DOS DEVEDORES, sem qualquer compromisso com
194
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso em 26/11/2006. p. 23
195
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/PEFIN_SERASA_ACP.pdf< Acesso em 26/11/2006. p. 2
196
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/PEFIN_SERASA_ACP.pdf< Acesso em 26/11/2006. p. 14
116
a veracidade das informações ou com a ciência dos lançamentos por parte
dos devedores.”
A demonstração de que a Serasa aceita as informações que lhe são
dirigidas “como um jornal ou uma revista, que age como se não possuísse
qualquer vinculação com o conteúdo das matérias” é reforçado em outra Ação
Civil Pública ao informar que os interessados podem acessar as informações
cadastrais e também inserir novos dados sobre qualquer cidadão:
197
“Em síntese, qualquer pessoa jurídica que demonstre interesse pelas
informações cadastrais do CREDIT BUREAU SERASA, em tese, poderá
acessá-las, bem como poderá inserir naquele cadastro novos dados
pessoais sobre literalmente qualquer cidadão.”
Essa assertiva do Ministério Público Federal no Estado de São Paulo pode
ser corroborada pelo anexo 5 PEFIN que, segundo informa a Serasa, em
documento divulgado na Internet e devidamente registrado em ata notarial:
198
“O PEFIN é um sistema de centralização de informações sobre Pendências
Financeiras, com o propósito de formar banco de dados com registros de
débitos em atraso, independente de terem sido ou não protestados, ou
sofrido quaisquer tipos de anotações. [...] Podem ser fornecedoras de
dados ao PEFIN [...] prestadoras de serviço e comércio em geral.”
A situação apresentada pela atuação comercial da Serasa clama por
limites que o Ministério Público Federal, no Estado de São Paulo, procura
acentuar, ao que parece, sem sucesso:
199
“A inscrição de nome do consumidor em tais cadastros acaba por restringir
as possibilidades de realização de atos da vida cotidiana que são
garantidos, em princípio, a todos os cidadãos. A existência de qualquer
informação ou dado, de conhecimento público, que implique na redução
dessas capacidades ou prerrogativas, não pode ser privada ao imediato
conhecimento dos consumidores, sob pena de se gerarem prejuízos
irreparáveis. [...]
Em suma, não é admissível que o Banco Central continue se eximindo de
suas responsabilidades, sob o falso argumento de que as atividades da
197
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/Serasa-CDC-intimidade-PR1.pdf< Acesso em 26/11/2006. p. 9.
198
Anexo 5 PEFIN negativação independente de título ou de qualquer tipo de anotação
199
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/Serasa-CDC-intimidade-PR1.pdf< Acesso 26/11/2006. p. 14 e 17
117
SERASA não estariam abrangidas pela sua competência de atuação legal,
em detrimento dos cidadãos e em favor das instituições financeiras que
continuam desvirtuando os cadastros de inadimplência, convertendo-os em
autêntico instrumento de coação.”
Em mais uma Ação Civil Pública o Ministério Público Federal em São
Paulo, assevera os vexames e contrangimentos a que estão submeditos os
cidadãos negativados pela Serasa:
200
“[...] não é difícil imaginar os efeitos negativos que tem a inscrição do nome
de qualquer pessoa, física ou jurídica, no cadastro de inadimplentes da
SERASA. Dada a facilidade de acesso ao sistema e a amplitude de sua
utilização no meio bancário, a informação negativa constante sobre o
consumidor e sua divulgação a uma das associadas da ré termina por
obstar toda e qualquer forma de obtenção de crédito, impedindo a
realização de negócios e denegrindo sua imagem, pois passa a ser visto
no meio social como um mau pagador, como pessoa que não honra seus
compromissos e, por isso, não merecedora de crédito. Sofre, assim,
vexames e constrangimentos perante os empregados da loja onde seu
crédito foi recusado. [...].
O poder constrangedor da inscrição do nome do suposto devedor no
cadastro da SERASA não passou despercebido pelas instituições
financeiras. Tendo em vista seu alto grau de efetividade na cobrança das
dívidas, superando até mesmo as vias judiciais tradicionais, tornou-se
prática corrente sua utilização como instrumento de coação destinado a
convencer” o devedor a quitar suas dívidas, consubstanciando flagrante
prática abusiva.”
Essa situação de absoluta abusividade quanto aos direitos de cidadania e
à dignidade da pessoa humana, tem gerado um rastro de exclusão social e
produtiva que é difícil de avaliar. A leitura da planilha, apresentada pela Serasa,
na CPI da Serasa, constante do anexo 6, permite concluir que: a) o número de
cidadãos negativados pela Serasa é de 23 milhões e essa empresa detém 60%
do mercado onde atua; b) dos cidadãos negativados pela Serasa, 53% está em
idade plenamente produtiva, na faixa etária entre 22 e 40 anos; c) os cidadãos
negativados com instrução superior representam 16% e outros 52% têm 2º grau
ou parte.
Tomando-se por base essas informações pode-se inferir que: a) o número
total de cidadão negativados deve estar próximo de 40 milhões de brasileiros; b)
200
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SERASA-PR2.pdf< Acesso 26/11/2006. p. 3
118
os cidadãos negativados com nível médio e superior totalizam 26 milhões de
cidadãos brasileiros, com capacidade de entendimento e reflexão; c) os cidadãos
negativados com idade produtiva, entre 22 e 60 anos, totalizam mais de 29
milhões de cidadãos brasileiros; d) os cidadãos negativados com renda superior a
seis salários mínimo, mensais, são 21,4 milhões.
Caberia ao Estado-nação aferir o custo social, econômico e político
representado pela capacidade produtiva de um contingente de mais de 21
milhões de cidadãos produtivos, com idade entre 21 e 40 anos, excluídos das
políticas de crédito implementadas pelo CODEFAT, bem assim caberia ao
Estado-nação aferir a conveniência e oportunidade de atribuir à FEBRABAN e à
Serasa o poder de efetivamente comandar a política pública de inclusão social
tendo como instrumento o crédito e o microcrédito.
Que país pode preparar e desprezar capital humano qualificado? Qual o
custo social, político e eleitoral desta escolha? Resta, portanto, ao Estado-nação,
fazer, em algum momento, a necessária avaliação política, econômica e social: a)
Quanto custou ao Brasil este esforço social na preparação deste capital humano
qualificado? b) Qual o custo alternativo de excluir este contingente qualificado do
mercado produtivo e da efetiva participação das políticas de inclusão? c) Que
interesses o Estado defende e representa, ao escamotear e simular o
cumprimento de seu poder-dever constitucional?
Como compreender que - no bojo das Políticas Públicas de Inclusão Social
pelo trabalho, comandada pelo Ministério do Trabalho e do Emprego e por uma
vasta rede formada por todas as Secretaria de Estado do Trabalho e similares,
por Conselhos Estaduais do Trabalho em todos os 27 estados da Federação e
por algo em torno de 5.000 Conselhos Municipais do Trabalho, permanente
fiscalizados pelo Tribunal de Contas da União, Corregedoria Geral da União,
Ministério Público e uma infinidade de especialistas dedicados, competentes,
sérios - mantenha-se e nutra-se, como hospedeiro, seres parasitários com
capacidade de produzir mais pobreza, miséria e exclusão social, do que todo o
Estado, com a sua estrutura, tem condição de enfrentar.
Este convívio pacífico das estruturas de poder do Estado-nação com o
sistema financeiro encerra uma contradição entre duas forças contraditórias e
auto-excludentes com clara desvantagem para a inclusão social, a demonstrar, de
119
forma permanente e reiterada um déficit de Estado. Este déficit de Estado tem
graves conseqüências políticas, sociais e econômicas que pode ser resumida em
uma frase: o crescente desalento dos cidadãos. Como promover o
desenvolvimento como inclusão social, pelo trabalho, sem utilizar o crédito? Esta
questão parece de extrema relevância, frente ao desafio de transformar o crédito
em insumo direcionado à inclusão social ao contrário de que vem acontecendo,
hoje, quando a possiblidade de acesso ao crédito é obstada por todo tipo de
constrangimento e vexação pública. Sem dúvida, o Estado-nação está sendo
extremamente displiscente com algo que é essencial para o desenvolvimento
como se procura demonstrar neste estudo.
Seção 3 Relatório do BID, 2005: Libertar o Crédito
O relatório do BID
201
, referido ao longo deste estudo, classifica o crédito na
América Latina e no Caribe como escasso, caro e volátil. Nesta sessão busca-se
dimensionar qual é o sentido atribuído pelo BID relativamente a estes três
variáveis que justificam o título do relatório: libertar o crédito. Ressalte-se,
inicialmente, que o relatório, contém dois subtítulos, não consignados na
referencia bibliográfica: Progresso econômico e social na América Latina
(libertar o crédito) Como aprofundar e estabilizar o financiamento bancário.
O que significa crédito escasso? E qual é a conseqüência da escassez
para o desenvolvimento social? Essas questões podem ser respondidas pelo
relatório do BID:
202
“Devido ao baixo grau de desenvolvimento do setor financeiro em geral e o
tamanho reduzido do setor bancário em particular, um dos principais
problemas enfrentados pelas empresas da América Latina é o acesso aos
mercados financeiros. [...]. Em países onde as limitações de crédito são
mais fortes, as empresas não conseguem crescer de modo adequado. [...].
Além disso, [...], as empresas pequenas e médias enfretam mais restrições
de crédito na América Latina do que em outras partes do mundo.”
201
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 5 e 6
202
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 6
120
Deve-se ressaltar que a escassez é traduzida em percentuais relacionados
ao PIB, na América Latina, segundo o BID
203
, está o índice mais baixo do mundo
com o equivalente a 28%, enquanto em outros países em desenvolvimento a
média é de 72% do PIB.
O que significa crédito caro? O Relatório do BID faz uma correlação
direta entre ineficiência e custo do crédito “confirmando que setores bancários
ineficientes têm spreads mais altos
204
”.
Por sua vez, o relatório FOCUS do Banco Central, publicado em maio de
2004, evidencia, um caos, para muito além da ineficiência. O empréstimo que
alcançou maior sucesso foi o Crédito Pessoal que, por sua natureza, é
emergencial e de curto prazo, com R$ 35 bilhões alocados, graças ao débito
consignado em folha, com variação positiva de 32% no período de um ano,
enquanto o crédito hipotecário direcionado a uma política pública de habitação
alcançou um volume de R$ 23,5 bilhões. Ou seja, prevaleceram créditos
pessoais, (para rolagem de dívidas), aos créditos de longo prazo, destinados ao
financiamento do déficit habitacional de mais de 7,2 milhões de moradias. Parece
ainda mais grave, que os créditos concedidos no Cartão de Crédito com liberação
de R$ 7,0 bilhões, supere em sete vezes o crédito pessoal para financiamento
imobiliário no valor de R$ 1,0 bilhão.
O Banco Central
205
, neste mesmo Relatório, revela a tática e a
artificialidade na manipulação do spread:
“[...] em relação ao spread, observa uma tendência de queda desde maio
de 2003, fechando maio de 2004 em 27,2% [...] O aumento da participação
relativa dos empréstimos consignados, cujas prestações são descontadas
na folha de pagamentos, reduz significativamente o risco de inadimplência,
influenciando a redução do spread bancário na carteira de crédito pessoal.”
O que significa crédito volátil? A volatilidade é uma espécie de
termômetro da fuga dos capitais direcionados ao crédito. Neste sentido, cabe
verificar o que diz o Relatório 2005 do BID:
206
203
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 5 e 6.
204
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 7.
205
Relatório FOCUS Evolução do Crédito e Spread Bancário Maio 2004. p. 01 e 02
>http://www4.bcb.gov.br/gci/Focus/FocusAssunto.asp?letraInic=B&id=bancmercado<
206
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 8
121
“A Europa do Leste e a Ásia Central tiveram a mais alta volatilidade de
crédito na década de 1990 (21%). Isso não é surpreendente, considerando
as drásticas transformações econômicas que os ex-países comunistas
sofreram durante esse período. A África Subsaariana (18%) e a América
Latina e o Caribe (14%) são as duas regiões seguintes em termos de
volatilidade de crédito. Os países desenvolvidos apresentam a volatilidade
de crédito mais baixa (6%). [...] Voltando à América Latina, o Panamá tem
a volatilidade mais baixa (6%), e a Venezuela tem um dos níveis mais altos
da região (25%), similar a do México, porém mais baixo que o do Brasil
(28%).”
Como tentativa de contornar esta situação calamitosa, algumas iniciativas
esparsas são identificadas com a finalidade de viabilizar o acesso ao crédito
como é o caso da Associação de Garantia de Crédito no Rio Grande do Sul,
restrita 33 municípios da Serra gaúcha que no conjunto registram um PIB superior
a R$ 11,935 bilhões e uma população de mais de 779 mil habitantes. A instituição
de um fundo de risco, foi uma solução local encontrada, como se relata:
207
“O fundo de risco gerido pela AGC é constituído pelas seguintes fontes: R$
1,614 milhão aportados pelas prefeituras, ACIs e empresas da região; R$
4,156 milhões proveniente do SEBRAE nacional e do Rio Grande do Sul e
R$ 7,200 milhões do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)
como contrapartida aos aportes locais e mais R$ 195 mil da Associação
Industrial da Província de Vicenza, na forma de apoio técnico, consultoria e
o fornecimento de software que possibilita a capacitação de operadores e o
acompanhamento das atividades de garantia de crédito. A AGC inicia suas
operações de garantia de crédito com um quadro integrado por 357
empresas cadastradas que faturam até R$ 15 milhões/ano, o que identifica
o segmento de micro e pequena empresa. Destas, 170 empresas já
efetuaram a subscrição da cota e 160 assinaram o Termo de Adesão. A
cota de adesão ao sistema é de R$ 2,4 mil, parcelada em até 24 vezes. 17
prefeituras da região também já se associaram a entidade.“
As iniciativas locais, por enquanto, tem sido a saída para enfrentar um
problema que tem sido pouco discutido, pouco percebido, pouco enfrentado: o
paradigma da Serasa.
207
>http://www.agcserra.org.br< Acesso em 10/09/2006
122
CAPÍTULO 3 PARADIGMA SERASA E DIREITOS CONSTITUCIONAIS
O fortalecimento do Estado-nação é permanentemente postulado a partir
do direito, como instrumento racional de verdade científica encerrada em dever
ser como conduta desejável em lugar do ser social bem mais complexo. Esse
saber científico que se pretende puro
208
é, então, plasmado em normas editadas,
regularmente, pelo Estado através das suas casas legislativas. Sabe-se, no
entanto, que o pretenso cientificismo do direito é permeado por lobbies de
interesses que são, por conveniência, subentendidos como residuais. Acontece
que, no caso do sistema financeiro, a operatividade dos atores e o jogo de
interesse é, seguramente, muito mais evidente do que em qualquer outro
segmento onde se produzem normas de dever ser sob o pretenso manto de
isenção do Estado. O poder de influencia dos lobbies pode, neste caso,
simplesmente tutelar os Estados-nação periféricos. Veja-se, neste sentido, a
percepção de MARINONI
209
mesmo quando se refere a uma situação genérica,
sem portanto, aproximar-se de qualquer análise sobre o sistema financeiro.
“[...] à época do Estado liberal a lei era considerada fruto da vontade de um
Parlamento habitado apenas por representantes da burguesia, no qual não
havia confronto ideológico. [...] logo as Casas legislativas deixaram de ser
o lugar da uniformidade; com o passar do tempo do Parlamento tornou
local de divergência, em que diferentes idéias acerca do papel do direito e
do Estado passaram a se confrontar. Aí, [...] não há mais uma vontade
geral, podendo se falar de uma ‘vontade política’, ou melhor na vontade do
grupo mais forte dentro do Parlamento, importando apenas se a lei foi
produzida em processo regular, e não o seu conteúdo, o que contribui para
o surgimento de um direito formalizado. Atualmente, porém, a lei não é
nem mais a expressão de uma vontade política, uma vez que
determinados membros do Parlamento sequer conhecem as suas próprias
vontades. Nessa linha, a vontade da lei seria, na verdade, uma ‘ausência
de vontade’ o que poderia, a partir de um ângulo, representar uma
vontade. Mas, a ausência de vontade é certamente a presença da vontade
de um outro, vale dizer, a presença da vontade de alguém que está por
trás do Parlamento. O que se quer dizer é que a lei do Estado
contemporâneo está muito mais perto de constituir a vontade de lobbys e
dos grupos de pressão do que representar a vontade uniforme do
Parlamento ou expressar a vontade do poder político que legitimamente o
domina.”
208
Tendo como referência a Teoria pura do direito de Hans Kelsen.
209
MARINONI. Luiz Guilherme - A jurisdição no estado constitucional: Estudos em homenagem ao prof.
Egas Moniz de Aragão., São Paulo: RT, 2005. p. 19
123
Sem embargo, quanto às observações precedentes, o discurso do direito,
(precisamente a dogmática jurídica), além dos vícios de origem, apontados por
MARINONI é, também, um discurso circular, (normas fundamentadas em
normas), como se transcreve abaixo nas palavras de GUERRA
210
com a intenção
de dar início ao embate entre o socorrer e o banalizar, proposto neste artigo,
relativamente à função residual dos Estados-nação periféricos, ocupando-se, por
enquanto, do conhecimento ou do saber que tem por função, socorrer o Estado
através da constitucionalização de direitos:
“Alexy, inspirado em Dworkin, divide as normas jurídicas, segundo o critério
de sua estrutura lógica, em duas categorias distintas, a saber: as regras e
os princípios. As regras são normas dotadas de uma estrutura fechada,
nas quais uma conduta determinada vem comandada, isto é qualificada
como obrigatória, proibida ou permitida. As regras correspondem, assim,
à concepção tradicional de norma jurídica como uma prescrição de
determinada conduta como devida [...] associada à indicação das
condições fáticas que, uma vez verificadas, a referida prescrição incide
concretamente.
Já os princípios são normas dotadas de uma estrutura aberta, as quais ao
invés de comandarem a realização de uma conduta específica, “ordenam
que se realizce algo em la mayor medida posible, em re ación com las
possibilidades juridicas y fáticas.” Daí ter Alexy definido os princípios como
mandados de otimização”, caracterizados, portanto, “per el hecho de
que pueden ser cumplidos em diferentes grados y que la medida de su
cumplimiento no solo depende de las posibilidades reales sino también de
las jurídicas”.”
A linguagem do direito, cativante para a leitura de especialistas, é rica em
expressões que pretendem ditar ao Estado-nação - a partir de preceitos éticos e
morais - o que fazer de forma fundamentada, explicita e clara, veja-se, a seguir, o
que diz GUERRA
211
:
“De outra parte, seja considerado que a aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais, isto é, das normas jusfundamentais, venha expressa,
normalmente, com a chamada vinculatividade imediata dos órgãos
públicos a tais normas, no sentido de que tais órgãos ficam vinculados ao
que tais normas prescrevem, independentemente de novas e posteriores
intervenções legislativas. Dessa forma, à luz do que se disse sobre o
conteúdo dos princípios, a aplicabilidade imediata das normas
210
GUERRA. Marcelo Lima, Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo:
Editora Revista dos Tribunais, 2003: p. 84/5.
211
GUERRA. Marcelo Lima. Op. Cit. p. 88/9.
124
jusfundamentais traduz, igualmente, na vinculação imediata dos órgãos
públicos às regras que podem ser derivadas de ou adscritas cada uma de
tais normas jusfundamentais, independentemente do reconhecimento
expresso de tais regras em algum texto legal. Ademais, sendo tais regras
integrantes de uma norma jusfundamental, a qual ocupa posição
hierarquicamente superior na pirâmide normativa, elas se aplicam mesmo
contra regras expressas em textos infraconstitucionais.
Tais considerações acerca da aplicabilidade imediata dos direitos
fundamentais restariam incompletas todavia, se não fosse feita referência
ao caráter prima facie dos princípios, enquanto mandados de otimização.
De tal caráter segue-se, como se viu, que o próprio conteúdo de uma dada
norma jusfundamental só é determinado, em última análise, à luz dos
limites normativos determinados por outras normas normas e princípios
que com elas entrem em colisão. Desse modo, a compreensão exata da
aplicabilidade imediata de tais normas requer um exame mais atento das
possibilidades inafastáveis de colisão entre direitos fundamentais.”
Acentue-se bem que o denominado mandado de otimização, (tal como
pretende Alexy, inspirado em Dworkin), significa dizer que os direitos
fundamentais e dentre eles a dignidade a pessoa humana, são princípios que a
ordem constitucional exige que sejam cumpridos - de forma imediata e vinculada -
por todos os órgãos públicos, isto é, sem a dependência de outras normas
denominadas infraconstitucionais, ou para usar as palavras de GUERRA, já
citadas: a “aplicabilidade imediata das normas jusfundamentais traduz,
igualmente, na vinculação imediata dos órgãos públicos”.
Como se pode constatar, quanto ao exposto, até aqui, neste capítulo, o
mandado de otimização dirige-se, imediata e vinculadamente, a todos os órgãos
públicos tendo como mister dar efetividade ao que a Constituição Federal fixou
como fundamento da República Federativa do Brasil, nos termos do artigo 1º,
inciso III: a dignidade da pessoa humana. Neste sentido, torna-se oportuno,
revisitar a lição de SARLET
212
quanto ao conceito constitucional de dignidade da
pessoa humana:
“[...], podemos encerrar esta etapa do nosso estudo ousando formular
proposta de conceituação (jurídica) da dignidade da pessoa humana que,
além de reunir a dupla perspectiva ontológica e instrumental referida,
procura destacar tanto a sua necessária faceta intersubjetiva e, portanto,
relacional, quanto a sua dimensão simultaneamente negativa (defensiva) e
positiva (prestacional). Assim sendo, temos por dignidade da pessoa
212
SARLET. Igno Walfgang. Op. Cit. p. 60
125
humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser
humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte
do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo
e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe
garantir as condições existências mínimas para uma vida saudável, além
de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais
seres humanos.”
O princípio da dignidade deixou de ser, portanto, mero conceito. A
Constituição o exige efetivo, mesmo quando se refere ao sistema financeiro como
o faz no artigo 192:
“O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da
coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as
cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que
disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas
instituições que o integram.”
Perceba-se que o artigo supra transcrito integra o título VIII da Constituição
relativo à ordem econômica e financeira, aberta com o artigo 170, já citado, que
estabelece, fixa, determina, de forma enfática e clara que a ordem econômica,
deve assegurar a todos existência digna.
Apesar da insistência do discurso jurídico, fica sempre a impressão de que
esses preceitos constitucionais, no Brasil, guardam apenas coerência aparente e
parcial com um processo histórico que assim o exige. Nesta perspectiva histórica
cabe aos Estados-nação assegurar respeito à pessoa humana, tendo-a como um
fim em si mesmo, e isto significa, sobretudo, que os Estados-nação devem
promover o bem de todos sem permitir que tantos tornem-se objetos para que
outros sejam sujeitos. Todos merecem, perante o Estado-nação e perante a
Constituição, tratamento isonômico como sujeitos, porque todos devem ser iguais
em dignidade e em direitos, ou, como já dizia a Declaração Universal dos Direitos
Humanos
213
: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em
direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros
213
Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela resolução 217 A (III) da
Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948: artigo 1º.
126
em espírito de fraternidade”. A referencia a SARLET
214
torna-se, mais uma vez,
oportuna:
“[...] por este motivo assiste inteira razão aos que apresentam a dignidade
da pessoa humana como critério aferidor da legitimidade substancial de
uma determinada ordem jurídico-constitucional, já que diz com os
fundamentos e objetivos, em suma, com a razão de ser do próprio poder
estatal.”
Para entender a benevolência do Estado-nação com o sistema financeiro é
necessário abdicar de qualquer pretensão de aplicar e entender o que a
Constituição Federal referenda, a partir de um longo e penoso processo histórico
das lutas contra a submissão do homem pelo homem.
Esse processo histórico, certamente, contempla o esforço de grande parte
dos Estados-nação, em constitucionalizar o direito visando, com isso, assegurar
maior visibilidade a pontos de relevância que merecem um tratamento superior
relativamente às leis ordinárias, como bem acentua MARINONI
215
:
“[...] a própria história se encarregou de mostrar a arbitrariedade,
brutalidade e discriminação procedidas por leis formalmente perfeitas. [...]
De modo que se tornou necessário resgatar a substância da lei e, mais do
que isso, encontrar instrumentos capazes de permitir a sua limitação e
conformação aos princípios de justiça. Tal substância e esses princípios
tinham que ser colocados em uma posição superior e, assim, foram
infiltrados nas Constituições. [...] A assunção do Estado constitucional, se
ainda permite falar de princípio de legalidade, exige que a ele se dê uma
nova feição, compreendendo-se que, se antes esse princípio era formal,
agora ele tem conteúdo substancial, pois requer a conformação da lei com
a Constituição e, especialmente, com os direitos fundamentais.”
A questão que se deve observar, a partir da constitucionalização do direito,
é se esta providência assegura a dignidade da pessoa humana relativamente ao
tratamento dispensado, pelo Estado-nação, ao sistema financeiro ou se, na pior
das hipóteses, a saída para a crise deve ser buscada com o esgotamento do
paradigma da Serasa, certamente a ser alcançado com o aumento do percentual
de cidadãos negativados que já está atingindo o percentual de 57% da PEA -
Urbana.
214
SARLET. Igno Walfgang. Op. Cit. p. 78
215
MARINONI. Luiz Guilherme. Op. Cit. pp. 21 e 22
127
Seção 1 Evidências de esgotamento do velho paradigma da Serasa
Seguir o paradigma da Serasa vai resultar em uma conclusão inevitável: o
povo brasileiro é caloteiro
216
. A questão, a partir daí, que ficará para ser
resolvida pelo Estado-nação é saber para que serve essa conclusão? O que o
Estado-nação fará com essa conclusão? Para se entender relevância desta
questão é preciso compreender uma distinção básica, essencial, simples, que
consiste exatamente em saber a diferença entre mercado e Estado-nação.
O mercado - no sistema capitalista adotado e aceito pelo Brasil e pela
maioria dos países ocidentais - baseia-se no cumprimento de contratos e visa a
atender ao freguês, ao cliente, hoje denominado: consumidor. O mercado, no
sistema capitalista, segundo a Constituição, deve reger-se pela livre concorrência;
pela valorização do trabalho; pela dignidade da pessoa humana.
Apesar dessas diretrizes constitucionais, é preciso reconhecer que o
mercado tem características que lhe são próprias: é a-histórico, é atemporal e
pode abranger qualquer território e qualquer povo ou nação. O mercado organiza-
se em busca de um elemento que lhe é essencial: o lucro. Para a obtenção do
lucro tudo pode ser feito pelas forças de mercado - desde que o que se pretenda
fazer para obter o lucro não esteja expressamente vedado pela lei - e a própria
Constituição Federal, no caso específico do Brasil, assegura precisamente isto,
(art. 5º, II): ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei. Neste sentido são oportunas as lições de SILVA
217
:
“As bases constitucionais do sistema econômico encontram-se nos arts.
170 a 192, compreendidos em quatro capítulos: um sobre os princípios da
atividade econômica; outro sobre a política urbana; um terceiro sobre a
política agrícola e fundiária e sobre a reforma agrária; e, finalmente, um
quarto sobre o sistema financeiro nacional. [...].
A ordem econômica adquiriu dimensão jurídica a partir do momento em
que as constituições passaram a discipliná-la sistematicamente, o que teve
início com a Constituição mexicana de 1917, e que, no Brasil, a primeira
Constituição a inscrever um título sobre a ordem econômica e social foi a
de 1934, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. Isto não quer
dizer que, nessa disciplina, se acolhe um “sopro de socialização”. Não,
aqui, como no mundo ocidental em geral, a ordem econômica
consubstanciada na Constituição não é senão uma forma econômica
216
Caloteiro: conotação pejorativa atribuida ao mau pagador
217
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 717/8
128
capitalista porque ela se apoia inteiramente na apropriação privada dos
meios de produção e na iniciativa privada (art. 170). Isso caracteriza o
modo de produção capitalista, que não deixa de ser tal por eventual
ingerência do Estado na economia nem por circunstancial exploração
direta de atividade econômica pelo Estado e possível de monopolização de
alguma área econômica, porque essa atuação estatal ainda se insere no
princípio básico do capitalismo que é a apropriação exclusiva por uma
classe dos meios de produção, e, como é essa mesma classe que domina
o aparelho estatal a participação deste na economia atende a interesses
da classe dominante.”
Já o Estado - diferentemente do mercado justifica-se pela adoção de
valores éticos, políticos, morais. O Estado, segundo a conceituação clássica, é
constituído por três elementos: povo, território e governo independente. Esses
elementos constitutivos do Estado, se entrelaçam, são marcantes, valiosos,
inconfundíveis. Cada povo, cada nação, cada Estado, tem a sua história. Os
Estados fazem-se a partir de séculos de história e de lutas.
Dentre os diversos compromissos do Estado-nação, inscritos como
fundamentos ou como objetivos fundamentais, a serem seguidos, em
atendimento da soberania e da autodeterminação dos povos, apresentam-se,
exemplificativamente, no caso do Brasil, os seguintes: Cidadania (art. 1º, II, CF);
Dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF); Valores sociais do trabalho (art. 1º,
IV, CF); Erradicar a pobreza e a marginalização (art. 2º, II, CF); Promover o bem
de todos, sem preconceitos e sem discriminação (art. 2º, IV, CF).
Consubstanciados estes argumentos sobre a diferença entre mercado e
Estado, volta-se à proposição inicialmente formulada e agora transcrita: Seguir o
paradigma da Serasa vai resultar em uma conclusão inevitável: o povo brasileiro
é caloteiro.
Esta constatação para mercado já é considerada verdadeira e está
plenamente superada. Resolve-se pela pura e simples exclusão dos caloteiros do
acesso ao mercado, mediante a inclusão dos nomes destes consumidores,
(cidadãos do Estado-nação) nos denominados cadastros de proteção do crédito.
Essa exclusão é abrangente, em tempo real, fácil e a custos extremamente
atraentes. A empresa oligopolista no Brasil, neste ramo é a Serasa. A solução é
simples e já se tornou uma cultura arraigada: vai-se conceder crédito? Consulte-
129
se a Serasa! Se o proponente está com o nome inscrito, deixa-se de conceder-
lhe o crédito. A objeção ao proponente está clara: caloteiro não pode ter crédito.
Ora, se para o mercado o problema está definitivamente encerrado, para o
Estado-nação, este problema se agiganta: como promover a inclusão social dos
excluídos pela Serasa? Como evitar que a miséria atormente um imenso
contingente de pessoas aptas para o trabalho? As saídas impostas ao Estado-
nação são diferentes das saídas criadas pelo mercado. O Estado-nação rege-se
por Leis. O Estado-nação rege-se, sobretudo, pela Constituição. Para o Estado
Democrático de Direito, o fato de cogitar-se a exclusão de 40 milhões de
cidadãos, - por estarem negativados pelo sistema de proteção ao crédito - é, por
si só, uma AUSÊNCIA de Estado.
O Estado-nação tem objetivos fundamentais a cumprir dentre outros:
construir uma sociedade, livre, justa e solidária, (art. 3º, I); erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, (art. 3º III) e, mais,
o Estado deve promover o bem de todos sem preconceitos e sem discriminação.
A tarefa do Estado é, portanto, completamente vinculada aos ditames da
Constituição. Ou o Estado cumpre os objetivos fundamentais ou frustra-se naquilo
que é sua razão de existência: a promoção do bem-comum.
Apoiar e adotar o paradigma da Serasa, como acontece com o
Estado/mercado é uma irresponsabilidade - com graves e irreversíveis
conseqüências históricas, econômicas, sociais e políticas.
Diante da quase-unanimidade entre os agentes públicos executores das
denominadas políticas públicas de crédito e de microcrédito, na manutenção do
atual paradigma adotado pelo Brasil, (excluir da políticas públicas de crédito os
cidadãos negativados pela Serasa), deve-se alinhavar aqui algumas questões
para ensejar, quem sabe, alguma reflexão sobre o tema.
Se a informação cadastral
218
é uma condição necessária; reveste-se de
legalidade e há interesse público envolvido, porque o Estado tem reservado este
mercado exclusivamente para a Serasa? Quem é a Serasa? Como a Serasa
obteve os dados sigilosos de todos os cidadãos brasileiros? Como a Serasa é
contrata pelo Estado/mercado? A contratação da Serasa viola algum dispositivo
218
Informação cadastral - Lei 11.110/2005. artigo 3º, § 1º, inciso I.
130
constitucional? A Serasa verifica a veracidade dos dados que divulga? A atuação
da Serasa é ou foi objeto de investigação?
Repita-se: se a informação cadastral é uma condição necessária; reveste-
se de legalidade e há interesse público envolvido, melhor então tornar essas
informações cadastrais, (essenciais e de interesse público), em serviço público,
abrangente, universal e gratuito, mediante a simples estatização dos serviços da
Serasa que recebeu, com ficou registrado, os dados sigilosos de todos os
contribuintes inscritos junto a Secretaria da Receita Federal. De qualquer forma
deve-se considerar, no mínimo, que há - nesse procedimento de privilégio a
setores determinados - discriminação e arbitrariedade flagrantes tendo como
beneficiários diretos a FEBRABAN e a Serasa. Veja-se neste mesmo sentido a
lição de SILVA
219
:
“São inconstitucionais as discriminações não autorizadas pela
Constituição. O ato discricionário é inconstitucional.
Há duas formas de cometer essa inconstitucionalidade. Uma consiste em
outorgar benefício legítimo a pessoas ou grupos, discriminando-os
favoravelmente em detrimento de outras pessoas ou grupos em iguais
situações. Neste caso, não se estendeu às pessoas ou grupos
discriminados o mesmo tratamento dado aos outros. O ato é
inconstitucional, sem dúvida, porque feriu o princípio da isonomia. O ato é
contudo, constitucional e legítimo, ao outorgar o benefício a quem o fez.
Declara-lo inconstitucional, eliminando-o da ordem jurídica, seria retirar
direitos legitimamente conferidos, o que não é função dos tribunais. Como,
então, resolver a inconstitucionalidade? Precisamente estendendo o
benefício aos discriminados que solicitarem perante o poder judiciário,
caso a caso.”
A linha adotada por todos os Poderes da República por onde tem
transitado este tema é, no âmbito desta pesquisa, algo impensável como coisa
pública, como coisa de Estado-nação. Essa assertiva pode ser aferida contando-
se, inicialmente, com a analise o Relatório Final da CPI da Serasa, além, é claro
de outros eventos que persistentemente circundam o tema.
219
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 222/3
131
Seção 2 CPI da SERASA e seu relatório final
Considere-se, preliminarmente, a dificuldade de um tema envolvendo o
Sistema Financeiro chegar a alguma instância de poder. No caso concreto, trata-
se de uma CPI Comissão Parlamentar de Inquérito com poderes de
investigação equiparados ao Poder Judiciário, como assegura a Constituição
Federal.
No Relatório Final da CPI Serasa, contendo apenas 59 páginas, ficou
consignado que a Serasa
220
- (criada em 1968, pelos bancos) - detém 60% do
mercado de informação e que contava, em 2003, com 23 milhões de cidadãos
negativados. Com base nessas informações pode-se concluir que existem, no
Brasil, aproximadamente 40 milhões de cidadãos negativados, o equivalente a
57% da PEA - População Economicamente Ativa Urbana, estimada, em 2003,
em pouco mais de 66 milhões de pessoas.
Dentre as diversas denúncias quanto à conduta da Serasa, restou relatada
uma questão que envolve, portanto, a dignidade de mais de 40 milhões de
cidadãos negativados. Veja-se o desfecho no Relatório Final da CPI
especificamente sobre a questão da negativação da massa trabalhadora
221
:
“Outra questão relevante tratada durante os trabalhos da CPI, diz respeito
à possibilidade de inscrições negativas na Serasa serem utilizadas como
impeditivos para a obtenção de empregos públicos e privados.
Juntada como prova dessa denúncia, cópia de carta da empresa
CREDISUL Cobranças Judiciais e Extra Judiciais, sediada em São
Paulo, adverte que o não pagamento dos débitos exigidos motivam a
inscrição do nome do devedor nos cadastros negativos do SPC e da
SERASA, o que, segundo a carta, poderia causar entre outros transtornos
a impossibilidade de: [...] participar de concursos públicos e licitações; [..]
adquirir novos empregos, pois a grande maioria das empresas consultam
esses cadastros antes de contratar seus funcionários.
No que se refere aos critérios de acesso ao serviço público,
desconhecemos qualquer edital de concurso que tenha estabelecido entre
os requisitos para o preenchimento do cargo, a exigência de “nome limpo”
na Serasa ou em outros bancos de dados de consumo. Reconhecemos,
porém, que algumas empresas públicas podem se utilizar dessas
220
Relatório CPI SERASA. Câmara dos Deputados. Brasília: 2003.
>http://br.geocities.com/cpi_serasa/Rel_GilbertoKassabPFL.pdf< pp. 5 e 6
221
Relatório Final CPI SERASA. Op. Cit. p. 34
132
informações, caso o processo seletivo preveja uma fase dedicada à
investigação da vida pregressa do candidato.
No que se refere às empresas privadas, realmente há completa liberdade
para que esse procedimento esteja em curso, uma vez que os
empregadores têm total liberdade para a seleção de seus quadros. Essa
situação é dramática, na medida em que redunda numa equação injusta
para o cidadão que muitas vezes tornou-se inadimplente pela perda do
emprego e fica praticamente proibido de voltar ao mercado de trabalho e
regularizar suas pendências.”
Essas são algumas das conclusões da CPI relatada pelo Eminente
Deputado Federal, Gilberto Kassab, hoje Prefeito da maior cidade da América
Latina, (a cidade de São Paulo), que por coincidência é a cidade sede da Serasa
e da FEBRABAN, as entidades representativas do Sistema Financeiro Nacional.
Seria, elementar, esperar-se que em uma CPI, formada por 24 parlamentares,
todos contanto com ampla assessoria jurídica, além da assessoria jurídica da
própria CPI, os fatos apurados conduzissem a outra conclusão tendo em vista
que a Constituição Federal estabelece: Função social da propriedade, (artigo 170,
III, da CF); Primado do trabalho, (artigo 193, da CF); Direito social do trabalho,
(art. 6º, caput, da CF). Diante destes ditames constitucionais, causa estranheza
perceber-se que a CPI, aponte que:
“[...] desconhecemos qualquer edital de concurso que tenha estabelecido
entre os requisitos para o preenchimento do cargo, a exigência de “nome
limpo” na Serasa - (e pior ainda). [...] No que se refere às empresas
privadas, realmente há completa liberdade para que esse procedimento
esteja em curso, uma vez que os empregadores têm total liberdade para a
seleção de seus quadros.”
Isto significa dizer que a CPI da Serasa abdicou da sua função
constitucional e ficou em débito com a sociedade e com o Estado-nação. Pode-se
aventar que os senhores parlamentares ignoram que os trabalhadores vivem com
dignidade quando trabalham e, portanto, dignidade para o trabalhador significa
materialmente o acesso ao emprego e o acesso ao crédito. A pergunta é
inevitável: Como algo tão elementar pode ser ignorado por uma CPI? Se esses
parlamentares desconhecem o que está escrito de forma expressa e lapidar na
Constituição Federal como esperar que cumpram o poder-dever de - em nome de
interesses públicos difusos - coibir abusos contra o Estado-nação e contra a
133
cidadania. Outra hipótese que poderia ser aventada é que esses parlamentares
sabem o que fazem: atuam em defesa de interesses que lhe são ditados e
impostos, utilizando-se outros meios de convencimento acessíveis a poderosos
lobbies. Cabe aqui, relembrar o ensinamento de MARINONI
222
:
“O que se quer dizer é que a lei do Estado contemporâneo está muito mais
perto de constituir a vontade de lobbys e dos grupos de pressão do que
representar a vontade uniforme do Parlamento ou expressar a vontade do
poder político que legitimamente o domina.”
Neste caso específico, notícias de bastidores, veiculadas à época e sem
repercussão na mídia em geral, (noticia-se que sequer a TV Câmara transmitiu as
audiências públicas da CPI da Serasa), ajudam a entender o resultado pífio
apresentado neste relatório final da CPI Serasa
223
:
“Muita confusão, pizza e protestos marcaram a aprovação do relatório da
CPI do Serasa nesta terça-feira. A votação terminou empatada, 11 votos a
favor, 11 contra e uma abstenção, mas como regimentalmente vale o voto
do relator para o desempate, o parecer foi aprovado. A bancada petista
votou contra as conclusões do relator, deputado Gilberto Kassab (PFL-SP),
que não aponta qualquer ilegalidade nas ações da Serasa. “O relatório é
frágil, protege o setor econômico, pune o consumidor e não reflete o que
foi apurado pela comissão”, criticou o deputado Zico Bronzeado (PT-AC),
vice-presidente da CPI. [...].
Abstenção O deputado Manato (PDT-ES), foi o único a se abster da
votação. Antes de votar ele chegou anunciar que votaria com o presidente
da comissão, contra o relatório. Ele confessou também estar constrangido
em votar porque seu nome estava negativo no Serasa até 15 dias atrás.
“Confesso que não sei porque o meu nome saiu do Serasa na última
semana, exatamente a da votação do parecer”, afirmou. O fato foi
considerado grave pela deputada Perpétua, que pediu o seu registro formal
para que a Câmara investigasse. Diante o pedido da deputada, Manato
resolveu se abster.”
Um fato concreto permanece pendente de divulgação ou apuração: o
Relator da CPI da Serasa, hoje Prefeito da cidade de São Paulo, está sendo
222
MARINONI. Luiz Guilherme, Op. Cit. p. 5
223
RODRIGUES. Vânia >http://www.informes.org.br/pagina-interna.asp?NumeroMateria=6016< acesso
25/11/2006.
134
investigado por evolução patrimonial irregular, conforme notícia veiculada em 20
de novembro de 2004, pela Internet
224
:
“O Ministério Público (MP) de São Paulo, através da Promotoria de Justiça
da Cidadania, pediu hoje a quebra do sigilo bancário do vice-prefeito eleito
de São Paulo, Gilberto Kassab (PFL). Segundo o promotor Antônio Celso
Campos de Oliveira Faria, Kassab é investigado por evolução patrimonial
irregular.
O pedido inclui a quebra de sigilo bancário das empresas de Kassab e do
sócio dele, o deputado estadual Rodrigo Garcia (PFL). Kassab passou a
ser investigado após a divulgação de suspeitas de enriquecimento
irregular, com base nas declarações de patrimônio entregues à Justiça
Eleitoral.”
Em situações como estas deve-se fazer uma releitura sobre mais um dos
ensinamentos de MARINONI
225
.
“A transformação operada pelo Estado legislativo teve a intenção de conter
os abusos da administração e da jurisdição [...]. Não há dúvida de que a
supremacia da lei sobre o judiciário teve o mérito de conter as
arbitrariedades de um corpo de juizes imoral e corrupto. O problema é que,
como o direito foi resumido à lei e a sua validade conectada
exclusivamente com a autoridade da fonte da sua produção, restou
impossível controlar os abusos da legislação. Ora, se a lei vale em razão
da autoridade que a edita, independentemente da sua correlação com os
princípios de justiça, não há como direcionar a produção do direito aos
reais valores da sociedade.”
Ainda que se deva hipotecar, consciente e deliberadamente, todo apoio ao
Estado Democrático de Direito e a forma de participação ampla que deveria
presidir o interesse público, evitando-se a preponderância de interesses de
grupos, é preciso reconhecer que o Estado-nação, neste passo, será conduzido,
em curto prazo a um impasse. Senão como conceber que o Estado-nação possa
atender, sem questionamentos, uma agenda que lhe é claramente ditada por
grupos de interesse, alojados na sociedade, como parasitas, predadores da
cidadania e dos setores produtivos da sociedade. Como responder a perplexidade
224
>http://noticias.terra.com.br/eleicoes2004/interna/0,,OI431559-EI4051,00.html< site de acesso público. Pesquisa
realizada em 20
de agosto de 2006.
225
MARINONI. Luiz Guilherme, Op. Cit. p. 5
135
da Procuradoria da República no Estado de São Paulo, formulada, em 2001,
portanto, há (6) seis anos:
226
“Essa espantosa situação de violação e descaso para com valores
fundamentais da personalidade humana já se apresenta por mais de 6
(seis) anos, sem que, até agora, qualquer manifestação de repúdio e
indignação tenha se contraposto aos interesses da SERASA, que
livremente comercializa os dados protegidos pelo sigilo fiscal.”
Essa perplexidade, essa indignação apresentada pelo Ministério Público -
em seu papel institucional de defesa da sociedade - é conseqüência de um
problema concreto e monumental que tenda a lançar o Estado-nação em um
impasse causado por uma situação fática de violação de direitos constitucionais,
agredidos permanentemente e de forma inimaginável, difícil de acreditar ou
mesmo de entender.
Seção 3 40 milhões de negativados: o impasse do Estado-nação?
O rastro de condutas do Estado-nação, no tema de violação à dignidade da
pessoa humana, merece ser analisado com acuidade, mas, para os fins deste
estudo, restringem-se alguns episódios recentes, todos de domínio público,
envolvendo diretamente, como beneficiário o sistema financeiro, a saber: 1)
Serasa: formação do banco de dados; 2) Serasa: obrigatoriedade de consulta
cadastral; 3) Serasa: ausência de fiscalização. Vejam-se, portanto, a seguir,
esses episódios de domínio público:
1) Serasa: formação do banco de dados.
Nos termos do § 2º, artigo 43 do Código de Defesa do Consumidor “a
abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá ser
comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.” A abertura
de cadastro da Serasa S/A, no entanto, seguiu um procedimento bem diverso
deste. Mediante instrumento de convênio o Estado-nação, passou os dados
226
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SIGILO-PR3.pdf < Acesso público, em 26/11/2006. p. 2
136
sigilosos, (inciso XII, art. 5º, da CF), de 116 milhões de contribuintes, de uma só
vez, à Serasa S/A com o compromisso de proceder atualizações diárias.
Desta forma o Cadastro de Pessoas Físicas do Estado-nação, consolidado
por força de lei, ao longo de sucessivos governos, passou a ser um cadastro
privado a serviço do sistema financeiro. Segundo o MPF/SP
227
:
“No período de 26.10.95 até 16 de junho de 1998, vigorou um convênio
firmado entre Ministério da Fazenda (através da Secretaria da Fazenda) e
a SERASA, formalizado através de Termo de Cooperação Técnica,
convênio este que autorizava o acesso da SERASA às informações
cadastrais mantidas pela Fazenda. Referido termo de cooperação foi
extinto por força da portaria SRF nº 1.165 de 15.4.98, publicada no Diário
Oficial de 17.4.98.
Em 19.6.98, entretanto, novo convênio foi firmado entre União, através da
SRF e a FEBRABAN, prevendo o fornecimento de informações constantes
do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) e do Cadastro de Pessoas
Jurídicas (CNPJ), “não abrangidas pelo sigilo fiscal”, para consulta pelas
instituições financeiras por intermédio da SERASA.
Apesar do singelo alerta, contido no instrumento contratual, sobre o
fornecimento de informações não-abrangidas pelo sigilo fiscal, verificou-se,
no âmbito de procedimentos administrativos da Secretaria dos Ofícios da
Tutela Coletiva do Ministério Público Federal, que foi justamente isso que
ocorreu.
Pois bem, dispôs-se através do instrumento firmado que o convênio tem
por objetivo permitir que as instituições financeiras possam confirmar a
autenticidade dos números de inscrição de CPF e CNPJ das pessoas que
tem interesse em abrir contas correntes, a fim de evitar que seus agentes
(instituições financeiras) respondam como co-autores, em eventuais crimes
de falsidade.
Apesar de tal fim nobre, verificamos que o convênio serviu para o repasse
de informações A ENTE PRIVADO DISTINTO DAS INSTITUIÇÕES
FINANCEIRAS (SERASA), QUE VENDE TAIS INFORMAÇÕES AO
MERCADO.”
Portanto, como se viu, através de convênio com a União, o sistema
financeiro atingiu o seu grande objetivo: adquirir, sem custos e sem autorização
dos seus consumidores, mais de 116 milhões de cadastros.
Isto eqüivale a dizer que para o sistema financeiro, cidadãos que
confiaram, por imposição legal, seus dados sigilosos ao Estado-nação são
consumidores da Serasa S/A, (como se alguém, pessoa física, pudesse ser
227
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SERASA-PR2.pdf< p. 3. Acesso em 23/10/2006
137
cliente da Serasa); Estado-nação é mercado-Estado; cadastro do Leão do
Imposto de Renda é cadastro do sistema financeiro.
Para o sistema financeiro, certamente, tudo se resume a uma questão de
ordem pratica: todos os cidadãos brasileiros com cadastro sob guarda e proteção
do Estado-nação têm seus dados (sigilosos) vendidos, no Brasil e no exterior, por
uma empresa constituída na forma de S/A a serviço do sistema financeiro.
2) Serasa: obrigatoriedade de consulta cadastral.
A obrigatoriedade de consulta cadastral, especificamente aos dados da
Serasa, com relação à concessão de crédito final aos potenciais beneficiários das
políticas públicas implementadas com recursos do FAT Fundo de Amparo ao
Trabalhador, é uma imposição do CODEFAT
228
, (com participação ativa da
FEBRABAN
229
), consubstanciada em diversas resoluções do CODEFAT
publicadas pelo MTE
230
dentre elas, as de nº 273/01; 275/01 e 333/03.
Tendo por justificativa a regra constitucional de relevância e urgência, (art.
62 da CF), o Estado-nação, instituiu, por Medida Provisória nº 226/04, convertida
na Lei nº 11.110/05, a obrigatoriedade de consulta cadastral
231
:
“Art. 3°, § 1
o
- Quando a fonte de recursos utilizados no PNMPO for
proveniente do FAT, o CODEFAT, além das condições de que trata o caput
deste artigo, deverá definir: I - os documentos e informações cadastrais
exigidos em operações de microcrédito.”
Esses atos do Estado/mercado, através dos seus poderes constituídos,
(Executivo e Legislativo), têm provocado situações seguramente contraditórias e
incompatíveis com a moralidade pública - ceder o cadastro inteiro gratuitamente
para depois comprar parceladamente - dados da Serasa, por dispensa de
licitação, como se constata em publicação já referida envolvendo contrato entre o
BNB
232
e a Serasa.
228 CODEFAT Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador
229 FEBRABAN Federação Brasileira de Bancos
230 Ministério do Trabalho: http://www.mte.gov.br/Busca/auxbuscaavancada.asp?opt=1&query=serasa
231 Brasil, poder executivo: >https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Mpv/226.htm<
232 BNB >http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/fornecedores/editais_publicados/editais/dispensa_inex_jan_2005.htm<
138
Todos as entidades e órgãos públicos concedentes de crédito, no Brasil,
sem exceção, a exemplo do BNB, (BNDES, BB, BASA, CEF, Caixa Aqui, Banco
Popular do Brasil, Banco do Povo, Banco Social e seus similares) compram
dados da Serasa, sem licitação. Há, é certo, precedentes e evidências materiais
de que o procedimento licitatório é absolutamente dispensável já que o sistema
financeiro recebeu os dados cadastrais do Estado-nação e seria lógico que a
compra fosse direcionada ao único fornecedor confiável: a Serasa. Isto no
entanto, vulnera funções essenciais do Estado-nação: dever de isonomia (artigo
5º, caput, da CF); livre concorrência, (artigo 170, III, da CF).
Para se aquilatar o grau de banalização a que está sujeito o Estado-nação,
considere-se ainda que essas instituições financeiras públicas, contam para a
execução dos contratos com a Serasa - com um verdadeiro pelotão de
negativação formado por agentes públicos, contratados legalmente e a
baixíssimo custo como estagiários, (Lei 6.494/77). Esses agentes públicos,
inexperientes, rotativos e irresponsáveis são treinados e acompanhados pela
Serasa, em permanentes vistas aos locais públicos de trabalho. A partir deste
adestramento o pelotão de negativação da Serasa, (alojado no seio do Estado-
mercado) adquire, de imediato, o poder de julgar, condenar e executar maus
pagadores que são tratados como párias, inescrupulosos, culpados, sem o
benefício da presunção de inocência: princípio constitucional consagrado no
inciso LVII, artigo 5º da Constituição Federal do Estado-nação.
Assim julgados, condenados e executados os cidadãos maus pagadores
são expostos pela Serasa à vexação pública e ficam impedidos de acesso às
políticas públicas de crédito. Veja-se, neste sentido, o que aduz o MPF/SP
233
“Na verdade, a Serasa simplesmente fornece o instrumento material para a
vexação pública dos devedores, sem qualquer compromisso com a
veracidade das informações ou com a ciência dos lançamentos por parte
dos devedores.”
Tal como, igualmente, constata o MPF/SP
234
os cidadãos negativados pela
Serasa passarão - acrescente-se com a participação ativa e reiterada do
Estado-mercado, (desde a liberação dos seus dados sigilosos até o ato de
233
MPF/SP> http://www5.mp.sp.gov.br:8080/caoconsumidor/Atua%C3%A7%C3%A3oPr%C3%A1tica/Iniciais/01-
663.htm< Acesso em 12/10/2005
139
vexação pública, promovido através do sistema financeiro), a uma condição
quase sub-humana.
“[...] a “negativização” do seu nome acaba ocasionando uma autêntica
exclusão do consumidor do tráfego econômico, obstando-lhe toda e
qualquer forma de crédito, reduzindo-o a uma condição quase sub-
humana, com efeitos graves sobre sua pessoa, quer na esfera patrimonial,
quer na moral.”
É essa condição quase sub-humana que prevalece, na prática, sobre todos
os fundamentos e objetivos fundamentais fixados pela Constituição Federal, (arts.
1° e 3°), dentre outros: a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores
sociais do trabalho [...]; erradicar a pobreza e a marginalização [...]; promover o
bem de todos, sem preconceitos [...]
A ação de promover a vexação pública e a condição quase sub-humana, a
que alude o MPF/SP, é, certamente, uma função inadmissível para o Estado-
nação que adota como um dos seus fundamentos: a dignidade da pessoa
humana. O trecho do requerimento de GOUVEIA
235
ao Ministro dos Transportes
do Estado-nação, pode ajudar a entender a vexação pública a que estão sujeitos
todos os cidadãos brasileiros que adquirem bens e produtos vendidos a crédito:
“Excelentíssimo Senhor Ministro dos Transportes: Tomamos conhecimento
que os motoristas de caminhão estão sendo vítimas de mais uma
arbitrariedade na difícil tarefa de conseguir fretes ou de se manter no
emprego no mercado de transportes. Trata-se de exigência abusiva das
seguradoras, que não aceitam que as cargas por ela seguradas sejam
transportadas por motoristas de caminhão cujos os nomes estejam
inscritos nos cadastros do SPC (Serviço de Proteção ao Crédito) ou da
SERASA.
Ora, o contrato de seguro de cargas é assinado entre a seguradora e a
transportadora, sendo lícito e razoável que ambas estabeleçam no contrato
de seguro exigências recíprocas, dentre as permitidas pela lei. Entretanto,
é um absurdo que se estabeleçam exigências cadastrais para os
motoristas de caminhão, terceiras pessoas, estranhas ao contrato de
seguro, e, com base nessas exigências, os discrimine na contratação de
fretes.
Para avaliar o absurdo desta prática, considere-se a situação de um
motorista que atrase uma prestação, uma só, do financiamento do
caminhão e tenha por isso seu nome inscrito na SERASA. Em razão disso,
234
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/SERASA-PR2.pdf< p. 3 Acesso em 13/11/2005
235
GOUVEIA. Paulo. Deputado Federal >http://www.camara.gov.br/sileg/integras/392759.pdf< acesso em
21/11/2006.
140
não mais obterá fretes e estará condenado definitivamente a devolver o
veículo por falta de pagamento. Diante da gravidade do assunto, venho
solicitar as suas providências para que se proíba rápida e definitivamente
este tipo de exigência.”
Como construir a dignidade causando danos patrimonial e moral, a
pretexto de implementar políticas públicas de crédito e de microcrédito, como
fazem todos os agentes financeiros do Estado-nação a partir do pelotão de
negativação formado por estagiários que sequer sabem que o contingente que
ajudam a negativar está estimado em 40 milhões de cidadãos brasileiros, aptos
para o trabalho que, a partir da exclusão social estarão em condição quase sub-
humana.
3) Serasa: ausência de fiscalização.
Além de receber gratuitamente e vender os dados sigilosos - como já foi
registrado - de todos os cidadãos brasileiros, o Estado concede-lhe ainda um raro
benefício: a Serasa não é fiscalizada. Para efeito do presente estudo, registre-
se, neste ponto, dentre outros os seguintes dados de pesquisa.
Em audiência pública, realizada em 06/12/200, na Comissão de Assuntos
Econômicos do Senado Federal, o presidente da Serasa, quando inquirido sobre
a fiscalização de alguma entidade pública” sobre as atividades da Serasa,
respondeu
236
:
“O SR. ELCIO ANÍBAL DE LUCCA - A fiscalização da Serasa é uma
fiscalização direta? Não. Ela é uma empresa como outra. É S.A. e está
submetida a todas as leis que dizem respeito às S.A. Agora, existem leis
que normatizam a sua existência, como o Código de Defesa do
Consumidor, que lhe dá um caráter público. Eu não coloco nenhum dado
que não esteja na lei. Todos os dados que estão lá têm cobertura da lei. O
que está existindo agora e quanto a isso talvez essa agência possa até
nos ajudar[...] Aprecio muito, porque queremos fazer tudo dentro da lei.
Para a empresa manter a sua credibilidade[...]
O SR. ROBERTO SATURNINO - Mas não existe nenhuma agência
pública?
O SR. ELCIO ANÍBAL DE LUCCA - Não existe nenhuma agência. Estão
falando numa agência do consumidor agora - parece que a estão criando.
236
Comissão de Assuntos Econômicos do Senado da República - Ata 56ª: Acesso em 05/062002
>http://webthes.senado.gov.br/sil/Comissoes/Permanentes/CAE/Atas/20001206EX056.rtf<
141
Como tem o Código de Defesa do Consumidor, tenho a impressão de que
essa agência vai poder nos ajudar muito para deixar isso muito claro. É o
que nós queremos: quanto mais[...] Nós não temos nenhum dado que
não seja previsto pela lei, que a lei não determine e que não seja tornado
público para as pessoas, que não seja informado - nenhum, absolutamente
nenhum. É totalmente legalizada a empresa, é uma empresa da maior
importância. Se hoje a Serasa parasse de funcionar, os negócios no Brasil
teriam grandes dificuldades.”
A ausência de fiscalização é um fato jurídico relevante enfrentado pelo
Ministério Público Federal no Estado de São Paulo
237
:
“A tese de que não seria da alçada do Banco Central a referida fiscalização
levaria, em última análise, à virtual anulação e incapacitação do próprio
Banco Central enquanto agente regulador do sistema financeiro nacional.
Trata-se de autêntica contradição: ao passo que é conferida ao Banco
Central a importante missão de proteger o correto funcionamento do
sistema financeiro nacional, retira-se deste os instrumentos para cumprir
adequadamente suas tarefas.
Por outro lado, necessário ressaltar que entre as fontes consultadas pela
SERASA para a elaboração de seus cadastros encontra-se o próprio
Banco Central. De fato, parte das informações são obtidas junto ao
Cadastro de Emitentes de Cheques Sem Fundo (CCF), cadastro este
elaborado e mantido pelo próprio Banco Central conforme a Resolução nº
1.682/90 do Conselho Monetário Nacional.
Cabe ao Banco Central, na qualidade de mantenedor de tal cadastro, zelar
pela correta utilização das informações nele constantes e impedir eventuais
distorções abusivas. Sua responsabilidade não se limita, de maneira
alguma, à veracidade das informações divulgadas: deve fiscalizar
ativamente a utilização de tais informações e, inclusive, a elaboração de
cadastros por terceiros que, aproveitando-se da alta credibilidade de que
goza o Banco Central no meio financeiro nacional, venham a se utilizar
destes dados. Os cadastros mantidos pela SERASA são, sim, objeto de
fiscalização pelo Banco Central, no estrito exercício de suas atribuições
legais.
Não se pode admitir que, uma vez sendo as informações divulgadas pelo
Banco Central utilizadas abusivamente, seja vedada a esta autarquia tomar
providências que impeçam tal prática, sob pena de ser conivente com a
lesão a milhares de consumidores no país.”
O visível descaso do Estado-nação na proteção da cidadania, conferindo
poderes para julgar e condenar a um ente privado, sem capacidade legal, ética e
sem legitimidade, revela-se intolerável no Estado Democrático de Direito. Neste
237
MPF/SP >http://br.geocities.com/cpi_serasa/PEFIN_SERASA_ACP.pdf< Acesso 26/11/2006. p. 16/7
142
jogo a solidariedade, o espírito de justiça social e a cooperação recíproca que se
prenunciaram como uma conquista da civilização vai-se desvanecendo como uma
chama que tende a se apagar.
143
PARTE III COOPERATIVISMO
O cooperativismo, como doutrina, surgiu em um momento histórico crucial
da humanidade. O caos estava instalado: o sistema feudal de produção havia
chegado ao fim. Um imenso contingente de pessoas, sem bens, sem condições
objetivas de viver e de conviver foi lançada ao mercado com um único produto a
ser vendido: a própria força de trabalho. Iniciava-se o sistema capitalista de
produção. A revolução industrial estava em marcha.
A implantação de máquinas dinamizava o processo produtivo e aviltava os
ganhos obtidos pelos trabalhadores na venda da força de trabalho. Surgem os
movimentos sociais e sindicais. Dentre esses movimentos destaca o ludismo:
238
“Na Inglaterra, onde o emprego da máquina era mais generalizado, surgiu
o Ludismo, movimento que recebeu o nome de seu líder, Ned Ludd. 0
sentimento de insegurança e os terrores da miséria convenceram Ludd e
seus seguidores da maledicência da máquina, considerada a inimiga
principal. Podemos ter uma idéia do que foi esse movimento, por uma carta
ameaçadora que Ludd endereçou a um certo empresário de Hudersfield,
em 1812: "Recebemos a informação de que é dono dessas detestáveis
tosquiadoras mecânicas. Fica avisado de que se elas não forem retiradas
até o fim da próxima semanal eu mandarei imediatamente um de meus
Representantes destrui-las[...] E se o Senhor tiver a imprudência de
disparar contra qualquer dos meus Homens, eles têm ordem de Matá-lo e
queimar toda a sua Casa". (Citado por RUDÉ, G. op. cit..p. 92.)”
Neste diapasão, torna-se oportuno um breve resgate histórico da
experiência do cartismo:
239
“Para atender os casos de acidentes de trabalho, doenças ou mesmo de
desemprego, os operários criaram as primeiras associações de auxílio
mútuo, que funcionavam por meio de cotizações. Dessas associações
surgiram os sindicatos de trabalhadores, reunindo operários de um mesmo
ofício. Através de seus representantes, os sindicatos conseguiam obter dos
patrões melhores salários e horários de trabalho, Essas conquistas foram
fruto de muitas lutas porque durante muito tempo os parlamentos dos
diversos países procuraram dificultar a organização dos trabalhadores
proibindo o funcionamento dos sindicatos.”
“Em 1832, o Parlamento inglês aprovou o "Reform Act" (lei eleitoral que
privou os operários do direito ao voto). Os trabalhadores reagiram e
238
COULON Olga M. A. Fonseca e COSTA F. Pedro. Dos Estados Nacionais à Primeira Guerra Mundial,
1995, CP1-UFMG - parte 1
239
COULON Olga M. A. Fonseca e COSTA F. Pedro. Op. Cit. parte 1.
144
formularam suas reivindicações na "Carta do Povo", fundando o primeiro
movimento nacional operário do nosso tempo, o "cartismo" movimento
cartista ajudou os operários ingleses a melhorarem suas condições de vida
e deu-lhes experiência de luta política. Assim, em 1833, surgiu a primeira
lei limitando a 8 horas de trabalho a jornada das crianças operárias. Em
1842 proibiu-se o trabalho de mulheres em minas. Em 1847, houve a
redução da jornada de trabalho para 10 horas.”
O ludismo e o cartismo, ao que parece, estão na raiz de outros
movimentos e teorias sociais: dentre eles, os movimentos sindicais, o socialismo
utópico, o socialismo científico e o cooperativismo. A literatura sobre
cooperativismo registra que, dentre os pioneiros de Rochdale, quatro eram
cartistas: Benjamim Rudman; James Manoch; John Kershaw; Miles Ashworth e
quatro eram socialistas: James Tweedale; John Bent; John Collier; Willian
Cooper
240
.
Os debates eram acirrados entre os socialistas utópicos, assim
denominados pelos partidários do que se convencionou chamar de socialismo
científico. Daí a relevância de um registro atribuído a Marx, pai do socialismo
científico, ao movimento cooperativista, consubstanciado em seu Manifesto de
Lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores
241
:
“Mas o futuro nos reserva uma vitória ainda maior da economia política dos
proprietários. Referimo-nos ao movimento cooperativo, principalmente às
fábricas cooperativas levantadas pelos esforços desajudados de alguns
‘hands’ [operários] audazes (…). Pela ação, ao invés de por palavras,
demonstraram que a produção em larga escala e de acordo com os
preceitos da ciência moderna pode ser realizada sem a existência de uma
classe de patrões que utiliza o trabalho da classe dos assalariados; que,
para produzir, os meios de trabalho não precisam ser monopolizados,
servindo como um meio de dominação e de exploração contra o próprio
operário; e que, assim como o trabalho escravo, assim como o trabalho
servil, o trabalho assalariado é apenas uma forma transitória e inferior,
destinada a desaparecer diante do trabalho associado que cumpre a sua
tarefa com gosto, entusiasmo e alegria. Na Inglaterra, as sementes do
sistema cooperativista foram lançadas por Robert Owen; as experiências
operárias levadas a cabo no continente foram, de fato, o resultado prático
das teorias, não descobertas, mas proclamadas em altas vozes em 1848.
240
GAWLACK. Albino e RATZKE. Fabianne Allage Y, Cooperativismo: filosofia de vida para um mundo
melhor. Curitiba, Sescoop/PR: Ocepar: 2001. p. 19
241
Apud HADAD. Fernando. et.al. Sindicatos, cooperativas e socialismo. Fundação Perseu Abramo. São
Paulo: 2003. p. 31
145
Robert Owen, referido expressamente por Karl Marx, foi, com efeito, o
grade propulsor da idéia do cooperativismo que iria, anos depois, propiciar a
formulação de princípios doutrinários até hoje debatidos como elementos
essenciais ao sistema de produção cooperativo.
146
CAPÍTULO 1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA
A forma de produção e de apropriação de riqueza parece ser o cerne de
todo o embate ideológico sobre a necessidade de superação do sistema
capitalista, ainda no seu berço: a Inglaterra. De fato, o capitalismo surgiu a partir
da apropriação primitiva, conseguida por saques, roubo, escravidão e toda forma
de arrancar riqueza e concentrar poder. Veja-se, neste sentido, MARX:
242
“As novas manufaturas instalaram nos portos marítimos ligados ao
comércio de exportação ou em portos do interior do país fora do controle
do velho sistema urbano e da organização corporativa. Verificou-se, então,
na Inglaterra, uma luta exacerbada entre as cidades corporativas e esses
novos centros manufatureiros.
As descobertas de ouro e prata na América, o extermínio, a escravização
das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o
início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da
África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que
marcam os albores da era da produção capitalista. Esses processos
idílicos são fatores fundamentais da acumulação primitiva. Logo segue a
guerra comercial entre as nações européias, tendo o mundo como palco.
Inicia-se com a revolução nos Países Baixos contra a Espanha, assume
enormes dimensões com a guerra antijacobina na Inglaterra, prossegue
com a guerra do ópio contra a China etc.
Os diferentes meios propulsores da acumulação primitiva se repartem
numa ordem mais ou menos cronológica por diferentes países,
principalmente Espanha, Portugal, Holanda, França e Inglaterra. Na
Inglaterra, nos fins do século XVII, são coordenadas através de vários
sistemas: o colonial, o das dívidas públicas, o moderno regime tributário e
o protecionismo. Esses métodos se baseiam em parte na violência mais
brutal, como é o caso do sistema colonial. Mas todos eles utilizam o poder
do Estado, a força concentrada e organizada da sociedade para ativar
artificialmente o processo de transformação do modo feudal de produção
no modo capitalista, abreviando assim as etapas de transição. A força é o
parteiro de toda a sociedade velha que traz uma nova em suas entranhas.”
É, portanto, neste contexto histórico, descrito por Marx que se deve situar a
aparição de Robert Owen como o principal inspirador do cooperativismo. A
concepção marxista e a concepção de Owen, no entanto, partem de pressupostos
bem diversos e é, exatamente aí que o debate ficou acirrado. O materialismo
histórico atribui a força de emanciapação ao proletariado, enquanto a teoria de
Owen postula a formulação de um método a ser aceito pela classe dominante. A
242
MARX. Karl, O Capital Critica da economia política: Livro I v. 2. Op. Cit. p. 864
147
referencia a este conflito de idéias relatado por HUBERMAN
243
, abaixo transcrito,
é esclarecedor e compõe uma perspetiva histórica por situar o pensamento de
Abraham Lincoln, Presidente dos Estados Unidos (1861 a 1865), autor da famosa
definição de democracia como o governo do povo, pelo povo e para o povo:
“Karl Marx era um atento estudioso da história americana, e portanto é
provável que os discursos e os escritos de Abraham Lincoln. Não sabemos
se Lincoln teve oportunidade de ler qualquer dos trabalho de Karl Marx.
Mas sabemos que sobre certos assuntos seus pensamentos eram
idênticos. Vejamos este trecho de Abraham Lincoln: “nada de bom tem
sido ou pode ser desfrutado sem ter primeiro custado trabalho. E como a
maioria das coisas boas são produzidas pelo trabalho, segue-se que todas
essas coisas pertencem, de direito, àqueles que trabalham para produzí-
las. Mas tem ocorrido, em todas as eras do mundo, que muitos trabalham e
outros sem trabalhar, desfrutaram uma grade proporção dos frutos. Isso
está errado e não deve continuar. Assegurar a todo trabalhador o produto
do seu trabalho, ou o máximo possível desse produto, é o objetivo digno de
qualquer bom governo.
Isso é de Abraham Lincoln. Também ele sabia que o trabalho é que faz as
coisas, e que ao ter de dividi-la com o capital esta sendo, de certo modo,
roubado. Vai além. Leiamos novamente a última frase, e veremos que ele
deseja acabar com essa situação. Tal como os utópicos, “ao elaborarem
suas utopias [...] pouco se preocuparam em saber se as grandes forças
industriais em funcionamento na sociedade permitiram a desejada
modificação.” Acreditavam que bastava formular um plano para a
sociedade ideal, interessar os poderosos ou os ricos (ou ambos) no plano,
experimentá-lo em pequena escala e confira no bom senso do mundo para
torná-lo realidade.
Assim, Robert Owen, famoso socialista inglês, escreveu um livro cuja tese
pode ser identificada pelo título, Book of the New Moral World. Prega ele a
revolta da classe trabalhadora para promover a modificação que levará à
nova sociedade? Não. No fim do seu livro escreve uma carta a Sua
Majestade Guilherme IV, rei da Grã-Bretanha. Diz: “Este livro ... apresenta
os princípios fundamentais de um novo mundo moral e com isso
estabelece uma nova base sobre a qual reconstruir a sociedade e recriar o
caráter da raça humana. [...] A sociedade emanou de erros fundamentais
da imaginação, e todas as instituições e disposições sociais do homem no
mundo se baseiam nesses erros. [...] Sob vosso reinado, senhor, a
modificação desse sistema, com todas as suas más conseqüências, para
outro, baseado em verdades auto-evidentes, assegurara a felicidade de
todos, e com toda a probalidade, será realizada.” [...].
Marx e Engels mostram sua desaprovação aso socialistas utópicos. “Eles
desejam melhorar as condições de todos os membros da sociedade,
mesmo dos mais favorecidos. Por isso, habitualmente apelam para a
sociedade em conjunto, sem distinção de classes - ou antes, de
243
HUBERMAN. Leo. História da Riqueza do Homem. Tradução de Waltensir Dutra. Editora LTC. 21ª ed.
Rio de Janeiro. p. 201/2.
148
preferência à classe dominante. Pois como podem as pessoas não ver,
uma vez compreendido seu sistema, que ele é o melhor plano possível
para o melhor estado possível de sociedade.
Por isso, rejeitam toda ação política, e especialmente a revolucionária;
querem atingir seus fins por meios pacíficos, e tentam, em experiências
pequenas, necessariamente destinadas ao fracasso, e pela força do
exemplo, abrir o caminho para o novo evangelho social ... [...].
Por quase 40 anos vimos acentuando a luta de classes como a força
motora imediata da história, e em particular a luta de classes entre a
burguesia e o proletariado como a grande alavanca da moderna revolução
social. È portanto impossível para nós cooperar com pessoas que desejam
afastar essa luta de classe do movimento. [...] Não podemos, portanto,
cooperar com pessoas que consideram os trabalhadores carentes de
educação para se emanciparem sozinhos, e devem ser libertados
primeiramente de cima, pelo burguês filantropo e pelo pequeno burguês.”
É, portanto, dessa raiz ideologicamente desprezada por Marx que nasce o
pensamento precursor do cooperativismo. Essa raiz burguesa é denominada por
Marx de socialismo utópico essencialmente porque depende da compreensão da
classe dominante, a burguesia, como força emancipadora de toda a humanidade.
Seção 1 Origem e raízes
No início da Revolução Industrial, (na Inglaterra), assim denominada pela
aceleração do processo produtivo, em função de descobertas que
potencializavam a produção industrial a níveis até então inexistentes e,
igualmente, como decorrência da especialização do trabalho que permitia
aumentar a produção, a produtividade e os lucros. Esse momento histórico de
geração de riqueza pela especialização do trabalho é ilustrado por Adam Smith
244
mediante a especialização de trabalhadores em uma fábrica de alfinetes. A sua
acuidade de análise faz perceber a origem da riqueza a partir da divisão do
trabalho:
“Tomemos, pois, um exemplo, tirado de uma manufatura muito pequena,
mas na qual a divisão do trabalho muitas vezes tem sido notada: a
fabricação de alfinetes. Um operário não treinado para essa atividade (que a
divisão do trabalho transformou em indústria específica) nem familiarizado
com a utilização das máquinas ali empregadas (cuja invenção
provavelmente também se deveu à mesma divisão do trabalho), dificilmente
poderia fabricar um único alfinete em um dia, empenhando o máximo de
244
SMITH. Adam,. Op. Cit. p. 41/42.
149
trabalho; [...] Entretanto da forma como essa atividade é hoje executada, não
somente o trabalho todo constitui uma indústria específica, mas ele está
dividido em uma série de setores, dos quais, por sua vez, a maior parte
constitui provavelmente um ofício especial.”
A especialização do trabalho foi sendo levada, no entanto, ao ponto de
exaustão. Os trabalhadores passaram a ser utilizados em trabalhos repetitivos,
como robôs em uma escala de produção onde cada operário tinha um único
movimento e o reproduzia milhares de vezes a cada jornada de trabalho. Além
disso, as jornadas não tinham limite de horário e as crianças passaram a ser
utilizadas como força produtiva.
Naquele mesmo período, os contingentes populacionais expulsos das
propriedades feudais - em decadência - necessitavam de trabalho para evitar a
punição como vagabundos. Nestas circunstâncias os salários eram insignificantes
e, apesar da ocupação o nível de miséria era avassalador. O registro de
SINGER
245
, sobre o tema, é ilustrativo:
“A exploração do trabalho nas fábricas não tinha limites legais e ameaçava a
reprodução biológica do proletariado. As crianças começavam a trabalhar
tão logo podiam ficar de pé, e as jornadas de trabalho eram tão longas que o
debilitamento físico dos trabalhadores e sua elevada morbidade e
mortalidade impediam que a produtividade do trabalho pudesse se elevar.
Por isso, industriais mais esclarecidos começaram a propor leis de proteção
aos trabalhadores. Entre eles encontrava-se o britânico Robert Owen,
proprietário de um imenso complexo têxtil em New Lanark. Em vez de
explorar plenamente os trabalhadores que empregava, Owen decidiu, ainda
na primeira década do século XIX, limitar a jornada e proibir o emprego de
crianças, para as quais ergueu escolas. [...].
Em 1817, Owen apresentou um plano ao governo britânico para que os
fundos de sustendo aos pobres, cujo número estava se multiplicando, em
vez de serem meramente distribuídos, fossem investidos na compra de
terras e construção de aldeias cooperativas, em cada uma das quais
viveriam cerca de 1200 pessoas trabalhando na terra e em indústrias,
produzindo assim a sua própria subsistência. Os excedentes de produção
poderiam ser trocados entre aldeias.”
Ao encerrar esta seção, pretende-se elucidar um tema que tem motivado
interpretações equivocadas: o termo sobra. O cooperativismo caracteriza-se
245
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Ed. Fundação Perseu Abramo, São Paulo: 2002. p.
24/5
150
como um sistema produtivo que visa o equilíbrio entre o valor e o preço e isto é
efetivamente conseguido pela devolução da sobra quando o preço é maior que o
custo efetivo.
Para entender a diferença entre sobra e lucro é preciso estar historicamente
contextualizado. Foi da aversão à exploração do trabalho humano que nasceu o
cooperativismo e por isto, em certo sentido, pode-se dizer que a aversão pela
expropriação do homem pelo homem é também uma aversão ao lucro:
“[...] Esses novos libertos só se tornaram vendedores do próprio trabalho
quando se viram destituídos de seus meios de produção e de todas as
garantias de vida proporcionadas pela velha organização feudal. E a
história disso, se sua expropriação, é escrita nos anais da humanidade em
letras de sangue e fogo.
Foi na Inglaterra que o capitalismo em grande escala se desenvolveu a
princípio, e por isso suas origens ali são mais evidentes. Vimos nos
capítulos anteriores como o fechamento de terras e a elevação dos
arrendamentos, no século XVI, expulsaram muitos camponeses de suas
plantações para as estradas, onde se tornaram mendigos, vagabundos,
ladrões. Assim criou-se cedo uma classe trabalhadora livre sem
propriedades.
246
Lucro é expropriação - aceita e regulada pelas forças de mercado - da
mais-valia ou seja, do trabalho excedente que fica com o dono do capital. Sobra é
devolução legal da mais-valia que retorna à origem, retorna a quem a gerou, por
via do sistema cooperativo: sobra tem o sentido ético de devolução legal daquilo
que foi cobrado a mais. Essa devolução é feita pro rata exatamente para que não
se transfira nenhum benefício a outrem que não seja o seu detentor originário,
ressalvada a possibilidade e conversão de parte das sobras a fins sociais e
comunitários. Sobre esse assunto veja-se a lição de BULGARELLI:
247
“Distribuição do excedente pro rata das transações dos membros, ou
retorno exprime uma das idéias essenciais do cooperativismo a busca do
justo preço, afastando qualquer sentido lucrativo. É a refutação manifesta
ao espírito de lucro que caracteriza a sociedade cooperativista. Ele se
realiza através do mecanismo do retorno atribuído a Charles Owarth, um
dos Pioneiros de Rochdale, cuja aplicação permite restituir aos associados
aquilo que eles tenham pago a mais nas suas operações com a
cooperativa. Dessa forma, pode a sociedade vender ao preço corrente e se
246
HUBERMAN. Leo. p. 148.
247
BULGARELLI, Waldirio. Op. Cit. p. 13/4
151
acautelar contra os riscos provenientes do preço de custo. Tecnicamente é
este um princípio que realiza na ordem econômica a idéia cooperativa.”
Seção 2 Princípios do cooperativismo
O tema relativo aos princípios do cooperativismo é apaixonante, quer pela
sua origem, quer pela sua longa historia caracterizada por amplos debates, quer
pela sua essência de elevado cunho ético.
Embora a literatura sobre o cooperativismo atribua a primazia da
formulação dos princípios do cooperativismo aos pioneiros de Rochdale é preciso
acentuar que precedeu a essa formulação, cuidadosamente escrita, uma longa
experiência. Muitos dos pioneiros de Rochdale eram cartistas
248
, conheciam a
teoria e a prática de Robert Owen e estavam profundamente motivados a corrigir
as falhas e os erros que tinham acarretado o fechamento de outras iniciativas
similares a que estavam iniciando. Como informa Rui Namorado:
249
“todas as
experiências cooperativas anteriores são, alias, um elemento determinante para
se compreender Rochdale.”
Com essas ressalvas, pode-se agora fazer referências à pequena cidade
de Rochdale, na Inglaterra, região de Manchester, aonde em 1844, um grupo de
28 pessoas, a maioria tecelões, com um capital inicial de 28 libras, deram início
às atividades da Rochdale Society of Equitables Pioneers. O relato a seguir
transcrito é de NAMORADO:
250
“O projeto que os animava não foi objeto de qualquer proclamação solene,
limitou-se a impregnar os estatutos da nova organização. Os seus trinta e
quatro artigos revelam uma minuciosa atenção, quanto ao funcionamento
da cooperativa e à articulação dos seus órgãos, tornando nítida a
democraticidade interna e a proeminência da assembleia geral. É grande a
variedade dos objetivos a atingir. [...]
248
Cartismo: movimento social iniciado por William Charles Lovett, na Inglaterra, por volta de 1830,
mediante carta ao parlamento reivindicando direitos de participação: direito de todos os homens ao voto;
voto secreto através da cédula; eleição anual; igualdade entre os direitos eleitorais; participação de
representantes da classe operária no parlamento; remuneração aos parlamentares.
249
NAMORADO. Rui, Os princípios cooperativos. Fora do texto. Cooperativa Editorial de Coimbra.
Coimbra: 1995. p. 5
250
NAMORADO. Rui, Op. Cit. p. 7/8
152
Combinando sabiamente uma grande sensibilidade perante os problemas
práticos, que dia a dia tinham de enfrentar, com uma generosa carga
utópica, os pioneiros estabelecem um conjunto de regas que muito vieram
a contribuir para o desenvolvimento do fenômeno cooperativo.”
Ao longo de um relato histórico sobre os debates que se seguiram aos
princípios do cooperativismo iniciados pelos pioneiros, NAMORADO
251
vai
pontuando algumas reflexões, dentre as quais:
“Uma perspectiva digna de menção é a do universitário belga R.
REZSOHAZY, que articula métodos e princípios numa ótica diferente da
habitual nesta matéria e que adapta, como eixo da sua proposta o princípio
do auto-emprego. [...]
Na verdade, para ele os princípios são fatores de fecundidade e de eficácia
no método cooperativo, e entre os que orientam inclui: auto-emprego,
democracia, liberdade, propriedade, retribuição, autoplanificação e
educação [...]. No entanto, nem todos os princípios estão no mesmo plano:
o auto-emprego é o princípio fundamental, de onde derivam os outros
vetores do sistema cooperativo. Em virtude dele pode-se considerar a
empresa cooperativa como uma organização na qual os seus membros
são, ao mesmo tempo, empresários e utendes ou trabalhadores, e onde os
fins podem ser os de criar, procurar ou oferecer bens de serviço ou de
crédito. Na verdade ele pretende dar à vida econômica uma base tripla:
elimina oposições e contradições, instauro um sistema que se regula
automaticamente e fomenta a democracia.”
Na seqüência, retoma o mesmo autor:
252
“Em síntese, o sentido dos princípios cooperativos é o de instituírem o
quadro de resistência ao capitalismo, a alguns dos seus aspectos ou a
algumas das suas conseqüências, a qual se há de materializar numa
atividade de tipo empresarial, exercida em consonância com a tradição do
movimento operário, de modo a suscitar uma lógica não-lucrativa,
subalternizando assim o papel do capital e procurando uma relação aberta
com a sociedade, que exclua a indiferença perante os seus problemas
gerais.
Daí que, na apreciação das vias de reforma possíveis, não se deva
começar por uma avaliação de desajustamentos e imperfeições pontuais,
ou por lhes questionar o nível de normatividade. Sem esquecer essas
questões, é preciso primeiro saber se o cooperativismo pretende manter a
sua herança genética anti-capitalista ou se vai render-se completamente à
lógica do sistema, deixando de lhe resistir.”
251
NAMORADO. Rui, Op. Cit. p. 24.
252
NAMORADO. Rui, Op. Cit. p. 38/9
153
BULGARELLI
253
, enaltece o sentido ético, democrático e social do
cooperativismo e põe em relevo um ponto que se pode considerar de fundamental
importância sobretudo para fazer frente ao consumismo que orienta a sociedade
de massas: o estimula das aquisições em dinheiro. De fato o crédito e o crediário
para financiar a aquisição de bens de consumo são um contra-senso que o
cooperativismo, como doutrina que prega valores de desenvolvimento humano,
tenta minorar. O crédito deve ser dirigido à produção e à estruturação da
economia e não ao consumo:
“Numa visão geral esses princípios exprimem o alto sentido social do
sistema cooperativo. As cooperativas desta forma, se apresentam como
entidades de inspiração democrática, na qual o capital não constitui o
determinante da participação associativa, mas, mero instrumento para a
realização dos seus objetivos; elas são dirigidas democraticamente e
controladas por todos os associados; não perseguem lucros e seus
excedentes são distribuídos proporcionalmente às operações de cada
associado; nelas se observa neutralidade político-religiosa, o capital é
remunerado por uma taxa mínima de juros e os hábitos de economia dos
associados são estimulados pelas aquisições a dinheiro, dando-se
destaque ao aperfeiçoamento do homem, pela educação.”
Com o registro das ressalvas de Rui Namorado (Coimbra: 1995), passa-se
a transcrição dos princípios em vigência desde 1995, por ocasião do Congresso
da Aliança Cooperativa Internacional - ACI em Manchester, Inglaterra:
1. Da livre e aberta adesão dos sócios: As cooperativas são
organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas interessadas em
utilizar seus serviços e dispostas a aceitar as responsabilidades da
sociedade, sem discriminação social, racial, política, religiosa e sexual .
2. Gestão e controle democrático dos sócios: As cooperativas são
organizações democráticas, controladas por seus associados, que
participam ativamente na fixação de suas políticas e nas tomadas de
decisões. Homens e mulheres, quando assumem como representantes
eleitos, respondem pela associação. Em todas as cooperativas os sócios
têm direitos iguais de voto, em face ao princípio universal "um homem, um
voto".
3. Participação econômica do sócio: Os associados contribuem
eqüitativamente e controlam democraticamente o capital de sua
cooperativa. Ao menos parte desse capital é, geralmente, de propriedade
253
BULGARELLI, Waldirio. As associações cooperativas e a sua disciplina jurídica. 2ª ed. Renovar. Rio de
Janeiro: 2000. p. 12/3.
154
comum da cooperativa. Os associados geralmente recebem benefícios
limitados pelo capital subscrito, quando houver, como condição de
associação. Os sócios destinam as sobras para algumas das seguintes
finalidades: desenvolver sua cooperativa, possibilitando a formação de
reservas, onde, ao menos, parte das quais sejam indivisíveis; beneficiar os
associados na proporção de suas transações com a cooperativa; e
sustentar outras atividades aprovadas pela sociedade (associação).
4. Autonomia e independência: As cooperativas são autônomas,
organizações de auto-ajuda, controladas por seus membros. Nas relações
com outras organizações, inclusive Governos, ou quando obtêm capital de
fontes externas, o fazem de modo que garantam o controle democrático
pelos seus associados e mantenham a autonomia da cooperativa.
5. Educação, treinamento e informação: As cooperativas fornecem
educação e treinamento a seus sócios, aos representantes eleitos, aos
administradores e empregados, para que eles possam contribuir
efetivamente ao desenvolvimento de sua cooperativa. Eles informam ao
público em geral - particularmente aos jovens e líderes de opinião - sobre a
natureza e os benefícios da cooperação.
6. Intercooperação: As cooperativas servem seus associados mais
efetivamente e fortalecem o movimento cooperativista, trabalhando juntas,
através de estruturas locais, regionais, nacionais e internacionais.
7. Interesse pela comunidade: As cooperativas trabalham para o
desenvolvimento sustentável de suas comunidades, através de políticas
aprovadas por seus associados.
A partir da reflexão sobre estes princípios, pode-se perceber que o
cooperativismo fez e tende a fazer história e poderia constituir-se em um sistema
de produção e de distribuição de riquezas, inspirado em valores éticos e
democráticos que, ao estimular a participação e o debate, propicia a formação de
cidadania com a conseqüente elevação dos padrões de inclusão social, respeito
humano e igualdade.
Seção 3 Feudalismo; Capitalismo; Cooperativismo
O propósito que se encerra nesta seção é empreender uma breve análise
sobre o que se designa, geralmente, como sistema produtivo ou modo social de
produção, para, a partir daí, sedimentar a conceituação do cooperativismo como
um autêntico sistema produtivo, como um modo social peculiar de produção e de
distribuição de riqueza. No curso dessa análise, pretende-se abordar um aspecto
155
do cooperativismo ainda não evidenciado suficientemente: o seu papel de ágora,
(seguindo a proposição de BAUMAN, já exposta), como um sistema produtivo que
concilia a função econômica de produção e distribuição de riqueza com a
formação de cidadania propiciada pela democratização e pelo debate de
questões econômicas e de auto-emprego orientadas por princípios, regras e
valores de elevado sentido ético, moral e social. Enfim um sistema produtivo
formado de pequenos espaços institucionais de formação de cidadãos.
A pretensão, no entanto, é ainda mais ambiciosa se se considerar que, no
caso específico do cooperativismo de crédito, além do que já foi dito, pode-se
considerar uma outra função estratégica que consiste na retenção de poupanças
populares essenciais à estruturação e ao fortalecimento das economias locais
revisitadas pela concepção de desenvolvimento endógeno em oposição ao
desenvolvimento exógeno de tendências expropriatórias, como se verá em seção
específica.
Para justificar o esforço desta abordagem - isto é, da correlação teórica do
cooperativismo como um sistema produtivo - fazem-se necessárias algumas
releituras. Sem se estabelecer uma ordem de prioridade veja-se, inicialmente, a
avaliação de NAMORADO:
254
“[...] os princípios de Rochdale inscrevem-se uma dinâmica social de
superação do capitalismo no seu todo e era essa lógica profunda que
incorporavam. Traziam também, é certo, críticas a aspectos pontuais,
respostas a acertos conjunturais do sistema, ânimo para enfrentar
questões particulares, mas estavam impregnados por valores diferentes
dos que legitimavam o capitalismo. Globalmente, essencialmente, não
refletiam uma imagem positiva do capitalismo, não aderiam à sua lógica.”
BULGARELLI
255
, assim se posiciona sobre o cooperativismo: “É, portanto,
um sistema que se opondo ao capitalismo vem tomar-lhe o lugar nos países ainda
não desenvolvidos, evitando que venham a sofrer os males decorrentes de, na
sua evolução, concentrar em poucas mãos as riquezas produzidas.
Outra referencia clara ao cooperativismo como sistema econômico pode
ser extraída da obra de RICCIARDI e LEMOS:
256
254
NAMORADO. Rui, Op. Cit. p. 34.
255
BULGARELLI, Waldirio. Op. Cit. p 124
256
RICCIARDI, Luiz e LEMOS, Roberto Jenkins, Cooperativa a empresa do século XXI, Como os
países em desenvolvimento podem chegar a desenvolvidos, Ed LTr. São Paulo: 2000, p. 59.
156
“O professor Roque Lauschner, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos-
RS, Brasil, sintetiza admiravelmente o que vimos acima: O cooperativismo,
prega o predomínio do trabalho sobre o capital e constitui-se sistema
econômico alternativo em relação ao capitalismo e ao socialismo de estado
e poderia tornar-se, em algum pais, o sistema preponderante. No
capitalismo e no socialismo de estado é o capital que assume o risco, a
gestão e arrenda o trabalho, pagando uma taxa fixa. Pago o arrendamento
do trabalho e os outros custos, o capital se apossa de todo o excedente
gerado. No sistema cooperativista pretende-se criar o predomínio do
trabalho sobre o capital. O risco e a gestão da empresa pertencem ao
trabalho. O voto não está relacionado e não é proporcional ao capital que
cada pessoa possui dentro da cooperativa, mas é igual para cada um dos
associados. O trabalho assumindo o risco e a gestão, paga uma taxa do
arrendamento do capital e depois de pago o capital e outros custos a
cooperativa apossa-se de todo o excedente gerado. Numa visão
cooperativista não pode, portanto, existir salário fixo, equivalente a um
arrendamento do trabalho. Todo o excedente gerado deve ser atribuído a
todos os trabalhadores, estejam eles no campo ou na indústria. [...] Caso
contrário, haveria exploração do trabalho pelo capital.”
Registre-se, também o comentário de SINGER
257
no mesmo sentido: “eis
que o cooperativismo, em seu berço ainda, já se arvorava como modo de
produção alternativo ao capitalismo
Neste ponto, antes de analisarem-se os sistemas produtivos, parece
conveniente conceituar o que se denomina sistema econômico de produção. Em
uma acepção simples pode-se conceituar sistema produtivo ou modo social de
produção como a maneira como se combinam os diversos fatores ou meios de
produção colocados em movimento e em formas diversas de junção e
preponderância, uns em relação aos outros: terra, capital, trabalho. É essa forma
de combinação dos meios de produção que, no decorrer da história da
humanidade, (e, especificamente, no caso sob exame), a partir do século V, início
da Idade Média, tem caracterizado os sistemas produtivos ou modos sociais de
produção e de distribuição de riquezas: 1) sistema feudal; 2) sistema capitalista;
3) sistema cooperativista.
1) Sistema feudal
A sociedade feudal era composta por três grupos sociais, ou estamentos,
com status fixo: o clero, a nobreza e os servos. O clero que tinha como função
257
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Op. Cit. p. 33
157
oficial rezar, exercia grande poder político sobre uma sociedade bastante
religiosa, onde o conceito de separação entre a religião e a política era
desconhecida. A nobreza, composta por senhores feudais, tinha como principal
função guerrear, além de exercer considerável poder político sobre o clero e
sobre os servos. Os servos, considerados como propriedade dos senhores
feudais eram bens acessórios à terra, estavam vinculados à terra. Os servos
tinham a função de prestar serviços a nobreza e pagar-lhe diversos tributos em
troca da proteção militar e da permissão para cultivar na terra do senhor feudal, a
agricultura necessária à sua sobrevivência o que se denomina atualmente
agricultura de subsistência.
No longo período histórico abrangido pela Idade Média, (também
denominada período ou era medieval) - séculos V e XV, d. C - a partir de
aprimoramentos de um modo rudimentar de produção essencialmente agrícola
surge o elemento novo que iria provocar a derrocada do sistema feudal: surge a
mercadoria.
De fato a mercadoria formada a partir de bens agrícolas excedentes deu
início a um processo de trocas e intercâmbios que pouco a pouco foi ganhando
força e rompendo as fronteiras territoriais dos feudos. O sistema produtivo
fechado passou a ser atravessado por correntes crescentes de pessoas e
mercadorias em busca de liberdade e de conquista de novas formas de vida:
formam-se, fora das cidades, (sob proteção de muros), os burgos.
Em um processo histórico, lento, o sistema produtivo foi se modificando:
excedentes populacionais, ... mercadorias, ... intercâmbios (comerciais), ... burgos
... eis, em síntese, a seqüência histórica e lenta, muito lenta, para a formação de
uma nova classe social que dá início ao processo de produção capitalista, a
classe burguesa que se instaurou em franca oposição à nobreza formada por
senhores feudais, até então dominantes.
O sistema capitalista inicia-se, portanto, como capitalismo mercantil
caracterizado por ondas de mudanças, fluxos físicos de pessoas e de
mercadorias, que colocam em oposição o velho e o novo: nobreza e burguesa;
campo e cidade; terra e capital. Nos limites desta breve visita à história
econômica pode-se contar com a ajuda de MARX e ENGELS
258
:
258
MARX. Karl, e ENGELS. Friedrich. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 84/5
158
“A separação entre campo e cidade pode ser entendida também como a
separação entre o capital e a propriedade da terra, como o começo de uma
existência e de um desenvolvimento do capital independente da
propriedade da terra, como o início de uma propriedade que tem como
base única o trabalho e o intercâmbio. [...]
O êxodo dos servos para as cidades se deu ininterruptamente por todo o
período feudal. A perseguição dos servos no campo pelos seus senhores
empurrava-os para as cidades, aonde chegavam, um a um, e encontravam
uma comunidade organizada diante da qual eram impotentes e se viam
obrigados a aceitar a posição que lhes era dada pela necessidade que se
tinha de seu trabalho e pelos interesses concorrentes organizados da
cidade. [...]
A plebe de tais cidades compunha-se de indivíduos estranhos uns aos
outros, que chegavam isoladamente e encontravam-se sem organização
diante de um poder organizado, estruturado para a guerra, que os vigiava
atentamente.”
O rompimento da velha estrutura de produção feudal produz excedente
populacional e este excedente invade as cidades e perturba a precária harmonia
das corporações de ofícios. Formam-se hordas de vagabundos, pessoas
economicamente dispensáveis: sem-renda, sem-trabalho, sem-terra. A solução
encontrada pelo capitalismo mercantil em um processo de industrialização inicial,
com preponderância de manufaturas e corporações de ofício, pode ser
considerada nos dias atuais como trágica, considerando-se o que relatam MARX
e ENGELS
259
:
“O início das manufaturas também trouxe consigo um período de vadiagem
causado pelo desaparecimento da força armada feudal, pela dispensa dos
exércitos que haviam se reunidos e servido aos reis contra os vassalos,
bem como pelo aprimoramento agrícola e pela transformação em
pastagens de imensas áreas de cultivo. Isso mostra como essa vadiagem
está vinculada ao desmoronamento do feudalismo. Desde o século XIII
encontramos períodos desse tipo, mas a vadiagem só vai se estabelecer
de modo perene e generalizado nos fins do século XV e início do século
XVI. Tais vagabundos eram tão números que o rei Henrique VIII da
Inglaterra (e outros também) mandou enforcar 72 mil deles, e foi
necessário que passam por uma miséria extrema, para assim serem
obrigados a trabalhar, mas mesmo assim com grande relutância. A rápida
prosperidade das manufaturas, especialmente na Inglaterra, absorveu-os
paulatinamente.”
159
2) Sistema capitalista.
A produção de mercadorias do sistema feudal, - mercadorias corpóreas,
físicas, bens e utilidades, advindas do excedente de uma sociedade agrícola -
enseja a transformação de um sistema produtivo (o feudal) em outro (o
capitalista) com dinâmica específica tendo por fundamento a exploração e a
venda de uma outra mercadoria: a força de trabalho. Surge com o sistema
capitalista o mercado de trabalho.
A essência de todo este sistema capitalista, tal como o sistema feudal,
revela-se historicamente. O capitalismo, passou por fases que se sucedem:
capitalismo mercantil; capitalismo industrial; capitalismo financeiro, etc. O que
importa, neste breve espaço, é registrar algumas pegadas deste processo
histórico sem a menor pretensão de exauri-lo. Dessas pegadas deixadas ao longo
da história pode-se resgatar, para os fins aqui propostos, alguns pontos
elucidativos que revelam uma história de dominação e exploração, antes abertos
e visíveis, hoje dissimulados, sofisticados e recônditos, mas sempre com a marca
da degradação humana. Neste sentido, pode-se revisitar alguns momentos
históricos. MARX
260
relaciona algumas leis que condenam a vadiagem, na
Inglaterra, berço da revolução industrial que iniciaria o ciclo do capitalismo
industrial:
“Henrique VIII, lei de 1530, - Mendigos velhos e incapacitados para
trabalhar têm direito a uma licença para pedir esmolas. Os vagabundos
sadios serão flagelados e encarcerados. Serão amarrados atrás de um
carro e acoitados até que o sangue lhes corra pelo corpo; em seguida,
prestarão juramento de voltar à terra natal ou ao lugar onde moraram nos
últimos 3 anos, “para se porem a trabalhar” [...] Na primeira reincidência de
vagabundagem, além da pena de flagelo, metade da orelha será cortada;
na segunda, o culpado será enforcado como criminoso e inimigo da
comunidade. [...]
Eduardo VI - Uma lei do primeiro ano do seu governo, 1547, estabelece
que, se alguém se recusar a trabalhar será condenado como escravo da
pessoa que o tenha denunciado como vadio. O dono deve alimentar seu
escravo com pão e água, bebidas fracas e restos de carne, conforme achar
conveniente. Tem direito de forçá-lo a executar qualquer trabalho por mais
repugnante que seja, flagelando-o e pondo a ferros. Se o escravo
desaparecer por duas semanas, será condenado à escravatura para toda a
vida e será marcado a ferro, na testa e nas costas, com a letra S; se
259
MARX. Karl, O Capital Critica da economia política: Livro I v. 2. Op. Cit. p 90.
260
MARX. Karl, O Capital Critica da economia política: Livro I v. 2. Op. Cit. p. 848/9
160
escapar pela terceira vez, será enforcado como traidor. O dono pode
vende-lo, lega-lo, alugá-lo, como qualquer bem móvel ou gado. [...].
Elizabeth, 1572 Mendigos sem licença e com mais de 14 anos serão
flagelados severamente e terão suar orelhas marcadas a ferro, se ninguém
quiser toma-los a serviço por 2 anos; em caso de reincidência, se têm mais
de 18 anos, serão enforcados, se ninguém quiser tomá-los a serviço por 2
anos; na terceira vez, serão enforcados, sem mercê, como traidores. [...]
HARDT e NEGRI
261
mediante uma releitura de Marx avaliam o quadro atual
do capitalismo nos seguintes termos:
“Em todas as sociedades e no mundo inteiro o proletariado é, cada vez
mais, a figura geral do trabalho social. Marx descreveu os processos de
proletarização em termo de acumulação necessária numa primitiva fase,
antes que a produção e a reprodução capitalistas começassem a surgir. É
necessário para isso não apenas uma acumulação de riqueza ou
propriedade, mas uma acumulação social, a criação de capitalistas e de
proletários. O processo histórico essencial, portanto, envolve acima de
tudo o divórcio entre o produtor e os meios de produção. Para Marx era
suficiente descrever o exemplo inglês dessa transformação social, pois a
Inglaterra representava o “ponto mais alto” do desenvolvimento capitalista
na época. Na Inglaterra, explica Marx, a proletarização foi obtida primeiro
pela construção de cercas nas terras comuns e pelo despejo de
camponeses por propriedades, e depois pela punição brutal do nomadismo
e da vadiagem. Dessa maneira o campônio inglês foi “liberado” de todos os
meios anteriores de subsistência, arrebanhado nas cidades industriais, e
preparado para relação salarial e a disciplina da produção capitalista. O
motor central para a criação de capitalistas, em contraste com isso, veio de
fora da Inglaterra, do comércio ou, melhor dizendo, da conquista, do
tráfego de escravos, e do sistema colonial. Os tesouros capturados fora da
Europa por pilhagem, escravidão e assassinato, escreve Marx,
desaguaram na pátria-mãe e lá foram transformados em Capital. O enorme
fluxo de riqueza encheu até transbordar as capacidades das velhas
relações feudais de produção. Surgiram capitalistas ingleses para
personificar esse novo regime de comando capaz de explorar a nova
riqueza.”
HARDT e NEGRI
262
concluem com relação ao capitalismo financeiro a
partir da hegemonia do dólar:
“Com a extensão da hegemonia americana, o dólar tornou-se o rei. A
iniciativa do dólar (usando o Plano Marshall na Europa e a reconstrução
econômica no Japão) constituiu caminho inevitável para a reconstrução do
pós-guerra; o estabelecimento da hegemonia do dólar (pelos acordos de
261
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 277/8
262
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 265/6
161
Bretton Woords) vinculou-se à estabilidade de todos os padrões de valor; e
o poder militar americano determinou o exercício definitivo da soberania
com relação a cada um dos países capitalistas dominantes e
subordinados. Até a década de 1960, esse modelo tornou-se ampliado e
aperfeiçoado.”
Quando o sistema capitalismo entrou na fase de capitalismo industrial,
surgem as primeiras iniciativas que redundariam no que se poderia designar
como um novo sistema social de produção: o sistema cooperativista tendo como
precursores Roberto Owen (1771:1854) e Charles Fourier (1772:1837) sobre os
quais (F. ENGELS:1877), ao analisar suas teses, chamou-os de socialistas
utópicos por serem burgueses com pretensos interesses de salvar a humanidade
e como conseqüência propôs o socialismo científico que tem como base a luta do
proletariado contra a classe burguesa e contra o Estado-burguês.
3. Sistema cooperativista.
A relevância do estudo sobre o cooperativismo parte de uma premissa que
deve ser colocada sempre em evidência. De fato essa premissa atravessou
séculos de embates e, com o passar dos tempos, se fortalece: a igualdade real e
não apenas ideal preside os objetivos das sociedades cooperativas.
Este ideário de igualdade real está impregnado nos princípios do
cooperativismo. Desde o século XVI, autores como Thomas More e Tommaso
Campanella (1568:1638) imaginavam uma sociedade de iguais. A extrema
exploração do homem pelo homem, nos primórdios do capitalismo industrial.
O atual Ministro da Agricultura, então presidente da ACI Roberto
Rodrigues, expõe no prólogo do trabalho de autoria de PERIUS
263
uma avaliação
que demonstra bem a relevância do sistema cooperativista para a paz e para a
democracia:
“Não há mais dúvidas de que o cooperativismo vive um fantástico
momento em todos os continentes. É uma espécie de renascimento,
determinado pela forte ameaça que a democracia e a paz estão sofrendo
em todo o planeta como conseqüência da exclusão social e da
concentração da riqueza determinadas pela união da globalização
econômica com o liberalismo comercial. [...]
263
RODRIGUES, Roberto. Prólogo.
162
Nesse cenário o cooperativismo já não é mais a terceira via para o
desenvolvimento, entre o capitalismo e o socialismo, mas é a ponte entre o
mercado e o bem-estar das pessoas.”
Certamente a experiência cooperativista é relevante, tanto para as
pequenas unidades de produção como para uma área geográfica onde ele (o
sistema cooperativista) possa preponderar e, aí estabelecer como um sistema
econômico, como um modo social de produção que, privilegiando a força de
trabalho e a harmonia entre os trabalhadores possa colocar em situação de
subjugo, o capital, tal como acentuam RICCIARDI e LEMOS:
264
“O cooperativismo utiliza um método de trabalho conjugado, ao mesmo
tempo em que pode ser visto como um sistema econômico peculiar, em
que o trabalho comanda o capital. È que as pessoas que se associam
cooperativamente são as donas do capital e as proprietárias dos demais
meios de produção (terras, máquinas, equipamentos, instalações e outros),
além de serem a própria força de trabalho. Como essa disposição de se
associarem tem o objeto de realizar um empreendimento que venha a
prestar serviços mútuos, é obvio que essa união busca a elevação dos
padrões de qualidade de vida dos associados.
Pode-se dizer que o trabalho em cooperação resulta numa economia
humanizada, cujo valor maior reside no indivíduo, acima do capital, pois o
resultado final da ação conjunta reverterá para o desenvolvimento integral
daquele grupo humano. A esse respeito, o pensador cooperativista
Georges Fauquet afirma: “o objeto principal da instituição cooperativa é
melhorar a situação econômica dos seus membros. Mas pelos meios que
ela adota, pelas qualidades que exige e desenvolve nos associados atinge
um objeto mais alto. A finalidade da cooperação é formar homens
responsáveis e solidários, a fim de que cada um atinja uma completa
realização pessoal e todos juntos, uma completa realização social.
O cooperativismo não apregoa a extinção da propriedade privada nem
antepõe empecilhos à iniciativa e às liberdades individuais. Porém, como é
uma doutrina econômica que privilegia o social, motiva os indivíduos no
sentido de procurarem atender as suas necessidades em solidariedade
com os demais. Assim tudo fica mais fácil, pois em grupo as forças se
multiplicam e os resultados alcançados são bem melhores. Em outras
palavras, o cooperativismo não condena a riqueza, mas estimula o seu uso
em benefício de todos. Respeitando os esforços e méritos individuais, é
uma economia racional e inteligente que combate o egoísmo exacerbado e
a ambição desmedida.”
Em breve complemento ao que foi exposto, nesta seção, pode-se traçar
agora alguns diferenciais, algumas especificidades entre os três sistemas
163
produtivos, relativamente à produção de riquezas e, especialmente, em relação à
produção de subjetividades, como sujeitos da história.
No período medieval, (sistema produtivo feudal) o principal fator de
produção era a terra. Todo o poder político era exercido pelo controle da
propriedade desse meio de produção preponderante: a terra. O sistema feudal,
produzia mercadorias, a partir de excedentes gerados pela atividade agrícola e
produzia servos, sujeitos imóveis, fixados a terra porque eram indivíduos ligados
à propriedade da terra da qual eram considerados bens assessórios, tendo a
terra como bem principal.
O capitalismo produz mercadorias e forja sujeitos para serem
essencialmente consumidores, porque o capital alimenta-se de lucro e em nome
do mercado e do lucro constroem-se e destroem-se impérios; sem território e sem
povo; sem história e sem compromisso com o passado, com o presente e com o
futuro. O sujeito produzido pelo capitalismo é móvel, livre, flexível. O sujeito do
capitalismo é o homem modular como o designa BAUMAN
O cooperativismo produz mercadorias e tende a produzir sujeitos mais
aptos para o exercício da cidadania porque no ambiente cotidiano do sistema
econômico em que agem, para produzir mercadorias (e serviços) participam,
discutem e interagem como iguais, tendo por base princípios, regras e valores
éticos e morais de elevado sentido democrático. O sistema cooperativista está
portanto vocacionado a se constituir em uma ágora institucional, ou seja, um
espaço (não físico) entre o individualismo exacerbado, (destrutivo), e o espaço
público dominado por lobbies de interesses e por grupos hegemônicos de
pressão.
Se o Brasil possui força de trabalho abundante, (isto é, tem um grande
contingente de pessoas aptas para o trabalho), e o cooperativismo é um sistema
produtivo intensivo de trabalho, a pergunta é por que o cooperativismo é um
sistema ainda tão pouco difundido e utilizado?
A resposta a está questão remonta a um processo histórico cuja análise
extrapola o objeto deste estudo. De qualquer modo, pode-se aventar quatro
circunstancias mais próximas: 1) a indiferença do Estado que leva
264
RICCIARDI, Luiz e LEMOS, Roberto Jenkins, Cooperativa a empresa do século XXI, Como os
países em desenvolvimento podem chegar a desenvolvidos, Ed LTr. São Paulo: 2000, p. 58/9.
164
BULGARELLI
265
a mencionar “que o Estado brasileiro tem sido de uma falsidade
inacreditável em relação ao sistema cooperativo nacional”; 2) a clara ausência de
um projeto de nação consistente, inclusivo, participativo voltado à produção tendo
como pressuposto o desenvolvimento local; 3) a ausência de uma massa critica
funcionando como intelectuais orgânicos
266
, com visão critica e conhecimento da
realidade, (mundo real existente), capaz de produzir, pacificamente, uma cultura
solidária e emancipatória a partir de uma ampla revisão cultural e legislativa; 4) a
ausência de visão de médio e longo prazo que sedimente, agora, a estruturação
produtiva a partir do fortalecimento das estruturas de ensino, com investimentos
em educação e cultura.
Dessa maneira o cooperativismo popular, o cooperativismo
autogestionário, com base em problemas e em igualdade, reais, poderia ser a
resposta, poderia ser a ponte entre o público e o privado. Uma ponte de libertação
e de autopromoção a partir de espaços institucionais intersubjetivos com
capacidade para enfrentar a impotência coletiva gerada pelo aumento da
liberdade individual tal como avalia BAUMAN:
267
“A chance para mudar isso depende da ágora esse espaço nem privado
nem público, porém mais precisamente público e privado ao mesmo
tempo. Espaço onde os problemas particulares se encontram de modo
significativo isto é, não apenas para extrair prazeres narcisísticos ou
buscar alguma terapia através da exibição pública, mas para procurar
coletivamente alavancas controladoras e poderosas o bastante para tirar
os indívíduos da miséria sofrida em particular; espaço em que as idéias
podem nascer e tomar forma como ‘bem público’, sociedade justa’ ou
‘valores partilhados’.”
Essa ágora esse espaço, ao mesmo tempo público e privado poderia
constituir em espaço de produção de bens e serviços essenciais para combater a
pobreza material e, (pela peculiaridade da doutrina cooperativista), poderia servir
também para moldar sujeitos mais aptos para o exercício da cidadania. Esse é,
portanto, o maior significado do cooperativismo como ágora institucional:
265
BULGARELLI, Waldirio. Op. Cit. p. 8
266
FOUCAULT. Michel, Em Defesa da Sociedade. Op. Cit. p. 132: Antonio Gramsci cunhou o termo
‘intelectuais orgânicos’ para definir os membros da classe culta que se incumbiam de esclarecer as
autênticas, supostas ou postuladas tarefas e perspectivas de amplos setores da população [...] uma espécie de
metaclasse ou ‘classe produtora de classe’
267
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 11
165
produzir e distribuir riqueza, além de criar condições para o exercício da
cidadania, a partir de grupos que se organizam para a produção, guiados por
princípios éticos de elevada inspiração democrática, econômica, ecológica e
social.
166
CAPÍTULO 2 CRÉDITO E COOPERATIVISMO DE CRÉDITO, NO BRASIL
A atividade de crédito, no Brasil, está bem aquém do que se verifica em
outros países do mundo. Enquanto o volume de crédito no Brasil está no patamar
de 28% do PIB, nos países em desenvolvimento este índice é, em média de 72%
e nos países ricos alcança, em média 84%. Há portanto um fosso que demonstra
a insuficiência na aplicação do crédito como instrumento de desenvolvimento.
Esse fosso na liberação de crédito, essa defaságem brutal implica também
em um correspondente atraso. Por que o Brasil não dispõe de uma frota marítima
compatível com as suas necessidade de exportação e de importação? Por que o
deficit habitacional no Brasil é de mais de 7 milhões de moradias? Por que as
pequenas empresas não geram muito mais empregos? A resposta a estas
questões e a outras que se poderiam formular na mesma linha é única: falta
crédito. Falta política de crédito, por ausência de Estado ou, melhor dito, por
excesso de Estado liberal.
Neste capítulo busca-se empreender uma análise relativamente às causas
da defasagem na utilização de crédito, no Brasil, como instrumento de
desenvolvimento em face da aparente opção pela perpetuação do atraso e da
exclusão social. Inicia-se essa visão panorâmica a partir de uma questão
orientadora lançada pelo relatório do BID:
268
O que deu errado?
“No final dessa década, uma grande preocupação acerca da
regulamentação e supervisão bancárias se espalhara no mundo inteiro,
com um forte impacto na América Latina. Produziu-se, então, uma nova
série de privatizações e reformas do setor financeiro, dessa vez em um
contexto de regulamentação e supervisão prudenciais mais fortes. Em
meados da década de 1990, o crédito bancário estava crescendo a taxas
históricas notáveis, na esteira de um crescente fluxo de capitais. No
entanto, durante a segunda metade da década muitos países se viram
novamente afetados por crises, e no começo do novo século e mantinha a
debilidade dos bancos e o crédito continuava estagnado. O que deu
errado?”
A esta questão pode-se alinhavar alguns indicativos extraídos do relatório
do BID, especificamente, sobre o Brasil, já que as respostas sobre o “que deu
errado?” estão, quase sempre, condicionadas a opções transitórias, (adotadas
167
por governos), dissociadas de uma política de Estado, pois, pelo que se tem
notícia, o Congresso Nacional, abdicou de exercer o seu papel de legislar sobre
política de crédito da competência privativa da União, (art. 22, VII, da CF). Assim
veja-se o que diz o BID sobre este tema
269
:
“Nos últimos anos, o crédito que os bancos concedem a governos
nacionais cresceu vertiginosamente. [...]. Em meados da década de 1990,
a parte da dívida pública em poder dos bancos representava 9% do total
de ativos do sistema bancário; em 2002 essa proporção atingiu uma média
de 16%. No México, na Argentina e no Brasil, esse número chega a um
terço dos ativos totais dos bancos. [...].
É natural que, em momentos de crise, os bancos procurem ativos seguros
a fim de reduzir os riscos de suas carteiras. [...]. Quando choques
negativos atingem a economia, os bancos aumentam consideravelmente
sua participação na dívida pública, cujo risco também tende a aumentar
com a crise.”
Sob o título concentração e concorrência assinala o BID a relevância
da tecnologia e o papel do Estado na atividade de regulamentação
270
:
“Os avanços da tecnologia da informação, a globalização e a
desregulamentação provocaram mudanças radicais na estrutura do setor
bancário. As inovações e a maior concorrência reduziram as margens das
atividades bancárias tradicionais e levaram a fusões entre bancos e outras
instituições financeiras. [...].
A evidência empírica indica que o principal motor da consolidação nos
países desenvolvidos é a necessidade de reduzir a capacidade excedente,
enquanto nos países em desenvolvimento a consolidação é resultado de
mecanismos de regulação de crises, reformas regulatórias ou processos
de privatização. Por tanto, nos países desenvolvidos a consolidação é um
processo que é dado pelo mercado, enquanto nos países em
desenvolvimento são as entidades reguladoras e o governo que
desempenham um papel importante no processo. [...].”
Sobre a presença e participação dos bancos estrangeiros o relatório do
BID, indica que:
271
“A presença de bancos estrangeiros no Brasil também aumentou mais de
100% (de 10% para 26%) no período compreendido entre 1995 e 2002). O
aumento da presença de bancos estrangeiros na América Latina foi
268
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. V.
269
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 98
270
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 125
271
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 136/7
168
conseqüência do processo de liberalização financeira e integração global.
[...]
Ao analisar a volumosa entrada de bancos estrangeiros no mercado latino-
americano, é interessante considerar os fatores que motivaram a decisão
de um banco de expandir-se para o exterior. De acordo com o ponto de
vista tradicional, os bancos entram nos mercados estrangeiro para seguir
seus clientes (Aliber, 1984). Essa teoria considera a internacionalização do
sistema bancário como uma conseqüência da crescente importância do
investimento estrangeiro direto (IED) não financeiro.”
Sob o título restrições ao financiamento de pequenas e médias empresas,
consta a seguinte avaliação no relatório do BID:
272
“As empresas pequenas na América Latina e Caribe estão entre as que
encontram mais restrições financeiras no mundo, de acordo com a
percepção dos seus executivos. Apenas as pequenas empresas do Sul da
Ásia declaram ter restrições maiores. Em contraste, as grandes empresas
da América Latina declaram ter restrições menores do que suas
equivalentes no resto do mundo, [...].”
Desta breve releitura pode-se extrair algumas conclusões e principalmente
algumas indagações: Como o Estado-nação previne-se da remessa (legal e
ilegal) de lucros, ou seja, como a riqueza gerada, aqui, está sendo apropriada, por
quem e em que proporção? Como está sendo feita a tributação sobre grandes
fortunas auferidas pelo capitalismo financeiro nacional e internacional, (art. 153,
VII, da CF)? Que política de crédito o país adotou para atender as pequenas e
médias empresas? Como e por quem esta política de crédito, (se é que existe),
esta sendo executada? Como o Estado-nação pretende expandir a política de
crédito, (28% do PIB), para fazer frente à necessidade de expansão econômica e
desenvolvimento social, com aumento de emprego, trabalho e renda?
Certamente o cooperativismo de crédito poderia dar respostas social,
política e economicamente, mais apropriadas ao interesse nacional no
atendimento a esta e a outras questões. Neste sentido, veja-se o que tem
acontecido, historicamente, com o cooperativismo de crédito segundo a lição de
Diva Benevides Pinho:
273
272
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 197
273
PINHO. Diva Benevides, in Tipologia Cooperativista. Manual de cooperativismo. CNPq. 3ª ed. São
Paulo: 1996. p. 38/9
169
“Nos países em que o Cooperativismo se encontra mais desenvolvido,
recebe amplo apoio do crédito cooperativo. No Brasil, entretanto, as
cooperativas de crédito nunca chegaram a apresentar um progresso
significativo devido, em grande parte, as rígidas medidas oficiais que
sempre limitaram sua atuação. Nas duas últimas décadas, especialmente,
o cooperativismo de crédito ficou confinado em dois campos: as
cooperativas de crédito-mútuo, fechadas aos empregados de grandes
empresas dos principais centros urbanos; e os setores de credito das
cooperativas agropecuárias. [...].
Verifica-se, então, o seguinte: o crédito rural não recebe amplos subsídios
como antes, e a intermediação do dinheiro para as fontes de produção
torna-se cada vez mais escorchantes, enquanto o Banco do Brasil aufere
lucros altíssimos com base em operações de crédito rural. Ou seja: o
Governo retira subsídios à agricultura, ao credito rural, e torna-se via
Banco do Brasil o principal intermediário do dinheiro obtendo lucro
espantosos sobre o repasse de recursos financeiros ao produtor. A
facotrigo (RS) apresentou, nesse sentido, interessante cálculo: em cada 5
safras das cooperativas agrícolas, uma destina-se a pagar os custos
financeiros.”
Sobre o funcionamento das cooperativas de crédito continua a mesma
autora:
274
“Como resultado da intervenção do Poder Público no setor cooperativista
de crédito, cabe ao Banco Central do Brasil conceder ou recusar
autorização para transferencia de sede, transformação, fusão,
incorporação e encampação dessas cooperativas, fiscalizá-las e aplicar-
lhes as penalidades previstas, aceitar ou não os nomes dos eleitos para a
Diretoria de órgãos consultivos etc.”
Neste contexto é que se deve aferir a importância do exercício efetivo do
Congresso Nacional como instância democrática na formulação de legislação
duradoura e estruturante sobre a política de crédito, voltada para o
desenvolvimento social, cultural e econômico como parece ser a vocação do
cooperativismo (em geral) e, em especial, do cooperativismo de crédito, com a
relevante missão de reter poupança popular, em benefício do desenvolvimento
local.
274
PINHO. Diva Benevides, Op. Cit. p. 41
170
Seção 1 Crédito pessoal: solução ou problema?
O Relatório do BID
275
faz uma correlação direta entre ineficiência e custo
do crédito “confirmando que setores bancários ineficientes têm spreads mais
altos”.
Por sua vez, o relatório FOCUS do Banco Central, publicado em maio de
2004, evidencia, um caos, para muito além da ineficiência. O empréstimo que
alcançou maior sucesso foi o crédito pessoal que, por sua natureza, é
emergencial e de curto prazo, com R$ 35 bilhões alocados, graças ao débito
consignado em folha, com variação positiva de 32,2% no período de um ano,
enquanto o crédito hipotecário direcionado a uma política pública de habitação
alcançou um volume de R$ 23,5 bilhões. Ou seja, prevaleceram créditos
pessoais, (para rolagem de dívidas), aos créditos de longo prazo, destinados ao
financiamento do déficit habitacional de mais de 7,2 milhões de moradias. Parece
ainda mais grave, que os créditos concedidos no Cartão de Crédito com liberação
de R$ 7 bilhões, supere em sete vezes o crédito pessoal para financiamento
imobiliário no valor de R$ 1 bilhão.
Quando se detém sobre os elementos institucionais que estão em torno do
crédito pessoal pode-se perceber algo ainda mais desconcertante. Ao que
parece, o crédito pessoal tem algumas funções afrontosas à ordem constitucional
vigente, especialmente quanto ao princípio constitucional da moralidade (art. 37,
caput), bem assim em relação aos fundamentos do Estado, especificamente com
relação à cidadania e a dignidade da pessoa humana. De fato, pode-se perceber
as seguintes funções desempenhadas pelo crédito pessoal: a) maquiar e
manipular a taxa de spread bancário; b) induzir o aumento do consumo sem
aumentar a massa salarial; c) financiar a rolagem de dívidas para limpar o nome
na Serasa.
A primeira função institucional - manipular a taxa de spread bancário pelo
que se observa do trecho do relatório abaixo transcrito, é reconhecida pelo Banco
Central do Brasil, em seu relatório FOCUS
276
:
“O volume de crédito no Brasil alcançou o valor nominal de R$436,1
bilhões em maio de 2004. Seu crescimento de 15,0% em doze meses foi
275
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 7.
276
Relatório Focus. Banco Central do Brasil: 14 de julho de 2004.
171
impulsionado, principalmente, pelas operações de crédito com recursos
livres, com aumento de 15,6% no mesmo período [...]. Destaca-se a
evolução do crédito para pessoas físicas, as quais apresentaram
crescimento de 19,9% nos últimos doze meses. Os créditos consignados
em folha de pagamento vêm contribuindo, desde sua implementação no
final de 2003, para o significativo incremento da carteira de crédito pessoal
no segmento pessoas físicas, com expansão de 32,2% em doze meses, o
mais elevado entre as várias modalidades de crédito. O crescimento do
volume de crédito pode ser confirmado pelas novas concessões com
recursos livres, que vêm apresentando uma tendência crescente [...] e que
alcançaram R$4,3 bilhões no total em maio
Em relação ao spread bancário, observa-se uma tendência de queda
desde maio de 2003, fechando maio de 2004 em 27,2% [...]. Esse
comportamento deveu-se, principalmente, às operações com pessoas
físicas, cujo spread diminuiu 14,8 pontos percentuais nos últimos doze
meses. As operações com pessoas físicas, por sua vez, foram fortemente
afetadas pela carteira de crédito pessoal, que teve seu spread reduzido em
18,4 pontos percentuais e seu volume aumentado em 32,2% no mesmo
período, como já mencionado [...]. O aumento da participação relativa dos
empréstimos consignados, cujas prestações são descontadas diretamente
na folha de pagamentos, reduz significativamente o risco de inadimplência,
influenciando a redução do spread bancário na carteira de crédito pessoal.”
Apesar do resultado alvissareiro dectado pelo Banco Central do Brasil, no
relatório FOCUS de 14 de julho de 2004, (texto acima transcrito), o efeito parece
ser artificial e provisório, como se pode constatar pelo boletim de conjuntura nº 75
de dezembro de 2006:
“No segmento de recursos livres, a partir de janeiro de 2005, o crédito
passou a se expandir a taxas reais (em 12 meses) superiores a 18%,
viabilizadas, essencialmente, pelas altas taxas de crescimento do crédito
pessoal, as quais chegaram a atingir 44%, na mesma base de
comparação, em meados de 2005. A esse respeito ainda, deve-se
destacar que a expansão do crédito consignado em folha de pagamento
atuou como um motor da evolução do crédito pessoal, chegando a
alcançar taxas reais de crescimento superiores a 100% no período em tela,
o que acabou por elevar sua participação no crédito pessoal de mercado
de cerca de 20%, no início de 2004, para algo como 40%, ao final de 2005.
A partir do último trimestre de 2005, a taxa real de crescimento (em 12
meses) do crédito pessoal passou a apresentar acentuada desaceleração,
alcançando o piso (até aqui) de 22,9%, precisamente em outubro de 2006.
Esse movimento, por sua vez, refletiu a trajetória do crédito consignado em
folha de pagamento, cujas taxas de expansão despencaram, na mesma
base de comparação, de cerca de 100% para algo em torno de 40%. Por
outro lado, como, no segmento de recursos livres, a trajetória do crédito
pessoal é determinante do comportamento do crédito para pessoa física, a
sustentação das taxas com títulos públicos envolveram pressões pela
172
captação de senhoriagem por parte do governo federal equivalentes a R$
40 bilhões e a R$ 21 bilhões do ano 2000, respectivamente.”
Mas, ao que se destina o crédito pessoal? Certamente à rolagem de
dívidas, para alimentar o consumo e para suprir a ausência de trabalho, emprego
e renda, etc. Neste sentido pode-se ver que a taxa de inadimplência, apesar do
aumento dos empréstimos a título de crédito pessoal, continua aumentando.
Segundo a Serasa:
277
“A inadimplência dos consumidores aumentou 2,6% em novembro de
2006, na comparação com outubro deste ano, revelou o Indicador Serasa
de Inadimplência Pessoa Física. O indicador voltou a registrar alta na
inadimplência, que já havia crescido 5,0% na relação outubro com
setembro deste ano. O aumento, no entanto, foi menor que o anterior.
Quando comparada a novembro de 2005, a inadimplência dos
consumidores também registrou acréscimo. A Serasa, maior empresa do
Brasil em informações, pesquisas e análises econômico-financeiras para
apoiar decisões de crédito e negócios e referência mundial no segmento,
apontou alta de 2,5% no período. No acumulado dos onze meses de 2006,
o indicador mostrou aumento de 11,3% na inadimplência das pessoas
físicas, em relação ao mesmo período do ano passado.
De acordo com o Indicador Serasa de Inadimplência Pessoa Física, em
novembro deste ano, as dívidas com os bancos assumiram o primeiro
lugar no ranking de representatividade na inadimplência dos consumidores.
No décimo primeiro mês de 2006, a participação foi de 34,6%, enquanto
em novembro de 2005, o peso das dívidas com o sistema financeiro foi de
31,0%.
Em novembro de 2006, o segundo maior índice na representatividade da
inadimplência das pessoas físicas foi o das dívidas com cartões de crédito
e financeiras, que teve peso de 32,7%, o mesmo que em novembro do ano
passado.”
Ou seja, pelo que se pode depreender, a mágica do crédito pessoal,
consignado em folha que serviu para reduzir o spreed bancário e aparentar uma
situação de ajuste pode, a partir do seu esgotamento, gerar uma situação de
violação à cidadania e aos direitos humanos fundamentais: honra, nome,
dignidade, (emprego, trabalho e renda).
Deve-se asseverar que a partir do crédito pessoal, (consignado em folha e
sem consulta à Serasa), iniciou-se uma oferta implacável, visando a fabricar
demandas - dirigida aos empregados públicos, aos aposentados e aos
173
pensionistas, patrocinada pelas denominadas instituições financeiras de
microcrédito, instaladas, aos milhares, em todo o Brasil. Esta oferta tem e terá
conseqüências sociais e econômicas desastrosas, como exemplificativamente
pode-se ver a partir de notícia veiculada na Internet
278
.:
“Considerados os melhores pagadores da praça, os idosos estão agora
protagonizando uma explosão de inadimplência. Dados da Serasa,
fornecidos com exclusividade ao GLOBO, mostram que, em março, 3,027
milhões de pessoas com mais de 60 anos estavam com nome sujo na
praça. O número é 3% superior à quantidade de idosos inadimplentes em
dezembro contra expansão só de 0,4% da média geral e 10% acima
do registrado há um ano. Em 12 meses, 277 mil pessoas dessa faixa etária
passaram ao cadastro de maus pagadores. O responsável pelo
movimento, que deve se intensificar em maio, tem nome e sobrenome:
crédito consignado com desconto na aposentadoria do INSS.”
Outro aspecto extremamente relevante para demonstrar a banalização do
Estado-nação ao adotar esse tipo de solução que se pretende mágica é traduzido
com clareza pela mesma reportagem. Os valores emprestados destinam-se a
outras pessoas que ficam com o compromisso moral perante os legítimos
tomadores que se transformarão em presas fáceis do sistema financeiro:
279
“Apesar das vantagens, os aposentados estão vivendo um verdadeiro
dilema. Isso porque estes contratos comprometem até 30% da renda,
reduzindo os recursos para o pagamento das outras contas, sobretudo as
do comércio e de outros tipos de crédito. E o que é pior: em muitos casos,
a inadimplência é involuntária, pois é grande o número de aposentados
que pegaram o consignado para parentes, amigos ou conhecidos, que
deram o calote....”
Os desdobramentos nefastos devem ser, também, avaliados quanto a
colocação ou manutenção dessas pessoas (cidadãos negativados) no mercado
de trabalho, pois, segundo entende o Estado-nação, por seu Poder Legislativo,
representado pela CPI da Serasa, as empresas podem discriminar os cidadãos
negativados pela Serasa quando forem contratar seus empregados, pois: “há
277
>http://www.serasa.com.br/empresa/noticias/2006/noticia_0380.htm< Acesso em 04/12/2006
278
Artigo: Armadilha na aposentadoria. Henrique Gomes Batista.. O Globo. 30/4/2006. Acesso público em
>http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=264204<
279
Artigo: Armadilha na aposentadoria. Henrique Gomes Batista.. O Globo. 30/4/2006. Op. Cit.
174
completa liberdade para que esse procedimento esteja em curso, uma vez que os
empregadores têm total liberdade para a seleção de seus quadros...”
280
.
O mais grave diante de tudo isto é que, como parece, na hipótese de
discriminação, o Estado-nação está impedido de atuar. Neste sentido os
representantes do povo, no Poder Legislativo, ao constatarem uma situação
concreta para a sua atuação, simplemente recuaram ou reconheceram a
impotência, transformada em perplexidade diante do que classificam como
situação dramática:
281
“Essa situação é dramática, na medida em que redunda numa equação
injusta para o cidadão que muitas vezes tornou-se inadimplente pela perda
do emprego e fica praticamente proibido de voltar ao mercado de trabalho
e regularizar suas pendências.”
Há portanto, um reconhecimento do Estado-nação primeiro quanto à
violação de direitos de cidadania e da dignidade da pessoa humana. A inclusão
social, pelo trabalho, vai sendo dificultada por fatores que prendem o Estado-
nação deixando-o atado, enquanto a sociedade fica entregue à lei do mais forte, à
semelhança do que percebe BAUMAN:
282
“Temos um longo caminho a percorrer antes que sequer pensarmos em
alcançar uma sociedade na qual “os indivíduos reconheçam sua autonomia
junto com os laços de solidariedade que os unem”. Como as coisas se
apresentam no momento, com o Estado recusando sua responsabilidade
pela segurança de todos e de cada um, “as leis do mais forte triunfam
sobre os fracos”; a versão real e efetiva de democracia liberal parece gerar
uma “sociedade de duas marchas, uma nação em duas camadas”.
Esse longo caminho a percorrer, como acentua BAUMAN, poderia e
deveria ser percebido e encurtado por uma atividade de inteligência e
dissernimento que, como se verá, está sendo relegada pelo Estado liberal,
propositalmente permissivo e tolerante com o mercado em detrimento da nação e
da cidadania: a atividade de planejar.
280
Relatório Final da CPI Serasa. Op. Cit. p. 34
281
Relatório Final da CPI Serasa. Op. Cit. p. 36
282
BAUMAN. Zygmunt, Em busca da política. p. 159 e 160.
175
Seção 2 Planejamento de Estado e política de crédito
Como se sabe, o poder-dever de erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais, inscreve-se como um dos objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil, (art. 3°, III, CF). A este objetivo
fundamental, pode-se acrescentar o fundamento dignidade da pessoa humana.
Como parece elementar, erradicar a pobreza depende de condições
materiais objetivas, depende do estágio de desenvolvimento econômico. A
estrutura econômica produtiva e mais especificamente a forma como se produz e
se distribui a riqueza é o que enseja a possibilidade de erradicar a pobreza.
Essas condições (materiais objetivas) estão devem ser alcançadas por
uma atuação característica e essencial do Estado: a atividade de planejamento,
(art. 174, CF). Segundo o que fixa a Constituição, o Estado-nação deve agir de
maneira ativa, propiciado as condições para o desenvolvimento econômico e
induz o desenvolvimento por meio dos instrumentos de que dispõe para que os
setores dinâmicos da economia atuem no sentido desejado pelo Estado-nação:
erradicar a pobreza e assegurar a dignidade da pessoa humana. Especificamente
sobre a atividade de planejamento do Estado, parte-se da lição de SILVA:
283
“Planejamento é o processo técnico instrumentado para transformar a
realidade existente no sentido de objetivos previamente estabelecidos. O
planejamento econômico consiste, assim, num processo de intervenção
estatal no domínio econômico com o fim de organizar atividades
econômicas para obter resultados previamente colimados. É, como diz
Eros Graus, “a forma de atuação estatal, caracterizada pela previsão de
comportamentos econômicos e sociais futuros, pela formulação explicita de
objetivos econômicos e sociais futuros e pela definição de meios de ação
coordenadamente dispostos, mediante a qual se procura ordenar, sob o
angulo macroeconômico, o processo econômico, para melhor
funcionamento da ordem social, em condições de mercado”. O
planejamento econômico é, assim, um instrumento de racionalização da
intervenção do Estado no domínio econômico, ou como dispõe a
Constituição: a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do
desenvolvimento nacional equilibrado, (art. 174, § 1°). É uma técnica de
intervenção, na lição de Washington Peluso Albino de Souza. Essa
doutrina foi acolhida pela Constituição no art. 174, que inclui o
planejamento entre as funções do Estado como agente normativo e
regulador da atividade econômica.”
283
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 686.
176
O objetivo que se delineia nesta seção é, portanto, vislumbrar o resultado
concreto dessa atividade do Estado-nação relativamente à eficiência do
planejamento e da execução da política de crédito e de microcrédito, como
instrumentos para erradicar a pobreza, estritamente relacionado com a função
essencial do Estado: planejar.
Preliminarmente, deve-se assentar a relevância do crédito e do
microcrédito como instrumentos de atuação do Estado-nação. Nesta perspectiva,
veja-se o entendimento do BID:
284
“Os bancos desempenham um papel crucial na determinação dos padrões
de vida nas economias modernas. Eles têm capacidade de estimular e
captar a poupança da sociedade e alocá-la entre empresas e setores que
necessitam de capital como insumo para as suas atividades econômicas.
Pela alocação de recursos, o setor bancário pode determinar e alterar a
trajetória de progresso econômico, particularmente em países que ainda
não desenvolveram fontes alternativas de financiamento, tais como
mercados profundos de capitais.”
Um outro entendimento, na mesma perspectiva, para justificar a atuação
do Estado-nação na linha do microcrédito, é apresentado pelo BNDES
285
: “A
indústria de microfinanças [...] encontra-se num estágio embrionário, [...] O país
apresenta uma série de condições favoráveis ao seu desenvolvimento, [...]”
Como se pode perceber, no mérito, há consenso, entre o BID e o BNDES .
No entanto, a implementação dessa política de crédito tem como resultado, ao
que parece, um subproduto inesperado que foge ao objetivo do planejamento do
Estado-nação: a pobreza estrutural.
A inaptidão do Brasil com relação ao manejo do capital financeiro, interno e
externo, relacionado à política de crédito, é seguramente catastrófica, quando se
considera o mau uso de algo tão relevante quanto é o crédito na estruturação da
economia e, exatamente, por isso deveria ser considerada como uma calamidade
pública, por que, além de distorcer a sua função, a atual política de crédito é
ineficiente naquilo que deveria ser o seu objetivo principal, como, indicativamente,
se constata a partir da seguinte avaliação extraída do Relatório do BID
286
:
284
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 3
285
BNDES >http://www.bndes.gov.br/programas/sociais/microcredito_historico.asp< Acesso em 26/11/2005
286
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. V
177
“O crédito fornecido pelo setor bancário é a fonte de financiamento mais
importante para as empresas e as famílias na América Latina e no Caribe.
Infelizmente, o crédito é escasso, caro e volátil. Sem a presença de
mercados de crédito profundos e estáveis será muito difícil que a região
alcance taxas de crescimento altas e sustentáveis e consiga combater a
pobreza.” (Sem grifos no original).
Especificamente sobre a magnitude da escassez de crédito, merece
evidência o seguinte texto, igualmente extraído do relatório do BID
287
.:
“O crédito bancário é escasso na América Latina e no Caribe. Durante a
década de 1990, o nível médio de crédito concedido ao setor privado na
região foi de apenas 28% do PIB, uma taxa significativamente mais baixa,
que a de outros grupos de países em desenvolvimento, Leste da Ásia e
Pacífico (72%) e Oriente Médio e Norte da África (43%). O tamanho dos
mercados de crédito da região, [...] é surpreendente pequeno quando
comparado com países desenvolvidos (84%).”
A conseqüência da escassez de crédito, no Brasil, pode ser analisada pela
relevância que têm merecido os dois segmentos prioritários indicados pelo BID
288
,
a saber: pequenas e médias empresas e crédito hipotecário.
O segmento da pequena empresa é tão importante para o
desenvolvimento nacional, que a Constituição Federal fixou, o princípio, do
tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de
pequeno porte”
289
. Pois bem, diante do princípio do tratamento favorecido,
assegurado pela Constituição, promulgada há 18 anos, (1.988), seria inaceitável
para um Estado-nação, soberano e sério, a realidade estampada pelo
SEBRAE
290
:
“A falta de crédito é um dos principais obstáculos para a criação e o
desenvolvimento dos pequenos negócios no Brasil. Apesar de
responderem por aproximadamente 20% do Produto Interno Bruto (PIB) e
60% dos empregos gerados no País, as MPE recebem apenas 10% dos
créditos concedidos pelos bancos oficiais e privados.”
287
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. 5 e 6.
288
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. Ve VI.
289
CF. Art. 171, caput e inciso IX
290
SEBRAE Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Acesso público, 16 de julho de 2006, link:
<http://www.sebrae.com.br/br/parasuaempresa/comoobtercredito.asp>.
178
Quanto ao segmento habitacional, pode-se constatar o mesmo descaso
como revela o estudo realizado, em 2003, pela FGV
291
, por solicitação do
SINDUSCON-SP, de onde se extraí o seguinte texto:
“Em 2003, o déficit habitacional do país era de 7,280 milhões de moradias,
ou 14,8 do total de domicílios do país. [...] o principal componente do déficit
é a coabitação familiar, que respondeu por 53% do total do déficit, ou 3,9
milhões de domicílios. Os domicílios rústicos, onde estão incluídas as
favelas, também respondem por parcela importante do déficit do país: 3,1
milhões de domicílios.”
Ou seja, os dois segmentos mais sensíveis à política de crédito e que,
portanto, demandam a atividade de planejamento do Estado-nação, estão em
situação de abandono. Este déficit do Estado, relativamente à política de crédito
como forma de reduzir a pobreza precisa ser aferido nos termos da Constituição
Federal, que submete, (submeter fica por conta do discurso jurídico), o interesse
econômico à dignidade da pessoa humana, ou, nos expressos termos do artigo
170, da CF: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os
ditames da justiça social ...”, podendo-se asseverar com o auxílio de SILVA:
292
“[...] essa formação capitalista da Constituição de 1988 tem que levar em
conta a construção de um Estado Democrático de Direito, em que [...] se
envolvem direitos fundamentais do homem que não aceitam a
permanência de profundas desigualdades, antes, pelo contrário, reclamam
uma situação de convivência em que a dignidade da pessoa humana seja
o centro das considerações da vida social.”
Ao contrário do que dita a Constituição Formal, o que este estudo está a
demonstrar é que o Estado-nação é omisso e, pior ainda, com relação ao sistema
financeiro, é, historicamente, permissivo, tolerante e fraco, quando, pela via
democrática, deveria: reforçar a cidadania; defender a soberania nacional;
consolidar direitos humanos fundamentais; preservar ou, quando for o caso,
restabelecer a dignidade da pessoa humana, preferencialmente, sem populismos
e sem a pieguice da educação alimentar tão evidentemente residual e subalterna,
como se verá adiante na seção sob o título sindico da miséria.
291
FGV Fundação Getúlio Vargas. Por dentro do déficit habitacional brasileiro. São Paulo: 2003. Link:
>http://www.sindusconsp.com.br/downloads/Relatorio_de_pesquisa_deficit_habitacional_2003.pdf<
179
Nesta perspectiva, é oportuno considerar que a pauta do Brasil,
especificamente com relação à política de crédito, de competência privativa da
União
293
, é anacrônica e a banalização praticada por sucessivos governos em
detrimento da cidadania e em benefício do sistema financeiro, tende a piorar
ainda mais a situação de toda a sociedade brasileira.
A mais recente invenção - a Lei da bancarização
294
dos miseráveis - é, a
rigor, uma perversidade do Estado-nação, sabendo-se, previamente que o
resultado desse crédito - essencialmente direcionado ao consumo sem aumento
da massa salarial resultará na negativação de milhares de cidadãos
historicamente discriminados e relegados que - a partir da negativação,
especialmente pela Serasa - além da miséria terão de enfrentar outros
constrangimentos à semelhança do que acontece com o contingente de
aposentados e pensionistas.
Essa Lei da Bancarização consubstancia o que historicamente representa
um entrave ao desenvolvimento e está marcada sobretudo pelo conflito com outra
norma que lhe é superior. A Lei da bancarização, conflitua diretamente com a
Constituição Federal em diversos pontos e por isto poder-se-ia argüir a sua
inconstitucionalidade. Enquanto a CF fixa o princípio do bem-comum, sem
discriminação (art. 3º, IV), a lei da bancarização determina a exigência de
informações cadastrais (art. 3º, § 1º, inciso I); enquanto a CF fixa o princípio da
licitação pública que assegure igualdade de condições (art. 37, XXI), bem assim o
princípio da livre concorrência (art. 170, IV) a Lei da bancarização, ao exigir
informações cadastrais (art. 3º, § 1º, inciso I), favorece ao monopólio da Serasa
que vende, sem licitação, dados cadastrais a todos os órgãos públicos
operadores das políticas de crédito e de microcrédito.
Essa parceria na bancarização dos miseráveis e esse perfeito
entendimento do Estado-nação com o sistema financeiro, mostram-se
contraditórios especialmente quando se sabe o monumental calote dos bancos na
apropriação indevida de recursos arrecadados a título de CPMF, (Contribuição
Provisória sobre Movimentação Financeira), destinados legalmente à Saúde
Pública. Noticia-se que as autuações realizadas pela Receita Federal contra
292
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 724/5.
293
Política de Crédito: artigo 22, VII, da Constituição Federal
294
Lei nº 11.110/05: >http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2005/Lei/L11110.htm<
180
instituições financeiras pelo não-recolhimento do tributo somaram R$ 680 milhões
de janeiro a maio de 2004.”
295
.
É essa cultura que está arraigada na consciência e na prática cotidiana dos
agentes políticos que comandam a política de crédito no Brasil. Uma cultura que
tenta preservar o melhor-dos-mundos e, certamente, isso dificulta pensar em
outras alternativas como no caso específico que aqui se discute: o cooperativismo
de crédito.
Seção 3 Cooperativismo de crédito: aspectos históricos
Há uma informação disseminada por quase toda a literatura sobre
cooperativismo de crédito, segundo a qual, o Cooperativismo de Crédito, no Brasil
teve seu início em 1902, no Rio Grande do Sul, sob a inspiração do Padre Jesuíta
Theodor Amstadt, tendo como base a sua experiência na Alemanha.
Segundo o ensinamento de MENDES
296
, apresentado no Canadá, em
1975, o cooperativismo de crédito surgiu no Brasil, a partir de duas iniciativas uma
no Rio de Janeiro, outra no Rio Grande do Sul:
“O cooperativismo de crédito surgiu, no Brasil, nos princípios do século, em
dois movimentos distintos: o defendido por Plácido de melo, no Estado do
Rio de Janeiro, que deu como resultado a criação da primeira Caixa Rural
Raiffeisen, em 1908; e o difundido pelo Jesuíta Teodoro Amstadt, no
Estado do Rio Grande do Sul, cuja primeira cooperativa foi fundada em
1909, pertencendo igualmente ao tipo faiffesisiano.
Dos dois citados movimentos, o de Amstadt alcançou mais sucesso, talvez
pelas condições sócio-econômicas locais, pois foi implantado entre colonos
alemães e teuto-brasileiros, possivelmente mais sensíveis à prática da
poupança e da cooperação às idéias associativistas.
As Caixas do Rio Grande do Sul tornaram famosas e chegaram a somar
62 unidades em funcionamento na década de cinqüenta. Contavam com
uma Central sediada em Porto Alegre, capital daquele Estado. Mas apesar
da expansão do movimento, podendo ser razoável no tempo, o exemplo
parece não haver suscitado imitação em qualquer outro lugar do território
nacional.
Na região, as Caixas atingiram diversos municípios e roam o sustentáculo
financeiro da produção rural e da vida social durante mais de meio século,
295
Crescem multas a bancos por evasão de CPMF
>http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u85082.shtml<
296
MENDES. Maria Tereza Teixeira, in Tipologia Cooperativista. Op. Cit. p. 53
181
ou melhor, até meados da década de sessenta. Por essa época, em face
das novas diretrizes do Governo para a política financeira, foram
consideradas organizações inadequadas e pressionadas para que se
reestruturassem sob as características de cooperativas de crédito rural, isto
é, cooperativas somente constituídas entre agricultores e operando
exclusivamente com estes; facultados apenas 20% dos empréstimos para
consumo.
Em conseqüência das novas exigências foi fechada a Central, tida como
organismo defeituoso e distorcido, que operava inclusive fora da faixa
legal. O fechamento feio a dificultar sobremodo a recomposição do
movimento, hoje a braços com dificuldades multiplicadas internamente e
com cerca de quinze cooperativas filiadas apenas.”
Consultando-se a síntese elaborada por PINHEIRO pode-se observar uma
informação adicional sobre a origem do cooperativismo de crédito no Brasil.
Assim, segundo PINHEIRO:
297
“A primeira sociedade brasileira a ter em sua denominação a expressão
‘cooperativa’ foi, provavelmente a Sociedade Cooperativa Econômica dos
Funcionários Públicos de Ouro Preto, fundada em 27 de outubro de 1889,
na então capital da província de Minas, Ouro Preto. Embora criada como
cooperativa de consumo os artigos 41 a 44 do seu estatuto social proviam
a existência de uma “caixa de auxílios e socorros”, com o objetivo de
prestar auxílios e socorros às viúvas pobres que caíssem na “indigência
por falta absoluta de meios de trabalho”. Muito embora o estatuto não
previsse a captação de recursos junto aos associados, essa “caixa de
auxílios e socorros” guarda grande semelhança com as seções de crédito
das cooperativas mistas constituídas no século seguinte, mas com
finalidades primordialmente assistencial.”
Ao que parece o movimento do cooperativismo de crédito no Brasil foi lento
e caracterizou-se por movimentos autônomos, autogestionários esparsos e
movimentos bruscos do Governo, fechando e interferindo nos movimentos
populares. PINHO, relata o que parece ter sido o auge, para depois estabelecer o
marco inicial do declínio do cooperativismo de crédito, exatamente com a reforma
bancária instituída em 1964:
298
“Em 1960, cerca de 54% das cooperativas de crédito (sem contar as
seções de crédito e outras cooperativas) concentravam-se no Sudeste/Sul
do Brasil. 43% no Nordeste e apenas 3% no Norte/Centro-Oeste. Nessa
época, a liderança do Movimento do Cooperativismo de Crédito,
297
PINHEIRO. Mário Antonio Henriques. Cooperativas de Crédito: história da evolução normativa no
Brasil. 4ª ed. BCB. Brasília:2006. p. 29.
298
PINHO. Diva Benevides, Op. Cit. p. 36
182
representada por São Paulo e Rio Grande do Sul, passou a contar também
com o Estado do Paraná.
Com a reforma bancária (Lei 4.595/64) e as normas de política financeira
do Governo Federal, o Cooperativismo de Crédito brasileiro comecou a
decair.”
A partir do primeiro Governo Lula, iniciado em 2003, ao que parece, há um
novo suspiro de ressurgimento do cooperativismo de crédito, representado pela
edição da resolução do Banco Central do Brasil, sob nº 3.106/03, de onde se
extraí o seguinte artigo:
“Art. 9º O Banco Central do Brasil somente examinará pedidos de
autorização para funcionamento de novas cooperativas de crédito cujos
estatutos estabeleçam a livre admissão de associados, bem como de
aprovação de alteração estatutária de cooperativas de crédito em
funcionamento com vistas à referida condição de admissão, dentro das
seguintes condições:
I - caso a população da respectiva área de atuação não exceda 100 mil
habitantes, é admitida a autorização para funcionamento de novas
cooperativas, bem como a alteração estatutária de cooperativas existentes
que apresentem cumprimento dos limites operacionais estabelecidos pela
regulamentação em vigor, de suas obrigações perante o Banco Central do
Brasil e regularidade dos dados registrados em qualquer sistema público
ou privado de cadastro e informações;
II - caso a população da respectiva área de atuação exceda 100 mil
habitantes, é admitida a alteração estatutária de cooperativas em
funcionamento há mais de três anos, que apresentem cumprimento dos
limites operacionais estabelecidos pela regulamentação em vigor, de suas
obrigações perante o Banco Central do Brasil e regularidade dos dados
registrados em qualquer sistema público ou privado de cadastro e
informações.
§ 1º A área de atuação das cooperativas de que trata este artigo deve ser
constituída por um ou mais municípios inteiros em região contínua, com
população total não superior a 750 mil habitantes.
§ 2º A área de atuação das cooperativas formadas de acordo com o inciso
I pode ser ampliada, mediante aprovação do correspondente pedido pelo
Banco Central do Brasil, após três anos de funcionamento no regime de
livre admissão, observado o disposto no inciso II.
§ 3º A população dos municípios pertencentes à área de atuação das
cooperativas de que trata este artigo será verificada com base nos dados
das estimativas populacionais municipais divulgados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos à data mais próxima
disponível, ou, na sua falta, dados oriundos do poder público local.
183
§ 4º São equiparadas a municípios, para efeitos da verificação das
condições estabelecidas neste regulamento, as regiões administrativas
pertencentes ao Distrito Federal.”
Assim, apesar dos passos e contrapassos o cooperativismo de crédito no
Brasil, encontra-se em um momento de justificado otimismo. Cumpre aos líderes
municipais e, especialmente, às comunidades organizadas dar o passo seguinte
na mobilização e debate deste que pode ser um momento de construção de
anteparos à globalização econômica, tão avassaladora e destrutiva quanto um
furacão, um tornado, uma tempestade que carrega em si uma “força maior”,
conhecida, previsível, mas inevitável.
184
CAPÍTULO 3 PERSPECTIVAS DO COOPERATIVISMO DE CRÉDITO
O sistema produtivo, (o modo social de produção), produz mercadorias
(bens e serviços), e, sobretudo, produz sujeitos que agem e interagem segundo
um padrão de costume e hábito reiterado, em suma: segundo uma cultura. Em
um sistema capitalista viceja a cultura capitalista que tem sua força no mercado,
no intercambio produtivo em constante expansão na busca de novos mercados
com tendência ao infinito. Enquanto durar uma determinada forma de produção,
tende a perdurar a formação social e política que lhe dá sustentação. Nesta
perspectiva, afirmam MARX e ENGELS
299
:
“Aqui estão, por conseguinte os fatos: indivíduos determinados que, como
produtores, atuam de uma maneira também determinada, estabelecem
entre si relações também determinadas. È preciso que, em cada caso, a
observação empírica ponha em relevo de modo empírico e sem qualquer
especulação ou mistificação o nexo existente entre a estrutura social e
política e a produção. A estrutura social e o Estado nascem continuamente
do processo vital de indivíduos determinados, porém desses indivíduos
não como podem parecer à imaginação própria ou dos outros, mas tal e
qual realmente são, isto é, tal como atuam e produzem materialmente e,
portanto, tal como desenvolvem suas atividades sob determinadas
limitações, pressupostos e condições materiais, independente de sua
vontade.”
Assim como pareceu a Marx e Engels, (1848), parece também acontecer,
nos dias atuais, com relação à experiência cooperativista. O modo capitalista
preponderante, quase exclusivo, forja os sujeitos, condiciona os sujeitos, produz
os sujeitos que irão, tentar de forma idealizada, romper o ciclo de uma
mentalidade capitalista para alcançar idealmente um outro modo de produção: o
modo cooperativista. A superação está, portanto, propensa ao fracasso, ou seja,
as chances de fracassar são maiores que as chances de sucesso. Daí advém a
dura critica de Marx e Engels aos precursores do cooperativismo e à própria idéia
da implantação de um sistema cooperativista. A critica de MARX está fundada no
materialismo histórico: é como se se desejasse mudar a estrutura de produção a
partir da superestrutura. É como se se quisesse mudar a realidade a partir de
uma lei ou de um decreto.
299
MARX. Karl, e ENGELS. Friedrich. A ideologia alemã. Op. Cit. p. 50
185
ENGELS (em 1875) demonstra a impossibilidade dessa passagem do
conceitual para o real quando se referiu ao socialismo científico em contraposição
ao socialismo utópico - atribuindo a Roberto Owen e aos demais precursores do
cooperativismo - o desejo de emancipar, de uma só vez, toda a humanidade, em
vez de aceitar a preponderância história e reconhecer que a emancipação se
daria, segundo a sua tese, pela força emancipadora comandada pela classe
oprimida: o proletariado.
300
“Mais tarde vieram os três grandes utopistas: Saint-Simon, em que a
tendência continua ainda a se afirmar, até certo ponto, junto à tendência
proletária; Fourier e Owen, este último, num país onde a produção
capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão engendrada por
ela, expondo em forma sistemática uma série de medidas orientadas no
sentido de abolir as diferenças de classe, em relação direta com o
materialismo francês.
Traço comum aos três é que não atuavam como representantes dos
interesses do proletariado, que entretanto surgira como um produto
histórico. Da mesma maneira que os enciclopedistas, não se propõem
emancipar primeiramente uma classe determinada, mas, de chofre, toda a
humanidade.”
A tese de ENGELS sobre a pretensão dos socialistas utópicos em
“emancipar, de chofre, a humanidade” para sustentar que emancipação dar-se-ia
pela proletariado, como classe oprimida, tem fundamentos profundos, mas
também encerra limitações
301
e a grande prova histórica disto são as experiências
bem sucessivas na área do cooperativismo, como cultura. A razão do sucesso
dessas experiências cooperativistas parece ser algo tão evidente, tão
desconcertante, tão óbvia que vai se tornando imperceptível. O rompimento
teórico do ciclo da consciência capitalista tão arraigada, produzida pelo processo
histórico capitalista, para a experiência cooperativista tem um pressuposto
necessário sem o qual a transposição não se opera. Assim, a condição peculiar
do cooperativismo, que se procura deixar evidenciado neste estudo, pode ser
traduzida em uma revelação extremamente singeleza: o modo de produção
social, no cooperativismo, está baseado na relação entre IGUAIS.
Essa é a diferenciação elementar que uma vez sedimentada na relação
social e interpessoal (intersubjetiva) pode ser transferida para a relação de
300
ENGELS. F. O Socialismo Utópico: http://www.marxists.org/portugues/marx/1880/sociutopsocicien/parte01.htm
301
COUTINHO, Carlos Nelson. Op. Cit. p. 101 refere-se ao mecanicismo economicista
186
produção, para a o modo social de produção. A relação entre iguais pressupõe a
percepção e a empatia: saber-se igual ao outro, é portanto, o elemento estrutural
a partir do qual se pavimenta e se constrói a cultura cooperativista que deve ser
paritária, autogestionária e democrática.
O exercício da democracia, isto é, a capacidade de participar e de aceitar a
participação, inicia-se primeiro, pela idéia, pela convicção subjetiva e
intersubjetiva plena da sua possibilidade, para só então, efetivar-se no exercício
da vida real, da produção real. Essa condição, ou melhor dito, essa pré-condição
de perceber-se que a cultura cooperativista constrói-se a partir de iguais parece,
portanto, o ponto inicial para avaliar-se, as perspectivas do Cooperativismo de
Crédito, no Brasil. A releitura desta base conceitual, oferece a oportunidade para
revisitar SINGER
302
:
“O capitalismo se tornou dominante há tanto tempo que tendemos a torná-
lo como normal ou natural. [...].
Mas, na economia capitalista, os ganhadores acumulam vantagens e os
perdedores acumulam desvantagens nas competições futuras.
Empresários falidos não tem mais capital próprio, e os bancos lhe negam
crédito exatamente porque já fracassaram uma vez. Pretendentes a
emprego que ficam muito tempo desempregado têm menos chance de
serem aceitos, assim como os que são idosos. [...].
Tudo isso explica porque o capitalismo produz desigualdade crescente,
verdadeira polarização entre ganhadores e perdedores. Enquanto os
primeiros acumulam capital, ganham posições e avançam nas carreiras, os
últimos acumulam dívidas pelas quais devem pagar juros cada vez
maiores, são despedidos ou ficam desempregados até que se tornam
inempregáveis, o que significa que as derrotas os marcam tanto que
ninguém mais quer empregá-los. Vantagens e desvantagens são legadas
de pais para filhos e para netos. Os descendentes dos que acumularam
capital ou prestígio profissional, artístico, etc. entram na competição
econômica com nítida vantagem em relação aos descendentes dos que se
arruinaram, empobreceram e foram socialmente excluídos. O que acaba
produzindo sociedades profundamente desiguais.”
Entender que existem na vida social, outros tantos iguais, gera,
conceitualmente, a possibilidade de tornar efetiva a experiência cooperativista, tal
como vivenciada pelos pioneiros de Rochdale, no início da exploração capitalista.
Foi isso o que inspirou, alimentou e até hoje viabiliza o sucesso do sistema
cooperativista. Os sujeitos que se unem em experiência cooperativistas precisam,
187
como pré-condição, para a superação da condição capitalista de ser e de agir,
saberem-se iguais. Veja-se, mais uma vez a lição de SINGER:
303
“A solidariedade na economia só pode se realizar se ela for organizada
igualitariamente pelos que se associam para produzir, comercializar,
consumir ou poupar. A chave dessa proposta é a associação entre iguais
em vez de contrato entre desiguais. [...]. Este é o princípio básico.” [...]
(Sem grifo no original)
Parece, portanto, fundamental entender-se que o cooperativismo é um
sistema de produção é um modo social de produção diferenciado do capitalismo
exatamente aí: associação entre iguais. Qualquer outra formatação que
conduza a relação social a uma situação de dependência a outros sujeitos, a
saberes externos, saberes não vivenciados por sujeitos iguais produz a
superioridade de um saber que subjuga o outro saber que lhe é dependente.
O cooperativismo de crédito, tal como outras formas de organização
cooperativa, estará, sempre, em estado de cooptação pelo sistema capitalista,
independente da existência de elementos externos, porque a cultura capitalista a
forma de ser capitalista está indissociável da forma de produção capitalista.
Diante do ambiente hostil, cultural e socialmente, pode-se, no âmbito desta
pesquisa, aventar algumas perspectivas do cooperativismo de crédito, no Brasil,
tomando-se como ponto de inflexão o prazo das próximas décadas: a) sistema
autônomo e concorrencial, (embora residual) mas com ênfase e coerência na
função histórica de emancipação, como uma vocação do modo social
cooperativista; b) mera cooptação pelo sistema financeiro convencional, como
uma espécie de instância de aval, com a função de formar um cordão cultural, um
cinturão biopolítico, de isolamento entre as classes populares empobrecidas, “os
pobres pós-modernos, redefinidos como ‘consumidores frustrados’ e de maneira
geral todos as classes perigosas, (potencialmente criminosas)
304
e instituições
financeiras hegemônicas, com sua formação em rede de dominação e controle
operada por seus “três meios globais e absolutos: a bomba, o dinheiro e o
éter.”
305
302
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Op. Cit. p. 7/9.
303
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Op. Cit. p. 9
304
BAUMAN, Zygmunt Em busca da política, p. 80
305
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 366
188
Nesta segunda perspectiva o cooperativismo de crédito seguiria a mesma
linha já adotada pelo Estado, através do Ministério do Trabalho, mediante a
discriminação dos cidadãos negativados pela Serasa, tratados como os
consumidores frustrados sem se considerar que estes sujeitos encerram uma
comunidade de iguais equivalente a 57% da população economicamente ativa,
urbana. Esta perspectiva já se afigura como um fato concreto pelo que se acha
noticiado pela Cresol:
306
“O curso, promovido pela Central Cresol Baser e ministrado por
colaboradores da Serasa, tem a finalidade de qualificar o quadro de
funcionários e dirigentes, buscando melhorar a gestão e o atendimento nas
singulares. No curso, serão demonstrados os acessos e dicas práticas
para o uso dos serviços disponibilizados pela Serasa, bem como normas
legais pertinentes ao assunto.
O convênio vai possibilitar às cooperativas fazer consultas da situação
cadastral dos associados em todo o território nacional, pesquisas para
aprovação de crédito baseado no seu histórico financeiro e ainda, em
situações extremas, fazer a negativação de associados que virem a atrasar
suas operações nas cooperativas. As cooperativas singulares terão senhas
de acesso ao sistema de consulta de dados em tempo real, agilizando os
procedimentos.
O objetivo maior do convênio com a Serasa, assegura o diretor financeiro
da Central, Flávio Marcos da Silva, é ter mais um instrumento para
amparar a concessão do crédito. Com base nos dados da situação
cadastral, pode-se discutir a viabilidade de um novo empréstimo para o
agricultor associado, "o que é de fundamental importância ao se tratar de
cooperativas, onde todos respondem caso ocorra um problema de ordem
financeira".”
A perspectiva de cooptação é, pelo quadro institucional que se desenha,
uma tendência preponderante, seguindo, inclusive a corrente da globalização
econômica e a história recente, percebida por SINGER:
307
“De forma semelhante ao cooperativismo de consumo, o de crédito
enfrenta nos países desenvolvidos a concorrência de intermediários
financeiros privados e públicos, de grande dimensão e capacidade de
desenvolver e aplicar tecnologias avançadas de informática. Para enfrentar
tal concorrência, o movimento de cooperativismo de crédito tende a se
centralizar e burocratizar, buscando ganhos de escala e atendimento em
massa, com o que abre mão da autogestão e do caráter comunitário da
cooperativa de crédito. Mesmo mantendo as formalidades do
306
Cresol: >http://www.cresol.com.br/site/noticia.php?id=212< Acesso em 02/12/2006
307
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Op. Cit. p. 73
189
cooperativismo o funcionamento concreto passa a se assemelhar cada vez
mais ao dos intermediários convencionais.”
Os ganhos em escala e o atendimento em massa conduzem o
cooperativismo de crédito, ao uso da tecnologia convencional do velho paradigma
da Serasa que tende à exaustão exatamente pela permanente exclusão social e
produtiva dos cidadãos empobrecidos vistos como potencialmente criminosos e
expostos à vexação pública com a marca da iniqüidade: negativados.
Por seu turno, a perspectiva de construção residual de um cooperativismo
de crédito de cunho popular e emancipatório esbarra-se na cultura inóspita e
hostil à dignidade da pessoa humana que caracteriza, até então, a linguagem do
dinheiro em todo o mundo e também no Brasil. O rompimento dessa carga
cultural e a construção de uma contracultura parecem remota se se considerar
como intransponível a advertência de HARDT. Michael, e NEGRI
308
“Se o capitalismo e o imperialismo estão essencialmente relacionados, diz
a lógica, então toda luta contra o imperialismo (e contra as guerras, a
miséria, o empobrecimento e a escravidão resultantes) precisa ser também
uma luta frontal contra o capitalismo. Qualquer estratégia política destinada
a reformar a configuração moderna do capitalismo para torná-lo não
imperialista é inútil e ingênua, porque o âmago da reprodução e da
acumulação capitalistas implica, necessariamente, a expansão imperialista.
[...] Os males do imperialismo não podem ser enfrentados a não ser pela
destruição do próprio capitalismo.”
Em qualquer situação deve-se reafirmar, a partir dos elementos
consubstanciados neste estudo, a precariedade da posição do Estado-nação
tendente a constituir-se em sindico da miséria em distrito policial local levado a
buscar saídas para uma sociedade que vive a aspiração da igualdade,
assegurada formalmente pela Constituição Federal. O espaço da superação é o
espaço para o exercício de pensar, tão escasso nos dias atuais, como assevera
BAUMAN
309
:
“[...] o problema da nossa civilização é que ela parou de se questionar.
Nenhuma sociedade que esquece a arte de questionar ou deixa que esta
arte caia em desuso pode esperar encontrar respostas para os problemas
308
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 248
309
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 12
190
que a afligem certamente não antes que seja tarde demais e quando as
respostas, ainda que corretas, já não são mais relevantes.”
O enfoque que se tenta adotar, ao longo desta pesquisa, é que o quadro
institucional é degradado e tende a degradar-se mais ainda por ausência de um
espaço de construção de cidadania, a partir de um sistema econômico, um modo
de produção social viável como produtor de mercadorias e de serviços e como
produtor de subjetividades, capaz de gerar sujeitos atuantes. Este espaço
institucional é, a exemplo ágora que na antigüidade um espaço entre o público e o
privado a ser exercido pelo sistema cooperativo, como perspectiva a ser pensada,
para a inclusão social produtiva.
Seção 1 Cooperativismo de crédito e desenvolvimento local
Pretende-se, nesta seção lançar alguns argumentos tendentes a
esclarecer as perspectivas do cooperativismo de crédito, no Brasil, como um dos
instrumentos de auxílio ao desenvolvimento local, com inclusão social, pelo
trabalho. De fato, o esvaziamento do território e, portanto, a perda de poder local
está, ao que parece, correlacionado com o sistema produtivo, mas está também
e, sobretudo, agravado pelo esvaziamento de poder político dos municípios.
Além da precariedade administrativa e institucional das estruturas
municipais, a globalização econômica, essa fase do capitalismo fluído
desterritorializado, trouxe como resultado concreto o esvaziamento dos territórios,
o esvaziamento da “sociedade dos homens” e o esvaziamento do poder local,
como percebe LIMA:
310
“Levando-se em consideração as ilações que chegamos até aqui, podemos
inferir os sérios riscos que a democracia e a política estão correndo com no
mundo globalizado e, em contrapartida, o sério comprometimento da
atuação dos indivíduos no processo de formação do Direito, uma vez que o
locus institucional da criação das leis é o parlamento, onde se pressupõe a
participação dos cidadãos no debate produzido no âmbito da esfera pública
para que o Direito garanta os destinos políticos definidos pela sociedade.
Todavia, essa atuação fica obstada tendo em vista a sua pouca
significância em função do poder detido pela empresas transnacionais e
pelas organizações internacionais, as quais utilizam o Direito como mero
310
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Op. Cit. p. 310.
191
mecanismo garantidor do livre comércio internacional, tendo ojeriza e
repúdio por qualquer manifestação jurídica que vise regulá-lo.
A imbricação das mazelas políticas com os efeitos nefastos da
globalização econômica e do neoliberalismo no que concerne aos direitos
políticos, permite-nos vislumbrar, alicerçados nas teorizações de José
Eduardo Farias, que estaríamos rumando para a transição de uma
“sociedade de homens” para uma ”sociedade das organizações”[...]”
E, no mesmo diapasão, também BAUMAN:
311
“Testemunhamos hoje o fim ou pelo menos a agonia terminal desse
engajamento. Estamos no geral entrando em uma era “pós-engajamento”.
O capital e o saber foram ambos emancipados do seu confinamento local.
A localização geográfica dos seus detentores conta pouco quando 99 por
cento das transações financeiras produtoras de riqueza não dependem
mais do movimento de mercadorias materiais e quando a circulação de
informação está em grande parte encerrada no espaço da rede cibernética.
Nem os detentores do poder econômico nem os do poder cultural estão
presos hoje ao lugar: eles cortaram as amarras que os atrelavam à
“população” em geral, que continua tão local como nos tempos áureos da
moderna construção industrial e nacional. Os detentores do poder ocupam
o ciberespaço, isolados do resto da população, em termos que ainda
deixam claro para o resto que eles se tornaram autenticamente
extraterritoriais. Os locais não desempenham um papel na autoconstrução
e reprodução das elites e, se alguns porventura recebem esse papel
durante algum tempo, já não se tornam indispensáveis e insubstituíveis
para o seu desempenho. Não admira que raramente se encontre hoje o
conceito de “povo” num discurso intelectual; o único abrigo para esse
conceito está na retórica política, última faceta “local” do poder moderno.
À luz das últimas tendências poder-se-ia perdoar a suspeita de que o
mútuo compromisso entre as elites e as populações locais não passou de
um episódio histórico relativamente breve.”
Talvez tanto LIMA quanto BAUMAN, acima citados, tenham razão. Mas se
há algo que ainda possa restar no crescente desmonte do Estado, da sociedade,
da democracia, da formação da consciência, esse algo tem destinatário e local: o
cidadão, (no reduto aonde vive e trabalha), o município. Nesta perspectiva,
residual, talvez ainda reste uma alternativa diante do que parece ser o prenúncio
de um colapso do Estado liberal causado pelo poder avassalador do capitalismo
financeiro, parasitário e fluído. Essa alternativa seria como criar barricadas de
resistência ou, como no ato do naufrágio retratado no filme TITANIC
312
, em que a
orquestra, convence-se de que o que há a fazer antes do final trágico - próximo e
311
BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 127
192
irresistível - é tocar e, mesmo sabendo que a hora final se aproxima, cumpre a
sua missão: simplesmente toca e a música continua a ecoar ...
Talvez HARDT e NEGRI também tenham razão: “Qualquer estratégia
política destinada a reformar a configuração moderna do capitalismo para torná-lo
não imperialista é inútil e ingênua ...”
313
Essas considerações podem parecer aos mais otimistas, meramente
imobilistas, derrotistas, pois mesmo que se considere que o volume total das
transações comerciais de movimentação física, (entrada e saída de mercadorias)
significa, hoje, menos de 50 vezes o volume de transações de capital financeiro
realizadas em todo o mundo, haveria, sempre um volume de poupança local que,
se bem aproveitada, pode significar aplicações em desenvolvimento local.
Certamente, na perspectiva de desenvolvimento local, o cooperativismo de
crédito pode constituir-se em instrumento de apoio em dois sentidos: reter
poupança local e promover a alocação dos recursos a custos relativamente
baixos em pequenos negócios com maior grau de identidade com o município, a
região, o Estado-membro. Para entender a influência do cooperativismo de
crédito com instrumento de retenção de poupanças locais pode-se inferir o seu
significado prático a partir da lição de BECHO
314
“O cooperativismo abre, com certeza, novas possibilidade de inserção
econômica. É, em realidade, uma opção aos modelos clássicos,
notadamente liberais. Observe-se, por exemplo, o que acontece com o
fabuloso mercado de dinheiro. Segundo o orçamento federal para o ano de
2001 (Lei nº 10.171, de 5 de janeiro de 2001), o país gastaria 70,46% do
orçamento com encargos financeiros nacionais e estrangeiros. Em termos
simples, R$70,46 de cada R$100,00 pagos em impostos foram para as
mãos de alguns poucas dezenas de pessoas, donas dos bancos ao redor
do mundo. Como um brasileiro comum poderia se beneficiar dessa
concentração de renda? Participando do exclusivissimo clube dos
banqueiros seria quase impossível. Entretanto, participando de uma
cooperativa de crédito, ele poderia receber a parte do ganho de capital
que, em um banco comercial, é o lucro do banqueiro.
Com esse exemplo, vê-se como o cooperativismo é uma opção viável para
a participação em uma sociedade econômica que demonstra ser cada vez
mais elitista e concentradora de renda. [...].”
312
Titanic é um filme de 1997, dirigido por James Cameron, baseado no desastre do navio Titanic, em 1912.
313
HARDT. Michael, e NEGRI. Antonio, Império. Op. Cit. p. 248
314
BECHO. RENATO LOPES, Elementos de Direito Cooperativo. Ed. Dialética. 1ª edição. 2002. p. 13/4
193
Ao que parece, essas poupanças populares podem gerar as bases para a
fixação de riqueza e de oportunidades de trabalho na efetivação de vocações e
potencialidades naturais latentes naquilo que se convencionou chamar
desenvolvimento endógeno em oposição ao processo de expropriação de
riquezas comandado pela globalização econômica denominado de
desenvolvimento exógeno. Veja-se, neste sentido, a lição de VÁZQUEZ:
315
“O desenvolvimento endógeno propõe-se a atender às necessidades e
demandas da população local através da participação ativa da comunidade
envolvida. Mais do que obter ganhos em termos de posição ocupacional
pelo sistema produtivo local na divisão internacional do trabalho, o objetivo
é buscar o bem estar econômico, social e cultural do comunidade local em
seu conjunto. Além de influenciar os aspectos produtivos (agrícolas,
industriais e de serviços), a estratégia de desenvolvimento procura também
atuar sobre as dimensões sociais e culturais que afetam o bem-estar da
sociedade. Isto leva a diferentes caminhos de desenvolvimento, conforme
as características e as capacidades de cada economia e sociedade locais.
[...].
São precisamente as pequenas e médias empresas que com sua
flexibilidade e capacidade empresarial e organizacional, estão fadadas a
ocupar um papel de protagonistas nos processos de desenvolvimento
endógeno.”
As cooperativas de crédito, como organização local, captando e alocando
poupanças, são potenciais parceiros do desenvolvimento endógeno e,
exatamente por essa posição estratégica, precisam ser levadas a sério:
estudadas, conhecidas, divulgadas. Há uma janela aberta ao cooperativismo de
crédito, com a advento da Resolução nº 3.106/03 do Banco Central do Brasil.
Talvez, a partir dessa resolução, os pequenos municípios tenham um reforço
mínimo para estimular o cooperativismo de crédito como forma de dar lastro
financeiro ao desenvolvimento local. Corroborando este entendimento está toda a
história do cooperativismo que surgiu e se fortalece, sempre, em momentos de
crise, com aprimoramentos e novos enfoques, tal como descreve SINGER
316
:
“Ter um emprego em que seja possível gozar de direitos legais e fazer
carreira passou a ser privilégio de uma minoria. Os sindicatos se
debilitaram pela perda de grande parte de sua base social e
conseqüentemente de sua capacidade de ampliar os direitos dos
assalariados. Na realidade, pela pressão do desemprego em massa a
315
VÁZQUEZ Baguero, Antonio. Desenvolvimento endógeno em tempos de globalização. Trad. Ricardo
Brinco Fundação de Economia e Estatística, Porto Alegre: 2001. p. 39
316
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Op. Cit. p. 110/111
194
situação dos trabalhadores que continuam empregados também piorou:
muitos foram obrigados a aceitar a “flexibilização” de seus direitos e a
redução de salários diretos e indiretos. Sobretudo a instabilidade no
emprego se agravou, e a competição entre os trabalhadores dentro das
empresas para escapar da demissão deve ter se intensificado.
Como resultado, surgiu com força cada vez maior a economia solidária na
maioria dos países. Na realidade ela foi reinventada. Há indícios da criação
em número cada vez maior de novas cooperativas e formas análogas de
produção associada em muitos países. O que distingue este “novo
cooperativismo” é a volta aos princípios, o grande valor atribuído à
democracia e à igualdade dentro dos empreendimentos, insistência em
autogestão e o repúdio ao assalariamento.”
O cooperativismo de crédito poderia constituir-se em idéia-força com
possibilidade de mobilizar governos locais e comunidade na busca da superação
de problemas econômicos e sociais comuns, aliando a sua vocação como um
processo de construção de cidadania, propiciado pela relação entre iguais.
Seção 2 Igualdade: acesso ao crédito, por interesse público
O crédito como instrumento de desenvolvimento e de inclusão social tem
um potencial que ainda encontra-se latente, ou, melhor dito, menosprezado e
entregue a segmentos que defendem interesses hegemônicos em detrimento do
interesse público qualificado pela inclusão social, pelo trabalho. Esses interesses
hegemônicos, como se tentou demonstrar ao longo deste estudo, têm feito do
crédito e da política de crédito um corpo estranho ao sistema constitucional
brasileiro, em permanente afronta ao Estado Democrático de Direito que a
Constituição Federal visou inaugurar.
Cabe, então asseverar a possibilidade de inclusão produtiva dos
trabalhadores aptos para o trabalho mediante uma revisão normativa
(constitucional e ordinária, objeto da seção seguinte), que tenha por base,
assegurar que a concepção e a implementação de política de crédito e de
microcrédito esteja sob a orientação de princípios que podem ser sistematizados
em cinco pontos centrais de matriz essencialmente constitucional: dignidade;
igualdade; moralidade; transparência e publicidade; e universalidade.
Seguindo-se o caminho explicitamente traçado pela Constituição Federal,
cumpre ao Poder Legislativo conceber a política de crédito de sua competência
195
privativa, mediante um debate franco e aberto à participação democrática, tendo,
dentre outros os seguintes objetivos e finalidades, como deveria ser da essencia
de política de crédito, em um Estado Democrático de Direito:
1) Dignidade e trabalho. A política de crédito e de microcrédito, deve
atuar em face do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º,
III, CF), com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da
justiça social, (art. 170, CF), visando a combater as causas da pobreza, (art. 23,
CF), mediante o reconhecimento objetivo do primado do trabalho como base da
ordem social, (art. 193, CF).
2) Igualdade. A política pública de crédito e de microcrédito, deve-se
constituir em instrumento de inclusão social, despida da arrogância e da
prepotência dos setores hegemônicos que fazem do acesso ao crédito e ao
microcrédito, mecanismos de vexação pública e de cobrança ilegal vedados pela
Constituição Federal que fixa o poder-dever do Estado na promoção do bem
comum sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação, (art. 3º, IV, CF).
3) Moralidade. O sigilo de dados (art. 5º, XII, CF) é preceito constitucional
de garantia ao cidadão, em oposição ao Estado, e não pode ser escamoteado por
mecanismos imorais a exemplo das denominadas parcerias entre o Estado, a
FEBRABAN e a Serasa, como atualmente acontece, sob o manto de legalidade
consubstanciado em Resoluções, Instruções Normativas, Portarias e uma
infinidade de mecanismos sem legitimidade e sem qualquer controle democrático
que prevalecem no arcabouço normativo como válidas, mesmo quando em
completa afronta a princípios e regras constitucionais e, mesmo quando
tenazmente enfrentadas pelo Ministério Público.
4) Publicidade e transparência. Devendo-se estabelecer a
obrigatoriedade de prestação de contas dos recursos em depósito e dos recursos
destinados, pela União, aos agentes oficiais de crédito e de microcrédito,
publicando-se os resultados planejados e alcançados, em cada exercício, por vias
públicas de amplo acesso, com acompanhamento e fiscalização pelo Ministério
Público em todas as instâncias, (art. 37, caput, e 129, CF), tendo em vista coibir e
punir a agiotagem e a especulação financeira com recursos destinados à inclusão
196
social, como é o caso específico dos recursos do FAT, administrados pelo
CODEFAT, com a participação da FEBRABAN e da Serasa.
5) Universalidade. As linhas de empréstimo destinadas ao microcrédito
devem atender a todos os setores produtivos com o apoio prioritário às
cooperativas de crédito, mediante a constituição de um fundo constitucional, nas
mesmas condições concedidas ao BNDES para o financiamento dos
empreendimentos de grande porte, sempre mais organizados e com poder de
constituírem-se em lobbies de interesse e de pressão.
Pode-se, a partir desta síntese, colocar em evidencia a vocação do
cooperativismo de crédito como um sistema produtivo com respaldo doutrinário
para absorver e tornar efetivas as aspirações de cidadania e de desenvolvimento
econômicos tão relevantes para a sociedade e para a nação. Neste sentido pode-
se relembrar a trajetória de Yunus, nas palavras de SINGER
317
:
“Uma resposta original e muito criativa às necessidades dos mais pobres
surgiu em Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo. Trata-se do
Grameen Bank (Banco da Aldeia), fruto de uma iniciativa de professores e
estudantes de economia da Universidade de Chittagong, chefiados e
inspirados por Muhammad Yunus. Ele mesmo relata a história em um
depoimento autobiográfico recente. Tudo começou com a grande fome de
1974, que impressionou o então jovem professor e chefe do Departamento
de Economia. Observou que a fome não resultava da falta de comida, mas
da incapacidade de uma parte grande da população de comprá-la por falta
de dinheiro. “Em tempo de fome, apesar das abundantes reservas de
cereais, os pobres não tinham acesso à alimentação (YUNUS, 1997. p.
79). [...].
Yunus e seus colaboradores começaram a investigar as causas da
pobreza [...]. Verificaram que os verdadeiramente pobres não eram os
camponeses proprietários de terra, mas os que não tinham nenhum tipo de
propriedade, em sua maioria mulheres,: viúvas, abandonadas ou
divorciadas, quase sempre com filhos. Trabalhavam por contra própria,
como artesãs ou agricultoras, e adquiriam seus meios de produção por
empréstimo dos comerciantes agiotas que depois lhes comprovam a
produção. Os juros que cobravam não deixavam aos pobres mais do que o
estritamente necessários para sobreviver. Estavam enredados numa
situação de penúria, que não lhes deixava escapatória.
Como não tinham garantias para oferecer, não tinham possibilidade de
obter empréstimos em bancos. Para poder trabalhar e viver tinham que se
sujeitar às condições impostas pela agiotagem. Mas a descoberta
verdadeiramente revolucionária feita pelos pesquisadores [...] era que o
valor que cada pobre necessitava era irrisório.”
317
SINGER. Paul, Introdução à Economia Solidária. Op. Cit. p. 75/6
197
Há indícios, pelo que se registrou ao longo deste estudo, de que a
ausência de planejamento orientado para a solução de problemas concretos, no
Brasil, bem assim, a existência de uma cultura capitalista, liberal, inteiramente
comandada pela especulação financeira, poderia ser enfrentada por algumas
providências acessíveis às instâncias de poder do Estado.
A legislação sobre cooperativismo de crédito e sobre política de crédito
devem ser discutidas aberta e democraticamente, porque está sob o domínio da
obscuridade e da mistificação. Parece inconcebível que o Congresso Nacional
ainda não tenha se dado conta do seu papel como instância democrática com
legitimidade para abrir e sustentar essa discussão com os setores produtivos:
empresários, cooperativas, sindicatos, armadores.
Afinal, porque essa obstinação, displicente ou submissa, de deixar-se a
cargo de pequenos grupos organizados em Conselhos, como é o caso específico
do CMN Conselho Monetário Nacional e do CODEFAT Conselho Deliberativo
do Fundo de Apoio ao Trabalhador, a atribuição de formular e implementar a
política de crédito de competência exclusiva da União a ser exercida, no caso
concreto, pelo Congresso Nacional, eleito democraticamente, com poderes e
responsabilidades intransferíveis e indelegáveis, mas, na prática, derrogados por
uma cultura economisista e por uma inconcebível mistificação sobre todo assunto
que envolve, em tese, a política econômica sob um manto de algo que só pode
ser visto, percebido, analisado, pelo Banco Central e as denominadas autoridades
monetárias.
Para dar sustentação a esta assertiva, capta-se, neste estudo, um fato
exemplificativo: o mesmo representante, (Jorge Higashino), - que assinou o ofício
da FEBRABAN dirigido a SRF pedindo em nome da FEBRABAN, os dados
sigilosos transferidos por Convênio à Serasa - representou a CNF
Confederação Nacional das Instituições Financeiras, junto ao CODEFAT para a
eleição do presidente daquele Conselho. A ata da 36ª reunião extraordinária do
CODEFAT, registra, dentre outros os seguintes assuntos discutidos em reunião
de caráter público nas instalações do Ministério do Trabalho, em Brasília:
318
Os conselheiros Jorge Higashino, Representante da CNF; Roberto
Noguiera Ferreira, Representante da CNC; Marco Antônio Reis Guarita,
318
CODEFAT >http://www.mte.gov.br/codefat/ata_20010912_36.pdf< Acesso em 25/10/2005
198
Representante da CNI; Gil Bernardo Boges Leal, Representante do
BNDES; Celecino de Carvalho Filho, Representante do MPAS; Márcio
Fortes de Almeida, Representante do MAA; Valdo Soares Leite,
Representante da CGT; Delúbio Soares de Castro, Representante da CUT;
e, Luiz Fernando de Souza Emediato, Representante da Força Sincidal,
foram favoráveis à indicação do Conselheiro Francisco Canidé Pegado do
Nascimento para a presidência do CODEFAT.”
Apenas 09 dias depois de eleito, em 21 de novembro de 2001, o
presidente do CODEFAT, (Francisco Canidé Pegado do Nascimento), ratificou as
resoluções 271 e 272, passando a exigir consulta cadastral à Serasa. Na ata da
69ª reunião ordinária do CODEFAT
319
consta:
“[...] ITEM 2 Ratificação da Resolução nº 271, de 10 de outubro de 2001,
que dispõe sobre alocação de recursos do FAT, no Banco do Brasil,
destinado ao PROGER Rural; ITEM 3 Ratificação da Resolução nº 272,
de 10 de outubro de 2001, que autoriza a alocação de recursos do FAT, na
CAIXA, para aplicação no PROGER Urbano. O Presidente esclareceu que
os itens referidos já haviam sido objeto de repasse de recursos,
constando apenas para ratificação do Conselho. Foram então os itens 2 e
3 ratificados pelo Colegiado.” (Sem grifos no original)
Vejam-se o que consta nas resoluções 271 e 272, relativamente à
exigências que deveriam ser feitas aos mutuários:
Resolução nº 271, de 10 de outubro de 2001:
320
“[...] Art. 5º Para os financiamentos a serem efetuados com os recursos
alocados em razão desta Resolução, o Banco deverá exigir que os
mutuários comprovem estar adimplentes perante qualquer órgão da
Administração Pública Federal Direta ou Entidades Autárquicas ou
Fundacionais e, especialmente, para com o Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço - FGTS, e com os Programas de Integração Social - PIS e de
Formação do Patrimônio do Servidor Público - PASEP, observada a
legislação vigente.”
Resolução nº 272, de 10 de outubro de 2001:
321
319
CODEFAT >http://www.mte.gov.br/codefat/ata_20011121_69.pdf< Acesso em 25/10/2005
320
CODEFAT >http://www.mte.gov.br/legislacao/resolucoes/2001/r_20011010_271.asp< Acesso 25/10/2005
321
CODEFAT>http://www.mte.gov.br/legislacao/resolucoes/2001/r_20011010_272.asp< Acesso 25/10/2005
199
“[...] Art. 5º Para os financiamentos a serem efetuados com os recursos
alocados em razão desta Resolução, a CAIXA deverá exigir que os
beneficiários finais comprovem estar adimplentes perante qualquer órgão
da Administração Pública Federal Direta ou Entidades Autárquicas ou
Fundacionais e, especialmente, para com o Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço - FGTS, e com os Programas de Integração Social - PIS e de
Formação do Patrimônio do Servidor Público PASEP, observada a
legislação vigente.”
Quando se observa a dita ratificação, (após os recursos já terem sido
liberados), como consta da ata da 69ª reunião ordinária do CODEFAT, verifica-se
que houve uma profunda alteração, uma mudança de rumo que visa a beneficiar,
ao que parece, a Serasa, com a inclusão de exigências a serem feitas aos
mutuários. Vejam-se neste sentido, as Resoluções de 21/11/2001:
Resolução nº 273, de 21 de novembro de 2001
322
:
X - INSCRIÇÃO E SELEÇÃO:
a) inscrição: [...] b) seleção: os inscritos passarão por um processo de
seleção e entrevista pelo SEBRAE, onde serão avaliadas suas
possibilidades de empreender, sua concepção de negócio e sua situação
cadastral e dos demais sócios, se for o caso, junto ao [...] SERASA e CCF
- em caso de restrição o candidato estará automaticamente
desclassificado;
Resolução nº 275, de 21 de novembro de 2001
323
[...] V - Restrições: aos impedidos de operar pelo Banco Central do Brasil -
BACEN e aos negativados no [...] SERASA e CCF; e [...]
A partir destas Resoluções registram-se diversas outras deliberações do
CODEFAT, (sob a mesma presidência), incluindo exigências de consulta
cadastral à Serasa.
Pelo que ficou consignado, a partir da breve análise das Resoluções acima
citadas, parece possível reconhecer-se a presença de interesses momentâneos,
que fazem desses Conselhos o ambiente propício para conchavos ou
deliberações casuísticas que se contrapõem à necessidade imperiosa de caráter
estruturante que a política de crédito deveria contemplar, a partir de um projeto de
322
CODEFAT >http://www.mte.gov.br/legislacao/resolucoes/2001/r_20011121_273.asp< Acesso 25/10/2005
323
CODEFAT >http://www.mte.gov.br/legislacao/resolucoes/2001/r_20011121_275.asp< Acesso 07/01/07
200
Estado-nação. Corroborando-se, nesse passo, o alerta feito pelo BID, pode-se
aduzir que sem a uma política de crédito estável o Brasil terá dificuldade em
promover taxas de crescimento altas e sustentáveis como forma de combater a
pobreza
324
.
Seção 3 Necessidade de revisão constitucional e normativa?
A necessidade de revisão parece urgente e desdobra-se em dois sentidos:
cultural e legislativo. O crédito deve servir à produção e, certamente, através do
crédito pode-se estruturar setores da economia visando a alavancar o emprego, a
renda e as oportunidades de ocupação produtiva.
A situação da política de crédito de competência exclusiva da União é
calamitosa, - por caraterizar-se como uma possibilidade entregue a grupos de
pressão, sem legitimidade e sem qualquer controle democrático - e precisaria ser
discutida e disciplinada por normas estruturantes, duradouras, democráticas,
visando a, sobretudo, resgatar a função do crédito como insumo à atividade
produtiva.
Os problemas enfrentados pelo Estado-nação relativamente ao crédito e à
política de crédito terão, certamente, maior possibilidade de ser conhecidos e
equacionados se, pela via democrática, forem trazidos à luz e debatidos com a
participação de setores especializados pondo em confronto todo o que se
mistifica e se escamoteia da sociedade civil e dos setores produtivos.
Essa função democrática, (legislativa e ordinária), é prerrogativa do
Congresso Nacional a quem, por atribuição constitucional, compete legislar sobre
o tema apoiado em uma gama de atribuições que poderiam e deveriam ser
exercidas, tal como se extrai da lição de SILVA:
325
“Vimos que o Congresso Nacional é o órgão legislativo da União. Apesar
disso, suas atribuições não se resumem na competência para elaborar leis.
Exercem outras de relevante importância, e todas podem ser classificadas
em cinco grupos:
Atribuições legislativas, pelas quais lhe cabe, com a sanção do Presidente
da República, elaborar as leis sobre todas as matérias de competência da
324
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito. Op. Cit. p. V
325
SILVA. José Afonso. Direito Constitucional Positivo. Op. Cit. p. 492/3.
201
União, conforme especifica o art. 48, o que é feito segundo o processo
legislativo, estabelecido nos arts. 61 a 69, [...].
Atribuições meramente deliberativas, envolvendo a prática de atos
concretos, de resoluções referendarias, de autorizações, de aprovações,
de sustação de atos, de fixação de situações e de julgamento técnico,
consignados no art. 49, o que é feito por via de decreto legislativo ou de
resoluções, segundo procedimento deliberativo especial de sua
competência exclusiva, vale dizer, sem participação do Presidente da
República, de acordo com as regras regimentais.
Atribuições de fiscalização e controle, que exerce por vários
procedimentos, tais como: a) pedidos de informação, por escrito,
encaminhado pelas Mesas aos Ministérios ou quaisquer titulares de órgãos
diretamente subordinados à Presidência da República (art. 50, § 2º,
redação da ECR- 4/94), importando em crime de responsabilidade a
recusa, ou o não atendimento no prazo de trinta dias, bem como a
prestação de informações falsas; b) comissão parlamentar de inquérito,
nos termos do art. 58, § 3º., como vimos; c) controle externo com o auxílio
do Tribunal de Contas e da Comissão mista a que se refere o art. 166, § 1º,
que compreenderá toda a gama de medidas constantes dos arts. 71 e 72m
culminando com o julgamento das contas que anualmente o Presidente há
de prestar (art. 49, IX); d) fiscalização e controle dos atos do Poder
Executivo, incluídos os da administração indireta (art. 49, X); e) tomada de
contas pela Câmara dos Deputados, quando o Presidente não as prestar
no prazo que a Constituição assinala, ou seja, dentro de sessenta dias
após a abertura da sessão legislativa, então até 15 de abril (art. 51, II, e 84,
XXIV).
Atribuições de julgamento de crimes de responsabilidade, com
particularidade de que, no julgamento do Presidente da República ou
Ministros de Estado, a Câmara do Deputados funciona como órgão de
administração do processo e o Senado como tribunal político sob a
presidência do Presidente do Supremo Tribunal Federal (art. 51, I, 52, I, e
86), e, [...]
Atribuições constituintes mediante elaboração de emendas à Constituição
(art. 60), com o que o Congresso cria normas constitucionais [...].”
Por seu turno, o reforço à cultura poderia dar-se mediante debate das
Universidades brasileiras integradas, neste esforço, aos setores produtivos, (isto
é, sem a participação de setores financeiros oficiais ou privados), atentando-se,
neste aspecto, para a prudente observação de SANTOS:
326
“A hegemonia da universidade não é pensável fora da dicotomia educação-
trabalho. Esta dicotomia começou por significar a existência de dois
mundos com pouca ou nenhuma comunicação entre si: o mundo ilustrado
e o mundo do trabalho. Quem pertencia ao primeiro estava dispensado do
326
SANTOS. Boaventura de Sousa. Da Idéia de Universidade à Universidade de Idéias Cap. 8 Pela mão
de Alice: o social e o político na pós-modernidade, 2ª ed. São Paulo. Cortez, 1996. p. 195/6.
202
segundo; quem pertencia ao segundo estava dispensado do primeiro. Esta
dicotomia atravessou, com este significado, todo o primeiro período do
desenvolvimento capitalista, o período do capitalismo liberal, mas já no
final deste período começou a transformar-se e a assumir um outro
significado que viria a se tornar dominante no período do capitalismo
organizado. A dicotomia passou então a significar a separação temporal de
dois mundos intercomunicáveis, a seqüência educação-trabalho. Esta
transformação da relação entre os termos da dicotomia acarretou
inevitavelmente a transformação interna de cada um dos seus termos. De
algum modo, a dicotomia instalou-se em cada deles. Assim, a educação,
que fora inicialmente transmissão da alta cultura, formação do caráter,
modo de aculturação e de socialização adequado ao desempenho da
direção da sociedade passou a ser também educação para o trabalho,
ensino de conhecimentos utilitários, de aptidões técnicas especializadas
capazes de responder aos desafios do desenvolvimento tecnológico no
espaço da produção. Por seu lado, o trabalho que fora inicialmente
desempenho de força física no manuseio dos mios de produção, passou a
ser também trabalho intelectual, qualificado, produto de uma formação
profissional mais ou menos prolongada. A educação cindiu-se entre a
cultura geral e a formação profissional e o trabalho, entre trabalho não
qualificado e o trabalho qualificado.
A resposta da universidade a esta transformação consistiu em tentar
compatibilizar no seu seio a educação humanística e a formação
profissional e assim compensar a perda de centralidade cultural provocada
pela emergência da cultura de massas com o reforço da centralidade na
formação de força de trabalho especializada. Essa resposta, plenamente
assumida nos anos sessenta, trouxe consigo, [...] a diferenciação interna
entre ensino superior e da própria universidade.”
A perspectiva de reconhecimento efetivo da cidadania e da dignidade da
pessoa humana, exige, assim parece, um esforço da sociedade civil e da massa
critica gerada nos centros universitários para colocar em bases aceitáveis a
discussão sobre inclusão social, pelo trabalho, com resgate da dignidade da
pessoa humana, bem assim em cumprimento de direitos fundamentais da pessoa
humana, assegurados por uma Constituição Formal, “meramente programática”
tendente a transformar-se em mito, “na medida em que define direitos que não
garante”, como aduz a lição de GRAU
327
.
327
GRAU. Eros R. Op. Cit. p. 24
203
CONCLUSÃO
Quando se analisa, em perspectiva histórica, percebe-se que o conceito de
liberdade individual foi conduzido a um individualismo tão exacerbado que se
tornou uma verdadeira cilada. De fato, a confusão entre capitalismo e Estado
conduziu a essa ilusão desmedida de que a liberdade e a felicidade podem ser
conquistadas pela satisfação e pela sofisticação do consumo.
É preciso relembrar que no início do processo capitalista, quando o
sistema de produção feudal ainda estava agonizante, a liberdade individual
significou a perda de condições objetivas de sobrevivência de um excedente
populacional que deixou de ser servo, (como um acessório da terra, aonde
produzia e reproduzia), para ser mendigo, vagabundo, ladrão. Essa liberdade
individual foi uma liberdade ditada pela circunstância material do fim de um modo
especifico de produção que chegou ao fim: o sistema feudal.
O servo, do sistema feudal passou à condição de proletário: livre mas
despossuido. A retrospectiva histórica revela que o contingente populacional que
constitui o proletariado perdeu condições objetivas de vida ao perder o status de
servo. Essa retrospectiva pode ser vista em MARX:
328
“Os que foram expulsos de suas terras com a dissolução das vassalagens
feudais e com a expropriação intermitente e violenta esse proletariado
sem direitos não podiam ser absorvidos pela manufatura nascente com a
mesma rapidez com se tornaram disponíveis. Bruscamente arrancados das
suas condições habituais de existência, não podiam enquadrar-se, da noite
para o dia, na disciplina exigida pela nova situação. Muitos se
transformaram em mendigos, ladrões, vagabundos, em parte por
inclinação, mas, na maioria dos casos, por força das circunstâncias. Daí ter
surgido em toda a Europa Ocidental, no fim do século XV e no decurso do
XVI, uma legislação sanguinária contra a vadiagem. Os ancestrais da
classe trabalhadora atual foram punidos inicialmente por se transformarem
em vagabundos e indigentes, transformação que lhes era imposta. A
legislação os tratava com pessoas que escolheram propositalmente o
caminho do crime, como se dependesse da vontade deles prosseguirem
trabalhando nas velhas condições que não mais existiam.”
A liberdade do proletário é, em todos os sentidos, a conversão do servo em
uma mercadoria do capitalismo. Essa mercadoria, que se compra e que se vende,
328
MARX. Karl. O Capital. Op. Cit. p. 848
204
tem, no entanto, uma diferença fundamental em relação a qualquer outra
mercadoria disponível: ela é ao mesmo tempo mercadoria - como força de
trabalho - e é mercado, quando se torna destinatária de outras mercadorias
produzidas pelo mercado.
Nos dois sentidos, como mercadoria e como mercado, o proletariado foi
duplamente desafiado: precisava produzir e precisava reproduzir-se. Na produção
precisava ganhar produtividade, na reprodução precisava ganhar qualidade. O
ganho de produtividade foi, sem dúvida, alcançado. Mas foi alcançado pela
utilização de trabalho morto, (capital e tecnologia). Com isso a reprodução gerou
um novo excedente populacional que aspirou, por volta do século XVIII, liberdade,
igualdade, fraternidade.
Viu-se que na fase atual do capitalismo, existe uma preponderância do
capitalismo financeiro, parasitário que expropria os trabalhadores e expropria,
com igual voracidade, o seu irmão mais velho o capital produtivo. Essa feição
assumida pelo capitalismo financeiro está gerando excedentes populacionais que,
a exemplo do que aconteceu historicamente com o sistema feudalista pode levar
ao colapso do sistema capitalista como modo de produção.
A argumentação preponderante nesta dissertação é que o cooperativismo
pode ser um modo de produção peculiar que concilia a necessidade de
reconstrução da cidadania com a correlata produção e distribuição de riquezas.
Essa vocação do cooperativismo para a formação da consciência foi realçada
como uma condição similar à ágora, (uma ágora institucional) como o ambiente
entre o público e o privado, como uma espécie de amálgama ético e moral,
seguindo-se a linha de argumentação de BAUMAN
329
, segundo a qual:
“[...] o aumento da liberdade individual pode coincidir com o aumento da
impotência coletiva na medida em que as pontes entre a vida pública e a
privada são destruídas ou, para começar, nem formam construídas; ou
colocando de outra forma, um vez que não há uma maneira óbvia e fácil de
traduzir preocupações pessoais em questões públicas e, inversamente, de
discernir e apontar o que é público nos problemas privados. E que no
nosso tipo de sociedade as pontes estão de modo geral ausentes e a arte
da tradução raramente é praticada em público.”
329
BAUMAN. Zygmunt. Em busca da política. Op. Cit. p. 10
205
Com lastro neste argumento, procurou-se alinhavar dados de pesquisa
tendentes a demonstrar que o Estado-nação está perdendo crescentemente sua
capacidade de atender as aspirações de dignidade e de cidadania por ausência
de uma espaço institucional entre o público e o privado. E, mais, os indivíduos
isoladamente estão sendo massacrados, sem qualquer possibilidade de defesa
por procedimentos puramente mercantis, praticados com a conivência do Estado-
nação: são 40 milhões de cidadãos negativados que se curvam ao sistema
financeiro, sem esboçar qualquer reação coerente com opressão da qual são
vitimados.
O estudo consubstancia-se em três blocos conceituais. O primeiro sobre a
globalização enfatiza a onda avassaladora da dominação econômica por
processo de integração de dominadores e de processos de dominação que não
podem se atribuídos a um alvo específico, isto é, não há um inimigo comum a
atacar ou do qual se deva defender. O processo de produção capitalista gera, em
si, uma lógica de dominação que tende a ser, nos dias atuais, entendido como
algo natural e normal por segmentos, povos e nações dominadas. No caso,
específico em estudo, procurou-se evidenciar dados de pesquisa que
demonstram a benevolência do Estado-nação com os segmentos representativos
do sistema financeiro nacional, pondo-se em relevância a relação da União, com
a FEBRABAN e a Serasa, duramente atacada por diversas ações do Ministério
Público Federal.
Na mesma linha procura-se evidenciar a base jurídica de defesa adotada
pelo Ministério Público Federal em defesa da sociedade e, para ir além dos dados
apresentados, fundamenta-se a pesquisa doutrinária sobre cidadania que
constitui o segundo bloco conceitual, pondo em destaque a conduta dos
segmentos financeiros em permanente parceria com o Estado-nação.
Para configurar a relevância do tema aprofunda-se a pesquisa conceitual e
apontam-se as condutas adotadas pela CPI da Serasa e pela Serasa na violação
de dados sigilosos que são vendidos como bens de comércio, sem que, até
agora, as providências adotadas pelos poderes públicos, em defesa da cidadania,
tenham sidos suficientes para estancar as práticas que alastram com ações do
Estado-nação. No mesmo sentido, procura-se conceituar o esvaziamento
territorial que tem sido fatal para as aspirações de cidadania cada vez mais
aspiradas e cada vez mais distantes.
206
No terceiro e último bloco conceitual elabora-se o conflito entre a
necessidade de crédito como insumo para o desenvolvimento e contrapõe-se a
dura realidade vivida por milhões de cidadãos aptos para o trabalho que estão
previamente excluídos de qualquer política de crédito por encontrarem-se
negativados pela Serasa.
Na perspectiva que o estudo tenta dar sustentação, os problemas de
cidadania e de dignidade da pessoa humana teriam possibilidade de ser melhor
equacionados se o Estado-nação assumisse a sua missão constitucional de
estabelecer uma política de crédito com amparo em princípios constitucionais e,
ao mesmo tempo, abrisse espaço para o desenvolvimento do cooperativismo de
crédito como forma de reter poupanças populares voltadas ao desenvolvimento
endógeno.
A constatação geral, que se extrai neste estudo, pode ser resumida na
evidente cooptação do Estado-nação pelo capitalismo financeiro, especulativo e
parasitário, tendente a transformá-lo, como se tentou demonstrar, em distrito
policial local e em síndico da miséria. A ausência de uma política de crédito é
apontada como uma das causas da pobreza estrutural que está conduzindo o
Estado-nação a adotar formas superficiais e artificiais de financiamento que se
caracterizam pela ausência de percepção dos desastrosos resultados que
decorrem dessas políticas citando-se como exemplo a negativação crescente dos
aposentados e pensionistas, vitimas da chamado crédito em consignação.
Outra linha de pesquisa que se tenta reforçar a partir de releituras de
referência é a característica da globalização econômica marcada pela
desterritorialização dos espaços locais. Tenta-se contrapor a esta constatação
uma possibilidade, assumida claramente como remota, de desenvolvimento local
contando-se com a participação das cooperativas de crédito.
Como mais uma linha de argumentação procura-se demonstrar o
crescente fosso econômico que separa os países pobres dos países ricos,
restando aos países periféricos a função de reter em seus territórios vazios de
riqueza e de poder, os excedentes populacionais.
Tenta-se evidenciar no decorrer do estudo, que o território passa a ser
irrelevante no processo de produção atual e que os Estados-nação periféricos
estão sendo crescentemente expropriados em suas riquezas sem a necessidade
207
de invasões e ataques bélicos, simplesmente pela via pacífica, ou aparentemente
pacifica, operada pelas bolsas de valores de todos o mundo com movimentação
financeira extraordinariamente superior a movimentação física do comércio.
Os tentáculos do capital financeiro, especulativo, parasitário se instalam
pacificamente, em todos os Estados-nação civilizados, através das bolsas de
valores com a combinação tecnológica ensejada pela Internet que permite, hoje,
em todo o mundo a circulação de valores especulativos da ordem de 1,2 trilhões
de dólares por dia. O volume de transações especulativas é altíssimo, como se
procura demonstrar.
Durante toda a argumentação atribui-se importância preponderante ao
modo social de produção como o instrumento mais apropriado para construir
consciência. Elege-se, neste mesmo sentido, o cooperativismo e especialmente o
cooperativismo de crédito como uma ágora moderna como espaço institucional,
uma ponte entre o público e o privado - capaz de enfrentar os obstáculos
apontados no estudo: a produção e distribuição da riqueza e a produção de
subjetividades qualificadas como sujeitos políticos ativos com capacidade de
disernir e atuar no mundo globalizado em defesa de interesses comuns, entre
pessoas iguais, - cidadãos que resistem ao rótulo ou, melhor dito, à pecha de
consumidores - tendo como foco o desenvolvimento econômico-social de base
produtiva e o poder local, tendente ao resgate das funções constitucionais do
Estado-nação.
Enquanto isso resta estudar se for o caso e em momento oportuno - a
possibilidade de emancipação da humanidade dar-se, (em lugar do proletariado,
Karl Marx, ou da multidão, Hardt e Negri), pelo colapso do modo social de
produção, a partir da conflagração aberta e franca entre dois capitalismos: o que
produz, a partir de bases territoriais visíveis, e aquele outro, que apropria as
riquezas produzidas, a partir de bases extraterritoriais invisíveis: o capitalismo
financeiro, especulativo, e parasitário que tende a transformar os Estados-nação
em síndicos da miséria e o empresariado nacional e entreposto do capitalismo
internacional.
208
REFERÊNCIAS
AZAMBUJA. Darcy, Teoria Geral do Estado. 44ª ed. Globo. São Paulo: 2003.
Banco Interamericano de Desenvolvimento. Libertar o crédito: Como aprofundar e
estabilizar o financiamento bancário; tradução Cecília Camargo Bartalotti,
Donaldson Garschagen e Pedro Medeiros. Elsevier. Rio de Janeiro: 2005.
BAUMAN. Zygmunt, Em busca da política. Tradução Marcos Penchel. Ed. Jorge
Zahar. Rio de Janeiro: 2000
----------------------, Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien. Ed. Jorge
Zahar. Rio de Janeiro: 2001.
.----------------------, Globalização: As conseqüências humanas. Tradução Marcos
Penchel. Ed. Jorge Zahar. Rio de Janeiro: 1999.
BECHO. RENATO LOPES, Elementos de Direito Cooperativo. Ed. Dialética. 1ª
edição. 2002.
------------------------------, Problemas Atuais do Direito Cooperativo. Ed. Dialética. 1ª
edição. 2002.
BNDES - Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, Coletânea:
Manual do Agente de Crédito e Manual do facilitador, em 6 volumes, Brasília,
1996.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Campus. Rio de Janeiro. 1996.
------------------------------, Estado, governo e sociedade. Paz e terra. Rio de Janeiro.
1995.
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. Malheiros. 6ª ed. São Paulo.
1996
BULGARELLI, Waldirio. As associações cooperativas e a sua disciplina jurídica.
2ª ed. Renovar. Rio de Janeiro: 2000.
COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros
ensaios. Cortez. São Paulo. 1994.
-------------------, GRAMSCI. Um estudo sobre o pensamento político. Civilização
Brasileira. Rio de Janeiro: 1999.
209
COUTINHO. Jacinto Nelson Miranda, (org.). Canotilho e a constituição dirigente
2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005.
COULON Olga M. A. Fonseca e COSTA F. Pedro. Dos Estados Nacionais à
Primeira Guerra Mundial, 1995, CP1-UFMG
CPI SERASA Comissão Parlamentar de Inquérito com a finalidade de
“Investigar as atividades da SERASA”- Relatório final, Câmara dos Deputados,
Brasília, novembro de 2003.
DALLARI. Dalmo de Abreu, Elementos de Teoria Geral do Estado. 24ª ed.
Saraiva. São Paulo. 2003.
FERNANDES, Florestan (org.). K. Marx F. Engels: História. 2.ed. São Paulo:
Ática, 1984.
FOUCAULT. Michel, Em Defesa da Sociedade. Tradução Maria Ermantina
Galvão. São Paulo. Martins Fontes, 1999.
FURTADO. Celso, Formação Econômica do Brasil. 32ª ed. Companhia Editora
Nacional. São Paulo: 2003
GAWLACK. Albino e RATZKE. Fabianne Allage Y, Cooperativismo: filosofia de
vida para um mundo melhor. Curitiba, Sescoop/PR: Ocepar: 2001.
GEDIEL, José Antônio. Os caminhos do cooperativismo. UFPR. Curitiba: 2001.
GRAU. Eros R A Ordem Econômica na Constituição de 1988. Malheiros. 6ª ed.
2001.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia. Entre a facticidade e a validade I.
TEMPO BRASILEIRO. Rio de Janeiro: 2003.
----------------------------, Verdade e Justificação - Ensaios Filosóficos - humanística
7 LOYOLA. Edição. 2004
HARDT. Michael e NEGRI. Antônio, Império. Tradução Berilo Vargas. 6ª edição.
Ed. Record. Rio de Janeiro. São Paulo: 2004
HUBERMAN. Leo. História da Riqueza do Homem. Tradução de Waltensir Dutra.
Editora LTC. 21ª ed. Rio de Janeiro.
LEITE. Eduardo de Oliveira, A monografia jurídica. 6ª ed. Ed. RT. São Paulo:
2003
210
LEITE. Jaqueline R. de Freitas e SENRA Ricardo B. de Faria. (Coord.). Aspectos
Jurídicos das cooperativas de crédito. Mandamentos. Belo Horizonte: 2005
LIMA, Abili Lázaro Castro de. Globalização econômica, política e direito. Sérgio
Antônio Fabris Editor, Porto Alegre. 2002.
MARX. Karl e ENGELS Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Frank Müller. Ed.
Martin Claret. São Paulo: 2004
MARX, K. e ENGELS, F. História. (org. Florestan Fernandes). São Paulo: Ática,
1984.
MARX. Karl, O Capital Critica da economia política: Livro I Tomo 1;
Coordenação e Revisão de Paul Singer. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe São Paulo : Abril Cultural, 1983.
---------------------, Critica da economia política: Livro I v. 2. Tradução Reginaldo
Sant’Anna. Ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2003.
---------------------, O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. 6ª ed. São Paulo: Paz e
Terra, 1997.
MEIRELLES. Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 20ª ed. Malheiros. São
Paulo: 1995.
NAMORADO. Rui, Os princípios cooperativos. Fora do texto. Cooperativa
Editorial de Coimbra. Coimbra: 1995.
RICARDO. David, Princípios de Economia Política e Tributação. Tradução de
Paulo Henrique Ribeiro Sandroni. Ed. Victor Civita. São Paulo: 1982.
SARLET. Igno Walfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais.
Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2006
SMITH, Adam. A riqueza das nações. Ed. Vitor Civita. São Paulo: 1983.
MARINONI. Luiz Guilherme - A jurisdição no estado constitucional: Estudos em
homenagem ao prof. Egas Moniz de Aragão., São Paulo: RT, 2005.
NICOLADELI. SANDRO LUNARD. A solidariedade e a Economia Solidária: Uma
perspectiva sócio-jurídica. Dissertação de Mestrado. UFPR. 2004.
PESSOA. Fernando, Livro do desassossego. Companhia das Letras. 1ª ed. São
Paulo: 1999.
211
PINHO. DIVA BENEVIDES, Tipologia Cooperativista. Manual de cooperativismo.
CNPq. 3ª ed. São Paulo: 1996.
PINSKY Jaime e PINSKY Carla Bass, (orgs.) História da Cidadania. Contexto.
3ªed. São Paulo: 2005
PRETTO JOSE MIGUEL. Cooperativismo de Crédito e Microcrédito Rural,
Ed. UFRGS, 1ª edição, 2003.
PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico. Tradução Angelina Peralva, 6ª
edição. Paz e Terra. Rio de Janeiro: 1997
RICCIARDI, Luiz e LEMOS, Roberto Jenkins, Cooperativa a empresa do século
XXI: como os países em desenvolvimento podem chegar a desenvolvidos, Ed
LTr. São Paulo: 2000
SANTOS. BOAVENTURA DE SOUSA, A Crítica da Razão Indolente. Vol. 1. São
Paulo: Cortez, 5ª ed. 2005.
---------------------, Um discurso sobre as ciências. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2005.
---------------------, Da Idéia de Universidade à Universidade de Idéias Cap. 8
Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, 2ª ed. São Paulo.
Cortez, 1996.
SCHARDONG, ADEMAR. Cooperativa de Crédito. Ed. Rígel, 1ª edição. 2002.
SILVA. José Afonso da, Curso de direito constitucional positivo. Malheiros. 12ª e.
1996.
---------------------, Garantias econômicas, políticas e jurídicas da eficácia dos
Direitos Sociais.
SINGER. Paul, Uma Utopia Militante. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1999 .
---------------------, Introdução à Economia Solidária. Ed. Fundação Perseu Abramo, São
Paulo: 2002.
---------------------, in PINSKY Jaime e PINSKY Carla Bass, (orgs.) História da
Cidadania. Contexto. 3ªed. São Paulo: 2005.
WEBER. Max, Ciência e política: entre duas vocações. Trad. Leonidas Hegenberg
e Octany Silveira da Mota. Cuntrix. São Paulo: 1968
VAZQUEZ, Adolfo Sanchez. Ética. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2000.
212
VÁZQUEZ Baguero, Antonio. Desenvolvimento endógeno em tempos de
globalização. Trad. Ricardo Brinco Fundação de Economia e Estatística, Porto
Alegre: 2001
VIOLIN. Tarso Cabral. Terceiro setor e as parcerias com a Administração Pública:
uma análise crítica. Ed. Fórum. Belo Horizonte: 2006.
213
FONTES CONSULTADAS NA INTERNET
www.informes.org.br
www.senado.gov.br
www2.camara.gov.br
www.correiodoestado.com.br
www.serasa.com.br
www.mpdft.gov.br
www.onu-brasil.org.br
www.ibge.gov.br
www.fazenda.gov.br
www.mds.gov.br
www.mte.gov.br
www4.fgv.br
www.estadao.com.br
www.mundojuridico.adv.br
www.ebooksbrasil.org
www.agcserra.org.br
www.census.gov
http://br.geocities.com/cpi_serasa
214
PANORAMA ATUAL DO COOPERATIVISMO
DE CRÉDITO NO BRASIL:
GLOBALIZAÇÃO, ESTADO E CIDADANIA
ANEXOS
215
Anexo 1 - Ofício FEBRABAN pedindo dados à SRF: para os bancos
216
217
218
Anexo 2 Resumo do convênio entre União, FEBRABAN e Serasa
219
220
Anexo 3 - SRF presente em toda consulta feita à Serasa
221
222
Anexo 4 Ata notarial: Mais de 116 milhões de cidadãos na Serasa
223
224
Anexo 5 Ata notarial: qualquer cidadão é passível de negativação
225
226
Anexo 6 Perfil dos cidadãos negativados pela Serasa
PERFIL DE INADIMPLENTES
Trabalho % Compra foi efetuada com %
Setor Privado 40 Cheque 43
Setor Público 9 Carnê 57
Liberais/Autônomos 25
Aposentados 12
Sem registro de trabalho 14
Acha importante limpar o nome
no SPC ou Serasa ?
%
Sim 84
Instrução %
Não 8
Básica 30 Não opinou 8
2º grau ou parte 52
Superior 16
Pretende realizar novas compras a
prazo
%
Outros 2 Sim 68
Não 23
Rendimento Mensal %
Não opinou 9
Até 5 salários mínimos 44
De 6 a 20 sm 36
Estado Civil %
Acima de 10 sm 20 Casado 40
Solteiro 38
Faixa Etária %
Outros 22
Até 21 anos 17
De 22 a 40 anos 53
Sexo %
De 41 a 60 anos 23 Masculino 52
Acima de 61 anos 7 Feminino 48
FONTE: Relatório final da CPI da Serasa. Brasília: 2003. p. 5
Nota:
“Segundo dados da própria empresa, atualmente a Serasa responde por 60% do
mercado de proteção de crédito [...].” Relatório final da CPI da Serasa. p. 10
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo