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FAUSTO DOUGLAS CORREA JÚNIOR
CINEMATECAS E CINECLUBES: Cinema e
política no projeto da Cinemateca Brasileira
(1952/ 1973)
Assis - 2007
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CORREA, JR. Fausto Douglas. Cinematecas e cineclubes: política e
cinema no projeto da Cinemateca Brasileira (1952/ 1973).UNESP/ Assis.
Julho de 2007.
227p.
Dissertação de Mestrado – FCL de Assis – Universidade Estadual
Paulista.
1 – Cinemateca Brasileira - Paulo Emilio Salles Gomes 3 – Cineclubismo
4 – Indústria Cultural 5 – Patrimônio cultural – proteção – Brasil. 6 –
Memória – História 7 – Brasil – Cultura.
CDD. Brasil: Cinema 791.430981
Brasil: Filmes cinematográficos: arte 791.430981
Brasil – Cultura. 981.
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RESUMO
Este trabalho apresenta-se inicialmente como um estudo do conceito de cinemateca com base na
experiência histórica delas desde o surgimento das primeiras coleções de filmes até os nossos dias.
O foco contudo se dá no final da década de 1950 e início da década de 1960 quando um modelo
específico de cinemateca, do qual o grande ideólogo foi Henri Langlois, é colocado em xeque no
âmbito da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF). Em seguida, nos esforçamos
para compreender as especificidades da experiência brasileira no panorama político e cultural do
país, analisando sobretudo o projeto político/ pedagógico da instituição para o campo da educação
e de políticas culturais no Brasil no período entre 1952 e 1973.
PALAVRAS CHAVE
1 – Cinemateca Brasileira 2 – Paulo Emilio Salles Gomes 3 – Cineclubismo 4 – Indústria Cultural
5 – Patrimônio cultural – proteção – Brasil. 6 – Memória – História 7 – Brasil – Cultura.
ABSTRACT
This work is in principle a study about the concept of cinémathèque based on their historical
experience, since the born of the firsts film’s collections up to ours days. The focus however is
concentrate over the late 1950s, and in the early of 1960s when the debate in the International
Federation of Film’s Archives (FIAF) put unfavorably into question a specific model of this kind
of institution, model which the biggest ideologue was Henri Langlois of the Cinémathèque
Française. After this, we made an effort to understand the specificity of the Cinemateca Brasileira
trajectory’s in the Brazilian’s politic and cultural panorama, especially about the educational and
political character’s of the Brazilian institution project’s to the educational and cultural camps in
the country between 1952 and 1973.
KEYS WORDS
1 – Cinemateca Brasileira 2 – Paulo Emilio Salles Gomes 3 – Film Clubs 4- Cultural Industry 5 –
Cultural Patrimony - Protection – Brazil 6 – Memory – History 7 – Brazil – Culture.
4
Agradecimentos
É difícil listar e agradecer devidamente todas as pessoas que de alguma forma colaboraram para o trabalho
que hora apresentamos aqui. É quase inevitável esquecer alguém. No entanto existem aquelas pessoas que,
ao contrário do que foi dito, é impossível esquecer o quanto foram importantes para tanto. A primeira, e
mais importante delas é sem dúvida meu orientador o Professor Carlos Eduardo Jordão Machado. Ele esta
presente em todos os momentos desta pesquisa a começar pelo próprio tema, por ele sugerido. Devo
agradecer e louvar sua camaradagem, e a total liberdade que proporciona aos seus orientandos, fato este
fundamental para o nosso amadurecimento.
Foi também absolutamente fundamental para o desenvolvimento desta pesquisa o financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, que me apóia desde a graduação
quando me concedeu bolsa de Iniciação Científica, e que continuou acreditando no trabalho financiando
também este meu mestrado. Sem a FAPESP evidentemente este trabalho não seria o mesmo.
Em seguida, devo agradecer muito a algumas pessoas cuja vida esta diretamente ligada à história da
Cinemateca Brasileira. Faço-o cronologicamente. Rudá de Andrade, figura chave para compreendermos a
história desta instituição no período aqui abordado esteve sempre disposto em atender-me quando lhe
solicitei ajuda. Para mim foi uma enorme honra poder contar com sua colaboração. O mesmo posso dizer de
outras pessoas com as quais tive muito menos contato, mas que me deram muitas informações, e a
segurança de poder também com elas contar caso precisasse. Assim, devo agradecer Jean-Claude Bernardet,
Gustavo Dahl, Maurice Cappovila, Maria Rita Galvão, Ilka Brunilde Gallo Laurito e Carlos Augusto
Machado Calil. Ainda que tenham sido poucos os contatos, eles me ajudaram muito a entender a pesquisa
que eu estava fazendo. No tempo presente da Cinemateca, devo muito a Olga Futemma e a Carlos Roberto
de Souza. Eles me ensinaram sobretudo o que é uma cinemateca hoje, ponto fundamental para entender o
que elas foram no passado. Seus exemplos são para mim extraordinários: a dedicação de uma vida inteira a
um trabalho que beneficia todos. No caso deles a preservação de patrimônio histórico e artístico. Desejo que
todos na Cinemateca Brasileira se sintam representados por Olga e Carlos, mas não posso deixar de
mencionar outras pessoas da instituição (ou próximas dela) com que tenho contato mais próximo e que
sempre me incentivaram seja diretamente ou por seus respectivos trabalhos: José Inácio de Mello Souza,
Luciana Araújo, Ana Paula Nunes, Rafael Messias, Alex Andrade, Fernando Fortes, Gabriela Queiroz,
Rafael, Ernesto, Remie, Francisco Matos, Fernanda Coelho, Rodrigo Arcângelo; a eles, e a todos os demais
funcionários e colaboradores da Cinemateca meu muito obrigado.
Devo também agradecer especialmente a Adílson Inácio Mendes, a Fábio Radi Uchoa, a Pedro Plaza Pinto e
a Reinaldo Cardenuto pela amizade e pelas enormes colaborações que me deram ao longo deste período de
pesquisa seja com apresentação de livros e textos, seja em conversas mais gerais sobre nossos respectivos
trabalhos. O meu trabalho é (literalmente) também deles. No mesmo sentido devo agradecer enormemente a
Fernanda Murad Machado que, com uma disposição que só uma verdadeira amiga pode ter, reviu com
muito rigor e paciência o texto que hora apresento como minha dissertação.
Agradeço também a todos meus professores do Departamento de História da Unesp/ Assis (especialmente a
professora Célia Reis Camargo e ao professor Áureo Buseto que participaram de meu exame de
qualificação, ambos com valiosas contribuições para o andamento do trabalho), minhas professoras de
francês desta instituição Maria Cecília e Maria Rosário, e aos professores da USP, Ismail Xavier, Eduardo
Moretin, Rubens Machado e Francisco Alambert.
Aos meus colegas de Assis certamente faltaria espaço aqui para lembrar de todos e de todas as suas
contribuições. Peço que todos eles se sintam representados especialmente por Manuel Dourado Bastos,
Daisy Camargo, Rodrigo David, Cássio Santos Mello, César Doriguello Jr, Luiz Antônio Albertini, colegas
da pós-graduação. Agradeço também a vários funcionários do Campus, especialmente a Clarisse, secretária
do Departamento de História, bem como aos professores João Chaves e Odil que, quando foram diretores do
campus, me ajudaram, de maneira decisiva nas
demarches
necessárias para a reabertura do Clube de
Cinema da Faculdade, criado em 1960, e reaberto por nós temporariamente por alguns anos (o que foi
fundamental para a minha pesquisa).
Por fim, não tenho palavras para expressar meu agradecimento aos meus pais, Fausto Douglas Correa e
Maria Alice Correa, e também a Rafaela Bigoto. Sem seus incentivos, amor e amizade, nada para mim teria
sido possível. A eles eu dedico este trabalho.
5
Sumário
Introdução - 7
Capítulo I -
Apontamentos para a história do conceito 19
Desinteresse, esquecimento e destruição: a morte dos “primitivos” e o “nascimento de uma
indústria” 25
A cultura cinematográfica vem dos filmes: cineclubismo, vanguardas históricas e o “nascimento
de uma arte” 28
Enfim o conceito se molda. 35
As primeiras cinematecas modernas: Tendências e polarizações na trajetória do conceito 39
A situação e o significado da II Guerra para arquivos e cineclubes 44
De volta a FIAF: o início da mutação do conceito 51
Extensão cultural: projeções, publicações, etc: um combate pela significação do conceito 75
Da vitória funcional à mutação do conceito 81
Capítulo II -
Cinemateca Brasileira, 1ª época: das luzes às chamas (1937 – 1957) 84
Política, intelectuais, cultura e burguesia em meados da década de 1940: um altar barroco 89
O Segundo Clube de cinema de São Paulo (1946) 94
O MAM, o MASP e a nova indústria cultural no Brasil 96
Da Filmoteca do MAM à Cinemateca Brasileira; Da burguesia ao Estado: Esforços para a
formação e salvamento de um acervo, prenúncios mal traçados da derrota de um projeto 98
6
Dos congressos aos festivais 109
I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro 119
Repercussão da retrospectiva na imprensa? alguns exemplos 128
Festanças, badalação e cultura cinematográfica 135
Capítulo III -
Cinemateca Brasileira, 2ª época: das chamas ao chumbo (1957 - 1968) 148
Paulo Emilio e a FIAF: equilíbrio conceitual entre preservação e a difusão 157
Documentação não fílmica 163
História e natureza das Cinematecas 169
A relação entre o trabalho interno e o trabalho externo 171
Os problemas nos diálogos com a indústria 177
Difusão: política e pedagogia 185
O amplo escopo da difusão 192
Objeto, conceito e pedagogia 195
Financiamento: ou de quem podia e deveria pagar a conta 192
Convênios com o Estado, com a União e a criação da SAC 203
Desfecho
217
Bibliografia
226
7
Introdução:
Peter Bürger afirma que uma teoria das transformações históricas da função social da arte, que leve
em conta a historicidade da categoria, deve ter como ponto de partida o estágio mais desenvolvido
do objeto, tal como ele foi sendo gradualmente aceito na sociedade. Ou seja: é o presente que nos
permite conhecer o passado e não o contrário disto
1
.
Sendo o nosso tema aqui a preservação do patrimônio cinematográfico histórico e artístico, e a
sua posterior difusão, devemos então pensar um pouco no que ocorre em nossos dias na fonte
desse processo. O primeiro ponto, o qual não se pode negar, é que ainda assistimos uma crescente
homogeneização do que é produzido no campo cinematográfico (no sentido de ampliação de
monopólios), sobretudo no que diz respeito aos filmes que chegam às telas (distribuição e
exibição). Lembremos que um único blockbuster de Hollywood chega a ocupar por semanas um
terço das salas de exibição de um país continental como o Brasil, e não é exagero afirmar que isto
ocorre em escala mundial.
Os circuitos ‘paralelos’ das grandes capitais são uma exceção à regra. Por eles passa uma produção
que está sempre apresentando coisas relativamente novas e de boa qualidade, às vezes mesmo
muito boa. Mas além de ficarem restritos a poucas salas de poucas cidades, eles tem curta
temporada. E mesmo que fiquem em cartaz por certo tempo, esses filmes não conseguem articular
uma corrente estética de conjunto, ou antes, de impacto (político) mais imediato na sociedade
(salvo muitas vezes aquela de mercado), o que evidentemente não desmerece necessariamente esta
produção.
Quanto à guinada do cinema digital, que supostamente deveria democratizar o “acesso” a uma
produção mais barata e “alternativa”, trata-se ainda de um fenômeno muito recente para tecermos
1
BÜRGER, Peter. The institution of Art as a Category of the Sociology of Literature. In: BÜRGER, Peter/ BÜRGER,
Christa.
The institution of Art
. University of Nebraska, 1992.
8
comentários mais longos aqui. Lembremos apenas que aqueles que produzem as máquinas e
comandam a Internet também são poucos, e seu número tende ainda a diminuir.
Pensemos então nesse patrimônio após seu ciclo comercial inicial. Hoje grande parte dele chega às
cinematecas, mesmo porque, a maioria desses filmes é realizado com leis de incentivo à cultura
(como a brasileira), que obrigam o produtor a depositar ao menos uma cópia de seu filme em um
órgão público que se dedique à sua preservação: é o se chama de depósito legal
2
Em relação à produção “menos comercial” dos circuitos paralelos, ela chega aos arquivos pela
porta da frente, diferentemente do que se passa com ela no circuito comercial, pois tiveram uma
boa acolhida por parte de uma crítica em extinção. Esses filmes voltarão às telas muitas vezes em
mostras e retrospectivas, às vezes com melhor recepção do que tiveram durante sua carreira
comercial, mas em geral a coisa fica nisso. Por mais que eles sirvam de exemplos para novos
produtores, atores, críticos e público, o processo é lento, e os condena a uma espécie de calabouço
especializado, enquanto o padrão ‘estético’ dominante continua a se valer das eventuais conquistas
estéticas e sociológicas destes. Eles venderão mais, é verdade, e aparecerão em DVD, o que ao
contrário do que muitos pensam não mudará tanto as coisas assim, pois muito provavelmente terão
seus direitos legais comprados por algum segmento de um grande conglomerado de comunicações.
Esse é também, evidentemente, o destino do grosso da produção da industria - juntamente com
todo o aparato subjacente ao filme (como camisetas, brinquedos, jogos de computadores, etc.) -, e
no que toca às grandes superproduções da indústria, elas nem mais precisam de órgãos públicos
para serem guardadas (as cinematecas). Os lucros das majores são tão estratosféricos que preservar
esses filmes se tornou uma tarefa fácil, ao contrário dos primeiros tempos das cinematecas, como
veremos. A questão fundamental aqui é: a indústria percebeu que a preservação de filmes é um
segmento de mercado. Uma mudança e tanto para quem destruía as cópias de velhos filmes para
2
É preciso esclarecer, contudo, que o
depósito legal
não é necessariamente algo imposto por lei. Trata-se antes de tudo
de um dispositivo legal, onde o produtor deposita material em uma cinematecas sem perder a propriedade deste
material, estando tal material apenas sob o apanágio das cinematecas.
9
que não fossem utilizados sem autorização legal, ou em outras palavras, para que a indústria não
tivesse prejuízos.
* * *
Com base sobretudo na bibliografia com a qual tivemos contato acerca de nosso objeto central (as
cinematecas), pudemos traçar um esboço bastante razoável do que chamamos aqui da história do
conceito de cinemateca, o que de fato nos ajuda, e muito, a compreender como chegamos a esse
estado de coisas do presente. Ou antes, de como muitos pretendiam que fosse diferente.
A primeira consideração a ser feita é sobre a importância fundamental, e muitas vezes
menosprezada, de um outro conceito - o de cineclube - para o desenvolvimento histórico das
cinematecas, pois ainda que essa idéia esteja, ela também, plena de problemas - cujo mais
elementar é a igual dependência da indústria no que diz respeito, por exemplo, ao acesso de
projetores e dos próprios filmes -, ela contem em si em elemento importante. O conceito de
cineclube, como o de cinemateca, é sobretudo político, o que em princípio (malgrado todas as
contradições), dava uma cor democrática às atividades dessas entidades, pelo fato de que os mais
diferentes setores da sociedade, tinham ou puderam ter representações nesse tipo de atividade. É a
história desse tipo de entidade que comprova isto.
É de comum aceite que as cinematecas nasceram dos cineclubes. Mas muitas vezes, na bibliografia
sobretudo, tudo se passa como se essa tenha sido uma etapa superada na história das cinematecas,
e que hoje elas são outra coisa, que não um cineclube: elas são cinematecas. No entanto, o fato é
que com um certo distanciamento histórico podemos perceber claramente alguns pontos de ruptura
na história do conceito, que não necessariamente o desfiguram, mas ocultam o próprio processo de
sua formação. Para nós isso significa uma coisa sobretudo: não podemos compreender o que é uma
cinemateca hoje sem compreender tal processo, e outros significados das supracitadas rupturas
10
inerentes a ele para além daqueles aceitos pela “história oficial das cinematecas”. Nossa primeira
tarefa é, portanto, tentar reconstruir um pouco essa história.
E o que diz essa “história oficial das cinematecas”? Que em um primeiro momento essas
instituições foram obrigadas a investir pesado na difusão de filmes de modo a se fazer entender
pela sociedade, na medida em que demonstravam a importância do patrimônio que preservavam.
Em um segundo momento, já amparadas por financiamentos públicos ou privados, as cinematecas
poderiam se voltar para aquilo que é mais essencial em seus trabalhos: a preservação de seus
acervos. Mas compreender um pouco mais o debate no âmbito da Federação Internacional de
Arquivos de Filmes (FIAF)– cadinho desta história oficial - torna as coisas muito mais claras,
quando por exemplo analisamos um dos “cavalos de batalha” dessa historiografia.
Tratamos tal questão estabelecendo como ponto de equilíbrio na formulação histórica do conceito o
debate travado entre Ernest Lindgren - da National Film Library de Londres – e Henri Langlois –
da Cinémathèque Française. Cada um deles representaria um dos dois pólos principais de
formação e de equilíbrio do conceito, Lindgren a preservação e Langlois a difusão. A divisão no
entanto, por demais esquemática, serve muito mais para esclarecer o que somente na aparência é
um falso problema: não se preservam filmes para serem guardados, e não se faz difusão sem filmes
(tanto Langlois quanto Lindgren sabiam disso). O ponto central passa a ser saber como e para
quem a difusão desse patrimônio/ mercadoria seria (ou não) feita, pois o esboço de narrativa do
processo que fizemos aqui tem um problema de fundo fundamental: a institucionalização da arte,
que antecede nosso tipo de objeto: uma instituição da arte.
Segundo Peter Bürger, o efeito da arte depende em geral dos mecanismos de disseminação dela,
não é final ou absoluto, e uma das chaves para se pensar o problema reside na relação entre análise
imanente e análise sociológica de como um determinado período em foco percebe e
11
‘institucionaliza’ a arte. Em suma: de como a arte assumiu essa ou aquela função predominante na
sociedade de um determinado período
3
.
Se a instituição da obra arte faz a mediação entre o trabalho do artista e o público, e se as funções
da arte na sociedade dependem das condições de produção e de recepção dela, então fica claro que
as instituições da arte (museus, cinematecas, etc.) não deixaram jamais de cumprir, do ponto de
vista material, a encarnação viva desse processo abstrato. Elas são partes centrais da cristalização
de um jogo dialético onde o elemento central não poderia ser outro que o ideológico. Bürger
lembra que o termo singular instituição de arte enfatiza a hegemonia de uma concepção de arte na
sociedade burguesa, e que ela é hegemônica pois soube fazer frente e vencer outras concepções.
Em outras palavras, a disputa pela significação do conceito de cinemateca tem como base, e faz
parte da disputa pela hegemonia do sentido social da arte ao longo da história de que tramamos
aqui
4
. É nesse sentido que nos interessa saber que filmes são esses que estão sendo produzidos e
que serão posteriormente depositados legalmente nas cinematecas.
Para o projeto de cinemateca que iremos aqui analisar isso importava, e muito. O que pode parecer
à primeira vista o argumento de um censor, ganha outros contornos quando lembramos que a
produção da industria cinematográfica, e da indústria cultural em geral, está se tornando cada vez
mais homogênea, e o que é pior, monopolizada. O ponto central aqui é que as cinematecas não são
proprietárias do patrimônio que guardam, e a médio prazo a abstenção delas de participação no
campo da produção e da adoção do depósito legal como ‘solução final’ para suas querelas jurídicas
leva a uma situação onde um órgão público, na melhor das hipóteses, guarda um patrimônio
privado, de uso igualmente privado.
No entanto foi e ainda é possível considerar a experiência histórica das cinematecas como algo na
contramão da história (do capitalismo). A afirmação precisa de esclarecimentos, mas deve ser
seriamente levada em consideração. A história das cinematecas, como veremos, é já longa, e elas
3
Ibidem.
12
são muitas. Mas o fato é que a experiência histórica do projeto de cinemateca que iremos analisar
parece mesmo ter mergulhado de cabeça na contracorrente, em um tempo ainda longe de estar
totalmente dominado pela política muitas vezes estritamente de mercado dos nossos dias. Em uma
conjuntura específica, não só no Brasil mas no mundo (Guerra-Fria), foi possível que um grupo de
intelectuais organizassem um projeto político e educacional para a cultura que, como ficou
evidente alguns anos depois, não servia para a manutenção do status quo e da lógica do
capitalismo, embora em princípio tenha “ajudado” no desenvolvimento dessa mesma lógica
(diversificação do mercado).
Segundo Walter Benjamin, na era da reprodutibilidade técnica da obra de arte a própria produção
passa a ser orientada pela reprodução, e para tanto a reprodução técnica, inicialmente na forma de
centenas, e em alguns casos milhares de cópias desses filmes (e agora de computadores e DVD
virgens), não seria mais do que uma etapa do processo produtivo. Nesses termos onde estaria a
indicação de que as cinematecas são vistas, de um determinado ponto de vista, como uma
experiência na contramão da história (do capitalismo)?
Podemos situá-la (acompanhando Benjamim) na tentativa de combater o processo que gerou o
deslocamento espacial e temporal criado pela reprodutibilidade e que destacou do domínio da
tradição o objeto reproduzido, promovendo a liquidação do valor tradicional do patrimônio da
cultura. O que Benjamim entendeu como a perda da aura da obra da arte, do seu aqui é agora, de
seu sentido histórico (de práxis e produção). Em suma, de seu sentido social
5
.
No entanto, as cinematecas não quiseram combater o avanço técnico (seria quase uma contradição
dos termos), nem acreditamos que quisessem a seu modo de entender, recompor algo que o cinema
nunca teve: sua aura. O que muitas delas queriam sim, era historicizar as obras e educar o
espectador, formando assim, um público capaz de reconhecer e analisar com perspectiva histórica e
4
Ibidem.
5
BENJAMIM, W. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIM. W. Obras escolhidas V.1:
Magia e técnica, arte e política
. São Paulo: Brasiliense, 1994.
13
estética aquilo que via na tela, e assim pensar criticamente o passado e seu próprio presente. Era
preciso, na visão desses intelectuais, criar novas possibilidades para a utilização política e cultural
do cinema, libertando o espectador do seu mero culto da distração. Pois a pergunta que devemos
fazer nesse sentido é: do que o cinema tido como mero entretenimento distraía o espectador?
O projeto de cinemateca que iremos analisar a partir de sua própria experiência foi maturando
como objetivo central, para além da preservação do patrimônio cinematográfico brasileiro e
universal, a implementação de um amplo programa de políticas públicas para a educação e para a
cultura do país, visando a formação de um sistema para o campo do cinema, inseparável da cultura
em geral, que articulasse e desse organicidade às atividades do campo da produção, distribuição e
exibição em um sentido plural e democrático. Isso no entanto pressupunha a articulação de outra
tríade mais fundamental, obra, autor, e público. Como autores, críticos, técnicos e produtores são
parte do público, a tarefa primeira era formar público crítico
6
.
No mundo recém saído da Segunda Guerra Mundial, fervilhavam ideais políticos, no bojo da
Guerra-Fria. Ideais que podiam, de um lado, representar a esperança de um sistema econômico e
social mais justo, ou de outro a busca por prenúncios de uma era de monopólios não apenas no
âmbito da produção industrial, mas também no ideológico. Monopólios estes que têm uma das suas
principais razões de ser no amparo de um aparato técnico midiático que só a grande concentração
de capitais de um lado da balança foi possível engendrar.
Mas no período abordado por nós, o cinema era visto ainda por um amplo grupo de intelectuais e
artistas como uma importante ferramenta revolucionária: uma arte, mas também ferramenta
política, ainda que a maior parte do público o encarasse como mera distração. Aqui podemos ver
de onde surgiu a experiência brasileira? E como foi possível para ela se sustentar em uma
conjuntura que já começava a se apresentar como desfavorável?
6
Cf: CANDIDO, Antônio.
Formação da literatura brasileira
V.1. São Paulo, Martins Fontes. 1964.
14
Valendo-se do interesse da burguesia paulista ciosa de atualizações no panorama europeu e
sobretudo norte-americano no campo do mercado de bens culturais, alguns intelectuais como Paulo
Emilio Salles Gomes, Mário Pedrosa e Lourival Gomes Machado serviram de “fies escudeiros” do
mecenato para criar as primeiras grandes instituições de cultura no cenário do pós-guerra no Brasil.
O fato é que para tais intelectuais estas instituições significavam outra coisa bem diferente do que
meios de obtenção de status, lucros e educação privada.
Todas as grandes mostras e festivais realizados pela Cinemateca Brasileira entre 1949 e 1973
tinham por objetivos formar espectadores críticos em um tempo em que somente nas cinematecas e
nos cineclubes esse público tinha a oportunidade de ver a programação que lhe era oferecida.
Destaque para as grandes retrospectivas do Festival de 1954 em São Paulo (a qual comentaremos
um pouco), a de cinema americano em 1958, a de cinema francês, a de cinema alemão (1958/59),
a retrospectiva de cinema italiano em 1960 (com mais de 200 filmes), outra de cinema russo e
soviético (nos quadros da Bienal de 1961), além da apresentação de cinematografias que lhes eram
contemporâneas como a importante mostra de cinema polonês realizada em 1962. Para não falar na
mostra sobre o Cinema Novo brasileiro também nos quadros da Bienal de São Paulo para a qual a
Cinemateca – com toda sua atividade de difusão e pedagogia - deu contribuições centrais.
Todas essas mostras eram normalmente acompanhadas de ciclos palestras, conferências ou de
cursos, e todas contam com excelentes catálogos publicados
7
. Não é coincidência o fato do
fenômeno das cinematecas no pós-guerra ter sido contemporâneo do que chamamos de cinema de
autor. Essas instituições tiveram um papel fundamental na formação de gerações inteiras de
cineastas, técnicos e atores.
No entanto, a partir do momento em que se tornou indisfarçável que os intuitos dos dirigentes
culturais e dos mecenas dessas instituições (Bienal e Filmoteca do MAM) eram diversos, veio a
ruptura administrativa. O Museu paulatinamente deixou de financiar as instituições, e o Estado não
7
Os eventos em si dariam um trabalho a parte. Esperamos ao menos ter dado conta aqui de seu sentido de conjunto.
15
o substituiu como o esperado. O incêndio da sede da Cinemateca na rua 7 de Abril é sintomático
dessa recusa. A “rejeição” da burguesia e do Estado (simbolizado no Golpe Militar de 1964 e
sobretudo em 1968) aos intuitos eminentemente democráticos do projeto da instituição são
epifenômenos de uma nova etapa do desenvolvimento histórico do capitalismo (e das grandes
economias ocidentais) durante a chamada era de ouro (1945 – 1973), que consolidaram novos
padrões de consumo que marcaram “a chegada e inauguração de um tipo de sociedade totalmente
novo, cujo nome mais famoso é sociedade pós-industrial (Daniel Bell), mas que também é
conhecida como sociedade do consumo, sociedade das mídias, sociedade da informação, sociedade
eletrônica ou high-tech e similares
8
”.
Nesse processo, a dominação exercida pelos monopólios dos meios de comunicação de massa nos
tem levado cada vez mais a uma aparência concreta de uniformização das opiniões acerca do
político e do estético, que parecem se tornar cada vez mais assustadoras quanto pior se torna, em
determinadas conjunturas, a situação das bolsas de valores pelo mundo. Evidentemente nada é
assim tão monolítico. E o projeto da Cinemateca Brasileira no período abordado por esse trabalho,
como tantas outras coisas escapava ainda com relativa folga a essa lógica.
Contudo, a interrupção de um projeto de formação de público de massa com capacidade de
discernimento crítico – cuja causa e conseqüência tende a ser a monopolização do uso e do estudo
sistemático do patrimônio guardado pelas instituições de cultura - tem levado os produtores
culturais a uma situação onde eles “não mais podem se voltar para lugar nenhum a não ser o
passado: a imitação de estilos mortos, a fala através de todas as máscaras estocadas no museu
imaginário de uma cultura que agora se tornou global
9
”. Em outras palavras: uma sociedade parada
no tempo ou em plena regressão no que diz respeito ao estético – o que não poderia ser diferente
diante do conteúdo exibido nos meios de comunicação de massa – não pode mesmo oferecer vida e
8
JAMESON, Fredric.
O Pós-Modernismo : a lógica cultural do capitalismo tardio.
São Paulo : Editora Ática, 2002.
P.29.
9
Ibidem, P.45.
16
dinâmica para a produção cultural. Uma cultura viva, já nos esclarecia Paulo Emilio, depende do
conhecimento do passado, da compreensão do presente e de perspectivas de futuro. Pois conhecer o
passado significa compreendê-lo historicamente, e logo compreender o presente pressupões
entender o processo histórico que o criou.
É nesse quadro de ruptura de um programa didático/ pedagógico e de abstenção no campo da
produção que a idéia de cinemateca se torna problemática. A difusão cinematográfica, conceito
chave na idéia de cinemateca, tem se tornado, em alguns casos, mera vulgarização dos materiais de
arquivo, seja nas salas “cult” de cinema ou em coleções de DVD’s, que se por um lado ajudam a
democratizar o acesso a esse material, por outro não vem acompanhado de mais nada. “O fato novo
é a liberdade total do comprador, para escolher o que ele quer ver. Com toda a independência. Ele
não mais se deixa cultivar, no sentido pedagógico, quer dizer, observar as escalas de valor que nos
impõem os inumeráveis escritos sobre o cinema. Ele se libera e reivindica está cinefilia primitiva
pela qual nos lembramos de distantes existências
10
”.
As cinematecas se desenvolvem historicamente, e podemos entendê-las paradoxalmente como
frutos desse processo do qual acabamos de traçar algumas breves linhas, mas a estrada não foi
retilínea. Para que a lógica cultural do capitalismo tardio se consolidasse, para que, grosso modo,
mercadoria virasse cultura e cultura virasse mercadoria, foi preciso tempo e um amplo processo de
lutas políticas e culturais. Lutas que, sobretudo da parte dos vencedores (digamos assim) demandou
o uso de armas de grosso calibre.
Essas questões teóricas mais gerais precisam ser ainda matizadas. O que pretendemos é mostrar
que do ponto de vista estrito das cinematecas - cujo desenvolvimento histórico faz parte, ou antes,
está inserido no processo acima esboçado - podemos concluir desde já o seguinte: O conceito de
cinemateca tem história. Ele se forma, como veremos, a partir dos princípios das primeiras
10
BORDE, Raymond. BUACHE, Freddy. La crise des cinémathequès et du monde. Paris : L’Age D’Homme, 1997.
P.22.
17
experiências dos primeiros arquivos e coleções de filmes, e dos ideais do movimento cineclubista
europeu, que começa a ganhar corpo na década de 1920, onde a principal bandeira foi a defesa do
cinema como arte e a luta contra a sua lógica estritamente comercial.
A idéia de cinemateca moderna, a saber, aquela que preserva o cinema como um todo desde do
material fílmico até o não fílmico (roteiros, material de divulgação, cartazes, fotografias, arquivos
pessoais de cineastas, críticos, arquivos institucionais de entidades ou empresas ligadas ao campo
cinematográfico, etc.) - sem se limitar a critérios, gênero ou proveniência (embora concentre seus
esforços no cinema nativo de seu país) – não se sintetiza apenas como um depositário do passado.
Uma cinemateca é um arquivo, mas não é um arquivo qualquer. Trata-se de uma mistura de
arquivo, museu e escola. Uma cinemateca preserva o patrimônio para difundi-lo, por meio de
exibições, cursos, publicações, etc., e não apenas no seu espaço próprio. Historicizando o passado
para compreender o presente e vice-versa. No entanto, no exato momento em que o conceito se
formou, nos termos acima descritos, ele começou a sofrer uma espécie de mutação decorrente da
vitória de um outro modelo de difusão, aquele da democracia de mercado.
Como sempre, esse debate teve como fórum privilegiado os congressos da Federação Internacional
de Arquivos de Filmes (FIAF) criada em 1938. O debate intensificou-se a partir do final da
Segunda Guerra Mundial e teve seu ápice no final da década de 1950, com significativa derrota de
Henri Langlois, fundador da Cinemateca Francesa, um dos principais modelos inspiradores da
experiência brasileira. Curiosamente isso ocorreu mais ou menos no momento em que a
Cinemateca Brasileira conquistava sua autonomia institucional separando-se do Museu de Arte
Moderna. É como se o projeto da Cinemateca Brasileira enquanto instituição autônoma tivesse se
iniciado quando o seu modelo já estava em crise, mas a questão era política. Nesse sentido os
acontecimentos da história brasileira no final da década de 1960 não são meras coincidências. O
18
que ocorreu no âmbito da FIAF não se separa da conjuntura brasileira e internacional de uma
maneira mais geral.
Na primeira parte deste trabalho, procuramos analisar como o conceito de cinemateca se formou e
como se transformou no contexto do pós-guerra e da Guerra Fria. Trata-se de uma discussão feita
sobre fontes secundárias, e é bem verdade, apenas sobre parte da bibliografia para o tema.
Contudo, acreditamos que nossas reflexões abrem caminho para uma melhor fundamentação do
tema quando estivermos trabalhando com fontes primárias (sobretudo os anais da Federação
Internacional de Arquivos de Filmes – FIAF), e com outras referências bibliográficas.
Na segunda etapa voltamos novamente no tempo, para o imediato pós-guerra, tentando verificar
como foi possível a experiência da Cinemateca Brasileira em um país da periferia do capitalismo.
Aqui o desafio de lidar com a relação intrínseca entre conceito e experiência foi o maior de todo o
texto. Justificando um possível lapso, ou uma falta de coerência do texto, podemos argumentar que
partimos de um momento de plena aceitação da idéia de cinemateca no Brasil, para paulatinamente
irmos de encontro aos obstáculos encontrados pelo grupo que criou e administrou a Cinemateca
Brasileira no período aqui focado em função de custos materiais, mas principalmente por conta de
divergência ideológica entre as partes que constituem o todo da conjuntura.
Assim, na terceira e última etapa procuramos analisar o projeto (voltando ao conceito) da
instituição por meio dos escritos de seu principal ideólogo, Paulo Emilio Salles Gomes, nas
páginas do suplemento literário do jornal O Estado de São Paulo. Textos estes, escritos em um
momento de vida ou morte para a instituição. Para o tipo de projeto intentado não haveria mais
dinheiro para preservar os filmes, pagar funcionários, realizar mostras e festivais, em suma, para
nada. Valendo-se o quanto pode de seu espaço no jornal, Paulo Emilio deixa transparecer
plenamente o que estava na base de sua concepção de cinemateca: parte de um amplo projeto para
a educação pública e para políticas culturais no Brasil. Escrevemos sem medo de errar, que a
Cinemateca fazia parte de um projeto revolucionário no campo da educação.
19
Capítulo I –
Apontamentos para a história do conceito
A idéia de preservar filmes é tão antiga quanto o cinema. Desde as primeiras projeções do
cinematógrafo Lumière, e de outros aparelhos, encontramos na imprensa notas e textos exaltando o
potencial do registro histórico do filme. Mas o caminho foi longo até que as primeiras tentativas de
formação de coleções de filmes, que citaremos aqui, viessem a desembocar no que chamamos hoje
de cinemateca. Não queremos dar a impressão que dos primeiros arquivos depreendemos
naturalmente as cinematecas modernas, como se tudo fosse apenas uma questão resolvida com o
passar dos anos. Queremos sim tentar perceber no que esses primeiros arquivos contribuíram
historicamente para a formação das cinematecas, e no que, pelo contrário, os distanciam.
Comecemos então pelo ponto mais geral que aproxima uns aos outros. Como afirmamos, desde o
início foi percebido por muitos o interesse histórico dos registros cinematográficos. Um interesse
mundano e oficioso em geral, de quem se impressionava com a capacidade do cinematógrafo fazer
“reviver um instante” ou um personagem histórico. Trata-se mesmo da (falsa) noção de realidade
inerente ao filme, em um tempo onde o que impressionava era a novidade do registro, o
embasbacamento diante da “genialidade do homem e do progresso”, sobrando pouco espaço para
reflexões que não poderiam mesmo acontecer naquele momento a respeito do que podemos chamar
(na falta de um termo mais adequado) da capacidade dissimulatória do registro cinematográfico por
meio de trucagens, montagem, sobreimpressão, etc. Técnicas ainda desconhecidas.
O que Raymond Borde chama de constatações banais e tocantes, foi o princípio, mas apenas o
princípio de tudo. Tomaremos aqui rapidamente como exemplos, dentre outros, aqueles que são
tradicionalmente considerados precursores da arquivística fílmica: o polonês Boleslaw
Matuszewski, os franceses Henri Turot, Victor Perrot e Emile Massard, bem como a experiência da
Biblioteca do Congresso de Washington (EUA). Matuszewski é o primeiro. Seus escritos e projetos
20
sobre o tema são do final do século XIX, e o primeiro, para ser mais exato de 1898: Uma nova
fonte para a História
11
.
As maiores contribuições desses homens para a história das cinematecas são em princípio duas. A
primeira diz respeito ao desenvolvimento da teoria de arquivagem dos filmes. Tais projetos,
bastante avançados para seu tempo tocavam em pontos absolutamente fundamentais para as
cinematecas, quanto falamos de práticas e metodologias para os arquivos cinematográficos. Um
deles amplamente defendido por esses pioneiros era a necessidade de criação de leis prevendo o
depósito legal dos filmes nos arquivos. Essa noção de depósito legal é fundamental para as
cinematecas uma vez que os filmes por elas guardados não lhes pertencem, estão apenas sob seus
respectivos apanágios. O princípio é conhecido: o Estado impõe a todos os produtores que
entreguem uma cópia ou um negativo de todos os filmes que realizam ou exploram comercialmente
para um serviço público (uma cinemateca, por exemplo). E para que tal propósito fosse profícuo e
funcionasse corretamente, vemos nos textos dos pioneiros outro aspecto bastante importante
largamente enunciado: os arquivos deveriam ser públicos, ou antes, ligados ao Estado. Ainda que o
dispositivo do depósito legal apresentasse problemas sérios (os quais discutiremos mais adiante),
foi essa uma das principais soluções para o problema jurídico das cinematecas, tendo em vista que
os produtores temiam o uso não autorizado de seus filmes. As leis de depósito legal visavam assim
também a proteção dos direitos legais.
Na mesma trilha, outro ponto fundamental defendido por esses pioneiros diz respeito aos conceitos
que definem os tipos de materiais cinematográficos, sobretudo no que se refere ao trato técnico
para a preservação dos negativos originais. Está é uma noção primária para uma cinemateca de
nossos dias: as cinematecas não tocam, ou raramente tocam, nos negativos originais. Deles são
feitos contratipos (uma matriz negativa de segunda geração) de onde se produzem másters de
11
Davis Francis cita iniciativas semelhantes que tiveram lugar no Reino Unido e foram propagadas pelo Magic
Lantern Journal Annual e também pelo Optical Lantern and Kinematograph Journal respectivamente em 1899, 1906.
21
preservação (matriz positiva de segunda geração), sendo principalmente os contratipo a fonte de
onde são feitas as cópias de difusão de um filme. Matuszewski trata desse tema já em seu primeiro
escrito sobre a conservação de filmes em 1898. “Os rolos negativos que forem aceitos serão
selados dentro de estojos, etiquetados, catalogados; serão tipos nos quais não se tocará
12
”.
É, pois, no segundo ponto por nós aqui destacados que encontramos o que diferencia, em princípio,
os primeiros arquivos das cinematecas modernas: trata-se da idéia ou da concepção que se tinha
então do documento cinematográfico: estamos no âmbito estrito do filme documental (ou natural,
como eram conhecidos). O filme era visto por Matuszewski como um dos mais verídico
testemunho de um fato, talvez mesmo o mais verídico, uma prova viva da passagem humana por
um determinado momento num determinado espaço. Todo o discurso era sustentado pela idéia de
transmitir às gerações futuras uma imagem “exata” do presente. Tal concepção do documento
cinematográfico não revela mais do que um desconhecimento das técnicas de manipulação da
imagem fílmica que não tardariam a serem utilizadas. Para Matuszewski o filme era um
testemunho incontestável da História devido à dificuldade de falsificação da imagem. Uma
fotografia ordinária permite o retoque por exemplo “mas, tentem então retocar de maneira idêntica
para cada figura estas milhares de centenas de quadros quase microscópicos”. Para o polonês, o
filme era por excelência a testemunha ocular e infalível. Poderia dar cabo de qualquer debate, sobre
um evento, um acontecimento, que o cinematógrafo tivesse registrado. Para ele seria desejável que
os outros documentos históricos “tivessem todos este mesmo grau de certeza e de evidência”.
13
O sentido de prova atribuído ao registro cinematográfico parece mesmo estar na base da concepção
de Matuszewski. Poderia ser a prova de uma patente industrial, das características particulares
(singularidades) de um maestro em especial diante de uma orquestra, no registro de festas
FRANCIS, D.
From parchment to pictures to pixel balancing the accounts: Ernest Lindgren and The National Film
Archive, 70 years on. In: Journal of film preservation, FIAF, Nº71, 2006.
12
MATUSZEWSKI, B.
Uma nova fonte para a história
. P.4
13
MATUSZEWSKI, B.
Uma nova fonte da História
. Grifos nossos. Para uma crítica ao historicismo inerente à
concepção de Matuszewski do documento cinematográfico Cf: KRACAUER, Siegfried. A fotografia. In:
KRACAUER, S.
O ornamento da massa.
São Paulo : Cosac&Naif, 2007. (No prêlo).
22
populares e religiosas em vias de desaparecimento, etc. A falta de preocupação ou
desconhecimento dos equívocos dessa idéia (como se o retoque no fotograma fosse a única forma
de ludibriar o espectador) nos leva a outro ponto principal, que encontramos aos borbotões nos
primeiros colecionadores e também em Matuszewski: o descarte da ficção como algo indigno do
mesmo interesse: “A comissão (do arquivo) pressupõe que em cada depósito deve-se fazer um
trabalho de eliminação, excluindo o que seria de puro divertimento e não apresentasse o caráter
particular de utilidade da qual ela se ocupa
14
”.
E Utilidade parece mesmo ser a palavra de ordem quando o tema é conservação e guarda de
registros cinematográficos nos primeiros tempos do cinema. A idéia de utilidade é inerente à de
prova, o que não descarta necessariamente a mera curiosidade para com o registro. Seguindo os
passos de Matuszewski, ou para ser mais exato, desse tipo de entendimento do filme natural, as
primeiras coleções de filmes, que começaram a surgir já nos primeiros anos do cinema, se
formavam por motivos e interesses pedagógicos ou finalidades políticas com temáticas bastante
pontuais.
Um dos primeiros arquivos de filme do mundo foi a Biblioteca do Congresso de Washington que,
por meio de depósitos de filmes impressos inicialmente em papel, visava proteger os direitos legais
dos filmes. A biblioteca deixou de receber esses “filmes” quando a lei que regulamentava o
copyright passou a não reconhecer as cópias em papel. Mas porque não passou a receber filmes
propriamente ditos? A razão é simples: a instituição não considerava seguro manter estoques de
filmes cujo suporte era o nitrato de celulose (altamente inflamáveis) junto de vasta documentação
histórica em papel
15
.
Na França, a partir de 1896, a Biblioteca Nacional também guardava roteiros datilografados com
extratos de filme tirados em papel visando proteger direitos legais dos produtores, e não guardava
14
MATUSZEWSKI, B.
La phographie animée, ce qu’elle est, ce qu’elle doit etrê
. Apud: BORDE, R. Op. cit. p.33.
Grifo nosso.
15
FRANCIS, D. Op. Cit. P.22.
23
filmes nitratos pela mesma razão que Washington
16
. Mais freqüentes do que a guarda de filmes
eram exposições ou sessões de museus contendo documentação sobre cinema – notadamente não-
filmes e aparelhos – que tinham o foco voltado não para a arte cinematográfica, mas sim para a
técnica cinematográfica. E desde então, “um dado importante aparece aqui, ainda timidamente: os
‘arquivos’ ligados ao cinema adquirem um valor artístico e comercial”
17
.
Entre os primeiros e eminentes colecionadores de filmes encontramos também militares e clérigos.
Ambos colecionavam filmes já nos primeiros tempos do cinema, por motivos políticos e
institucionais. Os primeiros registrando e guardando imagens de conflitos e cerimônias, e os outros
guardando igualmente registros de cerimônias, festejos, etc. Dessa forma, as coleções, como a que
propôs Matuszewski, tinham também outros objetivos que não somente o registro memorialístico
por si só: sobretudo, visavam a catequese, o ensino, a doutrinação, em outros termos, um fim
determinado. Uma das mais antigas iniciativas dos clérigos foi a de um jesuíta que serviu na
Basiléia (Suíça). Seu nome é Joseph Joye. Destacado para militar em uma cidade de domínio
protestante ele utilizava os filmes para atrair os fieis para os cultos. Durante esse tempo o Abade
Joye formou uma coleção de filmes
18
.
Em geral, as coisas eram assim, tanto nas coleções institucionais como nas de particulares. Sobre
estas últimas, temos notícias de coleções fabulosas, como a do banqueiro francês Albert Kahn,
“que, de 1910 a 1925, enviou operadores ao mundo inteiro para constituir, em uma perspectiva da
geografia humana, os Arquivos do Planete (Archives de la Planète)”. Coleção essa que incluía
também um número gigantesco de fotografias, das quais restaram 72.000. Outro exemplo
encontramos na Dinamarca. Apoiado por um jornal liberal, uma jornalista Anker Kirkebye
organiza um arquivo centrado na vida dinamarquesa. Uma experiência curta e que segundo Borde
16
MANNONI, Laurent.
Histoire de la Cinémathèque Française
. Éditions Gallimard, 2006. P.15.
17
Ibidem, P.18-19.
18
BORDE, Raymond.
Les cinémathèques
. L’Age d’Homme: Paris, 1983. P 39. Borde chama a atenção para o fato do
Abade Joye colecionar também alguns filmes de ficção, mas acrescenta que não entende o fato como fundador de uma
cinemateca pois as ficções tinham elas também uma utilidade prática bem marcada: a mesma para os filmes
documentais, a catequese, o ensino, etc.
24
tinha como pano de fundo um certo enaltecimento da monarquia local.
19
O exemplo dinamarquês
não quer dizer que o interesse fosse exclusivamente o de ressaltar os valores da monarquia. Mas
esse parece ser, todavia, sua preocupação central, sua utilidade central digamos assim.
Não podemos deixar de mencionar a experiência brasileira desses tempos e o empenho de Edgar
Roquette Pinto visando a criação de uma filmoteca científica composta principalmente de filmes de
história natural, em 1910, quando era diretor do Museu Nacional (onde permaneceu até 1936). “No
período em que dirigiu o museu, preocupou-se constantemente com os meios audiovisuais
aplicados à educação
20
”. Desse modo os intuitos de Roquette Pinto não escapam da concepção de
coleção e arquivo de filme, brevemente enunciada acima. Seu projeto para uma filmoteca tinha
também finalidades bem determinadas, que levavam a uma determinada seleção de filmes para a
composição do acervo, como acontecia geralmente nas coleções e arquivos dos primeiros tempos.
Todas essas coleções privilegiavam, assim, um ou outro determinado tipo de filme: quase sempre
documentários (ou filmes naturais como eram conhecidos). Documentários que registravam este
ou aquele aspecto da vida desta ou daquela cidade, deste ou daquele homem público, que
procuravam preservar aspectos bem precisos de uma determinada visão de mundo, fugindo assim
do parâmetro que apontamos agora (seguindo Raymond Borde) como sendo o princípio de uma
cinemateca moderna: a preservação como um fim em si mesmo, que engendraria possibilidades
múltiplas para a difusão de um material bem mais heterogêneo. Premissa complicada, a qual
pretendemos deixar mais clara no decorrer deste texto, mas que quer dizer uma coisa, sobretudo:
uma cinemateca, na acepção moderna do termo, se interessa pelo cinema em geral como um
fenômeno social, sem distinção de gênero ou proveniência. No entanto, essas primeiras coleções já
traziam um germe fundamental do que viria a ser uma cinemateca: o interesse sociológico pelo
filme, que ultrapassava o âmbito comercial estrito do mesmo. E isso não é pouca coisa.
19
BORDE, R. Op. Cit. P.39.
20
ANDRADE, Rudá de. Cronologia da Cultura Cinematográfica no Brasil. Cadernos da Cinemateca n.1, São Paulo:
Fundação Cinemateca Brasileira, 1962. Grifo nosso.
25
Desinteresse, esquecimento e destruição: a morte dos “primitivos” e o “nascimento de uma
indústria”
Se o interesse sociológico pelo filme se manifestou desde as primeiras projeções, ele foi limitado,
como vimos, ao que interessava preservar a um ou a outro, por assim dizer, e o cinema enquanto
um todo foi renegado, sobretudo o filme de ficção. Eram valorizadas como dignas nos projetos e
tentativas de conservação as vistas de grandes cidades, visitas de chefes de Estado a outros chefes
de Estado, casamentos, festejos e cerimônias religiosas, sobretudo aquelas ligadas à realeza ou à
alta burguesia, mas por vezes populares, manobras militares, registros de combates, etc. O resto,
sobretudo a produção ficcional, foi deixado à sua própria sorte. Algo que pode ser traduzido como
uma condenação ao desaparecimento, já que o suporte de nitrato de celulose é altamente instável,
decompõe-se com relativa facilidade; como se não bastasse tudo isso, é alto-inflamável.
Em função desses rígidos critérios de seleção, uma série de filmes, mesmo dentro da concepção
de filmes naturais (não-ficção ou documental), também foi rejeitada como indignas de interesse
histórico, pois “inútil” para estes ou outros fins. A repulsa de filmes como Eletrocutando um
Elefante, onde o tema era o mesmo do título (ou seja, um elefante levando choques em uma feira
popular), certamente pode ser considerada exemplar da concepção daqueles que consideravam o
cinema como diversão de idiotas, retorno à barbárie ou coisa de analfabeto. Mas, tal preconceito, ia
além, atingindo também a produção ficcional do período (melodramas sem graça, quadros de
comédia elementares ou filmes licenciosos), que de início se ligavam muito à mesma tradição
feirante, ambulante, de um tempo onde o cinema era mais uma atração ao lado da mulher barbada,
do tigre de Bengala, do Rei dos Pigmeus, ou qualquer outra atração do gênero.
Apesar de ser um fato historicamente compreensível, é patente a conotação elitista do desprezo por
um espetáculo popular que atraia mais e mais público, que era barato e acessível, apesar das
26
supostas e, em alguns casos, comprovadas bizarrices hoje tão interessantes e reveladoras para nós,
como no caso do referido elefante. Pois o cinema, como afirmou Vincent Pinel, “não se contenta
em ser o espelho deformado de nossa sociedade, de suas tendências e de seus desejos. Se ele toma
como ponto de partida nós mesmos, ele nos forma ou nos modela a seu modo. Nossa maneira de
ver, de pensar, de viver, encontra-se modificada sem que nós estejamos sempre conscientes
disso
21
”. Nós somos, na medida em que fazemos parte de uma sociedade, de algum modo o que
vemos na tela. O mesmo autor acrescenta que tal indiferença da grande burguesia com o cinema
talvez se devesse ao fato de que ela sentia “que o monopólio da cultura ia escapar a sua classe
social
22
”. Um fator a ser levado em consideração, se pensarmos que parte dessa mesma burguesia
iria enriquecer enlouquecidamente com o comércio cinematográfico, que incluiu muito tempo
depois os filmes antigos dos primitivos que ela rejeitou e condenou.
Tal estado de coisas - de desprezo de alguns pela primitiva produção ficcional – não impediu,
como sabemos, que o mercado cinematográfico continuasse a se estruturar. Em 1907 a companhia
produtora francesa Pathé modificou seus regimentos internos, e a partir dessas mudanças os filmes
não seriam mais vendidos (como pinturas, por exemplo), seriam locados. O chamado “Golpe de
Estado Pathé” levou as outras companhias, mais cedo ou mais tarde, a fazer o mesmo. Essa nova
ordem levou a um grande aumento do número de salas fixas, pois tornou o empreendimento da
exibição mais barato, ocasionando o início do fim da era ambulante do cinema (sobretudo nos
grandes centros) e marcando o início da transformação do cinema em uma grande indústria. Os
filmes aumentam de tamanho e em quantidade, os atores se profissionalizam (substituindo artistas
de circo ou de teatro), a técnica se desenvolve, a câmera passa a se mover, conquistar o espaço,
21
PINEL, Vincent.
Introductíon au ciné-club: Histoire, théorie, pratique du ciné-club en
France. Les Éditions
Ouvrièrs: Paris, 1964. P.17
22
Ibidem. P.22.
27
basicamente aumentando o número de filmes que (na lógica que estamos tratando aqui) seriam
desprezados e condenados como indignos de serem conservados
23
.
Em um outro pólo, na França, pouco antes da transformação do cinema em grande indústria, em
função de uma crise que levou a um declínio do público, houve uma tentativa, um tanto quanto
obtusa, de melhorar a qualidade do espetáculo cinematográfico buscando novos tipos de público,
além do “populacho”. Em 1908 André Calmettes e Charles Le Bargy criaram uma associação para
esses fins, a Le Film D’Art. Seus criadores fazem apelos pela colaboração de escritores, artistas e
comediantes de renome para atingir seus intentos. Mas os resultados foram ruins, uma vez que
estas produções não encontraram novas formas de expressão no cinema, limitando-se muitas vezes
ao chamado teatro filmado. Para Pinel, o aporte do film d’art só é válido no sentido de ter sido uma
tentativa de melhorar a qualidade do espetáculo cinematográfico do ponto de vista artístico. Seu
erro fatal foi não ter compreendido a vitalidade do que hoje chamamos de primeiro cinema, seu
apelo popular, ou antes, a forma como estabelecia contato e comunicação com o grande público
24
.
Mas ele é, no final das contas, muito inferior àquele dos primitivos cuja importância será
descoberta bem mais tarde.
O filme continuou sendo olhado com maus olhos por esse público que os fundadores do Film d’Art
queriam converter, afirma Pinel, e o desprezo para com o cinema tout court teve ainda um grande
agravante. Nas “regras do jogo do mercado” o produto de ontem, que não vende mais, não serve
para muita coisa. Isso detonou uma bomba sobre toda essa produção rejeitada talvez pelos únicos
que poderiam ter feito algo para aumentar-lhes as chances de sobrevida (seus próprios proprietários
legais). Mas a ideologia do progresso e o culto desenfreado dos desenvolvimentos tecnológicos
fizeram com que rapidamente o velho se tornasse cada vez mais cedo. Com o final da Primeira
Guerra Mundial tudo o que o espectador adulto tinha visto quando criança tornou-se antiquado, e
23
Sobre o “Golpe de Estado Pathé”: Cf: SADOUL, George.
História do Cinema Mundial
. São Paulo: Martins Fontes,
1963. V.1 Capítulo V.
24
Qualquer semelhança com o caso das chanchadas no Brasil
não é
mera coincidência.
28
não apenas no cinema. A tragédia já seria suficiente, mas havia ainda coisa pior. É que a película
impressa era, aos olhos da indústria em geral, uma fonte de sais de prata e nitrocelulose, assim
“como velhos cavalos que partem para o abate depois de uma vida de trabalho, o cinema dos
primitivos era vendido maciçamente para a indústria química”. Fato este que explica o porquê da
porcentagem de perdas ser avaliada sob o plano mundial, no período entre 1895 e 1915, em 80%
25
.
A cultura cinematográfica vem dos filmes: cineclubismo, vanguardas históricas e o “nascimento
de uma arte”.
A empreitada de alguns intelectuais na década de vinte, sobretudo na França e na Rússia, visando a
elevação e o reconhecimento do cinema à categoria de arte é outro ponto decisivo - ao lado das
experiências dos primeiros arquivos e coleções de filmes - no desenvolvimento histórico das
cinematecas. Isso ocorreu primeiramente em função da valorização do cinema de ficção levada a
cabo por esses mesmos intelectuais, pela crítica cinematográfica por eles inaugurada, e por meio da
luta contra a lógica estritamente mercantilista aplicada ao cinema pela grande indústria então
nascente.
A idéia de uma associação onde o cinema fosse objeto de interesse e de debate é também, no
entanto, tão antiga como o cinema, e mesmo com poucas informações sobre os primórdios do
cineclubismo, Laurent Mannoni esclarece que, ao contrário do que muitos pensam, o terno cine-
clube não foi criado por Louis Delluc em 1920, e que desde de muito cedo se tem notícias de
grupos de pessoas ligadas ou não diretamente ao cinema, que se reuniam em sessões na maioria das
25
BORDE, Raymonde, Les cinémathèques. P. 17. Segundo Borde, até mesmo George Meliès destruiu cópias de seus
filmes que estavam em seu poder, provavelmente com o fim acima descrito. Se por um lado é perceptível em atos
como esse a amargura de um artista arruinado e desprezado, escreve Borde, é preciso notar também que Meliès reagiu
“como um chefe de empresa que liquida o invendável e seu comportamento dramático se inscreve na lógica dos
negócios.”Um fim trágico para parte da produção de um dos maiores cineastas de todos os tempos. Mais lamentável
ainda, é o fato que provavelmente muitos outros tenham seguido os seus exemplo.
29
vezes privadas, para debater filmes e o cinema de forma geral de modo não necessariamente
diverso daquele que o cinema era entendido em seus primeiros anos.
26
Se o desprezo pelo cinema em alguns setores da sociedade era patente na primeira década do
século – sobretudo na alta burguesia – muita coisa começaria a mudar, principalmente ao final da
1ª Guerra Mundial, quando do aparecimento na França e na URSS dos filmes de Chaplin, em um
primeiro momento, e depois dos filmes de Griffith (Nascimento de uma Nação de 1914 e
Intolerância de 1916), dos de Ince e Mack Sennett, Le Forfaiture (1916) dos de De Mille, e vindo
dos paises escandinavos, Les pages du livre de Satan (1919) de Dreyer, e Les Proscrits (1917) de
Sjöström. Griffith, como sabemos, é considerado o criador do cinema narrativo clássico que
revolucionou a forma de se fazer cinema e apontou os rumos para o que havia de “específico” no
mesmo. No caso de Chaplin, segundo Vincent Pinel, foi uma extraordinária revelação e “a
demonstração de que o cinema poderia ser mais do que o suporte da besteira e da mediocridade,
não apenas uma promessa, mas a evidência do nascimento de uma nova arte” Os filmes acima
citados, de Griffith, De Mille, etc., só vinham confirmar tais impressões. Desta forma, aqueles que
buscavam e defendiam a elevação do padrão estético dos filmes encontraram suas primeiras
grandes referências
27
.
A França é um grande exemplo para nós em relação ao movimento cineclubista por ter sido o
principal (mas não único) modelo de cinemateca e de cineclube adotado por Paulo Emilio.
Podemos inicialmente dividir a história do cineclubismo francês em dois momentos: em primeiro,
o de seus pioneiros, que são aqueles que consolidam esse tipo de entidade civil ou agremiação, e
que se voltaram para o âmbito estrito da produção e da crítica; e num segundo momento um
26
MANNONI, Laurent. Cine-Clubs et Clubs, in: Dictionnarie du cinéma mondial: mouvements, écoles, courants,
tendences et genres. Sous la direction d’Alain et Odette Virmaux
. Éditons du Rocher. Jean-Paul Bertrand Éditeur.
1994. P.170. Griffo Nosso.
27
É preciso fazer um reparo. Paralelamente ao desenvolvimento do cineclubismo na França e no mundo, continuaram
aparecendo e se desenvolvendo tentativas de constituição de arquivos de filmes, muitas vezes já chamados de
cinematecas. O que nos interessa aqui é, todavia, a contribuição decisiva que o movimento cineclubista deu ao
desenvolvimento histórico das cinematecas, no sentido atribuído por Raymond Borde. Embora Borde pareça minimizar
esse papel.
30
cineclubismo que se engajou mais abertamente nas questões e debates da sociedade, aliando-se a
grupos políticos, partidos, etc.
No grupo que chamamos de pioneiros, os nomes que mais se destacam na historiografia clássica
são os do francês Louis Delluc e o do italiano (radicado na França) Ricciotto Canudo. Existem
diferenças na atuação dos dois, mas ambos se completam. Tudo tem início na crítica jornalística e
no posterior surgimento de revistas especializadas, criadas por eles mesmos, visando seus intuitos
(já mencionados) para com o cinema. Delluc é tradicionalmente considerado o precursor. Deixando
de lado um possível exagero de muitos franceses (de que Delluc é o “criador” da crítica
cinematográfica), podemos afirmar com tranqüilidade que sua atuação e escritos sobre cinema
publicados em várias revistas (desde do final da década de 1910) contribuíram decisivamente para
um novo tipo de entendimento e debate em torno do filme e de seu lugar social. Eram artigos
teóricos e críticos que conjugavam entusiasmo com perspicácia analítica, onde Delluc procurava
discernir e precisar as novas vias que se abrem ao cinema visando desde então uma educação do
público
28
.
Mas Delluc não se limita aos seus escritos e passa para detrás das câmeras, tentando
entender e descobrir mais sobre os segredos do cinema, realizando vários filmes dentre o quais O
Americano; O Silêncio; Trovão (os três de 1920) A mulher de lugar nenhum e Inundação de 1922,
além de roteiros como o de Festa Espanhola (1919, de Germaine Dullac).
Uma arte nova precisa, porém, de um novo público. Em 1921, Delluc criou uma associação com o
nome de uma de suas revistas, Ciné-club, que buscou debater, em um âmbito profissional (e neste
sentido um tanto quanto restrito a este meio profissional) os caminhos para o desenvolvimento da
linguagem cinematográfica, por meio de conferências e debates entre cineastas e a crítica. Além
disso, “o Ciné-Club têm o mérito de ter descoberto na França a Escola Expressionista Alemã
projetando pela primeira vez neste país o filme de Robert Wiene, O Gabinete do Doutor
28
PINEL, V. Op. Cit. P.24. Grifo Nosso.
31
Caligari
29
”.
A ação de Ricciotto Canudo é um pouco diferente. Famoso por atribuir o título de 7ª Arte ao
Cinema em seu Manifesto das Sete Artes, Canudo buscava também o melhoramento técnico e
estético da linguagem cinematográfica. Contudo, para ele, tal contribuição e melhoramentos, só
poderiam advir do contato do cinema com os realizadores de outras áreas do campo artístico. “Sem
preconceitos para com uma produção anônima e muitas vezes confusa, Canudo procurou encontrar
as leis gerais de orientação do novo meio expressivo, tendo assim como Delluc a perspicácia de
perceber que se existia uma arte que não admitia ainda a teoria, esta era o cinema, em função de
seu nascimento ainda muito recente
30
”. A novidade é que Canudo buscou então o apoio de
escritores, pintores, escultores e músicos acreditando ser esse o único caminho para o
melhoramento da produção cinematográfica. Os resultados de seus esforços, como sabemos estão
muito longe de terem sido em vão. Para atingir seus fins, ele criou em março de 1921 o Clube dos
Amigos da Sétima Arte (CASA). Seja promovendo conferências e debates ou jantares mundanos
em sua própria casa ou em outros lugares de Paris, Canudo congregou em torno de si e de seu
cineclube uma quantidade enorme de artistas, pintores, escultores, músicos, etc., promovendo
assim debates que congregavam pessoas dos mais diversos segmentos do campo artístico e
intelectual: grandes realizadores de filmes comerciais, cineastas de vanguarda, escritores e críticos
de arte em geral
31
.
É ponto passivo que as iniciativas de Delluc e Canudo são fundamentais para o surgimento das
manifestações de vanguarda no cinema. As ações de ambos se congregam e se completam nesse
sentido: um ampliando o debate estético com os profissionais do campo, e o outro atraindo para
esse debate as possíveis colaborações de artistas de outras áreas. O fato é que tais iniciativas
encorajaram dezenas de outras lideradas por críticos, cineastas e artista em geral que foram
29
PINEL. V. Op. Cit. P.24.
30
ARISTARCO. Guido. História das Teorias Cinematográficas V.1. Lisboa: Editora Arcádia Limitada, 1961.
31
MANNONI, L. Op. Cit. P.171.
32
decisivos para esse tipo de cinema (experimental, autoral, de vanguarda), e não só na França. Uma
enumeração de todos esses cineclubes, criados a partir de então, nos levaria muito longe. Citemos
apenas alguns, na tentativa de dar uma perspectiva razoável do panorama de então, e de
acompanhar o desenvolvimento histórico do movimento.
O primeiro deles é o Club Français du Cinéma, criado por Leon Moussinac em 1923. Tal entidade,
assim como a de Delluc, visava sobretudo os profissionais da área. A novidade mais interessante, é
que no programa do clube redigido por Léon Poirier já encontramos reivindicações mais abertas
em defesa do diretor (enquanto autor) e contra o cinema comercial. O intuito da entidade era
promover uma integração dos esforços da classe cinematográfica, uma atividade basicamente
sindical, mas que, longe de ser corporativista, visava também a aproximação de artistas de outras
áreas com o cinema. Os pontos mais interessantes do programa expostos por Pinel, se referem por
um lado ao combate contra a lógica da proeminência do produtor ante o diretor cinematográfico –
da imposição de temas e roteiros para os filmes, por exemplo, e da necessidade manifesta do artista
de ter contato direto com uma crítica independente (desse modo atingindo o público de maneira
igualmente independente). Outro ponto importante na maneira de conceber uma entidade deste tipo
(cineclube) se refere ao caráter memorialístico e pedagógico do conceito, pois, segundo o
programa, poderiam sair das noites do Club Français du Cinéma, como outrora daquelas do Théatre
Libre, “iniciativas novas, convicções ardentes, energias criativas que rompam os canais do
mercantilismo e da rotina levando a arte muda tão alto quanto suas predecessoras
32
”. Assim como
para Delluc e Canuto, era preciso intervir no campo da produção.
O outro cineclube que citaremos aqui é resultado da fusão de vários outros. Trata-se do Ciné-Club
de France, de 1924, animado por Germaine Dullac. Uma série de cineastas da vanguarda francesa
passou pela direção desse cineclube até o surgimento do cinema falado. Foi um momento já de
apogeu dessa primeira fase do cineclubismo francês e também da própria produção dessas
32
PINEL, V. Op. Cit.
33
correntes artísticas (vanguardas) onde, nas palavras de um crítico da época, “já entre as vastas
catedrais, se erguem capelas onde a fé se exalta na dissidência
33
”. Era a consolidação do modelo de
cineclube, consagrado nesse momento, e que conhecemos até hoje. Apresentação do filme,
projeção e debates. E não apenas debates sobre o filme exibido. São organizadas paralelamente
séries de conferências sobre os mais diversos aspectos do cinema e artes (para ficarmos em um
âmbito mais restrito), retomando a tradição do CASA de Canudo e levando-a adiante.
A partir deste momento, outra novidade parece ter sido assimilada e se tornado comum, tendo sido
fundamental para a formação do conceito de cinemateca: a exibição de filmes antigos, reabilitando
filmes esquecidos, censurados, mas também criando espaço para a produção contemporânea,
permitindo que os próprios artistas pudessem conhecer melhor suas obras. Pinel afirma que o Ciné-
Club de France exibiu pela primeira vez na França o Encouraçado Potenkim (de Sergei Eisenstein)
em 1926 aumentando a temperatura no fervor propagandista das vanguardas
.
Para nós, isso tem um
desdobramento direto. Entramos na “segunda época” da história do cineclubismo francês onde,
como afirmamos mais acima, ocorre um engajamento mais aberto nas questões e debates da
sociedade levando tais entidades, cineastas e muitos outros envolvidos nas atividades dos
cineclubes a aliar-se a grupos políticos, partidos e movimentos populares. É fundamentalmente
dessa tradição a vinculação dos projetos de Langlois e Paulo Emilio.
O mais iminente representante do primeiro momento dessa fase é o cineclube Les Amis de
Spartacus. O núcleo da entidade foi a associação operária Belleviloise que, depois de criar uma sala
de cinema em 1928, incitou Léon Moussinac, dentre outros, a promover seções e debates sobre o
cinema. Até então os cineclubes voltavam-se para um público de elite, e não escondiam isso em
seus programas e manifestos. Aqueles que reconheciam no cinema uma arte eram considerados por
eles mesmos uma elite do público cinematográfico. O ensejo dos “spartaquistas” era criar um
movimento de cultura cinematográfica verdadeiramente popular. A programação: obras primas
33
Alexandre Arnoux. In: PINEL. V. Op. Cit. P. 27.
34
soviéticas interditadas pela censura. O público na estréia: 4000 pessoas em um cine-teatro de 2500
lugares. A conseqüência: perseguição da policia por perturbar a ordem pública. “A experiência foi
breve, mas frutuosa. Ela provou que o grande público estava pronto a esperar do cinema mais do
que um ópio. Era preciso então lhes oferecer outra coisa
34
”.
Os Amigos de Espartacus não foram nem o primeiro, nem o último movimento de massas que
incluía o cinema na sua ordem do dia, mas sem dúvida a entidade é um marco na história do
cinema. Em 1936 parece o Ciné-Club de Paris, de Jacques Loew e Jacques Aubin, depois o Club
des Cinq, de Jean Nery e Robert Chazal. Todos seguindo essa mesma linha de aproximação com
movimentos políticos, sindicatos, etc. Outro movimento importante surgido no bojo desta
efervescência foi o Cine-Liberté, que teve a participação de Henri Jeanson, Léon Moussinac,
Calude Aveline, Louis Cheronnet. O movimento participou do financiamento do filme La
Marseillaise de René Clair, engajando-se ativamente dos combates do Front Populaire, também
com reivindicações mais específicas para os profissionais do campo cinematográfico: “União pelas
atualidades populares; união por produções de cooperativas livres e independentes; união pela livre
distribuição dos melhores filmes sociais e dos filmes proibidos (interditados); união contra a
censura burocrática; união pela defesa e pela renovação do cinema francês.” O movimento chegou
a editar um jornal, e lembra bem aquela dos Amis de Spartacus, bem como, de forma um pouco
mais distante, a da Cooperativa do Cinema do Povo, sociedade criada por anarquistas em 1913
35
.
Havia também outros tipos de cineclubes, como aqueles que descontentes e desconfiados com o
advento do cinema falado privilegiaram o culto à bela época do filme mudo, dedicando-se
exclusivamente a esse tipo de cinema. Esta atitude um tanto quanto radical levou muitas vezes
essas entidades a um snobismo igualmente radical. No entanto, a desconfiança desses cineclubes
em grande medida se justificava, pois, por muito tempo, se acreditou que as duas técnicas poderiam
conviver em harmonia: o mudo e o falado. Mas a lógica do mercado levou ao desencadeamento de
34
PINEL, V. Op. Cit. P.31.
35
um processo onde a segunda matou a primeira, o talkie matou o filme mudo. Ao menos assim se
acreditava. Entidades como o Chaplin Club, criado no final da década de 1920 no Rio de Janeiro,
por Plínio Sussekind Rocha, Octávio de Farias, dentre outros, fazem parte deste movimento. Plínio
Sussekind Rocha como sabemos foi aquele que iniciou Paulo Emilio Salles Gomes nos “mistérios
da arte muda”. O Chaplin Club, foi um modelo, assim como fora o cineclubismo francês (do qual
traçamos um breve esboço aqui) para Paulo Emilio e alguns amigos criarem em 1940 o Clube de
Cinema de São Paulo, protocélula da Cinemateca Brasileira.
Enfim o conceito se molda.
A indústria cinematográfica, juntamente com toda a economia capitalista global, entrou em colapso
em 1929, e para piorar a situação, a crise na economia coincidiu com uma crise de criatividade
artística (dada, por vezes, sua inacreditável limitação neste campo). Para sair dessa situação, a
indústria apostou todas as suas fichas nos talkies (referência às fitas do cinema falado). O talkie
foi uma novidade que se mostrou fantasticamente rendosa logo que os irmãos Warner começaram a
emplacar sucessos após sucessos, levando em contrapelo uma “forçosa” evolução dos gostos do
público que condenava cada vez mais as produções de vanguarda (e o cinema silencioso de modo
geral) ao esquecimento. Era a consolidação do cinema narrativo-dramático como padrão da
produção industrial no cinema.
Não se trata de fazer aqui um julgamento sumário desse padrão, pois é preciso lembrar que esse
cinema tem qualidade, ou antes, houve autores e cineastas que levaram e levam esse padrão a
níveis bastante elevados. Mas o fato é que a afirmação desse padrão em escala industrial relegou
outras formas de se fazer cinema a um ostracismo bastante pragmático da parte da indústria, quer
35
MANNONI, L. Op. Cit. P.172
36
dizer, buscava-se neste cinema, digamos, alternativo, elementos que pudessem contribuir para
aquele industrialmente considerado válido.
O advento do cinema falado é o último grande fator de formação do conceito de cinemateca
moderna cunhado por Raymond Borde. A aceleração histórica/ técnica do talkie colocava em
perigo (e em xeque) os projetos daqueles que não caminhavam no sentido mesmo da mais simples
e pura mercantilização da cultura, representada sempre em maior medida pela grande indústria.
Dessa forma, o movimento cineclubista passou a se posicionar para algo novo e específico: a
defesa do cinema enquanto arte, diante de uma ameaça já em consolidação, ou melhor, já em pleno
curso. A destruição e o desaparecimento da tradição (dos próprios filmes) na qual se baseavam suas
respectivas experiências. Tal consciência, de tal destruição, contudo, demorou a tomar corpo. As
destruições, como vimos, já estavam a galope. No âmbito da grande indústria, o talkie era, em um
primeiro momento, a encarnação absoluta da lógica do mercado em busca de novidades. Ameaçava
a memória do cinema, e em função de sua parafernália publicitária e ideológica, ajudava a ofuscar
as destruições já em curso muito antes do Cantor do Jazz – tradicionalmente considerado o
primeiro filme totalmente falado.
Se destruições já estavam em curso antes mesmo que estetas e cinéfilos de modo geral pudessem se
dar conta disso - já comentamos que as perdas para o primeiro período do cinema no plano
mundial atingiram 80% da produção - agora era diferente: a água chegava ao pescoço.
Para
compreender o início disso é preciso refletir um pouco sobre as perdas que ocorriam
sistematicamente naquele momento. Refletir sobre o desespero de estetas artistas e cinéfilos (na
melhor acepção do termo) ao ver desaparecer literalmente uma categoria de expressão artística que
eles ajudavam a criar, e que satisfazia e impulsionava um grande grupo humano para conquistas
estéticas (e sociais) cada vez maiores em detrimento de uma linguagem que apenas começara a
nascer:
37
Mostrem-nos os primeiros filmes franceses, os grandes filmes cheios de poesia dos suecos,
a cavalgada épica de Rio Jim e a verdadeira menininha que foi Mary Pickford, mostrem-
nos os bonds de Douglas quando ele não era nem pai de família nem senhor de Hollywood
e os primeiros filmes do gigante adormecido que era na ocasião o grande Griffith! O que
responderemos nós? (...) Destruídos, destruídos, isto é de fato possível? (...) Qual homem
clarividente, generoso, assumira a direção desta missão? Quem salvará a arte
cinematográfica e lhe garantirá a duração a qual ela tem direito, consagração suprema e
indispensável? (...) Quem agirá? Quem pegará em suas mãos a direção do movimento? O
tempo urge terrivelmente. É preciso que nos apressemos se não quisermos ver tudo
destruído ou mutilado, se nos quisermos salvar o que foi, malgrado os talkies de hoje em
dia, uma verdadeira plenitude de beleza e de harmonia, o cinema de ontem, a arte
silenciosa e mágica
36
.
A partir desse momento, as coisas se precipitam, e um ponto central no desenvolvimento histórico
do conceito de cinemateca é o tipo programa proposto pela mesma Lucienne Escoubé em 1932. Tal
programa apareceu em um dos espaços no qual ela escrevia, o hebdomadário francês Pour Vous.
Trata-se de uma definição enxuta do conceito de cinemateca moderna. Fundamentalmente, envolve
a criação de um grupo de pesquisa que se proponha a prospectar filmes quais quer que sejam suas
proveniências, suas tendências e suas épocas, o armazenamento desse material original e a feitura
de cópias deles, a criação de arquivos de não-filmes (biblioteca, acervo fotográfico, cartazes, etc.) e
uma sala de repertório para o arquivo. Finalmente era preciso trabalhar para facilitar o acesso a
todo o material do arquivo a especialista, técnicos e pesquisadores
37
.
É interessante notar que a definição concisa de Escoube, embora deixe visíveis os intuitos
democráticos inerentes ao conceito, não trata sobremaneira da parte pedagógica da difusão, de
como e para quem seria feita a difusão. Tal debate nós fornece um bom mote para uma das
características centrais do conceito. É preciso deixar claro que o entendimento do conceito de
cinemateca moderna implica no procedimento técnico/ metodológico, de onde se pôde tirar, ao
longo da história as mais diversas formas de uso do ponto de vista político/ ideológico do
36
ESCOUBÉ, Lucienne. Apud: BORDE, R. Op. Cit. P.54.
37
APUD: BORDE, R. Op. Cit. P.55. Grifo Nosso.
38
patrimônio da cultura cinematográfica: do socialismo ao nazi-fascismo passando evidentemente
pelo liberalismo capitalista. Em primeira instância, o conceito é técnico, mas em última ele é
político.
O Estado e até mesmo homens de produtoras (classe tradicionalmente mais difícil de sensibilizar)
começavam a se manifestara favor das cinematecas. Mas o trajeto não é assim tão uniforme. O
exemplo francês é paradigmático. Quando o Estado quis (nesse país) investir na idéia, nessa fase
ainda embrionária das cinematecas, ele o fez por vias um tanto quanto personalistas e errôneas, ao
menos na opinião da Raymond Borde. A escolha do nome para conduzir o projeto teria sido
equivocada, pois subjetiva no sentido de ter sido escolhida alguém próximo do poder, mas,
sobretudo despreparada para tanto.
Tomamos aqui o exemplo citado por Borde como o de algo que ocorreu com freqüência na história
das cinematecas. A idéia de cinemateca não é simples, e as inúmeras confusões advindas da
incompreensão do que de fato vem a ser uma instituição desse tipo pode, e constantemente trouxe
enormes prejuízos ao patrimônio. Pois, a cada malogro por pura incompetência e incompreensão
do era uma cinemateca, mais difícil ficava convencer alguém a colocar dinheiro nessa “estranha
idéia”. Concomitantemente, as chances percentuais de recuperação dos filmes diminuíam, uma vez
que, sobretudo nos primeiros tempos dos arquivos (até pelo frágil e auto-inflamável suporte de
nitrato de celulose dos filmes) as descobertas se davam muito por sorte e por acaso; e, sobretudo,
sorte e acaso que ocorriam a tempo.
Voltando ao caso francês, que é particularmente importante porque acabou servindo como o
modelo político de cinemateca para Paulo Emilio. Borde comenta o caso: “o pouco que
conhecemos esta artista (…) a coloca nas asas do poder”. Seu nome era Albin-Guillot, uma ex-atriz
do cinema mudo. Poderíamos condenar a escolha do governo francês? Em que sentido? Teria ele
desprezado pessoas melhores capacitadas para tanto? Para Borde parece não restar dúvidas sobre
isso. Quaisquer que tenham sido seus méritos artísticos, como arquivista ela foi inerte. Pior que
39
isso caiu nas malhas do seducionismo, do falso glamour bem característico do rico mundo dos
espetáculos cheio de próteses e pastiches. Uma frivolidade mundana diametralmente oposta às
necessidades técnicas da arquivística que teoricamente teria feito com que o Estado decidisse não
mais investir no campo da arquivística fílmica. A aventura liderada por ela é, para Borde, a origem
de todo mal estar e problemas das cinematecas na França e teria empurrado a Cinemateca Francesa
para o status inicial ridículo de instituição privada. “A presença funesta desta senhora é assim a
origem de todo o problema francês com as cinematecas, que ela falseou durante um quarto de
século. Ajunto que tenho informações que George Franju a tinha ele mesmo por uma doida?
38
”.
A França ainda esperaria pelo menos quatro anos para ter sua primeira cinemateca, e ela não seria
pública, mas sim um organismo privado. Nesse meio tempo, os argumentos foram se apurando.
“No que se transformaram seus filmes preferidos?” pergunta o crítico Maurice Bessy. Ele mesmo
responde “em esmalte de unhas, na pintura de uma carroceria
39
”, etc. É importante comentar esse
primeiro malogro francês, pois em boa medida isso iria futuramente enfraquecer Henri Langlois
nos debates posteriores travados no âmbito da Federação Internacional de Arquivos de Filmes
(FIAF).
As primeiras cinematecas modernas: Tendências e polarizações na trajetória do conceito
A primeira cinemateca moderna é a de Estocolmo em 1933, e foram fundamentais para a história
da cinemateca sueca dois personagens de papeis centrais no desenvolvimento dos arquivos no
mundo todo: um crítico de cinema e um mecenas. O Estado não demonstrou nenhum interesse
inicial pelo trabalho desenvolvido por Robin Hood (pseudônimo de Bengt Idestam-Almquist, o
crítico sueco em questão) e a cinemateca sueca que teve um inicio glorioso quase desapareceu por
falta de dinheiro. Tal fato não aconteceu, pois Robin Hood persuadiu o diretor do Museu de
38
BORDE, R. Op.Cit. P.57. George Franju foi um dos fundadores da
Cinémathèque Française
.
40
Tecnologia de Estocolmo a aderir à nova aventura: “O arquivo estava salvo, mas esta história é
exemplar pois ela mostra ao seu modo a indiferença dos poderes públicos, que tinham o cinema
como uma arte da plebe, um divertimento de nível inferior, e coisa de intelectuais
40
”.
Tomamos a Suécia como ponto de partida para a busca das tendências que seguiriam então as
cinematecas, para além de seu interesse comum: preservar e difundir cultura cinematográfica.
Resta saber por que e como isso foi feito. A política é a chave para entender essas perguntas, bem
como as diferenças entre os arquivos, e entre pessoas com ao menos alguns interesses
fundamentais em comum. Tentaremos aqui estabelecer as polarizações políticas seguidas pelas
cinematecas, para posteriormente analisar onde, e em que medidas, a experiência brasileira se
alocou aqui ou ali, ou ainda, em ambos. Se existe fatores subjetivos que ligam todas as
experiências históricas das cinematecas, existem também interesses e conseqüências políticas disso
em função de determinadas conjunturas.
A experiência alemã é extremamente peculiar pela dimensão da importância da propaganda de
massa no regime nazista, e embora essa não seja a única razão para a significação do
Reichfilmarchiv na história das cinematecas, é este o seu caráter central até o pós-guerra, quando
os alemães perdem peso político por algum tempo na FIAF. O Reichfilmarchive é de 1934. Sua
contribuição para história das cinematecas será, sobretudo técnica e teórica, o que ocorreu em dois
sentidos: no desenvolvimento da teoria e prática para a conservação de filmes, e na paradoxal
salvaguarda de um patrimônio imenso e multinacional durante a Segunda Guerra Mundial
41
. O que
espanta bastante no caso alemão é a estrutura jurídica, bem como a estrutura física necessária para
a preservação de filmes rapidamente estabelecida pelo Reich. A legislação proibia a destruição de
negativos, cópias ou quaisquer outros materiais fílmicos sem a autorização do Reichfilmarchiv cujo
diretor era Frank Hensel (um antigo dono de salas de cinema indicado por Goebels).
39
Idem.
40
BORDE, R. Op. Cit. P.59.
41
Outras coisas impressionam ainda nas questões jurídicas e que envolvem o entendimento que tal
legislação fazia do filme. Uma delas é a de que o filme preservado deveria servir como estimulo à
produção artística nacional. Goebbels declarou que “os filmes que forem reunidos deveram servir
de exemplo para a indústria do filme, pois sem elementos de comparação, a ambição artística
desaparece
42
”. Caminhando junto com questões ideológicas, acreditamos que tal avanço, ou tal
primazia alemã no âmbito técnico se deve à tradição teórica embrionária advinda dos primeiros
arquivos e coleções de filmes que tratamos mais acima. Se os elos que ligam os primeiros arquivos
às cinematecas modernas são concernentes à teoria arquivística, Berlim aparece como o primeiro
grande exemplo disso. Segundo Raymond Borde, o arquivo alemão estava ao menos dez anos à
frente dos outros em relação à sua estrutura física. Já em 1934 contava com um blockhaus de 144
metros quadrados, em 1938, tinha esses bunkers protegendo os filmes do fogo, do calor, da
umidade, etc. Nesse ano, o arquivo já tinha mais de vinte funcionários. “Ele classificava os filmes
por número de entradas, por gênero, por título, datas de filmagens (realização) e cineastas, e se
esforçou também por identificar tudo o que havia sido produzido antes de 1920
43
”. É realmente
impressionante: “Nesta aurora frágil, plena de latas enferrujadas e de esperanças românticas,
quando alguns amadores criaram as primeiras cinematecas, Berlin já estava lá com sua estrutura,
suas coleções, seus métodos (…) Se o arquivo tinha os meios, é o que nos nele identificamos como
parte de uma política de conjunto
44
”.
O paradoxo berlinense trouxe benefícios ainda maiores. Em 1935, Berlin foi sede de Congresso
Internacional de Cinema – reunindo delegados de mais de vinte países, e abrangendo todas as áreas
do campo cinematográfico. Não temos notícias se esse foi o primeiro congresso desse tipo, mas
nele algo importante aconteceu. Uma monção foi aprovada pela unanimidade dos delegados
41
Paradoxal, pois certamente seria de comum aceite a idéia que os nazistas destruíam tudo aquilo que não condizia
com sua doutrina. O que ocorreu foi bem diferente disto. Diríamos mesmo o contrário.
42
Apud: BORDE, R. Op. Cit. P. 60.
43
BORDE. R. Op Cit. P.61.
44
Idem. Grifo nosso.
42
europeus: monção esta concernente à necessidade de investimento na área de preservação de
filmes, da criação e manutenção de arquivos e cinematecas. O texto, do ponto de vista da história
do desenvolvimento teórico/ metodológico das cinematecas é um marco. Ele reconhece o valor de
patrimônio artístico/ cultural da mercadoria cinematográfica, e anuncia acordos envolvendo
arquivistas e detentores legais dos filmes. No entanto, o documento foi votado sem a anuência do
todo poderoso braço do capitalismo americano, a Motion Picture Association of America. Na
prática, o veto da MPAA transformou a monção de Berlin em letra morta
45
.
A influência do liberalismo capitalista traria conseqüências ainda maiores na primeira grande
polarização de peso para a história da Cinemateca Brasileira na FIAF, que começa a se formar em
torno de Londres/ Nova Iorque, com a aliança de Ernest Lindgren (Londres) e Iris Barry (Nova
Iorque). O ponto inicial a ser levantado aqui de início é que se trata de um pólo de cinematecas
mais legalistas, no sentido de proteção dos direitos autorais; cinematecas que contavam com bons
recursos financeiros e eram bancadas por instituições de prestígio em seus países.
Em Londres, o financiador do projeto era o governo inglês, e a experiência na arquivística esta
ligada a um projeto maior, o do British Film Institute (que posteriormente seria o modelo de
Alberto Cavalcanti para o Instituto Nacional de Cinema). Em Nova Iorque, parte da grande elite
norte-americana, bem representada pela figura de Nelson Rockfeller. Ponto interessante sobre o
MoMA é que Laurent Mannoni aponta como fonte de recursos para sua criação – além da
Fundação Rockfeller e um tal John Hay Whitney (presidente da Selznick International) – a Motion
Pictures Producers and Distributors of América, que no mesmo ano da criação da Film Library do
MoMA, votou contra a resolução do congresso de Berlin (1935) que defendia as cinematecas e os
45
BORDE, R. Op. Cit. Borde lembra ainda que quarenta e cinco anos depois, quando a UNESCO negociou a
Recomendação sobre a salvaguarda e a conservação das imagens em movimento
novamente estava lá a MPAA para
atacar as cinematecas em nome da propriedade comercial do produtor sobre o produto. Berlim, como afirmamos,
trouxe uma contribuição em princípio exclusivamente técnica para a história dos arquivos e cinematecas (que
colaborou para a salvaguarda de um enorme patrimônio). Mas, com a Guerra, seu papel político perdeu, ao menos por
algum tempo, quase todo o peso nos debates que se seguiriam na Federação Internacional de Arquivo de Filmes no
pós-guerra. Assim, não podemos colocar a cinemateca do Reich no escopo mais pontual que buscamos aqui.
43
arquivos de filmes
46
. Mesmo assim, ambas são experiências de cinematecas que cumpriam sua
missão com a tônica recaindo na preservação (em critérios aparentemente puramente técnicos).
Ernest Lindgren é a figura de proa da Film Library londrina criada em 1935, e no desenvolvimento
teórico das cinematecas. Ele desenvolveu metodologias na área da arquivística fílmica que são
referências até hoje, mesmo com todas as mudanças ocorridas no âmbito técnico do suporte e da
emulsão do filme. O importante no caso é perceber como posteriormente seu legado técnico/
ideológico será utilizado no seio da FIAF como justificativa para a derrota final de outros projetos
de cinemateca, como a Francesa de Henri Langlois e a Brasileira de Paulo Emilio.
Também 1935 é o ano de nascimento do Departament of Film do MoMA de Nova Iorque (criado
em 1929). Esse departamento (origem da Filmoteca do MoMA) foi criado e comandado de início
por uma mulher: Iris Barry (outra das personalidades que cumpriram o papel fundamental na
criação dos arquivos e cinematecas no mundo, e posteriormente ajudaram decisivamente na criação
e filiação de novos arquivos e cinematecas a FIAF). Apoiada em sólida estrutura museológica e
recursos suficientes para tanto, Barry valeu-se de sua impressionante capacidade de articulação
política, conseguindo o estabelecimento de diversos acordos com as grandes companhias
cinematográficas americanas, possibilitando um avanço enorme na formação da coleção de filmes
do museu. Afirmamos que a tônica deste pólo (Londres/ Nova Iorque) era o legalismo, boas
condições financeiras e a preservação. Iris Barry é conhecida, todavia, por ter sido uma das
primeiras, no âmbito das cinematecas, a realizar e sistematizar projeções públicas dos filmes da
coleção nova-iorquina.
Por outro lado, para pontuar o conflito em torno do conceito que começa a se formar nesse período,
podemos apontar Milão, Paris e Bruxelas como sendo o outro pólo de debate na FIAF, qual seja: a
tensão entre preservação e a difusão dos filmes e de cultura cinematográfica em geral. O
fundamental aqui é que Milão, Paris e Bruxelas têm experiências parecidas no que toca a um ponto
46
MANNONI, L.
Histoire de la Cinématèque Française
. P.26.
44
específico: as três cinematecas tiveram origem de cineclubes e cultivavam tal herança. A
Cinémathèque Française surge oficialmente em setembro de 1936, mesmo ano de criação do
Gosfilmfond na União Soviética.
A situação e o significado da II Guerra para arquivos e cineclubes
A vitória dos aliados na II Guerra Mundial teve significados diretos para as cinematecas, grosso
modo, era o início da vitória do modelo econômico/ cultural norte-americano, malgrado a Guerra
Fria. O debate no âmbito da FIAF foi evidentemente complicado pela eclosão da II Guerra
Mundial e, durante o conflito, somente uma cinemateca foi criada. Trata-se de Cinemateca Suíça
criada em 1943.
O país era neutro no conflito, o que o colocava em uma exceção na conjuntura européia no
momento. Georg Schmidt, fundador da instituição, era um colecionador de artes-plásticas que
estava antenado (por meio do MoMA de Nova Iorque) com as idéias que alçavam o cinema ao
status de arte como as outras, por meio de uma institucionalização em um Museu. Seu outro
fundador, Peter Baechlin, era economista e cinéfilo apaixonado, formado nesses domínios por um
cine-clube muito antigo, que passou a ser proprietário de uma espécie de sala de ensaio ou de arte,
avant la lettre, ativa na Basiléia desde 1932. Schmidt e Baechlin, (aos quais se juntou um
colaborador de Schmidt, Werner Schmalenbach) praticavam um pensamento de esquerda não
dogmático. Amavam a arte abstrata e não o realismo socialista. Se eles tiveram a idéia de fundar os
arquivos como seção de museu., foi porque os poderes públicos não se preocupavam muito em
ajudar legalmente e financeiramente os arquivos de filmes. É comum na história das cinematecas a
ajuda vir a conta-gotas. A instituição conseguiu um pequeno apoio financeiro que, depois de 1945,
45
lhes foi retirado. Eles estavam à esquerda e a situação política internacional (por conseqüência
local) começava a mudar
47
.
Na Itália, durante a Guerra a Cineteca Milanese Mario Ferrari suspendeu suas atividades. O
acervo foi levado (provavelmente às pressas e não sabemos em que condições) para uma fazenda a
quarenta quilômetros de Milão. O acervo passou o período da guerra praticamente sem problemas
em seu abrigo improvisado, mas ao final do conflito, o patrimônio do Centro Experimental em
Roma – outro exemplo – foi quase que inteiramente saqueado pelas tropas de ocupação, a
julgarmos pelas palavras de Humberto Bárbaro, no terceiro Congresso da FIAF em 1946. O acervo
foi recomposto com o passar dos anos, mas perdas significativas, de um filme sequer, como
Sperduti nel buio, de Nino Martoglio (1914) - considerado como precursor do neo-realismo -
podem ser sempre suficientemente graves
48
. Na Rússia, a situação, claro, também não foi fácil. O
conteúdo dos blockhaus foram rapidamente realocados quando da invasão das tropas nazistas, e
uma grande parte do patrimônio russo desapareceu então
49
.
Aqui a figura de Ernest Lindgren merece novamente muito destaque. Quando a Guerra era
iminente, o governo inglês exigiu que todo filme inflamável fosse removido da região
metropolitana de Londres. Lindgren, juntamente com seu auxiliar (adjunto) Harold Brown levou o
acervo para uma fazenda a 35 milhas de distância de Londres. Isolado durante o conflito Lindgren
além de proteger o acervo, iniciou o desenvolvimento de muitos dos procedimentos de estocagem
de nitrato, e de catalogação de filmes que seriam a base dos manuais de Preservação e Catalogação
da FIAF anos depois
50
.
Mas existem outras coisas importantes e curiosas, dignas de nota e estudos, no período que vai de
1939 a 1945 na história dos arquivos de filmes e das cinematecas. Uma delas é o fato de que a
Alemanha ocupou a presidência da FIAF, no período, na figura de Frank Hensel, diretor do
47
BUACHE. F. Apud: BORDE, R. Op. Cit. P.86.
48
BORDE, R. Op. Cit. P.87
49
MANNONI, L. Op. Cit. P.29
46
Reichfilmarchiv. Existe um pouco de especulação na relação entre o colaboracionismo francês com
a ocupação da França pela Alemanha e o aumento vertiginoso da coleção da Cinemateca Francesa
no período da guerra. O fato, porém, é que apesar do status ambíguo durante a ocupação,
dificilmente algum arquivo sofreu mais com a guerra do que a Cinemateca Francesa.
Quando Langlois volta do I Congresso da FIAF em Nova Iorque (1939), fica sabendo que os filmes
da Cinemateca Francesa foram evacuados (por causa da Guerra), em função de ordens que partiram
do governo, e quando a França é ocupada, os alemães apreendem grande parte dos filmes na cidade
de Tours
51
. Além disso, a judia Lotte Eisner passou a ser perseguida, e apesar da colaboração de
Frank Hensel, a confusão com a ocupação foi muito grande, bem como as perdas, a ponto de
Langlois dispersar a coleção da Cinemateca Francesa pelo mundo. O cineasta brasileiro Alberto
Cavalcanti (membro do primeiro conselho administrativo da Cinemateca Francesa) colaborou
guardando parte dos não-filmes
52
.
As complicações eram muitas. Em junho de 1941, ordens alemãs e um decreto francês anunciaram
a proibição de filmes anteriores a 1937 sob a pena de destruição do material
53
. No entanto, ao que
parece, pelo menos no que diz respeito ao papel da FIAF em auxiliar os arquivos a salvar e
preservar o patrimônio cinematográfico, a gestão de Hensel foi muito boa. Não fosse o trabalho dos
arquivos e cinematecas durante a guerra, certamente as perdas de filmes e não filmes, em função de
bombardeios e roubos, teriam sido certamente infinitamente maiores.
A situação muda profundamente com o fim da II Guerra Mundial. Os italianos da Cineteca Mario
Ferrari começam por dar o tom em um texto intitulado Il problema della Cineteca Milanese: Stato
attuale e possibili sviluppi. Para Raymond Borde o texto contem uma análise digna de muita nota,
pois põe a questão de saber em que consiste uma cinemateca, mostrando quais necessidades elas
deviam responder: salvaguarda dos filmes condenados à morte, reavaliação crítica da história do
50
FRANCIS, D. Op. Cit.
51
MANNONI, L. Op. Cit. P.74.
52
Ibidem, P.83.
47
cinema, formação de público, etc. Para eles, as poucas cinematecas organizadas existiam somente
em Paris, Londres e Nova Iorque, e durante a guerra em Berlim, e por cinemateca organizada, os
italianos definiram precisamente um instituto que possuísse as cópias e os negativos dos principais
filmes de todos os países, e que estivesse em condições de os apresentar ao público em projeções
ou na movilola. A coleção de filmes deve estar acompanhada de uma coleção de não-fílmica
(fototeca, roteiros e figurinos originais, uma biblioteca especializada, discoteca, uma coleção de
cartazes, etc.).
O fundamental sobre o texto dos italianos é que ele consegue estabelecer um equilíbrio bastante
significativo entre a conservação e a difusão, teorizando uma metodologia que ao mesmo tempo
garantia a preservação do patrimônio, e não interferindo nos direitos dos pesquisadores de ter
acesso à documentação. Para os autores, Nova Iorque alcançava plenamente estas finalidades. Era a
única experiência que conseguia atingir esse equilíbrio satisfatoriamente. Mas, é exatamente por
meio das razões apontadas pelos italianos para a eleição de Nova Iorque que podemos perceber de
onde vem o erro de Borde, para tirar de lá as mesmas lições. Voltaremos a essa questão,
adiantando-nos ao afirmar que tal observação era feita pelo fato de que as outras grandes
referências na área serem desiguais nos lados da balança: “o ponto fraco de Londres era a ausência
de projeções públicas, o de Paris a falta de preocupação com a conservação
54
”. No entanto, em
função da conjuntura específica dos EUA, e de seu relacionamento com Hollywood, o exemplo de
Nova Iorque deve ser bastante matizado.
Após a guerra, a comunicação entre os arquivos e cinematecas, bem como entre as pessoas,
começaram a retomar seu nível de normalidade, em função da questão de fronteiras, viagens
internacionais, etc. Neste período, dois congressos, o primeiro na Basiléia (Suíça, setembro de
1945) e o segundo em Paris (III Congresso da FIAF em 1946), serviram para iniciar a ditar as
diretrizes das cinematecas no pós-guerra. Ponto importante, discutido e decidido nesses congressos,
53
Ibidem, P.96.
48
diz respeito ao fato da utilização de meios políticos para derrubar as taxas aduaneiras para filmes
de arquivos da FIAF, facilitando o intercâmbio pelo mundo de tais filmes. O intercâmbio de cópias
de uma cinemateca a outra vinha sendo submetido, até este momento, às mesmas tarifas aduaneiras
que as expedições comerciais de filmes novos, o que constantemente trouxe dificuldade a tais
intercâmbios. “O Congresso preparou uma dupla estratégia: cada arquivo solicitaria a suas aduanas
uma taxação mínima, alegando que se tratavam de películas usadas, e a FIAF interviria junto à
UNESCO para obter a livre circulação dos filmes de arquivo.
55
Mas a Guerra significou muito mais do que simples dificuldades de conjuntura. No pós-guerra, o
que começa a ocorrer de fato é um agravamento gradual do que podemos chamar de problemas
estruturais imanentes ao conceito no que toca a sua maior ambigüidade de fundo: a natureza
ambígua do filme entre arte e indústria. Em outras palavras: de modo quase que sorrateiro, começa
a se armar (tratando a questão esquematicamente, mas nem tanto) um desequilíbrio em favor do
comércio sobre a arte, o que trouxe graves conseqüências durante a crise da idade de ouro do pós-
guerra (no Brasil, desenvolvimentismo).
Antes da Guerra, a contribuição do movimento cineclubista à formação do conceito de cinemateca
já tinha sido decisiva quando os pioneiros dos cineclubes empreenderam a defesa da arte contra o
cinema estritamente comercial, por meio da formação de público crítico; na difusão de filmes
censurados, mal conhecidos, de filmes “difíceis”; na valorização do filme de ficção; no
estabelecimento de um contato entre o público e profissionais do campo cinematográfico, assim
como daqueles de outras áreas; bem como por meio de outros tipos de difusão que não apenas o
dos filmes: difusão oral (debates, palestras, cursos), escrita (boletins, publicações, críticas na
imprensa, em revistas especializadas), etc. No entanto, mesmo com o crescimento do movimento,
sua aliança com movimentos políticos, organizações sindicais, etc., as dificuldades de se conseguir
programas (filmes) e de atingir um grande público ainda eram grandes. Seja isso causado pelo
54
Idem. Grifo nosso.
49
famoso espírito de capela de muitos clubes capela (sectarismo ou elitismo para alguns) ou por
conseqüências mais diretas, advindas do quadro político de uma conjuntura específica como a
Guerra.
A Guerra levou os cineclubes a praticamente cessar suas atividades, o que não impediu que alguns
as realizassem “por baixo do pano”. É um período de maturação, onde as idéias fervilhavam.
Contudo, tais propósitos só poderiam se efetivar plenamente ao final da Guerra. Mas, mesmo
durante o conflito, o cineclubismo continuava a colaborar com o desenvolvimento das cinematecas:
“A impossibilidade de uma ação prática no presente convidava a um retorno em direção ao passado
e à preparação do futuro – quando os dias tivessem se tornado melhores
56
”. Volta ao passado (de
um interesse cada vez maior por esse passado) que em termos práticos quer dizer a busca e o
agrupamento de filmes desse passado. Prospecção. Mais do que isso, o conhecimento e o debate
sobre esse passado.
O exemplo francês é sempre esclarecedor para nós. Com o final da Guerra e a libertação de Paris,
seis cineclubes se agruparam na Federação Francesa de Cineclubes, são eles: Cercle Technique de
L’écran (um clube de profissionais do campo, portanto), Ciné-Club Universitaire, Cercle du
Cinéma, Ciné-Club Cedrillon, Ciné-Jeunes, Club Français du cinéma. É mesmo incrível o sucesso
da federação que, em 1945 (ano de sua criação), contava já com 20 clubes, e que em abril de 1946
saltou para 80 clubes e 50.000 sócios. No ano seguinte (1947), é criada a Federação Internacional
de Cineclubes (o Clube de Cinema de São Paulo foi inscrito no ato de criação da Federação).
Da FFCC sai a Federação Francesa de Cineclubes para Jovens, e do movimento cineclubista em
geral são criadas outras tantas federações. Essas são importantes como órgãos que defendem os
interesses do movimento, mas também nos mostram uma diversidade importante e democrática.
Citemos algumas dessas federações para que tenhamos idéia do fluxo da corrente: L’union
Française des Ouvres Laïques D’Education par L’Image et Le Son (União Francesa de Obras
55
BORDE, R. Op. Cit. P.101.
50
Laicas de Educação pela Imagem e pelo Som) que toma essa denominação em 1953, guiada por
uma preocupação de educação popular. A Fédéracion Loisirs et Culture Cinématographique (algo
como Federação Lazer e Cultura Cinematográfica) criada em 1946 de origem católica. Via o
cinema a seu modo, e agia sobretudo com a juventude. Por último, citemos a Film et vie, de
inpiração protestante, e a L’Union Nationale Inter Ciné-Clubs, ambas já de 1958. Todas estas
federações acompanhavam de perto e colaboravam para desenvolver aspectos do conceito de
cinemateca moderna que seriam abandonadas pelos cultores da técnica de preservação. Elas
organizavam cursos, seminários e estágios para seus animadores. Publicavam revistas, fichas
cinematográficas e formavam crítica e público conscientes das faces do cinema para além do
espetáculo. Elas colaboraram tanto quanto às cinematecas na tarefa de colocar o cinema de forma
definitiva na vida cultural da sociedade. E esse lugar não seria mais questionado
57
.
Mas, ao final da Guerra, muitos dos ícones das vanguardas dos anos 20 pararam de produzir, ou
produziam pouco, e a geração que os substitui, por necessidades econômicas, e por “vocação
artística” (buscando o contato com um público maior) passaram a se aproximar do cinema
comercial. Começa assim, a existir de maneira mais clara uma “aproximação de forças”: arte e
comércio. Ao contrário dos primeiros cineclubes que se recusavam a exibir filmes de carreira
comercial, os do pós-guerra exibem-nos sim: “A partir de agora, a originalidade de um cineclube
repousa sobre o modo de apresentação de um filme, que pode ser já muito conhecido
58
”, por
motivos que ultrapassam a natural retração no campo da produção do imediato pós-guerra, vide o
caso italiano bem diverso disso.
Exibindo o que supostamente havia de melhor nos catálogos de distribuidores, e facilitados pelo
desenvolvimento do 16mm, os cineclubes seguiam seus caminhos. Até um certo ponto o texto de
Pinel (que é de 1964, sendo praticamente uma fonte primária de nosso período aqui), defende
56
PINEL, V. Op. Cit.
57
Ibidem, P.37.
58
PINEL, V. Op. Cit. P.40.
51
arduamente um projeto revolucionário para os cineclubes e para a cultura em geral, mas
aparentemente, essa posição do autor se modifica, e passa a ser muito mais condescendente com o
que ele mesmo chamou, estranhamente, de aproximação de forças, entre a arte e o comercio. Para
ele o objetivo maior dos cineclubes deixa de ser a luta quixotesca contra o cinema comercial: “O
cineclube não busca se opor a ele, o substituir, nem mesmo fazer-lhe concorrência. Suas
finalidades são mais sutis: que continuemos a freqüentar as salas comerciais, se possível até mais,
mas com um outro olhar e com uma sensibilidade afinada, mais lúcida e mais aguda
59
”.
Por mais que essa fosse uma necessidade imposta pela conjuntura, não deixamos de estranhar a
posição de Pinel que não observa que tal necessidade se impunha pela força, e não necessariamente
pela vontade daqueles pioneiros que buscavam estabelecer um melhor equilíbrio na balança
complexa cuja origem é a ambigüidade natural do filme: arte e indústria. É preciso remarcar um
fato importante: a demanda por filmes e cultura cinematográfica existia, era grande, politicamente
ativa e organizada. O fato é que, como veremos, a resistência de muitos arquivos e cinematecas em
difundir seu patrimônio, justificando tais atitudes como garantias de preservação do patrimônio,
acabaram por colaborar decisivamente para o arrefecimento, senão mesmo para a morte do
cineclubismo ao longo dos anos.
De volta a FIAF: o início da mutação do conceito
Em 1946, a cinemateca mais antiga do mundo (Estocolmo) tinha apenas 13 anos de existência. Seis
anos após sua criação, a Guerra eclodiu na Europa dificultando muito, senão paralisando, suas
ainda incipientes atividades e a de suas ainda poucas congêneres (sobretudo no plano jurídico e
político). É somente no pós-guerra que as coisas começaram a se tornar um pouco mais claras, e a
se acertar um pouco melhor.
59
PINEL, V. Op. Cit.
52
A situação do movimento cineclubista depois de 1946– cujo principal problema foi sempre obter
filmes para seus programas – não era apenas resultado da ressaca da Guerra. A conjuntura passaria
a ser cada vez mais de euforia de mercado, e a Federação Internacional de Arquivos de Filmes não
poderia escapar disso. A federação foi criada em 1938 no intuito de dar um caráter oficial e
supranacional às atividades eminentemente corsárias das cinematecas. De início a FIAF era uma
entidade bastante fechada contanto apenas com quatro membros (Londres; Paris; Berlin e Nova
Iorque), e a polarização política inicial na entidade será decisiva para o debate acerca das funções e
diretrizes das cinematecas, na prática até hoje.
O conceito de cinemateca, como estamos sugerindo, se cunhou primeiramente por meio da fusão
de elaborações técnicas advindas já das experiências dos primeiros arquivos e coleções de filmes
(desde Boleslaw Matuszewski), e que foram levadas adiante por técnicos como Ernest Lindgren. O
outro elemento formador do conceito advém do desenvolvimento do movimento cineclubista
francês (e europeu de maneira geral) que promovendo uma valorização do filme de ficção, da
defesa do cinema enquanto arte contra o cinema puramente comercial, do desenvolvimento de
práticas de difusão, do desenvolvimento da crítica cinematográfica, e um engajamento político
mais aberto, levou a um conseqüente entendimento do cinema enquanto um fenômeno social e
passível de participação, influenciando as ações no meio político e cultural em geral. Aqui o nome
forte é o de Henri Langlois.
Tratando a questão de forma bastante esquemática (já que Langlois também queria preservar e
Lindgren também queria difundir) podemos afirmar que o equilíbrio do conceito repousava no
embate entre os dois, embate que dividia a FIAF. Mas existe um marco bastante significativo onde
o conceito começa, após seu primeiro estado de formação, a sofrer alterações substanciais. Tais
mudanças não surtem efeito imediato, mas iniciam-se já no imediato pós-guerra. O ano de 1959 é o
tal marco. Nesse ano, Henri Langlois abandonou a FIAF em pleno Congresso Anual da Federação
(em Estocolmo) acusado de, mesmo contando com bons recursos estatais, não ter cumprido sua
53
missão na preservação do acervo da referida cinemateca. Acusavam-no de preocupar-se
demasiadamente com a difusão dos filmes e pouco com a preservação, de negligência para com os
detentores de direitos dos filmes da coleção e uma conseqüente violação desses direitos. Mas é
preciso entender onde estavam as principais divergências entre eles.
Lindgren aparece na lista como um legalista, e essencialmente como um técnico, o que torna sua
contribuição para nós muito mais ampla no campo da técnica de conservação e preservação, do que
propriamente um difusor de cultura cinematográfica (apesar do fato que Lindgren foi e deve
sempre ser considerado um crítico de cinema, autor de livros etc.) Lindgren deu enormes
contribuições no âmbito da catalogação dos filmes, e também em aspectos precisos da conservação
e da preservação. É dele, por exemplo, a noção bastante moderna de cópia de preservação. No que
toca a formação do acervo, tanto Lindgren como Barry aceitavam os depósitos que lhes eram
oferecidos, cada um seguindo seus critérios, e preocupavam-se antes de tudo em garantir a
conservação deste material. Trata-se do que Raymond Borde chama de objetividade técnica dos
arquivos, ou das cinematecas. Homens como Langlois, advindos do movimento cineclubista,
próximos ou mesmo militantes de círculos políticos, de ativistas etc., pensavam um pouco
diferente.
Contudo, não acreditamos em falta de capacidade técnica de Langlois, e sim que a conjuntura
política internacional abalou as possibilidades de concretização plena do tipo de projeto político (e
revolucionário em vários sentidos) elaborado por ele para Cinemateca Francesa, e daquelas, que
como a brasileira, seguiam de perto em função de afinidades políticas e semelhanças nas
respectivas conjunturas nacionais onde estavam as cinematecas. Como vimos, a demanda por
filmes era grande demais, sobretudo por parte do movimento cineclubista que se desenvolvia de
vento em popa no mundo inteiro. Langlois certamente considerava mais imoral deixar de atender
as solicitações encaminhadas à cinemateca do que privá-las do acesso ao patrimônio visando sua
preservação. Até porque, era mostrando que Langlois pretendia fazer entender ao maior número
54
possível de pessoas a importância de preservar. Todavia, ele pretendia fazer isso ao mesmo tempo
em que desenvolvia um amplo projeto político e educacional no campo do cinema, do qual ele se
via como líder. Era preciso antes de tudo dar fôlego a esse tipo sui generis de organização social.
Nesses casos, os intelectuais/ arquivistas tinham outro panorama para aprender, estabelecer e lidar
com os pontos de equilíbrios nas tensões o quanto foi possível (lembrando o conceito de Norbert
Elias). A conjuntura política e as necessidades imediatas de algumas cinematecas de se fazer
entender, suas funções, significações, aliadas às convicções políticas de seus grupos dirigentes,
levavam tais projetos a investir pesado na difusão e na formação de um novo público, de uma nova
crítica, de um novo cinema.
Enquanto Enerst Lindgren começava a se afirmar como o grande técnico no âmbito da arquivistiva
fílmica, e mostrava-se pouco afeito aos problemas de difusão, Langlois ironizado por Iris Barry por
ter guardado filmes no banheiro da casa de sua mãe, fornece os elementos para um dos argumentos
mais reproduzidos na história dos arquivos e que precisa ser bastante matizado: a de que o fato de
não ter dinheiro fazia com que ele (Langlois) fizesse a difusão passar à frente da preservação como
uma maneira de se fazer entender, mostrar à sociedade o que era e quais eram as funções de uma
cinemateca. Langlois foi mesmo muito feliz na utilização do termo fachada, pois sem descuidar
totalmente dos problemas da conservação como muitas vezes se acredita, estava por trás das
projeções e atividades de difusão um projeto político muito maior. Objetivo geral, preservar,
finalidade específica, política.
Laurent Mannoni argumenta que Langlois conseguia fundir as quatro noções capitais reveladas ou
confirmadas no curso dos anos 20: o interesse pela história da sétima arte, a cinefilia, os
cineclubes, a preservação dos filmes e dos arquivos. Como Iris Barry, Langlois tentará reunir uma
coleção de filmes do mundo inteiro; como em Estocolmo, ele coletará filmes e seus derivados
(arquivos, objetos, aparelhos). Mas Langlois foi além, e criou uma situação suficientemente
original: “se a cinemateca de Nova Iorque é uma instituição do MoMA, se a National Film Library
55
de Londres é uma instituição subordinada ao British Film Institute, se o Reichfilmarchiv é um
organismo estatal, a cinemateca francesa será um organismo privado, autônomo, livre, para o pior
e para o melhor
60
.
Esse é um ponto crucial do debate. Langlois conseguiu durante muito tempo manter este status para
a instituição que dirigia. Com boas subvenções públicas e autonomia para gastá-las, ele formou
uma das mais ricas coleções referentes ao patrimônio cinematográfico universal. Lindgren não
conseguia compreender tais intuitos. Segundo Langlois, o inglês era um “provinciano e pequeno
burguês, de uma ambição perigosa e pérfida visto que potencializada de um complexo de
inferioridade aos olhos de seus superiores e, o que é mais grave, de uma lentidão de espírito e de
um conhecimento da arte cinematográfica extremamente pouco desenvolvido”
61
. O que parece
ocorrer é que, se um eventualmente despreza a conservação o outro despreza a difusão, como se
esta fosse uma diversão barata. Mas é preciso compreender o sentido, ou simplesmente o que era
um programa cinematográfico para Langlois.
Tudo teve inicio no Cercle du Cinéma criado por ele, George Franju e Jean Mitry em 1935. A
programação do Cercle (que por algum tempo seria a vitrine oficial da Cinemateca Francesa)
mostrava uma enorme erudição, ainda que muitos filmes aparecessem sem grandes relações
históricas, estéticas ou técnicas (sendo projetado um após o outro em um método comparativo).
Pois para Langlois, a programação deveria ser sutil para servir à criatividade; existindo toda uma
ciência camuflada por trás de um programa bem feito: “é como o que nós chamamos de alta
costura. As costuras não são vistas. As ligações se criam entre os filmes; ultrapassam as coisas,
como em uma exposição de pinturas (accrochage de tableaux): surpresas fabulosas são
60
MANNONI, L. Op. Cit. P.29. Grifo nosso.
61
APUD: MANNONI, L. Op. Cit. P.36.
56
possíveis’
62
”. Era preciso muito mais do que preservar o patrimônio, pois os filmes, não
desapareciam apenas fisicamente, eles desapareciam também dos “gostos modernos”.
A experiência da Cinemateca Francesa foi extremamente sui generis. Langlois era o “homem
orquestra” das relações mundanas da instituição, em um grupo grande de interessados e
participantes do projeto, onde até mesmo a figura do mecenas ganhava contornos particulares. A
importância de Paul de Auguste Harlé (o mecenas em questão) foi muito maior do que o
investimento material por ele realizado. Harlé era o responsável (editor) do jornal La
cinematographie française que se dedicava à causa da vanguarda cinematográfica francesa, e foi o
intermediário entre esta e o estudo desta, razão do enorme prestígio e autoridade que o periódico
adquiriu rapidamente. “Em algumas semanas todos os grandes nomes do cinema francês mudo
aderiram ao projeto de associação à Cinemateca Francesa
63
”.O que não impedia a existência de
outros grandes depositantes como a Pathé ou a Gaumont.
Mas não só pela amizade as coisas caminhavam. Langlois faria a aquisição em 10 de outubro de
1958, por três milhões de francos – subvencionados pelo Estado - de um lote riquíssimo da
produtora Albatroz, onde trabalharam além de cineastas russos, que lá realizaram filmes de alto
valor estético, grande nomes do cinema francês dos anos vinte. A Cinemateca adquiriu não apenas
todas as cópias e negativos da Albatroz que haviam sobrado, mas também os direitos a elas
inerentes. Tornando-se assim, a proprietária e detentora legal, “fato suficientemente novo no
mundo dos arquivos de filme
64
”.
É mesmo a situação ideal. Langlois era perfeito nesse sentido, enquanto outros arquivistas
defendiam com unhas e dentes o depósito legal, Langlois resolvia a questão comprando os direitos
dos filmes, como se compra um quadro ou um prédio. Atitude notável não só de Langlois, é
preciso dizer, mas também da companhia em questão. Fato particularmente importante – e eis mais
62
MANNOMI. L. Op. Cit, P.33. Inicialmente consagrado ao mudo, o Cercle se abre ao sonoro. Vale notar que na lista
de sócios de 1936-37 figura o nome de Paulo Emilio Salles Gomes.
63
Ibidem, P.40.
57
algumas pistas do sentido disso tudo – se pensarmos que gradualmente, as cinematecas passavam a
ser mais do que simples locais de estocagem e conservação, mas também de valorização das obras.
Tal valorização, como podemos imaginar, tinha já, bem estampados, os dois lados de uma mesma
moeda: uma plástica, estética ou simplesmente sociológica, e outra mercantil (que evidentemente
não era o que guiava o trabalho dos funcionários da Cinemateca Francesa
65
).
Nesse sentido, torna-se mais compreensível o combate de Langlois contra a prática do depósito
legal. Após estabelecer acordos com “sociedade americanas (empresas produtoras)”, a Cinemateca
Francesa vinha recebendo muitos filmes americanos advindos dessas empresas, por meio dos
acordos aceitos de parte a parte. No entanto, certos filmes estavam sendo forçosamente enviados à
CF via autoridades do governo de ocupação, fazendo Langlois comentar: “Eu não vejo como nós
poderíamos transformar os locais da Cinemateca em entreposto forçado. Isto me parece
incompatível com o caráter e o espírito da Cinemateca”. O Espírito é democrático, pois deveria
depositar quem quisesse estabelecer elos de memória; deixar seu registro quem quisesse. O
trabalho da instituição era o de esclarecer os detentores, produtores, críticos, sobretudo os mais
jovens acerca de uma forma ‘específica’ de encarar o cinema. Argumentos que dão o que pensar.
Fazer a indústria depositar forçosamente era a solução? Ou antes, bastava fazer a indústria
depositar sua produção dessa forma?
As perguntas são válidas, pois a adoção dessa postura pelas cinematecas combinadas ao tipo de
desenvolvimento que a produção vinha adquirindo desde o surgimento do filme falado (ampliação
dos monopólios) transformava as cinematecas em blocos de depósitos cada vez mais homogêneos.
Além disso, acrescenta Mannoni, “Langlois crê, não sem razão, que as iniciativas intempestivas do
governo ameaçavam o frágil equilíbrio encontrado em Marselha em 1942 com os produtores e
distribuidores americanos
66
”. Não que estes fossem compreender angelicalmente os designos de
64
Ibidem, P.45.
65
Ibidem, P.59.
66
Ibidem, P.111.
58
Langlois, e ainda que esta não fosse sua principal frente de batalha, era preciso brigar por ela
também.
Assim, torna-se mais fácil compreender também o porquê dos primeiros estatutos da Cinemateca
Francesa serem tão cautelosos no que toca à difusão. Não era desejável assustar potenciais
depositantes. A lógica era a seguinte: a Cinemateca Francesa coletava e preservava, o Cercle
projetava. Porém, nos estatutos do Cercle eram previstas compras de documentação que
favorecessem o estudo da história do cinema. “O Cercle, cuja sede social era a casa de Langlois
(…) tornava-se também um depositante da cinemateca, e sua vitrine oficial para as projeções”. Mas
a historiografia prefere ver nas manobras de Langlois, sempre em primeiro plano, uma espécie de
egocentrismo extraordinário.
Sobre o período imediatamente pós-guerra, Mannoni trata da “concorrência” entre os cineclubes e
a CF. O que é muito estranho. Como veremos não é bem disso que se trata. Para o autor, centralizar
as projeções no Cercle “era um modo de Langlois se manter em posição de força no interior das
duas associações que ele criou: a Cinemateca precisa do Cercle, e assim reciprocamente.
67
” Sem
querer entrar em méritos da psicologia (nem poderíamos) pensamos nisso mais como uma
estratégia de construção de identidade e do conceito de cinemateca, mais até do que o de
cineclube, já que o primeiro pressupõe o segundo. Pois o que Mannoni chama de ambigüidade
ontológica das cinematecas (e particularmente da francesa) – uma instituição subsidiada pelos
poderes públicos, mas independente nas suas decisões e gestão - deve ser visto também como pura
habilidade de Langlois no que toca ao jogo com outra ambigüidade, esta de fundo, e muito mais
problemática, a do cinema: arte indústria.
Para um melhor estado de coisas uma cinemateca, afirmava Langlois, não dever ser um cemitério.
Além disso, a briga entre a FFCC e a CF parece ter razão de ser também em uma falta de
sensibilidade e ação dos clubes no que concerne ao espírito de cinemateca. Em outras palavras, não
67
Ibidem, P.48.
59
é que Langlois não queria colaborar com os clubes. Há pistas importantes para percebermos que a
coisa toda não era puro capricho do secretário-geral da Cinémathèque: muitas vezes as negociações
entre os cineclubes e detentores legais se faziam sem benefícios para as cinematecas, que restavam
como prestadoras de serviço “público” e nada mais. Aspas para o público, pois quem ao longo do
tempo ganhou com o uso de tais serviços foram “cartéis de detentores”, empresas, etc. O que dá o
que pensar
68
. Sobre as polêmicas atitudes de Langlois, Lotte Eisner comenta que ele simplesmente
não compreendia que as outras pessoas não sejam possuídas pelo mesmo demônio dele!
69
Não é exagero afirmar que para combater o rumo que as coisas estavam tomando, Langlois se
mostra decidido a criar uma comissão de pesquisa histórica na Cinemateca já em 1943 - trinta anos
antes da FIAF começar a institucionalizar práticas do mesmo tipo. Um de seus textos, já nos vale
apenas pelo título: “Longe de ser um cemitério ou uma galeria, uma cinemateca é um organismo
de combate” (Beaux-Arts, 6 Mai de 1938). Na tentativa de angariar prestígio e divulgar as idéias
ligadas ao projeto da Cinemateca, Langlois e George Franju criaram uma revista. Novamente
temos a participação de Alberto Cavalcanti, que publicou nesta revista.
Por outro lado, Lotte Eisner, além de colaborar na revista teve um papel fundamental na
organização inicial do acervo coletado por Langlois, pois em seguida a alemã radicada francesa
também teria um grande papel na prospecção de documentação para o acervo da Cinemateca
Francesa. “Do quarteto Langlois, Mary Meerson, Marie Epstein e Lotte Eisner, é ela que vai
representar o elemento mais estável psicologicamente, o mais intelectual, o mais solidamente
cultivado. Na instituição, ela é também a única historiadora do cinema
70
”. Em suma, havia sim a
tentativa de estabelecer um equilíbrio nos diversos pesos e medidas pelos quais transitam as
atividades de uma cinemateca. O fato é que para Langlois o percurso era diferente.
68
Ibidem, P.171.
69
Ibidem, P.173.
70
Ibidem, P.56.
60
Podemos ver um exemplo disso em um dos tantos projetos de Langlois que não deu certo. Ele
pretendia financiar uma série de cineastas de renome para realizar filmes que mostrassem o que era
o cinema libertado de todas as contingências, o que era filmar livremente, sem contratos morais,
materiais econômicos e técnicos, para renovar o espírito cinematográfico, o que segundo Mannoni
estava de pleno acordo com um Cocteau ou de um Rossellini e prefigurava como o ideal da
Nouvelle Vague. O autor completa argumentando que o Festival do Filme do Amanhã (certame
nos Alpes marítimos franceses de Antibes onde tais filmes seriam exibidos) era para Langlois “a
ocasião de reagir contra a tendência regressiva do academicismo que estava atualmente em
desenvolvimento no cinema, mas de maneira positiva, mostrando que o cinema é sempre vivo
71
”.
Ponderado, Mannoni argumenta que a idéia foi importante, mas ao final se pergunta, como quem
não entende seu objeto: “era isto mesmo vocação da Cinemateca?” Reflexo de uma visão de
cinema fragmentária e em última instância contrária à de Langlois, pois tudo tem um pano de
fundo: questões políticas/ ideológicas e econômicas, e não simplesmente técnicas
72
.
Outra característica da trajetória do conceito para Langlois que diz respeito também à relação da
Cinemateca Francesa com o campo da produção: Langlois se envolveu, e mesmo encabeçou
diversos projetos de criação de federações que incluíam o campo da produção (partindo da
vanguarda) até chegar à idéia de uma Federação Internacional de Cinema Independente, “noção
bem mais ampla, por meio da qual ele esperava conseguir financiar a conclusão dos filmes de
Leger, Picasso e aquele sobre Chagall
73
”. Novamente afirmamos: não era apenas disso que se
tratava. Enquanto Raymond Borde relata que só na década de 70 a FIAF criou uma linha de
pesquisa histórica. Langlois já se preocupava com isso há muito tempo, agindo no sentido não só
de fomentar a pesquisa (com a reunião de acervo fílmico e não-fílmico), mas também ajudando a
71
Ibidem, P.157. O festival de Antibes contudo era muito mais do que isso. Pretendia ser um certame de caráter
cultural e de formação, não competitivo. Foi certamente modelo para atividades de difusão da Cinemateca Brasileira,
particularmente para o Festival Internacional de Cinema em São Paulo, 1954.
72
Ibidem P.160.
73
Ibidem, P.184.
61
organizar congressos (algumas vezes paralelos aos da FIAF) e federações de historiadores e
pesquisadores. Vale notar que Paulo Emilio estava ligado a essas démarches, e que a idéia destas
federações opunha Lindgren a Langlois, pois as aspirações do francês visavam organizações e
cooperações internacionais, algo que o inglês achava inviável.
Langlois, por seu turno, estimulava a pesquisa aproximando-se também da universidade, e em
1952 sugere e encabeça o projeto de criação do Bureau de Recherche Historique du Cinéma
(BIRHC)
74
. A questão que depõe contra os opositores de Langlois aqui é: como pode uma
instituição de memória não se preocupar em desenvolver – de um ponto de vista mais prático –
pesquisas históricas? O projeto do BIRHC encontrou muitas dificuldades para se desenvolver no
seio da FIAF. Alguém poderia argumentar: desenvolver pesquisa stritus sensus não é atribuição de
uma cinemateca, que deve sim conservar as fontes dessas pesquisas. Mas, enquanto Langlois era
muitas vezes pejorativamente chamado de colecionador, Ernest Lindgren recusou-se
sistematicamente a comprar um acervo importantíssimo na Inglaterra. Langlois batalhou muito
para adquirir essa coleção e teve êxito. “Lindgren chegou muito, muito tarde à idéia de museu
75
”.
Como fazer pesquisas sem arquivos? Uma cinemateca não deveria ser um cemitério, e tão pouco
um entreposto da indústria.
Ponto nodal das críticas contra Langlois é a de que ele não era um homem de cinemateca (um
arquivista) mas sim um “colecionador”. Tudo parece girar em torno do seguinte tema: reunir tanto,
e não poder conservar. E se essa não parece ser a posição de Mannoni, fica claro para nós, que os
“inimigos do presente” de Henri pensam assim. Contudo, é a relação que Langlois estabelece como
o cinema que importa. A tão criticada afetividade para com um patrimônio social “como se este
fosse seu”, pode ser traduzida facilmente por uma outra palavra bem mais interessante, ou antes,
abrangente: humanidade. Caminham nesse sentido, as grandes exposições sobre cinema
74
Ibidem, P.251.
75
Ibidem, P.267.
62
organizadas por Langlois, assim como os programas do Cercle, descritos como sem cronologia,
sem teoria.
Pensando no complicado problema da institucionalização da arte, Langlois tinha uma posição
interessante. Segundo ele, a exposição Imagens do cinema francês realizada em 1944 não tinha
finalidades didáticas, no sentido institucional acrescentamos. “Em uma palavra, esta exposição visa
sobretudo a fantasia, o encanto, o irreal, o fantástico ou o fantasmagórico. Ela se faz sob o signo de
George Méliès e da poesia deste insistindo sobre o lado mais espontâneo desta poesia involuntária,
acidental, fortuita , ou por vezes planejada, mas que participa sempre mais ou menos do sonho ou
da imaginação pura
76
”. Exatamente o tipo de coisa que a institucionalização acaba por vezes
aniquilando. A Aura da arte, e não do filme tecnicamente reproduzível. É interessante pensar esses
intuitos como inerentes ao de uma cinémathèque. Dosar a racionalização do processo engendrado
pela reprodutibilidade. “O visitante sai desta exposição com a impressão de ter efetuado uma
viagem pelo mundo oculto (fantasmé) do cinema
77
”.
Langlois investia nas exposições, conseguindo créditos para elas, esperando recuperar as receitas
com a renda obtida nas bilheterias. “Eu considero que a grandeza de um organismo cultural é a de
estar em déficit”, brinca aparentemente Langlois
78
. Sobre a influência das atividades da
Cinémathèque na sociedade em geral, e particularmente no campo do cinema, Mannoni comenta
algo decisivo: “É raro que um arquivo ou que um museu participe ativamente da criação de novas
correntes estéticas
79
”. Ora, isso deveria ser a regra e não a exceção.
As sessões, tanto do Cercle como da Cinémathèque não tinham debates, segundo Langlois “para
não forçar o julgamento do público” seria a assiduidade que formaria, pouco a pouco, a cultura
cinematográfica dos freqüentadores, sobretudo os mais jovens, a ponto destes poderem formar um
juízo crítico sobre a produção corrente pautados na visão, não apenas de obras-primas (exibidos no
76
Ibidem, P.197.
77
Ibidem, P.198.
78
MANNONI, L. Op. Cit. P.205.
63
Cercle e na Cinémathèque), mas em uma visão de conjunto e abrangente da história e do
espetáculo cinematográfico. Langlois rejeitava furiosamente o academicismo. O que por sua vez
não impedia a aproximação com a universidade e com procedimentos tradicionais do ponto de vista
didático/ pedagógico.
Não havia debates, mas sim cursos: Bazin, Sadoul e Jean Mitry foram alguns dos professores.
Foram organizadas também muitas conferências na universidade, principalmente na Sorbonne.
Além disso, sensível às dificuldades financeiras de muitos jovens cinéfilos, Langlois franqueava a
entrada de muitos deles – dentre os quais alguns dos futuros cineastas da Nouvelle Vague – que
não tinham dúvidas ao afirmar que aprenderam o que era cinema na CF. “O movimento se fez, a
armadilha fechou, Langlois fez mais uma vítima, nós não poderíamos retornar, pela vida iríamos
errar pelas delícias do labirinto da Cinemateca Francesa”, comenta Doniol-Valcroze a propósito do
imperativo categórico de Jean George Auriol: freqüenta a cinemateca
80
.
Por aí vemos a relação entre o contato com o campo da produção e a idéia de um museu de cinema
como algo absolutamente fundamental na concepção de cinémathèque para Langlois. O cinema
não está só nos filmes. Se não existe cinema, e sim filmes, a relação com a sociedade se completa
com o não filme – com um museu. As perdas que ocorriam “não preocupavam” tanto Langlois,
pois mais do que preservar os filmes era preciso formar um modo de ver o cinema. Era preciso
formar pessoas para encarar o cinema de uma ‘determinada’ forma. Forma esta diametralmente
oposta a mercantilização crescente a qual os arquivo de nossos dias estão mais do que sujeitos. Pois
um museu é o templo das musas. E de seu templo chegamos fundamentalmente às próprias musas,
que dominavam a ciência universal e presidiam as artes liberais, o que por derivação metonímica
faz delas o sopro criador que possibilita ao artista a invenção, a criação de sua arte, inspiração ou o
talento poético, habilidade artística, engenho e engenhosidade
81
. Talvez, quando Langlois defende
79
Ibidem,. P.213.
80
Ibidem, P.222
81
Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. 1.0
64
uma Cinemateca, e não uma Biblioteca de Filmes (Film Library), o que esteja em jogo sem
mesmo um projeto de cinema (portanto de sociedade) e não de filmes. Assim chama a atenção o
talento e a forma como Langlois tece um programa. Dominique Païni: “Se trata (…) para Langlois
de fixar, organizar a memória (mettre en mémoire) de maneira inédita (…) segundo um método
feito de linhas sincrônicas, de comparações, de aproximações que fazem sentido. Trata-se
manifestadamente de convencer que os maiores cineastas eram os artistas por excelência do século
XX (…) e de inverter certos encantamentos já acadêmicos que conduziam a diacronias muito
evidentes e falsas semelhanças
82
”.
Criticado – um pouco por quase todos os lados – em função do formato de sua programação, por
não repetir programas de autores célebres, etc., Langlois oferece a seu público, obras muito mais
raras do cinema búlgaro, tchecoslovaco, latino-americano: “Ora, o que era mais importante? Ter
milhares de espectadores que guardassem boas recordações quando fossem controladores do
Estado, inspetores ou simples funcionários (…) ou ter na sala o futuro Truffaut, o futuro Chabrol, o
futuro Torre Nilsson, o futuro Nicholas Ray e outros? Eu não conheço outra cinemateca que como
a nossa tenha tido uma repercussão desta sobre a evolução de produção nacional
83
”.
Nesse sentido, a insistência de Mannoni de chamar Langlois de paranóico irrita um pouco. É
preciso matizar essa “paranóia”. As aproximações de Langlois com os italianos – e as mostras e
exposições de cinema italiano na França ajudaram decisivamente os futuros cineastas francesas a
conhecer o neo-realismo italiano em suas origens, e dão bem a medida dos intuitos de Langlois.
Esse era seu tipo de objetivo principal preferido. “A emergência de uma nova crítica, que precede a
Nouvelle Vague no final dos anos 50 é certamente uma das mais belas conquistas da
Cinemateca
84
”. Isto é interessante para acompanharmos e compreendermos o percurso da
instituição e do cinema que ela ajudou a criar: vanguarda dos anos 20, Cinemateca Francesa,
82
MANNONI, L. Op. Cit. P.249.
83
Ibidem, P.309/ 310.
84
Ibidem, P.137.
65
Nouvelle Vague. A Cinemateca foi a ponte desses dois períodos da produção francesa. Mas havia
quem não estivesse muito interessado nisso, e a sacanagem era grande. Langlois havia guardado
(em comum acordo) filmes de companhias americanas durante a ocupação da França. Ao final
desse período, ele devolveu os filmes às majores sem pedir recibo, resultado: foi cobrado
judicialmente por filmes desaparecidos sabe-se lá de onde. Bem ao gosto dos críticos de época
Mannoni escreve que o secretário-geral da Cinemateca dedicava-se a festivais, e a criação de
federações de críticos, etc., como se ele não tivesse nada o que fazer, e ajunta ainda que Gremillon
(na época presidente da CF) se inquietava pela falta crônica em função das longas ausências do
secretário-geral
85
. Ora, porque não tomava atitudes aproveitando a ausência de “père Langlois”. O
autor comenta e critica - citando vários contemporâneos – as enormes despesas geradas por eventos
como esses. No entanto, para além dessas questões “prosaicas”, o que mais interessa é refletir
acerca das intenções de Langlois com seus ‘delírios’.
Raymond Borde, bastante alheio a tudo isto ancora toda sua argumentação na indiscutível
necessidade de desenvolvimento técnico e objetividade teórica dos arquivos e cinematecas. Para
Borde as dificuldades iniciais (que foram longas) de muitas cinematecas para se fazer entender
explicam em boa medida a subjetividade. “Tudo isto explica, em um meio hostil ou indiferente, o
papel representado por fatores psicológicos, os ritos de fidelidades e a subjetividade
86
”. Borde
chama a tensão entre Lindgren e Langlois de políticas irreconciliáveis. Discordamos, e afirmamos
que o debate é histórico e sobretudo político.
Preocupado em traçar o trajeto que foi, segundo ele, da subjetividade à objetividade técnica, Borde
comenta os sintomas da primeira. O primeiro sintoma da subjetividade seria então O uso do
pronome eu ao invés de nós. Para o autor, é compreensível esse sentimento de posse de alguém que
lutou a vida inteira pela defesa de uma coleção, de um patrimônio. Mas esta etapa deveria ser
vencida. O que assusta um pouco no seu argumento, apesar de certa delicadeza no trato, é a frieza.
85
Ibidem, P.249.
66
A subjetividade deveria ser simplesmente abatida
87
.
Borde se refere acima ao modo de afirmar
onde estaria um filme: Langlois tem uma cópia; está com Paulo Emilio, e não na cinemateca tal ou
tal. Outro sintoma, o segredo do catálogo: Borde critica duramente, com razão, a política de
Langlois nesse particular. No entanto é preciso ponderar um pouquinho. Langlois estava querendo
proteger o patrimônio de oportunistas que queriam ganhar dinheiro com os filmes guardados pelas
cinematecas. Por isso afirmava que tinha o catálogo da cinemateca em sua cabeça, e não impresso.
Quando se sentia ameaçado por um suposto detentor legal do filme dizia algo como, “não me
lembro deste filme: mas pode procurar” (uma verdadeira agulha em um palheiro)
Outro problema advindo da subjetividade era, segundo Borde, a negação mágica dos problemas da
conservação. Para os adversários de Langlois, ele era um mestre nisso, considerando que se o filme
chegasse às suas mãos estaria a salvo por uma espécie de divina providência. Podiam assim dormir
em suas tumbas, e como no Antigo Egito, o grande pai suspenderia a decomposição das coisas.
Para Borde, esse modo de pensar, de difícil compreensão para os anglo-saxões, resultou em
catástrofes
88
.
Mas Langlois não queria ver os filmes em tumbas, em sim nas telas. Borde
miniminiza o papel de iniciador de Langlois para louvar a conquista técnica de outros segmentos
da FIAF. Segundo ele, a ação pedagógica de Langlois lhe conferiu uma espécie de título de
Suserano diante de seus vassalos, mas mesmo quando valoriza esta face de Langlois a ironia (que
chega a ser bastante depreciativa) não fica longe de seus argumentos. Jacques Ledoux – um
discípulo de Lindgren nos dá uma idéia da importância de Langlois para a formação de jovens
arquivistas. Mesmo sendo ferrenho adversário de Langlois na FIAF Ledoux admitia: “somos todos
filhos de Langlois
89
”.
Isso se reproduziu no âmbito da FIAF, em função do papel ocupado por Langlois (o grande pai
fundador). Mas as cinematecas iam surgindo aqui e ali, e “rapidamente o pacto de suserania e
86
BORDE, R. Op. Cit. P.107.
87
Ibidem, P.109.
88
Ibidem, P.110.
67
vassalagem foi se transformando em uma teia de aranha”, de interdependência rumo a tal passagem
para a objetividade. Questionamos a validade absoluta dessa objetividade defendida por Borde, o
que vale de igual modo para um historiador. Esse aspecto objetivo não deve, e nem pode ser levado
às últimas conseqüências, pois o máximo a que se pode chegar com isso é a uma tecnocracia. Onde
fica a política de Langlois? E além do mais, acaso os indivíduos estão livres de suas
idiossincrasias? A subjetividade nunca deixou de existir. Borde não pondera nesse sentido.
Segundo ele a “evolução” da subjetividade para a objetividade técnica tinha um duplo sentido. Um
técnico e outro moral. Cada nova ficha aberta, cada novo filme descrito, cada novo espaço de
estocagem com as devidas necessidades técnicas garantidas contribuía para dissipar o apego afetivo
do colecionador e transformá-lo em um técnico conservador, levando-o da coleção privada ao
patrimônio, à memória coletiva
90
. Novamente não é possível ficar inerte diante do esquematismo
de Borde.
Pois, podemos inverter os argumentos, e afirmar que o tempo que os técnicos levaram
para esclarecer a indústria e o Estado da importância do trabalho das cinematecas, foi exatamente o
tempo que a indústria levou para dar-se conta do quanto ela poderia lucrar com o material e com o
trabalho dos arquivos. O caldo entornou, e a democracia de mercado venceu a pedagogia.
Os problemas persistem e o diálogo esquenta. Durante a primeira era da FIAF, no pós-guerra, que
começa em 1948 com o congresso de Copenhague e termina em 1959 no congresso de Estocolmo
(quando Langlois em minoria abandona o Congresso), uma figura de grande destaque ocupa a
presidência da FIAF. Seu nome era Jerzy Toeplitz, um dos grandes responsáveis ao lado de
Lindgren pela conquista da objetividade nos arquivos
91
.
A federação crescia sob a égide desse
embate objetividade x subjetividade (Lindgren; Langlois), e vinte novos afiliados foram inscritos
entre 1946 e 1959. Em 1948, Estocolmo (cuja cinemateca é de 1933) se filia. No mesmo anos
chega também a Cinemateca de Roma, aliada ao Centro Experimental de Cinematografia. 1951
89
Ibidem, P.111.
90
Ibidem, P.112.
91
Ibidem, P.113.
68
Iugoslávia, 1952 Fundação Eastman House (EUA). A lista é grande: Alemanha Federal, Turim,
Alemanha Democrática, Viena; Budapeste, Lisboa, Tókio,.Oslo, Sofia, Madri, Finlândia. Destaque
para os arquivos e cinematecas da América Latina: 1948, São Paulo e SODRE de Montevidéu,
1953, Cinemateca Argentina e Cinemateca Uruguaia. Em 1956, é a vez da Cinemateca Colombiana
(Bogotá), e como observadores até 1959 Peru e Venezuela (Caracas). Depois do caos da Guerra, a
Alemanha renasce e continua sendo uma referência na área técnica.
Com esse crescimento da Federação, entra em cena também uma série de novas questões e outras
tão antigas quanto o cinema voltam a baila sob novos olhares. Por exemplo, o problema de manter
ou não, mais de um arquivo ou cinemateca por país, era uma nova questão
92
. Em 1959, é aprovada
(com unanimidade) uma monção que recomenda a autonomia dos arquivos e cinematecas de toda e
qualquer instituição. Questão importante, mas até que ponto chegava esta autonomia?
Outro ponto: até a Guerra a idéia de cinemateca é inseparável da nostalgia do mudo. Buscava-se
salvar o que restava do período. Só Berlin (em função do cinema nazista) e Londres (em função de
negociações com os norte-americanos para conseguir filmes do período entre 1929 e 1938) já se
ocupavam do sonoro. Indício de negociações com majores como em Nova Iorque. É a partir de
1945 que as cinematecas passam a se preocupar com os filmes dos anos 30 (os falados do pré-
guerra). Os processos de aquisição são muito variados, mas a desconfiança dos distribuidores
limitam os depósitos voluntários.
93
Isso nos remete a um aspecto importante e que Borde parece dar pouca atenção: a manutenção de
certos critérios de seleção na composição da coleção, e que se manteve em alguns arquivos, como
no National Film Archive londrino. Segundo Borde, a Guerra acabou comos altos valores da
civilização em nome dos quais os arquivos selecionavam o que guardar”. Lindgren e o National
Film Archive mantiveram, contudo, um estranho desenvolvimento do que foram os antigos
92
Para Borde, o Brasil (Cinemateca Brasileira e Cinemateca do MAM/ RJ), a Itália, a Argentina e os EUA superaram o
problema, e admitiram a pluralidade. O que em princípio é realmente bom deve ser analisado com cuidado. No caso
brasileiro, e provavelmente não apenas nele, existiram sérios problemas nisso também.
69
arquivos no que toca aos critérios de seleção para a formação de suas coleções. O instituto
mantinha um comitê de seleção de filmes divididos em três partes: 1 – para filmes de valor
histórico; 2- para filmes científicos; 3 – filmes como arte (eco cineclubista). “Nas antípodas”
Langlois defendia que as cinematecas deveriam guardar tudo. Existe retrocesso nesse sentido em
Lindgren? Langlois, por seu turno, agia com instinto político. São bastante conhecidas as lendas
em tornos dos números de filmes sob a guarda da Cinemateca Francesa nos tempo de Langlois. 50
mil, 60 mil, 80 mil! Borde comenta que estas acrobacias eram “um prolongamento mágico de seu
imenso desejo de acumular, como se com eles pudesse ligar o futuro, ou forçar o destino
94
”. Era o
desejo de forçar o destino a acreditar no imenso manancial memorialístico sob a guarda do tempo
esperando que os homens lhes dessem atenção, “ligando” sim, o presente ao passado, tentando
restabelecer os elos perdidos da historicidade, bem na linha da definição de Paulo Emilio do que é
de fato uma cultura viva: aquela que só se constitui com o conhecimento do passado, a
compreensão do presente e de perspectivas de futuro
95
.
Trata-se neste caso, de perceber não a enorme importância da contribuição de Lindgren que
prezava pela preservação do patrimônio diante de uma difusão desregulada e que colocava os
filmes em risco, e sim do ocultamento do sentido político da difusão e da pedagogia cineclubística
de Langlois em prol de um discurso tecnicista de aparente neutralidade política que hoje – seguro
de si – escancara as portas da FIAF com seus vultuosos créditos bancários, patrocinados pelo
capital financeiro.
Estamos longe de querer fazer qualquer condenação de Lindgren, muito pelo contrário, ele foi uma
figura absolutamente central e que merecer muito mais atenção do que tem tido até agora na
história das cinematecas. Nossas ponderações são em relação ao mau uso de seu legado (no sentido
que a técnica se sobrepõe à difusão até hoje), fato este decorrente da má compreensão do programa
93
BORDE, R. Op. Cit. P.117.
94
Ibidem, P.118.
70
de Langlois pelo inglês. Lindgren aparece no panorama histórico das cinematecas como um
obcecado pela preservação o que em principio não é mal (muito pelo contrário), seu
posicionamento político, porém (por mais absurdo que a afirmação pode parecer), em contentar-se
com a preservação, levou a longo prazo as cinematecas para o âmbito estrito da indústria cultural, o
que significa dizer receptora de uma produção homogeneizada, e por isso pouco democrática.
David Francis faz ponderações a este respeito alegando que o National Film Archive estava
vinculado a um projeto muito maior (o do British Film Intitute) e que este tinha atribuições mais
gerais ligadas à produção e à difusão dos filmes. No entanto era, e ainda é, diversa a situação de
países desenvolvidos como a Inglaterra e outros como o Brasil. Além disso, o próprio autor
reconhece o peso do lobby da indústria cinematográfica, sendo que nada poderia ser feito no
sentido de que essa indústria produzisse outros tipos de filmes. Por meio de manobras políticas, o
conselho do Instituto ficou bastante subordinado aos interesses da indústria. “Com efeito, isto
significava que nada poderia ser feito caso a industria fizesse objeções
96
”.
Essas observações advêm do fato de que consideramos que o conceito de cinemateca depende de
seu vínculo com a produção, e Lindgren parecia não estar muito interessado nisso, ao contrário de
Langlois. O conceito não permite essa separação, pois caso contrário o resultado será a supracitada
produção homogênea e pouco democrática. Devemos lembrar que em função de sua herança
cineclubista a idéia de Cinemateca pressupõe pedagogia, educação e democracia.
Não estamos querendo afirmar que Lindgren era anti-democrático, ou que seu projeto não tinha
pedagogia. É curioso, pois em diversos pontos ele aproxima-se bastante de Langlois, como por
exemplo, quando afirma que “um dos mais ativos departamentos da minha utópica biblioteca de
filmes (…) seria o Setor de Empréstimos
97
”. Mas tudo se passou como se o inglês não percebesse
a urgência de agir. Langlois sabia bem o tipo de ameaça que as cinematecas corriam diante da
95
GOMES, P.E.S. Funções da Cinemateca. In: GOMES, P.E.S. Crítica de cinema no Suplemento Literário. V.1. São
Paulo : Paz e Terra.
96
FRANCIS, D. Op. Cit. P.31.
71
indústria cultural. Tudo era uma questão de posicionamento político, para Langlois era preciso agir
logo, para Lindgren preservar logo. O Inglês não se opunha totalmente à difusão, mas seu
esquematismo nessas questões (absolutamente corretas) – exigindo planejamento, solicitações com
três meses de antecedência para os programadores de cineclubes e outros fazia com que estes
corressem para cinematecas “menos burocráticas”, como a francesa. É preciso ter em conta que os
programadores tinham outros tipos de problemas. Seus calendários eram diferentes. Pensemos um
exemplo: uma assembléia de greve de metroviários parisienses não poderia esperar três meses para
ver exibido um filme que viesse de encontro aos seus anseios políticos imediatos.
Mais no rés-do-chão, o depósito legal parecia ser a grande solução para a não-seleção. Contudo a
batalha por ele foi longa. Langlois era contra a aceitação pura e simples dessa medida como
solução definitiva para o problema. Além dos pontos já levantados aqui, uma de suas preocupações
com a questão era o que houvesse intervenção de outro órgão estatal menos afeito aos problemas
da democracia e mais aos da censura. A Iugoslávia parecia ter encontrado a solução que visava a
manutenção da integralidade do filme, tal qual ele tenha sido concebido. Uma lei nesse país visava
o depósito não só do material fílmico, mas também de todo o aparato não-fílmico: roteiros,
decupagem, publicidade, fotos, visando a integridade da obra. Mas tal lei foi possível naquele país,
e sabe-se lá porque não foram nos outros. A questão do depósito legal e da não seleção puxam
outras. O percurso no desenvolvimento técnico das cinematecas tem suas particularidades. Nos
anos 50, a idéia que a tarefa primeira de uma cinemateca é a de cuidar da produção de seu país de
origem começa a ganhar corpo e se afirma. Por mais que de início tal concepção das atribuições de
um arquivo fosse estranha a intelectuais acostumados a encarar o cinema como uma arte universal,
rapidamente, a partir de então, eles perceberam que essa era a forma mais eficiente de salvar o
patrimônio cinematográfico como um todo. Do particular para o universal
98
.
97
Ibidem, P.37.
98
BORDE, R. Op. Cit. P.120. Nesse trajeto uma noção importante surge. A de filmes reconstituídos. Trata-se de
procurar em várias cópias, de diferentes tipos de material e formatos para procurar um caminho de montar a versão
72
No que toca às diferenças entre Langlois e Lindgren, elas são mesmo grandes. Ao que parece,
Langlois era mesmo desatento quanto aos problemas da conservação dos filmes. Lindgren ao
contrário, era o grande inovador do setor, alertando seus colegas que somente testes químicos
podem dar uma medida exata do estado de conservação de um filme. “Não podemos ver o caminho
da desintegração examinando o filme entre as mãos. Isto não é visível. Trata-se de uma evolução
quase secreta no interior da película”. Langlois ao contrário, segundo Borde, era capaz de
confundir um filme melado (em vias de decomposição avançada) com um filme encharcado de
óleo de um projetor ou coisa parecida. Lindgren, por sua vez, criou noções importantes como a de
cópia de preservação e desenvolveu metodologias e testes químicos para os filmes, como a utiliza
pequenas pastilhas das bobinas sob exame e aquecê-las de modo a provocar um envelhecimento
artificial.
99
Mas é preciso ponderar bastante acerca do histórico da conquista da objetividade
técnica para os arquivos e cinematecas descrito e defendido por Borde. Essa objetividade sem
dúvida é fundamental. Não teríamos cinematecas sem métodos e teorias específicas para o objeto
de guarda por excelência de uma cinemateca: o filme. Contudo, parece faltar no texto de Borde, e
mais especificamente, no tom das críticas a Henri Langlois uma devida contextualização do
período, falta historicizar melhor. Historiar a política no sentido amplo, do qual o panorama geral
está longe de estar desvinculado das questões específicas das cinematecas. É pouco esmiuçado o
que estava por trás de tamanha dedicação de Langlois à difusão dos filmes da Cinemateca
Francesa, do tipo de cinema que a política dele defendia e pretendia colaborar, e mais do que isso,
a visão que o grupo que partilhava do modo de ver a política, e a economia, e o papel que o cinema
deveria cumprir no panorama cultural, social. Como resultado desse tipo de política tivemos o Neo-
Realismo Italiano, a Nouvelle Vague francesa, o Cinema-Novo no Brasil, etc. O equilíbrio entre
mais completa possível do filme, respeitando as pistas que indicam como ele foi pensado e concebido. Nesse ponto
Paulo Emilio, por meio da sua pesquisa sobre Jean Vigo teve uma importância notável. Por último: a FIAF continuava
a alertar sobre a destruição de negativos e cópias levadas a cabo pela indústria.
99
Ibidem, P.123. O desprendimento de gazes nitratos coloria um reativo, e a partir do tempo decorrido tinha-se uma
idéia bastante precisa sobre o estado físico-químico do filme, e a conduta a ser seguida: menos de 10 minutos (estado
73
preservação e difusão foi historicamente rompido nas cinematecas do mundo de maneira geral, e
isso não é muito mais do que conseqüências de um quadro político mais amplo. Com a
objetividade técnica levada aos limites extremos não teremos mais cinematecas e sim arquivos de
filmes. Uma cinemateca é mais do que um arquivo, e o fato dela guardar e conservar outros tipos
de materiais não-fílmicos não a exime do destino, da “mutação” como chamou o mesmo Borde
anos depois, em conseqüências de uma objetividade excessiva.
Outro ponto fundamental é o problema dos catálogos: é um assunto complicado, mas eles são
absolutamente necessários, pois à medida que uma coleção cresce o arquivista perde o controle
sobre ela. “É preciso saber o que nós estamos conservando (…) A passagem do subjetivo ao
objetivo, quer dizer aos fichários, aos números, às listas, marcam o fim da confusão mental. Ele (o
catálogo) sublima a neurose do colecionador
100
”. Mas não devemos fazer disso “cavalo de
batalha”. Ao que parece nada indica que projetos de Cinematecas, como o de Paulo Emilio, não
quisessem fazer catálogos com dizem alguns, incluindo Borde. Paulo Emilio e Langlois, queriam
fazer as duas coisas ao mesmo tempo: catalogar e difundir, mas, genericamente falando, o status
quo assim não permitiu tal tipo de procedimento, mesmo estando estes intelectuais longe de querer
desrespeitar os detentores legais dos filmes.
Borde cita experiências como a da Biblioteca do Congresso de Washington (o mais antigo centro
no assunto: o copyright) e afirma que Lindgren é figura de proa aqui também. O inglês publicou
alguns catálogos de filmes selecionados, e foi seguido por outras cinematecas, como a de Laussane,
onde Freddy Buache foi o primeiro a publicar catálogos integrais. Borde crê que a verdade seja o
melhor caminho. As reticências de Langlois, contudo, são compreensivas devido ao avanço brutal
das leis de mercado no período sobre os arquivos, representadas pela figura do detentor legal dos
direitos sobre os filmes. O desejo de Lindgren, e esse sonho começava a se realizar, era o de um
de urgência e contratipagem imediata), 10 a 30 minutos (contratipagem rápida), 30 a 60 minutos (refazer o teste um
ano depois), mais de 1 hora (película aparentemente estável)
100
Ibidem, P.124.
74
catálogo mundial, um fichário mundial de filmes. Algo sem sombra de dúvidas excelente. Mas
quem e como seria utilizado esse fichário? Novamente o problema é histórico, não é técnico, e
muito menos pessoal.
A tensão girava em torno de Lindgren e Langlois, mas não podemos deixar de fazer alguns
comentários sobre a cinemateca que mais teve contato com o lado industrial do cinema. A Film
Library de Nova Iorque. Como afirmamos mais acima, mesmo alguns arquivistas italianos
(geralmente mais próximos de Henri Langlois) apontavam Nova Iorque como o modelo a ser
seguido. As razões apontadas para justificar a “supremacia” da Film Library baseavam-se no fato
que esta dispunha de dotações financeiras extremamente vastas e que assim pôde resolver ao
menos todos os difíceis problemas da conservação e da projeção de filmes. Ao lado das dotações
financeiras o grande mérito de Nova Iorque, e particularmente de Iris Barry, foi o de ter
estabelecido acordos com os principais produtores americanos, resolvendo juridicamente a questão
da conservação de filmes, para além do período fixado para a exploração comercial. Em troca dos
depósitos de filmes que apresentam um valor artístico, foi estabelecida a norma de não utilizá-los
com finalidades comerciais, e sim apenas para fins culturais.
101
No entanto, sabemos que as coisas
não são assim tão esquemáticas. Decorrente de questões de ordem política temos outras, muito
sérias a debater, quando se trata de definir as linhas gerais da política de um arquivo. Exemplo
disso, é pensar no que estamos preservando, ou antes, o que a sociedade está produzindo para que
nos mesmos preservemos. Pois no caso da extensão de monopólios no campo da produção (com os
quais Barry teve que se haver por toda sua carreira) em última instância uma cinemateca (órgão
público) passa a preservar um patrimônio estritamente privado e de acesso restrito aos consulentes.
Assim, o trabalho louvável de Barry talvez tenha sido o primeiro a abrir caminho (mesmo que sem
estar plenamente consciente) a uma percepção que levaria a indústria a encarar as atividades de
uma cinemateca como uma dupla fonte: uma de inspiração artística (que hoje bate o martelo no
101
BORDE, R. Op. Cit. P.94.
75
pastiche) e outra puramente mercantil. Ou seja, o fortalecimento de um circuito comercial de
exibição onde a programação apresenta-se quase como um simulacro da programação de um
cineclube ou de uma cinemateca. Seu projeto também estava longe do “bom e possível
radicalismo” político de Langlois que ficava cada vez mais isolado no âmbito da FIAF.
Apesar da Filmoteca do MoMA ter méritos por empreender exibições sistemáticas dos filmes de
sua coleção, a impressão que fica no ar é que esse arquivo norte-americano sempre viveu um
relativo clima de euforia mercadológica, em função dos acordos por ela estabelecidos com as
grandes companhias produtoras de cinema nos EUA, quaisquer que tenham sido as intenções de
Iris Barry e de seus sucessores. Em suma, fica uma impressão, que o caso americano (e o Inglês
também) foi mais atingido pelos benefícios do capital assim como por suas distorções, em função
de políticas mais conservadoras. Certamente as coisas não são assim monolíticas, mas apostamos
que o papel desempenhado por Londres e Nova Iorque, para o que Borde chamou de mutação das
cinematecas foi bastante decisiva: “As cinematecas eram conhecidas como uma criação artística e
poética. Os arquivistas navegavam entre o prazer e o conhecimento, entre a lembrança e a
exploração de um lugar desconhecido ou pouco conhecido. Eles conservaram as obras enquanto
hoje em dia nós estocamos os produtos
102
”.
Extensão cultural: projeções, publicações, etc: um combate pela significação do conceito
No que se transformou a difusão e a extensão cultural? Esta é a questão que nos interessa no
resultado do debate entre objetividade versus subjetividade na história das cinematecas. A
tendência de salas próprias para as cinematecas começa a se afirmar. A tendência das cinematecas
cuidarem de festivais nacionais também (não por muito tempo). Acordos teriam sido feitos,
visando melhorar as relações, muitas vezes complicadas, com os cineclubes, mas tanto a afirmação
76
da tendência de salas próprias para as cinematecas, quanto uma aparente falta de participação dos
cineclubes na organização dos festivais promovidos pelas cinematecas, parecem indicar um
resfriamento estrutural do movimento cineclubista. Uma das causas era o surgimento da Televisão.
No início, muitos arquivistas ficaram encantados com as possibilidades, mas a FIAF passou a
recomendar cautela e também que as próprias cinematecas elaborassem suas emissões televisivas
(idéia interessante). Mas o problema surge quando os arquivos e cinematecas passam a enfrentar o
interesse dos detentores legais com o advento da TV, e a recuperação do valor de mercadoria dos
velhos filmes. Langlois declara: “Existe sempre alguém que detêm os direitos, é um fato. As
pessoas podem desaparecer. Restam os herdeiros. É preciso que tenhamos contato com os
detentores e que façamos o papel de uma espécie de polícia internacional. O mercado livre
ressuscita. Nós devemos matá-lo. Outrora foi ele quem nos matou
103
.
Borde fala um pouco da importância das publicações empreendidas ou feitas em colaboração com
as cinematecas. Entendemos a idéia de antologias como a das emissões de TV. As cinematecas não
precisam apenas passar filmes, mas também fazê-los. Sobre exposições, Borde parece ser muito
cauteloso com o aspecto “culturete” da coisa toda, mas chama a atenção para a necessidade da
conservação do aparato técnico do cinema: aparelhos, câmeras, e porque não, de maquinário de
laboratório.
Por outro lado, Borde se refere pejorativamente ao que ele chamou de ilusões mundialistas.
Tratam-se daquelas tentativas de criação de organismos internacionais (já comentados aqui) onde
todos poderiam recorrer, tais como: fundos internacionais de cópias de filmes, etc. Segundo ele, os
projetos malograram em função de subjetividades advindas da Guerra-Fria. Prova cabal, em nossa
opinião, que Borde às vezes confunde a tal subjetividade com política. De fato, os franceses não
são mesmo fáceis – são francocêntricos, etc. – mas existe um pouco de pressa na análise de Borde,
102
BORDE, Raymond.
La mùtación des cinémathèques
. In : BORDE, Raymond ; BUACHE, Freddy.
La crise des
cinémathèques...et du monde. Laussane : Editions L’âge d’Homme, 1997.P. 9. Grifo nosso.
103
Ibidem, P.121. Borde esta citando Langlois.
77
e que compromete um pouco seu raciocínio sobre o percurso por ele tratado: da subjetividade à
objetividade técnica. Segundo ele, os países caíram nas garras de conjunturas específicas depois do
malogro de tais projetos internacionais: ora, as cinematecas, e os arquivos de filmes em geral,
sempre estiveram em parte à mercê de ambas: da conjuntura internacional e do que havia de mais
específico acontecendo em seus países. Um parêntese, apressando as coisas, mas que guardam uma
certa relação com esses projetos. Langlois acusou Jacques Ledoux (homem forte da FIAF no
período) de ter provocado prejuízos às cinematecas em função de certas negociações com a
UNESCO. O ponto principal é que Ledoux estava negociando com a UNESCO a feitura de
catálogos, os mais detalhados possíveis, e que estavam servindo de base para a negociação de
direitos legais de filmes de cinematecas para redes de televisão norte-americanas
104
. Certamente, é
algo que precisa ser mais bem investigado, por duas razões: Langlois já tinha alertado sobre alguns
perigos da solução de muitos problemas nevrálgicos das cinematecas via depósito legal, e segundo,
é preciso lembrar que alguns anos mais tarde que a mesma UNESCO faria a importante
Recomendação para a Salvaguarda de Imagens em Movimento (em 1983). Uma pista de que as
coisas também, ao mesmo tempo em que avançavam, estavam em um certo retrocesso, no sentido
de atribuir valor utilitário aos filmes.
Em 1953, no congresso de Vence, ficou para trás a última proposta de participação das cinematecas
na formação de suas próprias coleções
105
.
A crítica se refere a uma tentativa, por exemplo, de
entrevistar e filmar, personalidades do presente (mais ou menos com os mesmos objetivos que
aqueles do Festival de Antibes). Borde se coloca contra essa idéia, argumentando que era um
esforço demasiadamente grande, e que não era isso incumbência dos arquivos? Ele não deixa de ter
certa razão, mas, por outro lado, isso denota um culto a segmentação do trabalho, e as cinematecas
estariam assim incumbidas de guardar o que a sociedade produzisse. Nada mal. Mas quando
pensamos que tal prática colaborou, ainda que paralelamente, para o fortalecimento dos
104
MANNONI, L. Op. Cit ,P.286.
78
monopólios no campo cinematográfico - executados em alguma medida hoje no Brasil pelas leis
incentivo à cultura – passamos a considerar sob outra ótica essa questão.
Chegamos assim ao que para Borde é a vitória funcional das cinematecas, que do nosso ponto de
vista significa diálogo autista com o movimento cineclubista, e abstenção das cinematecas no
campo da produção. Jacques Ledoux simboliza a passagem, o último elo entre a subjetividade e a
objetividade. Ledoux que tinha feito da Cinemateca Belga uma das melhores do mundo em todos
os sentidos (ao lado de Montreal), inclusive na difusão – em sua própria sede, é bom remarcar –
transformado-a também em um museu de cinema, era um homem dedicado e rigoroso.
Segundo Borde, Ledoux chegou na hora certa para resolver algo que consideramos um completo
equívoco. Ele pede que sejamos marxistas e façamos de todos os que detêm o poder um reflexo e
um fruto de dados objetivos. Até aqui tudo bem. Argumenta ainda que, com Langlois, as coisas
tinham melhorado (para descartar o termo exato utilizado por ele: evolução) Até aqui também, tudo
bem. Mas, em seguida, ele desenha um argumento bastante complicado. Para Borde, O lapso
estava incrustado entre a infra-estrutura (as cinematecas em plena transformação, afrontadas com
imensos problemas técnicos) e a superestrutura (um feudalismo afetivo fincado em torno de um
chefe e de um símbolo)”.
De fato, a queda de Langlois e a subida ao trono de homens como Ledoux era a encarnação de uma
outra necessidade, aquela da preservação. O argumento é de Borde
106
. Mas não estaria ele
confundindo um pouco as coisas? Ou atribuindo um poder excessivo a Langlois? Pois a idéia de
cinemateca se liga a cinema, e cinema é em grande medida sinônimo ou dependente do capital, da
indústria, do capital financeiro. Langlois não seria muito mais um opositor de um verdadeiro poder
sob o qual o cinema é prisioneiro desde seu nascimento? As coisas mudam, e os conceitos também
mudam ao longo da história, mas continuam tendo história. No entanto, o papel que Langlois
cumpria ao lado de seu outro pólo Ernest Lindgren não seriam o fiel da balança onde se formou o
105
Ibidem, P.136.
79
conceito? Acreditamos que sim. A mudança a qual Raymond Borde se refere parece ser a que
levou ao que ele mesmo chamou de mutação das cinematecas. Teria ele amargamente percebido
que a mudança estrutural em operação no conceito naquele momento não era exatamente o que ele
esperava em 1983? Nessa data, Borde afirmava: “Com tal figura (Ledoux) associada ao presidente
Jerzy Toepliz, a FIAF iria entrar em uma fase muito mais construtiva, que respondia às
necessidades dos arquivos modernos”. Seria mesmo somente aos arquivos? De fato, e isso é
importante, os avanços técnicos foram enormes e são fundamentais. Avanços com o tratamento do
nitrato, por meio da sistematização e da publicação de manuais para tanto, bem como no trato do
filme colorido.
As comissões técnicas da FIAF são criadas nesse período. Comissões de Copyright, de
Documentação (que no caso das cinematecas refere-se ao que não é filme – bibliotecas,
hemerotecas, coleções de cartazes, fotografias, roteiros, arquivos pessoais, institucionais, etc.).
Ocorrem avanços enormes nos procedimentos de catalogação dos filmes, bem como nos não-
filmes, que chegariam à informatização das bases de dados. Tais avanços nos procedimentos de
catalogação referem-se, por exemplo, ao desenvolvimento das normas para o preenchimento das
fichas descritivas sobre os materiais conservados “de tal forma que um dia todos os fichários
possam se reunir em um fichário mundial
107
”, pois esse era o sonho de Lindgren. Muitos desses
avanços técnicos resultaram em publicações que potencializaram o desenvolvimento dos arquivos e
cinematecas pelo mundo afora, além de igualmente potencializar pesquisas sobre o universo da
cultura cinematográfica mundial, o que sempre reverte algo para as pesquisas técnicas, mas
ajudam, sobretudo no desenvolvimento das ciências humanas.Outro resultado desse período foi a
criação dos cursos de verão da FIAF (Summer Schools) iniciando e aprimorando o pessoal técnico
dos novos arquivos e cinematecas.
106
Ibidem, P.138.
107
Ibidem, P.139.
80
Mas existe uma relação direta entre a abertura das coleções para pesquisadores e a relação das
cinematecas com os detentores legais – isso explica um aberrante conflito entre arquivistas e
pesquisadores. Isso explica também o desenvolvimento tardio de pesquisas amplas e sistemáticas
no âmbito da FIAF, que são poucas, mas muito interessantes no período (1960 – 1982). Mas em
questionamento para lá de descabido, Borde escreve: “O discurso da FIAF e naturalmente técnico.
Tem ele o direito de ser histórico?”. Ora, estamos falando de fontes primárias, e isso é mais
importante do que saber se são historiadores ou não que vão escrever esse discurso histórico. Os
historiadores devem apenas ter os mesmos direitos. Somente em 1977 a FIAF acrescenta em suas
assembléias um simpósio histórico. No mínimo algo a se estranhar
108
.
Borde partilha da idéia que um catálogo mundial, nos moldes do que Lindgren planejava, é
fundamental, pois seria a única forma dos historiadores saberem o que existe. E eles precisam saber
disso. “Que em seguida eles negociem o direito de projetá-los (os filmes), é assunto deles. Mas eles
devem ser capazes de localizar as cópias”. A questão gira em torno do debate sobre o segredo dos
catálogos, prática amplamente utilizada por Langlois para proteger a coleção da Cinemateca
Francesa de oportunistas legalmente autorizados para explorá-la. Para o autor, os tempos mudaram
e esse debate se tornou menos problemático
109
. Ele trata dos oportunistas que ganham dinheiro com
um direito legal que muitas vezes lhes cai do céu como sendo uma exceção. Afirmamos, sem muito
medo de errar, que o que ele chamou de gaviões e tubarões já eram então a regra. Sobre estes,
afirma Borde, a lei do silêncio deve ser implacável. Como porém guardar um segredo financiado
pelos próprios tubarões?
108
BORDE, R. Op. Cit. Grifo nosso. P.140
81
Da vitória funcional à mutação do conceito
No que toca ao desenvolvimento histórico, no âmbito técnico e teórico das cinematecas, Raymond
Borde é brilhante. O objeto do autor francês pode ser resumido da seguinte forma: é a passagem da
primeira para a segunda geração da FIAF. Da primeira geração, que de maneira simplista é
chamada de a geração de colecionadores, para a segunda geração mais técnica, ou mais
profissional, como preferem alguns arquivistas (como o brasileiro Carlos Roberto de Souza, uma
das principais figuras da história da Cinemateca Brasileira pós-73, e um eminente representante
dessa segunda geração; já do final dela em alguma medida). Mas é bastante curioso notar a medida
da cautela de Borde quando o assunto é política. O sintoma mais forte dessa medida é o esforço
que o autor faz em afirmar, e tentar-nos convencer que o ambiente da FIAF ultrapassava o
“sectarismo” ou as polaridades políticas estabelecidas pela Guerra-Fria, em passagens como essa
de seu texto:
Malgrado a Guerra Fria, o Leste se juntou ao Oeste e os conservadores encontraram
a linguagem de uma paixão comum. Este é um período extremamente frutuoso, de aproximações
pitorescas, pleno de contradições, alegrias, dramas e entusiasmo
110
”. Um período de boa vontade
que fez com que fosse possível a linguagem técnica dos arquivos falar mais alto do que a política,
sem diferenças entre o leste e o oeste, entre as duas Berlins, entre as duas Coréias, entre o Egito e
Israel, etc., onde “uma linguagem comum, nascida do amor pelo passado e do corpo a corpo com a
técnica, transcendeu fronteiras
111
”. A FIAF flutuava no espaço mesmo com a política cumprindo
forçosamente seu papel? Certamente não!
Borde enfatiza dessa forma, que apesar das “idiossincrasias subjetivas” advindas da Guerra-Fria, o
desenvolvimento técnico e profissional das cinematecas foi possível. Talvez seja válido, em nossa
opinião, inverter a sentença e perguntar se não foi mesmo em função das especificidades políticas
109
Ibidem, P. 142.
110
Ibidem, P.108.
111
BORDE, R. Op. Cit. P.143.
82
que marcaram o período da Guerra-Fria, que o tipo de desenvolvimento das cinematecas ocorrido
após o final da II Guerra Mundial, e que se estende até hoje, foi possível (em seus muitas vezes
funestos desdobramentos).
O conceito se moldou como vimos a partir de duas experiências históricas que contribuíram cada
uma ao seu modo para a formação do mesmo; para a formação da idéia, do conceito de
cinematecas. A primeira experiência remete-se ainda aos primeiros arquivos e coleções, com o
desenvolvimento do interesse sociológico pelo filme (limitado por rígidos critérios de seleção) e no
início do desenvolvimento teórico da arquivem dos filmes. A segunda remete-se ao movimento
cineclubista dos anos 20, que igualmente preocupados com a conservação dos filmes (objetos de
análise e interesse), estenderam o significado sociológico do filme, por meio da valorização do
cinema de ficção, do filme experimental, do cinema tout court enfim, por meio da crítica
especializada por eles desenvolvida, e pela ampliação do escopo político da experiência,
democratizando o ideal desse cinema por meio da participação de entidades e grupos cada vez
maiores (ou representantes de outras camadas sociais mais amplas).
As duas correntes formadoras do conceito encontraram seu fórum de debates na FIAF, como
vimos, e o primeiro grande equilíbrio se formava para logo começar a ser rompido. Embora o
passado dos “pais fundadores” seja hoje alvo de críticas, bem ao gosto de Raymond Borde, a idéia
que se faz hoje de cinemateca, no que toca à Difusão, está ainda bastante arraigada, no discurso, a
concepção mesma que esses “pais fundadores” tinham de cinemateca. Quer dizer, quando a
cobrança se remete a determinadas ações levadas a cabo naquele tempo já remoto, o discurso é o de
que as coisas não mudaram tanto assim, e espera-se apenas o momento certo para um retorno
aquele tempo, aí sim glorioso. Não vemos, no entanto, uma reflexão profunda sobre as
contradições de tais projetos e a realidade sócio-econômica concreta de nossos dias. Isso demanda
cautela. Não é que não seja mais possível agir como no passado em relação à difusão. Mas, as
condições para aquele projeto foram desfeitas historicamente. O equilíbrio foi rompido a partir das
83
crises econômicas da década de 70 que desestabilizaram o quadro político social da Guerra-Fria.
Com uma URSS falida, e o retorno do laissez-faire dos neoliberais, não havia mais porque investir
em projetos educacionais e culturais como os das cinematecas dos anos 50, onde a tônica no que
toca à difusão recaía em um movimento cineclubista forte e na participação política ativa das
cinematecas na elaboração dos programas das escolas de cinema, preservando um antigo ideal
cineclubista: a luta contra um cinema estritamente comercial. Uma luta de cunho político mais
aberto e definido, e em larga medida revolucionária.
84
Capítulo II -
Cinemateca Brasileira, 1ª época: das luzes às chamas (1937 – 1957)
Pode parecer certo exagero, mas a história da Cinemateca Brasileira começa em 1937, um ano
antes da criação da Federação Internacional de Arquivos de Filmes (FIAF). Nesse ano, Paulo
Emilio chega à França, exilado em função do seu “processo-piada” no âmbito da intentona
comunista de 1935 no Brasil, e logo vai se inteirando do panorama político europeu assistindo a
vários congressos políticos. Inicialmente, sua aproximação com o cinema decorre do caráter
militante que parte do movimento cinematográfico tinha adquirido, e a amizade de Plínio
Sussekind Rocha (um dos criadores do Chaplin Club no Rio de Janeiro no final da década de 1920)
foi muito importante nesse sentido. Um dia Plínio perguntou ao jovem Paulo Emilio, “você que é
comunista, conhece as fitas russas?
112
Quando Décio de Almeida Prado ia visitar o amigo, Paulo Emilio levava-o a seções do Cercle du
Cinéma. Em depoimento da José Inácio, Décio relembra suas próprias impressões sobre esses
primeiros contatos com o movimento. Para ele, era uma noção bastante diferente sobre o cinema,
dando mais atenção à parte técnica e estética da coisa e não apenas do ponto de vista do
entretenimento
.
O cinema não era só espetáculo, também era arte, mas “no Brasil, ninguém se
interessava seriamente, ou escrevia sistematicamente sobre cinema (…) resolvemos criar um
movimento mais sério, um grupo que se interessasse, que fizesse um movimento. Nessa ocasião
112
SOUZA, J.I.M. Op. Cit. P. Para alguém que vinha de intensas agitações políticas no Brasil as conseqüências do
engajamento político do movimento cineclubista (quebra-quebras em cinemas, brigas, telas surrealistas expostas nos
saguões dos cinemas cortadas à faca, baldes de tinta jogados nas telas dos cinemas, dentre outras) deveriam ser mesmo
muito interessantes. José Inácio faz referências aos seguintes Clubes de Cinema que Paulo Emilio teria freqüentado
com Plínio Sussekind nos primeiros contatos com o movimento:
Club 32
;
Cine-Liberté
;
La boîte à films
e o
Cercle du
Cinéma. Para uma visão ampla do Chaplin Club, Cf: XAVIER, Ismail. Sétima Arte: um culto moderno. São Paulo:
Perspectiva, 1978.
85
estivemos em contato com alguns cineclubistas, mas ficou nisso
113
”. No entanto, a correspondência
sobre cinema continuou entre os dois. Décio, por sua vez, discutia a idéia com colegas da
Faculdade de Filosofia da USP, sendo por isso muito bem recebido. Em breve um Clube de
Cinema bastante francófilo seria criado em São Paulo. Paulo Emilio já era seu correspondente
estrangeiro.
De volta ao Brasil, Paulo Emilio passou por um período de calmaria e de adaptação ao panorama
político-cultural brasileiro e de São Paulo. Somente em 1940, ele voltaria à ativa de maneira
incisiva no plano político e cultural da cidade, e o clube de cinema foi um de seus principais meios
de ação. Para a criação do clube, o contato de Paulo Emilio com amigos que conheceu em Paris foi
fundamental, e o mais interessante é que uma dessas pessoas era Elias Lapzeon, criador de um dos
principais cineclubes argentinos e que se uniria a outros grupos posteriormente para criar a
Cinemateca Argentina. Contatos desse tipo foram feitos, portanto, desde o início
114
.
É importante notar (por meio dos estatutos) que desde o início o Clube de Cinema de São Paulo
seguia intenções muito próprias ao seu modelo maior o Cercle du Cinéma. No histórico do clube
publicado no primeiro número da revista Clima, já notamos a intenção de constituir um acervo de
filmes, a divulgação de periódicos, a formação de uma biblioteca, além da intenção de promover
palestras e debates sobre cinema. Os filmes e o equipamento eram alugados, segundo Paulo Emilio,
na Casa Isard, e segundo Rudá de Andrade, na Mesbla. Tratava-se de clássicos – já eram chamados
assim, segundo Rudá – e que pouco ou nada saíam das lojas, por pura e simplesmente falta de
interesse do público. O equipamento usado primeiramente era o Pathé-Baby um projetor de bitola
9,5mm.
O Clube começou com exibições privadas, sobretudo na casa de Paulo Emilio (mas houve
também algumas públicas que contavam com a participação de professores da USP como Jean
113
Depoimento de Décio de Almeida Prado. APUD: SOUZA. J.I.M. Op. Cit. P.130.
114
SOUZA. J.I.M. Op. Cit. P.140. Sobre o papel do Cine-Arte na criação da Cinemateca Argentina ver: ANDRADE,
Rudá de.
L’action des cine-clubs et des cinemathèques en Amerique Latine pour le developpement de la culture
cinematografique. ONU – Organisation des Nations Unies – Table-ronde internationale sur le cinema en Amerique
Latine. Santa-Marguerita-Ligure, 25-27 mai,1961.
86
Maugüé). Lang, Weine, Chaplin se repetiam nos programas, mas ao que parece os catálogos dos
poucos distribuidores disponíveis em São Paulo contavam com muitos outros filmes que serviam
aos propósitos da recém-criada entidade
115
.
Em um boletim datilografado, provavelmente escrito por Paulo Emilio, ficam expressas as
finalidades do Clube. A principal delas era congregar todos que se interessassem pelo cinema como
“mais do que simples divertimento, segundo a fórmula corrente no nosso meio”. O objetivo era
promover uma significativa melhoria do nível crítico das platéias, e aproximar esse público de
algumas das obras-primas da história do cinema, por meio da divulgação da teoria cinematográfica,
quase desconhecida no Brasil. O programa do Clube, dentro do que de mais tradicional havia em
um cineclube, demonstra certeiramente o quão grande foi a importância dessas entidades para a
formação das cinematecas modernas. Visando a constituição de acervo, o clube já tentava estreitar
laços com o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (por intermédio de Mário Schemberg) e com
Buenos Aires via Cine-Arte. Ao final da Guerra, esses contatos deveriam se estender à Europa:
Londres, Berlin e Paris. Esse era o plano.
A nova entidade despertava a simpatia de vários intelectuais, dentre eles, evidentemente, críticos de
cinema como Guilherme de Almeida e era planejada tanto a “legalização diante das autoridades do
país
116
”, como a temporada de 1941. Mas o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda de
Vargas – não estava achando a menor graça nisso, e fechou o Clube com a desculpa de falta de
licença para funcionar. Quando Paulo Emilio (fichado no DOPS como comunista desde 1935) foi
ao Rio de Janeiro tentar conseguir a tal licença, ouviu de Israel Souto, responsável pela área no
115
SOUZA. J.I.M. Op. Cit. P.141. As sessões públicas do clube contaram com uma estrutura que outrora foi montada
pelo Estado, em seus programas visando o incentivo do cinema educativo em todo o país. Foram duas exibições
públicas no Caetano de Campos, na Faculdade de Filosofia, sala “Álvaro Guião”, que contava com projetores de 16 e
35 mm, mas a maioria dos filmes disponíveis eram na bitola 9,5 mm dos projetores Pathé-Baby.
116
Histórico do Clube de Cinema de São Paulo publicado no primeiro número da revista
Clima
. P.155.
87
DIP, uma “conversa incrível”, que o próprio Paulo Emilio traduziu em bom português: “essa coisa
de intelectuais reunidos para ver filmes antigos só pode ser coisa de subversivos
117
”.
Mas, mesmo após o fechamento do Clube pelo DIP, as exibições continuavam clandestinamente,
nas casas de Paulo Emilio e de Lourival Gomes Machado. Continuaram, mas não duraram muito.
O mais importante é que a idéia estava plantada, e o Clube de Cinema de São Paulo esteve presente
nos debates sobre cinema durante todo o Estado-Novo, difundindo a idéia e o modelo de entidade.
Vinicius de Morais foi o primeiro a reviver a coisa. Ele defendeu a necessidade de debates e
exibições cinematográficas nas páginas do jornal A Manhã (como notou José Inácio, curiosamente
um jornal oficial) e levou-os a cabo, revivendo a velha polêmica entre o cinema mudo e o cinema
falado nas páginas de A manhã, em debates que chegaram a contar com a presença de Orson
Welles. A ação de Vinicius foi decisiva, como agente formador de público crítico, mas também
para manter viva a idéia de um movimento cineclubista no Brasil
118
.
Outra figura que merece todo o destaque nessa continuidade, foi Francisco Luiz de Almeida Salles
que, assim como Vinícius, participou das reuniões do primeiro Clube de Cinema de São Paulo.
Salles contribuiu, sobretudo, por meio de sua crítica de cinema no jornal O Diário de São Paulo
(assim como Ruy Coelho que o substituiu no mesmo jornal). É interessante notar, tomando o
exemplo de Almeida Salles, que os propósitos de Paulo Emilio em difundir cultura e teoria
cinematográfica deram bons resultados desde o início. Um início tímido, é verdade, para alguém
que se tornaria um dos principais críticos da história da crítica cinematográfica no Brasil. Vejamos
um trecho de um dos inúmeros diários de Francisco Luiz de Almeida Salles retratando uma das
reuniões privadas do Clube de Cinema de São Paulo, na casa de Paulo Emilio, em 1940:
117
José Inácio encontrou prontuários no DOPS onde um informante identificado com
K-7
alertava sobre a forma de
“doutrinação” do Clube “exibindo periodicamente filmes”. Uma doutrinação feita “de modo bastante útil e atraente”
118
Assim como Paulo Emilio, Vinícius também teve uma ligação estreita com ex-membros do Chaplin Club do Rio de
Janeiro, aliás Vinicius chegou a participar do referido cineclube.
88
21 de Setembro – Sessão de cinema em casa de Paulo Emilio Salles Gomes. “A morte de
Siegfried” e “A vingança de Kremhilde” de Fritz Lang. Apesar de improvisada a exibição
foi preciosa, pois os dois filmes são duas obras primas do cinema. Filmados em studio
constituem criações artísticas. “A vingança de Kremhilde” possui a grandeza e a atmosfera
das grandes tragédias clássicas. No tocante à técnica os filmes apresentam soluções
admiráveis, como, por exemplo, na “A morte de Siegfried”, o episódio das provas a que
Gunther se submete para desposar Brunhilde: o auxílio de Siegfried a Gunther é mostrado
de maneira genial. Na “A vingança de Kremhilde” há dois momentos magníficos: a
chegada de Kremhilde ao país dos hunos – com aquelas criaturas se agitando como ratos e
Átila, velho e imundo, jogando o seu manto ao chão para que Kremhilde nele pisasse; e,
ainda, o encontro de Átila com o filho recém-nascido
119
.
É curioso, pois Almeida Salles apenas aponta passagens dos filmes, não conseguindo ainda analisá-
las. O texto, porém, já fala de soluções e de forma em tal ou tal passagem, mas omitindo essa
“forma” do texto. O clube ajudaria assim decisivamente a difundir teoria cinematográfica (noções
de montagem, de ritmo, de movimentos de câmera, aspectos de mise-en-scène, etc.).
Procedimentos como o de “caçar” bons filmes em cinemas afastados do centro da cidade, foi outro
aspecto desta cultura difundida por Paulo Emilio, e largamente utilizada posteriormente por
pessoas como o próprio Almeida Salles. Com o fim do Estado Novo, o Clube de Cinema de São
Paulo ressurgiria, no final do ano de 1946, respirando ares mais democráticos. Mas ainda em plena
ditadura, tivemos a experiência da revista Clima, da qual Paulo Emilio foi um dos principais
nomes. A revista tem uma importância fundamental na história da Cinemateca Brasileira.
Não cabe aqui esmiuçar a trajetória da revista considerada como marco inaugural da moderna
crítica de cultura no país, sobretudo teatro, música, artes plásticas e cinema, em função do rigor
teórico-metodológico dos ensaios nela publicados
120
. O que nos interessa aqui é reforçar a tese e
rechaçar as acusações de formalismo teórico e pouca criatividade artística de seus editores. A
frente de combate era ampla. O projeto da revista, e o de Paulo Emilio em particular, era mesmo
arraigado no conceito de cultura tout court, com a pretensão de abarcar todos os campos relativos
às ciências humanas. Do ponto de vista estético e político, podemos ver no projeto da revista uma
ante-sala do projeto da Cinemateca, e dos problemas por ela enfrentados.
119
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ PI, Década de 1940.
89
José Inácio nota que os comunistas não alinhados ao comando do PCB também faziam muitas
restrições à revista, todos mais ou menos no mesmo tom: “Que sentido tem no momento atual
discutir-se, por exemplo, se John Ford identifica-se com os marinheiros dos filmes dele ou outro
problema estético dessa ordem?” Comenta Ruy Coelho, reproduzindo o que diziam estes
comunistas. Não era claramente visível, ou perceptível, a contribuição social que um debate
estético poderia dar em curto, médio e longo prazo. O fato é que a revista pode ter tido sua fase
apolítica, mas aqueles que faziam não. Alguns de seus redatores praticavam um pensamento de
esquerda não dogmático, e a ação destes na luta contra o Estado Novo foi apenas mais visível, pois
sofria por isso perseguições. É preciso, contudo, que estejamos atentos ao orgulho de Candido pela
defesa de uma linha política de esquerda independente, pois isso será importante para as
demarcações que pretendemos apontar mais adiante: “Um esforço muito de nossa geração e do
qual tenho muito orgulho (…) de procurar uma posição afastada do stalinismo e do trotskismo,
mantendo-se no campo da esquerda”. A afirmação de Candido será fundamental na tentativa que
faremos de depurar as mediações que se estabeleceram entre os jovens intelectuais da revista
Clima, decorrentes de sua aliança com a burguesia paulista visando a realização de projetos no
campo da cultura em São Paulo. Aliança que, se de início apresentava “estranhas confluências”
para além da aparência, continha em si diferenças (políticas) importantes e fundamentais, que
alguns anos depois se tornariam indisfarçáveis. Era, contudo, uma posição que dificilmente seria
compreendido pelo posicionamento muitas vezes tacanho das esquerdas no Brasil e que dificultaria
decisivamente a realização do projeto de Paulo Emilio para a cinemateca.
A história do grupo de Clima mostra que, quando Paulo Emilio afirmava (em meados da década de
50) que a cultura cinematográfica é inseparável da cultura tout court, ele não fazia abstrações. O
engajamento político na segunda fase da revista, na luta contra o Estado Novo, é um elemento
fundamental do projeto político-cultural de Paulo Emilio.
120
Para uma visão ampla da história da revista. Cf: PONTES, Heloisa.
Destinos Mistos
. São Paulo: Cia. das Letras,
90
Política, intelectuais, cultura e burguesia em meados da década de 1940: um altar barroco
Paralelamente à luta dos intelectuais contra o Estado Novo esboçada acima, com a II Guerra
começa a se reorganizar outro elemento decisivo para a trajetória histórica da Cinemateca
Brasileira: o mercado de artes e antiguidades no Brasil. A reorganização desse mercado é
fundamental para a compreensão do nosso objeto, pois a criação das grandes instituições culturais
na década de 1950 dependeu muito do quadro que começará a ser esboçado aqui. O anseio das
elites brasileiras por atualizações no campo da cultura teria permitido assim o acesso a encomendas
do governo, o que significava penetração do modernismo neste campo, promovendo também a
revalorização do folclore e do barroco brasileiro, formando um quadro de nacionalismo nas artes
mesclado à ampliação do mercado de bens culturais.
A sistematização do campo se deu com a aproximação (em forma de sistema) entre artistas
consagrados, jornalistas, escritores, artistas estrangeiros, por aqui, em função da Guerra e com
artistas proletários formados ou não nos liceus de Artes. Os jornais e revistas passaram a escrever
com freqüência sobre isto. Contudo, “poucos anos depois, ainda como efeito da expansão e
consolidação de revistas e jornais, e da diversificação de suas seções regulares, começou o
colunismo social
121
”. Algo em si importante para compreender o arrivismo de parte das elites
paulistanas, pois se os jovens intelectuais de esquerda (cujo nosso interesse recai) participavam e
mesmo compartilhavam de alguma forma o mundanismo de colunismo social presente, certamente
para eles isso estava longe de ser o mais importante. É bastante conhecida a espécie de
“progressismo provincianista” da atmosfera de São Paulo, antes da institucionalização do ensino
que se relacionasse ao campo das artes, filosofia, etc. (e mesmo nos primeiros tempos dessas
instituições).
2004.
91
Todavia, nem só de provincianismos progressistas viviam os projetos levados a cabo pela alta
burguesia de São Paulo, e foi exatamente dentro de seus “quadros” que surgiram elementos
contestadores de sua lógica, mas que ao mesmo tempo (inicialmente) dependiam dela, e mesmo
corroboravam dela. Partindo das premissas básicas aqui levantadas, podemos perceber algumas das
principais formas e origens dos grupos de intelectuais estudadas por Antonio Gramsci, por meio da
qual podemos começar uma depuração dessas relações. Pois nesse quadro (que beira a confusão),
para identificar o trajeto dos intelectuais que nos interessam mais de perto, é necessário um esforço
que nos permita enxergar as partes como o todo e o todo como construção das partes, pois só aí
poderemos analisar as funções das partes no todo e do todo nas partes.
Pensando no grupo de Clima (e naqueles que formariam o “grupo da cinemateca”), em primeiro
lugar, devemos atenção a filiação deles, por assim dizer, com categorias intelectuais pré-existentes,
“como representantes de uma continuidade histórica que não foi interrompida nem mesmo pelas
mais complicadas e radicais modificações das formas sociais e políticas
122
”. É possível notar
também traços daquela categoria de intelectuais que surge no bojo de todo agrupamento social para
validar e dar homogeneidade e consciência de sua própria função – tanto no campo econômico
quanto no político e social
123
. Depreendemos tal colocação partindo de uma premissa: a de que a
burguesia paulista que investia no âmbito da cultura, de instituições culturais, tentava naquele
momento criar uma elite intelectual para a apreciação da obra de arte e para o gerenciamento desse
ramo de mercado e da vida social. Em princípio, se poderia dizer que concebido desse modo,
nosso argumento quer dizer que os criadores do Clube de Cinema de São Paulo eram intelectuais
orgânicos a serviço da burguesia. Contudo, a orientação ideológica era, grosso modo, bastante
diversa, ou pelo menos viriam a ser bastante diversa entre esses dois grupos genéricos (a burguesia
121
DURAND. J.C. Arte, privilégio e distinção. São Paulo: Perspectiva/ EDUSP, 1989. P.105.
122
GRAMSCI, A.
Op. Cit. P.18.
Neste caso trata-se das já mencionadas relações entre os intelectuais criadores do
Clube de Cinema de São Paulo com os modernistas de 1922, com o
Chaplim Club
e com o movimento cineclubista
internacional.
123
Idem, Ibidem.
92
e os intelectuais do Clube de Cinema de São Paulo), sobretudo no embate em torno da
mercantilização da cultura.
O que pode parecer incompatível guarda seu interesse maior, e também as maiores dificuldades
para uma melhor compressão das contradições. O empreendimento cultural da burguesia era,
todavia, um empreendimento cultural tout court e participava da dinâmica social do período,
“descolando-se” de sua infra-estrutura de classe, desenvolvendo vida própria, tornando-se mais do
que burgueses
124
. Assim, o importante é tentar perceber como, nessa espécie de “amálgama
ideológico”, formam-se grupos de intelectuais orgânicos e também (quase como um substrato
deste empreendimento) organizadores da cultura (veladamente ou não oposicionistas da lógica do
projeto da burguesia paulista).
Pierre Bourdieu torna mais claros os possíveis caminhos de como uma determinada ação no plano
da cultura pode ter significados muito diversos para as diversas partes constituintes do grupo que a
empreende
125
. Sendo aqui bem objetivo. A geração de intelectuais que criou o Clube de Cinema de
1946 é herdeira do projeto da burguesia acima referido. Herdeira direta, portanto, da USP e da
Escola livre de Sociologia. Ora, de fato, trata-se de empreendimentos da burguesia paulista no
campo da cultura que tinham “funções” no campo político e social para esta última, como por
exemplo: obtenção de status social por meio do mercado de arte. Contudo, as formulações que
faziam tanto aqueles que ajudaram financeiramente o cineclube; a filmoteca – via MAM; MASP,
dentre outros caminhos - como aqueles que “simplesmente” usufruíam benefícios dessas atividades
culturais não eram necessariamente as mesmas, quer dizer, as opiniões desses grupos para com as
funções e razões de ser do cineclube (ou de um Museu de Arte Moderna) poderiam variar, e muito.
De fato a burguesia financiou esses projetos no início. Mas, a atenção que devemos às origens
sociais desses intelectuais, seus laços com a aristocracia, etc., não podem prevalecer sobre as
aspirações políticas desses grupos, ou sobre uma análise mais detida dessas aspirações.
124
CANDIDO, A.
Feitos da burguesia
. In:
Teresina Etc.
São Paulo: Paz e Terra, 1992. P.88.
93
No caso dos intelectuais ligados aos problemas da cultura cinematográfica nos anos de 1940 e de
1950 no Brasil – veremos que suas ligações com determinadas parcelas das elites eram muito
intensas; ligações estas que permitiram, inclusive, que pudessem colocar na prática as idéias e os
projetos muitas vezes caríssimos que tinham em mente. São as mediações, divergências e
desarranjos que nos permitem compreender o atual estado das coisas, e não apenas porque não
deram certo no passado. Acreditamos que as intenções desses intelectuais de esquerda com o
empreendimento burguês eram outras desde o início (que não a mercantilização da cultura: que foi
em grande medida o resultado final no Brasil de um processo do capitalismo).
O financiamento da burguesia foi então um meio para esses intelectuais e os intelectuais foram um
meio de obtenção de capital simbólico e cultural para essa burguesia. Não que eles não
compactuassem em alguma medida com as aspirações do que estamos chamando aqui
genericamente de burguesia, e vice e versa. A demarcação que ocorrerá posteriormente – no pré-64
– vai, contudo, demonstrar melhor (historicamente) as divergências e as conivências de parte a
parte. Mas, o que nos interessa aqui é compreender como intelectuais de esquerda conviveram e
trabalharam em conjunto com parcelas da elite (mecenas) conservadora em certo sentido – que
acabaram promovendo uma modernização conservadora – em um “mesmo” objetivo. Como era
essa relação? Quando e como seu equilíbrio de tensões foi rompido? E, como foi rompido? Nesse
ponto, Gramsci e Bourdieu estão de pleno acordo. É preciso que estejamos atentos tanto para o que
a atividade intelectual tende de específico, como para a rede de relacionamento social que envolve
os diferentes estratos sociais, principalmente com aqueles que Gramsci chama de grupos sociais
fundamentais, ou seja, aqueles diretamente ligados aos grupos dominantes, que exercem em toda a
sociedade um domínio direto ou de comando
126
. Pois, como lembra Bourdieu, tais redes de
relacionamento social implicam paralelamente interdependência com relativa autonomia.
125
BOURDIEU, P. Economia das trocas simbólicas: São Paulo, Perspectiva, 1992.
126
GRAMSCI, A. Op. Cit. P.20.
94
É mais ou menos daqui que parte nossas hipóteses principais sobre este tema: “Levar a sério a
noção de estrutura social supõe que cada classe social, pelo fato de ocupar uma posição numa
estrutura social historicamente definida e por ser afetada pelas relações que a unem às outras partes
constitutivas da estrutura, possui propriedades de posição relativamente independentes de
propriedades intrínsecas como por exemplo um certo tipo de prática profissional ou de condições
materiais de existência
127
”.
O Segundo Clube de Cinema de São Paulo (1946)
Não é exagero nenhum dizer que o Segundo Clube de Cinema é rigorosamente a continuação da
experiência de 1940. Durante a Guerra, as idéias aparentemente não arrefeceram. Pelo contrário,
elas maturaram, e seu desenvolvimento foi notável.
Na tradição que vinha do Chaplin Club (passando pelo 1º Clube de Cinema de São Paulo) até os
debates sobre cinema durante o Estado Novo (com Vinícius de Morais, Almeida Salles, dentre
outros) a defesa do cinema enquanto arte já tinha ganhado terreno no meio intelectual, sendo
possível retomar (ou continuar) as diretrizes do 1º Clube, com possibilidades renovadas pela
síntese de um esboço muito bem traçado entre a tradição crítica no campo do cinema, e da
redemocratização do país. Os princípios eram os mesmos. Promover exibições de filmes de todas
as épocas, escolas e nacionalidades, afim de que o público pudesse julgar o cinema “com maior
conhecimento de causa e com visão mais larga, libertando-se assim da admiração incondicional e
exclusiva das fórmulas comerciais do cinema norte-americano
128
”. Assim, era possível dar-lhes
127
BOURDIEU, P. Op. Cit. P.3.
128
Boletim do 1º Clube de Cinema datilografado em papel timbrado da USP - Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras. Arquivo Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira AAS/ ADM – Dossiê 1. MAM/ CB/ Clube de Cinema de São
Paulo.
95
sentido histórico, na tentativa de possibilitar para esse público um espaço para pensar criticamente
o passado – pelo cinema – e por conseqüência o presente
129
.
Como vimos no esboço histórico que traçamos do movimento cineclubista francês, existiram no
mesmo, duas correntes básicas para as atividades de uma entidade desse tipo. Um tipo de cineclube
mais voltado para os profissionais de cinema, e um segundo voltado para um público mais amplo.
O cineclube paulista perseguia a segunda linha. E se o público tinha dificuldades para entender o
cinema como um fenômeno que transcendia o mundanismo e a distração, se cinema era para esse
público ou o que se via na tela ou as fofocas dos bastidores das grandes companhias americanas, e
onde fazer cinema ou discuti-lo era participar delas (das fofocas e das grandes companhias), era
preciso, por parte dos diretores do Clube de Cinema de São Paulo reforçar incisiva e
constantemente as finalidades da entidade. Por isso mesmo seu programa, assim conforme lemos
em seu boletim era “mais crítico do que criador: visa ele, com efeito, melhorar o nível crítico das
platéias paulistas, pondo esta em contato com algumas das obras primas cinematográficas do
passado e divulgando as idéias dos grandes teóricos do cinema quase que desconhecidas entre
nós
130
”.
Apesar dos problemas para encontrar um lugar fixo para as suas exibições, o Clube de Cinema de
São Paulo teve um amplo apoio da imprensa, notadamente o do jornal O Estado de São Paulo. O
jornal divulgava a programação e as realizações do Clube, e quase que transcrevia os debates e
conferências que aconteciam após as seções, “eram praticamente as atas dos debates” disse Rudá
de Andrade, não sem certo espanto, quase 60 anos depois
131
. Além disso, os rodapés do Clube de
Cinema no Estadão vinculavam o que eram, na prática, pequenas aulas sobre a história do cinema e
de princípios teóricos de sua estética. Em uma rápida passada no ano de 1947 (pelo referido jornal),
129
Idem. Grifo nosso. Fato importante, pois, na São Paulo dos anos 40, cinema era mesmo (majoritariamente) o que se
via na tela, a saber, a diversão vinda do fora (notadamente Hollywood), que a julgar pelo boletim do Clube de Cinema
de São Paulo iam (na época) das fórmulas mais tradicionalmente conhecidas por nós até hoje, a outras curiosíssimas,
como a dos “dramas de enfermeiras versus esposas”. Gêneros cuja aceitação dos filmes passava, por exemplo, pelo
fato dos vestidos das mulheres estarem ou não fora de moda
130
Idem.
96
encontramos um rodapé sobre teoria de roteiro, um sobre a relação cinema e música e outro sobre
John Ford, além de muitas outras notícias sobre o Clube de Cinema
132
.
A repercussão das atividades e dos debates do cineclube nos meios intelectuais era grande, e a
programação continuava a seguir a mesma linha: cinema mudo, estrangeiro; clássicos das
vanguardas européias, Chaplin, Lang, Weine; Griffith, “primitivos franceses”, dentre outras coisas
nesta linha que incluía também o que era entendido como o melhor do cinema americano, como
John Ford e Douglas Fairbank. Em suma: tudo aquilo que serviu de investigação e para a elevação
e reconhecimento do cinema como arte nos debates europeus nos anos 20 e 30. O país estava
atrasado dez anos. Era preciso recuperar terreno.
O MAM, o MASP e a nova indústria cultural no Brasil
A próxima etapa na história da Cinemateca Brasileira passa pela filiação do Clube de Cinema no
recém criado Museu de Arte Moderna de São Paulo. Como nos lembra Maria Rita Galvão, a
história do Museu de Arte de São Paulo e do Museu de Arte Moderna (MAM/ SP) está
intimamente ligada a um processo importante da história brasileira que tem início, por assim dizer,
na “Revolução de 30
133
”. Descontentes com a política de Getúlio Vargas, parte das elites de São
Paulo prepara um revide no âmbito da cultura de modo e tentar recuperar em parte o poder
político-cultural (poder simbólico) perdida com a crise de seu poder econômico. Um projeto de
caráter institucional para a cultura (levado a cabo pela burguesia) estaria por vir, e dele fizeram
131
Depoimento pessoal de Rudá de Andrade ao autor.
132
Teoria e prática do pequeno cenário
. OESP, 4/09/47;
Em torno da cinemúsica
. OESP, 28/09/47.
Domínio dos
bárbaros (“The f ugitive”) 1947. OESP, deste último não temos a data.
133
GALVÃO, Maria Rita E.
Burguesia e cinema: o caso Vera Cruz
. Rio de Janeiro: Embrafilmes/ Civilização
Brasileira, 1981. Com a crise de Wall Street (1929) e a brusca desvalorização do preço do café no mercado externo, a
hegemonia paulista no cenário político brasileiro entra em crise. O país, sobretudo o sudeste, vivia um clima de intensa
agitação social com a “Revolução constitucionalista de 1932” (a derrota paulista, dessa vez no âmbito militar),
passando pela “intentona” comunista em 1935, até o golpe de Vargas em 1937 instaurando o Estado-Novo. Nesse
quadro, uma nova configuração do debate em torno do conceito de nacionalismo, ou antes, dentre as diferentes
vertentes de nacionalismo brasileiro, se concretizou.
97
parte, em um primeiro momento, como já lembramos, a criação da Escola Paulista de Sociologia
em 1933 e a criação da Universidade de São Paulo em 1934. Posteriormente, seguindo a mesmo
esteio, na década de 1950, inaugura-se o que Rudá de Andrade chamou de “a era das instituições
culturais em São Paulo”. Foi a época da criação do TBC, da Escola de Arte dramática, da Vera
Cruz, dos Museus de Arte e de Arte Moderna, da Bienal, da PUC, do Foto Cine Clube
Bandeirantes, e até mesmo da formação de locais específicos para encontros informais dos
intelectuais, como o salão de chá da Livraria Jaraguá, o Clube dos Artistas, o Nick Bar
134
.
José Carlos Durand matiza as razões que levaram - no momento de gestação do grande projeto da
burguesia ciosa de empreendimentos no campo da cultura - a mudança de foco da Europa para os
EUA (e México). Tal mudança não ocorreu exclusivamente em função de dificuldades advindas da
Guerra. A aproximação com os EUA se deu também por política (medo antinazista e
anticomunista), o que se insere na política de boa vizinhança promovida pelos EUA. Para tanto, foi
criado, como sabemos, um Departamento de Estado com amplo programa ideológico de reforço do
valor da nação americana perante os povos da América do Sul. Departamento este confiado por
Roosevelt a Nelson Rockfeller
135
.
O que temos a partir desse momento, é um novo estágio de organização do mercado de artes no
Brasil, em um desdobramento ao estágio anterior, ao qual já aludimos, e que inaugura uma nova
etapa da indústria cultural no Brasil. O exemplo a ser seguido pelos dois principais “mecenas”
paulistas (Assis Chateaubriand e Cicillo Matarazzo) era sem dúvida o de Nelson Rockfeller na
administração do Museu de Arte Moderna de New York. Tratava-se do grande norte, sobretudo do
ponto de vista ideológico, já que Rockfeller agia “como sinalizador da compatibilidade entre arte e
negócios ou, se quiser, da arte como fonte de rentabilidade simbólica valiosa para homens de
empresa
136
”.
134
ANDRADE, Rudá de.
“A permanente memória do cinema”.
Folha de São Paulo, Cad.Mais!, 15/12/96.
135
DURAND. J.C. Op. Cit. P.109.
136
Ibidem, P.111.
98
Na tentativa de explicar a inserção do cinema no escopo mais amplo do projeto da burguesia no
campo da cultura, Maria Rita Galvão recorre ao que para ela são explicações já conhecidas para
isso: a explosão e internacionalização dos cinemas nacionais no pós-guerra, e por conseqüência
disto, dos festivais internacionais para o mercado externo (Cannes, Veneza, etc.
137
). Além disso, o
pleno domínio de uma atividade complexa como essa significaria que o país estava apto a ingressar
no mundo industrial pela porta da frente, e era esse o significado pleno da palavra cultura para a
alta burguesia paulista desde aqueles tempos: uma vitrine, uma mercadoria de luxo, no mesmo
esteio da institucionalização das artes plásticas no Brasil dos anos 50 – MASP / MAM. Nesse
sentido, há um certo consenso em atribuir o ingresso do Clube de Cinema nos quadros do MAM
devido a um convite de Cicillo Matarazzo. Mas como veremos, as coisas não foram assim tão
unilaterais. Conforme já afirmamos, existiam, desde o início, interesses conflitantes em jogo.
Da Filmoteca do MAM à Cinemateca Brasileira: da burguesia ao Estado. Esforços para a
formação e salvamento de um acervo, prenúncios mal traçados da derrota de um projeto
Enquanto o projeto do Museu de Arte Moderna começava a sair do papel, Paulo Emilio estava na
Europa. Em 1946, ele foi para a França com bolsa do governo francês no Institut d’Hautes Études
Cinématogràfiques (IDHEC). No Instituto, ele assistia, sobretudo, às aulas teóricas, de teoria e
estética cinematográfica, mas seu programa não estaria completo sem a Cinemateca Francesa, que
passou a freqüentar muito, para espanto até mesmo de Henri Langlois (Secretário-Geral da
Cinemateca Francesa).
A Europa respirava aliviada depois de seis anos de guerra, e desde a Primeira Convenção Geral da
Unesco em 1946, Paulo Emilio (já engajado nas questões do campo cinematográfico) defendia a
democratização da cultura via cineclubes e cinematecas. O cinema visto como arte necessitava de
137
Ibidem, P.44.
99
livre tráfego (alfandegário) para filmes que seriam usados com finalidades culturais. Ele
argumentava, e fazia coro pela criação de leis para o depósito legal de filmes, o que na prática era
um pedido de apóio formal da UNESCO para os cineclubes e cinematecas
138
.
A primeira ação de Paulo Emilio, que contribuiu decisivamente para o 2º Clube de Cinema de São
Paulo, foi o fato de tê-lo representado, nos quadros do Festival de Cannes em Junho de 1947, no I
Congresso Internacional de Clubes de Cinema, conseguindo a filiação da entidade paulista na
federação internacional criada durante o festival. Foi Paulo Emilio quem avisou seus colegas de
São Paulo sobre o certame. De São Paulo, Almeida Salles agradece o empenho do colega em Paris,
e lamenta o trabalho estafante que estava tendo, dividindo-se entre suas obrigações de assistente
jurídico da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo e a presidência do Clube: “Isso
significa trabalho estafante, de manhã até de noite. Sinto que poderia fazer muito pelo Clube, se
dispusesse de tempo, pois fervor e entusiasmo não me faltam. Vai-se realizando o possível, porém.
Mando alguns modelos de notícias, de circulares, os rodapés dos debates do Estado
139
”.
Mas a filiação à Federação Internacional de Cineclubes não foi tão simples assim. Reclamando da
demora de respostas e informações de São Paulo, Paulo Emilio esclarece que representou o Clube
sem credenciais ou qualquer outro tipo de documentação da entidade: “Os homens achando que eu
devo ser uma espécie de representante pessoal do Dutra para matérias de cinema, pediram que
desse a adesão dos clubes de cinema brasileiros para a recém-criada Federação. O que foi feito
140
”.
Durante suas viagens pela Europa – aonde ia conhecendo as experiências ligadas à cultura
138
Ibidem, P. 294. Paulo Emilio foi convidado a participar dela provavelmente pelo embaixador do Brasil em Londres,
o chefe da delegação, e seu cargo foi o de especialista em cinema. No mais, é importante lembrar outras atividades de
Paulo Emilio na França. Ele esteve ligado por alguns anos, por intermédio de Paulo Duarte, ao Institut d’Hautes Etudes
Brésiliennes – espécie de departamento do Museu do Homem em Paris. O instituto visava à realização de intercâmbios
e traduções de parte a parte, a formação de uma biblioteca, dentre outras coisas. (em 1952 o IDHEB se incorporou ao
Instituto de Altos Estudos da América Latina). Fazemos questão de lembrar essas primeiras atividades de Paulo Emilio
na França de modo a tentar ajudar a mensurar o quanto isso seria importante para o futuro da Cinemateca Brasileira, ou
mais imediatamente para o futuro do Clube de Cinema de São Paulo, e da Filmoteca do Museu de Arte Moderna de
São Paulo, criada a seguir.
139
Arquivo Paulo Emilio/ Cinemateca Brasileira. PE/ CP. 0476.
140
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
100
cinematográfica m diversos países - Paulo Emilio continuava a dar indicações precisas sobre o
desenvolvimento do movimento cultural europeu no pós-guerra
141
.
Como vimos, desde o início das atividades do Clube de Cinema de São Paulo em 1940, são
expressos os interesses deste em estabelecer intercâmbios com entidades que pudessem ajudar o
clube a montar seus programas. Paulo Emilio foi decisivo para isso, e a intensidade com que se
embrenhou no panorama europeu tiraria o cineclube paulistano da rota de suas mais elementares
atribuições enquanto um Clube de Cinema: a “simples” difusão de cultura cinematográfica. A ação
de Paulo Emilio levaria o projeto a alturas que eram ainda inconcebíveis para seus colegas
brasileiros. Ele compartilhava, é verdade, do anseio de seus colegas, a saber, o do aumento de
programas disponíveis para as exibições do Clube de Cinema, o que contribuiria para o avanço dos
estudos sobre cinema no Brasil. Mas já enxergava bem mais longe. A densa correspondência entre
Paulo Emilio, Almeida Salles e Lourival Gomes Machado dá uma idéia do que estamos afirmando,
e da vitalidade de Paulo nas démarches européias. Em um trecho (que é longo, mas merece ser
transcrito), comentando a articulação do movimento cineclubista italiano, Paulo Emilio explica a
possibilidade de circulação de filmes no Brasil de posse da federação italiana de cineclubes, o que
nos fornece pistas da intensidade dos contatos e do trabalho do brasileiro, exemplificando a rede de
relacionamentos que ele pretendia estabelecer:
141
Mas antes que continuemos nesse trajeto, é preciso insistir em uma idéia que nos parece importante. Já sugerimos
que quando Paulo Emilio vai para França estudar cinema, não ocorre ruptura nenhuma no que havia de essencial no
seu projeto político, nas suas aspirações democráticas, cujas linhas gerais foram esboçadas mais acima. Frustrado com
o quadro político brasileiro, parte para a Europa, para estudar cinema. Esse foi para ele o meio encontrado para operar
uma “mudança de eixo” na sua militância de juventude: da militância partidária para a militância política cultural. Mas
o fato é que não há ruptura. Como lembrou Antonio Candido “Acabara o militante de partido, embora nunca houvesse
acabado o homem visceralmente político que sempre foi, capaz de politizar qualquer atividade. CANDIDO. A. Informe
político.
P.67. In: GOMES, Paulo Emilio Sales.
Paulo Emílio: Um intelectual na linha de frente; coletânea de textos
de P.E.S.G;
Organizadores: Carlos Augusto Calil e Maria Tereza Machado.
São Paulo: Brasiliense. Co-edição da
Embrafilmes, 1986.
101
Vocês precisam mandar cartas para a Itália manifestando interesse em que o Festival seja
levado para aí. Seria bom, além do Clube de Cinema daí e do Rio, que também se
interessassem outros organismos culturais e artísticos (se si conseguisse as universidades
seria ótimo). Devem ser enviadas três cartas. 1) para o Ministério das Relações Exteriores
da Itália 2) para o senhor Calvino chefe (capo!) da Direção do Cinema, ofício que depende
diretamente da Presidência do Conselho de Ministros (os nomes exatos vocês conseguem
aí no consulado ou na Embaixada do Rio) 3) para o senhor Pietrangelo – presidente da
Federazione Italiana dei Circoli del Cinema – Via Uffici del Vicario 49 – Roma. Bem,
essas cartas todas, muito corretas e oficiais e em italiano, devem ser enviadas
acompanhadas de uma carta do Itamarati, manifestando interesse pela cousa. Se tudo puder
ser enviado através do próprio Itamarati então é melhor ainda. O homem no Itamarati que
se interessará pela cousa é Roberto Assumpção, diplomata que liga muito para as cousas
do cinema. Além das cartas oficiais, creio que uma outra carta menos formal e que poderá
ser escrita em francês, para o Pietrangelo anunciando-lhe que as démarches oficiais estão
sendo feitas, ajudará para que se ganhe tempo. Essa segunda carta para o Pietrangelo
deverá ser enviada o mais depressa possível. Além do mais o Ungaretti se poz a nossa
disposição para ajudar a cousa. De maneira que logo que as cartas oficiais seguirem para
Roma, você escreva uma carta para ele avisando (Piazza Remuria 3 – Roma) afim de que
ele nos ajude junto aos ministérios italianos. Eco per l’Itália. Desculpe toda a complicação,
mas fique certo que não pude expressar a cousa mais simplesmente
142
.
Se o interesse dos cineclubistas brasileiros era conseguir filmes para exibições e debates, eles
precisavam (e por muito tempo precisariam) de maiores esclarecimentos. Paulo Emilio começa a
empreender seu esforço pedagógico no sentido de explicar-lhes minúcias do panorama europeu. O
primeiro deles, que foi muito constante por algum tempo, foi o de explicar a diferença entre a
Federação Internacional de Cineclubes, de um lado, e a FIAF – Federação Internacional de
Arquivos de Filmes, de outro. “Quem tem fita é a segunda” avisa, e se fosse intuito obtê-las, não
seria por meio de um cineclube que isso aconteceria.
Isso porque as autorizações para cessão de filmes estavam sob responsabilidade da FIAF (que a
duras penas ia conseguindo a confiança dos detentores legais dos filmes), explicando-lhes que isso
não seria um fator de concorrência com o mercado cinematográfico, que os fins eram culturais, que
os filmes estariam protegidos, seriam conservado e preservados, e que fundamentalmente, não se
visava o lucro com tais atividades. A essa altura, já eram dez anos de trabalho da FIAF nesse
sentido. O conhecido mal entendido que muitas vezes, até hoje, reina entre o chamado espírito
cineclube e o espírito de cinemateca, vivia então dias de glória, o que levava a uma dificuldade
142
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
102
imensa de relacionamento entre a FIAF e a Federação Internacional de Cineclubes
143
. Uma
querendo preservar para difundir, e a outra só querendo difundir. “As relações entre as duas são no
momento péssimas” esclarece Paulo Emilio na mesma carta. Para se ter filmes, era preciso ter uma
cinemateca ou uma filmoteca. Esta última expressão, aliás, parece o meio do caminho entre uma
coisa e outra, entre um cineclube e uma cinemateca. Pensando bem, era disso mesmo que se
tratava. De Paris, Paulo Emilio dispara:
A Filmoteca prevista naquela Academia de Arte Moderna da herança do Penteado não sai?
E no Museu de Arte Moderna não há Filmoteca? Então seria preciso criar oficialmente um
troço chamado Filmoteca Brasileira, ou Filmoteca de São Paulo, ou coisa que o valha para
aderirmos à FIAF. É melhor criarmos um organismo separado do Clube de Cinema. Se for
impossível então me passem um telegrama em nome da Filmoteca, provisoriamente ligada
organicamente ao Clube de Cinema de São Paulo me autorizando a pedir nossa inscrição
na FIAF. E ao mesmo tempo peço que arranjem uma quantia inicial correspondente a
60.000 francos (sobre a maneira de mandar, conversem com Maria Eugenia) para a
preparação de 4 programas clássicos (2 horas cada um) que irão para aí e ficarão nossa
propriedade, e com os quais poderemos iniciar intercâmbio com os uruguaios (S.O.D.R.E.)
que tem muita cousa
144
.
O desprendimento com o qual Paulo Emilio trata a questão não quer dizer que também ele não
fizesse lá suas confusões entre uma coisa e outra. O seu nível de relacionamento com a cúpula da
FIAF e de compreensão do problema é que lhe permitia tratar de tudo como se fosse um “troço”, e
enxergar tudo de maneira tão simples e clara. Vemos inclusive, que ele já vislumbrava as
potencialidades de intercâmbio com as entidades congêneres latino-americanas, no caso o SODRE
- Archivo Nacional de la Imagem, no Uruguai
145
. Faltava o dinheiro, mas isso os mecenas
paulistas, sobretudo Cicillo Matarazzo, não pareciam estar dispostos a economizar: “Me parece que
a chegada de filmes aí facilitará muito a ulterior procura de meios financeiros para os programas
que se seguirão. E se tudo correr bem, se pudermos nos encarregar do emprego de uns cobrinhos
do Álvares Penteado para a parte da Filmoteca, dentro de pouco tempo poderemos ter ai muita
143
Aqui já estamos no âmbito dos já tratados debate e conflitos da FIAF (Lindgren/ Langlois)
144
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
145
O SODRE se filiou na FIAF no mesmo ano que a Filmoteca do MAM.
103
coisa
146
”. Antes mesmo de receber notícias de seus muitas vezes enrolados colegas de São Paulo,
Paulo Emilio começou a encomendar tiragens de alguns filmes na Cinemateca Francesa, o que
mostra a confiança que Langlois tinha no brasileiro, uma vez que ainda não existia uma cinemateca
(ou filmoteca) em São Paulo. O que para muitos pode parecer irresponsabilidade de Langlois, pode
ser visto também como convicção.
No entanto, Paulo Emilio começava a se impacientar definitivamente com os brasileiros, sobretudo
Almeida Salles. Em um telegrama de 3 de dezembro de 1947, para Lourival Gomes Machado, com
um texto para lá de lacônico, o qual transcrevemos na íntegra, ele diz “Peço resposta urgente carta
para Almeida Sales sobre filmoteca não quero bancar besta.” Lourival também se impacientava,
mas segundo ele, Almeida Salles era ainda a pessoa mais indicada para o trabalho. A vida do
presidente (apelido carinhoso que Salles carregou para o resto da vida) também não era fácil, como
já vimos. Além disso, a correspondência nessa época estava sujeita a alguns imprevistos de
viagem. Paulo Emilio estava, contudo, preocupado com os compromissos por ele assumidos. Havia
ainda um longo trabalho para esclarecer as coisas aos brasileiros, e na conturbada troca de cartas
pelo atlântico – em função de intempéries do tempo, dos correios, ou talvez ainda de outras coisas -
Paulo Emilio demonstrava paciência.
Comentando um relatório do Clube de Cinema, que lhe foi enviado, ele explica algumas bobagens
propagandeadas pelos colegas no Brasil. Era um trabalho pedagógico. Paulo havia lido em um
relatório do Clube de Cinema que este estudava sua filiação na FIAF. Era preciso esclarecer as
coisas: “Ora, isso não tem sentido. O clube, como clube, não pode fazer parte da FIAF. E não pode
receber filmes das cinematecas afiliadas a FIAF. E vocês dizem no relatório que eu comprei filmes
para o Clube de Cinema
147
!” Brincando, na medida do possível, Paulo Emilio diz a seus colegas
que o fato de tal relatório ter sido publicado no Estadão não deverá causar tantos problemas, pois:
“o Brasil é longe e o Estado de São Paulo não é muito lido na Europa (não conte isso ao Julinho
146
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
104
Mesquita)”. Mas o fato é que o empreendimento paulista – mesmo no campo do cinema – tinha
“evidentemente”, vida própria. E não é mesmo de se estranhar que alguns contatos, inclusive com
membros da FIAF, fossem feitos à revelia de Paulo Emilio. E pelo visto, tais contatos aconteceram
mesmo. Para desespero de Paulo Emilio, em tais conversas, cartas, etc. (da parte dos brasileiros),
aparentemente borbulhavam esses mal entendidos entre o que era um cineclube e o que era uma
cinemateca, entre o papel da FIAF e o da Federação Internacional de Cineclubes.
Paulo Emilio ficava sabendo dessas coisas das piores maneiras possíveis: telefonemas
desencontrados de Londres e cartas contraditórias de Nova Iorque, desentendimentos (muitas vezes
sérios) que complicavam as relações de Langlois na FIAF
148
. Segundo Rudá de Andrade, o
patrocínio de Langlois tinha um sentido político claro, a expansão das cinematecas pelo mundo
também significava o aumento do seu poderio enquanto líder de um modelo, de um projeto para as
cinematecas do mundo, da mesma forma como Ernest Lindgren tinha o seu. “Tudo o que
(Langlois) fez pelo Brasil foi cobrado em 1960, durante a crise que abalou a FIAF.
149
A Filmoteca de São Paulo – membro correspondente da FIAF, em função dos esforços de Paulo
Emilio – era um nome fantasia de algo que “não existia”. Por meio dela, contudo, Paulo Emilio
continuava a abastecer seus colegas no Brasil com vários filmes. Sempre seguindo a mesma linha:
filmes de vanguarda e “primitivos”, sobretudo franceses. Mas esse quadro não poderia durar muito.
Era preciso oficializar a coisa, dar estrutura para a entidade, alinhar e unificar os esforços de modo
a evitar maiores e piores trapalhadas, e também conseguir dinheiro de maneira igualmente mais
sistemática para esse caro empreendimento. “Para os próximos filmes, um dos meus critérios será
ter em vista certos snobs que poderão nós ajudar si provocarmos o seu interesse por alguns filmes
surrealistas
150
”.
147
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
148
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
149
Rudá de Andrade, Apud: SOUZA, J.I.M. Op. Cit. P.588, nota 3, capítulo 3.
150
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
105
Nas cartas, com grifos quase beirando o exagero, Paulo Emilio pedia sistematicamente que os
créditos pelas aquisições de películas fossem atribuídos à Cinemateca Francesa, tendo como
destino a Filmoteca de São Paulo, ambas filiadas a FIAF. Ele pedia igualmente discrição quanto à
citação de seu próprio nome, mas para Henri Langlois todas as formas possíveis de agradecimentos
e reconhecimento
151
.
Em São Paulo, Almeida Salles se esforçava de verdade para compreender as instruções do colega
em Paris, e não devemos menosprezar a importância que o presidente do clube de cinema teve para
o destino do projeto encabeçado por Paulo Emilio. A relevância de Almeida Salles foi muito
grande. Advogado de formação e jurista atuante em várias esferas dos poderes públicos, ele, que se
tornou um dos maiores críticos de cinema da história da crítica no Brasil, pôde, ao longo de toda a
trajetória do projeto (Clube de Cinema – Filmoteca do MAM – Cinemateca Brasileira) colaborar
decisivamente em prol dos contatos e entendimentos que construiu em sua vida, para afogar a
incompreensão – da qual em princípio compartilhava – do que era uma cinemateca e de quais são
suas funções para a sociedade
152
. Além do mais, no período em que a Filmoteca estava em
gestação, Almeida Salles perdeu seu pai, e fez uma operação, pois teve apendicite. Fazemos essas
colocações, pois não queremos dar a impressão monolítica que, de um lado tínhamos a
competência de Paulo Emilio, e de outro as parlapatíces do presidente e sua turma.
De qualquer modo não deixam de ser engraçados fatos como, por exemplo, a confusão que
Almeida Salles faz com a FIAF, chamando-a por duas vezes em uma mesma carta a Paulo Emilio
de FIFA
153
. Teria o aparente apreço do presidente com o futebol (como indicam alguns
documentos de seu arquivo pessoal) algo a ver como isso? Brincadeiras à parte, outro tema de
maior importância nos interessa. A criação da Filmoteca do Museu de Arte Moderna. Antes que
isso se efetivasse surgiu um problema para a diretoria do Clube de Cinema de São Paulo que foi o
151
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
152
E ele o fez, nos setores mais conservadores e mesmo reacionários da política brasileira (quase que paradoxalmente,
seu passado como militante da Aliança Integralista Brasileira contribuiu para tanto).
106
último obstáculo para a criação da nova entidade (o que significa dizer a primeira cinemateca
moderna do Brasil).
Pode parecer bobagem, mas inevitavelmente naquele momento, ao que tudo indica, a Filmoteca
faria “desaparecer” o Clube de Cinema. Isso porque, em um quadro incipiente de organização para
o campo do cinema (na área deste que estamos tratando: de crítica e difusão cinematográfica), as
ainda poucas pessoas que se esforçavam para arranjar o projeto não dariam conta de levar adiante
as duas entidades. No entanto, o problema (ou a “espiga”, segundo Almeida Salles), refletia de
certa maneira, a incompreensão dos brasileiros para com o problema. Se a maior dificuldade do
Clube de Cinema era arranjar filmes para os programas, e se, por outro lado havia a intenção de
mecenas como Cicillo Matarazzo em financiar a vinda dos filmes, bastaria então, destacar duas ou
três pessoas para cuidar do que então seria o pequeno acervo da Filmoteca do Museu, e o clube
poderia seguir seu caminho, abastecido pela Filmoteca. Nada impede que coexistam, em um
mesmo país ou em uma mesma cidade, cineclubes e cinematecas, muito pelo contrário. De tantas
broncas recebidas de Paulo Emilio, parece que o presidente do clube “migrou” para o outro lado.
Não mais confundia a FIAF com a Federação Internacional de Cineclubes, mas pelo contrário
parecia prestes e não conseguir imaginar a coexistência das duas. A preocupação de Almeida Salles
aumenta na medida em que percebia que as ações do Clube de Cinema de São Paulo estava
contribuindo efetivamente para o surgimento de diversos outros clubes de cinema no país:
O Clube ficará à margem, sem poder participar disso e nem sequer exibir tais filmes. Estou
certo? É assim que terá que ser? (…) Vai ser um desastre. Já se fundou, por nosso
intermédio, o Clube de Belo Horizonte e o de Porto Alegre. Agora, Curitiba e Recife estão
pedindo instruções para a organização dos seus. O intercâmbio que iríamos fazer entre os
clubes, com os filmes remetidos por você, não será mais possível. Esclareça bem esse
ponto. Poderíamos convocar uma Assembléia e dissolver o Clube no Departamento do
Museu, para nos ligarmos, através dele, à F.I.F.A. [sic], já que a ligação com a Federação
Internacional dos Clubes de Cinema, não nos pode dar as mesmas vantagens, não é
verdade? Mas isso significa por de lado toda uma tradição, todo um esforço de
consolidação de uma entidade, já com prestígio no Brasil inteiro. Veja que espiga
154
!
153
Arquivo Paulo Emilio Salles Gomes/ Cinemateca Brasileira. PE/ CP 0514.
107
De qualquer maneira a mão-de-obra disponível era mesmo pequena, e além do mais os filmes eram
caros, e seu financiamento não viria apenas de homens como Matarazzo. Em carta, Almeida Salles
avisa Paulo Emilio que os 100 sócios escritos para a Filmoteca representariam uma receita
considerável de 100 contos anuais. Mas, dificilmente esses sócios contribuiriam para as duas
entidades (Clube de Cinema e Filmoteca), e não deve ter ocorrido a ninguém que parte da receita
do clube pudesse ir como auxílio para a filmoteca, que afinal das contas prestar-lhes-ia serviços
com a seção de filmes
155
. Dessa forma o problema filmoteca/ cineclube demandava uma solução, e
a de Paulo Emilio, aceita por todos, embora hoje pareça estapafúrdia, foi engenhosa. O Clube de
Cinema seria ligado ao Departamento de Cinema do Museu de Arte Moderna (Filmoteca do
MAM). O primeiro cuidaria das exibições, o segundo do acervo. O clube seria subordinado ao
primeiro, mas com um mínimo de autonomia para que continuasse existindo como tal (inclusive
como membro da F.I.C.C):
Quanto aos clubes que estão se formando pelo Brasil afora por inspiração de vocês, não há
problema nenhum. O Departamento-Filmoteca estabelecerá com eles acordos em vista das
projeções – esses acordos devendo significar para o Departamento-Filmoteca, na medida
do possível, uma arrecadação de fundos para seu desenvolvimento. Tudo isso naturalmente
da maneira mais fraternal, sem espírito comercial de lucro, ajudando como puder o
nascimento e o desenvolvimento de clubes pelo Brasil afora. É evidente que todas
precauções devem ser tomadas para a conservação dos filmes, por ocasião dos transportes,
e o máximo de garantias técnicas exigidas por ocasião das projeções (desculpe meu velho
a enumeração de todas essas cousas evidentes, mas penso que você poderá se servir delas
para provocar ao máximo o senso de responsabilidade de nossos amigos dos clubes de
Porto Alegre, Belo Horizonte, etc.)
156
.
Paulo Emilio continuava a providenciar as condições para enviar remessas de filmes da Europa,
que iam pouco a pouco constituindo o núcleo originário do acervo da entidade. Em meio a incríveis
problemas de transporte para que estes filmes chegassem aos seus destinatários – problemas que
poderiam complicar mais ainda a vida de Henri Langlois – Paulo Emilio avisava aos colegas em
154
Arquivo Paulo Emilio Salles Gomes/ Cinemateca Brasileira. PE/ CP 0514.
155
Expediente que seria, dez anos mais tarde, largamente utilizado pela agora Cinemateca Brasileira, e que está na base
do funcionamento do Cercle du Cinéma e da Cinemateca Francesa.
108
São Paulo que a Filmoteca havia sido aceita como membro efetivo da FIAF. A Filmoteca não era
mais membro correspondente; “enquanto, por exemplo, o pessoal do S.O.D.R.E. de Montevidéu
continua como correspondente apesar de estarem muito mais adiantados do que nós
157
”. Ainda em
relação aos latino-americanos, Paulo Emilio avisa: “Consegui agora a relação do que nossos
colegas possuem no Uruguai e na Argentina, e vou fazer a escolha de maneira a permitir
intercâmbio frutuoso com esses países. Em próximas cartas enviarei a vocês uma relação do que
eles possuem de mais interessante
158
”.
Aos poucos, as coisas tornavam-se mais claras. Paulo Emilio recebia cartas de Cicillo Matarazzo,
comunicando-lhe a criação oficial do Museu de Arte Moderna da São Paulo e da Filmoteca do
Museu, tudo de acordo com os estatutos do Museu, e seguindo as indicações de Paulo Emilio
quando o assunto era Filmoteca, FIAF, etc. Almeida Salles começava a remeter ao amigo em Paris
a documentação necessária para regularizar a situação da Filmoteca na secretaria da FIAF, e tudo
parecia encontrar um maior estado de equilíbrio. Contudo, as confusões e mal-entendidos,
sobretudo da parte de Almeida Salles, continuavam. A ponto de Lourival Gomes Machado, pedir,
em uma carta muito bem humorada para Paulo Emilio deixar a mãe do agora ex-presidente do
Clube de Cinema “em sossego
159
”.
Tais confusões tinham de tudo um pouco. Desde interferências “fora de hora” do Governador de
São Paulo (Adhemar de Barros) que, aparentemente por motivos eleitoreiros, declarava o intuito de
criar uma filmoteca estadual, ignorando totalmente os esforços de Paulo Emilio e do MAM, boatos
de que Assis Chateaubriand queria fazer o mesmo, e até “trapalhadas” ou “desmentidos” de
enviados de Cicillo Matarazzo ao MOMA (de Nova Iorque) para comprar quadros, quando
questionados sobre a filmoteca brasileira, a ponto de Iris Barry (responsável pela Film Library do
MOMA, uma das fundadoras da FIAF e madrinha da Filmoteca de São Paulo na federação)
156
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
157
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
158
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
109
questionar Paulo Emilio (em carta) qual era afinal das contas a relação entre a Filmoteca e o
MAM
160
.
Um ano depois, em 1949, a Filmoteca do MAM estava criada e funcionando. Mas Paulo Emilio
ainda esbravejava contra a morosidade das coisas no Brasil, em carta ainda de 1948, ele escreve a
Almeida Salles: “Pode ficar certo, meu caro Almeida Salles, que é com bastante melancolia que
penso, que afinal das contas, a impossibilidade que tivemos até agora de fazer algum trabalho
concreto, é devido a esse hábito nacional tão corriqueiro de não respondermos cartas
161
”.
Dos congressos aos festivais
O momento em que foram realizados as mesas redondas da APC e os congressos de cinema não era
favorável a uma compreensão profunda de todos os aspectos do problema enfrentado pela classe
cinematográfica brasileira. Havia exagero por toda a parte: dispêndio “exagerado” de dinheiro, da
parte de uns, críticas grosseiras e acusações infundadas, da parte de outros, de muitos, quase de
todos. O cinema brasileiro vivia o auge do surto industrialista iniciado pela Cia. Cinematográfica
Vera Cruz e as demais companhias produtoras como a Maristela, a Multifilmes, Kino Filmes, etc,
que embora tenham entre si algumas diferenças notáveis, seguem um mesmo modelo geral:
inspiração no padrão de produção dominante (estrangeiro) com tentativas de associação com o
capital (não só econômico, mas também, e, sobretudo, técnico) externo, visando muitas vezes –
como foi o caso da Vera Cruz – mais o mercado estrangeiro do que o próprio mercado brasileiro.
Vale lembrar que o diagnostico tenebroso do mercado totalmente dominado pelo cinema norte-
americano realizado após a falência dos grandes estúdios levou tempo para ser digerido (na
verdade nunca foi) e em meados da década ele provocava mais desavenças do que entendimentos.
159
Arquivo Paulo Emilio Salles Gomes/ Cinemateca Brasileira. PE/ CP 0573.
160
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1947.
161
Idem.
110
Parece faltar nesses debates uma maior articulação entre as parte do todo (obra, autor e público,
produção, distribuição e difusão, etc.) O sistema cinematográfico brasileiro era uma realidade
distante.
As atenções se voltavam com muito mais força para as etapas que precediam a apreciação do
público, com uma possível exceção a uma outra parcela dele: a crítica. Ao lado de questões mais
gerais (de cunho político-ideológico), como a definição do que era um filme brasileiro, as medidas
de proteção ao cinema brasileiro, havia também teses de caráter técnico, de sindicalização da
classe, dentre outras.
Um dos epicentros das agitações do período certamente foi o anúncio das
intenções de Getúlio Vargas de criar um órgão oficial do governo para o cinema, e o posterior
“vazamento” do projeto elaborado por Alberto Cavalcanti para o que seria algum dia, o Instituto
Nacional de Cinema – INC. Temia-se a criação de um órgão burocrático e centralizador, e
principalmente o surgimento de um censor e autoritário “Super DIP”.
As teses que mais interessa aqui são, contudo, as que mais se aproximavam da problemática das
cinematecas versam sobre a criação de escolas de cinema. No entanto, tais teses eram confusas, e
se perdiam em questões teóricas mais amplas, quando na realidade faltava o básico, como
traduções de bibliografia, o estudo de caminhos para a concessão de bolsas de estudo aos
interessados, etc
162
.
É importante notar como há uma completa ausência no debate do papel das
filmotecas e cinematecas. Eis o tipo de falta de compreensão do conjunto orgânico do sistema de
tríades (pois inexistente), referido por nós mais acima. Não seria mais fácil pensar o presente se
conseguimos refletir acerca do processo histórico que o criou?
Tais temas - como as teses (provavelmente de Walter da Silveira) Escolas de cinema e
Cineclubismo, ou a tese de Jayme Pinheiro e Odiro Y Plá F. de Carvalho Cinemas municipais - não
encontravam espaço para constituir-se em um bloco forte para o debate. O grande debate girava em
torno do projeto de Cavalcanti para o INC. Não é de se estranhar, certamente, que tal ordem de
162
SOUZA, J.I.M,
Congressos patriotas e ilusões
e outros ensaios de cinema
. São Paulo: Linear B. P.26.
111
discussão provocasse tantos e tão acalorados debates. Mas o que chama a atenção no projeto, é a
previsão de uma cinemateca e de uma fototeca. O que por um lado continua a registrar a confusão
em torno do conceito – já que a primeira pressupõe a segunda – é por outro inovador pela
preocupação e demonstra a visão ampla e abrangente do fenômeno cinematográfico que Cavalcanti
constantemente apresentava. Vejamos se isso faz sentido.
Além da idéia de uma cinemateca e uma fototeca, José Inácio de Melo Souza enumera outros
aspectos do projeto, outras preocupações, o que o autor chama (tentando alcançar a ótica dos
contemporâneos) de questões menores. São elas, por exemplo, a regulamentação dos direitos
autorais (questão vital para as cinematecas), e do exercício de censura com orientação qualitativa
(ponto polêmico). Outro ponto refere-se a reunião de todo material cinematográfico de propriedade
do governo, a fim se planificar uma produção centralizada que estimule o documentário e possa
servir também a finalidades didáticas/ pedagógicas. O texto esclarece também que tal produção
visava a formação (uma escola) para futuros cineastas, sem descuidar da escola já existente, o
Seminário de Cinema do Masp, em São Paulo. Em suma, esse é mais ou menos o ponto ao qual
queremos chegar. A simples previsão da constituição de uma cinemateca faz com que a perspectiva
das outras medidas do projeto ganhe outra cara. Cuidar dos direitos autorais para que os filmes
possam ser utilizados com finalidades culturais, sem violar os direitos dos autores, evitando o
prejuízo dos mesmos; criação de uma escola de cinema que tenha em um arquivo referênciação
histórica, fontes primárias para o estudo desta arte, e que também preservaria a produção realizada
por seus alunos; um centro de documentação (o da cinemateca) que facilite as tarefas didáticas/
pedagógicas não só das escolas de cinema, mas para toda e qualquer solicitação de mesma
finalidade que se valha dos filmes produzidos pela escola ou guardados no arquivo. Em resumo,
mesmo sem entrar no mérito do projeto, temos por ele, nesses termos, simpatia. Pois uma
cinemateca era o elo que muitas vezes faltava para complementar não só o sistema
112
cinematográfico, mas também as discussões dos congressistas por vezes pra lá de sectárias
163
.
Além disso, já tínhamos uma tradição em desenvolvimento no campo do cineclubismo (e de
cultura cinematográfica em geral) que, embora precária, era de extrema qualidade com a qual o
INC poderia dialogar
164
. Esse é um ponto forte, quando procuramos localizar as bases de
sustentação da projeto da Cinemateca Brasileira na conjuntura.
Em 1946, ano do ressurgimento do Clube de Cinema de São Paulo (depois de ter sido fechado pelo
Estado Novo, em 1940) é fundado o Clube de Cinema da Faculdade Nacional de Filosofia (Rio de
Janeiro), orientado por Plínio Sussekind Rocha, que constitui uma pequena filmoteca com filmes
encontrados em Minas Gerais, dentre outras aquisições
165
. Dois anos depois (1948), é criado o
Círculo de Estudos Cinematográficos, no Rio de Janeiro, por Alex Viany, Moniz Vianna e Luiz
Alípio de Barros, e fundado o Clube de Cinema de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, por P.F
Gastal. No mesmo ano, são criados dois importantes cineclubes que fariam história no panorama
brasileiro: o Clube de Cinema de Santos e o Clube de Cinema de Fortaleza, no Ceará
166
.
Em 1949, “é fundado o Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo por iniciativa de
Ruggero Jacobi, Adolfo Celli e Carlos Ortiz (sob o impacto da vinda de Alberto Cavalcanti). As
atividades iniciaram-se com uma série de conferências de Cavalcanti e sua direção coube a Carlos
Ortiz
167
”. O surgimento do Seminário do MASP é significativo do que do nosso ponto de vista
apareceu de melhor no tipo de preocupação manifestada durante os Congressos de Cinema, em
163
Talvez a grande desavença estivesse na estrutura proposta para o INC. O projeto aprovado na Câmara o
caracterizava como autarquia, e assim sendo com forte presença do Estado, “ao lado de uma pulverizada representação
dos setores cinematográficos”. O projeto do Conselho Nacional de Cinema proposto como substituto ao do INC (nos
congressos de cinema) visavam o contrário, forte representação da classe cinematográfica com o Estado fornecendo o
aparelho burocrático e as fontes financeiras. Visava-se algo mais democrático com representantes de todos os
sindicatos da classe cinematográfica. Havia problemas em ambos os projetos, mas reafirmamos que o que mais
impressiona é a falta de consenso.
164
Sobre o histórico do movimento cineclubista anterior ao período abordado aqui, Cf: ANDRADE, R. Cadernos da
cinemateca nº1.
“Cronologia da cultura cinematográfica no Brasil”.
São Paulo: Fundação Cinemateca brasileira,
1962.
165
Na cronologia de Rudá vemos que, em 1942 ou 1943, Paulo Emilio Sales Gomes e Plínio Sussekind Rocha foram a
Minas Gerais para tentar localizar filmes clássicos. Adquiriram “O Encouraçado Potemkin”, “A Mãe” e “A aldeia do
pecado”, que foram doados à Faculdade Nacional de Filosofia. Também em 1946, é fundada a Associação Brasileira
de Cronistas Cinematográficos (ABCC) por iniciativa de Jonald, tendo como Presidente Pedro Lima.
166
ANDRADE, R. Op. Cit. P.11.
113
1952 e 1953. Mas no meio do furacão da primeira tomada de consciência acerca dos problemas
políticos e culturais do cinema brasileiro, o âmbito da educação, do cinema enquanto uma
ferramenta política/ pedagógica para um projeto social, acabou perdendo espaço para os debates
em torno da problemática econômica, conforme já afirmamos.
O ponto para nós aqui é remarcar a ausência da colocação mais incisiva desse tipo de problema
cultural/ pedagógico do cinema enquanto agente formador de cidadania; debates estes que teriam
como fórum privilegiado o estímulo à criação de escolas de cinema, de cineclubes e do eixo central
da coisa: cinematecas. O pouco destaque que tiveram essas questões nos congressos comprometeu
decisivamente um melhor resultado de conjunto do grande e fundamental diagnóstico levado a
cabo pelos congressistas da situação da atividade, e da cultura cinematográfica no país.
Certamente é preciso refletir melhor sobre isso, mas o clima dos congressos representa (em
importante medida) o clima da classe cinematográfica no Brasil. Estariam as razões disso ligadas
ao histórico das políticas governamentais para o cinema educativo? O fato de Humberto Mauro ter
ficado “esquecido” no INCE não seria um pouco um indicativo disso? É evidente que nos
congressos, ou fora deles, havia pessoas preocupadas com as questões arroladas acima. E não eram
tão poucas assim. Mas a tônica dos debates era outra (debates que muitas vezes parecem ter se
desenvolvido em um desentendimento muito improdutivo). Não há projeto político (seja ele qual
for) que resista à ausência de um projeto pedagógico que o acompanhe, mesmo que seja para
acabar com a educação, como assistimos em nossos dias, com especial destaque a alguns governos
justamente do Estado de São Paulo, “pátria da Cinemateca Brasileira”. Não é um simples e mero
acaso.
O desenvolvimento do movimento cineclubista, e de cultura cinematográfica em geral, continuava
a crescer, ainda que de forma um pouco cambaleante, com muitas entidades, revistas e cineclubes,
surgindo e desaparecendo logo em seguida. Crescimento particularmente notável nos primeiros
167
Ibidem, P.12.
114
anos da década de 1950. No primeiro ano dessa década, é criado o Centro de Estudos
Cinematográficos em São Paulo que realiza o primeiro Congresso de Clubes de Cinema
168
. No
mesmo ano, ao lado de outras informações (presentes na cronologia de Rudá) - sobre novas
publicações de livros, seções ou revistas especializadas em cinema, e das movimentações da crítica
cinematográfica (qual crítico estava escrevendo onde, etc.) - temos notícia da criação de outros três
cineclubes: o Clube de Cinema Orson Welles (em São Paulo, por Rubem Biáfora e José Júlio
Spiewak, e que durou apenas um ano), o Clube de Cinema do Rio de Janeiro (por Paulo Brandão e
Pedro Gouveia Filho) e o Clube de Cinema de Florianópolis
169
. Em 1951, é criado o Centro de
Estudos Cinematográficos de Minas Gerais, por iniciativa de Jacques do Prado Brandão, Cyro
Siqueira, Fritz Teixeira de Salles e outros. E também os católicos, atentos ao desenvolvimento dos
meios audiovisuais, continuavam a engrossar suas fileiras. Exemplo disso é o fato da Ação Social
Arquidiocesana instituir cursos de cultura cinematográfica no Rio de Janeiro neste mesmo ano
170
.
O fato é que, desde 1948 (graças aos esforços de Paulo Emilio), a Filmoteca do MAM fazia parte
da Federação Internacional de Arquivos de Filmes. Mais do que uma filmoteca (o que já seria o
bastante para dar-lhe destaque no incipiente panorama cultural cinematográfico brasileiro), ela era
uma entidade ligada ao organismo internacional que regulava e buscava espaço para as
cinematecas do mundo ocupando um cargo no comitê-diretor da federação, na pessoa de Paulo
Emilio. Além disso, o Clube de Cinema de São Paulo, que na ocasião ainda existia (foi extinto em
1949 juntando-se à Filmoteca do MAM) também era filiado ao organismo internacional dos clubes
de cinema: a Federação Internacional de Clube de Cinema, sendo neste sentido que a entidade
adquiriu um peso e um destaque sui generis. É preciso lembrar que o problema maior dos clubes de
168
Idem, Ibidem. A constituição da Federação Brasileira dos Cine-Clubes, principal resolução dos congresso que como
as demais, não se efetivou, mas foi ensaiada
169
Ibidem, P.13. Em relação a este último, há duas observações importantes de Rudá de Andrade (em sua cronologia).
A primeira é que o clube catarinense teria sido criado por “elementos” do Clube de Cinema de Porto Alegre, o que
mostra como ocorre o intercâmbio e a ploriferação de um tipo de organização civil como um cineclube. Bastava que
existisse algum a centenas de kilometros de distância para que fosse estimulado o surgimento de outras. Mas não é só
isso. A segunda observação de Rudá em relação ao intercâmbio de filmes que começava a ser estabelecido entre a
Filmoteca do MAM e os cineclubes do país (nesse caso particularmente com Florianópolis)
115
cinema era a obtenção de filme para seus programas. Problema agravado não apenas pela
existência de poucas filmotecas culturais, mas muitas vezes de agências de distribuição em muitas
cidades, como se queixam com tanto desgosto um representante do Clube de Cinema de
Florianópolis e um de Porto Alegre, em cartas à Almeida Salles – ambos solicitando a ajuda da
filmoteca de São Paulo, e não somente pelo envio de filmes, mas na organização do movimento de
maneira geral
171
.
Mas, é importante notar também que nem só de novas entidades e instituições vive a cultura
cinematográfica. No entanto, mais difícil do que o surgimento delas é a sua manutenção e
crescimento. A Filmoteca deveria se encarregar dessa tarefa, e não se furtava disso. Sempre buscou
estimular o alargamento das coisas, por meio do surgimento e da colaboração com a manutenção
de novas e antigas entidade, cineclubes, etc., a ponto de em um determinado momento, percebendo
o arrefecimento das atividades no circuito dos cineclubes e uma concentração de público em sua
sede, ter interrompido as projeções por ela realizadas como uma maneira de estimular o élan
cineclubista.
Certamente valeria a pena listar todas as atividades de difusão (projeções; difusão oral, escrita, etc.)
levadas a cabo pela Filmoteca do MAM ou em parceria dela (que foram muitas), mas por hora
queremos apenas registrar o que já foi enunciado
172
. O movimento crescia, e com ele a necessidade
de um acervo que servisse a estas finalidades político-pedagógicas-culturais dando fôlego
constante à Filmoteca. Rudá de Andrade registra, nesse sentido, a realização de cursos, ciclos e
festivais (ainda em 1951), o que dá destaque a uma fundamental demanda pelas atividades da
Cinemateca. Justificação mais evidente para o investimento em uma cinemateca
173
.
170
ANDRADE, R. Op. Cit. P.13-14.
171
Arquivo Francisco Luiz de Almeida Salles/ Cinemateca Brasileira. AAS/ CP – 1949.
172
Sobre tais atividades Cf: Cadernos da cinemateca nº3. A cargo de Cecília Thompson
“Cinemateca brasileira e seus
problemas: textos e documentação”. São Paulo: Fundação Cinemateca brasileira, 1963.
173
Na bem da verdade, o mais óbvio, é o contrário disso. É mais fácil estimular o cineclubismo por meio de uma
cinemateca, do que uma cinemateca pelo cineclubismo, mas o que sempre ocorreu foi exatamente isso. Isso se deve por
um lado ao fato de que as cinematecas surgiram dos cineclubes (aqui não há muito espaço para o dilema do ovo e da
galinha), mas por outro lado a demora, em geral, sempre foi bastante grande, entre o surgimento de um e de outro
116
Assim, o Centro de Estudos Cinematográficos, de São Paulo, organiza um centro preparatório de
técnicos de cinema, conduzindo paralelamente atividades cineclubistas; o Clube de Cinema de
Fortaleza realizava o primeiro Festival de filme de curta-metragem. Além de apoiar outras
atividades concernentes ao movimento de cultura cinematográfica, realizadas por diversas
entidades (como traduções ou publicações brasileiras sobre cinema) a Filmoteca do MAM
organizou também um seminário: “Panorama da produção cinematográfica”; bem como o “Festival
Internacional de Filmes de Curta-Metragem”, com 14 programas, apresentados em janeiro, no Cine
São Francisco
174
.
O ano de 1952 é ainda mais promissor para o movimento. São criados cineclubes importantes para
a história do cineclubismo brasileiro, como o Clube de Cinema de Marília (Estado de São Paulo),
outros cada vez mais distantes do eixo Rio - São Paulo, como o Clube de Cinema “Os
Espectadores”, em Belém do Pará, e outros ainda, extintos após pouco tempo de existência são
reorganizados como o de Florianópolis (ainda que por pouco tempo). Outros vem reforçar o
movimento onde ele já existia, como por exemplo, a criação do Cine Clube Universitário em São
Paulo, após um movimento liderado por Plínio de Arruda Sampaio, e a penetração do movimento
em lugares quase que inusitados, como por exemplo a realização, por iniciativa de Marino Ziggiatti
e Bráulio Mendes Nogueira, de uma série de exibições de filmes clássicos da Filmoteca do MAM
no Clube de Engenharia de Campinas: sinais de vitalidade.
O Seminário de Cinema do Museu de Arte de São Paulo continua com suas atividades e realiza um
filme sobre arte com seus alunos (Os tiranos), e os católicos trazem estrangeiros para realizar
(cineclubes e cinematecas). Problemas idiossincráticos, advindos das parlapatíces de uns ou do estúpido orgulho de
outros, mas fundamentalmente problemas relacionados à política, à ideologia, ao desenvolvimento do mercado e da
indústria cultural. De qualquer maneira, a demanda sempre existiu, e sempre considerável; não podendo ser
desdenhada muitas vezes pela sua frágil aparência. As ações dos cineclubes e cinematecas tendiam a estimular outras
semelhantes, como a de Alberto Cavalcanti, que ainda em 1951, colocou à disposição do Círculo de Estudos
Cinematográficos do Rio de Janeiro uma coleção de filmes antigos e modernos de sua propriedade, estimulando o
estudo e os debates nes,a entidade.
174
ANDRADE, R. Op. Cit. P.13. Ou seja, em parceria com uma sala do circuito comercial. Destacamos, por hora, essa
e não outras iniciativas da filmoteca pelo fato dela significar duas coisas importantes – o entendimento com o comércio
cinematográfico (quase inescapável) facilitava o trabalho das cinematecas – pois esclarecia aos comerciantes suas
117
palestras e cursos, orientando os seus “irmãos brasileiros” a praticarem trabalhos de cultura
cinematográfica
175
. Como último e importante destaque, Rudá Andrade escreve sobre o ano de
1952: “O Círculo de Estudos Cinematográficos do Rio de Janeiro e o Clube de Cinema de Porto
Alegre exibem um ciclo de dez programas primitivos e clássicos fornecidos pela Filmoteca do
MAM, intitulado “Retrospectiva do Cinema Silencioso”
176
. Mais um sinal de vitalidade do
movimento: não só temos a colaboração da Filmoteca com um ciclo de um cineclube, mas a
fundamental organicidade entre dois cineclubes bastante distantes um do outro, Rio de Janeiro e
Porto Alegre. Tudo indica a existência de mentes bem mais arejadas, não só no ambiente dos
congressos de cinema, mas no meio cinematográfico em geral. E não há nada de mais significativo
disso do que a realização da I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro pela Filmoteca do Museu
de Arte Moderna de São Paulo, Centro de Estudos Cinematográficos de São Paulo e Círculo de
Estudos Cinematográficos do Rio de Janeiro.
A Mostra foi idealizada por Caio Scheiby e por Adhemar Gonzaga, mas tratando a questão por
uma lente mais abrangente, podemos afirmar que ela se deve ao que de melhor havia no momento
de chamado “espírito cineclube”. Para essas pessoas, rever filmes do passado cinematográfico
brasileiro era tão ou mais importante do que debater os problemas do mercado brasileiro. Tratava-
se de um interesse em problemas culturais em geral (estruturais), interesse na preservação da
memória de maneira geral, mas também de um ato político.
O fato é que tal viés colaborou muito para o entendimento, e a busca de soluções dos problemas
mais pontuais, ou “objetivos” do cinema brasileiro; incluindo aqueles de ordem econômica. A
assertiva de Paulo Emilio, quando argumenta que aqueles que se sensibilizam e compreendem os
verdadeiras funções: que não são relativas à concorrência por mercado – e ajuda também a melhorar o padrão dos
programas dessas salas.
175
Tais ações surtem efeito e jovens como Hélio Furtado do Amaral e Álvaro Malheiro iniciam um Curso de Iniciação
Cinematográfica integrado no currículo do curso secundário do Colégio Des Oiseaux. A julgar pelas palavras de Rudá
de Andrade, o curso obteve sucesso e foi repetido anualmente, não sabemos por quanto tempo. De qualquer maneira, é
verdadeiramente revolucionária a inserção de um curso dessa natureza em um curso secundário, um problema que
talvez os católicos tenham sabido enfrentar com muito mais tranqüilidade, e no qual o Estado brasileiro patina feio até
hoje.
118
problemas relativos ao desenvolvimento da cultura cinematográfica não são necessariamente os
profissionais do campo cinematográfico, é certeira neste sentido
177
.
Mas tal tipo de raciocínio não
era tão claro para a maioria dos contemporâneos.
O que teremos a oportunidade de verificar a partir de agora é uma espécie de “gangorra” que ora
pendia para um lado e ora para o outro. De um lado da gangorra ou da balança (se preferirmos
simplificar as coisas nos termos de arte e indústria) tínhamos o lado favorável à implementação do
projeto da Cinemateca Brasileira por meio da valorização e aceitação plena de seus intuitos
didáticos/ pedagógicos para com a atividade cinematográfica. Do outro temos os entraves e
obstáculos para realização desses intentos.
Em um primeiro momento, vimos como esses obstáculos se manifestavam no interior da classe
cinematográfica brasileira (onde incluímos os produtores e promotores de cultura cinematográfica
em geral), e como tinham de contrapeso histórico o movimento cineclubista brasileiro. A razão
principal das dificuldades enfrentadas pelo projeto nesse campo cinematográfico em geral era o
amplo escopo de uma visão política estreita das coisas, que acreditava que o radicalismo diante do
mercado ocupado pelo produto estrangeiro bastava como solução. Longe de querer condenar a
história queremos apenas constatar que o que essas pessoas não percebiam era a importância que
existia no ato de educar e formar público crítico, de modo que este mesmo público pudesse dar
base de apoio para as justas reivindicações da classe cinematográfica (referentes às dificuldades de
produzir, mas sobretudo de distribuir e exibir seus filmes).
Por outro lado, como balanço positivo das posições da classe diante das perspectivas do projeto,
temos a posição daqueles que defendiam e propagavam idéias visando fundamentalmente o valor
didático-pedagógico do projeto de cinemateca, preocupado em formar público (produtores e
crítica) por meio da preservação do patrimônio cinematográfico brasileiro (e mundial) e da difusão
176
ANDRADE, R. Op. Cit, P.14.
177
GOMES, Paulo Emilio Salles. Funções da cinemateca. In: GOMES, P.E.S. Crítica de Cinema no Suplemento
Literário
. São Paulo: Paz e Terra, 1983. V.1.
119
desse patrimônio por meio de mostras, festivais, fomentos ao cineclubismo, etc., com os mais
variados tipos de difusão de cultural cinematográfica (projeções, palestras, cursos, publicações
exposições, etc.). Como afirmamos acima, a I Mostra Retrospectiva de Cinema Brasileiro, em
1952, realizada pela Filmoteca do Museu de Arte Moderna de São Paulo, Centro de Estudos
Cinematográficos de São Paulo e Círculo de Estudos Cinematográficos do Rio de Janeiro é um
excelente exemplo disso. Da defesa de um projeto de cinema que visasse a “inserção” do filme nos
debates da sociedade, não apenas político, mas também didático-pedagógico.
I Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro
A figura de Caio Enrique Scheiby (um dos principais organizadores da Retrospectiva) mereceria
certamente mais do que alguns comentários, contudo, nos contentamos por hora com sua
importância para a Cinemateca
178
. Segundo Scheiby, a idéia de realizar a Retrospectiva surgiu
quando Adhemar Gonzaga, ciente da necessidade da conservar os filmes brasileiros, doou para a
Filmoteca do MAM “uma série de fitas historicamente fundamentais para documentar o passado do
nosso cinema”. O ato não poderia ter encontrado momento mais oportuno. Mas ou menos naquele
ano foi dado como desaparecido um dos mais importantes filmes brasileiros do ponto de vista do
178
Nascido em Buenos Aires, Argentina, em 1921, se naturalizou brasileiro em 1945. O interesse de Caio Scheiby pelo
cinema brasileiro muito se explica por ter sido ele um técnico cinematográfico. Foi assistente de produção e direção
dos seguintes diretores cinematográficos: Alberto Cavalcanti (Simão, o caolho), Manoel Peluffo (Meu destino é pecar),
Alberto Pieralisi (O Comprador de Fazendas), João Gangerra e script de “Senhora”, Lee Marton (Senhora) e vários
documentários com Benedito J. Duarte. Escreveu em diversos órgãos da imprensa e participou da organização de
muitos festivais. Scheiby dirigiu durante seis anos o departamento de cinema do Museu de Arte Moderna de São Paulo,
e foi um verdadeiro técnico de cinemateca e um cineclubista. Participou do Congresso Latino Americano da
“Fédération Internationale des Archives du Film”, do “I Congresso dos Cine-Clubes Brasileiros” e da fundação do
“Centro dos Cine Clubes”. A instituição paulista também deve muito a ele, no que toca ao início da organização da
documentação não fílmica do acervo. Fez trabalhos de prospecção e pesquisa histórica sobre o cinema brasileiro,
localizando importantes obras de arquivo em vários Estados do Brasil, trabalho que resultou não só no enriquecimento
da coleção da Cinemateca Brasileira, mas nas retrospectivas de cinema brasileiro, cuja primeira estamos comentando e
analisando aqui. Foi também conferencista e professor em cursos de iniciação cinematográfica, por exemplo, do
“Curso para dirigentes de Cine Clubes” do qual foi também supervisor. Fonte: Currículo Vitae de Caio Scheiby. Pasta
de currículos de atores, técnicos, diretores, cuja organização inicial se deve ao próprio Caio Scheiby. Centro de
Documentação da Cinemateca Brasileira. Tomamos por base o último item para datar o documento: provavelmente do
ano de 1958, ano da realização do I Curso de dirigentes de Cine Clubes.
120
desenvolvimento artístico: “Barro Humano” dirigido pelo próprio Adhemar Gonzaga, em 1929, no
Rio de Janeiro. Não sabemos se foi a perda de Barro Humano que incentivou Adhemar Gonzaga
na doação do lote de filme a Cinemateca (pois ele próprio já havia escrito um texto sobre o tema
“cinemateca” nos anos 30), mas o fato é que essa perda, sem dúvida nenhuma fez as coisas se
apressarem e ajudou a consolidar a consciência do arquivista (dentre outros) de que era preciso
estabelecer esse tipo de programa periodicamente, a fim de evitar que outro Barro Humano se
perdesse. Pode parecer contraditória a inversão que estabelecemos, mas para que um outro Barro
Humano não se perdesse, era preciso antes de tudo encontrá-lo, restaurá-lo (se fosse o caso) e
principalmente duplicá-lo, e conservá-lo
179
. É importante dizer que mostra foi composta de 32
filmes - sendo um dos anos 10, um dos anos 20, nove dos anos 30, nove dos anos 40 e doze dos
anos 50 - todos acompanhados de palestras de apresentação realizada por críticos, técnicos,
diretores e atores dos filmes.
O fato é que os textos publicados no catálogo da Retrospectiva dão-nos a oportunidade de
averiguar um tipo de visão de conjunto de uma concepção de cinema que fazia coro aos intuitos
educacionais e memorialísticos da Filmoteca do MAM. O primeiro deles, de Alberto Cavalcanti,
talvez resuma (ou sintetize) de forma incomum os acertos e descaminhos dos debates a respeito do
cinema brasileiro no período. O objetivo do texto, como enuncia o próprio título, é fazer um
panorama do cinema brasileiro com o foco voltado, sobretudo, para grande parte dos anseios da
época (e expressos das mais diferentes maneiras): fazer um cinema comercial de qualidade no
Brasil
180
. Esse é o tom geral e a vantagem maior do texto de Cavalcanti. Pois, embora fosse praxe
nos congressos a tentativa de elaboração de sínteses sobre os problemas do cinema brasileiro, já
sugerimos que elas acabavam malogrando por partirem e se centrarem em apenas alguns aspectos
do problema tornando-se improdutivas para dar uma visão geral das coisas. Faltava a política
179
SCHEIBY, Caio Enrique. Apresentação (titulo atribuído). Texto integrante do Catálogo da 1ª Mostra Retrospectiva
do Cinema Brasileiro em Novembro e Dezembro de 1952.
121
pedagógica do projeto, que mesmo passível dos mais variados problemas, tinha essa preocupação:
o projeto do INC.
Prova disso é que um dos principais entraves ao desenvolvimento do cinema brasileiro para
Cavalcanti, era a ausência de formação profissional. Esse é um ponto fundamental que liga os
pontos, por nós enunciados acima como indispensáveis, a uma ampla visão de conjunto do
fenômeno cinematográfico. Devemos lembrar que a formação da Cavalcanti foi feita em cineclubes
– iniciando-se em um dos primeiros e mais prestigiosos deles o Club des Amis du Septème Art de
Riccioto Canudo – sendo esta base do cineasta para afirmar que, para formar técnicos era preciso
do ponto de vista do autor, que estes alunos conhecessem história do cinema, história das teorias
cinematográficas, história da crítica. Essa perspectiva não é possível sem uma cinemateca, como
Cavalcanti mesmo defendia implicitamente no projeto do INC
181
. O que aproxima muito
Cavalcanti da visão de conjunto do fenômeno social-cinematográfico almejada pelo projeto de
Paulo Emilio para a Cinemateca Brasileira.
A crítica poderia, e deveria, colaborar com a educação do espectador de cinema, mas como
argumenta o autor da “Pequena Lili”, salvo raras e honrosas exceções prevalecia também no
âmbito da “reflexão crítica” sobre cinema no Brasil um empirismo geral e uma visão bastante
grosseira das coisas. Cavalcanti argumenta, por um caminho que nos interessa diretamente, que
“em vez de se valerem de conhecimentos dos clássicos do cinema, conhecimento que não podem
adquirir devido à ausência de uma filmoteca, numerosos críticos recorrem a simples referências de
índices e catálogos, o que jamais equivalerá a uma verdadeira cultura cinematográfica
182
”.
180
CAVALCANTI, Alberto. Panorama do cinema brasileiro – o cinema comercial. Texto integrante do Catálogo da
1ª Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro
em Novembro e Dezembro de 1952.
181
Mas, é preciso, contudo, ponderar sobre a defesa de Cavalcanti para a criação de cinematecas, uma vez que o inciso
do artigo do projeto do INC trata de estimular a existência ou a criação de
entidade privadas
destinadas ao estudo,
divulgação e conservação do cinema como arte e como fato histórico, social e cultural. A emenda do Projeto de Lei do
INC: Art.2 inciso: h) “Promover e estimular a formação e o aperfeiçoamento artistas, diretores e demais técnicos do
cinema através da criação de cursos básicos e especializados, com a instituição de bolsas de estudo, da promoção de
convênios com entidades especializadas, nacionais ou estrangeiras, e particularmente , pela realização e financiamento
de documentários de alto nível técnico e artístico”. In: VIANY, A. Op. Cit. Anexo, P.419.
182
Idem, Ibidem.
122
O segundo artigo do catálogo, escrito por Francisco Luiz de Almeida Salles, trata do
“desenvolvimento artístico do cinema brasileiro
183
, e faz coro ao texto de Cavalcanti. De início,
Almeida Salles constata o principal: a total falta de condições para sistematizar uma memória do
cinema no Brasil (a ausência de trabalhos monográficos, do registro de depoimentos e de biografias
dos personagens da história do cinema brasileiro), eram as conseqüências da inexistência de uma
filmoteca brasileira “que permitisse a conservação das obras do passado e as re-exibisse, para um
exame das características peculiares a cada período
184
”. É por meio de um histórico do movimento
cineclubista e da importante florescência do movimento de cultura cinematográfica que Salles joga
(justificando a necessidade do projeto). Vale notar também que tal histórico incluía o trabalho dos
mais importantes críticos cinematográficos, na opinião de Salles.
Era preciso valorizar o movimento em florescência, e ao mesmo tempo lamentar com veemência
que era constrangedor que nenhuma entidade ou grupo tivesse podido até o momento promover as
atividades de um arquivo de cinema. Salles é certeiro ao afirmar que sem providências dessa ordem
nunca poderemos fazer do nosso cinema uma experiência conseqüente, “em que as etapas a serem
atingidas decorram de uma real adaptação da técnica estrangeira às nossas peculiaridades de
expressão e aos resultados originais que já obtivemos nos períodos anteriores
185
”.
183
SALLES, Francisco Luiz de Almeida.
Desenvolvimento artístico do cinema brasileiro
. Texto integrante do
Catálogo da
1ª Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro
em Novembro e Dezembro de 1952.
184
Ibidem, P.1. Por hora podemos tentar imaginar o impacto que tiveram os mais velhos em rever, por exemplo, boa
parte da produção de Adhemar Gonzaga para a Cinédia (seis longas entre 1930 e 1944), e para os mais jovens em
conhecer esses filmes, mas, sobretudo a revelação que foi para praticamente todos os oito filmes de Humberto Mauro
(sobretudo
Tesouro Perdido
(1926),
Lábio sem beijos
(1930),
Ganga Bruta
(1932);
Descobrimento do Brasil
(1935) e
Argila
(1942) filmes com pelo menos dez anos, já que
Canto da Saudade
é de 1951
184
. Mas é preciso destacar ainda a
presença na mostra de um filme de José Medina, de 1919, para a Rossi Filmes (Exemplo Regenerador), e dos
documentários
“Carnaval paulista de 1936”
;
“A aranha”
– Produção Rex – Rossi Filmes de 1932 com direção de
Gilberto Rossi, sendo um dos primeiros documentários científicos feitos no Brasil; e a “Inauguração do Estádio
Municipal do Pacaembu”
, produção da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1940 (filmes que sempre se prestam muito
bem à tarefa de conscientizar o público em geral sobre a importância da preservação do patrimônio cinematográfico,
por razões que já esboçamos algumas linhas aqui), além de outros filmes de ficção da década de 30 e 40 e outros mais
recentes – década de 1950 (incluindo coisas da Atlântida, Vera Cruz, Maristela). Tudo isso competia para validar os
argumentos de Almeida Salles que conclui certeiramente: “Esta 1ª retrospectiva do cinema brasileiro”, marca o início
de um movimento, que poderá criar as condições destinadas a possibilitar um estudo dessa natureza
185
SALLES, F.L.A. Op. Cit. P.3.
123
O patrimônio estava desaparecendo diante dos olhos. Barro Humano já havia desaparecido, e o
negativo de Limite estava reduzido a uma pasta de celulóide, restando apenas uma cópia em mal
estado. O argumento ganhava força, pois dos ciclos regionais dos anos 20 (Recife, Campinas, etc.)
sobrava pouca coisa, urgindo proceder o mais rápido possível o levantamento dessa produção e
complementá-la “com fotografias, roteiros, cartazes, anúncios, artigos, coleções de jornais e
revistas, urge que solicitem depoimentos dos pioneiros, que se editem livros divulgando, sob a
forma de história articulada, ou mero registro de dados, os arquivos particulares, como o de
Adhemar Gonzaga
186
”.
Na seqüência dos textos do catálogo da Retrospectiva temos um interessante prolongamento do
debate proposto por Almeida Salles, com o texto J. H de Trigueirinho Neto “O lugar de um
cineclube no cinema nacional
187
. Trigueirinho tem uma consciência precisa do estado de coisas
da conjuntura e do amplo campo de ação do qual um cineclube deveria partilhar, sendo
politicamente engajado na busca da melhoria das perspectivas sociais do país. Era preciso intervir
em praticamente todos os âmbitos de uma atividade cultural, nos seus mais diversos segmentos
(das mais diferentes formas de manifestações artísticas) no sentido de tudo organizar. Não era
possível para um cineclube – em panorama de desagregação entre setores importantes da vida
cultural do país (como a universidade e a sociedade civil de maneira geral) limitar-se à projeção e
ao estudo das obras clássicas do cinema.
O crítico lembra os principais problemas mais imediatos enfrentados por um cineclube no período,
e percebemos claramente que todas apontam para um sentido amplo de formação social
(acompanhando os argumentos de Paulo Emilio). Era preciso assim formar, além de um acervo, a
crítica e o público. A tarefa era árdua, porém, o tímido, mas importante, florescimento do
movimento cineclubista no país o animava. Mas apesar do surgimento dos cineclubes ser um
186
Ibidem, P.2.
187
TRIGUEIRINHO NETO, J.H. O lugar de um cineclube no cinema nacional. Texto integrante do Catálogo da
Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro
em Novembro e Dezembro de 1952.
124
fenômeno anterior à criação das grandes companhias cinematográficas paulistas, a tentativa de
industrialização do cinema brasileiro, ocorrida em São Paulo, entornou um pouco o caldo
cineclubista, pois o aparecimento de empreendimentos cinematográficos do porte da Vera Cruz ou
da Maristela resultou “como era de se esperar, numa desenfreada corrida atrás do capital
188
”. Esse
fato desarticulou em parte uma integração do movimento cineclubista bastante intensa e ponto de
já estarem esboçadas as idéias da federação nacional de cineclubes e em funcionamento centros de
estudos cinematográficos como os de São Paulo e Rio de Janeiro.
No entanto, era mais fácil desenvolver um movimento de cultura cinematográfica no Brasil do que
industrializar o cinema brasileiro para competir com Hollywood. Dito ainda de outro modo – no
que pode parecer um truísmo – o movimento brasileiro só foi possível da maneira como se deu em
função da impossibilidade de liberar os entraves econômicos impostos duramente, naquela ocasião,
à produção cinematográfica brasileira propriamente dita, isto é, de filmes. É certo que estamos
tentando ver o lado bom de um processo que na realidade se apresenta de forma bastante perversa,
pois nem mesmo o movimento de cultura cinematográfica escapava totalmente dessa lógica de ver
as partes, mas não o todo. Nesse panorama, argumenta Trigueirinho Neto, até mesmo cineclubes e
escolas de cinema eram utilizados como trampolins políticos para finalidades escusas no campo
cinematográfico.
189
Mas a intrínseca relação dos argumentos de Trigueirinho, com a visão de cinema calcada em
aspectos pedagógicos, é claramente visível no amplo programa estabelecido pelo Centro de
Estudos Cinematográficos de São Paulo. Desde sua criação, o centro havia realizado além de
projeções de longas e curtas metragens por sua conta ou em parceria com outras entidades (como
na realização da própria Retrospectiva de 1952), conferências (entre elas várias de Alberto
Cavalcanti, H.G Clouzot, Ruggero Jacobbi dentre outros); um ano de Seminário de Cinema (1949);
188
Ibidem, P.2.
189
TRIGUEIRINHO NETO, Op. Cit. P.3.
125
um Curso Preparatório de Técnicos de Cinema (1951-1952);e um Curso de Arte Dramática e
Interpretação Cinematográfica (1952)
190
.
O programa impressiona, nem tanto em termos quantitativos, mas pela abrangência das atividades
mostrando de fato um entendimento do cinema como um fenômeno social, no sentido de que para
desenvolvê-lo era preciso atacar em diversas frentes, visando a formação de técnicos e de atores,
etc. A novidade é que o Centro de Estudos, a Cinemateca, e o movimento cineclubista de maneira
geral apontavam para a necessidade de esforços tão intensos em outras áreas indispensáveis para o
desenvolvimento do cinema no país, esforços que por sua vez alargariam as perspectivas para a
compreensão dos problemas “estritamente” de ordem econômica.
Na seqüência dos textos do catálogo da Retrospectiva, há o artigo de Marcos Margulies intitulado
“Acompanha complemento nacional
191
. O texto trata especialmente da questão da lei de
obrigatoriedade de exibição do complemento nacional, mas é também uma análise cultural do
sistema cinematográfico bastante interessante. Para nós, o ponto principal do texto diz respeito ao
público. Apesar das ressalvas que o próprio autor faz, a idéia é que a dominante cultural era
mesmo o desejo da maior parte do publico, que procurava a mais pura e simples alienação. Se por
um lado era necessário valorizar a parte do público que sabia apreciar um filme de maior valor
artístico em detrimento de outro de caráter mais comercial, era preciso saber constatar também –
tornando pública essa constatação – que a maior parte do publico queria mesmo eram as grandes
produções de Hollywood, ou similares das mais variadas espécies, e que era isso que tal parcela
dele entendia por cinema. Daí o de argumento de Paulo Emilio cair tão bem no texto de Margulies,
“de que era a cultura cinematográfica das elites incluindo a dos próprios cineastas que precisava ser
190
Idem, Ibidem.
191
MARGULIES, Marcos. Acompanha complemento nacional. Texto integrante do Catálogo da 1ª Mostra
Retrospectiva do Cinema Brasileiro
em Novembro e Dezembro de 1952.
126
promovida, a fim de que se elevem as exigências e o gosto do povo em matéria de cinema”, e do
público em geral, acrescentamos, sendo esta perspectiva impensável sem uma cinemateca
192
.
Outra prova de certa unidade no projeto é a presença no debate/ catálogo da retrospectiva do
“Temário econômico do cinema brasileiro”, texto de Ruggero Jacobbi
193
. Talvez exatamente pelo
fato de abordar o problema por esse ângulo específico (o econômico) e ter assim que dialogar mais
abertamente com os debatedores dessa problemática nos congressos de cinema, seja esse texto de
Jacobbi o que menos se afina ao tom geral do catálogo. E ainda que crítico do mito industrialista,
Jacobbi se apresenta como um autêntico defensor do cinema industrial no Brasil, não apenas pelo
fato de que, afinal, cinema é arte, mas é fundamentalmente indústria. Visando apontar caminhos,
Jacobbi esclarece que, historicamente, em vários países, há um trajeto conhecido para a
participação do Estado no incentivo ao cinema. Esse é o ponto forte do texto para nós. Por
pressões da classe cinematográfica surgiram assim – e o autor pretende uma comparação com o
quadro brasileiro – leis de proporcionalidade, tabelamentos (relativos também aos impostos de
importação e exportação) ou o estabelecimento de prêmios que destinem, por exemplo, verbas aos
melhores filmes do ano em diversas categorias. Chega um momento, porém, em que segundo
Jacobbi o Estado decide criar um organismo de controle e, ao lado desse, um instituto ou uma
carteira de crédito cinematográfico. No caso brasileiro, o instituto anunciava-se com o projeto do
INC – Instituto Nacional de Cinema, ao qual o autor espera que “algumas enérgicas emendas
devolvam ao projeto seu sabor democrático
194
”.
Jacobbi, no entanto, evita comentar problemas de fundo da economia do cinema brasileiro como o
referente à fiscalização do fluxo das rendas auferidas das bilheterias. É irônico ao dizer que o
assunto não lhe interessa, pois o descobridor de uma solução para esse intricado problema seria
192
GOMES, P.E. S
Funções da Cinemateca
. In: GOMES, P.E. S Op. Cit. V.1. P.96.
193
JACOBBI, Ruggero.
Temário econômico do cinema brasileiro
. Texto integrante do Catálogo da
1ª Mostra
Retrospectiva do Cinema Brasileiro em Novembro e Dezembro de 1952.
194
JACOBBI, R. Op. Cit, P.3.
127
encontrado morto na cama “numa linda madrugada, como diz o samba de Noel Rosa
195
”. É preciso
afirmar, todavia, que sem levantar problemas relativos à estrutura da sociedade, dificilmente seria
possível entender alguma coisa dos outros problemas, sobretudo quando grandes interesses
econômicos estão em jogo
.
Mas o texto que mais se aproxima não só dos outros do catálogo, mas também, do espírito de
cinemateca, é, sem dúvida, o curto artigo de Jurandir Noronha Mostra e filmoteca
196
. Noronha
esclarece que o principal objetivo da mostra escapou a muitos, mesmo entre aqueles possuidores de
negativos de filmes dignos de serem preservados. Tal objetivo era fundamentalmente a
conservação desses filmes, de modo que fosse possível situar comparativamente os esforços do
cinema brasileiro diante do cinema mundial. O autor compara corretamente o trabalho realizado
com a mostra ao de outras e importantes cinematecas do mundo, como a Cinémathèque Française,
a Film Library do MoMA de Nova Iorque e o British Film Institute de Londres.
Historicizar é a preocupação que subjaz o desejo de preservar os filmes. É o que depreendemos das
idéias de Jurandir Noronha. A preocupação com o passado é o primeiro indício disso, mas não
bastava citar esse passado, e sim também estabelecer relações com a história do cinema brasileiro e
mundial: “Quando assistimos, ainda hoje, às películas com as quais os Lumière extasiavam a
platéia daquele longínquo 28 de dezembro de 1895, já não pensamos como seria bom examinar o
Transformista Original, realizado pelo grande Paulo Benedetti entre 1903 e 1910
197
”.
Noronha
demonstra essa preocupação em comentar e analisar rapidamente seqüências dos filmes existentes
e também daqueles que não mais veríamos se medidas urgentes não fossem tomadas no sentido de
prospectar e conservar tais filmes. Ele relembra a existência de muitos filmes desaparecidos.
“Iracema” de Victorio Capellaro, em 1913, e “Pátria e Bandeira” de Antonio Leal (os quais não
sabemos se ele viu), e evidentemente a perda mais sentida naquele momento: Barro Humano
195
Idem, Ibidem.
196
NORONHA, Jurandir. Mostra e filmoteca. Texto integrante do Catálogo da 1ª Mostra Retrospectiva do Cinema
Brasileiro
em Novembro e Dezembro de 1952.
128
É interessante também notar a crítica do autor à falta de aparelhagem técnica necessária para o
tratamento de filmes danificados pelo tempo nos laboratórios comerciais, e a ausência de um
serviço seja público ou privado para a conservação dos filmes (equipados com câmaras
climatizadas, etc.) não colaboravam para um melhor estado de coisas. Mais do que isso, reinava a
incompreensão dos próprios cineastas para com a tarefa daqueles que se propunham a salvar o que
restara do patrimônio cinematográfico brasileiro, a ponto de Noronha declarar que nunca havia
visto tanto desinteresse dos pais pelos filhos, “nunca escutei tantos absurdos como os de
cinematografistas que não viam em como se podiam querer os seus antigos trabalhos, que haviam
sido exibidos, cumprido uma missão
198
”. E assim, incêndios ocorriam quase que sistematicamente,
devastando as poucas, mas boas, coleções de filmes dos mais destacados produtores, dos raros
órgãos do governo que guardavam filmes,ou dos raríssimos colecionadores.
Era preciso acabar com o que Noronha chamou de “espírito desconcertante” do cinema brasileiro,
era preciso mostrar às novas e velhas gerações que muita coisa boa já havia sido feita no país em
matéria de cinema. Muitos filmes que nunca chegaram a ter exibições regulares nas grandes
cidades. Mas, diante do panorama obtido pela retrospectiva, o clima era de entusiasmo e otimismo:
“Que se acabe com a caturrice e estejamos certos de que muita preciosidade vai surgir do fundo das
malas, dos porões e dos sótãos, das gavetas, das cabines dos velhos cinemas do interior e dos
desvãos dos laboratórios, tudo miraculosamente preservado sem que se saiba como
199
”.
Repercussão da retrospectiva na imprensa? Alguns exemplos
É difícil mensurar o real alcance do trabalho daqueles que lutavam dia a dia por um movimento de
cultura cinematográfica coeso, atuante e forte no Brasil. Certamente esse alcance não era pequeno,
197
Ibidem, P.1
198
Idem, Ibidem.
199
Idem, Ibidem.
129
mas quando analisamos o espaço que tais atividades tinham quando comparado ao que o cinema
comercial ocupava na sociedade ficamos desolados. Cinema é também para os jornais – em sua
maioria –, e não só para o grande público, aquilo que o circuito comercial exibe.
O jornal O Estado de São Paulo, histórico colaborador dos empreendimentos da burguesia paulista,
e particularmente do Museu de Arte Moderna noticiou a Retrospectiva, mas sem estardalhaço,
claro. Ao longo dos dois meses encontramos duas notícias de destaque sobre o evento. Uma delas é
a publicação – sem assinatura ou título – do texto integrante do catálogo, e outra um “balanço da 1ª
semana da mostra”. O primeiro temos certeza ser de Almeida Salles, e o segundo, fortes indícios
do mesmo. De resto são pequenas notinhas que informam o leitor sobre o andamento da mostra,
notinhas que falam resumidamente da programação vindoura e precedente, dando informações
básicas sobre os filmes: nome, direção, ano de realização, atores, e claro (algo caro à grande
imprensa e ao seu público) os prêmios que a fita recebeu. Quando era exibido algum filme da Vera
Cruz, ou da Maristela (apenas um na mostra) o destaque aumentava: notinha especial para tal
filme; e também quando algum ator da companhia estivesse presente na seção, com notinha
especial para o ator, discreta, não se poderia expor o ator, pois como o jornal adverte: a mostra era
restrita aos sócios do Museu de Arte Moderna e aos afiliados do Centro de Estudos
Cinematográficos de São Paulo e Rio de Janeiro.
Ao final definitivo da mostra (20/12/52), que foi reprisada com sessões abertas ao público em
geral, esperávamos por um outro balanço, ou um texto que analisasse o evento como um todo,
tratando dos filmes, dos autores, atores, estética, técnica, etc. Talvez no dia seguinte, no domingo
(tradicional dia de destaque para “temas culturais” nos jornais): nada na parte de cinema, nada na
parte sobre os museus. Talvez no 3º caderno, lá no meio da parte comercial do jornal: nada
também. Ao invés da esperada matéria, o jornal preferiu publicar uma “entrevista” com a Torre
Eiffel! Isso mesmo! Onde a “ilustre e paparicada senhora” “revela” que o grande amor de sua vida
130
foi um brasileiro: “Pela sua gentileza e audácia (…) foi o primeiro homem que ousou me enlaçar
pela cintura… o primeiro homem que me conquistou… chamava-se Santos Dumont
200
”!
Não bastasse isso, no dia em que foi publicado no Estadão o artigo de Almeida Salles sobre o
desenvolvimento artístico do cinema brasileiro, duas outras notinhas sairam junto com o texto, as
quais acreditamos serem também de autoria de Salles. A mais significativa, para nossos propósitos
aqui, diz que o produtor da Maristela, ao fazer a apresentação do filme da companhia Simão o
Caolho, não fez nenhuma menção ao fato do que a pré-estréia tinha sido promovida pela Filmoteca
do MAM e Centro de Estudos Cinematográficos, e tão pouco que esta era a inauguração de uma
Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro
201
. Não queremos aqui cometer o exagero de afirmar
com pretensa ironia, “vejam só como as elites se preocupavam com a cultura, etc.” Mas, embora o
exagero seja em parte procedente, o problema era mais elementar e emanava também, como já
sugerimos, de parte da própria classe cinematográfica.
Mesmo assim, é possível obter boas informações nas notinhas do Estadão acerca da retrospectiva,
notinhas que na bem da verdade saiam dia após dia, dando um razoável destaque ao evento, ainda
que em letras bem miúdas. Por elas soubemos, por exemplo, que um dos filmes exibidos na mostra,
Argila de Humberto Mauro (com Carmem Santos no elenco) não havia tido ainda exibição na
cidade de São Paulo. O filme é de 1942, dez anos, portanto, antes da mostra, um exemplo das
fragilidades e das distorções do mercado cinematográfico brasileiro com os filmes feitos no país
(OESP 26/12/1952).
As notinhas também divulgaram a publicação do catálogo da mostra já comentado aqui, e algumas
dão raras notícias sobre a recepção do público ao programa da mostra. No dia 6/12/52, lia-se que o
público vinha consagrando especial acolhida aos documentários e aos filmes de curta-metragem, e
outra nota tratava do entusiasmo do público para com os filmes de Adhemar Gonzaga exibidos no
evento. São, contudo, as notícias que apresentam algum comentário crítico sobre os filmes, as que
200
OESP 21/12/52 3º Caderno.
131
mais nos interessam. Mas elas são muito raras. Há uma crítica de Almeida Salles ao filme de
Cavalcanti (já ter sido publicada em livro
202
), e outra, do mesmo Almeida Salles que vale o
registro.
O crítico comenta o documentário, realizado por B.J. Duarte Metrópole de Anchieta e produzido
pela Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo: “Jogando com pinturas, maquetes e imagens de
aspectos antigos de São Paulo e dos seus vultos históricos, e alternando-as com a visão da cidade
moderna, conseguiu Benedito Duarte realizar uma obra cheia de ritmo e de sugestão, dos mais
eloqüentes testemunhos que temos visto do crescimento e do dinamismo de São Paulo
203
”. Salles
talvez ainda não saiba, mas é exatamente esse processo ao qual se elogia, que iria devorar nas bases
o projeto de difusão que a Cinemateca Brasileira (ainda Filmoteca do MAM) começava a colocar
em prática.
Mas havia também - na grande imprensa - quem estivesse mais entusiasmado com a Mostra. O
jornal Notícias de Hoje, de 26 de novembro de 1952, exclamava: “Para esta mostra estão voltadas
todas as atenções dos meios cinematográficos nacionais, certos de que ela fará reviver a história
dos 50 anos de nosso cinema, dando aos seus pioneiros o merecido valor e apontando aos cineastas
o caminho que devem seguir para a grandeza da sétima arte em nosso país
204
”.
A matéria traz uma rápida entrevista com Caio Scheiby – idealizador da mostra – onde este diz
coisas importantes e outras intrigantes. A mais importante foi a de afirmar que o objetivo principal
da mostra era preservar o patrimônio cinematográfico brasileiro, utilizando a difusão como meio de
conscientização do público acerca da importância da preservação de tal patrimônio. As pessoas
precisavam - nessa lógica - primeiramente ver o que elas estão correndo o risco de perder para
compreender a necessidade de cuidar desse patrimônio. Estava correto o raciocínio, na medida em
201
OESP 30/12/1952 p.12. Grifo nosso.
202
SALLES, F.L.A. Cinema e verdade. Organizado por Flora Christina Bender e Ilka Brunhilde Laurito. São Paulo /
Rio de Janeiro, Companhia das Letras / Cinemateca Brasileira / Fundação do Cinema Brasileiro, 1988.
203
OESP 30/11/1952.
204
Notícias de Hoje 26/11/52. Veja a referencia: P.982/ 14 (hemeroteca) no Centro de Documentação da Cinemateca
Brasileira.
132
que, como vimos, muitos dos próprios cineastas e produtores não compreendiam as razões para se
proteger os seus velhos filmes. Ora, sendo que ninguém os conheciam mais, era natural que não
dessem valor. Ao se sentir desvalorizado por não ser mais lembrado, produtores ou realizadores,
capitulavam com freqüência a esse estado de coisas. Nesse sentido, Scheiby não inverte os
argumentos. Diz ele ao jornalista que a intenção primeira é preservar e não ser útil ao
desenvolvimento do cinema brasileiro. Todavia, Scheiby sabia muito bem que a mostra traria sim
contribuições para o cinema brasileiro, tanto do ponto de vista puramente técnico quanto do
artístico.
Perguntado pelo jornalista sobre o mérito dos pioneiros do cinema brasileiro, Scheiby responde em
argumento, amplamente repetido e comprovado, que o melhor da produção da fase muda do
cinema brasileiro (como Limite de Mário Peixoto, Ganga Bruta de Mauro, dentre outros) nada
ficava devendo ao que havia de melhor no cinema mundial. O tom “político” , mas ambivalente e
mesmo contraditório das afirmações de Scheiby reside no argumento de que o cinema está acima
das questões da estética ou da política. “O cinema é uma necessidade para a cultura e o
entendimento entre os povos”. Mas que tipo de entendimento seria esse, que não era nem estético
nem político? A neutralidade do argumento era uma necessidade tão gritante? É preciso lembrar
também que estamos lidando com um texto da imprensa, sujeito a algum tipo de distorção.
Em outra entrevista, preferindo ater-se a problemas mais restritos da Filmoteca, Scheiby argumenta
que a mostra contribuiria para despertar o interesse dos detentores em depositar seus filmes no
acervo em formação, já que não se podia, desde então, se “contar uma história completa do cinema
nacional, pois já haviam desaparecido muitas películas em incêndios e outras se perderam pelo
abandono, ou falta de trato, referentes, na maior parte, ao que se produziu na primeira fase do
cinema brasileiro. Visamos evitar esse dano e suprir essas lacunas com as mostras
retrospectivas
205
”. Trabalho interessante e fundamental realizado por Scheiby foi o de prospectar os
205
Declaração de Caio Scheiby para o DIÁRIO DA NOITE. 28/11/1952.
133
filmes pelo interior do país, do Estado, e da própria cidade de São Paulo. Exemplo disso é o fato
dele ter localizado, nos arredores de Belo Horizonte, um filme de 1931, exibido na mostra: A
retirada de Laguna (de Libero Luxardo).
É bem verdade que dos filmes da mostra sete pelo menos tinham sido doados por Gonzaga, onze
eram da década de 50 e três do final da de 40. Mas o desenvolvimento de trabalhos de prospecção
iniciado por Scheiby, foi absolutamente decisivo para a formação do acervo da instituição: “É uma
contribuição que estamos procurando dar ao nosso cinema. É o início de um programa que levará
anos para ser realizado. Temos riquíssimas produções espalhadas por aí, que iremos aos poucos
recolhendo para os nossos arquivos. Em todo caso desta vez já conseguimos trinta e dois filmes, e é
apenas o começo
206
”. O argumento de Scheiby vale tanto para a mostra (difusão) como para o
trabalho de prospecção/ conservação/ preservação. O então diretor da Filmoteca do MAM não
pensava um sem o outro
207
.
A I retrospectiva teve importância fundamental da vida da Cinemateca Brasileira, pois foram
desenhadas as diretrizes que pautam a vida da instituição até hoje: a prioridade de cuidar
fundamentalmente do patrimônio cinematográfico brasileiro. Contudo, o impulso maior, e que seria
decisivo para consolidar a instituição no panorama cultural brasileiro viria com o I Festival
Internacional de Cinema, realizado em São Paulo, em fevereiro de 1954. Dos quadros desse
certame, como veremos, a dominante cultural (do cinema comercial, notadamente o estrangeiro)
sairia ainda novamente predominante, mas grandes vitórias foram alcançadas por aqueles que
lutavam pelo ideal de cinema amplamente democrático.
Para a vida da Cinemateca Brasileira, a realização do I Festival Internacional de Cinema de 1954
teve um primeiro e significativo resultado com a volta ao Brasil de Paulo Emilio Salles Gomes e
206
Declaração de Caio Scheiby para o SUPLEMENTO DOMINICAL DE O TEMPO – S.Paulo, 30/11/52. P.11. Veja a
referencia: P.982/ 11 (hemeroteca) no Centro de Documentação da Cinemateca Brasileira.
207
Não custa nada lembrar algo que também aparece na reportagem. O trabalho de prospecção não se fazia somente,
mas principalmente, em busca de filmes brasileiros. Nas andanças e aventuras da prospecção era comum encontrar
filmes estrangeiros, alguns muito raros. A reportagem afirma que também em uma localidade mineira foi encontrado
134
Rudá de Andrade, especialmente para a realização do certame e, sobretudo para dirigir a
instituição. Ambos voltavam da Europa após concluir suas respectivas formações no campo do
cinema, principalmente Paulo Emilio, 14 anos mais velho.
Rudá havia passado primeiro pela França. Seu intuito inicial era cursar o IDECH – Institut
D’Hautes Études Cinématográfiques, mas a instituição francesa frustrou suas expectativas. A
situação era de penúria material (equipamentos cinematográficos), e para quem estava disposto a se
enveredar no campo da produção isso não era nada bom. Rudá lembra, por exemplo, que os alunos
faziam exercícios de enquadramento, de movimentos de câmera, etc., sem poder contar com filme
nas filmadoras
208
. Foi então que ele começou a ouvir os altos ecos vindos da Itália, do que hoje
conhecemos pelo nome de Neo-Realismo Italiano. O brasileiro “rachou a cabeça” de estudar e
passou nas provas do Centro Experimental de Cinematografia de Roma. Lá, a situação era outra,
além de equipamentos à vontade, filme virgem etc., os estudantes tinham alojamento e refeições, e
não demorou para Rudá se envolver no movimento em plena florescência, chegando a ser primeiro
assistente de direção de Victorio de Sica em Stazione Termini.
Mesmo com uma vida relativamente estabelecida na Itália, Rudá aceitou o convite de Paulo Emilio
para colaborar na organização do Festival de 1954 em São Paulo. Depois do declínio da animação
no meio cinematográfico paulista, ocasionado pela Vera Cruz e suas mais pobres congêneres (outra
das principais razões que atraíram o jovem de volta ao Brasil), ele se tornaria uma das principais
figuras na história da Cinemateca Brasileira. Assunto o qual retomaremos mais adiante.
Com Paulo Emilio, a coisa foi um pouco diferente. Ele voltou ao Brasil fundamentalmente para
dirigir a Filmoteca do MAM (futura Cinemateca Brasileira). Após seu primeiro período na Europa
(1937/ 1939) ele iniciou (como já vimos) sua formação no campo cinematográfico, mas foi só a
partir de 1946, quando ele partiu para sua segunda estada na França, desta vez por oito anos, que
por Scheiby o primeiro filme de John Ford, de 1924, e na cidade de São Paulo foram encontradas duas cópias de
“pepluns” italianos (Quo Vadis, Cabíria) e uma outra do Encouraçado Potenkin de Eisenstein.
208
Depoimento pessoal de Rudá de Andrade ao autor.
135
sua formação se completaria. A síntese eno em processo, do militante político e do jovem
cineclubista/ arquivista de filmes, foi materializada na pesquisa realizada a respeito da obra do
cineasta francês Jean Vigo e de seu pai, o militante anarquista Miguel Almereyda.
A forma como Paulo Emilio empreendeu a pesquisa e as démarches para a criação da Filmoteca do
MAM o levou a se embrenhar de tal maneira no panorama político-cultural da Europa, que esse
trajeto marcaria para sempre a concepção de cinema e sociedade do crítico. Uma concepção de
mundo que já vinha se moldando durante os anos de militância política e cultural no Brasil de
meados da década de trinta, mas que só alcançaria todo o seu desenvolvimento em seu célebre livro
de 1957
209
. Uma síntese da concepção de cinema e sociedade que, como analisou Adílson Inácio
Mendes, aparece de corpo inteiro na escrita (ensaística) do crítico, na forma como o texto se
estrutura, mesclando com admirável equilíbrio análise histórico-sociológica, estético-imanente e
mesmo elementos ficcionais (mesclados a dados empíricos), aproximando a escrita da realidade de
forma bastante peculiar “que só o conhecimento seguro do universo evocado permite
210
”. O que o
crítico chamou de “inventar certo” está presente não apenas em sua escrita (como bem sabe
Mendes) mas em toda sua trajetória, o que evidentemente inclui a Cinemateca Brasileira, talvez um
dos melhores exemplos deste tipo sui generis de procedimento.
Festanças, badalação e cultura cinematográfica
Não cabe aqui uma análise extensa do I Festival Internacional de Cinema de 1954, realizado em
São Paulo nos quadros do IV Centenário da cidade. Como qualquer evento histórico significativo,
o festival tem séries intermináveis de pormenores dos quais demoraríamos a dar conta. Seria
209
GOMES, Paulo Emílio Sales. Jean Vigo. Paris: Seuil, 1957. A tradução brasileira foi editada pela Paz e Terra em
1984.
210
MENDES, Adílson Inácio.
Escrever cinema: a crítica de Paulo Emilio Salles Gomes (1935 /1952)
. Dissertação de
Mestrado defendida em Junho de 2007 na Escola de Comunicações e Artes da USP. Sob a orientação do Professor
Ismail Xavier.
136
importante analisar o certame de um ponto de vista geral, para depois nos determos nas três
retrospectivas realizadas nele, e que constituem o que de mais essencial aconteceu do ponto de
vista da história da Cinemateca Brasileira. É valido, por exemplo, lembrarmos que a idéia do
certame nasceu na comissão organizadora do IV Centenário de São Paulo, mas que só se tornou
plenamente viável pela parceria entre a referida comissão, o Museu de Arte Moderna (cujo
presidente era também da presidente da comissão, Ciccillo Matarazo) e do Estado, notadamente
por meio do Itamaraty. Outro ponto passível de destaque é o (des)equilíbrio que existiu no certame
entre o mundanismo presente e financiador da festa (cuja relação com a conjuntura é reveladora) e
o “lado cultural” do Festival.
Contudo, acreditamos ser suficiente para o objetivo aqui comentar não o mundanismo do Festival,
mas o que nele houve de mais importante para o projeto da Cinemateca. Foi por meio do Festival
que a então Filmoteca do MAM formou o primeiro grande núcleo de acervo, diante da pouca
resistência dos mecenas paulistas em financiar a compra – via FIAF – de cópias de grande parte do
que foi exibido aqui durante o ano de 1954, (sendo este um dos maiores benefícios do certame)
211
.
A ação de Paulo Emilio foi fundamental neste sentido. Ele foi o principal ideólogo da pedagogia do
Festival.
Vários participantes do certame saudaram a intenção e o caráter formador planejado para o evento.
Entre eles, certamente Henri Langlois era um dos maiores entusiastas da idéia, por se tratar
exatamente do tipo de investida defendida por ele dos interessados em cultura cinematográfica, em
um meio hostil à essência de trabalho desenvolvido por ele na Cinemateca Francesa. O texto de
Jean de Baroncelli (Finalmente um Festival sem prêmios) e outro escrito por um enviado da
importante revista inglesa Sight & Sound, Francis Koval, também fazem coro a isto (boletim do
festival 17/02/54). Outra figura de peso a comentar o fato, foi Ernest Lindgren da National Film
211
AAS/ CA, 1953. Na referida carta a Paulo Emilio, Almeida Salles deixa-nos claros quais foram os procedimentos
utilizados na compra das cópias que integrariam o acervo a Filmoteca. Afirmamos que os filmes foram exibidos
durante todo o ano, pois o festival durou duas semanas, mas mostras nacionais percorreram todo o ano.
137
Library de Londres e da FIAF. Para o inglês, o Festival de São Paulo era o primeiro do mundo a
dar esse tipo de peso aos programas retrospectivos. Ele lembra que, apesar de jovem, o cinema já
tinha uma história importante a ser contada e estudada, mas que infelizmente a indústria
cinematográfica tendia a concentrar suas atenções apenas na produção do presente, privando não só
o público, mas também seus próprios técnicos de se valerem da oportunidade de conhecê-las e
estudá-las. Essa era a razão, apesar do imenso desenvolvimento técnico do cinema, de haver como
contrapeso um desenvolvimento artístico bastante desapontador. O passado, conclui Lindgren,
“pode ser não só fascinante em si mesmo, como também é o trampolim do qual se pode saltar para
o futuro
212
”.
Lindgren argumenta que, contrário a esse espírito, foi providenciada para o festival de São Paulo
uma longa série de programas destinados a permitir aos visitantes aprenderem alguma coisa sobre a
história do cinema no Brasil, e aos brasileiros conhecerem a história do filme norte-americano e
europeu. O fato de terem sido convidados para vir a São Paulo alguns representantes da Federação
Internacional de Arquivos Cinematográficos não foi um acaso. Além do inglês (representando a
National Film Library de Londres), foram também convidados Henri Langlois da Cinémathèque
Française, Giani Comencini da Cineteca Italiana e Alsina Thevenet do Uruguai fazia parte desses
planos. José Maria Podestà, também um dos pioneiros do movimento de cultura cinematográfica
no Uruguai, um dos fundadores da Cinemateca Uruguaia, também escreveu no Boletim um texto
significativo nesse sentido
213
. O objetivo central do certame era, de fato, fomentar a cultura
cinematografia, não só no Brasil, mas em toda a América do Sul.
Apesar de extremamente competente e simpático às iniciativas brasileiras, o inglês devia mesmo
viver encastelado no BFI em Londres. Ele argumenta que não conhecia manifestações culturais
semelhantes no mundo. De onde tinha surgido esse modelo de festival? É Paulo Emilio quem nos
212
LINDGREN, Ernest.
O Festival e os arquivos de cinema
. In: Boletim do Festival, 24/04/1954.
213
PODESTA, J.M As vantagens e utilidades das retrospectivas cinematográficas. In: Boletim do Festival,
25/04/1954.
138
esclarece, mostrando que ao contrário do que muitos pensam, o modelo francês não era o único a
dominar a cena do projeto da Cinemateca Brasileira: “Os festivais cinematográficos realizados
depois da guerra em Bruxelas e Knokke-le-Zout destacaram-se de Veneza e Cannes pela
importância das manifestações retrospectivas e culturais e serviram de modelo ao esforço paulista
de 1954
214
”. A Bélgica era, aliás, um modelo de cinema em geral, tanto do ponto de vista do
movimento de cultura cinematográfica (crítica, historiografia, cinemateca e cineclubes), mas
também pelo fato de lá não existir censura cinematográfica, o que permitia, segundo Paulo Emilio,
“um amplo arejamento da atmosfera
215
”.
O Festival teve várias retrospectivas e todas foram importantes para o sucesso do certame no
sentido de ajudar consolidar o projeto da instituição Cinemateca Brasileira. Um delas foi sobre o
Festival Infantil (apresentado pela pioneira no setor Sonika Bo) e que franqueava a entrada ao
público; tivemos outra sobre o Festival do Filme Científico (organizado por B.J Duarte), bem como
exibições das retrospectivas nacionais (incluindo a brasileira), a mostra Grandes Momentos do
Cinema (mostra retrospectiva de clássicos promovida pela Filmoteca), a Retrospectiva Stroheim e a
Retrospectiva Abel Gance.
As notícias sobre as mostras eram acompanhadas de boas críticas (como as de Paulo Emilio sobre
filmes de Stroheim), e outras como uma sobre Ganga Bruta de Humberto Mauro, e também de
bons textos como A lição do passado (sobre a retrospectiva brasileira), ou o do crítico francês do
Le Monde, Jean de Baroncelli Finalmente um Festival sem prêmios, elogiando a organização pela
ausência de critérios muitas vezes estritamente comerciais das premiações tradicionais. Outros
bons textos são vistos no Boletim do Festival: um sobre cinema e infância e outro sobre técnicas de
animação (a propósito de uma demonstração em público feita por Norman Mclaren que esteve em
São Paulo na ocasião), etc. Vemos também anúncios de importantes conferências realizadas
214
GOMES, P.E.S.
Os gestos de homem
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1 p.112.
139
durante o festival, como a de Henri Langlois (que não falou de cinemateca e sim de cinema
francês) e a de André Bazin. No entanto, é preciso dar um maior destaque a algumas dessas
mostras.
A primeira delas, intitulada Grandes Momentos do Cinema, passou em revista por períodos
clássicos na história do desenvolvimento da arte, da técnica e da economia do cinema, com o foco,
porém, centrado no primeiro desses fatores: a arte. O programa, que visava nitidamente a formação
de público, colocando-o em contato direto com os filmes de uma linha cronológica já clássica da
história do cinema:
Foram exibidos 10 filmes de George Mélies, 11 do cômico francês Max Linder, 23 de Charles
Chaplin (de todas as fases da carreira do cineasta), o célebre peplun italiano Cabíria (1914), O
nascimento de uma nação de D.W Griffith (1915), filmes expressionistas alemães – O gabinete do
Dr. Caligari (Weine 1919; O gabinete das figuras de cera (1924), Nosferatu de Murnau (1922) e
Schatten (1923), além de Berlin: sinfonia de uma grande cidade de Walter Huttman; filmes da
importante escola sueca como O tesouro de Arne de Mauritz Stiller (1919) e outros dois de
Sjõstrõn (O Vento e A carroça fantasma, ambos realizados nos EUA). Para completar o panorama,
não poderiam faltar O cão Andaluz e L’âge D’or de Buñuel, filmes russos/ soviéticos: O homem na
câmara de Dziga Vertoz (1929), A Terra de Alexander Dovzhenko (1929/30) O encouraçado
Potenkin (1925), Que viva México (1931), Os dez dias que abalaram o mundo (1927/28) os três
últimos de Sergei Eisenstein, sendo que o último Eisenstein dirigiu junto com Gregori Alexandrov.
Por fim alguns outros filmes franceses e americanos como Aurora do alemão Murnau (EUA,
1927), A viagem imaginária de René Clair (1925) e Napoleão de Abel Gance (1925/1927)
216
.
O catálogo da mostra – redigido por Paulo Emilio – visava colaborar com a fixação daquilo que a
mostra pretendia ser: uma iniciação na história do cinema para um grande público. Não nos
215
Idem, Ibidem.
216
Catálogo redigido por Paulo Emilio Salles Gomes para a mostra Grandes Momentos do Cinema. Filmoteca do
MAM/ Festival Internacional de Cinema do Brasil, 1954.
140
deteremos em analisar esses programas, afirmando apenas que, além do caráter formador (de
público e crítica), essa mostra teve por objetivo, não só ajudar na formação do acervo da Filmoteca,
mas também colaborar para despertar o interesse no público na formação desse acervo
(fomentando ao mesmo tempo o cineclubismo no Brasil). Vale notar também que os textos do
catálogo redigido por Paulo Emilio apresentamuma profundidade de análise semelhante aos
textos que o mesmo crítico escreveria posteriormente no Suplemento Literário do Estadão, o que
se relaciona novamente ao fato do crítico já ter completado sua sólida formação no campo da
crítica e da pesquisa no campo do cinema
217
.
A mostra era a primeira parte de uma retrospectiva do cinema mundial, que ocorreu durante todo o
ano de 1954, com a qual colaborarão diversas cinematecas de todo o mundo: Cinemateca Francesa,
National Film Library (Londres), Film Library do MoMA (Nova Iorque), Cinemateca da Bélgica
(Bruxelas), Cineteca Italiana (Milão) Cineteca Nazionale (Roma), Filmhistoriska Samlingarna
(Estocolmo), Cinemateca Suiça (Laussane), George Eastman House (Rochester/ EUA) e o
Nederlands Filmmuseum (Amesterdam)
218
.
Em seguida temos a homenagem ao cineasta e ator austríaco Eric Von Stroheim, que contou com a
presença do “famoso vilão” em pessoa, nas agitadas noites do Palácio de Cinema (o Cine
Marrocos, no centro da cidade, sede do festival). A Retrospectiva Stroheim merece um destaque
ainda maior no que toca ao significa do certame paulistano para o projeto da Cinemateca Brasileira,
no sentido que para além de uma simples exposição da mostra do cineasta, estava subjacente ao
‘evento’ a tentativa de tornar públicas algumas importantes constatações.
Segundo André Bazin, essa retrospectiva seria lembrada na história do cinema por uma razão que
merece ser desenvolvida. Que razão era essa? Ora, os filmes de Stroheim não eram desconhecidos
da crítica especializada, e nem sua exibição em conjunto propriamente era uma novidade. O que
217
Sobre este tema, Cf: MENDES. A.I. Op. Cit.
218
Catálogo redigido por Paulo Emilio Salles Gomes para a mostra Grandes Momentos do Cinema. Filmoteca do
MAM/ Festival Internacional de Cinema do Brasil, 1954.
141
impressionou Bazin foi a adesão de um público de massa a filmes que, a pelo menos dez anos não
eram projetados fora de cinematecas e cineclubes. A média de público da mostra foi de 2.000
pessoas por sessão, o que mostrava a vitalidade e a modernidade da obra do austríaco. Bazin
comenta que seu apreço pelos filmes de Stroheim havia sido formado nas mostras de cineclubes e
cinematecas, mas que a projeção diante de um “verdadeiro público” (o termo é dele) fez com que
se renovasse completamente a maneira como ele próprio compreendia tais filmes
219
.
A validade suprema de um clássico, segundo o crítico, só poderia ser aferida em uma ocasião
como essa. Impressionado, Bazin lembra que a estréia de uma cópia sonorizada de Marcha Nupcial
teve a presença de 4.000 pessoas! Bazin comenta ainda, que não era o caso de criticar a ação dos
cineclubes, e, sobretudo das cinematecas (sem as quais o evento seria impossível), mas que, nesse
tipo de ocasião, fica perceptível a necessidade de uma “mudança de escala” em certas
manifestações de cultura cinematográfica, conclui o crítico. “As capelas que circundam as catedrais
não devem jamais esquecer de celebras grandes missas
220
”. Cineclubes e cinematecas tinham
portanto na visão dos críticos uma tarefa urgente a cumprir: educar e formar cidadãos.
No exemplo da Retrospectiva Stroheim, aparece todo o potencial do projeto de Paulo Emilio para
a difusão cinematográfica a ser conduzida pela Cinemateca. Pois se oficialmente a Retrospectiva
Eric Von Stroheim figurava como uma homenagem a uma personalidade extremamente
representativa do cinema, acreditamos ser mesmo de grande valia compreender o evento (e o
próprio Stroheim) como representante de uma síntese do que era cinema para Paulo Emilio, sendo
desejável que assim fosse para o projeto do certame como um todo. Stroheim encarnaria assim
todas, ou boa parte, das contradições inerentes à ambigüidade natural do filme arte/ indústria,
derivativa de desdobramentos sociais do problema, a saber, as ligações de problemas “específicos”
do cinema com outros mais amplos da sociedade. O que, como veremos, era uma grande lição
sobre a história da indústria cultural. Eis o que entendemos como sendo o sentido maior; o lugar
219
BAZIN, André.
Un festival de la culture cinématogràfique.
In : Cahiers du Cinéma, Avril, 1954, Nº 34.
142
ocupado pela retrospectiva Stroheim no certame paulistano de 1954, do ponto de vista de Paulo
Emilio. Analisar a obra do cineasta seria desnudar as etapas de todo o processo de formação da
indústria cinematográfica, particularmente a norte-americana.
Georges Sadoul fornece-nos uma excelente caracterização desse período onde Stroheim começou
sua prodigiosa e tumultuada carreira de diretor. O que Sadoul chamou de a edificação de
Hollywood é o momento da constituição inicial dos monopólios no campo do cinema comercial. É
nesta conjuntura (quando, cada vez mais, as grandes companhias cinematográficas estreitam laços
com grandes grupos financeiros, bancos, etc.) que a figura do produtor toma o lugar do diretor. A
partir de então, os números que a economia cinematográfica estava adquirindo ainda no tempo do
cinema mudo eram realmente impressionantes, e com pesados investimentos o cinema se
transformou em uma industrial comparável às maiores industrias americanas: automóveis,
conservas, aço, petróleo, cigarro.
221
O cinema tornou-se mais do que uma mercadoria qualquer,
tornou-se uma locomotiva, um caixeiro-viajante. Conclusão que Sadoul faz com base na conhecida
fórmula de Willian Hays (o primeiro presidente da toda poderosa Motion Pictures Association of
América): “A mercadoria acompanha o filme, onde quer que penetre o filme americano, vendemos
mais produtos americanos”.
O historiador francês lembra que o período é sintomático e singular para compreendermos o futuro
da relação entre as partes da ambigüidade natural do filme (arte/ indústria), e esse é um ponto
importante para Paulo Emilio. A ruína de Griffith, escreve Sadoul, contrastou com a prosperidade
de Cecil B. de Mille, cuja personalidade vulgar, comercial e ostentosa passou a caracterizar
Hollywood desde então
222
. Além disso, acrescenta Sadoul, a internacionalização financeira, os
rigores da censura, a adaptação sistemática de romances de êxito, o “Star System”, a rotina do
“Box Office” e do “Producer” ocasionaram um empobrecimento artístico que a profusão material
220
Ibidem, P.29.
221
SADOUL, G. Op. Cit. P.197.
222
SADOUL, G. Op. Cit. P.199.
143
tornou mais evidente. Restava ao cinema americano pelo menos uma rica escola cômica (de
Chaplin, Buster Keaton, Harold Loyld, dentre outros) “e algumas obras de exceção, quase todas
dirigidas por realizadores de origem estrangeira
223
”.
Não menos importante para compreender o destino de Stroheim e sua relação simbólica com a
história da ambigüidade natural do filme do ponto de vista de Hollywood, é lembrar que, para
arruinar os cinemas rivais, Hollywood organizou a imigração dos melhores realizadores e atores
estrangeiros. Sadoul lembra que suecos foram os primeiros a chegar, mas que a presença alemã e
também francesa seria decisiva até o momento que (assim) fosse conveniente para a indústria. “O
destino de Stroheim é simbólico”, escreve Sadoul. Hollywood começava a esmagar ou eliminar a
personalidade e a individualidade dos artistas. “Os Stroheim – ou os Griffith – eram já agora a
presa dos “producers”. O dia em que ele foi expulso dos estúdios de Irving Thalberg durante a
realização de um filme foi considerado por René Clair como o início de uma nova Héjra, como a
data da verdadeira fundação de Hollywood
224
”.
Na história da criação de mitos da indústria cultural, o exemplo de Stroheim é bastante revelador
para compreendermos o que existe de mais predatório neste tipo de processo. E ainda que o
cineasta/ ator, como afirma Paulo Emilio, tenha participado da criação desse mito, era preciso ter
cautela para analisar essa dinâmica que de fato envolve a participação do próprio Stroheim em sua
criação. Nesse sentido, Paulo Emilio adverte que seria simples demais reduzir tudo a uma
preocupação profissional. “Até certo ponto tudo se passa como se o personagem imaginário
sugasse a realidade do original vivo, para em seguida lhe insuflar como conteúdo o produto ilusório
da imaginação”. Prova disso, estava na perplexidade de muitas pessoas pouco acostumadas a
conviver em seu círculo íntimo ao não conseguirem distinguir os limites entre o mundo real e os
temas constantes de um universo recriado
225
.
223
Ibidem, P.201
224
Ibidem, P.209.
225
Ibidem, P.129.
144
Mas o principal, e que os produtores esperavam dele, eram histórias de nobreza (com condimentos
eróticos é verdade), com o tratamento mais romântico possível. Ao que tudo indica, deveriam ser
verdadeiros contos de fadas, com relacionamentos e paixões arrebatadoras entre nobres e plebeus.
Contudo, o tratamento dado por Stroheim às histórias chocaram os managers de Hollywood.
Segundo Paulo Emilio, a maioria dos nobres dos enredos de Stoheim (reis, rainhas, princesas,
condes, duques, etc.) constituía uma verdadeira galeria de monstros. Em relação à abordagem de
amores entre nobres e plebeus na obra do austríaco, o crítico comenta, por exemplo, que em
Marry-Go-Round, paralelamente ao idílio entre a ingênua Mitzi e o conde, desenvolve uma sórdida
aventura de sua noiva, a princesa Giselda, com um criado. “Os produtores arrancaram o filme das
mãos de Stroheim ainda em tempo de tornar irreconhecível a concepção original
226
”.
Stroheim até que tentou se adequar às regras do jogo de Hollywood, retirando da ação central dos
filmes toda a sordidez que feria o pudor de parte da puritana sociedade norte-americana, mas seu
gênio artístico falava mais alto, e era cada vez mais iminente a sua condenação nos quadros de
Hollywood como realizador, pois, como notou Paulo Emilio, nos personagens secundários
permaneciam “vivos demais” sentimentos de amargo pessimismo para com a humanidade: “Nas
cenas de fundo e nos personagens secundários Stroheim prossegue na sua implacável destruição.
Basta evocar a seqüência da orgia num bordel de luxo durante a qual os pais de Nicki e Cecília
combinam o casamento dos filhos
227
”.
O golpe de misericórdia de Hollywood, em Stroheim, viria com a realização de Greed (Ouro e
Maldição), onde o cineasta afrontou de maneira mais direta as intenções da indústria. “Era
fundamental a discordância entre aqueles otimistas homens de negócios, protestantes e israelitas
americanizados, quando não americanos, e o estranho pessimista austríaco, membro alias da
Catholic Motion Picture Guild
228
”. Paulo Emilio comenta a mutilação sofrida por Greed nas mãos
226
GOMES, P.E.S.
O mito, a obra e o homem.
In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1 p.130.
227
Idem, Ibidem.
228
Ibidem, P.131.
145
dos produtores, em função das profundas divergências quanto ao tratamento do tema, que
acabamos de comentar. A análise do crítico não só ajuda a compreender os motivos de tais
gigantescos cortes, mas nos permite ter uma idéia das quatro e meia, (e não quinze ou vinte como
muitas vezes pretenderam) – reduzidas a duas horas pelos produtores, seguido ainda de cortes
promovidos pela censura a ponto de Stroheim não mais reconhecer como seu o filme
229
.
O fato é que a retrospectiva e as exposições então realizada diante de um vasto público sem
formação cultural específica sobre a obra do austríaco, visavam demonstrar a extrema vitalidade
dos velhos filmes de Stroheim e enunciar estas lições de um exemplo por excelência de como se
dão (historicamente) as relações entre arte e indústria: no mínimo um convite à reflexão. A adesão
e a aceitação em massa do público paulistano à mostra demonstrava também que, apesar de toda
essa ação censitária e predatória por parte da indústria, o público estava preparado e ansiava por
um outro tipo de cinema que não somente aquele feito de água e açúcar, cravo e canela. Fato este
que trazia benefícios também para o cineasta enquanto figura humana. Paulo Emilio comenta que a
mostra impressionou profundamente a crítica estrangeira presente no festival causando “ecos
duradouros” principalmente na França, Inglaterra, Itália e Uruguai, concluindo que o Festival de
São Paulo foi uma etapa decisiva na moderna apreciação da obra de Stroheim em todo o mundo.
Ele indicou também, que a saída de Erich do seu retiro na Califórnia “para as madrugadas gloriosas
do Cine Marrocos constituiu uma pequena compensação pelas amarguras de uma vida de combates
quase sempre malogrados
230
”. Ponto mais do que positivo (de aceitação pública) para o projeto da
Cinemateca Brasileira.
Pouco podemos comentar em relação a II Mostra Retrospectiva do Cinema Brasileiro. Embora com
programa um pouco menor do que a I Retrospectiva realizada em 1952, ela teve um catálogo
crítico mais apurado, que analisou os filmes exibidos um a um (redigido por B.J Duarte). Os
objetivos dessa retrospectiva não mudaram em relação aos da I Retrospectiva de 1952: prospectar
229
SADOUL, G. Op. Cit. P.207.
146
material, conservá-lo, e difundi-lo colaborando para o debate histórico em torno dos problemas
enfrentados no tortuoso desenvolvimento da cultura cinematográfica no Brasil, mas é plausível
imaginar que Paulo Emilio esperava que as lições passivas de serem colhidas da trajetória de
Stroheim e de sua tumultuosa relação com a indústria cinematográfica fossem aproveitadas pela
crítica, técnicos, produtores e diretores cinematográficos e pelos demais interessados em cultura em
geral. No entanto, o certame paulistano foi realizado no auge do surto industrialista do cinema
paulista. Meses antes, O cangaceiro de Lima Barreto (e da Vera Cruz) havia sido laureado em
Cannes (um prêmio pequeno é verdade, mas em Cannes!). Novamente as coisas não seriam assim
tão fáceis.
Se por um lado tínhamos uma crítica ferrenha e mesmo sectária ao modelo industrialista
encabeçado pela Vera Cruz para o cinema brasileiro, outros como Paulo Emilio, ou Anatol
Rosenfeld (e mesmo B.J Duarte), alertavam para o fato de que é impossível compreender o cinema
sem a industria, e que o erro não era necessariamente o modelo implementado pela Vera Cruz. Para
Paulo Emilio os condicionamentos impostos pela indústria para a feitura dos filmes não
comprometiam necessariamente seu valor (vide o exemplo de Stroheim), e era importante notar
que “a indústria cinematográfica, capitalista ou não, tem produzido obras de arte que podem ter
alargado o próprio conceito artístico, e que conservam a característica fundamental de perenidade,
válida para a pintura, a música ou a literatura
231
”.
A indústria dialogava com o público – assim como as chanchadas cariocas. Público este que
acabou faltando para muitas produções posteriores à derrocada do cinema “industrial” paulista e
carioca. Desse modo, a crítica de Paulo Emilio e também de Anatol Rosenfeld caminhavam em um
sentido a não perder esse contado com o público. Não era uma tarefa fácil, e como veremos
também aqui, temos ambigüidades. Trata-se, no entanto, de uma via que fundamentava uma
proposta de cinema e de sociedade importante para os nossos propósitos aqui. Menos sectária e
230
Ibidem, P.132. Grifo nosso.
147
mais sensível à “realidade” do público brasileiro. Mais sensível talvez a desastres que se
anunciavam.
232
No entanto, o mais importante estava feito. A II Retrospectiva de Cinema
Brasileiro iniciou a consolidação de um amplo projeto de pesquisa (eixo fundamental de uma
cinemateca moderna). A partir de então, se intensificaram, sempre na medida do possível, os
trabalhos de prospecção e conservação do patrimônio cinematográfico brasileiro, do passado e do
presente. Trata-se de um projeto de Universidade e de um sistema cinematográfico, igualmente
planejado no tripé da pesquisa/ ensino/ extensão, ou se quisermos, da prospecção/ conservação/
difusão.
231
GOMES, P.E.S.
Cultura e escola
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1. P.103
148
Capítulo III -
Cinemateca Brasileira, 2ª época: das chamas ao chumbo (1957 - 1968)
Nos anos subseqüentes ao I Festival Internacional de Cinema, a Cinemateca vivia intensa
instabilidade. Em 1955, um grande trabalho de prospecção “de norte a sul do país” era
empreendido, juntamente com procedimentos de conservação e contratipagem feitos na medida das
possibilidades. A Cinemateca participava ativamente do panorama cinematográfico brasileiro, por
exemplo, realizando pré-estréias em sua sede ou em seu benefício. Mas, já em 1956, o trabalho de
preservação se limitava a uma superficial e irregular limpeza dos filmes. A contratipagem cessou,
assim como a prospecção. As condições de trabalho eram muito ruins, inclusive com acumulação
na sede de filmes inflamáveis. “A precariedade da situação dos demais depósitos e dificuldades
financeiras não permitiam o contrário”
233
.
O fato é que, a partir de sua separação do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) neste
mesmo ano de 1956, a Filmoteca do Museu, agora com o nome de Fundação Cinemateca
Brasileira, passou a necessitar urgentemente de bases sólidas para desenvolver suas vitais e
custosas atividades. Era unanimidade para os então diretores da Fundação que tais sólidas bases só
poderiam advir do Município, do Estado e da Nação, em suma, de financiamentos públicos.
Na cidade de São Paulo, as pressões por parte dos críticos, cineastas e intelectuais participantes dos
congressos e da Comissão Municipal de Cinema (criada em 1955) deram um resultado bastante
positivo. Pressionando pela alteração da legislação e para a solução do problema das remessas de
lucros das produtoras e distribuidoras estrangeiras, foi proposta, via Comissão Municipal de
Cinema, a criação de uma taxa adicional sobre o imposto de diversões públicas que seria revertido
em um prêmio aos melhores filmes do ano.
A Lei Nº 4.854, de 30 de dezembro de 1955 previa duas categorias de premiação, os filmes
considerado de qualidade normal recebiam 15% de sua renda bruta, e os de reconhecido valor
149
técnico e artístico recebiam 25% da renda bruta como prêmio. “A medida tinha como objetivo
equilibrar o custo médio com a renda média de cada filme, já que o cinema, como qualquer outra
atividade econômica, não pode se desenvolver se tiver que produzir sem a expectativa de uma
renda média
234
”.
Mas esta lei municipal tinha algo realmente excepcional. Foi o primeiro diploma legal brasileiro a
fazer referência e tratar da preservação de filmes. O seu artigo 15 abria possibilidades para que
fossem estabelecidos convênios entre o Município e entidades, que se aplicassem “à conservação
de fitas com finalidades culturais, ou mantenham cursos e seminários para o estudo da técnica e da
arte cinematográfica
235
”. A lei era também um dispositivo de depósito legal semelhante ao que
temos hoje com as leis de incentivo à cultura. Todo filme que recebesse premiação oriunda da lei
deveria depositar uma cópia do filme em um órgão público que se dedicasse à preservação de
filmes, ou seja: a Cinemateca Brasileira. Uma excelente notícia para a Cinemateca Brasileira,
indicando que as coisas começavam a se direcionar bem, no sentido da instituição encontrar novos
caminhos para a obtenção de recursos públicos visando o tratamento de seu acervo e sua difusão.
Foi quando, em janeiro de 1957, registrou-se o primeiro incêndio de uma cinemateca ligada à
Federação Internacional de Arquivo de Filmes
236
. Seu endereço? 13º andar do prédio dos Diários
Associados, rua 7 de Abril, centro de São Paulo: foi a sede Cinemateca Brasileira que virou cinzas.
233
Arquivo Histórico Cinemateca Brasileira AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios Anuais, 1956.
234
SIMIS, Anita.
Legislação.
In:RAMOS, Fernão Pessoa; MIRANDA, Luiz Felipe A.(Org.)
Enciclopédia do cinema
brasileiro
. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2000, P.322. Vale notar, desde já, que a criação da Comissão
Municipal de Cinema em São Paulo estimulou a criação das Comissões, Estadual – também de São Paulo – e da
Comissão Federal de Cinema em 1956, e posteriormente dos grupos de estudo: Grupo de Estudo da Indústria
Cinematográfica (GEIC) de 1958, e do Grupo Executivo da Indústria Cinematográfica (GEICINE) de 1961. “Trata-se
de órgãos que procuravam organizar o meio cinematográfico no sentido de pressionar o Congresso Nacional, mas
também de articular junto aos poderes Executivos e Legislativos no sentido de criar uma legislação que amparasse o
cinema nacional”. Mas, como sabemos e veremos, embora os avanços tenham sido bastante significativos, via “campo
de pressão” e de organização, uma coisa era a promessa de cumprimento de uma determinada resolução de um
determinado governo.Outra bem diferente era o seu cumprimento efetivo. Sabemos que Juscelino Kubitschek, quando
criou comissões governamentais para resolver o problema do cinema brasileiro ao mesmo tempo abriu mais ainda as
portas ao filme estrangeiro. Mesmo leis, ou decretos leis tais como os que acabavam com a taxação alfandegária de
filmes virgens e taxavam o filme impresso, vez ou outra caiam e eram revogadas, sendo necessário novo esforço da
classe cinematográfica para restituí-las.
235
Caderno 3 da CB.
236
SOUZA, Carlos Roberto de.
História da Cinemateca
. Catálogo SESC.
150
O resultado de uma aceitação apenas parcial de um projeto de Cinemateca na conjuntura
brasileira de então não poderia mesmo ter surpreendido as pessoas diretamente ligadas com o
trabalho da instituição.
Oficialmente, as causas do incêndio foram atribuídas à combustão espontânea de um lote de filmes
(em nitrato). Mas é importante ressaltar algo que aparece nos relatórios mensais de Rudá de
Andrade (conservador adjunto). Ele afirma que não deveria ser descartada a hipótese de curto-
circuito, pois os filmes da 7 de Abril tinham sido recentemente revisados. Fazemos essa ressalva,
pois, logo depois do incêndio, Rudá faz transparecer nos seus relatórios o que Ernest Lindgren já
afirmara: que a deterioração do filme não é um processo inteiramente visível. Lindgren afirmava
como muita propriedade que a decomposição do filme é um processo quase secreto que ocorre no
interior da película (conclusão que chegou por meio de diversos tipos de testes químicos realizados
com filmes). Pode-se argumentar que essa foi uma lição aprendida com o desastre, mas serve para
sinalizar que o trabalho de preservação não era displicente. Apenas não havia recursos para
proceder de forma mais adequada
237
.
As perdas, contudo, foram inestimáveis. Queimara sobretudo um terço do acervo cinematográfico
(aproximadamente dois mil rolos - entre os quais 80% das cópias em 16mm de difusão entre os
cineclubes). Viraram cinzas preciosidades, como filmes coloridos à mão e principalmente grande
quantidade de filmes brasileiros antigos, sobretudo documentários realizados desde 1910. Grande
parte destes filmes tinham sido depositados por produtores como Adhemar Gonzaga e Jaime de
Andrade Pinheiro, além de lotes dos pioneiros curitibanos Aníbal Requião e João Batista Groff,
produzidos entre 1910 e 1925. E, em conseqüência do incêndio, os particulares que cediam os
vários depósitos exigiram a retirada imediata dos filmes ali depositados. Um gigantesco retrocesso
para o trabalho de formação do acervo
238
.
237
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios anuais. Maio de 1957.
238
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios Anuais, 1957.
151
Da biblioteca tudo queimou, de 700 a 1000 volumes, sobrando alguns livros encharcados pelo
rescaldo dos bombeiros. Foram-se as coleções de A Scena Muda, Cinearte, Bianco e Nero,
Cinema, Cahiers du Cinema, Positif, Sigth and Sound. Da discoteca, foi-se toda a coleção de
Vitafones e, da mapoteca, cerca de 200 cartazes brasileiros e estrangeiros. Todos os roteiros
desapareceram, inclusive um de Ouro e Maldição, doado por Eric Von Stroheim, em 1954. No
arquivo fotográfico, das cinco mil fotos e quatro mil fotogramas sobraram ao menos quatro mil
fotos chamuscadas. Mas havia muito mais na sede
239
.
Foi-se toda a coleção de programas antigos de cinema. Todas as 150 pranchas didáticas com uma
história do cinema, doadas pela UNESCO, a coleção de aparelhos e máquinas (estereoscopibas,
praxinoscópios, fenaquistiscópios, uma filmadora construída por Antonio Medeiros em 1914, etc.),
além de uma coleção de lanternas mágicas com 550 placas de lanternas mágicas do final do século
XVII ao XX, reduzida a duas dúzias de cacos deteriorados
240
.
Tudo isso para não falar em todo o
arquivo administrativo da Cinemateca que também virou cinzas. Atas, correspondências etc.
Ausências difíceis de superar na tentativa de se contar a história da instituição. Aliás, a perda desse
arquivo administrativo trazia uma conseqüência mais imediata: dificultava uma avaliação mais
precisa das perdas.
Depois do incêndio de janeiro de 1957, a Cinemateca deixou a rua Sete de Abril e passou a ocupar
um andar no prédio da Bienal no parque do Ibirapuera, e graças ao apoio de Ciccilo Matarazzo,
também vários locais espalhados pelo parque para a guarda do acervo de filmes. Mais
especificamente nas portarias do parque. Tentava-se melhorar as condições desses locais que
deveriam ser provisórios, mas não havia dinheiro. A umidade relativa chegava a 80% em algumas
épocas do ano. A prefeitura emprestou alguns móveis, mas isso evidentemente era muito pouco e a
239
SOUZA, José Inácio. Paulo Emilio no paraíso. São Paulo: Editora Record, 2002, P.367-368.
240
Idem, Ibidem.
152
Cinemateca começou a se dividir entre a busca de recursos (particulares ou públicos) e a
preservação de seu acervo
241
.
Nesse ano, eram sete os funcionários da CB, mas em agosto o MAM cortou os recursos que
destinava à Cinemateca e a instituição só pode manter um dos sete funcionários: Rudá. A miséria
era completa e não houve difusão para os cineclubes, no primeiro semestre de 1957. Por outro lado,
o trabalho de revisão e identificação do acervo remanescente do incêndio era constante. “Em 1957,
foram revisados 1762 partes de filmes” (rolos), 3.000 fotos, 1.200 documentos de divulgação
(incluindo cartazes), 150 livros, 450 revistas avulsas e 84 volumes de revistas encadernados
(incluindo a doação da coleção completa de A Scena Muda feita pelo Clube de Cinema de Santos).
A temperatura nos depósitos era satisfatória (20ºC), mas o grande problema era a umidade. O
parque era em si úmido, mas a questão era a própria cidade (com umidade superior a 80% em 20 de
37 medições).
Havia goteiras em um dos depósitos, fogueiras feitas pelo pessoal da limpeza do parque perto dos
filmes, e até pontas de cigarro foram encontradas nos depósitos, em um tempo em que as chaves
dos mesmos ainda ficavam exclusivamente com os guardas do parque. A segurança era mesmo
precária, ou os guardas dormiam nos depósitos, ou bem longe deles. A situação era tão precária que
a aquisição de uma bicicleta para o transporte de filmes dos depósitos para a sede foi quase uma
revolução. Os procedimentos básicos de conservação continuavam: “limpeza, reparação de
emendas e picotes, corte de trechos deteriorados e revestimento com papel manteiga, além da troca
de latas quando necessários”, e Rudá fazia as contas de quanto seria necessário para salvar o que se
apresentava em maior risco. Fato demonstra tino administrativo do conservador adjunto, mas o que
era possível fazer se a Cinemateca não tinha nem latas novas disponíveis para os filmes e nem
dinheiro para comprá-las?
242
241
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios Anuais, 1957.
242
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios Anuais, 1957.
153
Como “desgraça pouca é bobagem”, em julho do mesmo ano (1957), “constatou-se e notificou-se
no fim deste mês o surpreendente dano e decomposição espontânea sofrida pela cópia única de
João da Matta”, maior expressão do Ciclo de Campinas nos anos vinte
243
. Precisando encontrar
uma saída para evitar a perda imediata de filmes como o campineiro, a instituição criou a
campanha do contratipo. A idéia era arrecadar dinheiro dos cineclubes e demais entidades
favorecidas pela Cinemateca para a feitura de contratipos que seriam utilizados para imprimir
cópias para o uso das próprias entidades que as financiariam. A feitura de contratipos garantiria a
conservação do material, ao mesmo permitiria solucionar o que era uma grande preocupação da
instituição: a formação de profissionais para o trabalho de conservação. O dinheiro arrecadado
contudo se mostrava escasso e mais do que insuficiente, e a miséria continuaria grasnando.
Em agosto de 1957, eram apenas dois os funcionários trabalhando, e somente um remunerado:
Rudá (o outro era Sérgio Lima, como voluntário). Mesmo assim, o trabalho de catalogação do
material era levado adiante, e nesse momento eram 4.700 fichas de documentação abertas. Caio
Scheiby era o terceiro homem da Cinemateca, mas havia dificuldade em encontrar uma forma de
manter a remuneração do arquivista. Nessas horas, as palavras de Paulo Emilio ecoam sempre alto,
e a instituição valia-se das armas que lhes eram ofertadas pela conjuntura, ou seja aquelas que eles
inventavam. Assim, foi encontrada uma solução para manter Caio Scheiby na Cinemateca. Ele
receberia temporariamente pela TV Tupi, por esta prestar serviços à Cinemateca que assim
colaboraria – por meio de Scheiby – na organização dos arquivos da emissora
244
.
Nessas idas e vindas, boas e más notícias se alternavam. O Centro de Ciências e Artes de Campinas
ajuda no caso João da Matta; o Centro de Estudos Cinematográficos de Belo Horizonte doa uma
coleção da Revista de Cinema, e o trabalho na documentação segue intenso. Os contatos de Paulo
Emilio na Europa (nos congressos da FIAF) ajudavam na reconstrução da Cinemateca depois do
243
Ibidem.
244
Ibidem. Sobre as supracitadas palavras de Paulo Emilio Cf: GOMES, P.E.S. Revolução, Cinema e Amor. In:
GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.2
154
incêndio, mas muitas vezes a instituição foi obrigada a rejeitar a doação de filmes por não ter
condições de conservá-los. O caso era diferente em relação à documentação em papel que Paulo
Emilio trazia da Europa, bem como aquele doado por entidades estrangeiras e brasileiras
continuavam, mas o fundamental não era sanado: o déficit do ano da Cinemateca foi de CR$
13.603,20.
Foi importante nesse trajeto, o movimento de solidariedade promovido pela na imprensa depois do
incêndio. Os esforços dos dirigentes da instituição, aliados aos esforços da classe cinematográfica
pela aprovação da lei 4.854, e da imprensa por ambos criou condições para que fosse assinado o
convênio entre a Fundação Cinemateca Brasileira e a Prefeitura de São Paulo com base no artigo
15 da lei nº 4.854. O texto do convênio assinado em 9 de março de 1957, é um pouco confuso à
primeira vista, mas no fundo era bastante simples. Decreta assim a cláusula primeira: “A Prefeitura
do Município de São Paulo auxiliará com uma contribuição de CR$18.000.000.00 (dezoito milhões
de cruzeiros) à Cinemateca Brasileira, onerando a verba prevista pela lei 4.854/ 55 regulamentada
pelo decreto 3.063-56.
245
”. Metade desse total de CR$18.000.000.00 seria pago em seis quotas,
ainda no exercício municipal de 1957 por conta do orçamento vigente, e a segunda metade na
eventualidade da existência de um superávit verificável na arrecadação do adicional criado pelo
artigo 1 da lei Nº.4.854-55, e uma conseqüente suplementação da verba a que as refere à cláusula
anterior. até se completar o total aprovado pelo texto. Caso não ocorresse o superávit, o restante
(CR$9.000.000.00) seria pago da mesma forma que foi prevista a primeira metade, e parcelado em
três quotas de CR$3.000.000.00
246
.
O texto previa a aplicação dos recursos que se dividiriam entre: preservação dos filmes, instalações
e arquivos adequados para os filmes, administração, difusão e organização da documentação. Um
milhão de cruzeiros teriam aplicação imediata na adaptação mínima contra o calor e a umidade dos
245
Texto do convênio entre a Prefeitura de São Paulo e a Cinemateca Brasileira, In: Cadernos da cinemateca Nº 3. A
cargo de Cecília Thompson “Cinemateca brasileira e seus problemas: textos e documentação”. São Paulo: Fundação
Cinemateca brasileira, 1964, P.49.
155
sete locais provisórios onde se encontravam os filmes. O documento também sinaliza fortemente
para a consolidação do ideal da instituição, como na cláusula 13ª: “Conforme está processado na
folha 4 do processado, o trabalho de difusão cultural a ser empreendido pela Cinemateca Brasileira
compreenderá o restabelecimento e a ampliação das sessões cinematográficas gratuitas dedicadas
ao público infantil e juvenil da capital.
247
” No entanto, o difícil foi o cumprimento regular deste
contrato. O dinheiro não chegava como devia e por pouco o documento não se transformou em
mais em uma bonita cerimônia (ou evento).
Paulo Emilio, ciente da importância de entendimentos desse tipo entre os poderes públicos e uma
cinemateca - até então inéditos no Brasil - ponderou sobre a questão publicamente alegando que
embora a execução fosse muito irregular era graças a esses recursos que o Seminário de Cinema do
MASP e a Cinemateca Brasileira conseguiam manter-se vivos. O que era a mais dura verdade. O
dinheiro referente ao convênio com a Prefeitura de São Paulo, quando comparado ao fluxo de caixa
da Cinemateca parecia uma fortuna, e permitiu a recontratação daqueles funcionários que tinham
sido dispensados
248
. No mais, os resultados da parte de arrecadação da lei vinham trazendo
resultados favoráveis para a indústria cinematográfica brasileira, “e, em nível bem inferior, para a
cultura cinematográfica em São Paulo
249
”. José Inácio de Melo Souza é, no entanto, bem mais
enfático sobre o problema. Evidentemente encontraríamos testemunhos da época mais abertos e
diretos sobre a questão, mas a distância no tempo permitiu a Souza se declarar mais abertamente
sobre o problema e lhe permitiu fazer outro tipo de análise pública.
Para o biógrafo de Paulo Emilio, o descaso da prefeitura no caso dos atrasos dos pagamentos para a
Cinemateca e para o Seminário do MASP era flagrante: “Havia recursos oriundos da lei 4.854/55,
pois a arrecadação do adicional sobre diversões, excetuando-se o ano de 1956, prejudicado pelo
246
Idem, grifo nosso.
247
Idem.
248
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios Anuais, 1958.
249
GOMES, Paulo Emilio Sales. Ao futuro prefeito. In: Crítica de cinema no suplemento literário V.2. Rio de Janeiro,
Paz e Terra, Embrafilmes, 1982, P.322.
156
mandato de segurança dos exibidores, foi contínua nos (anos) seguintes, gerando por volta de
CR$45 milhões anuais
250
”. Não bastasse isso, a permanência da Cinemateca no parque do
Ibirapuera em “cessão precaríssima”, sem aval legal, seria a causa de muitas pendengas com a
administração do parque e com a própria prefeitura.
É paradoxal que, no momento em que assinava um convênio com a Cinemateca, a prefeitura não se
movimentasse no sentido de dar uma situação mais estável para a o arquivo de filmes, no que toca
a cessão do espaço, ao menos por algum tempo. “A assessoria jurídica do Município achava toda a
situação esdrúxula, posto que em várias ocasiões foi obrigada a recusar abrigo a outras entidades
cuja intenção era a mesma: a ocupação de imóveis vazios do Ibirapuera
251
”.
Nesse sentido, os artigos escritos por Paulo Emilio para o Suplemento Literário entre 1956 e 1965,
ganharam uma importância enorme. O conjunto desses textos pode ser entendido como um enorme
microcosmo que representa a própria significação do que é cinema para o autor. Forçando um
pouco a análise – trata-se da representação de um projeto de cinema (do que é cinema, e quais
poderiam ser suas funções na sociedade, etc.) onde o papel das cinematecas é, aliás central. Como
bem notou José Inácio de Mello Souza, os textos que tratam especificamente da problemática dos
arquivos de filmes e das cinematecas constituem um enorme esforço pedagógico visando esclarecer
o leitor sobre o tema, arando assim o terreno para a consolidação da experiência da Cinemateca
Brasileira. Esforço este intensificado a partir de janeiro de 1957 depois do incêndio na sede da
Cinemateca Brasileira.
250
Os dados obtidos por José Inácio de Melo Souza são do Relatório da Comissão Municipal de Cinema da Secretaria
da Educação e Cultura, Doc.2063. Ver: nota 22 do 1
º
capítulo da parte IV, In: SOUZA, José Inácio.
Paulo Emilio no
paraíso
. São Paulo: Editora Record, 2002. Sobre o Mandado de Segurança mencionado, os exibidores provavelmente
estavam se contrapondo ao adicional no preço dos ingressos. Golpe baixo do comércio cinematográfico.
157
Paulo Emilio e a FIAF: equilíbrio conceitual entre preservação e a difusão
O crítico aborda nesses textos desde o que de mais elementar constitui a estrutura de uma
cinemateca, historicizando-os, sem, no entanto, se contentar com o elementar, e tão pouco com a
esfera restrita das cinematecas. Além de promover um intenso debate em torno do conceito de
cinemateca, os textos procuram articular a existência de uma instituição deste tipo no panorama
político-cultural da sociedade em geral
252
. Nesse sentido – apenas para tentar aqui uma
aproximação que pode ser pertinente – Paulo Emilio parece seguir de perto o programático artigo
de S. Kracauer “As tarefas do crítico de cinema”, onde o pensador alemão argumenta que um
crítico de cinema digno deste nome é antes de tudo um crítico da sociedade
253
.
Inicialmente é preciso ter em conta que, no que diz respeito à história das cinematecas, Paulo
Emilio não era um iniciante, e muito menos um diletante. É preciso situar o campo de atuação do
crítico para podermos compreender melhor a sua produção de críticas no suplemento. Ele deve ser
visto como integrante da primeira geração de arquivistas de filmes (da primeira geração da FIAF
de Henri Langlois, Ernest Lindgren, Iris Barry, Frank Hensel, etc.). Como já vimos, Paulo tomou
contato com o movimento cineclubista europeu em um importante momento de inflexão
254
.
Exilado na França em 1937, freqüentou o Cercle du Cinéma (núcleo originário da Cinemateca
Francesa) e a própria Cinemateca Francesa, onde pôde ter contato com o programa que criou a
Federação Internacional de Arquivos de Filmes, criada um ano depois.
251
SOUZA, José Inácio Melo.
Paulo Emílio no paraíso.
Rio de Janeiro: Editora Record, 2002, P.369. Situação difícil.
Ameaçada de despejo até 1968, a Cinemateca só resolveu esse problema, definitivamente, há poucos anos com a
mudança para o antigo Matadouro Municipal, sua sede atual.
252
GOMES, Paulo Emilio Salles.
Funções da cinemateca.
In: GOMES, P.E.S.
Crítica de Cinema no Suplemento
Literário. São Paulo: Paz e Terra, 1983. 2.v. O artigo em questão está no volume 1.
253
KRACAUER, S
. La tâche du critique de cinéma.
In : KRACAUER, S.
La voyage et la danse. saint-denis :
Presse
Universitaires deVincennes, 1996. P.139. Existe uma tradução desse texto (que é curto) feita a partir desta edição
francesa por Adílson Inácio Mendes (ECA/ USP/ Fapesp). O texto de Kracauer é de 1932.
254
Já argumentamos (no capítulo anterior), que o conceito de cinemateca se molda a partir de dois pólos principais, de
uma espécie de amálgama das primeiras experiências de arquivagem de filmes e das diretrizes do cineclubismo de
vanguarda. Paulo Emilio acompanhou essa inflexão desde o princípio. Não chegou antes, mas também não chegou
depois.
158
Certamente, poderíamos falar muito mais sobre a atuação de Paulo Emilio na FIAF. Tarefa
interessante seria a de ler os anais da federação em busca de um aprofundamento dessas
contribuições do brasileiro, as quais sabemos que existiram. Já lembramos aqui sua contribuição,
advinda de suas pesquisas sobre o cineasta francês Jean Vigo, para o “conceito” de “filme
reconstituído” – que é aquele trabalho (hoje comum) realizado a partir da análise de diversas cópias
de um mesmo filme, de modo a que possamos chegar ao que seria a versão mais completa e
corretamente montada do mesmo. Sabemos também que Paulo Emilio – eleito vice-presidente da
federação no congresso de Roma em 1949 (cargo que ocupou por vários anos) - chegou a presidir
um dos congressos da federação em 1951 na Inglaterra, em Cambridge. Outro ponto a respeito do
qual temos pistas, é que Paulo Emilio deve ter colaborado enormemente no que se refere à
‘institucionalização’ do uso da mala diplomática para o transporte internacional de filmes de
arquivo, o que facilitava de maneira extraordinária a realização dos trabalhos de uma cinemateca
(principalmente das mais pobres), sobretudo no que se diz respeito à difusão, mas não somente a
ela.
Nos artigos do suplemento, o âmbito técnico talvez não seja o mais privilegiado em função da
própria natureza dos textos. Eles se dirigiam a um público amplo, de um jornal de grande
circulação, mas mesmo assim algumas questões de importância fundamental para o tema aparecem
no intuito mesmo de esclarecê-las a esse mesmo leitor
255
. Sua tarefa era abrir flancos para o debate,
informando, perguntando, ou mesmo intrigando o leitor, potencial interlocutor.
Paulo Emilio explica o fundamental, que não só o filme é antes de qualquer coisa um objeto
material, mas que também existe uma história dele enquanto matéria. Trata-se de um principio
elementar na arquivística conhecer o material que se deve preservar. Assim, tornava-se claro ao
255
Pensando proporcionalmente vale perguntar: quantos leitores de jornal pensariam no cinema para além da tela
naqueles anos? Quem pensaria na película enquanto um objeto material? Não muitos. E em seu suporte? O que é
suporte? Seria o tripé da câmera ou do projetor? Suporte financeiro? Falava-se também em base como sinônimo de
suporte. Seria a base no rosto da atriz? Não podemos menosprezar informações trazidas a público em um grande jornal,
de um importante movimento cultural desconhecido do grande público por meio de alguém que sabia muitíssimo bem
do que estava falando.
159
leitor que a base de nitrato dos velhos filmes os condena inelutavelmente à decomposição química
e ao desaparecimento, e que antes que isso acontecesse era preciso proceder à tiragem de novas
cópias. Tarefa facilitada pela invenção da película em acetato assegurou uma vida mais longa às
cópias
256
.
Outro aspecto importante, levantado pelo crítico, diz respeito aos “inimigos naturais dos filmes”.
Para se preservar filmes é preciso fundamentalmente duas coisas: controle de temperatura e de
umidade. Uma coisa pode ou não estar relacionada à outra, mas é fundamental que ambas sejam
controladas. É sabido, mesmo pelos mais leigo em química e física, que altas temperaturas
aceleram reações. No caso do filme, isso significa sua decomposição. Mas podem as altas
temperaturas provocar estragos maiores e também muito mais rápido do que se espera: os
incêndios. O nitrato como sabemos é auto-inflamável. Essa foi a causa do sinistro, em janeiro de
1957, na Cinemateca Brasileira. Mas Paulo Emilio chama a atenção também para outro problema
bastante típico de países tropicais com o Brasil: a umidade. “O fogo é uma ameaça extremamente
grave, mas eventual; a umidade significa a condenação dos filmes a um aniquilamento, que não
sendo espetacular como o provocado pelo fogo, não é menos inelutável e definitivo
257
”.
Ao contrário do que muita gente pensa, era o trabalho pela conservação do acervo (ao lado da
pesquisa), e não o de difusão, o tronco central das atividades da instituição. A Cinemateca seguia
na medida de suas possibilidades os padrões técnicos das outras cinematecas do mundo, sob as
recomendações da FIAF. Em 1958, a Cinemateca tentava estabelecer acordos com laboratórios
existentes no Brasil (principalmente em São Paulo) para o trabalho de conservação e restauro de
filmes antigos. Sendo que um deles contratipou João da Matta. A revisão dos filmes continuava e,
na medida do possível, as prioridades eram encaminhadas para a contratipagem
258
.
256
GOMES, P.E.S. Relatório da film library. Op. Cit. V.1. P.59
257
GOMES, P.E.S.
A outra ameaça.
Op. Cit. V.1. P. 79
258
Em abril a Cinemateca mudou de endereço. Do pavilhão da Bienal passou a ocupar uma casa (galpão) na Avenida
VI Centenário. As condições do imóvel eram melhores. Mesmo enfrentando suas próprias dificuldades, a Cinemateca
colabora para a criação jurídica do Centro de Cineclubes de São Paulo. Relatórios Anuais, 1958. AHCB.
160
Do ponto de vista da classificação da documentação, as fichas já eram, em 1958, quase 8.000. A
escassez de recursos, no entanto, sempre preocupava os diretores da instituição. Em um trecho do
relatório de Rudá desse ano lemos que: “Continua cada vez mais grave o problema de filmes que
necessitam ser contratipados imediatamente para não se perderem brevemente”. Quando o
pagamento da prefeitura atrasava, a situação financeira tornava-se ainda mais difícil. Mesmo
assim, a Cinemateca ia seguindo sua vida, e mais, crescendo. Nesse mesmo mês, foi criado o
Departamento Brasileiro (exclusivamente para cuidar dos materiais nacionais e conseqüência
direta das retrospectivas de cinema brasileiro), que seria comandado por Caio Scheiby que voltava
da TV Tupi.
Fato importante ocorrido nesse ano foi a visita do conservador da Film Library do MoMa de Nova
Iorque, Richard Griffith, que veio ao Brasil a convite da Cinemateca Brasileira. O encontro visava
obter o apóio do americano na FIAF para a congênere brasileira. Os resultados foram os esperados.
Outra visita importante foi a do diretor do SODRE de Montevidéu onde este, assim como Richard
Griffith, “tomou conhecimento dos meios precários que possuía a Cinemateca Brasileira para a
preservação de filmes
259
”.
Ponto interessante no que toca à preservação, é que os relatórios dão as medidas exatas de trechos
de filmes removidos por estarem em decomposição. Enquanto isso, as fichas da documentação já
iam além das 9.000. Além disso, já eram mais de 6.500 fotografias, 4.617 impressos em geral e 386
revistas. Ainda em relação à conservação, é preciso dizer que o trabalho de revisão dos filmes era
constante e percorria sistematicamente os depósitos da Cinemateca no Ibirapuera
260
.
259
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios anuais, 1958.
161
Documentação não fílmica
Existe uma diferença básica entre um arquivo de filmes e uma cinemateca. Quando se fala em
arquivo de filmes, no que pensamos? A idéia de arquivo de filmes não pressupõe outra coisa além a
arquivagem do material fílmico. Uma cinemateca, por seu turno, é fundamentalmente um arquivo
de filmes - pois sem filmes não existe cinemateca -, mas elas são, no entanto, mais do que isso.
Uma cinemateca se interessa, prospecta, guarda e preserva todo o tipo documental que se relacione
ao cinema e não apenas os filmes.
Um exemplo: uma cinemateca digna desse nome pressupõe basicamente algo como um Centro de
Documentação e Pesquisa especializado em cinema, ou simplesmente um setor de documentação;
de pessoas que sejam incumbidas dessa tarefa: de cuidar daquilo que não é filme, mas se relaciona
direta ou eventualmente até indiretamente com o universo da cultura cinematográfica. Esse centro
se compõe de uma biblioteca, e não se trata de uma biblioteca comum. Ela deve conter além da
coleção de livros e periódicos de cinema (e, posteriormente também de televisão e vídeo), uma
coleção de folhetos e press-releases relacionados aos filmes, eventos e tudo mais do universo da
cultura cinematográfica (e audiovisual). Deve ter igualmente uma coleção de cartazes e roteiros de
filmes.
Faz parte também da concepção de um centro de documentação de uma cinemateca moderna o
abrigo a arquivos pessoais e institucionais de pessoas (críticos, cineastas, técnicos, etc.) e de
instituições (produtoras, distribuidoras, exibidoras) relacionadas ao cinema. A elucidação do papel
que deve cumprir a “documentação não-fílmica” em uma cinemateca faz parte do conceito e,
portanto tem história. Trabalho este que Paulo Emilio se não iniciava, reforçava já em 1957. Em
outras palavras: embora a Cinemateca Brasileira não fosse exatamente o que acabamos de
260
Idem, Ibidem.
162
descrever como sendo uma cinemateca ideal, tal concepção, e projeto de uma instituição desse tipo,
estavam já claramente delineadas nos escritos de Paulo Emilio
261
.
Nem tanto técnicos quanto conceituais são os comentários do autor sobre a relação entre a
documentação fílmica e a não fílmica. 1957 é o ano do incêndio da Sete de Abril. Referindo-se à
preciosa doação feita depois do incêndio por intelectuais santistas de uma coleção completa da
Revista Scena Muda, Paulo Emilio dá a sua medida para a supracitada articulação entre filmes e
não-filmes. O caso é revelador (acerca da concepção do projeto) na medida em que a revista em
questão não é o melhor exemplo de uma publicação “séria” que buscasse debater estética, técnica,
nada disso. Trata-se de uma revista de fan – como o próprio Paulo Emilio definiu – mas que não
deixa de ter valor estético/ sociológico, estando longe também de dizer respeito apenas ao universo
do cinema.
Rechaçando qualquer crítica ao seu elitismo, o crítico esclarece que, uma revista como essa,
voltada ao entretenimento de gosto duvidoso é um rico manancial, não só do ponto de vista
sociológico, mas para o estudioso do cinema de maneira geral. Para ele, revistas como essa ajudam
a recompor o universo de imagens fragmentadas que o passado apresenta diante de nossos olhos
impotentes na tarefa de decifrá-lo: “Nessas ocasiões, a coleção interminável de A Scena Muda, com
seu tecido fino de histórias meticulosas e abundantemente ilustradas, registros fixos de imagens
móveis, revela-se implacável na caça às imagens anônimas soltas no tempo e no espaço
262
”. Além
do mais, a revista é significativa por sintetizar todo um folclore urbano criado e moldado em torno
do espetáculo cinematográfico.
Para mim, o valor estético de algumas dessas imagens de Epinal
do erotismo da década dos anos 20 é da mesma ordem que os boizinhos de Alagoas ou de
Caruaru
263
”.
261
GOMES, P.E.S.
Palavras e imagens.
Op. Cit. V.1.
262
GOMES, P.E.S. Ibidem. P.208.
263
GOMES, P.E.S. Idem, Ibidem.
163
Outro exemplo desse tipo de análise são os que Paulo Emilio fazia, por exemplo, em relação aos
cartazes de filmes. Se em geral esse “gênero da arte publicitária” permanece estagnado em uma
mediocridade atroz, a razão maior disso residia (e reside ainda) no fato de que esta parte da
produção ficava muitas vezes única e exclusivamente a cargo dos produtores, e onde poucas vezes
os autores tinham direito a opinar. O que por um lado não desmerece esse tipo de cartaz como
documento e parte do folclore urbano, ao qual o próprio Paulo Emilio se referiu em relação às
revistas.
Contudo, em ambientes e conjunturas mais arejadas, o cartaz cinematográfico pôde alcançar
soluções plásticas extremamente notáveis. O exemplo citado por Paulo Emilio vinha da Polônia (de
onde em breve, não por acaso, surgiria uma das maiores revelações do ponto de vista da
cinematográfica de um país). Nesse terreno, o cartaz deixou de lado a sua habitual vulgaridade
comercial (plena de motivos baratos de erotismo, aventura e terror infantil) dando lugar a uma sutil
utilização do grotesco, do patético ou do elemento lírico na busca de estilizar o assunto e a
atmosfera do filme. Assim, “a função do cartaz ultrapassa a informação e o reclame. Trata-se de
difundir uma forma de arte gráfica, moderna, capaz de influir no gosto da população. O cartaz
familiariza o grande público com a linguagem da arte moderna
264
”. Algo sempre mais desejável do
que o puro mercantilismo, mesmo em uma arte eminentemente industrial como o cinema.
História e natureza das Cinematecas
Outra das principais questões a respeito do tema se refere à natureza das cinematecas. Qual é a
razão delas existirem? Por que preservar filmes? Historicamente sempre foi mais fácil explicar essa
questão apoiando-se no filme documental. Paulo Emilio é preciso nesse ponto: “Se a mais de
quatrocentos e cinqüenta anos já existisse o cinema, a viagem de Pedro Álvares Cabral poderia ter
264
GOMES, P.E.S.
Cartazes poloneses
. Op. Cit. V.1 P.94.
164
sido objeto de um documentário de grande interesse para nós, porém seria pouco provável que a
partir de 1530 ainda existisse alguma cópia conservada do filme
265
”.
A perspectiva de quem conserva filmes é para Paulo Emilio garantir o acesso do material à
posteridade, e o apelo sobre o filme documental facilitaria teoricamente as coisas. Uma das tônicas
do projeto (exposto no jornal) parece ser a de traçar um resumo, e uma comparação do
desenvolvimento histórico das cinematecas (e arquivos de filmes) no Brasil e no mundo. Há um
sentido evidente nisso tudo. Se a única forma de garantir a existência de uma cinemateca no Brasil
é o entendimento, e o financiamento dos poderes públicos, Paulo Emilio aponta seu histórico
comparativo nesse sentido, mostrando que afinal estamos chegando ao ponto esperado, que
possibilitaria o supracitado apóio público à Cinemateca Brasileira. Acreditamos na existência de
duas “razões de ser” de tal preocupação. A primeira é mesmo informar e contextualizar a ação das
cinematecas, e a segunda (subjacente a praticamente todos os argumentos do crítico) é a busca de
financiamento para o projeto.
Uma palavra chave do projeto de Paulo Emilio não poderia faltar nas páginas do Estadão. A ordem
era historicizar para legitimar. O crítico tinha plena consciência do lugar ocupado pelas
cinematecas na história da arquivística em geral. O crítico situa o histórico da idéia de cinemateca
no Brasil a partir do que estava ocorrendo no mundo, fornecendo elementos históricos para o
debate, de modo que o projeto pudesse se defender de eventuais acusações de insanidade. A
referência aos esforços de Edgar Roquete Pinto, homem público de renome no campo da política e
educação, que já em 1910 pensava em conservar e formar coleções de filmes, certamente deveriam
ter seu impacto. Ainda que a tentativa tenha sido prematura, pois, era ainda muito reduzido na
Europa e nos Estados Unidos o número de pessoas interessadas no filme como um documento
digno de ser preservado. Em outras palavras, a idéia era prematura ainda em todo o mundo. Paulo
Emilio cita a Biblioteca do Congresso de Washington e o Museu do Exercito Francês como os
265
GOMES, P.E.S.
Vinte milhões de cruzeiros
Op. Cit. V.1. P.75.
165
únicos que cuidavam um pouco do assunto. Trata-se porém daquelas primeiras experiências no
campo da arquivística fílmica, (tratadas aqui no I capítulo), e que estavam longe ainda das
cinematecas modernas.
266
Adhemar Gonzaga, que já em 1929 se apresentava como um defensor de tal idéia, é outra
referência do crítico no histórico das cinematecas no Brasil. O tema aparece, aliás, em forma de
editorial de Cinearte (nº 154 de Fevereiro de 1929)
267
. Outro exemplo se refere à tentativa de
desenvolvimento do grande projeto para a área de cinema e educação elaborado na Era Vargas.
Segundo o crítico, é possível encontrar esboços, artigos ou relatórios que fazem menção à criação
de uma cinemateca no Brasil. No entanto, ele argumenta, com propriedade, que o Estado Novo não
foi o tipo de período mais propício que possa ter existido, e onde pudesse florescer uma instituição
tão avançada como uma cinemateca
268
. De qualquer maneira, é muito claro esse intuito de Paulo
Emilio: historicizar a questão para debatê-la, e não apenas com o seu público imediato, leitores do
Estadão. O crítico faz isso da maneira mais conseqüente possível, ligando o tema das cinematecas
às questões mais gerais da preservação da memória da civilização.
Ele alegava que o grupo que, já há quase vinte anos, tentava criar uma cinemateca no Brasil, vivia
uma situação semelhante à daqueles brasileiros que no final do século XVIII e início do XIX
preocupavam interessavam-se na criação de uma biblioteca nacional ou um jardim botânico. Estes,
assim como os intelectuais engajados na causa da cinemateca, sentiam que a hora estava chegando,
e que a sociedade e principalmente o Estado estavam prestes a compreender e financiar um projeto,
266
GOMES, P.E.S. Cinemateca e obstinação. Op. Cit. V.2. P.74.
267
É curioso notar que, embora Gonzaga partilhe de nossa opinião que qualquer um que levantasse a questão
seriamente correria o sério risco de ser considerado um “avoado”, há no mesmo número, na mesma edição da revista
um texto intitulado Bibliotheca do Cinema, onde os arquivos da MGM – organizados por um tal Charles E. Cochard –
são louvadamente elogiados pelo articulista. Trata-se de uma filmoteca privada onde a empresa americana (pelo visto)
reunia o que podia, de modo a facilitar o trabalho de um diretor ou de um ator em um novo filme. Exemplos não nos
faltariam para exemplificar a questão, mas o curioso mesmo é o descompasso entre os dois textos. Note-se bem, entre
os textos e não na concepção de Gonzaga sobre o tema. Gonzaga, aliás, poderia ter juntado os artigos, pois os temas
tratados em ambos são os mesmos e se completam, em algo que faria lembrar o texto de Paulo Emilio “Funções da
Cinemateca”.
268
O tom político do texto é importante e democrático, mas a questão parece ser mesmo de outra ordem. Nesse ponto
buscamos dialogo com o crítico. Bem cedo o cinema foi visto como arma de propaganda pelos governos nazi-fascistas
e por seus seguidores, o DIP de Vargas não é outra coisa que isto.
166
que até pouco tempo era considerado devaneio de sonhadores ou coisa do tipo. Paulo Emilio é
preciso nesse tipo de comentário, pois não o fazia por dissimulação, simplesmente ensinava
história a uma elite muitas vezes preguiçosa e preconceituosa. Tudo é claro na maior elegância
269
.
Mas o crítico não se limita a tratar do desenvolvimento histórico das cinematecas na Europa,
Estados Unidos e Brasil.
Paulo Emilio atenta para a necessidade de análises conjunturais mais amplas visando a
compreensão do fenômeno (das cinematecas e da cultura cinematografia em geral), a partir do
exemplo latino-americano, em busca de uma união que fortaleça um projeto de formação crítica,
técnica e cultural para o cinema, para as cinematecas e para a sociedade como um todo. .Algumas
conclusões mais gerais são de vital importância, e destacamos logo duas. Os argumentos de Paulo
Emilio se baseiam em um excelente trabalho de Rudá de Andrade – encomendado pela UNESCO –
sobre a ação dos cineclubes e cinematecas na América Latina
270
.
A primeira, é que o desenvolvimento da cultura cinematográfica no continente encontra
semelhanças profundas em geral, mas sobretudo, no que tange às dificuldades para tanto. É bem
verdade que isso vale para o fenômeno no mundo inteiro, mas as similitudes entre o Brasil e o
Uruguai, não por acaso, são maiores do que entre o Uruguai e a França. E o segundo destaque,
deve ser feito – com base nos argumentos de Paulo Emilio – novamente em relação a tentativa de
lançar luz sobre uma tradição já em desenvolvimento há décadas. Invertendo o argumento do
crítico, colocamos a questão da seguinte maneira (que nos parece mais importante passados mais
de 40 anos do relatório de Rudá). Apesar dos meios irrisórios que a cultura cinematográfica
encontrou no continente para se desenvolver, a tradição já existia há décadas em ao menos três
países: Argentina, Brasil e Uruguai.
269
GOMES, P.E.S.
Cinemateca e obstinação.
Op. Cit. V.2. P.73.
270
ANDRADE, Rudá de.
L’action des ciné-clubs et des cinémathèques en Amerique Latine pour le développement de
la culture cinématogràfique. ONU – Organisation des Nations Unies – Table-ronde internationale sur le cinéma en
Améique Latine. Santa-Marguerita-Ligure, 25-27 mai ,1961.
167
Ao tratar desses paises – sobretudo dos dois platinos – Paulo Emilio nos permite aqui fazer
referencia a um aspecto fundamental e inescapável quando tratamos da história das cinematecas.
Entendemos tal aspecto como a história da formação do conceito de cinemateca moderna. Nesse
sentido é preciso dizer que, se o movimento e o desenvolvimento das cinematecas na Argentina e
no Uruguai floresceram de maneira mais evidente, isso se deveu, em enorme medida, ao forte
movimento cineclubista existente no período e que precede a criação das cinematecas. Paulo
Emilio faz questão de ressaltar isto: a importância do cineclubismo para as cinematecas na
experiência das cinematecas na América Latina, onde evidentemente o Brasil está incluído.
Novamente, podemos argumentar sobre uma intenção, por trás do caráter informativo do texto, de
contextualizar e filiar uma tradição que também já não era nova – no caso a brasileira – para ajudar
a demonstrar sua importância e sua função pública/ social.
Em função do caráter profundamente abrangente da arte cinematográfica, o clube de cinema
apresentava-se como um lugar privilegiado para que os jovens - antes exclusivamente cinéfilos -
ampliassem seus horizontes para a literatura, do teatro, da música, artes plástica e arquitetura.
“Nessas localidades longínquas da Venezuela, Argentina, Brasil, ou de qualquer outro país latino-
americano, o clube tende a ultrapassar o seu papel de simples difusão intelectual e artística, para
transformar-se num dos núcleos mais intensos de vida social, num órgão sensível de receptividade
à inovação de idéias ou de costumes, e em instrumento capaz de introduzir modificações nos
sistemas de valores correntes
271
”.
Mas, só é possível até certo ponto, inverter os argumentos do crítico (como sugerimos acima) em
relação à formação da tradição e às dificuldades que ela encontrou para se desenvolver. Os
percalços eram grandes e enfadonhos. De nada adianta tratar da tradição sem tocar nos problemas
por ela enfrentados. Nosso ponto de vista é o mesmo do crítico. Não se separa cultura
cinematográfica da cultura em geral (tout court). Logo, pensar nos problemas enfrentados por
271
GOMES, P.E.S. Ibidem. Op. Cit. V.2. P.350. Grifo nosso.
168
aqueles que tratam de assuntos relacionados ao universo da primeira é refletir também sobre os
problemas mais gerais enfrentados no campo político, econômico e social. Quando um grupo de
intelectuais se depara com um trabalho a ser feito desde o início, desde suas bases mais
elementares, surgem problemas quase impossíveis de serem mensurados. O trabalho deve se
desenvolver em várias frentes, e o que é pior, brigando contra uma indústria poderosa e fortemente
estabelecida (caso da indústria cinematográfica), e políticos muitas vezes inescrupulosos. Para ficar
apenas em dois dos mais graves e difíceis obstáculos neste trajeto.
Um problema sério diz respeito ao angariamento de fundos para uma atividade nova, desconhecida
e extremamente cara. Isso para não falarmos naqueles decorrentes de desavenças políticas entre os
intelectuais e o Estado e/ ou seus mecenas. Mas isso ocorreu até certo momento da história, pois o
tempo que esses intelectuais demoraram para conscientizar a indústria acerca das questões que
envolvem seus interesses dentro de um projeto de cinemateca - sobretudo nos problemas ligados à
proteção de direitos autorais - foi exatamente o tempo que a indústria levou para perceber que
poderia lucrar, e muito, com esse tipo de atividade, onde o Estado (em uma situação ideal -
corrente em nossos dias) protege um patrimônio particular, de uso igualmente privado.
Ironicamente, ao longo da história, os debates e embates criaram situações que só a força bruta
conseguiu resolver, felizmente de modo apenas parcial. O risco de dispersão das forças nessas
circunstâncias aumenta muito. Evidentemente Paulo Emilio sabia disso, e comenta a questão a
partir do relatório de Rudá. Para ambos havia uma clara semelhança entre a situação brasileira e o
que se passava no restante do continente. O subdesenvolvimento se mascarava, mas aparecia
claramente na total ausência de critérios entre a qualidade e a quantidade das atividades culturais.
Sem saber qual a direção mais adequada a seguir, os poucos interessados no desenvolvimento
destas atividades perdiam-se entre a necessidade de aprofundar a pesquisa e ao mesmo tempo o
169
necessário escopo social de seus trabalhos. A tarefa tornava-se excessivamente diversas, “e
ninguém acaba fazendo nada direito
272
”. Uma autocrítica profundamente dialética.
A relação entre o trabalho interno e o trabalho externo
Parece pertinente abordar outra questão importante levantada pelo crítico ainda com base no
trabalho de Rudá de Andrade: o funcionamento interno de uma cinemateca, sua estrutura
organizativa e administrativa; particularmente interessante para compreender experiências
desenvolvidas na periferia do capitalismo, mas que certamente nos ajudam a compreender (ainda
que por meio de comparações) o que se passou em todo o mundo.
Para esclarecer seu leitor (potencial interlocutor) do trabalho que vinha sendo desenvolvido na
Cinemateca Brasileira, não é pequeno o destaque dado por Paulo Emilio a Rudá de Andrade: “Se
um dia essa instituição existir”, explica Paulo Emilio, “isto é, quando deixar de ser esse misto de
planos otimistas projetados no futuro e de realidades melancólicas de filmes que queimam ou
apodrecem no presente, e que dessa experiência se queira traçar a história, uma das preocupações
centrais do pesquisador deverá ser a figura de Rudá Andrade
273
”.
O crítico esclarece modestamente que o trabalho exercido por ele próprio e o então presidente da
Cinemateca Brasileira, Francisco Luiz de Almeida Salles, se desenvolvia em uma frente externa,
no diálogo com os poderes públicos, e a quem mais pudesse interessar, em busca de recursos, bem
como, acrescentamos, no diálogo com as outras cinematecas e entidades congêneres por meio da
FIAF. A divisão de tarefas é sempre necessária, na busca de uma divisão do trabalho social
(embora o que acabe acorrendo seja uma inversão da fórmula acima, em função de necessidades
advindas da conjuntura estrutural do sistema). O trabalho do trio (Paulo Emilio, Almeida Salles e
272
GOMES, P.E.S. Idem, Ibidem.pico problema do que Gramsci chamou de intelectuais como organizadores da
cultura, que sem estrutura pública para a realização de seus trabalhos tem que se desdobrar para antes de realizar seus
trabalhos organizar a estrutura necessária para tanto, tarefa que inicialmente não deveria ser deles.
170
Rudá) foi intenso, e provavelmente profundamente desgastante. A divisão, bastante esquemática
(entre ação externa e interna) nos mostra um organograma que funcionou.
Citemos um exemplo: Paulo Emilio e Almeida Salles, em um determinado momento conseguiram
angariar recursos para dar sustentabilidade ao projeto (via pequenos convênios com os poderes
públicos). Além da compra de equipamentos e material de consumo, o dinheiro foi usado para algo
sempre fundamental: contratação de pessoal.
É em pontos como este que Rudá de Andrade merece especial destaque de Paulo Emilio. Em uma
área de atuação bastante recente, destituída até então de formação profissional - já que, como Paulo
Emilio, Rudá faz também [na prática] parte da primeira geração de arquivistas de filme - não
deveria ser mesmo fácil encontrar pessoas com aptidões para um largo trabalho ainda a ser
explorado, mesmo com todo o clima favorável ao desenvolvimento de atividades ligadas ao
cinema. Rudá foi, segundo Paulo Emilio, o responsável pelo recrutamento, do que mais tarde se
convencionou chamar de a belle équipe da Cinemateca: “Aí se revelou a sua finura psicológica, o
seu gosto atilado pela competência e pela qualidade humana.
274
Não se trata de uma mera louvação, mas o fato é que a equipe reunida por Rudá era realmente
excelente. Jean-Claude Bernardet, Sérgio Lima, Gustavo Dahl, Maurice Capovilla, Lucila Ribeiro
Bernardet, dentre outros. Vale a pergunta: a Cinemateca teria resistido sem eles? É bem verdade
que, todos eles sem exceção, tinham interesses em atividades ligadas ao cinema, etc. Jean-Claude
Bernardet já freqüentava a Cinemateca desde os tempos do I Curso para Dirigentes de Cineclubes
,em 1957, mas ver Rudá descrevendo o porquê da agilidade do belga como datilógrafo o ter
impressionado tanto mostra mesmo uma capacidade acurada de encontrar as pessoas certas para o
trabalho certo. Dahl e Capovilla tornaram-se realizadores cinematográficos, diretores importantes,
mas certamente eles não teriam sido os mesmos sem ter passado antes pela Cinemateca por
intermédio de Rudá. Por outro lado, a disciplina necessária para dar prosseguimento ao trabalho
273
GOMES, P.E.S.
Rudá na Unesco.
Op. Cit. V.2. P.347.
171
extremamente sistemático iniciado por Caio H. Scheiby não devia ser “sopa”. Vide o apelido
“carinhoso”, com o qual os jovens brindavam Rudá: O Encouraçado Poronominare
275
.
Os problemas nos diálogos com o Estado e com a indústria
Sobre as relações de uma cinemateca com a indústria cinematográfica, um dos principais eixos de
ação no debate de Paulo Emilio é a FIAF. Não poderia ser diferente. Foi a criação dessa federação
internacional que viabilizou o trabalho das cinematecas. Em princípio, a idéia de cinemateca ia na
contramão da concepção do cinema, enquanto o que ele é primordialmente (indústria), a idéia de
utilização dos filmes com outros propósitos que não o do comércio aparecia como uma bizarrice na
cabeça dos grandes produtores cinematográficos dos anos trinta (principalmente aos norte-
americanos), quando o conceito de cinemateca começa a ganhar fôlego efetivo.
A FIAF criou assim, segundo Raymond Borde, uma legitimidade supranacional em torno da defesa
de necessidades fundamentais para o desenvolvimento do projeto das cinematecas. Em outras
palavras, o surgimento da federação era na prática a construção de uma entidade política em torno
do ideal da preservação do cinema e dos registros documentais relativos à cultura cinematográfica,
que visava o reconhecimento de tal patrimônio como patrimônio histórico e artístico, tais como já
eram reconhecidas em muito melhor medida as artes plásticas, a literatura, a música, etc. Mas as
entrelinhas desse processo – que faz lembrar as muitas vezes bizarras alianças políticas da história
de dois grupos quase antagônicos contra uma terceira ameaça ainda maior – não escapava ao senso
crítico de Paulo Emilio. Por ser o período em que o crítico escreve exatamente um desses
momentos/ ápice dessas bizarras alianças (Guerra Fria), o assunto deveria ser tratado com cautela.
Assim o crítico o fez, já que havia interesses de base que se avultavam ante as diferenças políticas
profundas existentes, mas lamentavelmente menos importantes naquele momento. Era preciso
274
GOMES, P.E.S. Idem, Ibidem.
172
antes de tudo arrumar um meio de salvar os filmes. Vale a análise do crítico sobre os primórdios da
arquivística fílmica: Paulo Emilio comenta que foram muito numerosas as tentativas, a partir da
década de 20, (já vimos aqui algumas) de preservar o patrimônio cinematográfico e difundi-lo, e
que era fácil perceber o motivo central do malogro destas: “não há cultura sem perspectiva
histórica, e como conhecer a história do cinema se os filmes não forem conservados ?
276
Assim, os caminhos da FIAF seriam tortuosos. Desde o Golpe de Estado da Pathé (quando os
filmes passaram a ser alugados ou invés de comprados, protótipo dos primeiros grandes êxitos na
formação de cartéis de monopólio no sistema de produção da indústria cinematográfica) a tarefa
das cinematecas, ou antes, daqueles que trabalhavam pela conservação de filmes, tornou-se ingrata,
pois o material almejado para preservação não mais pertencia a outra pessoa que o seu detentor
legal.
Já argumentamos que nesse momento começam a aparecer cisões ideológicas no âmbito da FIAF,
em torno de polarizações que se formaram, grosso modo, entre Ernest Lindgren (Londres) e Henri
Langlois (França). A questão deve ser vista por pelo menos dois ângulos distintos que se
completam. Desde do início, os trabalhos dos intelectuais para a causa das cinematecas têm esse
caráter altamente ambíguo. Malgrado as divergências políticas, a salvaguarda dos filmes deveriam
vir em primeiro lugar, e nada do que fosse feito nos EUA, por exemplo, deixava de ter
conseqüências na Suécia, tendo em vista que a indústria cultural é uma só, agora globalizada e
monopolizada. E Paulo Emilio certamente não escreveu dois artigos particularmente sobre Nova
275
Poronominare é o segundo prenome de Rudá.
276
GOMES, P.E.S.
Congresso de Dubrovnik
.
Op. Cit. V.1. P.11. A indústria cinematografica, sempre extremamente
pragmática, sabia da
utilidade
de se preservar filmes (já comentamos a respeito da filmoteca da MGM mais acima).
Contudo, o entendimento entre o que significava preservar filmes para a indústria, e o que significava o mesmo ato
para Paulo Emilio, e muito outros arquivistas que estavam dirigindo - ou tentando fazer funcionar um projeto de
cinemateca - era bastante diferente. De início, era como se os dois lados não falassem a mesma língua. O pragmatismo
da indústria deveria ser mesmo grande. A julgarmos por um exemplo, tirado do já citado texto de
Cinearte
a respeito
da Filmoteca da MGM (chamada no texto de Enciclopédia do Cinema), podemos ter uma idéia de onde surgia, ou
melhor, do manancial onde brotava o interesse da indústria na preservação dos filmes: “Um desenhista dos vestuários,
por exemplo, nunca poderia errar si consultarem a enciclopédia. Um manequim lançou nas corridas de Paris um novo
modelo de bolsas para senhoras, feita de pele de rinoceronte. Doze dias mais tarde, uma exatamente igual foi usada por
Anita Page numa cena da Broadway Melody dirigida por Harry Beaumont. Ver: Biblioteca do cinema. Cinearte,
fevereiro de 1929.
173
Iorque e Londres por acaso. Nesses artigos, ele apresenta o problema que estamos tentando
esclarecer aqui, e o que mais nos interessa é compreender exatamente a forma como ele nos é
apresentado pelo crítico de modo a tentar definir tal opção. Saber andar sobre ovos era um
imperativo.
O momento era de apresentar o problema, e convencer a indústria cinematográfica de que ela não
tinha nada a perder ampliando o escopo de suas preocupações em torno dos problemas (e dos
custos) com a preservação dos seus filmes, e dos outros. Foi o que o crítico fez. A primeira parte da
tarefa estava sendo cumprida a risca, e não contente com o elementar ele explica as idas e vindas
do processo. O crítico mostra que se por um lado os produtores e distribuidores demoram muito
tempo para perceber que as atividades de uma cinemateca não prejudicam em nada seus interesses,
e que, por outro lado, as cinematecas muitas vezes demonstram demasiada impaciência para
compreender as preocupações da indústria em relação à propriedade comercial dos filmes
277
. Por
cautela e preocupações políticas, o crítico evita um pouco debater em aberta profundidade as
incompatibilidades em certos traços dos projetos de uns em relação aos outros.
O argumento básico e a estratégia do crítico são certeiros, mas inescapavelmente perigoso. Paulo
Emilio certamente sabia muito bem disso. Mas, haveria outra saída? Involuntariamente, e sem
perceber todas as saliências do terreno em que estava pisando, Paulo Emilio ajudou (poderia ser
diferente?) no fornecimento de “régua e compasso” para uma futura e breve expansão das
atividades da indústria cultural: o mercado de filmes antigos. Se a situação brasileira era
complicada nesse sentido (mesmo sem a existência de uma indústria cinematográfica no Brasil), o
que dizer então da posição de Iris Barry nos EUA? Sendo inescapável trabalhar com cinema fora
de sua ambigüidade natural de arte/ indústria, era como se uma defesa à indústria (nos moldes em
que essa se colocava, ou quisesse se colocar) fosse necessária – mesmo que inconscientemente.
Afinal, todo filme representa ao seu modo a época em que foi produzido, logo tudo deveria ser
277
GOMES, P.E.S. Ibidem. P.12
174
preservado. De toda forma, era uma expedição à toca do leão (que poderia ou não ser aquele da
MGM), sendo esta, contudo, a única forma de avançar, de ganhar terreno. O projeto de Paulo
Emilio era, todavia, muito mais do que isso: era preciso antes de tudo elogiar.
Nesse percurso, o crítico pondera e reconhece a importância do trabalho realizado por Barry no
estabelecimento de acordos com a indústria cinematográfica, garantindo aos produtores a
inviolabilidade de seus direitos legais sobre os filmes depositados na Film Library. Segundo Paulo
Emilio, a paixão sincera e desinteressada que a instituição demonstrava por materiais que
freqüentemente os próprios detentores consideravam velharias possibilitou os acordos iniciais
como a Paramount e com a Metro, estendendo-se posteriormente às demais companhias. Em troca,
“a Film Library foi autorizada a promover exibições de caráter educativo e cultural e dessa forma
pôde chamar a atenção e provocar colaborações no trabalho de procura e preservação de filmes
antigos
278
”. Esse é o procedimento padrão no relacionamento entre uma cinemateca e a indústria.
Até aí tudo bem. Mas o próprio Paulo Emilio, contra-ataca. Em um primeiro momento com
ponderações e elogios aos resultados do trabalho da Film Library: um elogio ao conceito de
cinemateca.
Para o crítico apenas o trabalho de preservação dos filmes realizado pelo arquivo norte-americano
já seria suficiente “para lhe dar renome internacional imperecível
279
”. Mas o trabalho de difusão
do MoMA era igualmente impressionante. Paulo Emilio argumenta que a existência da Film
Library possibilitou um boom no surgimento de cursos universitários de cinema, bem como no de
cursos de apreciação cinematográfica em escolas secundárias, no surgimento de clubes de cinema,
etc. Esse é mesmo o sentido da busca de um equilíbrio na balança, em sua gênese desigual, entre
arte e indústria. Mas os problemas (em relação aos objetivos do crítico com seu próprio trabalho e
com o das outras cinematecas) não tardaram a engrossar. Eles eram absolutamente inerentes ao
processo.
278
GOMES, P.E.S.
Relatório da Film Library.
(4jan57) Op. Cit. P.58.
175
O principal deles é que o sólido desenvolvimento que o movimento das cinematecas e dos
cineclubes estavam adquirindo criou um mercado para os filmes antigos, o que por conseqüência
despertou a cobiça dos comerciantes e detentores em explorá-los. Essa situação trouxe dificuldades
para as cinematecas de maneira geral, mas particularmente para a Film Library, que tinha que se
haver com a mais poderosa indústria cinematográfica do mundo, e que passou a impedir que
muitos dos filmes depositados circulassem com finalidades culturais, para explorar
comercialmente o interesse que estavam criando. Paulo Emilio pondera, argumentado que, “por
outro lado os produtores entenderam que o valor comercial, aliás muito relativo, do velho filme, só
ressuscita quando floresce a cultura cinematográfica, o que os leva a uma atitude compreensiva
para com o trabalho de liderança da Film Library
280
”. A situação contudo, só viria a piorar.
O quadro voltaria a se agravar com o advento da televisão. Depois de passarem décadas destruindo
cópias e mesmo negativos de filmes visando proteger os produtores de uso não autorizado do
material, os estúdios e os detentores legais em geral perceberam o quanto dinheiro eles tinham
jogado no lixo ou nas chamas de uma fornalha qualquer. E isso, evidentemente, não poderia se
repetir. Nesse momento, passa a haver um refluxo com detentores retirando novamente os
materiais das cinematecas para negociá-los, e a desconfiança em relação à utilização não autorizada
dos filmes surgiu novamente no horizonte como uma grotesca e grave ameaça. Os esforços para
conscientizar os produtores, realizadores e detentores legais em geral recomeçou. Paulo Emilio,
com razão, faz louvores aos esforços de seus colegas argumentando que “um dos maiores
acontecimentos culturais do século XX foi o cinema americano. Preservando-o para a posteridade a
Film Library realiza uma missão tão nobre quanto a dos colecionadores da Renascença”. Mas, até
que ponto, porém, não estavam muito mais as cinematecas prestando favores à indústria do que
vice-versa? A pergunta é válida. Deve ser levada em consideração. Mas a resposta não é simples.
279
GOMES, P.E.S. Ibidem. P.60.
280
GOMES, P.E.S. Idem, Ibidem.
176
Esse é o momento onde experiências, como a da Cinemateca Brasileira, são fundamentais para a
reflexão em torno dessas intricadas e complicadas relações. Pois, se as dificuldades enfrentadas
pelas cinematecas são, em geral, as mesmas (ao menos no mundo ocidental/ capitalista), elas se
manifestam de diferentes maneiras nas diferentes conjunturas de cada país. E isso, por sua vez,
também não deixa de ter conseqüências para as outras cinematecas. A distância dos trópicos trouxe
alguma vantagem.
A cultura cinematográfica brasileira não teve que se haver tão diretamente com as majores
americanas quando o assunto era preservar e difundir cultura cinematográfica. A burguesia,
primeira financiadora do projeto brasileiro, tinha no seu grupo de “intelectuais orgânicos” para a
questão (já vimos que não era bem disso que se tratava) – representados em um “bando de
comunistas”, e por algum tempo houve boa autonomia para esses agirem. Em suma, o Brasil
colaborou decisivamente para a manutenção – ainda que provisória – do tal equilíbrio na balança
entre arte e indústria, e isso só foi possível em função dos objetivos visados para a utilização do
acervo preservado no Brasil, em outras palavras: em função do projeto de formação e difusão de
cultura cinematográfica proposto pelo grupo da Cinemateca Brasileira, ainda um tanto quanto
distante do capital de fato. Em suma, um país da periferia do capitalismo.
Se (em um plano ideal) a tarefa primeira era localizar os filmes, restaurá-los quando necessário,
preservá-los pela contratipagem e armazená-los em construções especiais, as novas cópias dos
filmes já devidamente protegidos deveriam seguir para as projeções culturais em escolas, clubes,
museus, etc. Ao mesmo tempo, o alerta deveria estar ligado de modo a impedir qualquer tipo de
sessão cinematográfica (que tivesse o apoio da cinemateca) que resultasse em mero “culto da
distração”, do curioso, do entretenimento, diante de temas fundamentais para o projeto daqueles
que lutavam para que preocupações culturais específicas tivessem espaço em debates mais amplos
da sociedade. A história do cinema, por exemplo, não poderia se transformar em mero objeto de
curiosidade. O crítico conclui que cada vez que existir “tensão em torno dos termos difusão versus
177
conservação, recreação versus cultura, é porque chegou o momento de um exame atento e em
profundidade da situação criada
281
”.
Sempre inescapável, o diálogo visando o desenvolvimento de um projeto pedagógico de formação
e difusão de cultura cinematográfica passava necessariamente pela maneira como o público em
geral (mesmo dentre os intelectuais) enxergavam o cinema, o que significa dizer em larga medida
como a indústria enxergava o cinema. A demanda por formação cultural, contudo, existe malgrado
a existência, não da indústria, mas da mentalidade muitas vezes puramente mercantil e fetichista
daqueles que a comandam. O projeto de Paulo Emilio, e do grupo que estava organizando as
atividades da Cinemateca Brasileira, como já afirmamos, ia muito além das relações com a
indústria cinematográfica. Trata-se, antes de tudo, de um pensamento social e cultural, ou de um
entendimento do cinema como fenômeno social. Estamos tentando mostrar como esses pólos
muitas vezes se confundem, mas é igualmente importante perceber como se desdobram em
espécies de subáreas de um sistema complexo.
Difusão: política e pedagogia
O pensamento político do projeto abrangia uma série de outras instituições culturais. É isso o que
mais importava. Enxergar e fazer-se enxergar as funções orgânicas de uma cinemateca na
sociedade. Na concepção de Paulo Emilio, o Estado cumpre papel fundamental para a organização
do sistema. É ele o fiel da balança entre arte e indústria. Antes, porém, de entrarmos no quesito
financiamento, ou de quem pode financiar as atividades de uma cinemateca para Paulo Emilio
preferimos debater um pouco de que maneira como está composto o projeto em um escopo mais
amplo.
281
GOMES, P.E.S.
A vez do Rio
(08nov58) Op. Cit. V.1 P.429
178
O Estado, já afirmamos, é o mediador. De um lado temos a indústria (grosso modo os produtores,
distribuidores e exibidores), de outro lado, os cineclubes, as escolas primárias e secundárias, as
organizações da sociedade civil (tais como clubes, agremiações, organizações de classe, etc.).
Juntando tudo isso, a Universidade – de preferência pública, pois assim a amarração com o Estado,
e logo com todo o projeto, estaria completa.Tentaremos então falar um pouco do campo de atuação
de cada um desses elementos.
Sobre a indústria, nos limitaremos a dizer que é o seu tripé básico que importa: produção,
distribuição e exibição. A questão básica aqui é um processo de luta contra o monopólio dos meios
de produção. Em relação aos clubes de cinema. O que nos interessa fundamentalmente agora (no
que toca à relação destes com o sistema) é argumentar que os cineclubes deveriam cumprir (e
cumpriram) um papel determinante na formação da cultura cinematográfica no Brasil, e na luta
contra o monopólio dos meios de produção. Por meio dos cursos, palestras, exibições, exposições,
publicações, dentre outras coisas levadas a cabo por estas entidades, deveriam sair pessoas
capacitadas criticamente para uma luta que procurava distância das fofocas do star system e dos
descomunais lucros dos majores, constituindo assim um circuito que de início tinha características
mesmo de um circuito alternativo, embora uma estranha simbiose com o comércio estivesse
sempre presente em alguma medida.
Mas o cinema, evidentemente, não é objeto de interesse apenas dos profissionais do meio
cinematográfico. O papel das organizações da sociedade civil ou das organizações de classe
certamente seria facilitado, se elas tivessem acesso a um poderoso meio de referênciação à
sociedade da qual fazem parte e realizado por ela própria: o cinema. Os filmes, sejam quais forem
as suas procedências, sempre seriam uma importante ferramenta para o debate, para a formulação
de diretrizes das entidades, dos indivíduos, etc. Pelo menos, era nisso que Paulo Emilio apostava.
O mesmo pode-se dizer em relação às funções de uma cinemateca para as escolas primárias e
secundárias. Nesses casos, evidentemente, o caráter tendia a ser mais abertamente pedagógico,
179
auxiliando (por meio dos filmes e sua história) no ensino da História, da Geografia, da Matemática,
da Física, da Química, da Arte, para não falarmos das noções de direito, cidadania e de organização
da sociedade passíveis de debate depois de uma exibição cinematográfica
282
.
Assim, as parecerias naturais da Cinemateca Brasileira com as Bienais de Arte Moderna do MAM,
incluindo as mostras de filme sobre arte. são exatamente o tipo de exemplo que procuramos. Paulo
Emilio lembra o papel de formação fundamental que as centenas de milhares de pessoas estavam
tendo no Brasil ao visitar as Bienais promovidas pelo MAM, por meio das quais o país estava se
integrando às grandes correntes da arte moderna. Ele vai além, destacando o papel que o cinema
estava cumprindo nesses eventos, não apenas na supracitada integração do Brasil nas correntes
artísticas de seu tempo, bem como ajudando o público a obter níveis satisfatórios de formação de
cultura história pelas retrospectivas de cinema, mas também por meio da utilização do filme como
material didático/ pedagógico de cursos e exposições de história da arte. O crítico argumenta que
sejam quais fossem os limites dos filmes sobre arte, eles poderiam ajudar a preencher lacunas
importantes, existentes devido à ausência nos museus brasileiros de obras de importantes períodos
e artistas da história
283
.
Nesse trajeto, as cinematecas e os clubes de cinema continuariam exercendo seus papéis.
Prospectar, conservar, divulgar os filmes e a cultura cinematográfica por meio dos próprios filmes,
cursos, palestras, publicações, etc. Que não se assustem os técnicos das cinematecas! É que no
panorama geral do projeto que estamos tentando recuperar e analisar, as atividades de ambos
(cinemateca e cineclubes) chegam a se confundir um pouco, embora Paulo Emilio soubesse muito
bem que existiam trabalhos que apenas uma cinemateca poderia realizar devidamente, tais como a
preservação em si via conservação e intervenções de restauro. A Cinemateca Brasileira continuava
a prospectar filmes e documentação (cartazes, livros, roteiros, etc.) bem como a promover grandes
mostras, retrospectivas e cursos. Os cineclubes tentavam seguir esse rastro em parceira com a
282
GOMES, P.E.S
. Funções da cinemateca
.
(23mar57) Op. Cit. V.1 P.97.
180
Cinemateca Brasileira (e a do MAM-RJ), mas isso ainda não era suficiente. É bastante conhecido o
debate entre a geração mais velha do período (1956/63) da qual fazia parte Paulo Emilio, e a dos
jovens cineastas do nascente Cinema Novo, sobre o que era afinal mais importante: preservar e
exibir filmes antigos ou produzir novos filmes? O crítico responde à questão sem extremismos.
Algo típico de sua personalidade. “Não se faz bom cinema sem cultura cinematográfica, e uma
cultura viva exige simultaneamente o conhecimento do passado, a compreensão do presente e uma
perspectiva para o futuro. Enganam-se os que confundem a ação das cinematecas com o
saudosismo
284
”. Era preciso produzir para dar prosseguimento ao processo, mas produzir por meio
de uma formação previamente oferecida. E isso deveria ocorrer em pareceria de toda a sociedade,
particularmente com as já tradicionais instituições culturais, como escolas e museus.
É aqui que entra, definitivamente, no horizonte do projeto, a criação de cursos universitários de
cinema. Tarefa essa, cujo campo estava sendo preparado há tempos, não só pelo grupo de
Cinemateca Brasileira e das entidades federativas de cineclubes, mas também pelo Centro de
Estudos Cinematográficos do Museu de Arte de São Paulo (MASP) – que culminou no curso de
cinema da FAAP (Fundação Álvares Penteado), e a criação do Seminário de Cinema da Escola São
Luiz. Sabemos que tais esforços acabariam por consolidar a criação (e seu curso de cinema) da
Escola de Comunicações Culturais, hoje Escola de Comunicações e Artes ECA/ USP (e
posteriormente da UNB). A tarefa de Paulo Emilio no suplemento era, contudo, ainda tentar
esclarecer o porquê, e como funcionaria esse braço do sistema.
No que tange às cinematecas e as escolas de cinema, o crítico tenta argumentar qual seria a relação
ideal entre elas, respeitando as diferenças intrínsecas de cada instituição para tirar conseqüências
proveitosas dessa relação para o sistema como um todo. Uma cinemateca tem seu trabalho voltado
a um público em princípio muito maior do que uma escola de cinema. Depois de cumprir sua
missão essencial – garantir os meios para a interminável tarefa de conservação dos filmes – a
283
GOMES, P.E.S.
O cinema na bienal
(08jun57)
Op. Cit. V.1. P.138.
181
escola de cinema seria apenas uma das inúmeras entidades, as quais uma cinemateca deve atenção
no campo da difusão, destacando-se as de caráter escolar ou universitário. Em outras palavras, era
uma forma de dizer, as escolas de cinema deveriam estar na lista de prioridades das cinematecas.
Particularmente importante em países com o Brasil (sem tradição neste campo), o crítico esperava
muito da ação conjunta de ambas para a
solução de um dos problemas básicos da vida
cinematográfica brasileira – o divórcio entre o nosso cinema e as elites do país”. Problema que a
confluência da ação das escolas com a irradiação cultural da cinemateca poderia solucionar
285
. Era
preciso, em suma, educar as elites.
Mas, e quanto ao papel particularmente reservado a uma cinemateca nesse modelo de sistema?
Qual seria o seu papel, ou melhor, dizendo, os seus papéis? Não poderíamos sem ela conhecer a
história do cinema, incluindo a de seus realizadores, técnicos, atores, atrizes, críticos, nada. Sem
ela não poderíamos sequer saber o que se perdeu
286
. Mas, tão importante quanto a existência de
fato de uma cinemateca, é a existência do espírito de cinemateca. Isso importa não apenas para os
primórdios da história deste tipo de instituição (onde de fato havia uma confusão entre as idéias de
cinemateca, filmoteca e cineclube) quanto para os nossos dias (malgrado a mutação do conceito).
O fato é que, no que toca à difusão esse espírito de cinemateca traduz-se pelo fato de que uma
cinemateca digna desse nome é também um cineclube, e um cineclube deve ter em mente esse
espírito de cinemateca. Não que ele seja uma cinemateca. O que deveria ocorrer para Paulo Emilio
é uma compreensão mútua entre esses dois tipos de entidades ou instituições (suas atribuições,
modo de ação, etc.), e não um desarranjo. Em relação a estas colocações, certamente ouviremos
argumentos contrários. Para estes, uma cinemateca não seria um clube de cinema, e sua missão
fundamental é a preservação do patrimônio, ponto. Isso tudo é verdade. Mas não anula nossos
supracitados argumentos. Outro correto argumento, que pode depor contra o que estamos
284
GOMES, P.E.S. Funções da cinemateca. Op. Cit. V.1 P.96
285
GOMES, P.E.S.
Cultura e escola.
(06abr57) Op. Cit. V.1 P.105.
286
GOMES, P.E.S.
Nascimento das cinematecas
.
(02mar57)
Op. Cit. V.1. P.87
182
descrevendo, é o de que o esforço concentrado pela Cinemateca Brasileira no campo da difusão era
uma necessidade da conjuntura, de um momento onde o importante era se mostrar, e se fazer
entender: o que era uma cinemateca? Quais as suas funções, etc. Mas era mais do que isso. Tal
esforço está na gênese do projeto e nunca deveria se perder para Paulo Emilio. Em suma, uma
cinemateca, ao que podemos depreender dos argumentos do crítico, não pode jamais de despir
totalmente (ao contrário) de seu espírito de cineclube. Ela é um centro de irradiação da cultura
cinematográfica, na medida em que guarda e preserva esse patrimônio. Era possível pensar uma
cinemateca “apenas” como um arquivo, e destituído de um projeto efetivo para a difusão deste
patrimônio? Para o crítico não restam dúvidas: a resposta é não!
O fundamental a ser entendido, é que antes de tudo o projeto da Cinemateca Brasileira era um
projeto político e não técnico. Também é técnico, pois envolve operações de ordem técnica, mas
sua diretriz central era política. O projeto visava a democratização do acesso à cultura, ao
patrimônio cultural, e poderíamos dizer também, em última análise, que o projeto visava também a
democratização do acesso aos meios de produção. Mas a tarefa não era fácil. Tratava-se de um
projeto político-pedagógico de amplo escopo social, o que quer dizer fundamentalmente que
deveria envolver diversas áreas de atuação, sobretudo aquelas ligadas às ciências humanas.
Um dos melhores exemplos da idéia de formação/ articulação do sistema proposta pela Cinemateca
Brasileira no período foi a realização do I Curso para Dirigentes de Cineclubes, apenas um ano
depois do incêndio que destruiu sua sede e um terço de seu acervo de filmes. O curso é uma bela
representação do que Paulo Emilio costumava afirmar que são aqueles interessados nos problemas
mais gerais da cultura (interesses e conhecimentos, artísticos e humanísticos) os que melhor
estariam aptos a compreender os problemas relativos à cultura cinematográfica. Esta é a razão pela
qual as preocupações dos organizadores do curso eram as de equilibrar a parte ‘estritamente
cinematográfica’ com outras que articulassem a primeira com a estética em geral (teatral, literária,
183
plástica e musical). Assim, a escolha dos professores do curso teve um critério específico: “Os
especialistas encarregados dessas diferentes disciplinas são pessoas cuja formação moderna as
levou a se interessar de perto pelo cinema, e que estão preparadas para conduzir os alunos pelos
inúmeros caminhos que ligam o cinema a todas as artes
287
”.
O curso visava não apenas a formação individual do aluno, mas, sobretudo, o espírito de grupo:
visava o aperfeiçoamento de técnicas de animação de reuniões, por meio não apenas do
conhecimento do animador, mas na valorização das opiniões e intervenções mais relevantes
levantadas pelo público, etc. Era uma linha de frente, e fica novamente muito claro que a proposta
para a difusão e formação de público ultrapassava, e muito, o âmbito restrito do meio
cinematográfico. Antes de qualquer coisa, o curso visava a formação de um pensamento crítico. O
principal, porém, o objetivo prático era formar dirigentes de cineclubes com vastos conhecimentos
sobre o universo do cinema, sua técnica, sua arte, história, etc., sempre pensando as relações entre
universos inseparáveis: o da cultura cinematográfica e o da cultura tout court.
Uma possibilidade interessante de se notar também é que o programa do curso pode ser visto como
um protótipo dos modelos de cursos universitários de cinema, nos quais Paulo Emilio tomou parte
na criação, como os da ECA de o da UNB (para não falarmos do seminário de cinema da Escola
São Luiz). Sobre isto, vale dizer o seguinte: se o projeto da Cinemateca era um projeto sistêmico,
era também parte de um projeto pedagógico acadêmico e vice-versa. “Essas aulas serão dedicadas
não só aos alunos do Curso para Dirigentes de Cineclubes, mas também aos do Seminário de
Cinema, aos do Curso Intensivo de Atores, bem como do Curso de Apreciação Cinematográfica e
da Escola de Arte Dramática
288
”.
Comentando o currículo do curso, Paulo Emilio fornece-nos subsídios para pensarmos aquele que
foi um dos eixos principais dos modernos cursos de cinema no Brasil, ajudando-nos a pensar o
desenvolvimento posterior da coisa. Segundo o crítico, o currículo foi pensado de modo que o
287
GOMES, P.E.S.
Cursos de cinema
.
(21dez57) Op. Cit. V.1. P.240
184
mesmo fato histórico ou estético fosse abordado por diferentes métodos, ângulos e abordagens de
professores de áreas diferentes (história do cinema, história da crítica, estética, etc.). Objetivava-se
com esse método, “que admite uma larga margem de variantes de idéia ou eventualmente
contradições sobre o mesmo assunto, dar uma maior vitalidade às noções e evitar o perigo da
monotonia escolar
289
”.
O desenvolvimento da cultura cinematográfica no Brasil não se deve apenas à Cinemateca
Brasileira (acreditamos que em nenhum momento tenhamos deixado essa idéia no ar), mas o fato é
que a criação de uma Cinemateca (na verdade foram duas, incluindo a experiência carioca) é um
momento crucial. Uma cinemateca seria senão a, ao menos uma das principais molas-mestra de
todo o sistema ideal. Certamente muito em função da criação da Cinemateca Brasileira e sua
grande ação no campo da difusão cinematográfica o movimento ganhou fôlego renovado e
constante. Basta lembrarmos, por hora, do I Festival Internacional de Cinema de São Paulo. Era
natural que com tamanho estardalhaço pululassem cineclubes e grupos interessados nas questões
culturais do cinema, fortalecendo também entidades já então com alguma tradição, caso dos Clubes
de Cinema da Bahia e o de Marília. O papel central de uma cinemateca nesse quadro é suprir duas
das principais dificuldades que um movimento de cultura cinematográfica encontra para se
desenvolver. A primeira era a obtenção de filmes para as aulas, conferências e debates, e a
segunda, decorrente em grande parte da primeira, era a ausência de quadros com formação
adequada para dar vitalidade ao movimento
290
.
O difícil mesmo era arrumar dinheiro para as custosas, e em geral sempre crescentes atividades de
uma cinemateca. Custosas despesas crescentes, sobretudo no início da vida de uma instituição
desse tipo, diante de um quadro onde esta tudo por se fazer. Aí sim, podemos pensar no período em
questão (1949 -1966), onde a difusão cumpriu um papel de necessidade de uma conjuntura interna
288
GOMES, P.E.S.
A volta aos filmes
(13set58)
Op. Cit. V.1.
P.410
289
GOMES, P.E.S. Cursos de cinema (21dez57). In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1. P.240.
290
GOMES, P.E.S.
A volta aos filmes
(13set58).
In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1 P.408.
185
à instituição. Qual seja: de se mostrar, e de se fazer entender, era preciso que os intelectuais, o
Estado e a sociedade em geral entendesse o que era uma cinemateca e quais são suas funções na
sociedade.
No entanto, reafirmamos: a difusão não foi o meio por excelência para tais esclarecimentos
simplesmente porque era a forma mais fácil da fazer isso, mas sim porque ela é o fim último de
uma cinemateca. Se a atribuição institucional fundamental de uma cinemateca é preservar o
patrimônio artístico e cultural cinematográfico, o seu fim último é difundi-lo; e ninguém melhor
para tanto, ou antes, para coordenar esse trabalho que o próprio órgão que por meio de pesquisa e
trabalho realizou o trabalho de preservação. O investimento em tal setor de atividades não foi por
acaso, e tão pouco apenas para convencer alguns snobs como nos tempos em que estava sendo
articulada a criação da Filmoteca do MAM, o objetivo agora era a sociedade, e de maneira ainda
mais conseqüente.
O amplo escopo da difusão
O fato é que mesmo enfrentando problemas elementares para o desenvolvimento do projeto - como
os dois anos de luta para liberar da Alfândega de Santos, graças a exposição doada pela UNESCO
Horizontes do Cinema - em abril de 1959, a Cinemateca tentava registrar seus funcionários bem
como oferecer uma ajuda de custo para Paulo Emilio que continuava sem remuneração
291
.
Esse tipo de avanço se tornava possível devido aos recursos advindos, sobretudo das atividades de
difusão. Ainda em abril de 1959, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo fez o pagamento
à Cinemateca de CR$ 268.960,00 referente a realização da Semana de Cultura Cinematográfica
(Mostra de Cinema Alemão), em parceria com a Comissão Estadual de Cinema. Os eventos,
sobretudo os maiores significavam recursos importantes. Do grande festival de cinema francês
186
realizado em parceria da Cinemateca do MAM-RJ e da Cinemateca Francesa, entrariam em caixa
no mesmo ano CR$ 1.222.130,00. Mas esses recursos não bastavam e eram ocasionais e de
complicada obtenção, uma vez a que a instituição deveria praticamente parar seus esforços de
conservação para se dedicar quase que exclusivamente à difusão. Tais recursos, porém, ajudavam
para que a Cinemateca continuasse a instituir melhoras no seu sistema de conservação e
catalogação de acervo, e nesse mesmo mês, começou a substituir os títulos dos filmes por números
o que facilitava a localização e a organização do material.
Com os recursos conseguidos, a instituição comprou também uma copiadora de contato (uma
máquina que copia filmes quadro a quadro), e pagava parte dos salários de seus funcionários. A
catalogação do acervo avançava e as fichas de documentação passavam das 16.000 (9.524 fotos,
351 cartazes e 6.512 impressos em geral). Nesse período, foi iniciado a organização dos fichários
da Filmografia Brasileira (base do Censo Cinematográfico Brasileiro de nossos dias, inicialmente
pautado no livro de Alex Viany Introdução ao Cinema Brasileiro).
No entanto, o mais importante é que não podemos, em hipótese nenhuma, ver na ampla atividade
de difusão promovida pela Cinemateca Brasileira um simples modo de conseguir recursos. Para
além destas questões “prosaicas”, havia um projeto político/ pedagógico de amplo escopo quando o
tema é esse, inseparável da conservação e da preservação, como já salientamos várias vezes. Antes
de qualquer coisa, é preciso remarcar que o museu, o arquivo, a escola, etc. são para Paulo Emilio
ferramentas políticas de formação – mais do que espectadores para o cinema – de cidadãos
politicamente participativos na sociedade. O projeto de cinemateca para ele era antes de tudo um
projeto didático-pedagógico para o cinema que deveria se inserir em um projeto político/
pedagógico para a sociedade (brasileira) em geral. Era preciso vencer o analfabetismo
cinematográfico (como ele mesmo nos aponta) no mesmo terreno onde o outro estava sendo
vencido: na escola.
291
AHCB/ Cinemateca Brasileira.Relatórios anuais (03/1959). No início, os relatórios eram mensais e escritos por
187
Em seus currículos, Paulo Emilio cita alguns ensaios divididos escritos por ele para a coluna do
Suplemento Literário do O Estado de São Paulo, referindo-se, no entanto a apenas alguns deles
292
.
Encontramos nas páginas do jornal uma série de outros ensaios divididos (não citados por Paulo
Emilio), como o sobre cinematecas, já comentado em parte aqui, e outros escritos em função de
grandes mostras e retrospectivas de cinematografias, cineastas ou para cursos e palestras que
aconteciam e eram ou não promovidas pela Cinemateca.
Exemplos disso são os ensaios escritos sobre cinema francês (em função da grande retrospectiva
realizada desta cinematografia, em parceria com o MAM/ RJ e com a Cinemateca Francesa em
1959), e sobre cinema italiano (também publicado concomitantemente a uma grande retrospectiva
italiana em 1960), mas existem vários outros. A grande maioria dos conjuntos de críticas foram
escritos também em função de mostras e festivais. Um deles trata do expressionismo alemão,
escola cinematográfica extremamente inovadora do ponto de vista da estético, e colaborou
decisivamente para o debate (nos anos 20) cuja pergunta chave era: o cinema é ou não arte? Outro
exemplo é um ensaio dividido sobre Orson Welles tendo sido publicado no bojo do I Curso para
Dirigentes de Cineclubes, que durou todo o ano de 1958.
Ao longo do ano de 1958, foram publicados outros ensaios divididos, muitos já citados por Paulo
Emilio, e que se inseriam na lógica de dar suporte e sobretudo debater o programa que estava sendo
posto em prática durante do I curso. São eles: Serguei Eisenstein/ cinema soviético (oito artigos);
escola documentarista britânica (quatro artigos); Jean Renoir (quatro artigos) David W. Griffith
(três artigos), mas este tipo de procedimento não se limitou ao tempo em que durou o I Curso.
Em 1959, a Semana de Cultura Cinematográfica (mostra de cinema alemão) teve quatro
conferências (Paulo Emilio, Lourival Gomes Machado, Diogo Pacheco e Anatol Rosenfeld) em
forma de curso, e reuniu em média 500 pessoas por sessão. A mostra foi planejada para coincidir
Rudá de Andrade.
292
Arquivo Paulo Emilio/ Cinemateca Brasileira. PE/ PI.
188
com a I Jornada de Cineclubes Brasileiros
293
. O intuito era, além de tornar mais proveitosa a
jornada para os cineclubistas, tentar estabelecer acordos com os cineclubes para a obtenção de
verbas destes para a Cinemateca (provavelmente nos moldes da campanha do contratipo, mas
também no sentido de que os clubes ajudassem na tarefa de esclarecer a opinião pública e os
poderes públicos sobre as funções de uma cinemateca). Em suma: estreitar relações entre estas
entidades.
Fazia parte do programa também um amplo seminário de estudos sobre germanística, bem como
uma exposição de pintura expressionista em parceria com o MAM, que infelizmente não se
concretizaram. Além das conferências, Paulo Emilio apresentava os filmes (também em forma de
curso) promovendo depois debates sobre eles. São diversos os aspectos de tais propósitos que se
entrelaçam, e o procedimento se repete para cada objeto de analise (e de mostra), tendo, no entanto
conotações específicas para cada um deles.
Um dos principais é a busca de historicidade do objeto (ou cinematografia) analisado ou em
questão na mostra, festival, etc. Este liga-se a outro. Só é possível dar a devida referênciação
histórica quando se insere o fenômeno cinematográfico no panorama da cultura em geral. A
propósito da mostra de cinema alemão, Paulo Emilio comenta que, durante a realização do festival
seriam promovidas conferências dedicadas particularmente ao romantismo e ao expressionismo tais
como se manifestaram no pensamento e na arte alemã de modo a que pudesse ser vencida a
resistência daqueles ainda relutavam em compreender a ligação das obras produzidas pela indústria
cinematográfica com as demais produções culturais da história de um país ou de um período da
história deste ou de outro lugar.
O tom que o crítico e a instituição davam, assim mesmo, a um “simples festival de cinema” pode
servir de exemplo para os que nisso trabalham hoje (sem dúvida), guardadas as devidas proporções,
com as dificuldades que hoje um provável organizador da cultura encontraria. No que tange às
293
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios Anuais, 1959.
189
questões relativas à historicidade do objeto, no entanto, as lições serão sempre válidas:
“Pessoalmente, espero muito dessa oportunidade para esclarecer várias idéias sobre a cultura e o
cinema germânicos e penso que provavelmente a própria palavra expressionismo sairá vivificada
da experiência, com a perda de sue poder de fórmula mágica
294
”.
Paulo Emilio demonstra grande preocupação com relação a esta questão de historicidade e filiação
de uma corrente artística específica (nesse caso, cinematográfica) com a cultura em geral (tout
court). O importante aqui, é remarcar que essa preocupação se manifesta inicialmente pelo conceito
(no caso o expressionismo). Bem ao gosto de Gramsci, o crítico anuncia a necessidade de uma
análise concreta de uma situação concreta. Era preciso historicizar o expressionismo por meio da
própria tradição deste sem desligá-la do seus vínculos “universais”.
Outro aspecto da forma de tratamento da filmografia de um país, um período, quando abordados
por Paulo Emilio em função de eventos, mostras ou festivais cinematográficos realizados ou não
pela Cinemateca Brasileira, e que desvendam perspectivas do alcance que o crítico esperava atingir
com as atividades de difusão de cultura cinematográfica, relaciona-se ao debate em torno da
bibliografia a respeito do objeto da mostra ou do festival. Trata-se de algo que o crítico faz, muitas
vezes à exaustão, como por exemplo, no caso da mostra de cinema alemão, discutindo dois dos
mais importantes livros sobre o tema até então, o de Lotte Eisner (A tela demoníaca) e o de
Siegfried Kracauer (De Caligari à Hitler). Tais debates, sempre muito produtivos nos ensaios de
Paulo Emilio, além de serem elucidativos e didáticos do ponto de vista estrito da concepção de tais
livros, podem ajudar muito e desfazer certas brumas no debate histórico acerca da bibliografia de
cinema no Brasil em geral. Tendo em vista que Paulo Emilio é considerado com toda razão o nosso
primeiro crítico moderno de cinema todas as reflexões acerca da constituição do campo
cinematográfico no Brasil (o que evidentemente inclui necessariamente a Universidade, cujos
primeiros cursos de cinema ele ajudou a criar) devem passar pelo crivo das reflexões dele. É
294
GOMES, P.E. S
Antes do cinema alemão
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1. P.459. Grifo nosso.
190
preciso esmiuçar à exaustão os ensaios de Paulo Emilio no suplemento literário, para que possamos
ter uma dimensão melhor, e de ângulo mais aberto, acerca da história da constituição do campo
cinematográfico brasileiro.
Paulo Emilio busca também introduzir elementos para o debate estético em torno de aspectos
característicos do cinema. Ainda partindo do caso da mostra sobre o expressionismo alemão, e de
seu desenvolvimento, vemos que o crítico discute, por exemplo mudanças dos elementos de
cenografia nos filmes de Wiene, que de pictórica em Caligari passa a ser predominantemente de
décors em outros filmes como Raskolnikoff. Esse tipo de pontuação que o crítico leva muito mais
longe, serve de introdução a elementos não só desse cinema. São elementos de iniciação
cinematográfica, que Paulo Emilio consegue tratar ao mesmo tempo em que aprofunda esses
mesmos aspectos
295
.
Outra forma de tratamento do tema – sempre na busca da unidade e da diversidade do objeto - parte
de método biográfico didático e social. Didática no sentido que consegue em um pequeno espaço
dar conta da trajetória de uma figura expressiva como Eisenstein ou Fritz Lang, e social, pois insere
a trajetória de vida do biografado em todos os elementos que envolvem uma experiência estética da
cinematografia, da sociedade, e do período em questão.
Assim, Paulo Emilio comenta o que melhor existe na historiografia a respeito do filme e do
cineasta em foco no comentário e na análise; relaciona aspectos da vida desse artista com a sua
obra, e faz ver a importância de rever os filmes de tal sujeito em questão de modo que possamos
fazer dela (da obra) um juízo estético e sociológico mais livre dos mal entendidos da história.
Artigos como Lubitsch, esse desconhecido
296
, tem ainda uma função mais importante: debater a
obra de um cineasta obscuro (pois pouco conhecido), e por isso mesmo, segundo o crítico, alvo de
ataques injustos da crítica e da historiografia. Não cabe aqui discutir os argumentos do crítico neste
sentido, mas, no debate, Paulo Emilio parece mostrar o óbvio: a importância de ver e rever em
295
Ibidem, P.473.
191
conjunto a obra de um artista para que possamos compreender melhor seu papel na constelação da
cultura, e não havia outro meio para tanto que não fosse pela existência de uma cinemateca que
guardasse, preservasse e difundisse tal patrimônio. Relacionar a vida do autor com a temática de
sua obra e lutar contra preconceitos bastante infundados muitas vezes difundidos contra um artista
por ignorância, não só de sua própria obra, mas uma ignorância mais generalizada que impedia que
os críticos compreendessem as influências deste artista e seu diálogo com elas, etc. Esses eram
alguns dos intuitos da atividade de difusão da Cinemateca Brasileira.
A tarefa era grande, acreditamos ter indicado minimamente porque o projeto de Paulo Emilio era
pedagógico em um sentido muito amplo. Tratava-se de um problema de políticas públicas para a
educação e para a cultura, o que por sua vez nos leva ainda mais longe. No caso específico do
cinema, era tarefa das cinematecas fornecerem a maior quantidade possível de referências a
respeito de um tema e abordá-los com a profundidade necessária. No entanto, apresentar a obra
completa de um cineasta já seria um bom caminho, o princípio de tudo. Tarefa sempre muito
difícil, mesmo para as cinematecas dos países natais de tais artistas.
O crítico sempre encontrava espaço para alertar sobre a necessidade de amparo para instituições
desse tipo, de modo a equilibrar a balança entre o enorme potencial político/ pedagógico/ cultural
delas e as lamentavelmente freqüentes dificuldades ou, em suas próprias palavras, dos meios
ridículos de que dispunham para a realização de suas tarefas. Ele lamenta, por exemplo, a ausência
de muitos filmes no mostra sobre o expressionismo (como A noite de São Silvestre de Lupu Pick, e
O último dos homens de F.W. Murnau – ambos escritos por Carl Mayer) que ajudariam a compor
melhor o panorama pretendido. A lamentação não era um capricho: a Cinemateca Brasileira
possuía esses e outros filmes importantes para os propósitos da mostra, mas foram destruídos no
incêndio de 1957.
296
GOMES, P.E.S.
Lubitsch, esse desconhecido
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.2. P.17-20.
192
Não por acaso o crítico ironiza os poderes públicos, dizendo que não há previsão de quando
poderíamos ter um panorama mais completo dessa rica cinematografia. O auxílio que a Comissão
Estadual de Cinema havia prometido para a mostra não chegou (como infelizmente era praxe no
caso da Cinemateca), e os motivos alegados para o descumprimento do acordo nós assustam muito
mais do que um vampiro na noite: “O auxílio ainda não foi efetivado porque um alto funcionário
estranhou que o dinheiro público fosse empregado na divulgação do cinema alemão! As
associações musicais que pleiteiam auxílio do poder público devem precaver-se e não cometer a
gaffe de incluir em suas programações músicas de Bach, Schönberg ou Beethoven.
297
Objeto, conceito e pedagogia
Assim, um dos principais aspectos do ‘método’ de trabalho de Paulo Emilio aparece nos escritos
do crítico como um respeito absoluto ao objeto. Pode parecer um truísmo tal ordem de afirmação,
mas o fato é que ainda é bastante comum vermos situações onde abordagens teóricas-metodologias
são impostas a objetos, sacrificando estes em função daqueles. Nos escritos de Paulo Emilio é mais
fácil encontrar o contrário disso: a crítica de métodos pelos objetos, o que pode sempre ser um
lição e tanto.
O que à primeira vista parece trazer uma fórmula metodológica de análise, dentro dos parâmetros
da cultura cinematográfica, como: análise da bibliografia existente sobre o tema (muitas vezes sem
meias palavras), das relações desse cineasta, ator ou movimento com correntes literárias, teatrais,
musicais do passado ou do presente, posicionamento ideológico do movimento, filme ou cineasta
diante da indústria cultural ou da tradição artística simplesmente - e na medida do possível -,
etc.etc., guarda um perigo. Em outras palavras, poderíamos tentar afirmar, por meio destes
exemplos de análise: eis o método do crítico. Nada seria, todavia, mais descabido. Estaríamos
297
Ibidem, P.25.
193
sacrificando o objeto, por um pretenso método inerente a ele, sem perceber de que maneira esse
método – que evidentemente não deixa de existir – dialoga com o objeto em questão. Mais do que
isso: como o diálogo desse objeto específico (que aparentemente nunca o é) interage como um todo
no pensamento de Paulo Emilio. Uma maneira rica de ver o mundo, plural, partilhada por muitos
(mas, nem por isso menos singular), e sintetizada nesse conceito admiravelmente bem estruturado e
democrático para o qual o crítico soube fornecer sua contribuição: cultura cinematográfica.
Conceito este que se prestava como ferramenta em um “canteiro de obra” ao mesmo tempo
universal e local, nacional e estrangeiro.
De fato, Paulo Emilio normalmente não deixa de comentar e analisar todos os elementos citados
aqui como ‘pertencentes ao seu método’, mas ele faz muito mais do que isso. Ao tratar de cinema,
é bastante comum que a análise recaia sobre uma figura humana – como o caso de Orson Welles,
ou de Eisenstein. Mas o olhar do crítico se desenvolve sempre na dialética entre o indivíduo e a
sociedade, logo a natureza do debate é sempre social, e visa a compreensão mútua no dialogo entre
as parte de um todo, seja do particular para o geral ou do geral ao particular.
A tarefa de debater esse tipo de análise social se torna um pouco mais fácil quando encontramos
um binômio esquemático para o nosso debate: a relação cinema/ sociedade. Evidentemente não
pretendemos esgotar tão complexa relação, mas apenas sugerir algumas pistas sobre a construção
da‘ ponte da difusão’, de bases sólidas, visando esclarecer como se dá o tal diálogo, entre o homem
e o produto de seu engenho. E nesse trajeto, o papel das cinematecas tinha uma relação ainda mais
direta com o campo da produção. O caso de Orson Welles representa bem este ponto.
Enquanto tentava se entender com a indústria cinematográfica Welles completava sua formação
(do ponto de vista da cultura cinematográfica) iniciada anos antes em Nova Iorque. O cineasta
assistiu tudo o que pode de King Vidor, Hitchcock, Fritz Lang, René Clair, John Ford, Frank
Capra, chegando a ver seis ou sete vezes seguidas alguns filmes: “Citizen Kane conserva traços
dessa assimilação maciça de películas alheias, diluídos porém numa linguagem não só pessoal e
194
brilhante, mas sobretudo aderida de forma indestacável ao tema: a vida de Charles Foster Kane,
eminente cidadão norte-americano
298
”.
Embora o destaque dado ao lado “rato de cinemateca” de Welles não ser despropositado - Paulo
Emilio continuava a fazer assim esclarecimentos sobre as funções de uma cinemateca - o crítico
não abandona seu propósito principal de ver a articulação entre o artista e seu meio social
(incluindo a esfera da memória). Seu intuito nesse caso é tentar perceber como Welles processou as
influências obtidas com os filmes vistos no MoMa ou alhures, com sua própria experiência pessoal;
de onde “tirou” uma síntese igualmente pessoal, mas que tem um sentido sobretudo social. A esfera
da memória aparece claramente aqui – em uma referência aparentemente desinteressada – em sua
mais ampla acepção de combate social. E não é exagero nenhum dizer que sem o MoMa
(especialmente) não haveria o Cidadão Kane.
Os desequilíbrios na balança entre arte/ indústria promovidos pela segunda também eram alvos do
crítico. Para a compreensão de fatos como esse, o crítico ministra verdadeiras aulas sobre a
complicada dialética do cinema: arte/ indústria. Explica, por exemplo, que é compreensível o gosto
de desforra que muitos sentem quando um realizador quase leva à falência um produtor
intransigente e reacionário diante das potencialidades artísticas de um criador (vide o exemplo de
Welles), mas que em geral isso revela uma visão bastante esquemática da jungle do cinema (o
termo em inglês é de Paulo Emilio). Reflexos de uma visão puramente maniqueísta, onde o diretor
é o bem e a indústria o mal.
A verdade segundo o crítico está longe de ser assim monolítica. Para ele – e estamos de acordo –
existem produtores profundamente interessados e apaixonados pelos problemas da criação artística,
assim como existem diretores interessados somente no lucro; nada mais que técnicos
especializados em administrar uma linha de produção glamurosa. Em função mesmo da
ambigüidade natural do filme, os dois lados (produtores e realizadores) tem que pensar, e pesar um
298
GOMES, P.E.S.
Charles Foster Kane
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1 P.277.
195
pouco em cada lado da balança: “A regra do jogo cinematográfico exige, mesmo do pior produtor,
um mínimo de preocupação estética, e que até o mais puro criador cinematográfico tem de se
render a uma certa meditação comercial
299
”. Tal estado de coisas não deve impedir porém, que os
realizadores e produtores aproveitem a primeira oportunidade que aparecer para fugir a dessa
“inelutável realidade
300
”.
Mas o crítico sabe que isso é quase que uma abstração diante da realidade concreta da jungle.
Como sabemos, artistas como Welles serviam muito mais como laboratório de pesquisas (sem
resultados práticos imediatos) para a indústria vulgarizar sua arte e, desta forma, os grandiosos
escândalos em torno dos gastos de Welles empalidecem diante dos lucros que suas experiências
proporcionaram aos managers de Wall Street.
Financiamento: ou de quem podia e deveria pagar a conta
O crítico elogia, nas páginas do jornal paulistano, o fato de que alguns dos problemas mais gerais
da atividade cinematográfica brasileira terem encontrando fórum de debates nas comissões de
cinema criadas nos três níveis do poder público
301
. Por meio dessas comissões os poderes públicos
e a opinião pública em geral estavam ficando mais familiarizados com “os graves problemas de
ordem financeira e industrial dentro dos quais há dezenas de anos se debate o cinema brasileiro
302
”.
Ele lamenta, todavia, que tais problemas na ordem do dia das comissões estejam restritos ao âmbito
da produção, argumentando que, “só a compreensão global dos problemas suscitados pelo
fenômeno cinematográfico permite uma ação fértil”. Ao contrário do que estava ocorrendo: um
desequilíbrio entre o que Paulo Emilio chamava também de ordem artística e ordem cultural do
cinema.
299
GOMES, P.E.S. Independência e dinheiro. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1 P.292.
300
Idem, Ibidem.
301
A federal criada em 1956, a estadual e a municipal de São Paulo (ambas criadas 1955).
196
Paulo Emilio deixa claro qual era a sua tarefa diante deste quadro: restabelecer um pouco de
equilíbrio na informação. Já chamamos a atenção para isso quando entendemos o projeto da
Cinemateca como um projeto sistêmico – um projeto de cinema, portanto – que pensa em um
organograma geral da atividade em todos os seus setores, com especial atenção para o lugar
ocupado pelas cinematecas, escolas de cinema, cineclubes e outras entidades culturais em geral.
Mas a questão é: quem deve financiar todo esse braço cultural e, sobretudo as cinematecas? Essa
que era em sintonia com seu tempo uma verdadeira revolução no âmbito da política educacional
do país (lembremos, por exemplo de Paulo Freire).
Paulo Emilio parece não se opor necessariamente à iniciativa privada. Basta lembrar que a
Cinemateca Brasileira teve origem em uma dessas, e vale novamente a pergunta: teria sido possível
criá-la de outra forma? (Isso, para não falarmos da natureza do cinema, isto é: uma indústria que
produz mercadorias, ou seja, filmes). O dinheiro privado, no entanto, só deveria ser válido na falta
da participação do Estado (absolutamente decisiva e fundamental). O Estado deveria ser a pilastra
mestra de tudo. No que toca aos problemas de ordem cultural do cinema, o Estado deveria
financiar escolas de cinema, museus, projetos pedagógicos para as escolas do que hoje chamamos
de ensino fundamental e médio e, sobretudo ao caso que nos diz respeito, as cinematecas. O alto
custo de uma instituição desse tipo e principalmente a função social do projeto não deixavam outra
saída: era mesmo o poder público o “responsável natural” pelo custo da Cinemateca Brasileira. O
berço das contradições está, contudo, nas relações orgânicas entre Estado e burguesia, ou se assim
quisermos, entre Estado e elites político-econômicas.
Inicialmente não havia grandes conflitos, pelo contrário. As condições para o florescimento do
movimento de cultura cinematográfica (e em outras artes como o teatro e as plásticas) foram
criadas pelo “surto industrialista” e cultural que teve em São Paulo seu epicentro, principalmente
dos museus criados pela burguesia paulista emanavam e fervilhavam idéias que culminaram, por
302
GOMES, P.E.S.
Cultura e escola.
(6abr57). In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1 P.105.
197
exemplo, a própria Cinemateca Brasileira, o Seminário de Cinema do MASP. Tais atividades
foram fundamentais para a vitalidade de núcleos de cultura espalhados pelo Brasil, como
cineclubes e centros de estudos cinematográficos, como o carioca e o mineiro de Belo Horizonte, e
teve profundas conseqüências para o posterior desenvolvimento do cinema em geral no Brasil
303
.
Era preciso, contudo, encontrar uma saída.
Paulo Emilio comenta os debates realizados no supracitado seminário do Festival Retrospectivo de
Cinema Americano, realizado no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1958, onde foram
estudas três possibilidades de financiamento para uma cinemateca no Brasil. A primeira alternativa,
logo descartada, seria um autofinanciamento desse tipo de instituição. Seria possível que uma
cinemateca se mantivesse por conta própria?
Tal opção, aparentemente absurda, não é assim tão autocentrada. Além de realizar atividades, e
com os fundos levantados pelas mesmas (que realmente seriam derrisórios para tentar manter o
trabalho da instituição), uma cinemateca deveria ajudar no fomento ao cineclubismo, isto é: deveria
colaborar para o surgimento do maior número possível de cineclubes e entidades federativas deles
criando assim, além de público crítico, receita para as atividades da instituição ao mesmo tempo
em que potencializaria as atividades dos cineclubes.
A coisa poderia funcionar por meio do financiamento pelos próprios clubes das cópias exibidas por
eles (nos moldes da Campanha do Contratipo, já comentada aqui). Dessa forma, teoricamente, um
amplo acervo de difusão poderia ser constituído nas cinematecas e disponibilizado aos clubes que
as pagaram para tanto, por meio de mensalidades dos sócios dos mesmos. Mas isso levaria,
necessariamente, a atritos graves com a indústria, já que o interesse fundamental desta não é
exatamente o tipo de filme ou de público, e de como esse público via o tal tipo de filme, mas sim
como um determinado tipo de público ou que tipo de público traria lucro a tais tipos filmes. A
conjuntura era difícil, o que deixa a falsa impressão de um projeto bastante conservador nesse
303
GOMES, P.E.S.
Estudos históricos.
(23jan60). In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.2 P.139.
198
sentido. Rejeitar o autofinanciamento era sucumbir a lógica estritamente industrial do cinema?
Certamente não necessariamente. Mas, a indústria, como estamos tentando mostrar desde início,
criou diversos obstáculos ao desenvolvimento das cinematecas, e de modo geral só lhes foi
condescendente quando, não só sentiu que seu lucro não seria afetado, mas também aumentado, e
muito.
O poder político/ financeiro das elites conservadoras obrigava mesmo um projeto bastante
progressista parecer também bastante conservador. A qualquer momento, em determinadas etapas
do processo de desenvolvimento da idéia de cinemateca no mundo, no período que vai do pós-
guerra até os anos de 1970, qualquer arquivista poderia colocar tudo a perder, sobretudo em seu
país. Tais ações, contudo, não deixariam de ter conseqüências outras no âmbito da FIAF, ou nos
escritórios das majores do cinema, em um momento delicado, ainda de afirmação do conceito.
É interessante dar uma olhada no microcosmo da indústria cinematográfica (lá, nos idos dos anos
50), pois nele tínhamos de tudo do que encontraríamos na sociedade em geral. Ignorantes que não
percebiam o quanto poderiam lucrar um dia com os filmes antigos e não apenas copiando enredos,
figurinos, etc., é muito menos capazes ainda de compreender a importância social do patrimônio
que eles tanto desprezaram na medida em que só viam por trás dele uma coisa: dinheiro. Por outro
lado tínhamos também certamente “gente de visão” que conseguiam enxergar tudo isso. Alguns
mais espertos esperaram pacientemente o momento de ganhar dinheiro fácil, já que tais instituições
são públicas – e em princípio este é mesmo o melhor status possível para elas – o Estado banca a
preservação do patrimônio, entendido ainda por muitos como simples produtos, sem ônus direto
aos seus produtores.
O caráter conservador que adquiriram certos projetos de cinematecas, e mesmo aqueles bastante
progressistas, como o de Paulo Emilio, se deve em larga medida a essa incerteza de possibilidade
de realização diante de ameaças de a indústria deixar ou não que o Estado prestasse-lhes esse
favor. Assim uma rede “subversiva” de cineclubes de distribuição, ou coisa parecida, como
199
substituta daquela “tradicional” comercial, deveria ser descartada, pois estariam as cinematecas
exercendo uma ação paralela ao comercio cinematográfico, causando atritos sérios com a indústria,
e correndo o risco de perder a colaboração harmoniosa entre a indústria e as cinematecas. Segundo
o crítico, tal relação só era possível porque é totalmente diversa a natureza da indústria e a das
cinematecas
304
. Infelizmente as coisas mudaram um pouco.
A segunda opção levantada no supracitado seminário da Retrospectiva do Cinema Americano no
Rio de Janeiro era a de discutir o financiamento das cinematecas pela via do mecenato artístico. Ela
foi igualmente descartada com argumentos de que tal fenômeno era recente no Brasil, e que ele se
exercia unicamente no campo das artes tradicionais. E mesmo na hipótese, considerada por Paulo
Emilio como “milagrosa”, do aparecimento de um mecenas para a arte cinematográfica eles não
deveriam nutrir ilusões, “pois a debilidade dos quadros capitalistas brasileiros não lhes permitiria, a
não ser de forma complementar, assumir a responsabilidade pelas gigantescas somas exigidas por
uma cinemateca
305
”.
No entanto, a questão era mais complexa. Esses mecenas (Matarazzo, Chateaubriant, etc.) não só
apareceram – talvez não na sua forma ideal – como souberam tirar bom proveito daquele que seria
escolhido no supracitado seminário do Rio de Janeiro como o único possível financiador para as
atividades de uma cinemateca: o Estado. O MAM recebia recursos públicos e as Bienais também.
O lucro desses mecenas se deram pela conquista de capital simbólico, e de forma mais direta com o
mercado de arte.
Mas, se era difícil esclarecer aos homens da indústria e muitas vezes os produtores de maneira
geral sobre o papel das cinematecas, etc., não seria exagero dizer que a mesma tarefa quando tinha
como objetivo os políticos (acerca do interesse público da coisa) era ainda mais difícil. Eram os
poderes públicos os únicos financiadores possíveis para uma cinemateca. Não só possível como
ideal, pois públicos. Era preciso ter apoio – ainda que pequeno – dos três níveis dos poderes
304
GOMES, P.E.S.
Cultura e custo
(30ago58). In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1. P.399.
200
(municipal; estadual e federal) em razão da lentidão com que os políticos tomavam consciência do
problema das cinematecas.
Todavia, para Paulo Emilio, seria um convênio decenal com o governo federal que garantiria a
existência da Cinemateca Brasileira de fato. Por sua vez, se era complicado fazer entender à
maioria dos políticos a importância em apoiar um projeto relativamente caro como o de uma
cinemateca, a saída era exibir-se, trabalhar muito, e ter muita paciência. Segundo o crítico, “a
experiência demonstra (…) que em geral a incompreensão não é ditada pela burrice ou pela má fé,
mas unicamente por um insuficiente exercício do pensamento e da imaginação nas direções
adequadas
306
”.
O problema da incompreensão, do desinteresse, descaso, ou fosse lá o que fosse, era mais grave do
que pode parecer. Como vimos, depois do “espetacular” incêndio de janeiro de 1957, choveram
promessas de ajuda por parte dos poderes públicos, mas pouco se efetivou de fato. Toda a papelada
de convênios ou ajudas emergenciais para a Cinemateca Brasileira acabava por se perder nas
câmaras ou no congresso agitados que estavam pelos acontecimentos políticos, e por interesses
bem mais interessantes do que uma cinemateca; algo que parecia com brinquedoteca, pinacoteca,
ou outra “teca” dessas da vida moderna. Não é exagero: a papelada em favor da instituição
desaparecia mesmo na burocracia. Paulo Emilio comenta um episódio desses envolvendo o
Governo do Estado de São Paulo: “(…) inicialmente o ofício circulou um pouco, mas depois
aparentemente se extraviou e dele não mais se ouviu falar oficialmente. Oficiosamente, deu-se a
entender à Cinemateca que não deveria contar com o apoio estadual durante o corrente
exercício
307
”.
Como vimos também, foi da prefeitura de São Paulo que veio a melhor solução. A lei 4.854 de
1955, mas que só entrou em funcionamento em janeiro de 1957, cujos recursos eram sustentados
305
GOMES, P.E.S. Ibidem. P.400.
306
GOMES, P.E.S. Ibidem. P.401
307
GOMES, P.E.S.
A cinemateca e os poderes
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.1. P.150.
201
em princípio por um adicional de renda (embutido no preço dos ingressos de cinema), previa em
um de seus artigos (Art. 15) o estabelecimento de convênios entre a prefeitura e instituições que se
dedicassem à conservação de filmes, e também para aquelas que montassem seminários ou cursos
de cinema. Mas mesmo essa lei não teve uma execução normal. A soma advinda do convênio
firmado pela Cinemateca com a prefeitura seria suficiente para lançar “bases sólidas que
assegurariam a continuidade do trabalho da instituição”. Não foi o que ocorreu, mas foram as
somas muitas vezes simbólicas recebidas da municipalidade que garantiram a vida da Cinemateca,
juntamente como outras advindas ainda do Museu de Arte Moderna de São Paulo, do qual a
Cinemateca em princípio havia se separado em 1956.
Era o Museu que garantia o restante da verba para a Cinemateca não fechar suas portas, já que o
recebimento de verbas da prefeitura era muito irregular. E isso mesmo após a separação oficial
entre ambos. Uma situação no mínimo incomum, que Paulo Emilio certeiramente classifica de
anormal.
308
Tal anormalidade se refletia no direcionamento das atividades da Cinemateca que tinha
ainda, em função de recursos recebidos, responsabilidades para com o Museu. Uma espécie de
servidão, mas que era naquela altura dos acontecimentos a única forma de garantir a sobrevida da
instituição. A verba garantia a manutenção do pequeno quadro de funcionários permanentes e
permitia que os filmes tivessem alguns cuidados básicos, sumários, como a revisão simples nas
mesas enroladeiras, “sendo possível pelo menos acompanhar a marcha de sua decomposição, de
modo que ao surgirem às possibilidades reais de preservação o trabalho possa ser feito segundo um
critério seguro de prioridade
309
”.
A instituição contava ainda com alguns trocados advindos de campanhas realizadas com cineclubes
e entidades culturais que lhe permitia – como já afirmamos – manter um acervo de difusão. O que
nas palavras de Paulo Emilio ao menos dava esperança de contar com um futuro melhor por meio
da ação pedagógica realizada pela Cinemateca, pelos cineclubes, e por outras entidades culturais. É
308
GOMES, P.E.S. Ibidem. P.151.
202
apenas dessa ótica, de extrema dificuldade de manutenção de uma instituição cara, que as ações de
difusão da Cinemateca Brasileira devem ser vistas como um esforço de se fazer entender e
compreender.
Encontramos exemplos dessa política de difusão aos borbotões nos vinte primeiros anos de vida da
Cinemateca Brasileira. Em um desses eventos, um festival em homenagem ao cineasta René Clair,
inserido no quadro das comemorações do aniversário de Brasília em 1961, Paulo Emilio deixa
claro que as ações de difusão não eram simplesmente um meio de angariar recursos. Mesmo
quando existiam esses intuitos mais claramente expressos – como nesse exemplo bastante evidente
de Brasília, já que na época a Cinemateca acompanhava a tramitação de um convênio com a União
na Câmara dos Deputados – nunca foi deixado de lado o sentido político/ pedagógico de tais
eventos.
Paulo Emilio esclarece no artigo em que trata desse evento em Brasília que, em um primeiro
momento, o Festival René Clair parecia um evento qualquer de cinema, mas por outro lado, a
demanda por iniciativas deste tipo, somada a realização do festival abria perspectivas não só para
consolidação da Cinemateca - já que o festival estimulou a criação de um Centro de Estudo
Cinematográfico na cidade-, mas também para um projeto pedagógico de amplitude muito maior.
As perspectivas que o crítico via se desenharem nos horizontes da nova capital levaram-nos a
exclamar que “o esquema educacional previsto para Brasília tornará possível, finalmente, a única
ação realmente decisiva com a qual sonham os responsáveis pelas cinematecas: vencer o
analfabetismo cinematográfico no mesmo terreno, a escola, em que o outro está sendo vencido
310
”.
309
GOMES, P.E.S. Ibidem. Grifo nosso. P.152.
203
Convênios com o Estado, com a União e a criação da SAC
É nesse contexto que começam a chegar os depósitos de filmes referentes à Lei do Adicional. A lei
era municipal e quem fazia formalmente os depósitos era a Prefeitura de São Paulo. Em 1960,
foram depositados por estas vias 81 filmes. E com algum recurso em caixa foram feitos contratipos
de alguns desses filmes e também de outros: Fragmentos de Vida (de José Medina), Simão, O
caolho e O Canto do Mar (de Cavalcanti), e O Saci (de Rodolfo Nani). Além disso, a Cinemateca
preocupava-se com o destino da produção contemporânea do cinema brasileiro, ainda longe de sua
guarda, e por isso procedia verificações do estado dos negativos da Vera Cruz e da Maristela. Mas
os recursos não eram suficientes para proceder de fato o trabalho de um arquivo de cinema. A
revisão do acervo era só a primeira e mais elementar tarefa de uma instituição desse tipo
311
.
A instituição continuava a investir pesado na difusão, pois este era ainda um excelente meio de
obtenção de recursos. E fazia tais apostas de forma muito conseqüente com as Retrospectivas de
Cinema Brasileiro realizadas ainda em 1960, no Uruguai e na Argentina (mostras que contaram
com exposições de fotografias e cartazes). A Cinemateca já havia se tornado uma referência
mundial em pesquisa sobre cinema, e ainda que poucos, alguns estrangeiros procuravam a
instituição para suas pesquisas.
No ano seguinte (1961), a Cinemateca tentava estabelecer acordos com congêneres ligadas à FIAF
de modo a proceder a contratipagem de cópias raras de seu acervo e que corriam risco de perda
completa. Era um procedimento comum na FIAF: os arquivos mais ricos na medida de suas
possibilidades prestavam este tipo de serviço aos mais pobres. Também nesse período, a instituição
elaborou o projeto para a construção de um BlockHaus (depósito climatizado) na Cidade
Universitária da USP em São Paulo, com base nas experiências européias e norte-americanas. A
Cinemateca tentava voltar aos trabalhos de prospecção de filmes e outros materiais aproveitando as
310
GOMES, P.E.S.
Abril em Brasília (06MAI61)
. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.2. P.344.
204
viagens de funcionários da instituição em atividades de difusão pelo interior do país. E ao mesmo
tempo em que esperava o desfecho das negociações em torno do convênio com o Governo do
Estado, Paulo Emilio era eleito vice-presidente da FIAF.
O Convênio assinado entre a Fundação Cinemateca Brasileira e o Governo do Estado de São Paulo
– do então Governador Carlos Alberto A. de Carvalho Pinto – em 17 de março de 1961 parecia um
sonho. As cláusulas desse documento resumem de maneira bastante sintética todo o projeto da
Cinemateca Brasileira. Não seria de modo algum, sacrifício nenhum à Fundação Cinemateca se
comprometer “a construir diretamente, ou em acordo com a Secretaria de Viação e Obras Públicas,
blockhaus ou vaults para a conservação de filmes, equipados com o equipamento adequado
312
” ou
ainda a cumprir todos as outras 21 cláusulas do documento, que tratavam da prospecção de filmes
por todo o território nacional, da “obrigação” de preservar o acervo que assim estabelecesse, de
promover entendimentos com a FIAF da qual já era, há muito tempo, membro efetivo, e com as
Cinematecas estrangeiras, de contratipar filmes nacionais de cópia única.
Sabemos que a Cinemateca Brasileira queria muito mais do que isso: manter uma biblioteca
especializada, fototeca e um arquivo de documentação à disposição do público, promover a difusão
de seu acervo a uma grande diversidade de entidades culturais públicas, sobretudo, e também
privadas, bem como conferências, seminários, editar publicações, catálogos, programas, textos
informativos, etc. etc. De qualquer maneira, o convênio era tudo o que a Fundação Cinemateca
Brasileira mais queria. A verba era bem razoável: CR$ 8.000.000.00 anuais por dez anos.
O convênio, contudo, tinha 23 cláusulas, resta então a pergunta: e quanto às outras duas? Essas sim
apresentavam dificuldades enormes para o cumprimento por parte da diretoria da Cinemateca. São
elas a 15ª cláusula: “A Fundação Cinemateca Brasileira se compromete, no caso de não serem
suficientes os recursos concedidos pelo Governo do Estado, por força deste convênio, a diligenciar
311
AHCB/ Cinemateca Brasileira. Relatórios anuais (1959/60).
205
acordos do mesmo tipo com a União e com o Município, para dar maior expansão às atividades
culturais cinematográficas
313
”. E também a 23ª: “O Presente convênio poderá ser denunciado por
qualquer das partes em caso de inadimplemento de seus termos pelo outro conveniente ou pela
ocorrência de fatos ou motivos que venham impedir sua manutenção em vigor
314
”.
O texto, que começou a ser desenhado na gestão de Jânio Quadros, terminou por virar letra morta
com Adhemar de Barros. A verba no papel, como dissemos, era bem efetiva, mas, na prática não
foi. No entanto, a significado da assinatura deste convênio no panorama das políticas públicas de
preservação do patrimônio histórico e artístico brasileiro é muito grande.
E contudo, quando analisamos o que se passou no âmbito federal, na tentativa de se fazer votar um
projeto de lei que autorizaria a União a estabelecer um convênio com a Cinemateca Brasileira, que
podemos entender melhor uma das maiores dificuldades de fundo enfrentada pelo arquivo de
filmes paulistano nas tentativas que empreendeu de estabelecer convênios com os poderes públicos
brasileiros: cisões político/ ideológicas. Começamos pela orientação política e econômica do
governo que cobrem o período por nós abordado (1956-1963): o de Juscelino Kubitschek, que será
o mote para nossa análise
315
.
A característica principal da economia brasileira no período, como bem sabemos, é a consolidação
de um projeto de industrialização que privilegiava a indústria pesada, principalmente a
automobilística, sendo também essa industrialização impulsionada pela criação de novas
siderurgias e pela indústria de construção naval. O governo de Kubitschek é considerado um
governo de estabilidade política e de desenvolvimento econômico acelerado. “Para a década de
312
Cláusula primeira do referido convênio com o Governo do Estado de São Paulo. In: Cadernos da cinemateca nº3. A
cargo de Cecília Thompson
“Cinemateca brasileira e seus problemas: textos e documentação”.
São Paulo: Fundação
Cinemateca brasileira, 1964, P.53.
313
Ibidem, P.54. Grifo nosso.
314
Ibidem, P.55.
315
As etapas do processo político brasileiro que viram em seguida, nos governos de Jânio Quadros e João Goulart
também seriam decisivas para a vida da Cinemateca Brasileira, queremos contudo compreender o que se passava na
origem do problema oriundo da separação da Filmoteca do Museu de Arte Moderna e da conseqüente necessidade de
sólidas bases financeiras para o projeto da cinemateca, que como já apontamos, só poderiam vir do Estado. E a origem
desse problema passa pela análise da política adotada pelo governo de Kubitschek.
206
1950 o crescimento per capita efetivo do Brasil foi, aproximadamente, três vezes maior que o resto
da América Latina
316
”.
O que nos interessa saber aqui é como esse governo conseguiu essa estabilidade e esse
desenvolvimento econômico, e em que medida afetou as políticas de ação cultural como a da
Cinemateca. Afetou na medida em que as prioridades do governo de Kubitschek (que eram bem
outras em relação aos princípios do projeto da Cinemateca Brasileira) foram perseguidas e
efetuadas com muita propriedade e determinação: É bom já salientar, como fez José Inácio, que o
planejamento econômico do período incluía um austero controle das contas e cortes do que se
considerava supérfluo, e que a idéia do Estado financiar uma cinemateca deveria soar de forma
estranha no meio de tantos pedidos ao Congresso de Santas Casas, rodovias, etc.
317
Na conjuntura, um dos meios do qual o governo lançou mão para lograr seus planos e atingir a
estabilidade política foi o que Maria Benevides chamou de Administração Paralela. Estavam sob a
responsabilidade da Presidência, além dos 11 ministérios e do Conselho de Segurança Nacional
inúmeros órgãos e entidades, o que contribuiu para o congestionamento da Presidência, espécie de
filtro do executivo que estabelecia uma barreira deste poder em relação aos projetos aprovados no
Congresso. Outros dois pontos que devem ser aqui destacados no que concerne a estes aspectos do
quadro político/ econômico do período, e que são fundamentais para entender essa conjuntura do
ponto de vista que estamos tentando tratar, são os papeis desempenhados pela inflação e pelo
capital estrangeiro, subterfúgios indispensáveis na ocasião não apenas para o cumprimento das
metas de JK, mas também para um pressuposto disto: a estabilidade política
318
.
A inflação era um
temido inimigo da Cinemateca no que diz respeito ao dinheiro público que a instituição tinha
acesso, pois era pouco e chegava sempre com grande atraso.
316
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita.
O Governo Kubitschek: Desenvolvimento econômico e estabilidade
política 1956-1961
. Rio de Janeiro, Paz e terra, 1976, P.204.
317
SOUZA, José Inácio. Paulo Emilio no paraíso. São Paulo: Editora Record, 2002, p.389.
318
Ibidem, P.234. grifo nosso.
207
Todavia, as cisões políticas continuavam a influir, e muito, nos destinos da Cinemateca. Vamos
então, a uma rápida análise do texto do projeto de lei n º 4.603/62. Como os outros anteriores, tudo
estava plenamente de acordo com o projeto da Fundação Cinemateca Brasileira. O convênio seria
decenal e preveria a total aplicação dos recursos “sobre as atividades a serem desenvolvidas pela
Cinemateca Brasileira, no sentido de preservar e ampliar o seu acervo e utilizá-lo para fins
educativos e culturais
319
”. Era tudo o que os diretores da Cinemateca queriam.
Tal projeto de lei, se tivesse sido aprovado teria sido, de fato, o sustentáculo da instituição paulista.
Além dos CR$ 50.000.000.00 (cinqüenta milhões de cruzeiros) anuais de subvenção mínima, a
Fundação Cinemateca Brasileira poderia gozar de uma grande série de isenções tributárias e
alfandegárias, tais como tributos para filmes impressos “desde que encaminhados por governos
estrangeiros, entidades congêneres ou associações de produtores cinematográficos (...) para a
importação de materiais e filmes virgens, destinados à preservação e difusão cultural
cinematográfica
320
”. E ainda no final dizia, em parágrafo único, “dotação destinada ao
cumprimento deste artigo que poderá ser reajustada, tendo em vista as necessidades da Fundação
Cinemateca Brasileira e em decorrência dos adiamentos que forem feitos ao convênio original
321
”.
Ora, sabemos que antes disso outro projeto de lei, o 711/59 patrocinado pelo vice-presidente da
Câmara dos Deputados, Sérgio Magalhães, ficou rodando nas comissões do Congresso por três
anos. De uma comissão para a outra, o projeto sofria emendas que o obrigavam a voltar ao ponto
de partida, perdendo-se muitas vezes nestes caminhos. Com telefones ainda bastante precários
ficava difícil aos diretores da Cinemateca acompanhar passo a passo o projeto na tentativa de
ajudá-lo a caminhar. Assim o gasto de energia por parte da diretoria da cinemateca enorme. E
quando finalmente o projeto foi votado na câmara, o então líder da maioria deputado pelo Partido
319
Texto do Projeto de Lei Nº 4.603/62. In: Cadernos da cinemateca nº3. A cargo de Cecília Thompson
“Cinemateca
brasileira e seus problemas: textos e documentação”.
São Paulo: Fundação Cinemateca brasileira, 1964, P.56.
320
Ibidem, P.56.
321
Idem.
208
Social Democrático – PSD, Martins Rodrigues vetou o texto de forma aparentemente inexplicável.
Paulo Emilio comentou o episódio em carta para Almeida Salles: era
a primeira vez desde de
1946, que um projeto que chega ao plenário aprovado por todas as comissões é rejeitado. Martins
Rodrigues enganou inclusive os outros líderes. Tomou essa iniciativa quando viu que o projeto
havia sido apresentado por Sérgio Magalhães. Você imagina o nosso estado de espírito
322
”.
Segundo José Inácio, uma futrica parlamentar tinha paralisado a Cinemateca. Mas a coisa toda era
mais seria. O posicionamento ideológico é que, no final das contas, definiu a questão. Rudá de
Andrade comentou: “O Paulo Emílio não era muito bem visto em Brasília...por ser comunista!” Se
já havia desconfiança política em relação a Paulo Emilio por parte do próprio diretor do MAM,
Ciccilo Matarazzo, imaginemos então em Brasília. Em outra passagem de sua biografia de Paulo
Emilio Sales Gomes, José Inácio comenta um fato que ajuda a esclarecer esta situação. A maior
parte do grupo de jovens da Cinemateca era ligado ao PCB, e militavam tanto no campo da cultura
quanto no sindical:
No início da década de 60, participaram das atividades do Centro Popular de Cultura –
CPC de São Paulo junto aos trabalhadores da construção civil ou então com a UNE-
Volante, que circulava pelo interior de São Paulo com espetáculos de teatro e cinema em
cima de um caminhão. Rudá e Capô levavam para os operários filmes da Cinemateca,
como
Outubro
de Eisenstein, por exemplo (...) Paulo Emilio não se imiscuía nas atividades
políticas do corpo de funcionários, sabia o que se passava, mas pedia para que o nome da
Cinemateca ficasse de fora, embora Rudá confesse que o PCB considerasse a entidade um
aparelho do partido
323
.
Estamos longe de querer condenar qualquer ato desse grupo de funcionários da Cinemateca. Mas o
fato é que as divergências políticas ficavam assim mais facilmente delimitadas, e para os ilustres
deputados que não sabiam o que era uma Cinemateca, - e muitas não estavam “nem ai” para saber
- era mais fácil mesmo era condenar e vetar essa “coisa de comunista”.
Além disso, a lentidão da burocracia da Universidade de São Paulo adiava os planos das
construções na Cidade Universitária enquanto a inflação corroia rapidamente os recursos que a
322
APUD: SOUZA, José Inácio.
Paulo Emilio no paraíso
. São Paulo: Editora Record, 2002, p.389.
209
Cinemateca havia conseguido para as obras que dotariam a instituição de um coração, um depósito
climatizado de matrizes. Os relatórios expressam medo pelas más condições de guarda do acervo
(com 90% de umidade relativa do ar em muitas medições). Mas mesmo assim, a Cinemateca
conseguiu restaurar e contratipar o que havia restado do Ciclo do Recife (mais ou menos 12
filmes). A revisão continuava, e nesse ano (1962) foram revistos 3412 rolos de filmes. No entanto,
a Cinemateca era obrigada a destruir muito material em função de seu estado de avançada e
irreversível decomposição, e para desespero dos conservadores da Cinemateca, esse material
incluía muitos filmes brasileiros dos anos 30, por exemplo. Segundo Paulo Emilio, se fosse juntado
tudo o que foi destruído deliberadamente pela instituição por condenação total do material, a
metragem ultrapassaria facilmente o que foi destruído no incêndio de 1957
324
. A prospecção se
tornava novamente ocasional, até porque de nada adiantaria acumular filmes sem condições de
conservá-los
325
.
Sem recursos financeiros, era preciso procurar outras saídas. Não por acaso, o crítico anunciava a
necessidade da criação de uma sociedade de amigos para a cinemateca como uma maneira de
suprir a falta de sustento financeiro para a instituição, uma vez que até o seu “derradeiro ponto de
apóio”, isto é o Museu de Arte Moderna de São Paulo já começava a faltar-lhe. A criação de
sociedade de amigos como a Sociedade de Amigos da Cinemateca, em 1962, representou por um
lado, como bem notou Paulo Emilio na época, a conclusão de um processo em curso há vários anos
em todo o mundo, qual seja aquele que levou ao “entendimento gradual entre aqueles para quem
cinema é agir nos quadros da indústria e do comércio, e os que procuram na atividade
323
SOUZA, José Inácio.
Paulo Emilio no paraíso
. São Paulo: Editora Record, 2002, p.389.grifo do autor.
324
GOMES, P.E.S. Depoimento à Alain Fresnot para o filme Nitrato. Arquivo Lucila Ribeiro Bernardet/ Cinemateca
Brasileira. ALRB/ PIT.
325
Não bastassem esses problemas, a Cinemateca perdia figuras importantes de seus quadros, como Almeida Salles
(convidado para ser Adido Cultural na Embaixada Brasileira em Paris) e Lourival Gomes Machado (convidado para
chefiar um departamento cultural da Unesco). Se, por um lado estas saídas significavam posições estratégicas de
pessoas ligadas à Cinemateca, por outro significavam a perda de mão-de-obra qualificada diretamente ligada à vida da
instituição desde seu início. No lugar de Almeida Salles e Gomes Machado, chegaram para ajudar Antonio Candido e
Álvaro Bittencourt. AHCB. Relatórios Anuais, 1962.
210
cinematográfica a canalização de preocupações educacionais e artísticas
326
”. Mas existe um outro
lado da moeda que diz respeito à natureza do documento cinematográfico.
Em favor de tal processo Paulo Emilio argumenta que de início o único setor do campo
cinematográfico que se mostrou solidário à criação e às atividades das cinematecas foi aquele dos
realizadores, o que o crítico chamou de “elementos criadores”; entendemos aí além de diretores,
roteiristas e técnicos, atores, atrizes. Paulo Emilio lembra que foi longo e desgastante o
desentendimento entre nos altos escalões da produção (sobretudo das majores) e de distribuição, e
aqueles interessados em utilizar os filmes com fins culturais, em cinematecas, cineclubes, etc. Mas,
eis que surge o outro lado desta moeda. Já tivemos a oportunidade de discutir esse problema, mas
não é demais repetir algo que nos parece fundamental:
O tempo que os interessados na criação das cinematecas demoraram a convencer a indústria
cinematográfica, que as atividades de uma instituição deste tipo não prejudicaria em nada o
escoamento de novas safras de produção, e que também elas (as cinematecas) preservariam os
detentores dos direitos legais dos filmes foi o tempo que a indústria levou para perceber que as
atividades das cinematecas não só não lhes seria inconveniente do ponto de vista comercial, muito
pelo contrário. Seus lucros não seriam diminuídos, e sim tinham a possibilidade de serem
aumentados.
É verdade que, do ponto de vista da indústria, existiam ainda questões ligadas à crítica que
precisavam ser combatidas, pois
(…) os fabricantes e comerciantes olhavam com desconfiança
para a diferença de critérios na apreciação dos filmes recentes. A indústria, com efeito, agrupava
seus produtos segundo uma hierarquia que com maior ou menor freqüência não era aceita pelos
que procuravam interpretar e utilizar o cinema como fenômeno cultural
327
”. Mas, esse problema
embora importante, era secundário, e já veremos porque. Paulo Emilio chama atenção para um
aspecto particular, não só do Brasil, mas que aqui se dava. A indústria cinematográfica no Brasil
326
GOMES, P.E.S.
Amigos da Cinemateca
(14JUL62). In: GOMES, P.E.S. Op. Cit.
V.2. P.422.
211
“quase não entra em linha de conta”, e nessa situação era com um outro ramo do comércio
cinematográfico que os interessados em cinematecas, cineclubes etc. teriam que se haver: a ramo
da distribuição e o da exibição.
O desenrolar dos fatos no Brasil foi o mesmo daquele ocorrido no resto do mundo. Enquanto foi
pequeno o número de interessados na coisa, sem problemas, a partir do momento em “que o
movimento se ampliava começavam a se manifestar reticências quando não obstáculos difíceis de
serem transpostos”. E por mais que o crítico pondere, argumentando que “os tempos porém
estavam amadurecendo e nada impedia a extensão do espírito cultural cinematográfico a setores
cada vez mais amplos da comunidade
328
”, não concordamos, e repetimos nossa opinião já expressa
aqui: as coisas só iriam piorar. Todavia, a posição do crítico é fácil de ser entendida.
Paulo Emilio tinha que agir de acordo com a conjuntura em que ele próprio estava inserido. E o
que pode parecer conservador, como já afirmamos, nada mais é do que bom senso, e realismo do
crítico diante do mundo. Assim, alguns aspectos desse debate defendidos e elogiados por ele não
devem significar necessariamente que essa era a situação ideal imaginada por ele. Pois se de um
lado era importante que os homens da indústria não fossem hostis para com as cinematecas - e que
pelo contrário possam colaborar com elas -, por outro, o processo que levou a predação de uma
cinefilia autêntica e desinteressada (no que tange a lucros ou coisas do tipo) começou exatamente a
partir dos entendimentos com a indústria. Não havia outro caminho. Os benefícios existem, e isso é
muito claro, mas o que tivemos fundamentalmente (quando olhamos o processo
retrospectivamente) foi o início de uma grande diversificação do mercado O crítico, sempre
cauteloso, argumenta que esta “diversificação” ajudou a quebrar a uniformidade dos produtos e dos
consumidores e ajudou a elevar o nível do cinema de modo geral
329
. No entanto, a mercantilização
dos clássicos em nossos dias coloca em xeque este tipo de afirmação.
327
GOMES, P.E.S. Ibidem. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V. P.422
328
GOMES, P.E.S. Ibidem. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V. P.423.
329
GOMES, P.E.S. Ibidem. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V. P.423.
212
Era preciso fazer concessões por várias razões, mas justiça seja feita, os resultados do outro lado da
balança também foram muito positivos. A tal diversificação do mercado ocorria não apenas por
uma proliferação de filmes médios (decorrentes do aumento da capacidade de produção da
indústria) ou mesmo de porcarias. Ela ocorria também em função da eclosão de diversos
movimentos cinematográficos pelo mundo da maior importância para a história do cinema, o
cinema de autor, os cinemas novos. Movimentos que, como sabemos, contaram com uma
colaboração decisiva das cinematecas no que toca à formação história e crítica de seus realizadores,
técnicos, atores e atrizes. A moeda, como afirmamos, tinha mesmo duas faces quase opostas.
No mais, sempre esteve presente no caso de Paulo Emilio, também no que toca ao entendimento de
qual seria o tipo de acordo os homens do comercio cinematográfico, e da indústria em geral, um
pensamento pedagógico muito vivo e dinâmico. A criação da Sociedade de Amigos da Cinemateca
era, infelizmente, uma necessidade inescapável. A Cinemateca Brasileira continuava a nadar contra
a corrente, por mais absurda que possa parecer essa idéia. “Nessas condições a extensão do
movimento de cultura cinematográfica funciona como um instrumento muito vivo de
diversificação e de recrutamento da parcela mais ou menos homogênea de espectadores que tornará
possível a apresentação no Brasil dos filmes, emmero cada vez maior, considerados difíceis e
que os comerciantes hesitam em importar
330
”.
Àquela altura dos acontecimentos, eram mais de 127 as entidades favorecidas pela Cinemateca por
meio da cessão de filmes, documentação, realização de cursos, palestras, etc. Além disso, 86 filmes
de seu catálogo circulavam completamente de graça, cabendo ao destinatário somente o custo com
o transporte do material. Eram clássicos, filmes brasileiros de ficção e documentários, filmes
experimentais de vanguarda, da escola documentarista britânica, filmes de animação, filmes sobre
arte, filmes para crianças, etc. Grandes e importantes festivais foram realizados pela Cinemateca e
pela SAC nesse período, como o Festival de Cinema Russo/ Soviético (nos quadros da VI Bienal
330
GOMES, P.E.S. Ibidem. In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V. P.424.
213
de São Paulo, 1961) que contou com a presença de uma delegação da URSS vinda de Moscou
especialmente para acompanhar o festival. Outros foram realizados em homenagem ao cinema
japonês, britânico, francês, alem de uma mostra especial sobre Humberto Mauro, e muitos outros
eram planejados.
É importante ressaltar que esses programas, depois de finalizados em São Paulo seguiam para
outras cidades como Santos, Belo Horizonte, Curitiba e Porto Alegre. Além disso, era intenso
também o trabalho de difusão oral (por meio de conferências, cursos e palestras), acompanhadas
muitas vezes de exposições, e de difusão escrita, onde os melhores exemplos da época são os três
Cadernos da Cinemateca editados em 1961 (Cronologia da Cultural Cinematográfica no Brasil a
cargo de Rudá de Andrade), 1962 (Cinema e Infância – uma excelente bibliografia comentada
sobre o tema feita pela Srª Ilka Brunilde Gallo Laurito) e 1963 (Cinemateca Brasileiras e seus
problemas, organizado por Cecília Thompson constituindo-se em um documento de síntese da
experiência da Cinemateca Brasileira, de suas origens até o ano de sua publicação). Além disso,
estavam nos plano de trabalho da Cinemateca para 1963 a continuação dessas publicações com um
número especial sobre cineclubismo, e um livro sobre iniciação cinematográfica para a infância.
Talvez seja possível quando for iniciado um trabalho mais regular de organização do arquivo
histórico da Cinemateca localizar alguma material referente a estas que seriam importantes
contribuições editoriais.
Contudo, a Cinemateca não poderia viver de planos. Ela precisava de dinheiro público e esse
dinheiro não chegou como e quando a instituição precisava. Ao invés do dinheiro, veio o Golpe
Militar de 1964 que entravou de vez o projeto essencialmente democrático da instituição. Em texto
anexo ao relatório anual de 1962, intitulado Miséria e Importância, um amargo Paulo Emilio
ressalta que o público da Cinemateca era a classe média culta brasileira, pois a Fundação
Cinemateca Brasileira “nunca dispôs de recursos para empreender uma ação social mais ampla”.
214
Sem dinheiro, a Cinemateca não poderia mesmo manter muito perto um grande número de
colaboradores, que se viravam como podiam para garantir a sobrevivência, muitas vezes em
projetos de igual ou maior envergadura (caso por exemplo de Paulo Emilio e Jean-Claude
Bernardet com a UNB). Além de falta de dinheiro, a produção em ascensão do Cinema Novo
afastou do cotidiano da instituição alguns de seus melhores colaboradores. Lucila Ribeiro
Bernardet que, em 1965, também teria uma passagem por Brasília como assistente de Paulo
Emilio no curso de cinema da UNB, foi a última a permanecer em pé diante do trabalho titânico a
ser feito na instituição que definhava sem dinheiro e, o que é pior, incompreendida e rejeitada por
uma conjuntura que se tornava cada vez pior e mais sombria. Lucila tinha claramente em mente um
projeto de cinemateca a desenvolver. Prova disto foi o seminário que ela organizou com os jovens
cineclubistas que freqüentavam e trabalhavam na instituição sobre o tema: cinemateca
331
.
Os objetivos do seminário eram a reflexão teórica sobre a prática da instituição, diretrizes
executivas, entrosamento da equipe, e a passagem do amadorismo à profissionalização, o que pode,
mas não deve ser necessariamente confundido com o que Raymond Borde chamou de a passagem
da subjetividade para a objetividade técnica. Já argumentamos longamente que, se o conceito de
Cinemateca é em primeira instância técnico, em última ele é político. Lucila sabia muito bem disso,
quando argumenta que a Cinemateca tinha “um papel importante a cumprir no sentido político-
ideológico”, e que “manter uma cinemateca debilitada é fazer o jogo da reação e criar
possibilidades de criação de algum órgão de arquivamento estatal reacionário e não colaborar em
nada para a retomada do processo democrático
332
”.
Com base nisso, Lucila refletia bastante sobre uma mudança de diretrizes para a instituição, que
recusasse o Estado, o mecenato, e mesmo os modelo técnicos de cinematecas estrangeiras mais
abastadas, uma vez que a congênere brasileira não tinha recursos para seguir tais padrões. Os
331
Arquivo Lucila Ribeiro Bernardet/ Cinemateca Brasileira.
Esboço do programa de seminário sobre a Fundação
Cinemateca Brasileira. ALRB/ PI.
332
Arquivo Lucila Ribeiro Bernardet/ Cinemateca Brasileira.
Proposta de trabalho para a Cinemateca
. ALRB/ PI.
215
objetivos com essas mudanças era o de criar uma imagem da instituição, sólida e séria, não mais
por meio da difusão, e sim da preservação do patrimônio. Segundo Lucila, não se poderia bater o
prego sem estopa, e era preciso fazer as coisas “lentamente, seguramente e solidamente; fazer em
função da demanda”. Constatações importantes e louváveis, que necessitavam mais do que lucidez,
era preciso promover uma profissão de fé, pois, como a própria Lucila considera, os problemas
eram quase que inultrapassáveis: instabilidade do trabalho, falta de apoio dos poderes públicos,
situação financeira péssima, inexistência de profissionalização, falta de sede própria, desvinculação
de outras entidades culturais, etc.
Estranhamos, contudo, um certo ressentimento quanto ao passado da instituição considerado
desastroso por Lucila. Entendemos a questão como um amadurecimento natural sobre o que se
pensava a respeito das possibilidades de existência ou não de uma Cinemateca no Brasil. Demanda
pelos serviços de uma instituição desse tipo sabemos que nunca faltou, e se a busca de recursos
públicos ou via mecenato fracassou, não concordamos com Lucila ao condenar tal tipo de esforço
que formou (bem) uma geração inteira de cinéfilos, críticos e cineastas. As reflexões de Lucila
sobre o âmbito técnico e profissional para a Cinemateca foram louváveis, mas ela não foi a única a
pensar nisso. No mais, as dificuldades enfrentadas pela instituição, no que para Lucila foi um
passado desastroso, ultrapassavam e muito o âmbito pessoal daqueles que o construíram.
Se o primeiro Golpe Militar (em 1964), como tão bem analisou Roberto Schwarz, não foi
suficiente para desarticular totalmente a presença cultural da esquerda na conjuntura, ocorrendo ao
invés disto uma relativa hegemonia desta no panorama cultura do país, “quando o estudante e o
público dos melhores filmes, do melhor teatro, da melhor música e dos melhores livros já constitui
massa politicamente perigosa”, o regime não hesitou em “trocar ou censurar os professores, os
escritores, os músicos, os livros, os editores”, liquidando a própria cultura viva
333
. Cultura viva esta
da qual a Cinemateca Brasileira era um dos eixos centrais, sem dúvida, pois seu projeto inicial,
216
como vimos, partia deste tipo de pressuposto.
Depois da derrocada do plano de convênio com a
União e do Golpe dentro do golpe (AI-5), a Cinemateca passou a ser somente um centro de
abastecimento de cineclubes. Tarefa importante realizada naqueles anos tenebrosos da história do
país, mas o projeto de uma Cinemateca de fato estava temporariamente enterrado.
333
SCHWARZ, Roberto.
Cultura e política, 1964-1969
. In: SCHWARZ, Roberto.
O pai de família e outros estudos
.
217
Desfecho
O destino da Cinemateca Brasileira no período tratado aqui, 1952/ 1973 guarda muitas
semelhanças com o da Cinemateca Francesa no mesmo período. A principal delas é a derrota
aparentemente total de seus projetos, pela ausência de recursos para financiá-los. E ainda que isto
tenha ocorrido de maneiras diferentes, pretendemos mostrar que as semelhanças foram muito
maiores que as diferenças.
No Brasil, esses recursos nunca chegaram a existir efetivamente. Inicialmente devido ao fato de
que Cinemateca Brasileira tinha um intermediário que a francesa desconhecia. Lembremos que
Cinemateca Brasileira era originalmente ligada a uma outra instituição o MAM/ SP. Assim,
segundo Almeida Salles, a então Filmoteca do MAM era uma espécie de patinho feio do museu.
“Nós não poderíamos nos expandir porque as verbas que o museu nos destinava eram pequenas.
Artes plásticas consumiam tudo, que era o hobby do Ciccillo”. Com verbas pequenas Salles
argumenta que a Cinemateca não poderia se desenvolver
334
.
Todavia sabemos que a coisa toda não era simplesmente um hobby, pois Ciccillo Matarazzo
encontrou nisso um fabuloso meio de se inserir no lucrativo mercado de artes, principalmente
quando ele se desligou do MAM para se dedicar somente às Bienais (criadas pelo Museu) e que se
tornariam cada vez mais vitrines deste mercado, com grande prejuízo para o aspecto cultural e
pedagógico do projeto (MAM/ Bienais). Traços iniciais e sintomáticos da "etapa final" da
reordenação (espécie de gênese desfecho dessa etapa do processo histórico que nos propomos a
analisar) do que "antes fora um acordo centrado na figura do mecenas conduttore capitão da
indústria nos anos 50” passando a ser agora a “simbiose entre o capital e o ‘cultural’ nas
São Paulo: Paz e Terra, 1992. P.69-70.
334
SALLES, F.L.A. Depoimento à Alain Fresnot para o curta metragem Nitrato P.2. Arquivo Lucila Ribeiro
Bernardet/ Cinemateca Brasileira. ALRB/ PI.
218
sociedades ditas afluentes ou do entertainement dos anos 80 e 90
335
". Quanto à concessão de
verbas públicas, vimos que isto sempre foi uma novela, com uma única diferença: sem happy end.
Não por acaso, em 1960 a I Convenção Nacional da Crítica Cinematográfica se deu logo após uma
grande retrospectiva de cinema italiano realizada pela Cinemateca Brasileira. Essa mostra, com
mais de 150 filmes, é exatamente o tipo de programa que cumpria a função de formação de público
crítico (pois fornecia perspectiva histórica) para as questões da cultura cinematográfica,
inseparável da cultura em geral. No entanto, os problemas da Cinemateca Brasileira - tão
elementares como aqueles enfrentados por Henri Langlois - transcendiam à esfera restrita do
cinema.
Na tese apresentada por Paulo Emilio à convenção (Uma situação colonial?) o crítico afirma a
necessidade de uma análise de conjunto dos problemas sociais do país, que tinham seus reflexos
nas dificuldades enfrentadas pelos profissionais do campo cinematográfico, incluindo aqueles da
cinemateca. A tônica de todas as atividades ligadas ao cinema no Brasil era a mediocridade, e o
primeiro indicativo disso estava no setor da distribuição e da exibição, onde mesmo os que
‘venciam na vida’, participavam, e eram incapazes de violar as regras de um jogo que lhes
escapavam: a dominação do mercado pelo produto estrangeiro
336
.
O enraizamento desse domínio, que já durava décadas, era a causa principal de todo o desarranjo e
alienação presente nos outros segmentos do débil arcabouço do sistema cinematográfico
brasileiro. O público ‘colonizado’ por padrões de produção estrangeiros ‘desde a mais tenra idade’
era incapaz de aperceber-se desse estado de coisas por si só. Produtores e crítica - parte desse
mesmo público - idem. “Em cinema, subdesenvolvimento não é um estágio, mas um estado (…) O
cinema é incapaz de encontrar dentro de si próprio energias que lhe permitam escapar à
condenação do subdesenvolvimento, mesmo quando uma situação particularmente favorável
335
ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE Polyana Lopes.
Bienais em São Paulo: da era dos museus à era dos
curadores. São Paulo: Boitempo, 2004, P.31.
336
GOMES, P.E.S.
Uma situação colonial?
In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.2. P.287.
219
suscita uma expansão na fabricação de filmes
337
”. Assim, as ações das instituições que se
preocupava em difundir cultura cinematográfica por meio de mostras, cursos, palestras,
publicações, etc. eram fundamentais para educar e desfazer as pesadas brumas da alienação deste
processo. No entanto, a falta de apóio financeiro maciço do Estado, limitou estas ações a uma
esfera muito restrita da sociedade:
a verdadeira tarefa educativa impõe a sua extensão, horizontal e vertical, a toda a
comunidade brasileira, através de escolas, bibliotecas, museus, sindicatos, e
órgãos espontâneos de cultura como os clubes de cinema. O cinema é, no nosso
tempo, a única arte democrática e popular; é escandaloso que as oportunidades de
elevar o nível de apreciação estejam exclusivamente reservadas a uma minoria
geográfica e cultural da comunidade brasileira. As cinemateca têm a desculpa de
precisarem conciliar o trabalho cultural de difusão com os problemas de
manutenção, enquanto não entrarem em vigor os acordos previstos com os poderes
públicos. Essa explicação revela por si só até que ponto ainda não obteve
reconhecimento a função das cinematecas no panorama geral de nosso
subdesenvolvimento.
338
Na França, ainda que os recursos tenham chegado a existir – tendo sido mesmo em alguns
momentos abundantes – e que graças a eles e aos enormes esforços de Langlois, Lotte Eisner,
dentre outros, foi possível constituir umas das maiores e mais belas coleções sobre cinema de todo
o mundo, o colapso também estava no horizonte de suas luzes. O affaire Langlois - destituição de
Langlois de suas funções, acusado de má-gestão da instituição que comandava - é entendido por
muitos como um ato de profunda ingerência do Estado sobre o Patrimônio da Cinemateca
Francesa, e como o princípio da idéia de rentabilizar tal patrimônio. E ainda que a batalha tenha
tido vários capítulos, e que Langlois tenha resistido ao processo, a devassa financeira e
administrativa dos controladores do Estado forçou a instauração de uma divisão de atribuições na
direção da instituição, constituindo-se o primeiro grande golpe de morte nos planos de Langlois. A
337
GOMES, P.E.S. Cinema : trajetória no subdesenvolvimento. São Paulo: Paz e Terra, 2001. P.85.
338
GOMES, P.E.S.
Uma situação colonial?
In: GOMES, P.E.S. Op. Cit. V.2. P.290.
220
tal divisão, hoje ‘clássica’ - entre direção artística e direção executiva – foi o início de uma espécie
de brazilianization avant la lettre
339
.
A principal crítica feita aos interventores do Estado é que ao invés de agir para dar condições
melhores de tratamento do acervo, eles teriam se apegado simplesmente a mutilar as contas
cotidianas da Cinemateca Francesa. As contas da Cinemateca eram altas pois os caminhos que
Langlois escolhera para a formação da coleção, e para a ação da Cinemateca Francesa foram outros
que aqueles do depósito legal. O Estado, por seu turno, defendia não só a adoção total do
dispositivo do depósito legal, como a total nacionalização da Cinemateca Francesa, em suma o
embarque da instituição nas “bonanças” e “tormentas” das políticas daqueles que estivessem no
poder.
Apenas para relembrar, o depósito legal nada mais é do que um dispositivo legal, imposto pelo
Estado, que obriga os produtores a depositarem em uma instituição pública uma cópia de todo
filme produzido por cada um deles. A principal crítica a esse dispositivo tem como base o fato de
que as cinematecas abriram mão de uma ação mais incisiva no campo da produção, pois viam na
legislação uma garantia de que o patrimônio estaria assim, de qualquer maneira, mais cedo ou mais
tarde, sob seus respectivos apanágios. A questão principal, porém, é saber o que está sendo
produzido, o que nada tem haver com censura. O fato é que em uma economia cada vez mais
monopolizada, a produção tem a tendência de se tornar, ela também, cada vez mais homogenia,
isto é, pouco democrática.
Esse é um ponto nodal do problema, pois a adoção do depósito legal como ‘solução final’ para o
problema jurídico das cinematecas, leva, em última instância, a uma abstenção dessa na
participação do desenvolvimento no campo da produção. O intuito de ambas as instituições
(Cinemateca Brasileira e Cinemateca Francesa) eram os mesmos e os caminhos escolhidos
também. Tanto Langlois como Paulo Emilio sabiam (em um plano ideal) que as respectivas
339
MANNONI, L. Op. Cit. Sobre o conceito de
brazilianization
como sinônimo de
capitalismo selvagem
, Cf:
221
cinematecas tinha uma tarefa ‘exclusiva’ a cumprir no campo da difusão de médio prazo, e em um
primeiro momento a ação das cinematecas na difusão deveria ser forte, pois elas eram as únicas
grandes fontes de referencia para tanto.
A tarefa era formar público crítico não só para os filmes, mas para tudo o que precedia sua chegada
às telas. Para isso, foram fundamentais todas as grandes atividades de difusão promovidas por
ambas as instituições. Elas fazem parte de um percurso, de um ‘plano de vôo’: de mostras de
cinematografias estrangeiras, ou retrospectivas de seus países, à nova produção desses
influenciadas pelos programas precedentes. No Brasil, Maurice Cappovilla lembra da importância
das grandes mostras retrospectivas de cinema francês, italianos, polonês, soviético, americano,
dentre outros (tanto na Cinemateca Brasileira como na Cinemateca da MAM/ RJ) para a posterior
mostra de Cinema Novo ocorrida nos quadros da Bienal. Além disto, ele valoriza as relações
anteriores estabelecidas entre Cinemateca Brasileira e o Cinema Novo, por exemplo, por meio do
cineclube de Salvador e do crítico baiano Walter da Silveira
340
.
Era natural que o trabalho se intensificasse com o tempo, devido à demanda surgida depois de
grandes mostras e eventos, como o Festival de 1954. Feito isso, esse público ajudaria naturalmente
a criar as condições (inclusive de financiamentos) para atividades de difusão em outras entidades
para além das cinematecas e cineclubes, trabalho este que seria realizado em pareceria com as
cinematecas agora com condições de conservar e ampliar seus acervos. Esse era o percurso
almejado. E, em se tratando de filmes antigos, era sobre o trabalho das cinematecas que esse
público deveria aprender. Em suma, nem Langlois nem Paulo Emilio entendiam que as atividades
da uma cinemateca deveriam sempre apresentar o ‘desequilíbrio’ entre a conservação e a difusão
que essas instituições apresentavam (somente na aparência).
NOVAIS, F; MELLO, J.M.C. Op. Cit. P.
340
CAPOVILLA, M. Depoimento à Alain Fresnot para o curta metragem Nitrato P.2. Arquivo Lucila Ribeiro
Bernardet/ Cinemateca Brasileira. ALRB/ PI.
222
Nessa etapa, as cinematecas deveriam se voltar totalmente para a pesquisa e, sobretudo para a
conservação de seus acervos, tendo em vista que a tarefa de difusão era dividida com outras
entidades capazes de angariar os fundos necessários para tanto (cópias de filmes para difusão e
gastos correntes com este tipo de atividade)
341
, surgindo aqui o outro grande elo do sistema: a
universidade, incluindo evidentemente os cursos superiores de cinema, que se manteriam com a
ajuda das cinematecas.
Mas Langlois sabia que o trajeto de seu projeto não poderia ser mesmo muito tranqüilo: “O
animador de uma Cinemateca é uma espécie de encantador de serpentes, de flautista de Hamelin, é
duro”.
342
E diante das pressões do Estado, da Indústria ou de quem fosse, esta era a tática de
Langlois: ‘fingir’ colaborar, mas arquitetando seus planos por debaixo dos panos. Ele deveria ser
paciente, no presente e sempre. Exemplo disso é a acusação de que ele, durante o trabalho de
inventário dos filmes da Cinemateca por agentes do Estado, teria subtraído filmes dos depósitos
sobre os quais ele pretendia manter segredo. Todavia, a ofensiva final do Estado não tardaria a
acontecer. E os problemas não eram apenas relativos à incompreensão do projeto. Estavam muito
além disso, residindo em um âmbito ideológico.
O secretário-geral da Cinemateca Francesa encarava a intervenção do Estado como uma segunda
ocupação. E de fato a ‘repressão’ por parte do Estado era a ‘repressão’ contra o projeto de
Langlois, contra a concepção de cinemateca formulada por ele. Era preciso fazer tabula rasa da
instituição, isto é, remover Langlois do caminho. Pois o fato é que Langlois não aceitava se
submeter totalmente às reformas que o Estado pretendia realizar nos estatutos da Cinemateca
Francesa, e para aqueles que o seguiam, a mensagem era clara: se a cinemateca não for reformada
segundo as diretrizes de André Malraux (então Ministro da Cultura da França), ela não mais tocaria
em nenhuma subvenção.
341
ANDRADE, Rudá.
Depoimento à Alain Fresnot para o curta metragem Nitrato
. Arquivo Lucila Ribeiro Bernardet/
Cinemateca Brasileira.ALRB/ PI.
342
Cahiers du Cinéma, Nº135, P.4.
Entretien avec Henri Langlois par Eric Rohmer et Michel Mardore.
223
Em vão, um dos aliados de Langlois, demissionário após o putch, declara acreditar que quando
aniquilamos a alma e o espírito de uma obra ela não pode mais existir. “Aqui vocês colocaram
pessoas que são pequenas (petite gens) (…) Não são criadores, vocês mataram o espírito. Uma
coisa como uma cinemateca se passa antes no espírito, o dinheiro vem depois
343
”.
A nova direção defendia arduamente o depósito legal. O que para nós significa uma postura
abstencionista em relação ao campo da produção tem uma conseqüência ainda mais grave. Com a
adoção do depósito legal como ‘solução final’ para as querelas jurídicas das cinematecas, a médio
prazo, os arquivos (e não mais cinematecas) correm o risco de gradativamente se transformarem
em instituições públicas que conservam um patrimônio privado, e de uso igualmente privado, isto
é: de quem tem dinheiro para produzir e principalmente distribuir e exibir. Nesses termos os casos
das cinematecas são um epifenômeno de uma doença social mais geral
344
.
É verdade que uma grande parcela dos interessados “preferiam uma cinemateca sem subvenções do
Estado, mas com Langlois, do que uma cinemateca largamente aparada pelo Estado e sem
Langlois
345
”. No entanto, a heróica e histórica contra-ofensiva pró-Langlois, não bastaria para dar
sobrevida aos seus projetos. Eles foram interrompidos e tiveram que mudar de rota. O apoio de
cineastas do mundo todo, todos os mais importantes para a história do cinema que o leitor puder
imaginar (que em bloco impediram judicialmente a exibição de seus filmes pela Cinemateca
Francesa), de sindicatos do campo cinematográfico, de acadêmicos, estudantes, de jornalistas; os
confrontos com a polícia, e a grande repercussão na imprensa internacional, nada bastou para parar
‘as reformas em prol do patrimônio’.
Laurent Mannoni pergunta espantado como um pequeno complô anti-Langlois (as vésperas da crise
de maio de 1968 na França, acrescentamos) se tornou um escândalo internacional, visto que o
Estado tinha mil razões mais ou menos válidas para destituir Langlois: “Como chegamos a esta
343
MANNONI, L. Op. Cit, P.369.
344
Ibidem, P.386.
345
Ibidem, P.395.
224
cena inacreditável: jovens cinéfilos e a elite do cinema francês Godard, Rivette, Truffaut à frente,
empunhando faixas e cartazes em favor de Langlois (…) Como a Cinemateca, tomando a
Expressão de Langlois saiu da história do cinema para entrar para a História”?
346
. A resposta não
é tão complicada quanto parece. Havia muita demanda por iniciativas como as de Langlois frente à
Cinemateca Francesa, mas elas não foram suficientes para impedir seu malogro. O porquê disso
torna-se, aos nossos olhos, a verdadeira questão a ser colocada.
Em um ponto interessante de seu depoimento a Alain Fresnot, Almeida Salles comenta a
terminologia do conceito - em algo que vai no sentido do estudo que fizemos da palavra museu,
como base do que compreendermos ser a gênese do conceito de cinemateca para Henri Langlois.
Salles comenta que os diretores da instituição entenderam ser o termo cinemateca mais adequado
para a instituição paulista – quando esta se separou do MAM – pois ele “comportava, além de
filmes, um museu de cinema”. A cinemateca era um projeto de cinema, que por si só compreende a
idéia de sistema. Mas a busca de verbas públicas para a instituição revelava o difícil percurso: 1º
incompreensão; 2º desinteresse; 3º burocracia; 4º ideologia. Sendo assim, não era mera paranóia
acusar o putch contra Langlois de uma ingerência visando a rentabilização do patrimônio sob a
guarda da Cinemateca Francesa. E o destino da congênere brasileira não foi diferente.
Apesar das duras conclusões de Paulo Emilio acerca do desfecho do processo, chamando de
‘ilusão’ a riqueza da Cinemateca Brasileira (visto a falta de condições para o tratamento da
coleção), ou argumentando certeiramente que a Cinemateca Brasileira não havia nunca existido, e
sim pessoas trabalhando em prol de um projeto, ele deixou, em seu depoimento reflexões
importantes.
Há todo um debate nos depoimentos para o filme Nitrato sobre a seguinte questão: fez falta a
ausência de uma ‘mentalidade empresarial’ para a Cinemateca? Tal questão, que pode parecer
inicialmente estapafúrdia, está muito longe disto, pois a cautela que as cinematecas tiveram com a
346
Ibidem, P.361.
225
indústria não foi a mesma que a indústria teve com as cinematecas. Nesse sentido Paulo Emilio
comenta que tudo indica que o intuito do MAM era obter financiamento através da exibição de
filmes. “Eles achavam que a Cinemateca projetando filmes ia atrair muita gente, o que realmente
acontecia, os sócios da Cinemateca eram sócios (do Museu)… (devido) as sessões de cinema que
se realizavam lá, de forma que o mal entendido era total
347
”. Infelizmente a coisa ia além de um
simples mal entendido. A mentalidade de muitos mecenas era bastante mercantil desde o inicio.
Na França, “Henri Langlois deu uma resposta selvagem a uma situação selvagem
348
”, resistindo
até o fim. Ele retornou à direção da Cinemateca, é verdade, mas sem subvenções do Estado,
situação que fez as atividades da instituição vegetar. Nada diferente do destino de sua congênere
brasileira. Resta, no entanto, um imenso patrimônio guardado nos arquivos das cinematecas do
mundo que registram, etapa por etapa, o processo do qual traçamos aqui um esboço, de outros
tempos do cinema, da política e da democracia. A nós, compete decidir sobre a maneira como
iremos lidar com nossa própria memória coletiva e social.
347
GOMES, P.E.S. Depoimento à Alain Fresnot para o curta metragem Nitrato P.7. ALRB/ PI.
348
MANNONI, L. Op. Cit, P.445.
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Depoimentos de Almeida Salles; Paulo Emilio; Maurice Capovilla e Rudá de Andrade à Alain
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Depoimentos pessoais de Rudá de Andrade ao autor.
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